A Alemanha e Os Alemaes - Thomas Mann
A Alemanha e Os Alemaes - Thomas Mann
A Alemanha e Os Alemaes - Thomas Mann
A Alemanha e os Alemaes
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Tradulo de cxccrtos do tcxto alcmlo da palcstra profcrida cm Ingles na
Ubr&ry of Congress, de Washington, nos fins de Maio de 1945 (cf. Thomas Mann,
G-1/fffflefte Wt'rkeUI dreizdutB41Ulal. vol. XJ, p. 1126-1148).
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A Alt:manhu t: OS AlMl4t:s
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Thomas MaJ1n
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A Alemaniu:, e os Alem<ies
a
remlncia salvac;;io se obtem por um certo espacc de tempo todos os
tesouros e todo o poder do mundo, afiguraseme algo que peculiarm.ente
est8. muito pr6ximo da natureza alemi. Um pensador e investigador
solitario, um te61ogo e fi16sofo na sua cela que, para conseguir prazeres e
dominio do mundo, promete a sua alma ao diabo nio seri agora o
momento adequado para descobrir a Alemanha nesta imagem, agora que o
diabo literalmente se apossa da Alemanha?
E um grande erro da lenda e do poema nio terem associado Fausto a
mllsica. Ele devia ser musical, devia ser mllsico. A mtisica 6 domfnio
demoniaco Soren Kierkegaard, um grande cristao, expOlo da forma mais
convincente no scu ensaio dolorosamente entusiasta sobre o Don Juan de
Mozart. A mUSica 6 arte aisti com sinal negativo. E ao mesmo tempo a
ordem mais calculada e a antiracionalidade prenhe de caos, rica de gestos
evocat6rios e cncantat6rios, de magia de nfuneros, 6 de todas as artes a mais
afastada da realidade e simultaneamente a mais apaixonada, 6 abstracta e
mistica. A ser Fausto o represcntante da alma alema, entio ele deveria ser
musical, pois abstracta e mistica, ou seja, musical, 6 a reo quc o alemao
tem com o mundo a rela1yio de um professor tocado por um sopro
dem6nico, canhestro mas ao mesmo tempo soberbamente determ.inado pela
consci8ncia de ser superior ao mundo no que toca a profundidade.
Em que consiste esta profundidade? Precisamente na musicalidade
da alma alemi, naquilo a que se costuma chamar a sua interioridade, isto
e, a dissociacao entre os elementos especulativo e politicosocial da ener
gia humana e a preval8ncia absoluta do primeiro sobre o segundo. A
Europa sempre sentiu isto, e apercebeuse tambcm do que aqui ha de
monstruoso e de funesto. Em 1839 Balzac escrevia: Les Allemands, s'ils
ne savent pas jouer des grands instruments de la LibertC, savent jouer
naturellement de tousles instruments de musique. Uma observacao clara
e perspicaz, e nio a tinica observac;;io certeira do tipo feita pelo grande
romancista. No Cousin Pons , disse da figura maravilhosa que 6 o mllsico
alemiio Schmucke: Schmucke, que, como todos os Alemies, era muito
forte na harmonia, instrumentava a partitura para que Pons fomecia a
parte vocal. Muito bcm visto; os Alemies sio sobretudo mUsicos da verti
cal, nio da horizontal, siio melhorcs mestres da hannonia, na qual Balzac
inclui a arte do contraponto, do que da melodia, mais vocacionados para o
revestimento instrumental do que glorificadores da voz humana, muito
mais voltados para o elemento erudito e espiritual da musica do que para o
lado cantabile, que faz a felicidade do povo simples.( ... )
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Martinho Lutero, gigantesca incamao da fndole alemi, era pro
fundamente musical. N!o gosto dele, digoo abertamentc. 0 clcmcnto
alcmio em estado puro, o teecc scparatista antiromano, antieuropcu,
causame estranbeza e assustame mesmo quando surge como libcrdade
cvangClic.a c emanci espiritual, e o que C carectertsnco de Lutero, o
scu tcmperamento colericc e grossciro, o praguejar, cuspir e enfurecersc,
a tremenda robustez, associada a um sentimentalismo brando e a mais
maci'ill creni;.a em superstief>cs de dem6nios, incubos e crian que seres
diab6licos trocavam A nascence, tudo isto suscita a minha averSio instin
tiva. Nio teria gostado de ser um dos convivas de Lutero, provavelmentc
tcrmeia scntido junta dele como na morada acolhedora de um ogre, e
estou persuadido de quc me teria entendido rou.ito melhor rom Leio X
Giovanni de'Medici o humanista de trato afAvel a quern Lutero chamava
"aquele porco sujo do diabo, o Papa". Tarnbcm nlo reconbeco como
