05 Gardeil Psicologia

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H. D.

GARDEIL

INTRODUO FILOSOFIA DE
S. TOMS DE AQUINO

TERCEIRA PARTE: PSICOLOGIA

PREFCIO

O estudo da alma , em Aristteles, parte integrante da pesquisa fsica, onde se


inscreve como um prolegmeno da biologia. Assim, no ser surpreendente constatar
que a atividade de nossas faculdades mais espirituais a encontrem relativamente pouco
lugar. S. Toms, que s filosofa em vista da teologia, prender-se- mais
parte superior de sua psicologia. Aqui o imitaremos. E como a anlise detalhada da
atividade voluntria situa-se melhor em moral, seguir-se- que nossas mais
importantes exposies sero consagradas inteligncia. O captulo reservado a
este ltimo problema exorbitar, talvez, pela sua amplitude, ao que conviria a uma
simples iniciao. Achamos, porm, que a importncia do assunto obriga-nos a
entrar em maiores detalhes.

A tese central da psicologia - talvez fsse melhor dizer, da antropologia


aristotlica - aquela na qual, seguindo-se a frmula famosa "a alma a forma do
corpo", so determinadas as relaes das duas grandes realidades que nos constituem.
Procuramos dar-lhe todo o seu relvo e mostrar como o comportamento do homem disso
depende inteiramente.

Nesta frmula, todavia, no o ser do homem definido de maneira adequada, pois a


alma igualmente uma forma que pode existir por si. Uma pneumatologia, se assim
podemos falar, deve necessriamente vir coroar o conjunto das primeiras pesquisas, cujo
carter permanece limtrofe da biologia. Aristteles aqui hesitante e obscuro.
S. Toms, guiado por S. Agostinho e beneficiando-se de tda a luz trazida pela
Revelao, professar uma doutrina do esprito considerado como tal, a "mens", e das
atividades originais que nle se encontram: nossa alma reflete sbre si, tomando-se a
si mesma como objeto, indiretamente em nosso estado atual de vida, mas diretamente
quando separada do corpo. Donde a importncia dada aqui s teses do conhecimento da
alma por si mesma e do conhecimento da alma separada, graas s quais se nos abrem
perspectivas - alargando singularmente os horizontes do peripatetismo.

Por fim, a alma humana v-se iluminada, pelo alto, em sua estrutura profunda: seu
ser traz a marca da semelhana divina. Certamente mais discreto que um S. Boaventura
para identificar, sob seus mltiplos aspectos, a imagem de Deus em ns, no deixa
S. Toms de estimar que as ltimas explicaes sbre nosso ser provm dste
parentesco superior. "Homo ad imaginem Dei factus", o homem feito imagem de
Deus: com estas palavras do Damasceno que o Doutor anglico, no podemos
esquecer, inaugura a grande marcha da criatura racional na volta ao Princpio (cf.
S. Th. Ia. IIae., Prlogo).
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INTRODUO

1. NOO GERAL DA PSICOLOGIA

Etimolgicamente o trmo psicologia significa: cincia da alma. Esta cincia


to antiga quanto a filosofia. Desde a antiguidade, em todos os sistemas, houve um
conjunto, mais ou menos organizado, de consideraes relativas a ste assunto. Mas o
vocbulo psicolgia relativamente recente. No vai alm do sculo XVI, poca
na qual um professor de Marburg, Goclenius, deu-o como ttulo a um de seus livros.
Na realidade, o verdadeiro introdutor dste nome parece ter sido Wolff que, em sua
Psychologia empirica (1732) e em sua Psychologia rationalis, popularizou, com o
nome, uma distino que se mostraria, com o tempo, bastante feliz. Kant retomou esta
denominao. Na Frana, Maine de Biran e os eclticos tero uma influncia
decisiva na sua vulgarizao e adoo generalizada que foi obra do sculo XIX.
Por um paradoxo bastante curioso, o trmo psicologia, ou cincia da alma,
tornar-se- clssico no momento preciso em que os que entendem tratar desta matria
renunciaro, em grande parte, ao conhecimento da prpria alma.

O que poder colocar sob ste vocbulo quem entenda filosofar na linha de S.
Toms? Para responder a esta questo, convm considerar preliminarmente a evoluo
histrica das doutrinas da alma.

Na antiguidade e na Idade Mdia, duas concepes sbre a alma marcaro linhas


distintas: uma mais espiritualista, com Plato e S. Agostinho, outra mais
empirista, com Aristteles e sua escola. No sculo XIII, prevaleceu a segunda
concepo, juntamente com o conjunto da filosofia do Estagirita. A partir dste
momento, a filosofia crist ser fundamentalmente aristotlica.

Com o advento do pensamento moderno, caiu em descrdito a psicologia da Escola, como


tambm tudo o que vinha de Aristotles. Era necessrio reconstruir. A obra de
Descartes marca, neste domnio, uma volta ao espiritualismo mais exclusivo do
agostinianismo, mas no deixa de ser inovadora por adotar, como princpio mesmo do
saber, um ponto de vista de reflexo. A partir da, psquico tender a se confundir
com perceptvel pela conscincia. Mas, quanto ao seu contedo, a psicologia
cartesiana permanece ainda essencialmente metafsica: sempre a prpria alma, em sua
estrutura profunda, aquilo que se procura conhecer. No sculo XVIII, sob o
impulso de Locke e de seus mulos, um nvo passo ser dado, desta feita no sentido
de se separar dos valres metafsicos tradicionais. Os fatos psquicos tornam-se
puros fenmenos, atrs dos quais a alma e suas potncias aparecem como inacessveis.
Tende assim a psicologia a se constituir como cincia emprica comparvel s outras
cincias da natureza e cujo domnio circunscrito pela conscincia.

Nesta linha, vo os estudos psicolgicos tomar um desenvolvimento prodigioso. Embora


posteriormente no faltem metafsicos do espiritual, como um Lachelier ou um Bergson
na Frana, a preocupao fundamental consiste em erigir uma psicologia cientfica
autnoma, da qual sero eliminados os problemas transcendentes da alma e de seu destino.
Os progressos maravilhosos das cincias experimentais autorizam tdas as esperanas.
Se fenmenos fsicos so organizados e explicados segundo mtodos cientficos
rigorosos, por que no acontecer o mesmo com a vida do esprito? Abandonemos, ou
deixemos a outros, disputas sbre a alma e suas faculdades e fiquemos com a observao
de fatos precisos e com a formulao de leis bem controladas: assim construiremos uma
psicologia verdadeiramente cientfica e objetiva capaz de conjugar a adeso de todos.
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Seguindo ste programa, um intenso trabalho de observao e de experincia
efetuado no mundo dos psiclogos, ao qual trabalho somos devedores por ste imponente
monumento da moderna cincia da alma que, praticamente, tomou o lugar da antiga
psicologia especulativa.

Pode ser justificada uma tal evoluo no sentido da constituio de uma cincia
psicolgica autnoma? Ou, de maneira mais precisa, pode-se reconhecer, ao lado da
suposta sempre vlida metafsica da alma, uma psicologia do tipo das cincias
experimentais? Tal a questo a que deveremos, antes de tudo, responder.

At o sculo XVIII, como dissemos, h s um conjunto de consideraes


psicolgicas sistemticas integrado em uma sabedoria filosfica geral e tratado segundo
seus mtodos. Quais so seus caracteres?

A psicologia antiga , antes de tudo, de dimenso verdadeiramente filosfica: isto


, pretende chegar aos princpios primeiros do psiquismo; e tambm no sentido em que
no se tema, para isso, lanar mo de categorias mais gerais, como, por exemplo, no
aristotelismo, substncia e acidentes, matria e forma, ato e potncia, etc. Em
segundo lugar, uma tal psicologia deve ser chamada, rigorosamente falando,
cientfica: isto , procura a explicao pela causa prpria, sendo a observao e
a classificao dos fenmenos smente uma fase preparatria a ste escopo.
Todavia, preciso reconhecer que, mesmo tendo um acentuado carter racional, a
Psicologia Antiga era tambm, a seu modo, emprica, se no experimental. No
aristotelismo, em particular, parte-se sempre de um dado controlado: um empirismo
moderado, onde a explicao prolonga e sistematiza de maneira feliz a experincia,
surge como o trao distintivo desta filosofia. Em resumo, a psicologia compreende uma
nica cincia da alma, emprica e racional ao mesmo tempo.

Deveremos concluir que os princpios dste sistema probem considerar separadamente um


ou outro tipo desta cincia psicolgica? Parece que no. Em nossos dias, alis,
a separao comumente admitida. So necessrias, porm, algumas
observaes.

Antes de tudo, seja reconhecido que a distino pelos caracteres experimental e


racional s tem um valor aproximativo, marcando apenas uma acentuao do mtodo em um
sentido ou em outro. Na realidade, estas denominaes podem trazer confuso, pois
nenhuma cincia se estabelece sem experincia e sem razo e seria prefervel, para
distinguir estas duas disciplinas, referir-se ao nvel de explicao onde cada uma se
situa. Assim, ter-se- uma psicologia filosfica ou metafsica, que buscaria os
princpios mais elevados, e uma psicologia cientfica, no moderno sentido da palavra,
que ficaria com as explicaes mais imediatas.

Seja admitido, alm disto, que uma psicologia do tipo experimental no pode julgar,
em ltima instncia, da profundidade dos problemas da alma, isto , erigir-se em
verdadeira sabedoria filosfica, pois tal funo pertence prpriamente disciplina
superior.

2. OBJETO DA PSICOLOGIA

A determinao do objeto, ou do duplo objeto, da psicologia depende, evidentemente,


da orientao geral da filosofia que se professa. Um espiritualista, maneira de
S. Agostinho ou de Descartes, ser levado a assinalar, como objeto desta cincia, a
atividade da alma considerada fora de todo comportamento corporal. Partindo-se, pelo
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contrrio, de preconceitos materialistas, a tendncia ser de reduzir o psiquismo ao
fisiolgico e mesmo ao fsico. E, por fim, quem se colocar na linha, que a
nossa, do espiritualismo moderado de Aristteles, dever compreender, no objeto em
questo, um e outro dstes aspectos. Mas nesta via ainda so possveis duas
opes.

Para Aristteles, todos os fenmenos vitais podem ser chamados psquicos. Assim,
o psiquismo define-se pela vida e todos os sres viventes, mesmo animais e plantas que
esto abaixo de ns, pertencem cincia da alma. Nesta hiptese poder-se-
dizer que a psicologia tem por objeto:

o vivente enquanto princpio de atividades vitais.

Esta concepo, como teremos ocasio de mostrar, encontra sua justificao ltima
na distino, que fundamental no peripatetismo, de dois grandes tipos de
atividade: a atividade transitiva (que modifica um outro alm do sujeito) e a atividade
imanente (que, procedendo do sujeito, o aperfeioa). Segundo esta diviso, os
no viventes so seres que tm smente atividades transitivas, enquanto os viventes,
como tais, so dotados de atividades imanentes ou movem-se a si mesmos. Pode-se
conseqentemente precisar que a psicologia tem por objeto:

os seres dotados de atividades imanentes ou que se movem a si


mesmos, considerados como tais.

O psiquismo, segundo esta concepo, fica bem caracterizado, permanecendo na


prtica a dificuldade de discernir, em todos os casos, se tal operao vital ou
no.

Na linha dos modernos, tender-se- a reter um outro aspecto para definir o


psiquismo: o de consciente. psquico, ou interessa prpriamente psicologia, o
que suscetvel de ser atingido pela conscincia. Segundo esta maneira de ver,
fcil descobrir que tda uma parte do vital, o infra-consciente, encontra-se
excluda de nosso objeto; o caso da vida das plantas e, parcialmente, mesmo da vida
do animal e do homem. O domnio a ns reservado aqui mais restrito.

De nossa parte, sem negar que o fato de ser conscientes ou reflexivos constitua, em um
certo nvel, um dos traos mais notveis dos atos da vida, preferimos, para definir
o psiquismo, ficar com S. Toms no ponto de vista do vital que corresponde a uma
diferena mais fundamental dos sres. Assim permaneceremos na linha do peripatetismo
autntico.

3. MTODO DA PSICOLOGIA.

Sendo de pouco proveito consideraes sbre o mtodo antes de seu emprgo,


limitar-nos-emos aqui a esclarecer dois pontos.

Introspeco e mtodo objetivo. Como tda cincia, a psicologia repousa sbre o


conhecimento dos fatos. Nisto o aristotelismo harmoniza-se perfeitamente com as
exigncias modernas. Os fatos psquicos, porm, ao menos os que so de nvel
elevado, tm de particular o fato de poderem ser atingidos de dois modos diferentes:
objetivamente, enquanto so solidrios com o mundo percebido pelos sentidos, e
subjetivamente, em sua especificidade de fatos de conscincia. A esta dupla
possibilidade de acesso ao psiquismo correspondem dois mtodos, um objetivo e outro
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subjetivo.

O mtodo subjetivo, ou introspeco, caracterstico da psicologia. Os antigos


j o utilizavam, embora no o empregando de modo sistemtico. Depois, adotou-se a
seu respeito duas atividades contrrias: para alguns a introspeco o nico meio
que permite constituir uma psicologia autntica, enquanto para outros tal mtodo
cientificamente pouco vlido, por causa de sua incerteza e de seu subjetivismo.

Face a estas afirmaes opostas, parece que se deve reconhecer, ao mesmo tempo, o
seguinte: em primeiro lugar, que a introspeco para o psiclogo uma fonte
autntica e normal de informao e que mesmo o meio privilegiado de se atingir tda
a zona superior do psiquismo. E, em segundo lugar, que tal mtodo implica em um fator
de incerteza, tanto por causa da fugacidade dos estados de conscincia, como pela
impossibilidade de os submeter diretamente a processos de medida. De qualquer maneira,
exige ser controlado e completado pela informao objetiva.

Os mtodos objetivos, por sua vez, compreendem o conjunto dos processos graas aos
quais a vida psquica pode ser estudada exteriormente. O esprito, com efeito, est
liado matria, o psquico ao fsico; a vida da alma repercute nos comportamentos
corporais e pode ser considerada sob ste prisma.

Aristteles no desprezou ste aspecto do estudo da alma. mesmo a ttulo de


corpos, fazendo parte do cosmo como os elementos fsicos, que le aborda os viventes,
intervindo s depois a anlise interior das funes prpriamente psquicas. Por
ste lado, o peripatetismo aparenta-se com a psicologia mais atual. Os meios tcnicos
desta deixam-no evidentemente bem atrs, mas trata-se smente de maior ou menor
perfeio de mtodo.

Em definitivo, a psicologia utilizar combinadamente o mtodo de introspeco e o de


observao objetiva, e nada impede que tome a seus servios as mais modernas tcnicas
de experimentao. Nada proibe tambm que, nas mesmas condies, sejam utilizados
os mtodos comparativos ou diferenciais que a psicologia animal, a psicologia
patolgica e a psicologia gentica podem oferecer. No so raras, nos antigos,
observaes desta ordem. Tda fonte de informaes ser pois, legtima, mas sob a
condio de no pretender ser exclusiva e de no trazer consigo preconceitos no
controlados.

Mtodo filosfico e mtodo teolgico. Uma outra questo relativa ao mtodo


colocada em filosofia tomista. Aristteles, como natural, desenvolveu suas
concepes seguindo uma ordem puramente filosfica e S. Toms, em seus
comentrios, segue-o por ste caminho; mas em suas obras de teologia, o Doutor
anglico procede de modo diverso. Para perceber isto basta confrontar a progresso do
De Anima e a da grande exposio psicolgica da Prima Pars (q. 75 a 89) .
Na primeira destas obras, parte-se do mundo fsico, onde certos corpos revelam a
propriedade notvel de se mover a si mesmos: so os vivos. Estudam-se suas
atividades a partir das mais humildes, at que se descobre uma atividade superior,
absolutamente independente da matria, o pensamento, que nos abre acesso a outro
mundo, o do esprito. Assim especula como filsofo quem, normalmente, eleva-se do
menos abstrato ao mais abstrato ou do sensvel ao inteligvel. Na Summa Theologica,
pelo contrrio, o homem apresenta-se no seu conjunto, no como um corpo entre outros
corpos, mas como uma criatura composta de um corpo e de uma alma, vindo esta diretamente
de Deus e constituindo nosso objeto principal. A ordem das questes e a importncia
dada a cada uma delas aqui evidentemente bem outra. Da segue-se que a psicologia
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tomista pode ser apresentada autnticamente de duas maneiras diferentes: conforme o
plano e no esprito do De Anima, ou colocando-se no ponto de vista dos tratados
teolgicos que lhe correspondem. Na segunda hiptese, tem-se a vantagem de expor, em
sua linha mesma, as mais pessoais concepes de S. Toms. Seguindo o De Anima,
ganha-se em se situar na fonte mesma da doutrina e, considerao que para ns
decisiva, especula-se como filsofo que no tomismo, como de direito, s atinge o
espiritual a partir do mundo dos corpos.

Seguiremos a ordem progressiva do tratado de Aristteles sem negligenciar a rica


contribuio das Summas. Com esta obra comearemos pelo estudo geral da alma,
princpio da vida, e de suas faculdades; em seguida, consideraremos sucessivamente os
trs grandes graus clssicos da atividade psquica humana, a saber, vida vegetativa,
vida sensitiva e vida intelectiva; por fim, em uma ltima parte, voltaremos ao
problema especial da alma, no qual teremos sido introduzidos pela questo de sua
atividade superior. A exposio subdivide-se assim:

1. A vida, a alma e suas faculdades.


2. A vida vegetativa.
3. A vida sensitiva.
4. A vida intelectiva.
5. A alma humana e seus problemas.

4. FONTES E BIBLIOGRAFIA

De que material se pode dispor para constituir uma psicologia tomista? Essencialmente,
da obra mesma de Aristteles que sua fonte principal.

Sob a denominao geral de escritos bio-psicolgicos de Aristteles, o "corpus"


aristotlico compreende uma srie importante de obras. Eis a lista, com sua
subdiviso comumente aceita em trs conjuntos:

- o De Anima (em trs livros)

- os Parva Naturalia, conjunto dos pequenos escritos


seguintes:

De sensu et sensato
De memoria et reminiscentia
De somno - De Somniis
De divinatione per somnum
De longitudine et brevitate vitae
De vita et morte
De respiratione

- O grupo dos livros de cincias naturais prpriamente


ditas:

Historia animalium
De partibus animalium
De motu animalium
De incessu animalium
De generatione animalium
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Atribuiu-se ainda a Aristteles um De plantis, mas esta obra seria apcrifa. Por
outro lado, a autenticidade dos escritos anteriormente enumerados no parece duvidosa.

Aristteles, na fsica, abrangeu o estudo do ser vivo e de seu princpio, a alma.


Todavia, reconhecendo no trmo de sua pesquisa a existncia de uma atividade da alma
independente do corpo, a saber, o pensamento, abriu outras perspectivas e ps, sem
alis resolver, a questo mesma do estatuto fsico de nossa cincia. Sua obra
psico-biolgica, tal como le a realizou, conserva o carter de um saber de tipo
naturalista.

Como ajusta-se, pois, esta obra no conjunto dos escritos fsicos? Esquemticamente
se pode dizer que, como fsico, Aristteles vai do mais universal ao mais
particular; assim, comea por considerar os movimentos e os mveis em geral, estudando
a seguir cada uma das suas espcies e notadamente ste movimento e ste mvel que so
a vida e seu princpio, o ser vivente. O sujeito psicolgico parece, portanto, na
exposio do Estagirita, como um corpo particular entre os outros corpos, e a cincia
que lhe corresponde, como uma seco especial do estudo geral da natureza.

Foi o conjunto dos escritos bio-psicolgicos de Aristteles composto de uma s vez,


representando assim um estado estabilizado de seu pensamento, ou seria conveniente ver
nle momentos sucessivos? Considerando globalmente o desenvolvimento da filosofia do
Estagirita, o crtico alemo, W. Jaeger falou de uma evoluo que vai de
posies mais platnicas e mais metafsicas, para um estatuto mais independente da
teoria das idias e de esprito mais experimental. Um tal esquema seria vlido para a
psicologia? Esta questo formulada por F. Nuyens, em um recente estudo
(Evolution de la psychologie d'Aristote, Louvam, 1948). Eis suas concluses.

Aristteles, em seus primeiros dilogos, teria ainda permanecido fiel concepo


platnica da alma, onde esta surge como nitidamente oposta ao corpo. Em um perodo de
transio, ao qual correspondem smente textos menos importantes, teria comeado a
aproximar os dois trmos. Em suas grandes obras, enfim, chega doutrina da alma
como forma do corpo, doutrina capital que marca tda a sua psicologia. Assim, o
problema em trno ao qual a psicologia de Aristteles teria progressivamente tomado sua
consistncia original seria o das relaes entre a alma e o corpo. ste problema,
alis, no ter nesta obra soluo completamente adequada, pois permanecer, no
fim, a aporia de uma alma que , ao mesmo tempo, solidria do corpo em sua funo de
forma substancial, psych, e que o transcende como princpio das operaes
espirituais, nous. O pensamento progride todavia, de modo claro, n sentido de uma
encarnao da alma cada vez mais marcada. Destas consideraes poderemos reter,
presentemente, que os principais escritos psicolgicos do Estagirita, o De Anima em
particular, pertencem todos ao perodo em que seu pensamento havia se estabilizado
naquilo que sempre foi considerado como sua doutrina definitiva. Ser possvel,
pois, utiliz-los como fonte de informao homognea.

Teve Aristteles, ao escrever stes diversos tratados, um plano de conjunto? E se


teve, qual foi?

S. Toms, seguindo Alberto Magno, assim ordena o estudo de Aristteles :


frente, comandando todos os tratados particulares, o estudo da alma (De Anima), pois
todos os viventes tm uma alma como princpio de suas atividades; em seguida, as
outras obras, consagradas aos diversos viventes, s suas partes e s suas funes.

Esta classificao no sem fundamento. Outros intrpretes maiores, contudo,


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Alexandre de Afrodsias, Averris, (cf. Festugire, La Place du De Anima
dons le systme aristotlicien d'aprs saint Thomas, em Archives d'histoire
littraire et doctrinale du M.A., 1932) vem as coisas diferentemente. Para
les, conviria colocar, em um primeiro grupo, escritos tratando das partes materiais dos
animais; a seguir, smente o De Anima, que estuda a forma dos viventes; viriam,
enfim, os outros escritos consagrados s propriedades ou funes mais particulares.
Esta ltima ordenao, que parece prefervel, tem a vantagem de valorizar o aspecto
fsico ou encarnado desta psicologia: assim, de um lado afastar-se- de um
espiritualismo abstrato que colheu simpatias em poca bastante recente e, de outro,
aproximar-se- das pesquisas contemporneas onde o estudo do comportamento corporal teve
to grande importncia. Sob esta luz Aristteles aparecer bem atual.

A psicologia de S. Toms. Sabemos que S. Toms apresenta-se seja a ttulo de


comentador de Aristteles, seja como telogo que utiliza e aperfeioa, para o seu
fim prprio, uma psicologia.

S. Toms comentou autnticamente o De Anima, o De Sensu et Sensato, o De


Memoria et Reminiscentia; so apcrifos os outros comentrios contidos nas edies
completas de suas obras (cf. o prefcio de Pirotta sua edio do De Sensu et
Sensato). Em suas obras teolgicas encontramos trs grandes conjuntos sistemticos de
psicologia: Contra Gentiles, L, II, c. 56-101; Summa Theologica, Ia
Pa, q. 75-89; Quaestio Disputata De Anima. Inmeros textos mais
fragmentrios acham-se dispersos no conjunto da obra, notadamente nas questes
disputadas De Veritate, De Potentia, De Malo.

As fontes devem ser precisadas em cada caso. O fundamento primeiro vem de


Aristteles, minuciosa e inteligentemente comentado e longamente meditado. As obras dos
grandes comentadores antigos (Alexandre de Afrodsias, Avicena, Avencebrol,
Averris, Maiomnide) so, de igual modo, freqentemente utilizadas.

A psicologia de S. Toms deve tambm muito aos escritos de inspirao platnica,


talvez smente a ttulo de reao. Assim Santo Agostinho que, de modo to
genial, aprofundou na linha do cristianismo os problemas da alma, ser colocado entre
seus inspiradores mais constantes.

Quanto aos comentrios e livros modernos, todos os comentrios clssicos abordam


necessriamente, com S. Toms, os problemas da alma. Vejam-se sobretudo os mais
fiis, os de Cajetano, Silvestre de Ferrara e Joo de S. Toms; ste ltimo
o nico que apresenta uma exposio sistemtica do conjunto da matria (cf.
Cursus Phil. III, De Anima); inmeros manuais escolsticos contemporneos
apenas reproduzem esta exposio.

Entre os modernos intrpretes de Aristteles citaremos em particular Rodier, que


traduziu para o francs e comentou o De Anima, Ross e Nuyens, na obra anteriormente
citada.
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A VIDA E SEUS GRAUS

1. CARACTERES DISTINTIVOS DO VIVENTE.

A noo do vivente e sua distino do no-vivente so do domnio comum. Todos


tm uma certa idia destas coisas. Sbre que fundam-se, pois, estas concepes
espotneas?

Sendo velada ao nosso olhar a natureza dos sres que nos rodeiam, , praticamente, a
partir de suas atividades que podemos julg-la. Considerando a atividade dos viventes
e confrontando-a com a dos no-viventes, teremos j oportunidade de esclarecer a
noo que nos preocupa. J Aristteles procedia dste modo: "Dos corpos
naturais, uns tm a vida e outros no tm, e por vida entendemos o fato de se nutrir,
crescer e perecer por si mesmo" (De Anima, II, c. 1, 472 a. 13).

Comentando esta passagem, nota S. Toms que o Filsofo no cogitou definir aqui a
vida de maneira completamente formal, mas caracteriz-la por algumas de suas
operaes tpicas e acrescenta que ainda outros exemplos de atividade poderiam ter sido
dados, ao menos aqules que dizem respeito aos viventes mais elevados a saber, os de
vida sensitiva e de vida intelectiva. Portanto, nutrir-se, crescer, perecer,
sentir, pensar e, poder-se-ia acrescentar, mover-se localmente ou gerar, so tantas
operaes que se reconhecer nos viventes, e que, inversamente, se negar s coisas
inanimadas.

Um outro aspecto permite ainda distinguir o vivente: diz-se que, ao contrrio das
coisas puramente materiais, le um ser organizado, isto , composto de partes
heterogneas ordenadas entre si. Um vegetal, por exemplo, compreender razes,
haste, ramos e flhas, cuja estrutura diversificada permite a um conjunto harmonioso de
funes exercer a sua atividade em vista da perfeio do ser total. As partes de um
corpo mineral simples, pelo contrrio, so tdas homogneas, ao menos quanto nos
permitido observar em nossa escala. Mas, em definitivo, ste segundo carter dos
viventes liga-se ao precedente que o mais fundamental.

2. DEFINIO FORMAL DE VIDA.

Em que precisamente distingue-se a atividade do vivente da atividade do no-vivente?


A mais rudimentar observao testemunha que o vivente tem, como coisa prpria, uma
interioridade ou uma espontaneidade que no so encontradas alhures: por sua
iniciativa que o animal se desloca, nutre-se ou se reproduz, enquanto a pedra parece
receber seus impulsos s do exterior. ste fato expresso nestes trmos: o vivente
tem por carter distintivo mover-se por si mesmo, ao contrrio dos noviventes que
tm, por sua natureza, o serem movidos por outros. Os trmos movimento e movido so
aqui tomados em sua acepo mais geral, envolvendo tdas as espcies de mudanas.
Tal a definio consagrada no peripatetismo:

"Propria autem ratio vitae est ex hoc quod aliquid est natum
movere seipsum, large accipiendo motum, prout etiam
intellectualis operatio motus quidam dicitur. Ea enim sine
vita dicimus quae ab exteriori tantum principio moveri
possunt"

De Anima, II,
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1. 1
S. Th. Ia Pa q.
18 a 1

O vivente , pois, um ser que se move a si mesmo. O que se quer justamente exprimir
com isso? Numa primeira considerao, a espontaneidade, ou ste impulso vindo do
interior mesmo, que parece caracterizar a atividade vital. O vivente tem em si o
princpio eficiente de sua atividade. Tal observao exata. Mas no se deve
deduzir da que no no-vivente o movimento no procede de modo algum do interior e
que, inversamente, no caso do vivente, a atividade no tem condies exteriores. Em
virtude de sua forma pode tambm o no-vivente ser chamado como certo princpio de
atividade, mas le smente transmite, de certo modo mecnicamente, o impulso ou a
determinao que tenha recebido. O vivente por sua vez, que tambm depende, de muitos
modos, do meio que o cerca, reage de maneira original, transformando segundo sua
prpria iniciativa o que recebe de fora, e isto de maneira cada vez mais pessoal
medida que suas atividades so mais elevadas. No nvel simplesmente fisiolgico,
esta reao prpria do vivente recebeu um nome, o de irritabilidade; assim
dir-se- que a irritabilidade , neste nvel, caracterstica da vida.

Contudo, "mover-se a si mesmo" tem ainda um outro significado mais fundamental: isto
, que o ser vivo toma-se a si mesmo como objeto ou como trmo de sua atividade; os
viventes so fins para si mesmos. Enquanto os corpos materiais, em suas atividades,
parecem ordenados smente s coisas exteriores que transformam, agem os viventes, por
sua vez, para seu proveito prprio, procurando ao mesmo tempo sustentar-se no ser e
adquirir seu pleno desenvolvimento. Dste modo sua atividade permanece, de certa
maneira, nles, ou imanente. Esta qualidade admite, alis, graus mltiplos,
indo da interioridade ainda bastante relativa dos vegetais posse absolutamente perfeita
de si que s se realiza em Deus.

3. OS GRAUS DA IMANNCIA VITAL.

A experincia vulgar, no contrariada de modo decisivo pela cincia, sempre


distinguiu na natureza trs grandes tipos de sres vivos: vegetais, animais e homens.
Fundando-se nesta constatao, a filosofia reconhecer uma hierarquia de trs graus
de vida: vida vegetativa, nas plantas; vida sensitiva, nos animais; vida
intelectiva, no homem; encontrando-se os graus inferiores desta hierarquia tambm nos
superiores. S. Toms manifestamente se compraz na considerao desta hierarquia dos
graus de vida e diversas vzes a representou (cf. Cont. Gent., IV, c. II;
S. Th. Ia Pa, q. 18, a. 3 q. 78, a. 1; Quaest. disp. De Anima, a.
13; de Pot. q. 3 a. 11; De Verit, q. 22, a. 1; De spirit. creat. a.
2). Em alguns dstes textos, a gradao toma seu fundamento na imaterialidade
relativa das formas e de suas atividades, mas de preferncia pela imanncia vital
das diversas operaes que as diferenas so estabelecidas. Assim no texto
fundamental da Prima Pars (q. 18, a. 3) S. Toms, partindo do princpio de
que um ser tem vida tanto mais elevada quanto mais age por si mesmo, estabelece uma
classificao a partir da interioridade mais ou menos perfeita dos diversos elementos
(forma principal, forma instrumental, fim) que so supostos pela atividade de um
vivente. Trs casos devem, ento, ser distinguidos:

- o dos sres (as plantas) que, recebendo da natureza sua


forma e seu fim, comportam-se como puros instrumentos de
execuo;
11
- o dos sres (os animais) que, embora ainda no
designando seu fim prprio, adquirem por si mesmos as formas
que dirigem suas atividades, a saber, as representaes
sensveis que os fazem mover-se;

- enfim, o dos sres (os homens) que, dotados de


inteligncia, so ao mesmo tempo capazes de tomar posse de
seu fim e da forma que est no princpio de suas
operaes:

"Tendo-se dito que as coisas vivem segundo se movem por si mesmas e no segundo so
movidas por outro, conforme isto convenha mais perfeitamente a uma coisa, tanto mais a
vida nela se encontra de maneira mais perfeita. Ora, nos motores e nos movidos,
encontram-se, por ordem, trs coisas. O fim, com efeito, pe de incio o agente em
movimento; o agente principal , de sua parte, aqule que age por sua forma prpria,
e acontece que ste agente mesmo s opera atravs de um instrumento que no age por
sua forma prpria, mas em virtude da forma do agente principal, de sorte que lhe seja
atribuda smente a execuo da ao. H, pois, certos sres que se movem por
si mesmos, no todavia segundo a forma ou o fim que tm pela natureza, mas quanto
execuo do movimento, encontrando-se nles, determinados pela natureza, a forma pela
qual agem e o fim segundo o qual agem: tais so as plantas que crescem ou diminuem
segundo a forma que lhes foi conferida pela natureza.

H outros que se movem a si mesmos, desta vez no mais smente com relao
execuo do movimento, mas ainda quanto forma que est no seu princpio, a qual
adquirem por si mesmos: dste tipo, so os animais nos quais o princpio de movimento
no uma forma natural, mas uma forma recebida pelos sentidos: e quanto mais perfeitos
forem seus sentidos, tanto mais perfeitamente movem-se a si mesmos . . . Mas,
embora adquiram por meio de seus sentidos as formas que esto no princpio de seus
movimentos, tais animais no determinam para si o fim de suas operaes e de seus
movimentos, sendo-lhes ste impsto pela natureza cujo instinto leva-os a agir por
meio da forma apreendida pelos sentidos. Mais acima dos animais encontram-se,
portanto, os que a si mesmos se movem mesmo quanto ao fim que estabelecem por si; isto
s se pode realizar pela mediao da razo e da inteligncia qual convm conhecer
o proporcionamento do fim e do meio e ordenar um ao outro".

Nesta ltima hiptese convir ainda distinguir o caso das inteligncias inferiores
que, como o homem, encontram-se ainda condicionadas ao menos no que concerne aos
primeiros princpios do esprito, e o caso da inteligncia divina que, estando sempre
em ato, perfeitamente autnoma, atingindo assim o grau mais elevado da imanncia
vital.

No Contra Gentiles (IV, c. II) retoma S. Toms a mesma exposio, desta


vez no contexto das processes trinitrias. Parte do seguinte princpio: quanto mais
uma natureza elevada, tanto mais o que dela emana interior.

Assim, no grau inferior das coisas encontramos os corpos materiais nos quais s pode
haver emanao sob a influncia de um outro; segundo ste modo, do fogo gerado
fogo por alterao de um corpo estranho.

Acima vm as plantas, para as quais pode-se j falar em emanao interior. com


efeito no interior mesmo da planta que o humor convertido em semente. Mas fcil
ver que neste caso no h interioridade perfeita, pois a emanao de que se trata, a
12
semente, acaba realizando um ser inteiramente distinto. Alis, vendo-se bem, o
princpio original desta emanao, o alimento, exterior.

Mais alto, com os animais, atinge-se a um grau superior de vida que tem o seu
princpio na alma sensitiva. Sua emanao termina, desta feita, em um trmo
verdadeiramente imanente: a imagem percebida pelos sentidos, passando pela
imaginao, atinge a memria onde conservada. Contudo, princpio e trmo da
emanao so ainda aqui distintos, pois as potncias sensveis no podem refletir
sbre si mesmas.

Com a inteligncia, enfim, que reflexiva, nos encontramos no grau mais elevado da
vida. Mas ainda aqui gradaes devem ser estabelecidas, realizando-se a interioridade
da atividade desta faculdade de maneira mais ou menos perfeita segundo se trate:
primeiro, do homem, que busca no exterior o dado primeiro de sua vida intelectual;
segundo, do anjo, que consegue conhecer-se diretamente, mas em uma concepo que
ainda distinta de sua substncia; e terceiro, de Deus, em cuja unidade e imanncia
perfeitas a atividade vital atinge sua perfeio.

Em definitivo, atividade vital, de uma parte, e imanncia ou interioridade, de


outra, so trmos correlativos cuja progresso paralela corresponde hierarquia de
perfeio dos sres. Alm disso, realizada de maneira proporcional nos diversos graus
desta hierarquia, a noo de vida essencialmente analgica: assim, a vida de uma
planta, a de um animal, a de um homem, ou a de um puro esprito, no so
especificamente semelhantes, e no caso do homem, no qual diversos graus de vida se
encontram, s h semelhantemente proporo analgica entre a atividade de cada um
dles. Seja dito isto para que se evite tratar destas coisas em esprito de
univocidade.
13
DEFINIO ARISTOTLICA DA ALMA

1. O PROBLEMA DA ALMA.

O problema da alma colocado pelo problema mesmo da vida e os mais primitivos


espritos, ao que parece, disto tiveram conscincia. Eis sres que, em meio a
outros, distinguem-se por sua organizao notvelmente unificada, bem como por seu
comportamento inteiramente original: no se deve atribuir estas singularidades
existncia nles de um princpio invisvel, a alma, que aparece no momento da
gerao do indivduo e cujo desaparecimento coincide com o instante de sua morte?
Bastante ligada s questes religiosas e morais, esta crena na alma tomou formas
extremamente variadas; o sbio Erwin Rohde historiou, para a Grcia, as diversas
formas desta crena (cf. sua obra clssica: Psych). -nos necessrio passar
alm, contentando-nos em reconhecer, no ponto de partida, que a alma se nos apresenta
como princpio de vida.

Precisemos logo que de maneira comum se entende por alma o princpio primeiro e mais
profundo da vida. Na procura dos princpios desta ordem, com efeito, poderamos
parar em trmos mais imediatos, como os rgos, ou em faculdades particulares, como
a inteligncia. Com a alma atinge-se o trmo alm do qual no se precisa ir na
explicao do dinamismo dos viventes: "na procura da natureza da alma, convm
pressupor que o primeiro princpio da vida nas coisas que vivem entre ns (S.
Th. Ia Pa, q. 75, a. 1) . Acrescentemos, para evitar todo equvoco, que a
alma, da qual trataremos neste captulo, a alma comum a todos os viventes,
vegetais, animais, bem como homens. Os problemas considerados sero os que concernem
alma em geral. Os da alma humana, como forma imaterial e princpio da vida
superior, sero abordados s mais tarde.

J sabemos que, sbre o problema que abordamos, Aristteles havia sido levado, por
suas reflexes pessoais, a evoluir de uma posio espiritualista, vizinha de
Plato, posio mais animista que se tornaria caracterstica de sua concepo do
vivente. Seria extremamente interessante seguir de perto esta evoluo to reveladora
do trabalho profundo de seu esprito. Ainda aqui precisamos nos contentar em nos
referir aos estudos dos especialistas (cf. a obra citada de Nuyens). A presente
exposio tomar a doutrina, pois, no estado de imaturidade que havia adquirido no
momento em que foi consignada no De Anima.

A definio da alma a pea essencial desta obra. Aristteles comea, como


havia feito no livro A da Metafsica na busca das causas, por expor e criticar as
teorias antecedentes (I, c. 2-5) ; depois d a sua prpria soluo (II,
c. 1-2). Na parte histrica de sua exposio, o Estagirita, com seus
predecessores, considera a alma sucessivamente como princpio de movimento e como
princpio de sensao. Na discusso, a maior parte dos argumentos dirige-se contra
as concepes materialistas da vida psquica; mas o dualismo espiritualista de
Plato igualmente atacado.

S. Toms, em seu comentrio ao De Anima, segue de perto o texto precedente. Mas


tratou tambm a questo de maneira pessoal (cf. sobretudo: Cont. Gent. II, c.
56 s; 1 P, q. 75 e 76; Quaest Disp. de An., a.1). Quanto ao
fundamento, parte o problema da imortalidade, sua doutrina reproduz fielmente a de seu
mestre. Mas, convm no esquecer que, quando faz teologia, S. Toms situa-se em
outra perspectiva: aparece ento a alma espiritual criada por Deus e a questo
14
principal saber como ela pode se unir ao corpo. Alm disso, a argumentao
v-se complicada, em S. Toms, pela discusso das opinies dos comentadores
antigos e rabes, Alexandre de Afrodsias e Averris notadamente.

Presentemente reter-se- sobretudo que Aristteles e seu discpulo tiveram


principalmente que lidar, nesta questo, com dois conjuntos de doutrinas que igualmente
rejeitaram, o mecanismo materialista e o dualismo absoluto, e que a partir da foram
levados a apresentar sua soluo pessoal do animismo: o que vamos relatar
sucintamente.

