Familias de Santo - Artigo de Ligia
Familias de Santo - Artigo de Ligia
Familias de Santo - Artigo de Ligia
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
LIGIA PAGLIUSO
Ribeiro Preto
2012
LIGIA PAGLIUSO
Ribeiro Preto
2012
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por
qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e
pesquisa, desde que citada a fonte.
Pagliuso, Ligia
Famlias de santo: as histrias dos ancestrais e os enredos
contemporneos. Ribeiro Preto, 2012.
195 p : il ; cm.
Ligia Pagliuso
Famlias de santo: as histrias dos ancestrais e os enredos contemporneos
Aprovado em:
Banca examinadora
minha me Josi, ao meu pai Josmar e aos meus irmos Jnior e Akira por existirem.
Aos meus avs paternos e maternos pelos anos de carinho e dedicao.
A umbanda pode ser considerada uma religio que retrata por meio de seus rituais as razes
africanas de nossa cultura. A presente pesquisa objetivou investigar a construo de laos de
pertencimento em uma famlia de santo umbandista. Para esse efeito, com base na teoria
psicanaltica lacaniana examinou-se em que medida a vivncia afro-brasileira de
ancestralidade poderia prestar-se restituio e consolidao de laos de filiao no mbito de
uma concepo simblica de famlia (a famlia de santo). O mtodo utilizado foi o da escuta
participante. Este mtodo combina recursos tcnicos psicanalticos, nomeadamente a ateno
ao modo de incluso do pesquisador no campo e a ateno a aspectos transferenciais, com
procedimentos etnogrficos. A presente pesquisa foi realizada no Templo Seara da Esperana
e no Abrigo Lar Dona Cotinha na cidade de So Paulo-SP. Verificou-se que neste contexto
cada pessoa uma trama de relaes sociais presentes e uma interligao atual de biografias
passadas. A pessoa humana tratada concomitantemente como criana e como ancestral,
algum a ser cuidado e cuidador. Este resultado sugere que a vivncia da ancestralidade de
matriz africana preservou-se na sociedade brasileira e traduz-se em saberes e prticas sociais
que merecem ateno e contribuem para o desenvolvimento de uma Etnopsicologia brasileira.
Umbanda can be considered a religion which reflects through its rituals the African roots of
our culture. This study investigated the construction of bonds of belonging within an umbanda
family. For this purpose, it was examined, based on Lacanian psychoanalytic theory, to what
extent the african-brazilian experience of ancestry could lend itself to a repair and
consolidation of ties of affiliation within a symbolic conception of the family (famlia de
santo). The method used was participant listening. This method combines psychoanalytic
technical resources, including attention to the mode of inclusion of the researcher in the field
and attention to transference issues, with ethnographic procedures. This research was
performed in the Templo Seara da Esperana and Lar Dona Cotinha in So Paulo-SP. It was
found that every person in this context is a network of social relations and presents a current
interconnection of past biographies. The human person is treated both as child and as an
ancestor, someone to be taken care of and a caregiver. This result suggests that the experience
of African ancestry is preserved in Brazilian society and translates into knowledge and social
practices that deserve attention and contribute to the development of a Brazilian
Ethnopsychology.
APRESENTAO ................................................................................................................. 17
1. INTRODUO .................................................................................................................. 23
1.1 A ETNOPSICOLOGIA .................................................................................................. 23
1.2. A PSICANLISE APLICADA AO CONTEXTO SOCIAL ........................................ 42
1.2.1. A IDENTIFICAO E O PROCESSO DE SUBJETIVAO ................................ 42
1.2.2 A CRIANA NO PERODO PR-EDIPIANO .......................................................... 52
1.2.3. O COMPLEXO DE DIPO E A FUNO PATERNA ........................................... 59
1.2.4. O NOME DO PAI E A METFORA PATERNA: .................................................... 67
1.2.5. A RELAO ENTRE O SIGNIFICANTE E A METFORA PATERNA.............. 71
1.2.6. A CONSTRUO MTICA E O MITO DO DIPO NA PSICANLISE ............... 73
1.3 A TRANSFERNCIA EM PESQUISA DE CAMPO ................................................... 76
1.4 A UMBANDA E A ANCESTRALIDADE AFRO-BRASILEIRA ............................... 83
3. CONCLUSO................................................................................................................... 185
APRESENTAO
Mayotte foi formada por populaes provindas da frica subsaariana e uma das duas
principais lnguas locais tinha influncia da etnia banto. A possesso descrita pelo autor como
um sistema de comunicao era inteligvel mesmo aos habitantes muulmanos e asiticos
da ilha. A razo dessa inteligibilidade estava no fato da possesso ser uma forma de
linguagem.
Lambek (1981) reconheceu uma variedade de categorias justapostas que poderiam ser
investigadas na possesso. A estrutura do transe no corresponde a nenhuma delas em
particular. A comunicao na possesso tanto pessoal quanto coletiva. A possesso tem uma
estrutura interna precisa e coerente, que se mantm independentemente da dinmica
psicolgica daqueles que dela participam. O transe simbolicamente ordenado e os espritos
fazem parte da cultura geral local. Ela tambm prov um terreno frtil para a gerao tanto
de novidades intelectuais quanto de experincias emocionais (LAMBEK, 1981, p. 10) e por
isso pode ser considerada um sistema de pensamento e de expresso.
18 | Apresentao
O autor reafirma que necessria a inteligibilidade do sistema para que o mesmo faa
sentido, ou seja, preciso que os participantes tenham assimilado as convenes presentes na
possesso para que se tornem capazes de produzir significados por meio dela. A cultura, por
sua vez, para esse autor uma questo de conveno e, justamente por isso, pode ser
continuamente negociada, o que pode ser observado nos ritos de possesso.
O autor afirma ainda que o transe deve ser pensado em termos de sua particularidade
cultural, uma vez que, os cdigos e as restries em funo dos outros sub-sistemas sociais,
culturais, psicolgicos (LAMBEK, 1981, p.183) etc. no so os mesmos de uma sociedade
para outra.
Relatou ainda que Ritinha havia dito que Bruna estava triste por no ter ido viajar
tambm. Eu no havia me pronunciado com essa amiga a respeito dessa viagem, mas, os
sentimentos que a envolviam, para um local onde j tnhamos vivido por um determinado
perodo, ressurgiam como se estivessem sendo vivenciados por duas crianas espirituais.
Nos ltimos meses, ao cogitar um nome, supostamente para uma filha, Bruna surgiu
por meio da seguinte frase: no, Bruna no. Lembrei-me, de uma vez, que vi uma criana
brincando com sua boneca e que ao ouvir que o nome da boneca era Bruna, fiz, sem querer,
uma careta. Eu e essa criana nos olhamos e rimos depois. Porque o nome Bruna surgia
enquanto possibilidade a ser recusada, eu ainda no sabia explicar.
Recordei, dias depois, que tive uma amiga chamada Bruna, que me foi querida, mas
tambm muito travessa. Essa amiga (que viajava) conheceu Bruna. Lembrei, ento que Bruna
havia sido a nica amiga que tivemos em comum. No nos lembrvamos dela, eu no me
20 | Apresentao
recordava, pelo menos, h muitos anos. Bruna no conviveu conosco em terra estrangeira,
cenrio da atual conversa. Lembrei-me que falamos dela apenas no primeiro dia em que nos
encontramos, nesse lugar, h mais de 15 anos. Bruna foi o elo para engatarmos a primeira
conversa, tendo sido depois, por mim, pelo menos, esquecida. Ao lembrar-me de Bruna,
comecei a compreender a ambigidade do nome. Bruna nomeava uma relao com a infncia,
ainda difcil de lidar.
No h uma interpretao nica para a histria trazida por Ritinha. O que esta parecia
nomear, a princpio, para mim era uma sequncia de faltas. Bruna, a amiga de infncia no
est presente entre ns de carne e osso h muito tempo, embora viva. Bruna no viajou para
essa terra estrangeira no passado, mas surgiu nessa interpretao de Ritinha como uma
personagem espiritual, sua amiga e supostamente minha criana. Ritinha ao falar de
Bruna sinaliza a saudade, ou seja, indica a falta que essa amiga faz, nomeando para ns
duas, as faltas sentidas, as saudades vividas associadas a um passado para o qual no se
retorna mais.
Eu e minha amiga estvamos com saudade uma da outra, mas sentamos saudade
tambm do tempo que passou, do lugar em que vivemos, de momentos de uma juventude
perdida que no recuperaramos mais. So a esses sentires que Ritinha tambm se
reportava quando disse que ambas, ela e Bruna (amigas espirituais) estavam tristes e com
saudade uma da outra. Ritinha nos sinalizou que Bruna, atual entidade espiritual e criana na
umbanda continua presente entre ns, podendo ser nossa mais velha e nova amiga.
Sem me dar muito conta, eu havia me acostumado a ser chamada por filha e o lao
que se preservava ainda com os guias parecia ser realmente ainda um lao de filiao. No
sou mdium umbandista ou filha de santo e nunca estive em estado de transe, a filiao a que
agora me refiro era na verdade uma questo a ser esclarecida inclusive para mim.
Sem que eu o tivesse atrelado ainda a qualquer proposta de trabalho cientfico nesta
direo, recordo-me que durante esse perodo de transio eu me encontrava indecisa, sem
Apresentao | 21
Nesta pesquisa, o uso do termo famlia no se reduz anlise de uma famlia nuclear,
embora se compreenda que na umbanda costuma ser precisamente em torno desta que se
constitui a rede de filiao, tambm afetiva, que costuma estar no mago de uma famlia de
santo umbandista.
1. INTRODUO
1.1 A ETNOPSICOLOGIA
originalidade terica de Wundt contriburam para que seu nome fosse primeiramente
associado Psicologia dos Povos (ainda que o reconhecimento desse autor esteja mais
associado ao campo da Psicologia Experimental do que rea da Psicologia dos Povos). Para
Hearnshaw (1987), a iniciativa de Steinthal e de Lazarus foi importante na medida em que foi
por influncia deles que foi feita a primeira ponte entre a nova cincia da linguagem e a
Psicologia (HEARNSHAW, 1987, p. 285).
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o termo Psicologia dos povos comeou a ser
evitado na Europa. A palavra povos foi deixando de ser utilizada e em substituio surgiu,
na segunda metade do sculo XX, o uso do termo etnia (DYSERINCK, 2002). Ainda que
etnia seja uma palavra derivada do grego ethnos cujo significado continua sendo povo, o
uso da palavra etnia no possua o mesmo peso histrico que o termo povos possua. Foi a
partir das mudanas iniciadas com o fim da Segunda Guerra Mundial, portanto, que a
alterao do nome Psicologia dos povos para Etnopsicologia comeou a ocorrer
(DYSERINCK, 2002).
A autora discute que embora o uso do termo psicolgico possa pertencer forma de
compreenso do pesquisador, o seu uso apropriado, pois psicolgico traduz tanto as
construes culturais e particulares de cada pessoa quanto se associa ideia de natureza
humana (LUTZ, 1985, p. 35).
O surgimento da Etnopsiquiatria
Ainda que a proposta inicial do autor tenha sido revisar e ampliar o uso de conceitos
tanto da Antropologia quanto da Psicanlise, o conceito central em torno do qual sua obra se
estruturou foi o de cultura. Crtico da Antropologia Cultural Norte-americana, Devereux
(1970) contestava que a cultura pudesse ser compreendida tal como os culturalistas
americanos at ento a concebiam: como uma realidade `sui generis exterior e superior aos
28 | Introduo
indivduos (BASTIDE, 1970, p. IX). Para Devereux (1970) a cultura deveria ser vista como
uma experincia vivida e enquanto tal apenas poderia ser compreendida na relao
psicodinmica que existe entre ela e os homens (p. 82). A inteno de Devereux (1970) era
investigar, assim, no a natureza etnolgica da cultura, mas a forma como o homem
apreende a cultura (DEVEREUX, 1970, p. 83).
O analista no deve tentar fazer com que se rompa o vnculo que liga o
paciente ao seu passado longnquo uma vez que o passado o depositrio
dos valores individuais. [...] O que necessrio remover os obstculos para
o crescimento pessoal, com o intuito de devolver aos indivduos, por meio da
psicoterapia, a flexibilidade necessria para se adaptarem ou mesmo para
mudarem, melhor ainda para dar a cada pessoa a capacidade de adaptao a
um mundo em transio (BASTIDE, 1970, p. XI).
Ao argumentar que a cultura de cada paciente deveria ser analisada, Devereux (1970)
no propunha que psiquiatras e psicanalistas se tornassem especialistas na cultura de cada
paciente (p. 80). O importante, segundo ele, era que esses profissionais reconhecessem apenas
a funcionalidade da cultura no psiquismo de cada paciente (BASTIDE, 1970).
Introduo | 29
Convencido da eficcia que o manejo adequado das questes culturais poderia trazer
tcnica da psicanlise, o autor sugeriu que os diagnsticos psiquitricos fossem pensados em
funo da cultura e do meio social dos pacientes. Para Devereux (1970), o desenvolvimento
histrico de uma sociedade pode propiciar a maior ou menor incidncia de quadros clnicos.
Nesse sentido, a anlise das estruturas sociais contribuiria para igualmente minimiz-los. H
um quadro de referncia estritamente sociolgico a atar teoria psicanaltica. O fato dos pais
ou de um dos pais prejudicar o filho depende do estatuto e da funo atribudas a eles pela
sociedade (DEVEREUX, 1970, p. 122).
Para Bastide (1970), com este argumento o autor teria destrudo totalmente a
definio to frequentemente proferida da normalidade pela adaptao social em que
preciso que voc mesmo seja doente ou se esforce para ficar doente para se adaptar a uma
sociedade doente [...] (p. IX).
Uma das ideias de De Martino a de que os mitos e os ritos existem para que as
pessoas se recuperem a perda da presena, ou seja, da perda da capacidade do ser de ser
agente no mundo. O autor observou que os rituais de possesso do tarantismo eram buscados
por indivduos que haviam passado por uma crise de falta de pertencimento relativamente
recente. Eram pessoas que se percebiam desapropriadas de seus cdigos simblicos e
relatavam sentir angstia e um vazio existencial. A busca pelos mitos e ritos existia para
que o passado simblico perdido pudesse ser recuperado e para que um novo passo em
direo ao futuro pudesse ser dado 1.
1
Aula apresentada por Trindade na FFCLRP-USP, dia 11-05-2011.
32 | Introduo
As lutas ideolgicas no Brasil no foram travadas com inimigos externos ao pas tal
como aconteceu na Europa; elas ocorreram entre grupos internos, com interesses antagnicos.
No final do sculo XIX, a variedade de grupos tnicos formada, no caso brasileiro, por
brancos, negros e amerndios, foi interpretada como um obstculo para a formao de uma
identidade nacional brasileira. Essa heterogeneidade era vista como algo que dificultava e
dificultaria ainda o desenvolvimento econmico do pas (QUEIROZ, 1989). Esta
interpretao de inviabilidade talvez de formao de uma identidade nacional brasileira
passaria por uma inverso a partir da dcada de 20. A busca por uma identidade cultural que
pudesse afirmar a identidade nacional brasileira persistiu, sendo ora formulada pelos
cientistas sociais, ora sendo inconscientemente construda pelos cultos afro-brasileiros
(parecendo ser a umbanda um exemplo claro nesta direo) (QUEIROZ, 1989).
Em outras palavras, embora Lacan conceba que a estrutura da linguagem permita o acesso
ao sujeito (e aos constructos socioculturais implicados), no se trata de reduzir o fenmeno
cultural estudado ou a pessoa a uma categoria gramatical. Bairro (2011) sinaliza o equvoco
reducionista que pode ser cometido se no houver o discernimento necessrio de que no a
lingustica, mas a linguagem apresentada pelo sujeito suposto ao ato enunciativo que importa
psicanlise (BAIRRO, 2001, p. 42). O Outro na psicanlise lacaniana a prpria referncia do
simblico. Realidade discursiva, espao aberto de significantes, encontrado pelo sujeito desde o
seu ingresso no mundo. A linguagem concebida na psicanlise lacaniana como um efeito do
simblico sobre o sujeito (ANDRS, 1993, pp. 385-386).
O inconsciente numa acepo entendido como uma parte em falta num discurso
concreto e essa parte em falta pode ser mapeada pelas partes efetivamente proferidas
(BAIRRO, 2005, p. 442). Ou seja, compreende que o discurso inconsciente no est reduzido
comunicao verbal uma vez que se situa no que escapa ao verbal. O discurso inconsciente surge
atrelado a outras formas de enunciao, dada a impossibilidade de se poder dizer verbalmente.
Para a psicanlise, dizer um ato e o ato um dito. Em uma anlise, por exemplo, o
dito produzido na ao da fala e os atos, por meio da fala, se revelam ditos. O significado se
produz na ao dos atos e ditos (no ato de dizer e no dizer do ato). Se, ato e dito so
significantes, o que um significante? O que inicialmente parece ser importante a
concepo lacaniana de que na ao dos significantes que os sentidos so produzidos. Se o
significante por definio a falta de um significado, para compreender o que seja um
significante em campo necessrio perceber os acontecimentos significativos, indicativos
de um acontecimento significante (BAIRRO, 2011).
se posicionam para alm do que tambm nos contam. No necessrio aceitar o inconsciente
como uma realidade para compreender a proposta, comum a boa parte das etnografias.
Atento concepo comum de linguagem como restrita aos tipos, escrita ou falada, o
autor observa nos gestos e movimentos rituais a formao de sequncias corporais
discursivas (BAIRRO, 2011). As histrias encenadas pelo panteo umbandista denunciam
excluso social (BAIRRO, 2004), relembram-nos genocdios histricos (BAIRRO, 2002;
2005), apresentam, em suma, um discurso que ultrapassa em larga escala o contedo
verbalizado. Os atos e gestos observados sugerem ainda elaboraes em curso, com novas
produes de sentido:
Dando incio reviso a respeito da identificao, o termo foi utilizado pela primeira
vez por Freud em 1895 no texto Estudos sobre a histeria. Essa definio passou por
modificaes ao longo dos anos, pois outros conceitos, tais como identificao projetiva,
incorporao, introjeo, investimento foram sendo criados e acrescentados teoria
psicanaltica (SEDAT, 1996, p. 256). No incio, a identificao foi descrita por Freud como
uma lenta hesitao entre o eu e o outro, ao passo que a identidade finalmente
encontrar um eu que poderia (ilusoriamente) estar livre de qualquer relao de objeto
(SEDAT, 1993, p.256). Desde o seu surgimento, o termo identificao est relacionado
questo da formao da identidade, pois segundo Freud, a identificao decorre da capacidade
do sujeito de ocupar lugares e posies psquicas distintas no relacionamento com os outros
(SEDAT, 1993, p. 256).
Se pensarmos nas expresses que sugerem uma identificao, tais como eu sinto ou
eu penso o mesmo, por exemplo, compreende-se porque Lacan (1961-1962) escreveu nesse
seminrio que: (...) a experincia nos sugere procurar o sentido de toda identidade, no
corao do que se designa por uma espcie de reduplicao de mim mesmo [moi-mme]; (p.
13). A identificao est na percepo de um eu mesmo no que diz respeito a um sentimento
ou a uma ideia, que no se distinguiu da do outro, fazendo o sujeito se ver duplicado no
corao dessa experincia. Lacan no usa a palavra sentimento como faz Freud, quando
desenvolve o conceito da identificao. O autor preserva, contudo, certa conexo da
identificao com o que seriam os sentimentos do sujeito, fazendo uso de palavras
metafricas que indicam que h outros sentidos sendo compartilhados nessa experincia.
Lacan (1961-1962) parafraseia a famosa frase de Descartes, Penso, logo existo para
ressaltar que para os psicanalistas, os pensamentos se produzem nas experincias. A inteno
do autor pontuar que o pensamento no se desvincula do ser (sujeito) e nessa direo um
pensamento, em suma, no exige em absoluto que se pense no pensamento (LACAN, 1961-
1962, p. 17). Em outras palavras, Lacan cita Descartes para ironicamente trazer a
compreenso de que a existncia do homem no depende de seus pensamentos (conscientes),
pois, a frase de Descartes real quando invertida: existo, logo penso. Lacan (1961-1962)
reitera com isso que o objeto da psicanlise o ser do homem e que se, o psicanalista pensa os
pensamentos que o homem pensa (enquanto no os percebe que os pensa) porque para os
44 | Introduo
por essa razo que ao investigarmos o saber que o prprio sujeito no sabe que sabe
se pesquisa, em certa medida, o que o outro sabe, mas porque no sabe que sabe est
inconsciente. As descobertas acontecem no com o relato do que o sujeito diz que j sabe. As
descobertas acontecem quando o sujeito, ao perceber seu saber explcito, reconhece-se nele e
confirma que sente que sabia aquilo ainda que at ento ele no soubesse que o sabia. No
h uma concepo passiva de sujeito, implicitamente adotada como se pode pensar, quando
Lacan o coloca como sujeito do inconsciente, pois o saber do sujeito do inconsciente decorre
de suas experincias e enquanto tais so expresses de sua autoria e singularidade.
Se o sujeito (do inconsciente) cr que o saber que ele sabe do Outro e que o Outro
quem sabe (e no ele), bem, o Outro o lugar dos significantes, o significante est na
linguagem e a linguagem pblica, sendo o saber, de certa forma, intersubjetivo. A forma de
se apropriar do saber, entretanto, do sujeito e se coloca de uma maneira distinta de um
sujeito para o outro, ainda que, na experincia da identificao, fique sugerida que a
experincia seja a mesma para todos. Neste trecho da obra, o autor indica que a percepo
da realidade decorre do modo prprio do ser de cada sujeito.
Lacan especifica neste trecho da obra que a identificao no tem nada a ver com a
unificao. Somente distinguindo-a desta que se pode dar-lhe, no somente seu destaque
essencial, como suas funes e suas variedades (LACAN, 1961-1962, p. 47). A identificao
no fazer um, pois na identificao emerge a marca (significante) da diferena. Lacan
especifica que para compreender o sujeito da enunciao se deve observar ainda o estatuto do
significante, ou seja, a dimenso do aparecimento ou do desaparecimento do significante:
[...] na prpria medida em que do sujeito que se trata, que temos que nos
interrogar sobre a relao dessa identificao do sujeito com o que uma
dimenso diferente de tudo o que da ordem do aparecimento e do
desaparecimento, a saber, o estatuto do significante (LACAN, 1961-1962, p.
52 itlico acrescentado).
Segundo o autor, h diferentes modos, diferentes ngulos sob os quais somos levados
a nos identificar como sujeitos e para uma parte, ao menos, dentre eles, o significante serve
46 | Introduo
para articular estas vrias formas, ainda que na maioria das vezes isso se faa de maneira
ambgua, imprpria, mal manejvel e sujeita a todas as espcies de reserva e de distines
(LACAN, 1961-1962, p. 52). Por essas razes, numa anlise preciso que coloquemos a
identificao em relao a certo acesso ao idntico (LACAN, 1961-1962, p. 53), mas de
maneira a transcend-lo:
Lacan (1961-1962) representa o trao unrio pelo valor (1) e depois (-1), sugerindo a
tendncia de unicidade (1) do sujeito, mas que na falta que lhe constitutiva se inscreve como
(-1). O trao unrio , portanto, marca de apagamento e de distino e por esse motivo
paradoxalmente fixa a essncia de no-identidade consigo mesmo do significante
(PORGE, 1996, p. 552). O trao unrio inscreve o no-dito (-1) para que o sujeito venha a ser
dito um (1).
Segundo Bairro (1996), o trao unrio a atadura entre o real e o simblico. Do real
marca a identidade da falta e como significante registra pura e simplesmente a diferena (p.
261).
48 | Introduo
O trao unrio quanto mais recalcado for, mais apagado se encontra; quanto mais
apagado estiver, maior seu valor de distino; quanto mais se distinguir, mais se aproximar
de seu valor de referncia no Outro (LACAN, 1961-1962). Em outras palavras, o trao unrio
quanto mais se coloca como trao, mais se distingue do signo e quanto mais se distingue do
signo, mais se torna suporte da diferena, significante (p. 73).
O trao unrio faz o sujeito aparecer como aquele que conta no duplo sentido do
termo (LACAN, 28 de maro de 1962, p. 5). Mas conta o qu? Nessa enumerao de menos
uns que indica um automatismo da repetio, o que (mais ou menos) o sujeito conta? De
acordo com Lacan (1961-1962), as questes cruciais na identificao de uma identificao
so: (...) o que est ali? O que que funciona? (...) Quem que fala, e a quem? (p. 146).
Dito em outros termos, por mais que o sujeito possa ser percebido na cadeia
significante que se repete o sujeito no est na repetio apenas, mas na ao por ele
empreendida, contada em funo dessas repeties.
Lacan (1961-1962) reitera que a pequena diferena marcada pelo significante faz uma
diferena absoluta, pois a partir desta que se pode acomodar todo o propsito narcsico do
sujeito (p.169). Neste trecho da obra, o autor comea a articular sua compreenso a respeito
do Complexo de dipo na constituio da subjetividade humana.
Alm disso, o menos um (do trao unrio) no significa que houve uma ausncia
repentina do um (LACAN, 1961-1962, p. 170): o autor introduz a concepo de que o Outro
se constitui para o sujeito como metfora do trao unrio, isto , como o lugar que o leva
substituio desses um que se diferem uns dos outros, numa regresso infinita desse Outro
tambm tido como um (metonmico). Por meio do jogo metafrico, Lacan contesta que o
sujeito s no sem, no-sem poder, pois est na origem possvel do desejo posto como
condio, mesmo se tal condio fique em suspenso (LACAN, 1961-1962, p. 202). Em
outras palavras, o sujeito como -1 encarna a dimenso da metfora e se tal condio o coloca
em posio de poder, isso se deve ao fato de que a raiz desse poder vem do que Lacan
chamou de condicionalidade absoluta do desejo (LACAN, 1961-1962, p. 202).
