Joao Climaco

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SO JOO CLMACO

A ESCADA SANTA
SO JOO CLMACO

A ESCADA SANTA

PRIMEIRO DEGRAU
Da renuncia ao mundo.

SEGUNDO DEGRAU
Da necessidade de se despojar das afeies e dos cuidados com
as coisas do mundo.

TERCEIRO DEGRAU
Da fuga do mundo.

QUARTO DEGRAU
Da bem-aventurada e sempre louvvel Obedincia.

QUINTO DEGRAU
Da verdadeira e sincera penitncia.

SEXTO DEGRAU
Do pensamento da morte

STIMO DEGRAU
Da tristeza que produz a alegria

OITAVO DEGRAU
Da Mansido, que triunfa sobre a clera.

NONO DEGRAU
Do Ressentimento.

DCIMO DEGRAU
Da Maledicncia.

DCIMO PRIMEIRO DEGRAU


Do falatrio e do silncio.
OBSERVAES INICIAIS

So Joo Clmaco viveu entre os anos de 580 e 650 na regio


do Sinai. At os 35 anos viveu como cenobita, mas com a morte
de seu Pai espiritual decidiu se tornar anacoreta, retirando-
se para o deserto, onde viveu at os 70 anos. Nos ltimos
quatro anos de sua vida dedicou-se a escrever "A Escada
Santa", onde resume em trinta degraus o caminho espiritual
que deveriam seguir os monges de sua poca. O texto a seguir
foi traduzido da verso francesa, e deve ser lido com a
conscincia de que se trata de uma obra dirigida
eminentemente a pessoas que seguem a vida monstica, e cuja
aplicao aos dias de hoje quase inteiramente impossvel.
Mas a "Escada Santa" permanece sendo uma referncia para os
que desejam se aprofundar no caminho da orao, e aprender um
pouco sobre as armadilhas com as quais os demnios infestam a
alma dos que almejam o Reino dos Cus.
PRIMEIRO DEGRAU

Da renuncia ao mundo.

1. Antes de falar aqui dos Servidores de Deus, convm comear


meu discurso por seu nome santo e adorvel. Assim que Deus,
nosso rei supremo, dotou de livre arbtrio todas as criaturas
racionais, s quais Ele concedeu ser e existir; entretanto,
devemos lembrar que elas so diferentes umas das outras. Com
efeito, algumas mereceram ser amigas de Deus para todo o
sempre; outras so bons e fiis servidores; outras no passam
de maus servidores; outras se separaram inteiramente Dele; e
outras, enfim, tornaram-se inimigos declarados e, embora nada
possam contra Ele, no deixam de Lhe fazer uma guerra
sacrlega.

2. Ora, meu Pai, malgrado minhas poucas luzes, eu penso que


os amigos de Deus so as inteligncias sublimes e espirituais
que cercam seu trono eterno; que seus verdadeiros e fiis
amigos so aqueles que, com grande ardor e perfeita exatido,
cumprem sua santa Vontade em todas as coisas; que seus
servidores inteis so estas pessoas que, tendo sido
purificadas e santificadas pela graa do batismo, no
guardaram a promessa que lhe haviam feito, e violaram
indignamente a augusta aliana que haviam contratado com
Deus; que os que se separaram Dele, ou que caminham longe
Dele, so ou os herticos que corromperam a f, ou os infiis
que jamais a tiveram; enfim, que seus inimigos so pessoas
que no apenas se subtraram sua lei transgredindo-a com
insolncia, como ainda suscitam e exercem cruis perseguies
contra os que servem a Deus com amor e observam a santa lei
com inviolvel fidelidade.

3. Mas como seriam precisos muitos livros para dizer tudo o


que h para ser dito sobre estas diferentes espcies de
criaturas, e que um homem ignorante como eu seria incapaz de
tamanha empreita, creio ser melhor que, para obedecer aos
verdadeiros servidores de Deus, cuja amvel piedade uma
violncia para mim e cujo zelo e boa vontade me pressionam,
eu me limite e me detenha nas coisas que podem servir de
edificao s suas almas; que, por incapaz que eu me
considere, eu tome a penas em minhas mos e que, molhando-a
com simplicidade na humilde submisso a seus votos
declarados, eu possa, apesar de minha impotncia e
incapacidade, esperar e receber de minha obedincia algumas
graas e algumas luzes, a fim de que, traando sobre o papel
de admirvel brancura as regras de uma vida santa e pura,
possa tambm escrever em seus coraes bem preparados e
santamente purificados como quem escreve sobre misteriosos
cadernos vivos. desta maneira e com estas disposies que
irei comear.

4. Deus a vida e a salvao de todas as criaturas racionais


que Ele tirou do nada, quer elas creiam Nele, quer neguem sua
Existncia; quer sejam justas ou desonestas; quer pratiquem a
piedade ou se entreguem irreligiosidade; quer tenham se
libertado de suas paixes ou que sejam delas vis escravos;
quer tenham entrado para uma comunidade religiosa ou que
vivam no sculo; quer possuam a cincia ou vivam nas trevas
da ignorncia; quer desfrutem de boa sade ou definhem sobre
um leito de sofrimentos; quer estejam na flor da idade ou
tenham chegado velhice ltima. Todas essas pessoas esto
destinadas graa da salvao e dela podero usufruir, assim
como usufruem da efuso da luz, da vista e das benesses do
cu, da variedade das estaes e de todas as demais coisas
que existem e que foram feitas para elas; pois, diante de
Deus no existe favoritismo[1].

5. Ora, chamo de mpio aquele que, embora de natureza


mortal e tendo recebido a inteligncia, evita e foge de Deus,
que apesar de tudo sua vida; que no se ocupa de seu
Criador, como se ele no existisse. Insensato, ele diz em seu
corao: No existe Deus algum![2].

6. Chamo de desonesto aquele que corrompe e obscurece a lei


de Deus, interpretando conforme seu prprio esprito, e que,
mesmo seguindo sua opinio errada e s vezes at hertica,
prefere sua prpria autoridade quela de Deus, s suas luzes
a as do Esprito Santo.

7. Chamo de cristo o fiel que, na medida de suas foras,


coloca em suas palavras, suas aes e toda sua conduta
caminhar sob os estandartes de Jesus Cristo, e que, por meio
de uma f pura, sincera e ardente, por uma vida santa e uma
inflamada caridade, devota-se inteiramente Santssima
Trindade.

8. Chamo de amigo de Deus aquele que, de acordo com as


regras de justia e de temperana, se utiliza das coisas que
recebeu de Deus na ordem da natureza, e que no negligencia
nenhuma boa obra que possa fazer.

9. Chamo de homem casto aquele que, em meio s tentaes,


armadilhas e agitaes, toma precaues to sbias, que segue
em sua conduta as normas daqueles que esto fora de perigo.

10. Chamo de monge aquele que, num corpo terrestre e


corrupto, se esfora, como se estivesse livre deste corpo,
por imitar o estado e a vida das inteligncias celestes.

11. Chamo de monge ao homem que, em todos os tempos, em


todo lugar e em todas as coisas, segue exatamente a lei do
Senhor e se conforma perfeitamente com sua santa vontade.

12. Chamo de monge ao homem que, violentando sua natureza,


no cessa de vigiar seus sentidos e doma seus apetites
desregrados.

13. Chamo de monge ao homem que conserva seu corpo com


santidade, sua lngua com pureza, e que orna seu esprito com
as luzes do Esprito Santo.

14. Chamo de monge ao homem que, dia e noite, detesta e


chora seus pecados, e no perde de vista o salutar pensamento
da morte.

15. E por renncia ao mundo eu entendo a averso a tudo o


que os mundanos amam e louvam, ao abandono voluntrio dos
bens caducos e perecveis, no desejo e na esperana de obter
e de possuir os bens sobrenaturais.

16. Trs motivos principais levam a fazer generosa e


prontamente o sacrifcio das comodidades e dos prazeres da
vida presente: um violento desejo de merecer o reino dos
cus; um amargo e sincero arrependimento das enormes e
numerosas faltas cometidas; um ardente amor a Deus. Ora,
podemos assegurar que uma pessoa que tenha renunciado ao
mundo sem ter algum dos trs motivos de que falamos o fez sem
prudncia e sem reflexo; mas Deus, que a prpria Bondade e
o soberano remunerador dos que agem e combatem por Sua
glria, presta menos ateno aos motivos que primeiro nos
levaram a entrar na carreira da virtude do que ao resultado a
que chegamos afinal.

17. Assim, que aquele que entra para a vida religiosa com a
inteno de chorar e gemer por seus pecados imite as pessoas
que saem das cidades para ir a sentar-se e chorar sobre o
tmulo de seus prximos. Que ele no deixe jamais secar a
fonte de suas lgrimas amargas, nem fraquejar o fervor de seu
arrependimento, e que arranque sem cessar de seu corao
despedaado longos gemidos e profundos suspiros, a fim de
merecer ver a Jesus Cristo vir a ele para, desde o alto,
aliviar da funesta pedra do endurecimento seu corao e
escutar a este divino Salvador ordenar aos anjos que o
libertem das amarras que o mantinham sob o jugo de Satans;
para que, liberto das perturbaes e dos reproches de uma
conscincia justamente alarmada, ele alcance esta paz
preciosa que traz a verdadeira felicidade. Ora, se ele agir
de outra forma, que vantagem extrair de sua renncia ao
mundo?

18. Mas lembremos aqui que, se realmente quisermos sair do


Egito e nos livrarmos da servido ao Fara, precisaremos,
assim como o povo judeu, de um Moiss que seja nosso mediador
diante de Deus, que estenda com fervor as mos suplicantes
para o cu enquanto estivermos em combate, para conseguir
para ns as foras e a coragem necessrias, e para nos
conduzir de tal modo que possamos atravessar com sucesso o
mar Vermelho de nossos pecados, e colocar em fuga ao Amalec
de nossas paixes tirnicas[3]. apenas por uma deplorvel e
funesta iluso que alguns, cheios de confiana em sua
prprias luzes, acreditam poder dispensar um condutor para
lhes mostrar o caminho da vida espiritual e gui-los por ele.

19. Os filhos de Jac tiveram a Moiss para faz-los sair da


terra do Egito; a famlia de Lot teve um anjo para sair de
Gomorra. Os que fugiram do Egito representam os pecadores
que, para curar suas almas e purifica-las dos pecados,
necessitam dos cuidados e das luzes dos mdicos espirituais.
Os que fugiram de Sodoma so a imagem das pessoas que desejam
se ver livres das tendncias de seus corpos miserveis; por
isso que elas precisam de um anjo para socorr-las, ou ao
menos de um homem que, por assim dizer, no seja inferior a
um anjo; pois, pela grandeza e a corrupo das chagas que
possuem, necessitam de um cirurgio e um mdico que sejam
dotados de uma cincia e uma experincia pouco comuns.
20. Mas certamente s devemos tomar como testemunhos aqueles
que, possuindo um corpo de pecado, decidiram-se por subir aos
cus e se obrigaram s maiores violncias para consigo mesmos
e aos maiores esforos, devotando-se generosamente
mortificao mais austera e aos trabalhos mais difceis,
sobretudo no comeo de sua converso, at que o amor pelos
prazeres a que estavam acostumados, que a preguia na qual
esmoreciam e que a insensibilidade de seus coraes em
relao virtude se transformaram, por meio de uma
penitncia proporcional, num ardente amor por Deus e pelas
boas obras, e uma perfeita santidade.

21. Sim, repito, eles tiveram que suportar muitos trabalhos,


engolir muitas aflies, principalmente aqueles que tiveram a
infelicidade de ter vivido sem jamais pensar em sua salvao,
se quisessem que seu corao, depois de se assemelhar aos dos
ces que s pensam em comer e ganir, possa atingir a
simplicidade, a doura, a pacincia, o zelo, o fervor, a
temperana, a pureza e o amor pela salvao eterna. Porm,
por mais que sejamos dependentes de nossas tendncias, por
mais graves que sejam as enfermidades de nossas almas, no
percamos a coragem; ao contrrio, coloquemos nossa confiana
em Deus, plena e inteiramente. Assim, mesmo quando nos
sintamos fracos, sustentados pela firmeza de uma f
inquebrantvel, apresentemo-nos diante de Cristo, e, como
grande simplicidade e profunda humildade, exponhamos a ele
nossa fraqueza e nossas misrias, o abatimento de nossas
almas e de nossos corpos; e, por indignos que sejamos, ele
nos estender a mo com bondade, e nos tomar sob sua
poderosa proteo com terna caridade.

22. Que todos os que querem entrar para esta carreira que
bela, mas incmoda, que rude e estreita, mas adoada e
alargada pela graa de Deus, precipitem-se com coragem no
meio das chamas das mortificaes e dos trabalhos
espirituais, se for o amor de Deus que os inflama e anima.
Mas que cada um experimente a si mesmo previamente, e somente
depois coma o po da vida religiosa com suas alfaces amargas,
e beba esta bebida misturada com suas lgrimas; e que ele
tome cuidado para que seu engajamento na milcia santa no se
torne sua condenao. fcil ver as razes pelas quais nem
todos os batizados alcanam a salvao; no direi mais nada.
23. Querer servir a Deus sria e eficazmente por maio da vida
religiosa equivale a dizer adeus a tudo, a desprezar tudo,
rejeitar tudo e a tudo pisotear. Este o nico fundamento
slido do edifcio espiritual. E este fundamento no ser
slido seno na medida em que o edifcio que se erguer acima
dele for sustentado por trs colunas: a inocncia, a
mortificao e a temperana. pela prtica destas trs
virtudes que devem comear aqueles que pretendem se tornar
crianas em Cristo, pois as crianas sero seus modelos:
nelas no vemos nem hipocrisia, nem malcia, nem duplicidade;
elas no se atiram sobre os alimentos com avidez insacivel;
em seus corpos inocentes a cupidez no se faz sentir com seus
ardores culposos; apenas quando crescem em idade e j no
moderam o comer e o beber, que ficam sujeitas aos movimentos
desregrados do corpo.

24. Um atleta que entra na arena sem fora e sem coragem


atrai o desprezo e a averso dos espectadores e se expe a
uma derrota iminente; todos consideram que sua perda certa.
-nos, portanto, importantssimo e necessrio comear nossa
carreira religiosa com coragem, zelo e fervor, mesmo que
depois de um tempo relaxemos um pouco. Com efeito, nossa
alma, que durante um tempo se viu cheia de coragem e de
ardor, e que se v agora dbil e languescente, encontra nesta
comparao um verdadeiro aguilho a excit-la. assim que
muitos se reanimaram e reaqueceram-se na piedade.

25. Mas todas as vezes que uma alma falta contra si mesma e
percebe que j no possui o santo fervor da devoo, ela deve
se apressar em buscar a miservel causa disto, e ento fazer
todos os esforos para destru-la; ela deve estar totalmente
convencida de que o meio de restabelecer o fervor faz-la
sair pela porta pela qual entrou, expulsando-a.

26. Parece-me que podemos comparar o homem que s obedece


pelo temor aos perfumes que queimamos: primeiro eles espalham
um odor agradvel, mas depois s resta uma fumaa fatigante.
Aquele que se submete por motivo de recompensa, podemos
compar-lo roda do moinho, que s gira de uma maneira. Mas
os que, por afeio e por amor a Deus, abandonam o mundo para
abraar os estreitos caminhos da vida religiosa se veem logo
abrasados pelo sagrado fogo da caridade; e, assim como o
furor e a atividade do fogo natural aumentam na medida em que
ele penetra na floresta em que se iniciou, tambm a chama do
amor divino se estende nos seus coraes na mesma medida,
produzindo um incndio feliz.

27. Mas prestem ateno, porque so trs os tipos de


trabalhadores que erguem o edifcio espiritual de sua
salvao: uns trabalham colocando tijolos, depois de terem
usado pedras nas fundaes; outros erguem colunas sobre a
terra; e outros enfim, vendo-se no local onde devem
trabalhar, comeam a correr com espantoso mpeto e, uma vez
aquecidos, j no sentem a si mesmos nem so mais donos de
si. Quem tiver inteligncia entenda este discurso alegrico.

28. Ora, como Deus nosso rei supremo, que nos chama a seu
servio, corramos com todas as nossas foras para atendermos
ao seu apelo, de medo que, tendo pouco tempo de vida, no nos
encontremos, na hora derradeira, miserveis e privados dos
mritos das boas obras; e que no pereamos nos horrores da
fome. Semelhantes aos soldados que se estudam para se tornar
agradveis ao seu general, no negligenciemos nada que possa
nos tornar agradveis a Deus; pois ele nos pede que, depois
de nos enrolarmos em seus estandartes, o sirvamos com fervor
e fidelidade.

29. Tenho vergonha de dizer, mas temamos ao menos o Senhor


como tememos a certos animais; j vi bandidos sobre quem o
temor a Deus no tinha nenhum poder, mas que, tendo partido a
cometer roubos se detiveram e voltaram de mos vazias sem
consumar o crime, apenas por terem ouvido latir os ces no
local para onde os conduzia sua desonestidade. Assim, aquilo
que o temor a Deus no pode fazer por eles, o medo dos ces
os obrigou.

30. Amemos a Deus do mesmo modo como costumamos gostar de


nossos amigos: j conheci a muitos que, tendo ofendido ao
Criador no experimentaram nenhum desconforto, mas que, tendo
fatigado seus amigos ficaram desolados, empregaram mil
maneiras e mil artimanhas para expressar seu arrependimento,
no temendo nem humilhaes nem sacrifcios para acalm-los,
e, seja por si mesmos, seja por amigos comuns, ofereceram
grandes e penosas satisfaes para obter a reconciliao,
acrescentando a todos estes meios ricos presentes, a fim de
poderem voltar antiga amizade.

31. No seno com muitas penas e esforos que podemos


praticar a virtude no comeo de nossa converso; mas logo que
fazemos algum progresso avanamos quase sem dificuldade; e, a
partir do momento em que temos a felicidade de nos tornarmos
mestres dos sentidos de nossos corpos, submetendo-os nossa
conscincia, ah!, ento com ardor, alegria, prazer e bom
humor que nos dedicamos prtica das boas obras; ficamos
abrasados pelo fogo sagrado da caridade.

32. assim que devemos tanto louvar aqueles que, desde o


princpio de sua consagrao a Deus, fazem todos os esforos
para cumprir exatamente e com alegria a santa lei do Senhor,
como devemos condenar aos que, depois de passar anos inteiros
a servio de Deus, no praticam a virtude seno com
dificuldade e repugnncia.

33. Mas no temamos nem condenemos as pessoas que se


entregaram a Deus por algum acidente curioso que as tenha
forado a isto; pois j conheci alguns que, enquanto faziam
todos os esforos para no encontrar seu Rei Supremo, Jesus
Cristo, o encontraram contra a vontade e foram envolvidos a
contragosto em seus adorveis estandartes, entrando em seu
palcio e assentando-se sua mesa. Tambm vi a semente da
graa, cada por assim dizer sem destino e ao acaso nos
coraes, produzindo a uma colheita abundante de excelentes
virtudes. Foi assim que uma pessoa que conheci, mesmo tendo
ido a uma escola de medicina espiritual por razes estranhas
sua conscincia, caiu alegremente nas mos de um mdico que
bem soube prende-la, que lhe falou com afetuosa benevolncia,
a tal ponto que ela se converteu e abriu seus olhos luz.
Assim, acontece muitas vezes que uma converso que parecia
no ter acontecido seno por acaso se tornar mais slida e
constante que uma outra ocorrida com propsito deliberado.

34. Que ningum, por considerar a enormidade e o nmero de


suas faltas, encontre nisto uma razo ou um pretexto para se
crer incapaz de se converter e de abraar a vida religiosa;
pois para se temer que este julgar-se indigno esconda um
desejo de no renunciar aos prazeres de que desfrutava, de
no deixar a preguia que o mantinha cativo, e que deste se
possa dizer: Eles procuram desculpas para seus pecados[4].
No assim? Meu Deus, no justamente quando existe mais
pus e podrido numa ferida que se necessita de um mdico
hbil e experiente, e no foi nosso divino Salvador quem
disse que no so os saudveis que precisam de mdico?
35. Quando um grande rei, pretendendo empreender uma
expedio importante, nos chama sua presena e nos declara
que intenta servir-se de ns, ah!, obedecemos prontamente,
no usamos de nenhum subterfgio, no alegamos nenhum
pretexto; mas, abandonando tudo, apressamo-nos em nos
apresentar diante dele para receber e executar suas ordens.
Ora, ser com o mesmo zelo e a mesma diligncia que
respondemos voz do Rei do s reis, do Senhor dos senhores e
do Deus dos deuses, que nos chama e quer n os envolver sob os
estandartes de sua milcia celeste, fazendo-nos entrar nos
caminhos da vida religiosa? No de temer que nossa preguia
e nossa negligncia em responder a seu apelo nos coloque sem
escusa e sem defesa quando formos citados para comparecer
diante de seu temvel tribunal?

36. No podemos negar que aquele que se acha ligado por


cadeias de ferro devido aos cuidados e embaraos da vida
mundana no capaz de caminhar com facilidade pelas vias da
salvao e, se caminha, o faz com grande dificuldade. Eles se
parecem com estes infelizes que esto sob o peso de
correntes, ou em cujos ps foram colocadas pesadas travas: a
cada momento, tentando caminhar, eles caem e se ferem
cruelmente. por isso que eu comparo o homem que, no sendo
casado, permanece na vida secular s para cuidar dos assuntos
temporais, a algum que tem algemas nas mos, pois, se ele
quiser, poder abraar a vida religiosa, enquanto que comparo
o homem casado a algum que tem as mos e os ps
acorrentados.

37. Um dia, encontrei algumas pessoas que viviam no


esquecimento de sua salvao; eles me perguntaram: Como nos
ser possvel pensar na vida religiosa e solitria, ns que
somos obrigados a viver com nossas esposas e que somos
oprimidos sob o peso de nossos assuntos temporais?. Eu me
contentei com lhes responder: No deixem de fazer todas as
boas obras que puderem; fujam da mentira com horror; que o
orgulho no os faa desprezar a ningum; no tenham raiva de
ningum; assistam regularmente aos ofcios da Igreja; sejam
caritativos e benevolentes para com os pobres; jamais
escandalizem seus irmos; respeitem a mulher do prximo, e
que cada um se contente com sua esposa. Se vocs agirem e
viverem assim, vocs no estaro longe do Reino dos cus.
38. Corramos com uma alegria mesclada de temor ao combate
para o qual Deus nos chama. aos demnios que devemos fazer
a guerra; no tenhamos medo deles, pois, ainda que no os
possamos ver, eles nos conhecem e penetram no fundo de nossas
almas; e se eles a encontrarem perturbada e medrosa, no
acharo que nos damos por vencidos? No se precipitaro sobre
ns terrivelmente encarniados, a fim de nos tornar seus
miserveis escravos? Ora, como conhecemos suas armadilhas,
armemo-nos contra eles com coragem; pois quando algum v uma
armada composta por soldados valentes e corajosos, ansiosos
por se medir com o inimigo, hesita em se lanar luta.

39. De resto, Deus, em sua Sabedoria e Bondade infinitas,


cuida em especial daqueles que no tem outra coisa a fazer do
que se engajar a seu servio: Ele mesmo adoa suas penas e
seus trabalhos, a fim de que o primeiro choque e o primeiro
assalto que eles tenham que sustentar no sejam demasiado
violentos e os levem a retornar para o sculo. Generosos
servidores de Deus, esta certeza no os enche de alegria e
felicidade? No encontram vocs, nesta admirvel conduta do
Senhor, uma prova incontestvel de sua afeio e sua ternura
por vocs, e um testemunho seguro de que foi Ele quem os fez
entrar neste gnero de vida?

40. Entretanto, j observamos que muitas vezes, encontrando


Deus coraes fortes e generosos, Ele costuma entrega-los, j
no comeo de sua converso, a combates rudes e violentos; mas
para poder lhes dar logo a seguir a coroa e a recompensa de
uma vida feliz e cheia de mritos.

41. Mas tambm, por uma providncia paternal, pode acontecer


que Deus esconda daqueles que ainda esto no mundo as penas e
as dificuldades encontradas na vida religiosa, no os
deixando entrever seno os modos fceis da santificao; pois
ele sabe que, se fossem conhecidos os penosos trabalhos que
se dever suportar, no haveria quem se engajasse.

42. Assim, consagrem a Cristo a flor de sua juventude, e


trabalhem para sua Glria com zelo ardente; e, numa idade
avanada, a lembrana de suas boas obras os inundar de
deliciosa alegria, pois aquilo que ajuntamos e recolhemos na
juventude, nutre e consola nas fraquezas e langores da
velhice. Enquanto estamos cheios de fora e sade,
trabalhemos com nobre ardor, e percorramos a carreira
religiosa com sabedoria e prudncia; pois a morte incerta,
e teremos que nos haver como inimigos desonestos, cruis,
poderosos, vigilantes, incorpreos, invisveis, e sempre
armados com tochas incendirias para reduzir a cinzas os
templos vivos do Senhor.

43. Que sobretudo os jovens evitem escutar a voz destes


espritos ciumentos e mentirosos; pois eles lhes sugeriro
sem cessar de no submeter a carne a tantos rigores, a fim de
evitar as doenas e enfermidades que eles inventam: Ser
possvel encontrar, e sobretudo neste sculo em que vivemos,
ser possvel encontrar algum que, por meio de imoderadas
mortificaes, haja triunfado sobre seu corpo, matando suas
paixes, privando-se de coisas necessrias? No basta se
abster da intemperana, e se proibir os alimentos
sofisticados? Esta a linguagem insidiosa dos demnios. Mas
no evidente que sua inteno, falando-nos assim, de nos
desencorajar e nos tornar tmidos, preguiosos e negligentes
desde nossa entrada ao servio de Deus, a fim de que
estejamos to pobres e miserveis no final da carreira quanto
no comeo?

44. Antes de tudo, de extrema importncia para os que


querem servir a Deus com ardor e fidelidade, que procurem e
encontrem, seja pela prudncia e a sabedoria de alguns padres
experientes, seja pelas luzes e o testemunho de sua prpria
conscincia, os lugares, o tipo de vida, a moradia e os
exerccios que lhes sejam mais convenientes e apropriados;
pois eu creio que os que amam as delcias no so feitos para
a vida em comunidade, e os que tem um humor irascvel no
devem abraar a vida solitria. Cada qual deve examinar
diante de Deus o tipo de vida que melhor lhe convm.

45. Eu penso que todas as formas de vida religiosa se reduzem


s seguintes trs: a primeira consiste em viver em perfeita
solido; a segunda, em viver no deserto, mas com mais um ou
dois monges; a terceira, em viver em comunidade. Mas em tudo
devemos observar este conselho que nos d Salomo: No v
nem direita nem esquerda[5]: siga com perseverana o
caminho real de Jesus Cristo. O segundo tipo de vida
religiosa parece convir a muitos; o mesmo Salomo nos diz:
Infeliz do que s, porque se ele cair ningum o ajudar a
que se levante[6]. Que acontecer ento ao monge que,
estando s, tiver a infelicidade de se aborrecer, de
adormecer, de se tornar preguioso ou chegar ao desespero?
Ser melhor lembrar as boas palavras de nosso Senhor: Quando
dois ou trs estiverem reunidos em meu Nome, Eu me
encontrarei no meio deles[7].

46. Portanto, quem ser o monge fiel e prudente? Eu respondo


sem hesitar que aquele que conservou com perseverana o
fervor de sua entrada na religio, e que, at o final de sua
carreira, no cessou de ajuntar chama sobre chama, fervor
sobre fervor, precauo sobre precauo, desejo sobre desejo.
Portanto, vocs que subiram este primeiro degrau, no olhem
para trs.
SEGUNDO DEGRAU

Da necessidade de se despojar das afeies e dos cuidados com


as coisas do mundo.

1. Quem ama a Deus com todo seu corao, que deseja


ardentemente o Reino dos cus, que trabalha com coragem para
se purificar das faltas que cometeu e para se corrigir dos
maus hbitos adquiridos, que no perde jamais de vista o
juzo final e os suplcios eternos, que alimenta em sua alma
o pensamento e o temor da morte, este no tem mais amor nem
inclinao pelo dinheiro e as riquezas, por seus parentes ou
pela glria do mundo, por seus irmos e amigos, enfim, por
todas as coisas frgeis e perecveis; ele expulsou de seu
corao todo sentimento, toda ligao e todo cuidado; ele
odeia sua prpria carne, e, num estado de perfeita nudez, ele
estuda por seguir a Cristo com indizvel ardor; ele no
suspira seno pela felicidade do cu, e apenas de Deus que
ele espera todo o socorro necessrio para alcan-la. Ele diz
com Davi: Minha alma s est ligada a voc, meu Deus[8];
e com o ilustre profeta: Eu no canso de segui-lo, Senhor;
eu no busquei o julgamento dos homens nem suas
consolaes[9].

2. Mas certamente seria uma vergonha para ns se, depois de


havermos abandonado todas as coisas de que falamos, depois de
nos termos devotado, no a seguir um homem, mas a servir ao
Senhor que nos envolveu em seus estandartes, ainda nos
divertssemos buscando objetos incapazes de nos trazer o
menor alvio para a extrema necessidade em que nos veremos na
hora da morte. Comportarmo-nos assim no equivale a violar o
preceito de Jesus Cristo que nos probe de olhar para trs?
No o mesmo que nos declararmos ineptos para o Reino de
Deus?

3. Para nos evitar esta infelicidade, nosso divino Salvador,


que conhece bem at que ponto nossa fragilidade nos expe
inconstncia e o quanto fcil para nosso corao se voltar
para as coisas da terra a que havamos renunciado basta
conversarmos ou termos qualquer relao com as pessoas do
mundo , para nos evitar esta infelicidade Ele nos dirigiu
estas palavras memorveis, ditas ao jovem que pediu permisso
para enterrar seu pai antes de segui-lo: Deixe que os mortos
enterrem seus mortos[10].
4. Lembremo-nos que os demnios, depois que renunciamos s
coisas do sculo, procuram nos fazer crer que s so felizes
os que, no mundo, fazem o bem aos indigentes, e que somos
infelizes na vida religiosa, porque no temos esta
facilidade. Ora, o que os inimigos de nossa salvao se
propem com esta tentao, nos levar a voltar para o
sculo, ou nos atirar ao desespero se perseverarmos em viver
retirados.

5. Na vida religiosa, encontramos pessoas que, por orgulho,


desprezam as pessoas que vivem no mundo, e se colocam acima
delas. Vemos tambm que eles as desprezam com o nico
objetivo de sufocar em si prprios pensamentos de
desencorajamento que os assaltam, e de se fortalecer na
esperana e na confiana em Deus.

6. Portanto, escutemos com especial ateno o conselho que


nosso Senhor deu um dia ao jovem que at ento bem observara
a lei de Deus: S lhe falta uma coisa, que vender todos os
seus bens, dar o dinheiro aos pobres e seguir-me[11], a fim
de que, fazendo-se voluntariamente pobre, voc seja obrigado
a recorrer caridade dos outros.

7. Ns, que resolvemos seguir nosso curso com ardor e


prontido, estejamos atentos condenao que o Senhor
levantou contra os que vivem em mosteiros, e que, vivos,
esto como mortos, quando Ele disse: Deixe os que esto no
mundo e que esto mortos, que enterrem os que esto
corporalmente mortos[12].

8. Mas as riquezas que aquele jovem rico possua no foram


obstculo para que ele recebesse o batismo; por isso que
ns pensamos que se enganam os que dizem que o Senhor lhe
ordenara vender tudo o que tinha para ento receber o
batismo. Na verdade, o divino Salvador quis com isto nos
fazer compreender que exigia mais dele para leva-lo ao estado
de perfeio que lhe propor, do que para admiti-lo a receber
o batismo. Esta prova deve nos convencer da excelncia de
nossa profisso.

9. Podemos aqui examinar porque certas pessoas que, enquanto


viviam no mundo se entregavam a penosas viglias, jejuns
rigorosos, trabalhos fatigantes e toda sorte de
mortificaes, chegadas vida solitria abandonaram estas
prticas de piedade por as verem como falsas e ms.

10. que a vida religiosa permite distinguir as verdadeiras


virtudes das que no passam de virtudes hipcritas,
mostrando-nos a carreira na qual podemos correr e combater
com sucesso e benefcios reais; pois estou quase afirmando
que a maior parte das boas obras praticadas por quem vive no
sculo so plantas regadas com a gua gasosa e infecta da
vanglria, cultivadas e nutridas em meio ostentao, os
aplausos e os louvores; uma vez transplantadas para a solido
dos anacoretas, inacessveis aos olhares das pessoas do
mundo, e no mais encontrando a umidade mundana da gua
corrompida da vanglria, essas pretensas boas obras, essas
falsas virtudes, no tardam em perecer; pois essas plantas,
nascidas em terra mida, no podem prosperar num terreno seco
e rido, privado de todos os louvores humanos, como o so as
santas escolas da solido e dos desertos.

11. Aquele que odeia o esprito do mundo se livra alegremente


de tudo o que pode lhe causar penas e aflies; mas quem se
deixa conduzir por este esprito e conserva ainda a feio
pelas coisas da terra no est certamente isento de tristeza
e aborrecimento. Como poder este, sem penas, se ver privado
das coisas que ama?

12. Ah! Se em todas as coisas devemos ter muita prudncia e


circunspeco, aqui mais do que em tudo devemos ser sbios e
discretos; pois no raro ver um grande nmero de pessoas
que, mesmo agitadas no mundo por cuidados e inquietaes,
sobrecarregadas de afazeres e de ocupaes, enfraquecidas
pelas viglias profanas, conseguiram se preservar da loucura
e do contgio dos prazeres carnais, mas que caram vtimas da
mais vergonhosa paixo assim que entraram para o repouso e a
tranquilidade da vida religiosa, ou para o silncio da
solido.

13. Tomemos especial cuidado para evitar que, pensando e


dizendo estarmos caminhando pela via estreita e difcil,
estejamos na verdade marchando pela via larga e espaosa.
Ora, os sinais que nos permitem reconhecer que estamos no
caminho que conduz ao cu so a mortificao no comer, as
viglias, a privao at de gua para beber e de po para
comer, o amor s humilhaes, a pacincia nas injrias, nas
zombarias e nos ultrajes, a renncia s prprias vontades, a
mansido nas reprovaes e nas afrontas, o silncio da boca e
do corao quando nos desprezam, a perfeita tranquilidade em
meios aos piores tratamentos, a coragem constante em suportar
com bondade aos que nos fazem injustias, que nos difamam com
maledicncias, que nos cobrem de ignomnias e nos condenam
injustamente. Felizes os que, depois de entrarem na vida
religiosa, seguem esta via! Pois o Reino dos cus lhes
pertence[13].

14. Ningum ser recebido na sala nupcial do Paraso para a


receber a coroa da imortalidade se no tiver praticado as
trs renncias de que falei: primeiramente, se no tiver dito
adeus a todas as coisas, a seus parentes e amigos e a todo o
mundo; depois, se no renunciar sua prpria vontade; e em
terceiro lugar, se no imolar a vanglria que costumamos
buscar at mesmo nos deveres da obedincia.

15. Foi com esta finalidade que o Senhor nos mandou dizer por
seu profeta: Saiam do meio deles, mantenham-se separados,
no se sujem com as impurezas do mundo[14]. Ser possvel
encontrar dentre os mundanos algum que tenha feito coisas
dignas de ser admiradas, que tenha devolvido a vida aos
mortos ou expulsado os demnios? Procuraramos em vo. Estas
maravilhas normalmente so recompensas que Deus concede aos
que esto inteiramente a seu servio; os mundanos no so
susceptveis disto, e se pudessem aspirar a tanto, de que
adiantaria deixar o mundo e se consagrar aos penosos
trabalhos de uma vida religiosa?

16. Se, depois de deixarmos o mundo, os demnios nos


perturbam e nos tentam comas lembranas dolorosas e ternas de
nossos pais e mes, de nossos irmos e irms, saibamos
recorrer s santas armas da orao, ao pensamento das chamas
eternas, a fim de que a lembrana destas chamas terrveis
extinga em ns o fogo por meio do qual os demnios querem
reduzir a cinzas nossas generosas resolues.

17. Lembremos aqui que aquele que se cr independente de tudo


e que renunciou a tudo vive uma funesta iluso, se ainda
experimentar um sentimento de tristeza por no possuir aquilo
que deseja.

18. As pessoas que, em sua juventude, tiveram a infelicidade


de se deixar levar pelo amor e pela fruio dos prazeres
carnais, mas que apesar disso formaram o desejo e tomaram a
resoluo de entrar para uma comunidade religiosa, devem se
dedicar com o maior cuidado s regras austeras da sobriedade
e da temperana, se entregar inteiramente aos sagrados
exerccios da orao, recusar severamente a seus corpos todo
prazer e tudo o que possa lhe trazer bem-estar e alegria,
abster-se de toda espcie de desregramentos e sensualidades,
no temor que seu ltimo estado no se torne pior do que o
primeiro[15]. Pois a religio um porto no qual encontramos
a salvao; mas nele tambm podemos encontrar o naufrgio, e
os que j viajaram por este mar espiritual podem atestar esta
verdade. um triste espetculo ver pessoas que, depois de
atravessar o mar raivoso do mundo, vm naufragar
miseravelmente e perecer no porto. Este o segundo degrau;
se voc subir nele, que em sua fuga imite a Lot, no sua
esposa.
TERCEIRO DEGRAU

Da fuga do mundo.

1. A retirada, ou a fuga do mundo, consiste numa renncia


eterna a tudo o que pode se opor aos desgnios de piedade que
criamos; trata-se de uma mudana feliz de hbitos e de
conduta, uma sabedoria desconhecida, uma prudncia que foge
com horror dos olhares dos homens, uma vida oculta, um fim e
um objetivo interior e secreto, uma meditao doce e
tranquila, um zelo para com o desprezo e as humilhaes, um
desejo ardente por austeridades e sofrimentos, um fundamento
slido de afeio e amor a Deus, uma fonte fecunda de
caridade, uma renncia perfeita vanglria e um profundo
silncio.

2. Abandonar e deixar seus prximos e aquilo que eles possuem


no mundo, eis o projeto que no mais das vezes com mais
violncia agita aqueles que, desde o comeo de sua converso,
se ligam fortemente a Deus e ficam como que abrasados por um
fogo inteiramente celeste. Ora, o que os leva a este piedoso
desgnio, seus novos amantes de beleza nobre e excelente, o
desejo de se devotar a todo tipo de humilhaes e a toda
espcie de penas e de sofrimentos. Mas quanto mais esta
resoluo generosa e louvvel, mais necessria prudncia
e discernimento para cumpri-la; pois eu estou longe de dar
minha aprovao a qualquer retirada feita com a maior
coragem.

3. Com efeito, se nosso divino Salvador nos assegura que


ningum bom profeta em seu prprio pas[16], para nos
advertir a que tomemos cuidado com que, renunciando nossa
ptria, no o faamos apenas para reencontr-la na vanglria
com que nos propusemos fugir ao mundo; pois a fuga do mundo
no outra coisa que uma separao franca e verdadeira de
todas as coisas da terra, de modo a que nossa alma esteja
invariavelmente unida a Deus sem mais separar-se dele.
Essencialmente, ela deve produzir em ns a dor e o
arrependimento por nossas faltas. Aquele que se separou do
sculo algum que renunciou a toda afeio carnal pelos
seus e pelas coisas que so estranhas ao seu novo estado.

4. A vocs que pensam em sair do mundo, eu lhes peo que,


para faz-lo, no esperem que seus amigos tenham se
desembaraado de seus negcios: temam a morte que poder
surpreend-los antes de que tenham cumprido seu desgnio.
Pois muitos se enganaram! Eles queriam salvar a outros,
preguiosos e negligentes; mas ao esper-los, deu-se que o
fogo do amor divino que os abrasava extinguiu-se pouco a
pouco em seus coraes, e eles pereceram miseravelmente junto
com aqueles a quem pretendiam salvar. Ora, se vocs sentem em
si os ardores celestes do amor divino, e no sabem quando ele
poder desaparecer deixando-os em meio s trevas, caminhem e
corram para onde Deus os chama, lembrando que o Apstolo nos
advertiu de que no estamos encarregados da salvao de
nossos irmos: Irmos, cada qual prestar contas de si mesmo
a Deus[17]; e ele acrescenta em outra parte: Como? Vocs
querem ensinar a outras pessoas sem que tenham instrudo a si
mesmos?[18]. como se ele dissesse: no que se refere aos
outros, eu nada sei; mas n o que toca a cada um de ns em
particular, sei bem que estamos obrigados a nos conhecer e
nos salvar.

5. Vocs que empreendem a viagem que ir faz-los sair do


mundo, vigiem a si prprios com o maior cuidado; pois o
demnio tentar torna-los inconstantes e sensuais, e sua
prpria retirada fornecer a ele os meios e as ocasies.

6. Existe o maior mrito diante de Deus em se despojar de


toda afeio pelas coisas da terra, e a fuga do mundo que
nos coloca neste estado feliz.

7. por isso que quem, por amor ao Senhor, deixou o mundo,


no deve mais ser animado seno pelo desejo de agradar a este
divino Salvador; de outro modo, ele seguiria ainda cegamente
as afeies e as paixes de seu corao.

8. Vocs que disseram adeus ao mundo deixem de se misturar


aos afazeres do mundo; lembrem-se de que os desejos que vocs
sufocaram no corao tentam novamente se estabelecer ali.

9. Foi pela fora e contra sua vontade que Eva foi expulsa do
Paraso terrestre; mas por um ato de sua prpria vontade
que um monge deixa seu pas para encerrar-se num lugar
distante. Se Eva ainda tivesse permanecido no delicioso
jardim onde tinha sido colocada ela no teria deixado de
desejar comer o fruto que a levara primeira desobedincia;
e o monge, permanecendo no mundo, encontraria inmeros
perigos de se perder no meio de seus parentes e de seus
amigos.

10. Evitem as ocasies de cair e de pecar, no mnimo com o


mesmo cuidado com que evitariam uma pena ou um grave suplcio
que algum lhes quisesse infligir. Os frutos que no vemos
no nos expem tentao e ao desejo de com-los como
aqueles que vemos.

11. Conheam bem as armadilhas e os artifcios que os


espritos tenebrosos do inferno utilizam para nos derrubar;
eles procuram nos fazer crer que no devemos nos retirar nem
dos embaraos do sculo nem do meio dos irmos, porque
fazendo-o estaremos perdendo uma grande recompensa e uma
grande glria; eles nos dizem interiormente, que mrito no
ter uma pessoa que triunfar sobre si mesma reprimindo os
fogos impuros quando encontra alguma beleza terrestre?. Ah!
Cuidemos de no ouvi-los em circunstncias anlogas; faamos
o contrrio do que nos sugerem.

12. Assim, se depois de havermos abandonado nossos prximos e


nossa famlia, depois de termos passado alguns ou muitos anos
na vida monstica, depois de termos feito progressos na
piedade e na prtica da virtude, depois de havermos chorado
amargamente e reparado o tempo de vida que passamos no pecado
e no contentamento de nossas paixes, depois de termos
alegremente recebido os dons da castidade e da continncia,
se depois de tudo isto nos vier ao esprito pensamentos vos
e frvolos, como os de retornar ptria sob o pretexto
falacioso de edificar com nossa nova e virtuosa vida aqueles
a quem havamos escandalizado com nossa vida licenciosa e
desregrada, e, com nossa eloquncia, nosso saber e nossos
talentos, nos tornarmos os salvadores do povo, suas luzes,
seus doutores e condutores... Ah! Estejamos certos de que
isto no passa de uma armadilha que os demnios nos colocam:
eles querem que percamos em alto mar o tesouro que
conseguimos adquirir longe das tempestades em nosso porto.

13. Nesta ocasio, devemos imitar a Lot e no sua esposa;


pois quem quer que retorne ao lugar que deixou e s coisas
que abandonou se tornar como o sal inspido, e merecer
permanecer imvel como a mulher de Lot, que foi transformada
em esttua de sal.
14. Fuja para longe do Egito e no conserve sequer o
pensamento de retornar ali; pois os que voltaram para o Egito
em pensamentos e desejos perderam a paz e a tranquilidade da
Jerusalm celeste.

15. Mas aconteceu algumas vezes que pessoas que deixaram o


mundo para conservar sua influncia, depois de terem
fortificado solidamente sua virtude e purificado santamente
sua conscincia, voltaram ao mundo produzindo grandes
benesses e contribuindo poderosamente para a salvao de
outros, sem negligenciar a sua prpria. Assim foi que Moiss,
depois de ter contemplado no deserto a face de Deus, recebeu
a ordem de voltar para o Egito para salvar ali os de sua
nao, coisa que ele fez em meio aos maiores e mais iminentes
perigos e as mais profundas trevas.

16. Vale infinitamente mais descontentar a nossos pais do que


descontentar a Deus; pois ele o Mestre soberano de nossos
prximos, e foi ele quem nos criou e resgatou. De resto, no
raro que os pais causem a perda de seus filhos, mesmo os
amando, atirando-os aos suplcios eternos.

17. Dizemos que algum est verdadeiramente separado do mundo


quando j no fala nem compreende a linguagem do mundo.

18. Quando deixamos o mundo para abraar a vida solitria,


isto no devido ao dio que sentimos por nossos prximos
nem averso que sentimos por nossa ptria: to
horrvel crime est longe de ns. Quando deixamos o mundo
para abraar a vida solitria unicamente para evitar que
nos percamos eternamente.

19. Nisto como em todas as coisas ao Senhor que escutamos,


e cujas pegadas seguimos; pois sabemos que Ele mesmo
abandonou muitas vezes seus pais segundo a carne. Com efeito,
tendo um dia algum o advertido de que sua me e irmos o
procuravam, o divino Mestre, para nos mostrar que existem
ocasies nas quais devemos fugir santamente dos parentes deu
esta admirvel resposta: Minha me e meus irmos so aqueles
que cumprem a Vontade de meu Pai que est nos cus[19].

20. Reconheam como pai aquele que pode e quer alivi-los do


peso enorme dos seus pecados; e como me, a compuno do
corao, capaz de purifica-los de toda mancha; como irmos,
os que podem ajuda-los a obter os dons celestes, trabalhar e
combater com vocs; como esposa, unida indissoluvelmente a
vocs, o pensamento constante da morte; como nicos filhos
amados, os gemidos do corao; como escravos, seus sentidos e
sua carne; e como amigos, as legies celestes, que lhes
traro mais benefcios na hora da morte na medida em que
durante a vida vocs tenham tido o cuidado de manter sua
amizade. Este o santo parentesco dos que buscam
sinceramente ao Senhor[20].

21. Que o desejo do cu faa pronta e facilmente desaparecer


as afeies carnais que sentimos pelos prximos! um erro
grosseiro imaginar que possvel ao mesmo tempo amar a seus
parentes segundo a carne e amar o cu segundo Deus, porque
nosso divino Salvador emitiu esta sentena condenatria:
Ningum pode servir a dois mestres[21].

22. Em outra passagem, ele nos declarou positivamente no ter


vindo terra para trazer a paz, mas a guerra e a espada,
ou seja, que ele no veio trazer aos pais e irmos um amor
carnal por seus filhos e irmos que quisessem se consagrar a
seu servio, mas que ele veio para separar os que amam e
servem a Deus dos que amam e servem o mundo; os que esto
ligados terra dos que colocam sua ateno nos cus; os que
buscam o orgulho dos que s se sentem bem na humildade: pois
Ele ama esta diviso e separao espirituais.

23. Cuidado, eu repito, para que o afeto que vocs sentem


pelos prximos e pelas coisas da terra no os faa naufragar
em meio s guas de pecado de que o mundo est inundado. E se
vocs no quiserem chorar eternamente, no sejam sensveis s
lgrimas de seus pais e amigos.

24. Assim, se para det-los em seus piedosos desgnios eles


os cercarem como moscas ao redor do mel, ou melhor, como
marimbondos, e para faz-los desistir, eles se rasgarem em
lamentaes, coloquem prontamente em seus espritos o
pensamento da morte e os terrveis perigos a que vocs
estaro expostos, e, sem desviar sua ateno destes dois
objetos, comparem a pena que lhes propem seus prximos com a
que faro a si prprios expondo-se infelicidade eterna,
como quem fecha um buraco com outro buraco.

25. Estas pessoas que parecem ser devotadas aos nossos


interesses e que realmente no querem nos fazer mal nos
prometem montanhas de ouro e nos asseguram com zelo que s
faro coisas que nos sejam agradveis e teis. Mas todos
estes testemunhos so enganosos: tudo o que eles propem
que nos desviemos do caminho que nos conduzir felicidade
eterna, e nos levar a seguir suas prprias vontades.

26. Quando finalmente deixarmos o mundo, importante nos


retirarmos para lugares onde encontremos o mnimo de
consolaes humanas, o mnimo de ocasies de vanglria, onde
estivermos menos expostos funesta celebridade; de outro
modo nos pareceremos aos pssaros que mudam de ares: nosso
corao permaneceria o mesmo e nossas paixes continuariam a
imperar sobre ns.

27. ainda de muito proveito esconder o esplendor de seu


nascimento ou o brilho do seu nome, a fim de que sua vida e
suas aes no anunciem outra coisa que o amor a Deus e sua
salvao.

28. Dificilmente encontraremos algum que tenha abandonado


sua ptria e seus prximos com uma generosidade e uma
perfeio semelhantes s do santo patriarca Abrao. Mal ele
havia escutado as palavras de Deus: Deixe seu pas, seus
pais e o seio de sua famlia[22], e se ps a caminho, sem
hesitar, ainda que fosse para se colocar no meio de povos
brbaros cuja lngua ele ignorava.

29. Existem assim alguns a quem o Senhor cobriu de glria por


haverem imitado esta grande personagem, deixando
generosamente tudo o que possuam neste mundo. Entretanto eu
creio que, embora esta glria venha de Deus, devemos evit-
la, e no nos propormos a ela seno com um esprito de
humildade.

30. Quando os demnios, ou mesmo os homens, louvam nossa


retirada como sendo uma ao forte e generosa, para nos
fazer conceber um sentimento de orgulho. Expulsemos
imediatamente esta tentao, pensando que por amor a ns e
para nossa salvao o Filho de Deus se rebaixou a deixar os
esplendores eternos de sua Glria para vir habitar
humildemente sobre a terra; e saberemos que, ainda que
vivssemos toda uma eternidade, seramos incapazes de fazer
algo semelhante para lhe testemunhar nosso reconhecimento.
31. A afeio que conservamos interiormente por nossos
prximos, e mesmo pelos estranhos, pode se tornar funesta
para ns; ela nos levaria pouco a pouco a retornar para o
mundo, ou no mnimo poderia extinguir em ns o fervor da
piedade e da compuno.

32. Assim como impossvel mirar o cu com um olho e ao


mesmo tempo fixar o outro na terra, tambm impossvel a uma
pessoa que no se retirou do meio de seus prximos e de todas
as pessoas que lhe so caras segundo a carne, por uma
separao perfeita de esprito e de corpo, deixar de se expor
ao perigo evidente de uma perda espiritual.

33. Saibamos assim que s com muitas penas e trabalhos


conseguiremos reformar nossos hbitos e nossa conduta, e que
pode muito bem acontecer de perdermos num instante tudo o que
adquirimos com um trabalho longo e penoso; pois os discursos
vos e profanos, e sobretudo os maus, rapidamente corrompem
os bons hbitos[23].

34. Portanto, aquele que, tendo renunciado a tudo, no deixa


de seguir os costumes e frequentar as pessoas do mundo, cair
nas mesmas armadilhas que eles e manchar seu corao com o
pensamento de coisas profanas; ou, se no encher sua
conscincia de coisas mundanas, a encher com juzos
temerrios que far a respeito de quem achar que est sujo
por maus pensamentos. assim que, de um lado ou de outro,
ele no se preservar de pecar com os seculares. So sonhos
que costumam perturbar o sono de quem deixou o mundo.

35. Seria vo eu tentar esconder o quanto meu esprito


pouco sutil e penetrante, o quanto meus conhecimentos so
limitados e minha ignorncia profunda. Assim como o palato da
boca julga o gnero e a natureza dos alimentos, assim como os
delicados ouvidos dos auditores julgam a beleza dos
pensamentos do orador, assim como o brilho do sol nos faz ver
a fraqueza dos olhos, tambm minhas palavras ilustram minha
pouca capacidade; mas s vezes o amor nos leva a empreender
coisas que esto acima de nossas foras. Assim que eu
penso, sem ousar afirm-lo, que, depois de ter falado ou
melhor, falando da fuga do mundo convm dizer algumas
coisas a respeito dos sonhos, a fim de que se saiba que os
demnios se servem deles coo armadilhas para perder as almas.
36. Digo que o sonho no outra coisa do que um movimento e
uma agitao do esprito, enquanto os sentidos do corpo esto
em suspenso.

37. Uma viso imaginria uma iluso por meio da qual a


imaginao sozinha, sem poder julg-la, cr perceber certos
objetos no momento mesmo do despertar: trata-se de uma
representao de coisas que no tm nem ser nem existncia.

38. O motivo que nos leva a falar dos sonhos, depois de


termos dito algumas coisas sobre a fuga do sculo, deve
parecer evidente. De fato, a partir do momento em que, por
amor ao Senhor, renunciamos a nossos bens e a nossos
prximos, e que, no exlio voluntrio, nos consagramos e como
que nos vendemos a seu servio e ao amor dos bens celestes,
os demnios, invejosos de nossa felicidade, tratam de
espalhar a perturbao e a inquietude em nossas almas por
meio dos sonhos. Assim que eles nos representam nossos
prximos, s vezes em prantos, s vezes estendidos num leito
de morte, ou mergulhados em amargura por nossa causa, ou
atormentados por alguma infelicidade; aquele que acredita nos
sonhos como sendo algo real se assemelha a uma pessoa que
corre atrs de sua prpria sombra esforando-se para apanh-
la.

39. Lembremos aqui que os demnios, para nos vender qualquer


fumaa de vanglria, se fazem de profetas para ns: eles nos
anunciam em sonhos coisas futuras que adivinharam pela
sutileza de suas conjecturas; e, vendo acontecer aquilo que
vramos em sonhos, ficamos surpresos e admirados. E assim
eles nos conduzem ao orgulho, fazendo com que pensemos que
Deus quem nos faz conhecer as coisas futuras.

40. preciso confessar aqui que, para os que acreditam nas


coisas do demnio, este esprito de malcia revela coisas que
acabam acontecendo; mas para os que desprezam os sonhos que
ele d, ele no passa de um mentiroso; pois, sendo um puro
esprito, ele pode com mais facilidade conhecer as coisas que
acontecem no universo. Assim, por exemplo, sabendo que uma
pessoa est perto de morrer, eles podem em sonhos anunciar
esta morte aos que se prestam s suas insinuaes.

41. Quanto s coisas futuras, disto nada sabem: sua


prescincia no chega a tanto. E do mesmo modo, mdicos
hbeis e experientes poderiam tambm fazer as mesmas
previses sobre a morte de certos doentes.

42. Saibamos que estes espritos das trevas se transformam


muitas vezes em anjos de luz, aparecendo-nos em sonhos, sob a
figura de algum mrtir, a fim de que, ao despertarmos, nos
faam experimentar uma funesta alegria, inspirando-nos uma
opinio orgulhosa a nosso prprio respeito.

43. Eis a marca pela qual vocs podero reconhecer a fraude e


os artifcios dos demnios em relao aos cuidados que os
anjos tm para conosco: estes ltimos, nos sonhos de que so
autores, no nos fazem ver outra coisa do que os suplcios
eternos, o juzo final, a temida separao dos bandidos e das
pessoas de bem, inspirando-nos um temor e uma tristeza
salutares ao despertarmos.

44. Se acreditarmos nas coisas que os demnios nos inspiram


durante o sono eles brincaro conosco mesmo durante a
viglia. Assim, devemos dizer que quem cr nos sonhos no tem
luz nem discernimento, e que prudente e sbio que ele no
lhes d nenhuma f.

45. No respeitem seno os sonhos que representam as penas


eternas e os julgamentos de Deus. Ser, ao contrrio, os
sonhos os levarem ao desespero, tenham mais certeza ainda de
que se trata de obra dos demnios. Este terceiro degrau
completa o smbolo da santssima Trindade; e, se voc tiver a
felicidade de ter subido nele, no olhe nem direita nem
esquerda.
QUARTO DEGRAU

Da bem-aventurada e sempre louvvel Obedincia.

1. apenas aos que combatem sob os estandartes de Jesus


Cristo que dirigiremos a palavra daqui por diante, de acordo
com a ordem que estabelecemos; pois assim como a flor
antecede o fruto a fuga do sculo antecede a obedincia, seja
porque renunciamos ao mundo por uma separao real, seja
porque o deixamos renunciando a seu esprito e suas mximas.
em cima destas duas separaes do mundo que a alma, sobre
asas de ouro, se esfora para subir aos cus; o que o
salmista cantava nestes versos to doces e agradveis: Quem
me dar, dizia ele, asas semelhantes s da pomba, para que eu
possa voar at o cu e a repousar deliciosamente depois de
haver trabalhado, meditado e praticado uma humildade profunda
e uma obedincia perfeita?[24].

2. Mas eu creio que cabe considerar aqui quais so as armas


espirituais de que se servem os generosos soldados de Jesus
Cristo de que falamos aqui, e de conhecer de que maneira eles
seguram o escudo da f e da confiana em Deus, para afastar
para longe deles todo pensamento de infidelidade e de
desobedincia: como eles sempre mantm a espada do esprito
de Deus fora da bainha para imolar todos os movimentos de sua
prpria vontade, como eles esto inteiramente cobertos com as
couraas da pacincia e da doura para amaciar todas as
pontas perigosas das injrias, das zombarias e das palavras
ultrajantes, e como eles trazem sobre a cabea o capacete da
salvao, que consiste nas preces ferventes de seu superior,
que os defende das flechas incendirias de seus inimigos.
Vocs vero como eles so firmes e inamovveis em suas
posies, e como apesar disso eles desfrutam da deliciosa
liberdade das crianas de Deus; pois enquanto eles esto
imveis em suas preces contnuas, eles no deixam de exercer
os deveres da caridade em favor de seus irmos em Deus.

3. A obedincia assim uma renncia perfeita prpria


vontade, que se faz presente em aes exteriores; ou antes,
uma mortificao completa das paixes numa alma cheia de
vida, um movimento que nos faz agir com uma perfeita
simplicidade e sem nenhuma preferncia, uma morte
voluntria, uma vida isenta de toda curiosidade, uma
segurana no meio dos perigos, um excelente meio de defesa
para aparecer diante de Deus, uma segurana desejvel na hora
da morte, uma navegao sem recifes nem tempestades, uma
viagem feita em segurana e sem dificuldade. Sim, a
obedincia d alma a paz e a calma contra o temor da morte,
enterra a vontade e faz viver a humildade; ela no resiste e
no contradiz jamais; ela no pronuncia nenhum julgamento e
v com igual indiferena os bens e os males da vida presente.
O homem que tiver mortificado santamente seu corao sob o
jugo da obedincia nada temer em suas aes, e aparecer
diante de Deus com uma confiana segura. Enfim, a obedincia
uma renncia completa s prprias luzes e ao prprio
julgamento, pela submisso perfeita s luzes e ao julgamento
de um superior.

4. Entretanto, preciso confessar, o comeo desta


mortificao, ou antes, desta morte religiosa com a qual
preciso crucificar a vontade do corao, os sentidos da
carne, so acompanhados de muitos trabalhos e de penas; os
progressos feitos na obedincia so ainda seguidos de alguns
suores e algumas dificuldades; mas ao final nos encontramos
alegremente libertos de toda sensao penosa e dolorosa, e
entramos numa paz e numa tranquilidade perfeitas: pois a
nica pena que experimenta este homem obediente , ao mesmo
tempo morto e vivo, consiste em saber que seguiu sua prpria
vontade em qualquer seja l o que for: ento ele teme ter que
responde a Deus pela determinao que tomou por conta
prpria.

5. Vocs, que para correr mais depressa e com mais


desembarao se descarregam de tudo; que desejam carregar
apenas o jugo de Jesus Cristo; que buscam por meio da
obedincia se desfazer do pesado fardo que carregavam; que,
para usufruir da nica verdadeira liberdade querem se tornar
escravos da vontade de outros; que, sustentados e protegidos
pelo socorro de outros, se decidem a atravessar o mar imenso
que separa o tempo da eternidade: saibam, e no esqueam
jamais, que escolheram o caminho mais curto e mais seguro,
embora seja o mais difcil e mais spero, e que, seguindo-o,
vocs no se perdero a menos que se deixem confiar em seu
prprio julgamento e se recusarem a se deixar conduzir por
seus superiores. Com efeito, todos eles chegaram ao final
feliz a que se propuseram, tendo sido, nas coisas boas,
religiosas e agradveis a Deus, dirigidos pelas luzes e pela
sabedoria de seus diretores: pois a obedincia consiste
essencialmente em desconfiar de si mesmo em todas as coisas.

6. Assim, quando enfim tomamos a resoluo de carregar o jugo


de Jesus Cristo, e de confiar a um pai espiritual o cuidado e
a conduta de nossa alma, devemos, se nos resta um mnimo de
julgamento e sabedoria, ver e pesar bem quais so as luzes e
a prudncia daquele a quem iremos confiar uma tarefa de to
grande importncia; e, se posso me expressar assim, devemos
empregar todos os recursos para conhecer o diretor que
escolhemos, a fim de no termos a infelicidade de cair nas
mos de um mau imediato, em lugar de um piloto experiente; de
um homem ignorante e doente, em lugar de um mdico sbio e
prudente; de uma pessoa cheia de vcios, em lugar de um de
virtude consumada, e de um escravo das paixes ao invs de
algum perfeitamente liberto; e que assim, pretendendo evitar
Sila, no caiamos em Caribde, naufragando lamentavelmente. De
resto, uma vez entrados na carreira da piedade e da
obedincia, devemos nos proibir absolutamente todo julgamento
sobre o virtuoso diretor que escolhemos, e de modo algum
censurar sua conduta, ou suas aes, ainda que possamos notar
nele algumas imperfeies ou quedas; ora, nenhum homem sobre
a terra est isento! Mas se agirmos de outro modo, no
obteremos nenhum fruto de nossa obedincia.

7. Que esta considerao nos faa compreender o quanto


necessrio, para que tenhamos uma perfeita e constante
confiana em nossos diretores, gravarmos profundamente em
nossos espritos e nossos coraes as boas obras e as
virtudes que os vemos praticar; que nada possa apaga-las de
nossa memria, e que, quando os demnios nos tentarem nos
levar a desconfiar das luzes e da sabedoria dos diretores que
nos conduzem, afastemos vitoriosamente esta tentao por meio
das lembranas de suas boas e santas aes. Pois no podemos
anular pela dvida aquilo que nos decidimos a fazer sob suas
ordens, e com maior zelo e prontido na medida em que
tenhamos mais confiana naquele que est no comendo. Podemos
assegurar que aqueles que no tm confiana em seus diretores
esto muito perto de cair, se que j no caram, pois tudo
o que no vem da confiana pecado[25].

8. Assim, se lhes vierem pensamentos no sentido de julgar ou


condenar seu diretor, rejeitem-nos com tanto horror como
devem fazer a um pensamento desonesto com uma virgem. Esta
tentao uma vbora do inferno qual vocs devem fechar
toda entrada, toda abertura, e recusar qualquer espao em
seus coraes. Digam a este drago, com santo orgulho:
Saiba, infame impostor, que no fui eu quem recebeu o poder
de julgar as aes de meu pai espiritual, e que eu sei
perfeitamente que ele quem tem o direito de julgar as
minhas.

9. Nossos ancestrais nos ensinaram que podemos encontrar


nossas armas espirituais no canto dos salmos, que os
exerccios da orao so muralhas para nos defendermos, que
as lgrimas de penitncia so um banho em que nossa alma se
purifica de suas manchas, e que, sem obedincia, que a
confisso do Senhor, ningum, carregando seu pecados, ver a
Deus.

10. Quem perfeitamente submisso e obediente, proclama


contra si mesmo; e se, para agradar a Deus, ele obedece
perfeitamente, ainda que o que faa no esteja isento de
imperfeio, de nada precisar prestar contas apo soberano
Juiz. O mesmo no podemos dizer de quem segue sua prpria
vontade em qualquer coisa, ainda que lhe parea estar
cumprindo as ordens de seu superior; pois ele prestar contas
a Deus daquilo que fez, em seu ato de obedincia, conforme
sua prpria vontade. Se, nestas circunstncias, o superior do
mosteiro no cessar de corrigi-lo e repreende-lo, nem tudo
est perdido para ele; mas se por infelicidade o superior
ficar em silncio, j no ouso dizer aqui o que eu penso.

11. Todos aqueles que, no Senhor, obedecem com simplicidade


de corao, percorrem alegremente a carreira religiosa; pois,
evitando pela obedincia toda busca curiosa sobre as coisas
que lhes so ordenadas, escapam das armadilhas e dos embustes
dos demnios.

12. A primeira coisa que devemos fazer em relao ao diretor


que escolhemos fazer-lhe uma confisso exata de todos os
pecados de nossa vida, e, se ele julgar a propsito que
faamos uma confisso pblica, nos submetermos a esta ordem
de bom corao; pois esta confisso de nossas faltas, seja
secreta, seja pblica, contribuir em muito para cicatrizar e
curar as feridas que elas produziram em nossa alma.

Histria de um ladro penitente.


