Afonso Albuquerque - Um Outro Quarto Poder
Afonso Albuquerque - Um Outro Quarto Poder
Afonso Albuquerque - Um Outro Quarto Poder
ri trod u o
"A eleio das reformas"; "Por que o Brasil desconfia dos polti-
cos". Os ttulos de capa das revistas poca e Veja, em suas edies
imediatamente anteriores s eleies de 1998, constituem um bom
ponto de partida para discutir a questo do papel poltico da imprensa
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no Brasil. O que estes ttulos sugerem? luz do debate atual sobre o
tema poderamos dizer que o ttulo de Epoca sugere uma atitude fran-
camente governista da revista, enquanto 1/aja reflete velhos preconcei-
tos contra os polticos em geral e (se observarmos o corpo da matria)
contra os parlamentares em particular. E no estaramos errados. En-
tretanto, poderamos encontrar outras lies nesses mesmos enuncia-
dos. poca e Veja no esto apenas se pronunciando a favor do gover-
no. ou manifestando desconfiana com relao ao Congresso Nacio-
nal; elas esto tambm demarcando o espao de uma competncia es-
pecfica: o de Ernecer uma interpretao "independente" da cena po-
ltica. transcendente em relao s perspectivas particulares dos agen-
tes polticos envolvidos.
Logo, a questo que este artigo se prope a explorar : em que ter-
mos a imprensa brasileira define hoje o seu compromisso poltico?
Neste sentido, a tentao de se julgar o jornalismo brasileiro pelo mo-
delo americano de "lornalismo independente" grande. So frequen-
tes as profisses de f dos rgos da grande imprensa nos valores
basilares do jornalismo "independente" - objetividade, neutralidade,
imparcialidade. compromisso com a verdade, com os fatos, com o in-
teresse pblico - bem como tambm crticas atuao desses mesmos
rgos, com base na sua incapacidade (ou desinteresse) em honrar es-
ses nesmos princpios.
A referncia ao modelo americano se prova ainda mais importante
na medida em que, sob alguns aspectos, a imprensa brasileira se en-
contra hoje mais prxima dele do que jamais esteve. De um modo ge-
ral, os rgos da grande imprensa brasileira so hoje muito mais inde-
pendentes de partidos ou faces polticas do que no passado, com-
prometidos que esto corri a lgica empresarial capitalista (Ortiz,
1988; Taschner, 1992). Alm disso, a multiplicao de fruns de de-
bate profissional - como por exemplo a revista Imprensa, organiza-
es voltadas para o media criticism como o Observatrio da Impren-
sa e o Instituto Gutenberg - sugere ter havido nos ltimos anos um
significativo avano na constituio de uma identidade profissional
jornalstica baseada numa tica do servio pblico. Para alm das suas
convices polticas particulares, pode-se identificar hoje, entre os
jornalistas brasileiros, um acordo muito maior quanto ao papel que
cabe imprensa desempenhar na democracia do que havia em tempos
passados. E, de alguma forma, este papel aponta na direo de uma
teoria da imprensa como um "Quarto Poder".
24 De um modo geral, as comparaes entre o modelo americano e o
jornalismo brasileiro tendem a apelar para um argumento da "falta" a
fim de explicar as especificidades do nosso jornalismo. Este argumen-
to tem sido formulado com diferentes nveis de complexidade. Um
exemplo pouco sofisticado do uso deste argumento a acusao, fre-
quentemente repetida, de que faltam aos jornalistas brasileiros o rigor,
a seriedade e a competncia dos seus colegas americanos. Uma varia-
o deste enfoque a sugesto de que a sociedade brasileira , ela
mesma, incoerente, e que isso afeta a imprensa: "Censura para as idi-
as dos outros e liberdade para as minhas parece ser o estranho concei-
to de liberdade de imprensa que permeia a sociedade brasileira de alto
baixo, da esquerda para a direita" (Silva, 1991:98; grifo nosso).
Seja como for, o argumento da "falta" no capaz de dar conta do
problema em toda a sua complexidade: ele permite apontar diferenas
entre o jornalismo brasileiro e o americano, mas no permite definir
quais so as caractersticas especficamente "brasileiras" do nosso jor-
nalismo. De modo explcito ou implcito, intencionalmente ou no,
este modelo consolida uma perspectiva estrangeira sobre o jornalismo
brasileiro, que "naturaliza" o modelo americano e "exotiza" o brasi-
leiro. A premissa de que, ao menos em princpio, o jornalismo brasi-
leiro deveria ser semelhante ao americano. A questo que cabe expli-
car por que isso no se d.