Se h algo que possa ser dito a respeito da vivncia do complexo de dipo que este
tem por funo no apenas introduzir o complexo de castrao, mas elaborar a funo do pai,
a lei do pai, ainda que de maneira recalcada, ou seja, inconsciente e justamente por isso,
permanente. (LACAN, 1956-1957, p. 216).
encontra implicado nesta escolha o prprio ser: isto , mais precisamente aquilo que falta
ao ser e que o faz na qualidade de sujeito desejante, desejar um objeto de amor (LACAN,
1956-1957, p. 218).
Lacan (1956-1957) a este respeito pontua que nosso semelhante ainda menos que um
objeto, pois este apenas preenche seu lugar em funo do que o prprio sujeito se interroga.
Um objeto, portanto, no algo simples, pois embora o sujeito o conquiste (como lembrou
2
Lacan postula que o sujeito busca nesse outro, tido como objeto de amor, no apenas um complemento, mas a
parte para sempre perdida de si mesmo: O efeito de logro, de engodo, a falsidade essencial que o amor, o
verdadeiro amor para retomar a expresso de Freud, apresentada, por Lacan, como um efeito do
assujeitamento do desejo do sujeito ao desejo do Outro (Viltard, 1993, p. 29)
Introduo | 53
Freud), a conquista no se d sem que o objeto tenha sido inicialmente perdido. Nesse
sentido, afirma Lacan (1956-1957), um objeto sempre uma reconquista (p. 382).
Para discorrer a respeito das relaes de objeto, Lacan articulou a noo da falta do
objeto aos trs nveis de registro de sua teoria, ou seja, ao imaginrio, ao simblico e ao real.
A falta do objeto no nvel do imaginrio leva o sujeito experincia da frustrao, no nvel do
simblico articulao da castrao e no plano do real privao.
A privao decorre da falta real e postulada por Lacan como um furo ou uma
ausncia real e por isso se situa no plano do real. A frustrao se evidencia como um dano,
uma leso que o sujeito apresenta na clnica, estando situada no plano do imaginrio:
Quando Lacan (1956-1957) se refere falta do objeto na privao, pontua que esta no
est no sujeito, pois: Para que o sujeito tenha acesso privao, preciso que ele conceba o
real como podendo ser diferente do que , isto , que j o simbolize (p. 54).
A me, nessa etapa, pode ser percebida como o agente simblico, pois ela quem
oferece criana a possibilidade inicial de simbolizao, com suas idas e vindas, ou seja, em
funo de uma periodicidade que suscita carncias na criana. O agente, entretanto, mais do
que isso. A relevncia do agente, segundo Lacan, est no fato dele participar da ordem da
simbolicidade e enquanto tal oferecer criana a possibilidade de conciliar a relao real
com uma relao simblica (LACAN, 1956-1957, p. 68).
Dos 18 primeiros meses em diante, os objetos apreensveis que a criana quer reter
consigo mesma, no so tanto mais objetos de satisfao apenas, uma vez que a criana j
experimentou a frustrao na relao que estabeleceu com a me. A me que inicialmente era
simblica, presente e ausente numa espcie de jogo dialtico com a criana, ao passar a ser
percebida pela criana como uma pessoa distinta, que detm algo de que ela necessita, se
torna real e assume a marca do valor de uma potncia (LACAN, 1956-1957, p. 69).
por meio desta dolorosa dialtica do objeto, em que o objeto est ali e, ao mesmo
tempo, no est, que a criana inicia e exercita a simbolizao. diante do par, presena-
ausncia, ou seja, de uma presena sobre um fundo de ausncia, ou de uma ausncia que se
articula e se constitui como uma presena, que a criana aniquila, ao obter satisfao, a
insaciedade fundamental dessa relao. Esta descrio de Lacan parece estar embasada na
chamada fase oral da criana, formulada por Freud.
Nesta insaciedade pulsional que surge intermediada inclusive pelo alimento preciso
reconhecer que: Desde a origem, a criana se alimenta tanto de palavras quanto de po, e
perece por palavras (LACAN, 1956-1957, p. 192).
constitui, aos poucos, o seu lugar (LACAN, 1956-1957). Devido posio originria da
criana ali estar como objeto de prazer para a me, sendo a criana geralmente imaginada
desta forma pela me, pode-se dizer que a criana colocada, a princpio, num estado
fundamentalmente passivo. O melhor que a criana pode fazer nessa situao em que se
encontra na captura imaginria da me se imaginar tal como ela est sendo imaginada, para
ento, pouco a pouco, se distinguir para aquilo que ela (LACAN, 1956-1957).
A me, para a criana, existe como objeto simblico e objeto de amor. Se a relao da
criana com a me inaugura o que se chama habitualmente de uma relao primria
indiferenciada necessrio que a criana se inclua, por sua vez, nesta relao como objeto do
amor da me. Esta uma das experincias mais fundamentais para a criana, ou seja, a de
saber se sua presena requerida, se ela quem faz a me estar presente e se ela quem supre
a necessidade de amor da me. Ainda que o desejo da me no se limite criana,
fundamental que a criana se perceba amada e desejada pela me (LACAN, 1956-1957). Pois,
durante a fase pr-edipiana que a criana levada a deslizar progressivamente para uma
posio terceira. Ou seja, para uma posio em que ela fica entre o desejo de sua me, por ela,
(desejo que a criana experimenta e que , o que h de mais importante para ela, LACAN,
1956-1957) e por um objeto imaginrio. Este apenas lhe indica que h um algo mais, desejado
pela me. O desejo da criana, ela prpria tambm o constitui como resposta, ou seja, com
aceitao ou recusa em ocupar esse lugar que o inconsciente do Outro lhe designou.
Com estas primeiras simbolizaes do desejo desejado pela criana esboam-se todas
as complicaes posteriores da simbolizao, na medida em que seu desejo o desejo do
desejo da me (LACAN, 1957-1958). No o objeto de desejo da me apenas que a criana
deseja, mas o desejo da me que a faz; o desejo que leva a me a ter outros objetos de desejo.
A me um ser que vive no mundo da linguagem. Mesmo que ela viva nesse mundo de
58 | Introduo
maneira mal adaptada, tendo recusado alguns de seus elementos, a simbolizao primordial
abre para a criana uma dimenso no plano imaginrio, de que a me pode desejar,
objetivamente, outras coisas diferentes. A criana aprende, ento, a desejar Outra coisa que
no seja apenas fruto de seu prprio desejo, ou seja, a desejar, tal como a me, coisas que a
levem a comear a palpitar para a vida. Um exemplo desta simbolizao primordial da
criana pode ser observado quando a me, no presente, chamada pela criana; para ser,
logo em seguida, repelida por ela, para que a criana possa chamar pela me novamente
(LACAN, 1957-1958).
Por estar aliado a uma ordem de simbolicidade, o desejo da me tem por elemento
privilegiado o falo. H mais do que uma relao de simetria entre o falo e o pai. O desejo do
Outro que se sustenta no desejo da me apenas pode ser atingido por meio de um elemento de
mediao. Esse elemento de mediao dado pela posio do pai na ordem simblica
(LACAN, 1957-1958).
O falo, assim como qualquer outro smbolo na medida em que mais, supe o menos
e na medida em que menos, supe o mais (LACAN, 1957-1958, p. 240). Em outras
palavras, o falo funciona como elemento simblico fazendo a mediao das ambigidades
deste perodo:
A criana com maior ou menor astcia pode conseguir vislumbrar desde muito cedo
o que o x imaginrio. Mas, a via imaginria no a que leva a criana a se desenvolver mais
saudavelmente. O que preciso desenvolver a simblica e esta metafrica. A metfora na
psicanlise lacaniana a substituio de um significante por outro. O pai um significante
que substitui outro significante: A funo do pai no complexo de dipo ser um significante
que substitui o primeiro significante introduzido na simbolizao, o significante materno.
Segundo a frmula que um dia lhes expliquei ser a da metfora, o pai vem no lugar da me
(...) (LACAN, 1957-1958, p. 180).
Introduo | 59
Lacan reconhece a dificuldade que existe tanto em sua obra quanto na de Freud para
diferenciar o uso feito do termo identificao. Confessa haver certo embarao tanto nele
mesmo quanto em Freud com relao a algumas distines, necessrias de serem feitas a
respeito deste conceito. A dificuldade, segundo o autor, estaria em conseguir lidar com a
ambigidade de certa forma inerente entre o que seria escolha ou investimento no objeto e o
que seria uma identificao propriamente. Na obra de Freud, os dois termos aparecem num
grande nmero de casos como substituindo um ao outro com o mais desconcertante poder de
metamorfose, de tal maneira que a prpria transio no captada (LACAN, 1956-1957, p.
173). O fato de um objeto se tornar objeto de escolha no o mesmo de se tornar suporte da
identificao do sujeito, segundo Freud. Lacan reconhece que pelos textos de Freud,
entretanto, possvel perceber a identificao como um processo mais primitivo, ligado ao
narcisismo. Sendo assim, Lacan distingue o uso do termo identificao de escolha do objeto,
afirmando que a identificao faz com que o eu seja reerigido, ou seja, se transforme
parcialmente segundo o modelo do objeto perdido (LACAN, 1956-1957).
Lacan atribui ao pai a funo de organizar, delimitar pelo interdito da lei, o mundo
simblico da criana (LACAN, 1956-1957). Se inicio esse captulo me referindo ao complexo
de dipo e funo paterna porque em vrios trechos da obra de Lacan o autor indica que o
tema central do complexo de dipo a funo paterna: No existe a questo do dipo
quando no existe o pai, e, inversamente, falar do dipo introduzir como essencial a funo
do pai (LACAN, 1957-1958, p.171).
Lacan no delimita o pai a uma pessoa emprica, pois se refere ao pai como uma
posio que resguarda uma funo, que veio a ser chamada por ele, naturalmente, funo
paterna:
A soluo que pode ser fornecida nesse perodo para a passagem para a terceira etapa,
configurando a sada do complexo de dipo, no est na relao da criana com o pai
propriamente, mas na qualidade dele como detentor de um direito. A sada para a criana
depende apenas desta atestao do pai como portador da lei. A criana, ao se frustrar com o
interdito do pai, precisa que o mesmo mantenha o prometido, ou seja, que o pai confirme sua
condio de portador da lei, mantendo sua posio de primazia com relao me (LACAN,
1957-1958). A relao entre o menino e o pai dominada pelo medo da castrao, mas
porque, na experincia do dipo, a castrao se apresenta como uma represlia no interior de
uma relao agressiva (LACAN, 1957-1958).
Para que o menino venha a assumir sua funo sexual viril necessrio que o pai
desempenhe um papel essencial. Para que o complexo de castrao seja vivido,
principalmente pelo menino, preciso que o pai jogue realmente o jogo:
preciso que ele assuma sua funo de pai castrador, a funo de pai
sob sua forma concreta, emprica, diria quase degenerada, sonhando com o
personagem do pai primordial, a forma tirnica e mais ou menos horripilante
sob a qual o mito freudiano se apresentou para ns. na medida em que o
pai, tal como existe, preenche sua funo imaginria naquilo que esta tem de
empiricamente intolervel, e mesmo de revoltante quando ele faz sentir sua
incidncia como castradora, e unicamente sob este ngulo que o complexo
de dipo vivido. (LACAN, 1956-1957, p. 374).
uma alteridade absoluta. Por uma alteridade que se configura no Outro, o qual responde
criana sem intervir em dilogo algum. Este o pai real, ao qual a criana s tem acesso
devido interposio de fantasias e necessidade da relao simblica (LACAN, 1956-
1957).
Esta alteridade que se encarna em personagens reais introduzida pelo pai imaginrio.
O pai imaginrio aquele que faz com que toda a dialtica da agressividade e da idealizao
da criana a leve, por fim, a se identificar com o pai. O pai imaginrio participa desse registro,
apresentando caractersticas tpicas, como a do pai assustador, mas no tem obrigatoriamente
qualquer relao com o pai emprico da criana (LACAN, 1956-1957):
Freud aborda a questo tendo o pai imaginrio como mestre absoluto (LACAN, 1956-
1957). Lacan confirma que a simples presena do pai emprico pode ajudar a criana a
simbolizar sua situao no Complexo de dipo. O autor, entretanto, ressitua o pai imaginrio
freudiano ao introduzir a noo do pai real, articulada posio do pai simblico. Este ltimo
aparece caracterizado como a marca da necessidade de uma dimenso transcendente, mas que,
no limite, permanece velada (LACAN, 1956-1957). O pai simblico, ao contrrio do que se
supe, no se reduz ao estilo do terror e do respeito, se o compararmos ao estilo de pai
adotado em algumas religies (LACAN, 1956-1957).
Lacan diz que o pai simblico, por sua vez, uma necessidade de construo
simblica, que s podemos situar num mais-alm, diria quase que numa transcendncia, pelo
menos como um termo que, como lhes indiquei de passagem, s alcanado apenas por uma
construo mtica (LACAN, 1956-1957). Esta construo mtica no se d de forma idntica
para todos os indivduos, sejam estes pertencentes mesma cultura ou no: Do mesmo
modo, este tipo de instncia superior to inerente funo paterna que tende sempre a se
reproduzir de alguma maneira (LACAN, 1956-1957, p. 405-406). O pai simblico no est
representado em parte alguma, pois o pai simblico o significante de que jamais se pode
falar, seno reencontrando o pai imaginrio e o pai real.
Introduo | 63
Da concepo de pai simblico, Lacan criou o conceito, Nome do Pai. Este aparece
definido pelo autor como o elemento mediador essencial do mundo simblico e de sua
estruturao (LACAN, 1956-1957, p. 374). O Nome do Pai o elemento essencial que leva
articulao da linguagem humana.
A confuso que deve ficar clara para a criana que o pai no castra a me de uma
coisa que ela no tem. A falta materna se projeta para a criana no plano simblico, como
smbolo apenas. Como h, entretanto, uma privao de fato, esta privao real exige a
simbolizao. por essa razo que, no segundo tempo do complexo de dipo, a privao da
me se coloca para a criana como uma questo a ser dada valor de significao. A criana
aceita, recusa, registra a privao da qual a me revela-se objeto. A privao da me leva ao
complexo de castrao, pois por meio dessa identificao que a criana se sente castrada.
essencial, por essa razo, que o pai assuma, neste estdio, o fato de ser o portador do falo,
intervindo mais efetivamente na relao com a criana. Tanto o menino quanto a menina
podem aceitar ou recusar a privao; pode ocorrer inclusive da criana se colocar (ou no)
como o falo da me. O pai (no reduzido a uma pessoa emprica, bom lembrar) j
intervinha anteriormente durante o primeiro tempo do complexo de dipo, perodo em que a
criana simbolizava as presenas e ausncias do pai e da me. O pai se encontrava, entretanto,
em segundo plano. exatamente neste ponto, em que a questo passa a ser o ter ou no ter e
no mais o ser ou no ser o falo que o pai forado a entrar em considerao (LACAN,
1957-1957). O pai que intervm, entretanto, o pai simblico, ou seja, o pai revestido de
smbolo: (...) como personagem real, revestido desse smbolo, que ele passa a intervir
efetivamente na etapa seguinte (LACAN, 1957-1957, p. 193). A lei do pai ou, o pai como
portador da lei, entra em jogo, como proibidor da me, fazendo a criana notar que ela no e
no pode ser o falo da me. Disto decorre a castrao, imaginria para a criana. Esta
castrao imaginria necessria para que a criana assuma o falo materno como objeto
simblico.
Introduo | 65
mais essencial do que ter sido, neste ou naquele momento, uma criana mais
ou menos satisfeita. A expresso criana desejada corresponde constituio
da me como sede do desejo, e a toda a dialtica da relao do filho com o
desejo da me que tentei demonstrar-lhes, e que se concentra no fato
primordial do smbolo da criana desejada (LACAN, 1957-1958, p. 268).
O complexo de dipo no pode ser entendido, portanto, como a fase em que o menino
tem desejo pela me ou que a menina tem desejo pelo pai. A criana deseja primeiramente ser
desejada e ser o objeto de desejo da me. Alm disso, a criana deseja, tal como a me, o
Introduo | 67
desejo pelos objetos de desejo da me e esta relao j uma relao simblica (LACAN,
1957-1958).
A soluo do complexo de dipo no terceiro tempo para qualquer um dos dois, est no
fato do pai se fazer prefervel me. O trmino do Complexo de dipo ocorre tendo por
ponto principal a dialtica que se manteve ambgua durante todo o processo de identificao,
sendo a questo central do complexo o amor ao pai (LACAN, 1957-1958).
O conceito Nome do Pai foi definido por Lacan como a palavra que funda a fala
como ato no sujeito, mas que no se limita a sustentar a autenticidade da fala apenas
(LACAN, 1957-1958, p. 151). A funo do Nome do Pai estabilizar a cadeia de
significantes do sujeito, autorizando nesta o texto da lei. Ou seja, o Nome do Pai o
significante que d esteio lei, que promulga a lei para que o sujeito funde, por meio dele,
suas prprias significaes (LACAN, 1957-1958).
emisses que esto para alm do cdigo do sujeito, mas que se significam, dada a posio do
sujeito na cadeia de significantes, sendo o sujeito quem articula as mensagens em ltima
instncia (LACAN, 1957-1958).
Para diferenciar o que seja um significante que apenas falte do que Lacan conceituou
por Nome do Pai, o autor pontuou que sempre pode haver um significante ou uma letra
ausente na tipografia da cadeia dos significantes do sujeito. O Nome do Pai se diferencia por
ser o significante cuja atuao determina a permanncia da falta na estruturao topolgica da
cadeia de significantes, dado o fato da estruturao da cadeia significante pressupor sempre
um significante em falta. A lei da proibio do incesto, por exemplo, traduz o exerccio da
funo Nome do Pai porque esta lei que articula a ordem dos significantes no complexo de
dipo, definindo interditos e permisses que permitem ao sujeito ocupar um lugar numa
famlia e numa sociedade (LACAN, 1957-1958). A origem da lei fornecida pelo Complexo
de dipo assume uma forma mtica porque a lei da proibio do incesto foi promulgada pelo
smbolo do pai (LACAN, 1957-1958):
Introduo | 69
Como vimos, o desejo da criana emerge estando submetido desde o incio, lei do
desejo do Outro. Ou seja, a demanda da criana inscrita numa ordem simblica durante as
primeiras simbolizaes dos objetos maternos. Esta ordem simblica, se no se encontra de
todo estruturada para a criana, est em estado latente. A lei do pai aparece como fruto dessas
primeiras simbolizaes, sendo por essa razo nomeada por Lacan de metfora paterna
(LACAN, 1957-1958).
O menino tem todo o direito de ser homem e de contestar esse direito na puberdade. A
contestao que emerge na adolescncia se deve geralmente a algo que ficou faltando se
cumprir ao longo dos trs tempos do dipo. preciso completar, por exemplo, a identificao
metafrica com a imagem do pai. A metfora paterna, enquanto tal, leva instituio de
alguma coisa, que da ordem do significante. Mas que fica guardada, de reserva, para que
essa significao se desenvolva mais tarde (LACAN, 1957-1958).
70 | Introduo
Existem, entre a fase pr-edipiana e a fase edpica, duas cadeias, cujo ponto de
encontro to somente uma histria mtica, j que no possvel alinhavar uma significao a
um significante. O novo ocorre quando se ata um significante a outro significante. desta
reao, quase qumica, que h o surgimento inesperado de uma nova significao. O pai o
significante que, no Outro, representa a existncia do lugar da cadeia significante como lei.
Ou seja, o pai se encontra numa posio metafrica na medida e unicamente na medida em
que a me faz dele aquele que sanciona, indicando para a criana a existncia do lugar da lei.
Os meios e os modos pelos quais isso pode acontecer comportam uma amplitude e uma
variabilidade imensas, as quais se mantm compatveis, entretanto, com as diversas
configuraes concretas que podemos observar (LACAN, 1957-1958).
A metfora paterna pode se constituir normalmente mesmo para aquela criana cujo
pai emprico tenha permanecido ausente. O complexo de dipo como um todo, pode ser
institudo mesmo para aquela criana que foi deixada, por exemplo, apenas com a me
(LACAN, 1957-1958).
com a posio do Nome do Pai. Quando Lacan menciona o sujeito, no o compreende como
uma pessoa falante, apenas de suas relaes, pois sempre h um terceiro (o Outro)
constitutivo da posio do sujeito (LACAN, 1957-1958, p. 186).
Assim, o pai real na medida em que: as instituies lhe conferem, eu nem diria seu
papel e sua funo de pai no se trata de uma questo sociolgica -, mas seu nome de pai
(LACAN, 1957-1958, p. 186-187). O Nome do Pai est numa espcie de funo que significa
o conjunto do sistema significante, de forma a inscrever nele a lei, que permite a existncia do
filho. O pai que castra, autoriza na verdade a existncia do filho no grupo familiar. desta
diferenciao que surge o Nome do Pai.
Totem e tabu feito para nos dizer que, para que os pais subsistam,
preciso que o verdadeiro pai, o pai singular, o pai nico, esteja antes do
surgimento da histria, e que seja o pai morto. Mais ainda: que seja o pai
assassinado. E, realmente, como isso poderia ser pensado fora do valor
mtico? (LACAN, 1956-1957, p. 215).
No o smbolo de alguma coisa que deve ser cogitado na tarefa analtica. Mas as leis
por meio das quais, a cadeia simblica do sujeito se organiza. As leis operam de maneira
autnoma, de modo que possvel ver nas operaes de remanejamento ou de reestruturao
da cadeia de significantes o conjunto de leis que opera na ocasio. As fantasias, por exemplo,
formadas por imagens que se sucedem, so constitudas por elementos significantes. Lacan
procura mostrar como os significantes da linguagem, que sempre pblica, preservam um elo
com a particularidade, se inscrevendo na histria dos sujeitos (LACAN, 1956-1957).
Ao refletir a respeito do mito, o autor primeiramente aponta que o mito tem uma
funo de soluo. O mito permite ao sujeito articular formas sucessivas de soluo, quando
h o enfrentamento de situaes de impasse, aparentemente impossveis de serem resolvidas.
O complexo de dipo, na qualidade de um esquema fundamental, pode e deve ser explicado
de infinitas formas. Existem, todavia, elementos em sua disposio que se repetem e nos
fazem reencontrar sempre uma mesma estrutura (LACAN, 1956-1957).
O autor analisa o caso do pequeno Hans (descrito por Freud) para mostrar como
algumas intervenes podem ser infecundas, sem ecos, ainda que partam do pai do garoto
propriamente. Enquanto outras, feitas pela av do menino, por exemplo, podem levar a uma
transformao no plano do mito. O autor mostra mais uma vez que a configurao de uma
elaborao acerca da funo paterna, tal como vivenciada no complexo de dipo, no
depende da pessoa emprica ou do pai apenas (LACAN, 1956-1957).
no pode ser explicada por meio da relao entre o significante e o significado da linguagem
apenas, embora, esta aponte as relaes que existem entre o imaginrio e o simblico do
sujeito. As imagens que aparecem nos mitos, nos fragmentos de folclore, as quais so, em
suma, desenhadas pela mo do homem, no so imagens naturais apenas. So imagens que
comportam um passado histrico (LACAN, 1956-1957).
A potncia sagrada, retratada de diversas maneiras nos mitos, tem por funo
introduzir de maneira natural aquilo que une o prximo ao distante, o homem ao universo,
captando as necessidades e os fatores inerentes para essas transformaes. O mito delineia
uma identidade profunda entre os homens, pois as operaes que os mitos regulam se apiam,
desde o princpio, em hipteses estruturais (LACAN, 1956-1957).
O pai morto e assassinado, tal como aparece no mito descrito por Freud, pode indicar
que o complexo de dipo comporta uma elaborao, no apenas do pai, mas do pai morto. A
estrutura mtica do dipo existe para que a presena do pai se torne absoluta, para que exista
um amor supremo pelo pai. Para que o pai seja eternizado e se fixe numa realidade
perdurvel (do ser como ausente) preciso que o pai tenha sido inclusive assassinado,
implicando o sacrifcio de seus ascendentes. A morte passa a ser um dos temas subjacentes
do complexo de dipo, sendo abordada por Lacan (1956-1957).
Introduo | 75
A morte apareceria no complexo de dipo tanto pelo lado do simblico que comporta,
delimita, inscreve na histria do sujeito um passado que j 'morreu', quanto pelo vis da
filiao.
Afiliar-se implica uma equao traumtica, pois, nesse processo, preciso (...)
substituir quem se ama e de quem se depende para poder aceder a uma identidade pessoal e
social (BAIRRO, 2005, p. 96).
O medo da castrao do pai, ao ser interpretado pelo avesso, pode ser entendido como
um pedido de proteo ao pai contra o fato da morte: o temor da perda de um objeto amado,
o receio de uma punio, poderiam recobrir a angstia da perda de si, o temor de morrer
(BAIRRO, 2010, p. 419).
