Anais Xvi Forum de Musicoterapia Amt RJ 2010 PDF
Anais Xvi Forum de Musicoterapia Amt RJ 2010 PDF
Anais Xvi Forum de Musicoterapia Amt RJ 2010 PDF
Anais
2010
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NDICE
Apresentao......................................................................................................................p.4
Folder do evento.................................................................................................................p.5
Uma msica para mudar a minha vida Escutando musicalmente entre muitos
Benita Michahelles.............................................................................................................p.50
APRESENTAO
Comisso Cientfica
Adhra Pedrosa, Adriana Pimentel, Andrea Farnettane e
Pollyanna Ferrari (Coordenadora da Comisso Cientfica)
Marly Chagas Presidente da AMT-RJ
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Trabalho apresentado na mesa de abertura do XVI Frum Estadual de Musicoterapia e da VIII Jornada
Cientfica de Musicoterapia do Rio de Janeiro. Set. 2010
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Pollyanna Ferrari - Musicoterapeuta formada pelo Conservatrio Brasileiro de Msica Centro Universitrio
(2007). Especialista em Sade Mental pela UFRJ nos moldes de Residncia. 2 secretria na Associao de
Musicoterapia do Estado do Rio de Janeiro (2008/2010). Musicoterapeuta do CAPS III Maria do Socorro
Santos, da Unidade de Cuidados Paliativos (UNIC) e realiza atendimentos domiciliares
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Ana Carolina Arruda Costa - Graduada em Musicoterapia pelo CBM-CEU (2010). Graduanda em Psicologia
pela UFRJ. Estagiria da Maternidade Escola da UFRJ e da Clnica Social de Musicoterapia Ronaldo
Millecco. Vice-presidente do CAMT-RJ/CBM-CEU (2007/2008 e 2008/2009)
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Adhara Pedrosa - Formao de Musicoterapeuta no Conservatrio Brasileiro de Msica, formao de
psicloga na Universidade Federal Fluminense. Especializao em moldes de Residncia de Sade Mental
como musicoterapeuta em [email protected]
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Alberto Jos Graduao em musicoterapia em curso pelo CBM-CEU. Presidente do Centro Acadmico de
Musicoterapia (2010) CAMT-RJ/CBM-CEU [email protected]
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Andra Toledo Farnettane - Musicoterapeuta graduada pelo Conservatrio Brasileiro de Msica Centro
Universitrio, R.J., (1993). Especialista em Psicossomtica pela Universidade Gama Filho e em Sade Mental
pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Musicoterapeuta do Hospital Geral de
Guarus em Campos dos Goytacazes RJ; do Centro de Ateno Psicossocial (CAPS III) Joo Ferreira R.J.;
da UNIC Cuidados Paliativos (atendimento domiciliar a pacientes oncolgicos) e 2 Vice-Presidente da
Associao de Musicoterapia do Estado do Rio de Janeiro.
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ANDREAZZA, J.P. O Trabalho Contemporneo e os Efeitos da Flexibilizao no Trabalho do Setor
Administrativo. Monografia de concluso da Ps-Graduao em Psicologia Social do Instituto de Psicologia.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2008.
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Trabalho apresentado na mesa redonda sobre Msica e Psiquismo, no XVI Frum Estadual de
Musicoterapia e VIII Jornada Cientfica de Musicoterapia do Rio de Janeiro. Set. 2010
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Musicoterapeuta, Co-Coordenadora do Capsi Monteiro Lobato (Niteri), especializao
em sade mental nos moldes de residncia pelo IMAS - Juliano Moreira.
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Barcellos, L.R.M - Cadernos de Musicoterapia I, Rio de Janeiro: Enelivros, 1992.
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Ministrio da Sade - Sade Mental no SUS: os centros de ateno psicossocial. Braslia: Distrito Federal -
2004.
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um violo, ele aceita e digo que o violo est no Caps. assim que ele aos poucos, passou a
freqentar o servio.
Durante algum tempo o nico som possvel, foi o do violo, tocado por H. Assim
como os acordes iniciais, que puderam encontrar uma seqncia e ganhar sentido, o meu
trabalho era sustentar sua produo sonora, de forma que aos poucos fosse possvel surgir
novas associaes. Passou a deslocar a melodia do violo para a voz, s vezes alternava
uma melodia no violo, ou cantando, quando ento comeou a trazer as canes, na sua
maioria em rtmo de blues. assim que ele se apresentava, falando algumas vezes da noite
e da sua tristeza que aparecia antes da palavra, no som. O blues um canto de lamento e
tristeza.
medida que H. pde sustentar seu discurso musical e se apropriar dele, deu-se a
possibilidade tambm de H., aos poucos poder suportar e sustentar a palavra. A msica
sempre esteve presente, talvez funcionando como um continente, um porto seguro, de
onde podia experimentar sair e retornar. Alguns pedidos e falas passaram a se repetir: Eu
sou muito triste, eu no sei mais sorrir; Eu sou triste desde que o meu pai morreu. Eu
perdi tudo, meu pai, minha me, meu cachorro. Ele me dizia nos ltimos meses de
atendimento: Voc me fez voltar a sorrir, estou conseguindo voltar a ver o mundo com
mais poesia.
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Bruscia, K. E. op. cit., p.49 e 119.
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Nas ltimas sesses, J. comeou a falar sobre uma menina de quem estava gostando
e das suas questes em torno desse momento. Durante o tratamento, J. comeou a fazer
aulas de surf e finalizou o seu curso de computao. Ele passou a ter uma vida social e
passou a ter alguns colegas. Permaneceu muito tempo falando sobre os projetos futuros,
dentre eles, servir o exrcito. Atualmente J. est servindo o exrcito e parou de ir ao
tratamento. Temos notcias dele a partir dos contatos telefnicos e notcias a partir de sua
me, que ele est bem.
Ento, as questes que consigo trazer a partir do ponto que estou hoje, me fazem retomar as
perguntas iniciais desse trabalho. Qual o limite para o musicoterapeuta, em relao ao que
o paciente comea trazer em palavras? Qual o limite do musicoterapeuta em cada caso e
em cada servio? Qual ento seria a diferena entre um musicoterapeuta e um psiclogo?
A contribuio que posso trazer, pensar com vocs o que possvel para cada um
sustentar e como recolher as conseqncia do trabalho e se responsabilizar por ele. Ento,
acho importante manter essa pergunta em cada servio, para cada um, dentro das escolhas
de cada um: qual a minha funo nesse caso, nesse servio e at onde posso ir?
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Trabalho apresentado na mesa redonda sobre Msica e Psiquismo, no XVI Frum Estadual de Musicoterapia e
VIII Jornada Cientfica de Musicoterapia do Rio de Janeiro. Set. 2010.
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Docente do Curso de Graduao e Ps-Graduao em Musicoterapia (Conservatrio Brasileiro de Msica
Centro Universitrio) Supervisora de Estgios em Musicoterapia na Deficincia Mental, Coordenadora da
Clnica Social de Musicoterapia Ronaldo Millecco, Musicoterapeuta Clnica do Instituto de Psicologia
Clnica Educacional e Profissional (IPCEP).
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Em nossa prtica lidamos com mltiplas grades de referncia atravs das quais
procuramos ajudar nosso cliente a alcanar novas aberturas vida, produzindo mudanas
no campo da subjetividade.
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Alm disso, ou seja, alm da msica e da fala, aparecem rudos, silncios, gestos,
movimentos que so indicadores importantes e expressivos num setting.
BIBLIOGRAFIA
POLLACK, M. Memria e Identidade Social. In: Estudos Histricos, vol. 5, n 10, RJ.
1992
SCHAFER, R. Language and Insight. Yale University Press, New haven, 1978.
SEKKEFF, M.L. Da Musica: seus usos e recursos. Edtora Unesp. So Paulo, 2002
A vida pura composio. Deleuze (2002) afirmar que a vida musical. Estas
afirmaes sero tomadas como pontos de vista metodolgicos para pensar a questo da
subjetividade, dos processos de individuao. Compreender a vida como musical ou como
um plano composicional ser tom-la como a expresso sempre provisria e transitiva dos
seus elementos constituintes. A vida se tece pelos contrapontos nascidos das tenses dos
encontros (PEIXOTO, 2008). Sempre uma nova composio se realiza quando suas partes
constituintes se modulam. E ser pela experincia modal que poderemos tecer um outro
ponto de vista acerca dos processos de produo de vida, dos processos de produo de
subjetividade.
O nosso trabalho ter como objeto a articulao dos conceitos de modo e de
individuao inspirados em Espinosa e Gilbert Simondon -, tomando-os como vetores
para a produo de uma perspectiva modal da subjetividade para, por seu turno, pens-los
na relao com a msica e a clnica.
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Trabalho apresentado na mesa redonda sobre Msica e Psiquismo, no XVI Frum Estadual de Musicoterapia e
VIII Jornada Cientfica de Musicoterapia do Rio de Janeiro. Set. 2010.
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Compositor, arranjador e pianista, Graduado em Musicoterapia pelo Conservatrio
Brasileiro de Msica, Ps-graduado em Educao, Currculo e Prticas Educativas - PUC,
Ps-graduado em Psicopedagogia - Universidade Cndido Mendes, Mestre em Psicologia -
Universidade Federal Fluminense, Doutorando em Psicologia - Universidade Federal
Fluminense, Supervisor da Equipe dos Espaos de Convivncia, Cultura, Eventos e Renda
do Programa de Sade Mental de Maca, Professor da Especializao em Sade Mental da
Escola Nacional de Sade Pblica - ENSP - FIOCRUZ, Integrante da Equipe do
Laboratrio de Pesquisas em Sade Mental - LAPS Fundao Oswaldo Cruz -
FIOCRUZ,
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Por seu turno, cada indivduo a resposta sempre atual de uma dada composio
com outros indivduos. Temos aqui uma perspectiva composicional entre modos-existncia
que produziro efeitos em suas dimenses constituintes. Por exemplo, as experincias
imaginrias, ideativas, afetivas, metablicas, desejantes de um indivduo modularo na
relao com outros modos-indivduos. Teremos a expresso modal, isto , a expresso de
novos arranjos na complexa tessitura que constitui cada modo.
E ser pelos postulados do livro II que Espinosa definir o que o corpo humano,
provocando a inaugurao de uma fsica dos corpos para pensarmos as composies modais
de individuao:
II Dos indivduos de que o corpo humano composto, alguns so fludos, outros moles e
outros, enfim, duros.
IV O corpo humano tem necessidade, para a sua conservao, de muitos outros corpos,
pelos quais continuamente como que regenerado.
V Quando uma parte fluida do corpo humano determinada por um corpo exterior de
maneira a chocar muitas vezes com uma parte mole, muda a superfcie desta e imprime-lhe
como que certos vestgios do corpo exterior que a impele.
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Nesta instncia, o ser existente modular a sua existncia pelas composies a que
capaz na relao com outros corpos. Uma vez que um indivduo uma expresso modal
que se atualiza a cada encontro, este mesmo indivduo se complexificar pelo jogo
composicional com outros modos. Segue-se da que um indivduo uma realidade finita
que se tece infinitamente pelas composies com outras realidades finitas. Estas misturas
entre-corpos entre o corpo polifnico e singular do indivduo e os corpos exteriores
expressam a essncia singular e em ato de uma dada composio entre realidades finitas
indivduo e corpos exteriores.
Espinosa nos apresenta uma ontologia da potncia ou, ainda, uma ontopolispotentia,
isto , uma ontopoltica da potncia: uma vez que um indivduo, deixando de ser
compreendido como uma substncia j predefinida e preexistente - ou possuidor de uma
essncia que, por sua vez, j o predefiniria -, vir a ser compreendido como potncia
singular e em ato das suas capacidades composicionais com outros indivduos-coisas
finitos. tica polifnico-composicional que define os seres por seu grau de potncia-
latitudes seu poder de afetar e de ser afetado e por sua singularidade-longitudes as
capacidades de modulaes das suas partes constituintes na relao complexa com outras
realidades finitas dos modos extenso e pensamento da substncia absolutamente infinita:
Deus sive natura (DELEUZE, 2002). As variaes de movimento-repouso-velocidade e
lentido das partes constituintes do modo-existncia expressam o aspecto composicional e
musical na teoria de Espinosa. Msica modal existencial, expressando a cada encontro as
variaes, contrapontos, tenses, dissonncias e consonncias com outros corpos-modos-
existncias. Vemos, por conseguinte, a construo de uma episteme que nos indica as
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As percusses entre modos-existncia, movendo a dinmica dos encontros, vem afirmar a perspectiva
composicional dos corpos, assim como Epicuro qualificou a declinao dos tomos para a produo de
universos. Declinao definida por Epicuro como parnklisis. Dinmica do desvio que fundamenta o
exerccio tico da liberdade (ROSSET, 1989). Por sua vez, a dinmica do desvio, para se pensar a operao
da formao de novos mundos, de novas subjetividades, tem como fundamento a afirmao do acaso. O
desvio, como instncia ontogentica atmica, definido por Lucrcio como clinamen, vem receber o seu
estatuto tico como engendrador do acaso para a edificao do corpo social e poltico.
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dimenso mais ampla, mais profunda na qual ela participa e do qual ela prpria no pode
ser abstrada. Desta forma, Simondon nos desloca e nos descola - da pesquisa sobre um
princpio de individuao original que definiria a essncia da nossa substncia individual
- para movermo-nos ateno dos processos de individuao que fazem emergir
experincias individuadas. Nesta experincia de deslocamento de perspectiva, Simondon
convocar a noo de natureza pr-individual, inspirando-se na phsis dos pr-socrticos.
Simondon nos convida inspirao grega, tomando o golpe de frescor do pensamento
fsico-filosfico milsico para que pensemos, num nvel de realidade prvia, as coisas e os
indivduos como fonte de seu engendramento. Desta forma, compreendemos que o
indivduo um efeito da natureza. A natureza no sendo o conjunto das coisas que
existem, mas, ela mesma, o princpio da existncia de tudo o que existe enquanto seres
individuados.
Pelo que precede, Simondon definir a individuao como a passagem da natureza
ao indivduo, mas, segundo Debaise (2004a) atravs de trs condies:
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Temos uma ressonncia, com a perspectiva espinosana de singularidade, implicando-a noo de
singularidades pr-individuais de Simondon: em Espinosa as partes componveis de um ser entraro em
novas composies medida que sofrem a interferncia e percusso de outros corpos. Diremos que as
partes componveis j individuadas entraro em novos arranjos, uma vez que, por ressonncia, se
propagam novas direes, novas trajetrias, novas combinaes pelas instabilidades que uma nova situao
poder propagar.
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Neste ponto temos outra ressonncia com Espinosa para pensarmos uma ontologia da potncia. Um ser
a expresso da sua condio de coexistncia, ele pura relao, ser transitivo e transitrio. Da nunca
saberemos as capacidades de um ser: apenas quando este estiver em jogo, em relao com outros corpos
que movero suas partes componveis individuadas em outros arranjos singulares, em novas individuaes
que sero propagadas pelas tenses da experincia coexistencial.
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Assim vemos que todo processo de individuao o movimento dos possveis que se atualizam,
produzindo novas maneiras de se realizar na existncia. O conceito de grau de potncia em Espinosa entra
em coincidncia com esta perspectiva dos fluxos gradientes das fronteiras do indivduo. Compreender uma
existncia por seu grau de potncia, suas latitudes, seu poder de afetar e de ser afetado, ser compreender
as modulaes dinmicas das aberturas e contraes possveis da sua realidade a cada encontro, a cada
nova composio. Desta forma, um ser ser definido por suas capacidades de ser afetado, suas
combinaes, com quais corpos aumenta ou diminui sua realidade.