2. A CRTICA AO MECANICISMO.

As concepes materialistas ou mecanicistas da alma no so o apangio do pensamento


contemporneo. Aristteles e sua escola j se tinham ocupado com tais doutrinas. Qual
a sua atitude a respeito delas?

Sigamos a exposio da Summa Theologica que particularmente lcida (Ia Pa,


q. 75). Pode-se dizer de incio que a alma um corpo (a. 1)? No, pois o
que distingue o corpo vivo, como tal, do corpo no vivo no pode ser um corpo, pois
do contrrio todos os corpos deveriam ser reconhecidos como vivos. Se considerarmos
especialmente o caso da alma humana, (a. 2), convm acrescentar que sua operao
superior, o conhecimento intelectual, no pode ter um corpo como princpio. Possuir
uma natureza corporal determinada seria para a inteligncia um obstculo ao conhecimento
exterior de naturezas semelhantes, e assim no se poderia mais dizer que uma tal
faculdade de conhecer est em potncia para todos os inteligveis.

Se a alma no um corpo considerado em sua materialidade bruta, no se poderia


admitir que seja algo resultante da combinao dos elementos? S. Toms encontrava
esta teoria sob duas formas bastante parecidas: a da "alma complexo", atribuda ao
mdico Galeno, e a da "alma harmonia", que remontava a Empdocles (cf. Cont.
Gent. II, c. 63-64) . O vivente, como os outros corpos, seria efetivamente
composto s de elementos materiais, mas entre stes haveria uma certa proporo que,
sem constituir um verdadeiro princpio formal, pois antes uma resultante que um
princpio, explicaria a organizao e a atividade do conjunto. No pode ser assim.
Uma simples complexo corporal, ou uma harmonia, no pode desempenhar o papel de
princpio motor, nem dirigir o corpo contrariando suas tendncias prprias, como
acontece s vzes; nem tampouco explica as operaes que, como o conhecimento,
ultrapassam manifestamente as qualidades da atividade e da passividade dos elementos
materiais. Impe-se, portanto, no princpio da vida, que haja uma realidade de
consistncia completamente outra.

Para no ficar em argumentos gerais, relatemos a discusso da teoria de Empdocles


feita por S. Toms sbre um ponto preciso. Trata-se do fenmeno do aumento ou
crescimento dos viventes. Para explic-lo, no haveria nenhuma necessidade de
recorrer a uma alma; bastaria o deslocamento natural dos elementos graves e leves.
assim que para as plantas o aprofundar-se das razes proviria do movimento prprio para
baixo do elemento terra que elas comportam, enquanto que o movimento do vegetal para cima
viria da ascenso natural do elemento fogo. Ora, nota S. Toms, impossvel
que seja assim, por diversas razes. Pois, de uma parte, pensa le, o alto e o
baixo no devem ser compreendidos da mesma maneira no universo e nos sres vivos (pois
as razes so o alto e a fronde o baixo da planta). Por outro lado, tais fras
opostas deveriam, pela sua interao, terminar pela dssociao do vivente que s
efetivamente impedida pela fra unitiva superior da alma. Para outros, s o fogo
15
seria causa ativa do crescimento, como le o da nutrio. Sim, responde S.
Toms, o fogo aqui uma causa, mas a ttulo de instrumento de uma causa principal que
s pode ser a alma. Energias puramente fsicas tenderiam, com efeito, a causar um
crescimento indefinido; um crescimento limitado supe um princpio de regulao, ou
uma medida, que seja de uma outra ordem.

claro que tais explicaes pem em jgo teorias fsicas ultrapassadas. Mas,
no menos certo que a disposio da prova guarda real intersse. Eis como se
processa: primeiro, constata-se um processo vital original, no caso, o crescimento;
passa-se, em seguida, refutao da teoria proposta, fazendo-se uma confrontao
precisa dos respectivos comportamentos das transformaes vitais e dos movimentos
fsicos; e, em um terceiro tempo, postula-se, para explicar verdadeiramente as
atividades vitais, um princpio regulador que no seja de ordem material. Aplicada a
fatos melhor controlados, uma demonstrao dste tipo poderia ainda hoje ter valor.

No deixa de ser interessante notar que, em nossos dias, a crtica do mecanicismo


biolgico foi retomada por autnticos sbios, reunidos ordinriamente sob a etiquta
do "vitalismo". Esta denominao, preciso que se diga, recobre um conjunto de
concepes um pouco disparatadas. Permanece, contudo, a tendncia comum de explicar
os fenmenos vitais por uma fra que transcende as simples modificaes da
matria, no podendo estas ltimas explicar, de modo suficiente, a especificidade dos
fenmenos em causa. Nesta escola, todo um grupo, o chamado dos no-vitalistas,
Driesch, Rmy Collin, Cunot, orienta-se de modo claro para o reconhecimento de um
princpio vital bem prximo da intelquia aristotlica.

3. A CRTICA AO DUALISMO PLATNICO.

Face explicao mecanicista do psiquismo, encontrava Aristteles a doutrina, de


que um dia participou, do dualismo platnico das substncias. Se a alma no pode ser
confundida com os elementos corporais ou com seu comportamento, no se poderia ento
dizer que uma entidade espiritual separada do corpo e cuja ao sbre ste se
exerceria do exterior, como a ao de um motor?

"Plato e os que o seguiram pretenderam que a alma


intelectiva no unida ao corpo como a forma matria,
mas somente como um motor ao mvel; diziam que a alma est
no corpo como um pilto no navio, e que no havia unio
entre a alma e o corpo somente por um contato de ordem
dinmica".

Cont. Gentil.
II, c. 57

Entre os numerosos argumentos colocados pela crtica aristotlica para rechaar a


frmula dualista do homem, dois parecem ter sido decisivos:

1. Se alma e corpo constituem cada qual uma unidade


substancial autnoma, no se v como, de sua
associao, possa resultar uma verdadeira unidade de ser.
Nesta hiptese, s se pode falar em unidade acidental:
"relinquitur igitur quod homo non sit unum simpliciter, et
per consequens nec ens simpliciter, sed ens per accidens"
(Loc. cit.). De nada serve pretender, para escapar a esta
16
dificuldade, que a alma o homem, aparecendo o corpo
somente como um instrumento usado pela alma pois, neste
caso, o homem, cuja essncia total seria de ordem
espiritual, no pertenceria mais ao mundo das coisas
fsicas, o que contrrio experincia. No se pode
deixar de compreender o componente corporal na definio
mesma do ser humano.

2. Tambm no se v como, na soluo platnica,


ainda possvel falar de operaes comuns alma e ao
corpo, como temer, irritar-se ou ter sensaes que, sendo
psquicas, determinam modificaes corporais. , pois,
necessrio que haja entre a alma e o corpo uma verdadeira
unidade de ordem ontolgica. Note-se que no se escapa,
no platonismo, dificuldade da explicao dos movimentos
comuns ao corpo e alma, dizendo que ativamente les
procedem da alma enquanto que so passivamente recebidos no
corpo. bem verdade que os sres espirituais, os puros
espritos por exemplo, podem agir sbre os corpos, e neste
caso falar-se- de contacto, mas de um contacto smente
dinmico, e que no realiza a funo dos dois trmos:
"as coisas que se unem segundo um contacto dste gnero no
so absolutamente unas: so unas na atividade e na
passividade, o que no ser uno absolutamente" (Con.
Gent. II, c. 56). Sendo agir e padecer dois
predicamentos distintos, cai-se realmente no plano da
ao, no dualismo do espiritual e do corporal.

A unidade do vivente, manifestada de tantas maneiras, requer, pois, que entre os dois
princpios que se deve nle distinguir, a alma e o corpo, haja mais que a simples
associao do motor e daquele que se move. ento que se nos apresenta a soluo
original e to notvel de Aristteles.

4. ANIMISMO ARISTOTLICO.

No captulo I do De Anima, que o texto decisivo para a definio da alma,


procede Aristteles a modo de colocao nas grandes categorias do ser. Parte do fato
de que o vivente aparece no mundo como um ser corporal. Eis ento como Aristteles
raciocina.

A substncia, que a categoria primeira, espiritual ou corporal. A substncia


corporal, que nos a mais manifesta, , por sua vez; artificial ou natural.
Enfim, entre as substncias corporais naturais, algumas so inanimadas enquanto outras
tm vida. O que so estas justamente? Sendo reconhecido que em tda substncia
corporal h trs coisas, a saber a matria, a forma e o composto, ser preciso
dizer: que a alma no pode ser matria ou sujeito, pois a vida surge como uma
diferena especificando o sujeito; que no pode tampouco ser o composto que o corpo
vivo em sua totalidade; resta, pois, que seja a forma que especifica e determina:

"Sic igitur cum sit triplex substantia, scilicet


compositum, materia et forma, et anima non est compositum
quod est corpus habens vitam, neque est materia, quae est
corpus subjectum vitae, relinquitur, per locum dialecticum a
17
divisione, quod anima sit substantia, sicut forma talis
corporis, scilicet corporis physici habentis in potentia
vitam"

De Anima, II,
1, 1

Em seguida, indica S. Toms porque especificado que a alma forma de um corpo


"tendo a vida em potncia": s quando informado pela alma que o corpo ter a vida
em ato. Mostra que o ato, do qual aqui se trata, um "ato primeiro", isto ,
uma forma essencial e no um ato operativo. Por fim mostra que o corpo, do qual a alma
a forma, um "corpo fsico organizado": por ter mltiplas operaes e exigir,
como instrumentos, rgos diversificados, a alma s pode vir a informar um corpo j
organizado.

Agrupando o conjunto dstes dados obtemos a definio clssica de alma:

"o ato primeiro (ou a forma) de um corpo fsico organizado


tendo a vida em potncia"

"actus primus corporis physici organici vitam in potentia


habentis".

No Captulo 2 do mesmo livro, prope Aristteles uma outra definio de alma,


desta vez de ordem dinmica. Suposto que a alma o primeiro principio da vida e que,
por outro lado, "a vida o fato de se nutrir, crescer e perecer", conclui que a
alma pode ser definida como o princpio destas funes s quais, para o homem,
acrescentar-se- a atividade superior do pensamento. Assim, obtm-se com S. Toms
(De Anima, II, 1. 4) a frmula que igualmente se tornou clssica:

"Anima est primum quo et vivimus et movemus et


intelligimus".

fcil perceber que, no quadro geral da teoria das substncias, esta frmula abarca
a precedente. Em uma substncia composta, com efeito, o princpio primeiro de tdas
as operaes a forma que assim simultneamente: aquilo pelo qual ela (quo
est), e aquilo pelo qual age, (quo operatur).

Restaria emitir um juzo sbre esta famosa definio da alma como forma do corpo.
Nos textos que acabamos de resumir, apresenta-se a doutrina ao mesmo tempo rigorosamente
lgica e com uma certa sequido abstrata. claro que se sups como admitida a teoria
geral do composto substancial; feito isto, tudo parece caminhar por si.

ste esquematismo intrinsecamente muito coerente, por si s expressivo do trabalho


de pensamento realizado pelo Estagirita? No cremos. Seria esquecer as longas
consideraes crticas do livro precedente que so representativas das meditaes de
diversas geraes de pensadores, de Empdocles a Demcrito e de Anaxgoras ao
autor do Fdon e do Timeu: tudo isto assimilado e revivido pelo fundador do Liceu
durante o longo perodo de elaborao de sua doutrina. Se o materialismo dos antigos
impotente para explicar o vivente na originalidade de sua estrutura e de sua atividade,
se o dualismo platnico compromete irremedivelmente sua unidade, no ser preciso
elaborar uma doutrina mais compreensiva e mais abrangedora? O hilemorfismo fsico
apresenta-se ento como a soluo libertadora: a alma s pode ser a forma do corpo.
18

5. CONSEQNCIAS E COROLRIO.

- A unidade do vivente.

A unidade do vivente foi a prpria convico que levou Aristteles sua


definio da alma. Evidentemente um ser vivo uma entidade complexa, mas
substancialmente unificada. A unio dstes princpios, deve-se acrescentar,
imediata: nem necessrio algum "vinculum substantiale" para explic-la.

A esta convico liga-se ainda a afirmao da unicidade da alma em cada indivduo


vivente. No homem, em particular, se falamos da alma vegetativa e da alma sensitiva ao
lado da alma espiritual, preciso reconhecer que s esta ltima uma entidade
independente exercendo as funes das outras duas. Sbre ste ponto S. Toms
permanece muito firme face aos que, em seu tempo, sustentavam a pluralidade das almas ou
das formas substanciais.

- A unidade da alma

A unidade da alma postula sua indiviso e, portanto, sua presena como todo em cada
uma das partes do corpo. Aqui surge, porm, uma dificuldade: aparecendo as
atividades particulares, a vista por exemplo, ligadas a rgos especiais, no se
dever reconhecer, em relao a stes rgos, uma especificao do prprio
princpio vital? Sim, responde S. Toms, mas maneira de um todo potencial que
se diversifica como princpio de atividade, sempre permanecendo essencialmente um. O
precedente princpio fica assim salvo.

A ste respeito, interrogaram-se os antigos com perplexidade sbre o caso de certos


viventes, plantas e animais inferiores, que, sem perecer, podem ser efetivamente
multiplicados. Teria sido dividida a alma primitiva? Ou novas almas teriam sido
eduzidas por gerao? difcil responder de maneira decisiva: todavia o essencial
ser salvaguardar sempre a unidade da alma na unidade do vivente.

- Corruptibilidade da alma.

De si a alma do vivente, que a forma de uma substncia composta, segue a lei comum
das substncias. Como tda forma substancial "eduzida" da potncia da matria,
no momento da gerao; e quando as condies corporais deixam de ser convenientes,
perde-se de nvo na potencialidade primitiva de onde havia sido tirada. O caso da alma
humana, diretamente criada por Deus para ser unida a um corpo e sobrevivendo
destruio do corpo, exige evidentemente considerao parte. Na linha geral das
teorias biolgicas, ste caso deve ser considerado como uma exceo.

- Moo da alma sbre o corpo.

A tese do hilemorfismo da substncia animada permitiu-nos, afastando por completo um


materialismo insustentvel, salvaguardar a unidade do vivente comprometida pelo dualismo
platnico. Mas como, neste sistema, ainda possvel reconhecer alma uma atividade
motora sbre o corpo?

antes de tudo claro que no se pode tratar de uma moo prpriamente eficiente:
o vivente todo inteiro que, enquanto composto, exerce uma ao desta ordem; a alma
pode, ento, ser considerada parte s enquanto princpio formal, ou princpio
19
quo. Na realidade, como a forma exerce na atividade dos corpos compostos o papel de
fim, ser a ttulo de causa final que a alma exerce, por primeiro, sua influncia
sbre as operaes vitais. Assim, no homem, todo o psiquismo inferior, ao mesmo
tempo que a atividade intelectiva, encontrar-se- ordenado alma espiritual.
20
AS POTNCIAS DA ALMA

1. INTRODUO.

Aristteles (De Anima II, c. 3) introduz assim esta questo. Tendo sido a
alma definida como princpio de atividades mltiplas e diversas, sensaes,
desejos, pensamentos, movimentos de deslocao, etc .... o momento de se
perguntar se pela alma inteira que o vivente realiza tdas estas operaes, ou se
ser necessrio distinguir, para ste fim, partes diferentes na alma? Deixando a
exposio do De Anima que complexa demais, vamos, a seguir, apresentar a doutrina
no estado de sntese acabada como se apresenta na Summa (Ia Pa, q. 77 e 78).

2. A ESSNCIA DA ALMA NO PODE SER SUA


POTNCIA.

, antes de tudo, necessrio reconhecer a existncia de princpios de operaes


distintos da essncia da alma? Tda uma srie de argumentos tendem a prov-lo
(cf. I, q. 77, a. 1; Quest. disp. De Anima, a. 12).

1. Em uma mesma linha, ato e potncia s podem pertencer


ao mesmo gnero supremo de ser. Ora, as operaes da
alma no so evidentemente do gnero substncia.
Portanto, as potncias que lhes correspondem no podem
pertencer a ste gnero; resta que sejam acidentes e,
portanto, difiram realmente da essncia da alma.

2. A alma considerada em sua essncia est em ato. Se,


pois, fr imediatamente princpio de operao, ser
preciso dizer que age de maneira contnua: o que
contrrio experincia. No , portanto, princpio
imediato de operao.

3. Sendo diversas, as atividades da alma no podem ser


atribudas a um mesmo princpio. Ora, a alma evidentemente
una. , pois, necessrio que haja, distinta dela, uma
pluralidade de potncias que explique a diversidade das
atividades alegadas.

4. Certas potncias so atos de rgos corporais


determinados e outras no; ora, manifesto que a
essncia da alma, em sua unidade, no se pode encontrar,
ao mesmo tempo, nesta dupla situao; para cada caso,
pois, h potncias distintas.

5. H potncias que agem sbre outras, a razo, por


exemplo, sbre o apetite sensvel, concupiscvel ou
irascvel; o que no evidentemente possvel a no ser
que se admita, alm da essncia da alma, uma pluralidade
de potncias.

Deve-se notar:
21
- Que a distino, de que acabamos de tratar, entre a
essncia da alma e suas faculdades, s pode ser ideal.

- Que as faculdades devem ser compreendidas no gnero


"qualidade" constituindo a segunda das quatro espcies.

- Que entre as potncias, umas, que implicam um rgo


corporal, existem no composto ou no vivente total, como em
seu sujeito; enquanto outras, que agem sem rgos, so
diretamente inerentes alma.

- Que as potncias emanam ou procedem da essncia da


alma, a qual pode, de certa maneira, ser considerada como
sua causa.

3. A ESPECIFICAO DAS POTNCIAS DA ALMA.

Pode-se, antes de tudo, distinguir na alma diversas potncias? preciso


evidentemente responder pela afirmativa. A multiplicidade e a diversidade das
operaes encontradas nos viventes, sobretudo nos mais elevados, no se explicariam sem
isso.

Mas como se distinguem estas potncias? S. Toms (cf. De Anima II, l. 6;


Ia Pa, q. 77, a. 3; Quest. Disp. De Anima, a. 13) fundando-se sbre
os princpios gerais de sua metafsica, sustenta que pelos seus atos e pelos seus
objetos:

"Potentiae animae distinguuntur per actus et objecta".

De si, com efeito, uma potncia ordena-se a um ato; de onde se evidencia que as
potncias diversificam-se segundo os atos com os quais se relacionam. Mas, por sua
parte, os atos so especificados pelos seus objetos, o que se verifica ao mesmo tempo
para as potncias passivas e para as potncias ativas, sendo as primeiras movidas por
seu objeto, enquanto as segundas tendem para o seu objeto como para um fim. Assim,
pois, em qualquer hiptese, dever-se- reconhecer que, por meio de seus atos, as
potncias so especificadas pelos seus objetos. Precisemos que as diferenas de
objetos, que aqui devem ser relevadas, so aquelas para as quais as potncias so
orientadas segundo sua natureza prpria. Os sentidos, por exemplo, sero
diversificados pelas qualidades do objeto sensvel considerado como tal, cr,
sonoridade etc., e no pelo que lhe advm acidentalmente, como para o colorido, que
objeto da vista, a qualidade de gramtico; com efeito, acidental, para ste
objeto branco que percebo, ser um gramtico.

Esta doutrina da especificao das potncias pelos seus atos e seus objetos ter, em
S. Toms, uma importncia de primeirssima ordem: tda a ordenao da psicologia
e, explicando-se pelo mesmo princpio a distino dos hbitos ou das virtudes, tda
a ordenao da moral, dela dependero. As cuidadosas anlises do tratado das
virtudes da Secunda Secundae, em particular, no sero mais que uma aplicao
contnua desta verdade.

4. DIVISO DAS POTNCIAS E DIVISES DA ALMA.

Esta questo foi tratada um certo nmero de vzes por S. Toms (cf. De Anima,
22
I, 1. 14 - II, 1. 3 e 5; Ia Pa, q. 78, a. 1; Quaest. disp. De
Anima, a. 13) . Contentar-nos-emos aqui com uma viso de conjunto da bela
exposio sinttica da Summa que agrupa a diviso das potncias, a das almas, e a
dos gneros de vida.

- H trs almas.

Esta primeira diviso refere-se ao mais profundo princpio da atividade psquica, o


qual v-se diversificado conforme seja sua operao mais ou menos independente do
corpo e de suas atividades.

Assim encontramos de maneira sucessiva: a alma racional, cuja operao no requer o


exerccio de nenhum rgo corporal; a alma sensitiva que s age por meio de rgos,
mas sem que precisem intervir as propriedades dos elementos fsicos; a alma vegetativa,
enfim, que, alm da atividade de rgos apropriados, supe a dos elementos. Nos
sres de grau mais elevado, a alma superior assume as funes que de si provm de
almas inferiores; assim no homem a nica alma racional ao mesmo tempo princpio de
vida intelectiva, de vida sensitiva e de vida vegetativa.

- H cinco gneros de potncias.

Esta segunda diviso baseia-se na universalidade do conhecimento: quanto mais uma


potncia elevada, tanto mais o objeto que considera universal. Dste ponto de
vista somos levados a distinguir trs grandes gneros de objetos: o corpo particular
que unido alma, o conjunto dos corpos sensveis, e o ser considerado
universalmente; e, paralelamente, seguindo uma ordem de perfeio crescente: as
potncias vegetativas e, relativamente aos dois outros gneros de objetos, dois outros
gneros de potncias, devendo-se distinguir ainda stes gneros, segundo se trate de
conhecimento ou de apetncia, em sentido e inteligncia, de um lado, e em apetite e
potncia motora, de outro. Ao todo, existem para o homem, cinco gneros de
faculdades, denominadas aqui por S. Toms:

vegetativum, sensitivum, intellectivum, appetitivum,


motivum secundum locum,

operando-se ulteriormente subdivises em espcie.

- H quatro modos de vida.

Esta ltima distino funda-se sbre a hierarquia de perfeio dos viventes,


originando-se esta da crescente complexidade dos sistemas correspondentes de faculdades.
Encontram-se assim sres que s tm as faculdades vegetativas : as plantas; outros
que tm, a mais, a faculdade sensitiva, mas sem ser dotados de motricidade: os
animais inferiores; outros ainda que, a mais, tm a faculdade de se mover: os animais
superiores que vo por si busca do que lhes necessrio para viver; outros enfim
que possuem, a mais, a inteligncia: os homens. Quanto ao apetite, no
caracterstico de nenhum gnero particular de vida visto encontrar-se analgicamente em
todo ser.
23
A VIDA VEGETATIVA

1. INTRODUO.

Nascer, nutrir-se, crescer, gerar, perecer, so atividades reconhecidas nos sres


que vivem em volta de ns e que correspondem ao mais modesto grau de vida: a
vegetativa. ste grau, j o sabemos, tem por caracterstica referir-se, como a seu
objeto, ao corpo que informado pela alma (cf. Ia Pa, q. 78, a.1)

"vegetativum... habet pro objecto ipsum corpus vivens per


animam.

Neste nvel encontramos trs grandes tipos de funes especificamente distintos: a


nutrio, o crescimento e a gerao.

2. A FUNO NUTRITIVA.

Consideremos os fenmenos vitais mais comuns. Um dos mais manifestos em sua


constncia o da nutrio. Os sres vivos que nos cercam no podem subsistir se
no se alimentam. a prpria evidncia: cesse um animal ou uma planta de se
alimentar e deixar de viver. A mais imediata razo da nutrio , pois, a
conservao do ser. Tal necessidade parece radicar-se no carter orgnico da
substncia viva. Os elementos simples no tm, prpriamente falando, necessidade de
uma atividade conservadora: so ou no so. Os viventes, pelo contrrio, no
podem manter o equilbrio de suas diversas partes se no forem dotados de uma tal
atividade.

Ainda h outros motivos que parecem justificar a existncia da funo nutritiva. As


duas outras grandes funes da vida vegetativa, o crescimento e a gerao, s podem
entrar em exerccio se o ser vivo estiver alimentado. um fato de experincia.
Assim, neste grau da atividade vital, ocupa a nutrio o lugar de funo de base.

"Dizemos que se nutre o ser que em si recebe algo para a sua


conservao":

"id proprie nutriri dicimus quod in seipso aliquid recipit ad


sui conservationem".

Tal a definio dada por S. Toms no De Anima (II, l.9). Algumas


precises no sero inteis. Nem a absoro do alimento, nem as alteraes
qumicas que o alimento sofre na digesto -processo que Aristteles atribua ao
fogo, comparando-o a um cozimento - no constituem, prpriamente falando, a
nutrio. Esta consiste formalmente na converso do alimento na substncia daquele que
ele nutre, isto , na assimilao, pelo vivente, de uma substncia estranha que o
conserva em seu ser e lhe permite exercer suas outras atividades. Tal operao,
preciso notar, no pode ser reduzida a uma simples adio ou justaposio de
partes, mas supe uma verdadeira transformao substancial.

Algumas aproximaes a operaes vitais de tipo anlogo sero aqui de grande


intersse.

J sabemos que a assimilao do alimento no pode ser reduzida a uma simples


24
justaposio material. Mas no se pode compar-la gerao fsica dos
elementos? Sem dvida, nos dois casos h aparentemente transformao de uma
substncia em outra com a corrupo de uma das duas, mas as condies destas duas
operaes so completamente diferentes. Na gerao dos elementos, o princpio e o
termo da transformao so diferentes: o fogo, conforme teoria antiga, origina-se
do ar; enquanto que na nutrio, o princpio e o termo da operao so, na
realidade, o prprio ser vivo. A nutrio, em outras palavras, uma atividade
imanente, enquanto que a gerao dos elementos fsicos no o .

Nos nveis superiores da vida sensitiva e da vida intelectiva, outras aproximaes


podem ser feitas. Encontra-se aqui, com efeito, uma atividade, o conhecimento, que
tem suas relaes com a nutrio corporal. O ser senciente e o ser inteligente, de
certo modo, nutrem-se, e falamos mesmo de alimentos espirituais, de fome e sde de
verdade. Mas ainda aqui preciso sublinhar as diferenas. A chamada unio
intencional do cognoscente com o conhecido algo completamente singular. Nem o
cognoscente, nem o conhecido, encontram-se, como o alimento, destrudos em seu ato
comum e deve-se dizer que antes o cognoscente que se transforma no conhecido. Por
fim, enquanto as capacidades da nutrio corporal so estreitamente limitadas, as das
potncias de conhecer, pelo menos as da inteligncia, parecem dilatar-se ao infinito.

3. A FUNO DE CRESCIMENTO.

um fato que os viventes no atingem imediatamente seu pleno desenvolvimento, em


particular porque no tm de incio todo o seu tamanho, mas crescem at ao ponto
mximo que corresponde a seu perfeito acabamento. O crescimento, e em especial o
aumento quantitativo, apresenta-se como um movimento original que parece exigir uma
faculdade especial: a vis augmentativa.

Coloca-se preliminarmente uma questo: o crescimento dos viventes uma operao


especificamente caracterizada de modo a requerer uma potncia especial? No se poderia
dizer que apenas uma resultante da atividade de outras funes vegetativas? H
indcios disto. Com efeito, o crescimento de um ser vivo parece depender de sua
alimentao. Por outro lado, parece que a funo que gera substancialmente um ser, a
ele confere igualmente a quantidade que lhe convm. Apesar dstes argumentos, S.
Toms no v no crescimento uma determinao especfica que possa ser reduzida
determinao das outras funes da vida vegetativa e defende, conseqentemente, a
existncia de uma faculdade original explicativa dste fenmeno. Portanto, o objeto
prprio do crescimento precisamente a quantidade do ser vivo, podendo-se definir
assim, a faculdade que lhe correspondente: o poder graas ao qual o ser corpreo,
dotado de vida, pode adquirir a estatura ou a quantidade que lhe convm, como tambm a
potncia que lhe corresponde:

"secunda autem perfectior operatio est augmentum quo aliquid


proficit in majorem perfectionem, et secundum quantitatem et
secundum virtutem"

De Anima, II, 1-9

Como tda operao vital, o crescimento, que tem seu princpio no ser vivo e nle
termina, uma operao imanente.

Os sres inanimados so suscetveis de aumento por justaposio mas, colocado


parte talvez o caso dos cristais e daquilo que a cincia contempornea chama de
25
ultravirus, no so suscetveis de um crescimento verdadeiro. O crescimento um
movimento prprio dos seres vivos.

Nos diversos graus da hierarquia dos seres vivos encontra-se proporcionalmente um


processo de desenvolvimento ou de crescimento. Mas deve-se notar que fora do mundo
corporal no se pode falar prpriamente de aumento quantitativo: aqui s podemos
encontrar um crescimento segundo a qualidade. S. Toms, em seu tratado sbre os
"habitus", estudou bem de perto as condies muito especiais dste processo. Aqui
basta-nos assinal-lo.

4. A FUNO DE GERAO.

Ao lado do poder de se nutrir e de atingir seu pleno desenvolvimento, os sres vivos


tm o poder de gerar ou produzir um ser especificamente semelhante ao seu. A fsica
peripattica j falava de gerao a propsito dos elementos simples, tais como o
fogo, a gua, etc .... mas claro que nos sres vivos esta operao reveste-se
de modalidades especiais.

Para fixar a razo de ser da gerao podemos nos colocar em dois pontos de vista
diferentes:

- com relao ao indivduo e ao conjunto de suas


atividades, a gerao aparece como um termo e como uma
perfeio: um termo, relativamente s outras operaes da
vida vegetativa, nutrio e crescimento, que a preparam;
uma perfeio: pois que procriar comunicar seu ser,
dar-se, isto , realizar, de uma certa maneira, aquilo que
se entende por esta expresso: "ato do perfeito", "actus
perfecti".

- com relao ao conjunto dos sres vivos, a gerao


aparece como ordenada a um fim superior: a conservao da
espcie. O que perfeito, nesta perspectiva, a
espcie que dura; o que imperfeito o indivduo, o
qual no podendo perptuamente subsistir deve, para
sobreviver de algum modo, comunicar sua natureza a outros que
a prolongam. Aqui a gerao aparece como o ato do que
imperfeito: "actus imperfecti". fcil perceber que
estes dois pontos de vista so complementares.

S. Toms (Ia Pa, q. 27, a. 2) define assim a gerao dos sres vivos:
"a gerao significa a origem de um ser vivo, a partir de um princpio vivente
conjunto, segundo uma razo de semelhana, em uma natureza da mesma espcie".

"Generatio significat originem alicujus viventis a principio


vivente conjuncto secundum rationem similitudinis in natura
ejusdem speciei".

Nesta frmula que tornou-se clssica: - "a origem de um ser vivo" designa o
carter comum a tda a gerao; "a partir de um princpio vivente conjunto" precisa
a diferena especfica da gerao dos viventes; - pelas ltimas expresses
"segundo uma razo de semelhana" e "em uma natureza da mesma espcie", so
afastadas tdas as produes de um corpo vivo, tais como o crescimento dos cabelos ou
26
as diversas secrees, que no terminam em uma natureza especificamente semelhante.

Abaixo do nvel da vida vegetativa encontra-se, ns o sabemos, um tipo inferior de


gerao, a dos elementos materiais, que se distingue, sobretudo do precedente, pelo seu
carter de atividade puramente transitiva.

Acima, isto , no plano da vida intelectiva, no se encontra, no sentido prprio


da palavra, gerao, ao menos nos espritos criados; o "verbum mentis", ou o
conceito no qual exprime-se o conhecimento intelectual, no da mesma natureza que o
princpio do qual procede. Exceo deve ser feita smente para Deus: pela f somos
levados a reconhecer n'le uma gerao, a da segunda Pessoa da Trindade, cujo modo
transcendente exclui qualquer imperfeio. A Teologia pertence precisar como tentar
conceb-la (cf. Ia Pa, q. 27, a. 2).

5. CONCLUSO: O SISTEMA DA VIDA VEGETATIVA.

Do que foi dito conclui-se que no peripatetismo a vida vegetativa constitui um conjunto
de atividades bem caracterizadas e sistemticamente ordenadas, situadas em um certo
plano de imaterialidade e, correlativamente, de imanncia. Entre as trs grandes
funes distintas h uma ordem: a nutrio aparece como a operao fundamental
pressuposta pelas duas outras. O crescimento completa a nutrio e, juntas, as duas
tm como fim a gerao, na qual a vida vegetativa, de certa maneira, atinge seu ponto
culminante.

Restaria aqui submeter crtica esta ingeniosa teoria. claro que os progressos
imensos realizados pelas cincias da vida exigiriam certos retoques. No certo,
porm, que as profundas vises que presidiram a esta organizao tenham perdido todo e
qualquer valor.
27
A VIDA SENSITIVA:
O CONHECIMENTO SENSVEL

1. INTRODUO.

Acima dos sres dotados apenas de vida vegetativa, encontramos sres vivos que
possuem, a mais, uma atividade sensitiva. Esta tem seu princpio em uma alma
particular, alma sensitiva, que se relaciona, de maneira imediata, a trs gneros de
faculdades: conhecimento sensvel, apetite sensvel e potncia motora, das quais
consideraremos as manifestaes vitais.

O conhecimento sensvel o que resulta da ao dos objetos materiais sbre os


sentidos. S. Toms, depois de Aristteles, distingue, neste domnio, dois
conjuntos de potncias: os sentidos externos e os sentidos internos. Os sentidos
externos so imediatamente afetados pelos objetos sensveis, que, para serem
percebidos, devem estar presentes. Os sentidos internos recebem seu conhecimento apenas
por intermdio dos sentidos externos; conservam os objetos e podem por isso
reproduzi-los mesmo quando no h mais sensao. Exterioridade e interioridade,
preciso notar, no so aqui relativas situao dos rgos dos sentidos: pode
mesmo acontecer que haja sentidos externos dentro do corpo, como o tacto que, para
Aristteles est no interior da carne.

Acontece, s vzes, que o estudo dos sentidos precedido de generalidades


metafsicas sbre o conhecimento. Tais consideraes, parece-nos, sero melhores
colocadas no captulo consagrado vida intelectiva onde encontram plena aplicao.
Entraremos, pois, diretamente na matria pela anlise da sensao.

2. OS SENTIDOS EXTERNOS

A presente exposio tem por fundamento os textos aristotlicos do "De Anima"


(II, c. 5-12) e do "De Sensu et sensato". S. Toms retomou, no seu
conjunto, a teoria de Aristteles, orientando-a e equilibrando-a de maneira um pouco
diferente (cf. ainda os comentrios dos textos precedentes: S. Th. Ia Pa, q.
78, a. 3; Quaest. disp. De Anima, a. 13. Os comentadores, especialmente
Joo de S. Toms (Cf. Curs. phil., De Anima, q. 4 e 5) no deixaram de
dar precises que lhes so prprias. Ser necessrio, servindo-se de tdas estas
fontes, salientar a contribuio pessoal de cada um.

3. O PROBLEMA DA SENSAO EM ARISTTELES.

O psiclogo moderno, ao abordar a teoria peripattica da sensao, no pode deixar


de se sentir um tanto desambientado, impresso que no lhe advm to smente pelo
encontro de uma tcnica cientfica de outra poca, mas ainda porque se v diante de
uma problemtica bastante diferente daquela com que est acostumado. Na teoria
antiga, com efeito, a preocupao que parece impor-se imediatamente a do carter
ativo ou passivo da faculdade de conhecer, o que, desde o incio, engaja-nos nas
perspectivas de uma metafsica do ato e da potncia, bem distante de nossas
concepes atuais.

Como quer que seja, para Aristteles a sensao aparece originriamente como uma
passividade: sentir antes de tudo padecer ou alterar-se, sendo que, nesta
concepo, o princpio ativo o objeta percebido. Tal ponto de partida manifesta
28
claramente uma reao contra a teoria platnica do conhecimento que minimizava o papel
do objeto sensvel. Para o Estagirita, a prpria coisa exterior que, de algum
modo, vem afetar a potncia sensvel: "a sensao resulta de um movimento padecido e
de uma paixo". Convm, todavia, notar que a alterao do sentido no de modo
algum redutvel alterao de uma realidade fsica submetida a uma ao
corrosiva. A potncia de conhecer, ao menos quando se trata de sensaes normais,
no de modo algum deteriorada no seu comportamento passivo, nle encontrando mesmo
seu aperfeioamento autntico; a recepo da forma tem aqui um carter muito
particular: dir-se- que o sentido aquilo que capaz de receber a forma sem a
matria. Teremos ocasio de ver como S. Toms soube tirar proveito desta idia.
Basta agora reter que, para seu mestre, a sensao sobretudo caracterizada pela
passividade.

4. PASSIVIDADE E ATIVIDADE DOS SENTIDOS EM S.


TOMS.

S. Toms retomou fundamentalmente a doutrina precedente: "Est autem sensus quaedam


potentia passiva quae nata est immutari ab exteriori sensibili" (Ia Pa, q. 78,
a. 3); "scientia consistit in moveri et pati; est enim sensus in actu quaedam
alteratio, quod autem alteratur patitur et movetur" (De Anima, II, 1-10).

A sensao , portanto, o resultado de uma ao de um objeto sbre o sentido


que, por ste motivo, deve ser considerado como uma potncia passiva. preciso
concluir que seja apenas isto? No se fala tambm em atividade para os sentidos? S.
Toms no o desconheceu. Muitas vzes, na sensao, parece dar um papel bastante
ativo faculdade de conhecer: "a viso mesma, considerada em sua realidade, no
uma paixo corporal, mas tem como causa principal a potncia da alma" (De Sensu,
1-4). Como conciliar stes dois pontos de vista? Reconhecendo dois momentos no
processo da sensao: um passivo, no qual o sentido informado ou determinado pelo
objeto exterior; o outro ativo, constituindo o ato mesmo de conhecer, no qual a
potncia informada se determina. Os comentadores adotaram esta explicao que tem por
conseqncia acentuar, talvez mais que em Aristteles, o carter ativo da
sensao. Inicial e fundamentalmente, porm, esta operao continua sendo uma
passividade. S. Toms preocupou-se igualmente em precisar a natureza especial desta
passividade que, como vimos, no deve ser confundida com a da matria. Diz S.
Toms (Ia Pa, q. 78, a. 3) que para um sujeito receptor existem dois modos de
ser afetado: conforme uma modificao de ordem natural, immutatio naturalis, e
conforme uma modificao de ordem psquica, immutatio spiritualis; no primeiro caso,
a forma recebida no sujeito transformado conforme seu "ser de natureza"; no segundo
caso, conforme seu "ser intencional" ou objetivo. Na sensao, ambas as
transformaes podem ser encontradas, mas a atividade psquica de percepo
determinada, de modo prprio e imediato, pela modificao espiritual que constitui
ste tipo original de passividade que caracterstica do conhecimento.

Observamos que, para os antigos, as duas passividades encontravam-se associadas na


atividade dos sentidos inferiores, tacto e gsto, onde o rgo aparecia efetivamente
alterado: a mo que toca um objeto quente esquenta-se fisicamente, enquanto o sentido
do tacto percebe psiquicamente o calor; o olfato e o ouvido comportavam modificaes
fsicas apenas por parte do objeto, como o sino que vibra, por exemplo; quanto
vista, pensava-se que fsse pura recepo intencional sem modificao fsica, nem
do rgo, nem do objeto. Atualmente, uma observao mais precisa permitir-nos-ia
discernir, em todos os casos, uma alterao orgnica do sujeito.
29
5. A "SPECIES" SENSVEL.

A sensao apareceu-nos como a recepo de uma forma em um sujeito passivo. O que


precisamente esta forma? Na terminologia peripattica, ela recebeu a denominao
de "species". Denominao esta que, s vzes, precisada com o nome de
"species impressa" para distinguir a forma que est no como do conhecimento da que
se encontra no trmo como objeto conhecido, a "species expressa". S. Toms s
fala de "species", designando a forma que est no como do conhecimento. Para a
forma conhecida usar outras locues. Faremos como le.

A "species" tem por funo prpria tornar o objeto exterior presente faculdade de
conhecer. O objeto exterior, com efeito, parte o caso da essncia divina na viso
beatfica, no pode informar diretamente a potncia, sendo necessrio ser levado antes
a um certo grau de imaterialidade. Assim o objeto, na condio de "species", vem
determinar a sensao que, na ordem vital, ser produzida pela potncia.