76 | Introduo
Em primeiro lugar, cabe sinalizar o desafio que tem sido pensar a anlise da transferncia,
como tcnica aplicada a um campo social. Circunscrita clnica psicanaltica, a anlise da
transferncia costuma ser empreendida com meticulosidade, permanecendo, por esse motivo,
restrita a apenas este contexto. No pretendo fazer um uso inadequado de conceitos que vm
sendo lapidados pela psicanlise h um bom tempo. A ideia de fazer uso da transferncia na
anlise surgiu com o incio da pesquisa. Um dos indicativos de que esta seria uma boa ferramenta
foi perceber a construo simblica de um lugar, sendo realizada aos poucos pela famlia, para
mim. Chego como pesquisadora, mas sou recebida (percebo isto depois) como filha da Casa. De
filha, passo a ser algum que tambm cuida. Sou integrada instituio Abrigo, mantida pela
famlia. A entrada na instituio previamente sinalizada pelas entidades espirituais locais. O
trabalho que desenvolvo no Abrigo passa a ser mantido (supervisionado, como se diz na
Psicologia) por elas. Ao seguir as orientaes fornecidas, tenho a chance de repensar minhas
teorias. Percebo com o tempo, por meio dessas experincias, como a criana recebida, cuidada,
protegida neste universo simblico. Sinto o que ser filha da casa. Noto, com o tempo, a
existncia de semelhanas e, claro, diferenas entre minha histria e a de outras pessoas que ali
chegaram. Meu movimento na pesquisa passa a ser o de ir e vir do terreiro para a instituio e
vice-versa. Vou aprendendo nesse movimento a observar o lugar ocupado pelos ancestrais. A
instituio e o terreiro so espaos pblicos. Observo, entretanto, que os laos de famlia neles se
solidificam. Aprendo, com o tempo, o saber cultural do terreiro; percebo-o sendo colocado em
prtica na instituio da famlia. Ouo histrias, muitas histrias: de familiares das crianas da
instituio, de amigos, voluntrios, funcionrios etc. Observo a atuao dos profissionais do
judicirio quando lidam com as crianas e com os adolescentes da instituio. Com o tempo,
identifico um discurso mais ou menos padro dos setores vinculados ao Estado. Surge, ento, a
dvida: o que isso tudo tem a ver com a anlise da transferncia? Bem, tenho delineado lugares,
sinalizo discursos que em algum momento se entrecruzam... Qual a relao desta com a teoria
apresentada? O complexo de dipo pode ser uma ferramenta de anlise adequada para este tipo de
estudo, contexto e famlia? O que ser me, pai e filho: perguntaram-me as crianas da
instituio. Ser que a psicanlise lacaniana responde? A teoria no tem sido apresentada como
mera reproduo.
O falo como instrumento do desejo tem um valor decisivo, estando implicado no temor
produzido pela angstia. A angstia, sinaliza Lacan, uma angstia de nada. do nada pode
ser que o sujeito deve se proteger. O desejo se constri por sua vez neste caminho em que h algo
que ameaa o sujeito, ou seja, o falo. Da a facilidade de confundirmos o desejo com a angstia. A
angstia pertence ao domnio do no ser (LACAN, 1961-1962, p. 233), o desejo ao que pode
ser. O Outro para o sujeito o ser que no ou que est para ser. O Outro pode ser, portanto,
tanto fonte de angstia quanto suporte do desejo, se colocando em ltima instncia como
significante puro da lei. O Outro se define como metfora da interdio: Dizer que o Outro a lei
ou que o gozo enquanto proibido, a mesma coisa (p. 239).
O fenmeno da transferncia, assim como a psicanlise, pode ser pensado como uma
experincia dialtica (LACAN, 1998). O dilogo no decorrer da anlise decifra
progressivamente a disposio dos lugares e a funo dos personagens que o analista ocupa e
que no deixam de mudar. O analista se integra anlise como pessoa, mas na qualidade de
elemento significante do discurso que ele operado pelo analisado. A intersubjetividade
criada, por um lado, pelo analista, e por outro, pelo analisado, d a estrutura fundamental para
78 | Introduo
a transferncia. Segundo Lacan, por meio dessa estrutura, digamos mnima, que a decifrao
da histria do sujeito poder ser alcanada (LACAN, 1961-1962).
Lacan foi crtico, de certa forma, das anlises didticas muito prolongadas. Sublinhou
que no h como elucidar, por completo, o inconsciente de algum, ainda que se tente
exaustivamente.
Quanto mais o analista for analisado, mais propenso ele estar a ser francamente
amoroso ou a ser tomado por estados de averso ou de repulsa quando em contato com as
particularidades do paciente. Se esta postura no parece ser a mais adequada, a apatia, como
tentativa de se manter insensvel s sedues do analisado, por exemplo, tambm no seria a
soluo. De um modo geral, a apatia do analista costuma indicar que o mesmo est tomado por
um desejo mais forte do que aquele que vem sendo manifesto na transferncia do analisado. Em
suma, o que Lacan quis argumentar que a contratransferncia no precisa mais ser considerada
Introduo | 79
uma imperfeio na situao analtica. Tudo o que se passa numa sesso de anlise pode ser
trabalhado para o benefcio da anlise. A contratransferncia pode ser um problema se o analista
for afetado ao ponto de no reconhecer ter sido e se tornar o paciente do mau objeto projetado
nele. Caso continue a ser o receptculo da projeo em causa, a sensao do analista costuma
ser a de ter se tornado um objeto estranho. possvel desatar aquilo que se apresentou como um
impasse aparente na situao analtica, quando os efeitos da contratransferncia podem ser
reconhecidos. Neste caso, o que fora at ento considerado um desvio passa a ser utilizado de
uma maneira instrumental na anlise. (LACAN, 1960-1961).
A transferncia , antes de tudo, uma experincia. A prioridade deveria ser entender que
toda a experincia do inconsciente se fez (e se faz) com o inconsciente do Outro. A comunicao
inconsciente emerge do ato de enunciao e no do enunciado. A enunciao se manifesta na
ligao ntima que existe com as palavras; no est exatamente nas palavras, mas no que elas
evocam. A linguagem, por ser articulada no discurso comum, indica que o sujeito do
inconsciente pode ser encontrado do lado de fora. Um lado de fora que rene seus pensamentos
mais ntimos e que escoou, portanto, para o lado de fora. Esse lado de fora no imaterial, pois
toda sorte de coisas est do lado de fora para represent-los. Os pensamentos mais ntimos no
esto na cultura, esto na linguagem (LACAN, 1961-1962, p. 101). A linguagem, como
80 | Introduo
substncia, corre as ruas, podendo ser encontrado o sujeito no sopro da palavra. Na linguagem,
h um jogo de signos em liberdade que interfere nas coisas reais. O inconsciente no est na
linguagem falada. O estatuto do inconsciente est num outro nvel, num nvel mais elevado, mais
radical, no nvel da emergncia do ato como enunciao. O inconsciente, como ato de enunciao
faz, entretanto um esforo para se fazer conhecer. O inconsciente sai. Ao sair, ele est em casa;
a casa do inconsciente esse universo j estruturado pelo discurso. O pr-consciente est na
mesma estrutura. A diferena que este faz a leitura dos signos (LACAN, 1961-1962, p. 102). A
conscincia funciona como a pelcula de superfcie dos rgos sensoriais. A conscincia filtra, se
abre e se fecha para reter o ndice de qualidade do que se constituiu, para o sujeito, realidade. A
conscincia o que permite ao sujeito apreciar o estado em que ele se encontra, para que o mesmo
perceba, por exemplo, se no est sonhando. A conscincia reflete a busca do corao do sujeito
pelos prprios pensamentos no discurso existente do lado de fora (LACAN, 1961-1962, p. 103).
Esse o primeiro nvel de captura no fenmeno da identificao, por meio do qual o sujeito busca
o reconhecimento de si no Outro.
A funo do amor ser, em suma, a mais profunda, a mais radical, a mais misteriosa
das relaes entre os sujeitos (LACAN, 1960-1961, p. 169). O Outro, por ser perpetuamente
evanescente, coloca o sujeito numa posio perpetuamente evanescente. Ora, questo
formulada ao Outro, quanto ao que ele pode nos dar e ao que tem para nos responder, que se
liga o amor como tal (LACAN, 1960-1961, p. 172). O paciente se dirige ao Outro (e, ao
analista) para saber o que ele tem ou no para lhe oferecer.
Segundo Lacan, o sujeito quem procura ser interrogado. O que o sujeito interroga ao
Outro no se algo existe ou se real ou no. O que o sujeito quer saber se ele pode confiar
no que ele recebeu, se os signos que ele recebeu (de fora) so confiveis. As questes que
surgem da so: Sobre o que eu me posso fundar? O que confivel? O sujeito tenta se
desembaraar do que veio do exterior. Nomear significa verificar, antes de tudo, se algo
condiz com a leitura que se est a fazer e a partir do que possa ser o prprio trao (LACAN,
1961-1962, p. 107).
Introduo | 81
preciso fixar alguns outros pontos que esto em causa na dialtica da transferncia.
Ainda que o sujeito retome o passado, a interpretao ocorre no ato de rememorao do
sujeito no momento presente. Ao se manifestar na relao com algum, o sujeito constitui
uma espcie de fronteira, de anteparo para que ocorra a transferncia. Por mais interpretada
que seja, a transferncia guarda em si, tal como o inconsciente, uma espcie de limite
irredutvel. A importncia da transferncia est em servir de sustentculo para que haja a ao
da fala no sujeito. O passado que se reproduz no ato da transferncia no mera reproduo,
enunciao. Como tal, a transferncia um ato essencialmente criador: H uma fonte de
fico na transferncia atravs da qual, o sujeito fabrica, constri alguma coisa (LACAN,
1960-1961, p. 176). A busca do sujeito por uma verdade, que jamais se completa (que no se
torna nunca de todo verdadeira), pode indicar a busca por uma soluo ou at mesmo por
uma absolvio, escreveu Lacan (1960-1961, p.178).
A dificuldade do analista reside muitas vezes nesse ponto. O sintoma foi definido por
Lacan como o significante de um significado recalcado da conscincia do sujeito (1953/1998, p.
282). O sintoma uma mensagem que pode ser decifrada por manter a latncia significante que
sustenta seu sentido e sua significao. O sintoma sustenta uma fala que pode ser libertada
(Lacan, 1953/1998, p. 270). O sintoma estruturado como uma linguagem, participa dela e de
suas leis. , tambm, fala dirigida ao Outro, lugar de onde o sujeito recebe o sentido, a
significao de seu sintoma, ou seja, sua prpria mensagem de forma invertida (Lacan,
1953/1998, p. 299). O sintoma pode ser decifrado por meio da articulao da cadeia significante,
ao que esta desliza e desdobra os significantes recalcados que esto ligados ao sintoma. Ao fazer
deslizar e desdobrar os significantes recalcados, ligados ao sintoma, decifra-se o sintoma.
No parece ser toa que a posio do analista passe de objeto para a de um dejeto no
final da anlise do paciente. O analista fica como o resto, como o que sobrou da operao
simblica do sujeito. O sujeito no final da anlise o sujeito castrado. Ser castrado no
significa ter se tornado impotente. Ser castrado significa ter se tornado potente, capaz de ser
agente da sua histria, do seu destino.
Introduo | 83
Em A morte branca do feiticeiro negro, Ortiz (1999) objetiva mostrar como se efetua a
integrao e a legitimao da religio umbandista na sociedade brasileira. Inicialmente, o
autor prope que a integrao social da umbanda pode ser compreendida se for abordado
conjuntamente um problema mais genrico, o da mudana cultural. O autor cita o conceito
de aculturao desenvolvido por Linton, Redfield e Herskovitz, definido como (...) um
conjunto de fenmenos que resulta do contato direto e contnuo entre grupos de culturas
diferentes, o que acarreta mudanas subseqentes nos tipos culturais de cada grupo (ORTIZ,
1999, p. 12). Esta definio teria sido modificada pelos autores (Linton, Redfield e
Herskovits) alguns anos depois por se entender que o processo de aculturao poderia ocorrer
independentemente de um contato direto e contnuo entre os grupos. A ideia central da
definio, entretanto, continuaria inalterada (p. 12).
Tal definio estaria pautada na concepo de cultura, adotada pela escola culturalista
norte americana, pois (...) a ideia de autonomia da cultura, que caracteriza a escola
culturalista, aparece explicitamente na definio dos fenmenos dos contatos culturais
(ORTIZ, 1999, p. 13). Propondo uma mudana de foco, o autor (apoiado na crtica do
socilogo Balandier, 1970) argumenta que a observao e a anlise dos fatos do grupo em
questo no precisam ocorrer sob a tica exclusiva da tradio:
Mais adiante, o autor pondera que: Nesta dialtica entre social e cultural,
observaremos que o social desempenha um papel determinante (ORTIZ, 1999, p. 15). Por
essa razo, a mudana cultural deve ser analisada segundo os quadros sociais da
aculturao. A capacidade de reinterpretao, adaptao e fuso da umbanda j seria
indcio de um fenmeno de aculturao instalado na religio: Neste processo de qumica
religiosa reencontraremos os mecanismos que caracterizam o fenmeno da aculturao:
reinterpretao, adaptao, fuso (ORTIZ, 1999, p. 14). Este movimento indicaria uma busca
84 | Introduo
essa reflexo, por se tratar de uma obra clssica, formadora de opinio a respeito desta
religio.
Com o fim do regime escravocrata no final do sculo XIX era comum e compreensvel
que no incio do sculo XX se continuasse pensando a respeito das consequncias da
escravido. O termo aculturao comeou a ser utilizado para denunciar os efeitos da
dominao branco-europeia sobre as demais naes e populaes, includos os africanos. No
Brasil, anlises foram igualmente realizadas nesta direo. A umbanda vista como uma
religio que acompanha as mudanas sociais, se desenvolvendo mais efetivamente a partir
da dcada de 30 (ORTIZ, 1999, p. 32). O candombl, mais antigo, como uma religio que
sustenta suas razes africanas em solo aparentemente menos dominado por outras influncias
culturais:
vezes da chefia do culto (ORTIZ, 1999, p. 39). H outros fatores sociais sinalizados na obra
do autor que explicariam os efeitos desta suposta continuidade da dominao do universo
simblico do branco sobre o do negro na umbanda.
3
Palestra proferida pela Profa. Karin Barber dia 09-08-2008 Casa das fricas So Paulo SP.
Introduo | 87
ato de recriao pode estar presente tanto na escrita quanto na performance: A definio de
texto literalmente tecer, tramar, urdir, tranar, entrelaar, e da compor, construir, fabricar,
instituir; todas as criaturas humanas produzem textos orais ou escritos. Todos podem e
deixam uma marca, um trao. A textualidade se produz com a convergncia das palavras. A
memria se preserva na cultura oral africana por meio dos atos de recriao, mas que podem
aparecer na escrita, nos cantos, nas falas etc. O jogo da adivinhao por If (conhecido no
Brasil como jogo de bzios) um exemplo de como os africanos podem combinar o que os
tericos tm nomeado por tradio e modernidade. H um texto no jogo de bzios: a
ideologia de If. Este texto, recriado a cada leitura, institui aos poucos no corpo do homem o
corpo completo de If.
O que me pergunto nesse momento : o que ser negro, o que ser branco? Ascender
socialmente significa necessariamente deixar de ser negro? Utilizar-se da escrita, ter uma
apreenso inclusive racional a respeito do que quer que seja, significa necessariamente abrir
mo das razes e deixar de ser negro?
como a uma nao. A ancestralidade estaria sendo reeditada na umbanda tanto no sentido
imediato (com os pais concretos) quanto de uma forma mais ampla, numa linhagem ou
afiliao indgena mtica (ROTTA, 2010, p. 118).
Ribas (1975) descreveu algumas das classificaes existentes nos ritos angolanos. Os
entes sobrenaturais aparecem nestes ritos divididos em soberanos e intermedirios. Os
intermedirios se subdividem em superiores, auxiliares e serviais. O bem e o mal so
manifestaes de Zmbi, o Deus criador de parte destes africanos que inversamente ao que
ocorre no sudeste do Brasil, so maioria em Angola. A permanncia de pretos-velhos e de
caboclos no topo da hierarquia do panteo umbandista provavelmente no uma questo de
ordem puramente econmica. Esta estratificao no deve ter qualquer relao com outra
cultura religiosa; no se trata de uma influncia da doutrina do carma pertencente ao budismo
ou moral crist aplicada ao espiritismo kardecista brasileiro.
O culto ao esprito na umbanda foi interpretado como uma perda das razes africanas,
ao passo que a presena marcante do orix, tal como acontece no candombl, no o seria. A
matriz africana do candombl, contudo, no costuma ser a banto, etnia que provavelmente
influenciou a formao da umbanda. A respeito da hierarquia das foras no entendimento
banto, Tempels (1959) escreve:
Mas, o homem no est em suspenso no ar. Ele vive em sua terra, onde
encontra seu ser sendo parte da fora vital soberana, governa a terra e tudo o
que vive nela: homem, animal ou vegetal. O mais velho de um grupo ou de
um cl, para o banto, pela lei divina, o elo de sustentao da vida, ligando
os ancestrais e seus descendentes. ele quem refora a vida de seu povo e
de todas as foras inferiores, animais, vegetais e inorgnicas, que existem,
crescem, ou que vivem sobre a fundao que ele prov para o bem-estar de
seu povo. O chefe de verdade, ento, segue a concepo original e poltica
criada pelos cls das pessoas, o pai, o mestre, o rei; ele a fonte de todos
os viventes zestful; ele como o prprio Deus. Isso explica o que o banto
quer dizer quando eles protestam contra nominaes de um chefe, por
intervenes do governo, que no so capazes, em razo de sua posio ou
fora vital, de ser o elo que liga os mortos e os vivos. Tal pessoa no pode
ser chefe. impossvel. Nada poderia crescer em nosso solo, nossas
mulheres ficariam sem filhos e tudo permaneceria estril (TEMPELS, 1959,
p. 30 itlico acrescentado).
92 | Introduo
Para os bantos, os mortos vivem, mas possuem reduzida energia vital e por essa razo,
quando eles falam dos mortos, o fazem superficialmente como se os mesmos estivessem
Introduo | 93
numa posio externa das coisas da vida. Mas, ao considerarem a realidade interior do ser,
os bantos admitem que os antepassados no perderam sua influncia. Neste caso, os mortos
aparecem como tendo adquirido um conhecimento maior do que o deles (Tempels, 1959, p.
44). Os mortos tm um conhecimento a respeito da vida, das foras naturais e vitais mais
profundo e este o conhecimento que importa. O conhecimento e a sabedoria so
considerados foras vivas, pois servem tanto para fortalecer a vida do homem na terra
quanto para perpetuar a dos ancestrais.
Deus o agente criador, o sustentador das foras resultantes que existem no homem e
nos outros seres. O homem uma fora viva, criada, mantida e desenvolvida pela influncia
vital de Deus e no a causa principal da criao. O homem deve sustentar e aumentar as
foras de vida daqueles que se encontram abaixou dele na hierarquia ontolgica. Num sentido
mais circunscrito ao de Deus, o homem tambm uma fora causal da vida. Fora vital,
aumento de foras e influncia vital so os trs grandes conceitos para se compreender a
psicologia banto. A fora viva que existe no homem o ser verdadeiro, completo e
sublime. O elemento vital no a mesma coisa que chamamos por alma. Os bantos no
subdividem o homem em corpo e alma, como os ocidentais. Assim como a ontologia banto se
ope ao conceito europeu, de coisas individualizadas existentes em si mesmas, isoladas umas
das outras, a psicologia banto no pode conceber o homem como um individuo, ou seja, como
uma fora existente em si mesmo e que se mantm de maneira independente das relaes
ontolgicas com os outros seres. O banto no pode ser um solitrio. No um bom sinnimo
dizer que ele um ser social (TEMPELS, 1959).
O banto sente e conhece a si como fora vital. O ser humano, para alm da hierarquia
de interao das foras, no existe na concepo dos bantos. Os etnlogos tm apresentado
essas interaes que regulam o relacionamento entre os seres como mgica. Nem o
pensamento e nem o comportamento dos bantos so mgicos. O banto simplesmente entende
que a fora do homem, sua vida, depende de sua participao maior ou menor nas foras
de Deus.
94 | Introduo
Nas discusses psicolgicas necessrio examinar o que estamos querendo dizer com
o termo desejo. O muntu a fora viva pessoal, o agente ativo que exerce uma influncia
causal vital. O banto entende que a faculdade do muntu para decidir entre um bem maior ou
menor ou entre o bem e o mal existe. Os bantos entendem que os homens podem ter tanto um
desejo pela vida quanto um desejo destrutivo. O desejo de um homem pode ser direcionado
para o sentido da vida e a manuteno da hierarquia de foras. agindo desta maneira que o
patriarca ou o chefe do cl (o curandeiro, chamado nganga) se torna capaz de se tornar um
doador de vida, ao que este interfere para preservar e proteger as foras vitais dos seres. Um
homem pode ser mobilizado por um desejo de destruio determinado pelo dio, pela inveja
ou pelo cime. No entendimento banto, este desejo trar repercusses para a fora vital dos
seres mais fracos ou implicar numa reduo do poder vital do prprio homem. A influncia
perversa proveniente do desejo de destruio conhecida entre os bantos como bufwisi
(TEMPELS, 1959).
Quando um antepassado morto no mantm mais relaes ativas com aqueles que
esto na terra, seu vigor individual est diminudo e ele pode chegar a zero de energia
vital. Este morto dito pelos africanos como estando completamente morto. O ancestral
precisa do corpo do vivente para empregar sua influncia vital e para continuar a contribuir
com a vida. Quando o morto no consegue exercer essa influncia, os africanos consideram
ser este o pior dos desastres (TEMPELS, 1959).
Na umbanda, comum ouvir a frase seus guias precisam trabalhar sendo dita aos
mdiuns iniciantes; pontua-se a necessidade das entidades espirituais atuarem em prol da vida
de outras pessoas, precisando por esta razo dos mdiuns. A justificativa costuma ser a de que
o guia precisa evoluir. A ideia da evoluo espiritual no colocada numa relao
ascendente como costuma aparecer no espiritismo kardecista. A evoluo aparece numa rede
interdependente de relaes composta pelos humanos, pelos guias (mortos) e pelos seres
animais, vegetais e minerais. Estes ltimos podem aparecer concretamente e serem
interpretados, no como seres divinizados, mas como seres que ocupam um lugar
igualmente especial uma vez que compem todo o sistema e participam da ordem da
criao. Na umbanda, animais, vegetais e minerais do nome s entidades espirituais; os
Introduo | 95
vegetais e os minerais so usados na preparao de banhos para que o princpio vital seja
absorvido pelo mdium.
A fora vital dos animais, vegetais e minerais existe e deve ser utilizada para
aumentar a fora vital dos homens enquanto eles estiverem na terra. Os bantos no
entendem que um ser influencia o outro, mas que a fora vital de um ser afeta a fora vital do
outro (TEMPELS, 1959).
Segundo Leite (2008) h tipos distintos de ancestrais e essas noes variam de uma
etnia para outra na frica subsaariana. O autor no se restringe a etnias do tronco banto, mas
o seu raciocnio segundo argumenta extensvel a toda essa regio do continente africano
(frica negra) e inclui tambm, portanto, os bantos. O que h de comum a todas o fato da
ancestralidade, segundo ele, no ser concebida como uma prtica religiosa, pois a relao com
os ancestrais inscreve uma forma de pensar e esta aparece j integrada s estruturas sociais.
Os ancestrais e as divindades do culto aos ancestrais podem ser entendidos como: (...) foras
e energias prprias e especficas da natureza, de essncias diversas (mtica ou histrica)
explicadas e colocadas em relao com as prticas sociais segundo padres diferenciais dos
processos civilizatrios, caracterizados seus mbitos de aes (LEITE, 2008, p. 372). Em
outras palavras, os ancestrais podem ser concebidos como elementos naturais que compem
a ordem social de uma maneira que pode ser tanto mtica quanto histrica. A dimenso que
pode nos parecer mgica possui na realidade materialidade histrica, inclui diversas
esferas sociais e permanece assim ao alcance da ao humana (LEITE, 2008).
A ligao dos homens com a dimenso ancestral tem por funo promover uma ao
histrica sobre o que se entende por natural e sobre a natureza: Para tanto necessrio
saber como proceder, e tal fator tem por base formulaes criadas pelos ancestrais ao longo
do tempo (LEITE, 2008, p. 373).
96 | Introduo
H o tempo da iniciao do novo rei, daquele que fora designado para dar
continuidade aos ancestrais, sendo este portador de um saber esotrico (LEITE, 2008, p.
374).
A ancestralidade pode selar acordos entre o homem e o uso que este faz da terra. A
terra valorizada pelos ancestrais por se constituir fonte de vida e por possuir foras vitais
deve ser tratada e respeitada como a uma divindade (LEITE, 2008, p. 373). Na viso africana,
Introduo | 97
umbanda nasce em solo brasileiro. Mas, no haveria a possibilidade desta religio preservar
ainda, de alguma maneira, o culto aos ancestrais?
O propsito do trabalho a ser realizado passa a ser, neste caso, tentar corromper
populaes de culturas distintas, o que apenas aumenta o risco de revoltas, promovendo um
aumento do nmero de desenraizados. Os bantos vivem mais segundo suas ideias do que os
povos ocidentais (TEMPELS, 1959, p. 11). A interpretao do homem branco, incorporado
ao universo de foras dos bantos, ocorreu segundo as categorias de pensamento pr-
existentes. A habilidade tecnolgica do homem branco impressionou os bantos e eles
consideraram o homem branco um grande mestre das foras naturais. A fora do homem
branco parecia superar a fora vital dos africanos; por isso, os bantos consideraram o homem
branco um ancio. Se o africano aprende e se torna familiar com as tcnicas dos ocidentais,
ele percebe, sente, por outro lado, como a falta de motivao e de compreenso dos ocidentais
para com sua conduta afetam o respeito e a confiana que ele poderia vir a ter no homem
branco. Quando a falta de compreenso acontece, (...) o conhecimento vital, tradicional,
elementar que eles possuem ferido (TEMPELS, 1959, p. 15). Assim, preciso
salvaguardar, proteger com cuidado, tudo o que digno de respeito no costume das pessoas.