13. Tendo eu ido um dia a um mosteiro cujo abade era um juiz
e um pastor excelente, ouvi ser pronunciado um julgamento
terrvel. Eis o que se passou: enquanto eu estava no
mosteiro, chegou nele um ladro famoso, que pedia com grandes
brados para entrar e abraar a vida monstica. O abade, como
bom pai e bom mdico, lhe ordenou descansar por sete dias,
para que tambm conhecesse os usos e o modo de vida do
mosteiro. Passado este lapso de tempo, chamou-o em particular
e lhe perguntou se ainda desejava permanecer no mosteiro e
viver segundo as regras da casa; Como ele respondeu
afirmativamente com candura e franqueza admirveis, o abade
lhe disse que seria preciso que ele fizesse uma confisso
completa e detalhada dos crimes com que manchara sua vida.
Mal tinha o abade lhe dado esta ordem, o ladro apressou-se a
execut-la, declarando-lhe todos os seus pecados com
sinceridade e prudncia espantosas. Mas para prov-lo ainda,
o abade perguntou se ele consentiria em fazer a mesma
confisso diante da comunidade. O homem no hesitou um
segundo, respondendo afirmativamente, to viva e sincera era
sua averso e a contrio que sentia por seus pecados, e
tamanha vergonha de declar-los tinha na alma; ele chegou at
a dizer que, se preciso fosse, os proclamaria no meio de
Alexandria. O santo abade, vendo to feliz disposio, reuniu
todos os monges na igreja do mosteiro. Eram trezentos, e isto
aconteceu no domingo aps o Evangelho. Ele fez vir o ladro,
que j estava justificado. Este tinha as mos amarradas s
costas, o corpo vestido de cilcio, a cabea coberta de
cinzas; alguns irmos o levavam por uma corda enquanto outros
lhe batiam levemente com varas. Como nem todos sabiam o que
se passava, este espetculo atemorizou de tal modo os
religiosos, que eles no puderam conter os gritos e os
gemidos. Quando o ladro chegou porta da igreja, o
superior, cheio de zelo e de sabedoria, lhe disse com voz
forte e terrvel: Detenha-se, pois voc no digno de
entrar na casa de Deus!. Estas palavras, sadas da boca
deste prudente diretor, que estava no interior do lugar
santo, impuseram ao ladro tamanho terror, que ele pensou no
ouvir uma voz humana mas um golpe de trovo e, tomado de
temor e de horror, caiu com o rosto por terra; isto ele nos
assegurou muitas vezes depois sob juramento. Ora, enquanto o
ladro penitente estava assim prosternado, lavando o cho com
uma torrente de lgrimas, o abade, que com estas aes s
buscava a salvao deste infeliz, e que queria apresentar a
seus monges um modelo eficaz de uma profunda e salutar
humildade, lhe ordenou que declarasse em ordem, com detalhes
e diante de todos, os crimes que cometera e as faltas que
fizera; ele o fez, tremendo, e causando nos que o ouviam
confessar crimes horrveis um espanto e um terror
inexprimveis: pois ele confessou no apenas os pecados que
cometera violando as leis ordinrias da natureza e levando a
brutalidade alm do razovel e racional, mas ainda
envenenamentos, homicdios e outros atos to execrveis que
no dado aos ouvidos escutar, nem pena escrever. Quando
ele terminou, o abade ordenou que cortasse o cabelo que fosse
recebido em meio aos irmos.

14. Cheio de admirao pela sabedoria deste santo homem ousei


perguntar-lhe em particular quais eram as razes que o haviam
levado a dar a seus monges um espetculo to extraordinrio.
Eis a resposta que me deu este excelente mdico de almas:
Agi assim, disse ele, por duas razes principais. A
primeira, para que este penitente, pela vergonha temporal e
passageira que sofreu confessando publicamente seus pecados,
se preservasse da confuso futura e eterna; e foi isto que
felizmente lhe aconteceu, pois ele ainda no havia se
levantado do cho e Deus generosamente o perdoara de todos
seus crimes; e voc no deve duvidar disto, caro abade Joo,
pois um dos nossos monges que estava presente e muito atento
me garantiu ter visto um homem de aspecto terrvel que em uma
das mos tinha um papel escrito e na outra uma pena com a
qual riscava sobre o papel cada pecado, na medida em que este
penitente, prosternado por terra, ia confessando. E isto no
deve nos surpreender, pois est escrito: To logo, Deus,
tomei a resoluo de confessar minhas iniquidades diante de
meu Deus e de mim mesmo, voc me perdoou do negrume e da
impiedade de minhas faltas[26]. A segunda razo para eu ter
me comportado deste modo que tenho em minha comunidade
alguns monges que ainda no confessaram suas faltas, e
aproveitei a ocasio para incentiv-los a faz-lo; pois, sem
a confisso, ningum pode receber o perdo dos seus pecados.

Outras mostras de virtude.

15. Mas, alm daquilo que contei, eu vi neste abade e no


mosteiro que ele dirigia com tanta prudncia e sabedoria
muitas outras coisas que me deixaram espantado e admirado, e
que merecem ser contadas. Tentarei ao menos contar as
principais; pois fiquei muito tempo nesta casa, para me
instruir exatamente na vida, na disciplina e na conduta dos
monges que a habitavam; e lhes asseguro que considerando o
ardor com que esses pobres mortais se esforavam para imitar
a vida e a perfeio das inteligncias celestes, ficava fora
de mim, e meu espanto no tinha limites.

16. Uma santa amizade os mantinha estreitamente unidos, a


caridade que tinham uns pelos outros os ligava por cadeias
indissolveis; e o que me espantava era que sua afeio era
isenta de toda familiaridade e toda leviandade, seja em suas
relaes com outros, seja em suas conversas. Acima de tudo,
eles tinham o maior cuidado em nunca ferir a conscincia dos
irmos. Se alguma vez um irmo deixava transparecer qualquer
averso por outro, o abade o purgava do mosteiro, enviando-o
em exlio para outra casa, como um miservel. Ora, eis o que
aconteceu diante de meus olhos: um dia um monge disse algumas
palavras injuriosas a outro; logo que o abade soube disso,
ordenou que ele fosse expulso do mosteiro, dizendo-lhe que
no era possvel manter dois demnios na mesma casa, um
visvel e um invisvel, ou seja, um demnio real e um homem
que era semelhante a um demnio.

17. Dentre estes respeitveis monges vi outras coisas que


podem ser teis a ns e nos encher de admirao: por exemplo,
lembro de uma sociedade de irmos, formada no esprito de
Deus e fortificada na mais perfeita caridade. Eles
partilhavam tudo o que tinham de mais excelente, fosse na
ao ou na contemplao; eles se dedicavam com tanto ardor
aos exerccios da vida religiosa que quase no precisavam de
opinies nem conselhos de seu superior, pois tanto eles
estimulavam uns aos outros no fervor e numa diligncia quase
divinos. Eles haviam combinado, regrado e determinado algumas
prticas de piedade muito especiais; assim, por exemplo, se
durante a ausncia do abade um deles falasse a outro de modo
inconveniente ou o condenasse por um julgamento
inconsiderado, ou mesmo dissesse palavras inteis, logo um
irmo o advertia de sua falta por um sinal secreto e o
reconduzia ao dever; se este monge parecesse no entender ou
no se visse o sinal, o que o advertira devia se prosternar e
se retirar. Nos momentos de recreao o pensamento da morte e
do juzo era o objeto habitual de suas conversas.
18. impossvel no lhes falar aqui da virtude rara e
singular do irmo encarregado de preparar os alimentos. Como
nas ocupaes tumultuadas de seu cargo eu o via num
recolhimento admirvel e sempre banhado em lgrimas, pedi-lhe
que no me censurasse por lhe perguntar de que maneira teria
ele obtido de Deus to grande favor. Vencido pela minha
insistncia, ele me deu enfim esta resposta: que em meu
posto eu nunca me vejo servindo os homens, mas a Deus mesmo;
eu me considero indigno de qualquer repouso, qualquer
tranquilidade; e, vendo diante de mim todos os dias o fogo
material, eu me lembro sem cessar do fogo eterno.

19. Vejamos ainda outra prtica de piedade no menos rara e


espantosa. mesa, estes fervorosos monges no interrompiam
suas santas meditaes e, com sinais particulares advertiam
uns aos outros a que renovassem o esprito de prece e orao;
e no era s a que agiam assim, mas todas as vezes em que se
encontravam e se reuniam.

20. A caridade entre eles era admirvel; pois, se acontecia a


um deles cometer alguma falta, os outros o procuravam
pedindo-lhe com insistncia que descarregasse sobre eles o
cuidado e a pena de prestar contas ao superior de tal
fraqueza, para que recebessem a reprimenda e a punio. Desta
forma o abade, que conhecia quais eram os sentimentos de
caridade que reinavam nos coraes de seus monges, no
podendo ignorar que o culpado no estava entre os que se
apresentavam diante de si, os repreendia com menos severidade
e os punia com menos rigor; em algumas ocasies ele nem
tentava descobrir o autor da falta.

21. De resto, nunca os ouvi conversar sobre assuntos vos,


ridculos ou cmicos. Quando acontecia que algum tivesse um
pequeno contencioso com um irmo, outro irmo que se achasse
presente, prosternando-se por terra, colocava fim questo;
se este mtodo no funcionasse e no fizesse cessar o azedume
e o ressentimento, o padre que substitua o abade era
avisado, a fim de que tomasse as medidas eficazes para
conseguir uma reconciliao perfeita antes do por do sol.
Enfim, se este ltimo recurso fosse intil e o corao dos
irmos ofendidos permanecesse inflexvel, era-lhes proibido
todo alimento at que se reconciliassem perfeitamente; em
ltimo caso, os irmos contendores era impiedosamente
expulsos do mosteiro e da comunidade dos irmos.
22. Ora, esta disciplina, to regular e louvvel, no era
estril, como se pode pensar: ela produzia grandes benesses e
trazia as maiores vantagens; pois a maior parte dos irmos
faziam grandes progressos tanto na vida ativa como na
contemplativa, e, cheios de luz e discernimento, eram de uma
modstia perfeita e de uma humildade profunda. Via-se assim
no mosteiro um espetculo celeste, capaz de trazer a maior
admirao. Ali estavam ancios, cujo rosto brilhava com
venervel majestade, correr como crianas para receber as
ordens do superior, colocando toda sua glria e toda sua
felicidade em execut-las com escrupulosa exatido e inteira
submisso.

23. Penetrado de re3speito pelos monges que j haviam passado


de cinquenta anos em exerccios constantes de obedincia, um
dia no pude me impedir de lhes perguntar que consolo
extraam da prtica to penosa e dolorosa desta virtude. Ora,
uns me responderam que pela prtica da obedincia haviam
descido a um tal ponto de humildade que se tornaram isentos
de qualquer outro combate e experimentavam continuamente as
douras de uma profunda paz; outros me confessaram que eles
tinham a felicidade de no experimentar a menor perturbao
em meio a injrias e ultrajes.

24. Dentre esses homens respeitveis e dignos de eterna


memria, ainda observei alguns ancios cuja cabea era branca
pela idade e que mais se assemelhavam a anjos do que a
homens. Ora, estes ancios, conduzidos e dirigidos pelo
esprito de Deus, santificados pelos esforos contnuos de
sua boa vontade, haviam atingido o mais alto grau de
inocncia, simplicidade e sabedoria; pois, enquanto que os
hipcritas apresentam duas faces, uma que podemos ver e outra
oculta e invisvel, o homem amigo da simplicidade no
apresenta seno uma nica e mesma face que manifesta o que
ele . Estes ancios estavam ainda bem longe de anunciar o
enfraquecimento da razo e de apresentar o menor sinal que
mostrasse o carter desta leviandade pueril que, no sculo,
censuramos aos velhos. Neles no vamos seno uma mansido
encantadora, uma bondade arrebatadora e uma alegria cheia de
gravidade; em sua conduta e em suas conversaes nada
percebamos de dissimulado, estudado, falso ou pouco sincero,
coisa rarssima de encontrar entre os homens. Suas santas
almas no tinham seno uma ambio, a de repousar em Deus e
de obedecer a seu superior; por isso que para seus
superiores eles eram como filhos sem malcia e sem fraude, ao
mesmo tempo em que estavam cheios de vigor e de coragem
contra os demnios e os vcios, perseguindo a uns e outros
quase com furor.

25. Mas oh! pai santo, e vocs, rebanho fiel to amado por
Deus, toda minha vida no seria bastante se eu quisesse
contar aqui todas as virtudes e as aes verdadeiramente
celestes desses monges; entretanto, acho importante repassar
a vocs seus trabalhos e seus suores: esta viso ser capaz
de inflamar seus coraes com um nobre ardor pelo cu, mais
do que as instrues que lhes dou e as exortaes que dirijo
a vocs. De resto, todo mundo sabe que muitas vezes as coisas
defeituosas so corrigidas por aqueles que so mais
perfeitos. O que eu lhes peo que me concedam, que
acreditem que tudo o que eu lhes contar aqui no contm nem
fbula nem fico, mas que a exposio da mais exata
verdade: pois eu sei que uma simples dvida sobre a
veracidade de um fato basta para impedir que dele se retirem
frutos e benefcios. Mas retomemos nosso discurso.

Histria de Isidoro.

26. Nos tempos em que estive no mosteiro conheci um homem de


qualidade que se chamava Isidoro. Ele havia sido um dos
principais magistrados de Alexandria; mas tendo generosamente
renunciado aos negcios do sculo, em cuja gesto fizera
grande renome e uma brilhante reputao, ele se retirou para
esta casa religiosa. O santo abade que o recebeu percebeu
logo que toda a vivacidade de seu esprito e todo o ardor de
seu corao haviam sido voltados para o mal; que ele era
violento, impiedoso, arrogante e cheio de si. Mas a sabedoria
e a prudncia deste excelente superior permitiram-lhe romper
as amarras com que os demnios mantinham cativo a este homem;
e eis de que maneira ele o fez: Isidoro, disse-lhe ele, se
voc tomou a firme resoluo de levar o jugo de Jesus Cristo,
quero antes de mais nada que voc se exercite na prtica da
obedincia. Isidoro respondeu: Santssimo Pai, eu me
entrego a voc para ser to submisso quando o ferro na mos
do ferreiro. Esta resposta satisfez e encorajou o abade,
que, encantado com a comparao, colocou-o a seguir como
sobre uma bigorna. Muito bem, meu caro irmo, lhe disse o
abade, eu considero conveniente e lhe ordeno que se mantenha
porta do mosteiro e que se ponha de joelhos diante de todos
os que entram e saem, dizendo: meu Pai, ore por mim, que no
passo de um epiltico espiritual. Isidoro obedeceu ao abade
com a mesma submisso e a mesma exatido com que os anjos
obedecem a Deus. Assim ele passou sete anos consecutivos.
Ora, depois de ter passado este tempo neste duro e penoso
exerccio e de ter adquirido uma obedincia perfeita, uma
humildade profunda e uma viva compuno por seus pecados, o
abade, do alto de sua sabedoria, considerou que por estas
slidas virtudes este homem se tornara digno de ser recebido
entre os irmos e de poder entrar para a ordem sagrada; mas
Isidoro, que durante todo este tempo havia praticado uma
pacincia extraordinria e uma submisso generosa, fez
inmeras instncias, por si, pelos outros, por mim prprio,
no sentido de que lhe fosse permitido terminar sua carreira
naquele mesmo lugar e nos mesmos exerccios, dando a entender
que ele acreditava no ter mais muito tempo de vida e que ele
estava a ponto de deixar este mundo, e, conforme se conta, o
abade lhe concedeu aquilo que solicitava com tanto zelo e
ardor. E dez dias depois, este ilustre penitente entrava na
posse da glria eterna que havia merecido pelo desprezo
perfeito que tivera pela glria temporal; e sete dias depois
de sua morte, conforme prometera a ele, chamou para o cu o
porteiro do mosteiro, pois lhe havia dito logo antes de
morrer: Se eu tiver qualquer poder diante de Deus no cu,
logo estaremos reunidos junto dele, para no nos separarmos
mais. Ora, foi isto que aconteceu, porque o Senhor quis
mostrar, de um modo sensvel e dramtico, a excelncia e o
mrito da obedincia pela qual ele no teve vergonha de fazer
exatamente e de corao as coisas baixas e humilhantes que
lhe haviam sido ordenadas, e a excelncia e o mrito de sua
profunda humildade, com a qual imitara com tanta perfeio o
Filho de Deus.

27. Ora, enquanto Isidoro ainda vivia assim porta do


mosteiro, eu me permiti um dia lhe perguntar quais eram os
pensamentos que enchiam seu esprito e quais sentimentos
agitavam seu corao. Como ele viu que, respondendo,
contribuiria para minha salvao e me seria til de alguma
maneira, ele no hesitou em me dar a seguinte resposta: No
primeiro ano, disse-me ele, eu repeti para mim mesmo que
haviam sido os meus pecados que me haviam vendido e me
tornado escravo. Esta considerao me perfurava o corao de
amargura e dor, e me levava a me violentar para cumprir as
ordens que me haviam sido dadas; por isso que, me
prostrando aos ps dos meus irmos, eu os lavava de lgrimas,
e algumas vezes com sangue. Depois deste primeiro ano, tive
esperana de que Deus recompensaria minha submisso e minha
pacincia, o que me fez cumprir sem esforo minha penitncia.
Enfim, nos cinco ltimos anos eu no senti em mim mesmo seno
um vivo sentimento de minha indignidade, que me fazia
considerar-me indigno no apenas de entrar no mosteiro, mas
at de permanecer aonde estava; de gozar da presena e da
conversa dos irmos; de ser admitido a participar dos santos
mistrios; e at mesmo de ser visto pelas pessoas, quem quer
que fossem. por isso que, mantendo meus olhos e meu corao
voltados para a terra, eu pedia aos que entravam ou saiam,
que orassem a Deus por mim.

Histria de Loureno.

28. Um dia em que eu estava mesa junto ao superior, ele se


inclinou docemente para mim e me disse ao ouvido: Quer que
eu lhe mostre, num ancio extremamente velho, uma razo e uma
sabedoria totalmente celestes?. Como eu lhe fiz sinal de que
o desejava e lhe pedi que o fizesse, ele chamou um bom padre
chamado Loureno, que estava sentado em outra mesa. Este
respeitvel monge passara quarenta e oito anos no mosteiro e
era o segundo em dignidade na igreja da comunidade. Ele se
colocou imediatamente ao lado do superior e ps-se de
joelhos, segundo o costume da casa, para receber a bno;
depois se levantou para receber suas ordens, mas o abade no
lhe disse nada e o deixou em p diante da mesa, sem lhe dar
de comer. Isto aconteceu no incio da refeio. Ele passou
assim uma hora ou mais, imvel e sem movimento, o que me
causou tal confuso que eu no conseguia nem olhar este bom
padre todo branco de velhice, pois ele tinha oitenta anos.
Quando a refeio terminou, seu superior lhe ordenou que
fosse encontrar Isidoro, o grande penitente de que falamos, e
lhe recitasse estas palavras do salmista: Eu esperei um
longo tempo pelo Senhor, e no deixei de esper-lo[27].

29. Ora, como eu sou muito malicioso, no perdi ocasio para


falar com este venervel ancio e perguntar-lhe em que
pensava ele durante o tempo em que permaneceu de p diante da
mesa. Eu vi, respondeu-me, o prprio Jesus Cristo na pessoa
de meu superior, e assim no considerei que a ordem me
tivesse sido imposta a partir de um homem, mas de Deus; por
isso, caro padre Joo, que eu estava bem longe de me ver em
p diante de uma mesa ao redor da qual estavam reunidos
simples mortais; mas imaginando estar diante do altar do
Senhor, eu lhe dirigi fervorosas preces, tanto quanto pude; e
posso lhe assegurar que sequer me veio ao esprito um mau
pensamento contra meu superior, tamanha a confiana que
tenho nele, e tamanha afeio lhe dedico; pois, acrescentou
ele, o amor no pensa mal de ningum[28]. De resto, meu
Pai, saiba que o demnio no encontra por onde entrar num
corao que est inteiramente devotado e consagrado
simplicidade, inocncia e bondade.

Histria de um ecnomo.

30. Como Deus, em sua Misericrdia e sua Justia, havia dado


aos religiosos deste mosteiro que era um sbio pastor e um
terno salvador, tambm dera um ecnomo, um administrador
admirvel; pois se tratava de um homem cheio de moderao e
prudncia, de doura e de pacincia, como poucos podemos
encontrar. Ora, como o abade queria que o exemplo de sua
humildade e pacincia servisse salvao dos irmos,
repreendeu-o um dia severamente, ainda que ele fosse
inocente, e levou esta severidade a ponto de expuls-lo
vergonhosamente da igreja. Sabendo eu que no tinha sido ele
quem cometera a falta pela qual o estava punindo com tanto
rigor, chamei parte o superior para me colocar como
advogado de seu ecnomo; mas este sbio diretor me respondeu:
Sei to bem como voc, meu Pai, que ele inocente; mas
assim como no convm a um pai, e at uma coisa condenvel,
negar ao filho que tem fome um pedao de po, tambm o pai
espiritual prestar a si mesmo e a seu inferior um mau
servio, se no buscar nele a todo momento novos mritos e
novas coroas, fazendo-lhe reproches e apresentando-lhe
humilhaes, seja cobrindo-o de desprezo, seja lhe fornecendo
mortificaes, seja enfim exercitando-o nas repreenses e nas
condenaes, na medida em que o saiba capaz de suportar a
tudo com pacincia e resignao. Do contrrio, este inferior
ser privado de trs grandes benefcios: o primeiro ser o de
no receber a recompensa de uma correo caridosa sofrida com
pacincia; o segundo, que seus irmos sejam privados dos bons
efeitos que seu exemplo produzir neles; enfim o terceiro,
que tambm o pior mal que lhes pode acontecer, ser que os
inferiores percam pouco a pouco a doura e a pacincia, pois
muitas vezes acontece que estes, que em seus trabalhos
espirituais e em suas humilhaes parecem ser em verdade
homens de pacincia, se no forem de tempos em tempos
exercitados, repreendidos e humilhados por seu superior, que
os v como pessoas virtuosas e perfeitas, caem depressa num
funesto relaxamento; e suas almas, embora seja de boa terra,
mida e frtil, se no forem regadas periodicamente com a
gua da humilhao, perdem depressa e facilmente sua
fertilidade, acabando por produzir no mais do que os
arbustos e espinhos de orgulho, do desregramento dos costumes
e de uma confiana presunosa, que expulsa todo temor a Deus.
Isto no era ignorado pelo grande Apstolo, quando deu este
conselho a seu querido Timteo: Insista, dizia ele, no tempo
oportuno e no inoportuno.[29]

31. A todas estas razes eu repliquei que poderia acontecer


por circunstncias infelizes e sobretudo pela fraqueza da
natureza humana que muitos, vendo-se repreendidos sem razo
e at com razo poderiam abandonar o mosteiro; mas a
resposta deste tesouro de sabedoria no se fez esperar: Uma
alma, respondeu ele, que Jesus Cristo ligou a seu pastor
pelas cadeias do amor e da f, conservar invariavelmente
esta santa unio; ela preferir derramar todo o seu sangue a
romp-la, sobretudo se Deus dele se serviu para cur-la das
feridas que o pecado fez nela; pois ela se recorda que est
escrito: Nem os anjos, nem os principados, nem nenhuma outra
criatura poder nos separar do amor de Deus, que nosso
Senhor Jesus Cristo[30]; e se esta alma no est ligada,
amarrada e unida inseparavelmente de seu diretor, no consigo
conceber como ela poder, de um modo til, permanecer num
lugar aonde no a retm seno uma obedincia falsa e
enganadora. preciso confessar que este homem no se
enganava, porque, pelos meios de que se utilizava, ele
dirigia e conduzia seu mosteiro com sucesso, oferecendo e
consagrando a Jesus Cristo um grande nmero de almas, que
eram como hstias vivas.

Histria de Abacir.

32. Consultemos assim a Sabedoria de Deus, pois ela se


encontra at mesmo nos vasos de barro; isto o que deve nos
causar a maior admirao. a resoluo que me fez tomar a
conduta de alguns jovens religiosos, pois eu fiquei fora de
mim ao ver com que vivacidade de f, com que constncia, com
que pacincia e fora de alma eles sofriam ser repreendidos,
mortificados e desprezados, no apenas por seu superior, mas
tambm por irmos que estavam bem abaixo deles. Havia no
mosteiro um irmo que chamava minha ateno de maneira
especial: ele se chamava Abacir e tinha pouco mais do que
quinze anos. Eu percebi que ele era quase sempre maltratado
pelos outros monges, e no se passava um dia sem que aqueles
que serviam a mesa o expulsassem do refeitrio, porque ele
era naturalmente falador. Procurei uma ocasio para conversar
com ele e, tendo-o encontrado, perguntei-lhe insistentemente
por que razes o expulsavam assim do refeitrio e o mandavam
dormir sem ter comido nada. Creia-me, padre, respondeu-me
com simplicidade, os monges me tratam assim para conhecer
minhas disposies interiores e para saber se eu estou pronto
para levar uma vida solitria; no por severidade, mas pelo
caridoso desejo de me testar que eles agem assim. por isso
que, conhecendo perfeitamente as piedosas intenes de nosso
excelente superior e dos outros padres, eu sofro tudo com
alegria e prazer. Faz quinze anos que estou no mosteiro, e me
tratam como voc viu. Quando cheguei a esta casa, os padres
esconderam de mim que eles testam durante trinta anos aqueles
que renunciaram ao mundo; e certamente, caro padre Joo, no
sem boas razes que eles mantm esta conduta; pois no no
cadinho e pelo fogo que se passa o ouro para o depurar e
polir?.

33. Este corajoso Abacir viveu ainda por dois anos durante
minha estada nesta comunidade e, como ele estava a ponto de
deixar este mundo, disse aos irmos que cercavam seu leito de
morte: Eu lhes agradeo, irmos, e dou graas a Deus, por me
haverem tratado como fizeram; pois h dezessete anos vocs me
puseram ao abrigo das provas e das tentaes do demnio.
Estas palavras causaram uma viva impresso no esprito do
abade, este justo apreciador das virtudes de seus irmos, que
ele colocou Abacir no grupo dos confessores e fez com que
colocassem seu corpo junto aos dos santos padres que
repousavam no interior do mosteiro.

Histria de Macednio.
34. Seria uma verdadeira pena para todos os que tm zelo e
amor pela prtica da virtude, se eu no dissesse nada aqui
dos santos exerccios e dos grandes trabalhos de Macednio,
primeiro dicono deste mosteiro. Este grande servidor de
Deus, to favorecido por seu divino Mestre, solicitou ao
abade, dois dias antes da solenidade de Reis, a que os gregos
chamam de Teofania, permisso para ir a Alexandria por causa
de negcios importantes que exigiam sua presena. Foi-lhe
dada a permisso, mas com a condio expressa de retornar ao
mosteiro em tempo de preparar tudo o que era necessrio para
a solenidade. Mas o demnio, inimigo jurado da virtude, fez
surgir tantos obstculos, que Macednio no conseguiu
retornar no prazo estipulado, chegando no dia seguinte
festa. Para puni-lo pela desobedincia, o abade suspendeu-o
de suas funes e o condenou a servir entre os novios. Ora,
este santo dicono, grande por sua pacincia e maior ainda
por sua constante humildade, recebeu esta ordem e aceitou a
penitncia com a mesma calma e tranquilidade de esprito como
se as coisas no se passassem com ele. Depois de ter passado
quarenta dias entre os novios, o abade resolveu devolver-lhe
o cargo e suas honorveis funes; mas no dia seguinte,
quando o abade o restabeleceu em sua dignidade, ele foi
procurar seu superior para pedir-lhe insistentemente a que o
deixasse naquele estado de humildade e penitncia, e que o
deixasse viver no meio dos irmos mais jovens at o fim de
sua vida. Para obter esta graa, ele assegurou ter tido a
infelicidade de cometer uma grande falta durante sua viagem a
Alexandria, que o tornava indigno de perdo. Embora o santo
abade soubesse perfeitamente que isto no acontecera, e que
seu dicono s alegava isto como pretexto para poder
permanecer no estado de rebaixamento em que se encontrava,
cedeu ao louvvel desejo, feito com fervor e humildade. Assim
que vamos ento, no meio dos jovens monges, um homem
venervel pela dignidade de sua idade, pedindo-lhes o auxlio
e a assistncia de suas oraes, a fim de obter de Deus o
perdo pela execrvel desobedincia de que se tornara culpado
em sua viagem a Alexandria. Este santo dicono, por indigno
que eu fosse, ensinou-me um dia a razo particular que o
tinha feito desejar permanecer neste estado to humilhante:
Jamais, disse-me ele, me vi menos atacado por perturbaes
interiores, nem menos agitado pelos trabalhos da guerra
espiritual que fazemos ao demnio, nem jamais experimentei
to deliciosamente as douras abundantes da luz celeste, como
a partir do momento em que fui posto no exerccio desta
penitncia.

Histria do ecnomo do mosteiro.

35. caracterstico dos anjos, acrescentou ele, no estar


mais expostos a quedas, e mesmo, conforme alguns doutores
ensinam, no poderem cair; tpico dos homens cometerem
faltas, mas pela graa de Deus eles podem se levantar todas
as vezes em que lhes acontece estas infelicidades. Ao
contrrio, os demnios caram para nunca mais se levantarem
desta queda. Eis agora o que me contou o ecnomo deste
mosteiro clebre: Quando eu era jovem, ele disse, era
encarregado de cuidar dos animais de uma casa, e tive a
infelicidade de cometer uma falta enorme; mas, como eu tinha
por costume jamais manter oculto em meu corao a serpente
que nele se escondera, tomei-a pela cauda assim que a percebi
e a mostrei ao mdico espiritual de minha alma; eu lhe contei
a enganadora ao da qual fui considerado culpado. Olhando-me
com um rosto sorridente e me dando um tapinha, ele me dirigiu
estas palavras: Vai, meu filho, continue com seus exerccios
costumeiros como dantes, e nada tema. Eu confiei
inteiramente nas suas palavras; e alguns dias depois tive a
certeza de minha cura. A partir da caminheis pelas vias do
Senhor com grande alegria, embora sempre com temor e com
tremor.

36. Alguns doutores observaram sabiamente que, como existem


certas diferenas essenciais entre todas as criaturas s
quais Deus deu existncia, tambm nas casas religiosas vemos
diferentes modos de caminhar e de avanar na carreira e na
prtica da virtude, e diversas inclinaes ms que preciso
combater e mortificar. assim que o sbio mdico que
presidia este mosteiro, tendo percebido que alguns monges se
deliciavam, por ostentao e vaidade, em aparecer diante dos
seculares quando estes vinham ao mosteiro, os humilhava
severamente em sua presena, tanto lhes ordenando o que havia
de mais baixo e mais desprezvel quanto reprovando-os
ignominiosamente, de modo que estes monges eram obrigados,
para evitar esta afronta, a se esconder assim que viam chegar
as pessoas do mundo. Ora, esta conduta produzia m efeito
espantoso, pois ela fazia com que a vanglria perseguisse a
vanglria, impedindo estes monges de dar espetculo aos
outros.
Histria de so Menas.

37. Como Deus, por uma graa insigne, no quis me privar do


auxlio das oraes de um santo padre que se encontrava nesse
mosteiro, ele o chamou sete dias antes de minha partida. Este
santo homem se chamava Menos. Ele havia passado cinquenta e
nove anos nesta casa, e havia exercido sucessivamente todos
os cargos a estabelecidos, sendo ento o primeiro depois do
abade. Ora, no terceiro dia depois de sua morte, enquanto
celebrvamos seus funerais e fazamos as oraes de costume,
o lugar onde estava seu santo corpo foi subitamente tomado
por um perfume doce e de suave odor. O abade, que estava
presente, nos ordenou que abrssemos o caixo e ento vimos
que de seus venerveis ps saam como que duas nascentes de
leo odorfico. Ento este excelente mestre das vias
religiosas nos dirigiu estas palavras: Vocs todos so
testemunhas, disse-nos ele, deste milagre; mas saibam que
seus trabalhos e seus suores tiveram tambm um perfume
delicioso e agradvel a Deus.

38. Ele tinha razo; pois os padres se puseram a contar


algumas excelentes aes deste santo homem, e, entre outras,
que um dia o abade resolvera colocar prova sua pacincia
celestial. Eis o fato: retornado de fora numa tarde, ele
tinha ido se prosternar aos ps do abade, a fim de lhe pedir
a bno, conforme o costume; mas o abade deixou-o assim
prosternado at a hora do ofcio, quando o abenoou e
permitiu que se levantasse. Depois disto ele lhe fez severas
admoestaes sobre sua ostentao, sua vaidade e sua pouca
mansido e pacincia. Ora, o abade s se comportava assim por
saber com quanta coragem e generosidade este santo ancio
sofreria este tipo de humilhante mortificao, e o quanto seu
exemplo serviria edificao dos outros. Foi o que me
assegurou em particular um dos discpulos deste santo monge,
acrescentando que lhe perguntara em outra ocasio se ele no
tinha adormecido enquanto se encontrava prosternado aos ps
do abade; e ele lhe respondeu candidamente que no, mas que
ele havia recitado o saltrio inteiro.

39. No cometerei nenhuma falta se enfeitar aqui meu discurso


com o relato de um fato que o far brilhar como uma esmeralda
faz brilhar uma coroa. Aconteceu que, enquanto eu vivia no
meio dos ilustres padres deste mosteiro, a conversa caiu
sobre a vida dos anacoretas; ento eles me disseram com o
rosto cheio de doura e benevolncia: Quanto a ns, caro
padre Joo, por sermos to grosseiros e to pouco
espirituais, acreditamos que no devemos abraar seno a vida
que mais nos convm. por isso que empreendemos uma guerra
proporcional nossa fraqueza, e consideramos que mais
vantajoso para ns no termos que combater seno contra
homens que se enraivecem e agridem, mas que depois voltam a
si e se acalmam, do que demnios que esto em permanente
furor e armados contra o gnero humano.

40. Ora, dentre estes homens de eterna memria, que me amava


muito em Deus e que me falava com grande liberdade. Um dia
ele me disse, com afeio especial: Se voc, meu pai, que
um sbio, experimentar a fora daquele que, no arrebatamento
de seu corao, exclama: tudo posso naquele que me
fortalece![31]; se o Esprito Santo descer sobre voc como
um orvalho de graas e pureza, como desceu antes sobre a
santa Virgem, e se a fora do Altssimo o rodear de
pacincia, cinja os rins, a exemplo do Homem-Deus, com o
linho branco da obedincia e, como Ele, levante-se da mesa,
ou seja, saia da solido; para lavar os ps dos seus irmos
na gua pura da compuno e da penitncia, ou de se atirar a
seus ps com o sentimento da humildade mais profunda; coloque
nas portas de seu corao sentinelas que no dormem jamais e
que jamais so coniventes com o inimigo; detenha a
instabilidade e a leviandade de seu esprito, fixando
invariavelmente, malgrado as distraes e a dissipao que
lhe causam sem cessar a agitao dos negcios e das
importunaes dos sentidos; conserve um repouso perfeito no
meio dos movimentos e cuidados com a vida se agita
continuamente; e, o que mais difcil e mais admirvel,
permanea firme e imvel no seio das perturbaes e das
tempestades que se sucedem todo o tempo. Prenda sua lngua
com as cadeias de um silncio perfeito, e impea-a de cair em
disputas cidas e em contradies audaciosas; combata setenta
e sete vezes por sai contra esta soberana impiedosa e
tirnica; carregue a cruz de Jesus Cristo em seu corao, e,
assim como pregamos um prego na madeira, pregue seu esprito
nela, de sorte que ele seja capaz de resistir a todos os
golpes, a todas as tentaes, a todas as afrontas, a todas as
calnias, a todas as intrigas e a todas as injustias que
possam lhe acontecer, de modo a nunca ser ferido, nem
ofendido, nem agitado, nem afligido, nem desencorajado, nem
abatido, mas persevere imutavelmente na paz e na calma.
Despoje-se de toda sua vontade, como de uma veste de
ignomnia, e entre nu na carreira celeste; e, o que bem
mais raro e mais difcil, permanea numa confiana total e
inquebrantvel naquele que deve e que vai coro-lo aps a
vitria, e que esta seja tal que no possa ser penetrada nem
pelas flechas da dvida nem pela lanas da desconfiana.
Mortifique seus sentidos com as austeridades da temperana, e
cuide para no sofrer com seu furor audacioso e insolente.
Sirva-se vantajosamente da meditao da morte para combater e
vencer a curiosidade dos olhos, que pedem sem cessar a
contemplao da beleza das criaturas sensveis. Faa de modo
a reter a indiscrio e a injustia de seu esprito, que,
enquanto voc se entrega negligncia mais condenvel, o
leva a julgar mal as aes e a conduta dos seus irmos; e se
esforce para exercer sempre uma caridade sincera para com
todos. por meio dessas coisas que saberemos que voc
realmente discpulo de Jesus Cristo, segundo a palavra: Todo
o mundo saber, disse Ele, que so meus discpulos, se na
sociedade em que se renem amarem uns aos outros e derem
testemunho de uma afeio mtua[32]. Venha, venha, venha
para c, acrescentou este excelente amigo, fixe aqui sua
moradia, beba conosco da gua amarga das admoestaes e das
humilhaes; ela logo se tornar doce e salutar. Lembre-se de
que Davi buscou por longo tempo aquilo que pudesse ser mais
doce e mais agradvel ao homem, sem poder encontrar; e foi
perguntando a si mesmo que coisa seria esta que ele deu a si
mesmo esta admirvel resposta: Como bom e agradvel viver
em meio aos meus irmos![33]. Mas se Deus no considerar a
propsito nos fazer participar da excelente benesse desta
pacincia e desta obedincia, ao menos nos ser benfico
reconhecer nossa fraqueza e nossa misria, a fim de que, se
tivermos que passar nossa vida longe desta carreira,
permaneamos cheios de estima pelos que a percorrem, e, por
intermdio de nossas preces, peamos a Deus as graas de que
eles necessitam para combater corajosamente e obter a
vitria. assim que este bom padre, este excelente mestre
da vida espiritual me convenceu por passagens e autoridades
extradas do Evangelho e dos Profetas, e pela terna afeio
que ele demonstrava, que nada havia de comparvel
recompensa e coroa que se pode obter vivendo sob o jugo da
obedincia. Antes de partir deste paraso de delcias para
regressar aos arbustos e espinheiros das minhas palavras, que
no podem seno lhes desagradar e ser-lhes inteis, quero
ainda lhes dizer algumas coisas dos religiosos deste
mosteiro, e das raras virtudes que eles praticavam vocs
encontraro grandes benefcios espiritais.

41. Tendo o abade deste mosteiro avisado que durante o


ofcio, ao qual eu assistira muitas vezes, alguns irmos
haviam andado trocando palavras, lhes ordenou em tom severo
que permanecessem na porta da igreja durante uma semana,
prosternando-se diante de todos os que entravam e saam para
lhes pedir perdo. Ora, os que ele condenara assim eram
clrigos, e dentre eles havia alguns que tinham sido honrados
com o sacerdcio.

42. Observei um dia que durante o canto dos salmos havia um


monge que era mais atento do que os outros, que tinha uma
devoo extraordinria e que, sobretudo no comeo dos salmos
e dos hinos parecia falar a algum. Perguntei-lhe porque agia
assim. para que, respondeu-me ele, desde o comeo, eu
rena todos os meus pensamentos e as faculdades de minha alma
para lhes dirigir estas palavras: venham adorar a Jesus
Cristo, nosso rei e nosso Deus, e prosternem-se a seus
ps[34].

43. Prestei tambm especial ateno ao que era encarregado do


refeitrio, e vi com espanto que ele trazia pequenas
tabuinhas cintura, sobre as quais escrevia a cada dia todos
os pensamentos que tinha, a fim de prestar contas exatas ao
abade que comandava o mosteiro. Aquilo que ele fazia outros
tambm faziam, e entendi que era porque o superior lhes havia
ordenado.

44. Um irmo, por haver falsamente acusado a outro de se


entregar a conversas vs e tolas, foi impiedosamente
condenado pelo superior a ser vergonhosamente expulso do
mosteiro, e a permanecer por sete dias inteiros no vestbulo
que ficava porta da casa, durante os quais ele no devia
fazer outra coisa do que suplicar que lhe deixassem entrar e
que lhe perdoassem a falta cometida. Ora, ele cumpriu esta
penitncia de to bom corao que o abade, sabendo-o, e
sabendo tambm que durante os seis primeiros dias ele no
comera nada, mandou dizer-lhe que, se ele tinha um desejo
verdadeiro de retornar ao mosteiro, deveria estar resoluto em
viver da por diante dentre os penitentes, o que este irmo,
tocado de verdadeiro esprito de compuno, aceitou de bom
grado. O abade ento ordenou que o reintroduzissem e o
encaminhassem ao lugar destinado aos que choravam e expiavam
seus pecados, o que foi executado imediatamente. E como a
ocasio nos leva a falar deste mosteiro dos Penitentes,
contarei algumas coisas deste.

45. Este local ficava a aproximadamente uma milha do mosteiro


e era comumente chamado de Priso. Todas as consolaes
humanas estavam ali banidas; jamais se via ali fogo algum, o
leo e o vinho no entravam nos mantimentos consumidos, que
consistiam em po e alguns legumes inspidos. O abade enviava
para esta triste casa todos os monges que, depois de sua
profisso religiosa, caam em alguma falta considervel, e
eles eram de tal modo encerrados, que no lhes era possvel
sair nem viver juntos, mas apenas a ss ou, no mximo, em
dois. Eles a permaneciam at que o Senhor desse a conhecer
ao abade que suas faltas haviam sido perdoadas e que eles
estavam reconciliados com Deus. O superior geral lhes havia
dado como superior especfico um excelente homem chamado
Isaas, que deles exigia uma orao quase constante e
praticamente no lhes dava descanso. Entretanto, para impedi-
los de cair no abatimento e no desnimo, ele distribua entre
eles uma certa quantidade de folhas de palmeira, com as quais
eles teciam pequenas cestas. Assim era a vida e a disciplina
dos penitentes, que buscavam com ardor ver a face do Deus de
Jac.

46. belo admirar seus trabalhos e sua penitncia, mas


salutar imit-los; mas seria tolice no reconhecer a fraqueza
humana e pretender imediatamente seguir suas pegadas.

47. Assim, se nossa conscincia nos dirige admoestaes


merecidas, consideremos com dor os pecados que cometemos, at
que Deus queira lanar um olhar favorvel penitncia que
fazemos, aos esforos que nos conduzem a desejo violento de
nos reconciliarmos com Ele, de recebermos o perdo por nossas
faltas, de transformarmos o arrependimento e a dor
dilacerante de nossos coraes em deliciosa alegria, conforme
as palavras do rei-profeta: Suas consolaes, meu Deus,
encheram meu corao de alegria, segundo a multitude e a
grandeza das dores que afligiam meu corao[35]. Lembremos
ainda, segundo nossa necessidade, destas outras palavras de
Davi: Senhor, foram grandes, numerosas e cruis as aflies
com que voc me oprimiu! Mas enfim voc se voltou para mim,
deu-me a vida e me retirou do abismo em que eu havia
cado[36].

48. Feliz, portanto, quem, no desejo de agradar a Deus, se


violenta todos os dias e suporta com pacincia e resignao o
desprezo e as injrias! Este participar abundantemente, no
duvidemos, da glria dos mrtires e da alegria dos
supliciados. Feliz o monge que, em sua profunda humildade,
no se v seno como o mais vil e desprezvel dos homens, e
no cr merecer seno a humilhao e o rebaixamento! Feliz
aquele que soube deixar morrer sua prpria vontade, e se
abandonar sem reservas conduta do diretor que Deus lhe deu
como pai e mestre espiritual! Seu lugar ser direita de
Cristo crucificado.

49. Mas observem bem que o homem que no quer sofrer nenhuma
correo, justa ou injusta, age diretamente contra os
interesses eternos de sua salvao, enquanto que aquele que a
recebe com pacincia e alegremente obtm incontestavelmente o
perdo de seus pecados.

50. Assim, apresentem a Deus, em esprito e verdade, a


confiana e o afeto que vocs tm para com seu pai
espiritual; e, por uma graa singular, Deus o far conhecer o
amor e a ternura que vocs tm por ele, e este conhecimento
os inspirar a trat-lo com doura e respeito; e, conforme
vocs o queiram, ele se tornar seu amigo devotado.

51. No pequena prova de confiana em seu superior


apresentar-lhe todas as tentaes que voc experimenta: desta
forma voc seguir o caminho da salvao, mas dele se
afastar terrivelmente se esconder nas trevas interiores do
corao estas serpentes cruis e funestas.

52. Se vocs querem saber se tm pelos irmos um amor slido


e verdadeiro e uma afeio terna e sincera, verifiquem se os
pecados dos quais voc os considera culpados o entristecem e
desolam, e se as graas abundantes que eles recebem de Deus,
e o progresso que fazem na virtude o enchem de alegria e de
prazer.

53. Numa discusso, quem quer sustente obstinadamente uma


opinio, mesmo verdadeira, e um sentimento fundamentado,
demonstra estar enfermo da doena do demnio, que o
orgulho. Se for diante de seus iguais que ele age assim,
talvez ainda possa se curar pela correo que ir receber de
seus superiores; mas se for diante de seus superiores,
cremos, humanamente falando, que sua doena incurvel.

54. De fato, como poder observar as regras e os deveres de


obedincia em suas aes algum que os viola com tanta
insolncia em suas palavras? E no agir ele nas outras
coisas mais necessrias e mais importantes tal como o faz nas
que so menores e menos necessrias? Vemos assim que ele
trabalha em vo e que no colher, com sua pretensa
obedincia, seno um julgamento terrvel e uma sentena de
morte.

55. Quem, com disposio santa e inteno pura e reta, se


submete e se dedica inteiramente vontade de um diretor
sbio e zeloso, no v a morte chegar seno como um doce
sono, ou melhor, ele a espera e a deseja todos os dias como
sendo o comeo de uma nova vida; pois ele confia em que no
ser dele, mas do diretor de sua alma, que Deus cobrar
explicaes.

56. Quem recebe com prazer e por haver solicitado, das mos
de seu superior, alguma funo ou cargo a exercer, e que em
seguida comete alguma falta ou tropea no exerccio desta
tarefa, ser a si mesmo e no a seu superior que dever
culpar, pois as armas que recebeu, recebeu por seu prprio
movimento e por sua prpria vontade. Ele deveria us-las
contra o inimigo e desastradamente se serviu delas para ferir
seu prprio corao. Mas se, ao contrrio, foi contra sua
vontade, depois de lembrado seu superior de sua fraqueza e de
sua incapacidade e depois de ter rogado humildemente e com
insistncia que este no pensasse nele, se apesar disto ele
foi obrigado a receber este encargo e a se dedicar a execut-
lo, deve faz-lo com coragem; pois se ele vier a cair, sua
queda no ser mortal.

57. Mas eu ia esquecendo de lhes apresentar, caros amigos, um


po delicioso e salutar para alimento de suas almas; quero
lhes falar da virtude admirvel desses monges que, para se
acostumar a receber com a maior pacincia e a mais perfeita
caridade as injrias, as afrontas e o desprezo dos outros, se
reuniram para exercitar a resignao sob toda espcie de
humilhaes, ultrajes e admoestaes.

58. A alma que pensa sem cessar em confessar seus pecados


encontra em cada pensamento um antdoto eficaz contra o
perigo de comet-los novamente; pois ns nos entregamos com
muita facilidade s faltas que escondemos nas trevas.

59. Assim, ainda que no estejamos na presena de nosso


superior, se, por meio de uma viva representao, o
imaginamos no meio de ns, esta imagem de sua presena em
muito contribuir para que evitemos com cuidado tudo o que
sabemos desagrad-lo em nossas tarefas, nossas conversas,
nosso repouso, nossa alimentao e em todas as coisas; se nos
conduzirmos desta maneira, praticaremos uma verdadeira
obedincia. De resto, os discpulos verdadeiros e sinceros
veem a ausncia de seu superior como uma infelicidade real, e
se afligem com isto, enquanto que os maus discpulos se
alegram.

60. Um dia eu perguntei a um dos mais virtuosos padres do


mosteiro como ele tornara a obedincia uma companheira fiel e
inseparvel da humildade; eis a resposta que ele me deu:
Quem pratica a obedincia, disse-me ele, no apenas
obediente, mas ainda cheio de reconhecimento. Assim, mesmo
que ele ressuscite os mortos, que ele possua o dom das
lgrimas, que ele desfrute da paz soberana do corao, ele
sempre pensar que s possui estes benefcios por intermdio
de seu superior, que ele s desfruta deles em virtude de suas
oraes.

61. Por isso ele estar isento de todo sentimento de


presuno e de vanglria. Como poder ele se orgulhar,
sabendo que no por seu mrito nem por suas virtudes que
ele possui todas estas coisas, mas apenas pelo auxlio de seu
superior? isto que faz com que o hesiquiasta seja de certo
modo incapaz de partilhar desta humildade interior em meio s
coisas de que falamos, pois mais fcil para ele crer que
por suas foras e seu trabalho que ele consegue levar a cabo
as boas obras que pratica.

As duas armadilhas do demnio.

62. Assim, quando um monge que est submetido a um superior


evitar as duas armadilhas do demnio, ele permanecer, como
um verdadeiro discpulo de Jesus Cristo, sob o jugo de uma
obedincia eterna.

63. O demnio no cessa de tentar de mil maneiras diferentes


aos que fazem profisso de obedincia: tanto ele procura
perturbar e manchar sua imaginao com pensamentos e imagens
impuras, a fim de revoltar a carne contra o esprito, quanto
ele enche seus coraes de penas, sofrimento e tristeza; aqui
ele os incentiva irritao e ao mau humor, e procura todas
as vias capazes de paralisar sua vontade e de tornar sua
virtude estril e v; l ele leva intemperana nas
refeies, negligncia na prece, preguia no sono; enfim
ele envolve seu intelecto em nuvens e trevas espessas, a fim
de que, afadigando-os, os faa crer que intil praticar a
obedincia, que eles no extraem nenhum benefcio espiritual
de seus esforos e dos sacrifcios que fazem, e que, ao invs
de avanar na perfeio, do marcha a r. assim que pouco a
pouco ele os desencoraja e os desgosta das santas ocupaes
comandadas pela obedincia, e os fazem abandonar
miseravelmente o campo de batalha; muitas vezes ele sequer
lhes d tempo de ver e reconhecer que Deus, para fornecer a
seus servidores uma ocasio favorvel para praticar de modo
mais perfeito a humidade e a obedincia, permite que o
tesouro de suas virtudes lhes seja subtrado; mas este um
efeito da Bondade de Deus, e ele nos devolver este tesouro
mais rico e mais precioso.

64. Porm, malgrado as longas importunaes do demnio,


acontece a alguns de alcanar o objetivo, por sua corajosa
pacincia, vencendo-o e pondo-o em fuga. Mas assim que
acabamos de vencer este demnio da desobedincia, j outro
aparece, com novos truques e novas tentaes, para nos tentar
e nos perder.

65. Com efeito, eu vi monges que, depois de se terem inteira


e generosamente entregues ao esprito da obedincia,
obtiveram de Deus, com o auxlio de seu superior, grandes
sentimentos de compuno e de penitncia, alcanando um
estado de sublime doura, modstia, castidade, fervor e
constncia, vencendo e submetendo seus apetites desregrados e
vivendo num santo e fervoroso amor a Deus. Ora, os demnios,
invejosos de sua felicidade, para conseguir faz-los cair
deste bem-aventurado estado, trabalharam por inspir-los
interiormente e para que cressem que seriam capazes de viver
na solido da por diante, e que eram fortes o bastante na
virtude para ousarem esperar, no repouso da solido, a paz
soberana da alma e uma doce e celeste tranquilidade. Mas o
que aconteceu? Estes infelizes se deixaram enganar. Eles
deixaram o porto e se fizeram ao mar; a tempestade os
surpreendeu sem condutor e sem piloto; as ondas furiosas dos
pensamentos impuros e das outras tentaes logo atacaram e
emborcaram a frgil barquinha que carregava seu tesouro e a
eles prprios. Foram-se assim num triste naufrgio e
pereceram da maneira mais miservel.

66. De fato, no necessrio que o mar se agite, se enfurea


e se revolte para rejeitar sobre a praia os restos e as
imundcies que os rios e os crregos despejam nele? Do mesmo
modo nossa alma agitada de tempos em tempos para se
desembaraar da sujeira que nossas paixes, que so como rios
em relao a ela, lhe trazem; e, se refletirmos bem, veremos
que em nossa alma, como no mar, uma grande tempestade
normalmente seguida de uma grande calmaria.

67. Quem tanto obedece como desobedece a seu superior


semelhante a algum que coloca sobre os olhos doentes ora um
excelente colrio, ora cal viva. A Escritura diz: Se um
edifica e outro destri, o que poder obter cada um, seno
trabalho e sofrimento?[37].

68. Portanto, vocs que so filhos e servidores obedientes do


Senhor, no se deixem confundir pelo demnio do orgulho e
jamais confessem seus pecados ao seu superior usando um nome
falso; pois a vergonha que vocs experimentam neste mundo
que evitar a vergonha eterna no outro. Mostrem, sim, mostrem
a nu todo seu mal a seu mdico espiritual; digam-lhe sem
temor e com simplicidade: Meu Pai, esta falta toda minha;
este ferimento minha prpria obra; tanto um como outro me
ocorreram por que vivi na negligncia; no posso culpar a
ningum: eu mesmo fui seu autor, impossvel eu me escusar
por ter sido levado pelos maus exemplos de meus irmos, pelas
tentaes dos demnios, pelas fraquezas e limitaes de meu
corpo ou por qualquer outra causa; foi apenas em razo de
minha tibieza, de minha preguia e de minha negligncia que
eu ca.

69. Quando vocs se apresentarem para fazer a confisso de


seus pecados, adotem os modos, a postura e as maneiras de um
criminoso; que seu rosto anuncie modstia e humildade e que
voc encham seu esprito com o pensamento de seus pecados;
que seus olhos no mirem seno a terra; se puderem, lavem os
ps de seu pai espiritual com lgrimas amargas e abundantes,
como fariam se estivessem diante do prprio Jesus Cristo.
Porm, ao confessar os pecados, cuidado e defendam-se de uma
tentao muito funesta: os demnios redobram ento seus
esforos para nos levar a no fazer uma confisso completa e
sincera, ou a nos confessarmos sob um nome inventado, ou para
no colocarmos nossas faltas sobre outro, como se tivessem
sido a causa ou a ocasio.

70. Se o hbito que adquirimos de fazer uma coisa qualquer se


torna to forte e to poderoso que pode vencer e sobrepujar
todos os obstculos da natureza, quanto mais no poder o
hbito de fazer boas obras, ajudados e sustentados pela graa
de Deus?

71. Creiam-me, meus filhos, se desde o incio vocs se


entregarem inteiramente ao desprezo, aos sofrimentos e s
humilhaes, vocs no tero que combater suas paixes por
muitos anos, logo vocs as vencero e encontraro a preciosa
paz do corao.

72. Portanto, no negligenciem em fazer a confisso de seus


pecados ao seu diretor com disposies to santas e humildes
como se fosse ao prprio Deus. Oh! J vi pecadores felizes
que, por sentimentos de verdadeira contrio, por uma
confisso humilde e completa, por preces fervorosas, logo
amoleceram a severidade de seu juiz, que parecia inexorvel e
transformaram seu rigor e sua indignao em misericrdia e
ternura. por isso que vemos no Evangelho que so Joo, este
digno precursor de Jesus Cristo, tendo de conferir o batismo
aos que se apresentavam para o receber, obrigava-os a fazer a
confisso de seus pecados. Ora, ele no tinha necessidade
desta confisso, mas a exigia para buscar a salvao dos
pecadores que recorriam ao seu ministrio.

73. No devemos nos espantar se, depois de havermos


confessado nossos pecados com as disposies requeridas,
ainda nos restem combates a sustentar; pois devemos saber que
mais fcil lutar contra a corrupo de nossos corpos, que
nos humilha, do que contra o corao que se enche de si, que
nos eleva.

74. Vo com calma e amansem seu ardor, quando lhes contarem a


vida e as virtudes dos anacoretas que vivem no deserto; e no
creiam poder abraar este tipo de vida que estaria acima de
suas foras, pois, pela obedincia, vocs caminham sob o
estandarte do primeiro mrtir.

75. Assim, se lhes faltar fora e coragem durante o combate,


no abandonem o posto que ocupam, pois nos momentos
difceis da vida que temos mais necessidade de um mdico
esclarecido e hbil. Ora! preciso diz-lo? Aquele que,
ainda que protegido e dirigido pela sabedoria e a experincia
de um superior, mesmo assim se deixa cair, levaria um tombo
mortal e no conseguiria mais se levantar se estivesse a ss
e privado de socorro!

76. Assim sendo, verdadeiro afirmar que quando temos a


infelicidade de cair em alguma falta, os demnios, para
aproveitar nossa queda e preparar nossa perda eterna, nos
sugerem e nos inspiram fortemente o desejo e o desgnio de
nos retirarmos para a solido. Mas evidente que por meio
desta tentao, se eles pudessem nos fazer sucumbir a ela,
estes inimigos de nossa salvao querem apenas acrescentar
uma ferida sobre outra e nos desorientar eternamente.

77. Se o mdico espiritual que temos no momento nos declara


que impossvel conseguir a cura que queremos para nossa
alma, no devemos perder a coragem, mas buscar um outro e nos
confiarmos s suas mos; pois devemos saber que muito poucos
doentes se curaram sem o socorro de um mdico. Eh! Quem
ousar sustentar um sentimento contrrio? Um navio que
naufraga apesar de ser dirigido por um bom e valente piloto
teria se salvado da tempestade se ele no estivesse ali? Quem
ousar afirm-lo?

78. a obedincia que produz a humildade e a humildade


produz a paz e a calma na alma; pois ela a liberta das
tempestades das paixes e lhe leva perfeita vitria sobre
seu prprio corao. isto que o rei-profeta nos ensina com
estas palavras: O Senhor se lembrou de nossa humilhao e
nos libertou das mos dos nossos inimigos[38]. Nada pode nos
impedir de afirmar que a obedincia engendra a preciosa paz
do corao, pois ela produz a humildade e a humildade faz
existir esta paz, que por sua vez aperfeioa e coroa esta
humildade. Assim, a obedincia o princpio e a causa da
humildade, e a paz da alma, que filha da humildade, confere
sua me a perfeio ltima. assim que Moiss, que a
imagem da obedincia, deu comeo lei, e que Maria, que a
imagem da perfeita paz da alma, conferiu a perfeio final
humildade.

79. Merecem ser severamente punidos por Deus estes doentes


que, conhecendo a destreza e a sabedoria de seu mdico pelos
benefcios j obtidos, abandonam-no com desdm, e recorrem
aos cuidados de outro qualquer a quem preferem.

80. No deixem as mos de quem em primeiro lugar os


apresentou ao Senhor, pois vocs no encontraro outro por
quem possam ter uma afeio mais respeitosa.

81. Assim como um soldado sem experincia se expe a um


grande perigo se se separar de sua companhia para ir sozinho
combater o inimigo, tambm se expe ao perigo o monge que,
sem ter passado pelos exerccios espirituais e sem conhecer o
modo como so combatidas e vencidas as paixes, deixa a
sociedade dos irmos para dirigir-se s, na solido, fazer a
guerra aos demnios. A temeridade do soldado coloca-o em
risco de perder a vida do corpo, e a do monge de perder a
vida da alma. assim que o Esprito Santo nos diz que vale
mais estarem dois juntos do que permanecer s[39]; ou seja,
para combater eficazmente seus maus hbitos com o auxlio e a
assistncia do Esprito Santo, preciso que o filho seja
assistido pelo pai espiritual.

82. Tirar de um cego seu guia; do rebanho, seu pastor; do


passageiro, o condutor; da criana, seu pai; do doente, seu
mdico; do navio, o piloto; no equivale a colocar todas
essas pessoas e coisas em perigo de morrer? No estar
exposto mesma infelicidade aquele que, sem o socorro de seu
pai espiritual ser temerrio o bastante para declarar e
fazer a guerra aos demnios? Ora! Seus inimigos se lanaro
sobre ele, o perfuraro c om suas lanas e o deixaro
estendido no campo de batalha.

83. Aqueles que pela primeira vez se apresentam num lugar


onde se cuida de doentes, deve ter tomado precaues no
sentido de conhecer as doenas que os afetam; e os que pensam
em se submeter ao jugo da obedincia devem saber qual a
humildade que possuem no fundo do corao, pois, se os
doentes percebem que sua cura se opera na medida em que as
dores diminuem, os doentes da alma no podem sentir sua cura
espiritual seno na medida em que vejam a humildade crescer
em seus coraes, na medida em que envergonhem, se condenem e
detestem suas vidas passadas.

84. Portanto, consultem sua conscincia para ver as marcas de


suas almas, assim como consultam o espelho para ver as marcas
de seu rosto. Se agirem assim, isto lhes bastar.

85. Os monges que vivem na solido sob a direo de um pai


espiritual s tm por inimigos os demnios que se opem
normalmente salvao dos homens; mas os que passam sua vida
num mosteiro tm que combater no apenas os demnios, mas
muitas vezes os homens. Os primeiros, por estarem sempre sob
os olhos de seu pai, cuidam de no transgredir suas ordens;
os ltimos, por estarem raramente em presena de seu
superior, esto expostos a viver na negligncia. Mesmo assim,
estes ltimos, caso estejam cheios de fervor e pacincia,
podem vantajosamente suprir esta ausncia pela doura, a
resignao e a humildade com as quais suportaro tudo o que
os pode mortificar e fatigar de parte de seus irmos, e assim
merecer a dupla coroa da glria.

86. Estejamos atentos e tomemos todas as precaues


possveis; pois um mosteiro como um porto cheio de navios:
fcil que seus balanceios constantes os joguem uns contra
os outros, ferindo-os mutuamente. O mesmo pode ser dito dos
monges, ainda mais se em meio a eles existir alguns com humor
bilioso e irascvel.

87. Quando estivermos em presena de nosso superior,


mantenhamos o mais escrupuloso silncio, e no deixemos
transparecer que o fazemos por sua causa, mas porque aquele
que ama e observa o silncio discpulo da sabedoria e atrai
para si as maiores luzes em todas as coisas.

88. Um dia observei um monge interromper seu superior; e lhes


digo que desisti de v-lo alguma vez sob o jugo da verdadeira
obedincia, porque ele usava as palavras de seu pai
espiritual no para se humilhar, mas para se elevar.
89. Devemos distinguir com prudncia e sabedoria, observar
com toda ateno possvel e pesar com perfeita circunspeco
o tempo, a maneira e as condies em que devemos preferir
orao os exerccios de que nos encarregamos, pois no
devemos faz-lo preferir os exerccios orao nem
sempre, nem nas mesmas condies, nem da mesma maneira.

90. Quando voc se encontrar no meio dos seus irmos, cuidado


para no parecer mais justo nem mais sbio do que eles, seja
no que for; do contrrio, voc incorrer em dois males:
primeiro, voc fatigar sensivelmente seus irmos com esta
justia falsa e que no passa de aparncia; segundo, voc no
tirar para si seno uma tola vaidade e um orgulho bobo.

91. Seja zeloso para com sua alma, mas jamais deixe
transparecer exteriormente sua regularidade; jamais se sirva,
para este miservel fim, nem de aes, nem de gestos, nem de
palavras, nem de qualquer outro sinal secreto, e viva sempre
com esta precauo at sentir que se corrigiu desta paixo
que o faz buscar os louvores dos outros e que o leva a julgar
e desdenhar seus irmos. Se ainda assim voc notar que ainda
est inclinado a desprez-los, estude a si mesmo fortemente
para conformar sua conduta deles, e para jamais se
distinguir nem se separar deles por um esprito de vaidade e
de vanglria.

92. Conheci um discpulo que, em presena de outros, se


servia dos louvores que seu superior merecia, bem como de
suas virtudes, para gloriar a si mesmo; mas este miservel,
por colher assim no campo de seu mestre, ao invs da glria e
da honra que imaginara colher, s encontrou vergonha e
confuso, pois todos se puseram a lhe dizer: Como pode
acontecer que uma rvore to boa e excelente produza um ramo
to ruim e marcado por tamanha esterilidade?.

93. No pensemos ter adquirido uma pacincia perfeita apenas


porque aguentamos sem tremer, ou porque sofremos
generosamente as admoestaes e as reprimendas humilhantes de
nosso superior. Suportaramos da mesma maneira os ultrajes e
as injrias feitas por todo tipo de gente? Ora! Se sofremos
mansamente o que nosso superior nos faz suportar porque o
tememos, porque no queremos desagrad-lo, nem faltar-lhe com
o reconhecimento pelos servios que nos presta, o que alis
o mnimo que lhe devemos.
94. O essencial para ns receber humilhaes e desprezo da
mo de quem quer que seja e faz-las passar por dentro de
nossa alma como uma gua que d sade e vida; pois esta
bebida amarga no nos apresentada seno para que dela nos
sirvamos para nos purificar dos humores malignos e
corrompidos que tornam nossa alma doente. Se voc receber
assim as contradies e o desprezo, porque uma pureza
perfeita estar se tornando ornamento de sua alma e que o
brilho da luz divina no mais se eclipsar no seu esprito.

95. Quem quer que veja um grande nmero de monges repousarem


tranquilamente sobre a sabedoria e os cuidados que tenha por
eles, este deve cuidar para no se glorificar, mas deve se
lembrar de que existe sempre uma infinidade de ladres e de
bandidos ao seu redor e ao redor dos seus, prontos a lhes
estender armadilhas ocultas. Gravem profundamente em seus
coraes este aviso que nos deu Jesus Cristo: Depois que
vocs tiverem feito tudo o que lhes foi ordenado, digam
ainda: Somo servidores inteis, s fizemos o que devamos
fazer[40]; pois somente na hora da morte saberemos de fato o
juzo que ser feito a respeito de nossas boas obras e de
nosso trabalho.