A "species" pode ser considerada de dois pontos de vista diferentes: entitativamente,


uma modalidade real de ser que se encontra na potncia, qualificando-a conforme o
tipo de unio sujeito-acidente, para com ela constituir um terceiro trmo.
Objetivamente, ou na ordem intencional, informa a faculdade maneira dos objetos de
conhecimento, e conforme sse "esse spirituale" do qual falamos. Evidentemente
neste ltimo ponto de vista que a "species" princpio especificador do
conhecimento; assim considerada, pura semelhana do objeto.

A produo da "species" no deve, de modo algum, ser concebida como o resultado do


transporte de uma forma do objeto conhecido para a potncia de conhecer - no h,
como bem disse Descartes, "espces voltigeantes", mas sim como uma atuao da
faculdade de conhecer sob a influncia do objeto.

Esta influncia pode ser exercida de maneira direta e s pela virtude da coisa
percebida? P-ste ltimo ponto traz uma dificuldade. Para que um objeto possa
determinar uma potncia em sua linha prpria, preciso que, do mesmo ponto de
vista, esteja em ato. Assim, no caso do conhecimento intelectual, onde o objeto no
inteligvel em ato, veremos que preciso a interveno de uma potncia especial
de atuao, o intelecto agente. Seria necessrio uma potncia dste tipo para o
conhecimento sensvel? Dever-se-ia falar em um sentido agente? S. Toms no
pensa assim. Os objetos dos sentidos, contrriamente aos objetos da inteligncia,
podem ser considerados j em ato ou no nvel da potncia cognoscitiva; podem, pois,
diretamente, vir a atuar o sentido e a determinar a formao da "species".

6. O OBJETO DO CONHECIMENTO SENSVEL.

Pela sensao, o que atingimos das coisas exteriores? No o seu ser total
certamente. O sentido, com efeito, como tda potncia de conhecimento, diretamente
s pode apreender as formas:

"Obiectum cuiuslibet potentiae sensitivae est forma prout in


materia corporali existit."

Ainda mais, convm precisar que no a forma substancial, ou a essncia das


coisas, que percebida, mas smente as formas acidentais e, talvez mesmo, certas
formas acidentais exteriores:
30
"Sensus non apprehendit essentias rerum sed exteriora
accidentia tantum."

Em suma, devemos considerar, como objeto dos sentidos, o conjunto das qualidades da
terceira espcie, denominadas qualidades sensveis, s quais preciso acrescentar
as determinaes quantitativas dos corpos.

Aristteles, em um trecho que se tornou clssico, dividiu em trs grandes classes os


objetos da sensao (cf. De Anima, II, c. 6).

Os sensveis prprios. So os objetos particulares de cada um dos cinco sentidos


externos: cr, som, odor, sabor, e o complexo conjunto das qualidades percebidas pelo
tacto (calor, frio, pso, presso, resistncia, etc. ...). stes
sensveis so chamados prprios pelo fato de se relacionarem s a um sentido que
determinam, o que evidentemente pressupe que sejam especificamente distintos uns dos
outros. Cada sentido, portanto, percebe seu sentido prprio, e no pode ser afetado
pelo sensvel dos outros sentidos.

Os sensveis comuns. Como o nome indica, stes sensveis podem ser apreendidos por
vrios sentidos. Distinguem-se habitualmente cinco: o tamanho, a figura, o nmero,
o movimento e o repouso. A vista, o tacto, e talvez o ouvido, tm uma certa
percepo destas coisas. Os sensveis comuns no constituem um objeto absolutamente
independente; supem o conhecimento dos sensveis prprios ao qual conferem uma
modalidade original. Assim, quando vejo uma extenso colorida, a cr , nesta
sensao, o que especifica prpriamente a vista, mas a extenso igualmente conhecida
e poderia ser conhecida por outro sentido.

Os sensveis "per accidens". Esta ltima categoria de objetos no diretamente


apreendida pelos sentidos, mas ligada a coisas que so efetivamente sentidas. Vejo uma
mancha colorida: acontece que um animal; declaro ento que vejo um animal. Tais
objetos, v-se claramente, no devem ser levados em considerao na teoria especial
do conhecimento dos sentidos externos.

7. O REALISMO DO CONHECIMENTO SENSVEL.

neste ponto que mais radicalmente se opem a filosofia antiga, mais realista, e o
pensamento moderno, mais subjetivista. O mundo exterior revelado pelos sentidos tal
qual , ou smente de modo aproximativo, ou mesmo, puramente simblico? Precisemos
logo que a objetividade, aqui colocada em causa, smente a dos sensveis prprios
e a dos sensveis comuns, e destes ltimos s no caso em que so objeto de um s
sentido. Tudo o que diz respeito ao sensvel "per accidens" ou tudo o que, na
percepo, supe uma certa construo, est fora de nossas vistas.

O problema geral do realismo do conhecimento deve ser estudado em outro lugar, a


propsito da apreenso do ser, e do ponto de vista da inteligncia. Portanto, aqui
est em questo s o dado imediato de cada um dos nossos sentidos.

O que sbre isso pensaram Aristteles e S. Toms?

Sua atitude sbre este ponto indubitvelmente realista: para eles os dados
imediatos dos sentidos so objetivos. Aristteles, manifesta-o de incio com mais
discrio: o que quer precisamente manter, contra Protgoras, que o cessar da
sensao no importa no desaparecimento do objeto: " impossvel que os objetos que
31
produzem esta sensao desapaream s pelo fato de esta ser suprimida, pois a
sensao no se radica em si mesma; alm da sensao h outra coisa que
necessariamente a precede" (Cf. Metaph., c. 5; De Anima, III, c. 2 e 3
) . Existe identidade entre o sensvel e o senciente no ato da sensao, repete ele
tambm constantemente; com relao ao sensvel prprio no pode haver erro nos
sentidos. S. Toms, por sua vez, expressa-o em frmulas absolutamente
inequvocas; a cr est no fruto que percebemos: "a vista v, com efeito, a cr do
fruto sem o odor; se perguntamos onde est a cr que vista sem seu odor, claro
que tal cr s poderia estar no fruto" (S. Th. Ia Pa, q. 85, a. 2, ad.
2).

ste realismo, todavia, no tal que no admita certas mitigaes. Antes de


tudo, j vimos, diz respeito s aos sensveis prprios e, de certa maneira, aos
sensveis comuns; e s considera os acidentes exteriores, permanecendo velada a
essncia mesma das coisas. O sentido, enfim, , por si s, incapaz de apreciar
formalmente a objetividade de seu conhecimento. Esta operao supe a reflexo da
inteligncia.

preciso ir mais longe. Em muitos lugares, por ocasio dos erros dos sentidos, S.
Toms abertamente d mostras de relativismo (cf. sobretudo Metaph., IV,
1-14, n. 694 ss). Algo parece-nos pequeno ou grande conforme visto de longe ou de
perto: para julgar objetivamente deve-se fiar na segunda dessas impresses. Os
sensveis comuns, alis, prestam-se a mltiplas iluses. Nota-se igualmente que a
cor de um objeto pode mudar com a distncia: aqui ainda a viso prxima que a
certa. Por outra parte, se os rgos dos sentidos esto doentes, infetados de humor
como nos febricitantes ou nos que tm itercia, as sensaes ver-se-o
perturbadas. A debilidade do sujeito pode, enfim, ser causa de rro: a quem fraco
um pso leve parece pesado.

Impelido pelos fatos, S. Toms falou em relativismo. Mas no o teria acentuado se


se tivesse encontrado diante de uma anlise metdicamente conduzida. Resta,
entretanto, que para ele, como para Aristteles, a potncia sensvel aparece antes
como um receptculo vazio; que tda especificao vem do objeto; e que pelo menos em
condies normais percebemos as qualidades sensveis tais como so na realidade.

Os comentadores retomaram a precedente doutrina da objetividade da sensao,


completando-a em certos pontos. Reteremos aqui apenas os aperfeioamentos trazidos por
Joo de Santo Toms (cf. Cursus Philos., De Anima, 6, a.4: Utrum
requiratur necessario quod objectum exterius sit praesens ut sentiri possit; a. 5:
Utrum sensus externi f orment idolam, seu speciem expressam ut cognoscant). ste autor
esfora-se por precisar em dois pontos principais a teoria do realismo do conhecimento dos
sentidos.

Declara, antes de tudo, que o conhecimento sensvel realiza o tipo mesmo do


conhecimento experimental, o qual se ope ao conhecimento qiditativo como a apreenso
imediata da realidade concreta concepo abstrata das essncias, sendo a presena
do objeto conhecido, na faculdade de conhecer, o motivo prprio do conhecimento
experimental. Se no se admitir para o conhecimento sensvel ste carter de
imediato, pensa ele, todo o realismo de nosso pensamento, que descansa sbre esta
base, encontra-se comprometido.

Com a mesma preocupao de garantir o imediato do conhecimento sensvel, afirma nosso


autor, em segundo lugar, que ao invs do que se passa com a inteligncia, um tal
32
conhecimento no atinge seu objeto em uma concepo formada pelo esprito, ou em uma
"species expressa". O conhecimento sensvel s tem por termo a coisa em si mesma, ou
suas qualidades objetivas, que so apreendidas diretamente pelo sentido. Que uma
"species cxpressa" no seja requerida, isso provm, antes de tudo, da condio da
coisa concreta que, estando efetivamente presente e em condies de imediao
suficiente, pode ser imediatamente captada. E provm ainda do fato de que, sendo do
gnero qualidade, a ao imanente no supe necessriamente a produo de um
termo. A coisa concreta tem, no caso presente, tudo o que preciso para terminar por
si mesma o ato de conhecer e seria suprfluo recorrer, para desempenhar este papel, a
um substituto criado pelo esprito.

Alguns tomistas modernos, impressionados pelas dificuldades postas por uma crtica mais
avanada da sensao, aplicaram-se em renovar a teoria antiga no sentido da
relatividade (cf. por exemplo: Frbes, Psychologie spculative, t. I, p.
108) .

Uma primeira modificao importante consiste em dar, do ponto de vista da


objetividade, um valor privilegiado s qualidades primeiras (dados quantitativos)
sbre as qualidades segundas (dados qualitativos). A extenso e suas
determinaes, em principio, encontrar-se-iam na realidade tais como ns as
percebemos, mas o aspecto qualitativo da representao no verdadeiramente
objetivo. Se a cada qualidade percebida corresponde concretamente uma determinao
especial que justifica a especialidade da sensao, no h entre os dois termos
verdadeira semelhana. V-se quo profundamente a teoria antiga aqui se encontra
transformada. Para S. Toms, ao contrrio, a percepo da qualidade que
apresenta o mximo de garantia, produzindo-se os erros antes na percepo dos
sensveis comuns.

Alguns vo menos longe na sua reforma. O sensvel percebido bem imediato e


objetivo, mas como tal realizado apenas ao contacto do rgo ou da potncia
sensvel. O meio tanto exterior como interior pode, com efeito, muito bem modificar as
condies da sensao. O objeto, em sua realidade, no seria portanto
necessriamente idntico representao que dle temos.

O que reter de tudo isto? No duvidoso que S. Toms, nas sendas de


Aristteles, tenha reconhecido a objetividade das qualidades sensveis; aparece
igualmente que, quando o fato o constrangia, mitigava com um certo relativismo esta
primeira considerao. Pode-se ir mais longe que le nesta via? Sem dvida.
Nada probe, em particular, de se levar mais em conta as condies do meio e dos
rgos e de transportar assim, ao nvel da faculdade, o objeto tal como ns o
percebemos. Poder-se- progredir at ao ponto de dizer que as qualidades percebidas
so apenas smbolos das qualidades reais das coisas, com finalidade sobretudo
utilitria? Ser sempre prticamente impossvel dar a esta questo uma resposta
decisiva, porque no tm os sentidos, como a inteligncia, o poder de refletir sbre
seu ato e, portanto, de julgar de seu exato valor. Como quer que seja, h uma
imediao e um certo realismo fundamental que, no tomismo, dificilmente podem ser
recusados ao conhecimento sensvel.

8. POTNCIAS SENSVEIS E "MEDIUM".

Precisemos, em alguns pontos, a estrutura e o mecanismo das potncias sensveis.

evidente que as potncias sensveis so potncias orgnicas, isto , dependem


33
ao mesmo tempo da alma que lhes princpio, e do corpo onde se incarnam sob forma de
rgos bem determinados: a mais elementar anlise da sensao o testemunha. Assim,
a alma, quando separada do corpo, no possui mais suas potncias sensveis, a no
ser de modo radical, e no pode mais exercer atos sensveis.

No sendo potncias puramente espirituais, no podem os sentidos refletir


perfeitamente sbre si mesmos, e no tm assim o conhecimento distinto de sua
atividade. Um certo poder de reflexo todavia reconhecido, no peripatetismo, a um
sentido particular, o sensus communis, e assim possvel falar de uma certa
conscincia sensvel.

A fisiologia dos rgos dos sentidos no deixa de interessar a Aristteles. Mas


evidente que suas alegaes, por mais engenhosas que sejam, precisam ser sriamente
controladas e completadas. Uma de suas concepes mestras neste domnio era a de que
os sentidos, para estarem em condio de receber uma certa forma, deveriam estar
privados dela; assim a pupila era feita de gua, o que a tornava capaz de ser
impressionada por tdas as coisas.

Alm da potncia sensvel e de seu rgo, alm outrossim do objeto que a


determina, necessrio, para que haja sensao, que exista um certo "meio"
intermedirio.

A existncia dste parece repousar sbre uma dplice constatao. Antes de tudo,
no caso de ao menos trs sentidos (vista, ouvido e olfato) ste meio aparece como um
fato; o rgo est separado do objeto sensvel por um certo intervalo de ar ou de
gua que manifestamente desempenha um papel de transmisso. Em segundo lugar,
evidente que suprimindo-se o meio pode desaparecer a sensao: o objeto colorido
colocado diretamente sbre o lho no mais percebido; aproximado demais do ouvido,
o objeto sonoro apenas provoca uma audio confusa. Evidencia-se, portanto, que a
ao do objeto sensvel tem necessidade de se refratar em um meio para poder estar em
condio de afetar convenientemente o rgo. bastante curioso observar que
Aristteles tenha estendido esta teoria aos sentidos do tacto e do gsto, para os
quais, ao contrrio dos precedentes, parece impor-se o contacto corporal direto com o
objeto sensvel. A tambm o meio ainda existe e no outra coisa que a carne,
pois os rgos no esto na superfcie, mas no interior.

Do mesmo modo que os rgos, devem os meios estar em condies de neutralidade com
relao s formas que recebem: assim o "difano", meio correspondente vista,
incolor e, semelhantemente, o meio do som insonoro. No caso do tacto e do gsto,
para os quais o meio a carne, matria necessriamente qualificada, dir-se- que
existe um certo equilbrio em qualidades, uma "mediedade", que ser receptiva de
tudo o que fr "excesso" no reativo exterior: assim, a mo que temperada (isto
, nem quente nem fria) pode receber o calor e o frio dos objetos que a tocam.

Qual exatamente o papel do meio nesta psicologia da sensao? Sem dvida alguma,
antes de tudo o papel de transmisso. Mas servia tambm, na concepo dos antigos,
para proteger os rgos dos sentidos, aos quais poderia ser nocivo o contacto com o
objeto. Certos comentadores atribuam igualmente ao meio uma funo de
espiritualizao das formas, em vista de sua recepo pelos sentidos. Seria graas a
le que estas formas se tornariam sensveis em ato.
34
9. O NMERO DOS SENTIDOS EXTERNOS.

Como se distinguem os sentidos entre si? No pelos rgos, pois stes so


relativos aos sentidos. Nem tampouco, e pela mesma razo, pelos meios:
Abstratamente consideradas, as qualidades sensveis so apenas inteligveis e,
portanto, aqui no servem para nada. Resta que os sentidos se diferenciam por aquilo
que lhes convm formalmente, isto , pelo seu sensvel prprio (cf. S. Th.,
Ia Pa, q. 78, a. 3; Quaest. Disp. de An., a. 13).

A partir dste princpio, distingue Aristteles os cinco sentidos que se tornaram


clssicos (De Anima, II, c. 6 ss). No dada nenhuma razo a priori desta
enumerao que assim parece no ter outro fundamento alm da experincia vulgar. S.
Toms, entretanto, que gosta de tais ordenaes, deixou-nos uma dupla tentativa de
sistematizao destas potncias.

Podemos, antes de tudo, orden-las conforme seu grau de imaterialidade relativa,


proporcionando-se esta importncia da modificao material que acompanha a
"imutao" espiritual do sentido. Assim, no cume estaria situada a vista que no
implica em nenhuma modificao corporal. Abaixo, viria o ouvido e o olfato que
comportam uma modificao por parte do objeto. No p da escala, enfim, o gsto e o
tacto que supem, a mais, uma modificao do rgo. Tais observaes,
evidentemente, precisariam ser aperfeioadas, embora o princpio desta sistematizao
permanea sempre vlido.

No De Anima (III, l.17-18) S. Toms classifica os sentidos conforme sua


utilidade, ou segundo a finalidade que preenchem na vida animal. O Doutor anglico
distingue duas categorias de sentidos depois de ter observado que, embora todos os
viventes tenham necessidade de uma funo nutritiva, nem todos tm necessriamente
faculdade de conhecer: os sentidos inferiores e fundamentais, dos quais a vida animal
no pode prescindir, ao menos o tacto e o gsto, e os sentidos superiores, que
conferem a esta mesma vida uma maior perfeio, a saber, o ouvido, o olfato e a
vista, os quais so precisamente os sentidos que, pelo seu meio, tm seu objeto
distncia. Esta diviso teria sua razo de ser na necessidade que sentem os animais
superiores de se deslocar para buscar seu meio de vida, circunstncia esta que
evidentemente requer o uso de um maior nmero de sentidos. Os animais inferiores, por
encontrarem imediatamente a seu alcance o meio de sustento, no precisam se mover,
nem, em conseqncia, perceber de longe. Explicao to engenhosa quo difcil
de se verificar.

Dificuldade. O sentido do tacto um ou mltiplo? A diversidade das impresses


comumente aduzidas a ste sentido, como esforos musculares, pso, calor, dor,
etc., levam-nos naturalmente a formular a questo. S. Toms j se inquietara com
isto (cf. S. Th. Ia Pa, q. 78, a 1, ad 3) . Estava inclinado a pensar
que o tacto um certo gnero que comportaria diversas espcies. Distinguir-se-ia
hoje, de bom grado, um sentido de esfro e um sentido trmico, ligando-se o
sentimento da dor antes afetividade. Aristteles inclinava-se tambm a assimilar o
gsto ao tacto, fazendo do gsto uma espcie de tacto limitado lngua.

10. A TEORIA ARISTOTLICA DA VISO.

Em razo das aplicaes particulares que encontra, tanto em Teologia como em


Filosofia (doutrinas da inteleco, da f, da viso beatfica), e por causa de
seu intersse prprio, a teoria da viso merece reter-nos um pouco mais (c. S.
35
Toms, De Anima, II, l. 11-15; De Sensu, l. 2-9) .

O objeto da vista o visvel. Ora, na ordem do visvel encontramos duas coisas: a


cr e o luminoso. A cr o visvel por si, enquanto que o luminoso no ser
visvel a no ser pela cr. Vejamos mais acuradamente como se ajustam stes
elementos. O conjunto dos corpos transparentes, e mesmo opacos, possui em comum uma
certa natureza, o difano (perspicuum). ste, de si, pura potncia.
Encontra-se determinado pelo `fogo ou pelos corpos celestes: seu ato ento a luz.
Mas sabemos que a luz smente um princpio de visibilidade: torna-se visvel
efetivamente apenas quando atuada pela cr que o limite dos corpos opacos. O objeto
ser, portanto, visvel em ato, quando o difano encontrar-se ao mesmo tempo
iluminado e determinado pela cr. Em tda esta explicao - preciso notar -
no h trao de movimento local; todo o processo resulta da alterao qualitativa.

No De Sensu, a presente teoria v-se oposta s concepes emissionistas de


Plato, de Empdocles e de Demcrito. A viso, segundo stes filsofos, deveria
ser antes compreendida como uma irradiao luminosa do lho: ste, sendo da natureza
do fogo, emitiria algo do fogo que faria perceber os objetos circunstantes. Muitas
vzes se admitia mesmo que partculas emanassem dos corpos exteriores. A viso seria,
ento, provocada pelo encontro de duas correntes. Aristteles, por sua vez, no cria
que o lho fsse um centro luminoso ativo; no constitudo de fogo mas sim de
gua e seu comportamento, frente ao objeto, de pura passividade. Na doutrina
peripattica era o branco a cr fundamental, ao qual se opunha o prto; as outras
cres eram formadas por uma combinao de branco e prto.

11. OS SENTIDOS INTERNOS

Os sentidos externos atingem apenas os sensveis prprios ou comuns, e smente em sua


presena. Ora, a experincia manifesta que nossa atividade de conhecimento sensvel
estende-se alm desta percepo imediata dos objetos. Conservamos nossas sensaes
e podemos espontneamente reproduzi-las; por outra parte, podemos compar-las,
associ-las ou referi-las s necessidades prticas do sujeito. O conjunto destas
atividades requer evidentemente outros podres alm dos simples sentidos externos: so
os sentidos internos.

Conforme seu costume, S. Toms esforou-se por dar uma justificao a priori da
existncia dstes sentidos (cf. Ia Pa, q. 78, a. 4). Duas razes
principais parecem motiv-lo. O animal perfeito, antes de tudo, devendo deslocar-se
para atender s suas necessidades, deve ser capaz de representar a si mesmo os objetos
sensveis, mesmo quando no esto presentes. Por outra parte, para que possa
discernir o que lhe convm e o que no lhe convm, necessrio que tenha um certo
sentido do til e do nocivo, sentido ste que no pode ser reduzido percepo
externa do objeto. assim que, retomando o exemplo antigo, a ovelha foge vendo o
lbo, no porque a cr ou a forma dste animal desagrade seu olhar, mas porque v que
seu inimigo. Tais arrazoados merecem considerao. Na realidade, o discernimento
dos sentidos internos origina-se antes da anlise do dado do conhecimento sensvel, o
qual manifesta "razes objetivas" que no so redutveis s razes dos sentidos
externos. Como em todos os casos semelhantes, convm reconhecer tantas potncias
especiais quantos objetos novos especificamente distintos. O peripatetismo enumera
quatro, aos quais correspondem os quatro sentidos internos: "sensus communis",
imaginao, estimativa e memria.

Aristteles estudou esta questo dos sentidos internos no De Anima (III, c.


36
1-3) e no De Memoria et Reminiscentia. S. Toms comentou stes textos e deu uma
viso sinttica de seu contedo na Summa Theologica ( Ia Pa, q. 78, a. 4) e
nas Quaest. Disp. De Anima (a, 13) . Em tdas as elaboraes destas
exposies, de aparncia um tanto convencional e rgida, esconde-se uma grande riqueza
de observaes e uma verdadeira fineza de discernimento psicolgico. (Cf. Texto
III, Sentidos internos e sentidos externos, pg. 193) .

12. O "SENSUS COMMUNIS".

Para Aristteles, o "sensus communis" parece preencher uma trplice funo:


percepo dos sensveis comuns, reflexo sbre a atividade sensvel, separao e
comparao dos objetos pertencentes a vrios sentidos diferentes. S. Toms notifica
apenas as duas ltimas funes.

A. A conscincia sensvel.

Cada um dos sentidos particulares parece ter um mnimo de conscincia de sua


atividade. Ao menos sabe vagamente que funciona. Mas corno as potncias sensveis
no refletem sbre si mesmas seno de maneira completamente imperfeita, prefervel
atribuir ste papel a um sentido distinto. ste o "sensus communis" que percebe
que vejo, que ouo, etc. Nele realiza-se e unifica-se o que se pode chamar de
conscincia sensvel, estreita-. mente associada no homem, conscincia
intelectual.

B. A centralizao dos conhecimentos sensveis.

O "sensus communis" no s tem conscincia das atividades de cada um dos sentidos,


mas ainda as aproxima e compara, o que no podem fazer os sentidos particulares,
fechados nos limites de seus objetos prprios. ste objeto, que percebo atualmente,
parece conjuntamente colorido e externo minha vista, sonoro aos meus ouvidos, spero
e frio minha mo: graas ao "sensus communis" que estas sensaes se
reproduzem de modo simultneo, e que se estabelece uma certa unidade, em minha
conscincia, entre stes dados diversos. Sem ele, a percepo global do objeto
sensvel seria inexplicvel.

Por ste poder de centralizao dos dados sensveis, v-se que o sentido em
questo s pode estar em estreita continuidade com os sentidos externos. Para S.
Toms uma espcie de fundo comum, aparecendo assim o sistema do conhecimento
sensvel como um feixe de potncias radicadas em uma faculdade central. Todavia, o
"sensus communis" continua sendo uma potncia distinta com suas funes prprias.
No conjunto do organismo do conhecimento, uma espcie de ligao intermediria,
encarregada, sobretudo, de transmitir s potncias superiores os dados primeiros da
sensao. Todos os animais, para Aristteles, so necessriamente dotados dste
sentido, enquanto os outros sentidos internos encontram-se apenas nos animais
superiores.

13. A IMAGINAO.

No aristotelismo, esta faculdade desempenha um dplice papel. Em primeiro lugar,


recebe e conserva as impresses sensveis que lhe so transmitidas pelo "sensus
communis" e, a sse ttulo, uma espcie de memria; em segundo lugar reproduz,
na ausncia do objeto exterior, as impresses.
37
Em razo desta dupla atividade, a imaginao no pode ser reduzida a nenhum dos
sentidos vistos aqui, nem mesmo ao "sensus communis", que no conserva e, portanto,
no pode reproduzir as imagens. Tais funes so, para S. Toms, completamente
originais e uma pura faculdade receptora impotente para pratic-las. Por outro
lado, deve-se distinguir a imaginao dos outros sentidos internos: da estimativa
que, como veremos, considera certas relaes abstratas que no so percebidas pelos
sentidos; da memria que implica sempre referncia ao passado, estranha, tambm ela,
ao simples dado dos sentidos.

A atividade da imaginao. Os psiclogos modernos desenvolveram considervelmente o


estudo das diversas atividades desta faculdade, esforando-se por determinar, com
tda preciso possvel, as leis de revivescncia, de associao, de modificao
das imagens, etc. No se encontra nada de semelhante nos estudos dos antigos.
stes, todavia, tinham perfeitamente tomado conscincia do papel capital desempenhado na
vida psquica pela imaginao. Para les, a imaginao est na base da vida
passional. tambm a faculdade dos sonhos e por suas iluses que o erro penetra no
esprito. Acrescentemos que as anlises feitas posteriormente em nada contradizem a
estas observaes primeiras, e seus resultados vm perfeitamente tomar lugar nos
quadros que elas determinam.

14. "ESTIMATIVA" E "COGITATIVA".

A doutrina da "estimativa" e da "cogitativa" - se podemos traduzir assim os termos


"estimativa" e "cogitativa" - uma das mais notveis concepes da psicologia do
conhecimento sensvel que estudamos.

um fato que os animais buscam certos objetos ou dles fogem, no smente enquanto
stes tm uma relao favorvel ou desfavorvel com tal sentido particular, mas
ainda porque so teis ou nocivos natureza do indivduo considerado em sua
totalidade. A ovelha, gosta de repetir S. Toms, foge do lbo, no em razo de
sua cr ou de sua forma, mas como nocivo sua natureza; e, semelhantemente, o
passarinho recolhe palhas, no por prazer dos sentidos, mas em vista do ninho a
construir.

Ora, claro que tais objetos, isto , a razo da utilidade ou da nocividade, no


caem sob nenhum dos sentidos prprios. Por outro lado, ao menos no animal, no se
pode dizer que sejam percebidos por uma inteligncia, que no existe. Resta, pois,
que existe um poder sensvel especial, tendo por objeto estas relaes no
sensveis, "intentiones insensatae", a partir das quais as potncias afetivas e
motoras podero reagir.

A teoria da estimativa, acabamos de reconhecer, parece ter sido inventada para explicar
certas reaes originais dos animais. Mas, movimentos semelhantes no so
encontrados tambm no homem, no nvel de sua atividade sensvel? No h,
portanto, razo alguma que proba admitir, tambm no caso do homem, a existncia
dste sentido interno. V-se logo, todavia, que, em seu psiquismo mais elevado,
esta potncia ter uma condio especial, levando-se particularmente em conta a
influncia que sobre ela exercer a inteligncia, que a faculdade superior de
govrno. Mas aqui se reservou para ela um nome particular; na tradio agostiniana,
fala-se em um sentido aproximado ratio inferior. S. Toms fica com o trmo
cogitativa. De modo preciso, a "cogitativa" distingue-se da estimativa por ter um
campo de exerccio mais extenso e sobretudo por poder, em razo de sua proximidade com
as faculdades superiores, efetuar, na ordem concreta, aproximaes que confinam com
38
as snteses prpriamente intelectuais.

Em virtude desta vizinhana com a vida do esprito, deve a "cogitativa" ter, no


psiquismo humano, um papel extremamente importante. Entre o sentido, que considera o
singular concreto, e a inteligncia, que a faculdade do universal abstrato,
desempenha papel de mediadora. Intervm assim na constituio dos esquemas
imaginativos que serviro de matria inteleco. E a ela que encontramos
quando se trata de adaptar os imperativos superiores da razo ao no mundo
sensvel. Se, por exemplo, quero escrever, a "cogitativa" que pe em relao,
em meu esprito, esta caneta, que tenho entre meus dedos, com o fim a conseguir, isto
, com os caracteres a traar sbre a pgina branca diante de mim.

Estudando esta faculdade, pensa-se evidentemente nos modernos estudos sbre o


instinto. No se duvida que a atividade do instinto esteja ligada a ste crculo de
fenmenos que so hoje em dia agrupados sob ste ttulo. Todavia devemos notar que,
na anlise antiga, era antes o aspecto cognitivo dos fenmenos desta ordem que era
colocado em evidncia. Um estudo do instinto, feito nesta linha, deveria aparecer
portanto com um carter intelectual ou imaginativo bem marcado, no se excluindo de
modo algum a possibilidade de reflexos absolutamente independentes da atividade do
conhecimento.

15. A MEMRIA SENSVEL.

O ltimo dos sentidos internos, a memria, tem uma funo precisa e limitada. A
conservao e a simples reproduo das impresses sensveis , como dissemos,
trabalho da imaginao. O que advm memria, assim parece, ser o "tesouro"
destas relaes abstratas concebidas pela "cogitativa": ela as desperta na
conscincia ao mesmo tempo que desperta as imagens. Mas o carter verdadeiramente
distintivo desta faculdade seu poder de representar as coisas como passadas, "sub
ratione praeteriti". Dizemos que algum se lembra de alguma coisa quando pode
relacionar sua percepo com o passado: ontem encontrei tal pessoa; a imagem dste
acontecimento apresenta-se minha conscincia com sua situao no tempo.

Como se opera esta ligao da imagem ou das relaes evocadas com um momento
determinado do tempo? Isto no pode ser feito pela inteligncia, pois esta capta o
seu objeto em condies de abstrao que o situam acima do curso do movimento e,
portanto, do tempo; por isso, no haver no homem memria intelectual pura. A
apreenso do movimento , de modo imediato, uma percepo sensvel e nesta que se
funda o conhecimento do tempo. A ordem temporal dos fenmenos assim apreendidos
inscreve-se na memria que , por isso, capaz de a reproduzir. Basta que um dstes
fenmenos se lhe apresente, e estar em condio de situ-lo temporalmente com
relao aos outros.

No animal, esta revivescncia do passado realiza-se de modo automtico. Na


conscincia humana, pode tambm ser o resultado de uma procura ativa que recebe o nome
de reminiscncia. A psicologia moderna trar complementos preciosos anlise dos
antigos, precisando as condies e as modalidades, no quadro do tempo, desta
revivescncia dos fenmenos anteriormente percebidos Mas parece no poder mudar em nada
a definio mesma do fato de memria, ou sua especificao por esta "ratio
praeteriti", to claramente reconhecida pelo aristotelismo. Aqui, como para os outros
sentidos internos, parece esta filosofia ter conseguido elevar-se a um discernimento
notvelmente preciso e exato dos objetos.
39
16. A AFETIVIDADE SENSIVEL E O PODER DE SE
MOVER

Ao lado de nossos atos de conhecimento, a anlise mais elementar distingue, no curso


de nossa vida psquica, todo um conjunto de atos, volies, sentimentos e afeies
diversas que manifestamente so de outra ordem. Esta constatao leva-nos a
reconhecer a existncia, alm de nossas potncias cognitivas, de um grupo de
faculdades que chamaremos apetitivas, se acentuarmos o aspecto tendencial de sua
atividade, e afetivas, se pelo contrrio sublinharmos seu comportamento com relao ao
sujeito. Notamos logo que a psicologia aristotlica, indo ao encontro de certas
doutrinas mais recentes, atribui s mesmas faculdades os dois aspectos da vida afetiva.
Assim, desejar ou querer um objeto e goz-lo ou padec-lo, so atos de uma s
faculdade. Da resulta que para o conjunto do psiquismo humano devemos distinguir s
mente duas e no trs ordens de faculdade: as de conhecimento e as de apetncia,
diviso esta que tem o seu fundamento na metafsica geral da ao.

No que se segue, limitar-nos-emos a expor, em suas grandes linhas, a doutrina de


S. Toms. Tudo o que diz respeito anlise das paixes, j notvelmente
estudada pelos antigos, e tudo o que concerne a seu valor moral, ser deixado de lado.
Portanto, antes que uma psicologia no sentido moderno, ou uma moral, encontraremos aqui
uma metafsica da afetividade. Para ste estudo, cf. S. Th. (Ia Pa. q. 80
a. 1-2; q. 81 a. 1-2) e De Veritate (q. 25 a. 1-2).

17. AS POTNCIAS AFETIVAS

Consideremos o artigo com o qual S. Toms, na Summa, inaugura seu tratado (Ia
Pa, q. 80 a. 1). A existncia de uma vida apetitiva ou afetiva um fato de
experincia. Mas, reconhecer no princpio desta vida, a existncia de potncias
especiais, pode trazer dificuldades. No se poderia dizer que a apetio, sendo um
fenmeno totalmente geral encontrado nos sres inanimados, como tambm nos viventes,
apenas a inclinao que se segue natureza de cada ser? Isto aparece, em
particular, no caso das faculdades da alma, que parecem ordenar-se por si mesmas a um
objeto. Por que, pois, requerer, ao lado dessa inclinao de natureza, o exerccio
de um poder especial de apetncia?

S. Toms responde a esta dificuldade lembrando o princpio que vai dirigir tda a
questo: a tda forma segue-se uma tendncia, "quamlibet formam sequitur aliqua
inclinatio". assim que o fogo por natureza inclinado para os lugares superiores, e
tende a gerar fogo. Dois casos podem, ento, apresentar-se:

- o dos sres que so destitudos de conhecimento: nestes


encontra-se apenas uma forma que os determinar segundo o seu
ser prprio e qual segue-se uma inclinao natural que
se denomina appetitus naturalis;

- o dos sres que tm conhecimento: aqui, com no caso


precedente, encontra-se uma forma e uma inclinao
natural, mas ainda, por causa da amplitude dsses sres,
encontram-se, nas potncias de conhecer, as formas das
outras coisas que foram recebidas sob um modo mais elevado de
existncia. A estas formas eminentes deve corresponder uma
inclinao, de um tipo igualmente mais elevado, que levar o
ser dotado de conhecimento para o bem apreendido, e esta
40
inclinao ser designada pela expresso appetitus
animalis.

Divises do apetite: appetitus naturalis, appetitus animalis. Convm que voltemos a


esta distino para precisar bem seu significado.

O "appetitus naturalis", designa a inclinao que, de modo completamente


universal, acompanha tda forma. Esta inclinao no nada mais que a tendncia
sempre atual que relaciona uma forma a seu bem ou suei perfeio. Como a forma que
est em seu princpio, o "appetitus naturalis" algo de nitidamente determinado: o
corpo pesado inclina-se de maneira constante para baixo; isto est em sua natureza.

O "appetitus animalis" segue-se forma apreendida no conhecimento: o animal v sua


prsa e levado - a atirar-se sbre ela. ste tipo de apetncia distingue-se do
precedente de muitas maneiras. Primeiro que tudo, no est continuamente em ato.
Antes de perceber sua prsa, o animal tem smente o poder de se lanar sua busca.
O apetite animal ser, portanto, uma potncia capaz de ser atuada. Por outro lado,
esta potncia deve ser distinguida das faculdades de conhecer: o que se deve concluir
da diversidade especfica entre a atividade de conhecer, que assimiladora e termina
no sujeito, e a atividade de apetncia que diz tendncia, e tendncia para um outro.
S faculdades distintas sero capazes de explicar atos to diferentes. Notar-se-,
enfim, que o "apetite animal" no , como o "apetite natural", limitado a uma s
forma de ser. capaz de tomar para si tdas as formas que as potncias cognitivas
forem capazes de receber. Ainda mais, se consideramos apenas o apetite prprio s
faculdades, deveremos dizer, que, enquanto o "apetite natural" de uma dada faculdade
visa apenas o bem prprio desta mesma faculdade, o "apetite animal", que lhe
corresponde, estende-se a todo bem do prprio sujeito. Pelo fato de comportar a
atuao de uma potncia, o "apetite animal" foi designado pela expresso, "apetite
elcito", que de uso corrente.

Casos particulares das faculdades. - Se agora aplicarmos a descrio estabelecida


para o caso destas naturezas de ser que so as faculdades, deveremos dizer que: na
faculdade de conhecer h smente um "apetite natural" que a ordena para seu objeto.
Assim, por exemplo, na vista, h um apetite natural que a ordena para a cr; mas para
a faculdade apetitiva correspondente, pode-se falar em dois apetites distintos: de um
"apetite natural", sempre atual para o bem desta faculdade, e de um "apetite
elcito" que, depois de um ato de conhecimento, determina-a para tal bem particular.
Retomando nosso exemplo, diremos que o animal, antes de perceber sua presa, tem na
potncia visual um "apetite natural" para tda a ordem do visvel, e em sua
afetividade um outro "apetite natural" para tudo o que pode preencher seu desejo. Em
sua conscincia sobrevm a imagem da prsa cobiada e a potncia afetiva "elicita"
ste ato de desejo que determina o processo da captura.

Apetite sensvel e apetite intelectual: (Cf. Ia Pa. q. 80 a. 2). A


distino destas duas formas de apetite no apresenta dificuldade de princpio. Supe
smente bem estabelecida a especificidade respectiva das duas ordens do conhecimento
sensvel e do conhecimento intelectual. A partir disto, raciocina-se bem
simplesmente. As potncias apetitivas, sendo potncias passivas, sero distinguidas
conforme a diversidade dos princpios motores que as determinam. Ora, aqui sses
princpios so os atos de duas potncias genricamente diferentes, os sentidos de uma
parte, e a inteligncia de outra. Portanto, devem aqui existir duas espcies de
potncias apetitivas, as que se relacionam com o conhecimento sensvel e as que
correspondem ao conhecimento intelectual. importante notar que o fato de ser
41
apreendido pelo sentido ou pela inteligncia no , para o objeto desejado, uma
circunstncia puramente acidental. A razo ou o motivo de apetio , nos dois
casos, formalmente diferente: a afetividade sensvel orientar-se- to smente a
bens particulares, considerados como tais, enquanto o apetite intelectual, isto , a
vontade, visar sempre stes bens particulares sob a razo universal de bem. Embora
versem sbre as mesmas coisas que esto fora da alma, as tendncias voluntrias e as
inclinaes sensveis no so especficamente as mesmas, o que supe que se
distingam perfeitamente as faculdades.

Apetite concupiscvel e apetite irascvel: (Cf. Ia Pa, q. 81, a. 2).


Abordando os problemas particulares do apetite sensvel, S. Toms levado a
estabelecer uma nova diviso de duas distintas faculdades desta ordem, diviso que
ter sua importncia moral. O princpio de discriminao invocado o que
conhecemos bem: onde existir razes de objeto especficamente diferentes, devem-se
encontrar potncias igualmente diferentes. Ora, nossa atividade sensvel,
imitao da simples fra da natureza, pode ocupar-se de duas espcies de objetos ou
de bens distintos: s vzes, de bens simplesmente desejveis, "bonum simpliciter"
(ou de males simplesmente a fugir); s vzes, de bens que me parecem difceis a
atingir "bonum arduum". No primeiro caso, opera o apetite concupiscvel; no
segundo, deve intervir uma outra potncia, o apetite irascvel.