O uso recorrente de termos tais como animismo, totemismo, dinamismo, magia, nas
Introduo | 99
investigaes a respeito dos africanos levanta a dvida se o que tem nos faltado mais
vocabulrio ou compreenso.
Ser?
100 | Introduo
Resultados e Anlise | 101
2. RESULTADOS E ANLISE
Inclusiva, mas ponta firme, a baiana me sinaliza que hora de eu marcar o passo.
Teria eu molejo e firmeza de baiana para danar? No dano, claro, efetivamente, mas
observo, percebo o embalo da baiana e sem dizer nada, sinalizo para a baiana que estou pronta
para comearmos:
Interessante como sou significada pela baiana numa posio de semelhana com o
povo nordestino, com os baianos em especial. Vinha do interior do estado de So Paulo, no
sou baiana, mas ela, a baiana, entende o que eu fui buscar. A baiana tem a ginga, a malcia
do povo baiano que sabe das coisas e entende a dureza que pode ser chegar naquela
terra.
Garante-me, nesse momento, o que a linha dos baianos procura garantir: trabalho. A
pesquisa com a famlia, a baiana acabou de firm-la, ao colocar suas condies para ambas
as partes. Qual seria a prxima novidade, a tima notcia dessa baiana? mais trabalho?
Como a esse respeito ainda era feito certo ar de mistrio, mudei um pouco o foco da conversa
e perguntei:
Investida por
p uma posiio de baian na paulista para me tornnar uma pau ulista
baiana, acrredito poderr usar um pou uco de sua (e de minha) ginga, para situar
que a baiaana me sugeeria que, com m a ajuda do os baianos e dos marinh heiros,
povo do mar,
m mar que corta a Bah hia; gente, po ortanto, tambbm da Bahiaa, eles
iriam me ajudar,
a realizzando um rritual de limppeza para qque ali eu pu
udesse
cada vez mais
m chegaar. Lembro a conhecidaa expresso baiana: ch hegue
que signiffica tambm m vem c. Rememoro o, nesse mom mento, um ponto
cantado en ue diz: foraa baiana, forra africana, fora
ntoado nessee terreiro qu
divina, vem
m c, vem, cc. Tomada por essa ond da inclusiva e carinhosa de
d um
aconchego o baiano, quaando a entid
dade me perg gunta se temm algo mais que
q eu
gostaria de
d saber, euu digo que no, fao os o cumprimeentos baaiana,
agradeo e vou emboraa.
Estes um
mbandistas entram em frias no incio de deezembro e rretomam ass atividadess
religiiosas, geralmente, no final
f de janeeiro. Depoiss do encontrro com a enntidade baian
na, houve o
rituall de encerrramento do
o ano que foi realizad
do em um stio, prxximo ao mu
unicpio dee
Guarrarema no innterior paulista.
Cada pessoa que cchegava trazzia consigo saacolas e mocchilas, com roupas
r
e objetos de uso pessooal e ritual. Alimentos e bebidas erram colocado os em
uma grandde mesa que ficava numaa cozinha extterna a casa. As flores (rosas e
flores do campo...), aas ervas (maanjerico, aleecrim, alfazeema...), as plantas
p
(folhas e galhos de ddiferentes rvvores, de co
oqueiros...), oos alimentoss para
oferenda (farofas, frrutas: ma, melo, mamo,
m cocco...), as beebidas
(champanh he, cerveja, vinho), os objetos de uso ritual (aas velas, taas, o
fumo, o baralho
b etc.) , tudo era colocado
c numm salo de festas, ondee seria
realizado o ritual noite. Cadaa mdium preparou
p duurante a tarrde as
oferendas de seus guuias (como so chamados os esprittos do mdiu um na
umbanda)..
Fotos de algu
umas oferendaas que foram montadas
m no salo
s durante a tarde.
104 | Resultados e Anlise
Pai Joo da Caridade conversa com o corpo medinico, reunido em crculo ao seu
redor:
Tudo nessa vida tem seu contratempo, mas com a fora da f ocs no
podem duvid de nada. O ano foi difcil pra todo mundo. Mas, o fato de
estarem aqui reunidos uma grande vitria. A unio faz a fora, faz toda a
diferena.... Os mdiuns o ouviam, s vezes, com a cabea baixa, outras
com o olhar longe. Quando ele encerra a fala com os mdiuns, Pai Joo pede
para conversar comigo: Aps os cumprimentos, ele me pergunta se estou
bem (usando a palavra formosa). Respondi que estava bem. Pai Joo me
pergunta se tem algo que eu gostaria de lhe perguntar e eu digo que gostaria
de ouvir algo a respeito da famlia de Dona Cotinha. O preto-velho me diz
ento que naquela famlia vem sendo plantada uma sementinha, e que essa
sementinha passa de um corao para o outro, desde os tempos de Dona
Cotinha. Dona Cotinha, assim como todos os outros, no so pessoas
melhores e nem piores que as outras.... Mas, so pessoas que quando
tocadas no corao arregaam as mangas e vo luta. E de gente assim que
essa famlia precisa me disse ele. Aps breve silncio, ele completou
dizendo: mas, tem que ter muita vontade e ficou olhando para mim...
Resultados e Anlise | 105
O convite para que eu me juntasse famlia, deixando-me tocar pelo corao e para
que arregaasse as mangas junto deles, parecia estar sendo feito.
Diz indiretamente, que ele, preto-velho Pai Joo da Caridade, entidade que cuida,
enfrenta as dificuldades e luta pelo bem de todos os presentes ali, tambm pai. Ele no leva
o nome Pai apenas, mas por querer o bem de todos e lutar por isso, ele pai.
Fico um pouco confusa, mas entendo que Pai Joo me dizia que eu tenho afinidade
com as pessoas dali...
Oc no um grozinho de areia que veio vindo soprado pelo vento completou ele.
Pergunto a ele quem ele , melhor dizendo, quem foi Pai Joo. Ele me
responde que foi preto-velho, escravo, benzedor, cantador e alegre. Que a
histria dele essa! Diz ainda que todos ali so pessoas que se esforam,
pessoas simples que no ostentam nada. Preto-velho fica ento pensativo por
um momento at que olhando para mim, ele diz que ele gosta dos filhos.
Abaixo o semblante, agradeo-lhe a ateno, o cumprimento, beijando-lhe a
mo, tal como fazem os filhos dos preto-velhos e me retiro para a minha
cadeira (de pesquisadora).
A relao de afinidade que havia se iniciado com Djalma do lado de fora do terreiro se
concretizava no momento do ritual. Se eu era, tambm, uma moa jovem, que chegava quela
106 | Resultados e Anlise
cidade sem famlia, seu preto-velho me introduziria, me ofereceria uma. Era preciso deixar
apenas ele plantar a sementinha em meu corao, pois se assim o fizesse, eu sofreria menos
que seu mdium, Djalma, que no aceitava inicialmente ser cuidado por um preto-velho e ser
um filho de umbanda.
cristo, mas
m sinaliza a importnciia de se cuidar e de vallorizar o prprio
brilho. Tomo
T passse de pratiicamente toodos os Exuus e pombagiras
presentes.
Z Peelintra, incoorporado em
m Lo, ao fimm, me d umma carta de baaralho
e pede que eu a guardde na carteirra, com o axa da linha. Por meio desse
gesto, commpreendo quue ele diz: tome, tenhaa essa cartta na mangaa, se
proteja, gu
uarde, joguee, nosso ax x te ajudaar se voc souber us--lo. O
cuidado, a proteo, a iniciativa, a autonomiaa, a malcia do povo dee rua
estavam sendo
s trabaalhados por essa linhaa do panteo. Os ltim mos a
apareceremm foram os m marinheiros. Associo a movimenta
m o deles ao ato
a de
lavar, de levar para o fundo maar o agito desta d noite qque terminava. A
sensao da
d gira invocada peela batucadaa, pelas letraas de msicca que
parecem trazer com a presena do marinheiiro o ax de limpezaa e de
purificao
o do mar. Deepois dessa linha, feito o encerrameento do rituall.
e com o uso do carvo e ervas em brasa para a defumao. Os mdiuns saudaram os Exus, as
Pombagiras e os Exus-mirins. Fizeram uma prece a Ogum, entoaram os pontos para Ogum.
Lo ensinou a fazer um trabalho de proteo, com a utilizao de um vaso com guin e trs
pedras para Ogum. Era para o vaso ser colocado em um altar ou onde se quisesse em casa,
mas preferencialmente num local de meditao onde vocs passam mais tempo usando seu
mental, disse Lo. Lo incorporou um Ogum Beira Mar. Foram, ento, entoados pontos
cantados para a linha de esquerda: Exu Sete Razes trabalharia com Exu Sete Caveiras na
eliminao da energia negativa. Que sentidos eram espelhados por esse ritual?
A pergunta que tinha em mente era: a ancestralidade existe na umbanda? Com esta,
me dirigi espiritualidade da Casa e perguntei: voc um ancestral do mdium? Ainda que
eu j estivesse transferencialmente implicada na posio de filha, a inteno era
compreender o que os espritos evocam, a relao deles com os filhos (mdiuns presentes).
Qual o lugar do morto e do vivo nesses discursos. Buscando compreender ainda a energia
que se transmitia. Seguem as respostas que obtive:
Outro Exu, chamado Exu Caveira falou sobre dvida e afinidade. Est
com a mdium porque ambos tm afinidades, mas, tambm porque ela tem
uma dvida para com ele. Ela, a mdium, no d a devida ateno s coisas
materiais. Relatou-me que eles so da mesma famlia espiritual e tm
estado juntos por muitas vidas. Mdium e entidade podem trocar de
Resultados e Anlise | 109
Como recebia sempre a mesma resposta, ou seja, de uma relao de filiao, observo
que, por meio da relao apresentada, estavam sendo trabalhadas as faltas, as lacunas, as
barreiras e as resistncias dos mdiuns, que o morto nessa linguagem parecia fazer circular.
Os mortos apontaram a cabea dura, a falta de confiana na prpria fora, a falta de
cuidado com as prprias necessidades materiais, asseguraram as respostas no pensamento e
no sentimento de forma no cartesiana, e apontaram-nas por fim para o corao, estimulando
o que me pareceu ser a produo de um mais viver.
A lgica que parece persistir nesse ritual a da continuidade, mas com a elaborao
e as distines necessrias entre o lugar do vivo e do morto (neste ritual dada pela Lei de
Ogum?). E, segundo essa lgica, quem teria qual lugar?
delimitarem, com sua morte, que a transmisso de vida deve ser vivida, mantida, gerada e,
assim, retransmitida.
A funo do morto Pai j que as entidades chamam aos mdiuns de filhos pareceu
ser de (Exu Caveira e Sete Razes) trabalhar o que est mortalmente enraizado nos corpos
dos filhos vivos. O morto simboliza, colocando em palavras, e ao nvel do corpo, os
sentimentos, as ideias paralizadoras para que assim no mais sejam.
Lacan (1960/1961) em A angstia na sua relao com o desejo discute que o sinal
de angstia se produz em algum lugar que pode ser ocupado por uma imagem do outro i(a),
pois o eu , basicamente, funo de desconhecimento. O sujeito ocupa esse lugar, no na
medida em que essa imagem o ocupa, mas apenas enquanto lugar, isto , na medida em que
ocasionalmente essa imagem pode ali ser dissolvida (p. 350). Nesse sentido, no a falta da
imagem que faz surgir a angstia:
Nesse incio de ano, Mara me pediu para que eu participasse das atividades do Abrigo. O
pedido de envolvimento com as atividades da instituio costumava ser feito a todos os
conhecidos. Como o Abrigo no recebe verba de repasse destinada pelo Estado, o apoio dos
voluntrios costuma ser direcionado para a organizao de eventos que possam gerar renda para a
instituio. Os voluntrios ajudam com o preparo de alimentos na cozinha, a enfeitar o salo de
festas, a fazer a divulgao, buscam patrocnio de empresas do mbito privado, vendem convites
etc. Ao apoi-los nesses eventos, acompanho a dificuldade que o Abrigo tem para se manter por
no possuir um investimento regular, quer fosse do mbito pblico ou do privado.
Assistncia Social da Criana e do Adolescente (CRAS)4, cada qual com subsede em uma regio
ou bairro da cidade de So Paulo, estavam procurando estabelecer parcerias com as instituies
Abrigo j existentes. Mara fechou um contrato com a Prefeitura da cidade de So Paulo no final
de 2008, e uma nova unidade de Abrigo Lar Dona Cotinha foi inaugurada em fevereiro de 2009.
A unidade matriz continuaria funcionando, mas ainda sem receber recursos financeiros por parte
do Estado. A nova unidade seria parcialmente financiada pela Prefeitura e por isso estaria sendo
acompanhada pelo CRAS-Mooca, uma vez que, tambm foi instalada nesta regio.
O terreno da unidade matriz Lar Dona Cotinha foi cedido pela Prefeitura da cidade de So
Paulo. O acordo firmado, em 1997, entre o Lar Dona Cotinha, unidade matriz, e a Prefeitura, foi o
de que a direo do Abrigo se responsabilizaria pela construo civil e pelas instalaes da
unidade, e a Prefeitura regularizaria a documentao de concesso de uso do terreno. O problema
que o acordo foi cumprido pela direo do Abrigo, mas no foi regularizado a tempo pela
Prefeitura. Devido falta de regularizao da documentao ainda em 2009, o convnio no pode
ser fechado com a unidade matriz. Para que esse convnio com a Prefeitura pudesse ser
estabelecido, uma nova unidade do Lar Dona Cotinha precisou ser inaugurada.
Alguns dias aps a inaugurao da nova unidade do Lar Dona Cotinha, eu fui ao
terreiro e pedi para falar com Caboclo Viramundo. Este, um pouco antes do falecimento de
Dona Cotinha, passou a ser a entidade de trabalho da filha desta senhora, Mara. O objetivo
inicial da pesquisa era investigar se, os processos de sucesso geracional eram mediados
simbolicamente pelas entidades de umbanda e para isso eu acompanharia os rituais
realizados pela famlia. O projeto de pesquisa, intitulado Famlias de santo: as histrias dos
ancestrais e os enredos contemporneos no previa investigar a construo de laos de
pertencimento entre pessoas que no fossem consanguineamente da famlia. A expresso
4
O Centro de Referncia de Assistncia Social (CRAS) uma unidade pblica estatal descentralizada da Poltica
Nacional de Assistncia Social (PNAS). O CRAS atua como a principal porta de entrada do Sistema nico de
Assistncia Social (Suas), dada sua capilaridade nos territrios e responsvel pela organizao e oferta de
servios da Proteo Social Bsica nas reas de vulnerabilidade e risco social. Alm de ofertar servios e aes
de proteo bsica, o CRAS possui a funo de gesto territorial da rede de assistncia social bsica,
promovendo a organizao e a articulao das unidades a ele referenciadas e o gerenciamento dos processos nele
envolvidos. O principal servio ofertado pelo CRAS o Servio de Proteo e Atendimento Integral Famlia
(Paif), cuja execuo obrigatria e exclusiva. Este consiste em um trabalho de carter continuado que visa
fortalecer a funo protetiva das famlias, prevenindo a ruptura de vnculos, promovendo o acesso e usufruto de
direitos e contribuindo para a melhoria da qualidade de vida. Texto tirado de: http://www.mds.gov.br/
assistenciasocial/protecaobasica/cras
Resultados e Anlise | 113
famlias de santo foi utilizada para sinalizar que a pesquisa seria feita com uma famlia do
universo afro-brasileiro, ou seja, neste caso, com uma famlia umbandista.
Eu havia acordado neste dia com um pressentimento estranho. Algo me dizia que eu no
deveria ter faltado da inaugurao da nova unidade. Percebi, ento, que meu mundo estava virado,
se o Caboclo Viramundo sabe a hora certa de partir e de recomear, eu precisaria deixar que ele o
virasse para a direo que parecia ser a certa no momento, o Lar Dona Cotinha. Deste dia em
diante, comeo a conversar com Mara para combinarmos minha entrada no Abrigo.
Pai Joo da Caridade falou que para ser filho de umbanda preciso se deixar cuidar
pela espiritualidade; sinalizou que isso implicaria ainda assumir responsabilidades pelos
demais. O lugar que estava sendo oferecido a mim, pela espiritualidade da famlia, era o de
filha da Casa. Ser da famlia significa remar numa mesma direo, agir em sintonia com a
comunidade. Por ser filha da Casa, eu precisaria assumir responsabilidade pelas crianas da
instituio.
114 | Resultados e Anlise
Eu no havia lido
l ainda o trabalho dde Leite (20
008) e no conhecia
c a rrelao exisstente
entre a anncestralidadde e as instituies soociais. Ao perceber que
q passo a desenvolver a
pesquisa inndo do terreeiro para a instituio
i e vice-versaa, fico realm
mente surprresa, como disse
a entidade baiana quee eu ficariaa. De maroo em diantee, trabalho como
c psicloga na un
nidade
conveniadaa do Lar Doona Cotinhaa.
2.2 ABRIG
GO LAR DONA
D COT
TINHA
vulneerabilidade ou de risco
o pessoal e ssocial. O co
ontrole de accesso das crrianas in
nstituio see
d ppor determinnao do Poder
P Judiccirio, pelos Centros de Refernncias da Crriana e doo
Adollescente (CRECA) e por
p requisio do Con
nselho Tuteelar ou Cenntros de Referncia daa
Assisstncia Soccial (CRAS
S). As entiddades que mantm
m pro
ogramas dee Abrigo, conforme
c o
Estattuto da Criaana e do Adolescente
A e (ECA) po
odem, em carter exceppcional e de
d urgncia,,
abriggar crianass e adolesceentes sem prrvia determ
minao, deesde que faam essa co
omunicaoo
ao Pooder Judicirio at o seegundo dia til imediato ao fato.
Seguem as imagenss dos convvites destes eventos organizados ppara a arrecadao dee
fundoos para o Abrigo.
A As noites
n mais ttradicionaiss do Lar Dona Cotinha so a Noitee da Pizza e
da Feesta Italianaa.
A eentidade possui um Co
onselho Direetor compo
osto por pro
ofissionais liiberais das reas
da Sade e do Direitoo, assim com
mo da rea da Adminisstrao, pb
blica e privaada. O Con
nselho
Diretor atuua voluntarriamente, ajjudando a entidade a promover os eventoss beneficen
ntes e
participa ddas decises de cunho administrativ
a vo do Abrig
go.
Maara intervm
m junto aos amigos
a e peessoas da co p que as crianas tenham
omunidade para
uio. Os caasais padrinnhos das crianas
padrinhos durante seuu tempo de permannciia na institu
participam
m das datas comemorattivas do Abbrigo, das festas
fe de aniversrio reealizadas paara as
crianas aacolhidas, das
d confrateernizaes etc. Contriibuem, porr vezes, coom o custeio de
atividades esportivas ou extracurrriculares paara as crian
nas. As criaanas assisttem apresen
ntao
de teatro iinfantil, reccebem a visita de volluntrios daa comunidaade que lhees oferecem
m, por
exemplo, ooficinas de arte culinria, fazem aula de pin
ntura, de caapoeira e uttilizam a saala de
Resultados e Anlise | 117
Uma criana vai passar os finais de semana com sua famlia, por exemplo, quando h
autorizao do Poder Judicirio nesse sentido. Quando a famlia tem autorizao para fazer
visitas regulares criana na instituio, pode ser convidada a participar dos eventos
comemorativos e das confraternizaes no Abrigo junto de sua criana. Algumas famlias no
tm autorizao judicial para visitarem as crianas na instituio, e, em alguns casos, quando
h a perda do ptrio poder, a criana permanece sob os cuidados do Abrigo at ser
encaminhada para uma famlia substituta. Enquanto no ocorre a adoo, a criana reside na
instituio, e pode vir a permanecer no Abrigo, segundo regulamento do ECA, at que atinja a
maioridade.
engravidaria de uma, depois de seu primeiro filho Lo. Foi nesse perodo que o pai teria
reforado a ideia que ambos, Mara e o pai, vinham mantendo de fundar um Abrigo para
crianas e adolescentes. Ao falar da fundao do Abrigo, Mara ainda se emociona quando
lembra que seu pai foi uma criana abandonada, que precisou crescer sozinho, meio que por
conta prpria (...). O pai foi criado por uma senhora e o nico apoio que ele recebeu ainda
criana, segundo Mara, teria partido dessa senhora.
Este o ponto a partir do qual a fundao do Abrigo pode ser compreendida. A filha
esperada por Mara nasceu e recebeu o nome da av paterna, Fumi. A instituio no tem
ligao com o desejo de Mara e de seu esposo, portanto, por uma filha; ela nasce de um
sonho, acalentado por pai e filha, de poder oferecer s crianas e aos adolescentes, que
estejam em situao de risco pessoal e social, o amparo que o pai de Mara, por sorte,
recebeu.
A me, Maria Felipo da Silva, mais conhecida como Dona Cotinha, deu nome
instituio. Dona Cotinha, na qualidade de benzedeira, passava o dia recebendo as pessoas da
comunidade em sua casa. Mara acompanhou a me, prestando acolhimento, orientao e
proteo s pessoas que os buscassem na casa materna. Quando brinco com o filho de Mara,
Lo, perguntando a ele quem idealizou mais o Abrigo, Lo me responde que o av materno
sonhou mais com o Abrigo e que a av, Dona Cotinha, sonhava com o centro esprita e de
umbanda, fundado pela famlia. Mara procura realizar os sonhos, portanto, de ambos os pais.
Ao fundar o Abrigo, ela oferece causa do pai a capacidade de acolhimento, de cuidado e
de proteo da me.
Recebi das mos de Mara uma carta de Dona Cotinha que teria sido psicografada por
uma mdium, at ento desconhecida por Mara. Essa mdium frequentava outro centro
esprita, e no o de sua famlia. A carta foi lida publicamente, pela primeira vez, durante a
inaugurao da sede oficial do Abrigo, Rua Messias de Pina. Na data da inaugurao, o Sr.
Amadeo, pai de Mara j havia falecido h mais de 20 e a me, Dona Cotinha, h menos de 10.
Toda vez que h um evento importante na instituio, a carta relida perante os convidados.
Segue a carta, na ntegra, que teria sido ditada por Dona Cotinha:
Mame
Maria Felipe da Silva
Obrigada pelas flores,
Obrigada meus filhos pelo amor que nos une,
Papai deixa o carinho, os beijos, os abraos para cada um
Meus filhos eu estou Feliz, muito feliz
Mame Cotinha.
5
Os grifos so originais da carta.
120 | Resultados e Anlise
A respeito da espiritualidade, Mara comentou ainda que os guias dela, a prpria Dona
Cotinha, os guias de sua me e os de seu filho Lo do sustentao ao Abrigo e ao centro
esprita. Dar sustentao significa passar orientaes, e fazer a proteo destes locais e das
crianas. Nas palavras de Mara, h acima do Abrigo uma legio espiritual que trabalha para
proteger as crianas. Seriam espritos de mdicos, de enfermeiros, espritos de luz de sua
famlia e da umbanda.
So Vicente de Paula foi adotado como o santo protetor do Abrigo e h uma imagem
dele na sala de TV das crianas. So Vicente de Paula, atravs do sincretismo religioso,
costuma ser associado a Xang (orix da justia no entendimento umbandista). Quando
perguntei se ela faz essa relao, Mara sorriu, disse que sim, mas que a imagem que eles
mantm ali de So Vicente de Paula apenas. Mara escolheu a imagem de So Vicente de
Paula por ele ter sido um padre que cuidou muito das crianas.
Na terra sobre a qual o Abrigo se encontra foram colocadas pedras, cristais para que
fosse feita uma limpeza energtica do terreno. Esses elementos ficaram fixados no solo,
para trazer uma irradiao positiva para o Lar e para as crianas. No terreno em que foi
construdo o Abrigo, havia anteriormente uma favela. A inteno de Mara, ao fixar essas
pedras e cristais, foi remover a energia de sofrimento das pessoas que haviam vivido
naquele local. O assentamento dos minerais, os processos de limpeza e o cuidado do plano
espiritual propiciam o ambiente de amor e de harmonia sentido no Lar, explicou-me ela.
Por meio da psicografia, Mara teria recebido cartas de incentivo e de reconhecimento ao seu
trabalho, algumas das quais com a assinatura de pessoas famosas, tais como a poetisa Cora
Coralina, dentre outras.
2.3 R
RETRATO
OS DE FAM
MLIA
Donaa Cotinha
Dona Cotinha
C nasceu no muunicpio Saalto Grande6, localizaado no Ceentro Oestee
Pauliista. Brasilleira, neta de ndia, D
Dona Cotin
nha sentiu, desde a ssua infnciia, sinais
indiccativos de uma
u forte in medinica. Segundo a filha, Maraa, a me paassava mal,,
nclinao m
sem que houvessse qualquerr outra expllicao aparrente. Parteiira da comuunidade durrante algunss
anos, Dona Cotinha assum
miu o dom da mediuniidade apen
nas quando seu filho prrimognito,,
com um ano dee vida, ficou
u gravemennte doente. Diante da falta de perrspectiva mdica,
m essaa
senhoora, uma pessoa j dotada dee f, prom
meteu esp
piritualidadde que assu
umiria suaa
mediiunidade, toornando-se tambm
t bennzedeira daa comunidade, caso seuu filho ficaasse curado..