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clnica ser o thos, isto , uma das moradas que contribui para a produo de novas
composies nos modos de ser daqueles que a procuram. Por este prisma, o elemento
esttico da clnica - enquanto a experincia transformadora que nos retira de nossas
ladainhas, redundncias e cristalizaes - vem operar modulaes na polis individuada de
cada um. Cidade ontopoltica que nos habita e nos movimenta modulada pela fora dos
encontros, liberando aquilo que h de no individuado em cada modo existente, compondo-
se em novas individuaes, em novos arranjos existenciais. Plano musical... A vida
percussiva... A subjetividade modal!
REFERNCIAS
... a Musicoterapia entrou nos CAPS pela porta da Frente, foi convidada.
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Musicoterapeuta graduada pelo Conservatrio Brasileiro de Msica Centro Universitrio, R.J., (1993).
Especialista em Psicossomtica pela Universidade Gama Filho e em Sade Mental pelo Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Musicoterapeuta do Hospital Geral de Guarus em
Campos dos Goytacazes RJ; do Centro de Ateno Psicossocial (CAPS III) Joo Ferreira R.J.; da UNIC
Cuidados Paliativos (atendimento domiciliar a pacientes oncolgicos) e 2 Vice-Presidente da Associao de
Musicoterapia do Estado do Rio de Janeiro.
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Cada vez mais aprendemos juntos que a grande diferena nossa do modelo antigo de
ateno e cuidado ao louco, est nos recursos humanos, est na relao dentro e fora do
servio. Uma s especialidade no basta, o trabalho fica empobrecido. Trabalhar num
CAPS acaba exigindo mais de todos. Esta lgica de cuidados funciona muito atravs da
articulao com atividades coletivas, com outras especialidades, em outros espaos como
oficinas teraputicas, grupos teraputicos, alm dos atendimentos individuais
(psicoterapias, musicoterapia) e do tratamento medicamentoso.
Iniciarei minha fala colocando algumas questes que surgem no momento em que
paro para pensar na funo de um profissional musicoterapeuta compondo uma equipe de
sade mental. A proposta no exatamente responder a todas estas questes, porm as
utilizarei como norte para o desenvolvimento deste trabalho. So elas:
*A que veio o musicoterapeuta?
*De que maneira a Musicoterapia possibilita a subjetivao?
*H diferena entre um grupo de Musicoterapia e uma Oficina de Msica?
No me aprofundarei no tema da Reforma Psiquitrica Brasileira, mas pensar a
Musicoterapia nos dispositivos de sade mental nos convida a fazer uma reflexo sobre este
movimento e aquilo que ele nos convoca. A ateno sade mental tem sido marcada por
uma srie de transformaes nas duas ltimas dcadas, na inteno de se dirigir um olhar
diferenciado e promover espaos que sirvam de suporte aos sujeitos que buscam tratamento
nas Unidades de Sade.
O profissional musicoterapeuta entra no momento em que passa a haver uma
exigncia de equipes multiprofissionais e interdisciplinares nos servios, quando se
constata que o trabalho com pessoas em sofrimento psquico necessita do encontro e do
atravessamento de diversos olhares. Alm disso, h uma demanda da prpria clnica da
psicose, de que se toque em uma dimenso que no chega pela palavra.
Podemos pensar as relaes entre a msica e a linguagem. Como a questo da
produo de sentidos , na maior parte das vezes, inserida no campo da linguagem - da
mesma forma que a narrativa, outro aspecto aqui enfocado acredito ser importante
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(Trabalho apresentado no XVI Frum Estadual de Musicoterapia/VIII Jornada Cientfica
de Musicoterapia, na mesa A Atuao do Musicoterapeuta nos Dispositivos de Sade
Mental setembro/2010)
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Musicoterapeuta graduada pelo Conservatrio Brasileiro de Msica CEU/Centro
Universitrio. Mestranda em Memria Social PPGMS/UNIRIO. Especializao em
Tratamento de Dependentes de lcool e outras drogas NEPAD/UERJ. Experincia
clnica em Musicoterapia no CAPS Lima Barreto e Coordenao Tcnica do CAPS III
Maria do Socorro Santos.
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mostrar como estas dimenses produo de sentidos e narrativas podem ser articuladas
diretamente msica, sem a necessidade de intermediao lingstica.
Para fundamentar meu pensamento, utilizo as idias de Nietzsche, que nos diz que
apenas parte de nossos sentimentos so comunicveis, ao serem convertidos em
pensamentos e representaes. H uma distncia entre nossos pensamentos e sentimentos,
nosso mundo interno e aquilo que a linguagem capaz de comunicar. As representaes
conscientes so expresso de parte de nossas vivncias. A palavra enquanto modo de
expresso tem seus limites.
Partindo desta reflexo sobre os sentimentos e os limites da linguagem, Nietzsche
descreve a msica, a poesia e a palavra como smbolos que expressam contedos de
sentimentos diferenciados no que se refere ao grau de preciso e intensidade. Para este
filsofo, o som um elemento capaz de ampliar a capacidade da linguagem no que diz
respeito expresso dos sentimentos. A linguagem falada por ele descrita como sonora. O
filsofo entende que so as manifestaes instintivas que daro lugar s aes criativas.
Para ele, o excesso de atividade consciente impede a manifestao dos instintos. Os estados
internos intraduzveis, os quais esto fora do mbito da linguagem, so os que podem ser
expressos na arte, sobretudo na msica, que expressa o sentimento e para Nietzsche, est
livre da submisso ao sentido.
Pela experincia na clnica da Musicoterapia, sabe-se que existe uma articulao
entre a msica e a memria por ela evocada. Podemos dizer tambm que no sempre que
as lembranas so colocadas em palavras. Por vezes os pacientes apenas cantam, dizendo
no se lembrar de nada especificamente, de nenhum fato ou momento marcante, recusando-
se assim, a falar. Mas essas emoes podem se expressar e ser elaboradas por outras vias
que no a palavra, como j foi dito aqui. Tambm h pacientes que cantam sempre, em
todas as sesses, uma mesma cano. Aqui, aproximo meu pensamento da idia de
Nietzsche, quando ele diz que no campo das artes o passado se repete renovado, pois h no
ato da repetio uma possibilidade de recriao e reinveno da vida. A msica, na clnica
da musicoterapia, nem sempre uma expresso de prazer ou alegria, podendo tambm
expressar e sofrimento e dor. Ambos so importantes no processo de elaborao, j que
ambos so elementos importantes para a composio e o exerccio da subjetividade e da
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presenciei diversas situaes em que efeitos teraputicos preciosos puderam ser observados
nos mais diversos espaos dentro de uma proposta de trabalho integrado no CAPS. Porm,
acho importante pensarmos sobre nossa prtica e o uso que fazemos da msica como
elemento teraputico e enquanto musicoterapeutas.
Ilustrarei este ponto da possibilidade de subjetivao oferecida pela msica na
Musicoterapia com dois fragmentos clnicos por mim experimentados no cotidiano de um
servio de ateno diria em sade mental. Chamarei o primeiro paciente de Sebastio e o
segundo de C.
Sr. Sebastio aceitou o convite e fomos ento para a caminhada. Na volta para o
CAPS, uma outra usuria canta uma cano de Leonardo, cujo refro diz: No olhe assim
no...voc linda demais...!
Sr. Sebastio ouve e ento comea a cantar: No faz assim no...tem piedade de
mim...!
Aproveito para dizer que, como Chagas (2008), considero o canto um instrumento
no somente revelador como produtor, um poderoso instrumento teraputico capaz no
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apenas de revelar como de produzir novos sentidos, facilitando a elaborao das histrias
de vida, produzindo memria e subjetividade.
Passo agora ao segundo fragmento clnico.
Fui convidada a entrar no caso de C. em um momento difcil de sua vida. A notcia
dada em reunio de equipe era de que se tratava de um paciente que estava muito mal,
bastante confuso, apresentando delrios persecutrios, em pssimo estado de sade. O
irmo havia ido ao servio pedir ajuda, pois C. se recusava a sair de casa e o quadro se
agravava. Falou-se sobre seu forte apreo pela msica, e por este motivo, combinamos que
eu lhe ofereceria atendimento domiciliar em musicoterapia. Na mesma semana fui casa de
C acompanhada por sua mdica.
Considero necessrio descrever brevemente o local de moradia deste paciente, para
que possamos refletir tambm sobre a construo social de sua subjetividade.
C. residia em uma rea bastante violenta no bairro de Bangu. Seus familiares tiveram que
pedir licena aos traficantes para que a visita pudesse ser realizada. No se podia falar ao
telefone na rua. Ao lado de sua casa, dois meninos com 15 ou 16 anos, fortemente armados,
guardavam a rua. Mulheres conversavam sentadas em cadeiras colocadas na calada em
frente, e pequeninas crianas brincando ao redor compunham aquela cena.
Havia de nossa parte uma preocupao vinda do fato de ser aquela uma rea de
risco, e C. colocava-se em perigo, pois se encontrava bastante delirante, falando coisas que
poderiam ser mal recebidas por aquelas pessoas, que ignoravam a existncia de seu
sofrimento psquico.
Entramos em sua residncia, e j em um primeiro momento fomos por ele muito
bem recebidas. C. apresentava-se bastante emagrecido e com um enorme cisto nas costas,
que ningum sabia dizer o que era, pois C. tambm se recusava a fazer exames, pois temia
as medicaes e injees. Os sentimentos da me em relao a ele eram ambguos, pois esta
ao mesmo tempo falava de sua preocupao e de seu desejo de que o filho morresse, caso a
cura no fosse possvel, pois as dificuldades de cuidar de C. daquele jeito eram muitas, uma
vez que a famlia no tinha condies de viabilizar um tratamento, e tambm no se podia
contar com recursos do municpio, que naquele momento eram bastante escassos. C.
queixava-se de falta de energia, dizendo o tempo todo no ter mais foras para viver.
Falava de suas frustraes relacionadas ao trabalho e conduo de sua vida.
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Em determinado momento, durante nossa visita, C. foi ao seu quarto e voltou com
uma pasta enorme cheia de letras de msica que ele havia escrito. Dizia j ter feito
inmeros shows fora do Brasil e ter deixado por l uma linda namorada que ainda esperava
por ele. Disse-lhe, ento, que gostaria muito de conhecer suas composies e convidei-o a
ir ao CAPS na semana seguinte para me mostrar as canes.
No dia marcado para o atendimento, o irmo de C. foi ao servio na parte da manh
dizendo que C. estava se recusando a ir ao CAPS. Resolvi ento lhe enviar um bilhete,
dizendo que continuava aguardando por ele, a fim de conhecer suas composies. Por volta
de 16:30, C. chegou ao servio, carregando em uma das mos uma enorme pasta com suas
msicas, e na outra, um violo sem capa. Foi uma cena emocionante v-lo se aproximar
daquela maneira, pois eu estava no porto no momento em que ele chegou.
Entramos na sala e C. imediatamente comeou a falar. Falava de suas lembranas, de seus
sonhos, de suas frustraes, de suas alegrias, de sua dor, de sua fraqueza e falta de energia.
Peguei um tambor e tocamos juntos. Suas letras contavam sua histria. No lugar de
musicoterapeuta, me senti feliz em oferecer meus ouvidos sua produo.
C. estava bastante adoecido, sempre falando de sua falta de foras, dizia que sentia
muita dor e que pensava at que iria morrer.
Na semana seguinte, conforme marcamos, j passava do meio-dia quando C. chegou ao
CAPS debaixo de uma forte chuva, carregando uma sacola com a pasta de suas msicas, e
na outra mo, o violo enrolado em um saco plstico da COMLURB.
Fomos at a sala e mais uma vez peguei o violo para acompanh-lo. C. iniciou o
atendimento dizendo que estava sentindo uma dor to grande, mas to grande, que no
sabia se iria agentar, por isso resolveu ir ao CAPS. Chegou a dizer que achava que o fato
de ter cantado na ltima sesso havia lhe causado dor. Dizia estar falando de coisas jamais
ditas anteriormente. Demonstrando enorme satisfao, C. seguia cantando, sorrindo, por
vezes chorando e contando suas histrias.
Aps esta sesso, C. ficou uns dias sem ir ao CAPS, e na outra semana seu irmo foi
at ns solicitando ajuda, pois C. havia parado de andar, estava passando muito mal,
apresentando um quadro clnico grave. No irei descrever a peregrinao de sua famlia
pela rede de sade pblica de nossa cidade, para que o foco na questo de nosso trabalho
no seja perdido.
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Meu tema tem como centralidade a musicoterapia no atendimento de crianas com doenas
renais crnicas no momento da dilise, ou seja, num contexto mdico.
Mas, antes, devo dizer que percebi, muito recentemente, que se deve falar tambm do bvio.
Assim, embora quase sempre eu tenha a msica como o foco nos meus trabalhos e apresentaes,
no a considero como o elemento central da relao tridica musicoterapeuta /paciente/msica: o
paciente sempre o centro de qualquer processo musicoterpico; a msica a especificidade da
musicoterapia e a facilitadora da situao comunicacional (Ruud, 1990), que vai possibilitar o
estabelecimento do vnculo, e o elemento principal do consequente desenvolvimento do processo
teraputico. Assim, na medida em que a msica se constitui como a principal ferramenta do
musicoterapeuta, considero ser absolutamente relevante o seu estudo e, por isto, tenho me
preocupado em me aprofundar cada vez mais nas suas possibilidades como elemento teraputico.
Como este frum tem como centralidade a musicoterapia na sade mental na clnica da
infncia, e o trabalho aqui apresentado realizado com crianas portadoras de doenas renais
crnicas, penso caber aqui uma primeira discusso.
Musicoterapeutas contemporneos como Hesser (1991) e Dileo (1999), fazem uma diviso
entre musicoterapia em medicina e musicopsicoterapia. Barbara Hesser, da New York University,
coloca num tringulo: musicoterapia em medicina, musicopsicoterapia e musicoterapia
transpessoal, demostrando que a musicoterapia pode ser aplicada ao corpo, mente e esprito;
Cheryl Dileo, da Temple University, coloca-se na mesma posio de Hesser, trazendo a
possibilidade de se fazer musicoterapia na rea mdica e na sade mental. E as duas, de formas
distintas, tm uma posio nica: Hesser envolve o tringulo com um crculo, para denotar que no
se pode trabalhar um nico aspecto pois todos se interconectam. E Dileo afirma: ... a distino
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Trabalho apresentado na mesa redonda sobre A Clnica da Infncia e a Musicoterapia, no XVI Frum Estadual de
Musicoterapia e VIII Jornada Cientfica de Musicoterapia do Rio de Janeiro. Set. 2010.
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Musicoterapeuta clnica trabalhando com pacientes com DRC no momento da dilise.
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Comunicao pessoal em 20/8/2010, por ocasio do III Congresso Internacional de Msica, Neurocincia, Arte e
Terapia (CIMNAT), realizado em So Paulo.
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A Fundao do Rim Francisco Santino Filho apoiada pela Else Krner-Fresenius-Stiftung (Alemanha) e pela
Frenesius Medical Care (Brasil), e dirigida por Lvia Guedes e Ana Maria Motta que, numa iniciativa pioneira
incluram a musicoterapia em 2008, alm de fisioterapia, reforo escolar, suporte alimentar e, por ltimo psicologia, no
atendimento a crianas e adolescentes da Clnica de Doenas Renais do Rio de Janeiro.
30
A nefropediatra Dra. Ftima Bandeira.
31
A Clnica Social Ronaldo Millecco" foi criada pelo CBM-CEU em 2002, com o objetivo de atender a uma
populao de baixa renda e, ao mesmo tempo, propiciar estgios aos estudantes da graduao e ps-graduao de
musicoterapia do CBM-CEU. O trabalho na Clnica de Doenas Renais um projeto de atendimento extramuros da
Clnica Social Ronaldo Millecco, a qual represento como uma das Coordenadoras.