96. Um mosteiro nesta terra uma espcie de paraso; convm,


portanto, que sendo assim imitemos os sentimentos e as
afeies dos anjos que rodeiam o trono de Deus no cu, e que
cumprem com tanta perfeio suas adorveis vontades. Ora,
neste paraso terrestre, vemos monges cujo corao to seco
e duro como as pedras; em compensao, h outros que, por
suas lgrimas de terna e sincera compuno merecem as
consolaes divinas. Mas lembremos aqui da bondade inefvel
do Senhor: os primeiros so duros e insensveis para que no
caiam no orgulho, que lhes caberia se tivessem a
sensibilidade dos segundos; e estes so consolados pela
abundncia de lgrimas que espalham.

97. Um pequeno fogo capaz de amolecer uma grande massa de


cera; muitas vezes uma pequena humilhao, um ligeiro desdm
inesperado pode amansar, corrigir e fazer desaparecer a
rudeza de esprito, a dureza, a insensibilidade e o
endurecimento do corao.

98. Conheci dois monges que se escondiam num lugar secreto


para examinar os trabalhos e para escutar os gemidos de
alguns santos atletas de Jesus Cristo. Um deles agia assim
com um corao direito e simples: era pelo ardente desejo de
imit-los; o outro, ao contrrio, tinha uma pssima inteno:
ele o fazia a fim de poder depois rir-se publicamente destes
bons monges, ridiculariz-los e desvi-los de seus santos
exerccios de piedade.

99. O monge que vive numa comunidade no extrai tantos frutos


do canto dos salmos como da orao, pois a confuso das vozes
dissipa a ateno e perturba o intelecto.

101. Combata corajosamente a leviandade do esprito, quando


os pensamentos so vagabundos e volteis, e force-o a
retornar sobre si mesmo. De resto, Deus no exige dos que
ainda so crianas em relao obedincia que faam oraes
isentas de toda distrao. No se desencorajem ento se,
durante suas oraes, seu esprito vague de l para c por
causa de pensamentos involuntrios; mas conduza-o fortemente
do recolhimento interior. Somente os anjos so capazes de uma
ateno sustentada e perseverante.

102. Quem quer que, no segredo de seu corao, tenha


resolvido se expor mil vezes morte do que, por toda sua
vida, no sustentar com vigor a guerra que iniciou um dia
para salvar sua alma, este no cair facilmente nos
inconvenientes que acabei de assinalar. A inconstncia e as
mudanas de lugar so fontes inesgotveis de males e
infelicidades; assim que os que passam de um lugar a outro,
de um mosteiro a outro, no esto longe de receber o epteto
vergonhoso de infames. Nada melhor para produzir a
esterilidade das boas obras numa alma do que esta
inconstncia continuada.

103. Assim, se vocs chegarem a uma escola de medicina


espiritual que lhes seja totalmente desconhecida e se se
colocarem sob a direo de um pai espiritual que vocs no
conhecem, o que devem fazer examinar com ateno qual o
esprito e qual a maneira de viver de todos os que esto
reunidos naquele local. Se vocs acharem que os operrios e
os ministros da salvao so capazes de lhes trazer algum
alvio e de contribuir para a salvao de sua alma, sobretudo
se vocs encontrarem a um remdio singular e eficaz contra a
vaidade e o inchao do corao aproximem-se deles sem temor e
com confiana, renam-se com eles, vendam-se a eles; e para
passar o contrato de venda, apresente-lhes o ouro precioso da
humildade; como papel, a obedincia; como lacre, seus
servios e trabalhos; e por testemunhas os anjos. Rasguem
diante deles a cdula vergonhosa por cujo valor vocs se
tornaram escravos de suas prprias vontades; pois se vocs
at ento erraram por a, sem se fixar em parte alguma,
perderam o preo pelo qual Jesus Cristo os resgatou. Que este
mosteiro seja para vocs como um tmulo, de onde os mortos
no devem sair seno para comparecer diante do soberano Juiz;
e se alguns saem por outras razes, temo que seja porque
esto realmente mortos. por isso que devemos pedir ao
Senhor que nos afaste desta espantosa infelicidade.

104. Os preguiosos, para no fazer as coisas cansativas que


lhes so ordenadas, costumam alegar a necessidade de orar;
mas quando as ordens so doces ou agradveis, tm tanta
vontade de orar quanto de se queimar.

105. Existem monges que desistem dos encargos e dos empregos


que exercem no mosteiro, mas por motivos bem diferentes; pois
uns os abandonam em favor de um irmo, ou porque algum lhes
pede; outros no querem exerc-los por preguia e comodidade;
estes renunciam por uma v ostentao, aqueles os deixam com
grande prazer para serem mais livres.

106. Se voc entrar para uma comunidade e perceber que sua


alma, em lugar de se iluminar com novas luzes, mergulha ao
contrrio nas trevas mais profundas, no h outra coisa a
fazer do que sair o mais depressa possvel; pois ainda que o
homem de bem possa sempre e em qualquer lugar permanecer um
homem de bem, o bandido no se torna bom em parte alguma.

107. No mundo, as maledicncias e as calnias produzem


normalmente discusses e animosidades; num mosteiro a
intemperana mata todas as virtudes e inspira o horror vida
religiosa. Assim, se lhes foi dado reduzir escravido este
domnio tirnico, vocs desfrutaro da paz e da tranquilidade
da alma em qualquer lugar; mas se ela estabelecer seu imprio
sobre vocs, sua salvao estar em perigo iminente de agora
at a morte.

108. Deus, por um favor singular, concede aos que so


verdadeiramente crianas obedientes de ver e contemplar as
virtudes de seu superior, e lhes esconde corretamente as ms
qualidades e as ms aes. O demnio, que o inimigo
declarado da virtude, faz tudo ao contrrio.

109. Amigos, tomemos o mercrio como imagem da perfeio da


obedincia; e atentemos para o fato de que embora ele esteja
continuamente em movimento e se coloque sob os demais
lquidos ele sempre puro e no se mancha com nenhuma
impureza.

110. Portanto, quem praticar a virtude com santo ardor deve


cuidar para no crer que os demais se entregam negligncia;
pois eles merecem ser julgados e condenados mais severamente
do que os que condenam e criticam a preguia. Eis por que eu
penso que o bom patriarca Lot fui considerado digno de ser
chamado de justo, porque, vivendo no meio de mpios, ele
jamais condenou ningum.

111. verdade que sempre e em toda parte devemos trabalhar


para preservar nossa alma da dissipao, das perturbaes e
da inquietude; porm isto ainda mais importante no momento
em que nos entregamos aos exerccios da prece e ao canto dos
salmos: pois ento que os demnios redobram seus esforos
para encher nosso esprito de distraes, a fim de que
percamos o fruto de nossa santa ocupao.

112. verdadeiramente servidor de Deus aquele que, ao mesmo


tempo em que serve a seus irmos, eleva seu corao ao cu e
nele fixa seus votos, sua afeio e seus sentimentos, e no
cessa de bater porta de Deus com preces fervorosas.

113. As injrias, o desdm, as humilhaes e todas as coisas


duras e sofridas produzem a amargura do absinto na alma de
quem est devotado aos deveres da obedincia; enquanto que os
louvores, os aplausos e as honras enchem de uma doura
semelhante do mel o corao de quem s busca as coisas
doces e agradveis. Mas lembremo-nos de quais so as
propriedades do mel e do absinto: enquanto que este purifica
o estmago e as entranhas dos humores malignos e biliosos,
aquele quase que s os faz aumentar.

114. Tenhamos uma confiana sem limites naqueles que, no


Senhor, so encarregados de conduzir nossa alma ao porto da
salvao, ainda que nos parea que eles de ns exigem coisas
contrrias salvao; pois sobretudo nestas
circunstncias, nestas circunstncias penosas, que nossa
confiana em suas luzes e em sua sabedoria testada no fogo
da obedincia e da humildade; e a marca menos equvoca que
podemos dar da firmeza de nossa f consiste em cumprir sem
hesitar aquilo que nossos superiores nos ordenam, ainda que
suas ordens nos paream opostas ao que esperamos e desejamos.

115. J dissemos que a humildade nasce da obedincia; e a


prudncia religiosa tem sua origem na humildade. Os doutores
a chamam de discernimento. Cassiano disse desta virtude
coisas admirveis num excelente tratado especfico sobre o
tema. Ora, esta excelente virtude orna o esprito com luzes e
lhe comunica at a faculdade de prever as coisas futuras.
Considerando assim estas vantagens, quem poder se recusar a
percorrer a bela carreira da obedincia? Foi ela que o
salmista cantou: Voc preparou, meu Deus, em sua grande
Bondade, um tesouro para seu povo; e este povo feliz,
podemos assegurar que so os monges obedientes, e que este
tesouro preciosa a presena de Deus em seus coraes.

116. No percam jamais a lembrana deste grande servidor de


Deus, deste intrpido atleta de Jesus Cristo, o qual, durante
os dezoito anos em que viveu em perfeita obedincia a seu
superior, nunca recebeu dele uma s vez estas palavras de
consolo: Meu filho, desejo que voc se salve! Mas, enquanto
os homens lhe recusavam esta consolao, o prprio Deus o
consolava admiravelmente, pois ele no dizia apenas no fundo
do seu corao: Desejo que voc seja a sombra dos meus
eleitos, palavras que parecem expressar algo incerto, mas
ele assegurava que ele de fato fora salvo; na verdade, o que
ele lhe anunciava era um estado certo e indubitvel.

117. Dentre os que vivem sob o jugo da obedincia, existem


alguns que no do ateno ao fato de viver uma iluso
bastante funesta: trata-se daqueles que, conhecendo a
condescendncia de seu superior, lhes pedem e obtm cargos,
encargos e exerccios conforme a seus gostos e inclinaes;
mas que saibam e compreendam estes infelizes que assim
obtendo o que desejam perdem todo direito coroa e
recompensa destinadas perfeita obedincia: pois a
obedincia consiste numa renncia completa e absoluta a toda
dissimulao ou vontade prpria.
118. Acontece s vezes que um monge, tendo recebido uma ordem
de seu superior, prev que se a cumprir sofrer, e assim, por
este motivo, no a cumpre; como tambm acontece que outro
monge, prevendo a mesma coisa, executa sem hesitar a ordem
recebida. Pergunto: qual dos dois monges teve a conduta mais
santa e mais conforme ao esprito da obedincia?

119. preciso nunca pensar que o demnio possa agir de modo


contrrio vontade que ele sente de nos fazer mal; vocs
devem estar convencidos desta verdade pelo exemplo daqueles
que, tendo vivido por algum tempo numa cela ou num mosteiro,
com doura e pacincia, caram depois no relaxamento. Assim,
se experimentamos em ns o desejo de deixar um mosteiro para
passar a outro, devemos, a fim de saber o que Deus quer de
ns, examinar seriamente se no lhe agradar mais que
permaneamos aonde estamos; pois me parece que esta uma
tentao que devemos combater; ao sermos atacados assim pelo
demnio, devemos nos defender.

Histria de santo Accio.

120. Eu me tornaria culpado de malcia e crueldade se


passasse em silncio certas coisas a respeito das quais no
se pode calar. Ora, foi Joo Sabata, a quem prezo
muitssimo, que me contou estas coisas maravilhosas; e voc
sabe por experincia prpria, caro pai, o quanto este grande
homem foi isento de paixes e de exaltao, e o quanto lhe
aborrece a vanglria nas palavras. Eis o que ele me disse:
Havia num mosteiro na sia onde eu vivi um tempo, um ancio
muito negligente e de m conduta; digo-o no para julgar as
intenes secretas de um homem, mas em honra da verdade.
Aconteceu, no sei como, que este ancio tinha como discpulo
Accio, jovem de admirvel simplicidade e espantosa
prudncia. Este jovem monge sofria de parte de seu mestre
tantos e to maus tratos, que muitas pessoas recusariam crer;
pois ele no se contentava em cobri-lo e oprimi-lo com
injrias, ultrajes e humilhaes, mas ainda o espancava e
enchia seu corpo de ferimentos e chagas por causa dos golpes
que descarregava sobre ele todos os dias. Accio sofria todas
essas indignidades com uma pacincia e uma sabedoria
verdadeiramente espantosas. Ora, como eu via que a cada dia
este jovem era tratado mais cruelmente, como se fosse o mais
vil dos escravos, lhe dirigia algumas palavras de consolo
quando o encontrava: Caro Accio, dizia-lhe eu, com est
voc hoje? O que h de novo?. Como resposta, este bom monge
me mostrava os olhos ternos e sem vivacidade, um pescoo
maltratado e uma cabea cheia de feridas e contuses; e como
eu sabia quo grande e generosa era sua pacincia, eu me
contentava em lhe dizer, para encoraj-lo: Coragem, caro
irmo, tudo vai bem, sim, tudo vai bem: sofra sempre com
doura e resignao, e logo voc colher os frutos abundantes
da pacincia. Ora, depois de haver passado nove anos sob a
ferocidade deste impiedoso ancio, sua alma santa voou para o
cu. Cinco dias depois da morte de Accio, seu mestre foi
procurar um ancio solitrio, homem muito recomendado por
suas virtudes, e, depois de t-lo saudado, lhe contou da
morte de seu santo e fervoroso discpulo. Mas o bom velho lhe
respondeu que em verdade ele no podia acreditar. Ento o
mestre de Accio acrescentou: Venha comigo, e ver que no o
engano. O ancio se levantou, e foi com este padre at o
tmulo daquele grande e valente atleta de Jesus Cristo.
Quando ali chegou, como se Accio estivesse vivo e, de
fato, ele no estava morto, mas dormia o sono dos justos
ele lhe dirigiu estas palavras: Irmo Accio, verdade que
voc morreu?. Ento aquele nobre filho da obedincia, mesmo
morto, deu este ilustre exemplo de submisso: pois ele
obedeceu quele que o interrogava, e lhe respondeu: Como
poderia, meu Pai, um discpulo sincero da obedincia
morrer?. Estas palavras tocaram o mestre do jovem monge com
to grande terror que, desmanchado em lgrimas, este caiu com
o rosto por terra e se apressou a pedir ao superior do
mosteiro que lhe permitisse fixar moradia junto ao tmulo de
seu discpulo. Ele obteve esta permisso e a passou o resto
de sua vida, praticando uma modstia, uma pacincia e uma
submisso perfeitas. Ele no cessava de repetir aos padres
desta comunidade: Pais meus, eu cometi um homicdio. Ora,
meu pai, acho bom lhe dizer que o ancio que falou com o
jovem Accio foi o prprio abade Joo, que nos conservou e
contou esta histria, sob outro nome, at que eu descobri que
fora com ele mesmo que a coisa tinha se passado.

Histria de Joo o Sabata, ou de Antiquio.

121. Ele me disse que enquanto vivia ainda no mesmo mosteiro,


notou um outro monge que estava sob a disciplina de um padre,
homem de idade avanada, de esprito manso, paciente,
razovel e moderado; mas como seu jovem discpulo percebeu
que seu mestre era cheio de respeito e precauo para com
ele, considerou sabiamente que esta conduta lhe seria to
funesta e daninha como fora a muitas outras pessoas. Ele se
permitiu solicitar ao bom monge que lhe permitisse se retirar
de sua companhia. Ora, como este tinha ainda um outro
discpulo, no viu dificuldade em atender ao pedido. Ento o
jovem deixou seu mestre, que bondosamente lhe deu muitas
cartas de recomendao, para que ele pudesse entrar para
outro mosteiro no Ponto. Na primeira noite em que ele passou
neste mosteiro, ele viu em sonhos pessoas que o pressionavam
fortemente a que lhes pagasse uma soma de dinheiro que ele
lhes devia; estas, depois de examinarem seriamente as coisas,
convenceram-no de que ele era devedor de cem libras de ouro.
Ao acordar, ele entendeu o que significava esta viso. Por
isso ele no cessava de repetir para si mesmo: Infeliz
Antiquio (este era seu nome), bem verdade que lhe restam
muitas dvidas a quitar. Continuou ele: Eu passei trs anos
neste mosteiro obedecendo cegamente a tudo o que me ordenavam
e, como eu era estrangeiro, todo mundo me desprezava, me
humilhava e me maltratava. Depois de haver passado assim
esses trs primeiro anos, tive uma segunda viso, na qual
algum me quitava apenas dez libras de outro das cem que eu
devia. Ao acordar, compreendi a advertncia que me vinha do
alto e disse para mim mesmo: Se durante trs anos de
trabalhos e penas voc no pagou mais do que dez libras de
ouro, quando poder voc, miservel, quitar o restante?
preciso, pobre Antiquio, que para se libertar inteiramente
voc suporte trabalhos maiores e devore humilhaes mais
profundas. Tomei a resoluo extraordinria de me fingir de
louco, mas sem fazer crer que havia perdido inteiramente a
razo. Os padres do mosteiro, vendo-me neste estado, e
conhecendo por outro lado a prontido com que eu cumpria as
ordens que me eram dadas, me encarregaram de todas as
ocupaes mais penosas e mais difceis da casa, considerando
a mim como o dejeto da comunidade. Passei mais treze anos
neste estado, ao fim dos quais as mesmas pessoas que vira me
apareceram outra vez durante o sono e me quitaram enfim toda
a dvida. Ora, durante todos esses anos, quando os padres me
oprimiam com maus tratos, o pensamento da enorme dvida que
eu tinha a pagar me enchiam de fora e coragem e me faziam a
tudo sofrer com pacincia e resignao. Eis, meu caro padre
Joo, aquilo que Joo o Sabata, este tesouro de sabedoria,
me contou a respeito de si mesmo, sob o nome falso de
Antiquio. Foi ele prprio quem por sua heroica pacincia,
pode ser libertado de toda a dvida e mereceu o perdo de
todos os seus pecados.

122. Mas consideremos ainda qual foi sua rara prudncia nos
julgamentos que fazia sobre as disposies internas dos
homens, prudncia admirvel que ele s adquiriu por causa de
uma perfeita obedincia. No tempo em que permaneceu no
mosteiro de So Sabas, trs monges se apresentaram a ele para
se colocar sob sua disciplina. Ele os recebeu com afeto
especial, e fez tudo o que sua caridade lhe sugeriu para
alivi-los da fadiga da viagem; mas, depois de trs dias este
santo ancio lhes dirigiu estas palavras: Meus irmos, ele
lhes disse, eu no passo de um miservel pecador;
impossvel para mim fazer o que vocs me pedem. Porm, os
monges no levaram em conta sua resposta nem as razes que
ele alegava, e lhe pediram insistentemente para que os
recebesse como discpulos, to grande consideravam sua
virtude. E, como viram que nada o poderia fazer mudar de
ideia, lanaram-se a seus ps e imploraram que ele lhes desse
ao menos algumas regras salutares de conduta e que lhes
dissesse de que modo e em que lugares deveriam passar o resto
de suas vidas. Cedendo ento suas ardentes splicas e
sabendo que eles receberiam seus conselhos com submisso e
humildade, este santo ancio disse a um deles: Meu filho,
agradar a Deus que voc viva na solido sob a direo de um
pai espiritual. Depois, dirigindo-se ao segundo: Quanto a
voc, v e consagre ao Senhor sua vontade, sem nada reservar
para si, carregue a cruz que ele lhe destinou: viva num
mosteiro, em sociedade com os irmos, e voc ter
indubitavelmente um tesouro no cu. Enfim ele disse ao
terceiro: Quanto a voc, preciso que no haja um instante
sequer de sua vida em que voc no pense nesta sentena do
Senhor: Aquele que perseverar at o final, este ser
salvo[41]. Vo, ento, e faam de modo a que dentre todos os
homens no haja ningum mais severo do que aqueles que vocs
tomarem como mestres e condutores de suas vidas religiosas;
jamais se separem deles e a cada dia avaliem como leite e mel
os desprezos e humilhaes que os fizerem passar. A estas
palavras, um dos irmos respondeu a este grande homem: Mas,
se este pai espiritual viver na preguia e na negligncia, o
que devemos fazer?. Ele disse: Ainda que voc o veja cair
em alguma falta que lhe cause horror, permanea com ele e
contente-se em dizer para si mesmo: meu amigo, o que voc
veio fazer aqui?. Ento, triunfante da tentao, voc
sentir todo o balo do orgulho se esvaziar, e o fogo da
concupiscncia diminuir e se extinguir.

123. Todos ns que tememos ao Senhor devemos nos esforar


para combater sob seus estandartes com toda a energia e
coragem de que somos capazes, por medo de, colocados numa
escola de virtude, ao invs de aprendermos a cincia feliz
das boas obras, aprendermos a funesta arte de nos tornarmos
viciosos e falsos, astuciosos e enganadores, raivosos e
colricos; e no se espantem que estas infelicidades ocorram
s vezes: pois, na medida em que estamos neste mundo, seja
dentre tripulantes, seja dentre operrios, seja onde for, os
inimigos de nosso rei, os demnios, no nos atacam com grande
violncia; mas quando eles nos veem sob os estandartes de
nosso divino General, e percebem que ele nos recebeu a seu
servio, dando-nos armas, uma espada, um uniforme militar,
ento eles fremem de furor, procuram e empregam toda sorte de
meio de armadilhas para nos derrotar; por isso que estamos
essencialmente obrigados a vigiar sem cessar, por ns e ao
redor de ns.

124. Eu vi crianas amveis pela inocncia e simplicidade de


suas almas e pela beleza de seus corpos que, enviadas para
casas de educao para a se formar na cincia e na sabedoria
e adquirir outros conhecimentos teis, pelo comrcio que
tiveram com condiscpulos viciosos e perversos, se
perverteram tambm, e infelizmente s aprenderam a mentira, a
astcia e a corrupo do corao. Quem tiver inteligncia que
entenda porque falo isto.

125. impossvel que aqueles que se aplicam com todas as


foras para adquirir a cincia da salvao no faam nela
grandes progressos. Mas admiremos aqui a divina Providncia:
enquanto uns sabem o progresso que adquiriram, outros no o
percebem.

126. Um banqueiro que pretende gerenciar bem seus negcios


no deixa de verificar diariamente, a conta exata e
circunstanciada dos ganhos e perdas que fez durante a
jornada. Mas ele no poder saber com certeza aonde est, se,
a cada instante, no anotar os negcios que trata; desta
maneira que lhe ser possvel ter um conhecimento exato
daquilo que fez a cada dia.
127. Quando recriminamos um mau monge, o vemos em seguida
triste e de mau humor, ou ento se atirando com baixeza aos
ps do superior que o admoestou, a fim de lhe apresentar mil
desculpas. Mas ao se humilhar assim, o faz menos pelo desejo
de praticar a humildade e a submisso do que para por fim a
uma coisa que o afadiga. Assim, se vocs forem mortificados
por reprovaes amargas, saibam guardar um silncio salutar e
suportem com pacincia corajosa o ferro e o fogo das
correes severas aplicadas s suas almas, que os purificaro
e espalharo no seu esprito luzes abundantes; e quando seu
mdico espiritual terminar sua operao prosternem-se aos
seus ps para pedir-lhe perdo; porque se vocs o fizerem no
momento em que ele os repreende com zelo, ele poder no os
escutar, e at rejeit-los.

128. Os que vivem em comunidades devem sem dvida travar uma


guerra mortal contra todos os vcios; mas existem dois, acima
de tudo, que devem atacar todos os dias com mais vigor e
coragem do que todos os outros. Estes dois vcios so a
intemperana e a clera. Ora, eu digo que estes dois vcios
devem ser objeto especial dos cenobitas, porque estas paixes
encontram na sociedade dos homens que vivem conosco os
alimentos que melhor lhes convm.

129. Ainda que estejamos bem longe de praticar virtudes raras


e sublimes, o demnio, para nos fazer quebrar o jugo da
obedincia sob o qual temos a felicidade de viver, no deixa
de nos sugerir isto em pensamento e nos inspirar um desejo
intenso disto. Penetrem no ntimo dos monges imperfeitos e
temerrios e vocs vero que eles suspiram pela vida
solitria, que eles desejam com ardor os jejuns mais
rigorosos, a prece mais contnua e mais recolhida, a
humildade mais profunda, a mais constante meditao da morte,
a compuno mais viva, a vitria mais completa sobre suas
paixes, o silncio mais absoluto e uma pureza de anjo. Mas
como, por uma conduta secreta da divina Providncia, eles no
puderam, desde o comeo de seu noviciado, praticar segundo
seu desejo estas belas e excelentes virtudes, logo se
desencorajaram, abandonando as prticas mais comuns e se
retirando do mosteiro. O demnio os enganou, fazendo-os
desejar fora de hora a prtica destas virtudes, a fim de que
eles no pudessem, pela perseverana, adquiri-las no tempo
conveniente. Mas no so apenas os monges cenobitas que o
demnio busca enganar, ele ataca tambm os anacoretas.
assim que, para desencorajar e derrubar os solitrios, este
inimigo enganador e mentiroso lhes prega e exalta a
felicidade dos monges que vivem em comunidade; ele elogia a
hospitalidade que eles exercem, os servios de caridade que
fazem uns aos outros, sua afeio e sua unio fraternais, os
cuidados afetuosos e assduos que eles tm para com os
doentes, e mil outras vantagens a fim de os fazer desgostar
do gnero de vida que abraaram, e faz-los se perderem por
uma falsa via.

130. Mas preciso confessar que a hesquia s est alcance


de um pequeno nmero, e esta vida de perfeio no convm
seno queles a quem o Senhor, por graas especiais e
consolaes celestes, sustenta e fortifica nos trabalhos
penosos que eles tm que suportar e nos combates difceis e
cruis que eles tm que sustentar.

131. O conhecimento que temos de nossas ms disposies e de


nossos defeitos deve nos fazer buscar e escolher de
preferncia o estado de obedincia como sendo o mais
apropriado e mais conveniente. Por conseguinte, aquele que se
sente levado intemperana e aos prazeres carnais cuide para
se colocar sob a disciplina de um superior experimentado e de
inflexvel rigor na prtica da temperana e da sobriedade,
mais do que de um fazedor de milagres, de um amigo da
hospitalidade ou de um homem que goste de servir os outros
mesa. Quem sente seu corao agitado pela vaidade e possui o
orgulho escolha como pai espiritual um homem de grande
severidade e perfeita austeridade, que jamais lhe mostre um
rosto risonho e satisfeito, mas que seja constantemente sem
clemncia nem doura.

132. Jamais devemos procurar como diretor um homem que, por


sua sabedoria e luzes, seja capaz de predizer as coisas
futuras e de prever o que vai acontecer. Desejemos e
procuremos os verdadeiros doutores, que, por seus bons
exemplos na prtica da obedincia e da humildade, e por sua
slida cincia, possam nos curar de nossas enfermidades
espirituais, nos dar regras de conduta, nos fazer conhecer o
estado e o lugar que so necessrios para que nos
santifiquemos.

133. Assim, se vocs tm o desejo sincero de se devotarem


inteiramente obedincia, no percam nunca de vista o
exemplo que nos deu Abacir; como este grande servidor de
Deus, digam com frequncia a si mesmos: Meu superior quer
provar e conhecer a minha fidelidade; por isso que ele me
coloca prova. Este pensamento os impedir que se enganem,
vocs no se afastaro da via a seguir; e se vocs tiverem
nele uma confiana to mais completa e um amor to mais
afetuoso quanto mais ele os repreender com rigor e
severidade, esta ser uma marca certa e indubitvel de que o
Esprito Santo concedeu em visit-los e que ele habita
secretamente em seus coraes. De resto, observem bem que, se
vocs sofrerem com pacincia corajosa e constante s
admoestaes e humilhaes de seu superior, longe de se
glorificar e regozijar por isto, tero mil razes para chorar
e gemer; pois foi sua conduta que mereceu estas reprimendas
ou estas correes humilhantes, e que fez com que seu pai
espiritual ficasse de mau humor contra vocs.

134. No se perturbem nem fiquem espantados com o que vou


dizer, pois eu o direi apoiado e fundamentado sobre uma
autoridade slida: Moiss. Eu lhes digo que menos funesto
pecarmos contra Deus do que contra nosso pai espiritual. E
eis a razo: se com nossos pecados irritamos a Deus contra
ns, nosso pai espiritual pode acalm-lo e nos reconciliar
com ele; mas quando ofendemos nosso pai em Deus, a quem
poderemos recorrer para tornar Deus propcio a ns?
Entretanto, parece-me que Deus acalmar nosso superior, assim
como nosso superior acalmou a Deus em nosso favor.

135. Em tudo o que dissemos, existe uma coisa que devemos


examinar, considerar e pesar com grande cuidado e sem paixo:
saber em que circunstncias somos obrigados a sofrer com
amor e reconhecimento, com pacincia e sem nada dizer as
admoestaes feitas por nosso superior, e em que
circunstncias nos permitido, para nos desculparmos,
explicar a ele o porqu de nossa conduta merecedora de sua
indignao e reprimendas. Quanto a mim, penso que todas as
vezes em que as humilhaes no recaem seno sobre ns
devemos guardar silncio; pois uma excelente ocasio para
enriquecer e ornamentar nossa alma. Mas se estas humilhaes
so nocivas ao prximo, me parece que, por caridade e pelo
bem da paz, estamos autorizados a romper o silncio e
defender nosso irmo, cuja inocncia conhecemos.
136. Ningum pode instruir to bem sobre as vantagens da
prtica da obedincia como aqueles que no mais a praticam,
pois eles compreendem bem em que estado de felicidade viviam
enquanto estavam sob o jugo da submisso.

137. Quem estiver verdadeiramente possudo do desejo de


adquirir a paz e a tranquilidade da alma, e de encontrar a
Deus, sente uma grande perda quando passa um dia em sua vida
sem sofrer alguma humilhao.

138. Assim como as rvores mais lanam razes fortes e


profundas quanto mais so agitadas pelo vento, tambm os que
vivem na obedincia se tornam fortes e invencveis quanto
mais so testados e provados.

139. Podemos dizer que era cego e recobrou a viso que nos d
Jesus Cristo aquele que, reconhecendo ser fraco demais para
levar a vida eremtica, sai da solido e se dirige para um
mosteiro para a se consagrar e se dedicar inteiramente aos
salutares exerccios da obedincia.

140. Generosos atletas do Senhor tenham coragem, tenham


coragem, sim, eu repito pela terceira vez: tenham coragem!
Perseverem em correr nesta bela carreira da obedincia e
escutem atentamente as palavras do Sbio: no mosteiro, o
Senhor os testa como quem prova o ouro na fornalha e os
recebe em seu seio com as vtimas que so sacrificadas para
serem oferecidas a ele nos holocaustos[42]. At agora,
tratamos dos degraus do paraso que esto expressos no nmero
dos quatro evangelistas. Atleta, continue a correr sem temor!
QUINTO DEGRAU

Da verdadeira e sincera penitncia.

1. Naquele tempo, Joo correu mais depressa do que Pedro[43];


por isso que a obedincia vem aqui antes da penitncia.
Pois quem chega primeiro a imagem da obedincia, e o outro
a imagem da penitncia.

2. A penitncia o restabelecimento do batismo. uma


espcie de contrato por meio do qual prometemos a Deus
corrigirmos as faltas de nossa vida passada e viver melhor o
futuro. A penitncia, se eu ousar me servir desta expresso,
esta carregada com os interesses da humildade; trata-se de
uma renncia perfeita a todos os prazeres dos sentidos, de um
julgamento severo que fazemos contra ns mesmos, da ocupao
mais sria de uma alma que se aplica de bom grado aos
afazeres de sua salvao eterna. Ela a filha mais velha da
esperana e a inimiga mortal do desespero. O verdadeiro
penitente um criminoso que confessa seus pecados sem
desculpar nenhuma infmia. A penitncia tem o dom de nos
reconciliar com Deus, fazendo com que pratiquemos as boas
obras opostas s faltas cometidas; ela que descarrega.
Purifica e santifica a conscincia; ela que nos leva a
sofrer generosamente todas as penas e todas as aflies que
nos acontecem. Aquele a quem ela anima se torna de uma
atividade admirvel no sentido de buscar e empregar todos os
meios capazes de puni-lo; ela que combate e supera a
intemperana, e que acusa sem negociar no tribunal da
conscincia.

3. Todos vocs que, com suas mltiplas ofensas, irritaram a


clera de Deus, acorram, aproximem-se, venham e escutem:
renam-se aqui e considerem comigo as maravilhas que aprouve
a Deus me permitir descobrir e me dar a conhecer, para o
exemplo e a salvao de todos. Comecemos por dizer algumas
coisas a respeito desses homens devotados a Jesus Cristo por
meio de profundas humilhaes, dignos, por isso mesmo, dos
nossos louvores e dos primeiros lugares. Escutemos,
contemplemos e imitemos estes belos modelos, ns todos que
tombamos em faltas mortais! Levantem-se e estejam atentos,
vocs que ainda esto sob o vergonhoso jugo do pecado!
Irmos, deem ouvidos s minhas palavras; e vocs, quem quer
que sejam, se desejam sinceramente se reconciliar com Deus
por meio de uma verdadeira converso, no deixem de prestar
aqui toda a sua ateno.

4. Tendo eu sabido eu, que no passo de um homem preguioso


e imperfeito no tempo em que eu residi no grande mosteiro
de que falei, que havia alguns religiosos que, num outro
mosteiro aos qual chamvamos de Priso, levavam uma vida
especialmente extraordinria e que praticavam toda a
perfeio da humildade, pedi ao santo abade do grande
mosteiro, ao qual estava submetida esta outra comunidade,
permisso para ir at l, para ser testemunha do que l se
passava. Ora, este grande luminar, este santo abade me
permitiu de boa vontade, at por que ele temia causar-me a
menor pena.

5. Assim que cheguei ao mosteiro dos Penitentes (que


poderamos chamar de regio do choro e dos gemidos, a Priso,
para dizer numa palavra), fui testemunha, se me permitido
dizer, de coisa que o olho de um moleiro e preguioso jamais
viu, que o ouvido de um negligente jamais escutou, e que o
esprito de um indolente jamais compreendeu; fui testemunha,
repito, de aes e de palavras capazes de fazer violncia ao
prprio Deus, de trabalhos e de mortificaes to poderosas a
ponto de merecer em pouco tempo sua Clemncia e sua
Misericrdia.

6. Vi alguns destes culpados inocentes passar noites inteiras


de p, com os ps imveis, lutando vigorosamente contra o
cruel e inoportuno sono, no se concedendo o menor repouso,
acusando a si prprios de lassido e negligncia, instando a
si mesmos na perseverana e fazendo a si prprios as mais
humilhantes reprimendas.

7. Vi outros que, com os olhos humildemente postos no cu,


imploravam pela Clemncia e a Bondade de Deus com palavras e
um tom de voz que penetravam a alma de piedade e compaixo.

8. Vi ali outros que, como infames celerados, com as mos


amarradas s costas e cobertos de oprbrio, presas da mais
dilacerante aflio, curvavam humildemente o rosto terra,
considerando-se indignos de olhar o cu, e que no ousavam
falar, nem soltar gemidos, nem fazer preces.

9. O pensamento aterrorizador de seus pecados, os remorsos


abrasadores de sua conscincia terrificada, a vergonha e o
oprbrio que sentiam, os preenchiam, e atormentavam de tal
maneira, que eles eram incapazes de ousar pronunciar o santo
nome de Deus para invoc-lo, eles no sabiam nem como comear
nem como terminar as preces que queriam lhe enderear, e eram
assim obrigados a lhe apresentar uma alma muda, um esprito
cheio de trevas, um corao quase entregue aos horrores do
desespero. Outros vi que, tristemente sentados no cho,
cobertos de cinzas e vestidos com um rude cilcio, escondiam
o rosto entre os joelhos e arranhavam a face penitentemente.

10. Vi ainda outros que batiam no peito sem cessar,


relembrando com arrependimento inexprimvel o estado de
felicidade em que viviam quando praticavam a virtude. Dentre
estes ilustres penitentes, alguns inundavam a terra com a
abundncia de suas lgrimas; outros, incapazes de chorar,
feriam-se com golpes; outros, no conseguindo comprimir a dor
que lhes trespassava o corao, o exprimiam por solues
semelhantes aos lamentos dos que assistem ao funeral de seus
prximos; outros, em suas celas, rugiam como lees em suas
cavernas, frementes de temor e medo, afogando-se em seus
gemidos, ou, por vezes, incapazes de conte-los, explodiam em
gritos contundentes e lamentosos.

11. Vi alguns que por seus gestos pareciam estar fora de si,
e que, pela dor que suportavam, permaneciam numa estupefao
indizvel, e mantinham o mais triste silncio. Poderiam ser
tomados facilmente por pessoas privadas de razo, insensveis
e mortas para todas as funes da vida; e, no entanto, eles
s se achavam neste estado por terem descido s maiores
profundezas da humildade, e as lgrimas que derramavam no
eram outra coisa que a expresso de sua contrio viva e
inflamada.

12. Observei outros que, com a cabea encurvada para o cho,


imveis como esttuas, estavam entregues a profundas
meditaes, e que, pelos muitos movimentos de suas cabeas,
anunciavam a grandeza de sua aflio, gemiam e rugiam de
tempos em tempos como lees. Encontrei ainda alguns outros,
cheios de uma deliciosa esperana, que conjuravam o Senhor
com preces admirveis pedindo-lhe que lhes concedesse a
remisso de todas as suas faltas. Outros vi que, devido a uma
inexprimvel humildade, julgavam ser indignos de perdo, e
proclamavam em alta voz que lhes era impossvel satisfazer
justia de Deus, por causa da grandeza e da enormidade de
seus crimes. Alguns conjuravam sem cessar a Deus que os
punisse severamente neste mundo, mas que lhes concedesse sua
Amizade e os coroassem com suas Misericrdias no outro.
Alguns ainda, oprimidos sob o peso terrvel da reprovao de
suas conscincias, oravam com humildade e fervor ao Deus de
toda bondade que ao menos os preservasse dos suplcios
eternos que eles mereciam, e se declaravam pblica e
sinceramente indignos do Reino dos cus.

13. Oh!, clamavam eles, desde que esta graa no nos seja
recusada, devemos estar contentes. Isto foi o que vi destas
almas verdadeiramente humildes, mortificadas e varadas de
dor, que conheciam e sentiam toda a enormidade de seus
pecados. E eles ainda soltavam gritos e lamentos, dirigindo a
Deus preces to fervorosas e animadas, que teriam amolecido a
dureza e a insensibilidade de rochedos. Eu podia ouvi-los em
seu santo estremecimento, humildemente prosternado contra a
terra, repetir sem cessar: Sim, Senhor, ns reconhecemos e
confessamos que muito merecemos toda sorte de penas e
castigos, e que, ainda que o universo inteiro se reunisse a
ns para chorar pelo nmero e a grandeza de nossas ofensas,
todas estas lgrimas no seriam suficientes para lavar nossas
almas e satisfazer sua Justia; apenas uma graa lhe pedimos,
suplicamos com insistncia e lhe conjuramos que no no-la
recuse: de no sermos corrigidos por sua Clera, nem
castigados por sua indignao[44], mas sermos recebidos nos
braos de suas Misericrdias. Basta-nos, Senhor, no
precisarmos mais temer as terrveis Ameaas, e que sejamos
preservados dos suplcios inexprimveis e incompreensveis
que merecemos; pois no ousamos pedir que nos livre de todas
as penas que nos pecados atraram, nem que nos conceda um
perdo inteiro e perfeito. Oh, Senhor, com que descaramento
poderamos ns solicitar tal favor ns que tivemos a
audcia sacrlega de profanar e de violar os votos de nossa
santa profisso, e de pisotear indignamente a graa
inestimvel que recebemos que sejam perdoadas, to
generosamente e com tanta bondade, as faltas que cometemos
antes de deixar o mundo.

14. Caros amigos, foi neste lugar, sim, neste lugar de


penitncia que eu vi pontualmente a realizao daquilo que
Davi dizia de si mesmo[45], foi l que tive sob meus olhos o
espetculo enternecedor de pessoas mergulhadas na mais
desoladora aflio, e curvadas at o fim da vida sob o peso
imenso de sua dor; que todos os dias traziam a amargura de
sua tristeza estampada em seus rostos e expressa em seus
movimentos e no seu caminhar; e que, pela horrvel purulncia
que exalava de suas chagas, anunciavam que seus corpos, com
os quais no tinham nenhum cuidado e nem sequer pensavam
neles, estava coberto de ulceraes. A eu vi homens que
esqueciam de comer seu po, que misturavam suas lgrimas
agua que bebiam, que se alimentavam de cinzas em lugar do
po; cujos ossos, secos, eram envoltos apenas por uma pele
enrugada colada a eles; e cujo corao havia secado como a
erva batida pelos ardores do sol[46]. No os ouvi dizer seno
estas palavras: Infelizes de ns, os miserveis! Infelizes
de ns!; e tambm: com justia, sim, com justia, que
estamos neste estado destroado; enfim, tambm estas
noutras: Perdoe-nos, Senhor, ns lhe pedimos, perdoe-nos.
Mais adiante, outros enchiam o ar apenas com estas palavras:
Piedade, Senhor! Piedade!, enquanto outros ainda no
cessavam de repetir, com a voz lamentativa: Oh, Senhor, se
ainda podemos esperar, perdoe-nos! Sim, Senhor, queira nos
perdoar!.

15. Ora, dentre estes penitentes, havia alguns que, pelo


ardor de sua dor, tinham a lngua to inflamada e ardente que
no a suportavam dentro da boca; voc encontraria os que, em
busca de novos sofrimentos, permaneciam expostos aos ardores
do sol, enquanto outros se expunham aos rigores mais
insuportveis do frio; outros s bebiam gua o suficiente
para no morrer de sede; outros comiam com esforo um mnimo
de po, rejeitando o resto com justa indignao, e diziam a
si mesmos que, tendo estado desprovidos de sentimentos por
tanto tempo a ponto de viverem como vis animais, tinham se
tornado indignos de se alimentar como as criaturas racionais.

16. Ah! No meio desses homens, poderamos encontrar o menor


sinal de alegria? Poderamos ouvir a sequer uma palavra
intil? Seramos testemunha de qualquer impacincia ou
clera? Eles haviam esquecido at que os homens fossem
capazes de se atirar aos enfrentamentos, tanto sua grande
aflio havia extinguido em seus coraes todo movimento
desregrado. Encontraramos entre eles a menor aparncia de
discusso, o menor relaxamento, a menor licena nas
conversaes, o mais ordinrio cuidado com o corpo, o menos
aparente vestgio de vanglria, a mais fraca inclinao peara
as facilidades e as comodidades da vida? Pensariam eles no
vinho, nas frutas, nas comidas temperadas e nas carnes
preparadas? Teria o alimento que tomavam o menor sabor? Ora,
eles haviam perdido todo o sentimento por qualquer destas
coisas. Ocupar-se-iam eles talvez dos negcios do mundo?
Teriam algum pendor para fazer julgamentos, temerrios ou
fundamentados, a respeito de qualquer um dos irmos? Jamais.

17. Eles no falavam seno por meio de seus gemidos e suas


lgrimas, assim como a Deus. Alguns, como se estivessem s
portas do Paraso, mortificando o peito com golpes
redobrados, clamavam: Abra-nos, justo Juiz dos vivos e dos
mortos; abra-nos, ns o conjuramos, esta porta de felicidade
eterna, que fechamos com nossos pecados. Abra-nos!. Outros
no cessavam de repetir esta orao admirvel do Salmista:
Mostre-nos apenas, Senhor, um rosto favorvel, e seremos
salvos das mos cruis de nossos inimigos[47]. Voc poderia
encontrar algum que dizia sem cessar, como Zacarias: Meu
Deus, faa brilhar sua luz sobre todos os infelizes que se
assentam no meio das trevas e das sombras da morte[48]. Mais
adiante voc veria um que dirigia a Deus esta prece
fervorosa: Que suas Misericrdias nos previnam prontamente,
meu Deus[49]; pois estamos reduzidos ltima misria,
estamos perdidos sem voc, nos deixamos ir ao desespero e
tombamos em total erro. Noutra parte, voc poderia escutar
algum se perguntando esta triste questo: Pensam vocs que
o Senhor nos mostrar jamais um rosto sereno e benevolente, e
que ele derramar sobre ns as luzes de sua glria?[50],
enquanto outro indagaria com santa e penosa inquietao:
Creem vocs que possamos esperar que nossa alma atravesse
esta torrente de trevas, cujas guas so intransponveis[51],
e que o Senhor nos conceda alguma consolao?. Oh!
acrescentariam outros estamos de tal maneira ligados s
cadeias do pecado, que na verdade poderamos esperar que o
Senhor nos diga: Saiam, sejam enfim libertos de suas
correntes criminosas, vocs que vivem os rigores da
penitncia? Ah! Chegaro at ele nossos gemidos e nossos
gritos dolorosos?.

18. Enfim, eu os via todos imveis, fixados no pensamento da


morte, dizendo a si mesmos: que nos acontecer no momento da
ltima hora? Qual ser nosso julgamento? O que nos
tornaremos durante a eternidade? Passaremos desta terra de
exlio ao cu, nossa ptria querida? Pode ainda haver alguma
esperana para estes pobres pecadores imersos nas trevas e
cobertos de confuso? Tero nossas preces e nossas lgrimas
conseguido subir at o trono da divina Misericrdia? Ah!
Quantos motivos temos para pensar e crer que elas foram
rejeitadas, desprezadas e feridas por um ignominioso desdm!
E, ainda que tenham sido recebidas favoravelmente, tero sido
capazes de apaziguar a justa Clera de nosso Juiz? Quanto
tero elas conseguido abreviar nossa reconciliao com Deus?
Em que estado nos tero elas colocado diante de sua santa
Presena? Que favores e que graas tero elas obtido para
ns? Oh! Nossas bocas impuras e criminosas, nossos corpos
cheios de pecado certamente paralisaram sua eficcia. Tero
elas conseguido, seja muito, seja ao menos um pouco, nos
reconciliar com nosso soberano Juiz? Podermos ns ser
aliviados da metade das nossas iniquidades e curados da
metade de nossas chagas espirituais? Ah! Como so imensas as
dvidas que contramos! Quantos trabalhos no suportamos!
Que satisfaes teremos que prestar para ficarmos quites?
Ser que afinal nossos anjos guardies, que to indignamente
expulsamos, se reaproximaro de ns? No estaro eles
demasiadamente afastados? Oh! Se estes espritos celestes no
se dignarem retornas a ns, nossos esforos e nossos
trabalhos de nada nos serviro, estaremos para sempre sem
esperana de sermos libertados e de recuperar a preciosa
liberdade dos filhos de Deus[52], nossas preces no podero
inspirar nenhuma confiana bem fundamentada, elas no tero a
santidade necessria para alcanar o trono do Senhor, pois
preciso que nossos anjos, tornando-se outra vez nossos
amigos, as apresentem a Deus com suas mos puras e santas.

19. Indo adiante, ouvi outros que comungavam seus temores e


suas esperanas, dizendo entre si: pensam que fizemos algum
progresso com nossas penitncias? Acham que obteremos enfim o
objeto de nossos votos e de nosso desejo? Escutar Deus as
nossas oraes? Creem que ele nos abrir o seio de suas
Misericrdias e de sua Ternura? A todas estas questes,
outros respondiam: quem sabe se, como nossos irmos
habitantes de Nnive, no poderemos dizer que Deus revogar a
sentena terrvel que pronunciou contra ns, e que nos
livrar dos castigos rigorosos que merecemos? Ah! Para
receber este favor insigne, redobremos o zelo e a coragem,
cumprindo exatamente nossa penitncia. Quanta felicidade ser
para ns se ele abrir as portas de sua Ternura! E mesmo que
ainda no no-las abra, no deixemos de louvar e bendizer seu
santo Nome, pois sua Conduta a nossos olhos sempre justa e
cheia de equidade, e perseveremos at o fim de nosso caminho,
batendo na porta de seu Corao com nossos gemidos e nossas
lgrimas. Esta importunao constante e esta perseverana
talvez lhe faam alguma violncia, e quem sabe obteremos o
que buscamos com tanto ardor. Era assim que eles encorajavam
uns aos outros. Gritavam eles com santo entusiasmo: corramos,
caros irmos, pois temos que correr, e correr com todas as
nossas foras, pois perdemos a companhia celeste na qual
transcorriam nossos dias to doces e agradveis, e agira
estamos perdidos! Corramos, ento, corramos, e no poupemos
esta carne de pecado e corrupo: matemos, imolemos
generosamente nossos corpos: eles causaram a morte de nossas
almas!

20. Tal era a conduta, tais eram os sentimentos, e tais as


palavras destes santos penitentes que eram enviados Priso.
fora de permanecerem de joelhos, eles haviam coberto esta
parte do corpo de espessas calosidades; seus olhos, de tanto
derramarem lgrimas, estavam ressecados, j no tinham clios
e afundavam nas rbitas; as mas do rosto eram plidas e to
magras que mais se assemelhavam s de pessoas mortas; o peito
estava ferido pelos repetidos golpes que se infligiam, e
estes golpes lhes causavam dolorosos sangramentos.
Encontraramos neste mosteiro camas arrumadas? Veramos
roupas apropriadas e capazes de proteger contra o frio? Tudo
a estava em farrapos, largado, feio e cheio de vermes. Para
finalizar, diremos que os tormentos daqueles que so
possudos pelo demnio, a dor cruel dos que choram a morte de
seus prximos, o corao rasgado dos que so condenados ao
exlio, o suplcio dos parricidas, estas coisas no passam de
uma fraca imagem das dores, da aflio e dos sofrimentos
destes santos penitentes; as penas que essas pessoas que
mencionamos tiveram que suportar por necessidade nada so
comparadas com aquelas que estes generosos penitentes sofriam
voluntariamente. E no pensem, irmos, que estou relatando
uma fbula da imaginao: esta a prpria verdade.

21. Eu via estes penitentes extraordinrios conjurar seu


superior, este pastor excelente, este juiz sbio e
esclarecido, este anjo entre os homens, que lhes colocassem
colares de ferro ao pescoo, como se fossem infames
criminosos, algemas nas mos, pesos nos ps, e que os
deixassem neste estado cruel at que a morte os levasse ao
tmulo; e muitos ainda se consideravam indignos de serem
enterrados.

22. No me calarei; no, no passarei sob silncio por este


novo tipo de humilhao, ainda que inspire arrepios, nem por
este humilde amor a Deus, nem por este excesso de penitncia;
falarei agora da conduta de alguns dentre eles, quando
acreditavam haver chegado ltima hora e a ponto de
comparecerem diante do temvel tribunal de Deus. Quando estes
ilustres penitentes eram conduzidos ao lugar do mosteiro
reservados aos que estavam gravemente doentes, eles
conjuravam seu superior, ele que era este tesouro de luz e
sabedoria, por tudo o que lhe fosse de mais sagrado e
respeitvel, que lhes concedesse a graa de no honr-los com
a sepultura que dada a todos os homens, mas que atirasse
seus corpos ao rio, ou que os abandonasse no campo para a
voracidade dos animais selvagens. Assim o superior ordenava
que seus cadveres fossem atirados fora do mosteiro,
recusando a eles as honras do sepultamento e as preces
costumeiras da Igreja.

23. E que horrvel e arrepiante espetculo tnhamos diante


dos olhos, quando algum destes santos penitentes chegava
sua ltima hora! Neste momento todos os seus fervorosos
companheiros cercavam seu leito de morte; e estes homens,
devorados por uma sede ardente, presas da mais cruel das
aflies, inflamados pelo ardor e a vivacidade de seus
desejos e de seus votos, lhe exprimiam, com a conteno que
lhes inspirava a compaixo, por meio de suas palavras
lamentativa, por seus movimentos de cabea, os sentimentos da
mais terna e maior comiserao. O que h, querido irmo,
terno companheiro, diziam-lhe com uma doura que tocava o
corao, o que h de novo com voc? Como se sente neste
momento? Quer nos dizer alguma coisa? Quais so suas
esperanas? Quais so suas afeies e seus pensamentos? Voc
acredita ter obtido aquilo que buscou com tantas penas e
tanto ardor, ou teria voc trabalhado sem sucesso? Voc
conseguiu alcanar o porto da salvao, ou ainda teme um
triste naufrgio? Voc chegou diretamente ao fim de sua
viagem, ou ainda se encontra perdido? Voc tem uma esperana
certeira de haver recebido o perdo de seus pecados, ou no
tem nenhuma garantia de sua salvao? Voc se encontra em
plena liberdade de esprito ou ainda permanece em meio
perturbao e angstia? Sua alma foi iluminada pelas luzes
consoladoras do cu ou est ainda nas trevas e na noite da
confuso? Ter voc enfim escutado as palavras: Voc est
curado[53], seus pecados foram remidos[54], sua f o
salvou[55]? Ou, ao contrrio, estas sentenas terrveis:
Que os pecadores sejam lanados aos infernos[56], amarrem-
lhes os ps e as mos e atirem-no s trevas exteriores[57],
que o mpio seja levado, pois ele no ver a Glria do Senhor
em seu Templo[58]? Que respostas, caro irmo, poder voc
dar a todas estas questes? Fale-nos sem subterfgios e com
toda franqueza, a fim de que possamos conhecer um pouco da
sorte que tambm nos aguarda, pois, para voc, o tempo de
vida est se esgotando, e quando voc penetrar na eternidade,
j no existir tempo. Alguns respondiam com estas palavras:
Bendito seja Deus para sempre! Pois ele no rejeitou minha
orao nem retirou de mim sua Misericrdia[59]. Outros
respondiam: Bendito seja o Senhor, que no nos deixou ser
vtimas do furor e da voracidade dos dentes cruis de nossos
inimigos[60]. Outros, oprimidos pela dor que traziam no
corao, se contentavam em dizer: Poder nossa alma
atravessar esta torrente impetuosa, na qual as potncias do
inferno procuram faz-la perder-se?[61]. Estes falavam da
sorte, pois no estavam seguros de sua salvao, e temiam a
conta terrvel que teriam que prestar a Deus. Outros ainda
davam uma resposta ainda mais aflitiva: Infelizes de ns,
clamavam, infeliz da alma que no guardou os votos de sua
profisso! Eis a hora nica em que ela capaz de saber o que
ela merece por toda a eternidade!.

24. Tais so as coisas que vi e ouvi durante o tempo em que


permaneci neste mosteiro, e confesso com franqueza que ao
comparar minha preguia e negligncia com as impressionantes
mortificaes que estes ilustres penitentes praticavam com
tanto zelo e coragem, eu fui violentamente tentado a me
deixar levar pelo desencorajamento e o desespero. De resto,
de qualquer ngulo que se olhasse o mosteiro, era difcil
crer que aquilo fosse uma morada habitada por homens: pois
ele no se fazia notar seno pelas trevas e a obscuridade que
reinavam em todos os seus cmodos, pelo mau odor que exalava
de todos os cantos e pelo lixo e os trastes que estavam por
toda parte. Assim, com razo que ele era chamado de
priso e cubculo de criminosos; pois, apenas o olhvamos,
e nos sentamos penetrados pela tristeza e levados a
sentimentos de penitncia. Mas o que parece difcil e
impraticvel a certas pessoas, se torna fcil e mesmo amvel
aos que conhecem e sentem a perda que tiveram por abandonar a
inocncia e, com ela, os dons preciosos do cu. Com efeito,
uma alma que se veja privada da santa amizade que a unia
deliciosamente a Deus, e da confiana to doce e consoladora
que nele depositava; que perdeu toda esperana de poder neste
mundo desfrutar da paz perfeita do corao e da suprema
tranquilidade, que violou o selo de sua virgindade; que por
si mesma se despojou do tesouro inestimvel da graa e das
consolaes divinas; que rompeu a aliana augusta que fizera
com o Senhor; que extinguiu em si miseravelmente os ardores
celestes da caridade e fez secar a fonte das lgrimas que
derramava com tanta doura; uma alma que j no aoitada
pela lembrana dilacerante dos bens que perdeu e dos males
que fez, e que se encontra como que rasgada, destroada pela
dor que sente vista de sua loucura e de seus crimes, no
apenas se desvelar e se consagrar prontamente e com ardor
aos trabalhos e exerccios penosos de que falamos, mas, na
medida em que for capaz, se punir e se purificar por meio
de exerccios espirituais. E como poderia ela agir de outra
maneira, se ainda conservou em si a mnima centelha de amor e
de temor a Deus? Tais eram os sentimentos destes homens de
quem falamos; pois, ao fazer todas estas reflexes salutares,
e conhecendo de que alto grau de virtude caram, eles no
cessavam de repetir: O que aconteceu com os dias felizes que
vivemos? Que fizemos ns das boas obras que ento
praticvamos com ardor? Em outras ocasies, eles clamavam:
Onde esto Senhor, suas antigas Misericrdias[62], das quais
recebamos tantas e to grandes provas? Um outro dizia:
Lembre-se, Senhor, das humilhaes, das vergonhas e dos
trabalhos de seus servidores! Outro ainda gritava: Quem
poder me devolver ao estado em que me encontrava nos tempos
felizes que se foram, quando o prprio Senhor velava por mim
para me proteger, e sua lmpada derramava uma luz benfazeja
sobre minha cabea[63] e meu corao?

25. Era assim, e derramando lgrimas abundantes, que eles


expressavam o arrependimento por haverem dissipado to
grandes riquezas espirituais, e, no abismo profundo de sua
desolao, alguns pediam com inacreditvel ardor que fossem
possudos pelo pior dos demnios, a fim de comearem a sofrer
desde j; outros pediam insistentemente a Deus que os
castigasse com uma vergonhosa e humilhante epilepsia; outros
desejavam se tornar inteiramente cegos e ser transformados em
monstros medonhos, capazes de infundir horror aos homens e
lhes servir de espetculo, enquanto outros ainda queriam
perder o uso dos nervos e dos msculos e serem tomados de uma
paralisia universal; todos se considerariam felicssimos se,
sofrendo de tais males, pudessem evita os suplcios eternos.
Quanto a mim, caros amigos, confesso que no consigo
justificar o motivo pelo qual permaneci com prazer nesta
morada de tristeza e prantos; mas o fato que ali estava eu,
to satisfeito e contente, que j no pensava em mim, e,
arrebatado de espanto, j no era mestre de meus pensamentos
nem de meus sentimentos. Mas voltemos ao nosso tema.

27. Depois de permanecer por um ms no mosteiro da Priso, e


como, devido minha indignidade, j no conseguia suportar,
retornei o grande mosteiro e fui ao encontro do abade que o
presidia. Vendo-me diferente do que estava costumado, e
percebendo com a penetrao de seu esprito o espanto e a
admirao em que me encontrava, ele compreendeu facilmente
qual seria a causa de meu estupor e do meu arrebatamento, e
me disse: Muito bem, caro Joo, o q eu tem voc? Pode
examinar de perto os combates, os trabalhos e os exerccios
de nossos penitentes?. Si, meu Pai, respondi-lhe, eu os vi
e admirei; e estimo mais admirveis estes homens decados,
mas que choram e expiam suas faltas, do que os que no caram
e que nem pensam em chorar; pois, reerguendo-se desta
maneira, eles se colocam na feliz posio de no mais cair.
Voc tem razo, respondeu-me ele.

28. Esta lngua que jamais soube mentir me contou o seguinte


fato: H quase dez anos, tnhamos aqui um irmo que era to
cheio de piedade, que prestava tanto cuidado e ateno em ser
um verdadeiro soldado de Cristo, que estava animado de um
zelo to vivo e de to grande ardor nos exerccios da vida
religiosa, que, vendo-o em to boas disposies, eu tremia
por ele e temia muito que o demnio, invejoso de seus
virtudes e de seus mritos, no se serviria de seu ardor e
seu zelo para bater seu p contra alguma pedra de tropeo.
Ora, aquilo que quase sempre acontece com os que caminham com
excesso de precipitao, infelizmente aconteceu a este irmo:
ele teve uma queda. Mas logo veio me procurar. Era perto do
crepsculo. Ele me encontrou e mostrou a ferida que fizera em
sua alma; no abismo de sua dor, ele me conjurava
insistentemente que ali aplicasse ferro e fogo, e que lhe
ordenasse os remdios convenientes. Como ele viu que seu
mdico espiritual no iria aplicar o rigor e a severidade que
ele desejava, e como este pobre religioso no era indigno de
indulgncia, ele se atirou aos meus ps, molhando-os com suas
lgrimas e me pedindo que o enviasse Priso que voc
visitou; e, para conseguir me convencer, ele no cessava de
repetir que era impossvel dispens-lo de tal condenao.
Assim, pela violncia com que me tratou, ele praticamente me
forou a converter em rigor e severidade a doura e a ternura
que eu sentia por ele. Pude ver neste religioso o que no
costumeiro ver nos doentes, e que o contrrio aos curso
natural das coisas. E assim que eu concordei em dar-lhe a
permisso que pedia com tanta insistncia, ele correu
prontamente para os penitentes, para se tornar seu confrade e
imitador de seus trabalhos e de suas lgrimas. A contrio
que seu amor a Deus lhe fizera conceber a respeito de sua
falta era to viva e violenta, que oito dias depois de entrar
no mosteiro ele partiu deste mundo para se apresentar diante
do Senhor; mas, antes de morrer, ele teve o cuidado de pedir
que seu corpo fosse provado de sepultura. Desta vez, porm,
eu achei por bem no ceder ao seu desejo, e fiz com que
levassem seu corpo e o depositassem no cemitrio destinado ao
sepultamento dos padres. Eu o considerei digno desta honra,
por que aps uma penitncia de sete dias na Priso, Deus o
considerara capaz, no oitavo, de desfrutar da liberdade e da
felicidade dos cus. Com efeito, existe um religioso que
soube de maneira certa que antes mesmo que este ilustre
penitente se levantasse diante dos ps vis e desprezveis
daquele que lhe fala, ele j havia recebido o perdo de seu
pecado e estava perfeitamente reconciliado com Deus. Eh! No
nos espantemos, por que ele tinha no corao a mesma f que a
pecadora do Evangelho, e foi com esperana e confiana
perfeitas em Deus que ele molhou com suas lgrimas meus
miserveis ps. Pois tudo possvel quele que cr[64].
Quanto a mim, vi almas manchadas de pecados, e at possudas
pela loucura e o amor pelos prazeres sensuais, e que, no
obstante, por meio de exerccios de penitncia, pela presente
dos que amam a Deus e sobretudo pela considerao profunda de
seu triste estado, entregaram seu corao a Deus, amaram-no
unicamente, triunfaram de todo temor servil e conseguiram por
fim se entregar inteiramente aos santos ardores da caridade3.
Lembremo-nos de que nosso Senhor no disse pecadora
convertida: Ela tremeu muito, mas: Ela muito amou[65]. E
foi por este amor ardente que ela se livrou do amor carnal e
profano.
29. Depois de tudo, ilustres Padres, no posso me impedir de
pensar que as coisas extraordinrias que lhes contei
parecero inacreditveis a quase todo mundo, que alguns as
vero como impossveis e que enfim outros as tomaro como
motivo para se desencorajar e cair no desespero. Mas tambm
verdade que os coraes generosos e cheios de boa vontade e
coragem delas se serviro como um aguilho para estimul-los
na prtica perfeita das virtudes mais heroicas, como uma
flecha a trespass-los no amor a Deus, enchendo-os de zelo e
fervor. Para os que ainda no esto to avanados na piedade,
estes trabalhos os faro sentir mais e mais sua hesitao e
sua negligncia, e, pelas reprimendas que sero obrigados a
fazer a si prprios, comparando-se com estes fervorosos
religiosos e estes ilustres penitentes, eles adquiriro uma
humildade profunda, faro mais esforos para imitar estes
coraes generosos, e podero, quem sabe, alcan-los. Quanto
aos que ainda no possuem seno hesitao e negligncia,
imprudente que tentar fazer como estes coraes fervorosos e
generosos, e que tentem caminhar nas pegadas destes homens
perfeitos: o que eles devem fazer presentemente no
abandonar aquilo que comearam, a fim de que sob eles no
paire esta ameaa: Ser-lhes- tirado at mesmo o que eles
pensam possuir[66].

30. No nos esqueamos de que, uma vez que tenhamos a


infelicidade de cair no abismo do pecado, dele no poderemos
sair seno custa de exerccios de uma verdadeira
penitncia, que dele nos retirem e nos precipitem alegremente
no abismo da humildade.

31. A humildade plena de tristeza que reina no corao dos


verdadeiros penitentes muito diferente daquela que se
encontra nos pecadores, a quem condenam apenas os remorsos da
conscincia, e mesmo da que Deus inspira aos que vivem na
perfeio da virtude. No tentemos aqui expressar no que
consiste a humildade destes homens perfeitos: no chegaramos
a nenhum resultado. Quanto humildade dos que fazem
penitncia, vocs a reconhecero por causa da pacincia em
meio s humilhaes e ao desprezo. Mas seus maus hbitos
ainda os podero derrubar em determinadas faltas.

32. As quedas no devem nos surpreender; pois os motivos de


Deus, assim como frequentemente a causa e o princpio das
faltas que cometemos, so cobertos por espessas trevas,
impenetrveis ao esprito humano, e nos verdadeiramente
impossvel distinguir as quedas em que incorremos por nossa
prpria negligncia daquelas que nos acontecem por permisso
de Deus e das que causamos por que Deus, em sua justa
indignao, nos entrega nossa fraqueza. J ouvi dizer que,
com a permisso de Deus, os que caem em algum pecado no
permanecem a longo tempo, por que Deus no permite que
permaneamos demasiado sob a escravido desta falta.

33. Depois de nossas quedas, apliquemo-nos de modo especial a


combater o demnio da tristeza. Ele nunca deixa de nos atacar
no momento das nossas oraes, a fim de que, reconstituindo
fortemente em nosso esprito o estado feliz em que nos
encontrvamos antes de pecar, nos desvie a ateno que
devemos aplicar ao santo exerccio da prece, e nos inspire a
perturbao e ao desencorajamento.

34. Acreditem, irmos: ainda que vocs cometam faltas todos


os dias, evitem perder a coragem, no abandonem seus
exerccios de piedade, mas perseverem generosamente e
fortemente no servio de Deus; e seu anjo da guarda
respeitar sua heroica pacincia e sua bem-aventurada
perseverana.