Que o bem desejvel nos aparea s vzes como fcil e s vzes como difcil de
ser conquistado, evidente por si. Mas, poder-se-ia perguntar, uma tal
circunstncia suficiente para criar uma diferena especfica de objetos e,
portanto, da faculdade? Em favor desta diferena especfica S. Toms faz valer
diversos argumentos. As paixes dos dois tipos parecem combater-se e enfraquecer-se
mutuamente, o que insinua a exigncia de uma distino correspondente de potncias.

Por outro lado, o que talvez seja mais decisivo, o apetite irascvl apelaria para
outras faculdades de conhecer, diferentes das faculdades do apetite concupiscvel: para
desejar, ou para amar basta ter sensaes ou imagens; enquanto que para se encolerizar
preciso, alm disso, ter tomado conscincia das relaes abstratas atingveis s
pelos sentidos internos superiores, cogitativa e memria; o irascvel, por outro
lado, engaja mais a razo. Embora distinguindo duas faculdades de apetio, convm
no deixar de restabelecer uma certa unidade entre elas: as paixes originadas de uma e
de outra encadeiam-se e carreiam-se mutuamente. Mais profundamente, devemos dizer que
o concupiscvel tem algo de mais fundamental, e que assim o irascvel enraza-se, de
certo modo, nle.

18. OS ATOS DO APETITE SENSVEL.

Devem ser colocados nesta classe todos os atos de apetncia que resultam imediatamente
da apreenso sensvel de um certo bem ou de um certo mal. Sendo orgnicas as
faculdades que os "elicitam", tais atos so necessriamente acompanhados de
modificaes corporais. Prevaleceu o uso de as denominar indiferentemente paixes,
quer designem uma tendncia ou um movimento de carter ativo, quer uma afeio
aparentemente passiva. S. Toms distinguiu onze paixes caractersticas, divididas
entre o apetite concupiscvel e o apetite irascvel. So elas na ordem terica de
sua gnese: o amor, que a raiz de tda a vida afetiva, o dio, o desejo, a
fuga, a esperana, o desespero, o mdo, a audcia, a clera, a alegria, a
tristeza. Conforme o uso, deixamos Moral o estudo detalhado de cada uma destas
afeies da alma.
42
19. A FACULDADE MOTORA

Cf. Aristteles, De Anima, III, c. 9-11 e o Comentrio de S.


Toms.

A questo da existncia de uma faculdade especial, relativa ao movimento local dos


viventes, parece ter preocupado sriamente a Aristteles. Os animais, ao menos
alguns entre les, deslocam-se de modo espontneo. Isto um fato. Mas no
bastaria para explic-lo recorrer s potncias que j conhecemos?

A faculdade nutritiva, a mais elementar de tdas, evidentemente incapaz de explicar


tais fenmenos. O movimento dirigido por um fim e isto supe a interveno de
atos psquicos, como representaes e desejos, que no so encontrados na planta
que, efetivamente, permanece imvel. A simples sensao aqui igualmente
ineficaz, pois no h animais que sentem e no se movem? No se poderia dizer
ento, que o intelecto, auxiliado pela imaginao e o desejo ou inclinao
sensvel, que est na origem dos processos de deslocao? De maneira incontestvel,
atingimos aquo os verdadeiros antecedentes dste modo de atividade: tenho o pensamento
de ir para tal lugar e o desejo de chegar at l e, sob ste dplice impulso,
ponho-me a caminho. Mas que se observe bem que por si ss, a representao e o
desejo no podem bastar. Sem dvida exigido o concurso dstes dois elementos,
mas, alm disso, necessrio, para que eu me coloque em marcha, a interveno de
uma potncia encarnada nos rgos motores do corpo. O paraltico, no qual estas
potncias encontram-se como que prsas, no se pode mover, seja qual fr seu desejo
de o fazer e sejam quais forem as imagens motores que possa evocar. Para se deslocar,
pois, o animal dever, sempre dirigido pelas potncias superiores de conhecimento e
apetncia, pr em funcionamento uma potncia orgnica especial que, de modo imediato,
provocar o movimento dos membros donde resultar a mudana de lugar.

Nesta anlise, cujo intersse no passar despercebido a ningum, Aristteles


parece ter tido diretamente em vista os movimentos de deslocamento conscientes e
diretamente imperados, seja pela vontade deliberada (smente no caso do homem), seja
pelo psiquismo sensitivo (para todo animal). De modo corrente admitem os psiclogos a
existncia paralela de reflexos automticos que acionam a potncia motora sem a
interveno das faculdades psquicas superiores. Aqui seria o caso de se abrir todo um
captulo da psicologia do subconsciente que S. Toms no escreveu e do qual
conseqentemente no temos nada a dizer.
43
O CONHECIMENTO INTELECTUAL.
POSIO DO TRATADO DA INTELIGNCIA

1.INTRODUO

Acima da vida sensitiva encontra-se no homem um grau superior de vida: a vida


intelectiva. Divide-se esta vida conforme as duas grandes correntes de atividade: a de
conhecimento e a de apetncia, s quais correspondem, respectivamente, as duas
grandes faculdades espirituais, inteligncia e vontade. Seremos assim levados a
considerar sucessivamente os problemas da inteligncia (cap. IV), os da vontade
(cap. V) e, remontando ao principio radical comum destas faculdades, os problemas da
alma intelectiva em si mesma.

2. PRIMADO DA INTELIGNCIA.

At aqui consideramos o conjunto dos fenmenos vitais pelos quais o homem est em
comunidade com os viventes de grau inferior, as plantas e os animais. Com a vida
intelectiva abordamos o plano da vida prpriamente humana: "a operao prpria do
homem, enquanto homem, fazer ato de inteligncia" (Santo Toms, Metaph. I,
L.1, n.3) . Tentemos tomar conscincia dste fato comparando, sob seus aspectos
gerais, o conhecimento intelectual (prprio do homem) com o conhecimento sensvel
(comum ao animal e ao homem) (cf. Cont. Gent., II, c. 66 e 67).

Em primeiro lugar preciso dizer, segundo uma frmula que volta sempre em S.
Toms, que a inteligncia tem por objeto o universal, enquanto o sentido atinge smente
o singular: "intellectus est universalium, sensus est particularium"; o que vejo com
meus olhos esta planta determinada e particular; minha inteligncia, porm,
comea por formar a noo geral de planta. Em segundo lugar, a inteligncia capta
objetos no sensveis, como a idia de verdade, por exemplo, ou a de Deus,
enquanto o sentido no pode ultrapassar a percepo das propriedades corporais. A
inteligncia, alm disso, uma faculdade que pode, por reflexo, tomar conscincia
de si mesma e de sua atividade; o que no dado ao sentido, ao menos em um mesmo
grau. Poder-se-ia ainda acrescentar, comparando as atividades prticas que competem a
cada um dstes podres, que enquanto uma atividade (a que depende da inteligncia)
capaz de escolha, a outra (que se origina dos sentidos) naturalmente determinada;
assim, a andorinha constri seu ninho sempre da mesma maneira.

Fundamentam-se as diferenas no fato de que a inteligncia, que a faculdade do


ser, penetra at essncia mesma das coisas, enquanto os sentidos ficam nas
particularidades exteriores. E, de qualquer maneira, formalmente pela sua atividade
intelectual que o homem um animal dotado de razo: homo est animal rationale.

Se compararmos as operaes espirituais da alma entre si, uma mesma constatao se


evidencia. O ato da vontade, com efeito, sempre supe um ato da faculdade intelectual
que o precede e o informa e assim tem o conhecimento, por ste motivo, precedncia
sbre a ao que, de certo modo, aparece como sua resultante. o que
particularmente se manifesta no caso notvel da viso beatfica, a qual s amor em
dependncia de uma contemplao. Consciente dste primado da inteligncia,
Aristteles j havia proclamado a superioridade do conhecimento desinteressado, ou da
"theoria", sbre as atividades da vida prtica.

Tudo isto converge para esta concluso: a inteligncia tem o primado sbre as outras
44
faculdades.

3. SIGNIFICADO DA TEORIA PERIPATTICA DA


INTELIGNCIA.

Como o conjunto de sua psicologia, manifesta-se a doutrina do conhecimento em


Aristteles como uma via mdia entre o sensualismo materialista, representado na
antiguidade por Demcrito, e o intelectualismo extremo, iniciado por Plato. Eis
como S. Toms considera na Summa esta tomada de posio (S. Th. Ia Pa, q.
84, a. 1 e 6).

Para Demcrito, todos os nossos conhecimentos resultam da impresso que as


partculas emanadas dos corpos causam em nossa alma; no fundo, equivale a dizer que a
inteligncia no se distingue dos sentidos. Para Plato, ao contrrio, no
smente a inteligncia se manifesta como uma potncia original, mas ainda se deve
afirmar que , em sua atividade, absolutamente independente de todo rgo corporal;
de onde se segue que os dados desta faculdade procedem de uma fonte transcendente, pois o
incorpreo no pode ser afetado pelo corpreo.

Entre stes dois extremos, adota Aristteles uma posio de conciliao assim
caracterizada por S. Toms: com Plato, admite Aristteles que a inteligncia
diferente dos sentidos; com Demcrito, que as operaes da parte sensvel da alma
so causadas pela impresso dos corpos externos, no todavia como ste o queria, a
saber, por um transporte de partculas. Quanto s operaes da parte intelectual,
preciso dizer que exigem, para serem produzidas, o concurso simultneo das
sensaes, nas quais estas operaes encontram seu dado, e o concurso de uma potncia
espiritual ativa, o intelecto agente que tem por funo abstrair do sensvel o
inteligvel que, naquele, estava contido em potncia. Teremos ocasio de voltar mais
demoradamente a estas anlises. Baste-nos aqui reter que a "via Aristotelis" era
vista por S. Toms como uma soluo intermediria entre o sensualismo e o
intelectualismo extremos.

De fato, aparecendo como ganha a causa da existncia de um modo de conhecer superior


s sensaes, sero as filosofias do conhecimento de Aristteles e S. Toms
antes uma reao contra o que o intelectualismo platnico parecia ter de excessivo. O
fundo no qual se destaca nosso estudo ser constitudo principalmente pelas doutrinas
dste intelectualismo vistas, em S. Toms, atravs da adaptao feita por
Agostinho, enquanto o sensualismo ser visado secundariamente. No se deve aqui
esquecer que os mestres de outrora no podiam se referir a uma obra multiforme e
abundante como hoje a dos psiclogos contemporneos. Portanto, muita prudncia nas
comparaes e nas aproximaes.

4. O ESTUDO DA INTELIGNCIA EM S. TOMS

Embora deva a Aristteles sua inspirao primeira na filosofia do conhecimento, nem


por isso deixa S. Toms de precisar, aprofundar e completar seu pensamento. Mesmo
suas exposies pessoais nos escritos teolgicos so, ordinariamente, mais
desenvolvidas e mais ricas que o simples comentrio ao texto do De Anima.
Interessa-nos, portanto, tomar como base de nosso estudo as exposies da Summa ou das
Questes Disputadas, figurando o texto de Aristteles smente a ttulo de fonte.

Convir tambm no esquecer as diferentes perspectivas do De Anima e dos escritos


teolgicos. Com a primeira destas obras estamos na filosofia da natureza. O estudo do
45
conhecimento intelectual apresenta-se, neste caso, como o trmo de uma lenta ascenso
que vai das formas inferiores do psiquismo atividade transcendente do pensamento;
s em ltimo lugar que se chega ao problema de um "nous" puramente intelectual. Nos
escritos teolgicos, pelo contrrio, a alma espiritual surge como um dado primeiro,
no se manifestando tanto como a entelquia suprema do mundo dos viventes, mas como um
dos graus, o mais modesto em verdade, da hierarquia dos espritos. Vista sob esta
luz, aparece-nos a vida intelectiva iluminada, no mais smente pela vida sensitiva
que a prepara, mas pela vida dos espritos puros, anjos e Deus, que ela imita.
Muitas das teses seguintes tomaro todo o seu significado nestas perspectivas
superiores, princpios ao mesmo tempo de enriquecimento e de complicao.

5. PLANO DO ESTUDO DA INTELIGNCIA.

Coloca-se, antes de tudo, o problema, precedentemente deixado de lado, do


conhecimento em geral: o que conhecer? E sbre o que, metafsicamente, se funda
tal atividade (1)? No que concerne ao conhecimento intelectual humano, dever-se-
considerar sucessivamente seu objeto (2) e seu processo: ste estudado antes na
fase de formao do ato (3) e depois na sua fase perfectiva (4); em seguida,
sero demarcadas as grandes etapas da vida da inteligncia (5) . Certos objetos,
enfim, que esto fora do objeto prprio de nossa inteligncia, como o singular (6)
, a prpria alma e as substncias separadas (7) , reclamaro um modo especial de
conhecer. Assim, concluindo, seremos capazes de julgar a posio da doutrina do
conhecimento intelectual em S. Toms (8) . A exposio subdivide-se em oito
seces:

1. Noo geral do conhecimento


2. O objeto da inteligncia humana
3. A formao do conhecimento intelectual
4. A atividade da inteligncia
5. O progresso do conhecimento intelectual
6. O conhecimento do singular
7. O conhecimento da alma por si mesma
8. Posio da teoria do conhecimento intelectual em S.
Toms.
46
NOO GERAL DO CONHECIMENTO

1. A AMPLITUDE ILIMITADA DO SER DOTADO DE


CONHECIMENTO.

A primeira idia que se pode fazer do conhecimento a da abertura de um ser em


relao aos outros. Abro os olhos e todo um conjunto de objetos externos que se pe
em comunho comigo. Eu penso e um mundo de realidades diversas invade o campo de minha
conscincia. E esta extenso, esta projeo de meu ser para aquilo que no le,
parece-me ter algo de indefinidamente renovvel e de ilimitado. Vinte vzes posso
contemplar o mesmo quadro e ao infinito posso olhar tantos outros. Tratando-se do
conhecimento intelectual, nada do que existe parece escapar s prsas de minha
percepo: sim, todo o ser pensvel, isto , inteligvel.

diante de semelhantes constataes que se situar e se compreender a frmula,


to freqentemente repetida no peripatetismo, que a alma pelo conhecimento , de certo
modo, tdas as coisas, sensveis e inteligveis (De Anima, III, 1. 13)

"Anima est quodammodo omnia sensibilia et intelligibilia".

Para S. Toms, esta capacidade de assimilar as coisas distingue formalmente os que


conhecem dos que no conhecem. Testemunha-o ste texto da Summa:

"... devemos considerar que os sres dotados de


conhecimento distinguem-se dos que no o so, no sentido
em que stes tm apenas a sua forma prpria, ao passo que
queles natural poderem conter em si tambm a forma de
outro ser, pois, a espcie do objeto conhecido est no
cognoscente. Por onde manifesto que a natureza do ser que
no conhece mais restrita e limitada; ao passo que a dos
que so dotados de conhecimento tem maior amplitude e
extenso; e por isso diz o Filsofo no III De Anima que
a alma de certo modo tudo".

Ia Pa, q. 14,
a. 1

V-se, por ste texto, que a diferena de amplitude dos sres dotados de
conhecimento relativa posse ou recepo das formas: um ser tem sua forma
especfica mas pode ter tambm, como sujeito cognoscente, a forma especfica dos
outros. S. Toms precisar, todavia, que o modo como stes dois tipos de formas
existem no sujeito no o mesmo. Voltaremos ainda a ste assunto.

2. A IDENTIDADE ENTRE A INTELIGNCIA E O


INTELIGVEL NO ATO DO CONHECIMENTO.

Os sres que conhecem podem, pois, ser ou tornar-se tdas as coisas. 0 que
exatamente ser preciso entender por isso? Que no trmo do processo de conhecimento o
sujeito que conhece faz-se um com as coisas que conhece. Visto sob ste prisma, o
conhecimento manifesta-se sob o aspecto de uma certa identificao do sujeito e do
objeto. Tal concepo encontra-se em diversos lugares no "De Anima:" o ato do
sensvel e do que sente so um s e mesmo ato "(III, c. 2, 425 b 26);
47
"existe um intelecto que tal como a matria, porque se faz todos os inteligveis"
(III, c. 5, 430 a 13) ; "acrescentemos que a alma , em um sentido, tdas
as coisas" (III, c. 8, 431 b 21). S. Toms explicar esta doutrina
com o adgio tantas vzes repetido: "Intellectus in actu est intellectum in actu."

Para penetrar no sentido de tais frmulas, seria conveniente se colocar na linha da


velha teoria imaginada por Empdocles para explicar o conhecimento: o semelhante,
dizia le, conhecido pelo semelhante. No seu pensamento, isto significava que os
elementos exteriores, a gua, o ar, a terra e o fogo eram conhecidos respectivamente
pela gua, pelo ar, pela terra e pelo fogo, e a mistura dsses elementos constitua
o rgo perceptivo. Aristteles abandona evidentemente o que esta teoria tinha de
grosseiro. Os elementos no esto por si mesmos nos sentidos, mas somente pelas suas
representaes. Alm disso, precisa melhor Aristteles, antes de conhecer, a
faculdade no contm de nenhum modo em ato seu objeto: a "forma inteligvel" no
est em potncia no intelecto, a alma primitivamente como um quadro sbre o qual
no h nada escrito: "sicut tabula rasa". A entrada do inteligvel s se produz no
momento do ato e s ento verdadeiramente certo dizer-se que o intelecto (em ato)
o inteligvel (em ato). Nesta perspectiva, a expresso em causa tem uma
significao de um lado negativa: o intelecto (em potncia) no o inteligvel; e
positiva: o intelecto identifica-se com o inteligvel quando o intelecto est em ato.
A afirmao precedente se esclarece ainda de outro modo. Estudando o movimento nos
"fsicos", o Estagirita tinha concludo que para o motor e para o movido h um s e
mesmo ato, e que ste ato nico encontra-se, como em seu sujeito, no que movido.
Aplicando sensao esta lei geral, conclui Aristteles (De Anima, III, c.
2, 425 b 25 ss.) que o sensvel e o senciente tm um ato comum subjetivado no
senciente. O mesmo vale dizer para a inteleco na qual se unificam a inteligncia e o
inteligvel; a identificao dstes dois trmos ento muito mais profunda.

Perguntou-se se esta identificao do sujeito e do objeto deveria ser entendida como


sendo do ato primeiro, (informao pela "species quo"), ou do ato segundo,
(informao pela "species quod). Aristteles, que no fz distino de
"species", no colocou a questo. Mas pode-se por le responder que a
identificao realiza-se proporcionalmente nos dois estdios do ato intelectual. Desde
que a semelhana exterior recebida, h uma certa unio do sujeito e do objeto; mas
esta s atinge sua perfeio quando o conhecimento est terminado.

A identificao do sentido e do objeto encontra-se nos diversos graus dos sres


dotados de conhecimento. Afirma-o S. Toms diversas vzes (I Sent. a. 35,
q. 1, a. 1, ad 3; I, q. 87, a. 1, ad 3). O modo de unio
proporcional a cada caso.

Em Deus (cf. Ia Pa, q. 14, a. 2) a unio realizada mxima. Sob nenhum


aspecto h distino real do cognoscente e do conhecido, e estando a divina essncia
imediatamente presente a si mesma, no h necessidade de nenhuma semelhana para
informar a inteligncia; a identidade realizada substancial e absoluta: "pelo fato
de em Deus no existir potncia alguma e de ser ato puro, segue-se que nle
inteligncia e inteligvel so idnticos sob todos os pontos de vista... omnibus
modis".

Se o cognoscente e o conhecido, mesmo que distintos realmente, estiverem, contudo, do


ponto de vista objetivo, presentes imediatamente um ao outro, no necessrio,
tambm nesse caso, uma semelhana para realizar a unio; basta aqui a informao
direta da potncia considerada. H ento identificao por unio imediata de duas
48
entidades preexistentes. o que se realiza na viso beatfica, ou quanto
"species quo", no conhecimento do esprito puro por si mesmo.

Enfim, no grau inferior encontra-se o intelecto humano que, no podendo ser


imediatamente informado pela essncia dos objetos inferiores, deve, para
conhec-los, receber antes suas semelhanas. Aqui ainda pode-se falar de identidade do
cognoscente e do conhecido, mas segundo um modo evidentemente menos perfeito.

3. A RECEPO IMATERIAL DAS FORMAS.

Uma comparao com a ordem das realidades fsicas permitir-nos- compreender melhor
o modo desta identificao. Dissemos que o ser que conhece distingue-se do que no
conhece pelo fato de poder possuir, alm de sua prpria forma, a das outras coisas.
De que informao, ou de que recepo de forma se trata aqui? No pode ser,
evidentemente, uma recepo de forma como a que se realiza no caso do ser fsico:
"non est idem modus quo formae recipiuntur in intellectu possibili et in materia" (cf.
De Veritate, q. 2, a. 2). Assim devemos dizer que h dois modos bem distintos
de recepo das formas:

- Recepo subjetiva ou entitativa. O ser natural


essencialmente constitudo por uma forma substancial que u'a
matria recebe, a ttulo de sujeito, como que lhe
pertencendo "ut suam". Nesta unificao, cada um dos
trmos, matria e forma, permanece aquilo que e com o
outro compe-se para constituir um terceiro trmo, a
matria informada, que o "eris naturae".

- Recepo objetiva ou intencional. No caso da


recepo de uma forma conhecida pelo sujeito que conhece,
sucede de outro modo. A forma conhecida no recebida
pelo sujeito cognoscente como sua, "ut suam", mas como
pertencendo a um outro, "ut forma rei alterius"; assim
antes o sujeito que se torna o objeto, a le
identificando-se sem que haja constituio de um terceiro
trmo. No plano do conhecimento, a unio , portanto,
mais ntima, permanecendo alis cada um dos trmos
perfeitamente distinto no plano ontolgico. Fala-se ento
de unio objetiva ou intencional para significar que ela se
produz na ordem da representao e no na da recepo
fsica das formas.

4. A IMATERIALIDADE, CONDIO FUNDAMENTAL DO


CONHECIMENTO.

Esforcemo-nos por penetrar mais profundamente na natureza do ser que conhece. Se


compararmos os dois modos precedentes de recepo das formas, seremos levados a dizer
que: enquanto na recepo subjetiva h como que um encerramento da forma pelo sujeito
que lhe confere assim um ser determinado, "esse determinatum", na recepo objetiva
nada de semelhante se produz, o que faz com que a forma no receba "esse
determinatum". Ora, um princpio geral em hilemorfismo que a forma encerrada ou
determinada pela matria: "coarctatio formae est per materiam". Segue-se que, para
um sujeito estar em condies de receber uma forma sem a encerrar em seus limites ou sem
a determinar, necessrio que seja imaterial. Donde se conclui que a imaterialidade
49
para uma coisa aquilo que a situa no nvel do conhecimento:

"Patet igitur immaterialitas alicujus rei est ratio quod sit


cognoscitiva".

S. Th. Ia Pa,
q. 14, a. 1

O que se deve entender aqui por imaterialidade? No certamente a simples carncia de


matria fsica, pois neste caso os anjos que, como Deus, no tm matria fsica
alguma, estariam no mesmo nvel notico que le. Imaterialidade aqui co-extensiva
a no-potencialidade: assim, por esta expreso afasta-se tudo o que imperfeio
no ser. Se, todavia, preferimos falar aqui de imaterialidade, porque a
inteligncia humana, elevando-se no conhecimento por abstrao da matria, faz com
que a escala de elevao dos sres no conhecimento aparea, ao nosso ponto de vista,
na linha dessa noo.

Outra preciso: o trmo imaterialidade no tem aqui uma significao puramente


negativa, designa tambm uma perfeio de ser. Assim S. Toms, em diversas
passagens, liga a intelectualidade atualidade: "tda coisa inteligvel pelo fato
de estar em ato (Ia Pa, q. 12 a. 1)... conforme o modo de ser de seu ato
(Ia Pa, p. 14, a. 12) ". Tais frmulas apenas retomam, sob um modo
positivo, a verdade precedente. Dizer que um ser inteligvel na medida em que
imaterial ou pelo fato de estar em ato , no fundo, a mesma coisa.

Convm acrescentar, enfim, que a imaterialidade, de que se trata aqui, concerne


tanto ao sujeito como ao objeto do conhecimento: quanto mais um ser imaterial ou em
ato, tanto mais inteligvel e, correlativamente, mais elevado na hierarquia das
inteligncias. Uma restrio, todavia, se impe, pois claro que nos graus
inferiores da escala dos sres encontramos muitos objetos de conhecimento, e que,
semelhantemente, entidades puramente espirituais, tais como a vontade, no conhecem.
Outras condies portanto impem-se para o sujeito.

5. O SER E A EXISTNCIA INTENCIONAL

As anlises precedentes levam a uma outra concluso. Para cada coisa h dois modos
de existir, ou dois "esse" absolutamente diferentes: o "esse" simples, s vzes
qualificado de "entitativo", designa a existncia mesma da coisa na realidade; e o
"esse" intencional, o qual significa a coisa enquanto conhecida, ou sua existncia
de objeto; pelo conhecimento a coisa vem existir em mim, mas de modo diferente, isto
, diferente do modo como existe em si.

O "intencional", nesta doutrina, designa tudo o que conhecido, considerado como


tal; o objeto conhecido, no pensamento, ser assim significado pela expresso
"intentio intellecta"; fala-se equivalentemente para o ser conhecido em "esse
objetivo". - essencial observar que para S. Toms a intencionalidade, da qual aqui
se trata, no corresponde a nenhuma tendncia ativa para o objeto. Deve ser, pois,
cuidadosamente distinguida da intencionalidade voluntria que, esta sim, implica uma
inclinao efetiva: a ordem da realidade do conhecimento tem um significado puramente
representativo e de modo algum dinmico.

Por ste ponto, e graas introduo desta categoria de intencional,


distinguem-se no mundo do ser duas grandes ordens: a do chamado ser "entitativo", que
50
corresponde existncia pura e simples das coisas e, como que duplicando-a, a do ser
intencional ou do ser enquanto conhecido. Assim aparece, explica-nos Cajetano, "que
testemunho de incultura do aqules que, tratando do sentido e do sensvel, da
inteligncia e do inteligvel, julgam-nos como coisas diferentes. Aprende, pois,
continua o douto autor, a elevar mais teu esprito e a penetrar em uma outra ordem de
coisas" (Comm. in Iam Part. q. 14, a. 1, VII).

Que podem, pois, tais consideraes representar s vistas do psiclogo moderno?


Elas nos conduzem evidentemente para bem longe das observaes detalhadas e minuciosas
que enchem as pginas de nossos atuais tratados. Na realidade, engajamo-nos aqui no
plano da resoluo metafsica. Tda experincia, sabemos, no excluda:
parte-se do fato do conhecimento tal qual nos dado; mas ste fato apenas
considerado segundo seus aspectos mais comuns e conforme os princpios de uma metafsica
geral do ser, especialmente do ser fsico que serve aqui de ponto de referncia.

Os resultados obtidos podero parecer bastante desprovidos de intersse para quem


pretenda no ir alm do plano da observao positiva. Mas desde que se queira ir
mais a fundo, desde que sobretudo se tente, com as fracas possibilidades de nossa
inteligncia de homem, penetrar no mundo dos espritos, o nosso, que nos em parte
oculto, o dos anjos e de Deus que nos so inteiramente escondidos, ento parece que
s as generalidades de uma autntica metafsica do conhecimento so capazes de
assegurar uma base s transposies que se impem.
51
O OBJETO DA INTELIGNCIA HUMANA

1. INTRODUO

Uma potncia no aristotelismo especificada, e portanto definida, pelo seu objeto.


Mas como h diversos gneros de objetos, importa que fixemos de que gnero se vai
tratar.

A escolstica anota continuamente uma primeira distino: a do objeto material (a


coisa exterior conhecida em sua realidade total), e a do objeto formal (o aspecto
preciso visado nesta coisa pela potncia). S. Toms, por sua vez, no contesta
de modo algum a legitimidade desta distino. De ordinrio nada diz a respeito.
Para le o objeto normalmente o objeto formal.

Se agora nos referirmos ao texto fundamental do De Anima (II, c. 6), convir


distinguir, com respeito s potncias, trs espcies de objetos:

- o objeto prprio: o que atingido imediatamente e por


si, "primo et per se", pela potncia: a cr, por
exemplo, para a vista, o som para o ouvido: diante dste
objeto uma potncia no pode falhar, encontrando-se em
condies normais de percepo.

- o objeto comum: o que atingido por diferentes


potncias, pertencendo sempre a um mesmo gnero de objetos;
assim, para Aristteles, o movimento, o repouso, o
nmero, a figura, o tamanho, constituem o grupo dos
sensveis comuns; como h no homem s uma faculdade
intelectual, s se pode, nste nvel, falar de objeto
comum relativamente a inteligncias de graus diversos,
divina, anglica e humana.

- o objeto acidental: o que apenas indiretamente atingido


pela potncia, enquanto associado a seu objeto prprio:
acidental para minha vista que o objeto branco que avana
para mim seja o filho de Diares.

- na doutrina da inteligncia, ao lado de seu objeto


prprio, deve-se ainda tratar de seu objeto adequado ou
extensivo: aqule que corresponde a tdas as
virtualidades desta faculdade, as quais s incompletamente
podem ser determinadas pelo seu objeto prprio;
prticamente ser o objeto comum, considerado sob o aspecto
mediante o qual preenche tda a capacidade de uma
inteligncia dada.

A teoria do conhecimento apresenta-se no aristotelismo como uma reao contra o


intelectualismo da filosofia das idias: por isso ser necessrio, antes de tudo,
considerar a reao no sentido do empirismo: com isto estaremos em condies de
assinalar inteligncia seu objeto prprio, a "quididade" das coisas sensveis.

Esta volta para um intelectualismo mais concreto, mas tambm mais limitado, colocar
52
um nvo problema. Se a inteligncia encontra no mundo corpreo seu objeto prprio,
no ser necessrio lhe interditar tudo o que est acima dste mundo, os espritos
puros e o prprio Deus? E se admitirmos que estas realidades so tambm atingidas,
resta explicar como isso possvel. Com isso ser precisado o que se deve entender
por objeto adequado da inteligncia humana.

Mas, at onde se estende ste poder de nossa inteligncia? No cume do mundo dos
objetos encontra-se o supremo inteligvel, a essncia divina. A inteligncia criada
estar em condies de captar diretamente ste objeto? Sendo a resposta afirmativa,
como conceber esta capacidade do divino? o problema especial da viso de Deus,
problema que se coloca antes para o teolgo, mas, como filsofos, ser-nos-
proveitoso considerar certos aspectos dle.
53
O OBJETO PRPRIO DA INTELIGNCIA HUMANA

1. DISCUSSO DAS TEORIAS ANTECEDENTES.

Para se pr a caminho da definio do objeto prprio da inteligncia humana, no


se pode fazer melhor que seguir a marcha progressiva dos artigos pelos quais, na Summa,
S. Toms chega a esta definio (Ia Pa, q. 84, a. 1-8). "Como a alma
unida a um corpo, pergunta le nesta questo, pode conhecer as realidades corporais
que esto abaixo dela?".

2. A ALMA, PELA SUA INTELIGNCIA, CONHECE OS


CORPOS (A. 1).

Neste primeiro artigo, S. Toms institui uma discusso geral da tese platnica.
Tendo em vista escapar do materialismo mobilista de Herclito, que comprometia a
verdade de todo o conhecimento, dera Plato, por objeto s cincias, realidades
imveis e separadas; daqui se seguia que o conhecimento intelectual no se referia de
modo algum s coisas percebidas pelos sentidos.

Esta doutrina tem um duplo inconveniente: torna v tda cincia da natureza. Chega
a esta conseqncia absurda que, para se tomar conscincia das coisas que nos so
manifestas, recorre-se a sres que diferem delas substancialmente. O rro de Plato
fundamenta-se no fato de no ter podido compreender que as coisas tm um modo de existir
diferente no esprito e na realidade: universal e imaterial no primeiro caso,
particular e material no segundo.

3. A ALMA NO CONHECE O CORPO PELA SUA PRPRIA


ESSNCIA (A.2).

Outras hipteses podem ser formuladas. Assim, no conheceremos as coisas corporais


percebendo-nos a ns mesmos, como Deus conhece tdas as coisas na sua essncia? Os
antigos naturalistas tinham dado uma forma materialista a esta teoria: o semelhante
conhecido pelo semelhante, o fogo exterior pelo fogo que est em ns, etc. Esta
explicao evidentemente no se sustenta, pois, entre outras razes, o conhecimento
s pode supor na alma uma presena imaterial das coisas. Na realidade, s a
inteligncia divina conhece as coisas pela sua essncia, per essentiam; as
inteligncias inferiores, humanas ou anglicas, podem capt-las smente por meio de
uma semelhana, ou per similitudinem.

4. A ALMA NO CONHECE AS COISAS POR IDIAS


INFUSAS OU INATAS (A. 3).

Poder-se-ia ainda imaginar que estas semelhanas, de que necessita a alma para
conhecer outras coisas, ou foram-lhe originriamente comunicadas, ou as tem por um
privilgio da natureza. No pode ser assim, pois ento deveramos ter um
conhecimento sempre atual, o que evidentemente no se d. Dizer com Plato que esta
no-atuao de formas que possumos deva-se ao impedimento de nosso corpo, s nos
lana em outra dificuldade: como se explica que uma unio, que segundo a natureza
(a da alma e do corpo), possa impedir o exerccio de uma atividade fundada, tambm
ela, na natureza (o conhecimento das "species" naturalmente presentes alma)?
54
5. A ALMA NO PODE CONHECER POR MEIO DE
"SPECIES" VINDO DE FORMAS SEPARADAS (A.4).

Ainda uma vez nos encontramos diante de uma tese de Plato mas sob a forma que lhe
vestiu Avicena. As formas separadas no teriam existncia independente, o que
pouco inteligvel, mas preexistem em inteligncias superiores; estas as comunicam ao
intelecto agente de onde, no momento conveniente, informam o intelecto possvel. As
dificuldades relativas existncia separada das idias seriam assim resolvidas. Mas
com essa teoria permanece no justificada a unio da alma e do corpo. Se o corpo no
tem por funo superior fazer chegar at ns as semelhanas das coisas, le no
tem mais razo de ser.

6. EM QUE SENTIDO A ALMA CONHECE NAS "RAZES


ETERNAS" (A. 5).

Aqui S. Toms se interroga sbre o valor da adaptao feita por Agostinho s


concepes de Plato. este um ponto sbre o qual s podemos dar razo ao
intrprete cristo da teoria das idias; colocando-as em Deus, corta de um s golpe
tdas as dificuldades que sua existncia separada apresenta. Mas pode-se com le
afirmar que conhecemos as coisas por meio dessas "razes" que eternamente apresentam as
coisas ao pensamento criador? Uma feliz distino permitir a S. Toms, sem em
nada comprometer sua prpria doutrina, entrar em acrdo com o doutor de Hipona.
Conhecer uma coisa "em outro" pode ser tomado em dois sentidos: como "em um objeto
conhecido", o que impossvel aqui e como "em um princpio de conhecimento", no
sendo nossa luz intelectual mais que a semelhana participada desta luz incriada na qual
esto contidas as tais razes. Isto no impede que, para se dar o conhecimento,
sejam requeridas, a mais, semelhanas extradas das coisas sensveis. Aristteles
e Santo Agostinho encontram-se assim de acrdo.

7. CONCLUSO: NOSSO CONHECIMENTO INTELECTUAL


PROCEDE DAS COISAS SENSVEIS. (A. 6, 7, 8)

Uma vez que a teoria platnica, como alis o sensualismo de Demcrito, chocam-se
contra tda espcie de incompatibilidades, uma s via permanece aberta, a dste
intelectualismo fundado sbre o conhecimento sensvel que constitui a "via media" de
Aristteles. Nosso conhecimento intelectual vem inteiramente dos sentidos: o objeto
prprio dste conhecimento, concluir-se-, a natureza ou a "qididade" das
coisas sensveis.

Seria preciso poder seguir mais de perto as discusses que precedem, como seria bom
tambm analisar os artigos 7 e 8, onde a solidariedade de nossos dois modos de conhecer
encontra-se bem ressaltada por observaes muito importantes, tais como o efeito das
leses orgnicas sbre o pensamento, a necessidade das imagens para a vida
intelectual, para que se possa estar em condies de apreciar todo o cabedal de
experincia e de reflexo que fundamenta a soluo aqui proposta. Aqui ainda o
laconismo das frmulas e a aridez de certas exposies de nossos mestres no nos devem
enganar.

8. DEFINIO DO OBJETO PRPRIO DA


INTELIGNCIA HUMANA. CARTER DSTE OBJETO PRPRIO.

Do que precede resulta que o objeto prprio do intelecto humano, que est unido a um
corpo, a qididade ou a natureza existente na coisa corprea:
55

"intellectus autem humani qui est conjunctum corpori proprium


objectum est quidditas, sive natura, in materia corporali
existens"

a. 7

Inmeros textos fazem eco a ste: "o objeto prprio da inteligncia a qididade
da coisa, a qual no est separada das coisas, como pretenderam os platnicos" (De
Anima, III, I. 8, n. 717) ; "o objeto de nossa inteligncia em nosso
estado presente a qididade da coisa material" (Ia Pa, q. 85, a. 8) etc ...

O que se deve entender exatamente por sse trmo "qididade"?

Etimolgicamente quidditas designa a concepo formada para responder questo


quid: o que ? tal coisa: quidditas. A qididade designa portanto a natureza
profunda de uma coisa, sua essncia, o que faz com que um ser seja tal. Enquanto os
sentidos no percebem alm dos acidentes exteriores, a inteligncia vai at ao ser da
coisa. Notar-se- que as propriedades, os modos e os acidentes diversos de um ser
podem, em si mesmos, ser concebidos pela inteligncia como essncias, ou a modo de
"qididade". Mas, de per si a inteligncia feita para captar antes a essncia das
coisas.

Esta "qididade", que constitui o objeto prprio da inteligncia humana, designa a


natureza abstrata da coisa, isto , a natureza considerada independentemente de tudo o
que a singulariza ou a individua. prprio da inteligncia humana, com efeito,
"conhecer a forma existente, em verdade, na matria corporal, mas no enquanto est
em tal matria. Ora, conhecer o que est na matria individual, mas no enquanto
est em tal matria, abstrair a forma da matria individual que as imagens
representam".

Liberta do que a torna singular, a "qididade" deve ser considerada como universal.
Assim, contrriamente aos sentidos que no atingem alm das realidades singulares,
pode a inteligncia ser definida como a faculdade do universal.

9. COMPARAO COM O OBJETO PRPRIO DAS OUTRAS


INTELIGNCIAS.

A doutrina precedente se esclarece singularmente se colocada em relao com a doutrina


do objeto prprio das outras potncias de conhecer, sensveis ou espirituais; o que
S. Toms fz diversas vzes (cf. Ia Pa, q. 12, a. 4; q. 85, a. 1).
Assim:

- No grau mais inferior da escala est o sentido que uma


potncia ligada a um rgo corporal; seu objeto prprio
a forma enquanto existente na matria corporal: "forma
prout in materia corporali exsistit".

- Acima, situa-se a inteligncia humana que tem por


objeto a forma existente na matria corporal, mas no
enquanto est em tal matria: "forma, in materia quidem
corporali existens, non tamen prout est in tali materia".
56
- Vem, a seguir, a inteligncia anglica, esta,
totalmente desligada da matria; seu objeto prprio ,
paralelamente, a forma subsistente sem matria: "forma,
sine materia subsistens".

- Enfim, no cume, encontra-se a inteligncia divina,


que idntica ao prprio ser subsistente de Deus, e que
s ela tem ste ser como objeto prprio: "cognoscere ipsum
esse subsistens est connaturale soli intelectui divino".
57
O OBJETO ADEQUADO DA INTELIGNCIA HUMANA

1. INTRODUO.

Se nossa inteligncia se encontrasse estritamente limitada a seu objeto prprio, nada


poderia conhecer alm da essncia das coisas materiais, assim como a vista s pode
perceber a extenso colorida. Mas, fundamentalmente, nossa alma, que espiritual,
tem uma abertura ilimitada. A experincia, alis, testemunha que temos um certo
conhecimento de coisas que esto fora do objeto em questo: atingimos assim o singular
e, em uma ordem superior, especulamos sbre as substncias separadas. Nem tdas as
possibilidades de nossa inteligncia encontram-se, portanto, determinadas por seu
objeto prprio e deve levar-se em considerao, para ela, um objeto mais
compreensivo, objeto adequado, isto , que corresponda abertura total da potncia.

