Conde de Rochester - Episódio Da Vida de Tibério

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CONDE J. W. ROCHESTER

Episódio da
Vida de Tibério

Romance de Roma Imperial


ditado pelo Espírito de
J. W. ROCHESTER

Médium: WERA KRIJANOWSKY

Tradução de B. Bicudo
LAKE - Livraria Allan Kardec Editora
(Instituição Filantrópica) Rua Assunção, 45 - Brás - CEP 03005-020
Fones: (011) 229-1227, 229-0526 e Fax: 229-0935 São Paulo - BRASIL
7ª Edição - do 37º ao 46º milheiros Agosto de 1995
Nota: A LAKE é uma instituição sem fins lucrativos, cuja diretoria não possui
remuneração.

Capa: Rob

LAKE - Livraria Allan Kardec Editora


(Instituição Filantrópica) Rua Assunção, 45 - Brás - CEP 03005-020 Tel.: 011-229.1227—
229.0526 FAX: 229.0935 São Paulo - BRASIL
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP,
Brasil)

Rochester, John Wilmot, Conde de (Espírito)


Episódio da Vida de Tibério: romance de Roma Imperial - ditado pelo Espírito de J. W.
Rochester; médium Wera Krijanowsky, tradução de B. Bicudo — 7ª edição — São Paulo,
LAKE - 1995.
1. Psicografia 2. Romance inglês; I. Krijanowsky, Wera II. Título.
95-1869
CDD-133.93
Índices para Catálogo Sistemático:
1. Romances mediúnicos: Espiritismo 133.
DUAS PALAVRAS DO TRADUTOR

As obras mediúnicas ditadas pelo Espírito do Conde de ROCHESTER,

apesar de quase centenárias, continuam a despertar grande interesse,


mesmo porque, com a evolução da mente, o homem se volta, na
atualidade, aos postulados da Doutrina Espírita, o Consolador prometido
por Jesus no Evangelho. Já não mais o satisfazem dogmas e rituais
impostos pelas igrejas e sacerdócios organizados, ante uma Doutrina de
Evolução e Aperfeiçoamento. Qualquer afirmativa de Bem-aventurança
graciosa ou negociada, assim como ameaças de condenação eterna e
sofrimento eterno, destrói-se por si mesma.
Graças aos ensinamentos trazidos pelos Espíritos prepostos do
Cristo de Deus e coordenados por Allan Kardec, o homem conhece hoje o
porquê da sua condição atual, como conseqüência do passado e que
alicerça o futuro.
As Leis de Causa e Efeito e a de Reencarnação ou vidas iterativas
estruturam a evolução do Espírito, oferecendo-lhe oportunidade de
resgate e expiação, de novas experiências na crosta terrena, depurando-
se enriquecendo-se de conhecimentos e amor, as duas asas do
aperfeiçoamento espiritual sem término no tempo e no espaço.
A coleção dos escritos de ROCHESTER oferece documentação
prática dessas leis através da revelação de vidas sucessivas de
personagens ligados àquele espírito desde a mais remota Antigüidade,
(tendo sido, ele próprio, o Faraó Mernephtah, que enfrentou Moisés)
facilitando as verificações pela história profana no que lhe diz respeito.
Entre as conhecidas, podemos citar: O CHANCELER DE FERRO, do
antigo Egito; A RAINHA HATAS-SO, O FARAÓ MERNEPHTAH,
HERCULANUM, IN HOC SIGNO VINCIS, A ABADIA DOS BENEDITINOS, A
VINGANÇA DO JUDEU e EPISÓDIO DA VIDA DE TIBÉRIO, ora oferecido ao
público ledor.
Analisando as diferentes atuações, em sucessivas reencarnações de
Espíritos ali figurantes verifica-se o maior ou menor progresso realizado
pelos mesmos, em séculos de lutas e expiações, comprovando, assim, a
Lei de Evolução. Igualmente, habilita explicar o motivo, para muitos
misterioso, das ojerizas, prevenções e antipatias gratuitas entre certas
pessoas, bem como a simpatia e afinidade demonstradas por outras.
Contatos, convivências ou relações mantidos outrora em existências
pretéritas, surgem como impulsos na conformidade da natureza desse
mesmo passado.
Sem o propósito de doutrinar ou induzir o irmão que caminha a
nosso lado a pensar ou sentir conosco no quadro de nossas crenças,
contudo, sentimo-nos felizes, com ROCHESTER, em oferecer-lhe os meios
de libertação mental que, por misericórdia de acréscimo, chega para todos
à hora aprazada, pois, as lições práticas contidas nos seus ditados, em
forma sugestiva de romance ou de depoimentos pessoais, constituem
excelente vereda aberta à compreensão dos problemas da vida e do
destino do Ser.
Rio, fevereiro de 1960.
B. BICUDO.
EPISÓDIO DA VIDA DE TIBÉRIO
DEPOIMENTO PESSOAL

Ditei a Rochester o que segue, pedindo-lhe transmitir ao espírito

que ele conhecia e com o qual me encontro, em sucessivas


reencarnações.
É com o maior desprazer que vou falar de uma existência que me
retrata numa época bem torpe, mas dedico este episódio de minha vida
ao espírito de Lélia, embora saiba que mais de uma pessoa lerá com
interesse esta exposição feita pela boca do verdadeiro Tibério, e não do
personagem descrito pelos historiadores.
Meu reinado, minha vida e a dos meus contemporâneos pertencem
à história; mas, os que a escreveram tanto acrescentaram, desnaturaram
e retificaram os fatos, sob a impressão do momento, que, da maior parte
dos homens desse tempo, nada mais ficou de verdadeiro, além dos
respectivos nomes.
Envergonho-me do passado, agora que séculos e vidas expiatórias
me hão moderado e tudo transformado em mim; a simples lembrança de
minha malícia e crueldade faz-me tremer. No episódio que vou contar,
abusei do meu poder saciando covardemente essa crueldade numa
indefesa mulher, que, por contingência de guerra, caiu nas minhas mãos.
Queria-lhe o amor, mas nunca pude obter o que buscava, desde séculos,
com toda a tenaz obstinação do meu caráter. Contava sempre que a
minha maldade lhe vencesse a resistência, que a crueldade a subjugasse;
todos os meus esforços foram vãos e, contudo, jamais a poupei, sempre a
espreitei no seu aspecto extenuado, se as suas forças e o seu orgulho se
tinham esgotado, entretanto, por mais infeliz ou desgraçada que ela
fosse, não cedia e me conturbava sem cessar: “Mata-me, tu não o podes
fazer duas vezes!”
Essa resistência me enraivecia a tal ponto que era capaz de matá-
la; contudo, jamais deixou de preferir a morte.
Assim continuava o combate através dos séculos, não para a posse
do corpo, que o poder me conferia, mas para a posse da alma, que nada
podia conquistar.
Era ainda herdeiro da coroa, ao tempo em que se desenrola este
episódio de minha vida — vida sinistra em que morri como tinha vivido.
Guerreava então os germânicos, mas a campanha já havia terminado.
Vitorioso, retirei-me para um campo entrincheirado, a fim de aguardar a
chegada de algumas legiões ainda retidas pelo inimigo.
O acampamento era campo de diversões. Bebedeiras, devassidão
com as prisioneiras, constituíam agradável passatempo. Por mim, dava
festas na minha barraca, armada no meio do campo e decorada com o
luxo fabuloso da época; tudo o que havia de mais precioso tinha sido
prodigalizado para ornar a habitação do herdeiro do trono.
Contando então cerca de quarenta anos, sentia-me insaciável de
prazer.
Uma tarde, reuni os comandantes das legiões, tribunos e outros
comandantes de unidades; junto a mim se encontravam, de um lado a
minha bela favorita Febé, e de outro Sejano, homem da minha confiança.
Os guardas pretorianos, imóveis como estátuas de bronze, guardavam o
interior e o exterior da tenda. Em dado momento, vieram dizer-me que
uma das legiões retardatárias acabava de chegar trazendo grande número
de prisioneiros.
— Muitas mulheres? — perguntei a Sejano.
Sejano pôs-se a rir, dizendo:
— Já não tendes tantas? Nem sabemos que fazer das que aqui se
encontram e será preciso enforcá-las ou queimá-las, porque não é
possível alimentá-las todas e encaudá-las ao exército.
Entretanto, o centurião me respondeu que traziam apenas três,
pois as demais haviam perecido na viagem, por fadiga ou às mãos da
soldadesca. Dessas três, duas eram velhas e agonizavam; a terceira, era
jovem e noiva de um chefe germânico chamado Hilderico. E acrescentou
que essa prisioneira era uma verdadeira diabinha, que dera muito
trabalho para deixar-se conduzir; que também combatera, mas vendo a
derrota dos seus, cedera o cavalo ao noivo e este havia fugido, caindo ela
prisioneira; que durante o trajeto, várias vezes, tentara suicidar-se e que
somente por ser jovem e bela, haviam-na trazido para que eu decidisse
da sua morte. — Muito bem! — respondi — veremos e, se não me
agradar, Sejano poderá tomá-la; tragam-na aqui.
Instantes após, abria-se o reposteiro da barraca e entraram
escravos conduzindo nos braços uma mulher, que depuseram de pé, à
minha frente. Fitei-a e meus olhos ficaram cravados nela, como que
fascinados. Sem dúvida, o passado estava esquecido, o homem Tibério
nada recordava; mas a alma acabava de reconhecer o seu fatal
antagonista de muitas etapas terrenas. A jovem que aí estava diante de
mim não retraçava uma beleza clássica, nem possuía, ao demais, o puro
tipo germânico; antes parecia inculcar um misto de raças; muito delgada,
porte médio, rosto pequeno e redondo, modelado por traços
delicadíssimos, grandes olhos azul-escuros e um brilho metálico, de
expressão algo tigrina, a revelarem muita teimosia e ódio feroz à minha
pessoa. Não baixou a cabeça como faziam os demais prisioneiros, em
cujos semblantes se poderia ver, claramente, temor e desespero; ao
invés, mostrava-se altaneira e olhava-me, cheia de ódio e audácia. Fiquei
tão surpreso quanto interessado. Com que contava ela? Não saberia
diante de quem se encontrava? Trazia um vestido branco de lã, sujo pela
viagem, uma capa azul pendente dos ombros, pulsos algemados. Percebi,
desde logo, que estava extremamente fatigada, pois palidez mortal lhe
cobria o belo rosto, e, não obstante, se mantinha de pé em atitude
insolente, como se nada temesse.
Isso me revoltava.
— Sabes diante de quem te encontras? — perguntei-lhe. — Por
que de joelhos não pedes graça como os demais prisioneiros?
Ela demonstrou imediatamente que não tinha a língua algemada
como os pulsos:
— Não suplico graça senão aos deuses e não a um tirano como tu;
mata-me; não poderás fazer-me maior mal, pois tudo perdi e não me
interessa viver. ( 1 )
Jamais havia encontrado mulher tão atrevida, que falasse como
quem comandava.
— Cala-te! — exclamei — ninguém te pediu opinião e farás o que
te for ordenado.
Desdenhoso sorriso se esboçou nos lábios da prisioneira:
— Ordena e verás se te obedeço; podes fazer tudo; bater-me,
torturar-me, matar-me, jamais te obedecerei.
Eu estava interessado no mais alto grau; aquela frágil criatura, que
mal se sustinha nas pernas vacilantes, falava com tom gigante; notei,
também, que seu rosto era fascinante e que a obstinação feroz condizia
admiravelmente com os seus traços infantis.
— Sou Tibério,— disse-lhe — meu nome deve ser conhecido e
temido por ti e pelos teus. Eu te ensinarei não somente a obedecer-me,
mas também a amar-me, pois te reservo para mim.
Voltando-me para Sejano, que aguardava ansioso a decisão:
— Não te suponhas com força para domar este pequeno tigre; eu
próprio o farei; e tu, Febé, não ouses invejá-la; conheço-te e advirto: se
fizeres cair um só cabelo da cabeça desta jovem, mandarei decapitar-te;
dou-te minha palavra e tu sabes que a cumpro. Não concederei a ninguém
a glória de dominá-la; eu mesmo o farei, e para isso, atentai todos vós a
quem a confio, para que não lhe aconteça o menor mal ou venha a fugir,
sob pena de terdes a cabeça decepada. Agora, Febé, toma conta da
prisioneira, a fim de que se alimente e cuide da sua higiene, porque mal
se agüenta. Quanto a ti, jovem, é preciso que me ames e convém que não
recalcitres. Como te chamas?
Em lugar de responder, virou o rosto, muda.

1
Convém advertir que ela falava a língua dos romanos? porquê era filha de romana, que
lha ensinara.
— Como te chamas? — repeti. Nada...
— Como te chamas? — bradei furioso.
— Para ti não tenho nome, compreendes? Deixei, lá atrás, tudo:
nome, pátria, pais, noivo, amor; aqui sou objeto sem nome, e aquilo que
todos que me são caros pronunciaram, tu não o saberás.
— Oh! — exclamei — mandarei espancar-te até a morte, se não
me responderes.
— Por que falas tanto em lugar de executar? exclamou a diabinha,
cujo faro feminino tinha percebido já, até que ponto sensível me havia
tocado. Piquei petrificado, pois mulher alguma ousara ainda dizer-me tais
coisas.
— Acreditas que teus berros me amedrontam? . Podes matar-me.
Se me espancares, morrerei mais depressa e eis tudo, porque minhas
forças me abandonam; com o meu cadáver farás o que te aprouver,
mesmo uma iguaria com que te repastes.
Levantei-me e bati o pé.
— Como ousas responder dessa forma, insensata, a mim, futuro
imperador? Esmagar-te-ei com o meu poder, louca!
Ela não baixou a cabeça, antes me fitou com insolência:
— Faço idéia muito relativa do teu poder, que não me impressiona:
mostra-mo, então, porque apenas vejo que te enraiveces muito.
Ordenei aos guardas que a pusessem perto de mim. E dirigindo-me
a ela, disse-lhe:
— Aproxima-te e segura a minha taça.
Obedeceu, recebeu a taça que um escravo acabava de encher e,
inclinando-se, derramou-a sobre a minha cabeça.
Não soube mais o que fazer. Para um tal crime de lesa-majestade,
devia matá-la, não podia mesmo inventar outra punição. Febé chorava de
tanto rir, repetindo:— Mas é louca, a ferazinha!
Fiz-me enxugar, lavei-me e, braços cruzados, aproximei-me dela.
— Que fizeste? — perguntei — estas em teu perfeito juízo?
— Sim,— respondeu — sou filha de um chefe e jamais
desempenharei papel de serva, mesmo para um futuro imperador.
— Ah! recusas por orgulho? Pois bem; ordeno que me obedeças.
— Deixa-me antes repousar, manda enforcar-me, queimar ou
afogar, à tua escolha, contanto que acabe com isto.
Percebi-lhe o desejo de morrer.
— Isso nunca! — Antes hei de possuir-te.
Pela primeira vez, ela recuou apavorada; teria esquecido o poder
que eu tinha sobre os prisioneiros? De repente disse com voz mudada e
terna:
— Deixa-me morrer honestamente; sou noiva de Hilderico e tu aí
tens tantas prisioneiras para satisfazer-te a concupiscência e crueldade...
Não desejo viver, a morte é a única graça que te peço.
Oh! amava então esse Hilderico, de quem já ouvira gabarem a
coragem!
Esse pensamento me tornou sobremaneira insensível.
— Nada de morte; viverás e hás de ser minha, por bem ou por
mal.
Ela pôs-se a rir às gargalhadas.
— Amar-te a ti? tão feio, com essa cabeça e essa cara raspadas?
Nunca viste Hilderico e por isso não podes fazer idéia de algo semelhante.
Diante dessa resposta digna de uma selvagem, apenas os
semblantes dos guerreiros permaneceram impassíveis. Estranha
expressão de constrangimento se esboçou nos demais convivas.
Provei uma nova e maior decepção porque me julgava assaz
bonito.
No mesmo instante, ela cambaleou e teria baqueado se não a
houvesse amparado. Coloquei-a a meu lado e só então lhe notei uma
ligadura ensangüentada. Atentei para os seus guardas, eles
empalideceram e me disseram que ela havia tentado matar-se e que
havia quatro dias vinha recusando todo e qualquer alimento.
Experimentei, então, verdadeiro terror, imaginando que pudesse morrer
nas minhas mãos, antes que a domasse e transformasse em mulher
amável, que me achasse bonito.
— Vós me pagareis tudo isto! — exclamei.
Derramei vinho nos seus lábios e ela acabou por voltar a si, mas,
tão fraca que apenas respirava.
Levei-a para o meu palácio em Roma, instalando-a num aposento
de cuja chave não me separava. Eu próprio levava-lhe as refeições, mas
não conseguia que se alimentasse. Só podia forçá-la a comer um pouco,
empunhando chicote ou punhal. Era então minha amante, não tive outra
tão rebelde e de uma vida estranha. Detestava-me a tal ponto que só
comia de olhos fechados.
Eu queria tornar-me amado sem o conseguir, apesar da maior
severidade. Deixava-a sem comer amarrada no leito, privada de liberdade
e movimento e nada obtinha; só respondia às minhas palavras com
desdenhoso silêncio. Dizia-lhe: Se não te tornas mais amável, não
reaparecerei senão quando me rogares de joelhos.
Nem assim respondia, e os dias se passavam e eu me sentia
obrigado a voltar para junto dela.
Certa feita, precisei ausentar-me de Roma por oito dias. Confiei a
chave do seu quarto a um criado, com ordem de levar-lhe as refeições;
mas, pouco depois, me esquecia disso e, por um motivo qualquer, fiz
decapitar o detentor da chave. Quando voltei, foi preciso arrombar a porta
e fui encontrá-la quase morta de fome. Teria passado terríveis momentos,
pois tinha as vestes esfarrapadas, os anéis de ferro da algema lhe haviam
penetrado profundamente na carne e coberta de sangue. Certamente,
quisera desembaraçar-se da corrente, sem o conseguir. Só a custo de
muito trabalho, conseguiu-se reanimá-la e procurei, então, ser mais
indulgente. Nada, porém, lhe abrandava o caráter atrevido.
À proporção que corria o tempo eu me tornava mais
estranhamente ligado a ela. O ódio manifesto que me votava, aquela
resistência de todos os momentos, irritavam agradavelmente os meus
nervos esgotados. Visitava-a todos os dias, muitas vezes levava-a a
passear, se bem que ela preferisse a prisão ao ar puro em minha
companhia.
Cerca de um ano assim correu, até que um dia notaram que vários
homens rondavam a parte do palácio onde ficava a prisão de Lélia, os
quais pareceram suspeitos.
Informado de que haviam chegado a Roma numa embarcação, fi-
los vir à minha presença para interrogá-los. Estava a refrescar num
terraço tendo-a perto de mim deitada sobre almofadas, quando se
apresentaram os detentos.
O primeiro era um rapagão de notável beleza; cabelos louros,
longos e encaracolados caiam-lhe pelos ombros e os grandes olhos azuis
rebrilhavam de orgulho e energia. Ao ver Lélia, soltou um brado de
alegria, que tratou, em seguida, de disfarçar desviando o olhar.
Eu sabia que eles eram germânicos e uma vaga desconfiança se
apoderou de mim.
— Como te chamas? — perguntei. Ergueu altivamente a cabeça e
já se dispunha a responder, mas, no mesmo instante seus olhos se
fixaram em Lélia e calou. Voltei-me bruscamente e percebi ainda o gesto
suplicante que ela lhe dirigia para que se calasse.
— Ah! — pensei — este é o Hilderico, mais belo do que eu!
Ele recusou-se identificar-se, mas, pela tortura, consegui que os
companheiros revelassem a sua identidade.
Prendi Lélia a sete chaves e ordenei a morte de Hilderico pela
seguinte forma: enterrado até o pescoço, com a cabeça exposta ao sol.
Em redor da cova um muro de pedra, circular, e no recinto fechado
mandei lançar ratos esfomeados de três dias, que entraram a roer o belo
Hilderico com voracidade inaudita, com o que me deleitava através de
uma abertura adrede preparada no muro.
Lélia, no auge do desespero, queria a todo preço rever Hilderico.
Então, por vingar-me das suas insolências, levei-a ao local e, erguendo-a,
fi-la espreitar pela abertura. Ao ver Hilderico sem nariz e orelhas, lábios,
faces carcomidas, irreconhecível e disforme, ficou acabrunhada.
— Pois bem — disse-lhe — ainda sou mais feio do que ele?
Ela que, por princípio, jamais me respondia, voltou-se nesse
momento e eu fiquei positivamente horrorizado com a expressão do seu
rosto: os olhos injetados de sangue, a boca escumante, atirou-se a mim
qual besta fera, tentando estrangular-me. Seus dedos enterraram-se no
meu pescoço como pinças de ferro e meus guardas tiveram grande
trabalho para me desvencilhar da sua fúria.
Após este segundo crime de lesa-majestade, reuniu-se um
conselho que decidiu fosse ela exposta às feras no circo, na primeira
função. Eu, porém, me sentia tão ligado a ela, que, apenas expedida a
sentença, começava a voltar atrás; parecia-me não constituir suficiente
vingança vê-la espedaçada pelas feras; eu mesmo poderia puni-la bem
mais severamente. Minha dignidade, porém, não permitia retratar-me e
conceder-lhe o perdão por iniciativa própria. Fiz-lhe saber, então, que, se
publicamente e de joelhos me pedisse perdão, eu lho concederia. O
gladiador Astartos( 2 ), que deveria vigiá-la até o dia do espetáculo, foi
incumbido de conduzir a negociação. Tive com ele várias conferências a
respeito, e como fosse um belo tipo de moço, o ciúme começou a
espicaçar-me e avisei-o de que, sob pena de morte, deveria mostrar-se
pouco compassivo com a prisioneira, reservando-me eu próprio para esse
ser ingrato ao qual desejava conceder, excepcionalmente, uma proposta
de perdão.
Ela respondeu por intermédio de Astartos, que preferia mil vezes a
morte ao meu perdão. Exasperei-me.
No dia aprazado, fui ao circo e logo que me instalei no camarote,
senti-me possuído de penosa angústia ao pensar que ela ia ser
estraçalhada e devorada.
Os gladiadores foram os primeiros a penetrar e tomar posição na
arena; depois, abriu-se pequena porta e entrou Lélia. Estava toda de

2
Este gladiador era, nesta encarnação, o mesmo que mais tarde veio como Conde de
Rochester.
branco, um cinto prateado à cintura, solta a soberba cabeleira loura,
encimada por uma grinalda de flores. Havia ordenado que lhe fosse dado
tudo que pedisse e ela quis assim preparar-se para morrer. Entretanto, no
momento decisivo, parece que lhe fraquejou a coragem, porque se apoiou
no muro e tapou o rosto com as mãos.
Abriu-se uma jaula e gigantesco tigre saltou na arena rugindo.
Lélia deu um grito o caiu de joelhos, não voltada para mim, mas para o
tigre, que estacou um instante, surpreso e indeciso.
Aproveitei o lance: conheciam as condições que havia imposto para
conceder-lhe a vida. Elevei a voz:
— Ela pede graça, gladiadores; salvem-na, se possível!
Procurei não parecer muito solícito, mas o populacho bradava
também: «graça! graça!»
O tigre, que já havia espertado com a minha exclamação, ainda
não tivera tempo de começar o ataque, porquanto, nesse instante,
entraram na arena um leão, uma pantera e outros animais. As feras
rugiam lugubremente e se entreolhavam, prontas a disputar a presa;
haviam cercado Lélia desmaiada, e apenas o ciúme recíproco lhes impedia
começar o repasto.
Impossível qualquer tentativa de salvação. Não obstante os
gladiadores terem-se colocado entre as feras para dispersá-las, Astartos
se lançou corajosamente sobre o leão, que, com a língua avermelhada, já
lambia a alabastrina espádua de Lélia, e desviando-o com vigoroso golpe
de sabre, arrebatava-a para uma das jaulas vazias, ali encerrando-a.
Salva!
Não prestei grande atenção ao resto do espetáculo, durante o qual
os gladiadores mostraram toda a sua coragem e agilidade, tendo mesmo
mais de um sacrificado a vida.
Meu pensamento vagava longe. Determinei que Lélia fosse
conduzida ao palácio e desde que lá cheguei, permaneci junto dela,
embora já fosse tarde. Ela dormia e como estava extenuada, logo que
tentei reanimá-la, com dificuldades abriu os olhos para fechá-los em
seguida, recaindo novamente inerte, como morta. Permaneci a seu lado
algumas horas e voltei aos meu aposentos muito contente por ter-se ela
ajoelhado diante do tigre.
Ela mesma dará os pormenores de nossa vida em comum; aqui
mencionarei apenas que, ao cabo de dois anos, fugiu em um navio pirata,
fretado pelo irmão para libertá-la. Empreendi a perseguição, sendo logo
encontrado o navio. Determinei, então, fosse incendiado e gozamos o belo
espetáculo de um barco em chamas, no meio do oceano, em fundo
enegrecido pela fumaça. A equipagem atirou-se ao mar para salvar-se.
Ordenei aos pretorianos capturassem Lélia viva, se fosse possível. Nesse
instante, lobriguei-a no convés incendiado e vi que se atirara ao mar.
Meus soldados se precipitaram igualmente. Avancei minha embarcação e
breve minha bela companheira, retirada das ondas, era-me restituída a
debater-se como louca, a arrancar-se dos meus braços para mergulhar de
novo. Enraivecido ao extremo por ver uma obstinação tão tenaz, saquei
do punhal e enterrei-lho no flanco. Tombou inerte banhada em sangue.
Passado o furor, arrependi-me vivamente do feito. Conduzi-a ao
palácio, onde o médico declarou que apenas teria algumas horas de vida.
Pensou-se a ferida; mandei que todos se retirassem; queria ficar sozinho
com a agonizante, levada ao seu próprio quarto.
Há momentos em que o tirano mais poderoso, o assassino mais
endurecido, experimenta arrependimento e remorsos. Era o que me
sucedia então.
Cabisbaixo, permaneci junto do leito onde ela jazia inanimada;
apenas um cirro se lhe escapava da garganta e a respiração lenta e difícil,
indicava que o coração estava prestes a terminar o seu último e doloroso
esforço. Eu sabia que tudo estava perdido e aguardava o fim.
Prestes a respiração pareceu parar; inclinei-me e vi que seus olhos
se reabriam como em plena consciência. Nossos olhares se encontraram e
constatei que a morte não lhe alterava o ser; a boca não mais podia falar,
mas os olhos exprimiam todos seus pensamentos; envolveu-me num
último olhar saturado de ódio implacável, de desprezo esmagador; depois
amorteceu, a respiração cessou; apalpei-lhe o coração, já não batia,
estava morta!
Que sentimento estranho domina o coração do homem quando ele
sente a própria incapacidade diante de um cadáver, cuja impassibilidade
parece ridicularizar o seu poder! Eu era Tibério, o futuro imperador! Mas
ali meu poder havia esbarrado nos seus limites. Nem meu amor, nem meu
ódio, puderam algo sobre aquela mulher, cujo cadáver agora afrontava a
minha autoridade!
Certamente, ninguém percebeu meus sentimentos. Abandonei a
sala mortuária, impassível; nada em meu rosto traía qualquer emoção ou
arrependimento; e, no entanto, sentia-me profundamente acabrunhado
até as profundezas do meu ser.
Determinei pomposos funerais e depois minha vida retomou seu
curso normal; não me tornei nem mais nem menos cruel do que fora até
então; matei à fome minha mulher e minha mãe, pereci asfixiado por
aqueles que acreditavam que eu ainda viveria muitos anos. O momento
da morte pareceu-me longo atordoamento, durante algum tempo não
pude compreender minha situação; enfim, percebi que tinha deixado a
Terra e, errando no espaço, vi muitos personagens poderosos, que,
relegados à solidão, gemiam dolorosamente. Eu mesmo presenciei o
desfilar de TODAS, TODAS as minhas vítimas; todos aqueles nos quais
cevara minha crueldade, vinham com seus sofrimentos cercar-me em
delírio; Lélia também não faltou! E depois, apesar de tantos séculos de
provas e expiações, combateremos ainda as nossas más paixões até o
momento em que, abrandadas e dominadas, sejamos capazes de nos
amarmos com verdadeiro sentimento cristão, tal como prescrevem as leis
divinas. Mas, até agora, as paixões inferiores despertam em nós um ódio
recíproco, talvez um pouco mais atenuado que outrora; dissimulado sob
as cinzas dos séculos, despertando sempre em cada uma das nossas
encarnações terrestres.
TIBÉRIO
NARRATIVA DE LÉLIA

