Conde de Rochester - Episódio Da Vida de Tibério
Conde de Rochester - Episódio Da Vida de Tibério
Conde de Rochester - Episódio Da Vida de Tibério
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CONDE J. W. ROCHESTER
Episódio da
Vida de Tibério
Tradução de B. Bicudo
LAKE - Livraria Allan Kardec Editora
(Instituição Filantrópica) Rua Assunção, 45 - Brás - CEP 03005-020
Fones: (011) 229-1227, 229-0526 e Fax: 229-0935 São Paulo - BRASIL
7ª Edição - do 37º ao 46º milheiros Agosto de 1995
Nota: A LAKE é uma instituição sem fins lucrativos, cuja diretoria não possui
remuneração.
Capa: Rob
1
Convém advertir que ela falava a língua dos romanos? porquê era filha de romana, que
lha ensinara.
— Como te chamas? — repeti. Nada...
— Como te chamas? — bradei furioso.
— Para ti não tenho nome, compreendes? Deixei, lá atrás, tudo:
nome, pátria, pais, noivo, amor; aqui sou objeto sem nome, e aquilo que
todos que me são caros pronunciaram, tu não o saberás.
— Oh! — exclamei — mandarei espancar-te até a morte, se não
me responderes.
— Por que falas tanto em lugar de executar? exclamou a diabinha,
cujo faro feminino tinha percebido já, até que ponto sensível me havia
tocado. Piquei petrificado, pois mulher alguma ousara ainda dizer-me tais
coisas.
— Acreditas que teus berros me amedrontam? . Podes matar-me.
Se me espancares, morrerei mais depressa e eis tudo, porque minhas
forças me abandonam; com o meu cadáver farás o que te aprouver,
mesmo uma iguaria com que te repastes.
Levantei-me e bati o pé.
— Como ousas responder dessa forma, insensata, a mim, futuro
imperador? Esmagar-te-ei com o meu poder, louca!
Ela não baixou a cabeça, antes me fitou com insolência:
— Faço idéia muito relativa do teu poder, que não me impressiona:
mostra-mo, então, porque apenas vejo que te enraiveces muito.
Ordenei aos guardas que a pusessem perto de mim. E dirigindo-me
a ela, disse-lhe:
— Aproxima-te e segura a minha taça.
Obedeceu, recebeu a taça que um escravo acabava de encher e,
inclinando-se, derramou-a sobre a minha cabeça.
Não soube mais o que fazer. Para um tal crime de lesa-majestade,
devia matá-la, não podia mesmo inventar outra punição. Febé chorava de
tanto rir, repetindo:— Mas é louca, a ferazinha!
Fiz-me enxugar, lavei-me e, braços cruzados, aproximei-me dela.
— Que fizeste? — perguntei — estas em teu perfeito juízo?
— Sim,— respondeu — sou filha de um chefe e jamais
desempenharei papel de serva, mesmo para um futuro imperador.
— Ah! recusas por orgulho? Pois bem; ordeno que me obedeças.
— Deixa-me antes repousar, manda enforcar-me, queimar ou
afogar, à tua escolha, contanto que acabe com isto.
Percebi-lhe o desejo de morrer.
— Isso nunca! — Antes hei de possuir-te.
Pela primeira vez, ela recuou apavorada; teria esquecido o poder
que eu tinha sobre os prisioneiros? De repente disse com voz mudada e
terna:
— Deixa-me morrer honestamente; sou noiva de Hilderico e tu aí
tens tantas prisioneiras para satisfazer-te a concupiscência e crueldade...
Não desejo viver, a morte é a única graça que te peço.
Oh! amava então esse Hilderico, de quem já ouvira gabarem a
coragem!
Esse pensamento me tornou sobremaneira insensível.
— Nada de morte; viverás e hás de ser minha, por bem ou por
mal.
Ela pôs-se a rir às gargalhadas.
— Amar-te a ti? tão feio, com essa cabeça e essa cara raspadas?
Nunca viste Hilderico e por isso não podes fazer idéia de algo semelhante.
Diante dessa resposta digna de uma selvagem, apenas os
semblantes dos guerreiros permaneceram impassíveis. Estranha
expressão de constrangimento se esboçou nos demais convivas.
Provei uma nova e maior decepção porque me julgava assaz
bonito.
No mesmo instante, ela cambaleou e teria baqueado se não a
houvesse amparado. Coloquei-a a meu lado e só então lhe notei uma
ligadura ensangüentada. Atentei para os seus guardas, eles
empalideceram e me disseram que ela havia tentado matar-se e que
havia quatro dias vinha recusando todo e qualquer alimento.