2. O OBJETO ADEQUADO DA INTELIGNCIA HUMANA


O SER CONSIDERADO EM TDA A SUA AMPLITUDE.

Esta tese j foi demonstrada em Metafsica. Basta-nos aqui lembrar que sua
concluso deriva principalmente da anlise do juzo, que nos manifesta que o ser o
que, por primeiro, se atinge nas coisas; "esta coisa que eu percebo ": tal a
primeira constatao da inteligncia.

Ora, somos levados a reconhecer que o ser assim atingido no limitativamente tal ser
ou tal gnero de ser; no importa qual, fala-se simplesmente do ser, de tudo o que
pode ser compreendido nesta noo. Por isso, o ser real ou o ser de razo, o ser
atual ou o ser possvel, o ser natural ou o ser sobrenatural esto, de si, includos
no campo de nossa inteligncia, como tambm de qualquer outra inteligncia, porque a
inteligncia manifesta-se como a faculdade do ser.

3. ENTRETANTO A INTELIGNCIA HUMANA NO


ATINGE DA MESMA MANEIRA O QUE PERTENCE E O QUE NO
PERTENCE A SEU OBJETO PRPRIO.

Uma dificuldade aqui se coloca: para que, com efeito, reconhecer um objeto especial
nossa inteligncia, se esta faculdade efetivamente capaz de se estender alm do
mesmo?

preciso responder que s a "qididade" das coisas sensveis, isto , o objeto


prprio, apreendida diretamente em sua natureza especfica. As outras coisas so
atingidas s mediatamente ou por intermdio do objeto prprio, ou ento de modo
relativo, ou por analogia, quando se trata de realidades transcendentes.

Segue-se que, sempre aberta a todo o ser, nossa inteligncia especificada, em seu
modo de atividade, pelo conhecimento das essncias materiais. O imaterial s pode
assim ser representado a partir da concepo que formamos dos corpos, condio
evidentemente muito inferior para um esprito e que nos situa, gosta S. Toms de o
repetir, no ltimo degrau da escala das inteligncias.

4. COROLRIO: UNIDADE DA FACULDADE


INTELECTUAL.

Em razo de sua amplitude ilimitada, a inteligncia no precisar, como o sentido,


58
ser dividida em vrias potncias: a noo de ser envolve e domina tdas as
distines de objetos. Certas diversidades nas denominaes no devem portanto nos
enganar. Assim:

- A razo (inteligncia discursiva) no realmente


distinta da inteligncia (inteligncia intuitiva),
comparando-se o ato da razo com o ato da inteligncia como
o movimento ao repouso, os quais devem ser relacionados a uma
mesma potncia (Ia Pa, q. 79, a. 8).

- O intelecto prtico (faculdade diretora da ao) no


realmente distinto do intelecto especulativo (faculdade do
conhecimento puro) pois o que se relaciona apenas
acidentalmente ao objeto de uma potncia no princpio
de diversidade para esta potncia; ora, acidental ao
objeto da inteligncia o fato de ser ordenado operao
(Ia Pa, q. 79, a. 2) .

- Pelo mesmo motivo no se admitir, com S. Toms, a


existncia de uma memria intelectual realmente distinta da
inteligncia, pois a "razo do passado", que caracteriza a
memria, acidental com relao ao objeto da
inteligncia; esta faculdade, como simples potncia, basta
portanto conservao e reproduo das "species"
(Ia Pa, q. 79, a. 6).

S subsistir, como realmente separada, a dupla intelecto agente - intelecto


passivo, no estando aqui a distino em dependncia do prprio objeto, mas do
comportamento ativo ou passivo da potncia (Ia Pa, q. 79, a. 7).
59
A INTELIGNCIA HUMANA E A VISO DE DEUS

1. POSIO DO PROBLEMA.

possvel ver a Deus? A inteligncia humana , pois, aberta totalidade do


ser. Segue-se da que possa ter um conhecimento direto e :mediato do ser divino?
Este, certamente, estando perfeitamente em ato, absoltamente inteligvel.
Impe-se, por outro lado que haja uma certa proporo entre a potncia e seu objeto.
E aqui o objeto evidentemente infinito, enquanto a potncia, que pertence ordem
do ser criado, evidentemente limitada (cf. Ia Pa, q. 12, a. 1, obj. 4)

"sendo o conhecido a perfeio do cognoscente,


necessrio que haja entre sses dois trmos uma certa
proporo; ora, no h nenhuma proporo entre o
intelecto criado e Deus, estando ambos separados por uma
infinita distncia; portanto impossvel que o intelecto
criado tenha a viso da essncia divina".

Certamente no h nenhuma objeo de princpio a que uma inteligncia limitada


obtenha um certo conhecimento da essncia do ser divino a partir de seus efeitos
criados. Mas o que parece ir alm das possibilidades de uma tal inteligncia, ter
desta essncia uma viso direta e imediata, facial, como se diz. Em sentido
contrrio est a afirmao da f crist que atesta ser uma tal viso o trmo mesmo
da vida humana.

Assim est colocado o problema da possibilidade da viso da essncia divina, problema


eminentemente teolgico, mas que igualmente interessa ao filsofo no que concerne
determinao dos limites naturais da inteligncia humana. Pode a razo estabelecer
esta possibilidade afirmada pela f? Tal a questo que se nos coloca.

Doutrina de S. Toms. O Doutor anglico exps seu pensamento em diversos textos


clebres nos quais, para justificar a possibilidade da viso, funda-se na existncia
em ns de um desejo de ver a Deus em sua essncia (cf. particularmente: Cont.
Gent. IV, c. 25; Comp. Theol., c. 104-105; Ia. IIae q. 3, a.
8; S. Th. Ia Pa, q. 12, a. 1) . Eis o esquema dste famoso argumento:

- h no homem um desejo natural de conhecer a causa quando


descobre um certo efeito, e tendo a inteligncia sido feita
para ir at essncia das coisas, ste desejo dirige-se
at ao conhecimento da essncia da causa;

- se, portanto, frente aos efeitos criados, captssemos


de Deus apenas sua existncia, restaria vo o desejo
natural que temos de conhec-Lo como causa. Ora, isto
no pode ser admitido: preciso, pois, que nossa
inteligncia seja radicalmente capaz da viso de Deus. Eis
o argumento na formulao mais concisa da Prima Pars (q.
12, a. 1)

"Inest enim homini naturale desiderium cognoscendi causam,


cum intuetur effecutm; et ex hoc admiratio in hominibus
consurgit. Si igitur intellectus rationalis creaturae
60
pertingere non possit ad primam causam rerum, remanebit inane
desiderium naturae".

Superficialmente considerados, textos como stes levariam a crer que para S. Toms
a viso da essncia de Deus no smente possvel para um intelecto criado, mas
lhe conatural, respondendo a uma inclinao positiva de nosso ser. Assim
teramos, segundo nossas prprias possibilidades, o poder de ver a Deus. Uma tal
exegese esbate-se contra dificuldades bem graves. Alm da dificuldade precedente da
infinita distncia entre a potncia e o objeto, encontra as afirmaes categricas
da f: nossa elevao ao sobrenatural e viso beatfica um efeito no da
natureza mas da graa. S o intelecto divino proporcional, de si, ao prprio ser
subsistente. Assim, poder S. Toms concluir em trmos aparentemente opostos aos
precedentes: (Ia Pa, q. 12, a. 4)

"Relinquitur ergo quod congnoscere ipsum esse divinum sit


connaturale soli intelectui divino, et quod sit supra
facultatem naturalem cujuslibet intellecti creati . . .
Non igitur potest intellectus creatus Deum per essentiam
videre, nisi in quantum Deus per suam gratiam se intellectui
creato conjungit, ut intelligibile ab ipso".

Impe-se, evidentemente, uma melhor colocao do sentido exato do argumento do


desejo natural.

2. SIGNIFICAO DO DESEJO NATURAL DE VER A


DEUS.

Sbre esta questo cf. A. Gardeil, La structure de l'me et l'exprience


mystique, t. I, p. 268-348.

Para um certo nmero de telogos, frente dos quais habitualmente colocado


Scoto, a viso de Deus seria, de algum modo, positivamente exigida pela nossa
natureza. Certamente, e como no o reconhecer, visto que os meios para atingir sse
fim nos faltam e a graa necessria. Mas poder-se-ia falar de uma inclinao
natural inata, embora ineficaz, ao sobrenatural. Uma tal concepo certamente
estranha a S. Toms que, falando do desejo natural, nunca entendeu fsse le uma
inclinao de natureza ou um apetite inato. Um tal apetite nada mais que a expresso
das virtualidades efetivas de uma natureza: dizer que se tem um apetite inato da viso
da Deus, pretender que a viso de Deus nos seja conatural. E, por outro lado,
relegar a graa ordem dos meios, enquanto a natureza conservaria a ordem dos fins,
cair na incoerncia.

Contrriamente ao que acaba de ser sustentado, preciso reconhecer que o desejo em


questo um desejo elcito, isto , no uma tendncia inconsciente seguindo-se
imediatamente natureza, mas uma inclinao psicolgicamente discernvel que se
forma no esprito depois de uma apreenso determinada. Assim, no caso precedente,
tendo reconhecido que Deus a causa de todos os seres dos quais tenha percepo,
sinto o desejo de ver esta causa, isto , Deus, e no smente como causa, mas em
sua natureza mesma.

de direito perguntar como pode um tal desejo, que aparece como um simples fato de
conscincia, merecer ainda o qualificativo de natural? Muitas explicaes foram
dadas. Vamos logo que nos parece melhor fundada (cf. Structure, p. 291, ss).
61

Consideremos o modo segundo o qual pode-se relacionar nosso desejo com o bem soberano ou
a felicidade. Antes de tudo h uma coisa que no podemos no querer: ser feliz. A
felicidade, ou o bem universalmente considerado, se nos impe de modo absoluto. Esta
inclinao incoercvel nada mais que o apetite natural inato de nossa vontade ao bem
ou obteno de nosso fim ltimo. possvel desejar ver a Deus segundo uma tal
inclinao? No, pois se a viso de Deus efetivamente nossa felicidade, no
temos dela uma convico necessitante. Certos homens no parecem mesmo totalmente
indiferentes a ste fim? Pode-se, pois, tratar smente de um desejo condicional;
um tal fim desejvel na medida em que me parece ligado ao bem universal, objeto de
que necessita minha vontade. Para quem raciocina corretamente esta concluso se impe
ou sobrevm como que naturalmente.

Assim, a viso de Deus deve ser assemelhada classe de bens distinguidos por S.
Toms, os quais so, para minhas faculdades, bens particulares, naturalmente queridos
segundo uma necessidade no absoluta, mas de convenincia ou condicional (cf. Ia
Pa, q. 10, a. 1). E o desejo que corresponde a esta viso ser natural, no
como uma inclinao inata mas enquanto surge naturalmente no curso do desenvolvimento de
nossa vida racional, se esta fr normal. Ora, um tal desejo, pensa S. Toms,
no pode ser vo ou desprovido de fundamento. Portanto, a possibilidade da viso
beatfica se nos impe, no segundo uma percepo evidente, mas como uma verdadeira
convenincia de natureza.

A esta altura, atingimos com S. Toms o que o telogo chama de potncia


obediencial ao sobrenatural. Se nossa natureza pode ser elevada viso de Deus,
isto significa que tem potncia para tal. Mas sabemos que neste caso no est
ordenada ativamente ou de modo eficaz. S Deus, por uma interveno gratuita, pode
tornar atual esta potncia: esta potncia , pois, smente a disposio passiva,
ou de pura obedincia, na qual tda criatura se encontra, com relao a Deus, para
tudo o que no implica contradio. Aqui tocamos evidentemente no que h de mais
elevado na vida de nossa inteligncia, mas como se trata da graa, convm aqui dar
lugar ao telogo.

3. CONCLUSO: FACULDADE DO SER OU FACULDADE


DO DIVINO?

A soluo agora dada ao problema da possibilidade, para a inteligncia criada, de


ver a Deus, coloca-nos em estado de poder responder a uma questo que foi posta em um
livro que na poca teve repercusso: a intelignca humana faculdade do ser ou do
divino? (Rousselot: L'intellectualisme de Saint Thomas). O prprio Pe.
Rousselot respondia: "a inteligncia a faculdade do ser porque a faculdade do
divino".

Esta frmula, por sua elegncia sedutora, pode prestar-se a equvocos e,


interpretada com seu autor, conduz a confuses. A inteligncia humana, como tda a
faculdade, define-se por seu objeto prprio e se a considerarmos como participao
analgica do intelecto em si, define-se por seu objeto adequado. Assim, podemos dizer
que a faculdade do ser da qididade material ou, tomada adequadamente, a faculdade
do ser considerado em tda a sua amplitude. No sendo, porm, a essncia divina
compreendida determinadamente nestes objetos, no se pode dizer que seja formalmente a
faculdade do divino. Deus por ela apreendido smente indiretamente, na analogia das
criaturas e a ttulo de causa do ser. Uma s inteligncia, a do mesmo Deus, se
proporciona a ste objeto supremo. Precises estas que podemos figurar neste quadro:
62

intellectus divinus... obj. proprium: ipsum esse subsistens.

Intellectus humanus... obj. proprium: quidditas rei materialis.

Intellectus humanus... obj. adequatum: ens commune.

A inteligncia permanece assim essencialmente a faculdade do ser e s se justifica com


relao a sse objeto. Tda tentativa de fundamentar o valor objetivo do conhecimento
sbre um dinamismo que pretenda ter seu ponto de apoio diretamente no prprio Deus,
deve ser considerada como falsa.
63
FORMAO DO CONHECIMENTO INTELECTUAL

1. INTRODUO.

A inteligncia humana, potncia espiritual, tem por objeto a qididade das coisas
sensveis. Entre sses dois trmos h clara diferena de nvel notico, o que pode
levar, no funcionamento de nossa faculdade superior, a uma certa complicao. Para
proceder com ordem consideraremos sucessivamente:

- O intelecto agente e a abstrao do inteligvel.


- O intelecto possvel e a recepo da "species".

2. O INTELECTO AGENTE E A ABSTRAO DO


INTELIGVEL. POSIO FILOSFICA DO PROBLEMA.

O intelecto humano, no aristotelismo, originriamente uma pura potncia passiva


frente aos inteligveis. No h formas ou idias inatas. preciso, pois, para
que entre em atividade, receber seu objeto. Donde ste poder vir? No pode ser de
um Inundo transcendente, de idias separadas ou de inteligncias superiores: uma tal
hiptese no verdadeiramente fundada e vai contra a experincia. Resta que nossas
idias procedam do conhecimento sensvel. Mas aqui surge a dificuldade precedentemente
evocada: como objetos materiais podero imprimir-se em uma faculdade puramente
espiritual? No caso da percepo sensvel, explica-se que tais objetos pudessem ser
recebidos pois que os sentidos, pelos seus rgos, esto em continuidade com o mundo
dos corpos. Mas, para a inteligncia, uma tal dependncia, face a realidades de um
grau inferior, parece inaceitvel. Em poucas palavras, as coisas materiais so
inteligveis s em potncia; ora -nos necessrio chegar a uma inteligncia e,
portanto, ao inteligvel em ato.

A soluo dste problema j se deixa entrever. A atuao do inteligvel no


poderia ser, no sensvel, realizao do prprio esprito? Suponha-se nle uma
potncia ativa cuja funo seria elevar ao nvel inteligvel o objeto que, no dado
sensvel, no se encontra no conveniente grau de imaterialidade, e a dificuldade assim
se esvai.

S. Toms na Summa no raciocina diferentemente (cf. Ia Pa, q. 79, a. 3).

"No admitindo Aristteles (ao contrrio de Plato)


que as formas das realidades materiais possam subsistir sem
matria e no sendo estas formas, na sua condio
material, inteligveis em ato, segue-se que as naturezas ou
as formas das coisas sensveis, atingidas pela nossa
inteligncia, no so inteligveis em ato . . .

Impe-se, portanto, que se admita a existncia, ao lado


da inteligncia, de uma certa potncia cuja funo seja
atuar os inteligveis, abstraindo as "species" de suas
condies materiais. Eis o que obriga a admitir um intelecto
agente...

Oportebat igitur ponere aliquam virtutem ex parte


intellectus, quae faceret intelligibilia in actu per
64
abstractionem specierum a conditionibus materialibus. Et
haec est necessitas ponendi intellectum agentem".

3. O PROBLEMA HISTRICO DO INTELECTO AGENTE.

Se a posio ideolgica do problema do intelecto agente relativamente simples, sua


soluo devia complicar-se extremamente. Isto porque os textos de Aristteles, onde
se haure esta doutrina, apresentam ambigidades que foram assunto de interminveis
controvrsias. Como S. Toms alude a isso continuamente, no podemos deixar de dar
uma idia.

no captulo IV do livro III do De Anima que Aristteles aborda a questo da


inteligncia que considera antes como uma potncia passiva. No captulo seguinte, sem
outra preparao e por simples comparao com o que se passa no mundo fsico,
pe-se a distinguir dois intelectos na alma: "visto que na natureza inteira
distingue-se primeiro algo que serve de matria a cada gnero . . . e em seguida uma
outra coisa que a causa do agente . . . assim, na alma, distingue-se, de uma
parte, um intelecto que anlogo matria, porque torna-se todos os inteligveis
e, de outra parte, o intelecto que produz tudo...". E Aristteles compara ste
ltimo intelecto luz cuja funo atuar as cres que no objeto so visveis
apenas em potncia. Vem a seguir uma enumerao das propriedades dste intelecto
ativo; : "separado, impassvel e sem mistura, estando por essncia em ato". Por
fim, em um texto particularmente obscuro, parece afirmar que s o intelecto ativo
imortal e eterno, enquanto o intelecto passivo corruptvel, de modo que depois da
morte no poderia subsistir nenhuma lembrana relativa a esta vida.

Sobretudo dois pontos neste texto levariam a controvrsias

- Em que sentido o intelecto agente pode ser chamado


separado? Smente como uma potncia espiritual multiplicada
segundo os indivduos e subsistente em cada um dles?
(soluo de S. Toms). Ou, ento, no seria antes
como um princpio transcendente e autnomo, nico para
todos os indivduos? (soluo mais comum).

- O que concluir para a imortalidade da alma? Se o


intelecto passivo, em particular, corruptvel e o
intelecto agente, transcendente e nico, no se dever
reconhecer que no h imortalidade individual? (soluo
de Alexandre de Afrodsias e de Averris).

Acrescentemos que o problema complica-se mais ainda pela concepo que se tinha do
intelecto possvel, corruptvel para uns, incorruptvel para outros e, nesta ltima
hiptese, separado ou no separado.

A tese do intelecto agente separado aparece, entre os comentadores antigos de


Aristteles, com Alexandre de Afrodsias (II. sc.), que distinguia um
intelecto material, provvelmente corruptvel, um intelecto como "habitus",
determinando o precedente e um intelecto agente imaterial, separado, apresentando todos
os caracteres da divindade.

Os peripatticos rabes, Alfarabi, Avicena, Averris, com os quais S. Toms


tratar particularmente, so, em seu conjunto, pela separao real do intelecto
65
agente e por sua transcendncia face aos indivduos. Em Avicena, ste intelecto
aparecer, na concepo hierrquica que le tem das inteligncias, como a
inteligncia inferior do sistema, da qual emanam ao mesmo tempo as formas das coisas
materiais, e, nas almas, os princpios do conhecimento que estas tm das coisas
materiais. Notemos que S. Toms se bater principalmente contra o averrosmo que,
por sua concepo de um intelecto possvel separado, comprometia ao mximo a
imortalidade da alma.

4. NATUREZA DO INTELECTO AGENTE.

Em oposio maioria dstes comentadores, S. Toms afirma claramente que o


intelecto agente em cada alma humana algo de real: "est aliquid animae" (Ia Pa,
q. 79, a. 4). As razes sbre as quais se funda para falar assim so, ao mesmo
tempo, muito simples e perfeitamente pertinentes. Com efeito, conforme uma lei bastante
geral, as causas universais e transcendentes s agem com o concurso de princpios
prprios aos sres particulares. O intelecto agente transcendente, se existir um,
requerer, portanto, a cooperao de uma potncia derivada pertencendo a cada alma.
Por outro lado, e esta razo parece decisiva, claro que somos ns que abstramos
as "species" de onde procede a inteleco. Ora, no se pode dizer que uma ao
se relacione a um sujeito se no procede dle segundo uma forma que lhe inerente:

"et hoc experimento cognoscimus, dum percipimus nos


abstrahere formas universales a conditionibus particularibus,
quod est facere actu intelligibilia. Nulla autem actio
convenit alicui rei, nisi per aliquod principium formaliter
ei inhaerens".

ainda possvel, nesta concepo, falar de um intelecto agente separado? Sim,


mas sob a condio de s se ver, neste intelecto, Deus criador e iluminador de nossa
alma:

"sed intellectus separatus, secundum nostrae fidei documenta


est ipse Deus qui est creator animae... Unde ab ipso ipsa
anima humana lumen intelectuale participat, secundum illud
Psalmi: "Signatum est super nos lumen vultus tui, Domine"
(S. 4)".

Quanto ao verdadeiro intelecto agente, ste permanece na alma, da qual uma


potncia particular, distinta realmente do intelecto considerado em sua funo
receptora, ou do intelecto passivo.

Um ponto reclama preciso. Em que sentido deve-se dizer que o intelecto agente uma
potncia sempre em ato? No se v bem, com efeito, numa primeira considerao,
como, em uma mesma inteligncia, possa existir, ao mesmo tempo, face aos
inteligveis, uma faculdade em potncia e uma faculdade em ato. S. Toms (cf. De
Anima, III, I. 10, n. 737; Ia Pa, q. 79, a. 4, ad 4) responde
fazendo observar que a passividade de uma destas faculdades e a atualidade da outra no
devem ser consideradas em uma mesma linha. O intelecto passivo est em potncia face
s determinaes dos sres exteriores a conhecer. O intelecto agente, por sua vez,
dito estar em ato enquanto imaterial e, portanto, apto a tornar imaterial o objeto
que era inteligvel s em potncia:

"Comparatur igitur ut actus respectu intelligibilium, in


66
quantum est quaedam virtus immaterialis activa, poteris alie
similia sibi facere, scilicet immaterialia. Et per hunc
modum ea quae sunt intelligibilia in potentia facit
intelligibilia in actu"

n. 739

5. FASE PREPARATRIA SENSVEL DA ABSTRAO.

S. Toms designa habitualmente pela expresso phantasmata" o elemento de


conhecimento sensvel a partir do qual a inteleco se processa. A que corresponde
exatamente ste trmo?

Psicolgicamente, os "phantasmata" podem ser considerados como imagens, mas sob a


condio de se precisar que o conjunto dos sentidos externos e internos contribui para a
sua formao. Tambm no devem ser considerados como simples reprodues das
sensaes, mas como a resultante de tda uma elaborao muito complexa. S. Toms
(Metaph. 1, lect. 1; II Anal. II, lect. 20) parece reconhecer que antes da
inteleco devem-se formar, no nvel do conhecimento sensvel, esquemas tendo j um
certo carter de generalidade, os quais constituem uma espcie de intermedirio entre
o singular, diretamente percebido pelos sentidos, e o verdadeiro universal que s a
inteligncia atingir. As simplificaes das frmulas, muitas vzes empregadas no
tomismo para explicar o conhecimento, no devem fazer-nos perder de vista tda a
complexidade da atividade concreta do esprito de modo algum ignorada por esta
filosofia.

Do ponto de vista objetivo, diz-se que os "phantasmata" so inteligveis em


potncia ou contm em potncia o inteligvel. No se deveria isto ao fato de que a
forma do objeto exterior que les representam no se encontra nles de modo
determinado? De modo algum. Os "phantasmata" contm atualmente a essncia da coisa
que devem fazer conhecer, pois sem isso no se v como poderiam transmiti-Ia
inteligncia; mas so ditos em potncia em relao ao ser inteligvel ou
"intencional" que esta essncia dever revestir para ser efetivamente conhecida. A
atuao do inteligvel, de que deveremos falar, concerne portanto no
determinao formal do objeto, que vem do exterior, mas a seu ser objetivo ou de
representao no esprito.

6. A AO DO INTELECTO AGENTE.

Como compreender esta ao pela qual o intelecto agente vai tornar inteligvel em ato
o inteligvel em potncia das imagens e permitir assim a recepo da semelhana
espiritual do objeto? Diversas analogias, tradicionalmente usadas, podem ajudar nesta
explicao.

A analogia da luz a comparao empregada por Aristteles: assim como as cres,


objeto da vista, tornam-se visveis s graas iluminao devida luz, assim o
inteligvel, contido em potncia nas imagens, torna-se atual se fr semelhantemente
iluminado pelo intelecto agente.

Esta comparao pe felizmente em evidncia a necessidade de um princpio ativo,


diferente do objeto, para tornar possvel a inteleco. Sugere ainda certos
caracteres da atividade dste princpio: a no colorao da luz evoca a ausncia de
determinao formal do intelecto agente; sua espiritualidade relativa, a espiritualidade
67
efetiva da atividade desta faculdade. Por outro lado, com esta analogia no se v bem
como o intelecto possvel ser atuado, e, alm disso, -se orientado para a
concepo falsa de um inteligvel existindo em face da inteligncia como um objeto a
contemplar, quando na realidade s se pode falar em inteligvel em ato na prpria
faculdade receptora.

No aristotelismo, a atividade do intelecto agente tambm freqentemente designada


pelo trmo "abstrao". Diz-se que esta faculdade abstrai o objeto inteligvel ou
a "species" dos "phantasmata", ou ainda que despoja a "species" das condies da
matria que a singularizam.

Aqui o resultado da atividade do intelecto agente que colocado em evidncia,


devendo-se evidentemente tomar em sentido metafrico as expresses de abstrao ou de
despojamento. Como a precedente, esta analogia tem o inconveniente de no salientar o
aspecto de informao do intelecto passivo, aspecto ste implicado nesta operao.
O objeto inteligvel aparece sempre como uma coisa inerte colocada em face da faculdade,
quando efetivamente age sbre ela. Como pois conceber esta causalidade?

Antes de tudo, manifesto que, isoladamente considerados, nem o intelecto agente,


que formalmente indeterminado, nem o "phantasma" que na ordem inteligvel existe
smente em potncia, podem agir sbre o intelecto possvel. requerido o concurso
dos dois elementos. A ste respeito, foram propostas duas explicaes.

O "phantasmata" interviria na impresso da "species" a ttulo de causa material e o


intelecto agente exerceria uma espcie de causalidade formal. ste modo de representar
as coisas tem, entre outros inconvenientes, o de sugerir sem razo que o "phantasma"
, nesta atividade, o sujeito, quando na realidade antes o intelecto possvel que
desempenha ste papel.

Parece prefervel considerar aqui o "phantasma", como o faz Joo de S. Toms,


como uma causa instrumental elevada pela ao do intelecto agente, causa principal
(Cursus phil. De Anima, q. 10, a. 2, sec. diffic.: Dicendum nihilominus).
Um e outro fatres agindo, cada um guarda em sua linha, sua ao determinadora: o
"phantasma", na ordem da essncia, o intelecto agente, na ordem do ser inteligvel,
sendo as duas aes hierrquicamente organizadas. S. Toms sugere esta
interpretao (cf. De Veritate, q. 10, a. 6, ad 1, 7, 8; I, q. 85,
a. I, ad 3, 4). Eis o texto mais formal:

"Na recepo, pelo intelecto possvel, das "species"


das coisas tiradas dos "phantasmata, stes desempenham o
papel de agente instrumental e secundrio, enquanto o
intelecto agente o agente principal e primeiro; o
resultado desta atividade no intelecto possvel leva, em
conseqncia, a marca de um e de outro e no a de um dos dois
elementos sdmente; o intelecto possvel recebe, pois, as
formas como inteligveis em ato em virtude do intelecto
agente, e como semelhanas determinadas das coisas, em
razo do conhecimento dos fantasmas; e assim as formas
inteligveis em ato no existem por si, nem na
imaginao, nem no intelecto agente, mas smente no
intelecto possvel"

De Veritate, loc.
68
cit., ad 7

Notar-se- que o precedente processo no , em seu momento essencial, de modo


algum consciente. Percebemos as imagens e, no fim, captamos o inteligvel, mas a
explicao da passagem da primeira para a segunda d-se smente a posteriori,
perfeitamente legtima alis. Comparado ao processo semelhante da formao da
representao sensvel, aparece a abstrao intelectual como mais ativa do lado do
esprito, pois a elevao ao nvel do ser inteligvel obra do esprito. Nos dois
casos, todavia, a determinao formal do objeto percebido resulta da ao da coisa
exterior.

7. O INTELECTO POSSVEL E A RECEPO DA


"SPECIES"

Estritamente falando, o intelecto agente no uma potncia de conhecimento. Esta


funo pertence ao intelecto possvel ou passivo. Veremos, sucessivamente, que esta
faculdade est em pura potncia face aos inteligveis (a), que para passar a ato
deve preliminarmente ser informada pela "species" (b). Em seguida, ser precisado
o papel exato que esta ltima entidade desempenha no ato intelectual (c) e a relao
que tem com a coisa exterior (d) .

8. O INTELECTO POSSVEL UMA POTNCIA


PASSIVA.

Esta afirmao da passividade de nossas potncias de conhecer dirige tda a


psicologia aristotlica. Devemos aqui, com S. Toms, precisar seu exato
significado (cf. Ia Pa, q. 79, a. 2).

Antes de tudo, no caso da inteligncia, esta alegao encontra-se fundada no objeto


mesmo desta faculdade. Este, com efeito, o ser universal. Se, portanto, a
inteligncia estivesse preliminarmente atuada, e sendo o ser universal infinito,
seguir-se-ia que a inteligncia seria infinita. Ora, s a inteligncia divina possui
esta qualidade. Mas o que pode exatamente significar para uma inteligncia, que ser
espiritual, o fato de "padecer"? S. Toms, no artigo citado, explica
cuidadosamente que a passividade, de que se trata, no comporta de modo algum, no
sujeito receptor, qualquer deteriorizao, ou ablao de qualquer propriedade
natural: padecer, no caso presente, significa smente a simples passagem, sob a ao
do agente, da potncia ao ato, ou o fato de o sujeito adquirir o ato com relao ao
qual estava em potncia. Entendida neste sentido, uma paixo um aperfeioamento.

Os comentadores (cf. Cajetano, In Iam Part., q. 79, a. 2, XVI a XX;


Joo de S. Toms, Curs. Philos., De Anima, q. 6 a 3) precisam que, na
recepo do inteligvel, o intelecto passivo de dois modos diferentes: primeiro,
conforme uma passividade material, devendo a "species" em questo ser preliminarmente
recebida entitativamente na inteligncia, como tda forma em um sujeito; em segundo
lugar, conforme uma passividade imaterial, devendo o objeto a conhecer perfeccionar a
potncia na ordem objetiva ou intencional. Evidentemente esta segunda passividade ser
caracterstica do conhecimento.

9. RECEPO DA "SPECIES"

Consideraremos agora a atuao do intelecto passivo. Esta devida atuao


conjugada do intelecto agente, causa principal, e do "phantasma", causa
69
instrumental. Esta ao tem por efeito, antes de tudo, modificar como ser o sujeito
inteligente determinando nle, a ttulo de acidente, uma "species". Conjuntamente
se produz uma segunda informao que atua a inteligncia como potncia intencional.
Pode-se produzir neste caso smente o ato de conhecimento prpriamente dito.

Esta segunda informao, notemos, pode seguir ou no a informao entitativa,


apresentando-se a segunda destas alternativas quando a inteligncia cessa de pensar um
objeto. ste, ento, no est mais inteligivelmente presente; permanece, contudo,
na potncia a ttulo entitativo, ou como "habitus". Alis novamente a partir desta
presena entitativa, a inteligncia poder passar, graas a uma nova informao
intencional, a um nvo ato de conhecimento. Assim se explicam as passagens sucessivas
da idia no pensada idia atualmente apreendida, isto , o fenmeno da memria
intelectual.

10. PAPEL DA "SPECIES" NO ATO INTELECTUAL.

Portanto, uma vez informado, o intelecto possvel encontra-se pronto para passar a
seu ato. Como vai ste se produzir? Pela atividade da faculdade enquanto est
objetivamente determinada pela "species". Tda ao em seu princpio supe, com
efeito, uma potncia e uma forma; a potncia j est dada e a forma outra coisa no
que a "species" recebida: esto assim realizadas as condies da atividade
cognitiva.

Do que acaba de ser dito segue-se que a "species", ou a forma do objeto recebida na
inteligncia, no de modo algum "o que" conhecido, quod cognoscitur, mas
smente "o que por meio do qual" se conhece, quo cognoscitur (cf. Ia Pa, q.
85, a. 2). O que diretamente atingido o objeto ou a coisa mesma; a "species"
s por uma atividade reflexiva captada no princpio do ato. Voltaremos a isso.

A "species" no , pois, o objeto que efetivamente conhecemos. Segue-se da que


no tenha com le nenhuma relao? Pelo contrrio. Sua funo mesma unir o
objeto inteligncia ou tornar-lhe presente. Consegue isto porque uma semelhana
dle sendo-lhe semelhante, pode substitu-lo em nosso esprito. Empdocles, com o
seu conhecimento do semelhante pelo semelhante, est na origem desta concepo.
Todavia, contrriamente ao que le pensava, a semelhana em questo no deve ser
entendida como uma reduplicao material, mas como uma reproduo de ordem objetiva,
pois o modo de ser no esprito diferente do modo de ser na realidade.

igualmente muito importante notar que a semelhana da coisa pode represent-la de


modo mais ou menos perfeito. A inteligncia humana, teremos ocasio de o repetir,
no tem de incio a intuio clara das essncias. Inicialmente as apreendemos s de
modo confuso e atravs de conceitos completamente gerais. As semelhanas ou
"species" primitivas apenas representam o objeto sob seus mais comuns aspectos. Ser
ste precisamente o trabalho do esprito, o de determinar progressivamente ste
primeiro dado ainda muito indistinto.
70
A ATIVIDADE DA INTELIGNCIA

1. INTRODUO.

Alm dos dois elementos que acabamos de distinguir no princpio dessa atividade,
intelecto possvel e "species", enumera S. Toms, integrando o ato completo,
dois outros elementos: a inteleco, "intelligere" e a concepo interior da
inteligncia, "conceptio intellectus", na qual a faculdade contempla seu objeto.
Assim:

"Aqule que faz ato de inteligncia pode ter relao,


em seu ato, a quatro coisas: ao que captado pela
inteligncia, "species" inteligvel pela qual a
inteligncia se v atuada, a seu ato de inteleco e
concepo da inteligncia . . . intellectus autem in
intelligendo ad quatuor potest habere ordinem scilicet ad rem
quae intelligitur, ad speciem intelligibilem qua fit
intellectus in actu, ad suum intelligere, et ad conceptionem
intellectus".

De Pot., q. 8,
a. 1

Resta-nos, pois, considerar: a inteleco em si mesma (1) e a concepo da


inteligncia (2). Depois disto, voltando s imagens que esto na origem de nossa
atividade intelectual, deveremos mostrar que esta atividade supe sempre uma referncia
ao sensvel. (3)

Em tda esta questo S. Toms, para responder s exigncias dos problemas


teolgicos, notadamente ao do Verbo Divino, viu-se levado a ultrapassar
Aristteles. Ns o seguiremos nestas elaboraes novas. Os textos principais
utilizados so: Contr. Gent., I, c. 53; De Pot. q. 8, a. 1; q. 9,
a. 5 e 9; De Ver, q. 4, a. 2; I, q. 14; a. 4; q. 27; a. 1; q.
34, a. 1 e 2. Para os comentadores cf. Joo de S. Toms, Curs. Phil.,
De Anima, q. 11, a. 1 e 2.

2. A INTELECO

A atividade fsica, em Aristteles, tem de caracterstico que sai de algum modo do


agente e passa coisa exterior para a transformar. D-se o mesmo no caso do
conhecimento? J sabemos que no. medida que um ser se eleva na escala dos
viventes, caminha no sentido de uma interioridade crescente: cada vez menos o sujeito
considerado recorre aos outros e com les se relaciona. Da ordem da atividade
transitiva passa ordem da atividade imanente da qual o conhecimento intelectual
representa justamente o tipo mais perfeito.

Conclui-se que, na inteleco, no a coisa exterior que se encontra modificada,


mas o prprio sujeito cognoscente. S. Toms, em diversas circunstncias, precisa
que esta modificao pode ser comparada quela em que uma essncia recebe a
existncia, o "esse".

"A inteleco no uma ao que progride para o


71
exterior, mas que permanece no agente, como seu ato e sua
perfeio, do mesmo modo como a existncia a perfeio
do existente. Com efeito, assim como a existncia segue a
forma, assim tambm a inteleco segue a "species"
inteligvel" . . . Intelligere non est actio progrediens
ad aliquid extrinsecum, sed manet in operante, sicut actus
et perfectio ejus, prout esse est perfectio existentes.
Sicut enim esse consequitur formam, ita intelligere sequitur
speciem intelligibilem"

Ia Pa. q. 14 a.
4

Cf. ainda, q. 34, a. 1; ad 2. Joo de S. Toms, De Anima, q. 11,


a. 1; dico ultimo.

Assim, pois, como o "esse", na ordem do ser, representa a perfeio ltima de


uma coisa, semelhantemente a inteleco, o "intelligere", na ordem do
conhecimento, ou mais geralmente da atividade. Perfeio, no ltimo caso,
imanente, isto , ordenada ao bem do sujeito e que no produtora de nenhum efeito;
atingimos aqui um trmo ltimo.

Considerando a afirmao precedente, Joo de S. Toms, que gosta de


classificaes, recoloca a presente atividade na categoria da qualidade. Aparentemente a
inteleco se apresenta como uma modalidade do gnero ao; mas uma ao exige uma
paixo correspondente em um sujeito que ela transforma, o que aqui no se d. Ainda
mais, como acabamos de dizer, a inteleco no aparece, como a ao, orientada
para algo de distinto. A inteleco no pode, pois, pertencer ao predicamento da
ao e, sendo disposio do prprio sujeito, resta que deva ser assimilada ao
predicamento qualidade.

O principal intersse desta determinao marcar bem a diferena que separa a


atividade cognoscitiva, tipo perfeito da ao imanente, da atividade fsica ou
transitiva. Agir, para um esprito, uma coisa e, para uma realidade material,
outra. Muitas dificuldades no estudo do conhecimento provm do esquecimento desta
verdade elementar.

A realidade, todavia, mais complexa do que acabamos de dizer. A inteleco, em


S. Toms, aparece igualmente como produtora de um trmo ou de um quase-trmo,
interior por certo, mas realmente distinto dela: o "verbum mentis", ou a "conceptio
intellecta". Ao mesmo tempo que contemplo o objeto, e para estar em condies de o
contemplar, formo em minha inteligncia uma imagem dste objeto que mo torna presente.
Em outras palavras, para uma inteligncia, pensar contemplar, mas tambm
conceber.

Qual pois ste trmo concebido pela inteligncia? A atividade de concepo que
acabamos de discernir deve ser distinta realmente da apreenso exercida pela
inteligncia ou da inteleco? Que relaes h exatamente entre stes dois
aspectos do ato de conhecer? Tais so os problemas que presentemente se colocam.

3. O VERBO MENTAL

Grande parte das dificuldades, no estudo da teoria do verbo mental em S. Toms,


72
provm de que no se teve cuidado de recolocar os textos em questo nas perspectivas
diversas em que foram elaborados.

Encontra-se, primeiro, todo um conjunto de textos sbre o conhecimento onde no


existe meno alguma de um trmo interior ou de um verbo. O Doutor nglico,
neste caso, segue apenas letra o ensinamento de Aristteles. O que atingido
diretamente a coisa, "res", e no a modificao do esprito. Pretender o
contrrio cair, com Protgoras, em um relativismo insustentvel: tudo o que me
aparece verdadeiro enquanto tal. Cincia e verdade encontram-se assim
comprometidas. Contrriamente, preciso afirmar que a "species" inteligvel
apenas um princpio "quo" de inteleco, o que quer dizer que se encontra s na
origem do ato e assim s pode ser captada de maneira reflexiva.