Com
m a cura de Aparcio (o
o primognnito) alcanada com oss seus benzzimentos, ella passou a
atendder, em suaa casa, as pessoas
p quee a procuraassem em busca
b de orrientao e de auxlio..
Depoois desse prrimeiro filho
o, Dona Cootinha foi me
m de maiss duas criannas, Apareccida e Jos,,
vindoo a separar--se do primeeiro maridoo aps ter tid
do sua terceeira criana.. Vivia nesssa poca em
m
uma fazenda naas redondezaas de Paragguau Paulissta7, interiorr do estado de So Pau
ulo, com oss
filhos do primeeiro casamen
nto. Infelizz, entretanto
o, por probllemas de allcoolismo do
d primeiroo
mariddo, nessa mesma
m fazen
nda, Dona C
Cotinha con
nheceu o ho
omem que vviria a ser seu segundoo
esposo. Dona Cotinha
C caso
ou-se com o Sr. Amad
deo no carttrio civil e mudou-see para viverr
com ele na ciddade. Dona Cotinha fooi me de mais
m trs crrianas: Diiva, Mara e Jorge. Sr..
6
Noo relatrio pressidencial de 1864, h referncias a uma primeira tentaativa de aldeam
amento em Sallto Grande doo
Parannapanema ou Cachoeira
C doss Dourados. FFrei Pacfico de
d Monte Falcco, trazido da Itlia em 184 43 pelo Baroo
de Anntonina, encarrregava-se daa catequese doos ndios Caiius e Xavanttes que na ppoca viviam aqui a por estass
terras. O aldeamennto deu origeem ao Patrim mnio do Salto Grande do o Paranapanem ma, propriammente dito em m
1860. (texto exxtrado da pgina na web da Prefeitura P Municipal
M dee Salto Graande - SP::
http:///www.pmsaltoogrande.sp.go ov.br/municipiio. php).
7
De acordo com o dicionrio tupi-guarani de Gumerciindo Saraiva Rodrigues A Alves Pereira de Carvalho,,
"Paragguau" signifi
fica mar grand de, rio grande. Paraguau Paaulista um dos
d 29 municp pios paulistass que agregam
m
junto a seu nome o ttulo de Est ncia Tursticca.
122 | Resultados e Anlise
Amadeo trabalhou em uma serraria na cidade de Paraguau Paulista e Dona Cotinha, alm de
parteira e benzedeira, era dona de casa. Sr. Amadeo veio a falecer em 1963 quando Mara
tinha apenas 11 anos de idade e Jorge, o mais novo, 8. Ao ficar viva, Dona Cotinha, com a
ajuda da filha Mara, comeou a vender marmita para sustentar a famlia. Do dinheiro
economizado neste primeiro comrcio, Dona Cotinha comprou uma penso que administrou
com a ajuda de Mara. Nessa poca Dona Cotinha perdeu um filho, Jos, filho caula do
primeiro casamento, que faleceu de cirrose heptica com 30 anos de idade. Mara diz ter sido
apegada a esse irmo e o relembra com carinho. Jos morreu em Maring e foi enterrado em
Paraguau Paulista, deixando esposa e um filho em Curitiba, PR. Os outros filhos (Aparcio,
Aparecida, Diva) viviam em So Paulo, para onde Dona Cotinha se mudou com Mara e Jorge
em 1971. Nesta poca, Mara estava com 18 anos de idade.
Diva havia se casado em Paraguau Paulista quando tinha 17 anos e se mudou com o
marido para So Paulo logo aps o casamento. Desta unio teve trs filhos: Glcia, Claudia e
Jonathan. Glcia me biolgica de 4 filhos, separou-se do primeiro marido aps 16 anos de
casamento e, na sua segundo unio, pegou a guarda provisria de um beb de uma prima, que
por problemas com dependncia qumica o abandonou numa creche. Glcia uma das
educadoras da unidade matriz do Abrigo. Claudia casada, me de um casal e trabalha na
instituio ao lado de sua tia Mara h 7 anos. Jonathan faleceu em maro de 2003, com pouco
mais de 20 anos.
Aparcio, o filho mais velho de Dona Cotinha morreu de cirrose heptica aos 60 anos.
Aparcio teve duas filhas e um filho, sendo a primognita me de trs crianas.
Mara aos 12 anos fez cursos no SESI de cabeleireiro, de corte e costura, artesanato,
teve aulas de tric e de croch. Moa, em So Paulo, trabalhou em salo de beleza, teve uma
Resultados e Anlise | 123
confeco de roupas e foi modelo por 2 anos. Namorou um jovem japons, mdico e maom,
que faleceu. Namorou depois outro rapaz, de quem ficou noiva, mas terminou o noivado.
Depois de oito meses separados, ela voltou a namorar esse rapaz, vindo a se separar
definitivamente dele dois meses depois. Nesse perodo Mara passava por um momento de
crise com sua confeco. Ela trabalhava noite com as portas fechadas, costurando as peas
que seriam vendidas sob encomenda no dia seguinte. Dona Cotinha acompanhava a filha, mas
s vezes passava mal por ter problemas de corao. Mara conheceu, ento, quem seria seu
futuro marido, Sr. Lo Kyoshi, que a apoiou durante a crise com a confeco. Mara casou-se
com ele trs meses depois. Dona Cotinha, nessa poca, fazia reunies espritas e conversava
com o pai de Mara. Ambos abenoaram o casamento da filha com Lo e Mara teve com ele
dois filhos, Lo Amadeo e Fumi Eloisa. Os filhos so mestios com traos da etnia japonesa
pela famlia paterna e africana e amerndia pela famlia materna. Fumi solteira, estuda, viaja
e trabalha como quiropraxista. Lo casado com Paloma, trabalha na empresa do pai (de
mquinas para lavanderia industrial) e pai de duas meninas, Tain e Maria Eduarda.
Jorge, o filho mais novo do segundo casamento de Dona Cotinha faleceu em 2008 por
problemas cardacos. Foi casado com Ivanilde e pai de Juliana e de Richard. Consta que ele
teria tido outro filho, mas este no chegou a conviver com a famlia do pai.
A imagem que mais marcou Fumi a respeito da av foi a de v-la contar, com emoo
e com alegria, como foi para ela ver a imagem do Cristo Redentor de braos abertos na cidade
do Rio de Janeiro. Esta senhora ser lembrada, por todas as pessoas da famlia, como uma
pessoa catlica e muito religiosa. Dona Cotinha gostava de ir s igrejas e, segundo sua filha,
ela rezava para todos os santos. Tinha sempre um tero prximo das mos. Acordava rezando
e antes de adormecer, voltava a rezar. Ivete, terapeuta, amiga da famlia, em entrevista,
brincou dizendo que chegou a perguntar a Dona Cotinha se ela s rezava na vida. Claudia, a
neta, se lembra da av montando a mesa. Ela colocava um pano branco, um copo com gua,
uma flor e pegava o tero para rezar. Linho (como costuma ser chamado o filho de Mara pela
famlia) v a av como o elo, a ligao entre todas as pessoas da famlia. Lo acredita que
os filhos que estavam com mais problemas foram acolhidos j pela av. Dona Cotinha
atendia pessoas da comunidade todos os dias, no perodo da tarde, em sua casa. Lo e os
primos almoavam, tomavam lanche, brincavam, jogavam domin na casa da av. A relao
entre a av e Lo era tranquila. Ele no se lembra de ela ter brigado com ele. Ela tinha um
rabo de tatu que ficava atrs da porta e s vezes o mostrava, conta Linho rindo. Ela bateu
124 | Resultados e Anlise
com o rabo de tatu num tio mais velho, mas os pequenos nunca chegaram a apanhar. Dona
Cotinha convivia muito com a filha, Cida. Ambas dormiam juntas no mesmo quarto.
Ainda pensando sobre a av, Lo disse que no saberia nem como defini-la: Tanta
gente que se aproxima do Lar pela corrente que ela acaba formando. No sabe se por ela
diretamente, ou se por espritos que tm ligao com ela. Tem pessoas que se afastam e
voltam... Passam-se cinco, seis anos e voltam. Ela continua sendo o centro da famlia, a
responsvel pela unio das pessoas.
Todo lugar que ele vai, tem algum que conhece a av dele. Lo dirigiu os
pensamentos para a av quando se sentiu no sufoco. Durante a primeira gravidez de
Paloma, por exemplo, na poca ainda sua namorada, Lo disse que recebeu mensagens para
ficar tranquilo, que aquela seria a hora certa de ele ser pai. Quando a av morreu, Lo tinha
sete anos de idade. Ele lembra-se bem do dia anterior ao seu falecimento. As crianas, Lo e
os primos queriam brincar e ningum deixava. A av morreu noite e Lo lembra que veio
toda a famlia para a casa de seus pais. As crianas no estavam autorizadas a entrar no local.
Um tio, atualmente falecido, lembra-se Lo, pegou as crianas e as levou para se despedirem
da av. Eles tinham o hbito de pedir a beno a ela todos os dias. Ele se lembra dela nesse
dia. O primo teria ido beij-la. Lo no teve coragem e ri atualmente de sua atitude de criana.
O primo chorava. Todos foram para o cemitrio, mas Lo e o primo no puderam ir. Nesse
dia, um tio alcolatra quis invadir a casa, pensando que Dona Cotinha estaria l. Lo e o
primo ficaram com muito medo. Os pais vieram buscar ento esse tio e o levaram junto para o
enterro de Dona Cotinha.
Ivete resumiu o que parece ser uma opinio comum, a respeito de Dona Cotinha: (...)
das outras pessoas a gente sempre faz ponderaes (...), ah fulano tem isso, ciclano tem
aquilo... a respeito de Dona Cotinha no h o que falar que no seja o bem, no h o que
falar.
Resulta
ados e An
lise | 125
5
Marra
Minha m
me, disse-me Mara, teve
t um nam
morado japons. Maraa
no lem
mbra se estee namorado existiu antees do primeeiro maridoo
ou entree ele e seu pai.
p Contou
u que aos 122, 13 anos, ao fazer oss
cursos dde artesanatto no SESI:
(...) fiz um
m monte de ccoisas porquee naquela poca eles davvam aulas dee tric,
de croch,, de artesanaato nas escolas... e no SE ESI a gente aaprendia de tudo
t e
eu sempree tinha uma revista que tinha aquellas bonequinnhas, e tinhaa uma
bonequinh ha japonesa qque eu semp pre falava, no
ossa, eu querro ter uma boneca
b
igualzinhaa essa boneqquinha. Semp pre falei isso, em Paragguau tinha muito
japons e eu morei noo meio de do ois japoneses, ao redor ttinha chcaraa com
verdura, eu u vivia muitto no meio ded japons... no d pra eexplicar, ach ho que
foi a conv vivncia, n.... eu acho qu
ue era a conv vivncia, n,, sei l, eu assistia
muito film me junto com m eles... os japoneses so muito poontuais, ss nove
horas, antees das nove eeles esto l... serenos... meu maridoo descenden nte de
samurai, no
n passa naada, eles sabeem tudo, eles fazem tudoo, eles no so s de
dividir as coisas... se a gente vai comprar alg guma coisa, voc quer ajudar
a
escolher ouo quer a oopinio dele, ele decidee e faz tudoo sozinho, depois d
comunica. Ele era loucco pra ter um m carro importado, ah, euu fiz uma coiisa, eu
quero te co omunicar... eeu comprei umu presente pra mim... aah, e o que que ...
ah, eu vou u buscar amannh e est tuudo certo. Ahh, eu compreii um civic, a gente
gosta de estar
e junto, LLinho e Fu umi... nossa, eu fiquei to chateada,, poxa
vida, n... a gente estt junto praa tudo, no j j est tudoo certo, j mandei
m
revisar... quando
q a gennte vai comu unicar algumaa coisa pra eele, ele diz, eu
e no
quero sabeer, seu, prroblema seu.... sabe, beem assim... a Fumi quan ndo ia
para o Perru, ela contaa pra mim, tu udo. Olha, me,
m eu vou ganhar assim e o
que eu fizzer a mais, vvai ser dividiido, eu falei, puxa filha, que legal, pra
p ela
que era o primeiro traabalho depoiis de formad da... ela foi ffalar pra ele... por
126 | Resultados e Anlise
que voc est falando praa mim, no o me interessa... nossa,, ela ficou
arrassada... ela esst compartillhando com ele, a alegria dela, n.... ento, so
d machuca bastante sab
coisaas que isso da be, e o jeito
o dele, n, faazer o qu...
cadaa um deles l, l tem esse jeito... eu sempre
s adorrei japons, mas depois
convvivendo junto os, isso da uma coisa que machucca. A pessoaa decidida,
da... quando est l em ccima, se cai
muitto individuallista, no aceeita falar nad
um pouco,
p no aceita,
a e achaa que todo mundo
m culppado, porquee na hora de
comppartilhar, no quer, mas quando aco ontece coisa errada, voc culpada.
Quanndo a Usui (empresa),
( esstava todo mundo
m no meesmo patamaar, eu sa de
l prra levantar o Lar porque tudo tinha que q ser como o ele queria e voc tem
uma viso difereente, e quanddo eu sa, nosssa, eu sofri muito l denntro, ns at
discuutimos isso quando
q veio a minha com madre... voc j prestou aateno que
foi voc
v sair da Usui
U que a U Usui caiu... sim
m, mas era necessrio
n euu sair...
Neste trecho, Mara comentava os desafios que enfrenta para recuperar as crianas e os
adolescentes do Abrigo e as respectivas famlias.
Lo K. Usui
Lo Amadeo
Com relao a sua infncia, Lo se lembra muito da casa dos pais, que tinha um
quintal grande e a casa da av Cotinha ao fundo. A infncia toda de que Lo lembra foi a que
viveu nesta casa. Os pais eram muito ocupados. Organizavam cursos de metafsica no
salo de casa. Lo lembra-se dos pais prximos, mas sempre ocupados. Lo brincava com os
primos que, por morarem por perto, passavam o dia com ele. Antes dos sete anos de idade,
Lo estudou no perodo da manh e passou suas tardes sob os cuidados da av, Dona Cotinha.
Teve uma bab, mas por pouco tempo, ficando sob os cuidados da av materna apenas. Aps
os sete anos de idade, Lo frequentou a escola no perodo da tarde. Praticou jud por um
bom tempo (at adquirir quatro faixas) e fez natao at aprender a nadar.
Lo contou que se lembra de momentos ruins nessa mesma casa. O pai comprou um
relgio de pndulo antigo. meia-noite, o relgio batia as doze badaladas e Lo visualizava
uma senhora e sentia muito medo. Quando isso acontecia, ele corria para o quarto da irm,
uma vez que o quarto dos pais parecia-lhe muito distante. Lo adormecia novamente no
quarto da irm. A me, por fim, se desfez do relgio por conta do medo de Lo. De modo
geral, Lo acredita que foi uma criana calma.
Na adolescncia, Lo se mudou com os pais para uma casa prxima a sua escola. Lo
contou que permanecia sozinho tarde em casa durante esse perodo. Fumi, sua irm,
estudava tarde, e ele voltou a estudar pela manh. noite, a famlia tinha atividades no
centro esprita da famlia e Lo ainda no participava dessas reunies. Lo se sentiu um
pouco sozinho nesse perodo. Em 1993 ou 1994, ele no se lembra bem, Lo passou a jogar
futebol todos os dias e chegou a receber uma proposta para entrar para um clube de futebol
profissional de Campinas-SP. O rapaz contou que sempre quis entrar para o futebol
profissional, mas quando a oportunidade chegou, ele no soube dizer o motivo, mas no quis
seguir com uma carreira no esporte.
Lo trabalhava como office boy no escritrio do seu pai. Nesse tempo, ele comeou a
fazer desenhos de pintura medinica. O jovem rapaz participou de uma exposio de
desenhos realizada na Av. Paulista, em So Paulo. A professora de artes da escola gostava
muito dele. Lo ficou encarregado por essa professora de fazer um painel para atrair a ateno
dos pais e dos alunos para a exposio que tambm aconteceria na sua escola. Usando tinta e
as mos, Lo desenhou um ndio de 8 metros de altura, cuja imagem, em cermica, se
encontra atualmente no cong do Templo Seara (centro esprita e de umbanda da famlia). O
painel, desenhado por ele, ficou exposto por vrios dias na escola. Depois da exposio, o
Resulta
ados e An
lise | 129
9
Certa vez, du
urante um workshop de pinturaa
medinica, Lo cuidav
va do som
m da palestraa e lembraa
que, nessa poca, ele no gostavva muito daa umbanda,,
pois achavaa que esta no
n lhe resppondia, no
o explicavaa
muito as coisas e co
omo religioo lhe causaava muitass
dvidas. Ao
A manejar os equipam
mentos de udio
para a
palestra que seria dadaa por Rubenns Saraceni (conhecidoo
escritor e lder umbaandista), Lo acabou ouvindo
a
da e perceb
palestra tod beu que alggumas de su
uas dvidass
tinham sid
do respond
didas. Arrum
umou uma namorada,,
certa vez, que o levou a frequenntar o Tem
mplo de suaa
famlia. Deepois que elle se tornouu frequentad
dor assduo,,
o nam
moro acaboou. Namoro
ou outras m
moas, mas no
n teve neenhuma parra acompanh-lo peloo
proceesso que elle estava paassando. Q
Quando marrcou um enccontro com
m uma ex-naamorada noo
aniveersrio de um amigo, a ex noo comparecceu, mas a atual espoosa sim. Namoraram,
N ,
brigaaram ficanddo dois ou trs meses separados e quando estava
e para completar um ano dee
namooro, Lo e Paloma
P cassaram-se noo Templo daa famlia, sendo realizzada uma ceerimnia dee
casam
mento umbbandista. Lo faz partee da diretoria do Lar Dona Cotiinha, viu a instituioo
nasccer. Mas, por
p estar seem vida soccial, ficava mais
m dentro
o do Abrigoo do que fora, afastou--
130 | Resultados e Anlise
Paloma
Paloma iniciou seu primeiro namoro com 13 anos, teve outro namorado aos 15, outro
dos 17 aos 19 anos. Depois conheceu Lo e com 21 anos casou-se com ele. Aos 13 anos, j
presenciava sesses de umbanda na sua casa. A me sempre tivera envolvimento com o
espiritismo; a av paterna era kardecista, e a av materna recebia uma freira em casa,
segundo sua me. Paloma disse que sempre tomou passe e nunca teve medo de nada.
Engravidou de suas duas filhas quando tentou iniciar seu desenvolvimento medinico.
Maria Bonita lhe dissera tambm que Paloma se casaria com um homem que veste
branco e que ele j a aguardava, pois, fazia parte do seu destino. Ela namoraria alguns
outros, mas nenhum deles permaneceria em sua vida. Maria Bonita a aconselhava em sua vida
amorosa e Paloma refletia a respeito de seus dizeres. Lo, seu esposo, a conhecia desde
criana, desde os 13 anos de idade. Paloma foi cursar fisioterapia por acreditar que esse
homem que vestia branco poderia ser algum da sua faculdade ou de um curso de medicina.
Jamais imaginou que se casaria com um pai de santo, pois Lo, enquanto menino, no tinha
assumido ainda a funo de sacerdote. Quando comeou a namorar Lo, Paloma no se
lembrava mais da histria que Maria Bonita lhe contara. No dia de seu casamento, entretanto,
Alice estava presente e lhe disse: lembra que Maria Bonita lhe disse que voc se casaria com
um homem que veste branco? Foi a que caiu a ficha, disse Paloma. Hoje em dia, Alice, a
mdium da pombagira Maria Bonita, est muito doente e j no incorpora mais. A me de
Paloma, com depresso durante um perodo, estava sempre em contato com Alice e passava
notcias dela a Paloma. A mdium ficou com depresso e com dificuldade para se recuperar
por problemas que teria tido com sua prpria filha. Lo, no dia anterior entrevista com
Paloma, contou que estava tentando localizar Alice para ajud-la a se restabelecer. O ltimo
contato que Paloma teve com Alice foi quando ela soube, a pedido de Maria Bonita, que logo
ficaria grvida outra vez. Tain, sua nica filha na poca, estava com 3 anos de idade.
132 | Resultados e Anlise
Quaando Palom
ma se casou
u, estava grrvida de 3 meses. A
A gravidez rrepentina fo
oi um
choque, ccontou ela. O pai no gostou
g e noo foi ao casaamento porque Palomaa e Lo casaaram-
se na umbaanda. O paii sempre dissse no gosttar da umbaanda. Os sogros, Mara e Sr. Lo teeriam
recebido P
Paloma muuito bem. O casal com
m as duas filhas
fi vivem
m em uma ccasa cedida pelos
pais de Loo. Paloma trrabalha atuaalmente com
mo cabeleireira no salo de belezaa que Mara cedeu
c
a Nora e a Fumi, sua filha. O cassamento, a ffesta, foi tu
udo muito bonito,
b conntou Palomaa. Ela
casou-se ccom o vestiido que queeria e o cassal recebeu uma surpreesa preparadda por Maraa: um
violinista qque tocou durante
d a ceerimnia e a presena de Rubens Saraceni ppara formaliizar a
unio do ccasal. Lo, segundo Paaloma, no parava de chorar. To
odo mundo chorou. Fo
oi um
casamento que emocionou a tod
dos. A fessta foi no salo
s de festas do Larr Dona Cottinha.
Paloma coontou que eles ganhaaram muitoos presentess. Durante a gravidezz de Tain, sua
primeira fi
filha, Palom q sentia a presena do esprito da meninna com nitiidez.
ma contou que
Antes de fficar grvidda, j sabia que teria uuma meninaa um dia e que seu noome seria Tain.
T
Paloma achha a filha muito
m pareciida com elaa. Tem a mesma
m perso
onalidade, o mesmo gnio,
por isso elaas brigam, justifica.
j Lo, segundoo Paloma, chama a filh
ha de Palom
minha s vezes.
v
Paloma, Maara soube daa gravidez dela antes mesmo do casal. Em uuma festa, Mara
Segundo P
no paravva de olhar, ela olhav
va muito, ccompletou Paloma. Maara teria vissto uma lu
uz na
barriga de Paloma. A gravidez de Maria Edu
duarda foi muito
m
tranquila,, pois Palo
oma estav
va casada, j tinha tiido a
Tain... O pai de Paloma
P reclamou do casamento e da
gravidez dde cada umaa das netas. Paloma e o pai ficaram
m sem
se falar duurante a grravidez de Tain e duurante o peerodo
inicial de sseu casamen
nto. As duass netas so ddistantes do
o av,
completou Paloma. M
Mas, ele deepois que e las nascem, gosta muiito e quer sse aproximaar das
meninas. Na foto estt Maria Ed
duarda (Duuda, a filhin
nha mais no
ova de Palooma e de Lo), o
filho de um
m mdium, amigo
a do caasal ao meioo e Tain no
o canto direeito.
Resulta
ados e An
lise | 133
3
Fum
mi
As entidades de Fum
mi so: Cabbocla Jurema, Exu Marab, Pombaagira Maria das guas,,
Cabooclo de Oxoossi e Preto--velho Pai JJos da Cariidade. Recebe uma Ciggana e uma Preta-velhaa
que no deram o nome, um
u Exu-miirim, uma baiana,
b qu
ue gosta dee danar e que bem
m
religiiosa, um marinheiro,
m trabalhaddor e engraado, um Ogum quue pe umaa espada noo
peitoo, duas criianas, send
do uma basstante aten
ntada; reccebe mais oorixs femin
ninas, quee
seriaam: Oxum, Ians,
I Ieman
nj e Nan.
134 | Resultados e Anlise
Fum
mi tem adoorao pelass sobrinhas,, Duda e Tain.
T Quando brinca ccom as men
ninas,
ambas ficaam pulando em volta daa tia de manneira tambm
m atentadaa.
A rrespeito do relacionam
mento com o irmo Lo, Fumi aleegou que elles se conh
hecem
muito bem
m. Disse quee s de olhaar pra ele, ela j sabee o que ele est
e pensanndo. Eles podem
ficar muitto tempo seem se falar, ela olha ppara ele e sabe como ele est. A respeito de
d sua
av paternna (chamadda Fumi), ela
e disse qque se sentte muito p
prxima ddela, como se a
s trata, apeesar de no t-la conheccido. Fumi est morando na
conhecessee e soubessee de quem se
Irlanda h quase um ano.
a
Claudia
No caanto esquerd
do desta fot
oto, est Claaudia,
mooa alta, vesstida de bran
nco, ao lado de Mara. O rapaz
senntado a sua frente
f seu marido Klb
ber, pai de Astrid
A
(gaarotinha com
m as pernas cruzadas e de blusa listrada)
e dde Gustavo (garoto dee blusa verm
melha, ao laado da
irm
m, usando bon). Clau
udia filha de Diva, neeta de
Doona Cotinha e sobrinha de
d Mara.
Forrmou-se em
m Servio So
ocial e tem trabalhado com Mara na administtrao do Abrigo
A
desde 19955. Claudia, ao
a pensar so
obre sua ado
dolescncia, lembra ter tido
t algunss namoradin
nhos,
que o pai era rgido com ela e que ela gosstava mesmo
o era de teer liberdade para sair co
om os
amigos e paara voltar mais
m tarde paara casa. A me, o pai, os irmos e o cunhado dde Claudia foram
f
morar em B
Belo Horizonte. Claudiaa ficou em S
So Paulo, morando
m com
m a av. Nessse perodo, Dona
Cotinha terria sido um pouco
p rgid
da com elaa. A av no
o gostava qu
ue Claudia vo
voltasse tardee para
casa e a neeta entendeuu que a av agia assim pela respon
nsabilidade que havia aassumido po
or ela.