O descrever esta vida e muitas outras, cheguei por vezes a duvidar da

justiça divina que, tão freqüentemente, me colocou sob o poder desse


monstro, para corrigi-lo, sem considerar o que isso me custava.
Morrendo quase sempre na flor da idade, século houve em que tive
duas encarnações; e se uma era tranqüila, a seguinte tornava inevitável
meu encontro com Tibério. Será que eu fora criada para fazer dele um
homem virtuoso?
Aqui tudo contarei, sem nada ocultar, porque ele, Tibério, silenciou
muita coisa, máxime o que diz respeito à Febé, cúmplice que sempre o
acompanhou em todas as encarnações em que fui sua presa. De fato, ela
sempre foi o obstáculo contra o qual esbarravam ainda as minhas boas
intenções. Tibério só manifestou indulgência para com essa criatura
nefasta em todas as vidas em que combatermos, eu para o bem, ela para
o mal. Ela sempre o dominou e isso não é de estranhar, porque seus
crimes e profunda perversão moral tornavam-na mais atraente para ele
do que eu. Também tenho meus defeitos, muito grandes mesmo, mas,
em todas as minhas encarnações sempre me esforcei por dominar as
paixões e aspirei despertar em mim sentimentos humanos; nunca fui cruel
por prazer, para regozijar-me friamente com os sofrimentos alheios, tal
como eles que sempre se alegraram com a desgraça de quantos se lhes
aproximavam.
Na vida de Tibério, de Derblay, de Saurmont e noutras biografias
em que não tenho mencionado o seu nome, duas mulheres
desempenharam um papel principal. A Febé cabia a parte funesta e, por
fim, ele sempre acabava-nos eliminando.
Abro esta narrativa partindo do tempo em que me encontrava na
Germânia, em companhia dos meus, e quando se iniciava a desastrosa
guerra com os Romanos.
Minha família compunha-se de pai, mãe e dois irmãos já homens
feitos. Minha mãe era uma romana aprisionada pelos nossos, quase
criança; cresceu na tribo assimilando nossos costumes e mesmo a
religião, e acabara casando com meu pai, grande chefe de uma das tribos
alemãs, a quem muito amava. De sua origem romana apenas lhe ficou o
conhecimento da língua latina, que nunca esquecera e me ensinara.
Resolvida a guerra com os romanos, antes da abertura das
hostilidades, foi celebrada grande festa para toda a tropa reunida.
Em vasta planície levantaram-se as barracas rodeadas pelos carros
e demais coisas inúteis, que o nosso exército de bárbaros levava no seu
séqüito.
Ergueram-se altares ornamentados de flores e folhagens, todos
vestiam as melhores roupas e a festa começou por imensos sacrifícios aos
deuses, para obter feliz sucesso. Depois, começaram as danças ao ritmo
dos cantos selvagens dos nossos guerreiros a prolongarem-se até alta
madrugada.
Esse dia foi para mim duplamente feliz, pois celebrou-se também o
meu noivado com Hilderico, jovem chefe já afamado ao qual me ligava
com amor recíproco.
A guerra começou e, com ela, tempos bem duros; entretanto, eu
me sentia feliz acompanhando meu pai e os guerreiros; participava de
todos os combates, embora me mantivesse um tanto à retaguarda, e não
era mulher indefesa, pois em caso de necessidade sabia muito bem
combater; montava a cavalo como uma Valquíria e manejava
perfeitamente o arco e o dardo. Adorada pelos soldados e por todos
respeitada, porque nossos costumes eram severos e a mulher ocupava, na
família, posição e consideração destacadas, quase em paridade com o
homem, jamais qualquer rude guerreiro que se aproximasse de mim,
esqueceu o respeito devido ao meu sexo. Cercavam-me de todo conforto
compatível com a situação; dormia no campo, onde, à noite, me
preparavam uma cama feita de lanças reunidas, cobertas com pelegos;
acendia-se a fogueira perto da barraca e nada me faltava. Para mim os
melhores bocados e o primeiro trago de vinho. Vivia assim tranqüila, feliz
e lisonjeada...
Entretanto, oh! Deus, que sorte horrível me estava reservada!
A luta tornou-se desfavorável para nós. Tibério, o futuro
imperador, comandava os exércitos romanos, que, mais disciplinados e
melhor equipados, nos guerreavam sem tréguas. O inimigo esforçava-se,
sobretudo, por aprisionar o maior número possível de mulheres, a quem
um triste destino aguardava na longínqua Roma, onde a depravação —
dizia-se — atingira as raias do inacreditável. Também, nós, fizéramos
juramento de morrer voluntariamente, antes que nos rendermos vivas às
mãos do inimigo.
Dentro em pouco empenhou-se grande batalha na qual meu pai
tombou gravemente ferido. Nesse dia, tristemente memorável, o exército
romano apresentava grande superioridade numérica e fomos esmagados.
Os soldados caíam um por um, nossas fileiras rareavam a olhos vistos.
Esquecendo toda a prudência, eu combatia furiosamente ao lado de
Hilderico, pois odiava de morte os romanos. Já no fim do combate, caiu
morto o cavalo de Hilderico e ele próprio ia sendo sacrificado. Um soldado
romano já o havia lançado por terra e alçado o braço para desferir o golpe
mortal. Vendo o perigo, galopei para o local, ergui o alfange e de um
golpe fendi o crânio do romano. No mesmo instante saltei do cavalo,
dizendo:
— Toma-o, és chefe, tua permanência aqui será a desonra;
cumpre-te comandar os nossos, foge!
Ele montou e partiu como um relâmpago. No mesmo instante, fui
envolvida por furiosa soldadesca que me teria degolado, se um oficial não
me protegesse, notando-me a beleza e a mocidade.
Tentei suicidar-me, mas fui impedida, conseguindo apenas ferir-
me. Algemaram-me, então, e partimos para o acampamento de Tibério.
Não direi da trágica viagem e dos maus tratos que suportei. Os
romanos, apesar de se julgarem muito superiores a nós em civilização,
eram muito mais grosseiros que os nossos selvagens guerreiros.
Enfim, chegamos.
Tibério, ao que diziam, deveria decidir da minha sorte. Ordenou
fosse conduzida à sua presença e, como me recusasse a andar,
carregaram-me até lá.
Recordo-me ainda, perfeitamente, o interior dessa barraca, onde,
ao redor de uma mesa posta com luxo até então por mim desconhecido,
um grupo de homens ricamente vestidos e de rostos afogueados pelo
vinho, mantinham-se recostados e coroados de flores. À cabeceira da
mesa, num leito mais elevado e mais enfeitado que os outros, vi um rosto
cujo aspecto me inspirou terror e asco. Face raspada, olhos enervados,
tinha uma expressão de crueldade e desconfiança qual leão em atitude
indolente; recostado com uma das mãos apoiada no joelho, inclinava-se
para frente a fim de melhor me observar. Cingia uma toga encarnada e
tinha um aro de ouro na cabeça; rico e brilhante colar pendente do
pescoço. A seu lado, um homem alto, gordo, de rosto congesto e
avinhado, expressão sórdida e insolente. Do outro lado, assentada, uma
mulher de saia curta, verde, bordada a ouro, deixando ver as pernas
inteiramente nuas até os joelhos. Da blusa insuficiente, não falarei; seu
rosto não era feio, mas de traços grosseiros, faces caídas, avermelhadas
pela bebida e os grandes e desavergonhados olhos negros que me
observavam, transparentes de ódio e zombaria. Mantinha soltos os
cabelos negros, que lhe caíam em massa sobre os ombros, encimados por
uma coroa de flores encarnadas.
Tibério descreveu, ele próprio, o que se passou então, mas,
prudentemente calou que foi a minha referência à sua fealdade que o
levou a espancar-me e que desmaiei sob os seus golpes.
Oh! quanto o abominava! Sua presença era-me odiosa!
Conduziu-me a Roma e encerrou-me numa sala razoavelmente
mobiliada, mas de janela gradeada. Febé era a minha guardiã e livre Deus
os detentos de uma tal carcereira.
De começo, procurou mostrar-se amável, mas pouco a pouco lhe
percebi toda a crueldade. Tibério, que sempre procurou justificar as
próprias culpas, mentiu ao dizer que havia proibido me tocassem. Febé e
Sejano podiam atingir-me, sobretudo Febé, que devia fazer-me comer a
força. Assim que, de uma feita, esteve a ponto de estrangular-me,
forçando-me a engolir o alimento, porque eu estava amarrada e quase
privada de movimentos. Noutra ocasião, deu-me vinho fervendo,
derramando-o tão desastradamente que me queimou a boca, pescoço e
braços. Tibério não lhe fazia a menor advertência. Uma vez, mordi-a no
peito com tal gana que ela enfermou algumas semanas. Assim foi que o
meu algoz passou a servir-me pessoalmente, pois não confiava em Sejano
e desejava conservar-me para si.
Tibério era um caráter tão teimoso e cruel, que parecia não
alimentar qualquer sentimento de humanidade. Convenceu-se de que
devia ser amado por mim e imaginava que o conseguiria pela crueldade.
Repetia freqüentemente que eu devia amá-lo, mas por sua vez não o
fazia. Visitava-me todos os dias para sondar meu íntimo e sua insolência
chegou a ponto de pretender que eu dissimulava o meu afeto à sua
pessoa! Essa presunção ridícula ter-me-ia feito rir em qualquer outra
circunstância, mas a horrível situação em que me encontrava, havia-me
desabituado de fazê-lo. Depois de falar, ordenar, gritar, sobrevinham os
acessos de furor e saía dizendo:
— Olha, não voltarei senão quando estiver quebrada a tua teimosia
e houver experimentado todos os sofrimentos de um amor desdenhado.
Para me suscitar ciúmes, trazia Febé, abraçava-a e acariciava
diante de mim, encenando ternuras amorosas. Meu coração, porém,
estava longe de Roma, não dava atenção a essas representações ridículas.
Febé detestava-me, mas não se atrevia a ferir-me diretamente;
conhecia a fundo o caráter de Tibério e exercia grande influência sobre
ele; sabia aguardar os momentos favoráveis para tecer alguma intriga,
encontrando quase sempre acolhida. Durante muito tempo, eu de nada
soube e só mais tarde percebi que, permanecendo longas horas junto de
mim, sem jamais obter uma resposta, ela me deixava para ir dizer a
Tibério que eu lhe havia assacado os mais terríveis ultrajes. Sejano, seu
amante, confirmava e jurava ter testemunhado ou sabido o que eu dissera
a Febé e tanto excitavam Tibério, que ele parecia um verdadeiro tigre
quando aparecia, sem nunca aludir, entretanto, as mentiras que lhe
contavam.
Havia no caráter de Tibério qualquer coisa de covardia, uma
baixeza, que mesmo os séculos não puderam corrigir inteiramente; nas
outras encarnações que de conjuguei com ele, essa fraqueza constituiu
sempre o fundo do seu caráter, sobretudo em face dessa mulher ordinária
que ele temia estranhamente, apesar da sua alta posição e ferocidade.
Um dia em que, de novo, eu fingia, por que não queria confessar-
lhe o meu amor, levantou-se e disse:
— Pois bem! parto e não me verás até que, por tuas súplicas e
plena confissão de teu amor, eu consinta em perdoar-te. Vou procurar
Febé, que me é mais dedicada e tem por mim verdadeiro amor.
Com isso esperava enciumar-me, mas nada respondi e lá se foi ele.
Veio a tarde, transcorreu a noite, surgiu o dia sem que me
trouxessem o menor alimento. Amarrada ao leito, achava-me até privada
de movimentos e, nessa horrível posição, experimentei todas as torturas
da fome e da sede. Fase terrível essa. Queria desembaraçar-me do leito
maldito, ao qual estava atada; pedia, gritava, tudo em vão. Boca
ressequida, língua colada ao véu palatino, ardiam-me os olhos, tinha
desmaios; os anéis das algemas haviam penetrado profundamente na
minha carne pelo esforço que fazia para desembaraçar-me; o sangue cor
ria, eu me debatia delirante, louca.
Por fim, fiquei como que envolta numa, nuvem, meu corpo
queimava; pensei que o teto desabava sobre mim, que os muros se
fendiam em círculos de fogo; depois, sobreveio um último desmaio e perdi
os sentidos. Pensei que estivesse morrendo. Mas, seria tão dolorosa a
separação da alma e do corpo?
Passado algum tempo, que não posso precisar, pareceu-me que
despertava; senti sacudir-me fortemente e despejar qualquer coisa em
minha boca. Abri os olhos e vi o meu perseguidor Tibério, lívido,
assustado, a sacudir-me, quase a quebrar-me os ossos.
Vendo-me reabrir os olhos, colocou-me na cama e busquei dar-lhe
a entender que vivia para não ser maltratada por aquela forma.
Mais tarde, vim a saber que, por abominável intriga, forjada por
Febé e Sejano, o homem que guardava a chave do meu quarto e que
deveria trazer-me alimentos, tinha sido decapitado.
Tibério não arredou pé e quando me viu pouco melhor, disse:
— Tudo isso é fruto da tua teimosia estúpida em não querer
confessar teus verdadeiros sentimentos para comigo.
A presunção do tirano não lhe permitia compreender que era
incapaz de me inspirar paixão e assim se manteve em mais de uma
existência. Nem sempre, porém, dispôs dos meios de tirano para me
dominar e contentava-se, então, em praticar crueldades que lhe permitia
a época em que vivíamos e a posição que ocupava.
Essa dissimulação de minha parte e que ele no seu íntimo não
acreditava, sempre o exasperou e conduziu à maldade; nunca, porém,
experimentou o único meio que me poderia reconduzir-lhe. O amor não se
inspira pela violência, mas pela nobreza e bondade da alma, que fazem
esquecer ofensas e despertam afeição. Sua presunção e orgulho não lhe
permitiam manifestar tais sentimentos. Além disso, Febé e Sejano,
constituiam-se fiadores dedicados da sua desmoralização e dos seus
vícios, de que tiravam partido.
Em muitas existências Febé concorreu comigo, mas também
sempre recusei combatê-la. Tibério não contribuía para isso, porque,
constantemente, me preferiu. Quanto a mim, tenho um espírito que me é
caro e simpático: o de Helderico; quando o reencontro, esqueço tudo
mais.
O médico prescreveu passeios; eu devia respirar ar puro, se
quisesse restabelecer-me. Tibério consentiu em que o fizesse, mas
unicamente na sua companhia. Muitas vezes também repousava num
terraço, deitada sobre almofadas, mas raramente trocávamos palavra.
Tibério tinha um gênio pouco comunicativo e absorvia-se nos seus
pensamentos; e eu, por mim, me encontrava em tal estado de espírito,
que mais me aprazia calar.
Certa feita, conduziram a esse terraço onde me encontrava, como
de costume, vários prisioneiros. (Soube mais tarde que eles haviam
rondado a minha prisão). Vendo-os, quase desmaiei de alegria e terror; é
que entre eles reconheci Hilderico e meu irmão Raimundo. Tibério
percebeu a alegria de Hilderico ao ver-me e seus olhos brilharam sinistros.
Após breve interrogatório, fê-los recolher à prisão.
Até então, apesar dos meus padecimentos, gozava relativa calma,
mas daí por diante, sabendo que Hilderico e meu irmão se encontravam
perto de mim, todo o meu estoicismo desapareceu. Queria vê-los a
qualquer preço. Tibério não aparecia e eu o aguardava com tal
impaciência, que, cada passo me fazia estremecer. Ele não vinha. Então —
coisa incrível— decidi-me a comunicar-lhe que desejava vê-lo. Mesmo
assim, não atendeu. Meu desespero era indescritível. Febé, que se
mantinha a meu lado, dizia:
— Enfim, vês que Tibério te abandona e não atende ao teu
chamado. Mas o que ignoras é que os prisioneiros, que viste, vão ser
mortos e o belo jovem louro terá os olhos vazados e o nariz cortado.
Eu tapava os ouvidos para não ouvir essas horríveis confidências e
pedia insistentemente que chamassem Tibério.
For fim ele veio, mas acompanhado de numeroso séqüito. Ao
entrar, deixou a porta aberta e disse de modo a que todos ouvissem:
— Enfim, o amor dominou teu orgulho e mandaste chamar-me. A
uma bela mulher é preciso tudo perdoar.
A raiva se apoderou de mim e exclamei:
— Não foi por isso que te mandei chamar, tirano!
Não pude continuar, porque Sejano bateu a porta com violência,
para nos separar da comitiva. Tibério estava fora de si.
— Então, por que me chamaste? Como ousas desdizer-te? Desde
que me avistas, retomas tua insolência e neste caso retiro-me sem te
ouvir.
Como se tratasse da vida de Hilderico e de Raimundo, eu estava
completamente fora de mim. Tibério abriu a porta e quis sair.
— Fica! — exclamei.
Ele saia devagarinho, apenas movia os pés.
— Fica, Tibério.
Mas não parecia ouvir-me.
— Eu te suplico, fica. Voltou-se e disse:
— Por que mo pedes? não cales, nem escondas o motivo de tanta
insistência, porque, de outro modo, não mais me verás.
A raiva me sufocava: se lhe dissesse que desejava falar dos
prisioneiros, estaria tudo acabado, ele não mais voltaria.
Corei de vergonha e revolta; ele queria forçar-me a declarar,
diante do seu séquito, que o retinha por amor, e eu preferia, contudo, ter
a língua cortada a dizer semelhante coisa.
Começou a sorrir... Como já disse, ele era a fatuidade
personificada. Mantinha, indolentemente, uma das mãos na cintura e
outra acariciando o queixo.
— Pois bem, Lélia, bela Mara! Vês? Desde o momento que me
tornei caro a ti, os deuses permitiram soubesse teu verdadeiro nome — e
voltando-se para o séqüito. — Vede, entretanto, como ela se sente
acanhada em confessar que me ama! Fraquezas da alma feminina! Mas o
tempo urge, Mara, por que me chamaste? Como choras! Não chores,
confessa somente a verdade!
Meu coração batia na iminência de romper-se. Poderia sacrificar
Hilderico e Raimundo? Retruquei, pois, com voz apenas inteligível:
— Pesava-me a tua ausência, pois que to amo!
Com extraordinária precipitação Tibério voltou-se e fechou a porta.
Estava radiante com a vitória. A agudeza do meu ouvido pode perceber
um riso abafado por trás da porta, mas ele nada ouviu. Então, pedi que
me mostrasse os prisioneiros, que lhes concedesse a graça de
regressarem ao seu país.
— Bem — respondeu — se diante de todo o meu séquito disseres
aos prisioneiros que me amas a ponto de não mais desejares voltar à tua
pátria, mesmo com minha aquiescência, eu lhes concederei graça e os
reenviarei a seu país.
Prometi. Para salvar-lhes a vida estava pronta a jurar que
alimentava uma paixão insensata pelo verdugo.
Chegou o dia marcado para a audiência. Tibério me presenteara
com magníficos vestidos para esse ato; queria mostrar que me
proporcionava luxo.
Apresentei-me, pois, com rico vestido todo bordado a ouro, capa
encarnada e coberta de jóias preciosas, e assim fui conduzida ao salão.
Tibério estava sentado num estrado atapetado de veludo, rodeado dos
seus cortesões e pretorianos. Fêz-se assentar junto do estrado e mandou
entrar os prisioneiros, que se apresentavam sãos e salvos.
Vendo-me, manifestaram grande alegria. Disseram a Tibério que
estavam dispostos a negociar meu resgate, para levar-me. Tibério, com
aquela voz profunda e impassível, respondeu que concordava em
entregar-me.
— Vede, acrescentou, que não lhe falta nada; tenho-a mantido
comigo, mas, se ela o quiser, não me oponho a que vos acompanhe.
O olhar dos prisioneiros recaiu sobre mim. Minha palidez e a
mudança do meu aspecto fez, certamente, com que duvidassem da
verdade, mas não ousei, sequer, dirigir-lhes um olhar de inteligência, em
atenção à vida deles.
— Então, Lélia — prosseguiu — resolve: queres voltar para junto
dos teus, ou preferes ficar comigo e mandar dizer a teu pai que és feliz e
se ele desejar ver-te será bem recebido?
Foi então que proferi a mais horrorosa mentira, que jamais a
angústia impôs a um coração humano. Respondi:
— Amo Tibério e não desejo separar-me dele por coisa alguma
deste mundo... Inútil, porém, que meu pai venha visitar-me, pois está
velho e ficará plenamente satisfeito sabendo que sou feliz.
A essa altura, Tibério inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos e
parecia sonhar.
Vencido o angustioso momento, experimentei passageira alegria
quando abracei meu irmão. A Hilderico contentei-me em apertar-lhe a
mão. Depois, aconselhei-os a que partissem o mais depressa possível,
para levar notícias a meu pai, dizendo-lhe da minha parte que não mais
deveria inquietar a meu respeito, porque me sentia inteiramente feliz.
Tibério estava satisfeito. Separamo-nos e não mais vi os
prisioneiros. Dias depois, quando tive novamente a idéia de não mais
dissimular meus sentimentos diante dele, ficou possesso. Eu acabava de
lhe dique o detestava e que meu coração havia seguido Hilderico.
— Vem, quero mostrar-te qualquer coisa — disse.
Conduziu-me a um pequeno pátio, onde vi um muro de pedra
muito alto, com uma porta fechada. Em vez de abri-la, ele suspendeu-me
nos seus braços e enfiou-me a cabeça pela abertura existente no muro.
Fiquei espantada, mas, de pronto não atinei o que significasse tudo
aquilo. Do solo emergia uma cabeça, rodeada pelos louros anelados
cabelos de Hilderico, porém estava irreconhecível e rodeado por
quantidade de ratos, que se empurravam mutuamente para melhor
devorá-la! O nariz, as faces e mesmo os olhos, haviam desaparecido,
tragados pelos vorazes roedores; e dessa massa sangrenta, horripilante,
que não mais parecia uma cabeça escapavam-se, de tempos a tempos,
gemidos que nada tinham de humanos.
Fiquei petrificada e admiro-me de não haver enlouquecido naquele
momento.
Voltei-me, atirei-me a Tibério com tanta raiva que me não recordo
do que fiz, senão que desejava matá-lo.
Arrancaram-me de cima dele. Os assistentes estavam estarrecidos;
o furor me cegava; abri passagem, corri para o cercado; queria passar
através da abertura, era impossível. Voltei-me então para Sejano que o
estupor tinha colado ao solo, tomei-lhe o alfanje e abri a portinhola
lançando-me sobre Hilderico. Levantei a arma e lhe rachei o crânio. Era
um benefício que o livrava do suplício atroz.
Só então percebi que os ratos começavam a subir na minha roupa.
Horrorizada, desmaiei.
Quando voltei a mim, estava na minha prisão e lá fiquei só durante
longas horas, até que chegou Febé. Seu olhar cintilava com expressão de
satânica alegria.
— Enfim — disse — tua maldade vai custar-te a vida; morrerás
pelos teus crimes e para desafrontar o atentado à pessoa de Cláudio
Tibério Nero. È preciso ter os miolos às avessas para arriscar uma tal
aventura! Teu irmão voltou ao seu país, mas, somente depois de lhe
cortarem as orelhas e o nariz. Isto, entretanto, não impediu Tibério de
apossar-se da importância do teu resgate. Ele, por sua vez, muito sofreu,
tem o pescoço inteiramente ferido, mas não pode resistir a tentação do
ouro; neste momento está contando o dinheiro em companhia de Sejano
e diz que enriquecerá o tesouro do império.
Não me admirei dessa nova infâmia, pois conhecia a sórdida
avareza de Tibério.
Febé continuou a contar novidades muito agradáveis.
— Sabes que se reúne um conselho para Julgar-te pelo atentado à
pessoa de Tibério? Terás as mãos cortadas e serás queimada viva.
— Tibério não consentirá que eu seja mutilada,— respondi. — Ou
me matará, ou morrerei com todos os meus membros; ele apenas
desfigura aos que me são caros.
Ela estava furiosa, mas ficou junto de mim para me torturar,
falando do suplício de meu irmão, como lhe haviam cortado as orelhas e o
nariz, e como ficara ridículo depois disso!...
À tarde desse mesmo dia, compareci perante o conselho, para ser
julgada.
Firme e tranqüila, aguardava a morte; eles não podiam ir além.
Tibério estava sentado no centro da sala, pálido e assaz inquieto;
mostrando no pescoço a avaria dos meus dedos, manchas azuladas e
ranhuras que ainda sangravam; seu aspecto demonstrava (supondo-se
que isso fosse possível) maior crueldade e impassibilidade que de
costume.
Sejano lá estava junto dele e de numerosos patrícios, seus
conselheiros.
Levada por dois soldados armados, mantive-me de pé, aguardando
a sentença.
Quando Sejano começou a longa e pomposa arenga em que
relatava a minha ingratidão e o atentado afrontoso que, só graças aos
deuses, não tinha se consumado contra a pessoa do futuro imperador,
glória e esperança do povo romano, Tibério aprovava com a cabeça; e
quando falou da minha ingratidão, voltou o rosto para o meu lado e,
pretendendo demonstrar bondade para comigo, suspirou, fechou os olhos
com ar triste e pensativo.
Eu sabia que estava perdida e dei livre curso à minha cólera e
desespero.
— Sim — disse — é verdadeiramente lamentável que um tal
tirano, desprovido de todo sentimento de humanidade, não tenha perecido
às minhas mãos. Qualquer outro teria feito o mesmo, vendo infligir a um
ente amado tão infernal suplício.
Tentaram interromper-me, principalmente Sejano, que continuava
a falar para abafar-me a voz, a repetir uma série de acusações
desprovidas de sentido; com isso atrapalhava e me impedia de continuar.
Vendo que não podia dizer o que queria, impacientei-me!
— Oh Sejano! falas muito para obstar que diga a verdade, mas fica
certo que tu mesmo perecerás às mãos deste monstro; crês que tua
baixeza e co-participação em todos os seus crimes te garantirão?
Enganas-te: tão logo te tornes suspeito, ou importuno, desaparecerás;
lembra-te, então, das minhas palavras.
Tibério não olhou para o seu lado e depois de haver discutido,
ainda por algum tempo, a maneira mais cruel de me punir, decidiu lançar-
me às feras do circo.
No dia seguinte fui levada às prisões do circo e entregue a um
gladiador encarregado de custodiar as vítimas destinadas ao espetáculo
mais próximo.
Esse gladiador, belo homem chamado Astartos, inspirou-me logo a
maior confiança e muita simpatia. Conduziu-me a uma prisão escura, de
paredes nuas e úmidas, onde havia apenas um feixe de palhas.
— Não ficarás só— disse ele ao recolher-me — há aqui outra
mulher também destinada ao circo.
Saiu. A obscuridade não me permitiu de pronto distinguir os traços
da pessoa que lá estava deitada sobre a palha; mas, quando meus olhos
se habituaram ao ambiente, percebi uma mocinha muito pálida e assaz
bela. Sua expressão denotava energia incomum e teimosia que devia
igualar, pelo menos, à minha.
O infortúnio comum nos aproximou rapidamente e vim a saber de
Veleda (esse o seu nome) que, tal como eu, preferia a morte a um tirano,
abominável. Depois, descobrimos que ainda um elo nos unia: sua mãe
fora germânica, caída prisioneira e desposada por um negociante de
perfumes. Veleda era fruto dessa união. Contou-me que tinha vivido feliz
em Pompéia, até que lá chegasse o procônsul Gálio, que a perseguia com
o seu amor e lhe cortara a existência, ordenando, finalmente, que fosse
lançada às feras, devido ao seu insolente atrevimento e insistente
teimosia. Ela própria vos dará os pormenores dessa horrenda história.
Pouco depois nos separaram e soube, por Astartos, que Gálio a retomara,
levando-a consigo para Pompéia e que, a uma nova tentativa de fuga, fê-
la morrer num banho de vapor e decapitar um moço patrício que a amava
e havia tramado a evasão.
Novamente só, Tibério várias vezes ainda propôs, por intermédio
de Astartos, conceder-me perdão se lhe pedisse publicamente, o que
sempre recusei, pois queria morrer.
Até que enfim, chegou o dia trágico.
Apesar da minha coragem, experimentei grande terror e fui
tomada de íntima fraqueza ao aproximar-se a hora do suplício. O lúgubre
rugido das feras muitas vezes me acordara durante a noite; entretanto,
devia aprontar-me convenientemente para morrer; tinha o vestido
rasgado e sujo, após tantas vicissitudes suportadas e não queria aparecer
em público naquele estado. Pedi outras vestes. Por ordem de Tibério,
Astartos levou-me ricas e elegantes, com que me preparei pela última vez
na vida, qual supunha.
Terminada a tarefa, fizeram-me sair e entrei na arena. O imenso
anfiteatro regurgitava, maravilhoso, e, no camarote imperial, Tibério
trajado com luxo, mantendo a cabeça curiosamente inclinada para frente,
estava rodeado por Sejano e outros cortesãos. Meus nervos cederam;
inteiramente trêmula, apoiava-me contra o muro e cobria o rosto com as
mãos; não desejava, no último instante de vida, contemplar o semblante
odioso do meu verdugo.
Abriu-se uma jaula e um tigre pulou na arena. Vendo-o tão
próximo, de olhos verdes pestanejantes, quase sentindo no rosto seu
hálito inflamado, caí de joelhos e desmaiei.
Quando voltei a mim, supus que estivesse morta e deparando o
rosto de Tibério a fitar-me, repeli-o apavorada, exclamando:
— Ainda tu? Não ficarei jamais livre, nem mesmo depois da morte?
Esta exclamação muito o contrariou; entretanto, estava satisfeito
por haver-me recuperado e procurava mesmo mostrar-se bondoso e
amável, à sua moda. Mas depois do ocorrido, vinha muito tarde; eu não
lhe suportava a presença senão com grande sacrifício.
Uma vez restabelecida, recomeçou a vida habitual, monótona, só
interrompida a intervalos por suas cenas de ciúme ou de raiva, por causa
da minha dissimulação ou falsidade — como ele dizia; de um modo geral
porém, nada de grave me sucedeu. Lembro-me somente de uma
ocorrência que me deixou funda impressão, começando por me divertir
bastante, mas depois quase fazendo perder a vida. Entretanto eu já
estava habituada a correr tais riscos.
Nesse dia, realizava-se em Roma grande festa popular. Por toda
parte alegria, jogos, diversões.
Depois do almoço, os cortesãos de Tibério se dispersaram e, como
entardecia, ele deliberou dar um passeio pelos jardins. Pobre criatura
obrigada sempre a lhe fazer companhia, fui, seguida de algumas outras.
Caminhando, aproximamo-nos de pequeno peristilo contornado por
colunas e que constituía dependência do palácio. Dali partia um sussurro
de vozes. Tibério parou e, com um gesto, ordenou silêncio; ouviu-se então
distintamente a voz de Febé, que falava de Tibério; espreitei através dos
arbustos e reconheci-a no pequenino terraço, de vestido curto e rosto
esfogueado pelo vício, rodeada de rapazes, todos de costas para nós. Se
ela não estivesse embriagada, não falaria do seu terrível senhor; no
estado em que se achava, porém, tagarelava sem peias e, se não
desvendava graves segredos, ao menos falava de fraquezas, faceirices e
fatuidades de Tibério. Foi então que fiquei sabendo que ele disfarçava
secretamente os defeitos com maquilagem, embora desdenhasse
aparentemente todo artifício para se tornar mais bonito.
Também contava que, muitas vezes, fazia-se admirar por ela,
inteiramente despido, para demonstrar-lhe que era igual a um Apoio nas
formas.
Com as explosões de riso que esta revelação provocou, notei que
Tibério experimentara um tremor nervoso em todo corpo e fiquei
apavorada; nesse instante Febé, para coroar tamanha leviandade,
gabava-se de possuir um amante, (cujo nome revelou), enquanto Tibério
acreditava ser o único amado por ela.
Este não mais se conteve.
— Prendam-na! — berrou.
Em tal ouvindo, Febé rojou-se-lhe aos pés, pedindo perdão.
Insensível, mas menos cruel que de costume, ele decretou para o
jantar um suplício a fim de punir os culpados, não de morte, mas de
degradação moral.
O infeliz que com ele dividia o amor de Febé foi posto em baixo da
mesa, para comer a restos que os convivas lhe atiravam, em sinal do mais
profundo desprezo; Febé, ao invés, montada num enorme suíno,
segurando-lhe a cauda, passeava ao redor da mesa, conduzida por dois
escravos. Sua atitude era tão grotesca, que até eu, que nunca ria, fi-lo
gostosamente, para maior gáudio do tirano. Ela lamentava-se quando
passava junto de Tibério, mas tanto que se lhe aproximava, um escravo
aplicava-lhe pancadas na nuca com uma espécie de vassoura, para
obrigá-la a baixar a cabeça; o porco grunhia horrivelmente e a alacridade
era geral. Quanto ao seu cúmplice, esse lá estava em baixo da mesa, com
os bacorinhos amarrados às mãos para compartilharem do que lhe
davam, e ainda sujeito aos pontapés que os convivas estavam autorizados
a lhe aplicar, prazer que Tibério foi dos primeiros a experimentar.
Após o jantar, o desgraçado recebeu duas terríveis bofetadas e os
escravos o expulsaram a pontapés. Por fim, desapareceu, feliz sem dúvida
por haver pago tão barato o seu delito.
Febé prosternou-se, lacrimante, aos pés de Tibério, a implorar
perdão; mas para ela ainda não estava tudo acabado.
Os convidados retiraram-se ficando apenas eu e os íntimos. Então,
Tibério mandou chicoteá-la em sua presença. Quatro escravos
seguravam-na e ele próprio lhe prendia a cabeça com os pés. A execução
começou. Eu permanecia junto dele, segura pela mão, mas corava de
vergonha e voltava o rosto para não ver a cena hedionda.
Percebendo meu desgosto e constrangimento, Tibério pôs-se a rir e
para resguardar minha sensibilidade, cobriu-me a cabeça com a própria
toga.
Terminado o castigo, Febé toda chorosa ajoelhou-se para beijar os
pés do algoz e insistir no seu perdão.
Ele estava satisfeito e observava-me para conhecer o efeito que
me causava aquela humilhação.
Experimentei profunda aversão por essa mulher ignóbil, que ainda
beijava os pés do seu carrasco, depois de tais ultrajes. Por mim, tê-lo-ia
estrangulado sem temor!
Com olhar sinistro e desconfiado, fixo em mim, ele disse:
— Por que, Mara, tens um ar tão desdenhoso? Vês como se vingam
os agravos à minha pessoa?
Descuidei-me e respondi imprudentemente:
— Podes esperar toda a vida, que te não beijarei as mãos, quanto
mais os pés. Ê preciso ser mulher bem ordinária para fazê-lo. De resto,
sereis sempre bons amigos, porque onde não há honra não pode haver
ofensa.
— Ah! — exclamou com a voz inteiramente mudada — Mara, tua
língua te custará a vida, apesar da minha indulgência sem limites para
contigo.
Inclinou-se para mim, ameaçador:
— Achas que sou indigno de que me beijem os pés; pois bem, eu
te forçarei a fazê-lo, a ti que tanto desdenhas o teu futuro imperador.
Um tal ou qual terror se apoderou de mim; arrependia-me de
haver arriscado semelhante ofensa, mas, minha convivência com Tibério
me havia ensinado certas pequenas manobras que podiam ajudar a
dominá-lo (não fosse eu mulher); assim, apesar da profunda aversão que
lhe votava, servia-me desses pequeninos meios para tornar mais tolerável
a situação.
Minha força era a delicadeza do meu físico, pois, extremamente
fraca, desarmava-o sempre; suas mais violentas manifestações de cólera
se extinguiam diante das minhas lágrimas e da palidez (meios, aliás, de
que raramente me servia). Devo confessar, apesar de tudo, que a
convivência me habituara a esse homem, a despeito do meu ódio, porque
eu não o deixava jamais, visto que me guardava como gato ao rato.
Conhecia-lhe as fraquezas, e, astuciosa, as explorava; quando ele me
cobria de grosserias e insolências, procurava acalmá-lo, emprestando à
voz uma entonação terna e cheia de escusas. Naquele lance, arrependia-
me do que dissera. Sem dúvida, não acreditava que ele pudesse forçar-
me a praticar um ato degradante, beijar-lhe os pés; mas, ainda dessa
feita, temia-lhe a violência.
— Então — prosseguiu — levanta-te e vem beijar-me o pé!
Levantei-me.
— Estás louco! — respondi — bem sabes que o não faria jamais.
— Ah! — berrou já fora de si — pois isso te custará a vida.
Em vez do punhal, tomou do chicote que tinha servido para Febé.
O momento se tornava crítico e previ que a cena poderia acabar
mal, porque, embora sempre mantivesse atitude que importava em
obediência, a qualquer um outro alto personagem, talvez concordasse em
conceder esse testemunho de respeito, sem me sentir muito humilhada,
mas tratando-se dele, eu preferia a morte antes que lhe dar tal satisfação.
Mesmo quando me ameaçava brandindo o punhal, não cedia.
Para abrandar-lhe a cólera, porém, propus abraçá-lo
espontaneamente e ele concordou de pronto. Fizemos as pazes.
A necessidade me fizera hábil comediante, quando, sem
constrangimento aparente, passava os braços pelo seu anguloso pescoço
e lhe beijava os lábios pintados, sem, entretanto, tisnar os meus.
Um dia, ao findar esse ano, Febé veio procurar-me e confidenciou
que meu pai e meu irmão Aleric se achavam ocultos em Roma; haviam
fretado um navio, tramando minha fuga; de tudo estava informada, e
como a minha presença lhe fosse incômoda, desejava que me evadisse e
me ajudaria a fazê-lo na primeira ocasião que Tibério se ausentasse de
Roma por dois ou três dias.
O plano surtiu efeito, tudo correu a contento e passei um dia feliz a
bordo, livre e rodeada por meu pai e meu irmão. Mas o destino devia
cumprir-se. Tibério regressou inesperadamente e me perseguiu sem
trégua nem vacilações. Não estávamos ainda muito longe, quando vimos
o mar coalhar-se de embarcações cheias de soldados romanos. Aqueles
barcos ligeiros, muito bem dirigidos, cedo nos alcançaram; fomos
cercados e recebemos uma chuva de archotes acesos. Logo envolvidos
pelas chamas, desesperada e furiosa com a perspectiva de perder
novamente a liberdade, atirei-me ao mar atrás de meu pai e de meu
irmão, mas os soldados me retiraram das ondas e me entregaram ao
perseguidor. Tibério, vendo que eu preferia a morte à sua companhia,
arrancou do punhal e feriu-me o peito mortalmente.
Longa e dolorosa foi a minha agonia. Minha alma não se separou
do corpo senão lentamente. Já agonizante, percebi que Hilderico vinha ao
meu encontro.
Quando tudo tinha acabado, lancei um derradeiro olhar aos meus
despojos mortais e vi Tibério ainda abraçado ao meu cadáver,
Decorrido muito tempo, muitos anos para os homens e um instante
no mundo dos espíritos, nos encontrávamos todos reunidos e, contudo, ó
nosso julgamento não tinha sido marcado, porque faltava Tibério. Ele
reinava ainda, arrogante imperador, desfrutando todas as honras e
saciando-se de crueldades.
Certa feita, passou entre nós um murmúrio, que massas
transparentes transmitiam umas às outras.
— Tibério atinge o fim; vamos recebê-lo e conduzi-lo a julgamento.
Achava-me com Hilderico e também quisemos ir ao seu encontro.
À nossa passagem, muitos espíritos se nos juntaram, formando
logo um verdadeiro exército. Todos tínhamos sido tiranizados por aquele
que íamos recepcionar.
Em massa compacta, movendo-nos qual nuvem tempestuosa,
baixamos ao palácio de Tibério. As sentinelas de guarda às portas,
imóveis qual estátuas, não puderam opor-se à nossa invasão.
Numa alcova decorada com luxo real e francamente iluminada,
estava um velho estendido no leito. Havia mudado bastante desde a
época em que eu o deixara; a velhice acentuara ainda mais os traços
angulosos dando-lhe o fácies de uma crueldade ainda maior; parecia
enfraquecido, mas, nos olhos encovados brilhava uma chama lúgubre,
cheia de energia e orgulho.
Entre os visitantes invisíveis, muitos o contemplavam cheios de
ódio e enraivecidos, comprimindo-se ao redor, enquanto ele apoiava-se
num dos cotovelos e meditava. Não via, sem dúvida, aqueles inimigos,
mas foi tomado de opressão mais forte e profundo suspiro lhe escapou do
peito.
— Dentro em pouco — murmuravam as massas flutuantes e
cheias de ódio — deixaras este asilo que te colocou acima da justiça
humana.
Nesse momento, um homem togado entrou de mansinho,
aproximou-se e tomou-lhe o pulso, dizendo logo a seguir:
— Todo o perigo, passou; ainda viverás muito tempo.
Um riso escarninho agitou a turba insaciável, que apertou mais o
cerco.
O homem saiu e a cabeça do poderoso imperador recaiu nos
travesseiros.
— Que os deuses sejam louvados — murmurou ele — viverei por
muito tempo.
Os espíritos se agitam:
— Eles vêm, eles vêm!...
Essas palavras passaram entre nós como um sussurro.
Com efeito. Alguns homens entram; dois escravos assentados
perto do leito se levantam e depois ficam imóveis; os recém-vindos
investem para Tibério. Ele ergue-se, compreende o perigo; seu rosto se
torna lívido, os olhos se dilataram; procurou uma arma e não encontrou,
quer levantar-se, mas o corpo não obedece; grita, mas a voz, que durante
cerca de quarenta anos congregou massas de homens e de exércitos, à
menor suspeita, desta vez, permanece sem eco.
A multidão transparente de espíritos se comprime entre os
assassinos e parece tudo dirigir; percebem-se suspiros roucos e, depois,
abafado estertor.
Eu me quedava à parte, com outros espíritos, quando uma
vibração toda espiritual, somente a nós, perceptível, anunciava a morte
de Tibério.
Instantaneamente, no meio dos espíritos, aparecia um feixe de fios
luminosos, qual fuso que se desenrola, e imediatamente o perispírito de
Tibério se mostrou já condensado. Confinado e envolvido, recuou
apavorado, mas a massa nevoenta o reteve e se elevou no espaço com o
seu troféu, enlaçado e mantido por centenas de fios luminosos.
Os demais espíritos afastaram-se para dar passagem ao nosso
estranho cortejo, que conduzia, enfim, à justiça e à expiação, a alma
daquele que perdera todo o poder terrestre e agora nada mais era que um
grande culpado, abandonado à sanha de milhares de inimigos.