De fato, colocados parte dois ou trs textos, a teoria do verbo foi desenvolvida
por S. Toms to smente em vista de sua utilizao para o dogma da gerao da
Segunda Pessoa da SS. Trindade. Podendo uma tal operao ser concebida s como
um processo de conhecimento, torna-se de grande intersse reencontrar, em tda
inteleco, uma produo interior, com a qual se poder comparar a gerao
trinitria. Diga-se de passagem que aqui se encontra um dos tipos mais acabados do
desenvolvimento de uma doutrina filosfica sob a influncia da f.

Todavia, se a teoria do verbo foi elaborada com preocupaes teolgicas, pode ser
igualmente abordada como um problema de filosofia. O conhecimento aparece, com efeito,
claramente marcado por um carter expressivo que deve ser levado em conta. Por outro
lado, tendo sido a atividade intelectual reconhecida como imanente, coloca-se
necessriamente a questo da existncia de um trmo interior ao pensamento.

Nota de vocabulrio. A expresso "verbum mentis" - em comparao com "verbum


oris", a palavra -, encontra-se mais habitualmente empregada por S. Toms em vista
das aplicaes trinitrias da doutrina. Em contexto psicolgico, seria prefervel
falar de "conceptio" ou de "intentio intellecta". A expresso corrente da
escolstica contempornea de "species expressa", em oposio "species
impressa", que designa a forma do conhecimento, aparece s mais tarde.

Em um texto clssico (Cont. Gent. I, 53), S. Toms d duas razes da


existncia do verbo no conhecimento intelectual. Em primeiro lugar, sendo a
inteligncia capaz de apreender as coisas em sua ausncia, como tambm em sua
presena, impe-se evidentemente, ao menos no primeiro caso, que o objeto conhecido
encontre-se na potncia de conhecer. O segundo motivo mais fundamental e vale
universalmente: devendo o objeto captado pela inteligncia estar, como tal, separado
das condies da matria, necessrio, se se trata de coisas materiais, que a
faculdade de conhecer lhe confira um modo de existncia correspondente, o que s pode
acontecer no seio de sua imanncia.

Estas razes, que antes se prendem s condies de imperfeio do conhecimento


humano, no bastam para assegurar, doutrina trinitria da gerao, a base
analgica que requer. Assim, Joo de S. Toms (De An. q. 11) ,
apoiando-se sbre certos textos de S. Toms, invoca, para igualmente justificar a
produo do verbo, uma certa lei positiva de super-abundncia; naturalmente somos
levados a exprimir e a manifestar, o que aprendemos, dizendo-o. H nisto uma certa
exigncia de perfeio do pensamento. Todavia, continua nosso autor, que no se v
at ao ponto de fazer da dita produo uma necessidade absoluta, nem de apresent-la
como fim mesma inteleco: ste ltimo ato, ns o vimos, absolutamente
73
trmo, e, se preciso um verbo, antes em benefcio da inteleco.

Deve-se, todavia, reconhecer que em tda inteleco existe um verbo? No caso do


conhecimento humano uma tal exigncia ocorre, no smente para o conhecimento das
coisas materiais, mas ainda no da alma por si mesma. Igualmente o anjo: ainda que sua
essncia, objeto prprio de sua inteligncia, imediatamente lhe esteja presente, s
se conhece em um verbo. S. Toms conservar s um caso onde no h produo de
um verbo: na viso beatfica: Deus perfeitamente inteligvel por si mesmo e pode
terminar, de modo imediato, o ato de apreenso de sua essncia. Sendo, por outro
lado, infinita, esta no poderia ser representada de modo adequado por alguma
semelhana criada.

No conhecimento, refere-se o verbo a duas coisas: atividade intelectual que o


produz e coisa que representa ao esprito.

O verbo como produo. A questo que aqui se coloca de se saber se a produo


do verbo um simples efeito da inteleco ou se no se supe uma atividade distinta
do esprito. S. Toms (De Veritate, q. 4, a. 2 ad 5) sustenta a primeira
hiptese. Parece completamente gratuito e seria suprfluo duplicar em ns o ato
prpriamente dito de conhecer por uma atividade produtora de um verbo. O "dicere",
muitas vzes considerado parte, no , portanto, distinto realmente do
"intelligere". Assim, o verbo resulta da inteleco de maneira imediata.
Lembrar-se-, todavia, que no se deve dizer dle que seja prpriamente o fim.
oportuno acrescentar que, como para a "species quo", o verbo pode ser considerado
objetivamente (ou em seu ser representativo) ou entitativamente (em relao ao
sujeito inteligente do qual ento um acidente que o qualifica).

O verbo como semelhana. Relacionado, no mais ao sujeito que o produz, mas ao


objeto conhecido, o verbo aparece como uma semelhana. Esta qualidade lhe advm do
fato de que a "species", que est no princpio do ato intelectual, uma
semelhana da coisa exterior: "pelo fato de a "species" inteligvel, que a forma
do intelecto e o princpio de inteleco, ser a semelhana da coisa exterior,
segue-se que o intelecto produz uma inteno que semelhante a esta coisa" (Cont.
Gent. I, c. 53).

O que representa exatamente esta semelhana? De um modo geral, semelhana quer dizer
unidade no gnero qualidade. Mas aqui qualidade deve ser entendida em sentido amplo
como que significando, em particular, a diferena especfica ou a essncia da coisa.
, portanto, com esta que o verbo se relaciona antes de tudo. Todavia, teremos
ocasio de o repetir ao estudar o devir do conhecimento, permanecendo as primeiras
apreenses de nossa inteligncia muito gerais e confusas, as representaes que lhes
so correspondentes s podem ser imperfeitas; a relao de semelhana do verbo ser
precisada, pois, s de modo progressivo.

4. O VERBO: TRMO RELATIVO OU TRMO LTIMO DO


CONHECIMENTO?

No conhecimento, a interposio de um trmo imanente entre a inteligncia e a coisa


exterior no pode deixar de levantar uma dificuldade. a coisa que atingida pela
inteligncia, ou se deve falar que a concepo interior do esprito? E, admitindo
esta segunda hiptese, no se compromete o realismo do conhecimento ou uma
determinao interior do ato?
74
ste problema, que pouco preocupou os medievais, tomou tda sua acuidade com a
controvrsia idealista (cf. a recente polmica entre tomistas : Maritain, R f
lexions sur l'intelligence, c. 2; Les degrs du savoir, c. 3, 26 e Apndice
I; Roland Gosselin, Rev. Sc. Phil. et Thol. 1925, pg. 200 ss.;
Blanche, Bull. Thom., 1925, pg. 361 ss.). Como a discusso no
deixou de ser confusa, no ser sem utilidade pararmos um pouco neste ponto.

A fixao do verdadeiro pensamento de nosso Doutor aparece, numa primeira leitura,


irrealizvel, pois uma srie de textos parece levar a um imediatismo sem compromissos,
enquanto outros, com uma no menor clareza, afirmam que o verbo o trmo mesmo
atingido no conhecimento.

Em favor da primeira concepo, baste-nos lembrar a exposio perfeitamente clara e


explcita da Prima Pars (q. 85, a. 2), onde se declara que o que diretamente
conhecido a coisa e no a "species"; esta s , atingida por reflexo; assim:
"quod cognoscitur est res". Outros textos so ainda mais categricos (cf. Cont.
Gent., IV, c. 11): "que a inteno da qual se trata no seja em ns aquilo
que apreendido pela inteligncia, isto vem do fato de que uma coisa apreender a
coisa, e outra captar a inteno inteligvel, o que a inteligncia realiza quando
reflete sbre seu ato". A "inteno inteligvel", isto , o verbo, ,
pois, atingido smente em um ato reflexo; s a coisa atingida diretamente. Isto
totalmente claro.

Outros textos, infelizmente, parecem afirmar exatamente o contrrio (cf. De


Pot., q. 9, a. 5):

"o que de per- si atingido pela inteligncia no


esta coisa da qual se tem conhecimento... mas o que antes
de tudo de per si atingido, aquilo que a inteligncia
em si mesma concebe da coisa conhecida".

Algumas passagens, porm, parecem pretender uma conciliao (cf. De Ver., q.


4, a. 2 ad 3): "A concepo da inteligncia intermediria entre a
inteligncia e a coisa, porque por ela que a dita operao chega at coisa;
segue-se disto que a concepo da inteligncia no smente o que captado, -
id quod intellectum est, mas tambm aquilo por meio do qual a coisa captada, - id
quo res intelligitur, -de modo que aquilo que captado aplica-se prpria coisa e
concepo da inteligncia, - sic quod intelligitur possit dici et res ipsa et
conceptio intellectus. (Cf. paralelamente In Joan., c. 1:) "O verbo
comparado inteligncia no como aquilo por meio do qual ela capta seu objeto, - quo
intelligit, - mas, aquilo no qual ela o capta -in quo intelligit porque nle,
formado e expresso, que v a natureza da coisa".

Para colocar um pouco de clareza neste debate, importa lembrar que S. Toms aqui
escreve sob duas perspectivas diferentes: na linha da teoria do conhecimento de
Aristteles e na linha da teoria da gerao trinitria do Verbo. Com Aristteles,
trata-se de evitar o subjetivismo de Protgoras, para quem o objeto do conhecimento
seria a modificao mesma do sujeito. E neste caso a imediao do conhecimento
que naturalmente deve ser colocada em evidncia. Com os telogos, procura-se
assegurar um trmo interior do pensamento, onde naturalmente se levado a sublinhar o
carter de imanncia do ato da inteligncia. Isto reconhecido, ser permitido que
nosso autor, levado pela preocupao especial de cada uma de suas exposies, no
cuidou de circunstanciar tdas as suas frmulas. Os textos mais completos, sbre os
75
quais convm antes de tudo se apoiar, so aqules nos quais so propostos os dois
aspectos da doutrina.

Portanto, o que captado pelo esprito pode-se referir tanto coisa mesma, como
concepo da inteligncia, "et res ipsa et conceptio intellectus"; de modo que o
verbo ao mesmo tempo: "quod intellectum est" e "id quo intelligitur". bem um
trmo, mas relativo to smente, pois o trmo absoluto a prpria coisa.

O verbo como sinal formal. Constata-se, muitas vzes, na discusso dste


problema, uma doutrina do sinal cujo desenvolvimento parece dever-se atribuir a Joo de
Santo Toms (cf. Curs. phil., Log., IIa Pa q. 22, a. 1 e 2). A
concepo do esprito seria um sinal da coisa que representa. Mas h duas espcies de
sinal: - o sinal instrumental, que tem por carter prprio levar o esprito a uma
realidade diferente da que foi apreendida: "quod praeter species qua ingerit sensui,
aliud facit in cognitionem venire": assim, percebendo a fumaa infiro o fogo que
uma outra coisa; - o sinal formal que, tambm le, faz conhecer outra coisa, mas em
si mesmo e de modo imediato; h, neste caso, simultaneidade entre a captao do
sinal e a do significado.

Se o verbo mental fr um sinal, s pode evidentemente ser um sinal formal, isto ,


no uma coisa que nos conduz ao conhecimento de outra, mas uma coisa na qual
diretamente captamos uma outra. A razo formal do objeto exterior encontra-se assim
imediatamente apreendida, s sendo atingida em um trmo imanente ao esprito.
Dplice aspecto da imanncia e da exterioridade de nosso conhecimento intelectual que
convm manter simultneamente, se se quer evitar os extremos do mediatismo ruidoso das
"idias quadros" e de um imediatismo da coisa e de nossa faculdade que perfeitamente
ininteligvel.

Assim, o ato intelectual humano se constitui de quatro elementos: a faculdade mesma, a


"species" que a atua, a inteleco e o verbo. Vistas na linha de uma metafsica
geral da atividade, as condies especiais dste ato nos levaram a estas
distines. No se pode, todavia, esquecer que analisar no espedaar. Na
pluralidade de seus princpios, o ato de conhecimento guarda uma verdadeira unidade e
definitivamente esta que toca de incio a conscincia. Para tudo retomar ainda uma
vez, citaremos ste belo texto do Contra Gentiles, j antes usado (I, c. 53):

"A coisa exterior, apreendida pela nossa inteligncia,


no existe segundo sua natureza, mas preciso que sua
semelhana, pela qual se encontra atuada, esteja em nossa
inteligncia. Atuada pela dita semelhana, como por sua
forma prpria, nossa inteligncia capta a prpria coisa;
no que a inteleco seja por si uma ao que passa para a
coisa exterior, como o aquecimento se comunica ao que
aquecido, mas permanece no que faz ato de inteligncia e tem
relao coisa que captada, no que a "species" em
questo, que princpio formal de operao intelectual,
a semelhana da coisa preciso ainda observar que a
inteligncia, informada pela "species" da coisa, forma em
si mesma uma certa inteno do objeto apreendido, a qual
a razo que significa sua definio. Isto se impe pelo
fato de a inteligncia captar indiferentemente uma coisa
ausente e presente, no que a imaginao lhe semelhante.
Ainda mais, a inteligncia tem isto de particular: ela
76
capta a coisa como separada destas condies materiais sem
as quais no pode existir na realidade concreta, o que seria
impossvel se esta faculdade no se formasse "inteno"
do modo como foi dito. Ora, esta inteno apreendida,
pelo fato de ser o quase-trmo da operao intelectual,
diferente da "species inteligvel", a qual, atuando a
inteligncia, deve ser tida como seu princpio, sendo,
alis, uma e outra destas coisas, semelhanas da realidade
conhecida. Pelo fato de a "species" inteligvel, que a
forma da inteligncia e o princpio de seu ato, ser a
semelhana da coisa exterior, por isso mesmo a inteligncia
forma uma "inteno" semelhante a esta coisa; tal, com
efeito, uma coisa, tal sua operao. Pelo fato enfim de a
"inteno" apreendida ser semelhante a uma certa coisa,
segue-se que a inteligncia, formando uma tal inteno,
capta esta prpria coisa".
77
A VOLTA S IMAGENS

1. INTRODUO.

O ato intelectual, do qual acabamos de fazer a anlise, tinha sua origem no


conhecimento sensvel, ou nos "phantasmata". Para S. Toms, veremos,
encontram-se as imagens uma segunda vez no processo intelectual, mas desta vez no trmo
do conhecimento ou do lado do objeto. Assim, a inteligncia nada pode captar se no
se volta s imagens "nisi convertendo se ad phantasmata", sendo esta converso outra
coisa que a simples indicao de uma relao de origem (cf. sbre ste assunto:
Ia Pa, q. 84, a. 7 e 8; q. 86, a. 1. q. 89, a. 1; Cajetano, in
Iam Part. q. 84, a. 7. Joo de S. Toms, De Anima, q. 10, a.
4).

2. PROVA EXPERIMENTAL.

No artigo 7 da questo 84, que aqui o texto maior, S. Toms faz aplo
experincia. Dois fatos tendem a provar a necessidade, para a inteleco, desta volta
s imagens: - o fato das leses corporais que paralisam a atividade da inteligncia.
Como esta faculdade no utiliza rgo algum, o obstculo constatado s pode ser
relativo s atividades sensveis que seriam necessrias para a inteleco. Assim,
quando a imaginao falha, no pode haver conhecimento intelectual. - Um segundo
fato prova mais diretamente: no verdade que quando algum se esfora por
compreender alguma coisa, espontneamente forma imagens nas quais se aplica a considerar
o que capta pela inteligncia? "Quando aliquis conatur aliquid intelligere format
aliqua phantasmata sibi per modum exemplorum, in quibus quasi inspiciat quod intelligere
studet".

3. JUSTIFICAO RACIONAL.

stes fatos podem ser justificados a priori, pois a volta s imagens est implicada
nas condies mesmas do objeto prprio da inteligncia humana. Sabemos, com a "
qididade", isto , a efeito, que ste objeto prprio natureza dos coisas sensveis
. Ora, a esta natureza pertence existir s no singular, isto , em uma matria
corporal: assim, compete natureza da pedra existir em tal pedra determinada. Donde
se segue que a natureza da pedra, ou de no importa que coisa material, s pode ser
conhecida "completamente" e "em verdade" se fr captada como existindo no
particular, o qual s pode ser apreendido pelos sentidos ou nas imagens. Para a
inteligncia atingir seu objeto prprio deve, portanto, necessriamente voltar s
imagens para nelas considerar a natureza universal contida no particular:

"Intellectus autem humani qui est conjunctus corpori,


proprium objectum est quidditas, sive natura in materia
corporali existens . . . De ratione autem hujus naturae
est quod in aliquo indivduo existat, quod non est absque
materia corporali: sicut de ratione naturae equ. est quod
sit in hoc equo. Unde natura lapidis vel cujuscumque
materialis rei cognosci non potest complete et vere nisi
Secundum quod cognoscitur ut in particulari existens.
Particulare autem apprehendimus per sensum et imaginationem.
Et ideo necesse est ad hoc quod intellectus intelligat suum
objectum proprium, quod convertat se ad phantasmata ut
78
speculetur naturam universalem in particulari existentem".

4. CONCLUSO: SOLIDARIEDADE DAS ATIVIDADES


INTELECTUAL E IMAGINATIVA.

As observaes precedentes manifestam claramente que, embora se distinguindo


ntidamente no tomismo o conhecimento intelectual e o conhecimento sensvel, deve-se
ter o cuidado de no se isolar uma e outra destas atividades. As imagens
encontram-se, ao mesmo tempo, no princpio do conhecimento material como sua matria
e, no seu trmo, enquanto solidrias com o objeto. O singular poder assim vir a ser
indiretamente o objeto de nossa inteligncia e nossa vida que, prticamente se passa no
concreto, dever continuamente a le se referir. Inicialmente e essencialmente
faculdade do abstrato e do universal, revela-se nossa inteligncia igualmente como a
faculdade do individual sensvel: riqueza e complexidade de uma filosofia cuja aparente
simplicidade das frmulas muitas vzes engana.
79
O PROGRESSO DO CONHECIMENTO HUMANO

1. INTRODUO

Enquanto a inteligncia divina e, face ao seu objeto prprio, a inteligncia


anglica chegam de um s golpe perfeio de conhecimento que lhes proporcional,
a inteligncia humana, a mais fraca de tdas, s passa a ato de modo progressivo:
"tudo o que, com efeito, passa de potncia a ato chega a um ato incompleto, o qual
intermedirio entre a potncia e o ato, antes de atingir um ato perfeito. O ato
perfeito que a inteligncia atinge a cincia completa, isto , aquela pela qual as
coisas so conhecidas de modo distinto e determinado. O ato incompleto a cincia
imperfeita, na qual as coisas so conhecidas indistintamente e em uma certa confuso"
(Ia Pa, q. 85, a. 3) . Intil dizer que a experincia da vida do pensamento
corrobora universalmente estas consideraes tericas.

Sendo extremamente complexo o problema do progresso do conhecimento humano,


limitar-nos-erros, nestas pginas, a resolver algumas ambigidades e a colocar em
evidncia certos pontos mais importantes.

2. O PRIMEIRO DADO DA INTELIGNCIA E A


APREENSO DA ESSNCIA.

O objeto prprio da inteligncia humana, que a qididade da coisa sensvel, deve


corresponder aparentemente ao que atingido imediatamente por esta faculdade. Todo um
conjunto de textos de S. Toms no-lo sugere. Lidos com ingenuidade, stes textos
parecem atestar que a essncia assim apreendida , de um s golpe, desvendada a
nossos olhos: "o intelecto atinge a pura qididade da coisa sensvel. . . " (De
Veritate, q. 10, a. 6, ad 2 e In Boet. de Trinitate, q. 6, a. 3).
Assim se compreender de pronto "o que seja o homem" e "o que seja o boi".

Tomadas absolutamente e sem alguma reserva, tais frmulas parecem to manifestamente


contrrias experincia que impossvel de se crer que o pensamento de S. Toms
aqui se exprima de maneira comedida. Quem eusaria pretender que basta olhar em trno a
si para captar, com um s olhar, a natureza profunda das coisas? De fato, em outras
passagens. S. Toms fala diferentemente: "as formas substanciais em si mesma nos
so desconhecidas, mas se nos manifestam por seus acidentes prprios" (De Spirit.
Creat., a. 11, ad 3) "porque as essncias das coisas nos so desconhecidas . .
. porque as diferenas essenciais nos so desconhecidas. . . " (De Ver. q. 4,
a. 1, ad 8; e Cont. Gent. III, c. 91).

Aparentemente estas frmulas vo contra o que foi dito acima. S. Toms, todavia,
no deve ter visto aqui oposio irredutvel pois em um mesmo artigo (De Spirit.
Creat., a. 11, ad 3 e ad 7) que afirma simultneamente: de um lado, que a
inteligncia em sua primeira operao capta a essncia das coisas e, de outro, que as
formas substanciais nos so desconhecidas. Convm, portanto, considerar mais de
perto o que efetivamente atingido na primeira apreenso da inteligncia humana.

Uma doutrina bem demonstrada vai nos colocar no caminho da soluo. O que
conhecido por ns, pergunta o Doutor anglico, o mais universal? (Cf. Ia
P, q. 85. a. 3) Conclui-se, no artigo citado, ser efetivamente o mais
universal o que primeiro apreendido. Assim, no se capta primeiro as essncias
especficas, que correspondem a conceitos mais particulares, mas os gneros mais
80
elevados: a noo de "animal", por exemplo, anterior noo de "homem", e
o mesmo acontece em todos os casos semelhantes. S. Toms precisa, por outro lado,
que ste conhecimento mais geral tambm mais confuso. Se se vai at ao princpio
na aplicao desta doutrina, ser preciso dizer que o que captado, em
primeirssimo lugar nas coisas pela inteligncia, a essncia sob seu aspecto mais
comum de ser, ou a idia de alguma coisa que existe. Atinge-se esta outra
afirmao, igualmente clssica no peripatetismo, que o ser aquilo que concebido em
primeiro lugar, e aquilo em que as outras noes se esclarecem: "illud quod primo
intellectus concipit quasi notissimum et in quo omnes conceptiones resolvit est ens"
(De Verit., q. 1, a. 1). Subentende-se que o ser, do qual se trata aqui,
no precisamente o ser enquanto ser, apreendido formalmente pelo metafsico, mas a
noo mais comum e mais determinada de ser. O primeiro olhar do esprito humano atinge
as coisas confusamente como sres.

A partir dste primeiro dado, a inteligncia progride em duas direes principais:

- primeiro, no sentido da determinao da essncia por


diferenas especficas que a distinguiro segundo sua
pertena hierarquizada em gneros e espcies diversas;
orienta-se ento para a apreenso das naturezas particulares
que se exprime, no fim, em uma definio ltima: o homem
um animal dotado de razo;

- ou, permanecendo no nvel do ser, progride a


inteligncia no sentido das determinaes mais universais
desta noo (propriedades transcendentais, unidade,
verdade, bondade, por exemplo): elabora-se neste caso uma
metafsica.

Em definitivo, no que nos concerne presentemente, preciso afirmar que a apreenso


da essncia das coisas pela inteligncia compreendida entre os dois extremos, isto
, entre o primeiro dado confuso do conhecimento intelectual e a definio da coisa,
podendo a expresso "quidditas sensibilis" ser aplicada ao mesmo tempo e
proporcionalmente a um e a outro dstes estados do conhecimento.

No peripatetismo no se erra em proclamar que face a seu objeto prprio, ou em seu ato
simples, uma potncia de conhecer no se pode enganar. Assim, em sua primeira
apreenso da essncia das coisas, o intelecto humano no pode errar, "circa quod est
non potest falli" (cf. Ia P, q. 85, a. 6).

Os esclarecimentos precedentes permitem ajustar esta frmula que pode prestar-se a


equvocos. A primeira operao do esprito, a "indivisibilium intelligentia",
com efeito infalvel: o que captamos imediatamente tal como captamos, mas s se
trata aqui de uma apreenso confusa. A definio precisa, exprimindo adequadamente a
essncia da coisa, s vir no trmo de um trabalho de anlise e de comparao
extremamente complexo onde o rro poder aparecer. Se, por exemplo, terminarmos por
definir o homem como um "animal racional alado", enganar-nos-erros. Indiretamente,
pois, poder o rro introduzir-se no conhecimento da essncia das coisas. Aqui ainda
a doutrina de S. Toms menos simplista do que possa parecer em certos manuais.

3. O "DISCURSUS" INTELECTUAL.

No seio mesmo da atividade da primeira operao do esprito pode haver um certo


81
progresso do conhecimento. Todavia, no com ste progresso que S. Toms
relaciona a distino entre a inteligncia humana, de si discursiva, e as
inteligncias divina ou anglica, as quais so essencialmente intuitivas:
"intellectus angelicus et divinus statim perfecte totam rei cognitionem habet" (Ia
P, q. 85 a. 5). A inteligncia humana, por sua vez, procede compondo,
dividindo (julgando) e raciocinando, "componendo, dividendo et ratiocinando" (cf.
ibidem e q. 58, a. 4 e 5) . Comparado aos espritos superiores que so
propriamente inteligncias, o homem aparece assim como um ser dotado de razo (animal
rationale).

A necessidade de compor, de dividir e de raciocinar impe-se inteligncia humana,


porque esta no atinge, em um primeiro golpe, o perfeito conhecimento da coisa, mas
capta s um de seus aspectos: sua qididade - e sabemos que isto mesmo
completamente relativo.

Apreendendo em seguida suas propriedades, ,seus acidentes e tudo o que se relaciona


essncia da coisa, -lhe necessrio associar ou dissociar os objetos assim
distinguidos, o que supe que se julgue e, tratando-se de conseqncia, que se
raciocine:

"Cum enim intellectus humanus exeat de potentia in actum,


similitudinem quemdam habet cum rebus generabilibus, quae non
statim perfectionem suam habent, sed eam successive
acquirunt.

Et similiter intellectus humanus non statim in prima


apprehensione capit perfectam rei cognitionem, sed primo
apprehendit aliquid de ipsa, puta quidditatem ipsius rei quae
est primum et proprium obiectum intellectus et deinde
intelligit proprietates et accidentia et habitudines
circunstantes rei essentiam. Et secundum hoc necesse habet
unum apprehensum alii componere et dividere, et ex una
compositione et divisione ad aliam procedere, quod est
ratiocinari

Ia P, q. 85,
a. 5

Tudo isto, seja dito ainda uma vez, representa s de modo completamente esquematizado
e simplificado a verdadeira marcha do pensamento.

4. COROLRIO: O CONHECIMENTO COMO ATIVIDADE.

O que acaba de ser dito permite-nos ainda responder a uma dificuldade que um esprito
moderno, abordando a doutrina peripattica do conhecimento, no pode deixar de
colocar.

Em uma primeira aproximao, manifesta-se nesta doutrina a faculdade de conhecer como


capacidade essencialmente receptiva ou passiva: o quadro virgem sbre o qual vem se
inscrever o dado exterior. Mas no se poderia sustentar o contrrio, isto , no
aparece a inteligncia antes como uma faculdade ativa?

S. Toms, na realidade, no desconheceu ste outro aspecto das coisas. Ativa, a


82
inteligncia encontra-se no princpio de todo conhecimento. No ela com efeito que
deve tomar a iniciativa da abstrao do fantasma, sem a qual nenhuma recepo de
"species" seria possvel? E a prpria inteleco, no ela um ato sado da
vitalidade da faculdade e que pela produo do verbo manifesta sua fecundidade? Nossa
inteligncia no tem, por outro lado, a partir de seus primeiros dados, um trabalho
imenso a desempenhar para atingir um conhecimento distinto de seu objeto? Enfim, seria
conveniente lembrar que o esprito no somente reconstri a realidade tal qual , mas
ainda que para si constri todo um mundo de sres que s existem nle : o do ser de
razo. Assim, por muitos ttulos, aparece a inteligncia humana como uma potncia
dotada de atividade.

No se esquecer, contudo, que o ato mesmo da faculdade, o "intelligere", s


atividade em sentido superior, onde no entra propriamente nem progresso, nem
movimento, mas perfeio na imobilidade. Para a inteligncia, compreender ser:
"intelligere est esse". Tudo o que existe de mudana na vida do pensamento
encontra-se portanto ordenado a um repouso terminal ou, se se quer, a uma plenitude de
atividade onde a vida atinge seu cume: a contemplao pura do objeto.
83
O CONHECIMENTO DO SINGULAR E DO EXISTENTE

1. INTRODUO.

At aqui se nos manifesta o conhecimento intelectual como um conhecimento abstrativo e


universal. Libertando o inteligvel da matria e de suas condies individuantes,
le toma por objeto a essncia mesma das coisas, deixando de lado o que a singulariza e
o fato mesmo de sua existncia. O indivduo concreto, Pedro, ste homem, esta
mesa. . . permanecem fora de nosso horizonte. Neste plano, posso formar-me uma
idia abstrata e universal do indivduo. Tenho dle ento um conhecimento
qiditativo.

Mas um tal conhecimento no a apreenso mesma do ser particular que est presente
aqui diante de mim.

E, no entanto, no manifesto que nossa vida intelectual se relaciona continuamente


com tais sres concretos e determinados? S. Toms (Ia Pa, q. 86, a. 1)
nota trs circunstncias onde ste fato aparece com evidncia: 1. no se formam
proposies cujo sujeito um ser particular, como esta: "Pedro um homem"? Isto
seria inexplicvel se preliminarmente no se tivesse tido o conhecimento dos dois
trmos em presena, isto , principalmente o conhecimento de Pedro; 2. a
inteligncia, em sua funo prtica, diretora da ao; ora, esta relaciona-se
necessriamente a sres singulares e concretos; a inteligncia, portanto, deve
conhecer tais sres; 3. a inteligncia capta-se a si mesma em sua atividade; ora,
esta manifestadamente singular; portanto, a inteligncia deve conhecer ao menos
ste objeto singular constitudo por ela mesma.

Como conciliar estas duas teses, pois ambas parecem se impor: a inteligncia humana
tem um objeto abstrato e universal e a mesma inteligncia atinge o singular concreto?
Na filosofia tomista, ste problema d lugar a duas ordens de consideraes
convergentes, a primeira focalizando o conhecimento do singular como tal, e a segunda, a
apreenso de sua existncia. Sucessivamente vamos considerar cada um dstes dois
pontos, limitando-nos, para maior simplicidade, experincia das realidades
fsicas. A experincia da alma e da vida psquica e a das realidades transcendentes,
ou a experincia mstica, devero ser consideradas parte.

2. O CONHECIMENTO DOS SINGULARES

Apoiada nos princpios mais gerais do sistema, a tese defendida por S. Toms
aparece logicamente inatacvel. Ei-la em trmos perfeitamente claros (I, q.
86, a. 1):

"Nossa inteligncia no pode captar de modo direto e


imediato o singular nas coisas materiais. A razo disto
est no fato de o princpio da singularidade, em tais
coisas, ser a matria individual.

Ora, nossa inteligncia, como foi dito, procede em seu


ato abstraindo desta matria a "species", e o que
abstrado da matria individual universal.

Nossa inteligncia diretamente atinge s o universal.


84
Pode todavia atingir o singular, mas de modo indireto e por
uma certa reflexo, indirecte et per quamdam reflexionem;
isto se explica pelo fato de que mesmo aps ter abstrado a
"species" inteligvel, s pode, por seu intermdio,
conhecer em ato, sob a condio de se voltar para as
imagens nas quais capta a dita "species" (cf. De Anima,
III, c. 7 431 b 1). Assim, capta diretamente o
universal por meio da "species" inteligvel, e.
indiretamente os singulares com os quais os fantasmas se
relacionam."

(Cf. Igualmente sbre esta doutrina: Ia Pa, q. 14, a. 11; q. 57, a.


2; Quaest. Disp. de Anima, a. 20; De Veritate, q. 10, a. 5) .

Como se deve representar esta "convertio ad phantasmata" que est no princpio do


conhecimento indireto do singular? Antes de tudo, certo que no se trata aqui de
uma outra "convertio", diferente da que foi falada quando se perguntou se seria
possvel conhecer intelectualmente sem imagens. Mas pode-se precisar como se efetua
esta volta? Eis como no De Veritate (q. 10, a. 5), S. Toms no-lo
apresenta:

"O esprito, todavia, consegue ingerir-se nas coisas


particulares enquanto se prolonga pelas potncias sensveis
que tm por objeto o singular... E assim conhece o
singular por uma certa reflexo, enquanto conhecendo seu
objeto, que uma natureza universal, chega ao conhecimento
de seu ato, e ulteriormente "species" que est no seu
princpio, e enfim ao fantasma donde as espcies foram
abstradas; assim que tem um certo conhecimento do
singular."

, portanto, tomando conscincia da origem de seu ato que a inteligncia capta o


singular: ste, sbre o qual reflete, tem por princpio a "species" que lhe parece
provir das imagens. Sendo o objeto destas sempre particularizado, a inteligncia,
pelo prolongamento do conhecimento sensvel, atinge assim o singular, mas como o
singular apreendido diretamente s pelas potncias sensveis, trata-se ento s
de um conhecimento indireto. Pode-se ir mais alm nesta determinao e admitir que a
inteligncia, nesta atividade, faz uma concepo prpria do singular?

As precises dos comentadores: o conhecimento "arguitivo" de Cajetano. Cajetano


(in Iam Part. q. 86, I, VII) estima que do singular assim apreendido temos
s um conceito estranho, isto , que no o representa prpriamente, embora convenha
s a le.

Tomemos uma comparao. Se falamos da sabedoria infinita, pensamos em uma coisa da


qual no temos conceito prprio, mas smente um conceito inadequado. Assim tambm
para o singular. Embora compreendamos o que o singular universalmente considerado,
no concebemos o que em particular a "socrateitas", mas concebemos em ns o que
o "homem" e a "singularidade", e que o "homem", donde no subsiste por si,
argumos e conclumos por um conhecimento qiditativamente no representvel, a saber
a "socrateitas", que na realidade existe uma coisa singular diferente do universal
"homem". No nos representamos, pois, formalmente o singular, mas o conclumos em um
conceito estranho, que o compreende de algum modo e de maneira confusa, e depois de uma
85
reflexo sbre sua origem singular. O conceito de "Scrates" to semente o
conceito de "homem" colocado em relao, por uma espcie de raciocnio implcito,
com ste indivduo singular que percebo pelos sentidos.

O conceito prprio e distinto do singular em Joo de S. Toms. Joo de S.


Toms no adota esta maneira de ver (cf. De Anima, q. 10, art. 4). Para
le, se no se tem uma representao direta e adequada do singular, tem-se dle
contudo um conceito prprio e distinto. Sem isso estaramos na impossibilidade de
discernir uns dos outros os diversos indivduos e de ter juzos perfeitamente
determinados como stes: "Pedro homem", "Joo no foi o Cristo". Esta
opinio parece distinguir-se da precedente no fato de que, segundo ela, para que se
determine singularmente o conceito basta, quando percebida, a relao de origen com
referncia imagem, sem que seja necessrio apelar para uma espcie de raciocnio.
Resta que em ambas estas explicaes existe um conceito de Scrates que, em
referncia ao conhecimento sensvel, convm s a le.

Joo de S. Toms percebeu bem que sua teoria no deixava de apresentar


dificuldades. Como, com efeito, concili-la com a tese exposta, fundamental no
peripatetismo, do primado do conhecimento do universal? Se cada conceito deve ser
referido a uma imagem que representativa do singular, no haver, na origem, to
smente conceitos, embora indiretos, mas prprios e distintos do singular? Foi
respondido negativamente (loco citato) pois o que determina o conceito aquilo para o
qual tende o movimento do pensamento. Ora, ste movimento, na apreenso do objeto,
pode-se dirigir quer para o universal, quer para o singular que representa. No primeiro
caso, tem-se o conceito universal (e s le representa direta e adequadamente seu
objeto), no segundo caso, o conceito singular (que o representa s indireta e
inadequadamente). , pois, por uma atividade psicolgica contnua que se passa do
universal para o particular, tese esta que tem a vantagem de dar vida do esprito uma
atividade concreta, que a distino demais rgida das faculdades e de seus objetos
arrisca-se a esquecer. , definitivamente, um mesmo sujeito que pensa e que imagina,
capta o singular e apreende o universal: e o que era preciso separar, legitimamente
alis, deve ser em seguida retomado na unidade de uma s conscincia viva.

3. O CONHECIMENTO DA EXISTNCIA CONCRETA

O problema da percepo da existncia concreta, isto , da existncia dste ser


que percebe pelos sentidos, est em ntima conexo com o problema do conhecimento do
singular. De uma parte, com efeito, s o singular existe e, mais profundamente, o
que obsta a inteleco, tanto no existente como tal, quanto no singular, a
materialidade ou a potencialidade que o limita. De si o singular e o existente no so
de modo algum ininteligveis. So as condies nas quais se encontram implicados no
mundo que nos cerca que velam o olhar do esprito.

importante notar que o conhecimento da existncia, do qual se trata presentemente,


no a concepo universal ou qiditativa que a inteligncia pode formar desta
noo. Assim, tenho a idia comum do que existe. Mais fundamentalmente, preciso
reconhecer que em sua primeira aprenso, que a do ser, o esprito se refere
sempre existncia. O ser , com efeito, o que existe ou pode existir. Em seu
primeiro trabalho, a inteligncia envolve de algum modo a ordem do abstrato e a do
concreto e o que faz com que ela possa ir depois de um para outro. Atualmente,
porm, trata-se da apreenso de tal existncia determinada. Lembremos que ainda aqui
ns nos limitamos voluntriamente ao problema do conhecimento, pela inteligncia
humana, da realidade percebida pelos sentidos.
86

A tese comum do conhecimento do contingente. Esta questo da apreenso pela


inteligncia humana do concreto existente, deve ser compreendida na tese mais geral do
conhecimento, por tda inteligncia, do contingente (cf. Ia P, q. 86, a.
3).

O ser contingente aqule que no existe necessriamente ou que pode no existir.


Como conseguiremos atingi-lo? Convm, antes de tudo, colocar de lado um primeiro
conhecimento dste ser que se liga ao conhecimento qiditativo. Em todo ser
contingente, com efeito, h determinaes necessrias que resultam de sua forma, ou
da natureza das coisas, e que a inteligncia pode evidentemente conceber. Assim direi
que se Scrates se pe a correr, necessrio que se mova. Mas, como poderia
reconhecer que Scrates corre, sendo isto um fato contingente?

Na resposta que d aqui a esta questo, S. Toms recorre mesma explicao que
havia proposto para o singular: na realidade, os dois problemas se confundem, pois a
singularidade e a contingncia tm semelhantemente sua raiz na matria. Como o
singular, portanto, o contingente ser captado de modo direto pelo sentido e
indiretamente pela inteligncia: "Contingentia, prout sunt contingentia,
cognoscuntur directe quidem sensu, indirecte autem intellectu". Conseqentemente
na e pela reflexo sbre as imagens que se atinge a existncia concreta das coisas, a
qual diretamente se refere s ao sentido. possvel precisar ainda o modo dste
conhecimento concreto do existente?

Conhecimento de viso ou "per praesentiam". S. Toms explicou ste ponto


sobretudo a propsito de caso privilegiado do conhecimento que Deus tem do contingente
existente (cf. I, q. 14, a. 2). Em Deus deve-se distinguir dois tipos
fundamentais de saber: - a cincia da viso, que se relaciona ao que concretamente
existente (no passado, no presente ou no futuro); - a cincia de simples
inteligncia, que concerne aos possveis que jamais sero realizados.
Aproximativamente, esta distino corresponde que se encontra em nosso caso do
conhecimento abstrativo e da apreenso do concreto.

Em que exatamente diferem os dois saberes considerados? Joo de S. Toms (cf.


Logica, q. 23, a. 2) glosando certas passagens de S. Toms (em particular De
Veritate, q. 3, a. 3), concluiu que a cincia de viso se distingue da cincia
de simples inteligncia por lhe acrescentar uma diferena que est fora da ordem da
representao e que a presena da coisa: a coisa concebida de maneira abstrativa
vista como presente. Em linguagem moderna fala-se antes de intuio. Deve-se
notar, em favor desta interpretao, que o prprio S. Toms, desde que se trate
do conhecimento atual do contingente, fala sempre da presena da coisa: a cincia de
viso assim formalmente um conhecimento "per praesentiam".