Claudia proocurou obeddec-la para no deixar a av Cotinh
ha preocupad
da.
A nneta se lembbra de Donaa Cotinha a benzendo em duas occasies em qque ela sentiu-se
mal, apresentando forrte dor de estmago
e e afirmou ter se sentido
o melhor deepois de terr sido
benzida peela av. Com
m o falecim
mento de Doona Cotinha, Claudia foi
f viver coom a tia Mara.
M
Claudia, coontou que nunca
deu problema,, mas que no
n dia do casamento daa irm, ela sumiu
s
da festa, aapesar de teer sido mad
drinha de ccerimnia religiosa.
r Claudia com
meou a nam
morar
Kleber aoss 19 anos e casou-se
c com ele aos 226.
Resultados e Anlise | 135
Dona Cotinha chegou a conhecer o marido da neta, alguns meses antes de falecer.
Claudia casou-se no cartrio civil em Abril de 1995. Gustavo, seu primeiro filho, nasceu em
junho deste mesmo ano. Astryd, sua segunda filha, nasceu em agosto de 2001. Claudia queria
apenas uma criana, mas depois de casada foi mudando de ideia.
Quando Gustavo nasceu, Mara a chamou para trabalhar no Abrigo. No incio, Claudia
no imaginava que fosse gostar do trabalho da forma como atualmente ela percebe que gosta.
Aceitou o convite para poder ficar mais prxima de seu filho, Gustavo, recm-nascido na
poca. Claudia costuma ser muito querida pelas crianas e pelos adolescentes da instituio. A
este respeito, Claudia afirma que ela gosta muito das crianas e dos adolescentes, pois
aprende muito com eles. Alm disso, a experincia no Abrigo lhe ensinou a ver a vida de
uma forma diferente, a valorizar mais as pessoas e a colocar a famlia em primeiro lugar.
Claudia contou que cr em Deus, mas no frequenta nenhuma religio e tem medo da
espiritualidade. A me e o pai foram evanglicos. Mara comentou que Claudia tem
mediunidade para ser me de santo, mas se recusa a s-lo.
Claudia teria visto o esprito de Dona Cotinha uma vez, em frente ao porto da casa de
Mara e ficou muito assustada por alguns dias. A av tinha um leno vermelho no pescoo e
sorria para ela. Claudia no a viu de corpo inteiro. Mara lhe disse, na ocasio, que Dona
Cotinha talvez estivesse feliz por ela ter comeado a trabalhar na instituio.
Com relao irm, Claudia se percebe um pouco diferente de Glcia, pois ela sempre
foi de responder ao pai ou me argumentando algo, e nunca foi muito de escutar e de ficar
quieta. O pai notava a diferena entre ela e a irm, dizendo que enquanto Claudia responde
aos outros, Glcia tem mais pacincia, demora mais para se chatear. Claudia a filha mais
explosiva, mas, em compensao, depois de dizer o que precisa, logo tudo passa. Glcia
demora mais para ficar chateada, mas quando fica, guarda mgoa e s vezes no esquece
mais, comentou Claudia.
136 | Resultados e Anlise
Nova geraao
A rrespeito de Maria
M Eduaarda no me foi relatadaa nenhuma histria.
h
Amiggos da fam
mlia de Don
na Cotinha
Veriinha
Ednaa
Edna mdium
m no
o Templo S
Seara da Essperana e trabalha coomo volunttria para a
instittuio. Faz visitas regu
ulares ao A
Abrigo e porr ter um jeitto mais atenncioso e afe
fetuoso paraa
com as crianas e os adolesscentes, ficoou conhecid
da como tiaa batata.
138 | Resultados e Anlise
Ftima
Sandra
Lcia
Lcia tem estado ao lado de Mara h 20 anos. Foi caseira de uma propriedade rural
que pertenceu famlia de Mara. Com a venda da propriedade, Lcia veio morar na cidade de
So Paulo e tem, desde ento, trabalhado no Lar Dona Cotinha. Lcia viu as crianas que
chegaram ao Abrigo,crescerem, sarem da instituio, se casarem e tornarem-se pais e mes.
Teve os seus estudos financiados pelo Lar Dona Cotinha e graduou-se em Servio Social.
Resulta
ados e An
lise | 139
9
Ivetee
Ivete teerapeuta, me
m de trs fi
filhos e casaada com um
m mdico. Ella conhece Mara h 300
anos. Os seus filhos
f teriam
m crescido e passado frias juntto com os filhos de Mara.
M Ivetee
cheggou at Dona Cotinha quando
q o seuu primogn
nito, ainda criana,
c ficoou doente. Ela
E recorreuu
aos bbenzimentoos de Donaa Cotinha ddepois de buscar
b por tratamentoo mdico e no obterr
sucessso. Ivete ressalta que nunca foi de acredittar nessas coisas com ffacilidade.. Depois daa
melhhora do filhoo e de ter co
onhecido D
Dona Cotinh
ha, Ivete no
o teria consseguido se afastar
a maiss
da faamlia. O relacionamen
nto que Ivetee manteve com
c Dona Cotinha
C foi,, segundo ela, de mee
e filhha.
Chama ateno
a a semelhana
s da histriaa de Ivete com
c a histria matern
na de Donaa
Cotinnha. Ambass tiveram o primeiro fiilho doente e teriam see tornado esspritas dep
pois da curaa
de seeus filhos. Mara
M relatou
u que, anos depois, a espiritualid
e ade teria ddito que Ivette foi filhaa
de D
Dona Cotinha em outrass encarnaees.
2.4 T
TEMPLO SEARA
S DA
A ESPERA
ANA
8
Searra: 1 Campo semeado de trigo
t ou de ouutros cereais. 2 Terra que se semeia deppois de lavradda. 3 Pequenaa
extensso de terra cultivada. 4 Campo
C onde crescem quaaisquer ervas. 5 Conjunto numeroso dee pessoas quee
aderemm a algum priincpio benfico; agremiao; reunio dee proslitos. Michaelis
M Modderno Dicionrrio Da Lnguaa
Portugguesa. Walteer Weiszflog g. Disponvell em: http:///michaelis.uo ol.com.br/modderno/portugues/index.php??
linguaa=portugues-pportugues&palavra=seara.
140 | Resultados e Anlise
se por umaa escada lateeral. Logo frente, enccontramos o cong (altar da umbannda). As plaantas,
as flores e as velas so
s colocad
das no congg junto com
m as imageens dos guiias espirituaais da
umbanda e dos orixs. H uma esspada de Oggum fixada em um toco
o ao cho.
AF
Festa de Iem
manj com
memorada nna praia e o encerrameento do ano em algum outro
espao na nnatureza.
Resulta
ados e An
lise | 141
O ritual de umband
da s teras se inicia com uma prece, lida em
m voz alta por
p um doss
mdiiuns da Casa. O dirigen
nte espirituaal Lo Am
madeo, filho de Mara (aacima nas fo
otos).
Aps a prece,
p so entoados
e poontos cantaados aos orrixs; depoiis destes tocca-se para a
linhaa de espritoos que far o atendimeento dos co
onsulentes. O atendime
mento orgaanizado porr
meioo da distribuuio de ficchas, havenddo em cadaa ficha o no
ome de um mdium. Cada
C pessoaa
escollhe o mdiuum que far seu atenddimento. Ap
ps receber a ficha, a ppessoa devee se dirigir,,
aindaa na entradaa, a uma dass cadeiras e aguardar o passe do
o mdium, qque se manter em p
sua ffrente. Estee mdium equilibra
oos pontos de
d energia da pessoa antes delaa entrar noo
espao do terreirro.
Os mdiiuns vestem
m a roupa bbranca, tpicca do mdiu
um umbanddista (cala e camisetaa
brancca para os homens,
h calla ou saia ccomprida e blusa brancca para as m
mulheres). Os
O mdiunss
podeem utilizar a camiseta branca,
b que contm o smbolo
s do Templo (veestida pelo og na fotoo
142 | Resultados e Anlise
Os orixs prrotetores do
d Temploo so Og
gum e Iem
manj e, segundo Mara,
M
espiritualm
mente, eles tm
t uma corrente
c os) e de preetos-velhos que
de indiaiada (de caboclo
muito fortee. As entiddades que au
uxiliavam D
Dona Cotinh
ha em vida e que continnuam preseentes
so Pai Jaac (Preto Velho), Caaboclo Viraamundo e Maria Turb
bante (entiddade cigana). A
primeira inncorporaoo de Lo fo
oi por Pai JJac, e Mara presta attendimento sendo auxiliada
pelo Cabocclo Viramunndo.
2.5 FAVO
OR ABRIR A RODA, MARIAZIINHA VAI CHEGAR
R
rotina do Lar Dona Cotinha, por trabalhar ao lado da tia, mas precisava terminar o curso de
Servio Social. O cargo de gerente da unidade apenas poderia ser ocupado por algum que
tivesse curso superior completo. Faltava um ano para Claudia se formar. O CRAS reconheceu
a experincia e aceitou que ela ficasse como gerente da unidade.
Ritual de Caboclos
Escuto uma histria que me deixa um pouco confusa, a respeito da distino que os
mdiuns estavam dizendo saber fazer para quando h aproximaes de espritos bons e
ruins. Aproximo-me do Caboclo Viramundo para conversar, e lhe pergunto como isso:
9
Disponvel em: (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642003000100009).
Acessado em 12-05-2010).
144 | Resultados e Anlise
O Caboclo me respondeu que mesmo o mdium consciente, que fala o que ouve e que
age conforme o que algum ali ao lado lhe determina, no pode diz-lo... mesmo o mdium
consciente depois se esquece do que aconteceu...mesmo o mdium consciente muito
inconsciente do que acontece e para a vida melhor se procurar esquecer isso. Perguntei se
ele teria alguma orientao para mim. Ele disse que no e que era apenas para eu continuar
presente e freqentando os rituais do terreiro. Ensinou-me, ento, a pedir ajuda, quando eu
precisasse, ao cong e disse que eu estava sendo sustentada por aquele cong. Passou um
ramo de guin pelo meu corpo, eu lhe perguntei qual a funo da erva. Ele me esclareceu que
era para limpeza; foi ento realizado um transporte (significa tirar encosto, esprito
no iluminado de perto um mdium se aproximou para que essa presena fosse
incorporada e depois encaminhada pela espiritualidade da Casa). Perguntei quem era ou o
que era e o Caboclo me disse que quando alguns vem a luz se aproximam em busca de
esclarecimento. Era apenas isso que essa pessoa precisava. Disse que eu no me
preocupasse porque assim mesmo.
Um grupo de irmos formado por cinco crianas estava espera de adoo, nesta
instituio de acolhimento, h quatro anos. O primeiro tinha 11 anos de idade, o segundo tinha 9,
o terceiro completava 8, o quarto estava com 6 e a caula estava com 5 anos. Uma irm mais
velha, mas que ainda no era a primognita da famlia (havia outros irmos com a me), havia
sido adotada por uma tia, aps permanecer nesta mesma instituio por dois anos. Os pais
biolgicos perdem a guarda dos filhos por negligncia em funo da dependncia qumica
principalmente do pai e pela falta de recursos financeiros para continuarem cuidando das crianas.
Esse grupo de irmos que ainda estava na instituio aguardava a concluso do processo
de adoo por casais italianos. Como era difcil encontrar pais que se dispusessem a adotar
todos os cinco, eles seriam adotados por trs casais distintos, os quais os manteriam na Itlia e
em contato para que estes cinco irmos, pelo menos, no se separassem. Neste perodo, os
Resultados e Anlise | 145
irmos comearam a receber cartas e fotos de seus futuros pais. O mais velho e o terceiro irmo
ficariam com um casal. O menino mais novo e a caula ficariam com outro. O segundo irmo
ficaria apenas com seus pais. Os sentimentos das crianas que se manteriam ainda na instituio
se alternavam. Em alguns momentos, elas pareciam contagiadas, felizes com as novidades;
noutros, nem tanto. As adolescentes da instituio consultavam um dicionrio e brincavam entre
elas, tentando pronunciar palavras em italiano. O lao de amizade da irm caula com outra
menininha de mesma idade, com a qual ela convivia no Abrigo, comeou a se estreitar. O irmo
mais velho, que se dizia apaixonado por uma das adolescentes do Abrigo, tentava garantir a
manuteno do contato com ela por meio das redes sociais. A irm, adotada pela tia, comeou a
fazer visitas mais frequentes aos irmos na instituio.
incrvel notar como o que acontece a uma criana afeta todas as demais. Neste caso,
no era uma criana apenas, um grupinho de irmos partiria. De qualquer maneira, notei que
as crianas mediam e continuavam a medir a ateno que era dispensada para cada um. Elas
disputam espao, ateno, brincam, so cmplices umas das outras, agem como se todos
fossem, de fato, irmos.
Exu e Pombagira
Uma das mdiuns doente estava sendo cuidada por Maria Padilha. A Pombagira me
disse que a tarefa dela cuidar dos mdiuns da casa e no das pessoas da assistncia. Maria
Padilha a Pombagira de Mara. Assim como a me de santo, ela quem vigia, cuida para
que tudo transcorra bem durante o ritual.
A Pombagira me disse que ela cuida de Mara desde que ela nasceu,
protegendo-a. Elas tm uma relao muito forte, completou. Perguntou-me
se eu no havia percebido como Mara consegue tudo o que ela quer.
Quando respondi sem saber, mas, que sim, ela me disse, ento, querendo
dizer que seria por causa dela (Maria Padilha).
Perguntei a ela, qual era a minha relao com a famlia e com o Lar:
percebendo tudo o que aconteceu desde que os conheci. Eu fiz que sim
novamente, mas com uma ponta de incerteza. Maria Padilha pediu que eu
prestasse ateno a tudo o que aconteceu desde que cheguei. Perguntou-me
se eu no tinha os ps mais ali. Sorri, concordando que eu tinha os dois ps
ali.
Fui, ento, conversar com a Pombagira Sete Saias. No preciso dizer nada para as
entidades dessa mdium porque elas saem logo na frente, dizendo tudo o que elas acham que
precisam:
Sete Saias disse que no podia falar muito porque os filhos tm que
viver as dificuldades do dia-a-dia, tm que enfrent-las. Disse que eu no
precisava correr tanto e nem ficar muito tempo parada depois, pensando... Os
filhos no podem nem se acomodar, nem se tornar escravos do que as
entidades dizem. Sete Saias me pediu para agradecer por ter chegado quela
Casa. Disse que sou aberta para receber intuio. Tem gente que fica com a
cara fechada, pensando que nada est bom ou que nada vai dar certo. A a
espiritualidade no consegue passar orientao. Mas, se permanecemos
receptivos, as entidades se comunicam e a gente entende. Tenho que
distinguir o que bom do que no bom intuitivamente. Separar para
distinguir a verdade tambm. Mediunidade algo bom, mas nem sempre
fcil, completou ela.
Parecida com a mdium, a Sete Saias vai direto ao assunto. Pede agilidade e
sensibilidade na interpretao e menos perguntas. As pombagiras so entendidas neste terreiro
como entidades que trabalham o desejo (em todos os sentidos).
Maria Padilha disse que Mara consegue o que deseja, querendo afirmar com isso que
minha presena ali foi desejada. Seguindo a mesma linha de raciocnio, Mara desejou ter uma
instituio para crianas e adolescentes. Fiquei me perguntando um tempo, se o desejo de
Mara por um Abrigo no poderia ter algo de perverso. Entretanto, Mara no deseja que
existam situaes de abandono infantil para que sua instituio exista. No apegada s
crianas no sentido de tentar mant-las dependentes de si.
Segundo Lacan, o desejo sempre o desejo do Outro. O pai de Mara aparece como
quem idealizou a instituio. O pai, ancestral familiar, vivenciou situaes de abandono
quando criana. Alm disso, Mara cresceu acompanhando as experincias difceis, os temores
e as fantasias de abandono de outras pessoas. O desejo pela instituio passa, portanto, pelas
experincias de vida do pai e da me dela. Mara diz claramente que tudo que ela faz por
gratido ao pai e me. Ela gostaria de desenvolver projetos sociais voltados tambm para o
Resultados e Anlise | 147
O tempo de cada um
Cada pessoa tem um tempo, um ritmo de vida prprio. Como saber qual o tempo e se
mudanas vo ocorrer no tempo de cada um? Uma garotinha chega com outros dois irmos ao
Lar Dona Cotinha, quando completava dois anos de idade. A me era usuria de drogas, tinha
outros filhos e no tinha condies financeiras e emocionais para cuidar das crianas. Essa
garotinha encaminhada para adoo. Um casal italiano chega ao Brasil com a inteno de
adot-la, quando ela estava com 3 anos. Instruda pelo irmo mais velho10 (que estava no
Abrigo), a garotinha chora durante um final de semana inteiro na presena desses pais.
Antes da partida para outro pas, as crianas devem permanecer no Brasil em companhia dos
pretendentes a pais pelo perodo de um ms. O Poder Judicirio acompanha durante esta fase
as chances da adoo acontecer por ambas as partes (pais e criana). Brinquedo, roupa nova,
passeios no convenceram a menina a parar de chorar. Desanimados e tristes, os pretendentes
a pais levaram a menina de volta Vara da Infncia e da Juventude. De l, ela foi trazida
novamente para a instituio. A garota permanece no Abrigo at completar 15 anos. A me,
dez anos depois, recuperada do quadro de dependncia qumica comea a olhar os filhos de
longe na sada do Abrigo e da escola. Mara, quando percebe, instrui a me a procurar pela
equipe do Frum. Nessa poca, a menina estava com 13 anos. Seus dois irmos mais velhos
logo retornaram para a casa materna. A caula da famlia, entretanto, passa apenas os finais de
semana na casa da me. Desliga-se mais lentamente das pessoas com quem ela conviveu na
10
Ambos contam essa histria alguns anos depois.
148 | Resultados e Anlise
Bronca de caboclo
O mdium deste Caboclo havia me dito para comprar um mel de flor de laranjeira que
ele d aos filhos dele, quando ficam doentes. Na qualidade de pais simblicos, as entidades
espirituais do oportunidades de crescimento. O Caboclo queria me dizer que, para continuar
crescendo, eu precisaria continuar me cuidando. Como eu no estava sabendo fazer isso, eles
o fariam e me ensinariam como fazer, desde que eu os deixasse. Esta mesma relao de
continuidade entre o cuidado social e o espiritual que eu experimentava indo ao terreiro
certamente aconteceria com toda a coletividade, fazendo parte do ethos umbandista. Eu era
includa e cuidada e a minha atividade (inclusive no Abrigo) era orientada e interpretada.
Escuto do escritrio uma criana chorando alto. Vou at a janela do quarto e vejo
Gabriel11 sem camisa, de bermuda, descalo e sozinho. Como os outros almoavam, perguntei
a ele, se j tinha almoado. Gabriel, nervoso, disse que no e que queria ficar sozinho.
Pergunto se ele no quer almoar comigo e sugiro que brinquemos um pouco depois. O
menino pra de chorar e fica pensando. Peo para ele colocar uma blusa porque est frio. Ele
me responde que no sabe se vestir sozinho. Pergunto onde esto seus sapatos. Coloco uma
camisetinha nele e peo educadora, que tinha acabado de entrar no quarto, por uma blusa de
frio. Ela me passa uma jaqueta e Gabriel reclama, dizendo que aquela grande para ele. Eu
dobro a manga da jaqueta e a ajeito no corpo dele. Procuramos por um sapato fechado e a
educadora me avisa que Gabriel tem jogado seus sapatos em cima do telhado. Digo ao menino
que no jogue seus sapatos no telhado e que ele poder ficar doente se ficar descalo. Calado
e agasalhado, Gabriel me d a mozinha para irmos ao refeitrio. Sua irm, Gabriela, ao ver o
irmo passando, se aproxima para dar um beijo nele. Gabriel estava com 04 anos e Gabriela
com 10. O menino faz uma feio de quem est bravo ao perceber as demais crianas
olhando para ele. Fao o prato dele. Gabriel escolhe uma mesa no canto da copa. Senta-se e
indica a cadeira, encostada na parede e ao lado dele, para mim. Aviso que vou fazer meu prato
na cozinha. Gabriel fica sentado almoando e me aguardando. Sento-me e insisto que ele
coma pelo menos os legumes. O menino havia pedido por arroz, feijo e farinha (no queria
carne). Bravo ele me responde que no. Uma educadora se aproxima, trazendo um copo
de suco para ele. Gabriel, ao tentar pegar o copo, derruba o suco na mesa. A educadora olha
para ele e Gabriel fica sem graa. Eu digo baixinho que ele no fez por querer. As educadoras
11
O nome fictcio, assim como o da irm.
150 | Resultados e Anlise
e as cozinheiras esto almoando na copa. Gabriel olha para elas e diz em voz alta: foi sem
querer!. Elas dizem que sabem e que entendem. Volto com outro copo de suco para ele.
Gabriel o pega com uma mo, pois a outra fica apoiada sobre seu queixo para manter a pose
de bravo. Eu rio e pergunto se ele toma o suco com uma mo s, para com a outra, manter
a braveza. As educadoras todas sorriem para o menino. Gabriel desfaz a feio e espera eu
terminar de almoar. Eu pergunto se ele vai querer uma fruta de sobremesa. Digo que h
mexerica. O menino ri e diz que no quer. Samos de l e vamos para a brinquedoteca. No
caminho, Gabriel me conta que adora brincar com a bola.
conseguiu se afastar das crianas por completo, mas no era capaz de viver prxima da me
ou com seus filhos. Com os netos no Lar Dona Cotinha, a av pedia inconscientemente
direo do Abrigo que cuidasse dela. A av no tinha coragem de ir ao Frum para definir a
situao dos netos. Tinha medo. Dizia aos netos que o pai deles era um homem que se
relacionou com a me. Este homem no era o pai biolgico das crianas, mas se comportava
como pai para Gabriel e Gabriela. O receio da av era que essa situao criada por ela, no
fosse aceita pelo Juiz. As crianas sabiam, entretanto, que o pai no era o pai biolgico.
Assim, ela no enganava os netos. O Poder Judicirio era visto pela av como o setor das
cobranas, mas de cobranas que na verdade eram dela mesma. A av apenas conseguiu ir ao
Frum quando este entrou em contato com o Abrigo e a intimou a comparecer. A av no
mantinha um endereo fixo e o processo das crianas ficava migrando de um Frum para o
outro. Essa situao durou quase um ano. Passado o primeiro susto, a av passou a falar
com as tcnicas do Frum com regularidade. As crianas voltaram a conviver com ela trs
meses depois com a devida autorizao Judiciria.
lendo-as inclusive nos livros. Meu conhecimento viria de outras vidas. Perguntou-me se
tenho notado como ando recordando meu passado. Como fiquei em silncio, ela me
perguntou: como oc t se sentindo hoje, fia?. Bem, respondi. Tia Chica, dando
continuidade, falou: oc j aprendeu bastante da semana passada pra essa, n fia?... e
completou que eu estava colocando em prtica o que eu estava comeando a recordar.
Como continuei em silncio, Tia Chica perguntou se eu no percebia como tenho aprendido
todo dia um pouquinho. Eu respondi que sim... ela reiterou que eu aprendi sim...e que
estava mudando rapidamente.
Enfatizou que eu estava no caminho certinho e era para continuar assim. Ela me
perguntou se algum j me falou alguma coisa do meu passado. Respondi que no... Tia Chica
se aproximou e disse-me que hoje eu sou branquinha, colocando a mo no meu brao, tem
olho claro. Mas, segundo ela, eu j fui escurinha, africana por muitas vidas. Vivi em
engenho com todos eles e fao parte daquela famlia espiritual. Pediu-me para ler algo
sobre os tempos dos engenhos... disse que eu iria recordar coisas que vivi.
Perguntei-lhe por que voltei como pesquisadora. Tia Chica falou que eu preciso
testar e ver como tudo aquilo que eu j sei se comprova, e se aquilo mesmo. E para qu,
perguntei. Tia Chica da frica respondeu que para fazer crescer... fiz, ento, perguntas
sobre o Abrigo... quis saber se estava tudo bem l e se ela tinha alguma orientao a ser
passada para mim. Tia Chica, com o tronco inclinado para frente, disse: sim, fia, querendo
dizer que estava tudo bem. Nesse momento, ela no passou orientaes... pensando nas
crianas acolhidas, perguntei qual era a relao das pessoas da famlia com as crianas. Tia
Chica disse: a mesma que a sua; todos seriam da mesma famlia espiritual. Fiquei
pensativa. Tia Chica pontuou que tinha falado demais, que dali em diante era para eu
buscar por conta prpria. Afirmou que eles do uma luz, mas que esse era o meu trabalho.
Fiquei em silncio.
A entidade confirmou, ento, que tudo estava caminhando bem e que eu estava
cumprindo minha misso. Disse para eu ficar tranquila porque eu iria descobrir muita
coisa e voltaria para contar muitas histrias a ela, ainda. Como falvamos do Abrigo, Tia
Chica me pediu que eu olhasse pelas educadoras da unidade conveniada. Pediu para eu faz
conversad com elas. Tm algumas que so amarguradas com a vida e por isso precisam
de orientao.
Resultados e Anlise | 153
Perguntei sobre a relao dela com Mara. Tia Chica afirmou que a misso dela,
preta-velha, ajudar Mara: Essa fia tem um corao que se ela pudesse, ela levaria todos os
que to na rua pra dentro da casa dela.... Essa fia sabe que s pode ajud dentro das
possibilidade dela.