LÉLIA ∗


NOTA: Lélia é o mesmo Espírito que figurou em Faraó de Mernephtah com o nome de
Amaragda; em "Herculanum" como Virgínia; em "Abadia dos Beneditinos" como
Rosannda e foi a médium Wera, filha de importante família russa, que Rochester
preparou para receber os seus ditados.
NARRATIVA DE VELEDA

Nasci em Pompéia, filha de abastado negociante. Nossa casa de comércio

achava-se num dos melhores quarteirões da cidade e negociava em


vinhos, óleos aromáticos e perfumes.
Titus, meu pai, já velho e doente, tinha entregue todos os encargos
do negócio a mim e a Tito, meu irmão adotivo. Minha mãe, há muito
falecida, era germânica aprisionada pelos romanos.
Eu dirigia o negócio e atendia os fregueses auxiliada por Tito, que o
surtia em mercadorias. Assim vivíamos, tranqüilos e felizes em nossa
mediocridade, que nada parecia dever perturbar.
Ao tempo em que começo este depoimento, contava os meus
dezessete anos e era tida como beldade das mais notórias de Pompéia;
acabava de contratar casamento com Tito, coisa que meu pai mais
almejava, certo de que, sob nossa direção, o negócio prosperaria. Tito era
um belo rapaz, que qualquer ricaça pompeana desposaria de bom grado;
mas a verdade é que ele me adorava e preferia a qualquer outro, partido.
Cumpria-me desenvolver muita atividade para atender à clientela,
pois a casa era muito afreguesada e, devo confessar, minha pessoa lhe
emprestava grande atrativo, pela formosura que atraíra muita gente;
jovens e ricos patrícios raramente deixavam passar um dia sem adquirir
alguma coisa das mãos da «bela Veleda».
Uma tarde, regressando das compras, Tito mostrou-se muitíssimo
entusiasmado, dizendo:
— Sabem o que se propala? Uma das legiões, que voltaram da
Germânia, com Tibério, vai aquartelar aqui; mas o principal é que o
procônsul Gálio, vem igualmente residir nesta cidade. Consta, ao demais,
que já se cogita de preparar-lhe magnífica recepção.
Também exultei com a notícia, pois há muito não se realizavam
festas dessa natureza.
Não se passaram muitos dias e correu por toda a cidade que «o
ilustre Gálio, amigo e companheiro de armas de Tibério, vindo da
Germânia coberto de glórias, resolvera fixar-se na cidade natal, a fim de
repousar das fadigas da guerra, e que, desejando homenagear o regresso
do grande cidadão, honra da pátria, o Senado local resolvera que se lhe
preparasse uma recepção triunfal.
A notícia alvoroçou a pequena cidade e todos se preparavam,
cuidando também de aumentar, na medida de suas possibilidades, o
brilho da manifestação.
Foram erguidos arcos de triunfo engalanados de flores e folhagens,
constituídas comissões para ir ao seu encontro, as moças de Pompéia, à
entrada da cidade, deveriam entregar-lhe flores e valiosos presentes.
Entre as mais belas, participei dessa comissão feminina, e a
questão da minha Claudette me absorveu inteiramente. Depois de muito
pensar, decidi-me por um vestido cor-de-rosa, enfeitado com pregas de
ouro e um véu branco marchetado de estrelas douradas..
Chegado o dia solene, coloquei sobre os cabelos louros uma coroa
de rosas e, num último olhar ao espelho de metal, dei-me por satisfeita.
Nada obstante, sem motivo justificável, vaga inquietação, um estranho
mal-estar foi-me possuindo aos poucos, e, corno houvesse esperado
aquele dia com grande impaciência e alegria, não podia compreender-me
a mim mesma. Tito também observou meu nervosismo.
— Que te falta ainda, Veleda? — perguntou. — Estás-me
parecendo esquisita; numa ocasião como esta tudo te enfada, nada te
satisfaz. Vamos. O ar puro dissipará o mau humor.
Tomou-me a cesta de flores e folhagens, e, a certa altura, nos
separamos porque ele fazia parte doutra comissão.
Colocaram-me na primeira fileira de moças e aguardamos.
Junto à porta de acesso à cidade, alcalifada de folhas e decorada
com magníficas cortinas, comprimia-se a multidão de cabeflas ondulantes
como vagas marulhosas e todos os olhares se concentravam na direção
em que deveria apontar o cortejo.
Eu sobraçava convulsivamente minha cesta florida e o mal-estar, a
inquietação que me haviam torturado em casa, aumentavam de instante a
instante nessa expectativa. Apesar do calor abrasante, sentia frio e febre,
tendo os olhos como que cravados no arco de triunfo, cuja metade se
ocultava atrás da massa popular.
— Estás doente, Veleda? — perguntou uma das moças vizinhas —
vejo-te tão pálida e trêmula!...
Nada respondi, porque no momento um eco longínquo me chegava
aos ouvidos. Eram as aclamações frenéticas dos que saudavam a
passagem de Gálio.
Todos os meus sentidos se concentraram na vista; a mole popular,
eletrizada, acabava de se dividir em duas, enquanto os batedores abriam
alas em grandes brados, precedendo o brilhante cortejo. Ã frente os
prisioneiros; depois os soldados e finalmente Gálio, de pé, num carro
dourado, ostentando a purpurina toga. O sol se lhe esbatia na armadura e
no capacete em revérberos de ouro, rodeado de numerosos oficiais qual
se fora o próprio deus da guerra.
Quando o carro passou rente a mim, inclinei-me reverente e lhe
atirei aos pés as flores da cesta. Imediatamente estremeci. Gálio acabava
de parar e inclinava-se para mim. Fixou-me um olhar que me feriu como
acerado punhal partido de uns olhos pardos como os do tigre e cheio de
admiração não disfarçada.
— Quem és e como te chamas, bela rapariga?
Balbuciei uma resposta: a emoção me sufocava, e quando dei
acordo de mim o carro tinha desaparecido na massa popular e somente as
exclamações indicavam a direção do cortejo.
Cercaram-me, felicitavam-me por ter merecido a honra de ser
notada por Gálio, mas, sempre muito orgulhosa, não podia regozijar-me
com aquele triunfo inesperado. Não compreendia o motivo dessa tristeza
e sentia, apenas, que a admiração de Gálio me era odiosa.
De regresso a casa, comentou-se o imprevisto incidente e meu pai
disse, abanando a cabeça:
— O mal é maior que a honra; ser bela e identificada por um
tirano, não pressagia nada de bom. Que os deuses nos preservem de uma
desgraça! Ouvi hoje muita coisa a respeito de Gálio, mas nada ouvi de
bom; cruel e libertino, tal como Tibério, seu ilustre amigo.
— A propósito — interrompeu Tito — conversei com alguns
soldados da legião que acaba de chegar e me contaram coisas
interessantes da guerra, inclusive que Tibério trouxe da Germânia uma
jovem prisioneira, filha de um chefe, a qual se deixara aprisionar cedendo
o seu cavalo ao seu próprio noivo para o salvar. Essa bela e corajosa
mulher chama-se Lélia. Tibério leva-a consigo por toda parte e ela o
destrata horrivelmente, ao que se diz.
— Aí está uma coisa de que eu duvido muito — disse meu pai. —
Uma rapariga prisioneira, sem proteção, maltratar Tibério! Ele já a teria
matado há muito tempo.
— É com efeito inacreditável— acrescentou Tito — mas pretende-
se que ela o maltrata de todas as maneiras.
Não sei por que o nome dessa Lélia desconhecida me, chocou.
Seria por mera compaixão? Minha mãe também fora germânica. Qual o
crime dessa pobre moça arrancada à família, ao noivo, e posta sob o jugo
de Tibério?
Muitas vezes, não sabemos onde nascem as idéias; mas, fosse
pressentimento ou o que fosse, o certo é que pensava comigo mesma: Se
alguém viesse igualmente arrancar-me Tito, ou meu pai, e se fosse Gálio,
por exemplo, como não o odiaria e maltrataria! Eu justificava Lélia.
Gálio quis retribuir dignamente a magnífica recepção que lhe
haviam tributado os conterrâneos; organizou festas, jogos e
representações no circo, e a que eu e Tito não faltamos.
Um dia, houve uma festividade noturna em que tudo resplandecia
à luz das tochas. Ele perambulava familiarmente entre a multidão para
fruir da alegria que proporcionava aos pompeanos. Também lá estávamos
eu e meu noivo confundidos na massa popular.
Já muito longe notei que o procônsul caminhava seguido de vários
escravos carregando sacos de moedas e cestas contendo quinquilharias,
que distribuía de passagem. Ora parava para falar a um pacato
negociante, ora dirigia uma palavra ou um sorriso a alguma bonita moça,
mas seus olhos brilhantes não demoravam em ninguém; pareciam buscar
qualquer coisa e perscrutavam avidamente a multidão que o cercava.
O rumo seguido devia fazê-lo passar junto de mim;
instintivamente, quis recuar e desaparecer entre a multidão, mas o
destino havia criado uma barreira intransponível de corpos humanos, que
se comprimiam para a frente e não me deixavam qualquer brecha de
escapamento. Involuntariamente, apertei mais fortemente a mão de Tito,
que, no momento se inclinava para mim, dizendo:
— Gálio vai passar e estou certo que falará contigo; dize-lhe, então
que sou teu noivo e ele nos dará talvez um presente, pois está
distribuindo ouro.
Nada respondi, mas a idéia de receber um presente de Gálio me
repugnou no mais alto grau.
Não tive, contudo, tempo de meditar, pois o procônsul se
aproximava e parava diante de mim. Seus olhos, que continuavam a
perscrutar a turba, deram comigo e um sorriso de contentamento lhe
aflorou no rosto seco e anguloso.
— Ah! a bela Veleda — disse, pois não havia esquecido o meu
nome. Aproximou-se lesto e tomou-me a mão apertando-a com efusão.
Eu estava como que aniquilada; sentia dever responder-lhe alguma coisa,
mas faltava-me a palavra. Vendo-me assim perturbada, sorriu.
— Acalma-te, bela menina, eu te protegerei e dispensarei amizade.
Tito me apertou o braço querendo, sem dúvida, lembrar os
presentes esperados.
O olhar arguto do procônsul percebeu o sinal de inteligência:
— Que é isso? — perguntou franzindo o cenho. Já Tito ensaiava
uma resposta, quando interrompi:
— Este é meu irmão — disse tomada de emoção; eu era mulher e
a mulher acabava de compreender o sentido e o alcance das palavras de
Gálio e a expressão que as acompanhara; meu coração me advertiu que
Tito acabava de correr terrível perigo; ele ficou aturdido, mas
compreendeu pela expressão do meu olhar que devia conter-se.
— Onde moras, Veleda?
Como poderia esconder-lhe o endereço? Disse-lho.
— Muito bem; irei a tua casa fazer algumas compras.
Inclinei-me profundamente. Então, tirou de si magnífica jóia e ma
entregou dizendo:
— Usa-a como penhor da minha estima, e que Júpiter te conserve
a saúde.
Curvou-se, enquanto o seu olhar cintilante mergulhou no meu.
Depois, estendeu o braço para um dos sacos contendo peças de
ouro, que os escravos conduziam, tomou um punhado e deu a Tito,
seguindo após nos apertos de mão.
Eu sufocava, faltava-me o ar.
— Vamo-nos embora quanto antes — disse a Tito — não posso
aqui ficar mais tempo, falta-me o ar.
— Estás no teu juízo, Veleda? — retrucou ele — não vês que a
festa apenas começou e haverá uma...
— Vamos, quero ir-me embora — conclui, interrompendo-o
resoluta.
Cedeu, como sempre, à minha vontade, tomamos o caminho de
casa. Lá chegando, deixei-me cair num divã e explodi em soluços; depois
lancei fora o pegador que acabava de receber. Tito, que me observava
espantado, comentou para meu pai:
— Veleda é insensata; Gálio nos cumulou de gentilezas e nos
prometeu vir e sem dúvida fará grandes compras.
— Não passas de um idiota — disse meu pai — se Veleda chora,
deve ter motivos sérios para fazê-lo.
Levantei a cabeça.
— Se prezas a vida e o nosso futuro, Tito, não digas jamais, por
enquanto, que és meu noivo, porque Gálio quer nos perder; não viste o
seu olhar desconfiado e ameaçador, ao indagar quem eras?
Tito bateu na testa:
— Ah! tolo que sou! Agora tudo compreendo; mas não podia
imaginar que um tal personagem pudesse olhar-te com tais intenções.
Agora, que fazer? Como salvar-nos?
Meu pai abanou tristemente a cabeça:
— Fugir — disse — é irritá-lo desde logo; um tirano tão rico e
poderoso, é capaz de tudo. Meu conselho é aguardar e agir segundo as
circunstâncias.
No dia seguinte Gálio foi à loja. Assentou-se e lhe ofereci vinho,
que bebeu, à minha saúde; depois de haver conversado e feito vultosas
compras, despediu-se sorrindo amavelmente e apertando-me a mão.
Na tarde desse mesmo dia, ocupada na arrumação de umas
mercadorias, entrou na loja uma tal Cláudia. Eu a conhecia; era tida por
feiticeira, intrigante e agenciadora de amantes para os patrícios ricos. Ã
chegada dessa criatura tão mal-afamada, fez-me subir o sangue à cabeça,
pois compreendi o que significava a visita; temendo-lhe, porém, as
bruxarias, procurei dissimular a raiva e convidei-a a sentar-se,
oferecendo-lhe doces e vinho.
Depois de haver comido e bebido, disse olhando-me com
admiração:
— Como és bela, Veleda. Tua sorte, não pode vegetar numa loja
obscura; acredita-me, eu leio o futuro e ele te promete riqueza e amor de
um homem poderoso.
— Boa Cláudia,— respondi — sinto-me tão feliz que nada mais
desejo que viver e morrer nesta casa. Nenhuma riqueza, o amor do
próprio Tibério, não poderia substituir a ventura de meu casamento com
Tito, de quem sou noiva, como sabes.
— Maluquinha — retrucou Cláudia — desprezas a sorte e repeles
um futuro de que não fazes nenhuma idéia; escuta, vou descrevê-lo.
Encostei-me à mesa, cruzei os braços.
— Fala, mas, ainda que me mostrasse os esplendores do Olimpo,
nem assim me tentarias.
— Criança, ouve antes de falar: tu deixarás esta pobre vivenda
para habitar um palácio ornado de colunas de mármore; poltronas
estofadas e bordadas a ouro, ao invés destas cadeiras de pau; escravos
dedicados adivinharão na tua fisionomia a menor expressão dos teus
desejos; encantarão teus olhos com danças e os ouvidos com os seus
cantares; as iguarias mais raras, os vinhos mais deliciosos, ser-te-ão
servidos em baixelas de ouro; esses vestidos de lã serão troçados por
outros de seda preciosa, com jóias dignas de tua beleza; teus pequeninos
pés jamais tocarão o pavimento das ruas; quando deixares teu palácio
serás levada em liteira dourada, recostada em macias almofadas; fruirás
sempre a companhia de um homem poderoso e poderás dizer a ti mesma,
com satisfação: aquele diante do qual todos se inclinam até o pó, curva-se
diante de mim. Aceita o amor daquele que me envia e ele colocará a teus
pés todas as delícias do inundo.
Ouvi, contendo a respiração:
— E que deverei fazer para obter o céu na terra?
— Somente amar o potentado que me fez sua mensageira,
acompanhar-me permanecendo em minha casa o tempo necessário para
mudar os andrajos que te cobrem por vestidos de seda e pedrarias.
Eu respirava com dificuldade. Ódio e desprezo sufocavam-me.
— Vou dizer-te, Cláudia, o que se pede em troca desta riqueza: é a
minha honra, e o homem que te envia é Gálio; compreendi seus projetos
vendo-te entrar. Agora, se a minha mensageira e leva-lhe a resposta.
Jamais. — ouviu? — jamais pretendo amá-lo; desdenho o seu ouro,
tanto quanto o seu amor, e desejo unicamente que me deixe em paz.
Transmite-lhe isso.
Cláudia levantou-se:
— Louca que és — disse — tu te perdes porque Gálio te ama e
não é homem para renunciar a uma coisa que deseja tão
apaixonadamente. Curva-te, senão quiseres perder-te com todos os teus!
— Não, não! — exclamei fora de mim — vai-te, jamais pertencerei
a Gálio.
Ela partiu e corri para junto de meu pai, a fim de inteirá-lo da
malfadada ocorrência. Ele torceu as mãos, desesperado:
— Eis a desgraça que eu previra — disse — minha pobre Veleda,
se os deuses não nos salvarem, estamos todos perdidos.
Nesse momento abriu-se a porta e Tito entrou seguido de um
rapaz.
— Veleda, pai, vede quem aqui está— disse prazenteiro.
Voltei-me e reconheci no recém-chegado um amigo de infância,
Marcos, filho de um rico mercador de trigo, que havia estudado medicina
e se tornara médico de Tibério.
Abraçamo-lo cordialmente, eu e meu pai, dizendo-lhe este:
— Que feliz acaso aqui te traz, meu caro Marcos? Não estás mais
adido à corte de Tibério?
— Vim passar apenas umas semanas, visitar minha velha mãe e
resolver negócios urgentes. Tibério só a contragosto me concedeu esta
licença, porque precisa freqüentemente de mim.
Fechamos então a loja para conversar mais à vontade.
— Conta-nos algumas novidades de Roma e da corte — disse meu
pai — lá no centro do mundo político tudo podes saber.
Marcos apoiava-se na mesa e denotava tristeza e sofrimento.
— Escuta — disse-lhe tocando no ombro — é verdade que Tibério
trouxe da guerra uma jovem germânica que o maltrata?
Aguardava a resposta com ansiedade. Se, de fato, uma mulher
ousava maltratar Tibério, um futuro imperador, maior direito me assistia
de fazer o mesmo a Gálio, se ele ousasse aproximar-se.
 minha pergunta, súbita palidez cobriu o rosto de Marcos.
— Que os deuses nos preservem sorte igual a da pobre Lélia! Feliz,
tu, Veleda, por não teres sido focalizada por um tirano; bela qual és,
procura fugir dos olhares de um potentado, porque, em lhe caindo em
graça, terás em perigo a própria vida.
Não pude conter um profundo suspiro. Tarde vinha o aviso; a
desgraça me atingira; queria, entretanto, colher o maior número possível
de informações sobre essa companheira de infortúnio, que combatia em
Roma o que certamente me competia fazer em Pompéia.
— Meu Deus! — acrescentou Marcos — em retribuição ao
tratamento que Tibério lhe dispensa, Lélia o maltrata muito pouco. Tive
ocasião de vê-la ainda no acampamento, logo que a apresaram. Trata-se
de uma jovem selvagem, aferrada aos seus afins e que se julga muito
ilustre, porque é filha de um chefe. Durante a viagem, esteve gravemente
enferma, conduzida em liteira, entre a vida e a morte e sob os meus
cuidados. Tibério já se interessava tanto por ela que vinha vê-la a todo o
instante, repetindo:
— Marcos, é preciso que viva; toma nota! Fiz para isso todo o
possível, e, embora se trate de uma constituição delicadíssima, poucos
dias depois de chegarmos a Roma, ela se restabelecia.
Tudo ia bem quando, uma noite, fui despertado em sobressalto:—
Vem ao palácio depressa, quanto antes — dizia o escravo. Corri até lá,
levando a botica dos remédios. Ao entrar, fiquei estupefato: Tibério estava
de pé, lívido e ensangüentado; colar e roupa em frangalhos; pescoço,
braços, mãos, rosto, tudo coberto de ferimentos. — Fecha as portas e
pensa-me — ordenou o imperador. Obedeci e apliquei-lhe pomadas e
emplastros. Quando terminei, disse:— Salva a besta! — Olhei, espantado,
ao redor, porque acreditava que estivéssemos sozinhos e só então
percebi, no chão, um corpo inerte e, ao lado, um chicote. Recuei
apavorado, era Lélia, exânime, com o corpo crivado de horrorosas
equimoses.
Ouvindo Marcos, meu coração batia angustiado; era o poder de
que me falara Cláudia, a tirania do forte contra o fraco, era o que me
esperava. Então, perguntei ofegante:— Que fizeste?
— Ergui-a e auscultei-lhe o coração, que batia fracamente. Nesse
momento, infernal idéia me ocorreu e perguntei a mim mesmo se o
melhor remédio não seria facilitar a morte da infeliz criatura.
Em assim falando, Marcos levantou-se e comprimiu a fronte com as
mãos.
— Tibério é me odioso — acrescentou — vocês não sabem o que é
servir a um tirano detestado, que desejaríamos enforcar e ao qual somos
obrigados a demonstrar humildade, obediência, admiração por seus
pretendidos méritos. — Quando quis erguer Lélia, Tibério se aproximou e
me auxiliou a colocá-la no leito; seus olhos cruéis e desconfiados, não se
despregavam do corpo inerte da moça.
— Reanima-a e te recompensarei regiamente — disse, abaixando-
se para escutar se o coração ainda batia. — A miserável me mordeu
levando-me a puni-la, pois do contrário não teria tocado neste miserável
esqueleto; mas, que fazer agora?
Prescrevi logo um banho quente. Tibério não me largou um
instante e ajudava-me juntamente com as negras, no banho à enferma,
que continuava desacordada, e a pensá-la e acomodá-la. Oh! como é
bela, Veleda; se tu a visses! Terminadas as ligaduras, Tibério assentou-se
à beira do leito, segurava a mão de Lélia e perguntava a cada instante:
— Marcos, ela ainda vive? Oh! eu lhe pagarei estas horas de
inquietação.
Depois inclinava-se:— Lélia, Lélia, gata selvagem, escuta; eu
perdôo os teus crimes, olha-me! — e abraçava-a.
Tudo aquilo me revoltava por tal forma que nem sei como dizê-lo.
Por fim, sentiu-se fatigado e deitou-se noutro leito, ficando eu junto da
enferma.
Desde que um ronco sonoro e estentórico anunciou que Tibério
dormia profundamente, a moça reabriu os olhos e me fixou suplicante,
tomando-me a mão:
— Marcos, mata-me; é um ato de caridade.
Já minha mão mergulhava na caixa de remédios para dar-lhe a
morte desejada, quando, fixando-a, não tive coragem e pus-me a tremer.
— Lélia — disse-lhe — pede-me tudo que quiseres, menos a
morte, porque não me sinto com forças para tanto.
Apertava-lhe a mão, quando, nesse instante, Tibério levantou a
cabeça:
— Ah, conversais!
De um salto veio para junto de Lélia, que fechou os olhos e calou-
se.
— Marcos, tenho gana de mandar de golar-te, por causa dos teus
remédios que atuam como narcóticos na doente — e seu olhar, cruel e
perscrutador, procurava descobrir na minha fisionomia o que presumia
estivesse no meu coração.
Lélia abriu imediatamente os grandes olhos azuis.
— Ah! é um milagre,— disse Tibério; Marcos, teus remédios são
bons e não desejo tua cabeça; vejo que ela sabe apreciar devidamente a
excelência do teu tratamento, sobretudo para casos como o de hoje.
Ela fitou-o com desprezo:
— Abominável tirano, odeio-te, e se te aproximas experimentarás
outra vez os meus dentes.
A estas palavras, o monstro pôs-se a rir, mas, contrafeito.
— Conheço os teus dentes, pequena víbora que aqueço em meu
regaço; mas, não desanimo; tu hás de amar-me um dia!
— NUNCA, NUNCA! — respondeu ela.
— Esta vida de médico se me torna odiosa de dia para dia —
acrescentou o rapaz enquanto caminhava agitado.
Apesar das nuvens tempestuosas que se acumulavam sobre minha
cabeça, eu era muito jovem e ingênua para não esquecer tudo, para não
satisfazer minha curiosidade de momento. Assim, quis obter de Marcos
notícias dos amigos de infância, que ainda viviam em Roma.
— Dize-me, Marcos, que é feito do nosso belo Astartos e como vive
ele em Roma? E Agripa? Com este deves estar freqüentemente, pois não
é certo que ele serve na guarda de Tibério?
Marcos sorriu.
— Astartos é um verdadeiro astartos no horizonte do circo; sua
beleza maravilhosa faz as mulheres perderem o juízo e acredita-se que
mais de uma ilustre patrícia o admira muito mais do que deseja. Em geral,
os pais e os maridos vislumbram traições quando o belo gladiador passeia
pelas suas vizinhanças. É preciso acrescentar, de resto, que ele possui
uma coragem incomparável; é o primeiro domador de feras e nada mais
surpreendente que ver os leões submissos ao seu olhar. A propósito,
lembras-te de Febé, que fugiu há alguns anos? Ainda eras menina quando
isso aconteceu, mas o caso deu que falar, porque o velho pai dela morreu
de desgosto. Pois bem, agora se fez amante de Tibério, após uma vida
muito acidentada. Começou com procedimento muito irregular em Roma,
depois, amasiou-se com Astartos, que a fez dançarina do circo. Um dia,
durante uma representação, Tibério agradou-se dela e tomou-a para si,
presenteando Astartos com uma taça de ouro para o indenizar.
Fiquei espantada.
— Como — perguntei — Tibério mantém as duas ao mesmo
tempo, Febé e Lélia?
— Não. Febé não é mais a sua favorita, apenas conserva o lugar
junto dele, lisonjeando-lhe desmedidamente a fatuidade e fingindo uma
paixão louca, além de chamá-lo um deus. É uma criatura ordinária, que
associa igualmente Sejano. Tibério sabe dessa ligação, mas nada diz,
muito preocupado com Lélia, que lhe dá muito o que pensar e Febé
desempenha perfeitamente os dois papéis.
Nesse momento, Tito saiu para trazer alguns refrescos. Então
Marcos me disse:
— Veleda, tenho um encargo junto de ti, da parte de Agripa.
— Que é? — perguntei.
— Quando Agripa te reviu na sua últirna viagem a Pompéia, tua
beleza lhe causou tal impressão que não pode mais esquecer-te e
incumbiu-me de consultar-te se consentes em esposá-lo.
Esta revelação caiu sobre mim como um raio.
— Ama-me Agripa, então? — repliquei admirada.
— Sim — acrescentou sorrindo; somente temo que ele tenha
chegado tarde demais, porque Tito me disse que eras sua noiva;
entretanto, não quis ocultar-te esse pedido. Talvez pudesses mudar de
opinião. Agripa é um partido inesperado; rico, patrício, constitui em todos
os sentidos um outro destino que te não pode dar Tito. Pensa nisso.
Baixei a cabeça e meditei. Conhecia Agripa da mais tenra infância;
era um belo moço, mas muito exaltado, caprichoso, querendo sempre
mandar em todos, até mesmo em mim; ao passo que eu dominava Tito,
que só fazia o que me convinha e agradava. Ê verdade que Agripa era
patrício, mas isso pouco me tentava. Meu caráter inflexível e dominador
detestava toda espécie de sujeição; aqui eu era senhora absoluta, minha