46
32
Ruud define musicoterapia como um esforo para aumentar as possibilidades de ao e explica que aumentar as
possibilidades de uma pessoa significa no somente empoder-la mas, tambm dar alvio(...) a algum material de
foras pricolgicas que a mantm num papel de desvantagem (1998, p. 52).
48
Na nossa clnica percebi que quando todos cantam juntos, incluindo quase sempre a equipe
de enfermagem e os familiares, a cano popular o tipo de msica escolhido. No entanto, nos
momentos em que os pacientes so atendidos individualmente, a improvisao e a composio so
as experincias musicais que so por ns mais incentivadas. Estas possibilitam a expresso de
contedos internos e, na imprevisibilidade, permitem que os pacientes se arrisquem em novas
avenidas musicais, utilizando caminhos desconhecidos para expressar seus sentimentos, como o
caso de uma paciente que expressa na sua composio o desejo de ganhar dois rins, como presente
de Natal, para que ela e a amiga possam ser transplantadas.
Consciente da necessidade de pesquisas e estudos no emprego da musicoterapia nessa rea,
acredito, utilizando uma metfora de transporte empregada por Tia DeNora, que a msica uma
experincia musical que pode nos levar de um lugar (emocional) a outro (2000) e que, atravs dela,
esses pacientes podem, alm de expressar seus contedos internos, viver ou experimentar a
imprevisibilidade na msica e, consequentemente, em outras situaes.
Referncias
______. Lia Rejane Mendes. Challenges on Music Therapy Clinical Practice. Voices: A World
Forum for Music Therapy. 2009, http://www.voices.no/columnist/colbarcellos141209.php
DeNORA, Tia. Music in Everyday Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
DILEO, Cheryl. Music Therapy & Medicine: theoretical and clinical applications. Silver
Spring: American Music Therapy Association, 1999.
FINNEGAN, R. O que vem primeiro: o texto, a msica ou a performance? In: Matos, C. N.,
Travassos, E., Medeiros, F. T. (Ed.) Palavra cantada: ensaios sobre poesia, msica e voz. Rio de
Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2008.
HESSER, Barbara. Material de aulas ministradas sobre O Mtodo Bonny de Imagens Guiadas e
Msica no Conservatrio Brasileiro de Msica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1991.
MIDDLETON, Richard. Studying popular music. Milton Keynes: Open University, 1990.
RUUD, Even. Caminhos da musicoterapia. Trad. Vera Wrobel. So Paulo: Summus, 1990.
______. Music Therapy: improvisation, communication, and culture. Gilsum: Barcelona
Publishers, 1998.
50
Uma msica para mudar a minha vida Escutando musicalmente entre muitos 33
Benita Michahelles34
O CAPSIj Eliza Santa Roza tem a prtica entre muitos 35 como forma de ateno
que perpassa todos os dispositivos de atendimento. Ela se assemelha pratique
plusieurs, uma forma de atendimento iniciada em 1990 por alguns psicanalistas europeus
em instituies para crianas diagnosticadas como autistas e psicticas. A clnica acontece
na pluralidade das crianas e dos tcnicos.Esses procuram promover a ampliao dos laos
sociais e, ao mesmo tempo, sustentar a singularidade de cada um dos sujeitos em
tratamento. Os espaos tambm so mltiplos, assim como o tempo, principalmente
33
Trabalho apresentado na mesa redonda sobre A Clnica da Infncia e a Musicoterapia, no XVI Frum
Estadual de Musicoterapia e VIII Jornada Cientfica de Musicoterapia do Rio de Janeiro. Set. 2010
porque trabalho direcionado para possibilitar que sujeitos desejantes venham a emergir.
Esse modo de funcionamento proporciona o acolhimento de pacientes que, muitas vezes, j
chegam inventando formas de lidar com o seu sofrimento, frequentemente gesticulando,
gritando, emitindo sons, andando... Enfim, apresentando uma maneira de existir que
dificulta a realizao de seu tratamento em um sistema ambulatorial tradicional.
Os atos dos sujeitos na clnica entre muitos so sempre tomados no campo do
sentido. Parte-se do princpio de que aquilo que aparece de forma catica, aparentemente
no fazendo sentido, poder produzir o sentido no devir mesmo de sua sequncia,
sobretudo se for tomado nesta perspectiva (ELIA, 2004, p.01). Sabemos que, para atender
a essa clientela que no espera o incio de uma sesso para iniciar o seu trabalho
necessrio deixar-se regular por suas construes, proporcionando-lhes novas
significaes, ou seja, incluir-se no seu trabalho. fundamental estar-se sensvel a essas
invenes nas suas mais diferentes formas e expresses e ter disponibilidade para inventar
junto com esses sujeitos. E, principalmente, posicionar-se de modo aberto e acompanhar as
diversas mudanas de sentido que so vividas pelos clientes durante seu trabalho de
elaborao e construo psquica.
Segundo o msico contemporneo John Cage, a escuta torna msica aquilo que por
princpio no msica. Em sua concepo, a construo musical se d no nvel interno,
pela ao de uma escuta intencional, transformadora e geradora de sentidos e significados
(BRITO, 2003, p.27). Cabe ao musicoterapeuta ser esse tipo de ouvinte na clnica de sade
mental infantojuvenil . O seu trabalho deve se realizar num contexto que entenda a msica
como processo contnuo de construo que envolve perceber, sentir, experimentar, criar.
Nesse processo, a criana ou jovem, sujeito da experincia, quem importa
prioritariamente. Segundo Keith Swanwick, a msica uma forma de discurso e pode
fazer uma diferena na maneira como vivemos e como podemos refletir sobre a nossa
vida. (Swanwick, 1999, p.78). As expresses sonoras e a arte musical proporcionam um
espao privilegiado de trocas, diferentemente das verbalizaes. responsabilidade do
musicoterapeuta trazer esse nvel de escuta e de trocas para a clnica entre muitos,
permitindo fazer soar os muitos discursos musicais, sons e silncios dos pacientes.
A partir dessa reflexo, convido a pensar sobre a escuta musical na clnica da infncia.
Como ela pode acontecer no atendimento entre muitos? Ela pode, nesse dispositivo,
52
ajudar nas construes realizadas pelos sujeitos com grave sofrimento psquico?
* * *
O Turno a modalidade de atendimento fundamental do CAPSIj Eliza Santa Roza.
Durante um perodo determinado vrias crianas ou jovens de uma mesma faixa etria
ficam no CAPSIj ao mesmo tempo, sendo atendidas por diferentes tcnicos de diferentes
formaes. No existem atividades previamente programadas. Essa modalidade de
atendimento abre novas possibilidades de estar com outros. No se trata de atendimento
de grupo, mas sim de um atendimento coletivo, que facilita trocas. No coletivo, seus atos,
gestos e sons so interpretados como linguagem e como modo de comunicao. Logo aps
cada turno, ocorre uma reunio entre todos os profissionais envolvidos naquele
atendimento. um momento fundamental, no qual se discute o que ocorreu a partir dos
diversos olhares e, de certa forma, tambm se traam caminhos, direes para cada caso.
As Oficinas e o Ateli Teraputico tambm so dispositivos importantes no CAPSIj
Eliza Santa Roza, e tm a proposta de atender a pacientes com maiores possibilidades de
construo de laos sociais. Possibilitam atividades um pouco mais estruturadas, tambm
em nvel grupal. So porm tambm igualmente regulados pela lgica da prtica entre
muitos, ou seja, a partir do que trazido pelos pacientes, sempre respeitando os seus
tempos. A arte nesses dispositivos entendida como processo, mais do que apenas como
um produto.
Nessas prticas entre muitos fundamental que as pessoas que oferecem tratamento se
coloquem em posio dessubjetivada, ou seja: suas aes devem estar subordinadas
escuta (AUTUORI, 2006, p.08). A proposta trabalhar a partir de um no saber para
ajudar o paciente a construir o seu prprio saber.
36
H uma grande sala com brinquedos, materiais de artes e tambm instrumentos musicais, ligada
a um quintal (onde tambm se encontram brinquedos, como casinha, carrossel etc ). Trata-se, de certa
forma, da sala principal do turno, mas as crianas podem preferir ficar em outros espaos do CAPSIj, como
os corredores e as salas menores.
54
com a ajuda de algum tcnico, tira-o da capa e pe-se a toc-lo. Na verdade, porm,
inicialmente no produz som algum com o instrumento: apenas encena faz-lo com o
violo pendurado no corpo e tomando a palheta na mo. Frequentemente eu toco para ele
ou para outras crianas, e ento ele olha com ateno. Nessas ocasies, comea a
interagir com alguns sons vocais bem suaves. Fazemos uma espcie de brincadeira de eco,
ento: a cada som vocal seu, eu e os outros tcnicos repetimos esses sons em coro,
amplificando-os.
Pouco a pouco, Iago comea a se mostrar mais sonoro, no com a sua voz, mas
atravs de espontneas experimentaes nos instrumentos de percusso. Tambm comea
a interagir mais com outras crianas, por exemplo, aceitando eventualmente objetos que
elas lhe oferecem.
A me de Iago era atendida regularmente por sua referncia37, uma estagiria de
psicologia. Certa vez, num desses atendimentos, ela diz que sonhava em saber a todo custo
o que se passava dentro do seu filho, e que desejava que ele fizesse um exame em uma
mquina, que disse ter visto na TV, que poderia revelar tudo o que se passava no seu
corpo e na sua mente e daria todos os diagnsticos. De fato, ela tambm tenta algumas
vezes entrar no espao de atendimento de Iago no CAPSIj. Como ela barrada por ns,
tenta faz-lo atravs de objetos pessoais que entrega na mo do filho (como cartes de
telefone, de crdito etc.) bem na hora de ele entrar. O prprio Iago, porm, rapidamente
deixa esses objetos de lado e os substitui por alguns especficos de sua escolha, muitas
vezes instrumentos musicais. Em uma ocasio, uma baqueta que ele pega. Com auxlio
desta, passa ele mesmo a examinar os objetos ao seu redor, pesquisando seus sons de
forma ativa. Percute a lata de lixo, a parede, o tambor, o violo. Depois, demora-se
experimentando o pau-de-chuva, e o observa bem. Curiosamente, tambm parece querer
saber o que se passa no interior daquele instrumento.
Com a mesma baqueta, em outra ocasio, Iago pesquisa o som da janela,
raspando-a na veneziana. Uma estagiria interage com ele, brincando de abrir e fechar
outra veneziana ao lado, dizendo alternadamente: tem sol! no tem sol. Eu ento me
37
Referncia como denominamos no CAPSIj o profissional responsvel pelo caso, e que,
independentemente da sua especialidade, geralmente tambm atende aos pais (ou responsveis) da
criana.
55
aproximo com o violo e imito com ele o som de reco-reco produzido por Iago na janela, e
me integro repetindo os dizeres da estagiria, no mesmo ritmo que ela, s que colocando
uma melodia em suas palavras, como mostra a partitura abaixo:
algumas perguntas, mas no identifica o que ele responde. Depois eu me aproximo com
outro violo. Ele se pe a tocar sonoramente cada corda, parece muito atento aos sons
das diferentes alturas. Fico ao seu lado nessa pesquisa, reproduzindo com a minha voz o
som que ele toca. Improviso cantando sobre a escala pentatnica menor de mi. Falo
sobre cordas diferentes produzirem diferentes sons e nos tocarem com suas vibraes.
Ele presta muita ateno. a primeira vez que Iago faz soar to claramente esse
instrumento. Na semana seguinte, ele me acompanha tocando o tambor com presena
rtmica e sonora na msica Bate Lata 38, que eu puxo cantando e acompanhando com
o violo . Quando lhe digo no final que gostei de tocar junto com ele, ele me responde:
Eu tambm gostei de tocar com voc!
Descobrimos que de fato existe uma cano intitulada Pra mudar a minha vida 39.
Providenciamos ento esse CD (um show ao vivo), que colocado para tocar durante o
turno. Ao reconhecer a msica, Iago imediatamente pendura o violo em seu corpo e se
aproxima do som. Alguns de ns pegamos diferentes instrumentos e os tocamos,
acompanhando-o, e outros chegam mais perto para assistir ao show. Todos os presentes
se envolvem de alguma forma nessa cena. Cantamos juntos a melodia da msica, cujo
refro diz:
...Voc chegou quando a dor mais doa
E me encontrou quando eu me perdia
Acho que foi Deus que te mandou pra mim
Pra recomear e me fazer feliz
Por toda vida...
38
Msica de autoria da Banda Beijo
39
Msica de autoria da dupla sertaneja Zez de Camargo e Luciano
57
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
Gostaria de iniciar minha fala esta manh agradecendo ao convite feito pela
Pollyanna, em nome da Associao de Musicoterapia do Rio de Janeiro, para integrar uma
mesa que, j em sua composio, diz muito da minha histria nesta clnica com crianas e
adolescentes na Sade Mental.
Tenho aqui ao meu lado Lia Rejane que h 9 anos atrs ligou pra minha casa para
me participar que havia recebido um pedido de indicao de musicoterapeuta para trabalhar
em um CAPSI cuja direo de trabalho era analtica e que, dentre outras pessoas, havia
tambm pensado em mim como possvel indicao, j que desde os idos tempos de
faculdade eu vinha estudando psicanlise.
Tenho tambm aqui Maria Slvia, minha diretora ao longo dos 8 anos em que
trabalhei no CAPSI e hoje minha parceira com quem divido a Superviso dos CAPS e dos
servios ambulatoriais de sade mental da rea 3.1 do Rio de Janeiro. Maria Slvia
acreditava que um musicoterapeuta teria muito a contribuir no tratamento de seus
meninos e, por isso, fez o pedido Lia Rejane.
Sou muito grata a vocs. Rejane, pelo reconhecimento e Maria Slvia, pelo
acolhimento. Minha passagem pelo CAPSI Pequeno Hans foi de fundamental importncia
tanto para minha formao profissional como tambm na minha vida pessoal.
E aqui est Benita, colega veterana de faculdade e colega musicoterapeuta de outro
servio infanto-juvenil de referncia na cidade, o CAPSI Eliza Santa Roza.
40
Trabalho apresentado na mesa redonda sobre A Clnica da Infncia e a Musicoterapia, no XVI Frum
Estadual de Musicoterapia e VIII Jornada Cientfica de Musicoterapia do Rio de Janeiro. Set. 2010
41
musicoterapeuta formada pelo CBM-RJ em 1997. Fez o curso de Especializao em
Psicanlise e Sade Mental pela UERJ, concludo em 2003. Frequenta Seminrios e Cursos
no Lao Analtico Escola de Psicanlise. musicoterapeuta concursada do Municpio do
Rio de Janeiro. Trabalhou de 2001 a 2009 no CAPSi Pequeno Hans exercendo a funo de
musicoterapeuta e de supervisora de estgios. H 1 ano vem exercendo a funo de
Supervisora do CAPS Ernesto Nazareth, das equipes de sade mental do territrio da Ilha
do Governador RJ e a Superviso do CAPS Simo Bacamarte (e do territrio), em Santa
Cruz -RJ. Clnica em consultrio particular.
60
42
Caminhos para uma Poltica de Sade Mental Infanto-Juvenil. Publicao do Ministrio da Sade.
Editora MS. Braslia DF. 2005
61
Meu desafio foi aprender como inserir a msica neste dispositivo e como articular o
seu estatuto nesta clnica. Por ocasio do X Frum Estadual de Musicoterapia tive
oportunidade de apresentar a vocs algumas dessas articulaes. Infelizmente nosso tempo
aqui no permite que eu retome passo a passo minhas construes e, por isso, peo que de
boa vontade me acompanhem numa breve retomada at o ponto no qual l os deixei: a
msica, assim como o inconsciente, tem estrutura de linguagem.