Experimentei, então, verdadeiro terror, imaginando que pudesse morrer
nas minhas mãos, antes que a domasse e transformasse em mulher
amável, que me achasse bonito.
— Vós me pagareis tudo isto! — exclamei.
Derramei vinho nos seus lábios e ela acabou por voltar a si, mas,
tão fraca que apenas respirava.
Levei-a para o meu palácio em Roma, instalando-a num aposento
de cuja chave não me separava. Eu próprio levava-lhe as refeições, mas
não conseguia que se alimentasse. Só podia forçá-la a comer um pouco,
empunhando chicote ou punhal. Era então minha amante, não tive outra
tão rebelde e de uma vida estranha. Detestava-me a tal ponto que só
comia de olhos fechados.
Eu queria tornar-me amado sem o conseguir, apesar da maior
severidade. Deixava-a sem comer amarrada no leito, privada de liberdade
e movimento e nada obtinha; só respondia às minhas palavras com
desdenhoso silêncio. Dizia-lhe: Se não te tornas mais amável, não
reaparecerei senão quando me rogares de joelhos.
Nem assim respondia, e os dias se passavam e eu me sentia
obrigado a voltar para junto dela.
Certa feita, precisei ausentar-me de Roma por oito dias. Confiei a
chave do seu quarto a um criado, com ordem de levar-lhe as refeições;
mas, pouco depois, me esquecia disso e, por um motivo qualquer, fiz
decapitar o detentor da chave. Quando voltei, foi preciso arrombar a porta
e fui encontrá-la quase morta de fome. Teria passado terríveis momentos,
pois tinha as vestes esfarrapadas, os anéis de ferro da algema lhe haviam
penetrado profundamente na carne e coberta de sangue. Certamente,
quisera desembaraçar-se da corrente, sem o conseguir. Só a custo de
muito trabalho, conseguiu-se reanimá-la e procurei, então, ser mais
indulgente. Nada, porém, lhe abrandava o caráter atrevido.
À proporção que corria o tempo eu me tornava mais
estranhamente ligado a ela. O ódio manifesto que me votava, aquela
resistência de todos os momentos, irritavam agradavelmente os meus
nervos esgotados. Visitava-a todos os dias, muitas vezes levava-a a
passear, se bem que ela preferisse a prisão ao ar puro em minha
companhia.
Cerca de um ano assim correu, até que um dia notaram que vários
homens rondavam a parte do palácio onde ficava a prisão de Lélia, os
quais pareceram suspeitos.
Informado de que haviam chegado a Roma numa embarcação, fi-
los vir à minha presença para interrogá-los. Estava a refrescar num
terraço tendo-a perto de mim deitada sobre almofadas, quando se
apresentaram os detentos.
O primeiro era um rapagão de notável beleza; cabelos louros,
longos e encaracolados caiam-lhe pelos ombros e os grandes olhos azuis
rebrilhavam de orgulho e energia. Ao ver Lélia, soltou um brado de
alegria, que tratou, em seguida, de disfarçar desviando o olhar.
Eu sabia que eles eram germânicos e uma vaga desconfiança se
apoderou de mim.
— Como te chamas? — perguntei. Ergueu altivamente a cabeça e
já se dispunha a responder, mas, no mesmo instante seus olhos se
fixaram em Lélia e calou. Voltei-me bruscamente e percebi ainda o gesto
suplicante que ela lhe dirigia para que se calasse.
— Ah! — pensei — este é o Hilderico, mais belo do que eu!
Ele recusou-se identificar-se, mas, pela tortura, consegui que os
companheiros revelassem a sua identidade.
Prendi Lélia a sete chaves e ordenei a morte de Hilderico pela
seguinte forma: enterrado até o pescoço, com a cabeça exposta ao sol.
Em redor da cova um muro de pedra, circular, e no recinto fechado
mandei lançar ratos esfomeados de três dias, que entraram a roer o belo
Hilderico com voracidade inaudita, com o que me deleitava através de
uma abertura adrede preparada no muro.
Lélia, no auge do desespero, queria a todo preço rever Hilderico.
Então, por vingar-me das suas insolências, levei-a ao local e, erguendo-a,
fi-la espreitar pela abertura. Ao ver Hilderico sem nariz e orelhas, lábios,
faces carcomidas, irreconhecível e disforme, ficou acabrunhada.