vontade, meus caprichos, eram leis; com Agripa, seria preciso conformar
e esforçar por satisfazer-lhe todos os desejos, porque sempre julgaria
haver feito um favor e um grande sacrifício desposando-me. Seria
desdenhada e mal vista pelas outras patrícias, por causa de minha origem
plebéia; todo o meu orgulho se manifestou diante dessa hipótese. Não,
melhor seria permanecer no meu lugar, dirigindo Tito.
Expliquei tudo isso a Marcos, que me ouvia atento.
— Tens muita razão, admiro o senso e clareza do teu raciocínio.
Uma velha cabeça de filósofo não pensaria melhor que o teu cérebro de
dezessete anos.
No dia imediato e nos que lhe sucederam, Cláudia recomeçou suas
visitas e insinuações, transmitindo-me da parte de Gálio promessas
sempre mais sedutoras.
Eu dissimulava e procurava ganhar tempo, mas Tito, por mim
informado da finalidade dessas visitas, cometeu grave imprudência. Um
dia, encontrando-a novamente comigo, indignou-se e, encolerizado,
proferiu contra Gálio pesadas injúrias; depois, pegando Cláudia pela nuca,
atirou-a escada a baixo. Sem prever as terríveis conseqüências deste
episódio, rimos a mais não poder da maneira cômica como saiu a
intrujona.
Na manhã seguinte, ocupava-me em transvasar óleo perfumado de
uma grande ânfora para pequenos vidros, quando um reunir de armas
ressoou na porta e um oficial, seguido de alguns soldados, entrou na loja.
Aterrorizada, meu coração cessou de bater. Que significava aquilo?
Nossa incerteza não demorou muito: o oficial desenrolou um pergaminho
e leu uma ordem de prisão para Tito, por insultos graves e ameaças de
morte proferidas contra o procônsul Gálio.
Banhada em lágrimas, atirei-me nos braços de Tito, queria
defendê-lo; meu velho pai acorreu também, mas nada conseguimos. Os
soldados me repeliram brutalmente, ligaram os pulsos de Tito, puseram-
no entre eles e foram-se. Tito mostrou-se firme e corajoso; não
pronunciou qualquer palavra imprudente, exortando-me apenas que
tivesse calma.
Depois que ele se foi, terrível desespero se apoderou de mim e de
meu pai; Tito, nosso auxiliar e arrimo, prisioneiro e talvez condenado à
morte... Era horrível! Sentimos que era preciso tentar salvá-lo, mas não
sabíamos como fazer.
À tarde, veio Marcos. Cobrimo-lo de perguntas; ele, acostumado na
corte, devia saber como agir, a quem nos dirigirmos para salvar Tito.
Abanou tristemente a cabeça:
— É um caso difícil— disse. — Sabeis que o poderoso é sempre
justo, mesmo que seja mil vezes injusto e tirânico. O único conselho que
eu posso dar é irem os dois se prostrarem aos pés de Gálio, num dia de
audiência; melhor ainda, se forem amanhã à casa dele, à hora do almoço;
eu vos introduzirei, porque sou um dos convidados. Haverá lá muita gente
e talvez ele não ouse, diante dos convivas, revelar suas verdadeiras
intenções relativamente a Veleda e solicitarão graça para Tito.
No dia seguinte preparamo-nos e fomos para as proximidades do
palácio, aguardar a chegada de Marcos, que, inicialmente, procurou
encorajar-nos, dizendo que Gálio muito o estimava por sua condição de
médico de Tibério; que tivera mesmo ocasião de tratá-lo durante a
guerra, e prometeu interceder na medida do possível, sem despertar
suspeitas.
Após essa ligeira digressão, penetramos no átrio. Compacta massa
de escravos e criados entravam e saíam do interior, conduzindo enormes
travessas de assados e pastelarias, grandes ânforas de vinho e cestas dos
mais belos frutos.
Nos degraus de mármore que conduziam ao interior, estava
disposta uma fileira de soldados. Quiseram impedir-nos o acesso, mas
Marcos, familiar da casa, disse: Deixai passar esta pobre gente, eu a
conheço; querem implorar uma graça ao procônsul.
Então deixaram-nos entrar, atrás de Marcos, para um extenso
peristilo sustentado por colunas de mármore branco, onde nos foi
mandado esperar.
Lancei ao derredor um olhar curioso. Luxo fabuloso me cercava.
Cortinas de seda escarlate bordadas a ouro, ornamentavam as portas;
piras enormes espalhavam ondas de perfume; dando alguns passos à
frente, pude entrever a sala do banquete, que aparecia através das
colunas. Extensa mesa, sobrecarregada de baixelas preciosas, estava
posta e rodeando-a, refestelados em leitos de repouso, acomodavam-se
os convivas ricamente vestidos e coroados de rosas; escravos e raparigas
circulavam enchendo de vinho as taças vazias. Esforcei-me por distinguir
Gálio e imediatamente o reconheci: coberto de jóias, coroa de louros à
fronte, permanecia recostado, apoiando-se no cotovelo; rosto afogueado,
erguia, no momento, a taça em honra a uma jovem prisioneira germânica,
que lhe servia o vinho em atitude desesperada. Era, pois, o luxo de que
me falara Cláudia. Comprimi o coração, que parecia romper-se de tanto
bater; um ódio feroz contra Gálio me sufocava. Dirigir-lhe uma súplica
parecia-me um tal suplício, que, por vezes, preferia mesmo a morte de
Tito a essa humilhação; depois, uma voz interior me dizia: é inútil o
sacrifício; nada fará por nós.
Nesse momento, fomos chamados e introduzidos, na sala, por um
escravo.
Quando nos aproximamos de Gálio, ele estava quase assentado;
um sorriso de triunfo e contentamento iluminou sua fisionomia cruel.
— Ah! a bela Veleda — disse — tu te Iembraste da amizade e
proteção que te prometi; que posso fazer a favor da mais linda das
pompeianas?
Nada respondi; a dor, o desespero me tolheram a palavra; meu
pai, porém, falou e intercedeu por Tito. Gálio não se mostrou
absolutamente agastado e respondeu com bondade:
— Minha cara gente, jamais pretendi punir esse moço louco pelas
suas imprudentes palavras; mas o nosso augusto imperador precisa de
novos soldados para cobrir as baixas sofridas por nossas legiões, durante
a guerra. Assim, convocam-se aqui recrutas e pensei honrar Tito fazendo
dele um soldado; não aceito senão os jovens mais belos e robustos; ele
experimentará a glória de defender a pátria e elevar o nome romano de
vitória em vitória.
Espanto, ódio, raiva, quase me fizeram desmaiar; como era
astucioso e pérfido! E como habilmente mascarava o seu ato de violência
e de ciúmes, sob uma falsa aparência de honra! Mas, suplicar, ainda, seria
em vão; os princípios de honra da época impediam intercedesse para
livrar alguém convocado para defender a pátria; seria um ultraje para ele
e para nós e isso acarretaria nódoa infamante à família que assim
procedesse.
Gálio continuou com uma naturalidade cheia de benevolência:
— Partirá dentro de poucos dias, mas permito que se despeçam
dele, entregando-lhe tudo que quiserdes, como bagagem e dinheiro.
Depois, fêz-nos sentar noutra mesa e mandou servir-nos
abundantemente; mas nada podia atravessar minha garganta fechada; eu
compreendia o miserável mais que ninguém e minha raiva impotente
tornava-me quase louca.
Chegado o dia da partida de Tito, fui com meu pai para junto da
porta da cidade, a fim de aguardar o contingente. Era aquela mesma
porta onde, semanas antes, encontrava-me de pé com a minha cesta de
flores e suando frio, presa de inquietação inexplicável. Agora compreendia
aqueles pressentimentos e ressentia-me dos terríveis sucessos. Levamos
embrulhos com roupas, dinheiro e provisões secas; enfim, o que de
melhor dispúnhamos.
Os soldados pararam, coroados de flores e acompanhados de gritos
de alegria e votos de boa viagem da turba. Tito estava triste e pálido;
atirou-se ao pescoço de meu pai e me apertou fortemente contra o peito;
mas o adeus foi breve porque devia retomar o lugar entre os
companheiros.
Silenciosos e desesperados, reentramos em casa. Tudo estava
vazio; mortal silêncio parecia reinar na loja, cada objeto lá deixado por
Tito queimava-me os olhos; por outro lado, todo o trabalho que ele
desempenhava revertia sobre nós. Eu chorava amargamente, pensando
na felicidade desfeita e meu ódio a Gálio aumentava dia a dia, quando
pensava no ato de injustiça, violência e na minha incapacidade para
vingar-me; então, o sangue me subia à cabeça e dizia de mim para mim
que, se ele ousasse apresentar-se, bem saberia mostrar-lhe p meu ódio e
o meu desprezo.
Vários dias decorreram, eu começava a me tranqüilizar, supondo
que Gálio havia limitado sua vingança em arrebatar-me Tito e
abandonando os primitivos projetos, melindrado com a minha ingratidão,
em repelir suas belas propostas. Desgraçadamente, estava iludida.
Homens do temperamento de Gálio, jamais abandonavam uma vítima
escolhida.
Certa manhã, achava-me sozinha na loja, quando grandemente
surpresa vi entrar o procônsul acompanhado de vários guardas, que
deixou atrás da porta. Aproximou-se sorrindo, com ar muito amável.
Saudei-o reverente, mas, sem pronunciar palavra. Vinha escarnecer da
minha dor e rasgar meu coração. Vendo-o olhar ao redor, ofereci-lhe uma
cadeira e pedi suas ordens.
— Por que ordens? — disse amavelmente, devorando-me com os
olhos — eu nada ordeno, bela Veleda; ao contrário, só aspiro realizar
todos os seus desejos.
Esbocei uma fria cortesia:
— Agrada-vos tripudiar de mim, procônsul; nada posso desejar
nem querer, porque sou pobre, ínfima, e vós sois rico e poderoso,
comprovando-o muito bem o arrebatar-me o noivo.
Ele levantou-se franzindo o cenho:
— Toma cuidado, rapariga, em não te lembrares por mais tempo
desse noivo; ele partiu e deve combater para glória da pátria; resta-te
maior compensação: eu! Far-te-ei feliz e rica; és bela, Veleda, como
Afrodite; teus cabelos dourados me enfeitiçaram; amo-te e deves
pertencer-me.
E, com rápido gesto enlaçou-me pela cintura, apertando-me
apaixonadamente contra o peito. Inclinou o rosto horrível e me beijou de
forma a sufocar-me, com os seus lábios pintados. A surpresa e o desgosto
imobilizaram-me um instante: a seguir, como que embriagada pela cólera
e sem medir conseqüências, esbofeteei-o com toda a força das minhas
mãos muito pequeninas, mas nervosas; depois, o repeli com tal energia
que, tropeçando, foi cair sobre enorme ânfora cheia de óleo, que se
quebrou cobrindo-o do seu conteúdo e destroços.
Com o espantoso alarido, acorreram os guardas; viram ainda Gálio
caído, com as bochechas inchadas e vermelhas; eu, de pé como um tigre,
de punhal na mão. Compreenderam tudo e se aproximaram do procônsul
que se levantou, voltou-se para mim e mostrando os punhos cerrados,
exclamou:
— Oh! animal! caro me pagarás!
Todas essas emoções tê-lo-iam enfraquecido, ou quereria somente
demonstrar como o havia maltratado? Certo é que dois guardas o
sustentavam por baixo do braço para poder andar, e assim se foi sem
ordenar minha prisão, o que muito me admirou.
Corri para meu pai, que trabalhava no pátio e tudo lhe contei.
— Infeliz! que fizeste! Estas perdida! Foge imediatamente; vai-te a
Roma, onde estão Agripa, Astartos e uma velha parenta minha.
Compreendi que ele tinha razão e entrouxei apressadamente
alguma roupa indispensável; em seguida dizendo-lhe um triste adeus,
dirigi-me para uma das portas da cidade. Ao aproximar-me, alguns
soldados me cercaram, exclamando:
— Ah! miserável! Querias fugir? Bem se vê que cometeste uma
ação má!
Prenderam-me.
Gálio havia dito que se eu tentasse fugir, era porque me
considerava culpada. Conduziram-me ao palácio do procônsul. Como
estivesse muito doente, ordenou que me encarcerassem até que o seu
estado de saúde lhe permitisse julgar-me pelo atentado à sua pessoa. Por
mim, estava tão irritada contra ele, que permaneci calma e, indiferente a
tudo o que ocorria. Sentia-me mesmo satisfeita por ter podido maltratá-lo
a tal ponto, e isso saciava a raiva impotente que me causara a partida de
Tito. Por semelhante prazer a morte não passava de bagatela. Recordei
Lélia, que também suportava todos os suplícios, pelo prazer de vingar-se
do seu perseguidor.
Os que me escoltavam abriram pesada porta e me entregaram a
um horroroso carcereiro. Tomou de uma tocha, abriu segunda porta e me
fez um gesto para que o acompanhasse. Não opus a menor resistência e
com o meu embrulho na mão (pois não mo arrebataram), acompanhei-o.
Descemos uma escada que me pareceu interminável; o ar começava a
tornar-se úmido e abafadiço; por fim, paramos diante de uma porta que o
guarda abriu, empurrando-me para dentro de um compartimento sombrio.
O ruído da chave girando na fechadura me advertiu que estava
encarcerada. Meus nervos, superexcitados pelas emoções do dia,
começaram a fraquejar; a cabeça pôs a rodar e perdi os sentidos. Quando
voltei a mim, procurei orientar-me no meu triste aposento; era um
compartimento estreito e escuro, com um buraco no teto que deixava
coar fraca claridade. O chão e as paredes estavam úmidos e como que
cobertos de uma camada de lodo viscoso e escorregadio; a um canto, um
molho de palha à guisa de leito, e, sobre grande pedra servindo de mesa,
uma ânfora com água e uma côdea de pão.
Refleti e encarei a situação corajosamente; de pronto, devia
submeter-me a tudo e, graças aos deuses, não me encontrava de todo
desprovida de meios. No pacote que levara comigo, havia provisões de
boca e até uma quartinha de bom vinho.
Primeiramente, retirei do embrulho um capote que vesti e um
vestido de lã; cobri a palha suja e úmida que devia servir de leito,
assentei-me e comi. Reconfortada, guardei cuidadosamente o sobejo e em
seguida a uma ardente súplica a Júpiter e às Eumênides, para que me
concedessem sobre Gálio uma vitória estrondosa, adormeci.
Assim passaram quinze dias de monotonia apenas interrompida
pela chegada do carcereiro, que, silenciosamente, me trazia pão e água. O
pão eu escondia como se o tivesse comido, enquanto me alimentava,
economicamente das minhas provisões. Triste, mas ainda não
desesperada, aguardava o julgamento. Entretanto, o tempo acabou por
me parecer muito longo; esgotaram-se as provisões, veio a fome. 0 ar
úmido e confinado da prisão me adoecia; a companhia dos ratos e
baratas, que formigavam, era-me odiosa; a paciência e a resignação
atingiam o seu limite. Com a cabeça descansada nas dobras do capote,
pensava no meu terrível destino e em meu pai, que devia estar
desesperado com a minha sorte.
Uma tarde em que não mais esperava o carcereiro, ele apareceu
ordenando que o acompanhasse. Levantei-me, mas as pernas me
tremiam e vacilavam; desde que fui reclusa, faltou-me ar e privei-me de
movimentos, agora a cabeça rodava e o guarda teve que amparar-me.
Assim auxiliada, subimos a interminável escada; passamos vários
compartimentos e corredores, até que me fez atravessar elegante
peristilo, guardado por duas sentinelas e entrar num aposento, onde me
fechou.
Tudo me parecia um sonho. Encontrava-me numa sala magnífica e
brilhantemente iluminada; a mesa coberta de pratarias estava repleta de
iguarias as mais apetitosas e um leito ali preparado parecia convidar ao
repouso. Enormes bandejas douradas, cheias de flores, perfumavam toda
a sala, na qual me encontrava sozinha; olhei ao redor espreitosamente,
mas nada vi; era tudo deserto, vazio, silencioso.
Por fim, percebi ao fundo da sala uma porta entreaberta; deslizei
até lá em ponta de pés e lancei um olhar para dentro; era um banheiro
elegante, esplendidamente iluminado, mas sem vivalma, como o resto do
apartamento.
Entrei e pus-me a examinar tudo: na banheira de mármore branco
estava preparado um banho; sobre a mesa perfumes e todas as
miudezas que fazem o encanto da mulher; no leito, maravilhosos
vestidos.
De toda aquela magnificência, a água lépida e aromatizada foi o
que mais me seduziu. Sentia-me impregnada da umidade da enxovia,
tinha as vestes mofadas e sujas, os membros entorpecidos.
Não pude resistir à tentação. Fechei a porta e me despi; banhei-me
e perfumei-me deliciosamente. Ninguém me incomodou. Dispunha de
muito tempo para concluir a toilette; assim, penteei, trancei e perfumei a
cabeleira que me cobria qual manto dourado até os pés; não pude
suportar a roupa quase apodrecida e escolhi, entre os vestidos colocados
sobre a cama, uma blusa branca de seda oriental e uma capa verde
inteiramente coberta de rendas prateadas.
Assim preparada, experimentei um grande bem-estar; ainda uma
vez dei volta às duas salas tudo examinando escrupulosa-mente, mas não
pude descobrir nenhuma traição; tudo estava silencioso e deserto. <Em
todo caso,— pensei — permanecer aqui prisioneira é mais agradável que
lá na cela subterrânea». Desejava possuir uma arma, como medida de
precaução, mas não pude descobri-la apesar de minuciosa busca.
Fatigada e faminta, assentei-me à mesa, não resistindo à tentação
das iguarias, comecei a comer. Jamais saboreara iguaria; tão finas; comia
um pouco de tudo com a maior tranqüilidade, apenas intrigada com o
motivo que levara Gálio a retirar-me da infecta prisão para instalar-me
tão luxuosamente.
Acariciei a idéia de que ele pretendesse abrandar meu gênio,
supondo que na cela ficaria ainda mais rancorosa do que nesse magnífico
apartamento.
Sombrios e tristes pressentimentos me empolgaram. Afastei a
travessa das frutas e apoiei a cabeça nas mãos. Que futuro me
aguardava, que lutas me reservaria e qual o seu desfecho?
Recordei o tempo em que, feliz e sossegada, vivia com Tito e meu
pai, até que o capricho e a violência de um tirano me fossem usurpar a
felicidade. Agora, ali estava prisioneira e entregue à sua discrição. Minha
beleza era a causa da minha desonra.
O sangue subiu-me à cabeça. Mas, como vingar-me?
Estrangulando-o? Apunhalando-o? Sim, vingar-me, ainda que a custo da
própria vida. Essa resolução inabalável me acalmou, reconfortando-me;
aliás, no momento, tudo me parecia inofensivo e nenhum perigo me
ameaçava. «Sem dúvida — pensei — ele supõe que todo este luxo me
tentará... Mas está enganado».
Assaz contente com a idéia do seu desapontamento, servi-me de
um licor avermelhado, muito doce e agradável ao paladar; bebi com
prazer, mas fui logo tomada de estranho langor; as pálpebras pesadas
cerravam-se contra minha vontade; apoiei a cabeça no braço e, sem nada
suspeitar, adormeci profundamente.
Deveria ter decorrido muito tempo, antes que reabrisse os olhos e
pudesse recobrar a consciência, reconhecendo-me no leito de que não me
havia servido e percebendo, espantada, que Gálio dormia tranqüilamente
a meu lado.
A realidade do quadro me iluminou como um raio. Compreendi que
estava desonrada. Insensato furor apoderou-se de mim. Como impelida
por uma mola, saltei nos pés; o sangue borbulhava como lava, subia ao
cérebro e me embriagava! Apertei a cabeça entre as mãos e, com
desesperado esforço. reconquistei uma calma aparente. Queria morrer,
mas saboreando, antes, a agonia do miserável. Só pensava em como
fazê-lo sofrer o mais possível. Meu olhar percorreu a sala e fixou a porta
de entrada; uma chave maciça estava na fechadura; não pensei em fugir,
porque por trás estariam, certamente, os guardas de Gálio. Ao demais, eu
não mais queria viver. Rápida qual sombra, deslizei até a porta; fechei-a
com duas voltas, retirei a chave conservando-a convulsivamente na mão;
apanhei o único facho que ardia sobre a mesa e que iluminava
lugubremente o aposento; fechei a sala de banho e ateei fogo às cortinas,
aos móveis, à mesa e, finalmente, à roupa de Gálio. Retirei-me em
seguida para um canto afastado, de olhos fixos no meu perseguidor,
espreitando o seu despertar.
As línguas de fogo lambiam as paredes e o teto, tudo consumindo;
negra e espessa fumarada encheu logo a sala, dificultando a respiração.
Eu sabia que ia igualmente perecer, mas, primeiramente teria tido a
satisfação de ver asfixiado e carbonizado o torpe inimigo. E regozijava-me
com o seu sofri mento e desespero. Selvagem alegria me invadia e dava
graças aos deuses, em fervorosa prece, por terem assim atendido aos
meus votos de vingança.
Nesse instante Gálio despertou em sobressalto. Assentou-se,
esfregou os olhos e depois, com uma exclamação de terror, saltou do
leito. As vestes em chamas o envolveram numa cortina de fogo; olhos
esbugalhados de louco, arrancou a roupa do corpo. Estava atordoado o
miserável!
Com gritos de terror atirou-se contra a porta. Encontrando-a
fechada, um impropério de raiva escapou-se-lhe dos lábios. A fumarada
acre e espessa ocultava-o às minhas vistas, além de que não tinha tempo
para procurar-me. Debatia-se como doido e dava urros de fera;
esmurrava a porta e rebolcava-se no assoalho, impotente contra o
elemento destruidor que eu desencadeara contra ele. Por fim, calou-se
imóvel, estendido. Eu também mal respirava, pois a fumaça me asfixiava.
Por que me mantinha ainda de pé, quando ele, homem robusto, já havia
sucumbido, não o saberia explicar; mas, nesse momento, golpes de
machado advertiam-me que os guardas fiéis forçavam a porta.
A idéia de que Gálio escapasse, apesar de tudo, renovou num
instante as minhas forças. Com um grito selvagem, atirei-me a ele e, com
a chave maciça que ainda segurava, esbordoei-lhe com todas as forças o
rosto e a testa. Foi quando a porta cedeu despedaçada, deixando penetrar
uma corrente de ar puro e benfazejo. Ainda percebi, como através de um
véu, o rosto de Gálio ensangüentado e desmaiei...
Não sei quanto tempo assim estive após aquele terrível momento.
Quando recobrei os sentidos, entreabri os olhos e vi que estava deitada
em modesto leito, num grande quarto pobremente mobiliado, e ao fundo
do qual Cláudia conversava animadamente com um desconhecido.
Fechei os olhos não querendo dar a perceber que havia recobrado
os sentidos e me esforçava por compreender o assunto da conversa. O
que disso conclui, foi muitíssimo útil e me inspirou a conduta a seguir,
depois daquele ato de terrível vingança que o desespero me impusera.
__ Pensais, Graco, que a pobre criatura está realmente louca e
assim permanecerá, senão para sempre, ao menos por alguns anos? —
perguntou Cláudia.
__ Sim,— respondeu o homem assim designado — é o meu
parecer e isso mesmo já declarei hoje ao procônsul. Ê pena, disse-me ele,
pois se não estivesse louca, fá-la-ia pagar caro o estado lastimável em
que fiquei; mas, que fazer com uma demente?
No meu ímpeto, às minhas palavras; já não queria fingir; a vida
era-me odiosa.
Eles me ouviram espantados; depois Graco declarou que eu havia
recuperado a razão e que ia comunicar a Gálio quanto se passava.
Fiquei só, mergulhada em tristes conjeturas sobre o tremendo
passado e o crime odioso que acabava de praticar.
Depois de longas horas, Cláudia voltou para dizer:
— Olha, criatura desnaturada, apesar dos seus sofrimentos, Gálio
vai chegar até aqui e tu podes tremer diante da sua justa indignação. Seu
coração está transformado pelo teu nefando crime.
Permaneci indiferente a tais ameaças, mas o pensamento da vinda
de Gálio, me produziu um tremor de frio global. Rever o responsável pelos
meus infortúnios e pelo meu crime, ultrapassava minhas possibilidades de
auto-domínio. Enterrei a cabeça nos travesseiros e tapei os ouvidos para
não lhe ouvir os passos nem a voz, quando aparecesse.
Não sei quanto tempo assim estive, até que Cláudia me sacudiu
rudemente:
— Veleda, ajoelha-te aos pés do teu benfeitor e pede-lhe perdão.
Levantei a cabeça e, olhos flamejantes de ódio, fixei Gálio deitado
num leito ali trazido por quatro escravos. Seu rosto e braços ainda
estavam ligados e cicatrizes de inúmeras queimaduras eram bem visíveis.
Cercava-o numeroso séquito de oficiais, guardas e escravos, além de dois
padres.
Quando nossos olhares se encontraram, ele cobriu o rosto com as
mãos e disse:
— Servidores dos deuses, falai a esta criatura desnaturada,
explicai-lhe quanto é odioso o seu crime e dizei-lhe que, se não quiser
arrepender-se, desencadeareis sobre, ela as implacáveis Eumènides.
No primeiro momento, os dois padres me inspiraram grande
respeito; mas a essas palavras, compartilharam do meu ódio. Deviam
desencadear as Eumènides contra mim, a vítima que havia sido
assassinada moralmente e apenas se havia defendido! À vista disso,
Júpiter era injusto e a deusa da justiça deixava de existir. No momento,
ao menos ainda não sofria nenhuma das torturas que iam desencadear
sobre mim e deixei-me levar, de alguma sorte, por minha teimosia.
Os dois padres, um pertencente ao templo de Júpiter e outro ao de
Juno Lucino, protetora dos recém-nascidos, se aproximaram e me
exortaram a reparar meu crime pela humildade, deprecando perdão aos
deuses e a Gálio.
Diante do meu mutismo e indiferença, entoaram um canto lúgubre
e cadenciado, o qual dizia que as Eumènides haviam costurado minha
língua e entorpecido meus membros, o que significava ter Nêmesis, a
terrível deusa da vingança, desencadeado sobre mim toda a sua cólera.
Depois, trouxeram uma tripeça, um dos padres lançou no fogo perfumes e
após uma evocação aos deuses, declarou que eles, os deuses, exigiam um
sacrifício expiatório.
A um sinal de Gálio, abriram-se as por tas da sala e com grande
espanto vi entrai mais dois padres, vestais e multidão de servidores do