35. Prestem ateno no seguinte: uma ferida recente fcil


de curar. Mas se a negligenciamos, os humores se alteram e se
corrompem: a partir da, ela s cicatriza com dificuldade e,
muitas vezes, para cur-la, so precisos muitos cuidados,
tempo e trabalho, e s vezes so necessrios ferro e fogo, e
o emprego de um sem-nmero de remdios. Vocs nunca viram
chagas como estas se tornarem incurveis? Mas Deus, para quem
nada impossvel, pode nos livrar at mesmo destas.

36. Eis outra observao importante: os demnios, estes


inimigos cheios de ardis e artifcios, antes de nos empurrar
para o pecado e para nos fazer cair mais facilmente, nos
representam a Deus cheio de bondade e de compaixo por ns.
Mas quando obtm sucesso em seu cruel projeto e nos fazem
violar a lei santa do Senhor, eles o mostram como um juiz
terrvel, severo e inexorvel.

37. Evitem confiar em qualquer um que, sabendo que vocs se


tornaram culpados de qualquer falta considervel, lhes sugira
no dar ateno s faltas leves a que todos estamos expostos
diariamente, e que lhes diga, por outro lado, em relao
falta maior, que seria desejvel que no a tivessem cometido,
e, por outro lado, em relao s faltas leves, que elas nada
so; pois os cuidados mltiplos que empregamos so
semelhantes aos pequenos presentes que fazemos. E no
verdade que muitas vezes estes pequenos presentes, fora de
se multiplicarem, acalmam a clera do soberano juiz?

38. Devemos dizer que quem est resolvido a satisfazer a


Justia de Deus pelas faltas cometidas, perde qualquer
jornada na qual no tenha se consagrado ao pranto e aos
gemidos da penitncia, ainda que tenha nestes dias praticado
as mais excelentes obras da piedade.

39. Quanto aos que choram seus pecados, evitem aguardar a


hora da morte para se assegurar que estes lhes foram
perdoados; pois nunca podero ter disto plena certeza. Ao
contrrio, devemos sempre fazer esta orao: D-me, Senhor,
a doce esperana de ter perdoado meus pecados, a fim de que
eu no deixe este mundo na cruel incerteza de minha
salvao[67].

40. Entrementes, para nossa instruo e nossa consolao,


lembraremos que os laos do pecado so destrudos naqueles em
que reside o Esprito de Deus; e diremos o mesmo daqueles em
cujo corao reina uma humildade sincera. Ah! Que quem parte
deste mundo sem ter possudo uma destas duas coisas no caia
numa funesta iluso: ao contrrio, estejam convencidos que
ainda se encontram sob o jugo de seus pecados.

41. Todos os que passaram suas vidas no mundo, a vivendo


segundo seu esprito e suas mximas, ao deixarem a vida, no
tero em si estas duas marcas essenciais da justificao,
sobretudo a segunda. No obstante, existem entre estas
pessoas do mundo as que preparam sua ltima hora por meio de
obras de misericrdia e penitncia: eles recebero destas o
prmio e a recompensa.

42. Quem chora amargamente suas prprias faltas est longe de


se ocupar da penitncia e das faltas de seus irmos, e de
lhes fazer reprimendas.

43. Um cachorro mordido por um animal selvagem se atira sobre


ele com toda a fria de que capaz; pois a intensidade da
dor que eles experimenta o faz correr contra ele com uma
determinao implacvel.

44. Prestemos ateno ao silncio de nossa conscincia, e


fiquemos preocupados: no esteja nossa conscincia silenciosa
por termos nosso corao cego e endurecido, e no por a
termos purificado.

45. Uma das provas que podemos ter neste mundo, agora e daqui
para frente, de que foram quitadas as dvidas que contramos
por nossos pecados, consiste em crer que somos ainda culpados
e devedores perante a Justia de Deus.

46. Nada pode se comparar s Misericrdias do Senhor: elas


esto soberanamente acima de qualquer coisa. Assim, no
esperar em Deus equivale a querer se perder eternamente.

47. A marca verdadeira e o sinal inequvoco da penitncia


consiste em estar convencido e persuadido que merecemos, seja
no corpo, seja no esprito, todas as penas, todos os males e
todas as aflies que suportamos, e que merecemos sofrer
ainda mais.

48. Moiss, ainda que tenha visto a face de Deus e a sara


ardente, no obstante retornou ao Egito, vale dizer, s
trevas do sculo, para se encarregar de produzir tijolos a
servio do Fara, que era a figura do demnio. Porm, ele no
tardou em regressar para junto do arbusto, e pouco tempo
depois ele mereceu subir at a montanha santa onde Deus havia
fixado sua morada de maneira visvel. Quem compreender o
significado da figura a seguir jamais desesperar de sua
salvao: J, este homem eterno, de prosperidade e riquezas
extraordinrias, caiu numa pobreza espantosa; e, no entanto,
a seguir se tornou duas vezes mais rico do que jamais havia
sido.

49. Esses monges preguiosos e negligentes que, depois de sua


santa profisso, caem em faltas, sofrem na realidade quedas
perigosas e funestas; pois estas normalmente os fazem perder
a esperana de alcanar a paz do corao, e os fazem
acreditar que podem se dar por felizes se conseguirem se
reerguer e merecer o perdo.

50. Mas atentem para o fato de que no possvel que a


preguia que nos separou de Deus seja o meio capaz de nos
reenviar a ele; preciso outra maneira, para que possamos
nos aproximar do Senhor.

51. Eu conheci dois religiosos num mosteiro que se dirigiam a


Deus ao mesmo tempo e pela mesma via. Um era um ancio
exercitado depois de longos anos de trabalhos de penitncia;
o outro era um novio nos caminhos da vida religiosa. E no
entanto, este ltimo corria mais depressa do que o primeiro;
desta forma, tambm ele mereceu o primeiro lugar no tmulo da
humildade.

52. Devemos tomar cuidado, principalmente ns que camos no


pecado, em no deixar envenenar o esprito e o corao com o
erro contagioso de Orgenes. A miservel doutrina deste
doutor sobre a excessiva Bondade de Deus para com os homens
saboreada e apreciada por todos os que s se agradam dos mais
grosseiros prazeres dos sentidos.

53. Quanto a ns, acreditemos que em nossas meditaes


fervorosas, e mais ainda em nossos exerccios de penitncia,
que se inflamar o fogo de nossa prece, o qual devorar a
matria de nossos pecados.

54. Que os penitentes que eu lhes apresentei neste quinto


degrau sejam seus guias e seus condutores; que sua
penitncia, e o fim a que se propunham, seja o modelo e a
imagem da sua penitncia e o fim ao qual vocs se proponham,
consagrando-se aos seus salutares exerccios! E estejam
certos de que durante sua peregrinao pela terra, vocs no
tero necessidade de outro livro para conduzi-los e faz-los
chegar com felicidade ao porto da salvao, at que por fim
Jesus Cristo, o Filho nico de Deus, lhes aparea e ilumine
com suas luzes na ressurreio produzida por uma verdadeira e
sincera penitncia. Amm.

Pela penitncia vocs subiram at o quinto degrau; assim, com


seu auxlio, vocs purificaram os cinco rgos de seus
corpos, e, por meio de expiaes voluntrias, evitaram as
penas e os suplcios que teriam merecido sofrer na
eternidade.
SEXTO DEGRAU

Do pensamento da morte

1. O pensamento precede necessariamente as palavras que o


expressam. assim que o pensamento da morte e a lembrana
dos pecados precedem as lgrimas e os gemidos que uma e outra
nos fazem derramar; por isso que falaremos destas coisas
aqui, segundo sua ordem e seu lugar.

2. Assim que afirmamos que o pensamento da morte uma


espcie de morte cotidiana, e que a lembrana de nossa hora
derradeira um gemido contnuo.

3. Foi a desobedincia do homem que deu nascimento ao temor


da morte, e por isso que o temor da morte se nos tornou, de
certa forma, natural. Mas vocs sabem o que nos demonstra
este temor? Ele nos mostra que nossa alma ainda no est
perfeitamente lavada nem purificada pelas lgrimas e as
austeridades da penitncia.

4. Cristo, para nos ensinar que ele a um tempo Deus e


homem, e para nos ensinar que os atributos da natureza divina
e da natureza humana nele estavam partilhados, teve medo
vista da morte; mas o divino Salvador no a temeu.

5. Ora, assim como, de todos os alimentos com os quais


nutrimos nossos corpos, o po o mais necessrio, da mesma
forma, de todas as coisas que devem alimentar e manter viva
nossa alma, nada mais necessrio do que a lembrana e o
pensamento da morte.

6. o pensamento da morte que faz com que os monges que


vivem em comunidade abracem todos os trabalhos e as
austeridades da penitncia; ele que os faz amar as delcias
do desprezo e das humilhaes; tambm o pensamento da morte
que faz com que os solitrios que vivem nos desertos e longe
do tumulto renunciem generosamente a toda preocupao com as
coisas presentes, a fim de se consagrar unicamente aos santos
exerccios da prece e da meditao, e de vigiar assiduamente
seu esprito e seu corao. Estas virtudes so igualmente
filhas do pensamento da morte.

7. Mas observemos aqui que, embora o estanho tenha muita


semelhana com a prata, podemos distingui-lo facilmente
quando o aproximamos dela; da mesma forma, os que possuem
alguma experincia nas coisas relacionadas salvao, sabem
muito bem colocar uma diferena entre o pensamento da morte
produzido por um sentimento e um movimento da natureza, e o
sentimento da morte produzido pela impresso da graa.

8. A prova certa e indubitvel de que tememos a morte por um


movimento da graa que este temor nos leva a nos despojar
de toda afeio pelas coisas criadas, e nos faz renunciar
perfeitamente nossa prpria vontade.

9. louvvel pensar todos os dias na morte, como se a cada


dia ela nos pudesse atingir; mas um sinal de santidade
desej-la e aguard-la.

10. Evitemos pensar que todo desejo de morte seja bom e


salutar; pois existem os que desejam a morte porque se veem
expostos pelos pendores que ainda no conseguiram vencer
inteiramente e pelos hbitos que no lhes possvel corrigir
perfeitamente a incidir sempre e sempre em novas quedas e
novos pecados; existem outros que s desejam a morte por um
movimento de desespero: so pessoas que no querem fazer a
penitncia; outros ainda chamam a morte por acreditarem estar
livres da servido das paixes, pensando haver alcanado a
impassibilidade; enfim, h os que, movidos e conduzidos pelo
movimento e as luzes do Esprito Santo, desejam sair deste
mundo. Mas estes ltimos so bastante raros.

11. Alguns homens penam, e gostariam de saber, considerando


que o pensamento da morte to salutar, por que Deus no
quer que conheamos o momento em que ela ir nos alcanar.
Mas estas pessoas no consideram que Deus, fazendo desta
maneira, s visa nossa prpria salvao. De fato, se a hora
da morte fosse conhecida, quem dentre os homens se apressaria
em receber o batismo, em se converter ou em abraar a vida
religiosa? Ah! A maior parte passaria a vida no crime, e
somente na ltima hora pensariam em recorrer ao santo batismo
ou penitncia.

12. Vocs que choram seus pecados, evitem as armadilhas do


demnio: ele tentar engan-los, dizendo que Deus bom e
misericordioso. Esta uma verdade que s devemos ter em
mente para os preservarmos do desespero; mas o demnio, ao
sugeri-la, quer com isto banir de seus coraes o horror e a
dor de seus pecados, e faz-los perder o temor a Deus, o
nico que concede a verdadeira segurana.

13. Sabem com quem devemos comparar aqueles que, pretendendo


nutrir em sua alma o pensamento da morte e a lembrana do
Juzo, no deixam ao mesmo tempo de abraar toda espcie de
preocupaes e de aes profanas? Comparam-nos a pessoas que
tentam nadar tendo amarrados os ps e as mos.

14. O pensamento da morte, que devemos tomar como verdadeiro


e eficaz, o que extingue em ns a intemperana; pois, uma
vez que trinfamos sobre esta paixo, conseguiremos facilmente
vencer as demais.

15. A insensibilidade do corao produz a cegueira na alma; a


quantidade de comidas faz secar inteiramente a fonte das
lgrimas; a sede, a fome e as viglias afligem o corao; e
um corao aflito e mortificado conforme a Deus derrama
lgrimas abundantes e salutares. Sem dvida estas verdades
parecero duras aos que amam a boa vida, e impraticvel aos
que vivem nos braos da preguia, mas um corao fervoroso e
generoso as apreciar e as praticar com alegria; e
adquirindo o costume, se tornar fiel com indizvel
facilidade. Mas que tentar conhece-las apenas para falar
delas, s encontrar penas e tristeza.

16. Assim como nossos pais nos ensinaram normalmente que a


caridade perfeita imune queda, eu direi que a perfeita
meditao da morte imune de qualquer temor.

17. Uma alma que procura por todos os meios assegurar sua
salvao se ocupa de muitos pensamentos salutares: ela pensa
no amor que Deus tem por ela, na morte, na presena de Deus,
no Reino celeste, no fervor dos mrtires; mas sobretudo o
pensamento de Deus presente em toda parte que a absorve
inteiramente. por isso que ela medita sem cessar estas
palavras: Eu olhei continuamente para o Senhor, e o tive
sempre diante de meus olhos[68]. Ela no perde de vista a
lembrana dos anjos e das potncias celestes, sem sua
derradeira hora neste mundo, nem o momento terrvel em que
comparecer diante do tribunal do soberano Juiz, nem os
suplcios eternos, nem, por fim, a sentena que condenar os
pecadores a tal. Estas so as grandes verdades de que se
ocupam as almas que desejam servir a Deus. Ns apresentamos
aqui em primeiro lugar os que nos pareceram mais
respeitveis, e a seguir os mais capazes de inspirar o horror
ao pecado e de nos impedir de tombar.

18. Um certo monge do Egito me contou um dia o que lhe


acontecera. Ele me disse que havia gravado de tal maneira em
seu corao a lembrana e o pensamento da morte, que este
pensamento produzira nele uma impresso to vvida e
poderosa, que, quando procurava qualquer alvio para seu
corpo, que muito necessitava, este pensamento, como um juiz
inexorvel, se opunha vitoriosamente; e, o que lhes parecer
ainda mais espantoso, acrescentou ele que tentava por vezes
rejeitar, ainda que por um instante, este pensamento, sem
nunca o conseguir.

19. Conheci outro monge que vivia num lugar chamado Tholas.
Nele, o pensamento da morte fazia com que perdesse todo
sentimento; vendo-o, era de se crer que ele houvesse
evanescido, ou que tivesse cado em estado epiltico.
Diversas vezes seus irmos de mosteiro o encontraram neste
estado, e o transportaram como a um morto.

20. No posso deixar de contar o que se passou com um


solitrio, chamado Hesquio, da montanha de Horeb. Este pobre
solitrio teve a infelicidade de passar os trs primeiros
anos de seu retiro esquecido de sua salvao, negligenciando
todos os exerccios da vida religiosa. Enfim, Deus o atingiu
com uma doena to grave que, por mais de uma hora, ele foi
considerado morto. Quando ele voltou a si, pediu-nos com
insistncia que fssemos embora e o deixssemos s. Ns o
obedecemos, e logo ele fechou a porta de sua cela e a
permaneceu recluso de tal maneira, que durante os doze anos
em que viveu depois disto, jamais voltou a trocar uma palavra
sequer com quem quer que fosse, e se alimentava de um pouco
de po e da gua que lhe levvamos; ele permanecia sentado
todo o tempo no mesmo lugar e jamais mudava; ele repassava
to fortemente as coisas terrveis que presenciara em sua
viso, que seu corpo mantinha sempre a mesma posio e a
mesma atitude, e, sempre sob o impacto do mesmo terror, e
fora de si, ele mantinha o mais absoluto silncio e chorava
lgrimas ferventes. Por fim, quando soubemos que ele estava
chegando ao fim da vida, foramos a porta de sua cela para a
entrar e lhe fazer muitas perguntas que desejvamos saber.
Mas foi em vo, pois dele s obtivemos uma nica palavra:
Perdoem-me, irmos, mas nada posso lhes dizer, seno que
impossvel que ouse pecar quem tiver o pensamento da morte
gravado em seu esprito. Esta resposta nos deixou
espantados, e nos admirvamos que um homem de quem havamos
conhecido a preguia e a negligncia pudesse ter mudado e se
transformado em outro homem, e que houvesse adquirido to
grande perfeio e uma santidade to prodigiosa. Ao final,
ele faleceu e o enterramos no cemitrio prximo ao mosteiro.
No dia seguinte fomos visitar seu tmulo, para ver o santo
corpo deste solitrio; mas ele j no estava ali. Foi sem
dvida para dar uma lio aos homens, que Deus permitiu esta
maravilha: ele quis nos fazer compreender que, mesmo depois
de abandonar a virtude e negligenciar a salvao, a converso
sincera e a adoo de uma nova vida de penitncia por parte
deste solitrio lhe foi preciosa e agradvel, e, por
conseguinte, agradvel seria igualmente a penitncia de todos
os pecadores.

21. Assim como dizemos que um abismo possui uma profundidade


de gua insondvel (e por isso lhe damos este nome), tambm o
pensamento da morte produz em ns um abismo sem fundo de
pureza e boas obras. o que nos demonstra o fato que lhes
contei acima, pois os penitentes que, assim como este santo
homem, possuem continuamente no esprito a imagem da morte,
sentem aumentar em si o temor e o medo que ela inspira, at
que por fim ela os consuma at a medula dos ossos.

22. De resto, conforme devemos perceber, estejamos certos de


que este temor no das menores benesses que recebemos de
Deus: pois no verdade, e no nos atesta nossa prpria
experincia, que muitas vezes, mesmo no meio dos tmulos,
mostramos uma insensibilidade frrea, sem derramar uma
lgrima sequer, enquanto que em outras ocasies, sem estarmos
em meio aos mortos e sem a viso da triste imagem da morte,
vertemos torrentes de pranto?

23. Quem pensa verdadeiramente na morte, mata em si toda


afeio pelas criaturas e pelas coisas do mundo; mas quem
ainda dominado pelos desejos profanos no cessa de colocar
armadilhas diante de seus prprios ps.

24. No use palavras para dizer s pessoas que voc gosta


delas, que voc as ama comum amor afetuoso; contentem-se em
pedir a Deus que as faa saber, do modo como lhe aprouver, os
sentimentos de caridade e de ternura que voc sente por elas;
pois se voc agir de outro modo, nem todo o tempo de sua vida
ser suficiente para testemunhar a seus amigos a afeio que
voc tem por eles, e ao mesmo tempo para incit-lo
compuno e dor de seus prprios pecados.

25. No se deixem enganar, vocs que so louvados por


trabalhar na vinha de Cristo, e no pensem que podem resgatar
o tempo com o tempo; pois cada dia vivido no basta para
quitar as dvidas que contramos a cada instante que vivemos.

26. assim que um Padre nos disse que pobres mortais, como
ns, no conseguem passar um dia sequer de suas vidas de modo
santo e louvvel, se no considerarem para si prprios que
este dia o ltimo de sua existncia nesta terra. E o que
surpreendente que alguns escritores, mesmo no seio do
paganismo, dizem algo semelhante: pois eles escreveram que o
amor sabedoria no era outra coisa do que o pensamento da
morte. Quem alcanar este sexto degrau j no se deixar cair
em pecado, conforme o orculo divino: Lembrem-se de seu fim
derradeiro, e no pequem jamais[69].
STIMO DEGRAU

Da tristeza que produz a alegria

1. A tristeza segundo Deus uma aflio do corao e um


sentimento de dor que a alma penitente experimenta:
sentimento inefvel que a faz buscar com ardor aquilo que ela
deseja intensamente; que, no obtendo este bem desejado, a
faz enfrentar trabalhos inacreditveis; que, quando sente que
no a pode obter, ela lana gritos de dor e gemidos
lamentveis.

2. Podemos dizer que esta tristeza um aguilho precioso da


alma que, pelas preciosas agulhadas que causa, a livra e
purifica de todas as afeies terrestres, e que, pela dor que
lhe inflige, a fixa e a obriga unicamente a velar sobre si
mesma e a cuidar de sua salvao.

3. A compuno que os monges chamam de compuno religiosa


um remorso da conscincia por meio da qual esta fora uma
alma a se acusar interiormente como sendo culpada e
criminosa, e, por meio desta confisso interior a abrasa com
um fogo divino e lhe traz um maravilhoso refresco.

4. Esta confisso ainda faz com que esqueamos das


preocupaes da natureza, conforme esta palavra de Davi: Eu
esqueci de comer meu po e de tomar meu alimento[70].

5. A penitncia uma alegre e agradvel renncia a toda


espcie de consolao humana.

6. O silncio e a temperana so a alegre partilha de todos


os que progridem nesta tristeza salutar. A mansido e o
esquecimento das injrias ornam o corao das pessoas que,
por meio de combates sustentados com coragem, obtiveram
alguma vitria; enfim, os que com toda felicidade alcanaram
a perfeio desta bem-aventurada tristeza, se enchem de afeto
e amor pela prtica da mais profunda humildade, so devorados
por uma sede ardente pelo desprezo e as humilhaes, por uma
fome violenta por todas as coisas que assustam e fazem gritar
a natureza; de resto, eles queimam com uma caridade to pura
e forte por seus irmos, que no apenas perdoam-lhes as
faltas que os veem cometer, como ainda seu corao tocado
por uma compaixo celeste em relao a eles. Devemos aprovar
os que fizeram algum progresso, louvaram os que obtiveram
algumas vitrias, e proclamar felizes os que tm fome de
humilhaes e sofrimentos: pois estes ltimos sero saciados
com este alimento celeste que jamais inspira desgosto.

7. Assim, se vocs tiverem a felicidade de obter o dom das


lgrimas, empreguem todos os meios capazes de conserv-lo.
Pois assim como a cera se derrete facilmente no fogo, este
dom, caso no possua razes firmes na alma, se perde e
desaparece depressa por causa das inquietudes do esprito,
pelos cuidados que tomamos com o corpo, com os prazeres
sensuais e sobretudo pela coceira de falar, pela
inconsequncia e a petulncia.

8. E, ousaremos diz-lo? Esta feliz fonte de lgrimas , de


certa forma, mais forte e poderosa do que a gua do batismo.
Com efeito, o batismo nos purifica das faltas de que somos
culpados ainda antes de receber este sacramento; mas o dom
das lgrimas nos purifica de todas as faltas que tenhamos
cometido no decorrer de nossa vida. O batismo que recebemos
em nossa infncia no conferiu uma graa infinitamente
preciosa, e nos colocou num estado sobrenatural; mas os
pecados em que camos de forma miservel nos fez perder esta
graa inestimvel e este estado feliz; o dom das lgrimas nos
faz recuperar esta graa, e, de certo modo, restabelece o
batismo em ns. Devemos concordar que seriam bem raros os
homens capazes de alcanar a salvao, se Deus, em sua
infinita Bondade, no nos houvesse concedido o dom das
lgrimas.

9. Vejam como os gemidos e a aflio de um corao contrito e


arrependido penetra at o trono de Deus, como as santas
lgrimas que o temor ao Senhor nos faz derramar so como
emissrios que enviamos adiante de ns para lhe pedir graa e
misericrdia; e como aquelas que seu Amor nos faz derramar
nos do a segurana deliciosa de que nossas preces e nosso
arrependimento lhe agradvel.

10. Mas lembremo-nos bem que, se nada mais conforme e


favorvel verdadeira humildade do que as lgrimas de uma
penitncia sincera, tambm nada mais contrrio e nocivo do
que a dissipao de uma vida mundana.
11. Conservem portanto, na medida do que forem capazes, a
tristeza salutar de uma santa compuno; ela lhes trar a
alegria slida e verdadeira; no cessem de aument-la a
aperfeio-la em vocs at que ela os desembarace de todas as
coisas da terra, purifica suas almas e toda mancha, a
apresente a Cristo seu sacrifcio puro e santo.

12. Esforcem-se continuamente, tanto para a mortificao dos


sentidos, como para o recolhimento do esprito e uma profunda
meditao, para representar para si prprios este abismo
imenso, esta fornalha abrasada por chamas tenebrosas, este
juiz severo e inexorvel, esta vasto caos dos fogos eternos,
estas descidas estreitas e obscuras dos lugares subterrneos,
estas moradas desesperadas e estes precipcios profundos.
Sim, gravem com fora no esprito a ideia e a imagem de todas
estas coisas assustadoras e outras semelhantes, a fim de que,
se seu corao se dirigir infelizmente a uma vida mole e
relaxada, atingido por um justo terror ele se aplique em
procurar uma castidade incorruptvel, e que, pelos
sentimentos de uma tristeza salutar ele possa usufruir das
luzes espirituais, e se tornar mais puro e mais luminoso do
que as chamas mais puras e mais resplendentes.

13. Quando vocs se dedicarem ao santo exerccio da orao,


estejam diante de Deus como um criminoso diante do juiz;
tremam e faam de modo a que, pela postura humilde do corpo e
mais ainda pelas disposies internas da alma, tenham a
felicidade de acalmar sua justa Indignao: pois ele no pode
rejeitar uma alma que se apresenta a ele da mesma maneira que
a viva desolada de que fala o Evangelho, e que, pelo fervor
e a persistncia de sua prece, continuou a bater porta de
sua Bondade suprema.

14. Quem recebeu o dom das lgrimas sempre est bem, para
chorar seus pecados, em qualquer lugar que seja; mas quem no
chora seno por razes humanas escolher os locais mais
convenientes s suas disposies naturais, e ficar feliz em
ter testemunhas de suas lgrimas.

15. Assim como um tesouro escondido est menos exposto


rapacidade dos ladres do que o que est vista de todo
mundo, tambm as lgrimas interiores esto menos propensas a
serem perdidas do que as exteriores.
16. Evitem imitar aqueles que enterram seus mortos: vocs os
vero chorar por um momento sobre o tmulo, e um instante
depois os encontraro em plena bebedeira. Faam como se
trabalhassem como condenados nas minas e que a toda hora so
cruelmente chicoteados pelo encarregados de vigiar.

17. Aquele que ora chora, ora se entrega alegria e ao


prazer, se parece com um homem que, para se desembaraar de
um cachorro de rua, lhe atira um po ao invs de lhe atirar
pedras: evidente que ao agir assim, ao invs de afastar o
animal, far com que este o siga todo o tempo.

18. Assim que vocs que choram seus pecados devem ser
inimigos de toda ostentao, aplicando-se unicamente guarda
do corao. Os demnios temem tanto as pessoas que vivem no
recolhimento e na vigilncia, como os ladres temem os ces
de guarda noite.

19. Meus amigos, Deus, ao nos chamar para a vida monstica,


no nos chamou para as npcias para que nos entreguemos
alegria; ele deseja que choremos por ns mesmos.

20. Existem pessoas que, por um lamentvel erro, ao


derramarem lgrimas de dor e de arrependimento, violentam-se
para no pensar em nada. Eles ignoram que as lgrimas, sem os
bons pensamentos, podem convir a criaturas desprovidas de
razo, mas no s criaturas dotadas de intelecto e de razo:
pois no dos pensamentos que nascem as lgrimas? E no
por meio do esprito e da razo que so produzidos os
pensamentos?

21. Quando vocs forem repousar, tenham o cuidado de assumir


a mesma posio em que sero colocados no tmulo, e vocs
experimentaro menos as delcias dos sonhos. Quando estiverem
mesa, pensem na triste e fnebre mesa na qual vocs
prprios serviro de alimento aos vermes, e estaro menos
tentados a se entregar sensualidade. Vocs se sentem
sedentos e querem aliviar a sede? Lembrem-se da sede
devorante que sofrem os condenados em meio s chamas do
inferno, e ser fcil violentar a natureza, no concedendo a
ela tudo o que ela pede.

22. No sofreu Nosso Senhor humilhaes desonrosas e honrosas


a um s tempo? Ele nos faz reprimendas amargas, e nos inflige
penitncias rigorosas? Lembremo-nos esta sentena fulminante
do soberano juiz: Retirem-se de mim, malditos![71], e esta
lembrana, como uma espada de dois gumes, rasgar e dar
morte em ns aos injustos e funestos sentimentos de tristeza
e amargura, e nos conduzir a viver na pacincia e na
resignao.

23. O tempo, conforme o santo homem J, faz secar o mar[72],


e, por meio da pacincia, nos far adquirir e aperfeioar em
ns as virtudes de que falamos.

24. Que o pensamento das chamas eternas os acompanhe ao


entardecer, quando vocs se dirigirem ao leito; que ao
amanhecer ele presida ao seu despertar, e estejam certos de
que a preguia e a negligncia jamais dividiro seus
coraes: acima de tudo, vocs sero preservados durante suas
oraes e a recitao dos salmos.

25. Que os cuidados que vocs tm para com seus corpos e o


hbito monstico que vestem os instiguem a chorar por suas
faltas; pois os que trazem em si o luto se revestem de
hbitos com o mnimo de cores. Se vocs no choram ao menos
chorem por no chorar; e, se vocs choram, que seja por que
seus pecados os fizeram perder o estado feliz em que estavam
pela graa e a amizade de Deus, reduzindo-os ao penoso estado
em que se encontram agora.

26. Em nosso pranto e nossa penitncia, como em todas as


demais coisas, Deus, que um juiz cheio de clemncia e
equidade, ter olhos para a nossa fraqueza. Mais de uma vez
me aconteceu ver pessoas que, derramando poucas lgrimas, as
vertiam com to grande dor que as tomaramos por gotas de
sangue, assim como vimos outras que choravam abundantemente e
sem esforo. Eu estimo mais a violncia da dor do que a
abundncia das lgrimas; e creio que Deus julga da mesma
maneira.

27. No convm aos que choram tratar e se ocupar de matrias


relevantes e de questes teolgicas: semelhante ocupao
poderia secar a fonte de suas lgrimas; pois quem se aplica a
estas cincias semelhante a um doutor gravemente sentado
numa cadeira para, com sua autoridade, dar aula aos outros;
enquanto que aquele que chora suas faltas no deve ter
nenhuma semelhana seno como algum sentado sobre uma
esterqueira e coberto com um saco e um cilcio. por esta
razo que Davi, por maior que tenha sido sua cincia e por
mais profunda que tenha sido sua sabedoria, respondeu aos que
lhe pediam que cantasse os cnticos: Como poderamos cantar
cnticos de louvor ao Senhor, estando numa terra estrangeira?
[73]; ou seja, no pas para onde nossos pecados nos
conduziram em cativeiro.

28. No curso natural das coisas, existem aquelas que possuem


um movimento por si mesmas, e outras que o recebem de uma
causa externa a eles. Ora, na penitncia de nossos pecados,
existem lgrimas que correm por si ss de nossos olhos; mas
tambm existem aquelas que que s derramamos com esforo e
violncia. Assim, quando sem movimento ou esforo nos
sentimos enternecidos e derramamos com abundncia lgrimas de
uma doura celeste, neste momento devemos nos apressar em
correr para o Senhor; pois esta uma prova de que, sem que
tenhamos lhe pedido, ele veio a ns para nos presentear com a
esponja misteriosa da tristeza que lhe agradvel, para
criar em ns uma fonte de gua refrescante, e para nos fazer
dom dessas lgrimas felizes que apagam nossos pecados do
livro de sua eterna Justia. Conservemo-la preciosamente com
o maior cuidado, guardando-a at que ele considere que deva
no-la retirar; pois esta dor, que sua graa produz em ns,
possui mais virtude para nos purificar de nossas faltas do
que a que provocaramos em nossos coraes por meio de muitos
esforos e violncias.

29. Quem chora quando quer certamente no recebeu de Deus o


dom das lgrimas; recebeu este dom aquele que chora o que
quer chorar, ou melhor, aquele que chora as coisas que Deus
quer que ele chore.

30. muito comum que s lgrimas da penitncia misturemos as


da vanglria, que so odiosas aos olhos de Deus. a
prudncia e a verdadeira piedade que nos fazem conhecer esta
falsa tristeza. Como poderamos esperar sinceridade de nossas
lgrimas, se, ao mesmo tempo em que as derramamos, deixamos
de corrigir nossos defeitos?

31. A verdadeira compuno isenta de todo inchao do


corao e de toda vaidade, e no nos traz nenhuma consolao
humana, mas nos lembra continuamente de nossa ltima hora e
nos faz esperar de Deus, o nico Consolador dos humildes de
corao, as consolaes e as douras inefveis que devem ser
para ns um banho refrescante e de paz.

32. Todos os que receberam esta aflio divina e consoladora


sentem uma santa averso pela vida presente, vendo-a como
fonte e princpio funesto de todas as suas penas e de suas
misrias, e sentem contra seus prprios corpos a mesma raiva
que temos contra um inimigo que tenta nos matar.

33. Assim que, se percebemos, nos que se acreditam


verdadeiramente aflitos segundo Deus, certos movimentos de
clera ou sentimentos de orgulho, podemos, sem medo de errar,
considerar que suas lgrimas no so sinceras nem produzidas
por uma verdadeira compuno; pois, como disse so Paulo: O
que existe de comum entre a luz e as trevas?[74].

34. A verdadeira compuno derrama consolaes nas almas; a


falsa s produz orgulho.

35. Assim como o fogo consome a palha, tambm as lgrimas


sinceras consomem e fazem desaparecer inteiramente as
sujeiras visveis e invisveis da alma.

36. Muitos padres no hesitam em afirmar que no difcil


distinguir as lgrimas sinceras das que no o so,
principalmente em pessoas que esto no comeo da penitncia,
quando seu discernimento ainda est cheio de trevas e
obscuridade; pois, dizem eles, as lgrimas podem ser
produzidas por diversas causas diferentes: tanto por um
sentimento natural e por um motivo louvvel, como por uma
razo vergonhosa. Neste ltimo caso, o princpio ter sido a
vanglria ou um amor desregrado e profano; no primeiro, tero
sido produzidas pelo pensamento da morte ou por muitas outras
boas consideraes do gnero.

37. Depois de nos termos servido do temor a Deus para


descobrirmos e conhecermos a fonte das lgrimas que vertemos,
dediquemo-nos a procurar as que so causadas pelo pensamento
de nossa ltima hora, pois este tipo de lgrima pura e
sincera; elas no susceptveis de vaidade nem de iluso, elas
purificam nossa alma e acendem em nosso corao o fogo do
santo amor a Deus; por fim, elas apagam os pecados, e nos
trazem o bem inestimvel da paz no corao.
38. Evitemos ficar surpresos e espantados, se por vezes
lgrimas produzidas por uma dor sincera do pecado ou por uma
outra boa causa insuspeita se tornem apesar disso ms e
condenveis; o que nos deve encher de espanto ver lgrimas
que, tendo desde o comeo um mau princpio e uma fonte
envenenada, cheguem a se tornar sobrenaturais e santas. As
pessoas levadas vanglria no deixaro de compreender o que
queremos dizer aqui.

39. No contem com a abundncia de suas lgrimas, se vocs


no se sentirem purificados de seus pecados. O vinho que
acaba de ser retirado do lagar no merece elogio nem
depreciao.

40. Ningum duvida que as lgrimas produzidas pela graa de


Deus nos so soberanamente teis e salutares; mas somente na
morte conheceremos perfeitamente sua utilidade e seus
preciosos benefcios.

41. Assim, aquele que passa sua vida a derramar


constantemente lgrimas agradveis a Deus, celebra todos os
dias novas bodas espirituais, enquanto que quem passa os dias
em prazeres e alegrias profanas chorar pelos sculos
infinitos da eternidade.

42. Podem os criminosos experimentar algum prazer na priso?


E como poderiam os verdadeiros experiment-los na terra? E
no era com este sentimento que falou este grande penitente,
to clebre pela sinceridade e a pureza de suas lgrimas,
quando disse: Tire, Senhor, minha alma deste lugar onde me
encontro encerrado[75], a fim de que eu estremea de alegria
no seio de sua luz incompreensvel.

43. Conservem-se no meio de seus coraes como um general em


meio sua armada; ordenem ao corao com absoluta autoridade
todas as prticas da mais profunda humildade. Assim, quando
vocs ordenarem alegria que se retire, dizendo-lhe: v,
ela ir; e, quando disserem s lgrimas: venham, elas
viro; e ao seu corpo, que seu escravo: faa isso, ele o
far[76].

44. Qualquer um que tenha se revestido do dom das lgrimas


como de uma roupa nupcial, sentir o que a doura
inexprimvel da alegria espiritual.
45. Que monge ter vivido to santamente para poder dizer
que, desde sua entrada na religio, no perdei um s dia, uma
s hora, um s momento, mas que consagrou ao servio de Deus
sua vida inteira, com o pensamento de que um dia perdido no
voltar jamais?

46. Este monge ser verdadeiramente feliz, este que, pela


vivacidade de sua f, pode contemplar a beleza dos anjos e
usufruir assim da convivncia com estas Inteligncias
celestes; mas tambm feliz, de outro modo, aquele que, pela
meditao da morte, pela lembrana amarga de seus pecados e
pelas lgrimas abundantes de sua fervorosa penitncia,
conseguiu se colocar no estado feliz de no recair no pecado.
difcil me convencer, eu creio, de que, para chegar
perfeio do primeiro estado, no se deva primeiro passar
pelo segundo.

47. Eu vi pobres cuja audcia chegou ao ponto de se dirigirem


diretamente a reis, e que os pressionaram com palavras to
engenhosas e maneiras to envolventes, que estes se
enterneceram em vista de sua posio miservel e foram
levados a sentir piedade de sua misria. Mas tambm vi pobres
de outra espcie, os quais, sem absolutamente virtude alguma,
se dirigiram ao Rei do cu. Eles reclamavam seu socorre e
seus favores com uma perseverana e uma assiduidade que
poderamos chamar de inoportunas; em tudo isso no empregavam
expresses escolhidas e estudadas, mas se contentavam em lhe
expor suas necessidades prementes com uma modstia perfeita,
uma humildade profunda e um temor respeitoso; no cessavam de
lhe expressar os sentimentos de sua dignidade e de lhe
repetir com um tom de profunda dor e inteira convico no
serem merecedores de ser escutados nem atendidos; e, no
entanto, esta violncia com que agiram, de alguma forma o
forou, a ele, o Rei, a sentir compaixo por eles e a lhes
conceder aquilo que pediam.

48. Aquele que se sente envaidecido por haver recebido o dom


das lgrimas, e que condena os demais por ainda estarem
privados disto, se parece com algum que pediu armamentos ao
seu soberanos e, tendo-os recebido, ao invs de us-los
contra os inimigos de seu prncipe, dele se serve para ferira
si mesmo e acabar morrendo.
49. No nos esqueamos de que Deus no precisa de nossas
lgrimas, e que ele no gosta de ver que as inquietudes e a
tristeza devoram e consomem nossos coraes; o que ele deseja
que, abrasados pelo fogo sagrado de seu Amor,
experimentemos e saboreemos as delcias de uma felicidade
pura e totalmente espiritual.

50. Retirem o pecado de seus coraes, e vocs no tero mais


motivos para derramar lgrimas. Por que razo algum
colocaria um emplastro sobre um dos membros de uma pessoa que
no tivesse ferida alguma? Derramaria lgrimas Ado, antes de
sua desobedincia fatal? Ou o faro os justos, depois da
ressurreio e da inteira abolio do pecado? No est
escrito que ento no haver nem pranto, nem gemidos, nem
dor, nem aflio[77]?

51. Vi pessoas que pareciam no ter tristeza, ainda que


estivessem na realidade aflitas; mas exteriormente as
tomaramos por pessoas felizes, e no tomadas pela aflio. O
Amor de Jesus Cristo as mantinha ao abrigo de todo perigo; os
demnios nada podiam contra elas, pois a elas poderamos
aplicar as palavras: O Senhor ilumina as trevas dos
cegos[78].

52. Tambm comum acontecer de as lgrimas encherem de


vaidade aos que no possuem seno uma virtude fraca e
cambaleante. Ento, por uma trao admirvel de sua
Providncia, Deus os priva deste dom que para eles se tornou
funesto, a fim de que, desejando e pedindo estas lgrimas,
eles se aflijam e se condenem, que vivam em suspiros e
gemidos, na dor e na tristeza, nas duras inquietaes e na
ansiedade dilacerante; pois, nos desgnios de Deus, todas
estas penas que eles suportam ento tomam o lugar do dom das
lgrimas, e, embora a eles parea no retirar da nenhum
fruto, elas lhes so infinitamente vantajosas.

53. Observando atentamente os diversos artifcios do demnio,


veremos que muitas vezes ele nos faz cair numa iluso
bastante funesta e bem prpria a nos causar pena, e que ele
nos engana de maneira bem pattica. Com efeito, por acaso
raro que, estando bem saciados e contentes em nossa
sensualidade, ele nos amolea e nos faa derramar lgrimas em
abundncia, e que, quando observamos fielmente o jejum e as
regras da temperana, ele nos endurea e faa secar a fonte
de nosso pranto? Ora, quem no v que, pelas falsas lgrimas
que ele coloca em nossos olhos, ele quer que nos abandonemos
intemperana e sensualidade, duas fecundas fontes de
vcios? Assim, em lugar de cairmos nestas armadilhas,
estejamos atentos para fazer o contrrio do que ele nos
sugere.

54. Quanto a mim, eu lhes confesso que ao considerar a


natureza da compuno do corao eu fico cheio de espanto, e
no posso deixar de me admirar como possvel que a dor e a
aflio da penitncia encerrem em si mesmas a felicidade e a
alegria, como uma colmeia de abelhas esconde o mel. Mas o que
nos ensina esta maravilha? Que a tristeza e as lgrimas de
uma alma contrita e penitente so real e verdadeiramente um
dom de Deus; pois o que faz com que esta alma arrependida
experimente este prazer e esta alegria interiores, to doces
e consoladores, que o prprio Deus, de um modo secreto e
invisvel, comunica aos coraes aflitos e quebrantados pela
dor de suas faltas as douras e as consolaes de uma alegria
celeste.

55. Mas nada, creio eu, poder contribuir mais a nos


convencer o quanto temos necessidade de chorar nossos
pecados, e o quanto as lgrimas de uma doura sincera so
teis nossa alma, como a histria verdadeiramente
extraordinria a surpreendente que eu vou lhes contar. Havia
no mosteiro em que eu estava um monge chamado Estevo; como
ele amava a vida solitria e eremtica, desde de muitos anos
ele vivia inteiramente separado dos irmos e tinha se tornado
um exemplo por seus jejuns rigorosos, suas lgrimas
abundantes e por outras virtudes semelhantes. Ele havia
fixado sua cela ao p da santa montanha onde um dia estivera
Elias na presena de Deus. Mas este homem verdadeiramente
respeitvel, desejando praticar exerccios de uma penitncia
mais austera e mais laboriosa, se retirou para o deserto dos
Anacoretas, chamado Sidon, e a viveu muitos anos na mais
severa e estrita disciplina. Este lugar, inteiramente privado
de qualquer consolao humana, era de incio quase
inacessvel, distante setenta milhas de toda habitao. Por
fim este santo ancio, chegado ao final de seus dias,
retornou para sua primitiva cela na montanha de Elias, onde
tinha por discpulos dois monges da Palestina, que eram muito
piedosos e severos observadores da disciplina religiosa. Eles
haviam permanecido nesta cela durante a ausncia do ancio, o
qual, depois de alguns dias de seu retorno, caiu
perigosamente doente, e esta doena o conduziu ao tmulo.
Durante a viglia de sua morte ele esteve arrebatado fora de
si, e neste arrebatamento ele olhava direita e esquerda,
como se houvessem pessoas ao seu redor; e ele prestava contas
de sua vida a estas pessoas, em to alta voz, que todos os
que estavam presentes podiam ouvi-lo. Sim, dizia ele algumas
vezes, verdade; eu cometi esta falta, mas jejuei muitos
anos para expi-la; e outras vezes: No, eu no cometi esta
falta; vocs me acusam erradamente. Depois ele acrescentava:
Eu confesso que me tornei culpado desta fraqueza; mas eu a
chorei, fiz penitncia e busquei afast-la de mim por meio de
santos exerccios e de obras de caridade. E absolutamente
falso que eu seja acusado disto agora, dizia vivamente.
Sobre outras questes, ele dizia: Vocs tm razo, eu
confesso que sou culpado e que nada tenho a apresentar para
me justificar, que no tenho outro recurso seno a
Misericrdia de Deus, em quem ponho toda minha confiana.
Ora, este exame extraordinrio era um espetculo tanto mais
amedrontador e terrvel na medida mesma em que este pobre
monge era acusado de faltas que no havia cometido. Ah!
Justos cus! Se um fervoroso solitrio, um anacoreta que,
durante quarenta anos passados em vida eremtica, chorara to
amargamente seus pecados, e os tinha expiado por meio de toda
espcie de austeridades, se este homem confessava que
determinadas faltas eram-lhe ainda indesculpveis, que
poderia ento acontecer a mim? No devo eu clamar: Infeliz
que sou! Sim, infeliz, miservel, pois este grande solitrio
no foi capaz de calar os demnios que o acusavam com estas
palavras de Ezequiel: O Senhor disse: eu os julgareis
segundo seus caminhos.[79]? Mas glria seja dada a Deus, o
nico que conhece as coisas ocultas! E no entanto muitas
pessoas me disseram que, enquanto vivia no deserto, este bom
solitrio dera com suas prprias mos de comer a um leopardo.
E foi no decurso deste exame rigoroso, enquanto prestava
contas de sua vida, que ele entregou sua alma a Deus, sem que
pudssemos saber o final deste julgamento, e qual teria sido
a sentena recebida.

56. Assim como uma pobre viva, aps a morte de seu marido,
s encontra consolo no nico filho que lhe resta, tambm uma
alma que caiu no pecado no consegue encontrar nenhum alvio
no momento de deixar a vida seno nos trabalhos penosos que
suportou, nos rigorosos jejuns praticados, nas lgrimas
vertidas e na penitncia realizada.

57. Estes tipo de penitentes no se permitem sequer cantar


hinos e cnticos quando esto a ss, por que estes cnticos
seriam capazes de sufocar seus suspiros e diminuir suas
lgrimas. Ento, se vocs imaginam que, cantando os hinos,
incitaro em si sentimentos de penitncia, saibam que esto
bem longe disto, e que a penitncia est bem longe de vocs.
A penitncia uma dor da alma que vem habitar nela depois de
muito tempo, e que nela se conserva por intermdio do fogo do
amor.

58. Esta penitncia precede na alma a paz e a tranquilidade


do corao: ela que, purificando-a e buscando a vitria
sobre as paixes e os maus hbitos, a reveste de seu primeiro
ornamento.

59. Eis o que me contou a respeito de si prprio um homem


ilustre por sua longa e rigorosa penitncia: Quando eu era
tentado a me entregar vanglria, impacincia,
intemperana, a lembrana de minha penitncia se opunha
fortemente e me fazia escutar dentro de mim estas palavras
severas: Cuidado para no se deixar levar pela vanglria,
pois do contrrio eu o abandonarei; e o mesmo acontecia em
relao s outras tentaes. Ento eu lhe respondia, dizendo
que jamais a desobedeceria at que pudesse ser apresentado
com segurana diante do tribunal de Jesus Cristo.

60. Mas se uma alma profundamente penitente e sinceramente


afligida por seus pecados recebe de Deus consolaes
inefveis, uma alma pura e santa recebe dele luzes
extraordinrias. Ora, esta iluminao divina uma impresso
doce e forte, que no podemos exprimir, nem compreender, nem
ver: somente a f capaz de compreend-la, v-la e senti-la.
Quanto s consolaes da alma penitente, um certo frescor
doce e agradvel que torna de certo modo esta alma semelhante
a uma criana que chora e ri ao mesmo tempo. Este frescor,
por um efeito admirvel, renova esta alma aflita e faz com
que suas lgrimas, de amargas, se tornem doces e agradveis.

61. As lgrimas produzidas pelo pensamento da morte fazem


nascer o temor a Deus nos coraes; este temor a Deus
engendra a confiana, e esta firma confiana produz uma
alegria perfeita, que enfim gera a flor divina do amor.
62. Afastem para longe, com um esprito de verdadeira
humildade, toda alegria estrangeira, como sendo indigna de
vocs; e no deixem de temer que, pelas mentiras do demnio,
venham a receber um lobo devorador aos invs do pastor de
suas almas.

63. Cuidado para no desejar, antes do tempo, se elevar a uma


sublime contemplao; faam de modo a que, pela perfeio de
sua humildade, seja ela a procur-los e captur-los para se
unir sua alma numa unio pura e indissolvel.

64. Vejam como uma alma religiosa se assemelha de uma


criana: apenas se aproxima o pai e ela se enche de uma
alegria que no consegue expressar; e, se por qualquer razo
seu pai se ausenta, quando ele retorna, a criana mostra ao
mesmo tempo seu contentamento e sua pena: seu contentamento,
por que ela recebe seu pai depois de uma ausncia que muito
custou a ela; sua pena, por que ela ficou tanto tempo privada
de sua presena.

65. Tambm esta alma se parece com uma criana: vejam como
uma me se esconde e se oculta da vista de seu filho, mas
que, assim que ouve seus gemidos e v suas lgrimas,
experimenta um prazer delicioso, por que o est ensinando a
sentir a importncia e a necessidade de no se afastar de sua
presena; deste modo ela nutre e aumenta em seu filho o afeto
que ele sente por ela. Ora, disse o Senhor: Quem tiver
ouvidos para ouvir, escute estas palavras[80].

66. O criminoso condenado pena capital por acaso pensa nos


exerccios do Ginsio ou nas peas apresentadas no teatro?
Ora, quem pensa nos pecados que lhe condenam aos tormentos
eternos, ser este capaz de se entregar ao prazer,
vanglria, clera e ao mau humor?

67. A penitncia, que consiste numa viva e profunda dor da


alma, no deve ela nos fornecer a cada dia novos motivos para
nos afligir e sofrer? No se parece a alma penitente com uma
mulher que se encontra nas dores do parto?

68. O Senhor, cuja justia iguala sua santidade, recompensa,


pelo sentimento de uma compuno cheia de f, o monge que, na
solido, vive segundo a f e as regras da santidade, assim
como recompensa, por meio de inefveis consolaes, o monge
que, por motivos louvveis, habita num mosteiro para a viver
santamente sob a autoridade e a obedincia de um superior.
Mas quem, sinceramente e segundo Deus, no abraa nenhum
destes modos de vida, estar infelizmente privado do dom das
lgrimas.

69. Afastem e expulsem para longe o demnio do desespero,


este co raivoso, que, vendo-os considerar com dor os pecados
cometidos, faz todos os esforos para lhes apresentar um Deus
sem clemncia, sem bondade e sem misericrdia; se vocs
prestarem ateno, vero que, antes de faz-los cair nas
faltas que agora choram, este miservel lhes pintava
vivamente a bondade, a clemncia e a misericrdia de Deus e,
sobretudo, sua admirvel facilidade em receber os pecadores e
perdo-los.

70. O santo exerccio da penitncia produz seu prprio e


feliz costume em nossa alma, e este costume o torna fcil e
agradvel. Eis por que ele coloca em nossos coraes razes
to forte e to profundas que se torna difcil arranc-lo de
ns.

71. De resto, ser intil nos entregarmos aos mais excelentes


exerccios de piedade, se no tivermos esta dor interior e
sincera por nossos pecados; neste caso, no seremos nada,
nada estaremos fazendo; pois para ns, que manchamos e
perdemos a graa preciosa do batismo, que enchemos nossas
mos de iniquidades, absolutamente necessrio que nos
purifiquemos e, por meio do fogo ardente e contnuo do
arrependimento e pelo azeite da misericrdia de Deus,
consigamos derreter esta graxa repugnante dos nossos vcios.

72. Conheci pessoas que estavam, por assim dizer, no ltimo


degrau da penitncia. Elas sentiam uma contrio to viva e
aguda de seus pecados, que chegavam a vomitar sangue. Esta
viso me lembrou as palavras do salmista: Eu fui flagelado,
Senhor, pelo rebenque se sua clera, como a erva pelos raios
do sol, e meu corao ressecou[81].

73. As lgrimas que o temor a Deus nos faz verter produzem em


ns o temor de v-las secar e a vigilncia necessria para
conserv-las. Os que no choram seus pecados seno pelo
movimento de uma caridade pouco inflamada e que no tem a
perfeio requerida, logo as vero desaparecer. No se pode
dizer o mesmo dos que choram suas faltas por que seu corao
est abrasado no tempo por uma fogo digno de uma memria
eterna; e acrescentemos aqui que em nossa penitncia, para
nossa admirao, foi o mais humilde e o mais abjeto que criou
em ns realmente a maior certeza e segurana de ser agradvel
a Deus.

74. Existem coisas que fazem secar as lgrimas da penitncia,


e outras que nelas misturam, se podemos nos exprimir assim, a
lama e as bestas selvagens. As primeiras foram causa do
incesto de Lot com suas duas filhas, e as segundas, da queda
de Lcifer e de seus anjos.

75. A malcia dos inimigos de nossa salvao


verdadeiramente incrvel: eles se servem de tudo para
transformar nossas virtudes em vcios e para nos encher de
orgulho em coisas das quais devamos nos cobrir de vergonha.

76. A solido em que nos encontramos, as celas que ocupamos,


os diversos objetos que encontramos, so muitas vezes capazes
de nos levar compuno; e no isto o que nosso Senhor,
Elias e so Joo Batista nos ensinam com seu exemplo? Pois
eles se retiraram para o deserto para estar a mais
desimpedidos para a orao, e para oferecer a Deus o tributo
de suas lgrimas.

77. E no entanto acontece tambm, e eu prprio j vi isto,


que no centro das cidades e nomeio do tumulto e das agitaes
do sculo, monges derramassem lgrimas abundantemente. Mas
no nos enganemos com isto: o inimigo quer nos levar a que
entremos no mundo, fazendo-nos crer que no sofreramos
nenhum prejuzo nem perda espiritual alguma por frequentarmos
os homens, e para que nos coloquemos no meio das coisas e dos
negcios do sculo, e que, por conseguinte, errado temermos
assim o mundo e suas agitaes tumultuadas.

78. No percamos de vista que s vezes basta uma palavra para


fazer secar a fonte das lgrimas de uma alma penitente.

79. Podemos dizer que, sem algum tipo de milagre, uma s


palavra capaz de faz-las jorrar outra vez? Eh! Meus ternos
amigos, na hora de nossa morte, o soberano Juiz no
considerar um crime no termos feito milagres durante a
vida, ou no termos tratado com sutileza as matrias elevadas
da teologia, ou no havermos alcanado um elevado grau de
contemplao, mas sim o no termos chorado nossos pecados de
modo a obter seu perdo. Este o stimo degrau da escada do
paraso. Aquele que chegou at aqui, por favor d-me sua mo,
pois somente isto possvel com o auxlio de algum, que
tambm chegou a este ponto e que tenha se purificado dos
pecados cometidos durante sua vida.
OITAVO DEGRAU

Da Mansido, que triunfa sobre a clera.

1. A gua que pouco a pouco derramada sobre um incndio


acaba por extingui-lo inteiramente; o que fazem as lgrimas
vertidas por causa de uma verdadeira dor pelos pecados,
apertando e fazendo morrer os movimentos da clera e
acalmando a impetuosidade do corao: por esta razo que
vamos tratar agora da mansido e da bondade da alma.

2. A vitria que obtemos sobre a clera consiste


essencialmente numa sede inextinguvel e num desejo
insacivel de menosprezo e humilhaes, assim como a vaidade
consiste num desejo imenso de honras e elogios. A mansido
assim uma vitria que obtemos sobre a natureza, sofrendo toda
sorte de injrias com inviolvel pacincia, que ao final ir
coroar nossos combates e nossas fadigas.

3. assim que ela torna a alma inquebrantvel e impassvel


em meio ao despreza e s humilhaes, dos aplausos e dos
elogios.

4. Manter nossa lngua em cativeiro e guardar silncio quando


nosso corao violentamente agitado, so as primeiras armas
desta virtude e as primeiras vantagens que ela obtm sobre a
clera: saber acalmar o tumulto interior de nossos
pensamentos e de nossos sentimentos nos momentos em que
estamos agitados, so progressos que fazemos na prtica da
mansido; mas conservar nossa alma em calma e tranquilidade
em meio aos ventos mais impetuosos, as tempestades mais
furiosas, eis aqui a perfeio da mansido e da vitria que
obtemos sobre a clera.

5. Esta paixo se alimenta num pensamento de raiva secreta e


na lembrana das injrias recebidas; ela nos leva a buscar a
vingana contra os que nos ofenderam.

6. O furor uma paixo instantnea e violenta da alma.

7. O azedume ou a amargura do corao consiste num


sentimento, ou antes numa sensao cheia de malcia que
habita o corao e o precipita no abatimento e na tristeza,
sem lhe trazer nenhum contentamento.

8. A clera j corrompeu rapidamente muitos hbitos doces e


tranquilos, aviltando o corao e cobrindo-o com uma horrvel
deformidade.

9. Assim como as trevas se pem em fuga quando o sol derrama


seus raios sobre a terra, tambm o azedume e a clera
desaparecem prontamente quando a humildade se apresenta e
verte seus perfumes olorosos.

10. Apesar disso, encontramos ainda pessoas que, embora


tenham podido atestar o quanto uma experincia deplorvel
capaz de conduzi-las a movimentos de clera, no buscam nem
empregam os meios e os remdios capazes de curar seus
coraes desta funesta enfermidade. Insensatos! Esquecem-se
desta sentena memorvel: O momento da clera o momento da
perda e da runa da alma[82].

11. Os movimentos de clera so muito semelhantes aos


movimentos de uma m de moinho: eles so capazes de num
instante fazer uma alma perder mais farinha e benefcios
espirituais, do que outros levariam nisto um dia inteiro.

12. Eles se assemelham tambm a estas chamas que, empurradas


por um vento impetuoso, logo reduzem tudo a cinzas. Portanto,
vigiemo-nos com grande ateno, a fim de nos opormos com
vigor s suas devastaes terrveis e instantneas.

13. No esconderei de vocs, meus amigos, que muitas vezes os


demnios, estes implacveis inimigos de nossa alma, sabem
destramente cessar de nos tentar, a fim de que pouco a pouco
nos tornemos negligentes, que encaremos como leve e pequeno o
que grave e criminoso, at que por fim tombemos em
enfermidades incurveis e mortais.

14. Uma pedra aguda, custa de bater contra outras pedras,


perde suas pontas e se torna arredondada. Da mesma forma uma
pessoa dom temperamento bilioso e colrico, vivendo entre
pessoas do mesmo tipo, experimentar necessariamente um
destes dois efeitos: ou corrigir por meio da pacincia seu
humor irritadio e violento; ou, vencido pelas injrias que
ir receber, se retirar de seu convvio, e mostrar com esta
retirada o quanto ela perdeu de fora e de coragem.
15. Um homem escravo da clera um epiltico espiritual que,
primeiro pela prpria vontade e depois pela necessidade do
hbito, se arranha e se despedaa.

16. Nada mais funesto aos que choram seus pecados do que
esta paixo funesta: ela perturba seus coraes e os impede
de retornar a Deus atravs dos sentimentos de humildade que
lhes inspirava a vida religiosa que abraaram; pois a clera
a prova evidente de que se est sob o domnio do orgulho.

17. Se a perfeio da mansido ser calmo e tranquilo e


conservar sentimentos de amor e afeto pela pessoa que nos
ofendeu, mesmo em sua presena, ser o cmulo do furor nos
irritarmos e manifestarmos nossa clera por palavras e aes
contra quem nos mortificou e irritou, quando estamos a ss e
a pessoa est longe de ns.

18. Se o Esprito Santo chamado de paz da alma e o , com


efeito e a clera chamada de perturbao da alma e o ,
igualmente no devemos concluir necessariamente da que
sobretudo a clera que nos priva da presena deste Esprito
divino?

19. Dentre os numerosos e traioeiros filhos da clera existe


um que, apesar de sua maldade, nos traz algum benefcio. De
fato, j vi pessoas que, estando inflamadas de furor, por um
movimento sbito e violento expulsaram de seu corao uma
averso que nutriam h muito tempo; pois com isto
possibilitaram a quem os havia ofendido, ou de lhes dizer de
seu arrependimento pela conduta passada, ou de lhes dar
satisfao pelo mal feito. Desta forma, por um movimento de
clera, elas se livraram desta paixo. Mas tambm vi outros
que, por uma hipocrisia infernal, faziam cara de sofrer com
pacincia as injrias que lhes era dirigidas, mas que
guardavam delas uma lembrana exata e perfeita.

20. Eu creio que estas pessoas so piores do que as que se


deixam levar pelos rompantes da clera; pois elas mancham e
empanam a brancura e a simplicidade da pomba com a cor negra
e infecta da raiva.

21. No existe precauo excessiva contra to infame conduta:


trata-se de uma serpente da qual devemos desconfiar em todas
as coisas; um demnio que, semelhante ao demnio da
impureza, tenta nos por a perder, favorecendo as inclinaes
da natureza corrompida.

22. Eu j vi que certas pessoas so de tal modo transportadas


pela clera, que no podem sequer comer, e esta abstinncia,
ao invs de acalmar seu furor, s o faz aumentar; mas, ao
contrrio, observei que existem outras que, em seus acessos
de clera e acreditando estar certas, se atiram com uma
espcie de raiva sobre a comida, devorando-a com ferocidade
aterradora: e assim estes miserveis caem da fossa no abismo.
Por fim, vi tambm alguns que, mais sbios e semelhantes a
mdicos experientes, sabem guardar o justo meio entre estas
duas extremidades, extraindo da grandes benefcios.

23. O canto apropriado para trazer alma a calma e a paz;


mas ele tambm pode prejudic-la levando a ela prazeres e
alegrias; mas quem souber consultar as circunstncias e as
convenincias dele podero se servir sabiamente.

24. Num dia em que fui encontrar alguns anacoretas por


motivos pessoais, detive-me por algum tempo fora de suas
celas, e ouvi que faziam um grande barulho, e que discutiam
entre si como perdizes numa gaiola, tal era a fria que os
animava. Tamanha era ela que, embora aquele que os irritara
estivesse ausente, eles agiam como se ele estivesse presente
e os estivessem vendo ali diante deles. Eu os aconselhei a
que deixassem suas celas e se retirassem com toda
simplicidade para um mosteiro; pois eu temia que, de homens
que eram, pudessem se transformar em abominveis demnios. Em
outras comunidades eu vi coisas de natureza completamente
diferente: tratava-se de pessoas indolentes e afeminadas,
homens sujeitos intemperana e sensualidade, demasiado
afetados e lisonjeiros uns em relao aos outros, e que
tomavam todos os cuidados mais minuciosos com a higiene e a
beleza de seus corpos. A estes eu aconselhei que se
retirassem para o deserto, por que a solido a inimiga
irreconcilivel da luxria e da sensualidade; pois eu temia
que de homens racionais que eram, se tornassem como animais
desprovidos de razo. E quando acontecia de encontrar pessoas
que padeciam amargamente de se ver tentados pela clera e
para indolncia, eu as pressionava fortemente a no se
conduzirem por si prprias, mas que vivessem sob o jugo da
obedincia. Assim eu pedia caridosamente a seus superiores
que lhes permitissem viver tanto na solido como no interior
do mosteiro, de maneira a que, pelo menos, em um ou outro
destes estados, elas estivessem sempre na dependncia e sob a
autoridade de seus superiores.

25. Se verdade que aqueles que so levados aos prazeres dos


sentidos e indolncia, no apenas perdem a si mesmos como
pem a perder as pessoas que lamentavelmente se ligam a eles
e os frequentam, tambm verdade que, como um lobo furioso,
o homem colrico capaz de perturbar toda uma comunidade e
levar perdio um grande nmero de almas.

26. Eu penso que se trata de um crime hediondo perturbar o


olho de seu corao, atitando-se fria, conforme a palavra:
A fria turvou meus olhos[83]; mas penso tambm que um
crime ainda mais temvel mostrar por palavras amargas a
agitao interior na qual nos encontramos; enfim, penso que o
cmulo da infmia chegar s vias de fato: isto o que h
de mais contrrio vida anglica, religiosa e quase divina
que nos propusemos vive.

27. Mas devemos frisar aqui que, se voc quer retirar do olho
de seu irmo uma palha que voc viu ali, cuidado para que
este no seja um desejo enganador; no se utilize, para esta
operao delicada, de um instrumento grosseiro, mas empregue
algum que seja prprio e conveniente, e cuidado para no a
afundar ainda mais, em lugar de retir-la. O instrumento
grosseiro a imagem da reprovao dura e humilhante que
fazemos aos outros, e os modos bruscos e violentos com que a
manifestamos; o instrumento delicado a imagem de uma
reprimenda cheia de bondade, doura e benevolncia. O
Esprito Santo nos disse: Repreendam, corrijam e peam; mas
ele no nos disse: batam. Se formos obrigados a faz-lo,
que seja muito raramente; e que isto s acontea por mos de
terceiros.

28. Se prestarmos ateno, veremos que existe nas pessoas


violentas e colricas uma inclinao pronunciada para a
prtica do jejum, das viglias e do silncio. assim que o
demnio, este inimigo cheio de astcia, sob o pretexto da
penitncia e do derramamento de lgrimas, lhes fornece a
matria e os meios de aumentar seu humor violento e azedo.

29. Se um mau monge, como dissemos acima, auxiliado pelo


demnio e semelhante a um lobo, capaz de perturbar toda uma
casa religiosa, um bom monge, pela razo contrria, escolhido
dentre os mais prudentes e sbios, e ajudado por um anjo,
poder derramar o azeite precioso da doura em meio a seus
irmos, apaziguar as tempestades excitadas e os ventos
furiosos da clera e conduzir com sucesso o navio ao porto da
tranquilidade e da calma. Assim, do mesmo modo como o mau
monge deve ser julgado, condenado e punido por sua conduta, o
bom monge, que por sua doura se tornou exemplo e modelo para
seus irmos, digno de receber uma recompensa proporcional
grandeza e importncia dos servios prestados.