Se, Mara no pra para atender quem est na rua, dando algo de material, ela envia
fora, luz, amor e pede ao plano espiritual para que algum aparea para oferecer comida ou
o que essas pessoas estiverem precisando. Tia Chica concluiu dizendo que a funo dela,
cuid de toda aquela fiarada.
Pertencer comunidade, no importa a cor da pele atual, significa ser ou ter sido
negro-africano. Depois de entrar para a instituio, identifiquei as pessoas que frequentavam o
terreiro e trabalhavam na instituio. No incio, achei que as pessoas do terreiro fossem
voluntrias na instituio. A maioria de fato voluntria. Mas, h pessoas que frequentam o
terreiro, so funcionrias na instituio e pertencem famlia consangunea de Mara. Nem
todas que so funcionrias e da famlia consangunea de Mara frequentam, entretanto, o
terreiro. Algumas seguem outra religio. A maioria das funcionrias da instituio no
frequenta o terreiro. Mas, so pessoas que se sentem como se fossem da famlia de Mara, por
estarem h muitos anos na instituio. As combinaes podem ser, portanto, as mais variadas.
O que significa pertencer a mesma famlia espiritual? No basta ser da famlia
consangunea, est para alm disso; significa estar na instituio e no terreiro? No, as
crianas so vistas como da mesma famlia espiritual e no esto no terreiro. Algumas o
frequentam porque desejam e porque a famlia consangunea as autorizou, mas no so todas.
Ser que todas as crianas da instituio pertencem mesma famlia espiritual? A resposta
talvez no esteja nessas combinaes.
que preserva a vida, mantendo em equilbrio e fazendo crescer todos os demais. Desta forma,
a preta-velha traduzia em palavras e orientaes o sentido do smbolo vivo que ela prpria,
ao mesmo uma interlocutora social e ela mesma significante da cadeia de experincia
transgeracional que ela personifica.
Conheci duas irms negras que chegaram ao Lar Dona Cotinha ainda bebs. A mais
velha logo completaria 18 anos. A unidade matriz se preparava, nessa poca, para pagar uma
faculdade para ela. Mara pediu a jovem que arrumasse um emprego para arcar com as
despesas do aluguel uma vez que logo, ela precisaria deixar a instituio12. A irm, por estar
com 15 anos, permaneceria no Abrigo. Ambas se sentiam filhas de criao de Mara. A
famlia biolgica no conseguiu reunir condies para voltar a ter a guarda das moas. O av
faleceu, a av se dizia cansada e doente, o pai sumiu e a me no se recuperou da dependncia
qumica.
12
Os adolescentes ficam nos Abrigos at completarem 18 anos.
Resultados e Anlise | 155
Mas, o que fazer para ganhar a confiana de funcionrias que se mostram arredias e
desconfiadas da nova direo?
Essas funcionrias haviam sido educadas, aparentemente de uma maneira rgida, pois
me davam sinais de que se eu fosse severa, eu estaria preparando melhor as crianas para a
vida. Essa funcionria que me procurou estava, entretanto, com receio de ter exagerado por
mal tratar a filha. Pedi me que trouxesse a menina instituio, uma vez por semana.
Quando a garota chegava, ela ficava um tempo comigo na sala, conversando, brincando,
fazendo desenhos e, s vezes a lio escolar. Eu a deixava entrar e sair da sala quando ela
quisesse. Percebi que a menina mostrava os desenhos, por exemplo, que fazia ali comigo,
me. No dia posterior vinda da menina, a me me contava como estava com a filha em casa
etc. A menina ficava com o pai aos finais de semana. Uma das queixas da me era que a
menina a incomodava quando ela chegava cansada, precisando trabalhar ainda em casa. Ao
vir para a instituio uma vez por semana, a menina ficava prxima da me no trabalho.
Depois de passar a tarde na instituio, a menina voltava para casa com a me no final do dia.
O relacionamento entre elas foi aos poucos se apaziguando. A menina no me incomodou,
pois me atendia com tranquilidade quando eu lhe pedia, por exemplo, para ficar um tempo,
sozinha no escritrio etc. As quatro funcionrias que, no incio me davam trabalho,
comearam depois disso a me apoiar, dando mais ateno s crianas da instituio. A
cozinheira mais fechada se tornou um pouco mais receptiva e a outra a acompanhou. Essa
funcionria da limpeza compreendeu a importncia que ela tinha como educadora para as
crianas no Abrigo. Eu disse isso a ela. Com isso, ela ganhou confiana e voz de educadora.
Essa funcionria no se alfabetizou quando era criana. Ela matriculou-se nesse perodo, por
iniciativa prpria, em uma escola particular para superar o problema da falta de alfabetizao.
Passado um tempo, ela trouxe os outros filhos at instituio. Na ocasio, essa funcionria
me disse que achava que ela sempre foi uma me guerreira e muito boa me.
O Lar Dona Cotinha inclua os filhos dos funcionrios nos passeios que organizava
para as crianas da instituio. Quando essa funcionria sai da unidade matriz e vai para a
conveniada, ela fica com receio de no ter mais o mesmo apoio, que at ento ela tinha da
unidade matriz.
Resultados e Anlise | 157
Aproximo-me de Pai Jos sem ter nada para perguntar ou para dizer-lhe. A mdium
(de Pai Jos) no frequentava o Abrigo, era uma filha do terreiro apenas. Pai Jos falou
sobre a importncia de aprender a lidar com o tempo. Com o tempo de cada pessoa e com o
prprio tempo. H o tempo para estar s, o tempo para a reflexo, muito importante no se
apressar por causa das outras pessoas. Muita gente, dizia ele, passa uma vida inteira sem
refletir e depois se arrepende do que no conseguiu mudar. Na vida tudo tem sua fase e esta,
logo passaria. Quando o ciclo se completa, avisou ele, um novo ciclo se inicia. Pai Jos
orientou-me a aproveitar o tempo de permanncia no Abrigo.
A Jovem Poty
A primeira adolescente criana que conheci foi Poty. Adolescente porque Poty tinha
12 anos e criana porque Poty era ainda uma menina. O nome Poty foi escolhido por mim
para ela, por ser de origem indgena (o nome verdadeiro da menina tambm ) e por significar
em busca da paz a qualquer custo, mesmo que para isso seja preciso brigar13.
Filha de um dos relacionamentos da me, Poty nasceu tendo uma irm gmea. Ainda
beb, ela e a irm foram para uma instituio Abrigo. A irm faleceu na instituio, quando
Poty tinha pouco mais de um ano de vida. A me visitou Poty no Abrigo durante alguns anos.
Poty quase chegou a ir para adoo. Com 06 anos aproximadamente, essa criana voltou para
a casa materna. A menina tinha convivido no Abrigo, at ento, com outros dois meio irmos.
Estes, entretanto, foram viver cada qual com a famlia paterna. Poty no tinha pai. Nunca
conheceu e nunca soube quem foi seu pai. Na casa materna, a menina conheceu as novas
irms, que nasceram da mais recente unio da me. Pelo que consta nos arquivos da Vara da
Infncia e da Juventude, o relacionamento entre Poty e a me nunca foi exatamente saudvel
(a me tinha transtorno psiquitrico e isso afetava Poty). Quando a me de Poty engravida
novamente, as duas brigam e a me perde o beb. Poty encontrada subnutrida nas ruas e
logo em seguida retorna para o Abrigo. A menina chegou ao Lar Dona Cotinha quando estava
com 09 anos. Apresentava cicatrizes pelo corpo que, segundo ela, teriam sido feitas pela me.
Ainda assustada, nos primeiros dias, Poty gritava pedindo por socorro nos portes da
instituio. Era desconfiada das pessoas e reagia com agresses verbais, por se sentir ainda
13
Disponvel em: http://www.significado.origem.nom.br/nomes/poty.htm.
158 | Resultados e Anlise
ameaada. Quando Poty chegou, Claudia trabalhava com Mara na unidade matriz. Essa
criana entrou um dia na cozinha da instituio e ameaou com uma faca que encontrou sobre
a mesa as pessoas que estavam ali. Quem se aproximou para lhe tirar a faca das mos foi
Claudia. Acostumada a ser severamente castigada pela me, Poty aguardava a retaliao de
Claudia no dia seguinte. Passou perto dela uma vez, falando alto para chamar-lhe a ateno.
Claudia abriu um sorriso para a menina e perguntou como ela estava. Poty arregalou os olhos
e sem reao, resmungou alguma coisa, voltando em seguida para dentro da instituio.
Quando cheguei, era visvel o amor de Poty por Claudia. A menina estava no Lar
Dona Cotinha h trs anos. Durante esse perodo, ela brigou muito na escola, causou novos
tumultos no Abrigo. Foi expulsa da escola e s voltou a estudar na mesma porque o Juiz
assim determinou. Poty era ciumenta, no gostava de dividir a ateno com as outras crianas.
Teve dificuldade para se alfabetizar. Durante esses anos, a menina fez psicoterapia em grupo
e individualmente. Era em 2011, ainda acompanhada pelos profissionais do Caps14 e tomava
medicao psiquitrica diariamente.
Uma de suas paixes eram os animais. A menina criou um girino uma vez no Abrigo e
quando este se transformou num sapo, o acontecimento trouxe grande comoo para as outras
crianas. Alegre, esperta, falante, decidida, Poty sempre foi assunto na instituio.
A primeira vez que me viu, a menina tentou me desenhar. Colocou Claudia no centro
do desenho, Astryd, a filha de Claudia, ao lado, ela mesma do outro lado e me desenhou no
cantinho da pgina. Poty depois me convidou para sentar-se com ela na sala da instituio.
Sentamos ao redor de uma mesa. A menina olhava para mim por cima da mesa e depois
14
Os Centros de Ateno Psicossocial (CAPS), entre todos os dispositivos de ateno sade mental, tm valor
estratgico para a Reforma Psiquitrica Brasileira. Com a criao desses centros, possibilita-se a organizao de
uma rede substitutiva ao Hospital Psiquitrico no pas. Os CAPS so servios de sade municipais, abertos,
comunitrios que oferecem atendimento dirio. Disponvel em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/
visualizar_texto.cfm?idtxt=29797&janela=.
Resultados e Anlise | 159
abaixava a cabea, escondendo o rosto, debaixo da mesa. Voltava a olhar brincando, e depois
abaixava a cabea novamente. Tentou mais uma vez me desenhar, mas logo desistiu. Achou
que seria melhor tentarmos outro dia. No dia seguinte, chamou-me para caminhar com ela
pelo bairro da Mooca. Disse que me mostraria a loja dos animais de estimao.
Todos os dias no horrio do almoo, Poty comeava a falar alto, dizendo para quem
quisesse ouvir que ela no iria escola. A educadora que a acompanhava olhava desanimada,
dizendo que a menina estava se recusando a colocar o uniforme escolar.
Cansada de tanto fazer e nada parecer funcionar, Mara pede para que tentemos a
transferncia de Poty para outra instituio. O juiz responsvel pelo caso autorizou, fazendo
uma nica ressalva: que a instituio encontrasse uma vaga para a menina em outro Abrigo. A
menina ficou calada e triste quando soube da possibilidade de transferncia. Com o passar dos
dias, a equipe do Lar Dona Cotinha reconsiderou a deciso. Comeamos a procurar por uma
escola particular que pudesse alfabetiz-la.
Passado cinco meses, encontro Pai Joo da Caridade novamente. Depois de nos
cumprimentarmos, comentei com ele que estava preocupada com uma adolescente do Abrigo.
Pai Joo quis saber se eu tinha uma dvida mais especfica para colocar para ele. Pensando na
transferncia de Poty, disse que s vezes no sei qual a melhor forma de agir com uma
criana. Pai Joo, com calma, me respondeu que a melhor forma de se responder a esse tipo
de dvida se colocando no lugar da prpria criana.
160 | Resultados e Anlise
A unidade conveniada foi montada numa casa onde funcionou anteriormente uma
escola infantil. A casa possua quatro quartos, quatro banheiros, uma sala, copa, cozinha,
despensa e uma lavanderia. O escritrio foi montado numa sala, localizada na frente da casa.
A brinquedoteca, num quartinho no fundo. Havia um parquinho para as crianas, mas o
espao era pequeno. Naquele momento, quatro adolescentes, uma com 17 e as outras com 12
anos, estavam nessa instituio. Os demais eram crianas. A preocupao com a chegada
desses jovens foi se eles se habituariam a viver naquele ambiente e se haveria uma
convivncia pacfica entre eles e os demais.
Quando os dois chegaram, um tinha um sorriso aberto, esbanjava alegria. Vou cham-
lo de Artur (seu nome original remete a histrias de reis e princesas). Uma das brincadeiras
preferidas de Artur era imitar as assistentes sociais e psiclogas das instituies sociais, pelas
quais ele passou. O rapaz, antes de fugir da Fundao Casa, viveu pelas ruas durante alguns
anos. Quando era encontrado por um conselheiro tutelar, Artur era encaminhado para um
Abrigo, mas logo fugia. O pai dele j tinha falecido. A me vivia com outro homem. Segundo
Artur, o padrasto o espancava e por isso ele fugiu de casa pela primeira vez. Artur tinha um
irmo mais velho que vivia com a famlia de um tio. O adolescente falava deste irmo com
afeto e admirao.
Ao outro adolescente, darei o nome Davi (nome bblico, assim como seu nome
original). Davi era mais retrado, olhava desconfiado para as pessoas. Foi levado Vara da
Infncia e Juventude pelos pais adotivos. Foram eles que fizeram um apelo juza para que o
rapaz fosse encaminhado para uma clnica de tratamento. Davi gostava de ouvir msica com
letra e som mais pesados. Pedia por cigarros.
Resultados e Anlise | 161
Quando a juza pediu ao CRAS uma vaga provisria para o rapaz em outro Abrigo, as
supervisoras afirmaram que ele teria que voltar para o Lar Dona Cotinha, pois, no havia vaga
em outra instituio.
casa. A Baiana Maria Bonita ensinou-me a fazer banho de ptalas de rosa branca (com um
pouco de acar) para aliviar a canseira mental. Tambm supervisionou a minha insero
em campo. Disse-me que eu era como as mdiuns iniciantes, levava os problemas dos
filhos para casa. Aconselhou-me a ouvir com sabedoria, deixando fluir as emoes dos
filhos. Com isso a criana melhoraria e eu tambm ficaria bem.
A rotina das duas instituies muda muito em junho e julho. O Abrigo organiza uma
festa junina, e com o incio das frias, h um novo cronograma de atividades. As crianas e os
adolescentes vo para cinemas, parques de diverso, assistem peas de teatro, h oficinas de
fantoche, acontecendo no prprio Abrigo etc. As atividades so organizadas para cada grupo
etrio. Esses passeios so financiados por empresas do mbito privado. As parcerias so
sempre fechadas com a unidade matriz. Mara no deixa de incluir, entretanto, todos os
adolescentes e as crianas da unidade conveniada.
A Baiana e o sonho
Uma entidade baiana me pediu para deixar um papel com lpis ao lado da cama.
Segundo ela, eu estava recebendo intuio enquanto dormia, mas me esquecendo dos sonhos
quando o sol nascia. Lembrei-me de ter sonhado com um campo, que tinha uma terra escura
num lugar que parecia noite. Tinha muita gente trabalhando nesse lugar. As pessoas ficavam
abaixadas como se estivessem semeando a terra. Identifico no sonho que aquele lugar o
Seara da Esperana. Vejo Mara abaixada, trabalhando ao meu lado. Cansada, eu olho para ela
e digo: voc trabalha demais! Ela me sorri rapidamente e continua abaixada, trabalhando.
Esses dois irmos tinham famlia numa pequena cidade do interior nordestino. Vieram
para So Paulo de carona atrs de outros dois irmos, residentes em So Paulo. A me deles
havia falecido. O de quinze anos tornou-se travesti. Quando chegaram, os irmos no
aceitaram a transformao do de quinze. Uma vizinha desconfia que os irmos recm-
Resultados e Anlise | 163
chegados foram abandonados pelos outros dois. Ambos estavam sozinhos, sem que houvesse
mais nada dentro da casa. Essa pessoa foi ao Frum e fez a denncia. Ambos foram
resgatados pelo conselheiro e encaminhados para o Lar Dona Cotinha. O de quinze anos
adotou um nome feminino. Irei cham-lo de Daniela. O nome que ele adotou era uma verso
feminina do nome do irmo, que o acompanhava. O de 16, eu chamarei de Daniel (nome
bblico assim como o seu).
No incio, no sabamos onde acomodar Daniela; se, no quarto dos rapazes ou no das
moas. Ela dizia que tanto fazia. Ligamos para as supervisoras do CRAS. Elas tambm no
sabiam o que fazer, mudando de opinio algumas vezes. Tentamos com os rapazes, mas no
deu muito certo. Ela era provocativa e os rapazes a expulsaram de l. Arrumamos as coisas
dela no quarto das moas, pedindo Daniela que mantivesse a discrio trocando-se sempre
no banheiro. Os irmos que os abandonaram foram localizados e vieram ao Abrigo.
Aceitaram se responsabilizar por Daniel, mas no por Daniela. Ela queria fazer um curso para
cabeleireira, mas analfabeta, era difcil conseguir vaga para ela. Os irmos que compareceram
ao Abrigo alegaram pouco tempo depois que por serem caminhoneiros, eles no teriam
condies de cuidar dos irmos. Daniela foge da instituio. Ela j havia dado sinais de que se
prostitua nas ruas. Daniel permanece no Abrigo at completar 18 anos.
Fico imaginando como deve ser a vida de pessoas que no tm com quem contar.
Neste caso, saem do Nordeste, chegam a So Paulo, so abandonados pelos irmos de sangue
e vo parar na porta do Abrigo. Quando falham os laos familiares concretos, a materializao
social da rede simblica umbandista abre suas portas para esses desabrigados. Mais tarde, o
irmo mais velho viria a ocupar funo simblica de grande destaque e responsabilidade nos
terreiros de umbanda, a de og do Seara da Esperana (tocador de atabaque, instrumento de
percusso).
Caboclo Pena Branca avisa que meu corao estava carregado; pede para que seja
feito um banho com rosas brancas, com ptalas em nmero mpar; este era para aliviar a
canseira mental. O Caboclo coloca a mo na minha garganta e prximo do corao para
trocar energia. Ele passaria a dele para mim e eu passaria a minha para ele.
Ganho de uma entidade baiana, uma pedra chamada turmalina negra. Se usada
prxima do corpo, da cintura para baixo, a pedra ajuda a aterrar. Enquanto penso em terra,
164 | Resultados e Anlise
terra natal, em falta de raiz e de cho, encontro um exu-mirim. Com seu jeito brincalho, ele
me pergunta se estou com saudade da minha terra. Fiz que sim e pensei que 2009 logo
chegaria ao fim.
Pai Joo viu cores de final de ciclo em minha aura; explicou que um processo
natural se completaria. Aps nove meses, deixo de trabalhar no Lar Dona Cotinha.
Retorno para minha terra natal. Passo a visitar o terreiro e a instituio quinzenalmente
aos finais de semana.
As sucesses geracionais
Em 2010, Lo queria ter mais autonomia como sacerdote no terreiro e ofereceu-se para
cuidar da me. Mara vinha enfrentando problemas na instituio e sentia-se sobrecarregada de
trabalho. A me no aceita ser cuidada por Lo. Maria Padilha (Pombagira de Mara) avisa
Lo que ela mesma continuar cuidando de Mara. Lo sente que suas intenes no estavam
sendo compreendidas. Contrrio manuteno do Abrigo, Lo queria que a me parasse de
trabalhar na instituio e descansasse. O filho administrava a empresa do pai e no queria que
os recursos da empresa continuassem sendo utilizados para a manuteno da instituio. Mara
conseguia levantar fundos com os eventos que promovia na unidade matriz e recebia doaes
Resultados e Anlise | 165
de outras empresas, mas esses recursos no eram suficientes. Mara recorria empresa da
famlia quando precisava pagar as despesas extras que estivesse tendo com uma ou com as
duas unidades de Abrigo. Trabalhava voluntariamente, Mara nunca retirou salrio por
administrar o Lar Dona Cotinha. Ela queria, entretanto, que o filho comeasse a assumir a
Presidncia do Abrigo, mas Lo se negava. Segundo ele, o correto seria Mara fechar as duas
instituies.
Caboclo Bate-Folha
Vejo caboclos com enormes maos de folhas em cada uma das mos. Estes seriam
utilizados para dar o passe. O objetivo do ritual era fazer "limpeza energtica e restabelecer o
equilbrio" (palavras de Lo).
Pena Branca me avisou que a Casa tinha uma srie de informaes para me passar;
pediu-me para que eu abrisse uma das mos. O Caboclo fez um gesto simblico, como se
estivesse colocando algo em minha mo e a fechou. Disse que durante os prximos dias eu
teria intuio e era para coloc-las no papel.
Pena Branca me pediu para entrevistar os caboclos e os exus. Perguntei se deveria fazer
um roteiro ou se eles falariam vontade. Ele respondeu: deixe-os falar, mas interaja com eles.
Pena Branca afirmou que a umbanda estava passando por um momento de transio
e que logo, a religio resgataria suas razes. Isso aconteceria no apenas com aquela Casa,
mas com toda a religio. O mrito no iria ser dele, Caboclo Pena Branca, mas de todo o
plano espiritual.
166 | Resultados e Anlise
Perguntei ao Pena Branca se poderia conversar com Viramundo. Este Caboclo disse
que sim. Olhei para Mara e Pena Branca me disse: no existe falha, filha, ningum tem um
contrato na mo para ler e saber o que fazer, cada um tem o seu modo de ver as coisas, cada
um tem a sua verdade, o que a umbanda ensina que a verdade de todos seja respeitada. O
guia que cada filho tem o prprio pensamento e o corao. Disse-me depois que quando
pensamento e corao se encontram o ponto de equilbrio alcanado.
Agradeci Pena Branca e entrei na fila para falar com Viramundo. Ao ver-me, o
Caboclo perguntou: "o trabalho continua, n fia!?". Confirmei com a cabea. Viramundo me
confortou dizendo que com o tempo, tudo ficaria mais claro.
Um sonhado preto-velho
Em menos de uma semana, sonhei com um preto-velho. Ele era forte (troncudo) e no
era curvado. O vi entrando num lugar escuro... depois ele apareceu de perfil, sentado e
olhando do alto para uma mata que irradiava luz. O preto-velho em silncio contemplou e
saudou as foras do lugar. Revi o gesto dos umbandistas de se curvarem na porta dos
terreiros (saudando o cho e as foras do lugar). Voltou cena do Preto-velho. O olhar
dele era profundo (escuro), mas tinha brilho (irradiava luz). Quando aprofundo o meu olhar,
sinto o corao do preto-velho no olhar... o preto-velho refletia o corao (a vida) da mata no
brilho do seu olhar...
Esse sonho trouxe integrao para mim. Ouvi do caboclo Pena Branca e das entidades
espirituais anteriores que o equilbrio estava no encontro do pensamento com o corao.
Recebi indicaes de banhos que serviam para harmonizar ambos (pensamento e corao).
O Caboclo Pena Branca disse que o guia de cada filho o prprio pensamento e corao. O
caboclo me pediu para usar as experincias que tive com o campo, colocando-as no papel,
sem ter medo das verdades que se produziram nesses encontros.
Resultados e Anlise | 167
Depois de falar com Pena Branca, fiquei me perguntando: Por que entrevistar caboclos
e exus? O que ser que ambos tm a ver com a raiz da umbanda? Por que no entrevistar os
pretos-velhos? Eu estava mais ligada transferencialmente linha dos pretos-velhos. Mas, pai
preto-velho no precisava mais falar, pois para a filha compreend-lo, bastava sonhar.
A mata costuma ser associada linha dos caboclos (ROTTA, 2010). Mas, os pretos-
velhos tambm so da mata (DIAS, 2011). O que eu precisava era compreender o brilho do
olhar. O olhar do outro indicava uma orientao para o meu olhar e ao mesmo tempo era um
olhar que iluminava aquela direo.
Preto-velho e Exu
Depois desse sonho, aleatoriamente, comecei a traar paralelos entre exus e pretos-
velhos, baseando-me nas impresses que tinha tido sobre ambos, at ento. Ainda tentando
integrar o que parecia separado, fiz as assinalaes abaixo.
Exu direto e se pronuncia em alto e bom tom. Pode, por isso, deixar as pessoas
perplexas e sem graas. Preto-velho d indireta, fala baixo, tem pacincia, espera filho
aprender.
Exu irnico, ri, pode ser engraado e provocar risos nas pessoas. Preto-velho
tambm pode ser engraado, mas o tom costuma ser mais melanclico e reservado.
Exu traz tona os assuntos mundanos (fala sobre sexualidade, tem uma postura
aparentemente mais viril etc.). Preto-velho zela pelo mundo espiritual, chama para a
responsabilidade e est ligado famlia. Exu transforma a ordem existente; preto-velho
mantm a ordem existente.
Exu est ligado a terra. Preto-velho uma estrela na imensido do cu. Exu trabalha
as energias mais densas; preto-velho tem uma energia sublime. Exu pode exibir muitos
defeitos. Preto-velho sbio, discreto e transcendente.
168 | Resultados e Anlise
Segundo Tempels (1959), para os bantos o homem uma fora viva. para esta
fora que o banto costuma olhar. A ancestralidade no o morto simplesmente. A
ancestralidade existe como fora viva em cada ser.
Ao conversar com um Exu Tranca Ruas, perguntei se haveria uma noo de dvida
ou de resgate quando h um cuidado para com as crianas da instituio. Este Exu me
respondeu que ningum est ali para pagar penitncia... porque essa viso de dvida?....