Lacan, no incio de sua teorizao, encontra suporte para sua clnica e para sua
teorizao de que o inconsciente estruturado como uma linguagem na lingstica
estruturalista de Ferdinand de Saussure.
A doutrina de Saussure gira em torno do conceito de signo lingstico:
Conceito
Imagem
acstica
ou seja:
Significado
Significante
Por exemplo:
rvore
62
Significante
Significado
Exemplo:
HOMENS SENHORAS
43
Lacan, J. O Seminrio, livro 3: as psicoses, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 139.
44
Lvi-Strauss, C. Olhar escutar ler, So Paulo: Cia. das Letras, 1997.
63
significao. Isso nos faz pensar que a msica seria uma linguagem de puro significante e
nos leva a uma aproximao entre a estrutura do inconsciente e a estrutura musical.
Ento, uma construo musical feita em transferncia na clnica pode ter um
estatuto de significante. Pode, inclusive, dar notcias do sujeito.
Mas, quem esse sujeito do qual a psicanlise tanto fala?
Sujeito uma categoria introduzida na psicanlise por Lacan. Ele no o
indivduo, no o sujeito consciente da filosofia nem tampouco o sujeito de enunciados
como eu quero tomar um sorvete. O sujeito no uma positividade, no o nome de um
referente emprico que existe por a, que se encontra na realidade. O sujeito um operador
que se impe a ns, desde que nos coloquemos em determinada perspectiva (...) O sujeito
45
, portanto, sempre suposto. O sujeito da psicanlise o sujeito do inconsciente, o
sujeito da linguagem. E atravs da fala que ele se realiza.
Vocs podem estar se perguntando, mas, por que a fala? Por que o sujeito no
poderia ter um outro modo de manifestao, como, por exemplo, a msica?
Para Luciano Elia,
um gesto, uma expresso do rosto, do corpo, uma dana, um desenho, tanto quanto uma
narrativa oral, sero produes simblicas, regidas pelo significante, e assim, ditas verbais, por
estarem na dependncia do verbo significante e no por serem expressas por via oral. No existir,
portanto, o no verbal no campo simblico, e menos ainda o pr-verbal(...) Como ser de
linguagem, o sujeito humano se constitui no domnio do verbal.46
Assim, mesmo os autistas que no fazem uso da funo da fala porque, por uma
posio estrutural, no assentiram a ela, estaro no campo da linguagem. Ainda que no
tenham ascendido fala, so seres que se constituram num mundo de linguagem, o mundo
do humano.
Podemos seguir a questionar: se a msica ento uma produo simblica,
poderamos, numa clnica que a particularizasse, prescindir da fala?
Por vezes, como mostra nossa experincia, a msica ou os sons so veculos
privilegiados de acesso ao sujeito nessa clnica da psicose.
45
Elia, L. O Conceito de Sujeito, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004.
46
Elia, L. - Op. Cit., pg: 21
64
47
Abreu, M. Notas sobre o objeto a. Indito. 2009.
48
Apud. Didier-Weill, A. Os trs tempos da lei: o mandamento siderante, a injuno do supereu e a
invocao musical, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 242.
49
op.cit.
50
Elia, L. op.cit., pg: 22
65
palavras, poder deixar em reserva o seu saber, do mesmo modo como Lacan recomenda
aos analistas. 51 Emprestar, pois, seus ouvidos e suas intervenes para que um saber ali
possa se produzir; mas que esse ali esteja do lado do sujeito.
Passo a um recorte clnico:
Taisson52 era um rapaz autista em tratamento no CAPSI j h alguns anos. O
advento da adolescncia trouxera para ele muitas perturbaes. Seu corpo, precariamente
simbolizado, se modificava. Parecia passar por um momento de agonia intensa.
Passava as permanncias no CAPSI andando incessantemente, batendo nos tcnicos
ou pacientes, urinando e colocando a todo momento a mo em seu rgo genital, cheirando
nossos cabelos, levando sua mo aos seios ou entre as pernas das mulheres presentes.
Este circuito ou curto-circuito pulsional no qual Taisson se empenhava acabava
por convocar os tcnicos a responderem com averso, repelindo suas aproximaes. Por
vezes era preciso coloc-lo do lado de fora da casa interpondo uma barreira fsica que
possibilitasse que nos dirigssemos a ele de um outro lugar que no esse da repulsa quase
que automtica. A equipe estava muito mobilizada e desconfortvel e o caso foi alvo de
muito trabalho no espao da superviso clnico-institucional.
Talvez porque eu tivesse voltado recentemente de uma licena-maternidade, no
estava no mesmo ponto de angstia em que a equipe se encontrava, o que me possibilitou
um afastamento, um colocar em reserva. Descobri-me disponvel para acompanhar de um
outro lugar este movimentar de Taisson e, com isso, pude escutar que esse seu circuito era
acompanhado por uma sonorizao: fazia um T!, bem destacado, e fazia tambm uma
espcie de escala descendente, numa voz gutural um pouco imprecisa e escandida: i, i, i, i,
i, i...
Pergunto, ento, para ele: Esse t -i, i, i, i, i, i... de Ta i sson? A pergunta
fez com que Taisson parasse imediatamente. Voltando-se para mim e olhando bem nos
meus olhos, diz: Ta - i, i, i, i, i, i... Entendo seu dito como um assentimento e passo a
51
Cf. Lacan, J. A direo do tratamento e os princpios de seu poder, in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1998.
52
Nome fictcio que guarda, no entanto, uma homofonia com as primeiras letras do nome do paciente em
questo justamente para se poder compreender o gancho da interveno clnica.
66
seguir sua movimentao utilizando este mesmo fragmento sonoro para nome-lo e para
designar cada ato seu:
Ta i sson, t! andando, Ta i sson, t! batendo, Ta i sson, t! fazendo
xixi, Ta i sson, t! cheirando, e assim por diante. Taisson produzia um ato e olhava
para mim, como que espera de minhas pontuaes.
Ao final da permanncia, Taisson parecia bem mais apaziguado. Quando voltou na
vez seguinte, mostrava uma movimentao j diferente, ainda dentro de um circuito, mas
ento mais organizado e menos atormentado. Aceitou, inclusive, tomar um banho de
mangueira onde se deixava molhar e depois saa correndo, rindo.
O caso de Taisson me levou a concluir que o momento da pergunta foi decisivo. E
foi necessrio. Foi o ponto de basta naquele deslizamento significante, foi onde se fez
possvel um efeito de significao. Para que eu pudesse me autorizar a seguir cantando
seus movimentos, era preciso a pergunta. Esta, trouxe cena o sujeito. Notem bem: foi uma
pergunta. O assentimento, a verdade produziu-se do lado do sujeito.
Gostaria de terminar deixando com vocs uma outra pergunta, que foi feita, certa
vez, por um menino psictico l do CAPSI, depois de ter cantarolado em seu atendimento
do re mi f f f...53:
-D, r, mi so msicas ou so letras?
BIBLIOGRAFIA:
Abreu, M. Notas sobre o objeto a. Indito. 2009
Caminhos para uma Poltica de Sade Mental Infanto-Juvenil. Publicao do Ministrio da
Sade. Editora MS. Braslia DF. 2005.
53
Trecho de Pastorzinho, cano folclrica brasileira.
67
- ______ O Seminrio, livro 3: As Psicoses, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
Resumo
54
Trabalho apresentado na mesa redonda sobre A Musicoterapia nos Palcos: Os Grupos Musicais, no XVI
Frum Estadual de Musicoterapia e VIII Jornada Cientfica de Musicoterapia do Rio de Janeiro. Set. 2010
55
Musicoterapeuta do municpio do Rio de Janeiro. Doutoranda e mestre em Psicologia pela UFF,
especialista em Musicoterapia. Psicloga. Coordenadora do curso de bacharelado em Musicoterapia do
CBM-CEU, supervisora de Estgio Integrado em Sade Mental, palestrante da rea empresarial. Consultora
de carreira em gerenciamento e planejamento nas reas da msica. [email protected].
56
Teoria criada pelo antroplogo francs Bruno Latour e desenvolvida pelos autores: Callon, Law, Mol
dentre outros.
57
Consideramos visibilidade a exposio musical em shows e a repercusso nas mdias. Conexes que no
eram engendradas em sade mental antes do incio deste movimento.
69
grupo musical Mgicos do Som58, no CAPS Usina de Sonhos, na cidade de Volta Redonda
(RJ). Este grupo tambm lanou CD, fez vdeo-clipe e ainda se apresenta. A reinsero
psicossocial, iderio da Reforma Psiquitrica 59, esteve presente nestas aes. Neste mesmo
cenrio, em 2001, no Centro Psiquitrico do Rio de Janeiro (CPRJ) surgiu o grupo
Harmonia Enlouquece (HE) que se constitui atualmente como o grupo musical de maior
repercusso e visibilidade deste campo. Todos estes grupos so compostos prioritariamente
por usurios de servios de sade mental e profissionais. O Harmonia Enlouquece j fez
apresentaes em vrios Estados do Brasil, shows em casas de espetculo de grande porte
(Caneco, Vivo Rio, Fundio Progresso etc). Outros grupos esto surgindo no cenrio da
sade mental. O Sistema Nervoso Alterado (SNA) do Espao Aberto ao Tempo (EAT)60 e o
coral Musicalidade Brincante, ambos do Instituto Municipal Nise da Silveira (IMNS),
tambm fazem apresentaes musicais. H ainda os blocos carnavalescos Loucura
Suburbana (do IMNS) que desfilou a primeira vez h 10 anos e o bloco T Pirando,
Pirado, Pirou, do Instituto Philippe Pinel (HPP). Ambos desfilam nas ruas prximas aos
servios e j mobilizam centenas de pessoas na poca do Carnaval.
Esta tese aqui apresentada um dos efeitos da pesquisa cartogrfica 61 realizada com
o grupo Mgicos do Som. Ela ganha consistncia a partir das reflexes e problematizaes
sobre as prticas musicais e musicoterpicas em sade mental. Discusso em que se
evidenciam controvrsias relacionadas Reforma Psiquitrica e outros modos de lidar com
a loucura. Por quais razes tais grupos musicais proliferam no campo da sade mental?
58
Em dissertao intitulada Cartografias de uma experimentao musical: entre a musicoterapia e o grupo
Mgicos do Som (UFF, 2007), Raquel Siqueira aborda a formao e o modo de funcionamento coletivo
criado nesta experimentao.
59
Movimento iniciado na Itlia que preconiza um atendimento ao usurio de servios de sade mental sem
violncia e segregao. Para saber mais sobre a Reforma Psiquitrica no Brasil ver AMARANTE, 1995, p. 57.
60
EAT; nome dado ao hospital-dia com funcionamento de CAPS onde ensaiam e se tratam os componentes
do SNA.
61
A cartografia, diferentemente do mapa, a inteligibilidade da paisagem em seus acidentes, suas
mutaes: ela acompanha os movimentos invisveis e imprevisveis da terra- aqui, movimentos do desejo -,
que vo transfigurando, imperceptivelmente, a paisagem vigente (ROLNIK apud SIQUEIRA-SILVA, 2007,
p.13).
70
Quais so os modos de composio de tais grupos? Que efeitos estes grupos produzem
naqueles que deles participam? Quais as conexes com a Reforma Psiquitrica?
Em campo, duas proposies nos balizaram: a) identificar as controvrsias que
agenciavam a visibilidade de tais grupos nas mdias e b) acompanhar os efeitos e conexes
da gerao de renda proporcionada pelas atividades desses grupos musicais. Escolhemos
estes dois fios condutores porque reconhecemos que ambos no pertenciam s prticas
musicais em sade mental antes do surgimento destes grupos.
62
Moraes (1998b, p. 51) sublinha que numa entrevista concedida em 1993, Latour prefere utilizar a palavra
actantes no lugar de atores para despir tal noo de seu cunho personalstico, subjetivista. Actantes so
coisas, pessoas, instituies que tm agncia, isto , produzem efeitos no mundo e sobre ele.
71
movimento a este surgimento de grupos musicais que ultrapassam o limite de seu Estado de
origem em shows pelo pas? Usurios, trabalhadores de sade mental, instrumentos
musicais, luzes, palco, composies, CDs, dinheiro...
Uma ontologia de geometria varivel afirma mltiplas entradas possveis. Penso ser
o princpio de simetria generalizada [...] uma conseqncia dessa ontologia de
mltiplas entradas e conexes. Trata-se de analisar simetricamente no apenas o
erro e o acerto, mas antes, todo e qualquer efeito das negociaes em rede, dentre
eles, a natureza e a sociedade. (MORAES, 1998b, p.5)
preciso que a antropologia absorva aquilo que Michel Callon chama de princpio
de simetria generalizada: o antroplogo deve estar situado no ponto mdio, de onde
pode acompanhar, ao mesmo tempo, a atribuio de propriedades no-humanas e
de propriedades humanas (LATOUR, 1994, p. 95).
63
Consideramos aqui traduo como um conceito que denota as transformaes que ocorrem advindas da
entrada de um novo actante na rede. A cada encontro a rede se reconfigura pelos efeitos que ele engendra.
64
Isto no quer dizer que o pesquisador seja um deus (LAW, 2004).
65
Termo referenciado ao conceito RIZOMA; sistema a-centrado que se espalha por todos os lados conforme
os agenciamentos que se produzem neste processo. Criado por DELEUZE & GUATTARI (2004, p. 32), aqui
utilizado pelo efeito de alastramento e contgio.
74
Concordamos com Latour (2008, p. 51) quando enfatiza a importncia da fala dos
atores mais do que a dos analistas, dos pesquisadores, quando referenciados a uma boa
descrio. No gostaramos de escrever nem de falar sozinhos, precisvamos da observao
e participao dos componentes dos grupos musicais. A pesquisa no propriedade do
pesquisador, nem deve ser ele o instrumento principal da ao. Os actantes falam por si e
co-habitam a pesquisa como co-autores. Latour (2008, p.212) incita a observao sem
interpretao e tampouco atribuio de sentido. Enfatiza que no se deve buscar um marco
que identifique um todo. Ele explicita que os actantes pesquisados so os mestres e que ns
aprendemos com eles (LATOUR, 2008, p.217).
Bibliografia
CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.
184p.
75
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: histria das violncias nas prises. Petrpolis: Vozes,
1977. 277p.
LAW, J. After Method: mess in social science research. Routledge: Taylor & Francis
Group, 2004.
LAW, J. & MOL, A. (1995) "Notes on Materiality and Sociality." The Sociological
Review, n. 43: 274-294, p.
LAW, J. Making mess with method. (2003). Documento eletrnico disponvel em:
http://www.lancs.ac.uk/fass/sociology/papers/law-making-a-mess-with-method.pdf
MELO, M. F. A. Q. Voando com a pipa: esboo para uma psicologia social do brinquedo
luz da idias de Bruno Latour. Tese de doutorado em Psicologia Social. Departamento de
Psicologia Social e Institucional. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
2006.
76
MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. USA: Duke University Press,
2002.
MOSTRA DE TRABALHOS
Este trabalho tem por objeto demonstrar o impacto da msica com enfoque musicoterpico
como fator de preveno e contingenciamento de problemas de sade ligados ao stress,
visando melhoria da qualidade de vida e promoo da sade de indivduos. A efetividade
teraputica da Musicoterapia vem sendo documentada ao longo de quatro dcadas no
Brasil, nos mais variados campos de atuao da rea da sade, dentre eles: reabilitao,
deficincia fsica e mental, gerontologia, geriatria, dependncia qumica, oncologia,
pacientes soropositivos (HIV), e no manejo do stress relacionado a diversas patologias.