— Pois bem — disse-lhe — ainda sou mais feio do que ele?
Ela que, por princípio, jamais me respondia, voltou-se nesse
momento e eu fiquei positivamente horrorizado com a expressão do seu
rosto: os olhos injetados de sangue, a boca escumante, atirou-se a mim
qual besta fera, tentando estrangular-me. Seus dedos enterraram-se no
meu pescoço como pinças de ferro e meus guardas tiveram grande
trabalho para me desvencilhar da sua fúria.
Após este segundo crime de lesa-majestade, reuniu-se um
conselho que decidiu fosse ela exposta às feras no circo, na primeira
função. Eu, porém, me sentia tão ligado a ela, que, apenas expedida a
sentença, começava a voltar atrás; parecia-me não constituir suficiente
vingança vê-la espedaçada pelas feras; eu mesmo poderia puni-la bem
mais severamente. Minha dignidade, porém, não permitia retratar-me e
conceder-lhe o perdão por iniciativa própria. Fiz-lhe saber, então, que, se
publicamente e de joelhos me pedisse perdão, eu lho concederia. O
gladiador Astartos( 2 ), que deveria vigiá-la até o dia do espetáculo, foi
incumbido de conduzir a negociação. Tive com ele várias conferências a
respeito, e como fosse um belo tipo de moço, o ciúme começou a
espicaçar-me e avisei-o de que, sob pena de morte, deveria mostrar-se
pouco compassivo com a prisioneira, reservando-me eu próprio para esse
ser ingrato ao qual desejava conceder, excepcionalmente, uma proposta
de perdão.
Ela respondeu por intermédio de Astartos, que preferia mil vezes a
morte ao meu perdão. Exasperei-me.
No dia aprazado, fui ao circo e logo que me instalei no camarote,
senti-me possuído de penosa angústia ao pensar que ela ia ser
estraçalhada e devorada.
Os gladiadores foram os primeiros a penetrar e tomar posição na
arena; depois, abriu-se pequena porta e entrou Lélia. Estava toda de
2
Este gladiador era, nesta encarnação, o mesmo que mais tarde veio como Conde de
Rochester.
branco, um cinto prateado à cintura, solta a soberba cabeleira loura,
encimada por uma grinalda de flores. Havia ordenado que lhe fosse dado
tudo que pedisse e ela quis assim preparar-se para morrer. Entretanto, no
momento decisivo, parece que lhe fraquejou a coragem, porque se apoiou
no muro e tapou o rosto com as mãos.
Abriu-se uma jaula e gigantesco tigre saltou na arena rugindo.
Lélia deu um grito o caiu de joelhos, não voltada para mim, mas para o
tigre, que estacou um instante, surpreso e indeciso.
Aproveitei o lance: conheciam as condições que havia imposto para
conceder-lhe a vida. Elevei a voz:
— Ela pede graça, gladiadores; salvem-na, se possível!
Procurei não parecer muito solícito, mas o populacho bradava
também: «graça! graça!»
O tigre, que já havia espertado com a minha exclamação, ainda
não tivera tempo de começar o ataque, porquanto, nesse instante,
entraram na arena um leão, uma pantera e outros animais. As feras
rugiam lugubremente e se entreolhavam, prontas a disputar a presa;
haviam cercado Lélia desmaiada, e apenas o ciúme recíproco lhes impedia
começar o repasto.
Impossível qualquer tentativa de salvação. Não obstante os
gladiadores terem-se colocado entre as feras para dispersá-las, Astartos
se lançou corajosamente sobre o leão, que, com a língua avermelhada, já
lambia a alabastrina espádua de Lélia, e desviando-o com vigoroso golpe
de sabre, arrebatava-a para uma das jaulas vazias, ali encerrando-a.
Salva!
Não prestei grande atenção ao resto do espetáculo, durante o qual
os gladiadores mostraram toda a sua coragem e agilidade, tendo mesmo
mais de um sacrificado a vida.
Meu pensamento vagava longe. Determinei que Lélia fosse
conduzida ao palácio e desde que lá cheguei, permaneci junto dela,
embora já fosse tarde. Ela dormia e como estava extenuada, logo que
tentei reanimá-la, com dificuldades abriu os olhos para fechá-los em
seguida, recaindo novamente inerte, como morta. Permaneci a seu lado
algumas horas e voltei aos meu aposentos muito contente por ter-se ela
ajoelhado diante do tigre.