30. O primeiro grau da mansuetude consiste em sofrer os


ultrajes e as humilhaes, por mais amargura e dor que a alma
ainda possa sentir; o segundo grau consiste em suportar estas
coisas com calma e tranquilidade; o terceiro, que a
perfeio da mansido, consiste em receber o desprezo e as
injrias com mais prazer do que recebem os mundanos os
elogios que lhes so dirigidos. Mas onde est este homem que
alcanou tal perfeio? Fique contente quem chegou ao
primeiro grau; persevere com constncia, quem alcanou o
segundo; mas quem atingiu o terceiro, este ter triunfado no
Senhor.

31. Mas eis uma coisa verdadeiramente digna de pena: que as


pessoas irascveis costumam, devido a uma inconcebvel
vaidade, se irritar e se encolerizar por se deixarem vencer
por seu mau humor. Em verdade, no lamentvel voltar a
cair, pretendendo se punir por haver cado uma primeira vez?
Quanto a mim, considerando a excessiva malcia do demnio, eu
me probo disto, pois, observando estas pessoas, eu percebo
que elas no esto longe de cair no mais funesto
desencorajamento.

32. Se algum percebe que se deixa facilmente vencer pela


vaidade e a clera, pela maldade e a hipocrisia, e decide
empregar contra esses vcios a espada de dois gumes da doura
e da pacincia, eu o aconselho fortemente a entrar para uma
comunidade de irmos, como numa oficina que lhe ser muito
salutar; a escolher, se deseja de todo seu corao corrigir-
se, a morada onde as regras e a disciplina forem mais
austeras, a fim de que, por meio das humilhaes, do desprezo
e das mais duras provas ele seja como que flagelado,
despedaado, retalhado, apagado e pisoteado. assim que ele
ir purificar sua alma das faltas cometidas e compreender a
verdade de uma palavra muito empregada no mundo; pois, para
se glorificar, no raro ouvirmos dizer aos que foram
oprimidos com injrias e ultrajes: Eu lavei sua cabea ao
meu modo.

33. Existe uma diferena essencial entre a vitria que os


jovens conversos obtm sobre a clera, servindo-se das armas
de uma humilde penitncia, e a imobilidade tranquila dos que
alcanaram a perfeio da doura, pois, entre os primeiros,
as lgrimas, como correntes, amarram e reprimem a clera,
enquanto que, nos ltimos, a calma e a tranquilidade de seus
coraes insensveis s injrias levaram morte este paixo,
como o faria uma espada a uma serpente.

34. Certo dia, diante de meus olhos, trs monges receberam o


mesmo ultraje. Um sentiu-se ferido mas sofreu em silncio,
afogando a mgoa que sentia; outro alegrou-se internamente,
mas se sentiu aflito interiormente por caridade e
benevolncia em relao a quem o maltratara; o terceiro,
enfim, esqueceu-se totalmente de si para s se ocupar de seu
irmo, por quem chorava clidas lgrimas, tamanha era a
caridade que devorava seu corao. Assim podiam-se ver nestes
monges trs excelentes virtudes: o temos a Deus, a esperana
e o amor.

35. Como acontece com nossos corpos, embora a febre seja


sempre a mesma, ela no deixa de ter mltiplas causas; tambm
a clera, assim como outras paixes, tem muitas causas e
inicia-se de vrias maneiras. impossvel fornecer aqui
instrues especficas e relativas a cada causa ou incio.
Tudo o que eu posso fazer aconselhar aos que se sentirem
afetados por esta paixo, que busquem os remdios
convenientes e capazes de cur-los, e sobretudo que conheam
as causas do mal, a fim de que, conhecendo-a perfeitamente,
possam, com a Bondade de Deus e sob a direo de seu mdico
espiritual, empregar os remdios necessrios. Que se
apresentem, e que conosco entrem nesta busca que propusemos
aos monges, todos os que, tocados pelas palavras que lhes
dirigimos, desejam conhecer o verdadeiro estado de sua alma;
que examinem seriamente, e no mais profundo silncio, quais
so os tristes efeitos e os funestos princpios das paixes
que acabamos de descrever.
36. Um corao colrico e furioso deve ser acorrentado como
um cruel tirano, mas com as cadeias de uma doura e pacincia
constantes; preciso vergast-lo com o chicote da clemncia,
e conduzi-lo por meio da caridade ao tribunal da razo
soberana de Deus, para responder s questes que lhe sero
feitas. Diga-nos, tola e impudente paixo da clera, o nome
de seu pai, da me que infelizmente a deu luz, e dos filhos
corrompidos que nasceram de voc. Diga-nos quem so aqueles
que, combatendo-a, a podero exterminar e fazer desaparecer.
A estas questes, quais respostas nos dar a clera? Eu quase
a ouo dizer: Muitas causas concorreram para a minha
existncia; eu no tenho apenas um pai, mas muitos, e o
primeiro a contribuir para a minha existncia foi o orgulho.
Eu tenho muitas mes, dentre as quais esto a vanglria, a
avareza, a intemperana, a luxria. Minhas filhas so o
pensamento das injrias, a raiva, as discusses e as
inimizades; e os inimigos que podem me vencer e acorrentar
so as virtudes opostas s minhas filhas, e ainda a pacincia
e a moderao; mas a virtude que maior mal me faz a
humildade. Com o tempo, vocs aprendero de onde esta
virtude extrai sua origem. neste oitavo degrau que se
encontra a coroa da doura e da mansido. Aquele que, pela
compleio de sua natureza, de um temperamento doce e
tranquilo, eventualmente poderia no merec-lo. Mas o merece
aquele que, por seus esforos laboriosos, obteve a vitria
sobre a clera, passando sucessivamente pelos sete primeiros
degraus: dele esta bela coroa.
NONO DEGRAU

Do Ressentimento.

1. com razo que podemos comparar as virtudes ais diversos


degraus da escada de Jac, e os vcios s correntes que
caram dos ps e das mos de so Pedro, prncipe dos
apstolos. Com efeito, estando as virtudes unidas umas s
outras por anis admirveis, eles permitem subir at os cus
aqueles que tm a felicidade de pratic-las, enquanto que os
vcios, ligados entre si por laos diablicos, conduzem
infelicidade eterna os que se deixam miseravelmente conduzir
por eles. por isso que pensamos ser aqui o lugar para
tratarmos da lembrana das injrias, por que ouvimos da
prpria boca da clera que esta uma de suas perversas
filhas.

2. Ora, ns diremos que a lembrana das injrias, na medida


em que representa o cmulo da clera, tambm sua cauda.
ela que faz viver os pecados numa alma, que nela alimenta o
dio justia, que causa a morte das virtudes, que envenena
o corao, que obscurece a inteligncia, que cobre de
vergonha os que recitam a orao dominical, que paralisa a
prece, que destri a caridade, que trespassa sem interrupo
os coraes com suas flechas afiadas, que os enche de
amargura e a faz reinar, com um imprio absoluto, o pecado,
o crime e a maldade.

3. Ora, como a lembrana das injrias extrai sua origem de


algumas outras paixes vis e abjetas, e como ela no as
apresenta, seno raramente, dela diremos pouca coisa.

4. Quem mata a clera, mata, por isso mesmo, a lembrana das


injrias. Mas enquanto esta violenta paixo domina o corao,
ela a gera novos filhos.

5. Observem atentamente como e quo rpido expulsa e bane de


sua alma a clera, o homem que queima de amor por seus
irmos, e quantas penas e inquietudes vergonhosas cria para
si mesmo o que se entrega a esta paixo brutal.

6. Saibam que uma pequena refeio de caridade dissipa a


raiva, e que presentes feitos com intenes puras e sinceras
acalmam e conquistam os coraes; enquanto que um festim, no
qual as leis da sobriedade no so observadas, d lugar
licenciosidade, e assim, sob pretexto de fazer um gesto de
caridade, nos entregamos aos excessos do comer e do beber.

7. Eu j vi a clera romper de um s golpe uma velha ligao,


profana e criminosa, e degenerando em dio violento, contra a
expectativa geral, manter a lembrana das injrias recebidas,
de modo a perseverar nesta ruptura at o fim. Mas neste caso,
trata-se mais da obra de Deus do que da do demnio.

8. A lembrana das injrias sempre infinitamente oposta ao


amor, coisa que no podemos assegurar em relao s
tendncias criminosas, pois estas se misturam facilmente com
esta virtude para manchar e corromper a brancura e a pureza
desta inocente pomba.

9. Vocs querem no esquecer das injrias recebidas? Eu o


consinto, desde que sejam aquelas recebidas do demnio. Quem
quiser nitrir em seu corao o dio e a inimizade, que o
faa, mas contra seu prprio corpo, que seu mais perigoso
inimigo; pois este corpo miservel, sob o enganoso ttulo de
amigo, no passa de um ingrato e de um traidor: quanto mais
cuidamos dele, mais mal ele nos faz.

10; A lembrana das injrias um pssimo intrprete das


santas Escrituras. Ela no sabe explicar os orculos sagrados
do Esprito Santo a no ser conforme seus gostos depravados e
seu senso corrompido. Que a prece que nosso Senhor nos
ensinou cubra de confuso aqueles que se deixam conduzir por
to mau doutor. Eh! Como podero estes recitar esta admirvel
orao, com Jesus Cristo e segundo suas intenes, se o
pensamento das injrias se mantm gravado em sua memria?

11. Se vocs lutaram contra si prprios por muito tempo e com


todo vigor, para esquecer um ultraje, sem conseguir
desenraizar sua lembrana de seu corao, eis o conselho que
eu acredito poder lhes dar: humilhem-se na presena daquele
que os ofendeu, dirigindo-se a ele com palavras doces; vocs
vero que pouco a pouco comearo a enrubescer devido a esta
longa dissimulao, e que assim, continuamente agitados pelas
reprimendas de sua prpria conscincia, vocs acabaro por
consumir a inimizade no fogo da caridade, reconciliando-se
perfeitamente com seu irmo.
12. Vocs sabero que seu corao est livre de todo
sentimento de dio, no apenas por que oram pela pessoa que
os ofendeu, nem por que lhe oferecem presentes e o convidam
mesa, mas apenas quando, sabendo que a ele aconteceu algum
acidente no corpo ou na alma vocs se sentirem desolados
e aflitos, como se a infelicidade acontecesse com vocs
mesmos.

13.Um monge que conserva em seu corao a lembrana das


injrias guarda a um ninho de serpentes, e traz seu veneno
no prprio seio; e este veneno mortal.

14. O pensamento e a meditao das injrias e dos sofrimentos


que Jesus Cristo suportou com pacincia exemplar so ideais,
por nos cobrirem de uma salutar confuso, para expulsar de
nosso corao a lembrana dos ultrajes que recebemos.

15. Os vermes, como sabemos, so gerados na madeira; mas


podemos ignorar que a clera se torna hspede dos coraes
que no possuem seno uma doura exterior e aparente? Quem
quer que, por seus esforos, conseguir expuls-la para longe
de si, merece o perdo de seus pecados; mas quem conserva e
alimenta esta paixo se torna indigno de toda misericrdia.

16. Vemos muitas pessoas empreenderem grandes trabalhos e se


condenar a rigorosas privaes para obter a remisso de suas
faltas; mas avana muito mais na obra admirvel da
justificao aquele que baniu de seu corao toda ideia e
toda lembrana das injrias recebidas. o que nos assegura o
orculo de eterna verdade: Perdoem, e sero perdoados[84].

17. Si, eu repito, o esquecimento dos ultrajes a marca


segura de uma penitncia sincera e eficaz. Engana-se
grosseiramente quem, no querendo esquecer, se convence de
estar tocado e animado por uma verdadeira dor por seus
pecados. Infeliz! Assemelha-se a um homem que, em seu sonho,
pensa que corre.

18. Eu encontrei pessoas que, mesmo conservando em si a


lembrana das ofensas recebidas, exortavam com grande zelo a
outras pessoas que se encontravam no mesmo estado a renunciar
a toda lembrana das injrias recebidas. Estas pessoas,
tocadas pelas exortaes que faziam aos outros, acabaram por
renunciar inteiramente lembrana dos ultrajes que elas
prprias haviam recebido.

19. Que ningum imagine que o pensamento e a lembrana das


injrias no passam de um pequeno defeito e de uma paixo
perdovel. So males funestos que penetram nos coraes mais
piedosos e mais religiosos, que os corrompem e os perdem
miseravelmente. Portanto, vocs que alcanaram este degrau,
peam com confiana ao Deus Salvador o perdo e a remisso
dos seus pecados.
DCIMO DEGRAU

Da Maledicncia.

1. No h pessoas que goste de refletir e que seja capaz de


dizer que a maledicncia no uma filha da clera e da
lembrana das injrias, e de no concordar que temos razo em
dizer algumas palavras a respeito deste detestvel vcio,
depois de havermos tratado dos dois primeiros.

2. A maledicncia gerada pela raiva. uma paixo muito


sutil; no obstante uma sanguessuga gorda e voraz, que se
esconde destramente para trair e sugar todo o bom sangue da
caridade. Sob o pretexto enganador do amor e da afeio, a
maledicncia exerce a devastao de um dio implacvel e
assassino, mancha horrivelmente o corao, carrega
enormemente a conscincia e destri inteiramente a castidade.

3. Assim como existem filhas do sexo que perpetram o mal sem


enrubescer, outras se escondem para pecar e, por isso mesmo,
cometem faltas ainda mais graves: assim tambm a marcha
normal das paixes. Elas cobrem nossa alma de ignomnia,
pois, muitas vezes semelhantes s jovens dissimuladas, elas
deixam exteriormente manifestar exatamente o contrrio
daquilo a que se propem de fato. Ora, as paixes que se
conduzem assim so a hipocrisia, a malcia, a tristeza, a
lembrana das injrias, o julgamento temerrio, as
condenaes da conduta de outrem e a maledicncia.

4. Tendo um dia encontrado algumas pessoas que falavam mal de


outras, tomei a liberdade de repreende-las com severidade.
Eis o que elas responderam diante de minha correo, e a
desculpa que alegaram por suas lnguas maledicentes: No
falamos ao acaso, disseram, mas por motivos da mais ardente
caridade, e com o desejo sincero de buscar a salvao para
aqueles cuja conduta condenamos. Diante desta resposta, eu
confesso que retruquei com emoo: Coragem, amigos; com
semelhante caridade vocs podero acusar como mentiroso este
orculo do Esprito Santo: Porei a perder os que maldizem ao
prximo em segredo[85]. Infelizes! Se vocs amam
verdadeiramente a estas pessoas, ofeream por elas a Deus
preces secretas e fervorosas; mas no manchem sia reputao
com palavras difamatrias, pois a melhor maneira de amar aos
irmos orar a Deus por eles; esta a conduta que agrada ao
Senhor.

5. Se vocs desejam de todo corao se abster de fazer


julgamentos injuriosos a respeito dos que caem em alguma
falta, eu lhes peo, prestem ateno numa coisa: no
pertencia Judas ao sagrado colgio dos apstolos? No estava
o ladro entre os homicidas? E que mudana espantosa
aconteceu com estes dois homens!

6. Quem estiver resolvido a vencer em si mesmo o esprito de


maledicncia, jamais atribuir o pecado ao homem que o
cometeu, mas ao demnio que o fez cometer; pois, ainda que
caiamos voluntria e livremente no pecado, no obstante
ningum, ao pecar, se prope como fim o pecado em si mesmo,
na medida em que ofende a Deus.

7. De resto, no pode acontecer aquilo que eu vi com meus


prprios olhos? Uma pessoa teve a infelicidade de cometer uma
falta publicamente, mas fez secretamente uma severa
penitncia; ora, vejam que, enquanto por uma m disposio de
esprito eu considerava culpada e criminosa esta pessoa, Deus
no via nela seno um corao puro e casto, por que, por meio
de uma converso sincera ela havia se reconciliado com o
Senhor.

8. por isso que, se vocs se encontrarem na companhia de


maledicentes, evitem se deixar dominar pelo respeito humano e
temer impor-lhes o silncio, dizendo-lhes, por exemplo:
Calem-se, eu lhes peo; pois eu tenho cometido diariamente
faltas maiores. Como, ento, posso eu condenar meu irmo?.
Assim vocs obtero dois benefcios preciosos: vocs se
preservaro do pecado, e conseguiro a cura de seu prximo. E
observem aqui que o caminho mais curto e mais seguro para
alcanar a remisso dos pecados consiste em jamais julgar nem
condenar nossos irmos. o que nos ensina Jesus Cristo com
as palavras: No julguem para no serem julgados[86].

9. No to contrria a gua ao fogo, como os julgamentos


temerrios o so em relao ao verdadeiro esprito de
penitncia.

10. Ainda que vejamos uma pessoa cometer uma falta no momento
mesmo da morte, devemos nos abster de julg-la e conden-la;
pois os homens ignoram completamente os desgnios de Deus.

11. Existem pessoas que, depois de cometer publicamente


grandes faltas, conseguiram repar-las vantajosamente por
meio de obras santas e de virtudes perfeitas. Enquanto isso,
os impiedosos crticos da conduta alheia, ao condenar estas
pessoas, enganaram-se grosseiramente: eles tomaram a neblina
pelo sol.

12. Vocs que to acidamente censuram as aes de seus


irmos, escutem-me e creiam-me. No deveriam vocs tremer?
Pois verdadeira a sentena: Vocs sero julgados do mesmo
modo como julgam os outros[87]. Ento, no devemos temer
que, seja pelo corpo, seja pela alma, estamos sujeitos a cair
nos mesmos erros que condenamos em nosso prximo? certeza!

13. Todos os que criticam com tanta facilidade e azedume a


vida e os defeitos dos outros, normalmente so pessoas que
no se lembram de suas prprias imperfeies, que perderam de
vista a lembrana dos seus pecados, e que no tomaram nenhum
cuidado em se corrigir. De fato, as pessoas que, sem amor
prprio, examinam as faltas que mancham sua conscincia, no
veem elas que nenhum espao de tempo, ainda que vivam cem
anos, ser suficiente para chorar o tanto necessrio os
pecados cometidos, e que ser ainda intil que derramem
tantas lgrimas quanta gua corre no Jordo?

14. Da mesma forma eu j frisei que no se encontra o menor


vestgio de maledicncia naqueles que foram verdadeiramente
tocados pelo sentimento de um arrependimento vivo e sincero,
nem trao algum de julgamento temerrio e de condenao de
seus irmos.

15. tambm por isso que os demnios, estes inimigos


irreconciliveis de nossa salvao, quando no podem nos
fazer cair diretamente em pecado, fazem todos os esforos
para nos levar a julgar e condenar os que caram, a fim de
que tambm ns sejamos manchados.

16. No se esqueam de que uma marca segura para reconhecer


os vingativos e os invejosos a facilidade com a qual eles
criticam a doutrina malignamente, bem como a conduta e as
aes dos demais. um esprito de dio que os leva a falar
desta maneira. Vejam ainda at onde pode ir a cegueira a este
respeito.

17. Conheci alguns que, em segredo e sem testemunhos, haviam


cometido faltas execrveis; e, acreditam vocs? Eles
confiavam de tal maneira na boa opinio que sabiam que os
demais depositavam em sua santidade e inocncia, que eles
insultavam e atacavam a reputao dos que havia cometido
publicamente as menores faltas.

18. Dar a si prprio a liberdade de julgar seus irmos


equivale a se atribuir um direito e usurpar impudentemente
este direito, que s pertence a Deus. E conden-los equivale
a condenar a si prprio, causar a prpria morte.

19. De fato, se o orgulho, sem mais vcios, capaz de nos


fazer perder, no devemos dizer o mesmo dos julgamentos
temerrios? No a desgraa que aconteceu ao fariseu, da
qual se fala no Evangelho[88]?

20. Assim como um produtor de vinhos sbio e prudente sabe


escolher as vinhas maduras e boas, rejeitando as que no
esto maduras e as que so cidas, tambm a alma que possui a
bondade e a sabedoria cuida para observar nas demais apenas
as virtudes e as boas obras que elas praticam. O insensato s
presta ateno nos vcios e nos defeitos. dele que est
escrito: Eles procuraram crimes, e foram feridos[89].

22. No devemos julgar nossos irmos sob a perspectiva de


nossos prprios olhos. Com efeito, ainda que os vejamos cair
em pecado, evitemos conden-los. No raro nos iludirmos e
nos enganarmos sobre este ponto to delicado. Aquele que
alcanar vitoriosamente este dcimo degrau, s se conduzir
segundo as leis de uma caridade sincera e de uma slida
penitncia.
DCIMO PRIMEIRO DEGRAU

Do falatrio e do silncio.

1. Vimos em poucas palavras o quo perigoso e funesto , para


aqueles que vivem religiosamente, julgar os demais, por que
eles se expem a ser julgados severamente e punidos
rigorosamente. Resta-nos agora buscar a causa deste defeito,
qual a porta pela qual ele penetra na alma, ou antes, por
qual porta devemos faz-lo sair.

2. Devemos dizer sem hesitao que o desregramento em falar


como um trono sobre a qual a vanglria se senta para se fazer
contemplar com pompa e ostentao, e promover seu espetculo.
Este destempero de palavras prova inequvoca de uma grande
ignorncia: ela , na verdade, a porta de entrada da
maledicncia, a mestra das diverses tolas, o instrumento da
mentira, a dissipadora da compuno, a inventora e operria
da preguia e da irresponsabilidade, a guarda avanada do
sono, a inimiga da meditao, a runa da vigilncia; ela
que esfria e congela a devoo e o fervor do corao, que faz
languescer e que extingue a piedade e o ardor nos santos
exerccios da orao.

3. Ao contrrio, o silncio sbio e prudente; ele fornece o


esprito de orao, liberta a alma do cativeiro, conserva o
fogo do amor divino, vigia os pensamentos do esprito,
observa atentamente os movimentos dos inimigos da salvao,
sustenta e alimenta o fervor da penitncia, alegra-se com as
lgrimas, recorda incessantemente a imagem da morte e a
lembrana dos suplcios eternos, faz considerar os Juzos de
Deus com temor salutar, favorece a santa tristeza do corao,
combate o esprito de presuno, favorece a tranquilidade da
alma, aumenta a cincia da salvao, nos forma na
contemplao das verdades sobrenaturais, nos aperfeioa das
boas obras e nos faz subir at Deus.

4. Quem conhece e sente bem suas faltas, no tem dificuldades


em refrear sua lngua; mas quem se diverte falando est bem
longe de conhecer a si mesmo.

5. Quem ama o silncio se torna amigo particular de Deus, e,


enquanto em seu interior lhe fala com sentimentos inspirados
por esta santa familiaridade, dele recebe a luz.

6. No foi o silncio que protegeu Jesus diante de Pilatos, e


que inspirou neste prncipe um grande respeito pelo Deus
Salvador? O silncio nos preserva da vanglria.

7. Pedro, por no ter guardado silncio com prudncia, teve


que chorar amargamente. Ele havia esquecido as palavras de
Davi: Eu observarei cuidadosamente minhas palavras, para no
pecar com minha lngua[1], e tambm esta sentena do
Esprito Santo: menos perigoso e funesto escorregar e cair
do que fazer mau uso de sua lngua[2].

8. Mas devo parar de entret-los com esta matria, ainda que


a malignidade artificiosa do desregramento no falar e os
vcios que produz me convidem a falar mais. Eu me contentarei
com repetir aquilo que um dia me disse uma pessoa muito
respeitvel. Falando sobre o silncio com esta pessoas, ela
me assegurou que a loquacidade provinha de uma dessas causas:
em primeiro lugar, do mau hbito de muito falar, livre e
desembaraadamente; pois, acrescentava, a lngua,
semelhantemente aos demais membros do corpo, faz com forte
inclinao aquilo que ama, e o que aprendeu com o muito uso;
em segundo lugar, da vanglria, sobretudo nas pessoas que
esto apenas no incio do exerccio da prtica das virtudes;
em terceiro lugar, da gulodice: pois, mais de uma vez
aconteceu que pessoas, castigando este defeito, e encorajadas
pelas violncias auto infligidas, pelas privaes auto
impostas e pela fraqueza a que reduziram seus corpos, se
libertaram do desregramento no falar, e fecharam a porta
intemperana das palavras.

9. Devemos acrescentar ainda que quem pensa seriamente na sua


ltima hora no ter esforo em corrigir este mau hbito. E
que aquele que chora suas faltas com sinceridade teme as
conversas frvolas mais do que o fogo.

10. Quem realmente gosta da quietude, ama o silncio; mas os


que gostam de correr para baixo e para cima, fora de suas
celas e de suas casas, comportam-se assim por estar possudos
de necessidade e paixo por falar.

11. Chamaremos a ateno para o fato de que as pessoas em


cujo corao a caridade derramou seus divinos perfumes, fogem
das companhias e da sociedade com mais horror do que as
abelhas fogem da fumaa; e que a fumaa no incomoda mais,
nem faz sofrer mais as moscas que buscam o mel, do que
fadigam e fazem sofrer a estes servidores de Deus o convvio
social.

12. difcil deter o curso de um rio sem criar cataratas;


mas ainda mais difcil deter e domar a intemperana da
lngua e o curso das palavras. Quem foi capaz de galgar este
dcimo-primeiro degrau ter conseguido, por isso mesmo, de um
s golpe, cortar as razes de um nmero incontvel de vcios.
DCIMO SEGUNDO DEGRAU

Da Mentira

1. O fogo nasce da pedra e do ferro. A mentira nasce da


tagarelice e do gosto pelo gracejo.

2. A mentira nos faz renunciar caridade, como o perjrio


nos faz renunciar a Deus.

3. Ningum que seja sbio e prudente pensar que a mentira


no passa de uma falta leve e de um pequeno defeito. Com
efeito, em nossos livros sagrados no encontramos vcios
contra os quais o Esprito Santo tenha pronunciado sentenas
mais terrveis do que o fez contra a mentira. Assim que se
Davi disse, falando com Deus: Voc condenar, Senhor, todas
as pessoas que p0roferem mentiras[3], o que acontecer com
aqueles que sequer temem acrescentar mentira o perjrio?

4. Vi muitos que, pelos aplausos que buscavam com suas


mentiras, e pelo prazer que sentiam em mentir, estudavam como
fazer rir os outros por meio de invencionices e contos
fabulosos; mas esta conduta insensata faz secar a fonte das
lgrimas e sufoca os sentimentos dos penitentes.

5. Percebero os demnios, quando os contadores de fbulas


comeam seus discursos enganadores, que desejamos nos retirar
de sua companhia, como se fosse de um lugar onde reina uma
molstia contagiosa e pestilenta? Eles se esforam por nos
segurar e nos reter por meio de dois motivos falsos, mas que
iludem: eles nos dizem que, se sairmos desta maneira,
causaremos uma dor sensvel quele que discursa, e que
tentamos parecer mais modestos, mas pudicos e santos do que
aqueles que escutam. Mas nestas circunstncias, no discutam:
saiam imediatamente, pois, se vocs agirem de outro modo,
vero que, durante a prece, seu esprito estar
incessantemente atormentado e agitado pela imagem e a
lembrana das coisas que vocs ouviram; e no se contentem em
apenas fugir, mas tratem de romper e dissipar a conversa
profana por meio do pensamento da morte e do juzo. Talvez
vocs sintam um pequeno pensamento de vanglria; mas melhor
sofrer esta imperfeio do que buscar vantagens de todo o
mundo.
6. A hipocrisia a me, a matria e o objeto da mentira.
Alguns ensinam que a hipocrisia no outa coisa do que a
ao de inventar, preparar e criar a mentira; de modo que a
mentira e a hipocrisia esto sempre reunidas, e como que
entremeadas.

7. Ora, todos os que esto cheios do temor de Deus so


necessariamente inimigos da mentira; pois eles seguem
imperturbveis as luzes e os movimentos de sua conscincia,
que um juiz incorruptvel.

8. Acontece com a mentira o mesmo que com todos os vcios; e


as faltas que cometemos nos entregando a ela tambm no so
todas da mesma gravidade. Assim, estar sujeito a um
julgamento menos severo e a uma condenao menos rigorosa o
homem que profere uma mentira por medo de algum dano, do que
o que mente sem temor deste perigo. Existem pessoas que
mentem pelo simples prazer de mentir, e outras que buscam
vantagens e benefcios pelas mentiras que proferem; e existem
pessoas cuja nica inteno, ao mentir, de fazer rir os
outros. Mas existem os que com suas mentiras se propem a
estender armadilhas aos seus irmos, e a faz-los cair em
algum prejuzo.

9. Os magistrados e os juzes buscam destruir a mentira; mas


somente a verdadeira penitncia capaz de extermin-la.

10. Os mentirosos, para se desculpar, costumam alegar que


mentem por boas razes, que sempre pela salvao das almas,
e para honrar a justia e a caridade; eles ousam inclusiva
dizer que no fazem mais do que seguir o exemplo de Rahab,
que, por meio de uma mentira feliz, salvou a vida dos
enviados do povo judeu.

11. Quando nos sentirmos inteiramente livres da tola vaidade


de mentir, ento, segundo as circunstncias imperiosas de
tempo e lugar, poderemos inocentemente ocultar a verdade por
meio de algumas mentiras leves e prudentes.

12. Assim como uma criana no sabe mentir, tambm deve ser
assim uma alma pura e inocente.

13. Vejam de que maneira um homem que se tornou alegre e


divertido por causa do vinho diz a verdade em todas as
coisas; assim tambm uma alma que est espiritualmente
embriagada pelas lgrimas da penitncia. Aquele que alcanou
este dcimo segundo degrau, pode contar que colocou aqui o
fundamento de todas as virtudes.
DCIMO TERCEIRO DEGRAU

Da Acdia

1. A acdia, conforme j dissemos, extrai sua origem da


necessidade imperiosa de falar; ela uma de suas primeiras
crias. por esta razo que, nesta odiosa cadeia de vcios,
ns a colocamos neste ponto.

2. Dizemos que a acdia consiste em um relaxamento do


esprito, um langor da alma, um desgosto pelos exerccios da
vida religiosa, uma certa averso pela santa profisso que
abraamos, uma adulao imprudente das coisas do sculo, uma
calnia insolente da Bondade e da Clemncia de Deus; ela
torna a alma fria e gelada no canto dos divinos cnticos,
fraca e languescente na orao, e ao mesmo tempo diligente e
infatigvel nos trabalhos e nas coisas exteriores, fingida e
dissimulada na obedincia.

3. Um monge sinceramente dedicado ao dever da obedincia


ignora por completo o que a acdia; pois ele se aperfeioa
na virtude, dedicando-se s aes exteriores apenas na medida
em que lhe so ordenadas por seu superior.

4. A vida monstica o inimigo declarado da preguia,


enquanto que esta frequentemente acompanha a vida eremtica e
no cessa de fazer a guerra todo o tempo contra os
solitrios. Assim, quando ela v a cela de um anacoreta, ela
sorri para si mesma, aproxima-se e fixa sua morada bem perto.

5. Normalmente pela manh que o mdico visita seus doentes;


a meio-dia que a acdia visita os monges. Ela lhes inspira
uma forte inclinao para os deveres da hospitalidade, e no
cessa de dizer aos monges, em privado, o quanto seria til
que eles dessem grandes e numerosas esmolas, que visitassem
assiduamente e de bom corao os pobres enfermos; ela no
cessa de repetir, para engan-los, estas palavras do Senhor:
Eu estava doente, e vocs me visitaram[4]. E ainda que ela
esteja sem vigor nem coragem, ela nos conjura a que no
abandonemos os que se encontram tristes e abatidos, e que
fortaleamos os que esto fracos e desencorajados.

6. Estamos ns em pleno exerccio da orao? Ela nos


apresenta a imagem de mil coisas diferentes, que ela nos faz
considerar muito importantes e necessrias, que so na
realidade como um arreio.

7. Coisa que merece toda a nossa ateno: este funesto


demnio da preguia tenta sobretudo os religiosos trs horas
antes da refeio; pois tanto ele os faz sentir dolorosos
calafrios e dores de cabea, como os atormenta com as dores
da febre e os incmodos da clica. E, na hora nona, que na
nossa contagem a terceira hora aps o meio dia, ela nos
conforta um pouco e nos deixa, tranquilos.

8. Mas a mesa est servida? Ela recomea a nos atormentar.


Chegou o momento da orao? Ela nos torna lentos e pesados.
Estamos orando? Ela nos vexa cruelmente com a necessidade de
dormir, e nos impede de pronunciar os versos inteiros por
causa dos bocejos vergonhosos e insuportveis que nos envia.

9. Mas lembremos aqui que os demais vcios s atacam e


destroem as virtudes que lhes so contrrias. A acdia ataca
e destri, sozinha, todas as virtudes.

10. Uma alma forte e generosa sabe manter, conservar e mesmo


reviver seu ardor e sua coragem; mas a acdia s faz perder
inteiramente toda riqueza.

11. Como, de todos os pecados capitais, a acdia que nos


faz maior mal, devemos nos ocupar em combat-la tanto ou mais
fortemente do que os demais.

12. antes de tudo, notemos que esta maldita paixo no nos


ataca com tanta violncia quanto o faz no momento do canto
dos salmos, e que depois deste santo exerccio ela nos deixa
bem tranquilos.

13. Nada nos dar coroas mais belas e mais ricas do que os
combates que devemos sustentar corajosamente contra a
preguia.

14. Quando estamos em p, ela quer que sentemos; quando


sentados, ela nos faz apoiar contra a parede; e quando
estamos em nossa cela, ela nos leva a olhar aqui e ali e a
fazer barulhos com os ps.
15. Quem chora amargamente seus pecados no ser escravo
desta funesta paixo.

16. Amarremos este tirano cruel por meio da lembrana


dolorosa de nossas faltas; castiguemo-lo com o trabalho de
nossas mos; atormentemo-lo sem cessar com os pensamentos dos
bens eternos que esperamos; arrastemo-lo impiedosamente
diante do tribunal de nossa f; e l faamo-lo sofrer um
interrogatrio e um julgamento esmagadores; ordenemos
imperativamente a ele que nos diga quem foi o pai que o
engendrou, e quais os abominveis filhos que ele prprio
gerou; obriguemo-lo a que nos responda quem so as pessoas
que o combatem at faz-lo morrer. Contra a sua vontade, ele
nos responder que os que o combatem at a morte so os
discpulos sinceros da obedincia, e que nestes homens ele
no encontra nada que lhe possa servir sequer um momento para
ali repousar; que ele s pode coabitar tranquilamente com os
falsos monges que s fazem a prpria vontade; que por isso
que ele os ama e no os deixa jamais; que as causas que
concorrem para lhe dar existncia so em grande nmero,
dentre as quais ele deve mencionar a insensibilidade do
corao, o esquecimento do cu e das verdades eternas,
algumas vezes um trabalho penoso ou exerccios exagerados e
fatigantes,; que seus filhos so a inconstncia, a mudana de
moradia, a desobedincia ao superior, o esquecimento do Juzo
e, de tempos em tempos, a negligncia em cumprir os deveres
da vida religiosa; que os inimigos que a aprisionam ao banco
e a tornam cativa so a salmodia fervorosa, uma ocupao
contnua e a meditao da morte; e que seus inimigos mortais
so a prece e a esperana viva e segura dos bens futuros.
Quanto prece, se voc quiser conhecer de onde ela extrai
sua origem, deve perguntar a ela prpria. Aquele que, pela
vitria obtida sobre a preguia, conseguir superar o dcimo
terceiro degrau, se aperfeioar em todas as virtudes.
DCIMO QUARTO DEGRAU

Da Gula, que, por impiedosa que seja, agrada a todos

1. Se alguma vez, desde que nos ocupamos destes diversos


assuntos, somos obrigados a falar contra ns, sobretudo a
respeito do presente tema. De fato, eu acreditaria num
milagre se algum me garantisse conhecer um homem que tenha
se libertado completamente durante a sua vida da tirania da
intemperana, a menos que tenha vivido numa tumba.

2. A gula um ato hipcrita de nosso estmago, que nos diz


que, mesmo se o saciarmos, ele no ficar saciado, e que,
mesmo cheio de alimento, no deixa de nos repetir que ainda
tem grandes necessidades.

3. Este vcio vexatrio o engenhoso inventor dos temperos


sofisticados, e a fonte dos prazeres da boa mesa.

4. Se por meio de uma ligadura forte possvel deter uma


hemorragia violenta num certo ponto, o sangue encontrar uma
sada por outro lugar; e voc conseguir estanc-lo neste novo
local, ele escapar ainda por outra via.

5. A gula brinca com nossos olhos; embora uma parte dos


pratos servidos sobre a mesa sejam suficientes para nos
saciar, ela nos faz crer que poderemos devorar a todos.

6. A saciedade normalmente produz a incontinncia, assim como


a temperana engendra a castidade.

7. Vemos muitas vezes que um domador capaz de, com carinho,


acalmar a fria de um leo e torn-lo dcil e tratvel; mas
qualquer um que trate seu prprio corpo desta mesma maneira o
tornar cada vez mais furioso e mais indcil.

8. O judeu se alegra nos sbados e nos dias de festas, e o


monge nos sbado e nos domingos. Durante a Quaresma, ele
conta os dias que faltam para a Pscoa, e ao se aproximar a
festa, no deixa de preparar as comidas que sua
concupiscncia o faz desejar. Um infeliz escravo da gula no
pensa seno nos pratos deliciosos que ele ter nas grandes
festas, e deste modo miservel que ele as prepara e as
celebra; mas o servidor de Deus no pensa seno nas graas e
nas virtudes com as quais deseja se ornar e embelezar sua
alma para essas belas solenidades.

9. Se um amigo, ou mesmo um estrangeiro, visita um escravo do


ventre, voc o ver, conduzido por sua paixo, alegrar-se com
esta circunstncia, porque, sob o pretexto de cumprir com os
deveres da caridade, ele encontra ocasio favorvel para se
entregar intemperana e se satisfazer, fazendo sua
sensualidade passar por consolo e um alvio que ele deve ao
irmo. assim que se imagina que, na presena de hspedes,
pode-se exagerar um pouco na bebida; mas quanto ilusrio
este comportamento! Por mais que tentemos esconder esta
paixo, ela escapa e nos expe como miserveis escravos que
somos.

10. s vezes a vanglria e a gula entram em guerra uma contra


a outra, e disputam vigorosamente um pobre miservel; pois a
gula faz todos os esforos pra lev-lo a violar as regras da
mortificao e do jejum, e a vaidade para faz-lo alardear a
perfeio de sua vida por seus atos de severa abstinncia.
Mas um monge conduzido por um esprito de sabedoria evitar
as armadilhas que lhe pem estas duas paixes e saber se
aproveitar das circunstncias para expulsar a ambas para
longe de si.

11. Quando assistimos que nossa carne, pelo calor da idade ou


pela fora de nossa constituio, deseja se voltar para os
prazeres dos sentidos, tratemos de castig-la ou submet-la
em qualquer tempo ou lugar por meio dos rigores salutares da
mortificao; e no relaxemos estas santas austeridades antes
que estejamos certos por provas certas e indubitveis que
conseguimos a felicidade de extinguir em ns as chamas
impuras da concupiscncia. Mas no creio que consigamos isto
antes da morte.

12. Eu vi sacerdotes miserveis, de idade bastante avanada,


que se deixaram enganar pelo demnio, a ponto de estarem
mesa com pessoas nem mais novas e sobre as quais no possuam
nenhuma autoridade, e convenc-los, por meio de convites
insistentes e solicitaes diablicas, a se excederem nas
bebidas e na intemperana. Ora, se por um acaso nos sucedesse
encontrarmos ancios com tal comportamento, eis a conduta que
haveramos de seguir: se estas pessoas desfrutassem com
justeza de uma reputao de virtude e piedade, retrucaramos
com honestidade ao que nos faziam, com uma moderao cheia de
reconhecimento; se, ao contrrio, se tratasse de pessoas
conhecidas por sua conduta e virtude duvidosas, e
encontrando-nos em circunstncias nas quais estivssemos
obrigados a sustentar rudes batalhas contra as revoltas da
carne, evitaramos escutar to funestos convides, e
fugiramos com horror de uma ocasio to perigosa.

13. Evagro, agitado pelo esprito das trevas, imaginou, por


causa de sua eloquncia e da perspiccia de seu esprito, que
era o mais sbio dos sbios; mas ele se enganou
horrivelmente, pois aquilo que vou contar o fez mostrar ao
mundo que era o maior dos tolos. Eis uma de suas mximas:
Quando a alma suspira por delcias oferecidas pela variedade
dos alimentos, preciso puni-la severamente nos condenando
sem piedade a um regime de po e gua. Ora, falando assim,
no equivale a exigir que com um nico salto uma criana suba
todos os degraus de uma escada? Eu penso que para tornar esta
mxima s e praticvel seria preciso dizer: Nossa alma
deseja muitas comidas para contentar seus apetites; sendo
este desejo conforme s inclinaes da natureza, devemos usar
de muita prudncia e engenho para combater a mais ardilosa e
artificiosa das paixes; pois agindo de outro modo nos
engajaramos imprudentemente numa guerra perigosa, e nos
exporamos ao perigo de uma perda iminente. Privemo-nos
inicialmente das comidas capazes de nos engordar, depois
daquelas que podem inflamar nossos humores, e enfim de todas
aquelas que nos so agradveis.

14. Entretanto, na medida do possvel, no devemos usar seno


alimentos apropriados a nutrir nossos corpos, e que sejam de
fcil digesto, a fim de que, saciados, contentemos o
estmago que sempre pede mais, e ao mesmo tempo nos
preservemos, por meio de uma digesto rpida e fcil, dos
maus humores e dos ardores funestos que os alimentos mais
slidos costumam produzir. De resto, com um pouco de ateno,
aprenderemos que as comidas mais alimentcias so tambm
aquelas que nos permitem com mais facilidade sentir os
movimentos da carne.

15. Ria-se do demnio quando, depois de feito sua refeio,


ele lhe sugerir que da prxima vez a retarde para uma hora
mais adiante; pois ele lhe sugere esta resoluo apenas para
v-lo violar sua prpria regra.

16. Existe um tipo de abstinncia que convm aos que


conservaram sua inocncia, e outra voltada para os que a
perderam, e que tentam recuper-la por meio dos salutares
rigores da penitncia; pois as pessoas que guardaram sua
inocncia, se mortificam segundo percebem que tm necessidade
disto para resistir aos movimentos da concupiscncia,
enquanto que aqueles que caram em faltas mortais devem, at
o fim de suas vidas, sem relaxar nem amolecer, fazer sofre a
carne que os fez perder o tesouro dos tesouros, a fim de
poder reencontr-lo. Assim, os primeiros se propem em sua
mortificao a conservar o feliz estado de justia e
santidade, e os ltimos fazem seus esforos para tornar a
Deus simptico s suas penitncias e suas lgrimas.

17. Os tempos de consolao e de alegria verdadeiros para um


homem virtuoso so a poca em que ele se v alegremente
liberto de todos os cuidados e de todas as inquietudes que
vm com as coisas do sculo; mas aquele que ainda se encontra
preso s suas paixes e pendores desregrados nunca pode estar
contente, porque se acha necessariamente exposto aos perigos
de uma guerra encarniada e cruel. E quem est sujeito aos
seus vcios e que vive ao sabor das paixes, a cegueira
tanta, que este se alegra todos os dias, como se costuma
fazer na festa das festas.

18. Os homens intemperantes quase no pensam em outra coisa


que em comidas e banquetes, e colocam inteiramente sua
afeio nestas coisas grosseira e vis; ao contrrio, aqueles
que choram seus pecados no se ocupam, noite e dia, seno com
os pensamentos dos julgamentos de Deus e nas penas eternas.

19. Dedique-se ento a se torar mestre se seu apetite


desregrado no beber e no comer, se no quiser que ele se
torne o seu mestre, e que mais tarde voc no tenha que ser
vergonhosamente obrigado a fazer grandes esforos, e nem
sempre com sucesso, para viver segundo as regras da
sobriedade e da temperana. Devem compreender-me aqui aqueles
que tombaram ignominiosamente no abismo do pecado; quanto aos
que se tornaram santos e castos, felizmente no tm a
experincia da queda de que falamos.

20. Devemos reprimir fortemente com a lembrana das chamas


eternas todos os movimentos da intemperana, e lembrem-se com
terror que muitos, dentre os que tentaram segui-los por algum
tempo, chegaram a tamanho desencorajamento, que desesperando
de resistir aos movimentos da concupiscncia, se trataram de
tal maneira a temer tanto pela vida do corpo como pela vida
da alma. Se quisermos lhes dar alguma ateno,
compreenderemos que normalmente a intemperana que conduz
os homens a todas essas infelicidade e a todos esses pecados,
e que os expem a um triste naufrgio.

21. As oraes das pessoas que praticam fielmente a


temperana so acompanhadas de pensamentos santos e piedosos;
ao contrrio, durante seus santos exerccios o esprito dos
intemperantes se v continuamente agitado por ideias ms e
manchado por mil representaes impuras.

22. Quando nos entregamos intemperana, esgotamos e secamos


a fonte das graas para ns; mas se a combatermos
furiosamente com o jejum, faremos jorrar em abundncia as
lgrimas salutares da penitncia.

23. Sabem a quem devemos comparar uma pessoa que, ao mesmo


tempo em se torna escrava de seu ventre, se esfora por
triunfar sobre o demnio da impureza? Comparamo-lo, sem
hesitar, com o home que tenta apagar um incndio atirando
azeite sobre as chamas.

24. Mortificando nosso pendor pela gula, tornamos o corao


humilde; mas se contentarmos a gulodice, enchemos nosso
esprito com maus pensamentos.

25. Para verificar essas verdades, considere em que estado


voc se encontra pela manh, ao meio-dia e no momento que
antecede sua refeio: no verdade que na primeira hora
seus pensamentos so quase irracionais e anunciam uma grande
dissipao do esprito, que na stima hora o meio-dia
eles esto mais tranquilos e que ao entardecer eles esto
completamente humildes?

26. Se voc observar as regras da temperana, no lhe ser


difcil guardar silncio; porque a lngua se derrama em tanto
mais palavras quanto mais fora recebe de um estmago cheio.
Use todas as suas foras para combater e abater esta tirnica
intemperana; pois Deus, vendo seus esforos generosos, vira
pessoalmente em seu socorro com uma graa toda particular.

27. Quando umedecemos um odre por algum tempo ele se dilata e


contm mais gua do que se no tivssemos feito esta
operao; quando eles secam, eles se retraem e se tornam
menores. O mesmo acontece com nosso estmago: encha-o de
comidas e de vinho, e ele se estica e se dilata; d-lhe
menos, ele se encolhe e se torna menor. assim que vamos nos
tornando temperantes pela necessidade da natureza.

28. s vezes acalmamos os ardores da sede suportando-os; mas


o mesmo no se pode dizer da fome: nada capaz de apazigu-
la, seno o alimento que lhe damos.

29. Comendo o necessrio, voc domar a gulodice com algumas


penas e alguns sofrimentos; sem por causa de alguma
enfermidade, voc no puder se entregar a mortificaes,
socorra-se das santas viglias noite. Se sentir seus olhos
pesados pelo sono, que uma ocupao laboriosa o impea de
dormir. Mas no se conduza assim se ficar fatigado pela
necessidade do sono: neste caso dedique-se orao.
impossvel servir a Deus e a Mammon, e o mesmo podemos dizer
da orao e do trabalho: quase impossvel dedicar-se aos
dois de maneira a que possam nos ser teis.

30. Uma coisa que devemos frisar aqui que, uma vez que a
intemperana se apodera de uma pessoa, ela torna seu estmago
insacivel, a ponto de que ele imagina ser capaz de devorar
todas as carnes do Egito e beber todas as guas do Nilo.
Quando conseguimos contentar o demnio da intemperana, ele
se retira para dar lugar a um outro demnio, o da impureza, a
quem ele conta as exatas novidades de nosso estmago: V,
diz ele, ataque duramente esta pessoa; pois seu corpo, que
ela tratou to bem, lhe fornecer todos os meios para venc-
la e faz-la cair em suas armadilhas. Vocs o veem, a este
demnio infame? Ele est sempre perto do infeliz
intemperante. Oh!, como ele o amarra de ps e mos! Como se
ri dele durante o sono funesto em que o coloca! Como o trata
de acordo com seus desejos cheios de malcia e perversidade!
Como ele perturba e mancha sua imaginao com fantasmas
vergonhosos! Como produz sobre seu corpo movimentos
humilhantes e culpados!

31. No uma coisa espantosa que nosso intelecto incorpreo


seja capaz de se sujar e perder sua beleza por meio do corpo?
Mas no menos surpreendente que nosso corpo, que no passa
de um vil composto de terra e lama possa purifica-lo e torn-
lo, de certa forma, mais santo e belo.

32. Se voc prometeu se ligar a Cristo e seguir seu caminho


rude e estreito de que fala o Evangelho, reprima
vitoriosamente a paixo da gula; se voc tratar seu corpo com
delicadeza e lhe conceder tudo o que ele lhe pedir, voc
estar violando a promessa que fez ao divino Salvador. Mas
oua as palavras que ele lhe dirige: O caminho que leva
perdio largo e espaoso, e muitos seguem por ele[5].
Ora, esta via larga a intemperana, e esta perdio a
impureza. Mas o caminho que conduz vida, disse ainda
Cristo, estreito e difcil, e poucos so capazes de segui-
lo.

33. Se Lcifer, que se fez precipitar do cu aos infernos, se


tornou o chefe dos demnios, no podemos tambm dizer que a
gula est frente dos vcios que tiranizam o corao humano?
Vida
34. Ento, quando vocs se sentarem mesa para tomar a
refeio, representem para si prprios a imagem da morte e do
juzo, a fim de poder resistir a esta cruel paixo; e ainda
assim vocs faro pouco progresso e este lhes custar muitas
penas. Quando estiverem a ponto de beber, lembrem-se do
vinagre e do fel que deram de beber ao Senhor no Calvrio, e
este pensamento os tornar sbrios, ou os far gemer, ou
ainda, lhes inspirar sentimentos mais nobres e moderados.

35. No se enganem, vocs jamais podero se libertar da dura


servido ao Fara, nem merecero celebrar a Pscoa celeste,
se durante sua no comerem alfaces amargas e po sem
fermento. Ora, estas alfaces selvagens so a imagem dos
esforos e das mortificaes que devemos praticar; e o po
sem fermento a figura da humildade sincera de nossa alma,
que no conhece seno as regras da mais perfeita modstia.

36. No deixem passar um s instante sem que esta sentena do


Esprito Santo esteja presente em sua memria: Para mim,
enquanto os demnios meus inimigos me oprimiam com suas
tentaes, eu me revesti de cilcio, humilhei minha alma por
meio do jejum e dirigi a Deus minha prece no secreto de meu
corao[6].
37. O jejum uma violncia que fazemos contra a natureza.
ele que nos faz renunciar s delcias da sensualidade, que
extingue as chamas da concupiscncia, que nos liberta dos
maus pensamentos, nos preserva dos sonhos inoportunos e torna
nossas preces santas, fervorosas e agradveis aos olhos do
Senhor; ele que ilumina nossa alma, cura nosso esprito,
dissipa as trevas de nossa inteligncia, vela por nosso
corao, lhe abre as portas da compuno, lhe faz soltar
gemidos salutares, o consola e encoraja nas obras e nas dores
da penitncia, impede nossa lngua de cair na incontinncia
de falar, nos inspira o amor ao retiro e solido, conserva
em ns o esprito de obedincia, adoa os rigores de nossa
viglia, obtm e mantm a sade de nosso corpo, nos d a paz
e a tranquilidade da alma, apaga nossos pecados, nos abre a
porta do cu e nos conduz posse dos prazeres, das alegrias
e das delcias eternas.

38. Interroguemos a intemperana: no ela nossa inimiga


declarada? No vemos frente de todos os nossos inimigos?
No ela o mais furioso e mais perigoso dentre todos os
nossos inimigos espirituais? No ela a autora de todos os
males que nos acontecem? No foi ela que fez Ado cair do
Paraso terrestre, e que fez Esa perder seu direito de
progenitura? No foi ela que atraiu os maiores males sobre os
Israelitas, que cobriu No de confuso, fez desaparecer
Gomorra, manchou a L e matou os infelizes filhos de Eli?
Enfim, no a intemperana a causa e o princpio de toda
espcie de corrupo e de pecado? Mas perguntemos a ela mesma
de quem ela extrai sua existncia, a quem ela a entrega, quem
seu inimigo que a pisoteia e destri? Diga-nos, infame e
cruel dominadora do gnero humano, voc que, para nos tornar
seus escravos, nos adquiriu a peso de ouro, pelo desejo
insacivel de comer, diga-nos por que caminhos conseguiu
chegar at ns; diga-nos o que nos deu e fez, desde que fixou
sua cruel morada em ns; ensine-nos quais so os meios
eficazes que devemos empregar para expuls-la e nos livrarmos
da servido. Irritada com estas questes fatigantes,
inflamada de furor e tremendo de raiva, ela nos far ouvir,
muito contra sua vontade, as seguintes respostas: Por que me
enchem de injrias e reprovaes? Esquecem-se de que so meus
escravos? Como podem sequer pensar que podem se separa de
mim? Ignoram que foi a prpria natureza que os acorrentou e
os mantm meus escravos? Querem saber como me tornei sua
senhora? Eu lhes direi: foi pela quantidade de comida mais ou
menos deliciosa que vocs costumam tomar como alimento, que
eu produzi em vocs esta insacivel avidez; e este costume,
acompanhado do endurecimento do corao e do esquecimento da
morte, me conserva e me mantm residindo no meio de vocs.
Querem saber o nome e o nmero de filhos que tive? Se eu
disser o nome de todos, os gros de areia que existem sobre a
terra no seriam suficientes para cont-los. Escutem apenas
quais foram os que eu primeiro coloquei no mundo e pelos
quais eu conservo uma afeio especial: o aguilho da carne
meu primognito e meu primeiro-ministro; o segundo, o
endurecimento do corao; o terceiro, o amor ao repouso.
Depois destes vm o dilvio de pensamentos impuros, o
princpio de todas as corrupes e de todas as sujeiras
espirituais, e um abismo de infmias secretas e execrveis.
Minhas filhas so a preguia, a incontinncia no falar, a
presuno audaciosa, a galanteria, os gracejos, a
contradio, a opinio obstinada, o estupor do corao, a
escravido do esprito, a ostentao insolente e a inclinao
por agradar ao mundo. So estas que perturbam o fervor e
mancham a santidade da prece, que ocasionam o turbilho de
pensamentos, que ferem com acidentes sbitos e infelicidades
inesperadas; enfim, so elas que produzem o desespero, o mais
temvel e o maior de todos os males. A lembrana dos pecados
me combate verdadeiramente, mas no me derrota; a meditao
da morte me d golpes terrveis, mas ainda no capaz de me
vencer, e eu declaro que nada neste mundo capaz de derrubar
inteiramente meu imprio; que as nicas vitrias que podem
ter sobre mim os que, sob a conduo do Esprito Santo (a
quem se dirigem com humildes splicas), me combatem de modo
constante e vigoroso, consistem em me impedir de lhes causar
os males cruis, funestos e incalculveis que eu causo a
outros; pois aqueles que no experimentaram os dons e as
douras do Esprito Santo, este poderoso auxiliar e este
inefvel Consolador, se deixam prender nos meus anzis, e
acabam miseravelmente por no mais suspirar seno pelas
delcias brutais da boa mesa. preciso coragem para
triunfar sobre a intemperana! Mas aquele que, com
felicidade, conseguir o objetivo de venc-la, abrir para si
um caminho de tranquilidade da alma e de suprema castidade.
DCIMO QUINTO DEGRAU

Da Castidade incorruptvel, que os homens corruptveis por


natureza adquirem com seus trabalhos e suores.

1. Acabamos de ouvir a gula, esta fria, nos dizer que a


guerra contra [a castidade do] corpo um de seus filhos.
Isto no surpreende: nosso primeiro pai Ado no-lo ensinou.
Pois se ele no tivesse se deixado dominar pelo ventre, ele
jamais teria sabido o que uma companheira. por isso que
os que observam o primeiro mandamento jamais caem na segunda
transgresso: eles permanecem como filhos de Ado, ao mesmo
tempo em que desconhecem o estado de Ado (depois da queda),
e so um pouco inferiores aos anjos, a fim de impedir o mal
de se tornar imortal, como disse aquele que foi chamado o
Telogo.

2. A castidade, ao nos liberar das misrias da natureza dos


corpos, nos faz participar da natureza dos puros espritos.
esta virtude anglica que prepara em nossos coraes uma
morada agradvel a Jesus Cristo, e que serve de escudo para
nossa alma; ela faz de nossa natureza corruptvel uma
natureza incorruptvel, e estabelece uma admirvel emulao
entre os fracos mortais e os espritos imortais. Quem pratica
esta bela virtude repousa e extingue em si o amor pelas
criaturas em troca do amor a Deus, e as chamas e os ardores
de seu corpo pelos ardores e as chamas do Esprito Santo.

3. A temperana uma virtude que se mistura e se identifica


com todas as demais virtudes, e delas toma seu nome. O homem
que pratica a temperana, mesmo durante o sono, no
experimenta nem sensaes nem movimentos capazes de perturbar
sua paz e a calma de seu estado.

[4[7]]. O homem casto aquele sobre quem a agradvel


variedade dos corpos, sua beleza, sua meiguice e sexo no
causam nenhuma impresso inoportuna ou vergonhosa. O carter
distintivo, a prova especfica e as leis especiais de uma
santa e anglica castidade consistem em no ser mais tocado
nem movido pela presena de corpos vivos, no mais do que
pelos corpos mortos, seja pela viso de homens como pela de
animais.

[5]. Mas prestemos seriamente ateno a esta verdade: a


castidade um dom de Deus. Aquele que trabalhou muito e
penosamente para obter o tesouro precioso da castidade, deve
se abster de pensar ou crer que a felicidade de possu-la se
deve aos seus prprios suores e trabalhos; pois nossa
natureza no dado vencer a si mesma com suas prprias
foras. Assim, se obtivermos a vitria sobre a natureza,
reconheamos que foi pelo prprio Autor da natureza que a
obtivemos com efeito, no devemos reconhecer que, para
vencer, corrigir e curar, preciso ser superior ao que
vencido, corrigido e curado?

6. O comeo da castidade consiste em recusar todo


consentimento aos pensamentos impuros e aos movimentos
desregrados da concupiscncia; o progresso nesta virtude, que
so como a perfeio mdia, consiste em experimentar, seja no
sono, seja em outras ocasies, mas sem maus efeitos ou maus
pensamentos, certos movimentos de nossa carne, composta de
terra e lama; enfim, a perfeio desta virtude celeste
consiste na extino de todo mau pensamento, de toda imagem
desonesta e de tudo se (...)[8]

7. Feliz, solidamente feliz, quem no tocado nem ferido


pela beleza, o colorido e as graas elegantes das pessoas que
encontra.

8. No so bem os que preservaram seus corpos da sujeira,


aqueles de quem podemos dizer que praticaram uma castidade
perfeita; mas so os que submeteram com perfeio ao esprito
os diferentes membros de seus corpos.

9. Sem dvida, devemos ver como um homem casto aquele que, na


presena dos corpos dos outros, domina os movimentos do seu
prprio; mas diremos que de uma castidade mais perfeita
aquele que invulnervel viso dos corpos dos demais, e
que, pela meditao das belezas do cu, extinguiu em si todos
os ardores que as belezas da terra excitam naturalmente.

10. Quem combate o esprito da luxria com as armas da orao


se assemelha a algum que combate um leo. Aquele que, pela
continuidade e o vigor dos combates que sustenta contra este
terrvel demnio, o derruba e abate, semelhante a um homem
que no mnimo igual ao seu inimigo; mas quem reprimiu e
deteve inteiramente todos os esforos impetuosos da luxria,
mesmo que esteja ainda vivendo num corpo mortal, desfrutar
dos benefcios e das prerrogativas que esperamos apenas para
depois da ressurreio gloriosa.

11. Mas, se no ser mais fatigado durante o sono por sonhos


humilhantes nem por movimentos da concupiscncia, uma marca
indubitvel de castidade, no ser uma prova certa de
luxria, se durante o dia os pensamentos nos fazem cair
voluntariamente nas sujeiras corporais?

12. Combater o inimigo impuro por meio de trabalhos e suores


equivale a tentar amarrar um inimigo com cordas de junco e de
vime; combat-los com viglias e jejuns como colocar um
colar de ferro ao pescoo de um co a quem submetemos; mas se
acrescentarmos a estas armas, para o combate, a doura, a
humildade e o desejo vivo e ardente de obter a vitria,
seremos capazes de abater e destruir o inimigo, e enterr-lo
na areia; digo na areia, porque a humildade na qual devemos
enterrar todas as paixes, principalmente a luxria, no lhes
fornece substncia nem alimento: ela para as paixes como
uma areia seca e estril.

13. Muitas pessoas se batem contra a luxria, mas de


diferentes maneiras: algumas guerreiam por si mesmas e com
suas prprias foras; outras, com as armas da humildade;
outras enfim, auxiliadas pela fora do Esprito Santo, cujo
auxlio elas pedem humildemente, a combatem de tal modo que a
vencem e escravizam. Ora, me parece que podemos comparar as
primeiras estrela da manh; as segundas Lua cheia; as
terceiras, ao Sol, que ilumina o mundo com seus raios. Estes
trs tipos de pessoas tm um dilogo com o cu: pois a aurora
anuncia a chegada do dia, e logo o nascer do sol nos traz o
esplendor de sua luz; e assim que se do as coisas com as
pessoas de que falamos.

14. Semelhante a uma raposa que quer caar galinhas, o


demnio finge dormir a fim de roubar nossa castidade e nos
por a perder.

15. Vigiem para nunca confiar em seus corpos de barro;


desconfiem sempre de sua fraqueza, at que finalmente Cristo
os chame para que se apresentem diante dele.

16. No imaginem que o rigor e a austeridade dos seus jejuns


lhes tenham dado tamanha perfeio de virtude, que vocs no
estejam mais expostos a quedas deplorveis. No percam jamais
de vista que uma criatura que jamais comeu, tomba de um s
golpe, do cu ao abismo do inferno.

17. Os escritores ascticos definem a renncia ao sculo: uma


averso que se tem pelo prprio corpo, e uma guerra contnua
travada contra o ventre.

18. O que mais comumente causa a queda dos monges jovens em


faltas contrrias castidade, uma certa afeio pelas
douras e comodidades da vida. O inchao do corao costuma
balanar e s vezes derrubar os que esto mais avanados nos
caminhos da vida religiosa. Quanto aos que esto mais
prximos da perfeio, a pedra de tropeo consiste nos
julgamentos temerrios que eles fazem, e nas condenaes
injustas que levantam contra seus irmos.

19. Existem pessoas que acham uma felicidade terem nascido


eunucos porque, segundo sua opinio, esto isentos do
aguilho da concupiscncia; mas no vamos nos iludir: s so
verdadeiramente felizes aqueles que, por meio de pensamentos
puros e desejos castos, combatem, reprimem e vencem a
concupiscncia.

20. Eu vi pessoas que, contra sua vontade, caram em


movimentos desregrados; vi outras que, sem sucesso, tentavam
excitar-se para tanto. Estas infames seriam infinitamente
mais culpadas do que as que, cruelmente puxadas e agitadas
pelas paixes, tiveram a infelicidade de cair frequentemente;
porque elas no apenas teriam pecado, se pudessem, como ainda
fizeram todos os esforos para conseguir se sujar
vergonhosamente.

21. Bem mseros so os que caem; mas faltam palavras para


estigmatizar os que tentam derrubar os outros. No traro em
si, estes homens detestveis, tanto o peso enorme e a pena
terrvel de suas prprias quedas, como as penas pelas faltas
s quais arrastaram seus irmos?

22. Evitem quere expulsar o demnio da impureza discutindo e


raciocinando com ele; pois, para faz-los cair, ele sempre
ter motivos plausveis a apresentar, e se servir de vocs
mesmos para venc-los na guerra.
23. No se esqueam jamais de que todos os que acreditaram
poder combater a paixo impura por si mesmos e triunfar, se
enganaram grosseiramente e nada conseguiram; pois, a menos
que o Senhor em pessoa se digne derrubar esta morada de carne
e de corrupo, e construir em ns esta morada de esprito e
castidade, ser vo pretendermos, com jejuns e viglias,
destruir a primeira e construir a segunda.

24. O que se deve fazer manifestar humildemente a Deus a


fraqueza de nossa natureza, reconhecer diante dele a
impotncia de nossas foras, e assim pouco a pouco
re3ceberemos de sua bondade, e sentiremos em ns a presena
do dom inestimvel da castidade.

25. Dentre as infelizes vtimas dos prazeres carnais,


encontrei um homem que conseguiu se encontrar e voltar ao
domnio de si, e que, por meio de obras de converso e de uma
penitncia sincera, trabalhava por sua salvao. Eis o que
ele me contou: As pessoas que se deixam levar pela
incontinncia, so agitadas e atormentadas por um ardor
violento por objetos to corporais, so possudas por um
demnio furioso e cruel que se entroniza como um tirano em
seu prprio corao, e a faz sentir seu imprio infame por
meio de sinais inequvocos: de sorte que, quando so tentadas
e tentam conter sua paixo brutal, sentem dentro de si as
dores de um fogo semelhante ao de uma fornalha abrasadora;
elas ficam to horrivelmente fora de si, que perdem todo o
temor a Deus e aos suplcios eternos, que elas encaram como
sendo coisas de fbulas; elas tm horror prece; a viso de
um cadver no lhes causa mais emoo do que a imagem de uma
pedra; e elas esto to absorvidas e devoradas pelo desejo de
satisfazer suas aes infames, que perdem inteiramente a
razo e se parecem antes com animais furiosos do que com
criaturas racionais. Se estes dias no fossem abreviados,
poderia haver sequer uma nica alma, dentro desta priso de
sangue e barro, que fosse capaz de obter a salvao? Pois,
ainda em que nos demos conta de que os horrores aos quais nos
atiramos convm apenas a uma natureza corrompida, continuamos
a busc-los com uma avidez insacivel. Se o sangue se delicia
no sangue, o verme entre os vermes, e o limo combina com
limo, no deve a carne amar as obras da carne?. Ns todos
que queremos sinceramente agir contra a natureza com
violncia a fim de obtermos o reino dos cus, no esqueamos
que nossa carne no busca seno nos enganar e nos trair, que
devemos combat-la, enfraquec-la e submet-la por todos os
meios e atravs de piedosos artifcios. Consideremos felizes
os que no experimentaram os malefcios temveis que ferem as
pessoas dominadas pelo demnio da impureza; pois elas esto
bem longe daquela escada misteriosa pela qual o patriarca
Jac viu subir e descer os anjos, estas pessoas que caram
miseravelmente no abismo da impureza, e, para que possam se
aproximar e subir por ela, precisaro de muitos suores e
lgrimas, suportar penas e trabalhos e se dedicar a jejuns e
austeridades bem rigorosas.