Possui forte atuao em organizaes escolares, e tambm na atuao preventiva em
trabalhos com gestantes e neonatos. Ressalta-se a necessidade e a importncia de
profissional qualificado para que se alcance os resultados almejados, dado o potencial
iatrognico relacionado utilizao indiscriminada de sons. O papel do stress no sistema
nervoso autnomo e sua influncia na sade significante e bastante conhecido. A
psiconeuroimunologia nos ajuda a relacionar o fenmeno sonoro-musical com seus efeitos
no corpo, crebro e emoes. A Musicoterapia, por meio de aes preventivas e vivncias
musicais, pode reduzir o stress, estimular a atividade imunolgica, auxiliar na melhora da
auto-estima, facilitar a comunicao e as relaes interpessoais, e atuar como fator de
motivao e de mudanas internas, que podem refletir de forma positiva no indivduo e na
sua relao com o mundo. Na literatura especfica h referncias importantes a serem
consideradas, tanto na rea mdica como na Musicoterapia. Por meio de revises
bibliogrficas de autores como Cheryl Dileo, Suzanne Hansen, Julio de Mello Filho, Deise
B. Ferreira, dentre outros, pretende-se interpretar aspectos da relao entre o fenmeno
sonoro-musical, as emoes e o sistema imunolgico, com indicao da Musicoterapia
como possibilidade teraputica no tratamento do stress, incrementando os aspectos
resilientes do cliente. A Musicoterapia pode ser um poderoso auxiliar no dilogo mente-
corpo, em ajuda ao fortalecimento e harmonia da imunocompetncia do indivduo.
66
Graduada em Musicoterapia (Conservatrio Brasileiro de Msica RJ), Psicanalista
membro da SOBEPI Sociedade Brasileira de Estudos e Pesquisas da Infncia RJ,
Musicoterapeuta Clnica e Ps-Graduanda em Terapia de Famlia (Universidade Cndido
Mendes RJ)
Av. Sernambetiba, 3360, Bl. 05, Apt. 1401 Barra da Tijuca Rio de Janeiro RJ
Tel.: 021 2434-7336/9887-7808
e-mail: [email protected]
78
RESUMO:
Realizamos um grupo de musicoterapia semanalmente no ambulatrio de uma instituio
psiquitrica, o mesmo coordenado por uma musicoterapeuta e por uma psicloga.
Buscamos discutir tanto sobre nossa parceria de trabalho interdisciplinar quanto sobre a
dinmica grupal com pacientes psicticos, bem como a relao desses com a musicoterapia.
A clnica da Psicose
J em Freud percebemos a discusso sobre o tema das psicoses, esse buscou
delinear o campo da neurose e diferenci-lo do campo das psicoses, o que pode ser visto em
dois artigos de 1924. Em Perda da realidade na neurose e na psicose Freud retifica seu
primeiro artigo Neurose e Psicose, ao relatar que em ambas as estruturas ocorre uma
perda da realidade da qual o sujeito busca se defender. Tanto a neurose como a psicose
so, pois, expresso de uma rebelio por parte do id contra o mundo externo, de sua
indisposio ou, caso preferirem, de sua incapacidade - a adaptar-se s exigncias da
realidade (Freud, 1924, p. 206).
O mesmo distingue os determinantes do destino neurtico ou psictico no pela
tentativa de reparao, mas a partir do modo em substituir a realidade perdida. A neurose
no repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose repudia e tenta substitu-la (Freud,
1924, p. 207). O que caracteriza a neurose seria o recalque e o retorno do recalcado com o
67
musicoterapeuta formada pelo Conservatrio Brasileiro de Msica Centro Universitrio.
Musicoterapeuta do CAPS III Maria do Socorro Santos. Especialista em Sade Mental pela UFRJ nos moldes
de Residncia. 2 secretria na Associao de Musicoterapia do Estado do Rio de Janeiro (2008/2010).
[email protected]
68
Psicloga formada pela UFMG. Especialista em Sade Mental pela UFRJ nos moldes de Residncia. do
Centro Psiquitrico do Rio de Janeiro. Residente em Sade Mental pelo Instituto Municipal Phillppe Pinel/
UFRJ (2008/2010) [email protected]
79
Com este avano do que vem a ser o sujeito na clnica da psicose, bem como no
tratamento possvel pela psicanlise atravs do analista como testemunha do sujeito
psictico, pode-se refletir sobre a contribuio que esta clnica pode dar a um grupo de
psicticos. A especificidade da teorizao lacaniana sobre a psicose resulta na
recomendao de que o analista evite o excesso interpretativo e opere como testemunha e
garante do trabalho do prprio sujeito (TENRIO, 2001 p.27)
O Grupo de Musicoterapia
permanecerem no mesmo grupo, conjecturamos que talvez estivesse ligado ao fato dos
mesmos terem uma convivncia e intimidade muito grande fora daquele setting, no espao
grupal os mesmos tinham uma recusa em participar e apontavam aspectos da vida do outro
de forma pejorativa. Aps um processo, os dois conseguiram suportar o convvio no grupo,
partilhar canes, relatar histrias em comum de suas vidas, bem como se entenderem
melhor e respeitarem suas opinies. Algo da natureza daquele grupo pode se metaforsear
em prol de um melhor entendimento.
Vimos que o grupo com psicticos pode ser profcuo no sentido de possibilitar que
os pacientes compartilhem experincias peculiares natureza psictica. O dispositivo
grupal pode ser usado como uma estratgia de empoderamento ao favorecer a construo
de narrativas pessoais acerca de experincias e vivncias. Permitem a circulao e o
aprendizado individual e coletivo e o compartilhamento de formas individuais de
enfrentamento da doena.A continncia possvel porque essas comunicaes acontecem
em grupo, numa consulta individual seria impossvel o terapeuta comunicar ao paciente
uma vivncia psictica (LANCETTI: 1994, p. 158).
No grupo, as experincias e as msicas so compartilhadas por vrios pacientes,
alguns endereamentos no se remetem aos tcnicos e sim a outros usurios. Muitas vezes,
a mesma msica suscita lembranas distintas de acordo com a histria de cada um. capaz
de trazer memria eventos significativos, reviver acontecimentos do passado e ainda
partilh-los com o grupo. Para alm disso, acreditamos na possibilidade de elaborao no
prprio ato de cantar.
A msica um meio de empatia por excelncia. Quando cantamos uma msica
juntos, vivemos a mesma melodia, compartilhamos o mesmo centro tonal,
articulamos a mesma letra, nos movemos de acordo com o mesmo ritmo a cada
momento, a cada som, atravs de uma ateno mantida no outro e atravs de
esforos contnuos para permanecermos juntos, tornando-nos um na experincia
(BRUSCIA, 2000, p. 66).
acontece no Ambulatrio da instituio, j que estava de alta clnica e aguardava sua sada
para um Servio Residencial Teraputico (SRT).
importante ressaltar que sentimos dificuldades de entender o que o paciente fala,
dado o uso de inmeros neologismos. No entanto, atravs das msicas Alfredo se expressa
e todos do grupo podem acompanh-lo.
Em um primeiro momento, Alfredo sempre trazia a msica Minha tia (Roberto
Carlos e Erasmo Carlos):
Titia Amlia h quanto tempo a gente no se v/ Mas acredite eu me lembro
sempre muito de voc/ Eu no esqueo aquele tempo e a saudade me machuca/
Quando eu ficava em sua casa numa Vila da Tijuca/ Aquela sua comidinha eu
no encontro em restaurantes/ Eu j no fao a minha cama como antes eu
fazia/ E a minha roupa limpa tem um jeito de lavanderia/ Titia o meu endereo
uma grande confuso/ Estou morando atualmente dentro de um avio
Dessa forma, ele conseguia expressar algo singular, como a saudade de fatos da
vida cotidiana fora da internao. Em outro momento, a partir desta mesma cano pde
falar da dificuldade em sair do avio, o que atribumos ao seu processo de
desinstitucionalizao. Perguntamos para o paciente se seria possvel sair do avio para
conhecer o mundo l fora. Ele sorriu e respondeu que Roberto Carlos precisava fazer o
show por isso tinha que sair do avio.
Na ltima sesso em que Alfredo estava internado, ele pde expressar a vontade
de sair e o medo de enfrentar as dificuldades deste novo momento. Aps esse tema ter sido
abordado no grupo, Alfredo perguntou eu vou poder voltar aqui para cantar, tocar
instrumentos e falar dos problemas da casa e da rua? (sic).
O grupo tem o papel de acolher o sujeito e remet-lo para outro espao com o qual
deve se articular. O valor clnico deve residir nas articulaes que promove e no seu
pertencimento a uma instncia coletiva (VERTZMAN & GUTMAN, 2001). Nosso
trabalho tm sido de apontar para outro lugar fora da instituio e tambm delimitar um
espao em que possam voltar para o atendimento ambulatorial, onde seja oferecido a eles
um espao de escuta, suporte e acolhimento.
Ainda segundo Vertzman e Gutman (ibid), o paradigma da abordagem indireta do
esquizofrnico opera de modo a conferir a um determinado vnculo quando este se produz
uma abertura do sujeito para outras relaes. a articulao que produzir o sentido.
83
Marcelo apresenta diversas questes relativas medicao, interrompe seu uso, faz
ingesto de purgantes e laxantes para a eliminao das substncia denominadas por ele de
pioril. Esse fato contribui para a sua desorganizao e para a desestabilizao constante
de seu quadro. Nas sesses de Musicoterapia, faz uma espcie de colcha de retalhos
musical, onde emenda trechos de msicas costuradas pela associao entre elas. Marcelo,
na maioria das vezes, no comenta sobre o que canta. Parece que a msica no deflagra
associaes posteriores em seu caso, pois as associaes e a elaborao de questes
ocorrem em seu prprio discurso musical.
Ernani participa ativamente do grupo de Musicoterapia, muitas vezes como lder.
Trazia sempre as msicas Meu bem querer (Djavan) e Amlia (Ataulfo Alves e Mrio
Lago). Durante um longo perodo de tempo ressaltava aps cantar: - s a msica! e se
esquivava de qualquer tipo de interveno verbal.
Aps muitas sesses, Ernani conta que era noivo e no se casou porque percebera
que tinha desejo por sua noiva. Parece que ele coloca o amor como algo sagrado onde o
desejo no tem lugar. Ernani canta Meu bem querer/ segredo/ sagrado (...) e diz eu
surtei por amor, a primeira vez que eu me apaixonei eu surtei... (sic), continua: eu vou
cantar uma msica de uma mulher que no existe igual e canta Amlia. Tal msica
refere-se a uma mulher que no tem vaidade, que pode no ser desejada. Em contrapartida,
Marcelo cantou a mesma msica de seu jeito. Estava internado, nessa ocasio, porque
interrompera os remdios para poder fazer uso de medicamentos para disfuno ertil.
Marcelo deu outro sentido mesma msica, sua Amlia era diferente da que Ernani
cantava: ao invs de no ter a menor vaidade, esta tirava a calcinha e ficava vontade. A
mesma cano foi entoada por ambos. No entanto, cada um pde dar sentidos e
significaes diferentes ao que cantou.
84
Nesse setting grupal a funo do psiclogo tem sido tambm pensar em um espao
de reconstruo a partir dos significantes da histria de cada um, a despeito da foracluso
do Nome do- Pai. Alm disso, importante manobrar a transferncia de uma forma
estratgica, em busca de uma situao mais favorvel para o sujeito. Segundo Quinet:
manobrar a transferncia dirigi-la com o objetivo estratgico de barrar o gozo do
Outro que invade o sujeito na psicose. Quem faz essa manobra o analista pelo seu
ato e, como tal, ele no se deixa manobrar pelo paciente que o colocar, por
decorrncia da lgica da estrutura, sempre em posio de objeto de uma erotomania
mortfera. Para tanto, necessrio que o analista apreenda sempre em que lugar o
analisante o situa. Por intermdio de seu ato, o analista se contrape manobra do
analisante com uma outra manobra, para que este se instaure como sujeito e no
como objeto de gozo do Outro. (Quinet,1997 p.130).
As diferenas na escuta nesta parceria interdisciplinar possibilitam uma apreenso
ampliada da expresso do sujeito. Seja pela palavra, pelo corpo ou pela msica, o cliente
pode expressar sua subjetividade. A nossa funo no grupo acolher o que advm do
sujeito, oferecer nossa escuta; respeitar o tempo de cada um, assim como ajud-los na
organizao e no resgate de sua histria.
Por tanto, vimos que tanto a loucura como a msica so plenas de sentidos e
possibilidades. Atravs do dispositivo grupal, acreditamos ser possvel construir novas
formas de lidar com o sofrimento, em que o sujeito possa inventar novos ritmos de vida,
bem como outro modo de se relacionar com o outro e com a realidade externa. Percebemos
ainda que uma parceria interdisciplinar torna o trabalho rico e passvel de discusso.
Diferentes especificidades, olhares e escutas se afinam, se complementam em prol de uma
clnica que visa o sujeito.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
RESUMO:
Este estudo investigativo apresenta uma abordagem de vrias questes gerais
relacionadas s dificuldades cognitivo-musicais de pessoas adultas deficientes mentais
atendidas no Instituto de Psicologia Clnica Educacional e Profissional (IPCEP), no Rio
de Janeiro. uma pesquisa qualitativa, ainda em andamento, realizada na instituio
citada, numa parceria com o curso de graduao e ps-graduao em Musicoterapia
(Conservatrio Brasileiro de Msica Centro Universitrio), inciada em maro de
2010, com durao de dois anos, sob a coordenao de uma musicoterapeuta do IPCEP
e cinco estagirios de Musicoterapia. Atravs de um instrumento de avaliao (PAM
Perfil de Avaliao Musicoterpico), buscamos identificar um perfil de necessidades e
potencialidades de nossos clientes, baseados no iderio de R. Feuerstein (1989),
buscando novas estratgias de interveno em Musicoterapia, com enfoque cognitivo.
OBJETIVOS:
Elaborar um plano ou programa no qual as questes prticas de avaliao e
interveno musicoterpicas pudessem ser relacionadas aos estudos tericos das bases
cognitivas das dificuldades dos nossos clientes (50 indivduos adultos, alguns j
cronificados e aparentemente estagnados), na tentativa de ampliar suas possobilidades
e competncia social atravs de procedimentos de Musicoterapia nessa area.
. Rafael Lima estagirio do 4 Perodo de Graduao em Musicoterapia
69
Ana Sheila Tangarife. Docente do Curso de Graduao e Ps-Graduao em Musicoterapia (Conservatrio
Brasileiro de Msica Centro Universitrio) Supervisora de Estgios em Musicoterapia na Deficincia Mental,
Coordenadora da Clnica Social de Musicoterapia Ronaldo Millecco, Musicoterapeuta Clnica do Instituto de
Psicologia Clnica Educacional e Profissional (IPCEP),
. Marcella Velon estagiria de Ps Graduao em Musicoterapia
. Gloria Goulart estagiria do 6 Perodo de Graduao em Musicoterapia
. Ana Catarina Fiedler estagiria do 4 Perodo de Graduao em Musicoterapia
. Marcella Costa estagiria do 4 Perodo de Graduao em Musicoterapia
89
METODOLOGIA:
- Estudo bibliogrfico sobre o assunto.
- Elaborao do instrumento de avaliao (PAM, Tangarife, 2010)
- Aplicao do PAM a 50 indivduos.
- Reorganizao dos grupos de Musicoterapia `a luz da avaliao.
- Implementao da metodologia clnica em musicoterapia adequada aos grupos.
- Reavaliao final para verificar se a nova abordagem proposta alcanou bons
resultados ou no.
PRESSUPOSTOS TERICOS:
Nos baseamos nas formulaes tericas de Reuven Feuerstein (1989), que
apresenta o conceito de inteligncia humana como um constructo dinmico, flexvel e
modificvel. Para Feuerstein, qualquer ser humano, indepedente de sua etiologia, idade,
experincia ou contexto cultural desfavorecido est aberto ao que denomina
Modificabilidade Cognitiva Estrutural (MCE).
