A Função Formadora Da Literatura
A Função Formadora Da Literatura
A Função Formadora Da Literatura
Ernani Mgge1
ABSTRACT: This article discusses the educational role of literature, looking for parallels
between the theories of Plato (428/427348/347 a.C.), Aristotle (384322 a.C.), Antonio
Candido (1918), Hans Robert Jaus (19211997) and Umberto Eco (1932). It ultimately sees the
educational role as a synthesis of roles ascribed to literature from classical Antiquity to the
present, since ultimately they converge towards the same point, viz. human education on the
basis of the multiple elements that make up the aesthetic object.
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Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Atua como professor no Instituto Superior de Educao Ivoti (ISEI). Integra o grupo de
pesquisa Leitura, Literatura e Cognio, da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Endereo
eletrnico: [email protected].
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Quando Plato se refere poesia, na Repblica, reporta-se s composies dos grandes poetas da poca,
sobretudo a poesia mimtica (pica ou trgica).
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A referncia a citaes do dilogo Grgias aparecer somente com indicao de passagem de verso.
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Grgias consiste em um dilogo de Plato no qual se discutem a funo e o uso que se deve fazer da
Retrica; por um lado apresentada a viso dos sofistas, representados por Grgias, Polo e Clicles, e, de
outro, a do filsofo Scrates, tida como inovadora.
Sobre a tragdia, Aristteles afirma que ela, ao imitar fatos que inspiram temor
e pena, ou terror e piedade, promove um efeito no espectador, uma purificao de
emoes, que denomina de catarse. Ensina que, para o poeta alcanar esse resultado, a
maneira mais adequada conceber um heri que passe da felicidade ao infortnio, como
consequncia de um grave erro. Portanto, o problema de Aristteles determinar a
metodologia a ser adotada pelo poeta para que ele possa, atravs do mito, promover
emoes. Esse procedimento a ser tomado deve levar em conta algumas estratgias que
devem originar-se da trama dos fatos da intriga conforme a necessidade e a
verossimilhana: o reconhecimento, a peripcia, o n e o desenlace.
Para traar um paralelo entre Plato e de Aristteles, a partir das ideias que
ambos deixaram sobre a arte, necessrio indagar sobre a forma como cada um entende
sua produo e recepo. Para Plato, a Retrica a arte da eloquncia e da persuaso;
antes de proporcionar o conhecimento voltado para a instalao da virtude, manipula o
receptor pelo uso da linguagem, sem levar em conta a verdade, e lanando mo do
subjetivo quando lhe convm, em detrimento do saber objetivo. Dessa forma, segundo
as palavras atribudas a Scrates, a Retrica a persuaso que infunde a crena, no a
cincia. Entendendo-se a produo sob esse aspecto, haveria, por trs do ato criador,
uma espcie de maquinao, com vistas a uma finalidade negativa. Assim, o prprio
sujeito se tornaria objeto de investigao, por estar inevitvel e continuamente sob
suspeita e o ser humano carregaria em si a faculdade de falar em proveito prprio.
Candido percebe, tambm, um quadro que deve ser tomado com otimismo, mas
que diverge da perspectiva dos utopistas uma vez que no concebe uma sociedade ideal,
mas prev um mximo vivel de igualdade e justia, em correlao a cada momento da
histria. Enquadra, a, os movimentos pelos direitos humanos. Outro fator positivo
reside no fato de que, apesar do crescimento da barbrie, esta j no mais elogiada por
setores da sociedade. Cita o tribunal de Nrenberg, que mostrou
[...] que j no admissvel a um general vitorioso mandar fazer inscries
dizendo que construiu uma pirmide com as cabeas dos inimigos mortos,
ou que mandou cobrir as muralhas de Nnive com as suas peles escorchadas.