Neste artigo, desenvolvo uma linha de argumentao diferente. A
premissa adotada aqui que os jornalismos que se praticam no Brasil
e nos Estados Unidos so o fruto de ambientes culturais - e tambm,
poder-se-ia acrescentar, polticos, econmicos e legais - completa-
mente diferentes e, por este motivo, no h nenhuma razo a priori
para supor que eles devessem ser semelhantes. Ao contrrio, a ques-
to que cabe explicar a prpria apropriao do modelo de jornalis-
mo "independente" americano pelos jornalistas brasileiros: por que
ela se d e de que maneira isso acontece? A hiptese explorada aqui
que, por mais sincera que seja a adeso dos jornalistas brasileiros aos
princpios basilares do jornalismo "independente", ela antes de tudo
um gesto formal: na prtica, os jornalistas brasileiros tendem a inter-
pretar esses princpios e a definir o seu compromisso poltico de ma-
neira muito diferente dos seus colegas americanos.
O desenvolvimento do jornalismo "independente" nos Estados
Unidos seria implausvel na ausncia de uma cultura marcadamente
individualista e de uni conjunto slido de instituies polticas nela
baseadas (Tocqueville, 1977). Tais elementos fundamentam no ape-
nas a defesa da autonomia da imprensa em relao ao governo (com
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base no respeito ao direito liberdade de expresso), como tambm o
compromisso da imprensa com o interesse pblico (Nerone, 1993),
muitas vezes descrito como se estabelecendo nos termos de uni
"Quarto Poder". O exerccio deste "Quarto Poder" no se d no nibi-
to do Estado e no se confunde com as prerrogativas dos trs poderes
constitucionais. Ele se exerce, ao invs, pela publicizao dos proble-
mas polticos para o conjunto da sociedade. Mais precisamente, ele
implica no compromisso da imprensa com a objetividade no trata-
mento das notcias (Schudson, 1978; Soloski, 1993), com a represen-
tao do cidado comum frente ao Estado (Hallin & Mancini, 1984) e
com o funcionamento eflciente do sistema de diviso de poderes
(Cook, 1998).
O individualismo tambm um trao componente da cultura brasi-
leira, mas com um arranjo diverso e uma influncia significativamen-
te menor que na cultura americana. Os traos individualistas da nossa
cultura convivem corri (e so em larga medida subordinados) a princ-
pios que traduzem uma preocupao avassaladora com a ordem e a
"harmonia social" (DaMatta, 1979), e cuja lgica , para usar os ter-
mos de Louis Dumont (1966, 1985), "holista" e "hierrquica". Inspi-
radas no exemplo das "naes civilizadas do mundo" (os Estados
Unidos e os pases da Europa Ocidental) as instituies polticas e le-
gais brasileiras frequentemente entram em choque com valores arrai-
gados na cultura brasileira (Barbosa, 1996; Kant de Lima, 1994). Urna
coisa, porm, dizer que h contradies entre princpios bsicos da
vida social brasileira; e outra inteiramente diferente que a contradi-
o entre eles basta para definir a questo. No Brasil, os princpios e
instituies "individualistas" tendem a ser incorporados com um sen-
tido frequentemente diferente daquele que possuem nas "naes civi-
lizadas", de tal modo que, na prtica, se estabelecem compromissos
entre eles e os princpios "holsticos" e "hierrquicos" da cultura bra-
sileira (DaMatta, 1979, 1997; Barbosa, 1992).
A ttulo de exemplo, podemos propor o seguinte raciocnio: o prin-
cpio "democracia", que em outras sociedades entendido corno dire-
tamente derivado do direito da participao do indivduo nos negcios
do Estado, tende a ser associado, no Brasil, ao valor "ordem pblica"
- democracia algo que interessa a todos - e entendido como uma
conquista importante, ainda que instvel, da nossa sociedade. Aceitas
tais premissas, no absurdo sustentar a idia de que, em situaes
crticas, legtimo sacrificar os direitos individuais em nome da pre-
26 servao da democracia, a qual, afinal, do interesse de todos. E, se
se acredita que a democracia urna conquista instvel (e, portanto, a
crise uma constante) faz sentido tolerar sacrifcios repetidos e siste-
mticos do direito individual se eles se fazem em favor do bem co-
mum.