O autor prope um novo modo de pensar. Com uma proposta otimista porm
prtica e aplicativa com enfoque cognitivo, acreditando que as capacidades intelectuais
podem ser modificadas e ampliadas.Ao pensarmos na musicoterapia na rea da
deficincia mental, fundamentamos nossa investigao nos trabalhos do pedagogo e
pesquisador em Educao Musical, Swanwick (1986), que se baseou na obra de Piaget
(entre outros autores), sendo que a idia central de que o jogo caracterstica
humana fundamental e est unido a toda obra artstica. Swanwick e Tillman (1986)
elaboraram o Modelo Espiral de Desenvolvimeto Musical que um valioso aporte
esclarecedor e explicativo para a Musicoterapia.Tambem nos baseamos no trabalho de
Bruscia,K.(1991) sobre o Desenvolvimento Musical como fundamentao para a
Terapia.
BIBLIOGRAFIA:
BRUSCIA, K. O desenvolvimento Musical como fundamento para a terapia
Info CD room II Concebido e Editado por Aldridge, Universitad Witten Hercecke,
1999. Publicado primeiramente por Procedings of the 18th. Annual Conference of the
Canadian Association for Music Therapy, 1991, 2-10. Traduo de Barcellos, L.R.M.
Rio de Janeiro, 1999.
O crescente interesse da enfermagem pelo uso da msica para melhora do estado geral do
paciente, diminuio da dor, do stress e como facilitadora da relao enfermeiro-cliente visando a
humanizao do cuidado, levou-nos a investigar sobre a sua utilizao no cotidiano de cuidar. A
musicoterapia uma atividade exercida pelo musicoterapeuta. Assim, prticas que
utilizam-na como recurso, realizadas por profissionais da rea da sade, no deveriam
assim denominar-se.
Segundo Zarate & Diaz (2001), os musicoterapeutas recebem uma formao
diferenciada, tendo conhecimentos relacionados teoria e performance musical,
psicologia, anatomia e tcnicas de pesquisa. Acrescenta-se, aqui, disciplinas como
neurologia, psiquiatria e as que preparam os alunos para a emprego de tcnicas e
mtodos especficos da musicoterapia.
A definio de musicoterapia aqui adotada a da Federao Mundial de
Musicoterapia (Revista Brasileira de Musicoterapia, 1996):
70
Musicoterapeuta clnica. Doutora em Msica (UNIRIO); Mestre em Musicologia. Especialista em
Educao Musical. Graduada em Musicoterapia (CBMCEU) e Piano (AMLF -RJ). Coordenadora do
Curso de Ps-graduao em Musicoterapia. Professora e supervisora de estgios do Curso de Graduao
em Musicoterapia (CBMCEU). Coordenadora da Clnica Social de Musicoterapia Ronaldo Millecco
(CBM-CEU). Editora para a Amrica do Sul da Revista Eletrnica de Musicoterapia Voices (Noruega).
Editora da Revista Pesquisa em Msica. [email protected]
71
Mestre em Enfermagem pela UNIRIO. Aluno do curso de Ps-Graduao em Musicoterapia do
Conservatrio Brasileiro de Msica Centro Universitrio (CBM). Especialista em Estomaterapia pela
UERJ. MBA em Pedagogia e Psicopedagogia Empresarial pela ESAB. Enfermeiro de Pesquisa
Clnica do Hopital Barra D'Or. (Rio de Janeiro). Email: [email protected]
72
Grifo nosso.
93
73
Nursing Intervention Classification (NIC). Obra publicada originalmente pela Mosby, Inc., em 2000.
74
Music Therapy - Using music to help achieve a specific change in behavior, feeling, or physiology.
94
75
Professora do Mestrado e PhD em Musicoterapia e Diretora do Centro de Arts and Quality of Life
Research Center da Temple University, na Filadlfia (USA). Foi Presidente da World Federation of
Music Therapy (WFMT) e da National Association for Music Therapy. Atualmente a Business Manager
da (WFMT) e do Comit de tica da American Music Therapy Association (USA). a principal
pesquisadora do Estado da Pensilvania investigando Os Efeitos da Musicoterapia em Pacientes
Multiculturais Internados com Cncer ou Doenas Cardacas. apoiada pela Johnson and Johnson
(pesquisaem musicoterapia e HIV). uma das maiores autoridades mundiais em Musicoterapia e
Medicina.
95
76
Centro de Ateno Psicossocial.
77
Msica no gravada, mas, sim, executada ao vivo, no momento das apresentaes.
98
78
O referido artigo escrito por uma mdica, uma enfermeira doutora, uma enfermeira mestre, dois
acadmicos do Curso de Enfermagem e uma acadmica do Curso de Nutrio, todos da Universidade
Federal de Gois, uma das duas Universidades Federais onde existem Cursos de Bacharelado em
Musicoterapia.
99
Referncias
ALVES, M. A msica como prtica alternativa na integrao da equipe de enfermagem.
Rev Enferm Atual, p.35-40, set/out, 2001.
DILEO, Cheryl. (Org.). Music therapy and medicine: theoretical and clinical
applications. Silver Spring: American Music Therapy Association, 1999.
Resumo
Este tema prope a discusso de prtica musicoterpica com pessoas soropositivas.
Abre perspectiva do afeto como agregador ao lidar com as questes existenciais.
79
Musicoterapeuta do municpio do Rio de Janeiro. Doutoranda e mestre em Psicologia
pela UFF, especialista em Musicoterapia. Psicloga. Coordenadora do curso de
bacharelado em Musicoterapia do CBM-CEU, supervisora de Estgio Integrado em
Sade Mental, palestrante da rea empresarial. Consultora de carreira em gerenciamento
e planejamento nas reas da msica. [email protected]. Tel.: 9729 7971
102
80
Ambas so Bacharel em violino pela Universidade do Estado de Minas Gerais
UEMG. Especialistas em musicoterapeutas com formao no Conservatrio Brasileiro
de Msica CBM/ Rio de Janeiro. [email protected] [email protected]
103
81
Ambas so Bacharel em violino pela Universidade do Estado de Minas Gerais
UEMG. Especialistas em musicoterapeutas com formao no Conservatrio Brasileiro
de Msica CBM/ Rio de Janeiro. [email protected] [email protected]
104
82
Ambas so Bacharel em violino pela Universidade do Estado de Minas Gerais
UEMG. Especialistas em musicoterapeutas com formao no Conservatrio Brasileiro
de Msica CBM/ Rio de Janeiro. [email protected] [email protected]
105
Introduo
A partir dos atendimentos realizados nas enfermarias de crise do Instituto
Municipal Phillippe Pinel (IMPP), no ambulatrio, no Hospital Dia e no Caps durante
dois anos de Residncia Integrada em Sade Mental, foram despertadas em mim muitas
indagaes relacionadas a essa clientela e sua produo sonora.
83
Artigo baseado na monografia orientada por Bianca Bruno Brbara:
Ferrari, Pollyanna. A Musicoterapia em Sade Mental: A Msica como Discurso Possvel na Clnica
da Psicose. Monografia de concluso da Residncia em Sade Mental. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.
84
musicoterapeuta formada pelo Conservatrio Brasileiro de Msica Centro Universitrio.
Musicoterapeuta do CAPS III Maria do Socorro Santos. Especialista em Sade Mental pela UFRJ nos
moldes de Residncia. 2 secretria na Associao de Musicoterapia do Estado do Rio de Janeiro
(2008/2010). [email protected]
85
Sabemos que rigorosamente talvez se questione a meno ao discurso na clnica das psicoses.
Utilizaremos discurso como algo que o sujeito lana mo para falar de si para algum.
106
86
No se trata apenas de traduzir ou no algo de um idioma para outro. Quando se trata do discurso do
inconsciente, este pode ser considerado como uma outra lngua, cujo sentido no pode ser dado com
preciso e precisa estar em suspenso.
109
Viana (1998, p.28) entende msica como linguagem, porque capaz de gerar
sentidos e produzir subjetividade. No se trata de conferir poderes mgicos msica.
Viana (ibid) adverte que se atribuirmos essa funo de ressignificao do mal estar do
sujeito msica especificamente teramos um universo de compositores e msicos em
estado de graa imunes ao sofrimento psquico. Tambm no se trata de qualquer
msica, mas sim das manifestaes sonoro-musicais utilizadas no setting
musicoterpico.
Para Viana, a concepo psicanaltica da Musicoterapia est centrada na
transferncia que o cliente estabelece com o terapeuta, na suposio de um saber deste
sobre seu sofrimento. Nesse caso, afirma que a msica ir provocar os mais diversos
efeitos, enquanto objeto intermedirio, no como agente da transferncia, pois este s
poder ser um sujeito propriamente dito.
A dimenso discursiva das manifestaes sonoro-musicais se d pelo
endereamento ao terapeuta, pela escuta do mesmo e ainda pelas possibilidades de
elaborao, de associao e de ressignificao que a msica oferece na clnica.
Ressignificar implica encontrar novos sentidos, o que s ocorre atravs da linguagem. O
humano considerado, no presente trabalho, inerentemente atravessado pela linguagem,
o que marca a sua constituio. Assim sendo, a dicotomia verbal e no-verbal perde
muito a importncia que lhe atribuda (VIANA, 1998, p.28).
Na Musicoterapia, segundo Barcellos (2008, p.28), a narrativa do paciente est
ancorada na sua histria de vida, clnica e sonoro/musical, que
contada/tocada/encenada para algum, para expressar seu mundo interno e tendo o
musicoterapeuta na escuta, dando-lhe suporte, interagindo ou fazendo intervenes
necessrias para facilitar o desenvolvimento do processo teraputico.
Tomamos a msica como discurso na clnica musicoteraputica pois algo que
o cliente pode recorrer para falar de si. atravs do discurso, na relao
cliente/terapeuta, que se atualizam questes relevantes ao processo teraputico.
Segundo Sampaio (1995, p.22), o discurso musical pode ser analisado tanto no sentido
sintxico, ou seja, como os signos se combinam entre si, como no que diz respeito s
110
folclrica, o cliente consegue expor suas feridas. Dessa forma, o sujeito encontra uma
nova organizao para os sentidos percebidos na sesso.
Entendemos que a composio, assim como a improvisaao, tambm funcionam
como clarificadoras do mundo psquico. No entanto, nesses tipos de experincias
musicais, o cliente precisa se implicar de outra forma, j que, dessa vez, no recria algo
de outrem, mas expressa algo indito, criado na sesso.
A improvisao e a composio so muito parecidas, j que ambas so criadas
no processo musicoteraputico. A composio preparada e pode ser repetida em outro
momento, diferentemente da improvisao. No Dicionrio Aurlio Buarque de
Holanda (2004) o verbo improvisar definido como:
1. Fazer, preparar ou inventar s pressas, sem plano ou
organizao prvia. 2. Falar, escrever ou compor de
improviso. (...)
Caso de Gerson
Gerson teve quatro internaes no IMPP at hoje, sendo todas elas por perodos de no
mximo seis dias. Tem como hiptese diagnstica de Esquizofrenia Paranide (F20.0
CID-10).
Nas sesses, criava msica abordando temas de seu cotidiano, fazia colagens
com outras msicas existentes em seus improvisos e levantava questes importantes
para ele. A loucura aparece freqentemente como tema de suas canes e indagaes
como em
Por que que eu sou maluco?/ [por que ser?] / Ser que a gentica? / ser que social?
/ser que a esttica? / ser que natural?/ser que o ambiente? / Por que que eu sou
maluco? / (...).
Em uma sesso faz a seguinte cano:
(...) eu tenho medo. Segredo (...) Hoje tenho em mim/ A paisagem torta, morta/ A
minha sombra no se v na escurido, no se v, no!(3x)/ (...) / So os olhos cegos, os
ouvidos dos surdos/ um olhar morto, um destino torto, a minha sombra/ (...) /
um olhar morto, um falar calado, um andar sem andana / um brao, um abrao
sem lembrana, a minha sombra. /(...) /A nica coisa que resta a sombra/ uma
paisagem morta e ferida/ (...)No, minha sombra no se v na escurido (3x).
Pergunto se ele quer comentar e G. responde no... j est dito (sic). A morte
uma marca na vida de Gerson. So recorrentes os sonhos com pessoas que j faleceram,
como sua me, seus irmos e seu pai. Tal situao o deixa angustiado, pois tem a
impresso de que est convivendo com eles novamente e quando acorda, est sozinho.
uma ruptura, fica um buraco. Eu no sei se melhor lembrar ou esquecer... (sic).
Faz a seguinte cano: Esqueci minha memria/em qualquer lugar num canto/ (...) /
no consigo me lembrar/ a hora que eu vou dormir/ a hora de acordar/ a hora de me
deitar/ (...) / esqueci minha memria no computador/ esqueci minha memria num canto
qualquer.
Gerson recorda que no chorou em nenhuma dessas perdas, pois no consegue.
Proponho que ele cante esse sentimento e Gerson faz a seguinte cano: Quero
inventar uma palavra / uma palavra leve, uma palavra breve/ quero inventar uma palavra
que no seja dita/ que contenha minha emoo/ quero inventar uma palavra/ que venha
do corao/ quero inventar uma palavra pra aliviar a minha dor (2x) No final, comenta
essa coisa tnue que minha emoo, fiz a juno, tentei cantar uma expresso ou
contar uma necessidade, tentei cantar uma inteno, criar uma cano ou formar uma
116
palavra, uma expresso, uma frase, uma orao. Gerson termina dizendo que s vezes
melhor o silncio.
No final da sesso, peo que Gerson escolha uma palavra para encerrar e ele diz
obrigado. Gerson comea a tentar mencionar o que sentia, em seus improvisos, fala
de tais perdas, d nome a elas inclusive cantando. Para ele, a msica tem a funo de
emprestar contorno.
A sua existncia sempre aparece como questo nas sesses.
Eu no penso (2x) / mas sei que eu existo/ eu no sou cartesiano/ (...) / de uma forma
ou de outra/ quando penso no sou/ quando sou eu no penso/ (...) qual a situao da
criana com psicose de nascena/ como que ela pensa? (2x) / o nome da minha
existncia meu pensamento/(...) eu no sou daqui/ eu no tenho nada/ (...) / o que no
, no / mas isso to normal ser anormal.
Pergunto em relao ao que cantou eu no sou daqui e Gerson responde que
no da instituio, em seguida diz sou e no sou (sic). Logo continua em um
improviso. O que eu quero voltar pro lugar/ mas que lugar esse? Qualquer lugar/
(...) quero voltar pra mim (5x) / (...) se eu no sou normal?/ o que ser normal?
O seu lugar na instituio est sempre sendo abordado por Gerson, como na
cano: Desculpe-me a minha subverso/ Eu s desejo um novo sentido/ para a nossa
contramo. Sobre essa cano disse que o compositor estava buscando um novo
caminho, pois onde ele est no est bom. Gerson diz que no consegue pensar em
outras possibilidades alm do hospital e muda logo de assunto.
Gerson canta sobre a necessidade de sair do lugar. Entendemos essa mudana
de lugar subjetiva, para alm de sair do hospital. As possveis interpretaes sobre sair
do lugar parecem ser reveladas em seu comentrio. No sair totalmente. Eu preciso
daqui, porque tem algumas coisas que eu necessito. O trabalho que est sendo feito
agora, por exemplo. Houve muita mudana (sic).
Gerson afirma que percebe quando est saindo do controle e logo o retoma. Fez
um samba: Eu no quero confuso/ no gosto de estar confuso/ eu no sou parafuso/
pra viver enroscado/ nem barbante pra viver enrolado/.
Gerson sempre traz temas relacionados existncia e a vivncia do tempo, o que
se apresenta como impasse para o psictico. Parece que o tempo uma questo para ele,
o que aparece de diversas formas, como pela sua dificuldade em encerrar a sesso.