26. Devemos frisar aqui que os inimigos de nossa salvao se


comportam na guerra que travam contra ns como soldados
organizados para uma batalha: eles tm ordem de nos atacar e
nos combater todas as vezes que nos encontrarem.

27. Uma coisa que no deve nos surpreender nem nos fazer
tremer, que dentre os que sucumbem s tentaes, existem
alguns que sofrem quedas muito mais funestas do que os
outros. Esta outra observao que posso fazer; assim, eu
digo que quem tiver intelecto para compreender, compreenda o
que quero dizer aqui.

28. Normalmente o demnio tem o costume de empregar todos os


seus esforos, toda sua ocupao, todos os seus cuidados,
toda sua diligncia, seus projetos e desgnios de maneira a
fazer com que os anacoretas caiam nos crimes que esto fora e
so contrrios quilo que a natureza parece pedir. para que
ele consiga realizar seus desejos estes so deixados viver no
meio das mulheres, mas sem que ele, o demnio, lhes inspire
nem maus pensamentos nem maus desejos; e os infelizes se
deixam prender por meio deste artifcio, e se creem felizes e
tranquilos neste estado de coisas, sem compreender que, onde
o perigo suficientemente grande e funesto por si mesmo, no
h necessidade de outro meio ou de outra tentao para perder
um homem.

29. Creio que os demnios, estes impiedosos homicidas de


nossas almas, tm duas razes principais para nos conduzir
com tanto ardor e zelo a pecados que repugnam s leis da
natureza: primeiramente, porque temos sempre em nosso poder e
nossa disposio da matria do pecado; em segundo lugar,
porque assim eles nos fazem merecer penalidades mais severas.
Isto foi amargamente experimentado por um homem
extraordinrio. Ele houvera um dia comandado com absoluto
controle seus animais selvagens; mas houve um momento em que
ele foi assaltado de modo to horrvel e atacado de modo to
violento, que no apenas o privaram do alimento celestial
cujas douras ele saboreava, como o despojaram de tudo e o
atiraram a uma terrvel misria. por isso que o bem-
aventurado Antnio, nosso mestre na vida religiosa, chorando
a infelicidade deste homem que entretanto conseguiu repar-
la por meio dos rigores da penitncia dizia lanando longos
suspiros: Tombou esta grande e slida coluna de virtudes.
Este santo Padre considerou em sua sabedoria que ele no
devia nos ensinar que espcie de pecado o infeliz cometera
contra a castidade; mas acreditamos que tenha sido um crime
que ele cometeu sobre seu prprio corpo. Assim, existe em ns
uma espcie de morte e um princpio de runa bem funesto; e
esta infeliz morte reside em ns mesmos e nos acompanha por
toda parte; mas sobretudo nos anos da juventude que ela
sobressai, e eu no ouso nem dizer nem escrever seu nome,
pois So Paulo mo probe com suas palavras: Existem coisas
que so feitas em segredo, e que seria vergonhoso e indecente
nomear[9].

30. Esta carne, que ao mesmo tempo nossa amiga e nossa


inimiga, o mesmo Apstolo no hesita em chamar de morte:
Infeliz sou eu!, escreve ele, quem me libertar deste corpo
de morte?[10]; e um outro telogo chama de uma serva
viciosa e que s se diverte nas trevas da noite. Eu lhes
confesso que eu gostaria muito de saber as razes pelas quais
estes dois grandes santos falaram assim de nosso corpo.

31. Se nossa carne uma morte, ento podemos dizer que no


morrer aquele que souber venc-la. Mas onde encontraremos um
homem que, preservando a si mesmo das sujeiras da carne,
merea viver e jamais ver os horrores da morte?

32. Seria aqui a ocasio de conhecer quem seria a pessoa mais


recomendvel, se aquela que, estando morta pelo pecado, tenha
ressuscitado pela graa, ou aquela que, no tendo morrido,
conservou sua inocncia. Algum j disse que seria a segunda
das duas; mas no concordo com esta opinio, a creio mesmo
que seja um engano: pois Jesus Cristo morreu e ressuscitou.
Por outro lado, quem der preferncia primeira pessoa, sem
dvida ser por crer que quem teve a infelicidade de morrer
por cair em pecado, no deve jamais desesperar de sua
salvao.

33. O demnio da impureza, este inimigo cruel e prfido dos


homens, a fim de nos fazer cair mais facilmente em alguma
falta por incontinncia, da qual ele mesmo o autor, nos
sugere que Deus cheio de comiserao por aqueles que tm a
infelicidade de se atirar luxria, e que ele perdoa com
tanto maior bondade e clemncia na medida mesma em que esta
paixo natural do homem. Mas no deixemos de reconhecer
suas mentiras e sua perfdia: pois mal acabamos de cometer um
pecado vergonhoso, e ele se apressa a nos mostrar a Deus como
um juiz severo, inexorvel e que no perdoa nada. Mas vejam
que antes de consentirmos em seu pecado, e para consegui-lo,
ele nos apresentou a Deus como sendo infinitamente bom,
clemente e misericordioso, e que, depois de termos cumprido
seu desgnio malfico, e nos termos precipitado no abismo,
ele no cessa de falar da severidade e do rigor dos
julgamentos do Senhor, a fim de nos atirar na raiva e nos
horrores do desespero, consumando assim nossa perda eterna.
Mas ele vai ainda mais longe: enquanto durar este sentimento
de tristeza desesperadora que ele nos provocou , ele no tem
necessidade de nos expor a novas tentaes, pois nos tem como
escravos, e assim ele nos deixa tranquilos; mas perceba que,
mal se acalmam e se apaziguam estes remorsos dolorosos e
cortantes que ele nos inspirou, e este inimigo implacvel
recomea seus ataques como antes e nos expe aos mesmos
perigos e s mesmas faltas.

34. Observamos que o Senhor se agrada e encontra de melhor


grado suas delcias num corao e num corpo puros e castos,
como ele prprio a pureza em essncia, e que ele est
infinitamente distante de toda sujeira produzida pelos
corpos; e que os demnios, estes monstros horrorosos do
inferno no se contentam, como muitos nos ensinam, seno com
os maus odores que as paixes exalam, e com as excrees de
um corpo esgotado e corrompido pelo vcio vergonhoso.

35. A castidade nos une intimamente a Deus por uma santa


familiaridade, e, na medida em nossa fraca natureza capaz,
ela nos torna semelhantes a ele.

36. Assim como o orvalho d aos frutos da terra a doura que


tm, tambm a vida religiosa e a exata obedincia produzem os
doces e agradveis perfumes da castidade; que, se a solido
capaz de acalmar e extinguir os ardores da concupiscncia, a
frequentao dos mundanos e o esprito de dissipao depressa
os trazem de volta existncia e vida; e devemos, em honra
da obedincia, dizer-lhe que reprima sempre, em qualquer
lugar que estejamos, os movimentos desordenados de nossos
corpos, e impedi-los de reaparecer.

37. Algumas vezes observei que, por um feliz contragolpe, o


orgulho produz a virtude da humildade. Quando vi esta coisa
espantosa, lembrei-me das palavras: Quem poder penetrar nos
desgnios e nos pensamentos do Senhor?[11]. Pois podemos ver
que a gula e o inchao do corao, o fastio e o orgulho,
engendram faltas vergonhosas, e que estas faltas, s quais
nos atiramos voluntariamente, acabam se tornando ocasies de
humildade.

38. No se parece a um insensato que joga leo das chamas


para apagar um incndio, aquele que imagina que poder
triunfar sobre o demnio da impureza vivendo nas delcias e
nos excessos da intemperana?

39. A quem podemos comparar aquele que pretende tolamente


terminar com sucesso a guerra que sustenta contra a luxria,
apenas com as armas da temperana e da sobriedade? Diremos
sem hesitar que este se parece a algum que, tendo cado no
mar, tenta salvar-se nadando com uma mo s. Assim, se
quisermos triunfar, devemos reunir a abstinncia e a
humildade; pois nada poderemos fazer com a primeira destas
duas virtudes, se a segunda no estiver com ela.

40. Quando estamos inclinados a um vcio qualquer, contra


este vazio que devemos dirigir nossos esforos de modo
especial; este vcio que devemos atacar e vencer antes dos
demais; mas sobretudo quando vemos que ele reina sobre ns
e que o trazemos conosco, que devemos combat-lo com fora e
constncia; pois agir de outro modo equivale a no declarar a
guerra aos nossos defeitos, mas nutri-los e conserv-los.
Lembremo-nos de que no exterminando o egpcio cruel que
mereceremos ver a Deus com Moiss numa nova sara ardente,
vale dizer, na humildade.

41. Numa tentao eu prprio experimentei as astcias do


demnio: este lobo cruel e enganador me procurou, com um
desgnio prfido, uma alegria e felicidade irrazoveis,
consolaes sem fundamento e lgrimas cheias de falsas
delcias; e eu, simples, crdulo e sem experincia, acreditei
que todas essas coisas to sedutoras e agradveis eram dons
do cu, enquanto que tudo no passava de uma armadilha
colocada pelo demnio para me derrubar.

42. Uma vez que todos os demais pecados que o homem comete se
localizam fora do corpo, e que s o pecado da luxria
contra o corpo, coisa que acontece porque os movimentos da
concupiscncia mancham e corrompem nossa carne, eu gostaria
de saber por que razo, nas diferentes faltas cometidas pelos
homens, dizemos normalmente que eles foram enganados, e
quando sabemos que uma pessoa caiu num pecado vergonhoso,
choramos com dor e tristeza. Ora, ela caiu.

43. Os peixes temem menos o anzol do que uma alma voluptuosa


a quietude.

44. Quando um demnio deseja unir duas pessoas pelos laos de


um amor profano e criminoso, ele comea por observar
atentamente quais so suas diferentes inclinaes para saber
por qual delas comear o incndio.

45. No somos ns testemunhas diariamente e no temos


testemunhado que todos aqueles que so tristes escravos do
vcio vergonhoso so tambm cheio de afeio pelos outros,
sensveis s suas infelicidades, tocados de compaixo por
eles, juntando com facilidade suas lgrimas s deles, e
usando de palavras doces e cativantes com eles. Mas os que
desejam se tornar castos no se comportam com uma ternura to
estudada.

46. Um homem cheio de prudncia e sabedoria, alm de uma


profunda erudio, me props um dia esta grave questo,
importante e difcil: Qual , disse-me ele, o pecado que, em
sua opinio, o maior, depois do homicdio e da apostasia?.
Eu lhe respondi que pensava ser a heresia. Mas, replicou
ele, se a heresia o maior pecado depois do homicdio e da
apostasia, como possvel que a Igreja catlica admita
participao do santos os herticos, assim que eles abjuram e
anatematizam sinceramente seus erros, e que, conforme a
tradio apostlica, ela afasta da mesa eucarstica, por anos
inteiros, os que tm a infelicidade de cair na fornicao,
ainda que confessem seus pecados, que se corrijam e que faam
uma sincera penitncia?. Esta rplica inesperada me
surpreendeu de tal maneira, que eu no pude responder; e a
questo permaneceu indecisa.

47. Prestemos ateno aqui de modo especial para examinar,


conhecer e pesar a diferena que existe entre os pensamentos
e afeies que o demnio da luxria nos inspira durante a
recitao dos salmos, e aqueles que o Esprito Santo nos
sugere por meio das palavras divinas que pronunciamos;
veremos o quanto as do Esprito Santo nos do uma fora
abundante e uma enorme coragem para combatermos nosso
incansvel inimigo.

48. Pobres jovens! sobre vocs mesmos que seus olhos devem
estar continuamente fixados! Eu j observei um grande nmero
de pessoas jovens que, ao mesmo tempo em que dirigiam a Deus
preces fervorosas e sinceras por outras pessoas a quem amavam
e que lhes eram caras, se deixavam surpreender e dominar pelo
esprito imundo; e no entanto elas acreditavam que em suas
splicas estavam apenas cumprindo com um dever de
reconhecimento e de caridade.

49. As diferentes formas de contatos fsicos so muito


apropriadas a sujar nossos corpos; fujamos delas com horror e
no esqueamos jamais o quanto elas podem nos ser perigosas e
funestas. Lembremo-nos sem cessar do exemplo de um homem
jovem que possua uma profunda sabedoria e uma grande
castidade. Sua me estava doente, e era preciso que ele a
carregasse em seus braos, para o que ele tomava precaues e
vigiava a ponto de cobrir suas mos, a fim de no toc-la.
Jamais deixem, eu lhes peo, de evitar toda espcie de
contatos fsicos, sejam eles desonestos e criminosos, sejam
os honestos e indiferentes, tanto sobre si mesmos como em
relao aos outros.

50. Ningum, penso eu, pode com razo e verdade chamar de


santo a algum que no tenha purificado de toda mancha o
barro do qual composto seu corpo, e que no o tenha
santificado, e como que transformado, se verdade que tal
transformao possvel neste mundo.

51. principalmente quando nos colocamos no leito para o


repouso, que devemos nos conduzir com prudncia e vigiar a
ns mesmos; pois durante o sono, nossa alma, por assim dizer,
fica sem o corpo: ela combate s contra o demnio. Ora, se
nosso esprito, por causa de maus pensamentos surgidos
enquanto dormimos, levado a prazeres desonestos, (...[12]).

52. No durmam nem se levantem sem a lembrana da morte, e


sem que a orao os mantenha sempre unidos a Jesus. Estas
duas prticas, fceis e importantes, sero de um grande
auxlio durante o sono para preserv-los de qualquer acidente
vergonhoso.

53. Alguns pensam que estes combates inoportunos que somos


obrigados a sustentar contra o demnio impuro, bem como estes
acidentes humilhantes que nos acontecem durante o sono, so
produzidos no mais das vezes e causados pela grande
quantidade de alimentos que tomamos; mas posso assegurar com
verdade que j encontrei muitos que estavam doentes e
perigosamente enfermos, ou que haviam extenuado seus corpos
por meio de jejuns rigorosos, e que no entanto experimentavam
esses movimentos desregrados da carne. Ora, eis o que me
disse um dia sobre este tipo de misrias humanas um monge dos
mais sbios, mais refletidos e respeitados de sua comunidade:
Esses acidentes noturnos, disse-me ele com uma claridade e
preciso que me encheram de espanto, acontecem algumas vezes
devido abundncia do alimento e das douras do repouso;
outras vezes, por causa do orgulho, justamente quando nos
regozijamos e nos aplaudimos por t-los impedido durante um
longo tempo com nossos cuidados e precaues; finalmente,
eles acontecem em casos em que nos damos a liberdade de
julgar e condenar nossos irmos. Ora, acrescentou ele, estas
duas ltimas causas e talvez as trs so comuns tanto nas
pessoas que esto doentes como nas ss. Assim, se algum tem
a felicidade de no sofrer de nenhuma destas trs coisas,
deve sentir uma grande consolao, porque percebe em seu
corpo uma pureza que nada pode perturbar. A nica coisa que
pode lhe inspirar alguma inquietao a suspeita temorosa de
que este estado possa provir de alguma perfdia do demnio;
mas ento ele deve se reafirmar e se consolar, pensando que
Deus permite esta pena e esta inquietao que nada tem de
criminoso, a fim de que ele possa adquirir uma humildade mais
profunda.

54. Devemos evitar cuidadosamente durante o dia, repassar na


memria os sonhos e os fantasmas que perturbaram a imaginao
durante a noite; pois para nos levar a qualquer ao
desonesta que os demnios excitam em ns esses acidentes
noturnos.

55. Mas observemos aqui com especial ateno um artifcio


detestvel do demnio para nos perder. Eis o modo como ele
age para nos fazer cair. Assim como alguns alimentos
insalubres no causam doenas seno um ano depois de serem
ingeridos, enquanto outros as produzem quase imediatamente,
tambm existem coisas que tendem a corromper nosso corao
pelo desfrutem que nos do, mas que s obtm este efeito
depois de um tempo considervel. por esta razo que eu
encontrei pessoas que se sentavam familiarmente mesa com
mulheres e conversavam com elas, sem que naquele momento
experimentassem qualquer pensamento mau; mas o que lhes
acontecia com o tempo? Estes infelizes confiavam em si
mesmos, e esta confiana os punha a perder; pois justo na
hora em que se acreditavam numa paz e segurana perfeitas em
suas celas, encontraram uma morte deplorvel. Quem passou
pela triste experincia a que me refiro compreende muito bem
o tipo de morte de que falo, se ela se refere ao corpo ou
alma. E que aquele que nunca experimentou nada semelhante,
viva por muitos anos numa feliz ignorncia!

56. Os meios mais eficazes que podemos empregar contra os


perigos e os obstculos aos quais nos expem as tentaes
impuras, consistem em nos vestir de cilcio, nos cobrir de
cinzas, passar as noites em viglias e trabalhos, sofrer a
fome e a sede, fixar nossa morada no meio de tmulos e
cadveres, no comer mais do que po, no beber seno gua,
e, acima de tudo, viver numa humildade perfeita, e enfim, se
for possvel, escolher um pai espiritual que nos dirija e nos
conserte, no tanto pelo peso e a autoridade de seus anos,
mas pela virtude de sua sabedoria e pela justeza de seu
julgamento; pois eu considero uma coisa maravilhosa se,
unicamente entregue a si prprio, voc conseguir se preservar
do naufrgio em meio a uma tempestade to furiosa.

57. Acontece com frequncia que o mesmo pecado merea um


julgamento mil vezes mais severo e uma punio muito mais
rigorosa numa pessoa do que em outra. Com efeito, as
circunstncias podem aumentar ou diminuir sua enormidade;
tais so, por exemplo, o costume em cometer, ou lugar onde
nos tornamos culpados, o estado ou condio daquele que peca,
alm de numerosas outras circunstncias que podem tornar o
crime mais ou menos considervel.

58. Contaram-me uma vez um fato de rara pureza, e eu duvido


que se possa praticar esta virtude com maior perfeio. Uma
pessoa percebeu por acaso um corpo de uma beleza
extraordinria. Ora, esta viso levou-a imediatamente a
glorificar com louvores a soberana Beleza de Deus, da qual
aquela que estava diante de seus olhos no passava de uma
imagem bem imperfeita, mas que lhe inspirou um sentimento de
amor a Deus to vivo e to ardente, que ele inundou com uma
torrente de lgrimas o lugar onde estava. Eu lhes pergunto,
no uma coisa admirvel, que aquilo que poderia ser para
muitos uma ocasio de queda e de runa espiritual, se tornou
para este santo homem um meio sobrenatural para a obteno de
recompensas celestes? E, se ainda pudermos achar homens
semelhantes a este, que, nas mesmas circunstncias,
experimentam os mesmos sentimentos, e que sejam assim to
puros e to unidos a Deus pela caridade, no devemos dizer
que estes, mesmo numa carne corruptvel, j vivem do mesmo
modo como viveremos depois da ressurreio geral?

59. Assim deveriam ser os nossos sentimentos, quando ouvimos


cantar os santos cnticos e outras melodias: pois as pessoas
que amam a Deus com ardor so movidas por uma alegria
totalmente celeste, por uma afeio divina e uma ternura que
chega s lgrimas, quando escutam uma bela harmonia, seja
sacra, seja mesmo profana. Ao contrrio, os que so escravos
dos prazeres dos sentidos experimentam sentimentos e
movimentos opostos a estes.

60. Dentre os que se retiraram para o deserto para levar a


vida eremtica, existem alguns que esto muito mais expostos
fria dos demnios, como j dissemos. Isto no deve nos
espantar, porque se trata de lugares solitrios onde estes
habitam desde que nosso Senhor, para nossa salvao, lhes
proibiu fixar morada em nossos corpos, expulsando-os dos
lugares habitados e encerrando-os em prises eternas.

61. notrio que o demnio da luxria ataque sobretudo os


solitrios, a fim de que, consternados e abatidos por
tentaes humilhantes, eles pensem que no extraem nenhum
benefcio de sua solido, tomando assim a funesta resoluo
de retornar para o tumulto e as agitaes do sculo. Tambm
podemos observar que, uma vez no meio do mundo, o demnio nos
deixa tranquilos; mas apenas para que pensemos que estamos
livres das tentaes, de modo a que ele possa nos persuadir
que j podemos viver sem perigo no meio do sculo e dos
mundanos.

62. onde somos tentados com mais frequncia, da que o


demnio no quer que fujamos, e a, por conseguinte, onde
deveremos sustentar seus assaltos com mais fora e coragem,
zelo e perseverana; enfim, aquele a quem o demnio no ataca
deste modo, parece ter se tornado seu amigo.

63. Se a obedincia nos obriga a permanecer algum tempo no


mundo para a tratar de algum assunto importante e
necessrio, a mo e a graa de Deus nos protegero; as
oraes e os votos de nosso superior so tambm capazes de
obter para ns este favor, a fim de que o Nome do Senhor no
seja blasfemado por nossa causa. Tambm podemos permanecer
sem tentaes no meio dos obstculos do sculo, devido
nossa indiferena e insensibilidade quanto s coisas do
mundo, que adquirimos com o desgosto que estas coisas
mundanas nos causaram pelo uso desgastante que delas fizemos;
mas tambm pode acontecer que todos os outros demnios tenham
se retirado de perto de ns, tendo permanecido apenas os da
vanglria e do orgulho, que tomam o lugar de todos os outros.

64. Todos vocs que decidiram guardar a castidade e ser fieis


a esta virtude celeste, escutem-me, eu lhes peo, e observem
comigo um novo tipo de malcia de parte do cruel e impiedoso
sedutor de nossas almas: vigiem com grande cuidado para no
se tornar suas tristes vtimas. Um servidor de Deus, que foi
instrudo a respeito por sua prpria experincia, contou-me
que muitas vezes o demnio da impureza se afasta de ns at o
momento que ele considera o mais apropriado e conveniente
para a tentao na qual ele quer nos derrubar; durante este
intervalo ele excita no infeliz que pretende precipitar no
pecado os mais belos e piedosos sentimentos de devoo,
abrindo-lhe uma fonte abundante de lgrimas ao mesmo tempo em
que ele se encontra entre pessoas do sexo (sic), e inspira ao
imprudente que fale com zelo da morte e do julgamento, da
temperana e da castidade, exortando-os a fazer frequentes
meditaes sobre as verdades importantes da salvao e a
praticar com inviolvel fidelidade as virtudes to belas e
necessrias que nos ensina a religio. Iludidos por estes
discursos e por suas aparncias de piedade, essas pobres
pessoas correm atrs do monge, como se fosse ele um
verdadeiro pastor; mas, pelos artifcios do demnio e sem que
ele prprio se d conta, ele logo se torna um lobo
sanguinrio e devorador. O que acontece ento? Pela
familiaridade que tomam pouco a pouco, e pela liberdade que
adquirem de conversar com ele, elas acabam por despencar e,
com elas, o infeliz no abismo profundo do pecado,
consumando assim sua perda.

65. Evitemos assim, na medida do possvel, no apenas ver e


considerar este fruto da morte, mas at de ouvir falar nele,
porque em nossa profisso religiosa fizemos a promessa solene
de jamais provar dele. No devemos ento ser tomados de uma
santa indignao, se encontrarmos entre ns algum to
insensato a ponto de se crer to forte como Davi? possvel
uma coisa dessas?

66. A castidade uma virtude to bela, to nobre, to digna


de nossas honras e de nossos louvores! Ela isenta da menor
mcula, ela capaz de trazer alma e ao corpo uma paz e uma
tranquilidade perfeitas.

67. Alguns ensinaram que no podemos jamais chamar de casta a


uma pessoa que caiu em qualquer falta vergonhosa. Eu no
posso admitir semelhante opinio. porque me parece que para
reduzi-la ao seu justo valor, devo dizer que fcil para
Deus, se ele quiser, implantar uma oliveira selvagem numa
oliveira de casta, e fazer com que esta d frutos excelentes.
De resto, se as chaves do reino dos cus tivessem sido
confiadas a um homem que tivesse podido conservar seu corpo
numa inviolvel castidade, seu sentimento poderia at parecer
mais provvel; mas todo mundo sabe que so Pedro possua uma
sogra e uma esposa[13]. O prncipe dos apstolos deveria
calar a boca queles a lhes ensinar que a qualquer momento de
nossas vidas podemos adquirir a castidade.

68. O demnio da impureza sugere mil pensamentos e toma mil


formas para tentar e fazer cair os homens. Assim ele no
cessa de excitar, de conduzir e de empurrar os que tiveram a
felicidade de conservar sua inocncia sem mcula, para que
provem nem que seja um pouco dos prazeres sensuais a fim de
examinar e verificar se lhes convm. Ele lhes diz
interiormente que eles no se atiraro a eles por muito
tempo, e que renunciaro logo em seguida. Quanto aos que ele
conquistou, ele no para de colocar diante de seus olhos a
imagem atraente das volpias de que j desfrutaram, a fim de
lev-los a se abandonar a elas mais e mais. Ora, eis o que
acontece normalmente nessas diferentes tentaes: aqueles
que, por qualquer funesta experincia, no conheceram ainda
estes prazeres criminosos, no sucumbem facilmente e de um s
golpe; outros, dentre os que tiveram a infelicidade de se
deixar seduzir e saborearam vergonhosamente o prazer que o
demnio lhes prometeu, se desgostam, colocam dificuldades e
opem uma vigorosa resistncia; e enfim, assistimos o
contrrio em muitos outros: eles contraem o infame hbito
dessas volpias carnais e no podem mais passar sem elas.

69. Quando ao acordarmos encontramos nossa alma e nosso corpo


na pureza e na calma, devemos pensar que os anjos conseguiram
para ns este favor em virtude das preces que fizemos e da
sobriedade que observamos durante nosso repouso. Mas se
acontece o contrrio, e os maus sonhos nos mergulham na
tristeza e no desgosto, e os fantasmas nos perseguem e nos
perturbam com sua vergonhosa importunao, lembremo-nos
destas palavras:

70. Eu vi o mpio, o demnio da impureza, extremamente


elevado; ele igualava em altura os cedros do Lbano,
perturbando meu corao com seu furor e com a agitao que
lhe comunicava; mas eu passei pelas austeridades da
abstinncia e do jejum e ele j no estava mais l; sua raiva
contra mim cessou. E tambm: Na humildade de meus
pensamentos eu o procurei e no pude encontr-lo, nem onde
morava, nem mesmo os vestgios de sua violncia[14].

71. Aquele que triunfa sobre sua prpria carne triunfa sobre
a prpria natureza; quem triunfa sobre a natureza se coloca
acima da natureza; e quem se coloca acima da natureza,
tornou-se quase to perfeito quanto os anjos.

72. Com efeito, no vejo nada de surpreendente se espritos


isentos de matria, como os anjos bons e maus, combatem
outros espritos imateriais como eles; o que me surpreende e
me espanta ver homens modelados com uma carne de terra e
barro, fraca e instvel, infiel e corrompida que dizer
mais? de uma carne inimiga, perseguir os demnios que so
espritos livres do peso e do embarao do corpo, venc-los e
coloc-los em fuga.
73. O Senhor, por um trao todo particular de sua providncia
em favor do gnero humano, inspirou s mulheres o esprito da
modstia, da vergonha e do pudor. Se as mulheres tivessem a
mesma liberdade e temeridade que os homens, poderamos dizer
que a castidade conduziria uma s alma que fosse, ao Paraso?

74. Nossos padres mais instrudos nos caminhos da vida


espiritual, e com cuja sabedoria podemos seguramente contar,
nos ensinam que preciso conhecer a diferena essencial
entre o primeiro movimento da alma, a simpatia de nosso
esprito por uma pensamento impuro e o consentimento que
damos ao pecado, e a derrota e o cativeiro que sofremos, o
combate que sustentamos e a paixo que atua. Eles dizem que o
primeiro movimento da alma consiste numa espcie de discurso
simples e nu, e a representao de um objeto so coisas que
se passam na imaginao; que a simpatia que do esprito pelo
objeto que ele figurou pelo pensamento um certo
entretenimento, uma conversa de nossa alma com o objeto que
ela considera, seja porque ela age assim por uma m inteno,
seja porque o faz sem maus desgnios; que o consentimento que
damos ao pecado um amor e uma afeio que levam a alma a
querer e possuir o objeto que ela se representou; que o
cativeiro a violncia feita ao nosso corao, que o arrasta
contra a sua vontade e o acorrenta, ou ento uma ligao
forte e constante que o fixa e o liga ao objeto que o move e
o faz perder a feliz estado de graa e de inocncia; que o
combate consiste numa equiparao de foras que empregamos
para combater o inimigo, de modo que a alma que se v exposta
ao combate pode, segundo sua vontade, vencer ou ser vencida;
enfim, que a paixo completamente formada um vazio que
depois de muito tempo se cristalizou em nossa alma,
enraizando-se nela, e levando-a pouco a pouco a um mau
hbito, que a alma segue com prazer e executa com ardor
aquilo que esta lhe ordena. Dito isto, observem sem dvida
que o primeiro movimento de nossa alma, que, sem que o
queira, recebe a impresso de um objeto, certamente no
criminoso, e que a representao desse objeto em nosso
esprito no totalmente inocente; mas que o consentimento
que damos a esta representao j constitui um pecado mais ou
menos grave, conforme a alma, para resistir a ele, faa
esforos maiores ou menores e generosos; que o combate traz
consigo castigos e recompensas; que o cativeiro nem sempre
o mesmo e depende das circunstncias; porque se ele acontece
durante a prece ele no o mesmo que seria em outro momento,
e se acontece em relao a coisas indiferentes no o mesmo
que aconteceria em relao a coisas ruins; enfim, quanto
paixo consolidada, indubitvel que se ela no for punida
neste mundo por uma converso slida e sincera, e por uma
penitncia proporcional s faltas que ela nos fez cometer,
ela o ser no outro mundo por meio de suplcios eternos. De
todas estas observaes tiremos esta importante consequncia:
que quem no o recebe, nem permite que o primeiro movimento
cause uma impresso em si, detm no seu princpio todas as
tentaes que estaria por experimentar, cortando assim as
razes do mal.

75. Aqueles dentre os Padre que obtiveram mais luz e


discernimento observam ainda outra espcie de pensamento
ainda mais sutil. Eles o nomeiam como uma insinuao
adocicada e sub-reptcia. Este pensamento penetra na alma de
uma maneira doce, to insinuante e sbita, que a alma no
tem, por assim dizer, nem o tempo nem os meios de se
aperceber. No conseguimos ver nada mais sbito nos
movimentos mais geis do corpo, nada mais instantneo e mais
sutil na agitao dos espritos; trata-se de uma ao quase
imperceptvel da qual a alma mal consegue reter uma
lembrana, que existe sem durao no tempo, que no permite
fazer nenhuma reflexo e que algumas vezes experimentamos sem
sequer nos darmos conta. Se algum for feliz o bastante para
receber de Deus a penetrao e a compreenso desta espcie de
mistrio, ele poder nos dizer como ele acontece, como, por
meio de um simples olhar, num piscar de olhos, num inocente
toque de mos, em umas poucas palavras cantadas, sem mesmo
nos deixarmos deter pela imaginao ou pelo pensamento, a
alma se v arrebatada, e a paixo impura se assenhora dela e
a corrompe instantaneamente.

76. Alguns dizem que so os pensamentos que nascem no corao


os que levam o corpo a aes de impureza. Outros, ao
contrrio, sustentam que por meio dos rgos e dos sentidos
do corpo que os pensamentos so excitados no esprito. Outros
asseguram que o corpo no faz mais do que obedecer ao
esprito, e que o segue; enfim, encontramos alguns que, para
provar que o esprito menos culpado do que o corpo, ou
antes que o corpo o nico culpado, demonstram, tanto quanto
podem, que muitas vezes os maus pensamento no escorregam
para o esprito seno pela viso de um objeto agradvel, de
uma beleza que nos toca e ofusca, ou por um simples toque de
mos, pelo bom odor dos perfumes que aspiramos, e pela
suavidade dos sons que escutamos. Quanto a mim, peo
humildemente ao Senhor, que conhece onde as coisas realmente
acontecem, que nos ensine; pois este conhecimento muito
til e mesmo necessrio aos que pretendem agir e s se
determinar por princpio e com segurana; mas ele intil
aos que s desejam servir a Deus na simplicidade de seus
coraes. A cincia e os talentos do esprito no esto ao
alcance de todo mundo, bem o sei; mas tambm no ignoro que a
bem-aventurada simplicidade, que uma couraa forte e
poderosa contra as ameaas dos inimigos da salvao, no
reina em todos os coraes.

77. Existem paixes que, depois que nascem no esprito, levam


sua raiva e seu furor a todo o corpo; outras, ao contrrio,
ocasionadas pelo corpo, exercem sua devastao no esprito.
Estas ltimas ocorrem normalmente nas pessoas que vivem no
mundo; e as primeiras nos que vivem nos mosteiros, porque
estes no veem os objetos que tentam os que vivem no meio do
sculo. Quanto a mim, a punica coisa que posso ainda afirmar,
que se voc quiser encontrar a prudncia e a sabedoria nas
pessoas que so escravas da paixo, jamais alcanar seu
objetivo.

78. Quando, tendo por um longo tempo e com muitos esforos


guerreado contra o demnio da luxria que , por assim
dizer, o aliado de nossa carne de barro e que por meio de
jejuns rigorosos como golpes de pedra, pela humildade como
uma espada, conseguimos expuls-lo de nosso corao, ento
este miservel se agarra como um verme ao nosso corpo, e se
esfora para manchar nossa alma, excitando em ns movimentos
inoportunos e contrrios razo.

79. Aos que obedecem ao esprito do orgulho sobrevm acima de


tudo a infelicidade, nas medida em que no cessam de aplaudir
a si mesmos por se haver libertado dos maus pensamentos, e
que acabam caindo nas armadilhas que lhes coloca a vaidade;
para nos convencermos desta triste verdade, vejamos e
examinemos atentamente, mas com simplicidade de corao, por
quais razes estas pessoas se acham isentas de pensamentos
desonestos. No ser exatamente por que o demnio, cheio de
malcia e artifcios, se esconde nas dobras mais secretas de
seu corao, para de l sugerir que por causas dos seus
cuidados, sua prudncia e seus trabalhos, que eles praticaram
a castidade e adquirido esta bela e perfeita pureza que agora
possuem? Infelizes! Esqueceram-se destas palavras: O que
vocs possuem, que no tenham recebido?[15]. Que as pessoas
em cujo corao o demnio se tenha escondido assim, se
dediquem com fora a combater e ferir esta serpente perigosa;
que a expulsem para longe de seu corao por meio de uma
profunda humildade, a fim de que, libertos de suas mordidas
cruis e envenenadas, e despojados das tnicas de pele com
que se cobriam, possam cantar em louvor ao Senhor um cntico
de triunfo e vitria, e, reunidos aos filhos que jamais se
sujaram com as coisas contrrias castidade, repetir o hino
da pureza. Mas elas sero incapazes de faz-lo, repetimos, se
se contentarem em se desfazer das tnicas que mencionamos,
mas sem se revestir das vestes da inocncia e do hbito de
uma profunda humildade.

80. O demnio de que tratamos aqui muito mais ardiloso do


que os demais: ele sabe observar e conhecer as circunstncias
em que poder nos estender suas armadilhas com maior sucesso.
assim que, para nos tentar, ele escolhe de preferncia os
momentos nos quais nos impossvel servirmo-nos do corpo
para nos dirigir a Deus com preces fervorosas.

81. Assim, aconselhemos aos que ainda no sabem orar


mentalmente, a que mortifiquem seus corpos durante suas
oraes vocais, seja estendendo os braos, seja batendo no
peito, se elevando afetuosamente e com frequncia seus olhos
para o cu, seja soltando suspiros e gemidos, seja ficando de
joelhos: todas essas mortificaes e esses meios piedosos
lhes traro grandes vantagens. Mas se acontecer de, pela
presena de qualquer pessoa, no seja possvel executar essas
prticas de piedade, o demnio aproveitar esta ocasio para
atacar, e no raro que no estejamos firmes contra a
tentao, de sorte que, por falta de coragem ou de fervor na
prece, podemos vir a falhar e sucumbir. Quanto a vocs, se se
encontrarem numa situao exposta a uma provao semelhante,
retirem-se prontamente, saiam da multido, escondam-se em
qualquer lugar secreto, voltem aos cus os votos ardentes de
seu corao; e, se vocs se sentirem frios, congelados,
elevem os olhos do corpo para olhar o cu, estendam os braos
em forma de cruz, a fim de que, por meio deste sinal salutar,
possam confundir e derrubar por terra este novo Amalec;
chamem com grandes gritos aquele que o nico que poder
lhes salvar; para tanto, no se sirvam de palavras elegantes
e estudadas, mas de palavras que transpirem de humildade do
corao e de confiana da alma; sobretudo, digam: Tenha
piedade de mim, Senhor, porque sou fraco e desfaleo[16].
Logo vocs sentiro a presena do socorro do Altssimo e,
fortificados por este auxlio celeste, afastaro
vitoriosamente seus inimigos. Ora, eu posso dizer que todos
os que se acostumaram a combater o demnio desta maneira e
com essas armas, obtiveram contra ele prontas e gloriosas
vitrias. Apenas a prece do corao capaz de nos fazer
triunfar. assim que Deus torna invencveis os que combatem
corajosamente por seu amor; assim que ele recompensa seus
esforos e coroa sua boa vontade.

82. Numa reunio em que me encontrava, vi um monge que se


aplicava muito nos assuntos de sua salvao, e que trabalhava
com grande ardor. Um dia observei que este fervoroso servidor
de Deus era violentamente atacado por pensamentos impuros, e
que, no se encontrando num lugar apropriado para a orao
que costumava fazer durante essas tentaes, ele pretextou
suas necessidades naturais, com o objetivo de se retirar. Ele
se colocou no lugar que era destinado a essas necessidades e,
com uma orao das mais ferventes ele travou uma batalha com
o demnio e o derrubou. Porm, eu lhe fiz algumas
admoestaes, quanto sua conduta: O local, disse-lhe eu,
que voc escolheu para orar, no absolutamente correto para
o santo exerccio da prece. Mas, respondeu-me ele com
humildade, voc no v, meu pai, que ao escolher este local
para orar, num momento em que eu era tentado por pensamentos
imundos, eu mereci ser purificado de minhas prprias
manchas?.

83. Os demnios procuram envolver nosso esprito em trevas


espessas, e depois levar nosso corao a gostar daquilo que
eles mesmos amam. Assim, a menos que um religioso feche os
olhos de sua alma para a luz, o demnio ser incapaz de
arrebatar-lhe o tesouro de sua inocncia. Mas sobretudo
desta maneira que o demnio nos ataca e nos tenta: s vezes
ele espalha tantas trevas no esprito do pobre monge, e com
esta escurido opera tamanha confuso e uma desordem to
terrvel em sua razo, que consegue que ele cometa, na
prpria presena de seus irmos, aes e crimes dos quais s
um insensato seria capaz. Mas o que acontece a seguir? Nossa
alma retorna de sua funesta embriaguez, a paixo se acalma,
voltamos a ns e no podemos seno enrubescer de nossa
cegueira vergonhosa, e gemer por nossos deplorveis excessos,
pelas palavras que dissemos, pelos gestos que fizemos, pelas
aes cometidas, e pelo estado humilhante a que fomos
reduzidos em presena de tantas testemunhas. Mas muitas vezes
de um mal procede um bem: pois acontece que esta vergonha de
pecadores, considerando a conduta infame que mostraram, os
pode converter e lev-los a se corrigir de sua paixo.

84. Afaste o inimigo que, depois de nos ter feito cair em


pecado, nos desvia da orao, dos outros exerccios da
piedade e da vigilncia sobre ns mesmos. Lembremo-nos da
mxima que diz: porque eu vi que minha alma estava
oprimida pelo conhecimento dos pecados que cometi, como por
uma cruel tirania, que resolvi fortemente me vingar dos
inimigos que me encheram de males.

85. Sabem vocs quem pode assegurar ter vencido sua carne e
triunfado sobre seu prprio corpo? aquele que partiu e
dilacerou seu corao. E quem que partiu seu corao? Vocs
o encontraro em algum que realizou uma renncia completa de
si mesmo; pois como algum que deu morte prpria vontade
poder proteger seu corao?

86. Existe um tipo de homem dominado pela paixo que, a todos


os crimes com que se cobriu, acrescenta o de contar com
brutal complacncia as execrveis impudiccias e as
vergonhosas intemperanas a que se entregou.

87. O demnio costuma excitar pensamentos impuros em nosso


esprito para corromper nosso corao. Podemos combat-lo
vantajosamente expulsando-o com a temperana, o desdm e por
uma dedicao a outra coisa.

88. Aqui se apresenta uma grande dificuldade. Fizemos a


guerra ao nosso corpo? Mas este corpo, que me to caro, que
eu amor ternamente, como poderei acorrent-lo, julg-lo e
conden-lo, tal como julgarei e condenarei os vcios mais
vergonhosos? Pois ele escapa no mesmo instante em que estou
prestes a lhe colocar as cadeias; mal acabei de me resolver a
julg-lo e j me reconcilio com ele, e se chego a conden-lo
me apresso logo a perdo-lo. Como odiar a quem a natureza me
ordena amar? Como ser possvel separar-me daquilo a que devo
estar eternamente unido? Poderei eu fazer morrer a quem
dever ressuscitar um dia para viver comigo pelos sculos
infinitos? Por quais meios conseguirei tornar incorruptvel
aquilo que corruptvel por sua prpria natureza? Quais boas
razes posso dar quele que, para me convencer, me apresenta
razes que esto fundadas na prpria essncia das coisas? Se
eu tento amarrar meu corpo por meio de jejuns, me entrego a
ele, condenando-o se no os observar; se, preservando-me de
julgamentos temerrios, liberto-me de sua escravido, a
vanglria me faz recair em sua servido. Meu corpo ao mesmo
tempo meu amigo e meu inimigo, meu adversrio e meu auxiliar,
meu perseguidos e meu defensor. Se cuido dele, estou mimando-
o? Ele se torna insolente e se volta contra mim: devo
mortific-lo? Ele me faz cair em desfalecimento: restabeleo-
o? Ele no me d repouso e no quer receber nenhuma
reprimenda? Devo afligi-lo, a ele que me expe ltima das
infelicidades? Arruno-o com austeridades, e j no tenho os
meios com que adquirir e praticar as virtudes: meu corpo um
ser que eu odeio e amos. Mas ento, o que esta maravilha
extraordinria que encontro em mim? Qual pode ser a razo
desta mistura singular de meu corpo com minha alma, dessas
afeies corporais com essas afeies espirituais? Explique-
me como possvel que eu me ame e me deteste ao mesmo tempo.
Mas a voc que me dirijo, meu pobre corpo, minha pobre
carne, minha companhia inseparvel, voc que parte
essencial de mim mesmo! Diga-me, eu lhe peo: ensine-me, eu
lhe conjuro, este grande mistrio que me espanta e me
confunde; pois s voc pode me dar o conhecimento que eu
desejo. Conte-me, por favor, por que meios poderei eu viver
sem ser ferido, permanecendo com voc; digne-se a me ensinar
como eu poderei evitar os numerosos perigos a que me vejo
exposto a cada dia, por causa da unio necessria e
inseparvel que tenho com voc; pois voc no pode me
ignorar, e eu prometi a Cristo lhe fazer guerra. Ensine-me
ento de que maneira poderei triunfar sobre sua tirnica
dominao: pois ele me ordenou usar de todas as minhas foras
para venc-lo e subjug-lo. E eis que a concupiscncia, que o
corpo representa, nos d as seguintes respostas: Eu no lhe
direi coisas desconhecidas; mas lhe contarei, minha alma,
aquilo que ns dois sabemos. Eu me glorifico de possuir por
me a afeio interior que tenho por mim. Eu sou bem prtico
em aproveitar e desfrutar da delicadeza com que sou tratado,
e da negligncia com que cumprimos nossos deveres e
praticamos a virtude, a fim de produzir exteriormente as
chamas de um grande abrasamento. Para provocar interiormente
os ardores e os fogos criminosos eu me sirvo do relaxamento
da piedade e da lembrana abrasadora das coisas passadas.
Depois de meditar bem sobre os pecados e os crimes nos quais
quero faz-lo cair, consigo facilmente meu objetivo; e depois
de faz-lo cair no abismo, eu o precipito em outro, que a
morte eterna causada pelo abatimento e pelo desespero. O
conhecimento de minha fraqueza e da sua me prende as mos, e
a temperana amarra meus ps, de modo que no posso nem agir
nem caminhar. A obedincia perfeita o liberta absolutamente
de minha tirania, e uma profunda humildade me mata. Qualquer
um que receba o dom da castidade como prmio por suas obras,
este que o dcimo quinto degrau da perfeio, ainda que
numa carne corruptvel, est morto e ressuscitado ao mesmo
tempo, e comea ainda neste mundo a usufruir de uma bem-
aventurada incorruptibilidade.
DCIMO SEXTO DEGRAU

Da Avareza e da Pobreza

1. A maior parte dos autores recomendados por sua cincia,


depois de haver falado, como fizemos, da carne como um
furioso tirano, nos expe a avareza, que um demnio
monstruoso cheio de cabeas. Assim, para no perturbar a
ordem que estes homens cheios de sabedoria estabeleceram,
seguiremos a regra traada. Diremos, assim, mas em poucas
palavras, o que concerne a esta cruel paixo, e trataremos
dos remdios capazes de nos curar e de nos preservar dela.

2. A avareza uma verdadeira idolatria; a filha da


incredulidade. Para contentar sua avidez, ela se serve do
pretexto especial das enfermidades e das necessidades do
corpo; por isso que ela no cessa de ameaar com uma
velhice de mil necessidades diferentes, que ela anuncia e faz
temer as secas e que ela prediz as fomes.

3. Um avaro envergonha e viola os preceitos do Evangelho.


Quem possudo pelo amor a Deus no devorado pelo desejo
passional das riquezas, ao contrrio, serve-se delas para
distribuir esmolas a granel. Quem ousa dizer que ama a Deus e
os bens da terra engana a si prprio e quer enganar os
outros: pois ele no ama a Deus. No mesmo erro cai aquele que
pretende possuir a Deus e o dinheiro: no possuir nem um nem
outro.

4. Quem chora seus pecados, tambm renuncia a seu prprio


corpo e no o agrada, a partir do momento em que considera
necessrio faz-lo.

5. No diga que voc s ama e busca as riquezas para depois


socorrer os indigentes. Lembre-se de que uma pobre viva
conquistou o Reino dos cus com duas pequenas moedinhas.

6. Dois homens se encontram um dia: um avaro, outro


generoso. Logo o avaro se pe a repreender ao outro, que
reparte com largueza aos pobres que o cercam; ele o acusa de
no possuir nem sabedoria, nem discrio.

7. Mas aquele que triunfou generosamente sobre a cupidez, no


poder ele responder que qualquer um que tenha vencido esta
paixo, por isso mesmo cortou pela raiz todas as inquietaes
da vida, e que aquele que escravo da cupidez jamais pode se
apresentar a Deus com as mos puras e inocentes, nem lhe
oferecer o perfume odorfico da orao?

8. A avareza comea com a desculpa da esmola; mas assim que


voc acumula e constri um tesouro de ouro e prata, a cupidez
o faz detestar os pobres. Vejam como so grandes a
sensibilidade e a compaixo pelos indigentes no corao do
avaro enquanto ele trabalha para se tornar rico; e vejam como
ele se torna duro e insensvel em relao a eles, depois que
se v na abundncia.

9. Conheci pobres de bens de fortuna, mas que eram ricos em


bens da graa, esquecer completamente sua pobreza temporal
vivendo em meio a gente igualmente pobre, apenas pela afeio
e a vontade.

10. O monge que tem a infelicidade de amar o dinheiro jamais


preguioso; pois sua paixo lhe recorda sem cessar estas
palavras, das quais ele abusa: Quem no quer trabalhar,
tambm no coma[17]; e estas: Minhas mos bastam para que
eu obtenha para mim e para os que vivem comigo as coisas que
nos so necessrias[18].

11. A pobreza religiosa uma desobrigao formal de todos os


cuidados da vida e uma libertao de todas as inquietudes
temporais; uma viagem desembaraada de toda carga, uma
observao escrupulosa dos preceitos do Senhor; uma feliz
libertao de toda espcie de incmodos e penas.

12. O monge pobre mestre de todo o universo, porque ele


coloca todos os seus cuidados e todas as suas inquietudes no
seio da Providncia, e, pela confiana firme e inteira que
ele tem no Senhor, torna todos os homens sujeitos a si, seus
servidores. No ser aos homens que ele ir se dirigirem suas
necessidades e nos suas carncias, e o socorro que receber
ele saber que provm da mo do Senhor.

13. trata-se de um feliz filho da paz e da tranquilidade do


corao; pois ele livre de toda afeio desregrada. Em seu
retiro ele no d maior ateno s coisas presentes do que s
ausentes, s que existem e s que no existem, e tudo neste
mundo lhe parece pantanoso e imundo. Quem se entristece e se
aflige nas dificuldades no pobre desta pobreza, que a
nica verdadeira.

14. O verdadeiro pobre oferece a Deus preces puras e


sinceras, e o avaro mancha as suas com o pensamento e o
desejo de bens temporais, que ele enxerga como dolos.

15. Os que tm a felicidade de viver num mosteiro devem ser


isentos de toda e qualquer cupidez; pois como ousariam eles
possuir qualquer coisa sua, uma vez que, em funo de sua
profisso de obedincia, sequer seus corpos esto sua
prpria disposio? O nico prejuzo que poderia lhes causar
esta pobreza to perfeita, seria de tornar muito fcil mudar
de lugar e de moradia sem nenhuma dificuldade; pois j vi
acontecer das coisas que algum possua num lugar fizessem
com que a pessoa se fixasse e se ligasse quele lugar.

16. Aqueles que se tornam peregrinos por amor a Deus esto


mais avanados nos caminhos da perfeio do que os que se
fixam num lugar, por afeio a coisas que possuem.

17. Quando temos a felicidade de saborear as douras e as


delcias que nos trazem os bens celestes, nos desgostamos
rpida e facilmente das falsas douras dos bens terrestres;
e, por um princpio contrrio, entregamos prontamente as
afeies do corao s riquezas temporais e as possumos com
prazer, quando jamais saboreamos das santas volpias das
riquezas celestes.

18. Quem pobre contra sua vontade duplamente infeliz:


pois no desfruta dos bens da vida presente e, pelo mau uso
que faz de sua pobreza, se priva dos bens da vida futura.

19. Tenhamos cuidado, todos os que fazemos profisso de vida


religiosa, para que nos tornemos inferiores aos passarinhos,
estes animais que no pensam no amanh e nada ajuntam para os
tempos que podero vir[19].

20. Grande aos olhos do Senhor aquele que, por seu amor,
renuncia generosamente a tudo o que possui, e tambm o que,
nestas santas disposies, se despoja inclusive de sua
prpria vontade! Um, como prmio por sua generosidade,
receber o cntuplo, seja neste mundo, com bens temporais,
seja no outro, pelos dons e as graas celestes; e o outro
possuir a vida eterna.

21. As ondas e as tempestades no cessam de agitar e


atormentar o mar, e a tristeza e a clera perturbam e oprimem
o avaro sem interrupo.

22. Quem s sente desprezo e indiferena pelos bens da terra,


no estar expostos aos processos, nem s angstias que estes
trazem consigo; enquanto que quem escravo da cupidez,
penar toda a vida por uma msera agulha.

23. Uma f inquebrantvel preserva de toda espcie de


inquietaes; o pensamento da morte conduz renncia do
prprio corpo.

24. J, em sua extrema pobreza, jamais demonstrou por sinal


ou marca alguma ter sido possudo por qualquer afeio de
cupidez; ainda que reduzido ltima indigncia, ele
conservou sua alma numa paz e tranquilidade perfeitas.

25. com razo que se diz que a avareza a raiz de todos os


males. Pois esta maldita paixo que engendra as averses,
os furtos, as invejas, as cises, as inimizades, as raivas,
as disputas, os ressentimentos, os atos de crueldade e
barbrie, e at os assassinatos.

26. Assim como uma pequena fagulha capaz de produzir um


imenso incndio numa floresta, tambm uma virtude, pequena na
aparncia, capaz de fazer desaparecer todos os crimes de
que falamos; esta pequena virtude a pobreza, que suprime e
extingue todos os maus pendores da cupidez. Aquilo que produz
em ns esta interessante virtude , em primeiro lugar, o
hbito de pensar em Deus, depois o prazer que sentimos em
caminhar em sua presena e enfim a lembrana da temvel conta
que teremos que lhe prestar.

27. Todos os que leram com ateno o que dissemos no dcimo


quarto degrau, o da gula, me de todos os males imaginveis,
tero sem dvida observado que esta infame paixo, ao
fornecer a genealogia e o nmero de seus filhos, colocou em
segundo lugar a insensibilidade, que torna o corao duro
como um rochedo. Se ainda no falamos deste vcio foi porque
a avareza, que um drago e um culto idlatra do dinheiro,
nos forou a nos ocuparmos dela. Eu no sei por que nossos
pais colocaram a avareza em terceiro lugar dentre os pecados
capitais. Ento falarei agora da insensibilidade, que ocupa o
terceiro lugar na lista dos pecados, mas que est em segundo
na genealogia que a intemperana nos forneceu de seus filhos.
Depois disso, uma vez que j falamos da avareza, passaremos
ao sono, s viglias e aos temores pueris: estas enfermidades
espirituais atacam sobretudo os novios. Terminaremos este
degrau dizendo que aquele que obtm esta dcima sexta vitria
possuir o amor, se libertar dos cuidados da vida presente,
ter merecido uma grande recompensa no cu e caminhar sem
nenhum embarao temporal para a ptria celeste.
DCIMO STIMO DEGRAU

Da Insensibilidade da alma, ou do endurecimento do corao,


que consiste na morte da alma antes da do corpo.

1. A insensibilidade, seja do corpo ou do corao, consiste


num amortecimento letrgico que, por uma longa durao de
enfermidade grave e pela negligncia com que a tratamos,
termina normalmente numa paralisia universal.

2. A alma cai na funesta insensibilidade da seguinte maneira.


Ela comea com uma negligncia culpada dos deveres, que
termina por produzir um hbito inveterado de fugir deles.
Trata-se de uma paralisao mortal do corao, produzida por
uma tola presuno; uma corrente grossa e pesada que nos
impede de correr com alegria pelos caminhos de Deus; uma
bebida funesta que nos faz perder a compuno; a porta para o
temvel desespero, a me do esquecimento de Deus, o qual,
depois de ser gerado por ela, traz por si mesma a existncia
e a capacidade de apagar em ns todo sentimento de temor a
Deus.

3. A insensibilidade se parece com um filsofo insensato que,


dando lies aos outros, pronuncia sua prpria condenao;
com um advogado que disserta contra sua prpria causa; como
um mdico cego que, enquanto faz longas e sbias dissertaes
sobre os modos de curar um doente, no cessa de aumentar e
envenenar suas chagas e fazer crescer sua doena. Com efeito,
vemo-lo falar com zelo e cincia da doena de sua alma, mas
jamais ovemos abster-se das coisas que a mantm; ele pede a
Deus que o livre delas, mas, por seus maus hbitos, nos quais
no cessa de tombar, afunda e mergulha cada vez mais no
abismo; indigna-se contra si mesmo, mas, infeliz!, no
enrubesce diante das amargas admoestaes que recebe; sabe
que faz mala si mesmo, ele prprio o diz, mas jamais aciona
os meios de se corrigir; fala da morte, e vive como se jamais
fosse morrer; solta longo gemidos sobre os passos terrveis e
inevitveis aps a morte, mas permanece tranquilo, como se
nada tivesse a temer, como se fosse imortal aqui em baixo;
fala dos benefcios preciosos e dos frutos salutares da
mortificao, mas no hesita em se atirar sem escrpulos aos
excessos e s delcias da boa mesa; l com frequncia coisas
relativas ao Juzo final, mas insensato o bastante para no
lhes dar importncia alguma, e chega mesmo a brincar com
elas; l de passagem o que foi escrito sobre a vanglria, e
esta mesma leitura aumenta o prprio vcio em seu corao
miservel; louva a viglia, mas mergulha nas douras do sono;
destaca com eloquncia a virtude e a excelncia da orao,
mas tem horror a ela e s se dedica a este santo exerccio
fora e com grande repugnncia; assim, ele mesmo cria seu
suplcio e seu tormento. O insensvel louva e exalta a
obedincia, mas o primeiro a desobedecer; prodiga os
elogios mais pomposos aos que no tm nenhum apego aos bens
frgeis e perecveis deste mundo, mas no se envergonha de
discutir e disputar por um vil e msero linho; encoleriza-se
por disputar, irrita-se e se indigna por ficar de mau humor;
e ainda que caia e caia outra vez sem cessar, insensato!, no
se apercebe de suas quedas. Ele se arrepende de se entregar
aos excessos da intemperana, e um instante depois acrescenta
um novo excesso aos primeiros; beatifica o silncio, mas,
para no ter que conserv-lo, entrega-se a longos discursos
em seu louvor; faz excelentes exortaes aos demais para
lev-los a praticar a mansido, mas ele mesmo se indigna e se
irrita com sua prpria indignao e impacincia; quando cai
em si, vemo-lo gemer por seu estado deplorvel, mas, ao
primeiro movimento que faz para sair dele, recai numa
letargia ainda mais profunda. Ele censura e condena
severamente o riso e a alegria, e ao mesmo tempo em que fala
de penitncia se pe a rir de tal modo que desperta piedade e
anuncia o desequilbrio; acusa a si mesmo diante dos demais
por ser culpado de vanglria e, nesta mesma acusao, procura
contentar seu orgulho e sua vaidade; no cessa de recomendar
aos irmos para guardar modstia no olhar e praticar a
castidade com escrupulosa ateno, mas o miservel coloca sem
cessar, e com intenes perversas, os olhos sobre os objetos
agradveis e perigosos! Encontramo-lo no meio das pessoas do
sculo? Ele faz os maiores elogios da vida religiosa e
solitria, mas, na sua estpida insensibilidade, no
compreende que seus louvores condenam sua conduta; ele cumula
de honras e elogios os que cuidam dos pobres e que distribuem
esmolas entre os indigentes e os miserveis, mas ele mesmo
cobre os indigentes e os pobres de injrias, afrontas e
ultrajes. E assim que este pobre infeliz se acusa e se
condena em tudo e por tudo, sem pensar em se corrigir, em
enrubescer por seu triste e funesto estado, em se arrepender
por sua conduta e se converter. Ora, direi eu: ser isto
possvel a ele?
4. J vi infelizes como estes que, ouvindo falar da morte e
do julgamento terrvel que se seguir, banhavam-se em
lgrimas, e que no entanto, neste mesmo estado, se apressavam
a se sentar mesa; surpreso e espantado, eu no conseguia
compreender de que modo a intemperana, mesmo fortalecida por
um longo hbito de vida na preguia e na insensibilidade,
fosse to forte e potente para resistir assim a uma dor to
viva e virtude de lgrimas to salutares.

5. Entretanto, malgrado a fraqueza de meu esprito e de meu


julgamento, eis em poucas palavras o que eu penso haver
descoberto sobre as astcias infernais e sobre as chagas
profundas que caracterizam esta paixo dura, furiosa,
tirnica, perigosa e impertinente; pois eu no posso aqui me
estender em dissertaes longas e raciocnios complexos, e
conjuro aos que, com o socorro do cu e sua prpria
experincia , tenham encontrado o remdio para a cura desta
enfermidade mortal, que no deixem de no-lo ensinar e
aplicar. Quanto a mim, tudo o que posso fazer confessar
francamente e sem rodeios que, diante de minha impotncia e
do estado de servido a que fui reduzido por esta cruel
dominadora, acho-me na impossibilidade de conhecer todos seus
artifcios e armadilhas; o que eu pude foi agarr-la fora
e usar de violncia, amarr-la com as cordas do temor a Deus
e os laos da perseverana na orao, forando-a, contra sua
vontade, a fazer a confisso a seguir. E esta enganadora e
tirnica senhora me falou assim: Quando os que se aliam a
mim veem cadveres diante de seus olhos, eles no deixam de
rir; durante a prece so duros como rochedos, e seu esprito
permanece envolto em trevas espessas que os impedem de
enxergar. Quando eles se apresentam diante da mas
eucarstica, o fazem sem nenhum sentimento de piedade, e
recebem e comem o po divino como se fosse um po comum e
ordinrio. Se eu vejo pessoas tomadas de compuno, rio
delas. Aprendi com meu pai a fazer perecer todas as boas
obras produzidas pela coragem e os esforos de um corao
generoso e bom. Eu sou a me da inconsequncia e das risadas,
a nutriz do sono, a amiga das associaes e das companhias, a
companheira fiel da falsa piedade; e, por esta ltima
qualidade, eu desdenho da reprovao que me feita.

6. Estas respostas me encheram de espanto e surpresa, e me


inspiraram o desejo violento de perguntar ainda a esta
furiosa paixo o nome de seu infame pai. Ela me respondeu:
Eu no nasci de uma nica raiz; minha origem uma mistura
incerta, e o estado de minha gerao variado; o excesso no
comer me d foras, o tempo me faz crescer e aumentar; os
maus hbitos me afirmam de tal maneira que aquele que se
deixar levar por mim jamais escapar da escravido. Se voc
perseverar nas viglias e no pensamento dos julgamentos de
Deus, eu lhe darei algum descanso. Descubram a causa que me
gerou em cada um; pois ela no a mesma para todos, e
ataquem-na rudemente. Rezem sobre os tmulos, e levem consigo
sempre a imagem da morte e dos que j no existem; mas no se
esqueam de que se vocs no se servirem do jejum como pincel
para pintar estas coisas no seu esprito, jamais conseguiro
triunfar sobre mim.
DCIMO OITAVO DEGRAU

Do sono, da prece e do canto pblico dos salmos

1. O sono consiste num certo estado, uma certa paixo da


natureza que produzida pela paralisao dos sentidos; a
imagem da morte. O sono em si algo nico; mas, assim como a
cupidez, as causas que o produzem so numerosas; pois tanto
ele pode advir da prpria natureza, como do trabalho
realizado pelo estmago que digere com dificuldade os
alimentos recebidos, ou ainda de parte dos demnios; algumas
vezes tem seu princpio e sua causa no excesso de severidade
das austeridades; neste ltimo caso, a prpria natureza
que, sentindo-se enfraquecida, tenta se aliviar e recuperar
suas foras.

2. Bebendo muito e frequentemente, adquirimos facilmente o


hbito de beber; o mesmo se pode dizer do costume de dormir.
por isso que os jovens iniciantes devem se precaver contra
esta paixo e esta necessidade corporais; pois, na medida em
que o pudermos ignorar, um hbito inveterado se corrige
facilmente.

3. Se quisermos prestar bem ateno, observaremos que,


enquanto nossos irmos se renem ao toque da trombeta, nossos
inimigos correm invisivelmente para nossos leitos, a fim de
que, ao acordarmos, nos obriguem a permanecer nas douras do
repouso: Fiquem, nos dizem eles interiormente, esperem
terminar os hinos que precedem a salmodia; cedo ainda para
ir igreja. Outras vezes eles nos fazem sentar durante a
prece e nos conduzem ao sono. Ora eles nos incitam a violenta
necessidade de sair; ora nos pedem para sustentar discursos
vos e inteis. Alguns dentre eles tm como ocupao fatigar
nosso esprito com maus pensamentos; outros, de fazer com que
nos apoiemos sobre qualquer objeto, como um muro, por
exemplo, persuadindo-nos de que estamos demasiado fracos e
fatigados; outros nos carregam com bocejos inoportunos;
outros nos levam a rir, a fim de que, em nossas prprias
oraes, atraiamos a ira do Senhor. Encontramos alguns que
nos tentam a correr com a leitura dos versculos para que,
terminando logo, tenhamos algum tempo para preguiar;
encontramos outros que, ao contrrio, fazem com que vamos
lentamente, para desfrutarmos de um certo prazer natural.
Enfim, existem os que se colocam sobre nossa lngua e nossos
lbios para nos fechar a boca, ou para nos impedir de
pronunciar com facilidade as palavras que compem os salmos.

4. Quem, durante a orao, pensar seriamente que est na


presena de Deus, ser como uma coluna inamovvel, e no se
deixar surpreender por estas mltiplas tentaes. De resto,
o lutador sincero e obediente, quando se trata de orar, se v
iluminado por uma luz divina e se enche de alegria celestial;
pois este bom monge, semelhante a um soldado valente, se
preparou para a prece longamente, por meio de um fiel
cumprimento de seus deveres e por uma obedincia estrita.

5. Se todos podem se dedicar prece pblica, devemos no


obstante confessar que existem alguns para quem mais til
orar com algum que no esteja unido a ele pelo mesmo
esprito e as mesmas inclinaes. A prece solitria s convm
a poucos.

6. Ao salmodiar na companhia de muitos, no lhes ser muito


fcil entregar-se meditao sem numerosas distraes;
ento, para amarrar e aplicar seu esprito pesem e meditem as
sagradas palavras que recitam, a fim de que esta meditao
seja para vocs como que uma prece, enquanto a parte do coro
qual vocs no pertencem pronuncia seus versculos.

7. No conveniente para ningum se dedicar a outras coisas


durante a orao, mesmo que seja algo necessrio. Santo
Antnio nos assegura que foi um anjo que lhe recomendou
evitar esta falta.