O comentador que aqui seguimos aplica a precedente anlise ao caso do conhecimento.


Que modificao dever padecer o conhecimento abstrativo ou conceitual para atingir a
existncia como tal? A mesma que precedentemente: ser preciso que o conceito seja
referido coisa vista como presente nossa faculdade, ou que nosso conhecimento
termine nesta coisa, tendo-se especificado que a presena, de que aqui se trata,
concreta e no simplesmente representada: sei com efeito, que Deus est presente em
tda parte e contudo no posso, por ste fato, dizer que o vejo. Ser conveniente
precisar ainda que esta presena nossa faculdade supe a atividade do objeto sbre a
potncia e funda-se sbre ela mesma. Em ns, a ordem do conhecimento concreto
repousa, em ltima anlise, sbre a ordem da eficcia causal.
87

Concluso: o juizo de existncia. O juzo de existncia concreta, "o que percebo


atualmente existe", to smente explica, no nvel da operao perfectiva de
esprito, o que se acha dado na primeira apreenso, duplicada pela reflexo sbre o
conhecimento sensvel que est em sua origem.

Um objeto apresenta-se aos meus sentidos. Por abstrao eu o concebo


intelectualmente como algo que (noo confusa do ser material); mas
simultaneamente esta concepo aparece-me ligada ao objeto que captei como presente.
Se decomponho ste dado primitivo segundo os dois aspectos que me oferece, de sujeito
determinado e de existncia atual, vejo que a existncia atual convm a ste sujeito
e eu lha atribuo; pronuncio ento ste juzo: "isto existe", no qual afirmo o
carter concreto do ser percebido; ao mesmo tempo tomo conscincia da verdade de meu
pensamento enquanto ste se confronta com o objeto considerado.

Assim termina o ciclo total da atividade intelectual, a qual visa atingir o ser at sua
atualidade ltima e perfectiva, a existncia. Resta evidentemente efetuar, em uma
outra linha, todo o processo, precedentemente descrito, pelo qual a inteligncia
procura adquirir um conhecimento distinto da essncia.
88
O CONHECIMENTO DA ALMA POR SI MESMA

1. INTRODUO.

At agora elaboramos nossa teoria da inteligncia em funo do conhecimento das


coisas materiais. Mas certo que se encontra em ns um conhecimento privilegiado de
um ser que no puramente material: o sujeito que pensa. Na filosofia moderna ste
domnio do psiquismo foi objeto de uma ateno tda particular e o conhecimento do
"eu" tomou assim uma importncia crescente.

Para s considerar o aspecto metafsico desta questo, pode-se perguntar, com


diversos filsofos de nossa poca, se a percepo dste "eu" no seria o
princpio mesmo do saber. Princpio, alis, concebido de modo to diferente por um
Descartes, que nle v uma substncia espiritual, por um Maine de Biran, que o
identifica com o esfro motor voluntrio, por um Bergson, que o confunde com a
durao, por um Fichte, que dle faz dura atividade a priori e absoluta enquanto que,
em oposio, Kant afirma que, ontolgicamente considerado, o "eu" pertence ao
mundo inatingvel do nmero.

Teremos ocasio de voltar a estas posies para as apreciar segundo nosso ponto de
vista. Nossa inteno presentemente expor a doutrina de S. Toms na linha mesma
de sua problemtica e de seu desenvolvimento original. E s depois poder ser
verdadeiramente frutuoso um confronto corri outros pensamentos.

2. O PROBLEMA COLOCADO A S. TOMS

O problema do conhecimento da alma e de sua atividade ocupa um lugar secundrio na


psicologia de Aristteles. Esta manifestamente dominada pela preocupao de
valorizar, em reao contra o espiritualismo platnico, o primado do conhecimento das
coisas materiais.

Uma s questo neste domnio parece reter um pouco a ateno do filsofo, a da


inteligibilidade das potncias da alma. Se verdade que inteligvel s o que
est em ato, como ser possvel falar de um conhecimento direto das potncias?
Responde Aristteles que efetivamente s atingimos as potncias por intermdio de
seus atos. o que aparece no livro II do De Anima (c. 4, 415 a
14-22), onde est dito que a ordem da pesquisa psicolgica a seguinte: conhecimento
dos objetos, dos atos que os especificam e, por meio dles, das potncias que esto
no seu princpio. E igualmente o que se conclui da exegese de uma passagem embaraada
do livro III (c. 4, 429 b 27-430 a 9), de onde S. Toms tira que
s conhecemos nosso intelecto porque temos a percepo de nosso ato de inteleco:
"non enim cognoscimus intellectum nostrum nisi per hoc quod intelligimus intelligere".
A fortiori concluir-se- que s temos do "eu" um conhecimento indireto na e pela sua
atividade.

As elaboraes pessoais de S. Toms vo se situar na linha das preocupaes


precedentes, isto , face ao problema metafsico da inteligibilidade das potncias e
ulteriormente da alma intelectiva: problema abarcado por ste adgio e de cuja
demonstrao estar dependendo: "uma coisa cognoscvel na medida em que est em
ato e no na medida em que est em potncia... unumquodque cognoscibile est secundum
quod est in actu et non se, cundum quod est in potentia" (Ia Pa, q. 87, a.
1).
89

Sbre esta questo, todavia, o Doutor anglico devia tambm levar em conta um
outro modo de ver que remontava autoridade maior de S. Agostinho. Para ste,
sabe-se, a vida psquica aparecia bem menos tributria da percepo sensvel.
Assim, a alma se conhece diretamente por si mesma: "mens seipsam per seipsam novit"
(De Trinitate, l. 9, c. 3) . Neste texto, diversas vzes retomado por S.
Toms, encontra-se uma tradio espiritual aparentemente oposta ao intelectualismo
sensualista de Aristteles. Ser preciso optar entre as duas atitudes, a menos que
se revele possvel uma conciliao superior das duas teses.

Advinha-se sem custo que nesta discusso vai entrar em jgo a natureza profunda ou a
estrutura do ser humano. le s um esprito encarnado? No teria, ao menos em
estado latente, as virtualidades de um esprito puro? Tda a significao do homem
est aqui engajada. S. Toms que, desde o incio aqui se colocara na dependncia
do peripatetismo, parece ter hesitado ao tocar as doutrinas da tradio crist. Mais
acolhedor em seus primeiros escritos, ser mais reservado na Summa. Vamos segui-lo
nestas tomadas de posies sucessivas marcadas pelos textos maiores do De Veritate
(q. 10, a. 8) e da Ia Pa (q. 87, a. 1) . A soluo trazida ao problema
do conhecimento da alma separada por si mesma (Ia Pa, q. 89, a. 1) acabar por
nos fixar em suas vistas profundas. O estudo comparativo assim empreendido, ter o
intersse suplementar de nos fazer captar, em um caso concreto, como se comporta nosso
Doutor quando Aristteles e S. Agostinho parecem se opor.

3. A EXEGESE DE S. TOMS

Trata-se de se saber se a alma intelectiva (mens) se conhece diretamente pela sua


essncia ou por intermdio de "species" abstradas das imagens que a atuaram:
"Utrum mens se ipsam per essentiam cognoscat vel per aliquam speciem?" Duas sries de
objees colocam o problema em tda sua acuidade: uma srie de 16 objees em favor
da tese aristotlica do conhecimento indireto "per speciem" e outra de 11, no
sentido da tese agostiniana do conhecimento "per essentiam" (De Verit., q. 10,
a. 8).

No corpo do artigo, comea S. Toms por distinguir dois tipos de conhecimento da


alma por si mesma: um, pelo qual a alma se conhece naquilo que tem de prprio
(conhecimento individual e concreto); outro, pelo qual a alma se conhece naquilo que
tem de comum com as outras almas (conhecimento universal e abstrato). Deixemos de lado
ste ltimo conhecimento, que interessa s tcnicas elaboradas da cincia, para
ficarmos com a percepo primitiva e experimental da alma.

Aqui ainda devemos distinguir o caso do conhecimento atual, no qual a alma se conhece
por meio de seus atos, como o quer Aristteles, e o caso do conhecimento habitual
conforme o qual convm afirmar com S. Agostinho que a alma se conhece por sua
essncia. Precisemos stes dois pontos.

- Conhecimento atual da alma por si mesma.

" nisto que cada um percebe que tem uma alma, vive ou existe: porque sente, faz ato
de inteligncia, ou exerce atos vitais desta ordem". Para Aristteles h
incontestvelmente nisto um dado primitivo. em e por meio de minha atividade psquica
que me conheo. Vindo a cessar esta atividade, a conscincia do "eu" encontra-se,
por ste fato mesmo, abolida. Mas isto justifica-se igualmente a priori pela teoria
da inteligibilidade precedentemente proposta: uma coisa inteligvel na medida em que
90
est em ato. Ora, a inteligncia, antes da recepo da ,(species", est em
potncia na ordem dos inteligveis. Ora, s ser inteligvel por si mesma e s se
tornar tal quando atuada por uma "species". Dever-se- concluir que por
intermdio desta que a alma se conhece atualmente.

- Conhecimento habitual da alma por si mesma.

Aqui no se requer a mediao de nenhuma "species": basta a presena da alma a si


mesma: "pelo fato de a sua essncia lhe estar presente, a alma tem a possibilidade de
passar ao conhecimento de si". Assim como aqule que tem o hbito de uma cincia, o
matemtico, por exemplo, pode imediatamente e por meio de seus recursos prprios passar
ao exerccio do seu saber, assim tambm a alma pode produzir o conhecimento de si.

Qual exatamente a dimenso desta afirmao? Apressemo-nos em afastar uma


interpretao que seria errada. O conhecimento habitual, de que aqui se trata, no
de modo algum atual, nem consciente. Nada tem a ver com esta percepo surda e
contnua de si que acompanha tda a nossa vida psquica. Estamos presentemente ao
nvel das estruturas profundas da alma. Aqui no se duvida que o Doutor anglico
tenha querido aproximar o conhecimento humano do conhecimento dos espritos puros. De
si a alma espiritual inteligvel; por outro lado, est evidentemente presente a si
mesma enquanto inteligente; h, pois, radicalmente tudo o que preciso para
justificar um ato de conhecimento de si mesma. Mas as necessidades preliminares do
conhecimento abstrativo fazem obstculo realizao atual, imediata e permanente,
dste estado latente de conhecimento de si.

Existe, na presente condio de unio com um corpo, uma atuao possvel dste
conhecimento habitual? Ou se deve reconhecer que o conhecimento atual, do qual
anteriormente se falou, no seno uma atuao parcial e derivada do dito
conhecimento habitual? S. Toms no explcito sbre stes pontos. As
respostas a vrias dificuldades do artigo (notadamente: ad 1 in contrarium)
sugerem-nos, contudo, que o conhecimento atual, embora s relativo existncia e
no essncia da alma, est no prolongamento do conhecimento habitual: "a alma
intelectiva conhece-se a si mesma pelo fato de existir nesta alma o que preciso para
que possa passar ao ato de se conhecer atualmente, percebendo que existe".

Na Summa Theologica v-se, de modo claro, um certo enrijecimento de S. Toms no


sentido de uma aplicao mais estrita dos princpios do peripatetismo (Ia, Pa, q.
87. a.1). O corpo do artigo conclui s pelo conhecimento da alma pelo seu ato:
"non ergo per essentiam suam sed per actum suum se cognoscit intellectus noster". A
razo desta afirmao nos conhecida: uma coisa inteligvel na medida em que
est em ato; ora, na ordem das coisas inteligveis, nossa inteligncia pura
potncia. Como o faz no De Veritate, S. Toms distingue, em seguida, para a
alma, um conhecimento particular (experimental) e um conhecimento universal
(cientfico).

Lendo stes textos, no podemos nos furtar de perguntar se o conhecimento habitual e


direto da alma teria sido aqui positivamente eliminado. Parece que se deva responder
negativamente. Se, com efeito, pesarmos bem os trmos com os quais o nosso Doutor
caracteriza presentemente o conhecimento particular da alma, constataremos que a razo
que o fundamenta , como antes, a simples presena da alma a si mesma: "ad primam
cognitionem de mente habendam, sufficit ipsa mentis praesentia". Por outra parte, o
trmo dste conhecimento aqui tambm a existncia da alma e de nossas atividades e
no sua natureza. O indivduo particular percebe que tem uma alma intelectiva pelo fato
91
de que toma conscincia de sua atividade intelectual: "percipit se habere animam
intellectivam ex hoc quod percipit se intelligere". A interveno do ato mediador
exigida, mas a razo ltima da conscincia de si parece ser esta presena inteligvel
da alma a si mesma, significada pela noo do conhecimento habitual.

O caso da alma separada (cf. S. Th. Ia Pa, q. 89, a. 1). Considerando


que, em nossa condio presente de unio a estrutura profunda da alma intelectiva se
encontra de certo modo velada, seria evidentemente desejvel poder representar o estado
da alma quando separada do corpo. S. Toms, com sua ousadia de metafsico,
esforou-se por realizar tericamente esta experincia (cf. Ia Pa, q. 89). O
que disse a sse respeito vai nos permitir melhor compreender a natureza de nossa vida
intelectiva.

Num primeiro instante, encontramo-nos frente a um dilema. Ou a alma, como querem os


platnicos, une-se ao corpo apenas de maneira acidental, reencontrando assim, quando
separada do corpo, sua condio de esprito puro imediatamente adaptado aos
inteligveis; mas nesta hiptese no se v qual a razo da unio, que aparece como
desvantajosa alma; ou, ento, a unio natural e, neste caso, parece
impossvel reconhecer-lhe qualquer atividade cognoscitiva depois da morte. S. Toms
escapa desta dificuldade admitindo para a alma dois tipos de atividade intelectual,
correspondendo a seus dois modos diferentes de existir, o de unio a um corpo e o de
separao do mesmo. Unida ao corpo, a alma intelectiva conhece por converso s
imagens. Separada dle, conhece maneira dos espritos, por converso aos objetos
que de si so inteligveis. Mas, precisa nosso autor, e o que d tda a
dimenso de sua doutrina, o modo de conhecer como o de existir do primeiro tipo so
naturais alma, enquanto que o modo de conhecer e o modo de existir do segundo devem
ser chamados preternaturais:

"modus intelligendi per conversionem ad phantasmata est


animae naturalis sicut et corpori uniri, sed esse separatum a
corpore est praeter rationem suae naturae, et similiter
intelligere sine conversione ad phantasmata est ei praeter
naturam".

O estado de unio e a vida que lhe corresponde seriam definitivamente a condio


melhor para o homem. Uma dvida subsiste porm. Como pode a alma, que
radicalmente capaz de pensar maneira dos espritos puros, tirar proveito de um modo
inferior de conhecer? Porque a alma, explica S. Toms, que a ltima das
substncias intelectuais, no atingiria, s pelo modo de inteleco prprio s
substncias espirituais, conhecimentos suficientemente distintos e precisos. E assim,
conclui, bom para ela estar unida a um corpo e encontrar seu objeto comum sombra das
imagens. Resta-lhe, porm, que lhe possvel existir no estado de separao e
ter ento um outro modo de atividade intelectual.

Tal , parece, a ltima palavra da filosofia de S. Toms sbre o problema da


unio da alma e do corpo e das conseqncias que da decorrem quanto atividade do
homem.

4. CONCLUSES E COROLRIOS

Nossa vida presente , portanto, naturalmente, a vida de um esprito encarnado, mas


de um esprito cujas estruturas profundas so as de um esprito puro. Enquanto
esprito encarnado, nossa alma se conhece por meio de seus atos, isto , "per
92
species". Mas em sua complexo de puro esprito, encontra-se objetivamente e, de
maneira imediata, presente nossa potncia intelectual: o conhecimento habitual de
que fala o De Veritate. Basta que se produza um ato de conhecimento abstrativo, e
nossa alma inteligente capta-se imediatamente, no em sua natureza mas em sua
existncia, como princpio do conhecimento considerado. Tudo leva a crer que assistimos
a uma atuao parcial desta aptido fundamental de se captar a si mesma que o
conhecimento habitual revela: "percipit anima se intelligere". Radicalmente, seria,
pois, enquanto esprito que a alma toma conscincia de si. Rompido os elos que a ligam
ao corpo, perceber-se- diretamente como objeto, e sua estrutura pretenatural, mas
efetiva, de esprito separado manifestar-se- plenamente. Tais so as perspectivas
de conjunto nas quais convm interpretar a doutrina de S. Toms sbre o conhecimento
da alma por si mesma.

At onde se estende este conhecimento de si?

Com nossa existncia captamos, evidentemente, nossa atividade interior, mas podemos
dizer que atingimos nossas faculdades? S. Toms (q. 87, a. 2) precisa que s
sua cxistncia pode ser diretamente captada: tenho conscincia de pensar ou de querer,
mas as naturezas da inteligncia e da vontade, como a da alma, permanecem-me
escondidas.

Convm estender atividade sensvel esta conscincia de si? Os atos de nossos


sentidos no esto evidentemente presentes nossa alma espiritual do mesmo modo como
os da inteligncia ou da vontade. certo porm, S. Toms o reconhece, que nos
percebemos como princpio de nossa vida sensitiva: "percipit anima se sentire".
Nosso psiquismo inferior est assim ligado ao mesmo "eu" ao qual se liga nosso
psiquismo superior espiritual: o "eu" que sente o mesmo que pensa. Se, pois, a
natureza de nossa vida sensitiva no diretamente percebida, deve-se contudo manter
que a realidade e o princpio desta vida so atingidos por reflexo intelectual. A
bem dizer, s existe o "eu" para uma tal conscincia e em relao a ela que todo
o resto de nosso psiquismo torna-se prpriamente nosso.

Algumas aproximaes com as concepes mais modernas permitem-nos melhor apreciar a


posio precedente.

Com Descartes, e a partir dle, a tendncia mais constante foi a de se dar o primado
ao conhecimento reflexivo e, por conseguinte, de fazer do "eu", e de suas
atividades, o objeto privilegiado do esprito humano, ficando assim o objeto exterior
atingido apenas em segundo lugar e terminando mesmo por se confundir com a conscincia.
Convergem, neste ponto, os trs grndes sistemas da metafsica francesa acima
evocados: idia clara e distinta por excelncia (Descartes), o fato primitivo
(Maine de Biran) e os dados imediatos (Bergson): o "eu" substncia pensante no
primeiro caso, esfro motor voluntrio no segundo e durao no terceiro. Em todos
sses sistemas, a intuio pra em um objeto interior conscincia. No idealismo
alemo, o princpio primeiro ainda o "eu" captado reflexivamente, mas ste "eu"
perde aqui tda consistncia substancial, mesmo aquela suposta por um sujeito fluente e
transitrio, para no reter outra realidade alm da posio primria e incondicionada
de um ato de esprito.

Com o aristotelismo tomista, ao contrrio, o objeto prprio da inteligncia humana


a coisa material, exterior ao esprito. Doutrina mais modesta que as precedentes e
que tem o encargo de explicar a assimilao pelo esprito de um dado que lhe
estranho, mas tendo a inaprecivel vantagem de ser mais conforme os fatos. Assim a vida
93
do esprito antes exterioridade. Mas o esprito humano tambm capaz de uma
certa interioridade. A atividade intelectual imanente e reflexiva. Mais
profundamente, existe em ns com que fundar uma vida pura de esprito, tornando-se o
"eu", para o pensamento, seu objeto imediato. Em nossa condio atual, esta ltima
vida realiza-se s de maneira muito reduzida. Na condio de alma separada, ser
total, mesmo permanecendo sempre imperfeita. A metafsica da conscincia primitiva e
privilegiada do "eu" no sem fundamento, mas a de S. Toms, mais modesta,
tambm mais objetiva e mais compreensvel.

5. APNDICE: O CONHECIMENTO DAS REALIDADES


SUPERIORES

Em seu tratado sinttico da Suma Teolgica, S. Toms distingue os modos do


conhecimento intelectual e humano conforme o grau de elevao dos objetos que pode tomar
em considerao: as coisas materiais que esto abaixo dle, a alma que est no seu
nvel, as substncias espirituais que se encontram mais elevadas. Resta-nos dar
algumas indicaes sbre ste ltimo tipo de conhecimento. S. Toms considera
sucessivamente a caso do anjo (q. 88, a. 1 e 2) e o caso de Deus (q. 88,
a. 3).

O conhecimento do anjo pelo homem. Nos artigos indicados, a exposio da doutrina


v-se complicada pela discusso das opinies de diversos comentadores, Averris em
particular, para quem a felicidade mesma do homem estaria no conhecimento das substncias
separadas. Concluiu-se positivamente: 1. que no estado presente no podemos captar
por meio de nosso intelecto as substncias imateriais em si mesmas; 2. que
possvel, pela analogia das coisas materiais, elevarmo-nos a um certo conhecimento
indireto .e imperfeito de sua natureza. Tudo isto claro para quem admite a teoria
geral precedentemente exposta. claro, por outro lado, que no temos a experincia
direta dos espritos. Em seu tratado dos anjos, S. Toms estudar o problema da
comunicao que pode haver entre os espritos puros e chegar a concluses positivas.
Mas o que ento diz no pode convir ao caso da alma humana em seu estado presente de
encarnao.

O conhecimento de Deus pelo homem. Se no podemos atualmente captar, por meio de


nossa inteligncia, as substncias espirituais criadas, claro que menos ainda
podemos atingir um conhecimento prprio e direto de Deus. Assim nossa inteligncia
no a faculdade do divino.

Contudo, a partir das coisas sensveis, por analogia, e segundo a via de


"eminncia" e de "remoo", que os telogos conhecem, ser-nos- possvel chegar
por ns mesmos a um certo conhecimento de Deus: de sua existncia e, muito
imperfeitamente, de sua natureza e de suas perfeies. Ao metafsico compete precisar
como se pode chegar a isto. Baste-nos aqui abrir, para nossa inteligncia, essas
perspectivas superiores.
94
CONCLUSO: POSIO DA TEORIA DO
CONHECIMENTO INTELECTUAL EM S. TOMS

1. INTRODUO.

Vamos retomar ainda uma vez em seu conjunto a concepo de S. Toms sbre o
conhecimento intelectual, considerando-o primeiro em suas condies histricas,
depois em relao com a filosofia contempornea.

2. POSIO HISTRICA DA DOUTRINA TOMISTA.

No h o que duvidar, S. Toms opta fundamentalmente pela teoria do conhecimento


de Aristteles, considerada como uma via mdia entre o sensualismo de Demcrito e a
teoria platnica das idias, precisando-se que sobretudo face a Plato que toma
posio.

Todavia, o Doutor anglico no podia negligenciar o que fra pensado desde o


Estagirita. Dois conjuntos principais de especulaes aqui se lhe ofereciam: - o das
doutrinas agostinianas, especialmente para as teses do conhecimento "nas razes
eternas", e do conhecimento da alma por si mesma; muito engenhosamente adaptadas, estas
concepes vieram inserir-se na sntese peripattica, qual conferiram uma
profundidade nova: - o das doutrinas rabes, relativas sobretudo questo da
separao do intelecto, contra as quais S. Toms se ops.

Muito ligada s condies de seu tempo, sua doutrina no deixa de aparecer como uma
elaborao pessoal bastante notvel: o aristotelismo, mas genialmente renovado e
colocado em dia.

Entre as teorias onde se sente mais a marca prpria do Doutor, enumeraremos as da


imaterialidade, do objeto da inteligncia, da fase ativa da inteleco, do verbo, da
conscincia da alma, onde Aristteles manifestamente ultrapassado. necessrio
ainda notar o alargamento da doutrina da inteligncia no sentido dos domnios superiores
do conhecimento anglico e do conhecimento divino, onde S. Toms teve muito a
criar: agora todo o mundo da vida do esprito, desde o mais nfimo, o nosso, at
a vida de Deus, que hierrquicamente se desvenda aos nossos olhos: horizonte grandioso
onde se compraz de modo claro o olhar daquele que foi antes de tudo o gnio das grandes
snteses.

3. SITUAO COM RELAO AO PENSAMENTO


MODERNO.

A atitude mais caracterstica do pensamento moderno face teoria da inteligncia


incontestvelmente o idealismo. Inaugurado, em seus fundamentos, por Descartes que
assinalou inteligncia, como objeto primeiro, o "eu" pensante, o idealismo
proliferou segundo uma admirvel variedade de concepes. Ainda incompleto em Kant
que reconhece para alm do fenmeno a persistncia de um mundo transcendente, tomar
com seus sucessores tda sua consistncia de filosofia da pura interioridade.

Indo origem de todo ste movimento de pensamento, vemo-nos face a esta


dissociao radical do conhecimento sensvel e do conhecimento intelectual, ou dos
objetos dos sentidos e dos objetos transcendentes, dissociao esta operada, pela
primeira vez, por Plato. Nos. so conhecimento, verdade, aparece primitivamente
95
como a percepo das coisas sensveis, mas nestas ltimas h perptua mudana e
infinita diversificao, o que no poderia satisfazer nossa inteligncia, faculdade
do imutvel e do idntico: o mundo do pensamento , pois, diverso do mundo da
matria, e voltado para seus prprios objetos, ou para si, o mundo do esprito
bastar-se- a si mesmo.

Ora, foi precisamente a esta diviso que se recusou Aristteles e os que o seguiram:
o necessrio e o mutvel, o objeto dos sentidos e o da inteligncia, so-nos dados
solidriamente e ligados um ao outro. um fato de experincia: "magis experimur",
dir S. Toms. A inteligncia recebe assim seu objeto do dado sensvel.

Esta explicao da vida do pensamento mais complicada, em certos aspectos, que a


do idealismo que, numa primeira considerao, parece correr bem; mas muito mais
acolhedora, onde nem o corpo nem a alma, nem a matria nem o esprito so
negligenciados, e onde nossa condio de homem, no limite dos dois mundos, encontra a
sua mais objetiva definio.
96
A VONTADE

1. INTRODUO. NOO DE VONTADE.

A apetncia representa, ao lado do conhecimento, um dos grandes aspectos da nossa vida


psquica. Conhecer, tender para, com tdas as nuances de afetividade que esta ltima
expresso pode implicar, amor, desejo, gozo, etc.... tais so, com efeito, os
fenmenos mais caractersticos desta vida.

Recordemos as principais concluses s quais j chegamos.

2. DIVISES GERAIS DA AFETIVIDADE

No tratado que lhe consagrado na Summa Theologica (Ia Pa, q. 80 a 83), a


vida afetiva organizada nos quadros de uma metafsica da ao sendo ste o
princpio geral ao qual se refere: a tda forma segue-se uma certa inclinao:
"quamlibet formam sequitur aliqua inclinatio".

Assim: nos sres desprovidos de conhecimento encontra-se, seguindo-se sua forma


natural, uma inclinao ou um apetite chamado natural, appetitus naturalis, - nos
seres cognoscentes, seguindo-se forma apreendida, um apetite chamado animal, ou
antes, por se exprimir em um ato, elcito, appetitus elicitus.

Cada faculdade apetitiva tem, conseqentemente, um apetite natural correspondente


sua natureza de faculdade e um apetite elcito que corresponde forma que
conhecida.

3. EXISTNCIA E NATUREZA DA VONTADE.

A existncia de uma potncia espiritual de apetncia, distinta das potncias


sensveis de mesma ordem, uma conseqncia imediata dos princpios agora
formulados. Com efeito, pelo fato de existir dois gneros de potncias de conhecer,
os sentidos e a inteligncia, conclui-se que h dois gneros de potncias
apetitivas: as potncias apetitivas sensveis, que se seguem ao conhecimento
sensvel, e a vontade, que se segue ao conhecimento intelectual.

"Impe-se que em tda natureza intelectual haja uma


vontade. O intelecto, com efeito, atuado pela forma
inteligvel, enquanto faz ato de inteleco, como a coisa
da natureza atuada, em seu ser natural, por sua prpria
forma. Ora, a coisa da natureza tem, em virtude da forma
que a determina em sua espcie, uma inclinao para as
operaes e para o fim que lhe convm. Semelhantemente
convm que forma inteligvel se siga, no que faz ato de
inteligncia, uma inclinao para suas operaes e seu fim
prprio. Esta inclinao, na natureza intelectual, no
outra coisa que a vontade, que o princpio das
operaes que existem em ns, pelas quais o que faz ato de
inteligncia age em vista de um fim: o fim, com efeito, ou
o bem, o objeto da vontade. Em todo ser inteligente
deve-se, em conseqncia, encontrar tambm uma vontade".
97
Cont. Gent.,
IV, c. 19

De nada serve objetar a esta distino da vontade com relao s potncias


apetitivas sensveis, que o fato de ser conhecido para o objeto desejado smente uma
diferena acidental, no afetando, portanto, sua natureza (Ia Pa, q. 80, a.
2, ad 1 e 2). Pelo contrrio, enquanto apreendido que o objeto provoca o
movimento afetivo, e no a mesma coisa ser apreendido pelos sentidos ou pela
inteligncia: pelos sentidos, o objeto captado como bem particular, pela
inteligncia atingido sob a razo universal de bem. Ainda que se dirija para coisas
que necessriamente s podem existir de modo singular, a vontade , pois, como a
inteligncia, uma faculdade do universal.

Com ste carter, nossa potncia apetitiva espiritual deve igualmente ser nica.
Assim, enquanto a afetividade sensvel se divide, conforme o bem considerado fr
facilmente ou dificilmente atingido, em duas faculdades, - concupiscvel e
irascvel, - a vontade compreende, em seu objeto, estas duas modalidades.
Semelhantemente, a vontade relaciona-se, ao mesmo tempo, com o fim (bonum honestum) e
com os meios (bonum utile), e ainda ela que tem o gzo do bem (bonum delectabile)
quando ste possudo.

4. PRESENA DO AMADO NAQUELE QUE AMA.

Resta-nos resolver uma dificuldade para justificar a existncia da inclinao


voluntria. Todo ato de uma potncia face a um objeto supe, assim parece, uma unio
preliminar com ste objeto que o determina. No caso do conhecimento, a especificao
do ato se d graas a uma semelhana que torna o objeto presente na prpria
faculdade. Parece que no pode acontecer o mesmo com a vontade, pois esta faculdade
atrada pelo objeto enquanto este existe fora dela; falar, neste caso, em semelhana,
no ser assemelhar, de modo completamente indevido, nossa potncia apetitiva s
nossas faculdades de conhecimento? Para falar com propriedade, no h, S. Toms
o reconhece, semelhana do objeto na potncia apetitiva. Nela se encontra, todavia,
uma certa adaptao de ordem afetiva (coaptatio) que resulta do movimento primeiro da
faculdade ou do amor. Percebendo um objeto que me convm, ponho-me a ama-lo, e
neste amor e por ste amor mesmo minha vontade se conforma, de certo modo, a ste
objeto que se torna efetivamente presente em mim.

"Assim, pois, o que amado no smente se encontra na


inteligncia do que o ama, mas ainda em sua vontade, de
maneira diferente, porm, em um e outro caso. Na
inteligncia encontra-se segundo uma semelhana
especfica; na vontade do amante, como o termo do movimento
no princpio motor, o qual se v adaptado pela
convenincia e proporo que estabelece com le; assim no
fogo h, de certo modo, o lugar superior, lugar prprio
do fogo, sob a razo de leveza, enquanto ste elemento diz
proporo e convenincia com um tal lugar."

Cont. Gent.,
IV, c. 19

Dupla presena em ns das coisas que atingimos cone nosso


esprito: por assimilao vital em nossa faculdade de
98
conhecer, por adaptao afetiva na nossa vontade,
denunciando uma e outra destas presenas, por seu modo
caracterstico, o que h de especfico em cada uma de nossas
operaes superiores. Ser proveitoso, para aprofundar
mais a questo da adaptao do apetite ao objeto amado,
atender para as elucidaes dadas pelos telogos a
propsito da processo do Esprito Santo. (Cf.
principalmente Joo de S. Toms, Curs. Theol.,
IV, disp. XII, a. 7)

5. OS ATOS DE VONTADE.

nica potncia apetitiva na ordem espiritual, pode a vontade, como alis a


experincia o manifesta, encontrar-se no princpio de uma grande variedade de atos,
amor, desejo, escolha, gzo, etc. S. Toms, na parte moral de sua obra,
aplicou-se a classificar stes atos nos quadros gerais de uma teoria da atividade
racional. Cada movimento particular de apetncia vem em dependncia de um ato de
conhecimento que o comanda, de modo a se obter assim uma srie de pares, seis ao todo,
que integram o ato humano completo. Deixando moral o estudo detalhado de todo ste
organismo, limitar-nos-emos aqui a enumerar o que pertence vontade.

Considerando-se o fim a se conseguir, encontram-se sucessivamente o desejo ineficaz


(simplex volitio) ou a simples complacncia no bem apresentado ao esprito, e a
inteno, tornada eficaz, dste bem (intentio).

Considerando-se os meios, intervm na ordem da eleio, antes de tudo, os


consentimentos (consensus) dados aos diversos meios que se apresentam como podendo
assegurar a possesso do bem desejado; depois a vontade, na eleio (electio),
escolhe um dstes meios. Vem ento a execuo que supe a aplicao pela vontade
(usus activos) das outras faculdades na obra a se executar; e quando o fim foi obtido,
resta vontade comprazer-se no bem possudo (fruitio). Por mais sca que seja,
esta nomenclatura j basta para dar uma idia-da fineza de anlise e do vigor da
construo que S. Toms soube trazer ao estudo de nossa vida afetiva.
99
A VONTADE E AS OUTRAS FACULDADES DA ALMA

1. INTRODUO.

A atividade da vontade, acabamos de perceber, est em pleno corao de nossa vida


psquica. Por ste fato, ela tem mltiplas relaes com nossas outras faculdades.
Smente duas questes prendero aqui nossa ateno.

2. A SUPERIORIDADE DA INTELIGNCIA SBRE A


VONTADE.

Inteligncia e vontade, que so duas potncias unidas, agem igualmente, uma sbre
a outra como veremos. Mas o que antes preocupa S. Toms saber qual das duas tem a
superioridade (cf. Ia Pa, q. 82, a. 3; De Verit q. 22 a. 11).

Numa primeira considerao, parece que a vontade detm ste primado. Com efeito:
1. , a dignidade de uma faculdade depende, ao que parece, da dignidade de seu
(objeto. Ora, o objeto da vontade, o bem, que significa o ser na sua plenitude de
perfeio, e concluindo em particular o ato ltimo de existir, mais perfeito que o
objeto da inteligncia, o verdadeiro, que mais abstrato; 2. , pondo em movimento
a inteligncia, a vontade parece domin-la; tem, com efeito, por objeto o bem ou o
fim que a primeira das causas; 3. , no plano sobrenatural, fundando-nos sbre o
testemunho de S. Paulo, devemos dizer que o hbito mais perfeito, a caridade,
encontra-se na vontade: "maior autem horum est caritas..." Ora, convm que haja
proporo entre os hbitos e as faculdades que les determinam. A vontade, sujeito da
caridade, no pode deixar de ser, portanto, a mais perfeita das potncias.

Todavia, para S. Toms, absolutamente falando, a inteligncia superior


vontade (Cf. o comentrio de Caetano sbre o art. citado e Joo de S. Toms,
De Anima, q. XII a. 5). Sua argumentao pode ser condensada nestas duas
frmulas:

- Uma coisa tanto mais elevada, quanto mais simples e


mais abstrata. . . "quanto autem aliquid est simplicius et
abstractius, tanto, secundum se, est nobilius et altius".

- Ora, o objeto da inteligncia mais simples e mais


absoluto que o da vontade... "Objectum enim intelectus
est simplicius et magis absolutum quam objetum voluntatis."

A primeira destas frmulas apenas uma aplicao da doutrina geral da imaterialidade


como fundamento do conhecimento: quanto mais imaterial o modo de um objeto, tanto mais
atual e perfeito, e tanto mais a potencialidade que a le se relaciona purificada de
potencialidade e perfeita. Ora, segunda frmula, o objeto da inteligncia, que a
"qididade", mais abstrato e mais imaterial e, portanto, mais absoluto e mais elevado
que o da ;vontade, o bem, que envolve o ser em tda a sua realidade concreta.

No De Veritate (q. 22, a. 11) S. Toms faz valer uma outra razo.
Colocando-se sob o prisma do modo da gerao, de onde resulta para o ato intelectual
uma tomada de posse mais ntima do objeto, conclui pelo primado da faculdade de
conhecer. O objeto que conhece, com efeito, torna-se presente na prpria faculdade de
conhecer, enquanto que o objeto que desejo permanece fora de mim. Ora, mais digno
100
possuir em si algo de eminente que estar relacionado do exterior com a perfeio desta
coisa: "perfectius autem est... habere in se nobilitatem alterius rei, quam ad rem
nobilem comparari extra se existentem". A assimilao cognitiva , pois, mais
perfeita que a unio afetiva.

Com uma perfeita lgica, no tratado da felicidade (cf. Ia, IIa, q. 3 a.


4), S. Toms deduzir que a felicidade soberana consiste formalmente no em um ato
de vontade, ou na fruio afetiva que s uma conseqncia, mas no conhecimento
mesmo ou na viso de Deus. A deleitao da vontade , todavia, um acompanhamento
necessrio e essencial da tomada de posse, pela nossa faculdade de conhecimento, de
nosso fim ltimo.

Seria por demais longo entrar nas discusses que surgiram em trno desta questo do
primado de uma ou outra de nossas faculdades espirituais. A escola escotista pela
superioridade da vontade e muitos seguem esta via. Os argumentos dados acima
permanecem, contudo, em sua firmeza metafsica. Est fora de dvida, por outro
lado, que adotando ste modo de ver, S. Toms foi fiel a Aristteles que, bem
claramente, em seus estudos sbre a felicidade soberana (tica a Nic. 1, 10),
d o primado ao conhecimento, sendo o prazer um elemento de acrscimo que se junta ao
ato de contemplao "como a beleza para os que esto na flor da juventude".

H todavia um caso em que a vontade arrebata inteligncia o primado, quando o


objeto que atinge mais elevado do que o que captado pela inteligncia. Ora,
prticamente isto se realiza para todos os objetos que esto acima da alma,
especialmente, para Deus; donde se conclui, para esta vida, pelo primado da caridade.
Definitivamente, com S. Toms, concluir-se-: "o amor de Deus melhor que o
conhecimento que dle se tem; pelo contrrio, oconhecimento das coisas corporais
melhor que seu amor; absolutamente falando, todavia, a inteligncia mais nobre que
a vontade". (Cf. Texto XIII. Superioridade da inteligncia sbre a vontade,
pg. 226).

3. A MOO DA VONTADE SBRE AS OUTRAS


POTNCIAS.

Na ordem da especificao, como acabamos de ver, a vontade determinada' ela


inteligncia, mas na ordem da eficincia ou do exerccio, a vontade que move a
inteligncia e, mais universalmente, encontra-se no princpio da atividade de tdas
as outras faculdades (Cf. Ia P, q. 82, a. 4).

A razo que em todo sistema de potncias ordenadas, aquela que tem por objeto o bem
universal motora das potncias que s se relacionam com bens particulares. Assim,
para tomar o exemplo aqui proposto, o rei que cuida do bem de todo o reino pe em
movimento, por meio de suas ordens, cada um dos que esto prepostos nas diversas
cidades. Ora, a vontade tem por objeto o bem e o fim considerados universalmente,
enquanto as outras potncias visam s os bens que lhes so prprios. A vontade,
portanto, de si, e a experincia o confirma, pe em movimento as outras potncias.

Em primeiro lugar, e de modo imediato, ste impulso se exerce sbre a inteligncia e


sbre seus atos. Considerando-se o bem universal, o verdadeiro aparec smente como
um bem particular, o bem da inteligncia. Assim, a vontade utiliza a inteligncia
para seus fins: o que se produz, ns o vimos, no ato humano onde, sob a presso
da inteno do fim, a inteligncia pe-se em busca dos meios prprios que podem
trazer o fim, julga sbre quaf deva ser preferido.
101

Com o concurso do juzo imperativo da inteligncia, "imperium", a vontade pe


ento em movimento as potncias de conhecimento sensvel, de apetncia e de
motricidade, cuja interveno pode ser requerida nas condies da ao. ste poder
da vontade sbre as outras faculdades no ser sempre absoluto, podendo outros
fatres intervir. Assim, sbre os sentidos internos ou as paixes, que esto
submetidas a influncias corporais, a vontade no tem mais que um poder poltico.