Normalmente protela o fim da mesma afirmando que tem muito a cantar e a dizer.
117
Talvez eu seja eu (3x)/ Sou o que sou (2x) /Sou um qualquer/ sou qualquer um/ Eu sou
eu mesmo/ Talvez eu seja eu/ Se eu no sou eu/ mas sou o que (no) sou/ se eu no sou
eu/ Talvez eu seja eu/ Sou o que sou/ Se sou no sou/ (...).
A respeito desse ltimo verso, Gerson recorda o que sua me lhe disse na
ocasio da morte do irmo. Aps a composio de Identidade, Gerson cantou pela
primeira vez uma msica que no foi composta por ele. Sou brasileiro de estatura
mediana/ Gosto muito de fulana, mas sicrana quem me quer (Lero lero Edu Lobo).
Demonstrou dificuldade em cantar algo feito por outra pessoa, dizendo que exigia uma
organizao que vem de fora, diferente da dele. No entanto, aparece no trecho que
cantou da msica de Edu Lobo uma delimitao de pertencimento em sua busca por
alguma significao subjetiva.
Faz o baio:
penso, penso, cheguei concluso que jamais penso/ (...) / Fui pensado algum dia,
mame queria que eu nascesse de bacia/ Penso, penso/ cheguei a concluso que eu j
pensava quando no existia/ (...).
A dificuldade de se diferenciar do outro pode ser apontada na cano acima.
Gerson mostra-se as voltas com esse tema, com indagaes sobre at onde vai o outro.
Mostra que vivencia essa no diferenciao do outro com angstia. Segundo Quinet
(2006), na parania a imagem do Outro funciona como uma espcie de mais um do
organismo que unifica seu corpo. Gerson em alguns momentos mostra-se sentir
invadido pelo outro, sem consentir, o que nos leva a pensar em uma hiptese
diagnstica de parania.
Gerson chega sesso e diz, hoje voc vai me dizer o tema que eu vou
improvisar e eu digo O outro.
Eu mesmo sou o outro/ porque o outro sou eu/ o outro que para o outro outro/ que
(no) sou eu/ mas eu sou eu pra mim/e um para o outro/ E o outro ele para ele/ um eu
que um outro/ o que no sou eu/ apenas outro/ mas mesmo que fosse outro/ eu sou eu
mesmo para mim/ sempre eu/ e um outro sempre outro/ talvez nunca deixe de ser ele/
Quando no outro pra si mesmo/ mesmo que o outro represente a imagem
significativa de mim/ nunca deixar de reconhecer um eu que eu em si mesmo/ sempre
outro em si mesmo/por quanto que para si/ se sabe ser eu ou ele/ um outro que no
outro/ quando em si mesmo se torna outro/ sem que em si mesmo seja reconhecido por
si.
Gerson na semana seguinte me perguntou voc escolheu aquele tema de
propsito? Porque no sai da minha cabea. (sic). Na sesso, Gerson improvisa:
119
Minha cabea est na sua cabea (...). Em outro momento, me encontra no corredor e
me pergunta se eu estou sentindo como seu corao est doendo.
Na relao do psictico com o outro no h mediao, o que ocorre pela a dificuldade
do sujeito de situar-se no registro simblico. Acreditamos que a msica em
Musicoterapia pode ter essa funo de mediao na clnica da psicose.
Gerson afirma que precisa dar um n forte em seu discurso. Ao lhe perguntar como,
Gerson responde atravs da marcao, do ritmo, de uma ncora que me organize (sic).
Para comear o seu improviso, Gerson me pede para tocar algum ritmo no violo.
Parece que o que Gerson pede um enquadre, um contorno que pode ser feito atravs
da msica. As variaes meldicas e o retorno para um tema principal so constantes
em seus improvisos, como se criasse um refro parecendo tambm auxiliar nessa
organizao, ancoragem e contorno que ele relata.
Diz que se sente melhor quando canta. Afirma que para ele mais fcil fazer
msica quando algum o acompanha. Parece que minha vida toda passa na minha
cabea nesse tempo aqui (sic). Em um trecho de uma carta endereada a mim, Gerson
fala sobre os desdobramentos da musicoterapia:
(...) O resultado do que tem sido feito pode no agradar aos outros; mas quanto a mim
at ento tem preenchido algumas lacunas e podado algumas arestas que certamente
so necessrias serem podadas. Estou mais confiante de minhas capacidades no em
termos artsticos, mas como pessoa humana que sou que prima por respeito e pede ou
solicita to somente ser respeitado, no que tange a dignidade de carter, moral e ao
pudor, valorando o trabalho caracterizando a cultura que est um tanto quanto perdida
por interesses que valoram a alienao da identidade de nossa semelhana(...).
Consideraes finais
O humano inerentemente atravessado pela linguagem, o que marca a sua
constituio. A precocidade da experincia sonora faz com que o som e a voz
desempenhem um papel fundamental na aquisio da linguagem e na constituio do
sujeito. Falar em msica como discurso implica necessariamente em considerar a
msica como linguagem, capaz de gerar sentidos e produzir subjetividade.
A dimenso discursiva das manifestaes sonoro-musicais se d pelo
endereamento ao terapeuta, pela escuta do mesmo e ainda pelas possibilidades de
elaborao, de associao e de ressignificao que a msica oferece na clnica.
Ressignificar implica encontrar novos sentidos, o que s ocorre atravs da linguagem.
120
Tomamos a msica como discurso na clnica musicoteraputica pois algo que o cliente
pode recorrer para falar de si. atravs do discurso, na relao cliente/terapeuta, que se
atualizam questes relevantes ao processo teraputico.
A Musicoterapia oferece recursos sonoro-musicais como linguagem facilitadora da
comunicao e do estabelecimento da relao terapeuta-cliente(s). A linguagem musical
audio musical, execuo de instrumentos e entoao de canes - possui um lugar
na cultura e pode ser compartilhada, em oposio ao discurso incoerente que marca a
loucura, o estigma e segregao do indivduo dissociado.
A partir do referencial da psicanlise, psicose entendida como uma estrutura
clnica, como um modo particular de funcionamento. O psictico apresenta dificuldades
em se relacionar, muitas vezes sente-se ameaado pelo mundo externo, que se apresenta
de forma invasiva para ele, o que, em grande parte das vezes, pode acarretar em um
quadro de isolamento. A msica e os intrumentos musicais passam a intermediar essa
relao supostamente ameaadora, proporcionando acolhimento e despertando a
possibilidade de se relacionar com o outro de outra forma.
A possibilidade criativa e inventiva de se expressar atravs de melodias e de
letras j compostas ou criadas na sesso possibilita ao cliente falar de si de uma forma
mais branda, menos ameaadora. Alm disso, a msica tem propriedades como a
marcao rtmica, que pode dar um contorno a corpos facilmente invadidos por
estmulos sensoperceptivos e pode funcionar como elemento reorganizador. Esse ponto
merece ser estudado de maneira mais aprofundada a fim de esmiuar o que podemos
apenas apontar empiricamente.
A msica nas sesses de Musicoterapia tambm pode facilitar a narrativa de
experincias prprias da condio psictica. Alm disso, nesse processo, o prazer
envolvido na produo, pode facilitar um deslocamento do papel de doente. A msica
pode deflagrar associaes posteriores ou as associaes e a elaborao de questes
podem ocorrer no prprio discurso musical.
O trabalho clnico da Musicoterapia em Sade Mental consiste em oferecer a
possibilidade de construo de narrativa, onde o cliente pode compartilhar sua histria,
ressignific-la atravs do discurso musical, na relao teraputica. O tratamento
musicoteraputico contribui para a (re)insero do sujeito na cultura, para a
estabilizao do quadro psicopatolgico, assim como facilita a aderncia ao tratamento
e contribui para a melhora da qualidade de vida. Na clnica da psicose, a msica como
121
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
FREUD, Sigmund. Neurose e Psicose (1924). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
Este trabalho tem como foco investigar os efeitos clnicos do dispositivo Oficina
de Msica, no CAPS Rubens Corra, em sua ao teraputica e como espao de criao
e apropriao coletiva. Discutirei tambm relao dos usurios com a dinmica da
oficina, a funo do coordenador e como oficina se agencia com outros equipamentos
culturais e educativos.
87
Especializao em Sade Pblica ENSP (FIOCRUZ), Cursando. Especializao em Cincia,
Arte & Cultura na Sade IOC (FIOCRUZ), Cursando. Graduado em Psicologia - (Bachareladoe
Licenciatura). Trabahos no CAPS Rubens Correa, Casa de Sade Saint Romain e Hosp. Central da
PM.
124
A proposta para esta roda de conversa surge dos questionamentos e desafios encontrados no
projeto de pesquisa realizada na Escola de Msica da UFRJ com pessoas com transtorno
mental. Estas pessoas participam do programa do hospital-dia do Instituto de Psiquiatria da
UFRJ. No projeto realizado na Escola de Msica, os pacientes participam de aulas de
musicalizao criadas especialmente para este grupo. Este projeto prope criar um espao
pedaggico fora dos muros do hospital psiquitrico, facilitando a (re)insero social destas
pessoas. A Reforma Psiquitrica, como outros movimentos, impulsionam o
desenvolvimento de polticas sociais que buscam a incluso social e o acolhimento da
diversidade humana. A msica tem sido utilizada neste processo seja atravs da
musicoterapia, da educao musical e de projetos artsticos-culturais. As principais questes
de que gostaramos de discutir nesta roda de conversa so: 1. Como a Educao Musical
pode contribuir com o movimento da Reforma Psiquitrica? 2. Quais mudanas o
aprendizado musical traz para pessoas com doena mental? 3. Como assegurar um ensino
de msica para pessoas com doena mental em que se enfatize a capacidade musical do
aluno e o indivduo como um todo e no a doena mental? 4. Como amenizar o estigma da
figura do louco e assegurar o desenvolvimento deste programa em uma escola de msica
tradicional? 5. De que modo msicos, musicoterapeutas e educadores musicais podem
desenvolver estratgias de ao que permitam a (re)insero social de indivduos com
transtorno mental?
88
Pesquisa realizada com os seguintes alunos da graduao e ps-graduao da Escola de Msica da
UFRJ
89
Professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro do departamento de Musicologia e
Educao Musical; trabalha no desenvolvimento do programa de educao musical nas necessidades
educacionais especiais. Bacharelado em Musicoterapia pelo Conservatrio Brasileiro de Msica,
especializao em Sade Mental pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, mestrado em Terapias Expressivas
pela Lesley College e doutorado em Educao Musical/Musicoterapia pela University of Miami.
Atualmente desenvolve pesquisa em educao musical com pacientes do Instituto de Psiquiatria (UFRJ);
formao Nordoff-Robbins e incompleta no Mtodo Bonny de Imagens Guiadas.
125
90
Clnica Arte & Sade Musicoterapeuta Clnica. Rua Luis Mrcio Teixeira, 1619
Bag, RS. Telefone 53- 3242 6210 / 9945 0137 E-mail: [email protected]
Graduada em Msica pela Urcamp. Especialista em Musicoterapia pelo CBM/CEU.
Mestre em Educao pela PUC-RS. Aperfeioamento em Sade Mental do Beb pelo
Instituto Leo Kanner Porto Alegre/ Sorbonne- Bobigny-Paris. Musicoterapeuta na
Clnica Arte &Sade e na UNIMED Regio da Campanha/ Bag. Professora convidada
da UNIBB/ Pelotas,RS.
91
Convidado da UNIBB. Rua Santo ngelo, 1032, Laranjal Pelotas,RS
Telefone 53 - 9981 1200 E-mail: [email protected]
Mestre e Doutor em Filosofia da Educao. Docente em Cursos de graduao e ps-
graduao. Atuou por muitos anos na Universidade Catlica de Pelotas, UCPel.
92
UNIBB Coordenadora. Rua Santa Tecla, 583 Sala 301 Pelotas, RS
Telefone:(53) 3225 6164. E-mail: [email protected]. Psicloga Psicanalista.
Docente no Curso de Psicologia na UCPel. Doutoranda em Lingstica. Idealizadora,
fundadora e coordenadora da UNIBB
93
Proprietria do centro cultural Smart Way e Professora de Ingls e Italiano. Doutora
em lingstica, glotodidtica pela faculdade de Pisa Itlia. Professora convidada da
UNIBB. Rua Princesa Isabel, 163 Telefone (53) 8114 2754 E-mail:
[email protected]
Psicloga Psicanalista. Docente no Curso de Psicologia na UCPel. Doutoranda em
Lingstica. Idealizadora, fundadora e coordenadora da UNIBB
126
94
Clnica Arte & Sade Musicoterapeuta Clnica. Rua Luis Mrcio Teixeira, 1619
Bag, RS. Telefone 53- 3242 6210 / 9945 0137 E-mail: [email protected]
Graduada em Msica pela Urcamp. Especialista em Musicoterapia pelo CBM/CEU.
Mestre em Educao pela PUC-RS. Aperfeioamento em Sade Mental do Beb pelo
Instituto Leo Kanner Porto Alegre/ Sorbonne- Bobigny-Paris. Musicoterapeuta na
Clnica Arte &Sade e na UNIMED Regio da Campanha/ Bag. Professora convidada
da UNIBB/ Pelotas,RS.
128
Propomos apresentar neste Frum o andamento de uma pesquisa que ser finalizada
como um trabalho de concluso de curso da especializao de Sade Mental. Neste
momento, encaminhamos apenas o projeto, pois o trabalho est em andamento. A
pesquisa consiste em pensar teoricamente diferentes espaos de musicoterapia. Um
deles um grupo de convivncia que ocorre no ptio do Pinel e o outro um grupo de
acompanhamento ambulatorial. A principal caracterstica do grupo do ambulatrio a
de acompanhar pacientes psiquitricos de longo percurso de acompanhamento
psiquitrico que esto na maior parte dos casos, estabilizados, enquanto o grupo do
ptio consiste em privilegiar o acolhimento do paciente em estado de crise.
Acrescentamos que o grupo do ptio um espao mltiplo, que oferece outras propostas
teraputicas em paralelo, como um espao de trabalhos manuais e tambm de
organizao e preparao para eventos comemorativos. Observamos que a msica
proporciona uma integrao entre participantes que, sem ela, pareceria impossvel.
Acreditamos que a msica um modo peculiar de falar de si, e cant-la pode favorecer
processos elaborativos e a criao de novos sentidos para a vida. Neste contexto, vemos
que a msica pode ocupar diferentes funes nestes espaos, como recurso teraputico,
como mediador de laos, como modo de expresso, ou mesmo apenas como um
instrumento de acalantar. Esta uma das questes que trataremos no decorrer deste
trabalho.
95
Formao de Musicoterapeuta no Conservatrio Brasileiro de Msica, formao de psicloga na
Universidade Federal Fluminense. Especializao em moldes de Residncia de Sade Mental como
musicoterapeuta em [email protected]
96
Psicloga formada pela UERJ, Residente em Sade Mental pela UFRJ.
97
Especialista em Teoria e Clnica Psicanaltica e psicloga. Trabalhou no INSS (Instituto Nacional de
Seguridade Social), Banco Real (ABN AMRO-bank), desempenhando as funes de coordenao,
treinamento e motivao de equipes. Tutora da FGV Online, na rea de gesto de pessoas. Psicloga
(estgio profissional) no Instituto Municipal Phillippe Pinel.