8. O fogo testa o ouro; mas a prece o faz em relao ao amor


e ligao que os monges tm por Deus. Aquele a quem agrada
o santo exerccio da prece se une a Deus com grande
felicidade e coloca em fuga os demnios.
DCIMO NONO DEGRAU

Das viglias do corpo, do modo como elas produzem as viglias


do esprito, e da maneira como devem ser praticadas

1. Dentre as pessoas que acompanham os reis da terra, existem


aquelas que no possuem armas, outras que trazem feixes,
outras escudos, outras espadas. Nada disso por acaso, mas
calculado: pois aqueles que no esto decorados seno com as
marcas de sua dignidade so comumente os parentes, os aliados
ou no mnimo os amigos ntimos e confidentes do prncipe;
quanto aos demais, so seus oficiais ou seus empregados
domsticos: tal a ordem que encontramos na corte dos
soberanos.

2. Vejamos no presente qual o lugar que ocupamos na casa de


Deus, que nosso rei supremo, quando nos apresentamos a ele
para nos dedicarmos aos exerccios da orao do dia, do
entardecer e da noite: pois existem alguns que, nas preces do
entardecer e da noite se apresentam diante de Deus livres de
toda inquietao em relao aos objetos visveis, e
revestidos apenas com os ornamentos espirituais; outros se
mostram assim com o canto dos salmos e dos cnticos; alguns
passam o santo tempo da prece na leitura das divinas
Escrituras; outros, mais fracos e menos avanados, trabalham
com as mos; enfim, existem os que, pela meditao contnua
da morte, incitam e entretm em seus coraes sentimentos da
mais viva e ardente compuno. Ora, evidente que de todas
essas pessoas religiosas que passam assim as viglias, so as
primeiras e as ltimas que se comportam da maneira mais
agradvel a Deus; as que colocamos em segundo lugar seguem os
exerccios ordinrios da vida religiosa; as terceiras e as
demais esto no ltimo grau. No obstante, Deus recebe e
aprecia todas essas maneiras de lhe oferecer homenagens,
segundo o grau de boa vontade, de fervor e de coragem das
pessoas que lhe apresentam.

3. As viglias do corpo purificam a alma de suas manchas


bestializa e cega o esprito.

4. As viglias combatem forte e vigorosamente os ardores da


carne, expulsam os maus pensamentos, produzem lgrimas em
abundncia, enternecem o corao, extinguem as chamas da
paixo, do delicadeza conscincia, conservam os
pensamentos sob controle, consumem os alimentos que poderiam
ser nocivos, submetem a carne ao esprito, triunfam sobre os
esforos e desarmam as armadilhas do demnio, detm a
liberdade indiscreta da lngua e dissipam inteiramente as
imagens e os fantasmas capazes de perturbar e consternar a
alma.

5. Um monge que pratica as viglias se parece a um pescador:


pois no silncio da noite ele observa sem distrao e
compreende o alcance e o valor dos pensamentos.

6. Este ama sinceramente a Deus e, quando escuta soar o


ofcio, cheio de alegria e contentamento grita: Muito bem!
Muito bem!, enquanto que o monge preguioso diz suspirando:
Bem, l vamos ns outra vez....

7. No difcil reconhecer o guloso mesa carregada de


finos pratos; e fcil reconhecer aqueles que amam a Deus,
por seu zelo e seu amor pela prece. As pessoas escravas da
intemperana tremem de alegria vista de uma mesa coberta de
pratos bem preparados; e ao contrrio, ficam tristes e
aborrecidas quando chega o momento de se dedicar orao,
aquelas que no amam este santo exerccio.

8. O excesso de sono faz esquecer as verdades salutares e


inspira o desgosto pelas coisas espirituais; as viglias
purificam nosso esprito e nosso corao.

9. Os trabalhadores ajuntam suas colheitas nos celeiros, os


vinhateiros nos lagares; os religiosos ajuntam suas riquezas
espirituais nos exerccios da orao, que acontecem
principalmente ao entardecer e noite.

10. Um sono muito considervel um mau companheiro que


adotamos: ele faz com que o preguioso perca metade, seno
mais, do tempo que tem para viver.

11. O mau monge est acordadssimo quando se trata de se


entregar a conversas e de entreter-se juntos aos seus irmos,
mas quando se aproxima a hora da orao o sono logo se apossa
dele.

12. O religioso relapso est sempre pronto e ativo para as


palavras vs, mas fica lento e relapso ao ler os livros
sagrados.

13. Assim como os mortos se levantaro prontamente da poeira


de suas tumbas ao som das trombetas, tambm os religiosos
dorminhocos se levantam celeremente de seus tmulos de
preguia quando se anuncia a hora das recreaes.

14. O sono, sob as aparncias enganadoras da amizade, exerce


sobre ns uma tirania bem funesta s vezes ele se retira
quando estamos saciados, outras vezes, quando jejuamos e
somos pressionados pelas dores da fome e os ardores da sede,
ele nos persegue exageradamente.

15. Ele nos leva a nos ocuparmos de algum trabalho manual, a


fim de que, por este meio, se outros no funcionarem, ele
possa nos perturbar e nos fazer abandonar a prece. Para
desencorajar os que entram para a vida religiosa, e impedi-
los de nela progredirem com felicidade, ele no cessa de
persegui-los e de atorment-los.

16. tambm assim que ele age, em relao queles para os


quais deseja abrir a porta do corao paixo da luxria.

17. Assim, at que estejamos inteiramente livres das fadigas


e da importunao do sono, no devemos ser encarregados de
cantar o ofcio com nossos irmos; pois sua companhia e o
temor de nos cobrirmos de vergonha e confuso nos impediro
de dormir: com efeito, assim como o co inimigo da lebre, o
demnio da vanglria o daquele do sono.

18. Assim como o comerciante conta os ganhos do dia ao


entardecer, tambm o religioso deve, depois da salmodia,
verificar os benefcios espirituais que retirou da.

19. Vigiem a si mesmos atentamente depois da orao, e vero


com espanto que numerosos demnios, irritados por no terem
podido nos vencer enquanto orvamos, comeam a seguir a fazer
todos os esforos para nos fazer cair em maus pensamentos.
Sentem-se, mantenham-se atentos, e vero aqueles que costumam
vir para arrasar a colheita da alma.

20. Acontece s vezes que, pelo costume que temos de recitar


os salmos, nos ocorre alguma lembrana, e que os divinos
orculos se tornem a prpria matria e o objeto de nossos
pensamentos durante o sono; mas tambm acontece de os
demnios, nossos inimigos, provocarem estas coisas em ns, a
fim de nos inspirar sentimentos de orgulho. Existe ainda uma
coisa sobre a qual pretendia silenciar, mas que uma pessoa me
ordenou publicar: que se uma alma que todos os dias se
alimenta da palavra de Deus por meio de uma meditao
contnua e profunda, comea costumeiramente, durante o sono,
a recordar os santos pensamentos tidos durante o dia, esta
ser uma recompensa preciosa concedida por Deus; pois desta
forma que nos libertamos das iluses do demnio. Aquele que
chegou at este dcimo nono degrau recebeu em seu corao o
tesouro de uma luz celeste.
VIGSIMO DEGRAU

Da covardia pueril

1. Aqueles que, nos mosteiros ou comunidades, se dedicam a


adquirir a perfeio, no costumam estar muito expostos a
este temor; mas vocs que abraaram a vida eremtica e que
habitam nos confins dos desertos, devem combater esta paixo
com todas as foras e jamais se deixar dominar por ela, pois
ela filha da vanglria e da infidelidade.

2. A covardia uma paixo pueril que muitas vezes consiste


na parte que cabe velhice ou a uma alma escrava da vaidade.
Trata-se de uma falta de f e de confiana em Deus; ela se
produz em ns pelas desgraas que imaginamos prever que iro
nos surpreender inopinadamente.

3. Este medo consiste na previso de perigos imaginrios;


uma aflio penosa de um corao perturbado e agitado pela
ideia de acidentes incertos. Numa palavra, diremos que esta
apreenso a ausncia completa de confiana.

4. assim que vemos que uma alma orgulhosa e que s conta


com suas prprias foras teme e treme vista de sua prpria
sombra.

5. Penitentes que, num tempo, choraram sinceramente suas


faltas, mas que em outro tempo, por motivos de orgulho e de
impenitncia, deixaram de chorar suas iniquidades, so
completamente isentos de temor em certas ocasies, enquanto
que em outras circunstncias so atingidos e ficam to
apavorados que caem numa desorientao e numa alienao
extraordinrias. A razo dessas espantosas vicissitudes que
o Senhor, soberanamente santo e justo, abandona a si prprios
estes miserveis soberbos, a fim de que sua prpria
infelicidade os torne sbios e os leve a renunciar a todo
sentimento de orgulho.

6. Se todos os escravos do amor prprio esto sob o jugo da


covardia, nem todos os que esto isentos dela so por isso
pessoas doces e humildes de corao. Com efeito, ladres e
violadores de tumbas, que certamente no so pessoas
devotadas doura e humildade, esto bem longe de ser
tmidos.

7. Existem para voc lugares que lhe inspiram medo? No


hesitem em escolher o meio da noite para ir visit-los; pois
se vocs recuarem o mnimo que seja diante dos objetos que
lhes causam sentimentos de medo de uma maneira tanto v como
ridcula, este medo se fortalecer em vocs, e vocs o
carregaro por toda a vida. Assim, se puserem em prtica a
recomendao que lhes fao, armem-se corajosamente com a
orao e, nestes lugares assustadores voltem para os cus
suas mos suplicantes, invoquem o doce nome de Jesus com uma
f viva e ardente, e faro seus inimigos em pedaos. Eis as
armas mais poderosas que vocs podem encontrar sobre a terra
e nos cus, para guerrear contra a covardia. Tiveram vocs a
felicidade de curar sua alma desta doena e obter uma alegre
vitria sobre si mesmos? No deixem de dar testemunho de seu
reconhecimento, por meio de humildes cnticos e louvores,
quele que, com sua graa, os fez vencer e triunfar. Esta
conduta atrair sobre vocs novos favores, e vocs sero
merecedores de uma proteo constante.

8. Assim como um instante no basta para contentar e saciar o


estmago, tambm no ser de um s golpe que vocs se
libertaro de todo sentimento de medo e terror. Mas podemos
observar que, quanto mais avanamos no caminho da penitncia,
mais a covardia nos abandona e nos deixa, e quanto mais nos
tornamos impenitentes, mais ela aumenta em ns e nos
atormenta.

9. Meus cabelos, disse Elifaz, se eriaram sobre minha


cabea e meus membros tremeram de horror[20], ao ver as
armadilhas do demnio. Ora, s vezes o corpo, s vezes a
alma que cria esses sentimento de pavor, e s vezes os dois
se juntam. Quando apenas o corpo que experimenta estes
sentimentos, podemos acreditar que temos uma cura certa, e
veremos que estamos prximos de nos vermos livres desta
funesta paixo.

10. Nem a solido dos lugares e as trevas da noite fornecem


armas aos nossos inimigos, tanto quanto a esterilidade da
alma. Por outro lado, Deus dispe as coisas assim para nos
instruir.

11. O servidor de Deus no teme seno a Deus; mas aquele que


jamais sentiu o temor ao Senhor tem medo de si prprio e de
sua prpria sombra.

12. O corpo se arrepia e treme na presena de um esprito;


mas os que vivem na prtica da humildade so inundados de
alegria e contentamento na presena de um anjo. por isso
que quando nos sentimos na presena dos anjos por causa
desses sentimentos interiores de alegria, devemos logo
recorrer prece; pois estamos autorizados a pensar e crer
que estes espritos celeste que nos so enviados para cuidar
de ns, vieram unir suas preces s nossas. Aquele que venceu
a pusilanimidade, evidentemente consagrou sua vida e sua alma
a Deus.
VIGSIMO PRIMEIRO DEGRAU

Da vanglria, to variada em suas formas

1. Alguns separam, em seus tratados sobre o assunto, a


vanglria do orgulho; isto porque, em lugar dos sete
pecados capitais, fontes originais de todos os outros, eles
contam oito[1]. Mas so Gregrio, com justia denominado O
Telogo, e alguns outros doutores, no marcaram seno sete;
eu partilho desta opinio. Com efeito, quem aquele que,
tendo com felicidade triunfado sobre a vanglria, permanece
ainda sob o jugo do orgulho? preciso confessar, no entanto,
que entre esses dois vcios existe a diferena que notamos
entre uma criana e um homem feito, entre o fermento e o po;
pois a vanglria pode ser vista como o princpio do orgulho,
e o orgulho como a temvel perfeio da vanglria. Ora, como
aqui se apresenta a ocasio para falar deste vcio, diremos
algumas coisas sobre esta paixo mpia que de tal modo infla
o corao de que possudo por ela. Trataremos em poucas
palavras do seu incio e dos seus ltimos graus; pois quem
quisesse esgotar a matria a este respeito se assemelharia a
um homem que pretendesse conhecer exatamente o peso do vento.

2. A vanglria, considerada em sua espcie e sua forma, uma


paixo da alma que busca mudar a natureza das coisas, a
corromper a virtude e afastar as censuras e as reprimendas;
e, considerada nas suas propriedades e em seus efeitos, um
vcio que no tende seno a dissipar os frutos de nossos
trabalhos, suores e penas, a nos lanar armadilhas para nos
arrebatar o tesouro de nossas boas obras, a nos fazer cair na
infidelidade e no orgulho, a nos fazer experimentar um triste
naufrgio no porto mesmo da salvao, a morder e consumir
nosso corao e, semelhantemente formiga, que no passa de
um msero inseto, a devastar a colheita preciosa de nossas
virtudes. A formiga espera que a colheita seja ajuntada, e a
vanglria, que as virtudes sejam adquiridas; a formiga ataca
os gros, e a vanglria as boas obras.

3. O demnio mal consegue conter sua alegria quando percebe


que os homens multiplicaram suas iniquidades; mas creiam-
me! o demnio da vanglria triunfa quando v um tesouro de
virtudes em algum: pois ele no ignora que, se um grande
nmero de feridas espirituais capaz de precipitar uma alma
nos horrores do desespero, um grande nmero de boas obras
igualmente capaz de atirar outra alma servido da
vanglria.

4. Prestem ateno, e descobriro que, mesmo no tmulo e sob


as cinzas, esta miservel dominadora ainda quer se ornar com
a magnificncia dos hbitos e das vestes, com o bom odor das
essncias e dos perfumes, com a pompa das honras, dos
louvores e de outras coisas do gnero.

5. Se o sol distribui seus raios benfazejos sobre todas as


criaturas, a vanglria derrama seu veneno sobre todas as boas
obras. Jejuo? Encho-me de vaidade; rompo meu jejum para
subtra-lo ao conhecimento dos irmos? Gabo-me interiormente
por minha rara prudncia. Apareo em pblico com trajes
apropriados e belos? Sou vo e orgulhoso; troco-os por
outros, vis e miserveis? Glorifico a mim mesmo. Tanto minhas
palavras como meu silncio me fazem igualmente cair nas
armadilhas do amor prprio. assim que podemos comparar a
vanglria a um p de corvo[2] que, de qualquer lado que
caia ao ser jogado, apresenta sempre uma ponta para perfurar
o p dos inimigos.

6. O vaidoso um crente idlatra; pois, de um lado, ele


parece adorar a Deus, mas, de outro, criatura que ele
dirige suas homenagens.

7. Todo amigo que persegue a vaidade, no busca seno


divulgar a si prprio vantajosamente perante o exterior. Se
observa o jejum, se se dedica aos exerccios da santa prece,
sempre para atrair os elogios dos homens; e por isso que
seus jejuns no merecem nenhuma recompensa.

8. O homem escravo da vaidade duplamente infeliz: pois ele


aflige seu corpo com austeridades rigorosas, e no extrai da
nenhum benefcio.

9. Ora, quem poderia no se rir daquele que busca a


vanglria? No o vemos durante a orao se atirar alegria,
de maneira a fazer crer que seu corao est inundado de
prazeres celestes? Ou em prantos, para dar a entender que ele
est vivamente tocado pelos sentimentos de uma grande dor e
por afetos de uma ardente compuno?
10. Por uma bondade todas especial, Deus tem o cuidado de nos
esconder a viso de nossas boas obras; mas um adulador que
nos engana, nos abre os olhos para que as vejamos; e
infelizmente elas desaparecem assim que as vemos.

11. Um adulador assim um ministro dos demnios, um mestre


do orgulho, um exterminador da compuno, um assassino de
virtudes, um guia no caminho do erro, conforme a palavra do
Profeta: Meu povo, diz o Senhor, aqueles que o chama de
feliz no fazem mais do que engan-lo[3].

12.[4]

13. No necessrio nada menos do que uma virtude perfeita,


uma grande generosidade e uma coragem heroica para ser capaz
de suportar e digerir com pacincia as injrias e os ultrajes
com que nos oprimem; mas preciso uma santidade
extraordinria para no se deixar prender pelas douras
envenenadas dos elogios. Eu vi pessoas que choravam seus
pecados, e que, vendo-se elogiadas por alguns irmos, se
enfureciam contra eles; mas assim eles caam de uma falta que
tentavam evitar, numa outra na qual no haviam pensado.

14. Ningum, disse o Esprito Santo, conhece o que existe


dentro do homem, se no for o esprito do homem[5]. Esta
sentena deveria cobrir de vergonha e calar todos os que so
imprudentes o bastante e ousados para nos elogiar na nossa
cara dizendo-nos como somos felizes.

15. Dentre seus prximos e seus amigos, algum levantou alguma


calnia contra voc, na sua presena ou na sua ausncia? No
deixe de desculp-lo com uma afeio sincera.

16. Certamente no de pouca coragem que se necessita para


rejeitar para longe de si o veneno encantador dos elogios que
s vezes os homens prodigalizam, mas preciso muito mais
para detestar e maldizer as que nos fazem os demnios; pois
estas so muito mais sutis.

17. Dificilmente eu acredito na humildade de quem se rebaixa


e despreza a si prprio na presena dos outros. Com efeito,
ser penoso ou difcil suportar por algum tempo uma situao
em que nos colocamos por nossa prpria vontade? Mas creio que
pratica realmente a virtude algum que, oprimido por ultrajes
e injrias, conserva pelo ofensor a mesma afeio que tinha
antes deste pssimo tratamento.

18. Observei um dia que o demnio da vanglria inspirara


certos pensamentos a um irmo, os quais foram revelados a
outro irmo, e que o mesmo demnio levou este ltimo a
descobrir o primeiro segredo de seu corao, a fim de se
glorificar e se mostrar como um homem extraordinrio, por um
profeta, numa palavra. Mas no apenas nosso corao que o
cruel demnio da vanglria ataca diretamente: ele se serve
dos prprios membros de nosso corpo para envenenar nossa
alma. por isso que ele lhe comunica movimentos leves e
fceis.

19. Expulsem para bem longe de vocs e no se deixem tentar


pelo desejo que o demnio lhes inspira, de se tornarem
bispos, higoumenos, doutores, ou qualquer outra coisa
semelhante. Lembrem-se de que difcil expulsar um co
faminto da casa de um aougueiro.

20. V o demnio um monge penetrar na alegre paz da alma por


causa de sua vitria sobre as paixes? Logo ele tenta acabar
com sua feliz solido para lan-lo ao mundo. Saia daqui,
ele lhe diz interiormente; o que faz voc? V trabalhar pela
salvao das almas que perecem.

21. Um o aspecto do Etope e outro o de uma esttua;


assim que a vanglria que tenta os cenobitas no se parece
nem um pouco com aquela que trabalha contra os eremitas.

22. Os primeiros, quando o demnio percebe que chegam


estrangeiros sua casa, os leva a correr a eles para receb-
los, atirando-se aos seus ps para os honrar e para humilhar
a si mesmos; mas interiormente eles esto cheios de orgulho,
e sua humildade meramente exterior; seus modos so
hipcritas, suas palavras falsas e enganadoras e sua modstia
cheia de artifcios e traies. Com efeito, se eles chamam
a estes estrangeiros de seus senhores, seus protetores e
salvadores depois de Deus, apenas porque observaram quem
eles so e o que carregam, e pensam que podem esperar deles
alguma coisa. Depois dessa primeira cerimnia, voc os ver
exortando os irmos que esto mesa ao lado dos estrangeiros
para que mantenham a mais estrita temperana, enquanto tratam
os inferiores com rigor impiedoso. Ento, embora em outros
tempos eles sejam frouxos e negligentes na orao, voc os
ver fervorosos e cheios de ardor durante este santo
exerccio; eles, que antes estavam sem voz para salmodiar,
agora se fazem ouvir com sons harmoniosos e bem articulados;
quem se deixava cair em letargia durante o ofcio, agora est
longe de se entregar ao sono. Se nestes dias um deles preside
o coro, cuidar para que seu canto seja melodioso e
agradvel; ele escolher os trechos principais da salmodia, e
quer ser chamado de pai ou superior pelos irmos, at que os
estrangeiros se retirem do mosteiro.

23. tambm a vanglria que incha de modo exagerado o


corao dos religiosos que se veem elevados acima dos outros,
e que arranha com a inveja e consome em clera o corao dos
que so inferiores e que esto obrigados a obedecer.

24. Muitas vezes a vanglria, em lugar das honrarias que se


deseja e se busca, no d seno objetos de ignomnia e
confuso, pois ela costuma tambm cobrir com uma tola
vergonha aqueles que levou clera e s discusses.

25. s vezes ela torna doces e pacientes diante dos demais


aqueles que normalmente so irascveis e irritadios.

26. Ela enche de alegria as pessoas que desfrutam dos dons e


dos favores da natureza, e se serve destes mesmos dons para
torn-las infelizes.

27. J me aconteceu de ver este cruel demnio da vaidade


vexar e atormentar extraordinariamente um infeliz que era seu
escravo, e eis como: um pobre religioso tinha uma disputa com
outros religiosos; veio um estranho, e tentou caridosamente
restabelecer a paz e a unio fraternal entre eles. Mas este
miservel religioso passou de um golpe das cadeias da ira
para as da vanglria, no podendo servir dois mestres ao
mesmo tempo, ou seja, a clera e a vaidade.

28. Assim, que escravo deste demnio cruel, e vive num


mosteiro, leva duas formas de vida; pois exteriormente ele
deve seguir os exerccios da comunidade, enquanto seu
esprito e seus pensamentos, seu corao e seus afetos
pertencem inteiramente aos costumes do sculo.

29. Dediquemo-nos unicamente a agradar a Deus, e provaremos


as douras puras e plenas da glria celeste, e no sentiremos
seno desgosto pelas falsas delcias da glria mundana; pois
eu no posso crer que seja capaz sequer de pressentir as
doces fruies que traz a glria do cu, algum que no tenha
pisoteado a glria do mundo.

30. Mas acontece s vezes que, tendo permitido que nos


despojassem por causa da vanglria de todas as riquezas
espirituais que havamos adquirido, por meio das boas obras,
caindo em ns e sinceramente retornados a Deus, sejamos
capazes, por nosso lado, de nos livrarmos e destroarmos por
completo a vanglria. Assim que vi muitos que, tendo
comeado os exerccios da vida religiosa apenas por um
movimento de vaidade, mas que, tendo renunciado a este mau
comeo, mudaram de inclinao e, por sua prpria vontade,
tornaram o fim de suas vidas to boas e santas quanto o
incio fora mau e repreensvel.

31. Jamais adquirir ou possuir os bens sobrenaturais e


celestes, quem s se glorifica nos bens naturais, tais como a
vivacidade, a agilidade, a ligeireza do esprito, uma
pronncia fcil e agradvel, um carter excelente e outras
boas qualidades que nasceram consigo, sem que a pessoa as
tenha buscado com suas obras, industriosamente; pois quem
infiel nas pequenas coisas, ser infiel tambm nas
grandes[6].

32. Mas o que nos deve causar espanto que encontramos


orgulhosos como esses que chegam a crer que mortificando sua
carne com jejuns e austeridades extraordinrias eles obtero
o resultado de encontrar a calma perfeita da alma, um tesouro
de bens celestes, a virtude de fazer milagres e o favor
especial de conhecer as coisas futuras. Mas, no sabem os
insensatos? Ignoram eles que tudo isto no se obtm nem com
trabalhos nem com suores, mas que tudo fruto e recompensa
de uma profunda humildade?

33. Aquele que conta com os esforos que fez e os trabalhos


que suportou, para obter dons e favores, se apoia sobre um
fundamento bem fraco e ruim. Ao contrrio, quem se considera
um devedor perptuo junto a Deus logo se ver, mesmo contra
sua expectativa, enriquecido pelos dons celestes mais raros e
preciosos.
34. Cuidem, portanto, de acrescentar no dar f s
insinuaes prfidas do demnio; pois ele um enganador
ardiloso, e um insigne prestidigitador. Ele no deixar de
persuadi-los de que vocs devem dar a conhecer aos outros as
excelentes qualidades e as boas disposies de seus coraes
para a virtude, e alarde-las a fim de edificar e buscar por
este meio a salvao de muitos. Nesta tentao to sutil, no
percam de vista as palavras do Evangelho: De que servir a
um homem ganhar o universo inteiro, se vier a perder sua
alma?[7]. Nada traz a piedade mais depressa e eficazmente do
que a humildade e a simplicidade de nossas aes; pois estas
prprias virtudes consistem numa lio slida e contundente,
suficiente para fazer os demais compreenderem o quo funesto
se deixar levar pelo orgulho; no sei se seria possvel
encontrar algo to vantajoso e salutar.

35. Um homem, dos mais esclarecidos e mais capazes de


penetrar na obscuridade dos mistrios, confiou-me aquilo que
ele prprio uma vez observou: Um dia, disse-me ele, quando
estava no meio dos meus irmos, dois demnios terrveis, um
da vanglria e outro do orgulho, vieram se colocar entre ns.
O primeiro me tocou com o dedo e me incitou a contar aos que
estavam ali certas vises extraordinrias que eu tinha
presenciado, e algumas coisas que eu fizera no deserto; mas
ei afastei vigorosamente este esprito maligno, dirigindo-lhe
estas palavras: Que aqueles que desejam me oprimir com o mal
sejam obrigados a recuar e fiquem cobertos de confuso[8]. O
outro, que estava sentado minha direita, me disse em
seguida ao ouvido: Coragem! Coragem! Que bela ao voc
acabou de fazer! Que demonstrao de prudncia e coragem, que
vitria voc obteve contra minha me, que ousou ataca-lo!.
Mas eu respondi a este com as palavras que se seguem quelas
que eu dissera ao primeiro: Aqueles que dizem: Coragem!
Coragem! Cubram-se da confuso que merecem![9]. Eu tomei a
liberdade de perguntar a este padre como era possvel que o
orgulho tivesse origem na vanglria. Eis o que ele me
respondeu: Os elogios que nos fazem inflam e elevam nossa
alma, e, quando ela se v assim elevada, o orgulho se apodera
dela e a faz, por assim dizer, subir at o cu, para em
seguida precipit-la no abismo.

36. Existe uma glria que vem de Deus, segundo estas


palavras: Eu prprio glorificarei, diz o Senhor, a todos os
que ,me glorificam[10]. Mas tambm existe outra espcie de
glria que no chega seno por meio dos artifcios do
demnio, conforme aprendemos por esta sentena do santo
Evangelho: Infelizes de vocs, quando os homens os louvarem
e disserem belas coisas a seu respeito[11]. E observem que
mesmo a glria que vem de Deus pode se transformar em
vanglria, por causa das ms disposies do corao. Vocs
conhecero que Deus quem os glorifica quando se convencerem
de que toda glorificao lhes ser prejudicial, quando
tomarem todas as precaues razoveis e prudentes para no se
entregar, e, em qualquer lugar em que estiverem, cuidarem
para ocultar suas boas obras e suas virtudes.

37. Vocs compreendero que a glria que lhes fazem provm do


demnio do orgulho quando fizerem todas as suas aes com a
inteno e o desejo de serem vistos e admirados pelos homens;
pois esta paixo enganadora e impura nos sugere aparecer
ornados das virtudes que estamos longe de praticar, de modo a
representarmos falsamente aquilo que Jesus Cristo falou: Que
sua luz brilhe diante dos homens, a fim de que eles conheam
as boas obras que fizeram[12].

38. Muitas vezes Deus permite que tombem na ignomnia aqueles


que buscam com ardente desejo as honrarias e louvores, a fim
de lhes ensinar a renunciar vanglria.

39. Se ns conseguirmos obter alguma vantagem sobre esta


paixo, ser por termos castigado nossa lngua, e porque
comeamos a gostar das humilhaes; e se banirmos do esprito
todos os pensamentos capazes de nos expor aos laos
envenenados deste vcio, nossa vitria ser bem mais
completa; enfim, se tivermos abnegao bastante para fazermos
na presena de todo mundo, e sem experimentar o menor
sentimento de vergonha ou pena, coisas capazes de nos
humilhar e nos cobrir de confuso aos olhos dos homens,
teremos chegado a triunfar perfeitamente sobre nosso inimigo.
Mas ser este triunfo possvel, considerando os inmeros e
difceis combates que teremos que sustentar?

40. Quando, por infelicidade, nos acontece de perseguirmos a


vanglria, ou de receb-la sem a termos buscado, ou que, para
merec-la, somos tentados a fazer certas exibies e certas
coisas, recordemos prontamente ao esprito o pensamento da
penitncia que teremos que fazer e, no secreto de nossa
prece, representemo-nos fortemente o temor e o medo que
sentiremos se estivermos diante do temvel tribunal do
Senhor: esta arma ser de grande valia para resistirmos
tentao. Nessas circunstncias, seja nossa prece sincera e
poderosa! Mas se estes meios no forem suficientes, devemos
recorrer ao pensamento da morte e de nosso fim ltimo. Enfim,
se todos estes meios sucessivamente empregados ainda forem
insuficientes, representemo-nos vivamente a ignomnia eterna
e imensa que ser o justo castigo da vanglria, e tracemos
sobre nosso corao em caracteres inapagveis estas palavras
de eterna Verdade: Aquele que se exaltar ser
humilhado[13]. Estejamos convencidos de que esta humilhao
que nos ameaa nos punir por nossa vaidade, no apenas na
vida futura, mas tambm na presente.

42. Se as pessoas comearem a nos elogiar, ou melhor, a nos


enganar com sua adulao, lembremo-nos logo da multitude de
nossos pecado, e esta lembrana salutar far com que nos
consideremos indignos de tudo o que est sendo dito e feito
para nos glorificar.

43. Acontece s vezes que, por uma bondade toda especial de


Deus, tendo resolvido conceder alguns favores a pessoas
vidas de vanglria, ele as previne e lhes concede antes
mesmo que peam. Ora, este terno e bom Pai agem assim para
que, no crendo haver recebido essas coisas em virtude de
suas oraes, elas no fiquem vaidosas e no se tornem
orgulhosas.

44. Aqueles que possuem maior simplicidade no esprito e no


corao esto bem menos expostos do que os outros a este
vcio pestilento; pois a vanglria o inimigo mortal da
nobre simplicidade, e a mestra da hipocrisia.

45. Como uma lagarta, a vanglria engorda, toma asas e se


eleva nos ares; quando chega enfim ao ltimo grau ela gera o
orgulho, que o autor e o consumador de todos os vcios.
Quem sabe se preservar dessas coisas e se livrar da vanglria
est bem prximo da salvao; mas est longe da glria e da
sociedade dos santos, aquele que ainda permanece escravo
desta maldita paixo. Assim, aquele que subiu mais este
degrau, renunciando a todo sentimento de vanglria, j no
cair no orgulho, vcio abominvel aos olhos do Senhor.
VIGSIMO SEGUNDO DEGRAU

Do tolo orgulho

1. O orgulho constitui uma renncia a Deus, a descoberta por


excelncia dos demnios, o desprezo pelos homens, a causa e o
princpio dos juzos temerrios e das condenaes injustas, o
filho impuro dos elogios, a marca de uma funesta esterilidade
das almas, o obstculos efuso dos dons celestes, o abre-
alas do endurecimento do corao, a causa fecunda das maiores
faltas, o forno ou a matria da epilepsia espiritual, a fonte
inesgotvel das cleras, a porta da dissimulao e da
hipocrisia, a maior trincheira dos demnios, o fiel guardio
e o conservador irredutvel de nossos pecados; a causa
funesta da desumanidade e da inflexibilidade do corao, a
extino de todo sentimento de piedade e de compaixo e o
autor das leis duras e severas. O orgulho um juiz
impiedoso, um inimigo mortal de Deus, e a raiz infame de
todas as blasfmias.

2. O ltimo degrau que atinge a vanglria d existncia ao


orgulho; o desprezo pelos outros, a insolente ostentao dos
trabalhos executados, o amor aos elogios e a averso s
reprimendas, so estes os alimentos que o faz crescer; enfim,
a renncia s graas e ao socorro de Deus, uma presunosa
confiana em suas prprias foras, estas inclinaes
diablicas formam a temvel perfeio do orgulho.

3. Queremos evitar cair no abismo cavado pelo demnio do


orgulho? Primeiramente, estejamos atentos para o fato de que
por meio das aes de graas que damos a Deus que ele
costuma deslizar e estabelecer sua morada em nossos coraes;
pois ele bastante ardiloso e sabido pra tentar nos fazer
renunciar a Deus de um s golpe. J vi muitas pessoas que,
enquanto rendem graas a Deus com a boca, erguem-se
interiormente contra ele com pensamentos de vaidade. Temos um
exemplo claro deste tipo de gente no fariseu do Evangelho.
Pois no era apenas com a boca, e no do fundo do seu
corao, que ele dizia a Deus: Senhor, eu lhe dou
graas[14].?

4. Ao vermos uma alma cometer qualquer falta que seja,


podemos dizer ousadamente que o orgulho morava em seu
corao, e que esta falta a triste consequncia deste
vcio.

5. Costumamos contar doze vcios que cobre nossa alma de


vergonha e de ignomnia. Ora, um grande homem me disse que o
orgulho, que o dcimo segundo, poderia sozinho ocupar o
lugar dos outros onze.

6. Um monge orgulhoso est sempre em oposio e em


contradio com os irmos; mas que pratica a humildade
permanece na disposio contrria.

7. Os ciprestes fazem crescer seus galhos para o alto, e


jamais os abaixam para a terra; assim so as pessoas
dominadas pelo orgulho: elas ignoram o que dobrar-se sob o
jugo da obedincia.

8. O homem soberbo pretende dominar absolutamente seus


semelhantes; e ainda que saiba que esta dominao o conduzir
perda certa, ele prefere morrer a no dominar.

9. Uma vez que est escrito que Deus resiste aos


soberbos[15], quem poder sentir piedade e compaixo por
esses miserveis? Se so abominveis aos olhos do Senhor
aqueles a quem o orgulho mancha e profana, quem ousaria
pretender poder purific-los?

10. As reprimendas e correes que lhes so feitas no passam


para eles de ocasies para novas quedas, pois as tentaes do
demnio os empurram sem cessar em novos pecados, e o abandono
de Deus acaba por endurecer seu corao. Os homens muitas
vezes conseguem a cura para os dois primeiros desses males
espirituais, ou seja, para a resistncia ante as correes e
as tentaes do demnio; mas no podemos dizer o mesmo do
endurecimento do corao, que humanamente incurvel.

11. Quem sente averso por reprimendas e no as suporta,


prova que o orgulho lhe arranhou o corao. Ao contrrio,
quem as busca por amor, mostra que est alegremente isento
desse vcio.

12. Se o orgulho sozinho foi capaz de derrubar Lcifer dos


mais altos cus para o abismo do inferno, no poder a
humildade, sozinha tambm, nos elevar at os esplendores
celestes?

13. O orgulho nos mergulha na mais terrvel misria; pois ele


nos despoja vergonhosamente do mrito e dos frutos de nossos
trabalhos e de nossa penitncia. Eles gritaram pedindo
ajuda; mas ningum se apresentou para salv-los[16]. E
tambm: Eles se dirigiram diretamente ao Senhor, mas o
Senhor no os atendeu[17]. Ora, esta infelicidade sem dvida
no lhes aconteceu seno porque no trabalharam com humildade
para afastar de si a causa funesta dos males cuja libertao
pediam.

14. Um ancio muito versado na cincia das coisas espirituais


exortava um dia, cheio de caridade, a um irmo dominado pelo
orgulho a combater corajosamente este vcio e a praticar a
santa humildade. Mas eis a resposta que o insensato lhe deu:
Voc se engana, meu pai; eu no sou aquilo que voc cr: eu
lhe asseguro, eu no sou orgulhoso. E o sbio ancio lhe
replicou: Meu filho, voc no poderia me dar uma prova mais
evidente de que voc o , do que afirmando que no o .

15. Assim sendo, de grande importncia para os que esto


sujeitos ao orgulho, que tenham um sbio e prudente diretor,
que escolham o modo de vida mais comum e mais desprezvel,
que leiam assiduamente e meditem sempre sobre os belos
exemplos dos santos, e que tenham sem cessar sob os olhos as
aes que estes fizeram, ainda que lhes parea estarem acima
das foras da natureza humana; estes meios consistem no
mnimo que os infelizes escravos do orgulho necessitam para
ter qualquer esperana de se verem livres desse vcio.

16. uma vergonha para todos nos glorificarmos de coisas que


no so nossas; e haver menor vergonha em nos orgulharmos
dos dons que recebemos de Deus? No esta uma ao que
denuncia o ltimo grau da loucura? Se voc quiser se
glorificar, faa-o; mas que seja das aes que voc fez antes
de nascer; porque tudo o que voc fez depois de nascer so
dons de Deus, tanto quanto sua prpria existncia. Se voc
quiser considerar como obra sua as virtudes que voc
praticou, que sejam aquelas anteriores unio de sua alma
com seu corpo; as que voc praticou depois so favores da
bondade do Senhor, tanto quanto a sua alma; e se voc
sustentou alguns combates e fez alguns esforos, sem que seu
corpo tenha minimamente participado destes esforos e destes
combates, ainda consinto que voc possa atribuir
exclusivamente a si prprio o mrito e a glria; mas no foi
seu corpo o instrumento por meio do qual voc praticou tal ou
tal virtude, ou fez tal ou tal obra? Ora, certamente seu
corpo no lhe pertence; ele de Deus, e foi ele que o deu a
voc. Seus trabalhos, seus esforos e os efeitos que eles
produzem, tudo em voc deve ser atribudo a Deus, como coisas
que a ele pertencem essencialmente.

17. No cessem de desconfiar de vocs mesmos e de suas


prprias foras at que o soberano Juiz tenha pronunciado a
sua sentena; pois vocs viram no Evangelho que mesmo aquele
que j estava sentado mesa da festa de bodas, foi expulso
da sala, e foi dada a ordem para que, atado de ps e mos,
ele fosse atirado s trevas exteriores[18].

18. No se elevem em seus coraes, vocs que no passam de


barro e corrupo; lembrem-se de que uma infinidade de
espritos celestes, criados em santidade, foram
impiedosamente expulsos do cu por causa do orgulho.

19. Uma vez que o demnio conseguiu se estabelecer no corao


de quem se submeteu sua vontade, ele comea a lhe aparecer
durante o sono, e mesmo quando acorda, seja sob o aspecto de
um anjo, seja na figura de um mrtir, e revela a ele algum
segredo misterioso, fingindo lhe conceder algumas graas
preciosas. assim que, enganando esses miserveis e lhes
roubando o resto da f e da razo, ele acaba por p-los a
perder.

20. No esqueamos jamais que ainda que morramos mil mortes


por amor a Cristo, estaramos ainda longe de quitar o que lhe
devemos, pois existe uma diferena infinita entre o sangue de
um Deus e aquele dos servidores deste Deus; a dignidade,
no a substncia desse sangue, que preciso considerar.

21. De resto, se nos dermos ao trabalho de examinar


atentamente, e se compararmos somente a vida que levamos com
a vida de nossos pais que viveram antes de ns, os quais nos
apresentaram, em suas pessoas, modelos to excelentes das
mais raras virtudes, e que brilharam, em seu sculo, como
astros radiosos, seremos forados a confessar que realmente
no demos sequer um passo para caminhar sobre suas pegadas;
que somos bem pouco fieis no engajamento nossa santa
vocao, e que continuamos a levar uma vida mundana e
profana. Um bem e verdadeiro monge aquele cujo esprito e
cujo corao no se levantam na presena de objetos
sensveis. Olhem-nos com o mesmo olhar que algum que, ao ver
seus inimigos, os provoca para o combate e, quando os v em
fuga, persegue-os como a animais selvagens. Assim quem est
continuamente arrebatado por Deus e sente o desejo de se unir
intimamente a ele; este v seus dias se prolongarem. Assim
aquele para quem a prtica da virtude se tornou to natural e
familiar, quanto so para os mundanos a fruio corruptora
dos prazeres do sentidos. Assim aquele que no cessa de ter
o olho de sua alma aberto para os movimentos de seu corao e
sobre toda a sua conduta. Assim , enfim, aquele que desceu
ao abismo da humildade, e que sufocou e exterminou todos os
maus pensamentos que o demnio lhe inspirou um dia.

22. O orgulho nos faz esquecer os pecados que cometemos,


enquanto que a lembrana dos pecados produz em ns a
humildade.

23. O orgulho precipita uma alma na extrema misria; pois nas


perdies dessa paixo insensata, ela imagina possuir grandes
riquezas, mas sua parte consiste apenas nas trevas; de modo
que esse vcio execrvel no apenas se ope ao progresso que
a alma faria nas virtudes, como ainda, caso ela se eleve,
pouco ou muito, nos degraus da perfeio, ele a derruba com
espantosa rapidez.

24. O orgulho se parece com um pssego cujo interior est


estragado e apodrecido, mas cuja pele bela e agradvel.

25. Um monge orgulhoso no necessita de outro demnio para


p-lo a perder; pois ele mesmo seu prprio demnio, seu
tentador e inimigo.

26. Assim como as trevas so diretamente contrrias luz,


tambm o orgulho se ope diretamente s virtudes.

27. No raro que um corao orgulhoso chegue a inventar


palavras blasfemas contra Deus, na mesma medida em que o
corao humilde iluminado pela luz do cu.

28. Um ladro detesta a luz; um orgulhoso despreza os mansos.


29. A maior parte dos orgulhosos, no sei como, por no
conhecerem a si prprios durante suas vidas, acreditam haver
obtido a paz perfeita da alma, e s chegam a perceber a
temvel indigncia em que se encontram na sua derradeira
hora.

30. Quem escravo do orgulho precisa tanto do socorro de


Deus para se libertar desta escravido, que nem todos os
homens juntos seriam capazes de romper suas cadeias e lhe
conceder a liberdade.

31. Tendo um dia descoberto que este sedutor penetrara no meu


corao por meio da vanglria, e que a se encontrava
aninhado, eu amarrei a ambos com as correntes da obedincia e
lhes bati com o aoite da humildade, para que confessassem
como e por quais vias haviam penetrado em minha alma. Muito
contra a sua vontade, eles o disseram nestes termos: Ns no
sabemos qual a causa que nos faz nascer, porque estamos
frente de todos os vcios; somos ns que produzimos todos
eles, e que estamos em primeiro lugar. O quebrantamento do
corao, que nasce da obedincia, nos contraria muito e se
ope fortemente aos nossos projetos, de modo que no
costumamos obedecer a ningum. por este motivo que um dia
nos revoltamos contra o prprio Deus: porque queramos reinar
sobre os cus. Para diz-lo em uma palavra, somos as mes de
todas as paixes e de todos os vcios que fazem a guerra
contra a humildade, e os inimigos irreconciliveis de tudo o
que pode favorecer esta virtude; se, como vocs sabem,
chegamos a ter tanto poder no cu, como sero vocs capazes
de se subtrair ao nosso domnio sobre a terra? Jamais
deixamos de tentar os homens, quer tenham sofrido com
pacincia e resignao as afrontas e os ultrajes, quer jamais
tenham transgredido as regras e os deveres da obedincia,
quer tenham reprimido os movimentos da clera e da
impacincia, quer tenham esquecido por completo as injrias
recebidas, quer, enfim, que, tenham cumprido todas as suas
obrigaes com uma ardente caridade, e prestado todos os
servios possveis aos seus irmos. Nossos filhos so a
clera, a inveja, a maledicncia, o azedume, a animosidade,
as disputas, as injrias, a hipocrisia, a averso, o amor
pela prpria conduta e a resistncia aos conselhos e s
ordens dos superiores. No existe seno uma nica coisa capaz
de paralisar nossas foras e tornar nossos esforos inteis,
e esta coisa s lhe diremos o que porque no temos
alternativa: consiste em se acusarem perante o Senhor,
reconhecendo-se continuamente culpados e criminosos a seus
olhos. Este recurso nos tornar to mseros e frgeis como um
teia de aranha. No percebem vocs, disse o orgulho, que a
vanglria como que um cavalo sobre o qual venho montado?
Mas a santa humildade e a confisso sincera dos pecados rir-
se-o do cavalo e do cavaleiro, e cantaro um maravilhoso
cntico de ao de graas, dizendo com Moiss: Cantemos um
hino em louvor ao Senhor; pois ele fez ver a magnificncia e
o brilho de sua glria, precipitando no mar o cavalo e aquele
que o montava[19]. O homem que logrou subir a este vigsimo
segundo degrau cheio de fora; mas quantos existem, capazes
de chegar at aqui?
VIGSIMO TERCEIRO DEGRAU

Dos inexplicveis pensamentos de blasfmia

1. Observamos no degrau precedente que a blasfmia a filha


criminosa de um pai criminoso, o execrvel orgulho; por esta
razo, julgamos ser cabvel falar dela aqui; pois a blasfmia
no um dos nossos menores inimigos, mas um dos mais
perigosos e mais funestos, pela dificuldade e o trabalho que
temos em exp-lo ao nosso mdico espiritual numa confisso
sincera e verdadeira. Semelhante ao verme que ri a madeira,
este vcio ri e destri a esperana, que acaba por
precipitar a alma no desespero.

2. Assim que ao mesmo tempo em que estamos celebrando os


divinos mistrios, no momento em que se realiza o mais santo
e temvel de todos os nossos mistrios sagrados, que o mostro
do orgulho, este demnio abominvel, chega para nos inspirar
pensamentos de blasfmia para insultar nosso Senhor e nos
fazer profanar o augusto sacrifcio; por causa das
circunstncias do momento sabemos que esses pensamentos
blasfemos no provm de nossa alma, mas do demnio, este
inimigo irreconcilivel de Deus, que mereceu ser expulso do
cu por ter pretendido, com suas blasfmias, profanar a
terrvel majestade do Senhor: pois se esses pensamentos de
blasfmia que nos fazem tremer de horror viessem de ns, como
poderamos adorar este dom celeste que recebemos? Poderamos
ns bendiz-lo e amaldio-lo ao mesmo tempo?

3. E no entanto o demnio, este insigne enganador, este cruel


assassino de almas, levou muitos loucura e extravagncia
por meio desta temvel tentao. Com efeito, e lembrem-se bem
disto, no h pensamento que possamos descobrir com mais dor
e repugnncia do que esses pensamentos blasfemos. assim que
um grande nmero de pessoas se deixa degradar no corao. E
no entanto no existe nada que possa dar ao demnio maior
domnio e fora a esses maus pensamentos para prejudicar
nossa alma, do que sofr-los e mant-los guardados em ns.

4. Mas que ningum pense que somos sempre culpados por ter
estes assustadores pensamentos! Deus enxerga o fundo dos
coraes. Ele sabe quando eles no so obra nossa, mas dos
nossos inimigos. Mas devemos observar que, assim como a
embriaguez a causa dos embriagados sofrerem quedas, tambm
o orgulho frequentemente a causa funesta desses pensamentos
mpios; e que, se camos de bbados, isto no um pecado em
si, mas algo que cometemos por nos termos embriagado; e o
mesmo pode ser dito do orgulho e dos pensamentos de
blasfmia, dos quais ele costuma ser a causa e o princpio.

5.[20]

6. Estes pensamentos vm nos atacar principalmente durante


nossas oraes; e logo se vo e desaparecem, depois destes
santos exerccios. Se no quisermos nos cansar, no percamos
tempo tentando combat-los; o melhor meio de se livrar deles
ignorando-os.

7. Este inimigo no se contenta com apenas produzir em ns


pensamentos de blasfmia contra Deus e as coisas santas. Ele
nos inspira ainda os pensamentos mais vergonhosos e mais
obscenos, a fim de abandonarmos a orao e nos entregarmos ao
desespero. assim que ele conseguiu desviar muitas pessoas
da participao na divina Eucaristia, em diversas ocasies.

8. Este cruel tirano conseguir fazer sucumbir a muitos,


fazendo-os praticar excessivos jejuns e no lhes dando trgua
nem repouso. E o demnio da blasfmia se conduz assim no
apenas em relao s pessoas do mundo, mas tambm para com os
religiosos e os solitrios. Ele os faz acreditar que no
existe mais esperana de salvao para eles, e que so mais
infelizes do que os infiis e os pagos.

9. Quem se sente perturbado e fatigado pelo demnio da


blasfmia e que deseja se livrar dele, comece por se
convencer de que no de seu corao que nascem e se
levantam esses pensamentos tenebrosos, mas do prprio demnio
que, ao mostrar um dia a Jesus Cristo todos os reinos do
mundo, teve a insolncia de dizer ao divino Salvador: Eu lhe
darei todas essas coisas, se voc, prosternando-se, me
adorar[21]. Assim, devemos desprezar seus ataques, pisote-
lo, no lhe dar nenhuma ateno e nos contentar com a
resposta que lhe nosso Senhor: Retire-se, Satans! Porque
est escrito: Voc adorar apenas ao Senhor seu Deus, e s a
ele servir[22]. E complete, dizendo: E quanto s palavras
e aos esforos que voc faz para me desequilibrar, tudo
recair sobre voc mesmo; sim, infame, sobre sua cabea que
cairo, no tempo presente e por toda a eternidade, as
blasfmias que voc pretende me inspirar.

10. Quem quiser empregar outras palavras se parecer a algum


que pretende capturar um raio com suas mos. Com efeito, como
agarrar, combater e expulsar um inimigo que atravessa nosso
corao num piscar de olhos, que corre como o vento e que
desaparece mal acaba de nos falar. Os outros inimigos
permanecem firmes diante de ns, resistem aos nossos
esforos, defendem-se longamente e nos deixam reconhecer o
campo de batalha; mas este tem outra conduta e segue outro
perfil: ele se retira assim que se apresenta e desaparece
quase no mesmo momento em que nos ataca.

11. Eles tm inclusive o costume de fazer esta guerra aos


coraes mais cheios de simplicidade e os mais ornados da
virtude da inocncia, porque sabem que estes so, mais do que
os outros, capazes de se perturbar e se desconcertar com
esses pensamentos detestveis. Eu devo dizer a este tipo de
pessoas que os pensamentos de blasfmia no lhes ocorrem por
causa do orgulho que poderia reinar em seus coraes, mas por
causa do cime e da inveja dos demnios, que tentam
prejudic-las.

12. Para ns, a quem o esprito do orgulho leva a julgar e a


condenar nossos irmos, deixemos de concluir de acordo com
este esprito, e logo no precisaremos mais temer as
tentaes e os pensamentos de blasfmia; pois, no duvidemos,
sua verdadeira causa se encontra nos julgamentos temerrios
que o orgulho nos leva a fazer sobre os demais.

13. Assim como uma pessoa fechada em sua casa ouve as


palavras daqueles que passam, mas no as pronuncia, tambm
uma alma fechada em si mesma escuta as blasfmias do demnio,
mas no as articula; ao contrrio, fica espantada.

14. Para se libertar disso e no mais ser perturbada, a alma


no tem mais do que as desprezar; pois, como dissemos, quem
buscar outra conduta tentar combater com fora este demnio
e acabar por sucumbir e se tornar seu escravo. Pretender
venc-lo e triunfar sobre ele por meio da razo e de
raciocnios equivale a querer deter o vento.

15. Um monge virtuoso, tendo sido atormentado por este


demnio pelo espao de vinte e cinco anos, no deixara jamais
de mortificar seu corpo com viglias longas e contnuas e com
jejuns muito rigorosos; mas, vendo que todas essas
austeridades no tinham efeito contra essa cruel tentao,
ele escreveu num papel todas as perturbaes que lhe eram
causadas, e o confiou a um santo religioso que ele conhecia.
Chegando at ele, prosternou-se com o rosto no cho, sem
ousar erguer os olhos. Depois que este santo religioso leu o
que ele havia escrito, sorriu docemente, e levantando seu
caro irmo, lhe disse: Filho meu, coloque sua mo no meu
pescoo, coisa que o outro fez prontamente. Depois ele
acrescentou: Meu irmo, tomo sobre mim seu pecado, tanto no
passado como no futuro; a nica coisa que eu exijo de voc,
de no mais pensar nem se penalizar por isso. Ora, foi este
mesmo bom religioso que me contou o que lhe acontecera, e ele
me assegurou que mal havia sado da cela do ancio e toda a
tentao desparecera, e que todos os pensamentos de blasfmia
que por tanto tempo e to cruelmente o fatigaram haviam
desaparecido como fumaa. Assim eu o repito, para a instruo
dos que se encontram no mesmo estado: e foi ele prprio, a
quem sucedeu este fato, que me contou o ocorrido, com grandes
sentimentos de reconhecimento a Deus. Quem tiver conseguido
triunfar sobre esta tentao, conseguiu tambm vencer o
orgulho e expuls-lo para bem longe do seu corao.
VIGSIMO QUARTO DEGRAU

Da mansido, da simplicidade e da inocncia, virtudes que no


provm da natureza,
mas que so adquiridas com obras; e da maldade, que a
inimiga irreconcilivel das virtudes

1. A aurora precede o sol; o mesmo se pode dizer da mansido


em relao humildade. Escutemos a luz que nos ensina com as
palavras: Aprendam comigo que sou manso e humilde de
corao[23]. Convm assim, antes de falarmos de humildade,
que um sol verdadeiro, dizermos alguma coisa sobre a
mansido, que como a aurora desta virtude, a fim de que,
esclarecidos por esta luz que possui menos brilho, possamos
pouco a pouco nos acostumar a fixar os olhos sobre o belo sol
da humildade; pois uma pessoa no capaz de fixar este sol,
se no puder primeiro sustentar os raios da aurora. Tal a
ordem que devemos estabelecer entre essas duas virtudes.

2. A mansido consiste numa constante imobilidade de nossa


alma, que faz com que no sejamos agitados nem por honrarias,
nem perturbados com humilhaes.

3. Ela consiste em orar sinceramente e sem perturbao, por


todos os que buscam faz-lo por seus procedimentos injustos.

4. Ela semelhante a um rochedo majestoso no meio do mar


agitado; as ondas espumantes se quebram e expiram contra seus
flancos inquebrantveis.

5. Ela a guardi da pacincia, a porta do amor, ou antes


sua me, o princpio da prudncia e do discernimento, segundo
as palavras do Profeta: Sobre quem reterei meu olhar, diz o
Senhor, seno sobre aqueles que so doces e amveis, sobre os
que possuem um corao contrito e aflito?[24].

6. A mansido forma e aperfeioa a obedincia, conduz e


dirige as comunidades religiosas, detm e corrige a clera,
expulsa e faz morrer a impacincia, nos faz caminhar sob os
estandartes de Cristo, nos concede a semelhana com os
habitantes dos cus, acorrenta os demnios, faz recuar os
traos de averso e animosidade.
7. O Senhor estabelece sua morada numa alma que pratica a
mansido, enquanto que o demnio fixa a sua naquela que
agitada.

8. Os mansos possuiro a terra[25], vale dizer, eles sero


os mestres e dominadores, enquanto que as pessoas colricas e
furiosas sero exterminadas.

9. Uma alma cheia de doura o leito nupcial da


simplicidade; mas um esprito de clera e violento engendra
toda sorte de maldades.

10. Uma alma amiga da mansido compreende e saboreia as


palavras de sabedoria; pois o Senhor, que cheio de
mansido, dirigir os coraes doces e benevolentes na
cincia do julgamento, e lhes ensinar seus caminhos[26].
Ora, estes so os caminhos da prudncia e da discrio.

11. Uma alma reta companheira da humildade; mas uma alma


falsa e enganadora a triste escrava do orgulho.

12. Uma alma que pratica a mansido, possui a verdadeira


cincia; mas um corao impaciente desfalece nas trevas da
ignorncia.

13. Dois homens se encontraram um dia: um era escravo da


clera, e o outro, da mentira. Ora, estes dois no puderam
estabelecer uma conversa conjunta: pois no colrico s havia
loucura e demncia, e s malcia no dissimulado.

14. A simplicidade um costume feliz que torna a alma


incapaz de duplicidade e de todo pensamento mau e pernicioso.
A malcia a cincia, ou melhor, a parte dos demnios, que
torna a pessoa inimiga de toda verdade, a ponto de que ela
poderia no apenas mascarar a si mesma, como ocult-la dos
demais.

15. A inocncia o estado de uma alma tranquila e distante


de todo pensamento artificioso e malfeitor.

16. A retido uma inteno sincera e isenta de inutilidades


e de curiosidade; uma inclinao franca e sem mistura;
uma linguagem natural, ingnua e inimiga de toda fraude e de
toda simulao.
17. No pode ser um enganador, o homem que sincera,
francamente e sem desvios vive, age e fala com todo mundo.

18. A malcia uma ausncia de verdade e de retido; uma


inclinao perversidade, aos pensamentos enganadores, s
palavras mentirosas, s aes dissimuladas, aos juramentos
falsos, aos equvocos e s ambiguidades.

19. um corao mentiroso escondido e cheio de cavidades


profundas e impenetrveis; ele est dedicado ao hbito de
mentir, de se elevar acima dos outros, de fazer a guerra
contra a humildade, de imitar a penitncia, de expulsar o
pranto de arrependimento, de ter horror a sentir-se confuso
pelas faltas cometidas, de defender obstinadamente seu
sentimento, de produzir a runa e a perda das almas, de
impedir que elas saiam do abismo da infelicidade por meio da
penitncia, de ironizar aqueles que, por amor a Deus, sofrem
com pacincia e mansido as injrias e os ultrajes.

20. Um corao desonesto no possui seno uma modstia


afetada e extravagante, uma piedade falsa e enganadora;
resumindo, a vida do corao desonesto a vida de um
demnio; pois o demnio e o homem desonesto no so apenas
unidos pela conformidade de suas vontades, eles o so ainda
pela identidade de um mesmo nome.

21. Com efeito, no verdade o que nos ensinou Cristo na


admirvel orao que nos legou? No nos ordena ele pedirmos a
Deus que nos livre dos desonestos, ao pedir que nos livre do
mal?

22. Fujamos com horror do precipcio da hipocrisia e do


abismo da dissimulao e da duplicidade, e prestemos especial
ateno a estas palavras de Davi: Os maus sero
exterminados, eles secaro como a relva[27]. Pois eles se
tornaro pasto dos demnios.

23. Mas Deus, que, nas divinas Escrituras, chamado de amor,


tambm denominado de equidade. assim que diz o sbio
alma pura, no Cntico dos Cnticos: O Deus de equidade a
amou[28]; e Davi, pai de Salomo, havia dito: O Senhor
doce e direito[29]; e para nos fazer compreender que sero
salvos os que trazem o mesmo nome por causa da mansido, est
escrito: Eu esperei o socorro do Senhor que salva os que
possuem o corao reto[30]; e tambm: Seus olhos esto
atentos para olhar o pobre cujo corao reto, e seu rosto
se volta para aquele em quem reina a equidade[31].

24. A primeira virtude, ou melhor, a primeira qualidade que


observamos numa criana, a simplicidade. Enquanto Ado se
manteve na prtica desta preciosa virtude, ele no viu sua
alma despojada dos dons que Deus lhe concedera, nem
enrubesceu por causa da nudez de seu corpo. Boa e vantajosa,
sem dvida, a simplicidade que algumas pessoas receberam da
natureza; mas ela ainda inferior quela que adquirimos com
nossos cuidados e com um trabalho obstinado, trinfando sobre
nossa prpria malcia: pois, se a primeira nos preserva de
toda dissimulao, de toda fraude e de toda afetao, a outra
nos traz uma profunda humildade, uma doura perfeita e todas
as virtudes. por isso mesmo que a simplicidade que nos vem
da natureza no receber seno uma pequena recompensa, e
aquela que nos vem da graa e de nossos esforos receber um
prmio que no se pode conceber nem expressar.

25. Assim, quem quer que sejamos, se quisermos nos unir


fortemente a nosso Senhor, devemos nos apresentar diante dele
como de um mestre excelente de quem iremos receber as
instrues de que necessitamos. Aproximemo-nos dele com
simplicidade e candura, sem artifcio nem dissimulao, sem
curiosidade nem malcia; pois, como sua natureza toda
santa, toda pura e perfeitamente simples, ele pede que as
almas que dele se aproximam que sejam puras, santas e cheias
de simplicidade. Vocs alguma vez j viram a simplicidade
separada da humildade?

26. O homem em cujo corao reina a malcia, se ocupa


indevidamente em fazer conjecturas sobre os outros, e em
pretender poder descobrir em suas palavras os pensamentos de
seu esprito, e na posio e movimentos de seu corpo os
segredos do seu corao.

27. Vi muitas pessoas cheias de inocncia e de simplicidade


que, pelas relaes funestas com pessoas maliciosas, se
tornaram semelhantes a estas; e sempre me espantei que estas
pudessem por a perder em to pouco tempo pessoas to
virtuosas, esta bela qualidade que haviam recebido da
natureza, e que era uma prerrogativa de sua inocncia, vale
dizer, sua simplicidade feliz.

28. to fcil s pessoas de bem se perverter e se perder,


quanto difcil aos maus se converter e se corrigir;
entretanto, a fuga real do mundo, uma retirada salutar, o
amor e a prtica do silncio e da obedincia, puderam muitas
vezes, mesmo contra toda esperana, curar, e curar
perfeitamente, as almas de certas enfermidades que pareciam
incurveis.

29. Se verdade que a cincia infla o corao da maior parte


dos homens, igualmente verdadeiro que uma alegre ignorncia
e a inexperincia servem para torn-los doces, tmidos e
humildes. So Paulo, denominado o Simples, pode nos servir de
exemplo e nos dar uma ideia exata e um modelo perfeito da
santa e bem-aventurada simplicidade; pois algum j viu, ou
ouviu falar que se tenha visto, ou mesmo que seja possvel
ver um homem se tornar em to pouco tempo perfeito na
simplicidade do corao?

30. Podemos comparar um monge que vive na simplicidade a um


animal de carga que, possuindo a razo e partilhando da
obedincia, mas que, por obedincia, se confiasse ao seu
condutor. Ora, assim como este animal no resiste ao seu
mestre a partir do momento em que se liga a ele, tambm o
religioso que possui um corao reto no resiste s ordens de
seu superior: ele o segue por onde este quiser conduzi-lo;
ela sequer capaz de raciocinar nem repugnar-se: ele obedece
at a morte.

31. Se dificilmente os ricos entraro no Reino dos


cus[32], podemos dizer o mesmo dos homens sbios dessa
sabedoria mundana, que no outra coisa que uma verdadeira
loucura; tambm eles dificilmente entraro no sagrado palcio
da simplicidade.

32. Muitas vezes uma grande queda corrigiu homens maus, os


fez observar as regras da modstia, de sorte que, mesmo
contra sua vontade, ela lhes trouxe a salvao, fazendo-os
adquirir a inocncia e a simplicidade.

33. Portanto, combatam corajosamente, e tomem todos os


cuidados para se despojarem da falsa sabedoria do sculo;
assim se conduzindo, vocs encontraro em nosso Senhor Jesus
Cristo a salvao e a retido do corao. Quem tiver a fora
para subir este degrau, que se encha de coragem; com efeito,
tendo imitado a Cristo, ele obteve a salvao.
VIGSIMO QUINTO DEGRAU

Da Humildade, que traz a morte a todas as paixes

1. Quem pretender explicar os sentimentos que d a caridade,


e os efeitos que ela produz, segundo toda a intensidade e o
ardor que lhe so prprios a saber, os da humildade,
segundo seus profundos rebaixamentos; os da castidade,
segundo sua excelncia celeste; os da iluminao divina,
segundo todo o brilho de seus raios e de sua luz; os do temor
a Deus, segundo os movimento que ele traz; os de uma firme
confiana em Deus, segundo a ternura e a imobilidade de seus
olhares e fazer compreender por meio de palavras claras e
precisas, a quem jamais teve nem o sentimento nem o gosto das
douras inexprimveis desses dons e dessas virtudes, no que
consistem uns e outros: esta pessoa se parecer sem dvida a
algum que, apenas por meio de palavras e de comparaes,
tentasse fazer conceber a doura do mel a quem jamais tenha
provado dele. No evidente que todo esse trabalho e todas
essas palavras tero sido em vo? No diremos outra coisa do
segundo, mas acrescentaremos que o primeiro, ou ignora o que
deve dizer e um insensato, ou sabe do que est falando, e
ento um temerrio e um orgulhoso.

2. por isso que aqui no quero mais do que mostrar este


tesouro oculto e encerrado em vasos frgeis, ou antes na
fragilidade dos homens, a fim de reconhecer as demais
virtudes que ele contm, pois no tenho a temerria pretenso
de faz-los compreender do que se trata; nenhuma palavra
seria capaz de lhes dar uma verdadeira ideia do que , nem
sua excelncia e suas qualidades. J seu ttulo e sua
inscrio so incompreensveis ao esprito humano, pois so
inteiramente celestes; e aqueles que tentaram compreend-los
se meteram em penas e pesquisas infinitas e vs. Pois santa
humildade so as duas palavras que resumem a expresso deste
tesouro espantoso.