(CANDIDO, 2004, p. 170, 171)
Aceitando essa condio da literatura como bem necessrio para o ser humano,
Candido, em seu ensaio Direito Literatura, defende a tese de que a literatura um
bem incompressvel, isto , um bem que no pode ser negado ao ser humano:
[...] so bens incompressveis no apenas os que asseguram sobrevivncia
fsica em nveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. So
incompressveis certamente a alimentao, a moradia, o vesturio, a
instruo, a sade, a liberdade individual, o amparo da justia pblica, a
resistncia opresso etc.; e tambm o direito crena, opinio, ao lazer e,
por que no, arte e literatura. (CANDIDO, 2004, p. 174)
Ao tratar dessa questo, e nessa mesma linha, Marisa Lajolo afirma que
[...] a literatura pode ser entendida como uma situao especial de uso de
linguagem que, por meio de diferentes recursos, sugere o arbitrrio da
Pode-se perceber uma afinidade entre Candido e Hans Robert Jauss quando
este percebe o texto literrio a partir de trs aspectos: a poiesis, responsvel pela adeso
do leitor ao texto; a aisthesis, que renova a percepo de mundo do sujeito, e a
katharsis, a concretizao de um processo de identificao. (JAUSS, 2002, p. 75)
Jauss analisa a nova forma da obra literria, caracterizada pela forma impessoal
de narrar, portanto, alcanada atravs de um artifcio de linguagem. Utiliza, como
exemplo, a obra Madame Bovary, de Gustav Flaubert. Questiona-se sobre o efeito dessa
nova forma e chega concluso de que ela permite ao leitor perceber o quadro de uma
maneira diferente, inserindo-o, por conseguinte, em um contexto de uma estranha
insegurana de juzo (JAUSS, 1994, p. 55). Nesse processo, rompem-se as
expectativas do leitor, e a obra literria o coloca diante de questes que no so
respondidas pela moral canonizada.
Portanto, o papel do leitor agora, a partir do novo romance, diferente, pois ele
adquire o status de sujeito da construo do texto na medida em que precisa avaliar, por
exemplo, se uma assero verdadeira ou se o ponto de vista de uma personagem, o
que no era necessrio anteriormente, pois o prprio discurso se encarregava de
apresentar os devidos julgamentos.
Umberto Eco se soma aos que veem a literatura como um produto artstico
potencialmente capaz de humanizar. Ao se perguntar para que serve este bem imaterial
que a literatura (ECO, 2003, p. 10), no se satisfaz em responder que um bem que
se consome per gratia sui (ECO, 2003, p. 10) e, portanto, se assim fosse no serve para
nada, mas busca encontrar funes para a vida individual e social do ser humano.
Reconhece na literatura a capacidade de manter viva a lngua, um patrimnio histrico
que insensvel a determinaes, mas que se rende literatura. Assim, ela cria
identidade e comunidade. Para ele, a literatura um bem que carrega em si um mundo
de valores que chega de e remete a livros (ECO, 2003, p. 12) e que um ser humano
destitudo desses valores poderia adquiri-los caso entre em contato com a literatura. As
obras literrias, conforme ele, propem um discurso com muitos planos de leitura e nos
colocam diante das ambiguidades e da linguagem e da vida (ECO, 2003, p. 12).
Comparando os textos literrios ao mundo, afirma que, enquanto o mundo fechado,
pois permite apenas uma leitura, a correta ou incorreta, o texto literrio permite vrias
Eco ressalta que o valor do texto literrio no consiste em saber do destino das
personagens ou se tal ou tal coisa ir ocorrer, mas no fato de o leitor experimentar o
desenrolar dos fatos revelia de seus desejos e, dessa forma, aceitar a frustrao e
experimentar o calafrio do destino. (ECO, 2003, p. 20) Ao se referir aos contos,
afirma que eles nos fazem sentir, no concreto, a impossibilidade de mudar o destino:
E assim fazendo, qualquer que seja a histria que estejam contando, contam
tambm a nossa, e por isso ns os lemos e amamos. Temos necessidade de
sua severa lio repressiva. A narrativa hipertextual pode nos educar para
a liberdade e para a criatividade. bom, mas no tudo. Os contos j
feitos nos ensinam tambm a morrer. (ECO, 2003, p. 21)
E ele continua:
Creio que esta educao ao Fado e morte uma das funes principais da
literatura. Talvez existam outras, mas no me vm mente agora.
Tudo sempre comea (e recomea) com uma cesura, com o abalo de etapas nas
quais se viveu em segurana e conforto. As estruturas, ento, so abaladas, e as certezas
se esvaem. Em toda a literatura vemos o reflexo da vida humana: amor, doena, velhice,
morte, desentendimento, arrependimento, desiluso, guerra, relaes fragilizadas fazem
parte da temtica da literatura universal desde a sua origem.