Um lugar parte, entre os componentes da atividade voluntria, deve ser dado ao


acompanhamento passional sensvel. Nossa vontade mesma a sede dos sentimentos
espirituais puros, tais como o amor de Deus, ou a paixo da verdade. Mas, assim
como nossa vida intelectual estreitamente solidria com nossa atividade de
conhecimento sensvel, tambm nossa vontade est ligada sensibilidade at em seus
atos mais elevados. Ao moralista compete determinar, com preciso, as leis de ao
e de reao dos dois podres e suas conseqncias para a conduta do homem.
Basta-nos aqui ter lembrado que depois de haver distinguido as faculdades psicolgicas e
seus atos, convm, para a sntese concreta da vida, tudo retomar na unidade.
102
O LIVRE ARBTRIO

1. DELIMITAO DA NOO PSICOLGICA DE


LIBERDADE.

Sendo o trmo liberdade empregado em sentido extremamente diverso, importa, para


circunscrever nosso problema, bem escolher aqule, entre tantos, que deve aqui nos
reter.

Numa primeira aproximao, o ato livre manifesta-se como um ato que no


constrangido: sou livre para fazer isso porque nada me obriga. Uma tal presso pode-se
exercer seja no domnio da ao exterior, seja no domnio do ato interno do prprio
querer.

ausncia de constrangimento exterior corresponde uma liberdade de ao que recebe


diversos nomes segundo o gnero de atividade qual se refere: liberdade fsica
(poder de se mover corporalmente); liberdade civil (poder de agir como se quer no
quadro de uma sociedade) ; liberdade poltica (poder de participar, conforme
modalidades constitucionais previstas, do govrno do estado); liberdade de
conscincia (poder de exprimir suas convices em pblico).

ausncia de constrangimento interior necessitante, corresponde a liberdade


psicolgica prpriamente dita ou a liberdade de querer, isto , a possibilidade para a
vontade de se determinar a agir ou a no agir, a querer isto ou a querer aquilo.

Embora haja uma relao entre as duas grandes formas de liberdade, pois a primeira s
tem significado na suposio da segunda, no h contudo solidariedade necessria.
Em particular, posso estar privado de tais liberdades exteriores sem cessar de ser livre
no meu querer. No que se segue, sbre ste segundo tipo de liberdade que
trataremos, ou seja, sbre a liberdade psicolgica.

Uma outra delimitao se impe. O ato livre, dir-se- igualmente,


caracteriza-se pelo fato de ser um ato espontneo, isto , que tem seu princpio no
prprio agente e no no exterior. O ato livre vem de mim. Nada de mais exato, mas
preciso ajuntar que no h coextenso entre os domnios da espontaneidade e da
liberdade. Para o compreender, consideremos como, em seus nveis sucessivos, a
atividade dos sres pode ser chamada espontnea.

- H um domnio, de incio, onde tda espontneidade


encontra-se afastada, o da ao chamada violenta, isto
, daquela que, vindo do exterior, contraria as
inclinaes do ser sbre o qual se dirige: assim, na
cosmologia antiga, levantar uma pedra era um ato
"violento", pois contraria o peso que natural da pedra; de
modo algum uma tal atividade procede do interior do ser que
movido.

- Considerando agora os movimentos que procedem da natureza


mesma de um ser, ser conveniente colocar parte os
movimentos dos sres inanimados. Tais sres movem-se a si
mesmos, no sentido de que a forma, ou natureza, que dirigem
sua atividade, lhes so bem interiores, mas stes
103
princpios les os recebem tais quais, e de um outro;
aparecem assim, na ordem da ao, como puros executantes.

- Mais alto na hierarquia dos sres que se movem a si


mesmos encontramos os viventes e, entre les, especialmente
os animais. Os viventes movem-se a si mesmos pelo fato de
que, sendo organizados, so ao mesmo tempo ativos e
passivos, uma parte agindo sbre a outra. No animal, esta
interioridade do princpio da ao manifesta-se pelo fato
de as representaes que esto na origem do movimento,
ainda que sejam determinadas do exterior, dependem contudo em
parte das apreciaes instintivas do sujeito.

- Enfim, no cume, encontra-se o ser dotado de razo,


que senhor do juzo que est na origem de seus atos e por
ste fato pode agir, fazer isto ou fazer aquilo. A
espontaneidade aqui atinge seu grau mais elevado, o do ato
prpriamente livre.

A espontaneidade pertence, portanto, ao domnio da liberdade, mas, como a ausncia


exterior de constrangimento, no basta para a caracterizar.

No se poder definir o ato livre dizendo que o ato mesmo da vontade? Isto suporia
que todo ato voluntrio fsse livre. bem assim? S. Toms (Ia Pa, q. 82,
a. 1) pergunta se a vontade no deseja certas coisas de modo necessrio e sua resposta
afirmativa.

Para o compreender, distingamos com ele diversos tipos de necessidade:

- a necessidade natural ou absoluta, que smente a


expresso da prpria natureza de uma coisa; por sua
natureza, o tringulo deve ter trs ngulos iguais a dois
retos;

- a necessidade do fim que impe tal meio, quando este meio


o nico para atingir tal fim; assim o alimento
necessrio para a vida;

- a necessidade, enfim, imposta por um agente exterior, ou


necessidade de coao.

ste ltimo tipo de necessidade, j o dissemos, repugna de modo absoluto vontade,


pois, por definio, o "violento" no livre. Mas os dois outros tipos, pelo
contrrio, tm seu lugar na atividade de nossa faculdade superior de apetncia: 1. ,
a necessidade natural, antes de tudo; do mesmo modo que a inteligncia adere
necessriamente aos primeiros princpios, assim tambm a vontade se relaciona de modo
necessrio com o bem ou com o fim ltimo; -me impossvel no querer o bem, como
tal, ou minha felicidade; 2. , a necessidade do fim em segundo lugar; esta
necessidade tem tda a sua dimenso smente face aos meios sem os quais impossvel
atingir seu fim ltimo, isto , ser, viver ou desejar ver a Deus - suposto para
esta ltima coisa adquirida a certeza de que a felicidade consiste em uma tal viso.

Em face dstes bens que assim se impem nossa vontade, h outros que no a
104
solicitam de maneira necessria, pois, sem les, parece que se possa chegar aos fins
que se perseguem: stes bens contingentes face s metas a atingir, e que podem ser ou
no ser queridos, constituem o domnio prprio da liberdade psicolgica.

2. EXISTNCIA E NATUREZA DO LIVRE ARBTRIO.

o ser racional efetivamente livre ou, como S. Toms prefere dizer, tem le o
livre arbtrio? Inmeros filsofos no o creram. Abandonando por hora seus
argutos, vamos considerar as razes alegadas em favor da liberdade. Vejamos as trs
principais: o testemunho da conscincia, a natureza mesma do ato livre e as necessidades
da vida moral. O primeiro dos argumentos, que pode se prestar a equvocos, toma seu
valor smente se ligado ao segundo; S. Toms, alis, no os distingue e vamos
fazer como le.

Sem liberdade no h moral. Seria conveniente desenvolver ste tema que constitui,
alis, de seu ponto de vista, uni argumento bastante vlido. Baste-nos citar S.
Toms que em uma frase lacnica sugere todo o essencial: "o homem tem o livre
arbtrio, de outro modo conselhos, exortaes, preceitos, proibies, recompensas
e castigos seriam coisas absolutamente vs" (Ia Pa, q. 83, a.1).

A razo tpica em favor da liberdade tomada da natureza mesma do ato livre, tal
como nos dado na experincia, sendo esta interpretada luz dos princpios
metafsicos, os nicos que podem permitir concluir de maneira decisiva.

Desde que se trate de explicar e de fundamentar o ato livre, S. Toms recorre sempre
natureza racional do homem, ou mais precisamente e mais imediatamente, sua
faculdade de julgar: h sres que agem sem julgar, h outros que agem por meio do
juzo. Se sse o resultado de um instinto natural, como o casa para os animais,
ento no h liberdade. Mas se, como no homem, resulta de uma deliberao e de
aproximaes devidas razo, encontramo-nos em face de um ato livre. Uma tal
prerrogativa vem de que a razo, quando relacionada a coisas contingentes, potncia
de coisas contrrias. Ora, as coisas particulares, em meio s quais desenvolve-se a
ao humana, so coisas contingentes, podendo portanto servir a juzos diversos e que
no so determinados. necessrio, portanto, que o homem, pelo fato de ser
racional, seja dotado de livre arbtrio.

"Sed homo agit judicio, quia per vim cognoscitivam judicat


aliquid esse fugiendum vel prosequendum. Sed quia judicium
istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili,
sed ex collatione quadam rationis, ideo agit libero judicio,
potens in diversa ferri. Ratio enim circa contingentia habet
vim ad opposita . . . Particularia autem operabilia sunt
quaedam contingentia: et ideo circa ea judicium rationis ad
diversa se habet, et non est determinatum ad unum. Et pro
tanto necesse est quod homo sit liberi arbitrii ex hoc, ipso
quod rationalis est".

Ia Pa, q. 83,
a. 1

A liberdade tem, do lado do sujeito, seu fundamento na


razo, e objetivamente no carter contingente dos bens que se
nos oferecem. Dste ltimo ponto de vista, o argumento
105
toma esta forma de que se reveste muitas vzes em S.
Toms: face aos bens contingentes ou particulares nossa
vontade permanece livre: s o bem absoluto pode
determin-la de modo necessrio. Uma e outra razo,
alis, se completam, assim como a inteligncia e a vontade
compenetram-se na atividade humana.

A experincia ou a conscincia de nossa liberdade,


invocada muitas vzes sem esta demonstrao,
fundamenta-se exatamente sbre o carter de no necessidade
dos juzos que dirigem minha deciso: julgo que tal meio
ser conveniente para atingir tal fim e me decido, mas
percebo, ao mesmo tempo, que o motivo que me faz agir no se
impe de maneira absoluta: um bem contingente; minha
escolha, por ste fato, s pode ser livre. Minha
conscincia de agente livre uma conscincia de razo que
aprecia e julga e no um sentimento de um impulso do
instinto, de um empurro no vazio, como se imagina muitas
vzes.

Retomando de um outro modo a precedente anlise,


distinguiremos no ato livre, do ponto de vista de sua
indeterminao, dois aspectos, o do exerccio e o da
especificao. O ato livre, com efeito, o que no
motivado pela presso de um bem que se apresente como
necessitante; mas isto se pode produzir de dois modos:

- para atingir tal fim dois meios se me oferecem, assim para


ir a tal cidade, tal ou tal caminho; nenhum dos meios,
nenhum dos caminhos se me impe, posso escolher ste ou
aqule: direi que do ponto de vista da especificao meu ato
livre; mas no caso em que existisse um s caminho, no
permaneceria menos livre, pois atingir tal cidade, e
portanto tomar ste caminho, no me parece absolutamente
necessrio; posso ainda .querer ou no querer. Uma tal
capacidade de escolha chamada liberdade de exerccio.

Uma e outra destas liberdades, a de especificao C a de


exerccio, fundam-se sbre a contingncia dos bens; mas do
ponto de vista do sujeito, a mais radical entre elas, e que
por si s basta para que haja liberdade, a de
exerccio; ela sempre requerida para que haja liberdade,
enquanto que, ao menos no caso do meio nico, a
especificao se me impe de maneira constrangedora.

Se agora nos colocamos do ponto de vista da anlise


psicolgica do ato livre ou de seus diversos elementos,
encontrar-nos-emos de nvo em face de uma dualidade de
atividade, a da inteligncia e a da vontade concorrendo para
um mesmo resultado.

Sob a presso de um desejo que surgiu em mim persigo um fim


(intentio finis). Diversos meios se me apresentam para o
106
atingir; delibero . . . ; o momento de me decidir chegou:
o que se produz?

Em meu juzo (judicium practicum) decido-me por tal meio


e por um ato de vontade escolho (electio). Houve,
portanto, concomitantemente, um juzo da inteligncia e uma
escolha da vontade. Qual dos dois elementos pode ter sido
determinante? Um e outro, cada um no seu ponto de vista; na
ordem de especificao, escolhi porque julguei; na ordem
do exerccio, julguei porque escolhi. E preciso, sim,
distinguir os dois atos, mas sob a condio de no
esquecer que reciprocamente se de terminam. O ato livre
procede ao mesmo tempo da inteligncia e da vontade. Como,
todavia, absolutamente falando a escolha ou a eleio que
decide, dir-se- que o livre arbtrio encontra-se na
vontade como em seu sujeito.

3. LIBERDADE E DETERMINISMO.

Desprezando o sentimento comum favorvel existncia do livre arbtrio, muitos


sistemas desde a antiguidade atribuiram ao ato humano, sob uma forma ou outra, a
fatalidade ou o determinismo. Encontram-se estas teorias diferentemente fundamentadas.

Para uns, o homem no livre porque submetido ao destino, ou porque nada mais que
uma engrenagem de um Todo cujo movimento , em si mesmo, necessrio. De um ponto de
vista teolgico, afirmar-se-ia que a liberdade contrria prescincia ou
predestinao divina. Para outros, a liberdade, se existe, seria diretamente
contrria ao princpio de causalidade, ou ao princpio de conservao de energia, ou
ento negaria a regularidade das leis da natureza: do ponto de vista da cincia,
impor-se-ia manifestamente um determinismo sem falhas.

No devemos considerar aqui certas concepes que se originam prpriamente de uma


filosofia geral e que s encontram respostas adequadas em metafsica. Interessa-nos
aqui uma s forma de determinismo, a que est em relao mais imediata com a
psicologia. Seu exame ter a vantagem de valorizar, de maneira nova, a doutrina acima
elaborada.

O determinismo psicolgico. Esta doutrina parece ter tido sua expresso mais acabada
em Leibniz. este tomou seu ponto de partida na crtica da liberdade de indiferena.
Louvada, ao que parece, por Descartes, esta teoria consiste em reconduzir a liberdade
indiferena com relao aos diversos motivos que solicitam a escolha, ou ao estado
de equilbrio perfeito onde se encontra a vontade com relao aos motivos. Sob o
efeito de uma iniciativa absolutamente pura, esta faculdade faria sua escolha e isto
seria o ato livre. Leibniz no escondeu que esta assim chamada indiferena face aos
diversos motivos do querer era to-smente uma iluso. Minha vontade, em
realidade, solicitada diferentemente pelos diversos motivos: uns so mais fortes que
outros. Definitivamente ser o motivo mais forte que a arrastar. E isto tanto com
relao nossa vontade, como tambm em relao vontade divina que s pode querer
o melhor. Todavia, merece sempre o qualificativo de livre.

No nos pertence discutir, detalhadamente, esta engenhosa teoria. Oportuno dizer


aqui que, apesar de suas intenes, parece no escapar ao determinismo:
necessariamente o motivo mais forte que se impor. O prprio mundo ser o melhor
107
possvel: as possibilidades de outra escolha ou de outros mundos so assim completamente
tericas.

Contra tais alegaes preciso manter, com S. Toms, que se nossa vontade no
se determina sem motivo, no necessriamente determinada por um motivo que seria o
mais forte, surgindo ste, alis, como uma hiptese gratuita. Em nossa psicologia
concreta, h, por deliberao preliminar, o exame de diversos motivos de escolha que
nos solicitam. Depois, o sujeito pra em um dles e se decide: a deciso assim
tomada depende bem do motivo que a fundamenta realmente e que aparece, ento, como o
melhor, mas s se impe minha vontade porque esta se fixa sbre le e o escolhe.
Em ltima anlise, tal motivo foi efetivamente o mais forte: mas porque eu o quis.
H, ao mesmo tempo, determinismo racional e autodeterminao espontnea. O ato livre
no pode ser salvo e no pode ser justificado de outra maneira.

Se na psicologia do ato livre no se deve reconhecer o motivo mais forte no sentido


leibniziano, convm distinguir mveis diversos ou condies de escolha. Eis os
discernimentos que S. Toms, a ste respeito, nos prope no De Malo (cf. q.
6, art. nico).

Considerado como procedente da vontade ou em seu exerccio, o ato livre


interiormente condicionado s por Deus. ste ainda, em sua moo transcendente,
respeita a indiferena fundamental da potncia que conserva assim o senhorio de seu
ato.

Considerado agora do ponto de vista da especificao ou como dependente da


inteligncia, e psto parte o caso do bem absoluto que absolutamente necessitante,
o ato livre pode, de trs maneiras, ver-se solicitado, mais em um sentido que em
outro: 1. por um motivo que efetivamente o arrasta; 2. pelo fato de que se considera
tal circunstncia do ato antes que tal outra; 3. em razo das disposies do
sujeito que fazem com que tal objeto apresente maior ou menor intersse: o que
arrastado por um movimento passional ou levado por um hbito, ser conduzido
naturalmente a julgar segundo ste movimento ou em conformidade a ste hbito: assim,
um mesmo objeto no far a mesma impresso ao homem em clera e ao homem que est
calmo, ao virtuoso e ao viciado, ao sadio e ao doente. Tda a questo infinitamente
complexa do condicionamento afetivo de nossas escolhas deveria ser compreendida sob esta
luz. Todavia, fora dos casos onde a violncia das paixes tira razo tda a posse
de si, a vontade, em face dos bens contingentes, conserva seu poder fundamental de se
determinar ou de no se determinar.

4. CONCLUSO: POSIO DA DOUTRINA TOMISTA DA


LIBERDADE.

A doutrina da liberdade que, com grande fidelidade a Aristteles, S. Toms nos


prope, situa-se assim entre os dois extremos do indeterminismo de uma espontaneidade
no motivada, e do determinismo da vontade por um motivo constrangedor. De um lado,
no sem reservas alis, conviria colocar um Descartes ou um Bergson, e de outro o
racionalismo leibniziano.

Para S. Toms, o livre arbtrio no , de uma parte, espontaneidade no


motivada; e, de outra, no devido a um motivo que se impe: ao mesmo tempo
espontaneidade e motivao, cada um dos fatres determinando o outro segundo seu ponto
de vista. o que exprimiam, sob diversos aspectos, os pares discernidos mais acima,
da especificao e do exerccio, do juzo prtico e da eleio: mais
108
profundamente, o par inteligncia-vontade que est na origem dos outros. A liberdade
encontra-se, como em seu sujeito, na vontade, mas ao mesmo tempo faculdade de
razo, de sorte que se pode igualmente defini-la como uma inteligncia dotada de
intellectus appetitivus, ou, o que prefervel, um apetite dotado de inteligncia;
appetitus intellectivus: todo o mistrio e tda a explicao da liberdade est na
associao dos dois trmos.
109
A ALMA HUMANA

1. PRELIMINARES

Uma primeira vez, no estudo geral do vivente, havamos abordado o problema da alma.
Eis o que havamos concludo.

A alma, antes de tudo, apareceu-nos como o primeiro princpio de vida, concepo


espontnea e comum em filosofia. Considerando, em seguida, a alma, na linha da teoria
hilemorfista da substncia, fomos levados a esta segunda afirmao, caracterstica
do peripatetismo: a alma a forma do corpo. Disto decorria todo um conjunto de
propriedades: sendo princpio formal de um vivente que uno, a alma s pode ser una e
nica; conseqentemente, indivisvel e encontra-se tda inteira presente em tdas
as partes do corpo. Ainda mais, em conformidade com as leis gerais das substncias
fsicas, impe-se que desaparea ou se corrompa quando se dissolver o composto.

Sbre s-te ltimo ponto, j havamos reservado o caso da alma humana que, sendo
princpio de uma vida de grau mais elevado, a vida iniciativa, parecia gozar de
prerrogativas especiais e diferir mesmo, em sua natureza profunda, das almas
inferiores. o que devemos presentemente estabelecer de maneira mais explcita.

A afirmao da separao, com relao matria, do mundo inteligvel, e,


conseqentemente, da alma intelectiva, havia sido uma das conquistas essenciais do
platonismo. Em reao contra o que lhe parecia excessivo nesta teoria, Aristteles
havia proposto sua frmula original da definio da alma como forma do corpo. Mas,
nesta concepo, o problema de um "nous" puramente espiritual encontrava-se apenas
diferido e, efetivamente, ns o vemos reaparecer quando abordada a questo da vida
intelectiva (De Anima III, c. 4 e 5).

A potncia de conhecer manifesta-se, ento, dotada de propriedades que a distinguem


absolutamente das realidades materiais. De uma parte (cf. c. 4, 429, a
18-28), como o queria Anaxgoras, ela deve ser sem mistura, isto , privada de
tdas as naturezas corporais: estando, com efeito, em potncia para tdas as
determinaes destas naturezas, o intelecto no deve atualmente possuir nenhuma. De
outra parte (cf. 5, 430 a. 17), surge esta potncia, enquanto agente, como
separada da matria, imortal e eterna.

Estas passagens, vimos, no deixaram de suscitar interpretaes diversas por causa


de sua obscuridade. Antes de S. Toms, conclua-se mais comumente pela
existncia de um princpio intelectivo espiritual, mas absolutamente separado e nico
para todos os homens, sacrificando-se assim a imortalidade pessoal da alma.

A posio de S. Toms. Como todos os doutres cristos, S. Toms


possua, pela Revelao, uma doutrina da alma espiritual e imortal que se lhe
impunha. Assim, no se deve surpreender ao v-lo dar aos textos precedentes, de
acrdo com esta doutrina, um sentido ao mesmo tempo espiritualista e personalista: a
alma humana forma do corpo, mas tem a mais uma subsistncia espiritual em cada
indivduo e incorruptvel. A dimenso destas afirmaes dever ser bem
precisada. ( II. A natureza da alma humana.)

Mas, luz da Filosofia Crist, e em particular do agostinianismo, novos


aprofundamentos se impem. O mundo dos espritos, em tdas as suas dimenses,
110
esprito humano, esprito anglico, esprito divino, encontra-se aberto a nossos
olhos. A alma espiritual no trar em si a marca dste mundo superior, e no
participar de sua vida mais ntima? o que haveremos de perguntar, em segundo lugar
( III. A estrutura intelectiva da alma humana).

2. A NATUREZA DA ALMA HUMANA

Trs afirmaes exprimem essencialmente a doutrina da natureza da alma humana: a alma


humana espiritual, subsistente, incorruptvel.

- A alma humana espiritual.

A natureza de nossa alma, j o sabemos, s se nos pode manifestar atravs de suas


operaes, pois s elas nos so diretamente perceptveis.

Consideremos aquela operao que, entre as outras, pertence especificamente ao


homem: a inteleco. Sua espiritualidade manifesta-se de dois pontos de vista.

Quanto a seu objeto, antes de tudo. Com efeito, pelo fato de tdas as naturezas
corporais poderem ser apreendidas pela nossa faculdade superior de conhecer, impe-se
que esta faculdade no seja determinadamente nenhuma destas naturezas, portanto, que
seja incorprea, ou espiritual. o que S. Toms exprime perfeitamente nesta
passagem da Summa:

" manifesto que o homem, por sua inteligncia, pode


conhecer as naturezas de todos os corpos. Ora, impe-se
que o que tem o poder de conhecer algumas coisas, no possua
nada delas em si: assim, vemos que a lngua do enfrmo que
est infectada de blis e de humor amargo, no pode ter a
percepo do doce e que tudo lhe aparea amargo. Se,
pois, o princpio intelectivo possusse em si a natureza de
algum corpo, no poderia ter o conhecimento de todos, tendo
cada um dles, com efeito, uma natureza determinada. ,
portanto, impossvel que o princpio intelectual seja um
corpo. . . ".

Ia P, q. 75 a. 2

Nem tampouco, continua S. Toms, deve-se dizer que a inteligncia mesclada de


corporeidade em virtude dos rgos que utiliza. Tendo uma natureza determinada, tais
rgos no poderiam deixar de fazer obstculo ao conhecimento de todos os corpos:

"Assim, se houvesse uma cr determinada, no smente na


pupila mas ainda em um vaso de vidro, o lquido que nle se
lanasse apareceria da mesma cr. O prprio princpio
intelectual que chamado de "mens" ou intelecto tem,
portanto, uma operao prpria pela qual no entra em
comunho direta com o corpo."

Em segundo lugar, quanto a seu modo. A inteligncia, com efeito, de si capta seu
objeto de modo abstrato e universal, ou independentemente de tdas as circunstncias
materiais. Ainda mais, graas a seu processo abstrativo, esta faculdade capaz de
representar realidades puramente espirituais, o que no seria possvel se ela mesma
111
estivesse, em seu ato, implicada na matria. A operao intelectual, por estas
razes, s pode ser puramente espiritual.

Mas, tal ser, tal operao, e inversamente. Portanto da imaterialidade da


operao deve-se subir imediatamente imaterialidade de seu princpio: de modo que a
espiritualidade requerida pelas condies da inteleco ao mesmo tempo suposta para
o ato, para a potncia e tambm para o ser que est em sua raiz.

- A subsistncia da alma espiritual.

Que a alma seja de per si subsistente, um "hoc aliquid" como diz S. Toms, isto
se segue, igualmente de modo imediato, do que acaba de ser estabelecido. Nada, com
efeito, pode agir a ttulo de princpio radical se no fr de per si subsistente: a
alma espiritual, a "mens", o mais profundo princpio de vida intelectiva, ,
portanto, uma substncia espiritual.

Mas, nestas condies, no somos levados invencvelmente tese sustentada por


Plato de uma alma bastando-se a si mesma e tendo no corpo smente uma habitao
precria? Como manter ao mesmo tempo que a alma a forma do corpo e que o indivduo
humano uno? Reconhecendo, como S. Toms, que h para um ser dois modos de
subsistir: de modo especificamente completo, como acontece para esta planta, para esta
pedra e igualmente para ste homem, e de modo especificamente incompleto, como o
caso da alma: a alma humana, com efeito, como substncia especfica, s se encontra
acabada e perfeita se unida ao corpo ... Seja na formulao precisa de S.
Toms:

"Relinquitur igitur quod anima est hoc aliquid ut per se


potens subsistere, non quasi habens in se completam speciem,
sed quasi perficiens speciem humanam ut forma corporis, et
sic similiter est forma et hoc aliquid"

Quaest. Disput. De
Anima, a. 1

- A incorruptibilidade da alma.

A afirmao da incorruptibilidade ou, o que d no mesmo, da imortalidade da alma,


to-smente uma conseqncia do que precede.

Uma coisa, com efeito, pode corromper-se de duas maneiras: acidentalmente (per
accidens) ou de per si (per se). Corrompe-se de modo acidental (per accidens)
aquilo que desaparece com a supresso de uma realidade conjunta, como as formas que se
encontram em um sujeito que destrudo. Assim, nos animais, a corrupo do
indivduo acarreta o desaparecimento da forma substancial ou da alma. claro que um tal
modo de corrupo no pode ser reconhecido para um ser que, como a alma, subsiste por
si (per se), isto , independentemente de qualquer outro. Portanto, aqui s se
pode falar em corrupo substancial, ou que atinge em si a coisa considerada. Ora,
tambm isto impossvel. Sendo uma forma absolutamente simples, a alma no pode
perder aquilo que seu constitutivo prprio, sua forma. Nem tampouco pode perder,
por si mesma, seu ser que com ela solidrio: assim incorruptvel e por
conseqncia imortal. Segue-se da que de nenhum modo possa desaparecer? Uma tal
concluso evidentemente absurda. O ser da alma criado: continua, pois, na
dependncia da causa que est no seu princpio, a qual, como pde cri-la, pode
112
igualmente aniquil-la, pois nenhum agente subordinado tem poder sbre si prprio.
Incorruptvel ou imortal no plano da realidade criada e de sua eficacidade, traz a alma
em seu ser profundo o estigma de absoluta submisso ao seu criador.

No sem intersse revelar que ao lado dessa argumentao em favor da


incorruptibilidade da alma, S. Toms faa valer uma outra prova que se apia, por
sinal, sbre o desejo da imortalidade, o qual, sendo um desejo natural, no pode ser
vo. Eis o argumento em sua forma original:

"Cada coisa deseja, de maneira natural, existir do modo


que lhe convm; ora, nos sres cognoscentes, o desejo
segue-se ao conhecimento; o sentido, por sua parte, s
conhece o que existe hic et nunc, enquanto a inteligncia
apreende o ser de modo absoluto e independentemente do tempo.
Segue-se que todos os que tm uma inteligncia, tm o
desejo de uma existncia perptua. Mas um desejo de
natureza no pode ser vo: tda substncia intelectual
, portanto, incorruptvel"

I, c. 75, a. 6

3. A ESTRUTURA INTELECTIVA DA ALMA HUMANA.

O homem por sua alma pertence, portanto, ao mundo dos espritos. Pode-se pensar que
sua natureza profunda no tenha nada de comum com a dos sres superiores?

S. Toms, j pudemos disso nos aperceber estudando o conhecimento da alma por si


mesma, no pensa assim. Devemos retomar aqui esta questo em tda a sua amplitude.
(Cf. A. Gardeil, Structure de L'me. Ire. Partie t. I, pgs.
47-152)

A estrutura intelectiva da "mens". Para designar a alma espiritual do homem, nosso


Doutor possui um trmo tcnico: "mens". Algumas vzes aplica sse trmo aos
espritos puros que sero chamados "totaliter mens", mas normalmente o reserva para o
esprito encarnado que nossa alma. Pode-se perguntar se esta expresso "mens"
corresponde potncia intelectiva, ou essncia mesma da alma. De fato, como o
trmo "intellectus", que s vzes significa a potncia e s vzes a prpria alma
intelectiva, "mens" pode ser aplicado a uma e outra coisas. De maneira sinttica
dir-se- que a "mens" designa a alma espiritual enquanto princpio de nossas
operaes superiores.

Qual , pois, a estrutura da "mens"? Para compreend-la, voltamo-nos para os


mais perfeitos espritos criados, os anjos, e perguntemos como se constituem. Sabemos
que todo ser elevado a um grau de imaterialidade conveniente, torna-se apto a receber,
alm de sua forma prpria, a dos outros sres: um sujeito cognoscente. Mas,
alm disso, se fr totalmente liberto da matria corporal, o que o caso dos anjos,
torna-se imediatamente inteligvel. O esprito puro, o anjo, do ponto de vista de
sua atividade superior, caracteriza-se por isto: ao mesmo tempo inteligncia e
inteligvel em ato e, alm disso, o inteligvel que constitui sua essncia
imediatamente presente sua potncia. Nada falta, pois, para que se produza o ato
de conhecimento: o anjo se conhece a si mesmo por sua essncia, "per essentiam", e
esta essncia que constitui o objeto prprio de sua faculdade cognoscitiva.
113
D-se o mesmo com o homem? No estado de alma separada o homem pensa - muito
imperfeitamente, alis - conforme o modo anglico. porque j nesta vida deve o
homem possuir em estado latente, ou no nvel de hbito, a possibilidade de se conhecer
a si mesmo: o que S. Toms queria significar com seu conhecimento habitual da alma
por si mesma. Em sua estrutura profunda de esprito a alma humana, a "mens",
caracteriza-se, pois, pela imediao ou pela presena de um objeto inteligvel e de
um sujeito inteligente. S a necessidade preliminar do conhecimento abstrativo
suspende, para esta vida, a atuao correspondente a ste estado interior da alma.
Tdas estas coisas exprimiu-as perfeitamente Joo de Santo Toms neste belo texto:

"Em nosso estado atual, a unio objetiva da alma


inteligvel com a alma sujeito e raiz da inteligncia j
realizada, mas virtualmente, pois o estado de separao da
alma e do corpo aqui virtual. Entretanto, esta unio
no se manifesta atualmente, por causa da necessidade em que
se encontra a alma de se dirigir s coisas sensveis para
conhecer: o que a impede de se conhecer a si mesma
imaterialmente, puramente, por si mesma. Isto porque a
potncia intelectiva emanando da alma, emana dela como de uma
raiz inteligente e como de um objeto inteligvel, mas que,
de si, no manifesta ainda sua inteligibilidade puramente,
espiritualmente e imediatamente, enquanto est no estado
presente. Sua inteligibilidade permanece amarrada em razo
da necessidade de recorrer s coisas sensveis para se
atualizar. E isto porque esta unio ntima da inteligncia
e da alma inteligvel no se revela, nem de um lado, nem
de outro, at que a alma esteja separada".

Curs. Theol., in
Iam Part., q.
55, disp. 21, a.
2, n. 131

Afinal, se compete natureza da alma humana informar um


corpo e agir segundo essa condio, h igualmente nela,
em estado latente, o que preciso para viver maneira dos
espritos: dualismo do encarnado e do espiritual que
encontramos em tdas as camadas do psiquismo e que no
poderia deixar de se encontrar no fundo mesmo do homem.

A imagem de Deus. A ste admirvel parentesco com os


espritos puros, ajunta-se, para a alma do homem, um
parentesco mais surpreendente ainda, o qual o doutor cristo
no podia negligenciar: "Faamos o homem nossa imagem e
nossa semelhana", havia declarado o Criador (Gn.
1, 26). Tda a psicologia de um S. Agostinho e,
depois dle, tda a da Idade Mdia ver-se- iluminada
por esta palavra da narrao sagrada. Um So Boaventura
que, em tda a parte, procura encontrar marcas ou vestgios
de Deus, comprazer-se- aqui de maneira tda
particular. Com esta nova luz deixamos evidentemente o estudo
puramente racional da alma pelo plano da f, mas nos nossos
mestres h implicao contnua das duas perspectivas e s
114
podemos dar uma idia justa de seu pensamento se evocarmos
stes horizontes superiores (Cf. sbre esta questo: Ia
Pa, q. 93) .

O que se deve entender, antes de tudo, por esta expresso


imagem? Uma imagem no uma simples semelhana: dois
objetos podem se assemelhar sem que um seja, prpriamente
falando, a imagem do outro; para isto, preciso
acrescentar que nesta "processo" deve-se realizar, no
uma semelhana longnqua, mas especfica, um verdadeiro
parentesco de natureza. Assim, tdas as criaturas procedem
de Deus e, por ste fato, trazem dle algumas marcas que
no podem simplesmente ser chamadas suas imagens. S as
criaturas intelectuais merecem ste ttulo; abaixo, s se
encontram vestgios de Deus.

Se considerarmos melhor, veremos que se encontra na criatura


inteligente a imagem de Deus em dois graus de profundidade,
conforme exprima smente, em sua unidade, a natureza do
Ser supremo, ou exprima a Trindade de suas pessoas. J
pelo simples fato de ter uma vida intelectiva, a alma
espiritual pode ser chamada a imagem de Deus. Mas, pelo
fato de nela se notar uma certa "processo" de um verbo
mental segundo a inteligncia e uma certa "processo" de
amor, segundo a vontade, pode-se igualmente falar de uma
imagem da Trindade das Pessoas, distinguindo-se estas em
Deus conforme as relaes do Verbo com Aqule que diz, e
do Esprito com um e outro dstes trmos.

Sbre ste captulo da alma como a imagem da Trindade,


S. Toms encontrava, para se inspirar, as sutis mas
penetrantes anlises da alma do De Trinitate de S.
Agostinho. ste, para poupar a seu leitor a considerao
direta dos mistrios de Deus, procurava analogias em nosso
mundo espiritual. Assim, conforme se considere a alma no
nvel das potncias ou hbitos, ou no nvel dos atos,
encontra-se uma primeira (mens, notitia, amor), ou uma
segunda (memoria, intelligentia, voluntas) imagem da
Trindade em ns. Indiquemos que na primeira destas
aproximaes, "mens" designa a potncia, sendo "notitia"
e "amor" os hbitos que a dispem para seu ato. Na
segunda aproximao, que mais perfeita, "memoria"
significa o conhecimento habitual da alma, "intelligentia"
e "voluntas" os atos que dela procedem (cf. De
Veritate, q. 10, a. 3).

A significao destas imagens do Deus Uno e Trino,


escondidas no fundo da alma, ser percebida por ela smente
sob a luz da f, ou segundo as leis de uma psicologia
sobrenatural. E assim ultrapassamos os limites de nossa
presente pesquisa. Mas era inevitvel ir at aos umbrais
disto que o Doutor anglico considerava como a melhor parte
de nossa vida, a da alma imagem de Deus em sua intimidade e
115
capaz, por isso mesmo, de viver sua vida.
116
CONCLUSO

1. REFLEXES FINAIS

No ser intil voltar, por uma ltima vez, ao mtodo da psicologia de S.


Toms. Diferentemente de inmeras exposies modernas que permanecem no nvel das
constataes e das explicaes imediatas, esta psicologia apareceu-nos tda marcada
pela metafsica. So as estruturas profundas do homem que se visa determinar e isto,
evidentemente, com o fim de assegurar os fundamentos desta vida superior que interessa
sobretudo ao telogo.

Contudo, ser conveniente no esquecer que, no peripatetismo, o estudo da alma vem


lgicamente no prolongamento das pesquisas fsicas sbre o ser natural. Se, pois, em
uma tal filosofia, a parte espiritual do homem acaba por se mostrar com um forte
relvo, no significa que sua parte corporal ou biolgica no tenha, de incio,
retido a ateno. Na realidade e importante que se diga, a exposio precedente
poderia enganar. Preocupados com a brevidade, fomos levados a encurtar ao extremo a
parte de observaes e anlises positivas que, em Aristteles sobretudo,
efetivamente considervel. Assim fomos obrigados a reduzir a bem poucas coisas o estudo
dos sentidos e de suas atividades, ou de fenmenos originais tais como os sonhos, o
sono, a reminiscncia, que retiveram sriamente a ateno de nossos mestres. Em um
nvel mais elevado, a vida moral, os movimentos das paixes por exemplo, que nles
foram objeto de anlises minuciosas e notveis, ficaram de lado. Expostas em todos os
seus detalhes e com tdas as suas riquezas, uma psicologia de Aristteles e uma
psicologia de S. Toms tomariam uma fisionomia notvelmente outra. As estruturas e
os quadros, todavia, permaneceriam os mesmos, tais como os mostramos.

Concernente posio da psicologia de S. Toms, o essencial foi dito. Na


histria das doutrinas da alma, aparece como uma "via media". Se Plato, por
primeiro, soube liberar do sensvel o "nous" e sua atividade, o pensamento,
consagrou, por outra parte, o divrcio das idias com relao matria, do
esprito com relao ao corpo. Aristteles conserva a distino, mas pretende
restabelecer a unidade entre os dois trmos e S. Toms, de maneira muito decisiva,
segue-o nesta via. Contudo, em virtude da contribuio crist, a vida superior em
S. Toms cresce de importncia e a alma, sempre permanecendo a forma do corpo, toma
efetiva colocao na hierarquia das inteligncias. Donde, a riqueza e ao mesmo tempo
a complexidade, e quase a ambigidade, da doutrina que S. Toms nos deixou.
Estamos na interseco de dois mundos. Conforme se apie sbre um ou outro dstes
aspectos, a psicologia de S. Toms aparecer seja como muito encarnada, muito
biolgica, aproximando-se nesta linha da pesquisa moderna to presa aos comportamentos
fsicos, seja, inversamente, como muito espiritualista.

Dualismo sublinhado igualmente pelos temas que continuamente tocam na dependncia e na


alienao, de uma parte, e na imanncia e na autonomia de outra. Nossas potncias
aparecem, de incio, como faculdades receptoras. A alma deve assim comear por ir
buscar fora seu alimento: na vida psicolgica, parte-se forosamente da
exterioridade. Mas a atividade vital, por outro lado tem igualmente, como carter
prprio, de proceder do interior e terminar dentro do ser que o sujeito, isto , tem
por carter prprio ser imanente. J perceptvel no nvel da vida vegetativa, esta
autodeterminao afirma-se medida que se eleva, para atingir em ns seu grau mais
elevado no conhecimento da alma por si mesma. Os temas, to" caros a tantos
modernos, da interioridade da vida do esprito, aqui igualmente encontram acolhimento.
117
Nos espritos superiores, e de modo eminente em Deus, a vida essencialmente
imanente. No homem, porm, esta imanncia realiza-se smente segundo uma
perfeio menor, permanecendo ste dependente, em baixo, do mundo corporal e, em
cima, da ao primeira de Deus: o homem autnticamente um esprito mas , em
sua natureza de ser, um esprito encarnado e se em sua parte superior imagem de
Deus, o to-smente distncia e em inteira submisso a le.

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