procônsul.
Armaram um altar, nele colocando estátuas de Júpiter, Juno e
Nêmesis. Depois, todos os assistentes se prostraram, face em terra,
enquanto os padres e as vestais começaram a cantar. Lúgubres
pensamentos me assaltaram ao ver aqueles aparatos. Trouxeram uma
bezerra branca e uma ovelha preta; mas, antes de as imolar aos deuses,
os padres se aproximaram de mim, cantando e me exortaram, ainda uma
vez, a pedir perdão aos Imortais e a Gálio.
A esse tempo eu já era um espírito for-te, algo cético. Não vendo
as Eumenides que deveriam apoderar-se de todos os meus membros e me
tirarem o coração, roendo-o. Recuperei pouco a pouco toda a calma; mas
os cantos, os ruídos, as vestes brancas das vestais e todas aquelas
cerimônias, irritavam-me os nervos sobre excitados e cobri o rosto para
nada ver.
Imolaram a bezerra e como não me aproximasse para molhar as
mãos no sangue da vítima expiatória, me agarraram e arrastaram até
junto do altar.
Sacrificaram a ovelha preta e, depois de consultadas suas
entranhas, o padre declarou que os deuses recusaram aceitar o sacrifício
expiatório e me abandonavam à fúria das Eumenides.
Tal sentença me revoltou. O sangue germânico e selvagem de
minha mãe começava a ferver dentro de mim. Levantei-me e cruzei os
braços, para bem demonstrar que ainda gozava da liberdade dos meus
movimentos e da minha palavra.
— Não creio nas Eumenides — disse — não as vejo nem sinto; mas
a ele, o tirano, (apontei o procônsul), elas o segurarão e o perseguirão por
sua violência e crueldade. Arrancou-me do seio de minha família,
desonrou-me e induziu-me ao crime, seu filho, nenhuma divindade poderá
ordenar-me que o ame; matei-o sacrificando-o aos deuses, para que me
vinguem do procônsul. Sim! — continuei Voltando-me para ele — sobre
tua cabeça detestável, Gálio, invoquei a vingança dos teus deuses e dos
da minha mãe, muito mais terríveis ainda.
A estas palavras Gálio desmaiou. Mas, recobrando os sentidos
imediatamente; posse de joelhos e elevou os braços ao céu, sustentado
pelos padres:
— Poderosos deuses, reunidos no Olimpo e tu, Júpiter, conheceis
minha bondade para com esta criatura indigna; imploro-vos não permitais
que os deuses vingadores germânicos (que brevemente combaterei de
novo) aceitem o sacrifício de meu filho para se vingarem de mim. Oh!
poderoso deus da guerra, Marte, por quem sacrificarei alegremente minha
vida! Não é por mim que peço, mas pela glória e felicidade do povo
romano. Se os deuses dos germanos lhes concederem a vitória, minha
derrota e desonra serão também dos romanos.
Exclamações frenéticas dos assistentes quase abafaram as vozes
das vestais que cantavam e dançavam uma composição sacra.
Novas vítimas foram imoladas e os padres leram nas suas
entranhas que Júpiter e Marte prometiam proteger Gálio e defendê-lo dos
deuses vingadores dos germânicos, lisonjeados com o sacrifício de Veleda.
Depois, Gálio se levantou, bateu com o pé e mostrou-me os
punhos:
— Entendeste, animal sem coração? Selvagem exaltação
empolgou-me; perfilei-me e elevei os braços ao céu:
— Tu apenas sacrificas animais, exclamei; mas os imortais
apreciam muito mais as vítimas humanas; o sacrifício de uma mãe
imolando o filho sempre foi aceito. Deuses implacáveis dos germânicos,
confio-vos a minha vingança.
Brados de indignação se fizeram ouvir e Gálio ordenou que fosse
enclausurada no templo, para ali viver o resto da vida; os padres, porém,
lhe disseram que os deuses exigiam fosse entregue às feras do circo: «A
poderosa Juno — disseram — quer que a mulher, que agiu com
ferocidade animal, pereça pela mesma forma».
Até o momento de ser transportada para Roma, estive recolhida ao
templo; mas, no imo do coração, me retornara inteiramente aos deuses
de minha mãe; as Eumenides não se apresentaram e isso mais me
aferroava numa crença nova; meu ódio selvagem contra Gálio havia
mesmo extinguido os remorsos pelo assassínio de meu filho.
Durante minha estadia no templo, soube que Gálio, o grande
comediante, fingia-se desesperado após a morte do filho; que fizera à
criança solenes funerais; que andava de cabeça baixa e vivia muito
retraído, não consentindo a aproximação de ninguém.
No dia de minha partida, vestiram-me de branco e toda a
comunidade religiosa me acompanhou às portas da cidade, entoando
cânticos lúgubres por que eu ia, enfim, expiar meu crime sofrendo morte
horrorosa.
Durante a viagem que me pareceu interminável, minha exaltação
diminuiu pouco a pouco e um torpor vizinho do embrutecimento me
invadiu; finalmente, um dia, o pequeno cortejo parou diante de sólido
edifício de pedra; abriu-se uma grande porta e franqueamos vasto pátio.
Aos chamados da escolta acorreram gladiadores ricamente
vestidos; um deles, ao avistar-me, disse:
— Ah! trazem uma mulher para os jogos do circo; é preciso chamar
Astartos, pois é ele quem cuida sempre dos prisioneiros.
Astartos veio imediatamente e reconheci nele o belo amigo da
infância. Reconhecendo-me, empalideceu terrivelmente, mas logo se
dominou. Passou recibo aos condutores e, tomando-me pela mão, disse:
— Muito bem, agora podeis retirar-vos e tu, rapariga, segue-me.
Conduziu-me a uma prisão subterrânea, dependente do circo,
porém muito menos asquerosa que a do palácio de Gálio, onde definhei.
Fechou atrás de si todas as portas e quando ficamos sós, abraçou-me
ternamente e disse:
— Minha pobre Veleda, que infeliz destino te conduz até aqui! E
sou EU, EU, o amigo de infância, que te devo lançar às feras! É horrível!
Caminhava agitado e, por fim, assentou-se junto de mim,
tomando-me as mãos:
— Ê preciso tudo fazer para salvar-te. Hoje mesmo irei prevenir
Agripa; seria atroz que perecesses dessa forma. Tem calma e repousa;
amigos velam por ti e agora vou buscar alguma coisa para te
reconfortares.
Saiu e voltou logo, trazendo alimentos, vinho e roupa; procurava
dar-me todo o conforto possível naquele lugar e eu permanecia
relativamente tranqüila. Havia sido condenada por Gálio, poderoso amigo
de Tibério e contra ele que poderiam fazer Astartos e mesmo Agripa?
Na tarde do dia seguinte, cochilava quando a porta do cárcere se
abriu de chofre e divisei Astartos seguido de outro homem. Fizeram entrar
uma mulher, que, após alguns passos incertos, deixou-se cair num banco
de pedra. Depois nos trancaram de novo e retiraram-se.
Permaneci deitada, observando em silêncio a recém-vinda, cujos
traços não podia distinguir na obscuridade ambiente. Súbito a mulher
empertigou-se e, aproximando-se, perguntou:
— Quem sois?
— Uma companheira de infortúnio — respondi — porque vossa
presença aqui prova que, sem dúvida, a mesma sorte nos aguarda.
Chamo-me Veleda; e vós?
Minha companheira, aliás jovem e bela, suspirou profundamente:
— Aqui chamam-me Lélia, mas meu verdadeiro nome é Mara.
Estremeci. Lélia, a Lélia de Tibério! Por um estranho acaso, o
destino me colocava em presença da mulher cuja sina triste me pareceu
outrora um reflexo do meu futuro, e nós duas nos encontrávamos
condenadas à morte pelos tiranos de quem éramos joguetes; nossa vida e
felicidade, apenas haviam servido para satisfazer seus caprichos; tornadas
supérfluas, entregavam-nos ao suplício. O nome de Lélia bastou para
despertar minha simpatia; atraí-a para junto de mim, sobre a palha e
trocamos confidencias sobre a nossa desgraçada existência. Quando
concluímos, Lélia apertou-me a mão:
— Apesar de tudo — disse — somos fortes e indomáveis porque
preferimos a morte aos nossos verdugos; eles não nos podem matar duas
vezes, e olha, Veleda, sabem que a morte é a menor das punições a nos
infligir; é por isso que temem matar-nos.
— Sim,— respondi satisfeita — dizes a verdade, Mara; agora
porém, chegamos ao fim; a morte vai-nos libertar e subtrair a esta vida
indigna.
— Sim, a libertação vem próxima e sinto-me feliz por nunca mais
ver Tibério; oh! (e comprimiu com as mãos o peito ofegante) não preciso
dizer-te quanto o detesto; quando incendiaste o palácio de Gálio,
experimentaste toda a profundeza desse sentimento. Não poder vingar-
me de Tibério como aspira minha alma!
Abraçamo-nos e desde esse momento nos ligamos por estreita
amizade, reunidas pela comunhão de nossas desgraças e pelo ódio
selvagem aos nossos perseguidores.
Dias depois, durante a noite, despertei sobressaltada com o rangir
dos gonzos da porta e por uma luz que caía perpendicularmente sobre
meu rosto. Lélia dormia e eu me levantei e aguardei curiosamente quem
poderia vir, aquela hora, a nossa prisão. Com grande surpresa, vi entrar
Astartos empunhando uma tocha, acompanhado de Agripa e Marcos.
Há tanto tempo que não via um rosto amigo, que, avistando Agripa
experimentei imensa alegria. Foi ele o primeiro a se aproximar e a
abraçar-me ternamente:
— Em que triste situação te reencontro, minha pobre Veleda! —
disse comovido — que morte te preparam! Mas é preciso salvar-te!
Assentou-se a meu lado, absorvido nos próprios pensamentos.
Voltei-me para cumprimentar Marcos, de quem me havia esquecido no
primeiro momento de emoção. Vi-o ajoelhado perto de Lélia e parecia
desesperado, falando-lhe do seu amor.
— Não te desesperes, Marcos — respondia Lélia — se me amas,
deves alegrar-te com a minha morte; poderias, porventura, ver-me sofrer
e pertencer a Tibério, sem sentires ciúmes? Hilderico tê-lo-ia feito em
pedaços; nós, os alemães, amamos diferentemente; se Hilderico o visse
maltratar-me, matar-me-ia primeiro e em seguida a ele; tu, pelo
contrário, pretendes curar as feridas abertas pelo seu chicote. Vai-te! Não
sabes amar!
Nesse momento Agripa apertando fortemente minha mão, disse:
— Devo salvar-te, Veleda; tenho amigos poderosos, tudo se
arranjará embora isso deva custar-me a vida.
— Meu bom Agripa — contestei reconhecida — agradeço tuas boas
palavras, mas não arrisques a vida por mim; estou perdida, desonrada e,
depois de tudo que se tem passado, como posso desejar a vida? Qual será
o meu futuro? Além disso, Gálio não abandonará sua presa; ele está
furioso por lhe haver queimado uma orelha.
Agripa pôs-se a rir:
— Como foi isso? Mas é de lamentar profundamente que lhe não
houvesses feito o mesmo com o nariz; este, Veleda, é que devia ter sido
queimado! Mas, a respeito de Gálio, devo contar-te uma novidade: ele
vem a Roma onde é esperado dentro de alguns dias; seu dedicado amigo
Tibério enviou-lhe um convite nesse sentido; ouvi-o dizer a Sejano:
«Convidei Gálio para o espetáculo do circo, onde será punida a besta
pelos seus crimes». Ouvi tudo isso hoje — acrescentou Agripa — porque
estava de serviço; Tibério anda muito irritado; à mesa, esbofeteou Febé e
quando Sejano teve a infeliz idéia de se vangloriar da própria severidade
para com Lélia, olhou-o de esguelha e aplicou-lhe um soco tão violento
que o sangue esguichou do nariz; e como um escravo se abaixasse para
apanhar o punhal que havia caído, deu-lhe um pontapé que lhe quebrou o
maxilar. Há dias já que ele se vem mostrando insuportável, não
perdoando a ninguém; se lhe apresentam uma lista de condenações, faz
uma cruz sem mesmo ler. Ontem, foi ao quarto de Lélia e fechou-se por
dentro; quando saiu, encontraram em frangalhos a colcha de seda que
guarnecia a cama; tudo revirado, o busto de Lélia em pedaços, no chão.
Ao jantar falou-se novamente na próxima chegada de Gálio e Tibério
começou a blasonar: «È estranho que o amigo Gálio tenha caído em
semelhante armadilha; mas eu afirmo que ele é um homem fraco, sem
caráter; Lélia jamais ousaria tocar-me com um dedo sequer; soube
submetê-la a mim; Gálio, porém, deixa-se bater, esbofetear e aleijar,
porque ela até lhe queimou uma orelha, quebrou-lhe sete dentes e
avariou-lhe uma vista. Estivesse ela aqui e eu lhe ensinaria como se doma
semelhantes feras. Eu domei Lélia — continuou — que se tornou
delicadíssima, por fim, e jamais teria consentido na sua condenação se ela
não tivesse imprudentemente dito que desejava estrangular-me.
Era do meu dever evitar tal atentado contra mim, a esperança do
império.
— Digo-lhe, Veleda — prosseguiu Agripa — a gente se cala por
temor, mas não é possível conter o riso quando esse tirano ciumento,
enfatuado, fala assim tão descaradamente diante de nós. Eu mesmo já
ajudei arrancar Lélia do seu pescoço; dezoito dentadas é quantas lhe tem
dado, além de lhe haver decepado a metade do dedo mínimo; ele tem o
rosto todo marcado de cicatrizes que diz ser erupção, e isso diante de nós,
que sabemos a verdade.
Agripa entrou a rir de novo.
-— Conta a Veleda a história da semana passada — disse Astartos,
rindo igual mente.
— Ah! é verdade. Uma história extraordinária, começou Agripa. Há
seis ou sete dias, durante o almoço, Tibério mentia e se gabava, como de
costume; todos se mantinham sérios, mas Febé, que goza de muita
liberdade com ele, atreveu-se a rir; Tibério, então, aplicou-lhe tamanho
soco na nuca, quebrando-lhe dois dentes no rebordo da taça em que
bebia, no momento. Furiosa, entregou-se a uma cena pouco edificante
para ser relatada, e após haver escarrado em Tibério, sumiu-se. Durante
três dias ninguém lhe soube do paradeiro. Tibério que se sente
inteiramente só, depois que Lélia foi recolhida à prisão, mandou procurá-
la por toda a parte. Havia-se refugiado em casa de Astartos, que a
reconduziu depois de lhe haver aplicado formidável sova, por sua revolta e
desobediência para com o poderoso Tibério.
— Deu-me um saco de moedas pela minha lealdade — acrescentou
Astartos, rindo e mostrando os seus lindos dentes brancos.
Apesar da nossa infeliz situação e da terrível sorte que nos
aguardava, não pudemos deixar de compartilhar da hilaridade dos nossos
amigos.
— Sabei — disse Astartos — que de uns dias para cá tenho uma
entrevista com Tibério todas as manhãs; ele manda me chamar e
pergunta pela sua prisioneira. Quer saber se ela não manifesta desejo de
lhe pedir perdão; ele, a indulgência personificada, consentiria, talvez, em
perdoá-la; sempre me adverte desconfiadamente: — Diga-lhe, pois, da
possibilidade de ser perdoada! Toma cuidado, gladiador! — Inclino-me
sempre muito respeitosamente e lhe digo que me confiou uma verdadeira
fera.
Marcos não tomou parte em nossa conversa; caminhava agitado;
de repente, parou e torcendo as mãos, disse:
— Que poderia, pois, fazer, poderosos deuses, para te salvar,
pobre Lélia? Agripa ainda pode tentar libertar Veleda; é patrício, rico,
dispõe de amigos influentes; mas eu, pobre médico do tirano, que poderei
fazer? Juro, entretanto, que se ele te mata, se te expõe às feras, o
primeiro medicamento que lhe receitar será um veneno.
Lélia levantou-se:
— Faze-o, Marcos, se eu viver, se ele me perdoar; mas não se eu
morrer, pois então serei livre e feliz.
Depois de nos ter ainda encorajado, pro metendo fazer tudo pela
nossa liberdade e deixando boas provisões, despediram-se.
O tempo corria de maneira assaz suportável; Astartos passava
conosco boa parte do dia, a pretexto de convencer Lélia a pedir perdão;
divertia-nos com as novidades da cidade e da corte e anedotas sobre
Tibério e Gálio; à noite vinham Marcos e Agripa, que nos relatavam os
esforços empregados para nossa libertação; no íntimo, porém, eu
duvidava muitíssimo que lograssem sucesso.
Uma tarde Astartos preveniu-nos que os nossos amigos não viriam,
por estarem de serviço, e nos deitamos. Com surpresa, fui despertada
pelo ranger da pesada porta! Abrindo os olhos deparei com Astartos que,
empunhando uma tocha, procedia um homem revestido de toga. Tipo de
fisionomia seca e antipática, olhos cruéis e penetrantes, que pareciam
sondar o ambiente.
— Onde está Lélia ? — murmurou.
Duvidei que fosse Tibério. Astartos levantou o archote. Imóvel e
indiferente, iluminou Lélia, que dormia, não tendo mesmo percebido a
entrada dos dois homens.
Tibério deixou cair a toga e, de braços cruzados e cenho carregado,
fixou Lélia. Como se a pobre criatura sentisse o olhar do perseguidor,
começou a agitar-se como presa de um pesadelo, revolvendo-se na
enxerga.
— Lélia, Lélia — disse Tibério, apressurado.
A essa voz, ela despertou em sobressalto e o seu primeiro olhar
caiu sobre o tirano:
— Oh! — disse, recuando — mesmo em sonho ele não me concede
nenhum repouso; como um pesadelo me persegue!
— Lélia — disse Tibério — alma danada, reconsidera que estás
vendo o teu benfeitor; é o pavor do suplício que te tira a razão. Confia
ainda. Se te mostrares compassiva e diante de todos me pedires graça
pela tua enorme ingratidão para com o teu amigo, senhor, futuro
soberano e benfeitor, que substituiu junto de ti pai, irmão, marido, TUDO!
— MENTIROSO, mentiroso! — berrou Lélia que de um salto se pôs
de pé diante dele.
Um ódio feroz que jamais lhe adivinharia nos traços infantis, rosto
contraído e olhos brilhantes como brasa, pareciam devorá-lo.
— Convence-te, finalmente, tirano abominável, de que és
impotente diante da minha resolução de morrer. Jamais curvarei a cabeça
diante de ti, ainda mesmo que me cortasses em pedaços. Carrasco! Ousas
dizer que substitues para mim pai, irmão, marido? Quem, senão uma
outra Febé, te aceitaria por marido, monstro de cara raspada com os teus
músculos salientes como nervos de boi!
Eu estava admiradíssima e amargamente arrependida de não ter
assim insultado Gálio, mostrando-lhe a sua feiúra, a ele que se acreditava
tão bonito.
Tibério tremia como tomado de febril acesso; mas, não tocou em
Lélia, que se mantinha diante dele em atitude agressiva.
— Infeliz criatura — disse por fim, após se ter acalmado um pouco
— Gladiador Astartos, estais tão cego a ponto de não ver que ela perdeu a
razão? Ê preciso chamar Marcos — disse comprimindo as frontes com as
mãos. — Devo consultar os deuses e perguntar se lhes é agradável a
punição de uma louca. Pobre criatura! Vai, gladiador, prevenir Marcos;
mas, eu te acompanho e esperarei atrás daquela porta, porque é perigoso
ficar junto de loucos.
Nesse momento seus olhos me descobriram.
— Quem está ali? — perguntou apontando-me com o dedo.
— É Veleda,— respondeu Astartos, a mulher condenada pelo
procônsul Gálio por ofensas graves contra a pessoa dele.
— Oh! oh! é aqui o antro dos leões, duas loucas reunidas...
Retirou-se para junto da porta, dizendo:
— Conheço a história de Gálio; pobres criaturas; elas pecam na sua
loucura, pois de outra forma não se revoltariam contra os seus
benfeitores.
Lélia, fora de si, quis atirar-se a Tibério, mas este já havia
desaparecido atrás da porta e apenas um naco de pão duro o atingiu na
nuca.
— Veja, Veleda! O miserável pretende que estejamos loucas, oh! o
infame!
Sentou-se, esgotada; eu também, muito perturbada, mas resoluta.
— Tranqüiliza-te — disse apertando-lhe a mão — embora nos
chamem de loucas, isso não impedirá detestá-los, ameaçá-los e matá-los
se houver ensejo de o fazer.
Ao fim de algum tempo, a porta se abriu de novo e Tibério entrou
seguido de Marcos e Astartos; este último voltou-se para colocar um
segundo archote na cantoneira de ferro e percebi também que mordia os
lábios para não rir. Escondi a cabeça na palha, porque ria igualmente.
Tibério conservou-se de pé e olhou para Lélia.
— Examine-a, doutor — disse — mas toma cuidado, porque é
uma louca perigosa.
Lélia se levantou.
— Por que esta comédia? Mentes! Queres fazer crer que estou
louca a fim de que as injúrias que te assaco, não provenham de um
cérebro equilibrado. Agora já não me aflijo, mas repito: jamais te pedirei
perdão; odeio-te e prefiro a morte a ti.
Tibério baixou a cabeça como se estivesse consternado.
— Vê, doutor? O pior é que os loucos falam sempre como pessoas
ajuizadas. Pobre Lélia, reconhece, entretanto, o teu benfeitor, que jamais
te fez mal.
Pretendeu tocar-lhe no braço, ela recuou contrariada.
— Eia! pobre criança — disse Tibério — retiro-me sem me sentir
ofendido, porque não estás no teu juízo perfeito; mas se o recuperares e
te arrependeres da ingratidão para com o teu benfeitor, estou sempre
pranto a perdoar-te. Gladiador, observarás cuidadosamente e me avisarás
ao menor indício de lucidez.
Parou diante de mim e me examinou atentamente.
— Astartos, esforçarás ao mesmo tempo em agir relativamente a
esta infeliz; o amigo Gálio também tem um coração caridoso e perdoará
mediante um arrependimento sincero.
Tiranos infames e mentirosos, pensei comigo mesma. Quem vos
leva a sério? E acrescentei em voz alta:
— Odeio o procônsul; ele poderá aguardar eternamente o meu
arrependimento; se a segunda orelha o incomoda, que venha aqui
persuadir-me.
Lélia havia assentado no banco e tapava os ouvidos com as mãos;
Tibério estava roxeado e tremia de raiva.
— Oh! — disse — é afrontoso estar entre duas insensatas! — e
estendeu o braço a Marcos. — Veja, doutor, creio que a emoção muito
forte pela dor que me inspira a loucura desta pobre criatura, que tenho
ainda a fraqueza de proteger, me produziu febre.
Marcos tomou-lhe o pulso, e inclinando-se, disse:
— Devo confessar que vosso estado é muito grave e exige imediato
e absoluto repouso, para que as forças não vos abandonem.
— Ah! — murmurou Tibério — já me sinto muito mal, com efeito, e
não me posso agüentar.
Cambaleou e caiu nos braços de Marcos e de Astartos.
Durante esse colóquio, Lélia levantou-se sobre os cotovelos e
vendo o inimigo estendido, cabeça derreada e olhos fechados,
instantaneamente como um relâmpago, tirou a sandália do pé e
aproximou-se, aplicou-lhe com ela duas formidáveis bofetadas.
Como se houvesse experimentado um choque elétrico, Tibério
saltou nos pés sem nenhum sinal de fraqueza; a boca lhe escumava e já
queria atracar-se com Lélia, quando Marcos o conteve:
— Apenas um gesto, uma emoção a mais, será inevitável a rutura
do coração.
Tibério desfaleceu nos braços do médico, porém, com maior
prudência que antes, manteve os olhos abertos.
— Conduzam-me para fora daqui — murmurou.
Nossos amigos não esperaram segunda ordem e eu, muito
imprudentemente, dei uma gargalhada, antes que a cabeça raspada
houvesse transposto os umbrais da prisão.
— Olha, animal — vociferou ele ao mesmo tempo que me
ameaçava com um gesto — pagarás esta risada!
— Pobre louca — disse Marcos dando de ombros.
Lélia, após o seu ato de indignação, havia prudentemente
desmaiado quando notou cólera de Tibério com os braços erguidos sobre a
sua cabeça.
Tão logo a chave rodou na fechadura, ela saltou nos pés e atirou-
se ao meu pescoço:
— Vê, Veleda, como o tenho maltratado; que repita ainda que não
ouso tocar-lhe, sequer!
Abracei-a e felicitei-a por sua rara coragem.
Na noite seguinte vieram os três amigos, como de costume e nos
fizeram muito rir. Agripa e Marcos contaram que, ao chegar em palácio,
Tibério dissera a todos os presentes ter visitado as prisões e, por acaso,
avistado Lélia de quem já se tinha totalmente esquecido; que, vendo-o, a
infeliz se lhe agarrara à toga, e prostrada a seus pés lhe implorara graça;
que isso por tal forma o comoveu que desfalecera, batendo de encontro à
parede, coisa muito extraordinária, resultando as duas manchas roxeadas,
iguais, nas duas faces.
— Hoje — falou Agripa — vai reunir o conselho privado para
decidir a sorte de Lélia, porque não queria resolver por si mesmo. Sejano,
que, creio, queria desembaraçar-se de ti, declarou que se implorasses
perdão ao teu benfeitor, de joelhos e diante de todos, era possível
concedê-lo; Tibério dirigiu-lhe um olhar furioso, porque não propusera que
te fosse concedida uma absolvição plena e incondicional.
— Quando deixei o tirano — disse Marcos, rindo — embora contra
a vontade, ele estava acamado. Eram-lhe aplicadas compressas de óleo
de rosas nas bochechas, que Febé renovava de vez em quando; todos se
admiravam grandemente dessas estranhas manchas, de contornos tão
regulares.
— Gálio chegou esta noite — acrescentou Agripa — fui eu quem o
introduziu no palácio. Como desejaria aplicar-lhe boas espaldeiradas em
vez de lhe prestar honras! Mas, não te desesperes, Veleda; penso ainda
poder salvar-te.
Sorri tristemente, sem responder; havia-me por tal forma
habituado à idéia de morte próxima, que não mais temia esse terrível
instante e calmamente o aguardava. Lélia passava mais agitada; seu
temperamento nervoso lhe proporcionava momentos de lúgubre
desespero; queria muito morrer, mas preferia um outro gênero de morte
que não atirada e estraçalhada pelas feras; apesar da sua coragem,
tremia, apavorada com a lembrança de tal sofrimento.
Alguns dias se passaram sem qualquer novo incidente. Uma noite,
entretanto, de novo se abriu a porta da prisão e Astartos conduzindo um
archote, introduziu dois homens: eram Gálio e Tibério.
Gálio parou prudentemente perto da porta e seu olhar percorreu a
sombria prisão; vendo-me, seus olhos brilharam; aproximou-se
rapidamente e fixou-me num misto de paixão e ferocidade.