Nessas condies, seria espantoso se a imprensa brasileira definis-
se o seu compromisso com a democracia em termos semelhantes
sua correspondente americana: em parte porque o princpio da liber-
dade de expresso est longe de ter o status privilegiado de que des-
fruta nos Estados Unidos e, em consequncia, a imprensa brasileira
potencialmente muito mais sujeita censura poltica, formal ou infor-
mal 2, que a americana; em parte porque a imprensa brasileira encon-
tra muito mais incentivos para intervir diretamente na vida poltica e
legal do pas, influenciando as instituies a atuarem na direo "cer-
ta", do bem comum.
Tudo isso nos leva a supor que a concepo de "Quarto Poder"
adotada pela imprensa brasileira necessariamente muito distinta da-
quela que vigora nos Estados Unidos. O compromisso corri a objetivi-
dade e a imparcialidade jornalsticas, com a representao dos cida-
dos frente ao Estado e com a manuteno do equilbrio entre os trs
poderes tendem, no Brasil, a ser interpretados em termos muito menos
dogmticos que nos Estados Unidos. Neste artigo, defendo a idia de
que. em alguma medida, se pode identificar neste modelo de "Quarto
Poder" a idia de um "Poder Moderador".
O argumento desenvolvido neste artigo se desdobra em quatro eta-
pas: a primeira compara, de modo genrico, a cultura poltica brasilei-
ra americana; a segunda relaciona o modelo de jornalismo "indepen-
dente" americano s caractersticas do ambiente cultural no qual ele
se originou: a terceira esboa uma comparao semelhante acerca do
jornalismo brasilciro e seu contexto cultural: e a quarta disserta espe-
cilicamente sobre o modo como a imprensa se relaciona com o siste-
ma de diviso de poderes e com os trs poderes constitucionais no
Brasil. Dada a escassez de trabalhos brasileiros acerca da dimenso
social/cultural da notcia, as observaes desenvolvidas nas duas lti-
mas partes deste artigo devem ser julgadas pelo que so: um esforo
exploratrio antes que conclusivo acerca do assunto.
Concluso
Ao longo deste texto, procurei explorar um velho tema - a influn-
cia do modelo americano do jornalismo "independente" sobre o jor-
nalismo brasileiro - por um caminho diferente daquele que normal-
mente percorrido pelos estudiosos do assunto. Ao invs de julgar o
modelo brasileiro pela sua maior OLI menor proximidade em relao
ao americano, sugeri que este ltimo era fruto de um contexto polti-
co-cultural inteiramente distinto do brasileiro e que, portanto, no se-
ria plausvel que, na prtica, o jornalismo realizado no Brasil se asse-
melhasse ao americano. Deste ponto de vista, a questo a investigar
seria outra: de que maneira o jornalismo brasileiro reinterpreta, luz
dos cdigos da cultura poltica local o modelo "oficial" do jornalismo
independente?
Em particular, sugeri que uma srie de caractersticas fundamen-
tais do modelo de jornalismo "independente" - o compromisso com
os fatos, a defesa do interesse pblico e a objetividade jornalstica, a
nfase em indivduos e acontecimentos individuais, o destaque dado
ao reprter individual na produo da notcia, a eleio do cidado in-
dividual como interlocutor fundamental do jornalista, e a auto-carac-
terizao deste ltimo com um representante dos interesses dos cida-
dos frente s instituies - somente fazem sentido no mbito de uma
cultura individualista e na qual exista um amplo acordo em torno de
um conjunto de verdades fundamentais.
Uma ateno especial foi dispensada relao entre a imprensa e
os trs poderes constitucionais no Brasil. Procurei demonstrar que o
modelo americano da imprensa como um "Quarto Poder" , em nosso
pas, objeto de unia releitura bastante radical. Enquanto nos Estados
Unidos, a idia de "Quarto Poder" traduz um compromisso da im-
prensa com o sistema de diviso de poderes como um todo (e com a
conservao do equilbrio entre os poderes em particular), no Brasil,
ela apela de alguma maneira para uma tradio brasileira, e totalmen-
te distinta de Quarto Poder: o Poder Moderador. Tal como o fizeram
em tempos passados o Imperador e os militares, a imprensa reivindica
hoje exercer o papel de rbitro das disputas entre os poderes constitu-
dos, decidindo sempre em favor do "Bem Comum". 0 que no quer
dizer que tais pretenses sejam amplamente reconhecidas pelos de-
mais agentes sociais: ao reivindicar para si o exerccio de prerrogati-
vas que outras instituies consideram como suas, a imprensa brasi-
leira se sujeita a uma crescente hostilidade por parte dos seus mem-
bros: as propostas da Lei de Imprensa, da reforma do Cdigo Penal e
as recentes declaraes de Fernando Henrique acerca da imprensa
brasileira so apenas os primeiros rounds de uma disputa que tem
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