E mais adiante,
H um ponto de luz l longe, no incio da vida, mas, depois disso, tudo foi
ficando cada vez mais negro e afastando-se cada vez mais, em proporo
inversa distncia que me separa da morte (p. 93).
Tolstoi optou por iniciar pelo final do episdio, ou seja, pela notcia da morte
da personagem e seu velrio e enterro. Toda a narrativa construda com a devida
tenso para chegar ao pice a morte. Diz o narrador: A histria da vida de Ivan Ilitch
foi das mais simples, das mais comuns e, portanto, das mais terrveis (p. 19). Essa
combinao de adjetivos simples e comuns, seguindo-se a este o conetivo de
concluso portanto complementado por terrvel intriga o leitor. Como a vida
comum pode ser terrvel? A partir desse pargrafo introdutrio, o autor conduz o leitor
com maestria para o final. O percurso, entremeado de situaes conflitantes e at certo
ponto surpreendentes, traz sempre tona a pergunta: como ou em que condio se dar
a morte de Ivan? Esta pergunta respondida ao final:
Procurou seu antigo medo da morte e no o encontrou. Onde est? Que
morte? No havia medo porque tambm no havia morte.
Em seu lugar havia luz.
Bem, ento isso!, exclamou em voz alta. Que bom!
At que, aps um instante, para ele, e mais de duas horas para os outros,
algum diz:
Acabou! disse algum perto dele, o que ele repetiu dentro de sua alma.
A morte est acabada, disse para si mesmo. No existe mais.
Respirou profundamente, parou no meio de um suspiro, esticou o corpo e
morreu.
A morte, para Ivan e todos os amigos que com ele jogavam cartas, no existia.
A morte como extenso da prpria vida, que ele questiona:
No pode ser que a vida seja to detestvel e sem sentido. E se realmente
to detestvel e sem sentido, por que ento devo morrer e morrer nessa
agonia? H alguma coisa errada. (p. 90)
O criado Gerassim, por sua vez, produtor de uma sntese de aes que, ao
longo da narrativa, tornam-se importantssimas na medida em que ele constri o
contraponto com as outras personagens:
Gerassim era um campons jovem e limpo, que crescera forte, graas
comida local, e estava sempre bem disposto. No incio a imagem do rapaz
nas suas roupas limpas de campons, envolvido naquela tarefa repugnante,
deixava-o embaraado. (p. 69)
Ele aparece pela primeira vez na narrativa ... caminhando com seu passo
suave em frente a Piotr Ivanovich (p. 9), espalhando alguma coisa no cho, porm,
Por fim, preciso dizer que nem diante de Gerassim, apesar de todos os
cuidados que este lhe destina, Ivan consegue chorar, o que caracteriza seu estado de
solido ou o estado de solido em que todas as pessoas se encontram em um momento
de desespero diante da morte:
Esperou at que Gerassim entrasse no outro quarto, controlou-se um pouco e
ps-se a chorar como uma criana. Chorou por sua solido, seu desamparo,
pela crueldade do ser humano, a crueldade de Deus e a ausncia de Deus. (p.
87)
Concluso
Nesses termos, quando em contato com um Ivan Ilitch, o leitor poder perceber
a tragdia que marca a vida e a morte e aprender, se no muito, que h algo de
revelador que pode e precisa ser desvendado para o bem do indivduo e da prpria
humanidade.
Referncias
ARISTTELES. Arte Potica. In: A potica clssica. Trad. Jaime Bruna. So Paulo:
Cultrix. 1997.
_____. Potica. Traduo, Prefcio, Introduo, Comentrio e Apndices de Eudoro de
Souza. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986.
CANDIDO, Antonio. O direito literatura. In: Vrios escritos. Rio de Janeiro: Duas
Cidades/Ouro sobre Azul, 2004.
_____ A literatura e a formao do homem. In: Textos de interveno. Seleo,
apresentaes e notas de Vincius Dantas. So Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2002.
ECO, Umberto. Sobre a literatura. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003