Ela mesma dará os pormenores de nossa vida em comum; aqui
mencionarei apenas que, ao cabo de dois anos, fugiu em um navio pirata,
fretado pelo irmão para libertá-la. Empreendi a perseguição, sendo logo
encontrado o navio. Determinei, então, fosse incendiado e gozamos o belo
espetáculo de um barco em chamas, no meio do oceano, em fundo
enegrecido pela fumaça. A equipagem atirou-se ao mar para salvar-se.
Ordenei aos pretorianos capturassem Lélia viva, se fosse possível. Nesse
instante, lobriguei-a no convés incendiado e vi que se atirara ao mar.
Meus soldados se precipitaram igualmente. Avancei minha embarcação e
breve minha bela companheira, retirada das ondas, era-me restituída a
debater-se como louca, a arrancar-se dos meus braços para mergulhar de
novo. Enraivecido ao extremo por ver uma obstinação tão tenaz, saquei
do punhal e enterrei-lho no flanco. Tombou inerte banhada em sangue.
Passado o furor, arrependi-me vivamente do feito. Conduzi-a ao
palácio, onde o médico declarou que apenas teria algumas horas de vida.
Pensou-se a ferida; mandei que todos se retirassem; queria ficar sozinho
com a agonizante, levada ao seu próprio quarto.
Há momentos em que o tirano mais poderoso, o assassino mais
endurecido, experimenta arrependimento e remorsos. Era o que me
sucedia então.
Cabisbaixo, permaneci junto do leito onde ela jazia inanimada;
apenas um cirro se lhe escapava da garganta e a respiração lenta e difícil,
indicava que o coração estava prestes a terminar o seu último e doloroso
esforço. Eu sabia que tudo estava perdido e aguardava o fim.
Prestes a respiração pareceu parar; inclinei-me e vi que seus olhos
se reabriam como em plena consciência. Nossos olhares se encontraram e
constatei que a morte não lhe alterava o ser; a boca não mais podia falar,
mas os olhos exprimiam todos seus pensamentos; envolveu-me num
último olhar saturado de ódio implacável, de desprezo esmagador; depois
amorteceu, a respiração cessou; apalpei-lhe o coração, já não batia,
estava morta!
Que sentimento estranho domina o coração do homem quando ele
sente a própria incapacidade diante de um cadáver, cuja impassibilidade
parece ridicularizar o seu poder! Eu era Tibério, o futuro imperador! Mas
ali meu poder havia esbarrado nos seus limites. Nem meu amor, nem meu
ódio, puderam algo sobre aquela mulher, cujo cadáver agora afrontava a
minha autoridade!
Certamente, ninguém percebeu meus sentimentos. Abandonei a
sala mortuária, impassível; nada em meu rosto traía qualquer emoção ou
arrependimento; e, no entanto, sentia-me profundamente acabrunhado
até as profundezas do meu ser.
Determinei pomposos funerais e depois minha vida retomou seu
curso normal; não me tornei nem mais nem menos cruel do que fora até
então; matei à fome minha mulher e minha mãe, pereci asfixiado por
aqueles que acreditavam que eu ainda viveria muitos anos. O momento
da morte pareceu-me longo atordoamento, durante algum tempo não
pude compreender minha situação; enfim, percebi que tinha deixado a
Terra e, errando no espaço, vi muitos personagens poderosos, que,
relegados à solidão, gemiam dolorosamente. Eu mesmo presenciei o
desfilar de TODAS, TODAS as minhas vítimas; todos aqueles nos quais
cevara minha crueldade, vinham com seus sofrimentos cercar-me em
delírio; Lélia também não faltou! E depois, apesar de tantos séculos de
provas e expiações, combateremos ainda as nossas más paixões até o
momento em que, abrandadas e dominadas, sejamos capazes de nos
amarmos com verdadeiro sentimento cristão, tal como prescrevem as leis
divinas. Mas, até agora, as paixões inferiores despertam em nós um ódio
recíproco, talvez um pouco mais atenuado que outrora; dissimulado sob
as cinzas dos séculos, despertando sempre em cada uma das nossas
encarnações terrestres.
TIBÉRIO
NARRATIVA DE LÉLIA
LÉLIA ∗
∗
NOTA: Lélia é o mesmo Espírito que figurou em Faraó de Mernephtah com o nome de
Amaragda; em "Herculanum" como Virgínia; em "Abadia dos Beneditinos" como
Rosannda e foi a médium Wera, filha de importante família russa, que Rochester
preparou para receber os seus ditados.
NARRATIVA DE VELEDA
VELEDA
ASTARTOS