— Como te encontras aqui, Veleda? — perguntou. — A prisão, os
sofrimentos, a separação de teu pai, amoleceram teu coração de ferro?
Queres implorar meu perdão, aceitar meu amor e ser feliz? Responde; teu
futuro depende das palavras que pronunciares.
Percebi que ele se mantinha em atitude reservada e prudente;
respondi com dignidade, sem me exaltar:
— Odeio-te, Gálio, tu o sabes de há muito; jamais te amarei;
nenhuma prisão, nenhuma separação modificará este meu ódio; teu amor
é me mais detestável que qualquer suplício; quero morrer, convence-te.
Gálio amarfanhou nervoso o pano da toga e suspirou fundo:
— Não sabes o que é a morte no circo, Veleda; do contrário,
preferirias o meu perdão; és bem ingrata, quando venho em pessoa
propor-te a paz e o perdão, a despeito de todo o mal que me fizeste.
Queimaste-me uma orelha e...
— Não me arrependo senão de uma coisa — interrompi — não te
haver matado ou, ao menos, queimado a tua língua infame.
— Cala-te, insensata! minha infinita indulgência te perdoou todo o
passado e te proponho a paz, eu! o procônsul, o herói Gálio e tu, plebéia,
ainda ousas insultar-me!
— Nunca mais te rebaixes, então, a propor-me teu perdão —
disse-lhe com desprezo; aspiro somente a morte, que me livrará de ti e
do teu amor odioso.
— Ah! — disse ele, e cruel sorriso lhe frisou os lábios. — Queres ser
livre! Pois bem! não morrerás, acompanhar-me-ás a Pompéia onde já
passamos tão belos tempos!
Voltou-se para Astartos:
— Gladiador, tu a terás sob tua guarda até a minha partida e então
a entregaras aos meus homens.
A essas palavras, apoderou-se de mim um desespero incoercível,
sapateava de raiva:
— Queres ser queimado todo inteiro, tirano infame, então leva-me;
mas se te aproximares de mim, arrancar-te-ei os olhos com as unhas e te
morderei por toda parte onde alcancem meus dentes.
— Ta, ta, ta — fez Gálio. — Que mulherzinha de maus instintos!
mas, como prevines, o perigo não é tão grande e saberei subjugar-te.
Compreendi só então o erro e a fraqueza em que incorrera; voltei-
lhe as costas; não queria mais falar-lhe e atirei-me às palhas. A voz de
Lélia, porém, me fez lembrar dela e de Tibério. Sem dúvida os dois tiranos
haviam tramado esse perdão e Lélia, como eu, obteria graça contra a sua
vontade. Mas eu me equivocava; o conselho havia decidido que ela
implorasse perdão diante de todos e seus olhos inflamados, davam muda
resposta às insinuações de Tibério.
— Abençoados sejam os deuses por depender de mim e não de ti
este perdão — disse no momento em que comecei a prestar atenção —
receias que eu morra, porém nada podes fazer porque tua fatuidade te
impede de perdoar-me sem que eu me humilhe diante de ti. Jamais o
farei, pois morro contente.
Tibério estava agitadíssimo.
— Víbora, serpente, ordeno que me peças graça; não quero que
morras; Lélia, ingrata criatura, lembra-te de todos os meus favores e
pede perdão ao teu benfeitor.
Ela alçou os ombros:
— Deixa-me sossegada; dentro de poucos dias estarás livre de
mim.
Tibério assentou-se, muito inquieto.
— Mas, Lélia — acrescentou — se eu pedisse para suplicar graça,
mesmo que fosse fingida, para que tivesse apenas o pretexto de te
perdoar? És ingrata, Lélia; tanto tenho cuidado de ti depois de trazer-te
do campo de batalha; submete-te, eu assim o quero.
Ela voltou-lhe as costas e pôs-se a rir:
— Pede-me de joelhos que te suplique graça, mas diante de todos.
Ele levou a farsa ao ponto de apoiar a cabeça com as mãos, como
um homem desolado.
— Lélia, tua teimosia me acabrunha e enferma, o que pedes é
impossível e não posso aceitar; já faço por ti coisas inacreditáveis.
Lamento o teu destino.
E mergulhou a cabeça inteiramente nas dobras da toga.
Um movimento de Gálio me fez reparar nele. Havia-se apoiado à
parede e zombeteiro sorriso lhe pairou nos lábios. Fixando-me, sua
fisionomia retomou imediatamente uma expressão triste e séria.
— Ora, aí estão — disse — duas conquistas que fizemos, duas
feras metidas pelo capricho dos deuses em corpos de mulher.
Tibério nada respondia, continuando a chorar; então Lélia
levantou-se e aproximou-se dele, disse:
— Acaba com esse fingimento, meu caro Tibério; conheço essas
manhas; não mais me enganas e tuas fingidas lágrimas não despertarão
minha compaixão. Tirano miserável, sem coração, jamais me tiveste
amor, porque do contrário serias outro para mim; contudo, bem me
conheces e sabes que nunca pedirei graça; deixa, pois, de enxugar com a
toga os olhos secos. Ê inútil. Perdoo-te o passado, morro por tua ordem e
é essa a maior caridade que me fizeste até hoje.
Vendo-se desmascarado, Tibério levantou-se e foi atirar-se nos
braços de Gálio. Vi, novamente, estranho sorriso pairar nos lábios deste,
que a seguir, em atitude muito respeitosa, o amparou e conduziu para
fora da prisão. Astartos os precedeu, grave e impassível, erguendo bem
alto o archote para iluminar o caminho.
Uma vez sós, não pudemos conter o riso, apesar da nossa triste
situação, tal o quadro exótico e ridículo que ofereciam os dois tiranos
apoiados um no outro.
Astartos esteve ausente cerca de meia hora. Após haver colocado o
archote na cantoneira de ferro, veio compartilhar da nossa hilaridade,
rindo até às lágrimas.
— Ah! — disse por fim — que seria se as minhas caras amigas
pudessem ter assistido à cena cômica que acabo de presenciar! Imaginem
que, saindo daqui, Tibério logo desmaiou e se fez carregar até o palácio.
Enquanto o colocavam na liteira, Gálio torcia as mãos, enxugava os olhos
e repetia:
— Dizer que um homem como Tibério é tão incompreendido! Se
fosse eu, vá lá; mas ele! Ê horrível!
Observei nesse instante que o tirano entreabria um olho e
observava Gálio, fechando-o imediatamente. Finalmente, cercado de
guardas, de Gálio e Marcos, lá se foi ele num estado deplorável.
Convocado pelo imperador para assistir a um conselho, declinou de
comparecer, desculpando-se».
— Sim — disse Lélia — é um hábil comediante. A princípio eu o
tomava a sério. Uma vez, após tê-lo repelido duramente, assentou-se e
pôs-se a soluçar. Sabia que nem pancada, nem ameaças de morte me
comoviam; estávamos sós e guardava no bolso a chave do
compartimento. Acreditei na realidade das suas lágrimas e vendo-o tão
desolado, penalizei-me; aproximei-me e lhe falei com ternura. Levantou-
se para sair e cambaleava. Não sei porque, desconfiei que fingia, mas
faltava-me uma prova; cerquei-o diante da porta e, pondo-me de joelhos,
disse: «Perdoa, Tibério, haver-te ofendido por tal forma»— e fingi um
desmaio, tudo observando de olhos semi-cerrados. Ele parou, deixou cair
a toga e riu satisfeito; de lágrima, nada! Aproximou-se e procurou
erguer-me, mas a satisfação por tê-lo assim desmascarado me
entusiasmou, levantei-me sozinha e confessei-lhe minha desconfiança.
Mostrou-se envergonhado, ausentou-se alguns dias, mas logo
esqueceu o episódio e de tempos a tempos recomeçava as mesmas
artimanhas; sempre que lhe recordo esse episódio, desaparece.
Depois dessa noite não mais vimos nossos perseguidores e o
tempo corria dolorosamente; cada qual absorvida nos próprios
pensamentos: Lélia imaginava o suplício próximo, e eu o terrível futuro
que me aguardava. Gálio, a quem detestava mais que a morte, me
retomaria, para impor-me seu odioso amor e eu não encontrava meios de
salvação. Agripa procurava consolar-me prometendo tudo arriscar para
subtrair-me ao procônsul; e eu o ouvia desesperada, porque o poder de
Gálio escudado em Tibério parecia-me sem limites. Em profunda apatia,
aguardava o futuro, disposta unicamente a empregar uma resistência
férrea em quaisquer circunstâncias. Um dia bem triste ainda, me
aguardava em meio a tantos sofrimentos morais — o da execução da
companheira de infortúnio, a que me havia extremamente afeiçoado no
convívio do nosso cárcere.
Certa manhã, Astartos pálido e agitado aproximou-se de Lélia.
— É para hoje a carnagem — disse tomando-me a mão — Tibério
assistirá ao espetáculo, pois já se restabeleceu.
A despeito da sua coragem, Lélia empalideceu e cambaleou, mas,
reagindo, pediu vestidos adequados. Uma hora depois, Astartos voltou
com uma bandeja cheia de aviamentos. Ajudei a pobre Lélia a vestir-se e
choramos amargamente durante as horas que nos restavam. Marcos veio,
por sua vez, apertou Lélia nos braços e expressou desesperados adeuses.
Astartos também chorava e, por fim, lá se foi ela com o meu último beijo.
Fiquei só, de olhos pregados na enxerga que lhe servira de leito. Cobri o
rosto e as lágrimas borbulhavam ao considerar o pavoroso suplício que lhe
estava reservado.
Os muros da prisão me impediam de ouvir distintamente os ruídos
exteriores, entretanto, percebia o rugir dos leões e, a contragosto, a
imaginação desenhava o quadro que deveria estar se desenrolando no
circo: Lélia a entrar na arena, as feras a se precipitarem sobre ela,
estraçalhando-a... Depois, nada mais que destroços ensangüentados e
deformados...
Tapava então os ouvidos e enterrava a cabeça na palha. Enferma e
martirizada de tanto tempo, minha excitação nervosa pouco a pouco se
transformou em delírio. O corpo ardia, julgava-se na arena; leões, entre
os quais um com a cabeça de Gálio, avançavam e me atacavam de todos
os lados; em seguida, pareceu-me ver entrar Astartos carregando o
cadáver de Lélia; meus ouvidos zumbiam e perdi os sentidos.
Quando voltei a mim, estava sozinha, uma semi-obscuridade
enchia o calabouço. Meu coração se confrangia dolorosamente à
lembrança esmagadora da realidade; naquele momento Lélia estaria bem
longe do número dos vivos; nada restava dela...
Chorava e refletia, aguardando ávida mente cada passo que ecoava
no corredor, Astartos não viria contar-me detalhes horríveis dos últimos
momentos de Lélia?
Finalmente, após uma espera que pareceu eternidade, ouvi passos
precipitados; a porta se abriu e Astartos entrou, seguido de Agripa.
— Lélia vive e está salva! — foram as suas primeiras palavras —
Tibério levou-a para o palácio. Assustada, ela caiu de joelhos diante das
feras e Tibério pretendeu que o fizera para pedir-lhe graça. Salvei-a com
risco da própria vida e sinto-me feliz por isso. É o egoísmo do coração
humano que prefere para o ser amado a pior vida a uma libertação.
Depois me preveniu que Gálio partiria no dia seguinte para
Pompéia e determinara minha recondução, pela manhã, ao seu palácio.
Fiquei aniquilada. Agripa estava fora de si; a raiva e o ciúme
devoravam-no, mas, dominou-se e me disse:
— Acalma-te, Veleda, não estarás só nem abandonada; tomarei
férias de algumas semanas e te acompanharei a Pompéia; lá, farei o
impossível para te libertar e, se o conseguir, fugiremos para a Germânia.
Quando os irmãos e o noivo de Lélia aqui estiveram para libertá-la,
relacionei-me com eles; são homens honrados e corajosos, um dos irmãos
evadiu-se graças à minha intervenção e ao partir, disse-me: «Meu
reconhecimento e o da minha tribo estão ao teu dispor; se algum dia
tiveres necessidade, manda em nós». Iremos para junto deles —
acrescentou cerrando os punhos; prefiro viver entre os selvagens a estar
submetido a tiranos que escarnecem todos os sentimentos humanos.
Todavia, por enquanto, suplico-te dissimules teu ódio a tudo, suportando,
sem jamais irritar o verdugo, até que tenhamos tudo pronto para nossa
fuga.
Atirei-me aos braços de Agripa agradecendo o seu devotamento;
prometi conformar-me com os seus desejos, por mais penosa que me
fosse a submissão.
No dia seguinte, após triste despedida de Astartos, retomei na
comitiva de Gálio o caminho de Pompéia. Levada em liteira, pude sonhar à
vontade com os meus projetos de evasão.
Muitas vezes Gálio aproximou o cavalo da minha liteira e procurou
entabolar conversação comigo. Respondia-lhe com discreta frieza, mas
sem irritação e isso parecia surpreendê-lo. Regozijava-me intimamente ao
pensar na sua raiva impotente, quando soubesse da minha fuga sem
poder seguir-me.
Uma vez chegados, Gálio me permitiu ir a casa de meu pai, que
encontrei muito mudado e envelhecido. Foi uma triste entrevista. Ele
conhecia e aprovava os projetos de Agripa.
— Ide, meus filhos, eu vos seguireí com todas as nossas
economias, pois nada me prende aqui. Estou velho e apenas vos tenho
como tesouro único neste mundo.
Mas o tempo corria sem que se apresentasse ensejo favorável.
Gálio mantinha-me reclusa com tais precauções que me levavam ao
desespero. Várias vezes havíamos fixado a data da fuga, sempre em vão,
porque Gálio me guardava com a maior vigilância. Visitava-me todos os
dias. Eu mostrava-me sempre reservada, mas sem ódio aparente,
buscando atenuar-lhe a desconfiança pela submissão e fingindo-me
conformada com o destino.
Pouco a pouco, pareceu acreditar e relaxou a vigilância. Fixamos,
então, novamente o dia da fuga. Por feliz acaso, à tarde, quando ele veio
honrar-me com a sua visita, estava ligeiramente alcoolizado e dormiu
profundamente. Então, levantei-me e sem perda de tempo, muni-me das
cordas e do emplastro visguento que meu pai me havia dado para o caso;
colei-o à boca de Gálio e amarrei-o fortemente ao leito: «Antes que se
desembarace de tudo isto — pensei — já estarei longe»; depois, tirei-lhe
do bolso a chave do corredorzinho que comunicava com os seus
aposentos, onde, apenas dois escravos montavam guarda e aos quais
havíamos previsto ministrar um narcótico.
Gálio começou a agitar-se e saí qual sombra, mas atrás de mim
percebi grande barulho; era ele que se debatia no leito. Corri o mais que
pude para o jardim, através de uma portinhola que dava para uma rua
deserta e junto da qual deveria encontrar Agripa e meu pai. Quando me
aproximava, ouvi gritar: — Veleda fugiu; ela não pode estar longe! Não
era a voz de Gálio, mas evidentemente, ele tinha-se feito entender.
Corri de perder o fôlego, mas ao chegar à pequena porta vi brilhar
os capacetes de dois soldados que se atravessaram à minha frente e me
agarraram.
Gálio havia desconfiado da minha docilidade e só a meu lado é que
aparentava diminuir a vigilância; exteriormente, dobrara as sentinelas.
Amaldiçoei a fatalidade do destino, mas resistir seria loucura;
reconduziram-me diante de Gálio que estava de pé, junto de uma mesa,
pálido e perfeitamente são; haviam-lhe tirado o esparadrapo, mas as
bochechas, lábios e queixo pareciam queimados. Os dois soldados que me
escoltavam insinuaram-me prostrar-me a seus pés, pedindo graça, mas
eu estava possuída de um ódio tal que me não movia, preferindo morrer a
humilhar-me numa súplica.
Avistando-me, os sentimentos mais diversos se lhe retrataram no
rosto; deu um passo à frente e mergulhou no meu o seu olhar brilhante.
Adivinhou, sem dúvida, meu pensamento através do meu olhar,
porque respirou dolorosamente, passou a mão na fronte e disse com voz
fremente de cólera:
— Réptil ingrato a quem amei, enquanto existires, minha vida
correrá perigo; minha indulgência e estima me farão correr risco de morte
horrível a cada momento.
Pela minha pátria, que precisa da minha vida, devo massacrar-te
como se faz a um animal peçonhento.
Voltou-se e, com mão trêmula, firmou um pergaminho que estava
em cima da mesa.
— Morre, pois, ingrata; morre sufoca da, como querias que eu
morresse.
Virou as costas e saiu sem me fitar.
Um oficial superior tomou o pergaminho e me conduziu a um
quarto vazio, onde fiquei reclusa, até o momento do suplício.
Compreendi que tudo havia terminado — Pobre Agripa! — pensei.
— Dentro de algumas horas estarei morta, mesmo antes de saberes da
minha condenação. Estranhos pressentimentos me assaltaram, enquanto
aguardava o terrível momento; involuntariamente fui tomada de glacial
tremor ao conjeturar o gênero de morte que me destinavam:— asfixiada
pelo vapor — dissera o oficial— e o cérebro superexcitado fazia me sentir
a umidade do banho e do vapor espesso que me sufocava. De pé,
respirava com dificuldade, parecendo-me faltar o ar no vasto
compartimento.
Cobri o rosto; era realmente o fim e não dispunha de arma para
dar cabo da vida por forma diferente; um acesso de raiva e desespero
impotentes me assaltou; desfalecia e o solo me faltava numa espécie de
torpor.
Não sei quanto tempo assim estive, até que a porta se abriu e
entraram alguns homens armados; leram-me um ato de condenação do
qual nada compreendi; meu coração estava para estourar de tanto bater;
chegara o momento da morte e, por mais forte e enérgico que fosse meu
espírito, o corpo tremia e a matéria experimentava toda a agonia.
Agarraram-me, conduziram-me por cor redores, vestíbulos e
escadarias intermináveis, até que paramos diante de pequena porta; as
paredes estavam úmidas, um ar quente e pesado me envolvia.
Nesse momento abriu-se a porta e recuei apavorada; um vapor
espesso, esbranquiçado e abrasador, escapou-se do interior e me
sufocou; não deram tempo a que resistisse; braços nervosos me
empurraram para o interior e a maciça porta se fechou atrás de mim.
Dei alguns passos vacilantes, pois o vapor cáustico me sufocava,
entrando pelos ouvidos e nariz; o sangue subiu à cabeça aos borbotões,
senti dor atroz como se o crânio estalasse e caí por terra. Meus
pensamentos se baralhavam; sufocava-me horrorosamente, sentia-me
como que mergulhada numa pasta úmida e pegajosa; cada partícula do
corpo parecia contrair-se ao contacto do ferro em brasa. Por fim um
choque terrível, que pareceu arrancar-me as entranhas e estilhar o
cérebro em milhares de átomos dolorosos. Perdi os sentidos.
A primeira sensação, ao despertar, foi a de um calor agradável a
envolver-me; todos os membros ainda doridos, mas, parecendo de
extrema leveza, porque eu me elevava rapidamente no espaço cheio de
um frescor dos mais agradáveis; admirada e confusa, olhei para mim
mesma e depois para o que me cercava e fiquei deslumbrada.
Sem maior dificuldade, mesmo sem querer, elevava-me facilmente
qual uma sombra em atmosfera azulada e transparente, que projetava
por toda parte reflexos fantásticos; e eu, — sonhava ou me encontrava
numa festa esplêndida? Havia trocado as vestes comuns por longa túnica
flutuante, fina e transparente como um vapor rosado, reflexo da
atmosfera azulada que me circundava. Era eu mesma! Reconhecia-me nos
braços, nas mãos, mas eram róseos, transparentes e vaporosos; a
cabeleira opulenta e dourada, era bem minha, mas despida do seu peso,
cercando-me qual manto de ouro impalpável. Duvidando de mim mesma,
estendi os braços nessa atmosfera estranha, apalpei-me, mas a mão
atravessava sem obstáculos, qual massa vaporosa que se refazia
imediatamente. — Estarei na região dos bem-aventurados? — perguntava
a mim mesma — onde os deuses, comovidos pelas minhas dores, me
haviam colocado na mansão do Olimpo?
Comecei a lobrigar seres flutuantes, vaporosos e transparentes,
mudos como eu, sem descerrar os lábios, a trocar somente fios elétricos-
luminosos e nos compreendemos: eram amigos que me recebiam,
interrogavam e censuravam-me por ter cometido grande falta, matando
meu filho.
Conversávamos ainda, quando, rapidamente a atmosfera se
iluminou de alvinitente claridade e vimos, então, flutuar acima de nós uma
entidade de beleza surpreendente e fulgurante como um sol.
Reconhecemos o protetor do nosso grupo e curvamo-nos diante
dele!
— Espírito de Veleda — disse — cometeste um crime ao defender
tua honra! Enorme é o teu crime, mas, por tua dolorosa morte expiaste,
em parte, esse assassínio; vai-te, pois, por enquanto, repousar no espaço
como espírito errante e preparar-te, segundo tuas forças, para a próxima
encarnação.
Desapareceu dissipando-se na atmosfera; meu caminho e destino,
como espírito, tinham sido determinados.
Após haver-me orientado sobre a nova estância, o pensamento se
voltou para a Terra e quis rever o lugar em que havia deixado os despojos
mortais.
Meu espírito atravessou sem dificuldade aquele vapor espesso e
mortal, tremendo, às vezes, à lembrança dos sofrimentos morais que
tinham sido muito maiores que os do corpo. Vi por fim, estendido no chão
úmido a prisão carnal que acabava de deixar. A morte não tinha
desfigurado meus traços e, na sua imobilidade, meu cadáver
assemelhava-se a uma bela estátua de alabastro. Entretanto, afligia-me
dolorosamente, porque acabava de experimentar essa emoção tão penosa
para o espírito, quando reconhece sua incapacidade para comunicar-se
com os encarnados; a inteligência se desdobra e, muito mais esclarecida
pela separação da matéria, permanece, todavia, muda, diante do ser
amado.
Agripa estava ajoelhado junto da morta, a cabeça apoiada nas
mãos, chorando amargamente. Em vão inclinei-me para ele, toquei sua
cabeça, disse-lhe que ali me encontrava e que a morte corporal não era a
morte dos sentimentos e da afeição; que o corpo espiritual é mais belo
que o da terra. Ele não me ouvia, não se mexia e eu me afligia no meu
desespero impotente.
Imediatamente, a pesada porta se abriu e apareceram soldados
armados no umbral Prenderam Agripa, conduziram-no a uma prisão e lá o
encerraram. Colei-me a ele cor mo se fosse uma sombra, não o
abandonando um instante. Assisti, assim, o julgamento iníquo que o
condenou e acompanhei-o ao suplício. Revi Gálio e todo o meu ser só
transpirou vingança: ah! — pensei com satisfação projetando-lhe maus
pensamentos — ignoras que não me aniquilaste, que meu ódio sobreviveu
à destruição do corpo; que sou uma entidade inacessível e disposta a
seguir-te, molestar, inspirar, obsidiar com recordações, temores,
remorsos, numa palavra: fazer-te experimentar a sensação da presença
de um inimigo sobre o qual não mais podes exercer qualquer vingança.
Agripa recebeu a morte com o estoicismo de um romano e a calma
de um inocente; um único golpe de machado lhe decepou a bela cabeça.
No mesmo instante, envolvi-o com o meu perispírito e esforcei-me, com
os seus amigos, por cortar os fios que ainda o ligavam à matéria.
Imediatamente estava entre nós, leve, flutuando e mais belo que antes.
Passadas as primeiras expressões de alegria pelo nosso reencontro,
decretamos contra Gálio uma vingança implacável; em vão o protetor do
grupo e os amigos procuraram dissuadir-nos, dizendo que o ódio
materializa e ensombra o espírito; que a Nêmesis pertence à Justiça
Divina e ao Conselho Supremo. Repelimos toda sugestão nesse sentido e
nos apegamos a Gálio como dois fiéis companheiros infatigáveis; com o
pensamento seguíamo-lo por toda parte, perturbando-lhe o sono, tirando-
lhe o sossego, contrariando-lhe todos os projetos.
Finalmente, ele partiu para a Germânia, onde a guerra começara.
Inspiramos-lhe os planos mais desastrosos e em conseqüência
experimentou derrotas sobre derrotas.
Um dia em que se travava grande batalha, decidimos, se possível,
por termo aos seus dias, porque, até então, havia sido poupado pelas
armas assassinas.
Para um vivente da terra, seria curioso espetáculo se pudesse ver,
qual vemos, o aspecto de um campo de batalha: todos os mortos
cercados por espíritos flutuantes, que ajudam os novos companheiros a se
desembaraçarem do corpo mutilado, caído por terra; ouvir as milhares de
descargas elétricas anunciando cada uma a desencarnação de um espírito,
semelhante ao brado de despedida do seu fiel companheiro. Nesse
ambiente pesado e grosseiro, no meio dessa violenta emigração,
passamos como tempestade, vomitando o nosso ódio e preparando a
perda do inimigo.
Coberto com as suas magníficas armas, mas triste e inquieto, Gálio
mantinha-se de pé no seu carro, acompanhando com olhar colérico as
peripécias do combate.
Agripa barrou a passagem dos cavalos projetando-lhes
violentamente fios elétricos, que o tornavam visível aos animais
espantados; e assim, em comunicação com eles que, assustados, de
crinas eriçadas, corcoveavam diante da aparição. Depois, dispararam
passando como relâmpago sobre montes de cadáveres e destroços de
viaturas. Os musculosos braços de Gálio foram impotentes para contê-los
assim desembestados. Eu me colava com ele, envolvendo-o com um
fluído estonteante; a cabeça lhe rodava, soltou as rédeas e rolou por
terra. Corpulento germano que passava na ocasião, foi aproveitado como
excelente intermediário, ou antes, como um bom médium.
Apossamo-nos dele fluidicamente; dirigi o seu olhar para essa rica
presa; Agripa inspirou-lhe rapacidade e ódio nacional contra o romano;
nossa vontade o estimulou e sustentou; ele levantou, então, o machado
que brilhou por um instante ao sol, para cair em seguida sobre a cabeça
de Gálio.
Ajudados por seus numerosos inimigos invisíveis, cercamo-lo e
seguramo-lo, arrancando-o do corpo; em seguida, na atmosfera turvo-
avermelhada das nossas paixões apareceu, mantido por centenas de fios
luminosos, o perispírito de Gálio, reunido, mas terrivelmente apavorado e
flutuando como atordoado.
Contentes com a descarga do nosso ódio, conduzimo-lo a
julgamento e à Nêmesis esperada.