129
98
Musicoterapeuta graduado pelo CBM-CEU. Musicoterapeuta do CAPSII Ernesto Nazareth. Docente
do curso de graduao em Musicoterapia (CBM-CEU)
130
Resumo
Este trabalho tem por objetivo fazer uma articulao da musicoterapia com a
musicologia, que tericos da musicoterapia contempornea consideram importante para
a ampliao dos cnones da rea, contribuindo para melhor emprego da msica como
terapia e para o desenvolvimento de processos teraputicos. Para compreender a msica
como terapia necessrio uma compreenso musical do processo teraputico. Sem
esta, a musicoterapia pode se manter num estgio emprico e mstico. Para essa
compreenso so necessrias formao musical e intimidade com aspectos musicais
como apreenso do repertrio musical de todos os tipos e tempos, at conhecimento dos
aspectos da estrutura musical como conceitos que contribuam para melhor anlise da
msica que o paciente ouve ou re-cria. Dentre estes conceitos esto os de condio
convergente e divergente (Gagnon e Peretz, 2003), resultantes de experimentos
controlados para investigar, numa situao de escuta, as respostas de indivduos no-
msicos a um conjunto de melodias para determinar a contribuio do modo e
andamento para mobilizao da alegria e tristeza, considerando-os como aspectos que
determinam estas emoes. Apresenta-se e discute-se a importncia e contribuio
destes conceitos para a musicoterapia tanto receptiva como interativa com pacientes
msicos e no-msicos, ilustrando-se com exemplos clnicos, considerando que a
msica pode ser um meio ideal tanto para estudar a cognio como emoes que por ela
podem ser mobilizadas.
99
Palestra proferida no XVI Frum Estadual de Musicoterapia e VIII Jornada Cientfica de
Musicoterapia. Rio de Janeiro, setembro, 2010.
100
Musicoterapeuta clnica trabalhando na rea de Doenas Renais Crnicas (crianas em
dilise). Doutora em Msica (UNIRIO); Mestre em Musicologia. Especialista em Educao
Musical. Graduada em Musicoterapia (CBMCEU) e Piano (Academia de Msica Lorenzo
Fernndez), e Formao no Mtodo Bonny de Imagens Guiadas e Msica GIM (USA em
curso). Coordenadora, professora e supervisora de estgios do Curso de Ps-graduao em
Musicoterapia e professora e supervisora de estgios de musicoterapia em sade mental do
Curso de Graduao em Musicoterapia (CBMCEU). Coordenadora da Clnica Social de
Musicoterapia Ronaldo Millecco (CBM-CEU). Parecerista e Editora para a Amrica do Sul da
Revista Eletrnica de Musicoterapia Voices (Noruega). Editora da Revista Pesquisa em
Msica (CBM-CEU). Trabalhos publicados no Brasil, Argentina, Frana, Espanha, Alemanha,
Estados Unidos e Noruega. Livros publicados. Membro da Comisso Cientfica da Associao
de Musicoterapia do Rio de Janeiro (AMT-RJ). Membro do Conselho Diretor da World
Federation of Music Therapy e Coordenadora da Comisso de Prtica Clnica por dois
mandatos. E-mail: [email protected]
131
para se entender por que a msica utilizada como elemento teraputico, deve-
se ter uma compreenso musical do processo teraputico. Se no tivermos
essa compreenso, a musicoterapia permanecer no seu estgio emprico e
mstico (...) (1982, p.1).
101
Aqui entendida como teoria da msica.
132
Ansdell ainda se refere questo da anlise musical como sendo uma das formas
de apoiar e desafiar a musicoterapia a um crescimento intelectual (ibid).
J o musicoterapeuta Colin Lee (2003) considera que para se avaliar o papel da
msica em musicoterapia necessrio estar preparado para utilizar teorias de anlise
musical, mesmo que estas sejam vistas como parte da musicologia tradicional. Lee
explica que a musicoterapia tem que levar em conta as engrenagens do contedo
musical em relao aos efeitos teraputicos, o que significa examinar em detalhe a
notao musical e escutar acuradamente. Considero que seria mais do que isto, ou seja,
o musicoterapeuta alm de observar as questes musicais, deve fazer uma articulao
destas com as condies de vida, clnicas e sonoro-musicais do paciente, e levar em
conta o contexto no qual a msica acontece.
Ainda se referindo compreenso da engrenagem da msica, Lee afirma que s
atravs de uma anlise detalhada ns comearemos a entender como a msica funciona
(2003, p. 16), embora tenha a conscincia e o bom senso de declarar que no se pode
pretender que a anlise musical v trazer hipteses universais sobre os efeitos da msica
102
Essa nova musicologia ou musicologia ps-moderna ope-se teoria da msica (nfase
na estrutura da obra) e velha musicologia (nfase no cnon da msica erudita europeia),
propondo-se a lidar com aspectos sociais, polticos e ideolgicos.
133
103
Na musicologia, a transdisciplinaridade emerge da constante preocupao por alternativas
que permitam a elaborao de um discurso musicolgico que transcenda as fronteiras da
prpria disciplina, sem abandonar as especificidades tcnicas da linguagem musical.
134
104
Do Centro de Pesquisa do Envelhecimento (Quebec).
105
Neuropsicloga belga professora de psicologia na University of Montreal e do Laboratrio de
Neuropsicologia da Msica e da Cognio Auditiva dessa universidade.
135
inteiros que pode criar neutralidade (p. 29). Tambm foram compostas, depois de
vrios estudos pilotos, e utilizadas isoladamente, sequncias em andamentos rpidos e
lentos. Os sujeitos da pesquisa consideraram as sequncias musicais escritas no modo
maior mais alegres do que as sequncias no modo menor. Da mesma forma, fragmentos
musicais com andamento rpido ou lento foram tambm considerados alegres ou tristes,
respectivamente. Os resultados apontaram para respostas que evidenciam que,
separadamente, o andamento lento evoca tristeza e o rpido, alegria. Quanto aos modos,
as autoras encontraram respostas de tristeza para o modo m e alegria para o modo M, o
que j foi constatado pelo senso comum.
Posteriormente, estes aspectos foram combinados em condies experimentais
distintas, em melodias controladas, da forma a seguir:
Condio 1- denominada condio convergente, com o objetivo de evocar uma
mesma emoo:
- Uma situao de escuta pode ser adequada a uma situao de produo: criao
ou recriao?
- Em que circunstncias isto pode ser adequado produo (criao) de pacientes
no msicos na medida em que os mesmos no tm condies de lidar, por exemplo,
com as duas possibilidades de utilizao dos modos?
Para responder a essas questes vou partir da minha prtica, iluminando duas
situaes clnicas muito diferentes em vrios aspectos. A primeira, ilustrada com a
produo (improvisao/composio) de um paciente com formao musical anterior ao
atendimento em musicoterapia; e, a segunda, apresentando a produo (composio) de
um paciente sem nenhum contato formal com msica, antes do tratamento
musicoterpico. Os dois esto aqui caracterizados para melhor compreenso.
norte-americana quando sofreu o acidente, sua vida profissional foi interrompida e ele
passou a se manter exclusivamente com uma parca penso do INSS. Pressionada por
sua mulher, que j estava consciente das dificuldades de sua reabilitao, comecei a
trabalhar com C..
O acidente ocorreu quando C. tinha 26 anos e como nunca deixara de tocar, tinha
a memria musical preservada. Ele tocava as msicas em todos os instrumentos que
estudara pois, alm da formao, era muito musical.
Na primeira sesso (28/4/89)107 C. solicitou que eu o acompanhasse ao piano e
comeou tocando uma mesma msica ora num instrumento, ora em outro, em diferentes
tonalidades, transportando com facilidade e resolvendo naturalmente os aspectos
musicais. Tambm passava de um instrumento para outro tocando as mesmas msicas
nas mesmas posies, o que me fazia transportar para uma 5a abaixo ou acima,
dependendo do instrumento que tocava primeiro.
As msicas que tocava eram repetidas vrias vezes. Assim, tudo era previsvel e
familiar para ele. Percebi, ento, que deveria lev-lo a novas experincias musicais,
improvisar ou compor, para que conseguisse lidar com situaes novas. Mas C. era
resistente ao novo. Num determinado momento, enquanto tocava viola, sugeri que ele
criasse alguma coisa. Ele improvisou uma melodia e logo depois o acompanhei, fazendo
a harmonia no piano. Solicitei que ele colocasse um ttulo, mas ele disse que no tinha
ttulo. Perguntei como ele sentia a melodia e ele disse: voc tocou alegre, mas
sombrio, triste. Ele acabou por memorizar essa melodia e voltava sempre a toc-la,
pedindo que eu o acompanhasse, o que resultou numa composio grafada
musicalmente por mim e gravada por ele udio 15 anos aps a alta.
107
Registrada por escrito por esta musicoterapeuta.
138
A composio de R.
R. nasceu com Mielomeningocele108 e, desde ento, faz tratamento. Hoje est com
18 anos e fez at a 7 srie numa escola estadual. Desde os 10 anos submetido a
tratamento dialtico numa clnica de doenas renais, juntamente com mais seis pacientes
com idades que vo de 3 a 20 anos. Este grupo atendido em musicoterapia no
momento da dilise.
108
A Mielomeningocele, conhecida como Spina Bfida, uma malformao congnita da coluna vertebral
da criana que dificulta a funo primordial de proteo da medula espinhal, "tronco" de ligao entre o
crebro e os nervos perifricos do corpo humano. Quando a medula nasce exposta, muitos nervos podem
estar traumatizados ou sem funo, sendo que o funcionamento dos rgos inervados pelos mesmos
(bexiga, intestinos e msculos) pode estar afetado. O incio do tratamento o fechamento, nas primeiras
horas de vida, feito pelo neurocirurgio, para proteger e evitar traumas e infeces. Cerca de 90% dos
pacientes com Mielomeningocele podero apresentar algum tipo de problema urolgico que pode variar
desde infeces urinrias at a perda de funo renal e insuficincia renal com necessidade de
dilise e transplante renal. http://www.crfaster.com.br/mielo.htm
109
Refiro-me a um contato de pessoas que utilizam os iPods durante vrias horas semanais,
enquanto ligados mquina de dilise e que, para alimentarem esses iPods, se mantm
ligados rede durante muito tempo, escolhendo e baixando as msicas que querem ouvir.
110
Segundo a musicloga britnica Ruth Finnegan (2008), a cano popular existe na
experincia de todos por ser um fenmeno de todos os tempos e culturas, podendo ser
considerada um dos fenmenos universais da vida humana e cumprindo, por isto, em minha
opinio, diferentes funes e se prestando a diferentes aplicaes em musicoterapia.
111
Ruud define a musicoterapia como um esforo para melhorar as possibilidades de ao de
uma pessoa e explica que isto seria no s empoder-la, mas, tambm, aliviar algum material
ou foras psicolgicas que a mantm num papel de desvantagem (1998, p. 52).
140
capacidade humana que est preservada: a capacidade de criar, tendo como objeto de
criao, aqui, a msica, atravs da improvisao, referencial ou no referencial, e da
composio.
Neste contexto h que se fazer um esforo para acreditar na capacidade de criar, j
que a doena visvel, inexorvel, e pode nos induzir a no levar em conta aspectos da
ordem da sade, que devem ser considerados como necessrios para uma vida
minimamente normal. Deve-se confiar na afirmao de Sartre que Em todo
padecimento humano se encontra oculta alguma empresa (apud Fiorini, p. 24).
Baseada em experincias anteriores e aberta a qualquer manifestao
sonoro/musical/verbal dos pacientes, percebi que quando todos cantam juntos,
pacientes, enfermagem e familiares, a cano popular o tipo de msica escolhido
sendo, portanto, a re-criao musical a experincia mais utilizada pelos pacientes.
Contudo, nos momentos de atendimento individual, a improvisao e a composio so
as experincias musicais utilizadas e a tcnica mais adequada a ser empregada pelas
musicoterapeutas.
Fiorini (1995) considera que a forma retrica da figura de linguagem oxmoro, que
faz ressoar oposies e tenses, uma caracterstica do pensamento criador que no se
entende nem como princpio da realidade, pensamento do processo primrio ou
secundrio, mas sim, que da ordem do processo criador, pertencente ao processo
tercirio 112.
Para fazer ressoar oposies e tenses internas, R. se apoderou e transformou
em letra de cano, algumas ideias de um texto de autor desconhecido 113 utilizando o
oxmoro, certamente de forma inconsciente, para compor novas tramas de sentido,
relativas s suas histria de vida e clnica.
Esta composio tem que ser lida dentro do tempo e espao nos quais foi
criada: num dia e momento em que a sala de dilise estava sendo abalada por um
episdio clnico com a paciente de trs anos que, depois de intervenes da
enfermagem, reagiu e se recuperou, mas, ameaou a todos.
112
O processo tercirio aparece em vrios autores como Winnicott (1971), Green (1972) e
Arieti (1976), mas aqui utilizado o pensamento de Fiorini que o define como sendo um tipo
especial de processos de pensamento ativados no trabalho criador (1995, p. 15).
113
Dirio de um Louco. http://nebulosadereflexoes.blogspot.com/2009/01/dirio-de-um-
louco.html Acesso em maro, 2010.
141
Nada de nada114
(R. C. C. - 2/04/09)
J passava da meia noite
E o sol raiava no horizonte
Vacas pulavam de galho em galho
Enquanto o homem dizia calado
Melhor morrer do que perder a vida.
Na verdade eu prefiro perder a vida porque posso encontrar (falado),
acrescenta o paciente.
(Esta ltima frase foi criada pelo paciente, como resposta escolha entre a morte
ou a perda da vida).
114
3a sesso, realizada em 2/04/09 e registrada por escrito por mim.
142
143
115
O que difere a escala menor primitiva do modo Drico o intervalo de 6 M (Buhomil, 1996,
p. 166).
144
Consideraes finais
Partindo do estudo de Gagnon e Peretz (2003), que afirmam que a msica,
considerada a linguagem das emoes, um meio ideal tanto para o estudo da cognio
como da emoo, e fundamentada na minha prtica clnica, que apresenta pacientes
atendidos em situaes distintas no que se refere idade, patologia, condies clnicas,
tipo de atendimento (musicoterapeuta, em coterapia), grau de instruo e diferentes
nveis de relao com a msica, considero importante e possvel a utilizao dos
conceitos de condio convergente e divergente tanto na musicoterapia receptiva quanto
na interativa, por se tratar de mais um recurso para que o musicoterapeuta melhor utilize
a msica como elemento teraputico:
- na musicoterapia receptiva, a observncia dos mesmos poderia influir na qualidade das
respostas dos pacientes;
- na musicoterapia interativa, o musicoterapeuta poderia contribuir para ampliar as
possibilidades de expresso de contedos internos.
Deve-se observar que os estudos sobre o tema ratificam que no h necessidade de
formao musical para se julgar se um trecho ou msica triste ou alegre. Esta frase
poderia justificar a no necessidade de formao musical para o musicoterapeuta.
Considero, no entanto, que esta fundamental na musicoterapia interativa, numa
situao em que o musicoterapeuta deva, por exemplo, facilitar ao paciente no-msico
a escolha de parmetros como o modo e na musicoterapia receptiva, porque a escolha da
msica est, em geral, a cargo do musicoterapeuta (ou outro profissional que utiliza
msica como recurso), e o no conhecimento da estrutura musical pode provocar
emoes indesejveis em determinados pacientes, em momentos ou situaes
especficos, transformando a msica em elemento iatrognico, ao invs de utilizar a sua
potncia teraputica.
Referncias bibliogrficas
______. Challenges on Music Therapy Clinical Practice. Voices: A World Forum for Music
Therapy. Retrieved December 18, 2009b, from
http://www.voices.no/columnist/colbarcellos141209.php
BUHOMIL, Med. Teoria da Msica. 4. ed. rev. e ampl. Braslia: Musimed, 1986.
GAGNON, Lise; PERETZ, Isabelle. Mode and tempo relative contributions to happy-
sad judgements in equitone melodies. Cognition and Emotion, v. 17, n. 1, p. 25-40,
2003.