Quando algo retomado ainda que automaticamente, h a oportunidade de criar vida
nova... Dvida algo muito pesado, concluiu ele.
Dvida seria o que um filho sente, quando inicialmente no confia ainda (Exu-mirim
Brasinha) em sua ancestralidade (herana), mas sente a obrigao de lev-la adiante? Seria
a dvida uma etapa do processo, mais frgil (de desamparo), vivido ainda como obrigao?
Qual o sentido de transformao trazido por Exu? Que etapa de um processo enraizado por
preto-velho, o Exu complementa? A repetio (automtica) vem, mas com transformao,
com a criao de novas vidas, disse ele.
Exu Tranca Ruas corta a dvida. No seria isto prximo de: Exu re-enraza para que
o filho caminhe? Passa as chaves (Tranca a Rua), assegura a continuidade, dando amparo
e proteo s pessoas e a Casa (proteo uma das funes de Exu na umbanda). No h a
ideia de carma. O inegocivel parece ser a necessidade de dar continuidade ao ciclo natural
da vida em que um assume o lugar do outro que vai assumir o lugar do outro etc.
automtico!. Eles so uma corrente de pretos-velhos e de indiaiada (palavras de Mara) e
incluem as crianas numa ordem simblica de filiao por vontade, por desejo, por uma
espcie de vocao (eis o sentido de misso). No cuidar de crianas, filhos diretos e
indiretos de africanos e de amerndios omisso.
Z Pelintra
Lo, por estar ocupado com os mdiuns da Casa, pediu a um amigo dele, mdium no
terreiro, incorporar a entidade Z Pelintra, com quem ele, Lo, trabalha, para que o Z
Pelintra dele (Lo) falasse comigo. Sempre associo a pessoa entidade incorporada. Em
alguns momentos, essas associaes ficam confusas ou no me parecem ser possveis. Mas,
como se tratava de um amigo, pessoa prxima dele, de qualquer forma, perguntei: quem Z
Pelintra, um tipo de exu?
Z Pelintra neste momento parecia dizer: Podem dizer que eu sou o que for. Podem
dizer que sou isso, aquilo e outro, mas eu sou Z Pelintra.
Perguntei, ento: a respeito da famlia de Lo, o senhor tem alguma coisa para dizer?
A entidade comeou a falar sobre mudanas. Confesso que continuei sem entender
de onde o assunto viria. Descobri um tempo depois que Lo vinha pedindo por mudanas
para a espiritualidade da Casa. Z Pelintra discursava, entretanto, para mim. Observem-se as
sutilezas do idioma umbandista:
Sinto na interao com Z Pelintra umas bordoadas como se esta entidade estivesse
a espelhar a auto-estima do malandro, que oscila entre ser o tal e no ser ningum. O
Resultados e Anlise | 171
possvel perceber mais uma vez que no h dualismo. Que o que se valoriza a vida
vivida como um processo natural de escolhas. Fazer escolha implica assumir
responsabilidade e nesse sentido, Z Pelintra est dizendo que valoriza o processo de vida e
de amadurecimento de cada um, com seus acertos e tropeos.
Quando insisto e pergunto: a mudana sempre para o melhor? Z Pelintra faz que
sim com a cabea e diz:
No entendi muito bem a razo da minha pergunta naquele momento, mas a fiz:
Querer mudar muita coisa ao mesmo tempo est errado? Talvez eu estivesse ainda pensando
no alto custo emocional das mudanas, nas sensaes de tombo, confuso e de perda de
controle... ao que parece, ax deste malandro.
Z Pelintra me pede que eu acenda um cigarro de palha para ele. Assim que o cigarro
aceso, entre uma tragada e outra, ele me diz:
Quando algum fala pra voc que voc quer tudo ao mesmo
tempo, no est falando que voc est fazendo errado, est querendo
apenas mostrar que s vezes necessrio que tu alcance um sentido
172 | Resultados e Anlise
Fico sabendo algumas semanas depois que Lo estava se sentindo sobrecarregado com
a quantidade de problemas que ele se props a resolver ao mesmo tempo. Quando contei a ele
a histria das caixas que no podem ser abertas todas de uma vez, ele riu e contou que a
intuiu por aqueles dias. possvel perceber como o que est em processo de
amadurecimento para uma pessoa pode ser espelhado para o crescimento dos outros. A
soluo trazida pelo malandro no se sentir vtima das circunstncias, aprender a
reconhecer o tamanho da prpria perna em cada situao, mas sem ficar parado, se
lamentando com o que aparentemente no d certo. A posio a ser assumida se levantar
para tentar novamente etc. Z Pelintra no assume a posio de coitado e se ope, no aceita
ser visto e tratado dessa maneira.
17
Bairro, J. F. M. H. Espiritualidade Brasileira e Clnica Psicolgica. In: Valdemar Augusto Angerami-Camon
(Org). Espiritualidade e Prtica Clnica. So Paulo: Thomson, 2004, p. 193-214.
174 | Resultados e Anlise
O malandro bom, pode ser bom, ruim estar dentro da famlia e no ajudar a
ningum, ruim no ajudar aos ntimos, querer ser bonzinho ajudando aos outros e no
ajudar a ningum na verdade, que no seja a si prprio. O malandro no ruim, o malandro,
pode at no ter famlia, mas ajuda as pessoas. Ruim so as pessoas, ruim pode ser cada um,
ruim todos o so na verdade, a maldade est em cada um e no necessariamente na
malandragem. O bem no est naquele que reza e o mal naquele que no reza. Rezar pode ser
um ato de sentir-se uma pessoa ruim. Assim, como se deixar ficar cado numa sarjeta pode ser
por no se sentir uma pessoa boa.
Veja-se o trabalho que a umbanda tem para reverter posicionamentos sociais que se
cristalizam na sociedade brasileira a respeito do bem e do mal. A maneira de lidar com o
bem ou com o mal no jogando o bem para alguns ou todo o mal para os outros. A
histria da famlia de Gabriel (citada nesta tese) no destoa muito das demais histrias de
famlias que passaram pelo Abrigo. A av do menino cai e levanta, cai, mas continua tentando
se levantar. Ela tem dificuldade para se sustentar, mas implica-se, se rev nas suas
Resultados e Anlise | 175
Z Pelintra sinaliza que a estima e o bem existem quando se quer o bem para a
prpria vida. Vaidoso querer demais, querer aparecer demais, o vaidoso, por fim, no
ajuda a ningum, nem mesmo aos seus. Com isso no reconhece o prprio lugar (e cai). Quem
tem auto-estima porque perdeu a vaidade, reconheceu a prpria ruindade assim como o
pequeno prprio bem que se tem. Com isso reencontrou-se com Deus, afinal malandro
tambm filho de Deus!. Com o equilbrio, o charme e a simpatia de quem caiu, mas
recuperou o flego e se levantou para andar Z Pelintra ensina que para crescer preciso
tentar e se cair s se levantar!
Este personagem costuma ser chamado carinhosamente pelos umbandistas como meu
padrinho Z Pelintra. A umbanda quase redundante de to explcita, posto que padrinho
nada mais do que um substituto do pai. Lo recebe das mos de sua madrinha a bengala de
seu falecido padrinho e a entrega no terreiro para ser cruzada (uma espcie de batismo do
objeto na umbanda) para o uso de Z Pelintra. Veja-se neste exemplo como o simblico
emprico, histrico da vida, depois reassumido, incorporado (quando h a passagem,
o padrinho faleceu) ao idioma da possesso para continuar sendo colocado em circulao no
terreiro.
176 | Resultados e Anlise
Exu Veludo
Ex veludo, incorporado em Lo, alertou depois aos mdiuns que todos tinham
responsabilidade e deveriam trabalhar pelos problemas que tm. No adiantava fazer pedido
ao Exu apenas. Cobrou responsabilidade diante das oferendas e para com os demais e
avisou que o que no d certo no culpa de Deus, da espiritualidade ou dos outros. No
castigo, no culpa, tudo acontece em funo da prpria responsabilidade, do trabalho e do
merecimento de cada um.
Num certo momento, Ex veludo satirizou as oferendas colocadas sua frente com
uma conotao religiosa. Segundo ele, a oferenda ultrapassa o sentido religioso. Serviria
para a vida de cada um dos mdiuns; era uma transformao. Ex veludo disse que ele
gostava de ver como na oferenda religiosa podem ser encontrados os aspectos mais
singularmente humanos.
Na umbanda, a palavra trabalho significa doar amor. Segundo Pai Joaquim de Angola,
a palavra famlia no se refere famlia terrena apenas. A famlia uma unio de espritos
mantida h muito tempo. Os laos de sangue podem morrer com a carne, mas os laos afetivos
se mantm por toda a eternidade. No so todas as crianas do Abrigo que so da famlia
espiritual de Dona Cotinha. A questo, segundo ele, no essa. H um lao espiritual que une
todas elas. Todas esto juntas no Abrigo para aprender, receber e evoluir.
O Sr. Amadeo (pai de Mara) olha por todos os filhos que ficaram na terra. Mas, ele
ainda no um preto-velho. Tornar-se preto-velho um processo que leva tempo. No
precisa ter sido escravo para se tornar um preto-velho. O preto-velho vem como sabedoria e
doao ao prximo, mas isso leva tempo. No plano espiritual todos so iguais. Ningum
Resultados e Anlise | 177
coordena ningum. Baiano aprende com preto-velho e preto-velho pode pedir a fora de
um baiano para fazer uma demanda, por exemplo. Ningum trabalho sozinho. O preto-
velho pode pedir a fora que precisar.
Em 2011, a unidade conveniada do Lar Dona Cotinha passava por uma srie de
reestruturaes. A parceria entre a direo do Abrigo e a equipe do CRAS MOOCA (rgo de
superviso da Prefeitura) no estava dando certo e por essa razo, vrios cortes estavam sendo
feitos: funcionrios mais antigos que pertenceram unidade matriz ou que eram da confiana
de Mara estavam sendo demitidos e outros, 'novos' contratados. Claudia foi demitida,
deixando de ser a gerente da unidade. Mara, na qualidade de Presidente da Organizao, tinha
que trabalhar para manter a unidade matriz do Abrigo e providenciar o que fosse necessrio
para que a equipe da unidade conveniada cumprisse as orientaes do CRAS. Segundo ela, os
pedidos de reestruturao deste rgo de superviso da Prefeitura sempre acarretavam
despesas extras a serem pagas pela unidade matriz, pois 'os imprevistos' que no estivessem
nas 'planilhas' ficavam para serem custeados por esta Organizao Social. A parceira entre o
Lar Dona Cotinha e o CRAS MOOCA se iniciou em 2009. As supervises se intensificaram a
partir de Abril de 2010. No perodo de um ano, o CRAS teria feito em mdia 70 supervises,
ou seja, seis supervises mensais, ou uma por semana pelo menos. Passado um ano: "(...) a
178 | Resultados e Anlise
ONG sem demonstrao de apropriao das aes sociais enquanto poltica pblica restringiu-
se a propagar um carter persecutrio das orientaes dadas" (Documento protocolado pelo
CRAS MOOCA com data de 14 de Julho de 2011, a respeito da Fiscalizao da Entidade de
Atendimento Lar Dona Cotinha).
Por meio deste documento, a equipe do CRAS prestava contas Juza, responsvel
pelo Abrigo a respeito dos cortes e da reestruturao por que vinha passando a unidade
conveniada, naquele momento. Pelo menos no caso do Lar Dona Cotinha, o fato que no
difcil observar que a poltica pblica 'd com uma mo, mas tira com a outra'.
A Prefeitura de So Paulo cedeu o terreno da unidade matriz para que fosse construda
a instituio. Eximiu-se da construo e depois manteve, de certa forma, essas pessoas como
'refns', pois no regulamentou a concesso de uso do terreno. Esta foi a 'deixa' que o rgo de
fiscalizao do municpio (CRAS MOOCA) encontrou para no estabelecer convnio com a
unidade matriz.
Desde a fundao, a instituio mantida pela iniciativa privada, sobretudo, pela empresa
familiar de Mara. Quando a superviso do CRAS percebe a falta da documentao de
formalizao do uso do terreno, no recorre a sua Sede, ou seja, Prefeitura. Ao invs disso,
'penaliza' a unidade matriz e institui a abertura de uma nova unidade de Abrigo para que exista o
apoio do municpio. Ao fazer o repasse mensal para a nova unidade, paga o que consta 'na
planilha' e no o que a instituio gastou para que houvesse o cumprimento de 'suas diretrizes'.
Durante o ano de 2010, mantive contato telefnico com Poty e a equipe da unidade
conveniada. Em Abril de 2011, fui visitar Poty na instituio. A unidade conveniada no tinha
Resultados e Anlise | 179
mudado de endereo ainda, mas soube por Claudia que logo esta seria instalada em uma nova
casa. Como era final de tarde, convidei Poty para jantar comigo em um restaurante que ficava
a dois quarteires do Abrigo. Neste, a menina me contou que os adolescentes no estavam
mais podendo sair sozinhos da instituio, que visitas unidade matriz estavam sendo
proibidas e que ela estava chateada com as tcnicas do CRAS. Pouco tempo depois, eu soube
que houve uma visita das tcnicas da Vara da Infncia e da Juventude e do Juiz responsvel
pelo Abrigo s duas unidades da instituio e que Claudia foi demitida do cargo de gerente da
unidade conveniada. Por no compreender o que se passava, recebi em mos, cpia de
documentos que foram protocolados no Frum pela superviso do CRAS MOOCA nos dias
14 de Julho e 17 de Agosto de 2011. Se eu no tivesse tido acesso ao documento, talvez eu
no tivesse acreditado que aqueles eram os 'termos' do processo. Citando o documento em
linhas gerais, neste consta que Poty foi acostumada "a ter seus desejos satisfeitos custa
muitas vezes do desrespeito s demais crianas acolhidas"; que a menina era "usada" e
"enganada" pela direo da instituio e que a proximidade da mesma com Claudia ou Mara
poderia "intensificar seu mundo de negaes e consolidar a ideia de que prticas hostis a
forma adequada para a concretizao de sonhos e desejos". A sugesto do documento era que
a menina fosse transferida para outro servio de acolhimento institucional "conveniado com a
municipalidade e sob a competncia administrativa do CRAS MOOCA" para que a
adolescente fosse 'afastada' das 'prticas ilusrias' que estavam sendo adotadas para com
ela: "(...) fato tambm que nos cumpre propiciar desenvolvimento sadio, digno, salvo de
toda forma de negligncia (Cfe/88. ARt. 227), bem como 'facultar o desenvolvimento fsico,
mental, moral, espiritual e social, em condies de liberdade e de dignidade', (E.C.A. Art. 3)"
(negrito foi acrescentado). No compreendi o que eram 'prticas ilusrias', mas o documento
versava que Poty foi "vtima de falsas esperanas em relao a sua adoo pela ex-gerente do
abrigo". Em outras palavras, as acusaes que estavam sendo feitas instituio neste
documento (data de 17 de Agosto de 2011) eram extremamente graves.
Com base num outro documento protocolado por esta superviso com data de 14 de
Julho de 2011, comecei a me situar uma vez que este versava sobre ocasies em que estive
presente. O pedido de transferncia ou de internao de Davi (exposto nessa tese) feito, na
poca, diretamente Juza foi interpretado pela superviso do CRAS como 'inadequado'.
Segundo a descrio contida nesse documento, a assistente social da instituio teria "deixado
um adolescente sob sua guarda no Frum Tatuap, e para o qual estava sendo garantida uma
internao para o dia seguinte". Persistimos investindo tecnicamente na equipe e, sobretudo
180 | Resultados e Anlise
Antes de Davi ser levado ao Frum, a superviso do CRAS MOOCA foi informada
dos problemas que estavam acontecendo com o rapaz no Abrigo. As dificuldades vivenciadas
por Poty eram, nessa poca, igualmente compartilhadas. A postura, entretanto, observada na
ocasio foi a de que havia certo 'exagero' ou que aquilo no passava de 'despreparo' da equipe
tcnica do Abrigo.
Para o caso de Davi, a orientao passada pela Prefeitura, alis, por contato telefnico, foi
a de que quando o rapaz ficasse alterado, que algum o levasse para um passeio ou que fosse
colocado um filme. Nada contra passeios e filmes, mas medidas paliativas resolveriam a
situao? Quando levado ao Frum Tatuap, o rapaz no foi deixado 'sozinho', tendo
permanecido na companhia de seus pais. A assistente social do Lar Dona Cotinha voltou para a
unidade conveniada aps a liberao da Juza. A vaga na clnica de internao no era para "o dia
seguinte". Alis, foi a superviso do CRAS MOOCA que alegou Juza, na poca, no haver
vaga para o mesmo em outra instituio Abrigo. Por isso, o rapaz voltou para passar o final de
semana no Lar Dona Cotinha. No d para desconfiar que 'a falta de vaga' em outro Abrigo possa
ter sido uma 'retaliao' pela 'iniciativa' da direo do Abrigo de procurar definir a situao do
rapaz sem a participao do CRAS? A assistente social alegou Juza que Davi precisava de um
Abrigo com mais espao; que a maioria dos acolhidos da unidade conveniada era crianas abaixo
de 06 anos de idade; explicou que Artur e Davi, apesar de se darem bem, em alguns momentos se
estranhavam e que no havia educadores sociais do sexo masculino para apart-los, caso houvesse
uma briga. A superviso do CRAS MOOCA marcou depois uma reunio com a assistente social e
com a gerente da unidade conveniada para dizer que os argumentos apresentados Juza
desrespeitavam as normas do convnio. Que no cabia dizer que um educador do sexo masculino
apenas poderia apartar uma briga; elas afirmaram que a direo do Abrigo estava sendo
preconceituosa com Davi e que a unidade 'no tinha autorizao para recusar' uma criana ou
adolescente nessa instituio. E, por fim foi alegado que, caso situaes desse tipo ocorressem
novamente, o convnio com a municipalidade seria encerrado.
O 'lembrete' foi escrito em 2011 nessa documentao, tendo sido, desta vez,
'sutilmente' direcionado para a Juza: "Em que pese o esforo empreendido, a dificuldade em
concluir o processo de mudana em face da prtica de obstrues sucessivas
torna imprescindvel esclarecer a MM Juza que o conveniamento dos servios
Resultados e Anlise | 181
A preocupao com Poty aconteceu depois de Claudia ter sido demitida como gerente
da unidade, pois conforme consta nesse mesmo relatrio, a menina passou a 'cobrar' da equipe
do CRAS a razo da demisso de Claudia. O 'comportamento heteroagressivo' da adolescente,
segundo essa superviso, era fruto dos seis anos de negligncia do Lar Dona Cotinha.
A adolescente sentia cime das outras crianas e pedia uma ateno especial para com
ela, pois demonstrava uma tristeza profunda quando percebia que os demais acolhidos
recebiam visitas de algum parente ou de algum prximo de si e ela, no. Na instituio, ela
era a nica que nunca teve a visita do pai ou da me e no teve o vnculo preservado com os
irmos. A me, quando chamada, se recusava a visitar Poty na instituio. Algumas vezes, a
adolescente recebeu a visita de uma senhora que conheceu na escola. Em pouco tempo, a
menina passou a cham-la de 'v'.
Claudia no disse que adotaria Poty, mas a menina queria cham-la de 'me'. O que h
de incompreensvel nisso? Se a direo do Abrigo tivesse sido negligente com a menina, a
mesma teria esse afeto pelas pessoas da instituio? Por que no compreender que o caso dela
realmente difcil e doloroso, sendo natural que nessas circunstncias ela se rebele com mais
uma separao? Quando 'a poltica pblica' vai entender que vidas humanas esto sendo
colocadas 'em jogo'?
182 | Resultados e Anlise
Foi diante dessa situao, que o Poder Judicirio autorizou a substituio da equipe de
trabalho do Lar Dona Cotinha, unidade conveniada. Funcionrias antigas e da confiana de
Mara foram demitidas pela superviso do CRAS MOOCA. O acerto pelas demisses ficou,
mais uma vez, para ser pago pelo Lar Dona Cotinha. Novas funcionrias foram contratadas.
Quando a direo dessa unidade de Abrigo estava finalmente sob a coordenao exclusiva do
CRAS MOOCA, o mesmo fechou a instituio. A demisso das funcionrias novas que
tinham sido por esta superviso contratadas, assim como de todas as outras, se reverteu em
mais dvida para a instituio.
Alm das dvidas, esses relatrios, como o que tenho em mos, sugerem o fechamento
da unidade matriz. Poty foi transferida para outra instituio Abrigo. A inteno com a
transferncia foi:
Diga-se de passagem, nesse caso, a vaga em outro Abrigo foi encontrada rapidinho.
Salve Sr. Z Pelintra: malandro quem mesmo?
184 | Resultados e Anlise
Concluso | 185
3. CONCLUSO
Ao retomar o meu percurso, percebi que transferencialmente fui situada nessas duas
posies. O primeiro se iniciou com a minha insero na comunidade, perodo que fui
visivelmente cuidada tal como uma filha, desgarrada (discurso de Pai Joo da Caridade).
Nesses primeiros seis meses iniciais de coleta, coincidentemente ouvi as histrias que fizeram
cada pessoa, adulto ou criana, chegar ao crculo social de Dona Cotinha. Perda de pais,
situao problemtica com um irmo, divrcio, problema com os filhos pareceram ser
situaes comuns trazidas pelos adultos. O momento da inverso ocorreu quando fui
significada como uma ancestral, negra, ex-escrava africana. Nota-se que ao longo do tempo
fui me tornando esquecida e cansada (j sei muita coisa, j vivi muita coisa). Nessa
segunda parte, tendo assumido o cuidado pelas crianas abrigadas prevalece uma postura e
viso crtica com relao negligncia e falta de um cuidado adequado por parte do Estado.
Ambas as posies (da criana e do ancestral africano) nos remetem ao pai de Mara (que foi
uma criana abandonada e um ancestral africano). O Abrigo no tem o nome do Sr. Amadeo
e sua foto costumava ficar mais reservada. Ainda que permanea como uma lembrana
silenciosa, sua presena central.
Mara, alm de se identificar com a histria do pai, leva adiante, ou seja, para as outras
crianas em semelhante situao, o cuidado, o carinho, a dedicao de sua me, Dona
Cotinha. O pai biolgico de Mara, que foi uma criana como elas, tornou-se tambm uma
referncia do grande pai, ancestral da famlia alargada africana. A sua esposa, Dona Cotinha,
Concluso | 187
a me uma alma viva na instituio, assim como continua sendo o elo entre todas as
pessoas da famlia (argumento de Lo e de Mara). Se Dona Cotinha idealizou o Templo, sua
presena mais marcante parece ser o Abrigo da famlia. Sr. Amadeo idealizou o Abrigo, sua
presena marcante parece estar no terreiro. Talvez no seja adequado fazer tal distino, uma
vez que, as crianas do Abrigo so cuidadas pelo terreiro e as pessoas do terreiro so includas
no dia-a-dia da instituio. Seriam ambos pai e me ancestrais nessa comunidade? Tanto no
Templo como no Abrigo, se materializa o ancestral desejo do Outro, a preservao e
circulao da fora vital na rede familiar e social afro-brasileira.
Mara em meu sonho aparece concentrada, cuidando das sementes da terra e v uma
luz no ventre de Paloma, Tain, a criana da foto da capa. Ela o novo elo entre as
geraes. Alm de neta primognita, a menina a filha de uma ndia e a me de Dona
Cotinha, ou seja, o retorno da me ancestral da ancestral da famlia, Dona Cotinha. Tain a
me da me de todos (Dona Cotinha). Simboliza o retorno do passado, da tradio que
ressurge, na viso de Mara, na forma de luz. Luz que significou Tain antes mesmo de sua
188 | Concluso
me, Paloma vir a saber que estava grvida. Ao narrar a histria futura nora, Paloma, a me
de Tain, pde ver a filha, pela primeira vez, pelo olhar de sua futura sogra e me de santo,
Mara. Tain parece, assim, ser a esperana concretizada da Seara da Esperana. Mara a
reconhece como a filha da ndia e me de Dona Cotinha. Lo, o pai, localiza a menina
nesse interstcio de maneira to importante quanto: para ele o nome Tain significa pr do
sol ou estrela da noite. A menina, seja do dia, seja da noite, uma estrela para a famlia.
Ser filho a primeira posio de sujeito, por meio da qual este se encontra existente.
No h como ser pai ou me sem que seja pelo reconhecimento do Outro, ou seja, pela
inscrio da criana-sujeito na posio primordial de filho. Se os pais empricos por alguma
razo histrica e social se encontram impedidos de personificar a funo paterna, como tantas
vezes ter sido o caso no perodo escravocrata e nas duras condies de vida posteriores
enfrentadas pela populao afro-brasileira, por outro lado, a cultura religiosa umbandista
parece proporcionar recursos de reparao e de retomada desse processo num patamar
coletivo e simblico, ou seja, no campo propriamente dito do lugar verdadeiro do Pai, a
nomeao.
A umbanda abrange a totalidade da vida, talvez porque o que lhe parece ser nuclear
o cuidado do infantil, do sujeito filho em cada um de ns. Provavelmente por isso, essa
prtica social e religiosa parece ter como altar as prprias pessoas, ora na forma de tipos
sociais sofridos que homenageia no seu panteo, ora cuidando de gente real. O cuidado com
o Outro, em vez de uma concesso ou altrusmo, parece ser um modo diferido de cuidar
tambm de si, do que se , do que se foi, do que se poder vir a ser.
190 | Concluso
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