VELEDA

NOTA DO TRADUTOR:— Veleda, entre outras reencarnações, veio


na pessoa de Frei Benedito, no romance "Abadia dos Beneditinos", editado
em português pela LAKE.
NARRATIVA DE ASTARTOS

Nasci no rico solar de um patrício romano chamado Agripa, onde minha

mãe Teodora dirigia os trabalhos domésticos; ela fora ama de leite do


pequenino Agripa, filho único do patrício que perdera a esposa ao dar à
luz o menino.
Tive uma infância alegre e me desenvolvi rapidamente. Caráter
violento, ousado até a temeridade, ávido de perigos, não conhecia medo
nem obstáculos quaisquer, os exercícios mais perigosos constituíam minha
paixão. Minha pobre mãe receava muito pelas minhas aventuras e tremia
quando eu montava cavalos redomãos ou me punha, no pequeno pátio
empedrado de nossa casa, a provocar os bois de serviço, para que
investissem contra mim, agitando-lhes com um pano vermelho e quanto
mais irritados ficavam, mais me alegrava. Quando o animal se enfurecia
eu parava, cruzava os braços e exercitava sobre ele a força dominadora
do meu olhar. Este exercício perigoso sempre triunfou e meu olhar
fascinador domou os mais rebeldes.
Aos dezoito anos sobreveio um incidente que decidiu do meu
futuro.
Haviam levado ao circo um tigre enorme, que, por infeliz acaso, se
escapou da jaula. Solto pelas ruas, espalhou-se o pânico entre o povo que
fugia horrorizado, gritando desesperadamente.
Estava eu precisamente no pátio a jogar o disco, quando os
clamores e os tumultos de fora me despertaram atenção:
— O tigre! O tigre soltou-se! — bradavam vozes desesperadas;
mata a todos que encontra de passagem!
Sem mais refletir, tomei do meu cutelo (para o caso do meu olhar
não ter ação sobre o animal) e corri à praça do mercado, em cujo ângulo
residíamos.
Minha pobre mãe que, dessa vez, me julgou irremediavelmente
perdido, tentou impedir-me a passagem:
— Astartos, oh imprudente, olha que arriscas a vida; proíbo-te que
saias!
Eu, porém, não estava habituado a ouvir outra voz que a das
minhas paixões, e a idéia de subjugar um tigre me perturbava.
Aspirava à celebridade por todos os poros de minha alma violenta
e, sem atender aos soluços maternos, lancei-me à praça que o tigre já
havia juncado de cadáveres de muitas vítimas.
No momento que lá surgi, o enorme animal agachado, com o
focinho sangrento, preparava-se para investir num velho estimadíssimo
magistrado, que, aterrorizado, havia caído de joelhos recomendando-se
aos deuses.
De um salto barrei o caminho ao tigre, que, à vista do meu aspecto
atlético, parou rugindo e abanando a cauda. Essa atitude apenas durou
um instante e logo se preparou para atirar-se a mim; tive, porém, tempo
de cruzar os braços e fixá-lo. Dirigi meu olhar para as suas pupilas
esverdeadas com toda a força do meu querer, fez-se um silêncio de
morte, eu respirava penosamente, mas não deixava de fitar a fera, que
demonstrava ter já perdido a agilidade. De pronto, os olhos se lhe
fecharam, oscilou e estendeu-se preguiçosamente no solo. Sem desviar os
olhos, aproximei-me, agarrei-o pela juba e o reconduzi à jaula.
O terror e o espanto paralisavam os espectadores da cena, ao
verem-me levar o tigre. A massa de curiosos, tudo esquecendo, seguiu-
me e quando as sólidas barras de ferro isolaram o inimigo comum, um eco
de alegria e admiração reboou e a multidão entusiasmada precipitou-se,
carregando-me nos braços, em triunfo, até a minha casa.
Minha mãe me abraçou, chorando, eu não me sentia mais sobre a
terra. Fui cumulado de presentes, dizia-se abertamente que era
lamentável vegetasse eu em Pompéia; que meu futuro e glória estavam
no circo de Roma, onde me tornaria estrela de primeira grandeza. Sôfrego
de sucesso, amando o perigo e as emoções violentas, segui estes
conselhos e, com os bolsos bem recheados, parti para Roma.
A notícia da façanha facilitou minha recepção com alegria e
decidiu-se a estréia no circo no primeiro grande espetáculo, ao qual devia
assistir Tibério, com sua mãe e a esposa. Até o dia solene, vivi contente;
não estava sozinho naquela cidade, onde encontrara dois amigos sinceros:
meu irmão de leite, Agripa, que servia na guarda de Tibério, e Marcos,
amigo de infância, embora pouco mais velho do que eu, médico da corte.
No dia do espetáculo, obtive estrondoso sucesso; dominei todas as
feras que se me apresentaram; estava cansado, mas feliz e envaidecido;
os frenéticos aplausos da multidão me embriagavam; recebi uma coroa de
flores e um colar de ouro.
Quando me inclinei diante da tribuna de Tibério, a mão branca de
Júlia lançou-me uma echarpe de seda e a expressão do seu olhar dizia
claramente que o homem era admirado quanto o gladiador.
Após tantos séculos decorridos e tão diversas encarnações
terrestres, creio poder afirmar, sem fatuidade, que na minha vida de
Astartos fui de uma beleza admirável; alto e esbelto, minha mãe de
origem grega, havia-me transmitido em toda sua pureza o tipo e as
formas das antigas estátuas; minha cútis tinha a palidez mate dos
homens muito apaixonados; cabeleira negra, abundante e anelada, olhos
grandes, negros, penetrantes, molduravam um conjunto que bem podia
tentar as mulheres.
Em seguida à representação è afastamento do público, houve
grande banquete para os gladiadores, dançarinas do circo, seus parentes
e alguns convidados. A festa se prolongou, degenerando em formidável
orgia em que se bebia e cantava. A alegria, o alarido e os gritos eram
espantosos. Pronunciei, então, uma arenga em meu próprio louvor e
questionei com um gladiador invejoso dos meus sucessos. Exaltamo-nos
em recíprocas bravatas, enumerando sucessivamente as de que nos
sentíamos capazes, quando um criado do circo se aproximou e me tocou
no ombro: — Gladiador Astartos, vem daí que alguém deseja falar-te.
Levantei-me, e acompanhei-o.
Debaixo de grande portal, um negro ricamente vestido me
aguardava; inclinou-se profundamente e disse-me que uma pessoa
desejosa de beneficiar-me o havia incumbido de levar-me à sua presença.
Experimentei grande surpresa, pois, aquela hora, quem poderia
querer ver-me? Essa ingênua ignorância apenas se desculpava porque me
encontrava em Roma havia quinze dias; mais tarde não me admiraria
quando, após os espetáculos, um criado de confiança vinha falar-me de
uma protetora.
Mas, muito intrigado, acompanhei o mensageiro até que parou
diante de pequena porta duma ala do palácio de Tibério, habitada pelos
escravos. Tirou do bolso uma echarpe de seda:— Tenha confiança em
mim, gladiador; devo vendar-lhe os olhos.
Eu não conhecia perigo e comecei a pensar que o episódio teria um
fim aventuroso. Deixei-me vendar. O cicerone tomou-me a mão e
seguimos.
Depois de muito andarmos, parou; percebi ao derredor um fru-fru
de cortinas preciosas, ao mesmo tempo que aspirava deliciosos perfumes.
— Tira a venda — disse uma voz suave.
Obedeci e fiquei aturdido no umbral de uma alcova cujos
reposteiros suntuosos acabavam de ser descerrados atrás de mim; um
luxo fantástico me cercava; vi, então, pequena mesa coberta de áurea
baixela com iguarias apetitosas e ânforas cinzeladas; mas, o que cativou
inteiramente minha atenção, foi a existência, no fundo do quarto, de um
leito sobre estrado guarnecido de tapetes purpurinos. Sedutora mulher ali
estava deitada — ou melhor — recostada em almofadas de seda bordada
a ouro. Braços nus, carregados de pulseiras, cabelos desnastrados até os
joelhos, mas, oculto o rosto por espesso véu.
— Astartos — disse a mesma voz meiga — aproxima-te, meu
amigo; quero proteger-te e amar-te.
Aproximei-me inteiramente perturbado e, caindo de joelhos, beijei-
lhe as mãos.
— Que fiz para tornar-me o mais feliz dos mortais?
— Tua beleza e coragem fazem de ti um semideus; toma e bebe.
Passou-me a taça cheia e bebi um vinho capitoso, que me
reanimou.
Ajoelhando nos degraus do leito, troquei com a desconhecida
ternas palavras amorosas. Mas, como o vinho me subisse à cabeça, a mão
audaciosa pretendeu levantar o véu que cobria o rosto da bela
desconhecida.
— Desgraçado, a que te arriscas? — disse, desviando-me a mão.
Levantei e cruzei os braços:
— Desejo ver-te e se não te pejas de aceitar o meu amor, não
deves esconder-me teu rosto.
— Cruel Astartos! não posso; exiges o impossível.
— Para a mulher que ama, nada é impossível.
Ela insistiu na recusa, eu agastei-me.
— Pois bem — disse — deixo-te; não posso amar uma criatura que
não confia em mim.
Voltei-me e dirigi-me para a porta, certo de que não me deixaria
sair.
Não me enganava. Um grito aflitivo logo me fez voltar.
O véu tinha caído e contemplei o belo rosto de Júlia, a mulher de
Tibério.
Meu sangue gelou; aquela aventura podia custar-me a vida; mas,
apesar de tudo, Júlia era sedutora na sua rica toilette. Atirou-se-me aos
braços e tudo foi esquecido: o terror e Tibério.
Depois disso, raras noites passei no circo; a atitude muito
apaixonada e o ciúme feroz de Júlia me desgostaram e fizeram aborrecê-
la de pronto. Não ousei, contudo, demonstrar esses sentimentos, temendo
provocar ódio e vingança. Via-me obrigado a esperar, impacientemente,
que ela elegesse outro amante.
Entretanto, enchia-me de ouro e de presentes, tomando-me o mais
rico gladiador de Roma. Eu não trocaria então minha vida pela de um
deus. As mulheres me cortejavam e Júlia tinha razão de enciumar-se,
pois, deixava-me seduzir por toda parte. Tive também a muita sorte de
não me haver encontrado jamais com Tibério nos apartamentos da rainha.
Ele nunca desconfiou da afeição apaixonada que inspirei à ilustre esposa.
Não tinha aliás muito tempo para a espionar, porque se entregava a toda
sorte de divertimentos.
Mais de dois anos assim passaram. Por fim, minha mãe adoeceu e
desejou ver-me. Despedi-me de Júlia, que, só a contragosto, consentiu na
minha ausência. Ainda assim, cumulou-me de presentes para minha mãe.
Cheguei a Pompéia aureolado como um semideus. Meus triunfos
eram conhecidos e falava-se à socapa das concessões de Júlia; fui
festejado, adulado e em recompensa distribuía punhados de ouro e
brindes diversos.
Durante a estadia em Pompéia, travei conhecimento com Febé,
filha de um rico agricultor da redondeza, chamado Glauco; ela fora à
nossa casa para cuidar de minha mãe e logo percebi que lhe havia
despertado uma paixão tão violenta quanto a de Júlia.
Nunca fui mau e logo um terno amor nos uniu; mas, em mim, esta
paixão diminuiu com incrível rapidez, enquanto que em Febé aumentava
sempre.
Enfim minha mãe se restabeleceu» Comuniquei-lhe até que ponto
era vítima da paixão daquela moça. — Partirei secretamente — disse —
para evitar dolorosas despedidas. Minha mãe concordou; abençoou-me e
parti às escondidas, desaparecendo de Pompéia como uma sombra.
Mas, apenas vencido um dia de marcha, eis que Febé foi alcançar-
me, montando um cavalo branco de espuma; cobriu-me de censuras e
declarou que, por coisa alguma do mundo, me abandonaria.
Isso me exasperou de tal forma que tomei de rebenque (éramos já
muito familiares para que me sentisse constrangido diante dela)
vergastando-a como merecia e ordenando que regressasse a Pompéia.
Ela, porém, suportou pacientemente a minha brutalidade e ficou. Tal
manifestação de humildade e afeição, sensibilizou-me; disse-lhe então
que consentia em fazê-la dançarina do circo, mas que se precatasse de
ser infiel ou imprudente, porque, do contrário, o chicote entraria
novamente em cena. Mostrou-se de humildade extrema e tudo prometeu.
Continuamos a viagem para Roma.
Com grande e geral espanto, instalei-me com ela no meu
apartamento do circo, e, para acalmar a curiosidade dos companheiros,
disse-lhes que ela possuía grande vocação para as danças e a trouxera
para ensaiar convenientemente e apresentá-la no circo, o mais breve
possível.
à noite, muni-me da chave que Júlia, a minha poderosa senhora,
me dera e, bem a contragosto, dirigi-me para o palácio de Tibério.
Dissimulei o melhor que pude minha presença, para não nos
comprometer.
Atravessei sem dificuldade o corredor secreto, e, abrindo a porta,
espreitei, através das cortinas, o interior da alcova já bem conhecida, e
onde, por ocasião da primeira visita, magnífica mesa guarnecida e
perfumes estonteantes me haviam perturbado.
Vi Júlia recostada no leito, abraçando pelo pescoço um homem
ajoelhado numa almofada diante dela. Trocavam frases amorosas.
Surpreso um instante, permaneci mudo. Tinha um rival?
Satisfeitíssimo, levantei a cortina e me apresentei aos dois
amantes, fingindo grande espanto.
Vendo-me, Júlia deu um grito tapando o rosto; o oficial levantou-se
de um salto e desembainhou a espada; empertigando-me
arrogantemente, disse:
— Peço perdão de haver perturbado a vossa entrevista; mas, eis o
que devo restituir.
E coloquei a chave na mão do jovem patrício estupefato: — Aqui
tem a chave da alcova e do coração — acrescentei. Virando-me para Júlia,
inclinei-me profundamente e lhe disse em tom imperioso: — Vós mesma
assim o quisestes e não ouso me insurgir contra os vossos desejos.
Saí lépido e radiante por me haver desembaraçado de tão perigosa
aventura.
Desde então, não mais a vi. Tempos depois, entretanto, soube por
Marcos que um oficial da escolta de Tibério havia perecido, acusado de
haver levantado a vista para a augusta e real senhora.
Por nada deste mundo teria querido rever tão perigosa criatura.
Febé habituara-se rapidamente à sua nova situação e os
gladiadores lhe agradavam muito; por questão de amor-próprio, eu não
poderia tolerar tal coisa e nunca essa criatura relaxada e pérfida fora
submetida a tão rude e severa disciplina; desde que eu virava as costas,
ela tramava alguma infâmia; mas, como já desconfiava, surpreendi-a
muitas vezes e então a espancava sem compaixão. Por fim, ela já me
temia como ao próprio fogo e isso constituía o seu único freio.
Certa feita, exasperada, tentou envenenar-me e o acaso me
salvou. Teria podido usar de represália, mas me contentei, após uma
punição exemplar, com encerrá-la numa jaula onde a sovava três vezes
por dia, ao levar-lhe as refeições. Um dia, Marcos deu-me um pó que
adicionei ao alimento, provocando-lhe vômitos e ela acreditou ter sido
envenenada; rolou, então, a meus pés, pedindo perdão. Fingi dar-lhe um
antídoto, desculpando-a.
Depois de muito trabalho e exercícios de alguns meses, Febé
tornara-se uma dançarina digna de figurar no circo. Comprei-lhe vestidos
adequados e um dia apresentei-a na arena. Sua estréia foi um grande
sucesso. Linda de corpo, jovem, robusta, de traços acentuados, com
opulenta cabeleira negra e belos dentes, grandes e muito claros.
Não agradaria a uma pessoa de gosto apurado, mas o seu
desempenho artístico valeu-lhe aplausos frenéticos da multidão e Tibério
mostrava-se admirado.
Envaidecida, vendo que agradara, sobrepassou-se e praticou
maravilhas.
No dia seguinte um oficial da guarda imperial foi chamar-me a
palácio. Supus que o futuro imperador quisesse exprimir-me
pessoalmente sua satisfação e apresentar cumprimentos por ter
preparado uma dançarina tão hábil. Aprestei-me e segui o oficial.
Fêz-me entrar numa sala luxuosamente decorada onde avistei
Tibério deitado numa cadeira preguiçosa, acariciando com os dedos o
colar de ouro.
Com um gesto afastou os presentes e fiquei a sós com o temido e
poderoso herdeiro do império.
Durante alguns instantes, cravou-me os olhos cruéis e penetrantes.
— Gladiador Astartos, quanto queres pela tua «Bestia?» — disse
finalmente.
Compreendi de pronto: o bom Tibério pretendia desembaraçar-me
da víbora, que nenhum gladiador quereria.
— Nada vale tanto como um instante de prazer para o meu ilustre
senhor e futuro soberano; basta-me a alegria de lhe ser agradável —
respondi, inclinando-me reverente.
Um sorriso de íntimo contentamento iluminou o rosto anguloso do
potentado.
— Bem, gladiador; lembrar-me-ei de ti; conta com a minha
proteção. Quando me enviarás essa mulher?
— Dentro de uma hora — respondi em voz baixa, acrescentando
— Meu augusto senhor, cedo-a, mas devo prevenir-vos que, com ela, é
preciso usar sempre do chicote; é uma víbora que morde a mão que a
sustenta e trai o benfeitor.
Tibério sorriu:
— Bem, envia-me o teu chicote com ela.
Tomou de cima da mesa uma taça de ouro ricamente cinzelada e
ornamentada de camafeus:
— Bebe — disse — e guarde-a como lembrança.
Bebi à sua saúde e depois de agradecer, retirei-me satisfeitíssimo.
Chamei dois escravos e retornei à casa. Febé preparava no momento a
nossa refeição.
Não experimentava qualquer contrariedade em pensar que ia
separar-me da minha doméstica, pois temia sempre ser envenenado por
ela e sentia-me feliz por desembaraçar-me dos seus préstimos.
— Veste-te, bruta! — disse-lhe, desenrolando o chicote.
Olhou-me espantada, acreditando que houvesse descoberto
alguma das suas infâmias.
— Ofertei-te a Tibério — continuei — e ele me pediu que te
enviasse com o chicote que te mantém rigorosamente obediente. Mas,
não te regozijes muito com a aventura e que o fausto não te perturbe o
miolo; aqui não recebeste senão pancada; mas, se irritares Tibério, que
não é de brincadeiras, tua cabeça servirá de pasto aos porcos; sou eu que
te digo; toma cuidado, pois, com esta minha última recomendação.
Vestiu o melhor que tinha e depois de uma despedida muito
respeitosa, acompanhou os dois escravos.
Depois disso não a vi senão durante as representações em que
Tibério quis que ela figurasse. Apesar da sua nova situação, o amor
frenético que ela sentia por mim não arrefeceu, mas como todas as suas
demonstrações ficavam sem resposta, pouco a pouco passou a votar-me
um ódio surdo e implacável e eu amaldiçoava o dia em que encontrara
essa mulher pérfida e dissoluta.
O tempo escoava-se em festas, orgias e jogos diversos. As
mulheres mais belas e ricas de Roma queriam-me por amante, porque
minha beleza e coragem as embriagavam e lhes transtornavam a cabeça.
Eu estava tão rico que poderia deixar o circo e viver confortavelmente.
Minha velha mãe gozava de grande abastança. Contudo, eu adorava
aquela vida perigosa, cheia de incidentes que, muitas vezes, me punha a
dois dedos da morte; minha força e destreza, porém, sempre me fizeram
triunfar.
A essa altura, estalou nova guerra com os Germânicos. Tibério
partiu para a campanha levando consigo Febé e Marcos, seguido de
numerosos patrícios. Fiquei à vontade, sem temer ciúmes intempestivos,
pois muitos patrícios combatiam para glória da pátria.
Entretanto, como tudo tem fim neste mundo, um belo dia chegou a
desagradável notícia de que Tibério e o exército vitorioso regressavam a
Roma. Batedores anunciaram em todos os quarteirões da cidade que os
romanos, após grandes vitórias sobre as tribos germânicas, regressavam
a seus lares, carregados de despojos e conduzindo inúmeros prisioneiros
de ambos os sexos.
Resolvi, também, praticar um ato de caridade, tomando uma das
pobres prisioneiras para criada (uma das mais belas, está visto) e ela
parecia sentir-se muitíssimo feliz com a sorte que mais de uma patrícia
invejaria.
No dia marcado para a entrada triunfal de Tibério, toda a cidade e
sobretudo as ruas que o cortejo deveria percorrer, estavam
magnificamente ornamentadas e atapetadas; foram construídas tribunas
para as vestais e os principais patrícios. Todos os logradouros foram
invadidos pela multidão, até mesmo nos telhados viam-se espectadores.
Coloquei-me defronte da tribuna das senhoras e, como chegasse cedo, vi-
a encher-se pouco a pouco. A mãe de Tibério e Júlia, esta toda de branco
e coberta de jóias, foram as últimas a chegar, acompanhadas de
numerosos patrícios e escravos.
Com a presença delas, iniciou-se o desfile.
Após os soldados, veio a presa de guerra; depois, a massa de
prisioneiros e em seguida um carro puxado por cavalos brancos,
conduzindo Tibério, que, de pé, envolto numa toga encarnada e coroado
de louros, saudava com as mãos o povo estúpido que o aclamava de
passagem com frenética algazarra.
Pouco adiante do carro ia, como última das prisioneiras, uma
rapariga que atraiu minha atenção e provocou murmúrios do povo, porque
já se havia espalhado o boato de que Tibério trazia uma prisioneira de
nome Lélia, que o detestava e maltratava por todas as formas.
Acrescentava-se, mesmo, que, quando do seu primeiro encontro, ela lhe
havia despejado na cabeça todo o vinho de uma taça que ele lhe havia
ordenado que segurasse.
Eu sabia muito mais ainda, a esse respeito, porque na véspera, à
tarde, Marcos tinha ido visitar-me e muito me falara do caráter enérgico
dessa jovem selvagem.
Compreende-se, pois, a curiosidade com que fixei essa Lélia,
vendo-a aparecer. Linda mulher de olhos grandes e azuis, soberba
cabeleira loura, solta e anelada caía-lhe até a cintura. Vestia costume
branco com uma capa azul; um braço e ombro envoltos em ligaduras.
Tibério parecia a alegria personificada. Quando, porém, o cortejo
passou diante da tribuna das patrícias, Júlia fixou um olhar ávido e curioso
no rosto mortalmente pálido da prisioneira. Esta, sem dúvida, sabia ou
compreendeu diante de quem se encontrava, porque, subitamente corou
de vergonha, deu alguns passos vacilantes, estacou e levando a mão ao
peito, caiu desmaiada na poeira da rua.
Tibério inclinou-se vivamente; manchas vermelhas afluíram-lhe ao
rosto. Eu sabia por Marcos que todas as ordens relativas à prisioneira
partiam dele; assim, ninguém ousou tocá-la nem socorrê-la. A expectativa
se fez silenciosa, geral, profunda.
Júlia comoveu-se e pareceu dar ordens aos pajens; alguns se
levantaram e desceram conduzindo frascos; mas, antes que chegassem
ao meio da rua, Tibério em atitude feroz ordenou que levantassem Lélia e
a colocassem aos seus pés, atravessada no carro:
A ordem foi imediatamente cumprida e o cortejo prosseguiu mais
depressa para o palácio. Observou-se, então, que Tibério se retraiu e
parecia distraído e de olhos quase sempre baixos.
Cheguei a casa muito intrigado com tudo aquilo. Ã tarde, apareceu
Marcos e falou longamente dessa aventura, referindo o orgulho tão raro
da rapariga, que não suportava afrontas sem revidar com raiva e ódio
verdadeiramente selvagens.
Passaram-se meses sobre este incidente. O circo me tomava quase
todo o tempo e, contudo, graças a Marcos, sempre obtinha novidades
frescas da corte. Soube, então, que Febé se tornara amante de Sejano, o
poderoso conselheiro de Tibério, mas este simulava ignorar essa ligação;
muito mais preocupado com a jovem germânica, que o maltratava sem
tréguas e, apesar disso, ele adorava a seu modo, guardando-a como a
menina dos olhos.
Decorreram assim muitos meses sem que eu tornasse a ver Lélia.
Uma tarde, porém, um portador de Tibério me intimou a acompanhá-lo
até o palácio, levando o meu alfange. — Ele quer castigar um pouco a
insolente selvagem, acrescentou o mensageiro — que recusa confessar-
lhe abertamente o seu amor, e essa dissimulação o irrita ao mais alto
grau.
Chegando a palácio, levaram-me a uma sala ricamente decorada.
Na extremidade da mesa, ainda posta, Marcos de pé, impassível, com a
sua caixa de medicamentos e ligaduras, pronto para tudo. Tibério andava
de um lado para outro, agitado, de braços cruzados às costas; percebi que
tinha uma orelha pensada e, conhecendo por Marcos os detalhes da sua
vida íntima, imaginei que provavelmente se houvesse aproximado de Lélia
para abraçá-la, e que os dentes da pequenina fera se cravaram naquela
orelha sempre surda, quando ela repetia: abomino-te!
Cumprimentei detendo-me respeitoso junto à porta, fixando
curiosamente a heroína de. tantas aventuras. Ela estava tranqüilamente
assentada num divã, apoiada em almofadas bordadas a ouro.
Dessa vez, pude analisá-la a meu gosto; era uma jovem de
dezenove anos no máximo, muito franzina; rosto encantador, somente os
olhos de um azul de aço traduziam expressão feroz e rancorosa; as mãos
delicadíssimas repousavam, naturalmente cruzadas, sobre os joelhos;
vestia costume branco e um laço dourado lhe retinha os cabelos louros e
crespos.
Tibério que, durante todo esse tempo,, continuava a passear
nervoso de um lado para outro, parou subitamente à minha frente:
— Gladiador — disse em tom grave - vou confiar-te esta jovem
criminosa. Trouxeste o cutelo? Bem, leva-a e sem perdei tempo faze dela
um ensopado para as tuas feras.
Marcos estremeceu e seus olhos me fixaram com pavor. Tibério
fitou-a querendo observar o efeito da ameaça. Ao nosso constrangimento,
porém, ela correspondeu com uma estridente gargalhada. Tibério ficou
vermelho de raiva.
— Insolente! exclamou — ousas rir da minha severidade!
— Bah! — retrucou Lélia — tantas vezes me tens ameaçado com a
tua severidade e os teus carrascos, de me fazerem em pedaços, que já
não tenho mais medo. Acaba logo com isso, pois a ti prefiro tudo.
— Cala-te, bestial — esbravejou, batendo o pé — ainda ousas
raciocinar em minha presença!
— Em tua presença — repetiu ela desdenhosamente — sempre em
tua presença, porque não me deixas um instante de sossego, embora eu
não sinta nenhum prazer em falar contigo.
E levantou-se:
— Vamos, gladiador; faze de mim um repasto para tuas feras; é
sempre melhor do que ser dia por dia uma presa de Tibério. Estendi o
braço para agarrá-la cumprindo a ordem, mas Tibério tornou-se inquieto e
posse a caminhar a passos precipitados, parando a cada instante. Quando
alcançamos a porta, precipitou-se rápido como um falcão para junto de
Lélia.
— Ah! queres ir! Pois, ficarás; viverás e hás de amar-me,
pequena víbora; agora, pede-me perdão por me haveres magoado a
orelha. Sim, porque a verdade é que não ousaste morder-me e eu quis
somente punir-te pela tua insolente intenção.
Tomou-a nos braços e colocou-a no divã.
— Acalma-te — prosseguiu — o terror tornou-te pálida. Se tiveres
a coragem de confessar-me o teu amor, não considerarei tudo isso mais
que simples exaltação de espírito. Ainda que eu seja o futuro imperador e
constitua praxe considerar divindade um personagem do meu quilate sem
lhe atribuir sentimentos e paixões humanas, eu prometo desculpar-te.
Lélia o fitou muito espantada.
— Divindade, tu? Em que templo ouviste dizer semelhante coisa?
Por que pensar que receio declarar um amor que não existe? Não sou
Febé, que ora beija os pés e ora te bate.
Tibério empertigou-se:
— Infeliz! Se assim falas para me despertar a idéia de te justiçar,
toma cuidado!
— Vai-te! — disse-me em seguida — uma vez que ela pede graça
e, a meu mal grado, lhe perdôo; vai-te — repetiu.
Sem dúvida, minha presença o constrangia em face da própria
dignidade.
Saí muito admirado do caráter estranha do futuro imperador, que,
positivamente, suportava todas as grosserias de Lélia sem muito se
ofender, interpretando-as de forma singular.
Mais de um ano se passou após este incidente, sem ocorrer
acontecimentos dignos de menção, quando um dia, ocupado em distribuir
ração às feras ouvi chamar: «Astartos, Astartos!» Era um dos meus
colegas. — Vem imediatamente, trouxeram uma prisioneira que o
procônsul Gálio envia para ser lançada às feras.
Como fosse eu quem sempre recebia os condenados, interrompi a
tarefa e fui ao pátio. Lá deparei com um grupo de camaradas que
examinavam curiosamente a recém-vinda.
Aproximei-me também, mas, desde que vi a prisioneira, parei
estarrecido, pois acabava de reconhecer Veleda, amiga da infância, filha
de um rico negociante de perfumes, cuja loja ficava fronteiriça à casa de
Agripa.
Eu e esse irmão de leite havíamos passado agradáveis momentos
em casa dela; brincávamos com o filho adotivo do bondosa negociante e
com a filha, a pequenina Veleda; eles, quando o pai não estava em casa,
nos davam a mancheias os perfumes que queríamos e agora era essa
mesma Veleda que me entregavam para fazê-la morrer de morte horrível.
Tomei de pronto a deliberação de tudo fazer para livrá-la, mas,
aparentemente, dominei-me para não despertar desconfianças, mostrando
qualquer interesse pela prisioneira.
Preenchendo rapidamente as formalidades necessárias, conduzi-a
para o cubículo e indaguei o motivo que a arrastara aquele triste lugar.
Veleda se mostrava triste e muito cansada, mas, ainda assim, contou-me
em poucas palavras a sua triste história; depois, esgotada, assentou-se
na palha da prisão.
Agitado, procurava observá-la. Minhas recordações da infância me
assaltavam de tropel; revia-me na loja, assentado no chão, encharcado de
óleo perfumado, que as suas pequeninas mãos esforçavam em vão, em
desesperadas fricções, para empastar-me a cabeleira e que escorria em
grossos filetes pelo meu pescoço, braços e roupa, enquanto Tito e Agripa
furtavam os potes de tinturas. Depois, recordei o dia de trágica memória,
em que quebramos grande cântaro de óleo de rosas; Tito queria suicidar-
se; Veleda torcia as mãos repetindo: — Que dirá papai ? E nós, os
malfeitores, olhávamos consternados o rio aromático, sem saber o que
fazer. Por fim, ganhamos coragem e tomamos de outro cântaro,
recolhemos o óleo. O que faltou, foi completado com outra qualidade de
essência menos preciosa. Tito esqueceu prontamente a idéia do suicídio e
se consolou, dizendo que a parte perdida seria paga pelos fregueses.
Pobre Veleda! Como estava mudada!
Não era a mesma daqueles tempos felizes! Havia quatro anos que
nos não víamos. Ela se desenvolvera e era agora uma mulher de beleza
invulgar. Vou tentar, aliás, descrever aqui essa vítima da tenaz e brutal
paixão do procônsul Gálio. Extremamente delgada e franzina, de porte
médio e cútis branca e resplandecente das mulheres louras; o rosto
pálido, porém, iluminado por grandes olhos negros, velutíneos, a
rebrilharem com sombrio orgulho; um rosto pequeno e rosado; a
expressão severa e enérgica emprestavam-lhe aparência de mais idosa do
que realmente era. Mas o que sobressaía, à vista, era a cabeleira de um
louro dourado, que, em massa de incrível opulência, estendia-se até os
tornozelos, qual manto ondulante. Pés e mãos de pequenez rara e uma
ideal perfeição de formas completavam a harmonia de conjunto, que,
repito, integrava uma beleza sem par.
Naquele instante, a expressão sinistra dos olhos e a contração
rancorosa dos lábios toldaram um pouco a harmonia dos seus traços
admiráveis.
Após havê-la encorajado quanto possível, encarcerei-a e corri a
avisar Marcos e Agripa. Este último, loucamente apaixonado por Veleda
depois da última viagem a Pompéia, um ano antes, resolveu tudo fazer
para salvá-la. Quanto a Marcos, apesar de todo o interesse que votava à
Veleda, estava muito absorvido com os próprios pesares depois de uma
ocorrência que os seus amigos sabiam bem dolorosa.
Tentaram libertar Lélia, mas o plano fracassara, sendo presos seu
irmão e o noivo, de nome Hilderico, jovem cuja beleza ultrapassava de
muito a minha; jamais vi tão belos cabelos louros e anelados, nem mais
admiráveis olhos de um azul profundo como o mar.
Tibério, abjetamente enciumado, mandou enterrar o infeliz Hilderico
até o pescoço, deixando a cabeça de fora para que ratos esfaimados a
devorassem. Como coroamento de crueldade, levou Lélia a ver o
afrontoso suplício aplicado ao homem amado. Louca de raiva, ela atirou-
se à garganta de Tibério e tê-lo-ia estrangulado se Agripa não a retirasse,
aliás com grande dificuldade, ficando o tirano caído, sufocado.
Um tal ato de violência, praticado diante de tantas testemunhas,
não podia ficar abafado: Lélia foi submetida a julgamento pelo Conselho
privado de Tibério e condenada a morrer no circo, estraçalhada pelos
leões. A infeliz criatura foi entregue à minha guarda e levei-a à mesma
prisão em que se encontrava a minha amiga da infância.
Cedo, estreita amizade as reuniu, porque nada melhor que
desgraças e ultrajes comuns para aproximar almas.
Todos os nossos pensamentos, nessa ocasião, se concentravam
nos meios de salvar as duas prisioneiras, mas as dificuldades eram
enormes, sobretudo com relação à Lélia.
Constantemente, antes de visitar as prisioneiras, aqueles amigos
se reuniam em minha casa e discutíamos o assunto. Os dois jovens
apresentavam um estranho contraste: Agripa fogoso, impulsivo, orgulhoso
da sua condição e fortuna, zangava-se freqüentemente, porque lhe
parecia que duvidávamos da eficácia dos seus planos; estava convencido
de que salvaria a mulher amada; Marcos, pálido, apreensivo, torcia as
mãos repetindo com desespero: «Nada posso, á não ser entregá-la a
Tibério. Ah! sorte maldita!»
Empregando minha força dominadora, acalmava os arroubos de