ncccssaria a oposir;io enne a fo rude e original do povo e a wbanidadc,
isto C, a antftese cntre Lutero e o erudite requintado que foi Erasmo,
Goethe supera esta oposic;io, c.onciliando os seus tennos. Ele C a for1ra
plena, a fot? original que eriste no povo, mas disciplinada; C demonismo
urbane, cspfrito e sanguc ao mesmo tempo, ou seja: Arte ... Com elc a
Alcmanha dcu um gigantesco passo em frente na cuhura da bumanidadc
ou devcria taIo dado, pois na realidade sempre estevc mais perto de
Lutero do que de Goethe. E quern negaria que Lutero foi um bomem
formidavelm.ente grande, grande ao cstilo alemao, grande e alem!o tam
hem na sua ambiguidade como fo libertadora e reaccionruia, um revo
ludonirio conservador? ( ... )
Nio que cu tenha alguma coisa contra a grandeza de Lutero! Com a
sua pujante tradu"8o da Biblia, ele nao s6 foi de facto o criador da lingua
alema, que depois Goethe e Niemcbe haviam de levar .a perfei1rio, corno
deu um eoonne impulso 1 liberdade de investo, de ailica e de espe
cul3"io filos6fica por ter rebentado as cadeias da escolastica e reavivado
o papel da consci8ncia. Ao estabclcccr a relo directa do homem com
o seu Deus, fomentou a democracia europeia, pois afirmar que .. cada um
C o scu pr6prio sacerdote, isso l democracia. A filosofia idealista alemi,
o aperfeicoamento da psicologia atravCs do exame de consci6ncia prart
cado pelo pietismo e, por fim, a supero da moral cristi em nome da
moral, de uma extrema exigCncia de verdade tal foi o feito (ou o crime)
de Nietzsche tudo isto vem de Lutero. Foi wn her6i da liberdade mas
ao estilo alemao, pois nlio perc:ebia nada de liberdade. Nilo me refiro
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Thoma! Mann
O que vos narrei num esboco breve, minhas senhoras e meus senho
res, e a hist6ria da "interioridade" alemii. E uma hist6ria melanc6lica
chamolhe assim e nao falo em "tragCdia", pois a desgrac;a nao deve
fazer alarde de si mesma. Uma coisa esta hist6ria hAde incutirnos bem
fundo: que niio ha duas Alemanhas, uma boa e outra ma, mas apenas uma
que, por manhas diab6licas, viu o que de melhor nela existia transfonnado
em mat. A Alemanha ma nao C mais do que a boa que se transviou, a Ale
manha boa caida na desgraca, na culpa e no abismo. Daf a impossibili
dade de um espirito que nasceu alemiio renegar completamente a Ale
manha ma e carregada de culpas e declarar: Eu sou a Alemanha boa,
nobre e justa, aquela que traz a veste branca; entregovos a Alemanha ma
para que a extennineis. Nada do que sobre a Alemanha eu vos procurei
dizer, ou pelo menos esbocar fugazmente, C fruto de um conhecimento
exterior, distanciado, indiferente. TambCm tenho tudo isso em mim,
experimenteio no meu pr6prio corpo.
Por outras palavras: aquilo que, urgido pelo tempo, aqui procurei
fazer foi um pedaco de autocritica alemii e em boa verdade niio me
poderia ter mostrado mais fiel a tradiiio alemii do que desta forma. A
tcnd8ncia para a autocrftica, que muitas vezes chcgou a atingir o asco por
si mcsmo, o amaldicoarse a si mesmo, C genuinamentc alemii, e para
sempre hade pcnnanccer um enigma como e quc um povo tiio predis
posto para o autoexame pOde ao mesmo tempo concebcr a ideia de domi
nar o mundo. Para se dominar o mundo e mister sobretudo possuir
ingenuidade, uma mediocridade satisfcita consigo mcsma c ate aUSCncia
de premeditacao, e niio uma vida interior feita de cxtremos como e a
alemii, na qual a soberba anda de par com a contrtcao. Nada do que
alguma vez um trances, um ingl8s ou mesmo um amcricano lancou cm
rosto ao seu pr6prio povo e comparavel a dureza do que grandcs alcmiics
HOlderlin, Goethe, Nietzsche proferiram sabre a Alemanha. Pelo
menos oralmente, Goethe foi ate ao ponto de exprimir o descjo de uma
diaspora alemii. Os alemiies, disse ele, devem ser transplantados e dis
persos pclo mundo como os judeus!. E acrescentou: para que o muito
que de born neles existe se possa desenvolver em toda a plenitude e para o
proveito das nacoes.
"O muito que de born neles existe" esta de facto neles, mas niio se
pMe desenvolver na forma tradicional do Estado nacional. A dispersii.o
pelo mundo que Goethe desejou para os seus alemiies, e que depois desta
guerra muitos por ccrto se scntiriio inclinados a realizar, encontra uma
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