um, consolava e animava os desfalecimentos do outro e restabelecido o
equilíbrio, descíamos ao calabouço.
Certa manhã, Tibério mandou chamar-me.
Introduziram-me na sua alcova. Estendido num canapé, parecia
preocupado e fitou-me com expressão rancorosa. Talvez suspeitasse no
belo gladiador um rival junto da mulher que tencionava matar dentro de
poucos dias.
Falou-me da possibilidade de um perdão (covarde tirano que só
experimentava os temores da perda quando as coisas já haviam sido
levadas ao extremo).
— Previne-te — concluiu ao despedir me — se me ocultas que a
infeliz criatura confia em mim, porque existe a possibilidade de que a
minha infinita indulgência lhe perdoe os seus crimes.
Depois deste colóquio, ele próprio foi visitar a condenada, primeiro
só, depois acompanhado de Gálio. Veleda descreveu essa visita dos
verdugos.
Enfim, chegou o terrível dia do suplício de Lélia. Desde cedo,
quando ela assim o quis, dei-lhe novos vestidos; ao levar-lhe a última
refeição, (na qual não tocou), fiquei impressionado com a sua beleza e o
contraste entre ela e Veleda. Mais alta que esta, também delgada e
elegante, Lélia possuía um rosto de criança, sorridente, claro e rosado;
olhos grandes, azuis e brilhantes; dir-se-ia radiosa aurora ao pé da sisuda
e sinistra Veleda, tão imobilizada e pálida que se poderia tomar por uma
estátua, não fossem as sombrias chamas dos seus negros olhos.
Lélia estava pronta. As duas jovens permaneciam abraçadas.
Quando lhes anunciei o momento da separação, tudo fizeram para se
manterem calmas e após um derradeiro adeus Veleda atirou-se na
enxerga e mergulhou a cabeça para esconder as lágrimas. Lélia, lábios
trêmulos, cambaleava; apoiava-se em mim e assim a levei para fora da
prisão. No corredor, estava Marcos encostado à parede. Ocultava com as
mãos o rosto pálido. Quando Lélia o avistou, aproximou-se rapidamente e
tocou-lhe na mão:
— Marcos, meu amigo, não te desesperes por não teres podido
salvar-me; sou feliz porque prefiro a morte à vida; roga apenas aos
deuses para que meu sofrimento não seja longo.
Marcos soluçava; tingiu-a de encontro ao peito, desesperado.
Nesse momento, sapateados e longínquo rumor anunciaram, a
impaciência do público.
Glacial suor inundava-me a fronte. Urgia separá-los.
— Coragem, meus amigos; submetei-vos ao inevitável!
Ela desprendeu-se de Marcos e seguimos.
— Lélia — disse, apertando-lhe a mão — sou inocente pela tua
morte, não passo de simples instrumento.
— Sei, Astartos — respondeu apertando-me também as mãos — e
te agradeço todas as atenções.
No momento de abrir a portinhola e introduzi-la na arena, ouvi o
baque surdo de um corpo que rolava pesadamente no piso do corredor...
Era Marcos!
Gostei desse acidente, pois isso era melhor que ter consciência do
terrível momento que se aproximava.
Nesse instante, foram soltas as feras; afastei-me e permaneci de
pé, semi-louco deixando todo o trabalho aos demais gladiadores. Não
desejava presenciar o horroroso espetáculo.
Imediatamente, a voz de Tibério se fez ouvir, aquela voz seca e
estridente, de timbre metálico: «Gladiadores, salvai-a se for possível! —
Sim, sim, graça para a condenada, vociferou a turba».
Essas palavras me reanimaram. Tudo esquecendo, em dois saltos
me coloquei no meio da malta esfaimada, que já lambia a presa
desmaiada e caída na arena. Uma raça sobre-humana me invadiu, saquei
do alfanje e desferi golpes a torto e a direito. Os demais gladiadores me
secundaram, mas ainda me restava um último inimigo. Corpo a corpo,
defendia Lélia contra um enorme tigre. A temível fera se tinha alçado nas
patas traseiras e permanecíamos abraçados. Já os dentes do animal
começavam a dilacerar-me a carne das espáduas e as garras tremendas a
se me cravarem nos rins.
O público, eletrizado pelo espetáculo, gritava com frenético
entusiasmo, sem imaginar que se tratava de um combate mortal e que
um momento de desfalecimento seria a minha ruína.
A dor atroz da espádua parecia paralisar-me o braço; meu alfanje
caiu; uma nuvem passou-me pelos olhos e suor glacial inundou-me a
fronte. Gritos de terror anunciavam o receio da multidão em perder o seu
gladiador favorito. Ouviam-se gritos das mulheres e a palavra — perdido
— passou-me pela mente como um relâmpago. Recuperando novamente
as forças, mergulhei meu olhar intrépido nas pupilas esverdeadas do tigre,
que se imobilizou pouco a pouco. Seus dentes se descerraram, as garras
afrouxaram, o pelo se eriçou; todo ele tremeu, cambaleou e abateu-se a
meus pés.
Agarrei-o pelo couro do pescoço e, baixando a cabeça para não
desviar o olhar, conduzi-o à jaula, deixando cair a grade.
Aclamações frenéticas colimaram a vitória; sangrando, mas
radiante de contentamento, inclinei-me ante à multidão e, nesse instante,
grosso colar de ouro caía-me aos pés, atirado pelo próprio Tibério,
Mandei logo retirar Lélia e corri para junto de Marcos ainda
desfalecido no corredor.
— Levanta-te — disse sacudindo-o — ela está salva; vem prestar-
lhe tua assistência.
Ele voltou a si e correu como louco para a jaula vazia, onde haviam
depositado Lélia. Pobre rapaz, que se regozijava em ver que o joguete do
seu rival estava salvo! Eu, teria tido coragem para matá-la e nunca para
contemporizar em partilha.
Findo o espetáculo, Tibério foi aonde estava Lélia. Lá também
acorri, após haver-me lavado e feito pensar.
— Conduzam-na para minha casa — ordenou — e tu, gladiador,
me acompanharás para receber uma recompensa digna da minha
satisfação. Vamo-nos quanto antes — acrescentou fixando um olhar
apaixonado no rosto pálido de Lélia ainda desacordada.
Por mim, desdenhava qualquer recompensa do tirano, mas não
ousava desobedecer-lhe abertamente; cumpria-me acompanhar os
escravos que conduziam a pobre prisioneira. Introduziram-me no quarto
onde a depositaram num leito de ébano esculturado. Marcos,
aparentemente impassível, ocupava-se em preparar uma poção
reconfortante.
Dentro de poucos minutos, Tibério entrou precipitado; parecia
muito contente e nos saudou cordialmente. Bateu-me no ombro dizendo:
— És um herói, Astartos.
Tirou do dedo um anel com magnífica esmeralda e me presenteou:
— Guarda-o como lembrança da minha estima; repito, és um
herói, embora não tenhas combatido num campo de batalha.
Inclinei-me profundamente.
— Ah! já estás aqui, doutor — disse Tibério lançando um olhar
desconfiado à bela e imperturbável fisionomia de Marcos, que descreverei
de passagem: era de porte médio, muito bem proporcionado; seu rosto de
traços bem regulares, traduziam lealdade e bondade; olhos pardos e
grandes, atraíam-lhe simpatia.
Lélia acabava de reabrir os olhos, mas, muito depauperada,
repousava nas almofadas, como se estivesse toda fraturada. Tibério
aproximou-se vivamente e se debruçou para ela, naturalmente com
intenção de abraçá-la. Não vi o que se passou, porque seu corpo se
interpunha, mas, ao recuar rapidamente notamos que uma das suas
bochechas parecia inchada. Ele não disse palavra, mas ficou desapontado
e muito irritado.
Nesse momento entrou um negro conduzindo uma bandeja cheia
de moedas.
— Toma esse ouro, Astartos — disse Tibério — e vai-te com
Marcos.
Ouvindo a ordem, Lélia deu um grito. Sem dúvida a companhia do
tirano, a que já estava desacostumada, era-lhe por isso ainda mais
odiosa.
Ele sorriu aquele seu sorriso satânico e disse, colocando a mão
sobre a dela:
— Acalma-te, Lélia, tenho muito o que te dizer; há muito que não
nos falamos pessoalmente, e vocês dois podem sair.
Seu rosto estampava uma ferocidade implacável; possivelmente
Lélia conhecia aquela expressão, porque recaiu nos travesseiros como
desfalecida.
Marcos afastou-se cambaleante.
— Repousa, doutor — disse-lhe Tibério — noto que trabalhas
muito; tua saúde me é muito preciosa, por causa da cara Lélia; vai
repousar, pois hoje não tenho mais necessidade dos teus serviços, mas
deixa-me algumas gotas fortificantes.
Olhar perturbado e como que embriagado, Marcos tirou um vidro
da sua botica e lho apresentou. Tibério fitou-o e afastando-lhe o braço,
disse:
— Marcos, vejo-te muito perturbado; seria perigoso, talvez, aceitar
o teu remédio; se te enganasses no vidro? Vai, vai com a tua botica, pois
poderá fazer mais mal do que bem; minha estima, espero, constituirá o
melhor elixir para esta louquinha, quando se convencer que o meu perdão
é sincero e completo.
Levei Marcos para minha casa. Estava desesperado e tive muita
dificuldade em acalmá-lo.
No dia imediato, já tão agitado, pelos acontecimentos da véspera,
despedi-me de Veleda, que Gálio reconduziu a Pompéia. Agripa,
loucamente apaixonado, partiu igualmente, e não mais os revi. Só muitos
meses mais tarde, soube do fim trágico desses dois amigos. Haviam
tramado fugir juntos, mas a tentativa de evasão foi descoberta e Gálio,
furioso, condenou Veleda a morrer sufocada num banho de vapor e de
pois, supondo com justa razão que ela não poderia ter maquinado a fuga
sem auxílio externo, mandou espionar Agripa, de quem muito suspeitava
a louca paixão. Este, sabedor da condenação de Veleda, a peso de ouro,
conseguiu chegar até o local do suplício, disfarçado em foguista,
esperando poder salvá-la no último momento. Chegou tarde, porém,
Veleda já estava morta. Surpreendido pelos guardas junto do cadáver, foi
preso e alguns dias mais tarde decapitado.
Quando readquiri um pouco mais de calma, depois dessas tristes
ocorrências, retomei a faina habitual, vivendo muito bem com a bela
prisioneira que elegera e que mui to me estimava.
O amor de Febé não diminuíra; mas, como sempre foi repelido e
desdenhado, ela dissimulava os próprios sentimentos.
A presença da jovem germânica em minha casa despertou-lhe
feroz ciúme e percebi que arquitetava qualquer vingança diabólica;
todavia, a atenção que Tibério me dispensava, constituía um freio para
ela, pois, apreciando minha destreza e habilidade, ele chamava-me muitas
vezes a palácio para distraí-lo nos seus momentos de enfado, afastando
os seus familiares. Conversávamos ou jogávamos uma partida de dados.
Uma tarde, ocupava-me em afiar minhas armas, quando chegou
todo esbaforido um mensageiro de Tibério, para que fosse encontrá-lo
sem tardança.
Lélia havia fugido num barco, e, sabendo que eu era excelente
mergulhador e tão bom nadador como atirador de arco, queria ter-me a
seu lado, para dar-lhe caça.
Bem contra vontade, mas não ousando desobedecer, conformei-me
com a ordem recebida e cheguei no instante mesmo em que ele
embarcava, porque queria estar presente no momento da captura.
Colocou-me na sua embarcação, que se mantinha um pouco atrás das
outras, para evitar qualquer perigo.
Marcos, desesperado, postara-se junto de mim; Tibério, muito
nervoso, tinha o rosto coberto de manchas roxeadas; seus olhos pareciam
devorar o mar.
— Ah «bestia» ingrata! — dizia — ela me pagará tudo isto!
Bateu na testa e acrescentou:
— Tolo que fui, pois ela se mantinha muito amável nestes últimos
tempos; eu devia prever uma traição — mostrava os punhos cerrados.
— Se contas comigo — pensava eu, fixando-o,— para rever essa
desgraçada, muito te enganas, pois se a tiver nas mãos serei o primeiro a
afogá-la.
Parecia que voávamos cortando as ondas e, breve, avistamos no
horizonte longínquo um grande navio de comércio, que, com todas as
velas desfraldadas, empregava os maiores esforços para escapar-se.
Vã tentativa, porque nossos barcos muito ligeiros, embora
sobrecarregados de soldados, eram superiormente dirigidos e a distância
diminuía de instante a instante.
Mantinha-me de pé com os braços cruzados; Tibério ofegava de
impaciência.
— Lá, lá está a traidora, a ingrata! Astartos, imagina algum meio
para apressar mais rapidamente aquele barco maldito; tu tens sempre
idéias divinas.
— Estou pensando, meu augusto senhor, mas os deuses me são
hoje desfavoráveis, porque meu cérebro nada encontra.
Infelizmente haviam já imaginado, sem minha intervenção, um
processo eficiente: dos barcos próximos ateariam fogo, por meio de
archotes inflamados, no malsinado navio.
Caía a noite e contemplamos, então, um espetáculo grandioso e
sinistro: sob a um céu pardacento, destacava-se a silhueta de um navio
incendiado, envolto em fumo, e cujas linhas sobressaíam como se fossem
de metal fundido. O clarão a vermelhado do incêndio iluminava
extensamente o mar, os nossos barcos e os metais brilhantes dos
soldados; um cenário horrível e grandioso, repito.
Brados e maldições angustiosas se fizeram ouvir; a equipagem
começou a jogar-se ao mar; Tibério de pescoço esticada, repetia aflito:
— Onde está ela? A ingrata ousará deixar-se queimar?
Nesse instante, apareceu no convés uma esbelta figura de mulher
bem conhecida de todos nós. Evidentemente, a infeliz fugia ao incêndio,
porque vimo-la atirar-se ao mar.
Tibério de pé, gritava, gesticulava de raiva e impaciência e lançou-
se tão violentamente para a frente que acreditei, por um instante, fosse
precipitar-se ao mar para recolher a cobiçada presa. Marcos também
queria atirar-se, mas, com mão de ferro o detive:
— Idiota — murmurei — deixa-a morrer.
Ele deixou-se cair pesadamente num banco.
Nesse instante Tibério voltou-se para nós e seu olhar penetrante
percebeu a cena muda.
— Ah! traidores! — exclamou empertigando-se e indicando o mar
— a água, gladiador, onde jogas a tua cabeça!
Sem refletir, atirei-me ao mar e me dirigia para o ponto onde Lélia
mergulhara, quando, ao aproximar-me, um soldado de uma barca que nos
precedera, retirava o garfo de ferro que havia lançado mui acertadamente
e com o qual alcançara o vestido de Lélia. Esta apareceu balouçando
sinistramente à flor das águas. Um brado de alegria se escapou do peito
de Tibério.
Regressei à embarcação, no momento em que os seus angulosos
braços estendidos para fora recebiam o corpo de Lélia das mãos do
soldado.
— Possuo-te, «bestia», e agora não mais irás livremente — disse.
Envolveu-a num manto de lá e com um gesto chamou Marcos:
— Vê se ela vive; a danada é capaz de ter morrido de raiva; já ouvi
falar de casos semelhantes; agora — disse voltando-se para mim —
explica a cena muda que percebi entre ti e este cara-amarela.
Respondi inclinando-me:
— Detive meu amigo Marcos porque é um péssimo nadador e o
devotamento aos vossos interesses tê-lo-ia levado, certamente, à morte;
temi, também, privar o meu senhor do seu médico, num momento em
que lhe podia ser muito necessário. Eis porque o retive e foi apenas o que
percebestes, mesmo porque — acrescentei perfilando-me — jamais fui
traidor.
Marcos, que havia examinado Lélia, levantou-se.
— Ela vive, o coração pulsa — disse em voz baixa e trêmula.
— Sendo tão bom médico — disse — por que não te curas a ti
próprio? Surpreendo em ti estranhos desfalecimentos e tudo isso me
admira.
Seus olhos cruéis mergulharam avidamente nos de Marcos, que
continuavam pregados no chão. Nesse comenos, Lélia reabria os olhos e o
rosto de Tibério iluminou-se.
— Ah! malévola criança, recobras os sentidos?
Como única resposta, ela despegou-se dos braços de Tibério, que
não esperava por uma tal manifestação de força, e atirou se novamente
na água.
Ele segurou-a pelos vestidos e, louco de raiva, tirando o punhal da
cintura, berrou:
— Morre, miserável e abjeto esqueleto! A arma brilhou e
desapareceu inteiramente no flanco de Lélia.
Um duplo grito ecoou. Marcos quis sustar o braço do arrebatado,
mas era muito tarde. Lélia tombou agonizante; o sangue borbulhava da
ferida.
Tibério caiu em si; apenas os flocos de escuma nos cantos da boca,
demonstravam a raiva que o possuíra.
— A «bestia» me enlouqueceu — disse — Salve-a, Marcos!
Depois de examinar o ferimento que cobriu com uma echarpe de
seda, Marcos se perfilou e disse:
— Por enquanto nada posso afirmar. Tibério entristeceu. Levava
consigo a presa, mas, não pronunciou palavra durante o regresso.
Antes de atracar, confiou-nos o corpo de Lélia com a
recomendação de levá-lo ao palácio. Depois, auxiliado por dois oficiais,
desembarcou e sem voltar a cabeça, acomodou-se na liteira e partiu.
Chegados ao palácio, dirigimo-nos diretamente para o apartamento
de Lélia. Tibério ceava, disseram-nos.
Trocamos a roupa da doente por outra enxuta. Marcos examinou
novamente a ferida e eu permanecia junto dele porque as mãos lhe
tremiam nervosamente e recusavam obedecer-lhe. Finalmente, voltou-se
e disse:
— A ferida não é mortal; ela se restabelecerá.
— E tu a deixarás viver? — perguntei fora de mim, indignado.
Nesse momento Lélia parecia mais um cadáver que pessoa
vivente; reabriu os olhos e com um gesto chamou Marcos.
Ele se aproximou.
— Em nome do amor que me consagras — disse juntando as mãos
— acaba com esta tortura que se chama vida; serás covarde e infame se
me deixares viver; não sofres, então, vendo-me assim martirizada? Mata-
me depressa, antes que ele volte, porque depois, será impossível.
Marcos torcia as mãos.
— Não posso — repetia — e assentando-se num tamborete, cobriu
o rosto com as mãos.
Inclinei-me para ele e pus a mão no seu ombro:
— Marcos, és indigno de ser homem, pois vejo-te menos corajoso
que uma mulher! Não queres, então, te vingar de Tibério e ao mesmo
tempo praticar um ato de caridade? Tens em mãos a arma com que
podes mortalmente feri-lo.
Ele se levantou com o rosto esfogueado; abriu a caixa de remédios
e, com mão febril, tomou de um frasco cujo contendo vazou numa
compressa; depois correu para junto de Lélia, que o não perdia de vista,
e, retirando o primeiro curativo, substitui-o por esse último.
— Sim — disse exaltado e ofegante — morres! És a maior
vingança que posso exercer contra Tibério.
Lélia alçou para ele os olhos grandes e brilhantes e perguntou:
— É mesmo a morte que me concedes e não um calmante que me
faça viver?
Ele ergueu as mãos para o céu:
— Imploro o perdão dos deuses para o que acabo de fazer; este
dia não terá amanhã para ti; desta vez, Lélia, vais morrer!
Apertei-lhe a mão emocionado; pareceu inteiramente
transfigurado. Uma firmeza que lhe não era comum, transparecia-lhe do
rosto. Debruçou-se para a moça e abraçou-a.
Nesse momento, o ruído das sentinelas que apresentavam armas,
anunciou a aproximação do verdugo.
Havia terminado a ceia em que o havíamos tão bem servido.
Apenas retomáramos atitude indiferente, abriu-se a porta e ele,
despido da toga, apareceu no umbral. Com um golpe de vista penetrante,
inteirou-se de toda cena:
— Ah! estais ainda reunidos! Que fazes aqui, gladiador?
— Marcos me enviara à sua casa para trazer ataduras e alguns
ferros, que acabo de lhe entregar — respondi saudando-o.
Tibério inclinou a cabeça:
— Muito bem. Ah! a ingrata com os grandes olhos abertos é um
bom sinal, penso...
— Preciso falar-vos — interrompeu Marcos inclinando-se — mas
não aqui.
A um sinal de Tibério, reunimo-nos os três no compartimento em
que velavam as sentinelas. Tibério encostou-se à parede e disse:
— Fala agora; que tens a comunicar-me?
Marcos inclinou-se novamente:
— A arma trespassou o pulmão, toda a ciência humana é
impotente; Lélia não passará desta noite. Julguei do meu dever prevenir-
vos, mas não o poderia fazer diante da moribunda.
Uma palidez esverdeada, entremeada de manchas vermelhas,
cobriu o rosto e o pescoço de Tibério, que se apoiou mais fortemente na
parede, enquanto com as mãos amarfanhava nervosamente as próprias
vestes. Os lábios lhe tremiam. Nada respondeu, Cabisbaixo. Fez-se um
silêncio de morte.
Por fim, empertigou-se. O rosto se tornara impassível e cruel,
como de costume.
— Muito bem, Marcos; teus cuidados são supérfluos; eu próprio
velarei a moribunda.
Reentrou no aposento e fechou a porta a chave.
— Pobre Lélia! — exclamou Marcos desesperado — só com ele,
que morte horrível!
Retiramo-nos para um pequeno vestíbulo, de onde podíamos notar
a saída de Tibério. Gostaria bem de saber o que se passava no interior,
mas as sentinelas não abandonavam o corredor.
Marcos continuava impassível qual esfinge; somente um suor frio
lhe carinhava a fronte e notei que minhas palavras de consolo não eram
percebidas.
Finalmente, pelas três horas da madrugada, abriu-se uma porta e
passos apressados ecoaram no corredor. Tibério saíra, sucumbido, pálido
como um cadáver. Sem olhar ao redor e sem mesmo fechar a porta,
dirigiu-se para os seus aposentos.
Entramos então no quarto de Lélia; estava morta. Uma grande
calma e profunda satisfação lhe transparecia do rosto. Marcos ajoelhou-se
junto do cadáver e eu afastei-me devagarinho para não perturbá-lo na
sua compunção.
Profundamente emocionado, voltei para casa e, por distrair-me,
entrei a trabalhar um leopardo que me mordera um braço. Desejava
domesticá-lo, mas nisso, havendo-me acalmado um pouco, deitei-me e
adormeci.
No dia seguinte, Tibério me chamou para domar um magnífico
cavalo com que lhe presentearam. Recebi ordem de me dirigir em seguida
aos seus apartamentos, para arrancar os dentes a dois pequenos tigres.
Chegando ao palácio fui logo ver Marcos. Estava profundamente
abatido e muito desfigurado. Fiz, também, curta visita à morta, então já
ricamente vestida. Terminados os outros encargos, introduziram-me no
quarto de Tibério.
Deitado num canapé, folheava pergaminhos; assustei-me com a
sua palidez e incrível expressão de ferocidade retratados no rosto.
Com minha chegada, ergueu a cabeça e apontou-me os dois
tigrezinhos seguros por um escravo.
— Ocupa-te com essas duas feras — disse — quero assistir à
operação; depois, aqui ficarás alguns dias, a meu serviço.
Os animais foram conduzidos para perto do canapé, seguros por
negros e arranquei-lhes os dentes com a destreza habitual. Depois, tive a
honra de permanecer junto do tirano, a fim de o distrair, pois se achava
muito triste; afastava os familiares e a mim era dado diverti-lo no seu
isolamento; toda noite, por algum tempo ele permanecia junto do corpo
de Lélia, mas sua fisionomia se tornara impenetrável.
Chegado o dia dos funerais, ordenou que a pira crematória fosse
armada num dos pátios do palácio e, de pé, junto a janela, assistiu à
cerimônia.
Tudo se fez com grande pompa. Embora Lélia houvesse conservado
a religião dos seus maiores, uma legião de sacerdotes nossos foi
convocada. Colocaram o féretro sobre a pira, com todos os rituais e
cânticos em uso. Conservei-me de pé, no centro do pátio, entre os
assistentes, mas não tirava os olhos do rosto de Tibério, que, apoiado à
janela, acompanhava todos os detalhes com um olhar enraivecido.
Quando acenderam a pira, mudou várias vezes de cor, o fogo já se
propagara por toda a parte, quando, num dos lados declinou um pouco e
a cabeça da morta tornou-se visível por um instante, como para dizer um
último adeus. Percebeu-se distintamente o perfil de Lélia iluminado pelas
chamas; depois, a fumaça tudo encobriu. Tibério, diante desse quadro,
recuou bruscamente.
Pouco depois, fui chamado para junto dele, a fim de jogar os
dados.
Quando entrei, ele estava sozinho e andava pelo quarto a passos
precipitados; por fim, assentou-se e começou a jogar; a partida já durava
silenciosamente muito tempo, quando surgiu um padre que havia
assistido aos funerais. Trazia magnífica urna — tudo que restava de
Lélia...
Depois de tê-la depositado sobre a mesa, retirou-se.
Tibério interrompeu o jogo e entrou a cismar profundamente;
depois abriu a urna e com dois dedos retirou um pouco de cinza, dizendo:
— Vês ? É tudo o que resta da criatura teimosa e má! Eu a reduzi
a cinzas; terrível é o meu poder!
Inclinei-me profundamente e ele acrescentou:
— Sabes, gladiador, o que pretendem os padres egípcios?
— Não — respondi.
— Pois bem: eles acreditam que isto renasce (designando os
cinéreos resíduos). Então, a ser verdade, isto renascerá com toda a sua
coragem e insolência indomável, que eu, o futuro imperador, não pude
vencer.
Empurrou bruscamente a urna.
— Não, não quero mais combatê-la; depois que a vi, não tive mais
sossego; os egípcios são loucos insolentes; além disso, (pálido sorriso lhe
descerrou os lábios) Tibério não pode renascer senão imperador e isto não
será ainda tão mau. Tomou os dados.
— Vejamos qual de nós ganhará. Se fores tu, gladiador, a
pretensão dos egípcios é falsa; se for eu, é verdadeira.
Atirou os dados e ganhou.
Nesse momento, débil mas bem conhecida risada feriu nossos
ouvidos.
Tibério ergueu-se de olhos esbugalhados, tomou-me do braço e
murmurou com voz trêmula:
— Ouviste a risada? De quem era? De quem? — e batia o queixo
— Responde! Reconheceste a risada? Fala, ordeno-te!
As pernas lhe dobravam, a fisionomia tornou-se horrorosa. Eu
mesmo tremia. Intrépido diante de qualquer perigo humano, sentia-me
agora ali desfalecer diante do invisível, um suor frio cobriu meu corpo.
— Lélia! Foi ela quem riu! Exclamei fora de mim.
Tibério largou-me o braço, recuou, e com o dedo me apontou a
mesa em que tínhamos jogado. Ao lado dos dados ainda
reunidos, meus olhos apavorados descobriram um camafeu bem
reconhecível: era uma pedra preciosa, na qual estava gravado o retrato
de Tibério; engastado em forma de medalhão, suspenso por uma corrente
de ouro. Pertencia a Lélia, oferta de Tibério. A moça deveria usar sempre
aquela jóia e Tibério jamais consentiu que a tirasse, até mesmo para ser
incinerada. Recordava-me perfeitamente de que, momentos antes, nada
havia sobre a mesa, além da urna e dos dados; meus olhos estavam como
que pregados no camafeu, trazido por mão invisível e o riso, o sinistro riso
de Lélia, ainda timbrava em meus ouvidos.
— Ah! — exclamou com voz abafada — os mortos voltam, então?
Que significa isto, gladiador?
Nada pude responder e apenas enxugava o suor que me cobria o
rosto.
Pouco a pouco Tibério recobrou seu natural; passou a mão pela
fronte como querendo afastar dolorosos pensamentos:
— Que jamais uma palavra desta história escape dos teus lábios,
gladiador, se é que tens amor à vida? É, pois, verdade que se revive e ela
riu-se. Teria dissimulado um sentimento de ternura para mim, pobre
Lélia?
Tomou o camafeu, beijou-o acrescentando:
— Se bem-vindo da parte de quem vens, tu que sobreviveste ao
fogo.
Chamou os guardas e despediu-me.
Daí por diante, evitou sempre permanecer sozinho; à noite
distribuía soldados ou escravos nos degraus do leito.
Naturalmente, guardei o segredo, só a Marcos contei a estranha
ocorrência.
Pouco tempo depois da morte de Lélia, Gálio foi a Roma, a
negócios. Preparava-se nova guerra, da sua comitiva fazia parte o seu
médico Graco. O procônsul visitava Tibério amiudadas vezes e, uma tarde
em que estavam reunidos, ocorreu esta cena, que me foi relatada por um
dos presentes.
Falava-se da morte de Lélia e Graco, que tinha escutado com a
maior atenção, perguntou:
— Ficou bem esclarecido que o ferimento era mortal?
A essas palavras Tibério ordenou que lhe trouxessem uma certa
caixinha.
Abriu-a e, com espanto dos presentes, retirou ataduras
impregnadas de uma substância enegrecida.
— Examine isto, doutor — disse apresentando as ataduras a
Graco. Este material estava embebido em bálsamos aplicados pelo dr.
Marcos. Estais de acordo com a eficácia do remédio?
Graco, que há muito invejava a posição de Marcos, tomou da faixa,
examinou-a como entendido e levantou-se:
— Tibério, meu augusto senhor e futuro soberano, fostes traído e
enganado, este bálsamo, aparentemente saudável, era um veneno mortal.
Marcos estava presente, mas, triste e pensativo, não se tinha
metido na conversa. Tibério fixou nele um olhar penetrante e cruel:
— Eu desconfiava da verdade: médico de nervos frouxos, tu muito
requestaste a bela Lélia e eu te predisse que teus nervos te perderiam.
Responde, traidor que me enganaste, quem te permitiu tocar na minha
bem-amada?
Marcos viu-se perdido. Levantou-se e, cruzando os braços, disse:
— Sim, tirano, eu matei-a. Por muito tempo fraquejei, porque a
amava; mas, quando a feriste, não mais desejei continuasses a cevar nela
a tua crueldade. Mata-me, pois não desejo viver.
Tibério sorriu, com aquele malicioso sorriso todo seu.
— Vede que traços de sua passagem nos deixou essa linda Lélia! —
Prendam-no — ordenou, apontando Marcos. — Amanhã será julgado por
assassínio e traição.
Uma hora mais tarde eu era prevenido desse funesto
acontecimento. Marcos, que praticava muita caridade, contava numerosos
e devotados amigos; tentaram salvá-lo e a peso de ouro ele evadiu-se
com o seu carcereiro, embarcando ambos num navio de comércio.
Quando Tibério soube da fuga, insensata raiva se apoderou dele.
Fez perecer em torturas horríveis mais de trinta pessoas suspeitas de
cumplicidade no feito, mas esse massacre não o acalmou. Batia cornos
punhos, sapateava e gritava:
— De que me servem todas estas miseráveis cabeças em troca da
do traidor?
Felizmente, esse furor se anulava porque Marcos estava a bom
recato.
Com o correr do tempo fui me sentindo assaz isolado, tinha perdido
os melhores amigos, os companheiros da infância e resolvi casar-me.
Queria desposar a jovem prisioneira que estava a meu serviço,
meiga e encantadora criatura extremamente devotada, mas quando Febé
soube desta novidade, tomou-se de terrível acesso de ciúme; ainda que
possuidora de dois raríssimos tesouros — Tibério e Sejano — foi à minha
casa e desfechou uma cena injuriosa, jurando vingança e prometendo
assassinar minha esposa.
Meu casamento se realizou sem novidade; mas, tempos depois,
Tibério (para festejar um acontecimento de que não me recordo), ordenou
grande espetáculo no circo, no qual Febé devia tomar parte como
dançarina.
Preparando-me para o festival, tristes pressentimentos me
assaltaram; uma inquietação me torturava; mantinha-me abstrato e
abatido.
Com o coração cerrado, despedi-me da jovem esposa, perturbada
e lacrimosa diante das minhas apreensões.
Entrei na arena. Devia combater sucessivamente, nesse dia, um
leão, um tigre gigantesco e dois leopardos.
Esperei o primeiro inimigo, impassível como sempre; mas desde
que o tigre saiu, notei nele estranha agitação; rugia surdamente, o pelo
estava eriçado e meu olhar parecia haver perdido a força.
Estava muito ocupado em dominá-lo, quando repentinamente mão
invisível abriu segunda jaula e o leão apresentou-se furioso, pelo eriçado,
batendo com a cauda nos flancos; investiu-me pelas costas e pousou as
patas nos meus ombros, rugindo.
 frente o tigre, por trás o leão: senti-me perdido e um grito se me
escapou.
Nesse instante dois leopardos saíram, por sua vez, e atrás da
grade vi Febé a olhar-me com expressão escarninha.
Um combate mortal, medonho, travou-se entre mim e a malta; eu
sentia o hálito quente dos leões, seus dentes e garras rasgavam-me a
carne, clamores e brados de terror repercutiram no ambiente, todos os
gladiadores armados acorreram mas, feras irritadas me cercavam
igualmente, e assim não puderam defender-me.
Caí de joelhos segurando o alfanje com mão desfalecente; o tigre
abaixou a enorme goela à minha garganta.
Dando um último grito, enterrei o ferro no peito da fera.
No mesmo instante senti dor atroz, parecia-me que o cérebro
explodia, que os olhos saltavam das órbitas; sucumbi como que
galvanizado, um peso enorme a sair de mim, arrancando-me todos os
membros como se eu fosse retalhado em mil pedaços. Depois, qualquer
coisa como se um raio me ferisse.
Quando recobrei consciência de mim mesmo, elevava-me numa
atmosfera transparente e azulada; ao derredor se comprimiam seres
flutuantes e leves, que me cobriam de fios luminosos, parecendo que me
tiravam de qualquer coisa pesada que ainda me retinha. Meu olhar voltou-
se para a Terra e vi o circo; na arena, estendida sanguinosa massa
informe, conservava intacta apenas uma bela cabeça anelada. Uma
avalanche de espectadores se comprimia à volta do cadáver. Alguns
passos adiante, estendido também o tigre, meu valente competidor. A
centelha indestrutível acabava também de se desprender da sua massa
corporal; espíritos de animais, de evolução superior à sua, auxiliavam-no
a se destacar.
Liberto e feliz, lancei-me no espaço, rodeado pelos meus velhos
amigos e protetores.

ASTARTOS

NOTA DO TRADUTOR:— O gladiador Astartos encarnou, através


dos séculos Faraó Mernephtah, no romance do mesmo nome; Caius, em
"Herculanum"; Conde de Rabernaum, em "Abadia dos Beneditinos"; e o
próprio Conde Rochester, na sua existência terrena com o nome de John
Wilmot (1648-1680), cortesão e poeta inglês.

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