3. Que todos os que so conduzidos pelo Esprito de Deus


venham conosco e entre na prtica desta virtude, como um
conselho espiritual e cheio de sabedoria; que tragam no
apenas as mos do corpo, mas tambm as do intelecto, as
tbuas dos conhecimentos que o prprio Deus gravou em seus
coraes; e, assim reunidos, examinaremos juntos qual o
sentido e a virtude desta inscrio to venervel. Um dir,
sem dvida, que a humildade o esquecimento constante e
perfeito das boas obras; outro, que ela consiste em se ver
como o ltimo dos homens e o maior dos pecadores; outro
afirmar que ela o conhecimento exato que temos de nossa
fraqueza e de nossa fragilidade; outro ainda, que ela nos
conduz a que nos antecipemos aos nossos irmos, a fim de nos
reconciliarmos perfeitamente com eles e resistirmos
vitoriosamente a uma clera nascente, por meio da pacincia e
da submisso; este sustentar que a humildade uma confisso
sincera e um reconhecimento pblico que fazemos das graas
que recebemos de Deus, e das misericrdias infinitas que ele
demonstra a nosso respeito; aquele, que ela consiste no
sentimento de um corao arrependido e contrito e na recusa
inteira da prpria vontade. Quanto a mim, sou forado a
confessar que depois de ter ouvido todas essas definies da
humildade e de ter meditado atentamente a respeito delas,
ainda me impossvel entender toda a extenso desta virtude.
Assim, tudo o que posso fazer aqui , sendo o ltimo e o
menor de todos, juntar como um cachorrinho as migalhas da
mesa, vale dizer, da boca desses homens sbios e
esclarecidos, e dizer que a humildade uma graa preciosa
que Deus concede a uma alma, e que no pode ser expressa em
palavras, e que s conhecida daqueles que dela tiveram uma
feliz experincia; que se trata de um tesouro
incompreensvel, que extrai seu nome do prprio Deus; que ela
um dom divino, pois foi dito: Aprendam, no de um anjo,
no dos homens, no de um livro, mas de mim, ou seja, da
presena, das luzes e da operao de meu Esprito em vocs,
eu que sou manso e humilde de corao, de esprito e de
vontade; e vocs encontraro o repouso de suas almas[33],
pela cessao e pelo fim de todos os seus combates.

4. A humildade uma vinha toda santa e toda espiritual; mas


ela se apresenta sob formas diferentes, segundo as
circunstncias e as estaes. Assim que ela no aparece no
inverno, vale dizer, no tempo em que as paixes agitam e
atormentam o corao, da mesma forma como na primavera,
quando a alma est mergulhada no perfume das virtudes; e no
na primavera como no vero, quando as virtudes alcanam uma
bem sucedida e perfeita maturidade. Estes diferentes pontos
de vista que podemos considerar na humildade tendem todos a
nos fazer ver e compreender que, nesta admirvel virtude,
tudo prprio para trazer nossa alma as marcas e as provas
dos frutos preciosos e salutares que ela produz em ns. Com
efeito, quando as uvas desta vinha espiritual comeam a
florescer em nosso corao, ns mesmos comeamos, no sem
alguma pena, a detestar os elogios e a glria que nos vem das
criaturas, a rejeitar e expulsar para longe todo movimento de
clera e de agressividade; mas quando esta rainha das
virtudes lana fortes e profundas razes em nossa alma e a
cresce e se fortifica, fazendo a progressos estimveis, no
apenas j no sentimos seno desdm por nossas prprias boas
obras, como ainda elas nos parecem to vis e desprezveis que
tomamos horror a elas; estamos persuadidos de que pela
dissipao dos dons de Deus aumentamos em ns a cada dia o
peso e o nmero de nossas prevaricaes, e que esta
superabundncia de graas, da qual nos sentimos indignos,
talvez s nos sirva, pelo mau uso que dela fazemos, para nos
condenar a castigos ainda mais severos. por isso que nossa
alma permanece invulnervel sob os golpes dos inimigos, e
que, retirada na trincheira inexpugnvel da fraqueza, ela
permanece tranquila e em paz, e escuta, sem se perturbar, os
gritos furiosos e ameaadores dos ladres, v seus esforos e
suas tentaes como jogos impotentes, e sabe que eles no a
podem atingir nem destruir; pois esse humilde sentimento de
ns mesmos um cofre-forte onde esto encerradas todas as
virtudes, e que defendido por cidadelas inexpugnveis.

5. Essas so as coisas que eu ouso dizer sobre as primeiras


flores da humildade e dos primeiros frutos que ela produz
prontamente nomeio de suas flores perenes. Mas, quanto
abundncia e qualidade dos seus frutos, no possvel
expressar em palavras, principalmente sua qualidade. Tentarei
apenas, e na medida em que puder, dizer-lhes alguma coisa das
propriedades admirveis da humildade.

6. A penitncia exata e verdadeira, as lgrimas derramadas


que lavam a conscincia de toda mancha e a humildade daqueles
que comeam a servir a Deus, so trs coisas diferentes entre
si, como a farinha, a massa e o po. Com efeito, a penitncia
mi e reduz a p uma alma contrita e arrependida; a gua
salutar das lgrimas da unidade massa e, se podemos dizer
assim, a modela com Deus; ento, abrasada pelos ardores da
caridade, ela forma o po slido da humildade, e atira para
longe de si tudo o que vo e todo inchao do orgulho: o que
faz esta cadeia, composta por trs anis, dar alma uma
fora sobrenatural e invencvel, ou , para falarmos mais
claramente, esta ris celeste em trs cores tem suas prprias
maneiras de agir e proceder, e propriedades que lhes so
essenciais e que lhe pertencem propriamente; de sorte que
tudo o que dissermos de uma destas cores ou de um desses
anis valer para todos. por isso que aquilo que at agora
eu apenas indiquei, vou tentar explicar a seguir.

7. A primeira e excelente qualidade desta admirvel trindade


consiste em suportar com um corao tranquilo, com alegria e
entusiasmo os desprezos e as humilhaes, recebendo-as e
amando-as como um remdio adequado para curar nossa alma de
todas as suas enfermidades espirituais, e como um meio eficaz
para apagar e fazer desaparecer por completo todos os nossos
pecados. A segunda propriedade da humildade consiste em
triunfar perfeitamente sobre a clera, e em no se servir
seno da moderao e da modstia para derrubar e sufocar essa
paixo. A terceira propriedade, que a mais perfeita,
consiste em crer interiormente e em estar convencido e
persuadido de que nada temos de bom, e em desejar com ardor
receber as instrues e as reprimendas capazes de nos fazer
adquirir algum bem.

8. Cristo, como sabemos, a perfeio da lei e dos profetas


para a justificao daqueles que nele creem, enquanto que a
vanglria e o orgulho so a perfeio de todas as paixes
impuras para a perda dos que negligenciam combat-las
corrigindo-se; assim como o cervo inimigo mortal das
serpentes, a humildade inimiga mortal das paixes e dos
vcios. ela que preserva ou liberta de seu veneno funesto
todos os que a tomam como companheira fiel e constante. Com
efeito, quem jamais viu em sua companhia a hipocrisia e a
mentira? Poderia a serpente infernal habitar um corao no
qual reina a humildade? No justamente esta virtude
admirvel que a arranca de nosso corao, a mata e destri?
Os que a possuem no demonstram nenhum sinal de averso, de
contradio, de arrogncia nem de tergiversao; e, se os
vemos se exaltar eventualmente, ser apenas porque perceberam
que a f est em perigo.

9. Assim que vemos aquele que se uniu humildade pelos


laos de um casamento espiritual, manso e pacfico, levado
compuno e misericrdia, sobretudo calmo e tranquilo,
alegre e contente, pleno de condescendncia e benevolncia
para com os demais, cheio de fervor e de vigilncia; numa
palavra, ele vitorioso sobre todas as suas paixes,
conforme as palavras de Davi: O Senhor lembrou-se de ns em
nossa humilhao e nos libertou das mos dos inimigos[34],
ou seja, das nossas paixes e das sujeiras feitas nossa
alma.

10. Um monge humilde est longe de pretender penetrar como um


curioso nos segredos de Deus; mas aquele cujo corao est
inflado de orgulho deseja at sondar a profundeza de seus
julgamentos incompreensveis.

11. Um dia em que os demnios observavam de modo especial a


um dos mais sbios religiosos, e que lhe ofereciam
interiormente grandes louvores pela bondade de sua alma, ele
lhes respondeu com uma sabedoria admirvel: Se vocs
cessarem de me louvar a respeito do feliz estado de minha
alma, talvez eu possa crer que sou qualquer coisa de grande e
de bom; mas, fazendo-o do modo como fazem, os elogios que me
dirigem no servem seno para me fazer conhecer e sentir a
sujeira e a corrupo de meu corao; pois eu sei que
imundo aos olhos do Senhor, o corao que se infla e se eleva
por sentimentos de vaidade. Assim, se vocs desejam que eu me
torne orgulhoso, calem-se e se retirem; e se quiserem que eu
me encha de humildade, continuem a me elogiar. Batidos e
consternados com esta apstrofe contraditria, os demnios
rapidamente fugiram e desapareceram.

12. Que suas almas, semelhantes a uma cisterna, no seja ora


cheia das guas vivificantes da santa humildade, ora
dessecada pelos ardores da vanglria e do orgulho, mas que
ela seja uma fonte inesgotvel da qual a humildade produza a
calma das paixes e faa correr um riacho de pobreza
voluntria.

13. Saibam ento, meus amigos, que nos santos vales da


humildade que colhemos em abundncia o trigo e os outros
frutos espirituais. Sim, as almas humildes so como vales
que, localizados no meio das montanhas dos trabalhos, das
penas e das virtudes, permanecem sempre baixos pelos
sentimentos que neles so alimentados pela viso de sua
baixeza e sua insignificncia.

14. Observem que o salmista no diz: eu jejuei, eu passei as


noites em viglias, eu repousei sobre a terra nua; mas ele
diz: Eu me humilhei, e o Senhor me libertou e me
salvou[35].

15. Se a penitncia e as lgrimas que ela nos faz derramar


tm o poder de nos elevar at o cu, a humildade que nos
abre as portas desta morada feliz. por isso que a
penitncia, as lgrimas e a humildade formam uma respeitvel
trindade na unidade da humildade que contm a todas elas, e
uma admirvel unidade nesta espantosa trindade.

16. Assim como o sol ilumina todas as criaturas visveis,


tambm a humildade afirma e aperfeioa tudo o que a piedade
nos inspira, e do mesmo modo como tudo est mergulhado em
trevas na ausncia do sol, tambm sem a humildade nossas boas
obras fenecem e morrem.

17. No existe lugar sobre a terra que jamais tenha visto o


sol, e muitas vezes um nico bom pensamento basta para
produzir a humildade num corao. Assim como s haver um dia
em toda a durao dos sculos no qual todo o gnero humano
ser entregue felicidade, tambm apenas a humildade ser
sempre uma virtude inimitvel pelos demnios.

18. Elevar-se, no se elevar e se humilhar so trs coisas


bem diferentes. Com efeito, aquele que se eleva, imagina
julgar a tudo; quem no se eleva, no julga ningum e condena
a si prprio; e quem se humilha, ainda que seja inocente,
considera a si mesmo culpado de tudo.

19. Existe ainda um diferena entre ser humilde, trabalhar


para se tornar humilde e louvar aqueles que se dedicam
prtica dessa virtude. A primeira dessas trs coisas diz
respeito aos que atingiram a perfeio; a segunda, aos que se
submeteram sinceramente ao jugo da obedincia; e a terceira
caracterstica de todos os cristos.

20. Quando praticamos a humildade de todo corao, temos que


ter o cuidado de no perd-la por causa da indiscrio das
palavras; pois a humildade no tem lngua nem porta.

21. Quando um cavalo est sozinho num campo, ele parece


correr bem depressa; mas quando ele corre com outros cavalos
ele no parece o mesmo.
22. Pensem numa alma da seguinte maneira. Quando ela comea a
no se gabar dos dons e no se glorificar dos ornamentos que
recebeu da natureza, quando ela cessa de se comprazer com
essas coisas, isso um sintoma feliz de cura e de humildade;
mas se ela ama respirar o vapor infecto do orgulho, ento ela
no ser de sentir os doces e suaves perfumes da humildade.

23. Aquele que me ama, diz a santa humildade, no deve fazer


reprimendas a ningum, nem julgar a ningum, nem dominar
pessoa alguma; e jamais ser ftil. Quem se une intimamente a
mim no ter outras leis seno aquelas que eu lhe ordenar.

24. Havia um religioso que fazia todos os esforos para


adquirir a humildade; um dia os demnios lhe inspiraram um
violento pensamento de vanglria; mas este santo e generoso
atleta repeliu violentamente essa tentao, servindo-se de um
piedoso estratagema que Deus lhe sugeriu. Ele se levantou de
repente e se ps a escrever nas paredes de sua cela os nomes
das principais e mais eminentes virtudes, tais como a
perfeita caridade, a humildade anglica, a orao pura e
fervorosa, a castidade ntegra e sem mcula e outras
semelhantes. Toda vez que os pensamentos de orgulho voltavam
carga para lev-lo ao vcio, ele lhe dizia: Vejamos nossos
juzes. E, colocando-se diante dos nomes que havia, falava
alto para si mesmo: Enquanto voc no receber a sua parte de
cada uma dessas virtudes, voc deve reconhecer que ainda est
bem longe de Deus.

25. Ningum jamais conseguiu conhecer nem explicar a natureza


e as qualidades constitutivas do sol, e ns s o conhecemos
pelos efeitos que ele produz.

26. No devemos dizer o mesmo da humildade? Pois esta virtude


um socorro divino; um vu admirvel que esconde de ns a
viso e o conhecimento de nossas boas obras; uma
inteligncia profunda e perfeita de nossa baixeza, que impede
que os ladres se acerquem de nossa alma; uma torre forte e
poderosa, da qual Davi falou, e que nos defende dos esforos
dos inimigos; enfim, uma muralha que faz com que os filhos
da iniquidade no sejam capazes de nos prejudicar, e que
dissipa e coloca em fuga todos os que nos odeiam.

27. Mas, alm dessas propriedades, ela possui outras que no


so menos admirveis, e que a alma que tem a felicidade de
possuir essa virtude sabe distinguir muito bem. Ora, todas
essas qualidades, com uma nica exceo, so sinais de sua
presena num corao. Assim, vocs podero saber com uma
espcie de certeza que possuem a humildade, quando se virem
interiormente cheios de uma luz inexprimvel, de uma amor
inenarrvel pela orao e, sobretudo, quando esta virtude
purificar seus coraes, ela os tornar incapazes de julgar e
de condenar seus irmos, mesmo assistindo suas quedas e suas
faltas. O precursor de tudo isto a averso vanglria.

28. O conhecimento de ns mesmos e das afeies mais secretas


de nosso corao semeiam e produzem em ns a santa humildade;
de tal maneira que, se no for por meio deste conhecimento
que a semeia em nossa alma, ser impossvel que ela a cresa
e chegue a dar flor.

29. Com efeito, este conhecimento salutar nos traz o temor ao


Senhor, e este temor salutar nos conduzir depressa porta
da caridade.

30. Por isso podemos dizer aqui que a humildade a porta do


Reino dos cus, que nele ela nos introduz e que aos que
praticam esta virtude que o Senhor se referiu quando disse:
Eles entraro no cu e sairo da vida presente sem nenhum
temor, e encontraro amplas pastagens e lugares cheios de
frescor[36]. Os que pretendem entrar nos cus por outra
porta renunciam sua salvao e se tornam assassinos de suas
almas.

31. Mas, para chegarmos a nos conhecer, tenhamos sem cessar


os olhos fixos em ns. E se, quando nos conhecermos,
estivermos bem convencidos de que os outros so melhores do
que ns, teremos algo em que pensar e crer que estamos bem
distantes ainda das misericrdias.

32. impossvel extrair fogo da neve; mas, ser menos


difcil encontrar a humildade no corao de um heterodoxo, de
um obstinado filho do erro? Com efeito, no a humildade um
bem prprio s pessoas piedosas e que levam uma vida pura e
irrepreensvel?

33. Com facilidade dizemos que somos grandes pecadores, e


talvez at acreditemos nisso sinceramente; mas no ser esta
confisso que nos far saber e experimentar se nosso corao
verdadeiramente humilde ou soberbo. So as humilhaes e o
desprezo que nos daro uma ideia real de nossas disposies.

34. Quem desejar com santo ardor chegar com sucesso ao porto
tranquilo e seguro da humildade, deve procurar e empregar
todos os meios de se conduzir para a e de a chegar: as
firmes resolues, os raciocnios salutares, os pensamentos
racionais, as preces fervorosas, as meditaes profundas, as
splicas assduas, numa palavra, tudo o que puder imaginar
ser til para o objetivo a que se prope, at que, enfim,
ajudado pela graa de Deus, ele esteja experimentado nas
aes mais vis e humilhantes, e que tenha retirado o vaso que
encerra sua alma do mar bravio do orgulho e que o tenha
introduzido no porto da humildade; pois devemos observar que
quem se liberta do orgulho imediatamente satisfaz a justia
de Deus em relao aos pecados. O publicano do Evangelho nos
demonstra esta verdade consoladora.

35. Sabemos ns por que certas pessoas conservaram at a


ltima hora a lembrana de suas faltas, que no entanto j
haviam sido perdoadas? Foi a fim de nutrir e aumentar nelas o
esprito de humildade e destruir cada vez mais o orgulho e a
vanglria. Outros, vemos meditar continuamente sobre a Paixo
de Cristo, a fim de se reconhecer sempre como um dos
infortunados devedores da Justia de Deus; outros no perdem
de vista as faltas cotidianas nas quais caem, a fim de se
humilharem sem cessar, vendo-se como os mais desprezveis dos
homens; outros ainda vemos servirem-se das tentaes que lhes
acontecem, das suas quedas e pecados, a fim de buscar a
humildade, esta admirvel me das virtudes; outros enfim,
vemos considerar e crer que, se ainda existem, s pode ser
por que se humilham primeiro diante de Deus, e este
pensamento no os abandona jamais: eles repetem para si
continuamente que, tendo recebido de Deus dons os mais
abundantes, devem se considerar indignos de tamanha
liberalidade, e por no ver nos novos favores com que Deus os
beneficia seno novas dvidas acrescentadas s primeiras.
Ora, em condutas semelhantes que consiste a verdadeira
felicidade, e a que se encontra a verdadeira recompensa
dos esforos e das violncias que nos fazemos.

36. Ento, se nos acontece de ver ou de ouvir falar de


pessoas que em pouco tempo alcanaram a paz soberana da alma,
saibam que elas no chegaram a esta perfeio seno seguindo
essa conduta, que a via mais segura, mais feliz e mais
curta.

37. A caridade e a humildade so duas companheiras fiis: a


primeira nos eleva ao cu e a segunda nos sustm nele e nos
impede de cair.

38. A contrio, o autoconhecimento e a humildade so trs


coisas diferentes. O conhecimento e o pensamento de nossos
pecados e de nossas quedas nos incitam ao arrependimento, e
derramam uma santa tristeza em nossa alma. Com efeito, aquele
que tem a infelicidade de cair, se machuca e se quebra; ento
aprende a desconfiar de si mesmo e a recorrer orao, a
depositar uma humilde confiana em Deus, a se apoiar, para se
sustentar, no basto da esperana, e a servir-se dele para
expulsar o desespero que, como um cachorro raivoso, tenta
devor-lo. O conhecimento de ns mesmos a inteligncia que
adquirimos a respeito de nossa capacidade real e de nossos
meios; ainda um sentimento vivo e profundo de nossas
fraquezas e de nossos pecados. A humildade uma santa
doutrina que Cristo ensina aos que dela se tornam dignos pela
graa, que ele coloca no interior da alma como se fosse sobre
um leito nupcial, a respeito da qual toda a eloquncia dos
homens incapaz de expressar nem dar a compreender o poder e
a virtude.

39. Dizer que temos a felicidade de sentir em ns mesmos os


doces perfumes da humildade, e no obstante ainda nos
comovermos com os elogios dos homens, ainda que por um mero
instante, equivale a enganar a si prprio grosseiramente e
ainda desconhecer este fato sobre si prprio.

40. Ouvi um dia um homem santo dizer, no fervor que lhe


inspirava sua profunda humildade: No nos conceda, Senhor,
de modo algum nos conceda a glria, mas remeta-a inteira ao
seu santo Nome[37]. Ele sabia por sua prpria experincia
que nossa natureza fraca a tal ponto, e incapaz de se
preservar, por suas prprias foras, das feridas que os
inimigos da salvao querem fazer-lhe. S voc ser, meu
Deus, o objeto de meus louvores numa grande assembleia[38],
ou seja, nos sculos infinitos da eternidade; pois quanto a
ns, devemos acrescentar, no podemos receber a glria antes
da vida futura, sem que estejamos miseravelmente expostos a
nos perder pela vaidade que isto nos inspiraria.
41. Se o fim, a horrvel perfeio e o ltimo grau do orgulho
consistem, para atrair elogios, louvores e glria, em fingir
ser ornado de virtudes que na realidade no possumos, o
cmulo e a perfeio da humildade consistem em fazer crer, a
fim de parecer mais vil e desprezvel, que somos culpados de
certas faltas nas quais no camos. Foi sem dvida com esta
finalidade que um santo religioso tomou, em presena dos seus
irmos, po e queijo e comeu de ambos, para que eles
pensassem que ele no se mortificava tanto quanto se
acreditava. Foi tambm com este mesmo fim e para ser visto
como um insensato, que um outro deixou seus hbitos para
entrar numa cidade; mas ele estava longe de se conduzir assim
por causa de maus pensamentos, pois a modstia e a castidade
faziam parte dele. Os que so humildes no temem as ofensas
dos outros, pois eles receberam de Deus, por meio da prece,
todas as graas e todos os dotes necessrios para satisfazer
todo mundo. De resto, como toda a sua inclinao est voltada
para a prtica da humildade, eles pouco se importam com os
gracejos ou a condenao que lhes fazem os homens. Somos
todo-poderosos em Deus, quando ele atende os votos que lhe
dirigimos.

42. Tenham assim o desejo sincero de desagradarem antes aos


homens do que a Deus; pois este tem prazer em nos ver buscar
o desprezo e a humilhao, a fim de atormentarmos,
perseguirmos e exterminarmos em ns a verdadeira estima que
temos por ns mesmos, e a vanglria que recebemos dos
aplausos dos homens.

43. certo que a fuga do mundo e o retiro nos trazem um


grande benefcio para entrarmos nos exerccios da humildade,
e que no possvel seno s almas fortes se expor assim
zombaria e ao desprezo de seus prximos e de seus amigos. No
se surpreendam com o que eu disse, pois ningum jamais pode
com um nico passo subir a escada divina.

44. Lembrem-se de que saberemos ao final que somos discpulos


de Cristo, no porque nos obedecem os demnios, mas porque,
conforme ele prprio nos ensina, nossos nomes estaro
inscritos no cu da humildade[39].

45. A natureza dos limoeiros tal que se seus galhos se


voltam para o alto isto mostra uma esterilidade absoluta, mas
se eles se deixam cair um sinal de frutos em abundncia.
Quem souber refletir compreender o que queremos dizer aqui.

46. A humildade uma escada pela qual subimos at Deus; mas


alguns sobem at o trigsimo degraus, outros at o
sexagsimo, outros at o centsimo. Aqueles que, por uma
vitria total sobre as ms inclinaes de seus corao,
conseguiram desfrutar da paz perfeita, sobem at o mais
elevado, que o centsimo; o segundo convm aos que caminham
corajosamente pelos caminhos da salvao; quanto ao primeiro,
que o mais baixo, todos podem esperar chegar at a.

47. Quem se conhece, evitar empreender coisas que esto


acima de suas foras, e caminhar com constncia pelos
caminhos da humildade.

48. Os pequenos pssaros tremem vista de um gavio, e as


almas que so solidamente humildes temem e se assustam com o
barulho das discusses.

49. Muitas pessoas alcanaram a salvao sem ter sido nem


profetas nem taumaturgos, e sem ter recebido revelaes
extraordinrias; mas jamais algum chegou at a, nem chegar
jamais, sem a humildade. No esta a virtude guardi dos
dons extraordinrios? E no foram estes bens celestes que se
tornaram a infeliz causa ou a ocasio para que coraes que
no eram sinceramente virtuosos tenham expulsado
vergonhosamente a humildade para longe de si?

50. Devemos aqui admirar o modo como Deus, a fim de nos fazer
praticar, ainda que contra a nossa vontade, a santa virtude
da humildade, faz, por uma providncia especial, com que
outros vejam e conheam nossas faltas melhor do que ns
mesmos. Assim ele nos coloca na necessidade de reconhecer e
confessar que no a ns que podemos atribuir a salvao e a
cura de nossa alma, mas assistncia de nossos irmos e ao
socorro de Deus.

51. Quem verdadeiramente humilde detesta sua prpria


vontade, e s a v como enganadora; e, pela confiana que
coloca em Deus nas suas preces, aprende o que deve saber e
fazer. Para cumprir com os deveres de obedincia, ele no
considera nem a vida nem os costumes das pessoas que o
dirigem, mas se abandona inteiramente aos cuidados paternais
de Deus, e se lembra de que um dia o Senhor se serviu da voz
de um asno para dar instrues a Balaam. E ainda que este
humilde e fiel servidor de Deus no agisse, pensasse ou
falasse em todas as coisas seno de um modo conforme sua
santa vontade, ele evitaria ainda de confiar em seu prprio
julgamento; pois, preciso diz-lo, uma alma verdadeiramente
humilde no tem menos incmodo nem sofre menos tormento em
confiar no prprio discernimento, do que um corao soberbo
em se submeter ao julgamento dos outros.

52. Parece-me que somente os anjos so incapazes de cair em


certas fraquezas; pois um dia eu ouvi um anjo terrestre me
dizer: verdade que no me sinto culpado por nada, mas nem
por isso me sinto justificado; pois no cabe a mim julgar-me,
mas ao Senhor[40]. por isso que devemos nos repreender e
nos condenar severamente, a fim de que, por meio desse
desprezo e dessa humilhao voluntrios, possamos apagar as
faltas nas quais camos sem nos darmos conta. Devemos agir
assim, por que de outro modo teremos uma conta terrvel para
prestar na hora da morte.

53. Quem pede ao Senhor graas das quais se considera indigno


por causa do pouco mrito de suas boas obras, receber, em
virtude do sentimento de sua indignidade, dons e favores que
superaro infalivelmente o valor real das virtudes que
praticou. o que nos ensina o exemplo do publicano que,
mesmo s ousando pedir a remisso de seus pecados, recebeu
uma plena e inteira justificao. tambm o que nos ensina o
bom ladro: ele se contentou, por humildade, em pedir ao
Senhor que se lembrasse dele em seu Reino, e recebeu o
Paraso inteiro em herana[41].

54. Assim como, de acordo com a ordem que Deus disps, no


vemos neste mundo nenhuma criatura do fogo, nem grande nem
pequena, tambm na ordem da graa no encontramos a presena
do fogo da concupiscncia num corao slida e sinceramente
humilde; ora, esta concupiscncia a matria e a causa de
todos os vcios nos quais temos a infelicidade de cair. Com
efeito, na medida em que camos voluntariamente no pecado,
no somos ainda verdadeiramente humildes, e continuamos
sentindo a presena da concupiscncia.

55. O Senhor, sabendo que hbitos corporais contribuem


decisivamente para conduzir a alma ao caminho da humildade, e
querendo servir ele prprio de exemplo, cingiu-se de uma
toalha para lavar os ps de seus apstolos e para nos ensinar
o caminho que nos conduz humildade. Com efeito as afeies
de nossa alma se formam frequentemente pelas aes do corpo,
e ela se acostuma facilmente ao que este corpo faz
exteriormente.

56. A autoridade que Deus concedeu a um dos anjos, no para


ele abusasse dela para se orgulhar, acabou sendo a causa e a
ocasio de seu orgulho.

57. Quem se senta sobre um trono tem uma conduta diferente


daquele que se senta sobre o estrume. por essa razo que
J, este homem santo e justo, permanecendo sobre a estrumeira
e fora da aldeia, pode adquirir uma humildade perfeita, e
dizer a Deus do fundo de seu corao: Eu me humilho e me
rebaixo diante de voc, meu Deus, e reconheo minha baixeza,
e me penitencio com p e cinzas[42].

58. Vejo ainda Ramasss, rei de Jud, que era um dos maiores
pecadores do mundo; pois, alm da infinidade de crimes de que
era culpado, havia profanado o templo de Deus e substitudo o
culto que se deveria prestar sua Majestade soberana pelo
culto mpio e sacrlego que ele prestava e obrigava a que se
prestasse aos dolos; de sorte que, ainda que todo o universo
fizesse jejuns rigorosos em inteno desse rei criminoso,
essa penitncia no seria bastante para obter-lhe o perdo
por suas execrveis
Impiedades. E no entanto a humildade teve a virtude de curar
as chagas desesperadas e incurveis desse indigno monarca.

59. Tambm Davi, falando com Deus, no hesitou em dizer: Se


lhe agradasse um sacrifcio, meu Deus, eu no deixaria de lhe
oferecer; mas voc no se agradaria dos holocaustos que eu
lhe posso oferecer os jejuns que afligem o corpo mas o
sacrifcio que devo oferecer o de um corao quebrantado de
dor; pois voc no desprezar um corao contrito e
humilhado[43]. Da mesma forma, quando o profeta, em nome do
Senhor, lhe reprovou o homicdio e o adultrio que ele havia
cometido, a humildade fez com este prncipe pronunciasse
estas palavras: Eu pequei contra o Senhor[44]; e, no mesmo
momento, Deus lhe enviou esta resposta pelo mesmo profeta: O
Senhor perdoou o seu pecado[45].
61. Nossos pais, estes homens to respeitveis, nos ensinaram
que os trabalhos e os penosos exerccios do corpo so como
que o caminho que nos conduz prtica da humildade, e que
eles so o fundamento sobre o qual repousa esta virtude.
Quanto a mim, no penso o mesmo: pois eu creio que a
obedincia que nos conduz humildade, e que so a retido e
a sinceridade do corao que lhe servem de base e fundamento.
De fato, a retido do corao detesta a vanglria.

62. Se o orgulho foi capaz de transformar anjos em demnios,


a humildade, se pudesse ser partilhada por eles, seria capaz
de transformar os demnios em anjos. Que os homens que
tiveram a infelicidade de pecar reergam sua vontade abatida!

63. Apressemo-nos em trabalhar com todas as foras para


chegar posse da humildade. E se no pudermos atingir a
perfeio dessa virtude, esforcemo-nos por nos apoiarmos em
suas espduas; e se por infelicidade nos acontecer alguma
queda ou se sucumbirmos tentao, guardemo-nos de nos
separarmos da humildade, mantendo-nos fortemente abraados a
ela; pois eu ficaria espantado de ver que algum que se
separou da humildade seja capaz de receber qualquer graa que
possa conduzi-lo salvao eterna.

64. Os nervos que fortalecem a humildade e os meios para


adquiri-la so as seguintes virtudes: a pobreza, a fuga do
mundo, o cuidado em no parecer sbio, a simplicidade nas
palavras, a sinceridade, o pedido de esmola, o silncio sobre
a nobreza do nascimento, a renncia liberdade de palavra e
de movimentos, o afastamento do falatrio. Todas essas coisas
so marcas simples que anunciam a felicidade de se possuir
esta virtude incomparvel.

65. Nada contribui mais e mais eficazmente para nos humilhar


do que uma extrema pobreza e um estado no qual no podemos
viver seno das esmolas que pedimos e recebemos. Quando somos
capazes de nos elevar, e, no obstante, fazemos todos os
esforos para nos abaixar e para afastar de ns todo inchao
do corao, ento que, sim, ento que mostramos e damos
as provas de que possumos a verdadeira sabedoria, e que
somos verdadeiramente os servidores e os amigos de Deus.

66. Assim, quando vocs se armarem para combater qualquer


vcio, no deixem de chamar a humildade em seu auxlio; com
ela vocs marcharo ousadamente sobre a spide e o basilisco,
e pisotearo o leo e o drago[46], sem que nenhum deles
possa lhes prejudicar, ou seja, nem o pecado, nem o
desespero, nem o drago do corpo.

67. A humildade um canal celeste que possui a virtude de


retirar de nossa alma o abismo do pecado e de elev-la at os
cus.

68. Algum que tenha um dia percebido no fundo de sua alma a


beleza arrebatadora dessa virtude, independente de si mesmo
se permitir perguntar de quem ter ela vindo luz e
recebido a existncia. E ela lhe responder com um sorriso:
Como voc quer saber o nome do meu pai? Ele no tem nome,
assim como eu; eu no lhe explicarei essa maravilha a menos
que voc esteja sob a posse de Deus, a quem seja dada toda
honra e toda glria pelos sculos dos sculos. Amm.
Terminarei este degrau dizendo que, assim como o mar a
causa e quem alimenta todas as fontes, tambm a humildade a
fonte de discrio.
VIGSIMO SEXTO DEGRAU

Do Discernimento dos pensamentos, vcios e virtudes

1. O discernimento, nas pessoas que comeam a servir a Deus,


consiste num conhecimento exato que elas possuem do estado de
suas almas; em relao s que j fizeram algum progresso no
servio do Senhor, um sentimento interior que as faz
distinguir com certeza o bem propriamente dito daquele que
apenas natural e que, muitas vezes, combate o bem
sobrenatural; nos que atingiram com sucesso a perfeio, um
conhecimento de que receberam as luzes que Deus derramou
abundantemente em suas almas, por maio da qual, no apenas
eles sondam os recantos mais fundos de seus coraes, mas
ainda podem penetrar at no interior dos seus irmos. Mas se
quisermos definir o discernimento de uma maneira geral e que
possa abarcar e convir a tudo, diremos que e deve ser uma
luz interior que nos permite conhecer com certeza, a todo
tempo, em todo lugar e em todas as nossas aes, que ela
santa e agradvel vontade de Deus, e que s a recebem os
que so puros nas suas afeies, em suas aes e em suas
palavras.

2. Aquele que por meio do esprito de Deus venceu trs


inimigos de sua salvao, consegue facilmente derrubar os
outros cinco; mas quem negligencia atacar e vencer esses trs
inimigos no pode contar com mais nenhuma vitria. O
discernimento assim uma conscincia sem mcula, e no
habita seno naqueles cujos sentidos so puros e castos.

3. Ningum, quer tenha visto por si mesmo, quer tenha


escutado de outros que no estado religioso acontecem coisas
extraordinrias e sobrenaturais, pode, porque no conhece a
natureza disso, negar sua existncia e p-las em dvida; pois
onde Deus habita, que acima da natureza, podem acontecer
coisas que esto acima da natureza e das leis naturais.

4. A preguia, o orgulho, a inveja dos demnios, so as trs


principais armas das quais se servem os espritos infernais
para nos combater. A primeira dessas armas deve nos cobrir de
confuso, a segunda nos precipita na misria derradeira;
quanto terceira, uma verdadeira felicidade e uma
felicidade perfeita.
5. Depois de Deus, nossa conscincia que devemos
recorrer, como a uma regra a ser seguida: ela que est
encarregada de nos fazer conhecer de que lado se erguem os
ventos impetuosos das tentaes, de nos advertir quando
convm recolher as velas, e de nos dirigir de modo a que
possamos evitar um triste naufrgio.

6. Os demnios, em nossos exerccios de piedade, nos estendem


armadilhas para nos fazer cair nas trs fossas que eles
mesmos cavaram. Primeiro eles se esforam para nos desviar de
fazer bem feito; depois, se so vencidos nesse primeiro
combate, procuram corromper nosso corao por meio das ms
intenes que nos insiram, para nos impedir de colocarmos
nosso objetivo na Glria de Deus; enfim, se seus esforos
nesse segundo ataque no resultam em nada, eles se escondem
no interior de nossa alma, que est tranquila, a fim de lhe
inspirar que somos felizes por no fazermos nada que no seja
pela Vontade de Deus e para sua maior glria. Resistiremos
primeira tentao por meio de uma grande diligncia e uma
exatido escrupulosa quanto aos nossos deveres, bem como por
meio do pensamento e da lembrana da morte; ao segundo, por
meio da obedincia e do desprezo por ns mesmos; e
terceira, pelo conhecimento de nossa imperfeio e da
inutilidade de nossas obras. Este um grande trabalho que
temos que fazer continuamente at que o fogo do amor de Deus
nos faa entrar em seu santurio. Porque ento j no
estaremos inquietos, nem seremos levados ao pecados por causa
de nossos antigos hbitos. Deus, que um fogo purificador,
consumir todos os ardores da concupiscncia, deter nossos
movimentos desregrados, nos preservar da presuno e nos
impedir de cair, seja na cegueira interior, seja na cegueira
exterior.

7. Mas os demnios fazem exatamente o contrrio: logo que


conseguem tornar escrava nossa alma, eles extinguem toda a
espcie de luzes e nos reduzem a uma tal pobreza que j no
nos resta nem prudncia, nem discernimento, nem conhecimento,
nem respeito por nada, e s recebemos em troca a indolncia,
o estupor, o enrijecimento, a indiscrio e a cegueira.

8. Conhecem por sua prpria experincia tudo o que dissemos,


aqueles que tiveram a felicidade de sair do abismo da
impureza por meio de jejuns e de outras austeridades da
penitncia, renunciando a uma confiana insensata em suas
prprias foras, para seguir as regras da modstia, e
abandonar uma imprudncia vergonhosa para observar as leis do
pudor. Eles sabem que to logo suas almas foram libertas e
curadas dessas doenas mortais, que seu esprito se encontrou
fora dessas trevas espessas nas quais havia sido enterrado, e
que seu corao foi purificado da corrupo do pecado, eles
sentiram vergonha de si mesmos, das aes que praticaram e
das palavras que disseram durante seu deplorvel cativeiro.

9. Com efeito, a menos que a luz divina se obscurea na alma,


e que esta caia nas trevas de uma noite funesta, os demnios
permanecero impotentes para roubar-lhe a santidade e a
inocncia, para imol-la em seu furor e p-la a perder. Sim,
eu repito, enquanto uma alma nesta vida for iluminada pelos
raios do sol de justia, os demnios estaro privados de
poder lhe fazer mal. Ora, os demnios arrebatam o tesouro
precioso da inocncia a uma alma, submetendo-a, sem que ela
perceba, sua escravido: eles a imolam ao seu furor, quando
apagam nela todas as luzes da conscincia, de modo a
precipitarem-na em crimes vergonhosos e detestveis; enfim,
eles acabam de p-la a perder quando conseguem faz-la cair
em pecado, e ento a atiram aos horrores do desespero.

10. Que ningum aqui tente alegar sua fraqueza como desculpa,
e no diga que os mandamentos de Deus so impossveis; pois
existe gente que, em muitas coisas, vai mesmo alm do que
ordena o Evangelho; para estarem certos disso, observem a
quem ama ao prximo mais do que a si mesmo.

11. Que os humildes se armem de coragem, ainda que seja


perturbados por suas paixes! Pois ainda que por um tempo
tenham a infelicidade de cair em toda espcie de pecados, de
se deixar prender nas armadilhas dos demnios e de
experimentar as enfermidades espirituais, se Deus lhes
conceder enfim a cura, eles podero ainda servir aos demais
mdicos como faris, lmpadas e pilotos, dando-lhes a
conhecer os diferentes sintomas das doenas da alma, e, pela
experincia vivida, preserv-los dos perigos aos quais
estariam eles expostos.

12. Se existem pessoas que, mesmo tiranizadas por suas


paixes, so capazes de dar ao seus irmos lies teis e
simples, eu estou bem longe de proibi-las que o faam; pois
pode muito bem acontecer que, por causa das exortaes que
fazem, cheguem a se envergonhar e comecem a dar o melhor de
si e a levar uma vida melhor. Mas essas pessoas no podem se
ocupar no governo e na conduo dos irmos. J vi homens que,
tendo cado no pntano do vcios, e nele afundando cada vez
mais, no deixavam de contar aos que viam expostos ao mesmo
perigo, como e porque eles prprios haviam sido vtimas de
sua temeridade. Assim talvez eles pudessem preservar os
demais da queda que lhes ocorrera, impedindo-os de cair no
abismo em que encontravam. Mas o que aconteceu? Deus, que
infinito em misericrdia como o em potncia, voltou os
olhos para as intenes caridosas dessas pessoas e as
libertou das odiosas cadeias de seus pecados. Quantos aos
que, com sangue frio, se submetem voluntariamente ao jugo
tirnico das paixes, tudo o que tm a fazer manter o
silncio, como nico meio de dar alguma lio aos outros. E
eles devem se lembrar dessas palavras: primeiro Jesus comeou
a fazer, para depois ensinar[47].

13. O mar que temos para a travessar, humildes religiosos,


terrvel e furioso: ele est constantemente agitado por
ventos impetuosos, e revolto por tempestades assustadoras;
ele cheio de rochedos ameaadores, de abismos profundos, de
piratas impiedosos, de golfos perigosos, de bancos de areia;
ele povoado por monstros assustadores, coberto de ondas e
de vagas espumantes. Os rochedos desse mar so a clera, que
causa subitamente um abrasamento terrvel na alma; os abismos
so essas vertigens que tomam conta de ns e nos lanam no
desespero, que um abismo sem fundo; os baixios e bancos de
areia so as trevas de nosso esprito, que nos fazem tantas
vezes tomar o mal pelo bem; os monstros representam nosso
prprio corpo pesado, grosseiro e perigoso por causa das
paixes cruis que ele alimenta e fomenta; os piratas
devastadores so os ministros e os autores da vanglria, que
nos roubam impiedosamente toda a bagagem e o tesouro de
nossas boas obras, frutos de nossos trabalhos e de nossos
suores; entendemos as ondas como os excessos e os
desregramentos da intemperana, que nos precipita bruscamente
na goela e nos dentes dos monstros do inferno; como
turbilhes entendemos o orgulho que, expulso do cu onde o
demnio o fez nascer, quer agora nos elevar at o cu apenas
para nos atirar no abismo mais profundo.

14. Os homens escolados nas cincias conhecem muito bem trs


coisas que so convenientes para quem comea seus estudos; as
que convm aos que j fizeram algum progresso; e enfim as que
so prprias aos que se tornaram capazes de ministrar lies
aos outros. Tomemos cuidado para que, depois de muito tempo
de estudos, no nos encontremos nos primeiros elementos da
cincia espiritual e religiosa. Nada mais vergonhoso para
um ancio do que se ver numa escola para crianas. Ora, eis
aqui o verdadeiro alfabeto dos que pretendem aprender a
cincia religiosa[48]. A) obedincia; B) jejum; C) cilcio;
D) cinzas; E) lgrimas; F) confisso; G) silncio; H)
humildade; I) viglias; K) generosidade; L) frio; M)
trabalho; N) aflies; O) desprezo; P) contrio; Q)
esquecimento das injrias; R) caridade fraternal; S)
mansido; T) f santa e isenta de curiosidade; V) indiferena
pelo mundo; X) santa averso pelos parentes; Y) desligamento
perfeito de todas as coisas; Z) simplicidade unida a uma
grande inocncia e uma abdicao voluntria. Quanto aos que
j fizeram algum progresso na cincia religiosa, seu estudo e
sua aplicao especficos devem consistir em se esforar para
obter uma vitria completa sobre a vanglria e sobre a
clera, em nutrir e aumentar e si a esperana nos bens
futuros, em tornar mais perfeita a paz de sua alma e maior a
circunspeco de seu esprito, em gravar cada vez mais na
memria a lembrana e o pensamento dos juzos de Deus, em
aperfeioar seus sentimentos de ternura e comiserao pelos
irmos, em exercer para com eles os deveres de hospitalidade
com afeio e prudncia, em ser mais doces e moderados nas
correes, mais fervorosos e recolhidos na orao e, enfim,
em desdenhar inteiramente as riquezas. No que diz respeito
aos perfeitos, que, por meio de uma prece fervorosa,
consagraram a Deus todos os pensamentos de seu esprito,
todos os sentimentos de seu corao e todas as aes de seu
corpo, eis o alfabeto que lhes convm, segundo devem: A)
conservar seu corao livre de toda paixo; B) nutrir em si
uma caridade perfeita; C) praticar uma humildade profunda; D)
manter um distanciamento absoluto de todas as vaidades do
sculo; E) ser devorados por um zelo ardente no sentido de
conservar a presena de Jesus Cristo; F) cuidar em especial
para defender o tesouro de suas oraes e das luzes
recebidas, dos embustes e armadilhas dos demnios que os
querem roubar; G) enriquecer-se cada vez mais com os dons e
as iluminaes celestes; H) desejar ardentemente o fim de
suas vidas; I) no sentir seno averso pela vida presente;
K) evitar tudo o que possa agradar carne; L) merecer se
tornar junto a Deus os advogados e intercessores para todo o
mundo; M) fazer o possvel para obter de Deus a misericrdia
para os homens; N) participar do ministrio dos anjos; O)
tornar-se um tesouro das cincias; P) tornar-se dignos de ser
os intrpretes das verdades sobrenaturais e dos mistrios; Q)
merecer ser os depositrios dos segredos dos cus; R) salvar
os homens; S) submeter os demnios; T) triunfar sobre as
paixes e os vcios; V) vencer a carne; X) governar a
natureza inteira; Y) guerrear obstinadamente contra o pecado;
Z) ser os templos vivos da paz soberana do corao, e, por
meio da graa, os imitadores perfeitos de nosso Senhor Jesus
Cristo.

15. Quando nos sentimos atingidos por uma enfermidade grave,


devemos redobrar os cuidados e a vigilncia. De fato,
nesses momentos que os demnios, vendo-nos abatidos pela
doena e incapacitados, pela fraqueza do corpo, de nos servir
de nossos santos exerccios as lgrimas com que os pnhamos
em fuga costumam fazer os ltimos esforos para nos vencer.
Durante as enfermidades as pessoas do mundo ficam expostas a
exploses de clera, e algumas vezes impiedade das
blasfmias, mas os monges e os que vivem longe do sculo, se
tm em abundncia as coisas que lhes so necessrias, ficam
expostos s tentaes da intemperana, e mesmo da luxria.
Quanto aos que se veem privados de socorro quando doentes,
como os solitrios, estes so terrivelmente tentados a se
entregar negligncia, ao desnimo e tristeza.

16. Cheguei a ver algumas vezes o demnio da incontinncia


aumentar as dores de certos doentes, a ponto de lhes causar
movimentos por meio dos quais sua conscincia pudesse ser
perturbada. Nunca pude compreender como, em meio a to
grandes sofrimentos, a carne ainda fosse capaz de se revoltar
contra o esprito; mas, tendo retornado depois para visit-
los, eu os encontrei sobre seu leito de dor to consolados
pelos socorros espirituais que Deus lhes concedera e pelos
sentimentos de compuno que ele lhes inspirara, que o
consolo assim recebido lhes retirou o sentimento de seus
sofrimentos, e os fez desejar que no fossem curados; ento
observei que suas dores e sofrimentos haviam sido os remdios
salutares e eficazes para cur-los de suas enfermidades
espirituais. Eu adorei a Deus e agradeci pela graa que
fizera aos homens, servindo-se de seus corpos de barro para
purific-los e santific-los.
17. Existe no fundo de nossas almas um sentimento totalmente
espiritual que nos leva incessantemente a busc-lo em ns,
ainda que ele a no se encontre; mas assim que temos a
felicidade de encontr-lo, no tardamos a ver as trevas
produzidas pelas paixes desregradas se dissiparem e
desaparecerem de nosso esprito. o que fez com que um homem
sbio dissesse estas palavras: Vocs encontraro em si um
sentimento totalmente divino.

18. A vida monstica deve preencher todos os sentimentos do


corao, regrar todas as nossas aes, vigiar nossas
palavras, formar nossos pensamentos e presidir a todos os
nossos movimentos; de outro modo, no seria a vida monstica,
e, menos ainda, uma vida anglica.

19. Entendam a diferena que existe entre a providncia de


Deus, o socorro da graa, a proteo que ela concede, a
misericrdia que utiliza a nosso respeito e as consolaes
que nos permite desfrutar. Sua providncia brilha de modo
evidente em todas as obras do universo, mas no vemos o
socorro de sua graa seno entre os fieis; sua proteo,
apenas nos que so verdadeiramente fieis; observamos sua
misericrdia nos servidores mais devotados, e suas
consolaes dentre os que o amam sinceramente.

20. s vezes, aquilo que costuma ser um bom remdio para


certas pessoas se torna um verdadeiro veneno para outras; e
este mesmo remdio ministrado mesma pessoa, em
circunstncias diferentes, salutar num momento e funesto em
outro.

21. Vi uma vez um mdico espiritual, to ignorante quanto


indiscreto, que tanto oprimiu com suas reprimendas a um pobre
enfermo que desfalecia sob o peso de seus pecados, que o
empurrou aos horrores do desespero. E vi um outro, cheio de
cincia e sabedoria, que, por meio de reprimendas
humilhantes, fez como que uma inciso num corao inchado de
orgulho, e conseguiu com sucesso arrancar toda a corrupo
infecta que o sujava e deteriorava.

22. Vi tambm um mesmo enfermo espiritual que, tanto para se


curar das paixes que corrompiam seu corao, aceitava como
uma bebida salutar todo o amargor da obedincia, quanto para
devolver a viso ao olho de sua alma, se mantinha numa
imobilidade e num silncio perfeitos, no vendo a ningum e
no falando com ningum. Quem tiver ouvidos para ouvir,
escute e compreenda o que quero dizer aqui.

23. Existem alguns e eu confesso que no sei como, porque


no procurei saber por mim mesmo e por meu prprio julgamento
como acontecem esses dons e esses favores preciosos mas
enfim, existem pessoas que so naturalmente levadas
continncia, ao repouso da alma, modstia, mansido e
compuno do corao. E existem outras que possuem
inclinaes opostas a essas virtudes, e que tm que combater
com todas as foras esta natureza m. Ora, ainda que nem
sempre estes ltimos triunfem sobre suas tendncias, eu os
considero preferveis aos primeiros, pois eles triunfam sobre
a prpria natureza.

24. Ento, no venham glorificar-se diante de mim, vocs que,


sem trabalho e sem penas, desfrutam desses dons e desses
favores da natureza; ao contrrio, confessem com humildade
que o soberano Dispensador dos dons s os favoreceu assim por
conhecer sua extrema fraqueza, prevendo que, sem essas graas
inteiramente gratuitas, vocs estariam perdidos, e ainda
porque, em sua infinita bondade, ele os quis salvar. Devemos
ainda observar que uma boa educao, as instrues salutares
recebidas em nossa infncia, os exerccios espirituais a que
nos dedicamos na adolescncia, podem mais adiante em nossa
vida nos levar a praticar a virtude e a fazer nossa profisso
de vida monstica; mas que todas essas coisas podem tambm
nos desviar, se no forem boas e crists.

25. Os anos so uma luz para os monges, e os monges devem ser


uma luz para os outros homens. por isso que eles so
particularmente obrigados a fazer todos os esforos para se
tornar homens exemplares, e para jamais, seja por palavras,
seja por aes, dar lugar a que algum se escandalize; pois
se a luz se transmuta em trevas, o que acontecer com as
prprias trevas, ou seja, com aqueles que vivem nomeio do
mundo[49]?

26. Assim, se vocs me escutarem e quiserem seguir meu


conselho, no se esqueam de que importante no sermos
fteis nem inconstantes, e no dividirmos as foras de nossas
almas, j to pobres e fracas, se quisermos combater com
vantagem os milhares de inimigos que nos atacam; pois de
outro modo nos seria impossvel conhecer e evitar as
armadilhas infinitas das quais eles se servem para nos
capturar.

27. Armemo-nos assim do socorro que nos oferece a Santssima


Trindade, e empreguemos trs virtudes para fazer a guerra a
trs vcios diferentes. Se no o fizermos, estaremos expostos
a males e inquietudes inumerveis.

28. Com efeito, se Deus, que um dia transformou o mar em


terra firme, est conosco, no seremos ns semelhantes aos
israelitas? Iluminados e protegidos por sua Presena,
passaremos sem perigo pelas ondas bramantes, e veremos os
egpcios engolidos pelas guas; mas, ao contrrio, se Deus
no nos assiste, quem poder sequer escutar sem tremer o
rudo confuso das vagas e das ondas? Quem ser capaz de se
sustentar diante dos esforos furiosos de sua prpria carne?

29. Se Deus, por causa das boas obras que sua graa nos faz
praticar, se mostra em nosso corao, logo os nossos
inimigos, que so seus tambm, se dissipam e fogem; e se,
pela santidade e o fervor de nossas preces, O chamamos em
nosso socorro, todos os que, segundo a expresso de Davi,
odeiam o Senhor, fugiro de sua presena[50] e, podemos
acrescentar, da nossa.

30. No nos esqueamos de que no ser com palavras vs e


estreis que aprenderemos as coisas celestes, mas por meio de
nossos trabalhos, nossos esforos e suores. No se trata, ao
fim de nossa vida presente, de apresentar diante do soberano
Juiz palavras, mas sim obras.

31. Quando algum descobre um tesouro escondido em algum


lugar, apressa-se em cavar para encontr-lo; se o encontrar,
guard-lo- com grande cuidado. Os que so ricos sem ter
trabalhado para o ser, normalmente dissipam sua fortuna.

32. Os hbitos viciosos e inveterados no so corrigidos sem


grandes dificuldades e grandes esforos; os monges que ainda
os fortalecem com ms aes continuamente repetidas, ou caem
miseravelmente no desespero, ou, por sua cegueira, no
extraem nenhum benefcio de sua profisso religiosas nem de
sua consagrao obedincia. Mas devemos desesperar
inteiramente dessas pessoas? No, porque eu sei que Deus
todo-poderoso e pode facilmente retir-las do abismo.

33. Algumas pessoas me propuseram um dia uma questo muito


difcil de resolver, a qual, em minha opinio, ultrapasse o
alcance dos espritos daqueles que so como eu, e que no se
encontra em nenhuma obra conhecida: quais so, indagaram-me,
os vcios que geram os oito pecados capitais, e quais so os
trs pecados destes oito que produzem os outros cinco? Ora,
como eu no pude responder a esta questo to ousada, fui
obrigado a lhes confessar minha incapacidade. Mas eis o que
esses padres me disseram. A intemperana a me da luxria;
a vanglria, da preguia; a tristeza e a clera so mes do
orgulho, da inveja e da avareza, e a vanglria tambm me
do orgulho. Quando eles me explicaram este primeiro ponto, eu
me permiti perguntar a esses homens venerveis para que
satisfizessem meu desejo, ensinando-me quais seriam os
pecados produzidos pelos pecados capitais, e de qual pecado
cada um extrairia sua origem; e eis aqui a resposta que me
deram com uma bondade e um afeto admirveis. No se deve
buscar ordem e razo entre paixes tolas e impetuosas, pois
a s existe desordem e confuso. E isto eles me demonstraram
com exemplos justos e adequados e por meio de numerosas
razes, muito convincentes; direi aqui alguma coisa a
respeito para facilitar julgar o resto. Assim, segundo esses
padres, o riso dissoluto e inconveniente provm, seja da
incontinncia, seja da intemperana, seja da vanglria,
principalmente quando nos glorificamos sem vergonha nem
pudor; o excesso de sono produzido s vezes pelo excesso de
boa mesa, outras vezes pelos jejuns executados sob um
esprito de orgulho, aqui pela preguia, ali pelas
necessidades reais da natureza; as palavras inteis procedem
frequentemente tanto da intemperana como da vanglria; somos
escravos da preguia ou porque nos tratamos com mimos ou
porque nos falta o temor a Deus; as blasfmias so
normalmente filhas do orgulho; mas elas podem ser tambm
ocasionadas por nossa tendncia a crer que nossos irmos so
culpa dos delas; outras vezes seu autor um demnio, por
causa da inveja que sente por ns. O endurecimento do corao
nasce, seja da boa mesa, seja de uma certa indiferena pelas
coisas santas, e pelo afeto que temos pelas criaturas; essa
afeio mundana e sensual pode ainda se tornar o esprito de
impureza, de avareza, de intemperana, de vanglria e de
muitas outras coisas. A clera e a malcia extraem comumente
sua origem do inchao do corao e da estima que temos por
ns mesmos; a hipocrisia fruto da complacncia que temos
por ns, da confiana que depositamos em nossa conduta, que
nos incita a pensar e crer que somos capazes de nos bastar,
de que podemos ser os mestres e os rbitros de nossas aes.
As virtudes opostas a esses vcios nascem tambm das causas
contrrias. Mas como me falta o tempo, no poderei tratar de
cada uma em particular, e por isso me contentarei em dizer
que a humildade que expulsa todos os vcios de nosso
corao, e os mata, e que aqueles que tem a felicidade de
possuir essa virtude triunfam sobre todos os vcios e todas
as paixes. A volpia e a maldade so as mes fecundas de
toda espcie de males; e os que so escravos desses dois
vcios temveis, jamais vero o Senhor. Derrubar a primeira
sem abater a segunda dessas duas paixes, o mesmo que no
fazer nada.

34. Aprendamos a temer ao Senhor pelo temor que nos inspiram


a autoridade e o poder dos prncipes e dos magistrados, e a
presena de animais ferozes; aprendamos a am-lo e a desejar
possu-lo a partir do exemplo dos mundanos: vejam como eles
se atiram ao amor pelas criaturas e pelas belezas que veem
nelas. Saibamos aqui que nada nos probe de aproveitar os
exemplos das paixes que tentam estabelecer os vcios nos
coraes, para nos formar nas virtudes que lhes so
contrrias.

35. O sculo em que vivemos terrivelmente corrompido. Por


toda parte no vemos seno orgulho e dissimulao. s vezes
observamos a prtica de algumas virtudes contrrias; mas so
elas reais e verdadeiras? Onde vemos hoje aqueles dons e
aqueles favores extraordinrios com os quais um dia Deus quis
recompensar o fervor e a sinceridade da devoo? E no entanto
o mundo nunca teve tanta necessidade dessas graas. Mas no
nos espantemos com essa ausncia e essa privao: pois no
so exatamente os trabalhos exteriores que nos fazem
encontrar e possuir a Deus, mas sim a simplicidade e a
humildade do corao, conforme estas palavras de so Paulo:
O poder do Senhor se faz notar sobretudo na fraqueza do
homem[51]; e certo que Deus jamais rejeitar um corao
humilde e dcil.

36. Quando virmos algum de nossos irmos que servem a Deus


cair nalguma enfermidade corporal, no sejamos maus a ponto
de crer que este incidente desagradvel lhe tenha acontecido
por um julgamento secreto de Deus, que com isso est punido
qualquer falta que ele tenha cometido; na simplicidade de
nosso corao, e sem maus pensamentos, cuidemos dele: pois
cada irmo um membro do corpo ao qual pertencemos todos;
so os companheiros de armas com os quais guerreamos o
inimigo comum.

37. Algumas vezes Deus envia enfermidades para purificar


nossa alma das manchas dos pecados cometidos, e outras vezes
para expulsar a vaidade de nosso esprito.

38. Tambm no raro que Deus, cuja bondade e misericrdia


so infinitas, ao nos ver negligentes e preguiosos nos
santos exerccios da piedade, se sirva da doena como de uma
salutar e fcil mortificao para humilhar e enfraquecer
nosso corpo rebelde, para purificar nosso esprito dos maus
pensamentos e para libertar nosso corao das paixes
desregradas.

39. Mas observemos aqui que todas as coisas que nos


acontecem, sejam visveis ou invisveis, so recebidas por
ns de trs maneiras diferentes: uma, com um esprito de
doura e humildade; outra, com sentimentos de clera e
repugnncia; enfim, com uma fria indiferena. o que eu
mesmo presenciei em trs irmos que haviam sido corrigidos e
punidos ao mesmo tempo. O primeiro no sofreu a correo e
no aceitou a penitncia seno com clera e indignao; o
segundo suportou uma e outra sem perturbao nem tristeza; e
o terceiro, recebeu a ambas com alegria e contentamento.

40. Eu vi cultivadores semear os mesmos gros com propsitos


diferentes: pois alguns se propunham a pagar seus credores
com a colheita, enquanto outros pretendiam aumentar suas
riquezas; estes tinham inteno de presentear seus senhores,
aqueles queriam merecer de parte dos passantes elogios sobre
a excelente maneira de cultivar seus campos; outros s
desejavam ter uma colheita abundante para contentar a inveja
que lhes roa o corao e vexar a seus rivais; outros queiram
uma boa colheita para afastar a vergonha de serem vistos como
negligentes e preguiosos. Mas eis aqui a semente de que se
serviam estes trabalhadores: trata-se dos jejuns, das
viglias, das esmolas, dos servios prestados aos irmos, da
obedincia e outras coisas semelhantes. Quanto aos objetivos
e s intenes a que se propunham, sugiro que sejam
examinados e observados cuidadosa e seriamente.

41. Seja diante do Senhor e com as mesmas precaues que


tomam os que vo buscar gua numa fonte; pois pode acontecer
de que, junto com a gua venham tambm rs. Da mesma forma
ns, querendo praticar a virtude, misturamos a ela os
defeitos: por exemplo, a intemperana se mistura facilmente
hospitalidade, o amor sensual caridade, a dissimulao
discrio, a malcia prudncia; a perfdia, a preguia, a
lentido, a contradio, a m vontade em viver a seu modo e
segundo seus gostos, a desobedincia, todas essas se misturam
com a mansido; a arrogncia, a satisfao do amor prprio,
com o silncio; a vaidade com a alegria espiritual, a
preguia com a esperana, o julgamento temerrio com a
caridade; o torpor, a paralisia, com a solido e o retiro; o
azedume com a castidade; o excesso de confiana em si mesmo
com a humildade; quanto vanglria, podemos v-la como um p
embelezador, uma maquilagem, um colrio, ou melhor, como um
veneno sutil que busca se insinuar em todas as virtudes.

42. No fiquemos aflitos se Deus no atender s nossas preces


e splicas to depressa como gostaramos; pois ele prprio
deseja ardentemente que todos os homens sejam logo libertos
das paixes que os perturbam e tiranizam.

43. Nem todos os que pedem a Deus alguma graa so escutados,


creio eu, por alguma das seguintes razes: porque, ou no
solicitam esse favor no tempo conveniente, ou no o pedem com
a disposio requerida, ou esto possudos de algum
sentimento de vanglria ou de orgulho; enfim, porque, se
fossem atendidos, cairiam na indiferena ou na negligncia.

44. Ningum, penso eu, duvida que os demnios e as paixes se


retirem de nossa alma, seja por um tempo, seja para sempre;
mas pouqussimas pessoas abem porque uns e outros nos
abandonam dessa maneira.

45. Pode acontecer de as paixes deixarem no apenas as


pessoas que tm f, mas as que no tm; existe apenas uma
exceo, e que permanece nas pessoas, para ocupar, sozinha, o
lugar de todos as outras: esta paixo to funesta e terrvel
a ponto de ter expulsado os anjos do cu, o orgulho.
46. O fogo celeste e divino da caridade consome inteiramente
a matria de nossos pecados. Ento os demnios, resignados,
se retiram de ns e j no nos tentam por meio das paixes.

47. Normalmente os demnios se afastam apenas para nos


enganar com a falsa segurana inspirada por essa calma e essa
segurana, para depois se apossar de nosso corao mais
facilmente e de um s golpe, envenenando-o com tantos vcios
que ele quase cai nas suas prprias armadilhas como se
guerreasse contra si mesmo.

48. Conheo outro artifcio dos demnios, quando eles cessam


de nos fatigar e nos atacar quando chegamos a nos habituar
com os vcios, pois ento eles j no precisam nos tentar,
pois se o fizessem poderiam despertar nossa conscincia que
est adormecida por eles. Podemos dizer que a imagem dos
pecadores que os demnios acostumaram ao vcio a das
crianas em idade de mamar: quando a me lhes retira o seio,
elas comeam a chupar os dedos.

49. Saibamos que so a simplicidade, a inocncia e a


integridade da vida que so, mais do que tudo, capazes de
libertar nossa alma das perturbaes e da agitao das
paixes, e de lhe trazer uma paz deliciosa, segundo as
palavras de Davi: com justia que eu espero minha salvao
no Senhor, pois ele quem salva os que tm um corao
reto[52], e assim ele nos livra de nossos males, de maneira
que j quase no sentimos a ns mesmos e nos tornamos
semelhantes s criancinhas a quem tiramos a roupa sem que
elas tenham o sentimento de sua nudez.

50. Os vcios e a maldade no esto originalmente na natureza


do homem, pois Deus no o autor das paixes. Mas o homem
possui dentro de si muitas boas inclinaes naturais que Deus
lhe concedeu: tais so, por exemplo, a ternura e a compaixo
pelos infelizes; pois no vemos ns mesmo os pagos sentirem
comiserao pelos que sofrem? Tais so ainda a afeio e a
benevolncia: os prprios animais do testemunho da tristeza,
quando so separados uns dos outros; a f, porque sentimos em
ns uma forte inclinao para crermos no que nos contado; a
esperana, porque no emprestamos nem pedimos emprestado, nem
fazemos viagens por terra ou mar, sem a esperana de algum
benefcio ou proveito; e se o amor que sentimos pelos irmos
est fundamentado na natureza, e se a caridade o que liga e
mostra a perfeio da lei, segue-se que essa virtude, assim
como as demais, no est fora de nossa natureza, e que quem
alega fraqueza para no praticar o bem deve se cobrir de
vergonha e confuso.

51. Quanto castidade, mansido, humildade, orao, s


viglias, aos jejuns e compuno, diremos que no so
virtudes que podem ser praticadas apenas com as foras da
natureza. Ora, algumas dessas virtudes nos foram ensinadas
pelos homens; outras, pelos anjos; e outras, pelo Verbo
eterno de Deus, que com sua graa nos facilita pratic-las.

52. Ns nos achamos numa condio em que indispensvel


sofrer alguns males. A prudncia manda que devemos, sempre
que possvel, escolher o menor e o mais leve. Assim, por
exemplo, quando nos dedicamos orao, se chegarem alguns
irmos, devemos interromper nosso santo exerccio, ou, sem os
saudar nem dirigir-lhes a palavra, deixa-los partir aflitos
por no terem podido conversar conosco por um momento? Eu
respondo aqui que a caridade mais excelente do que a
orao; pois esta uma virtude especfica, enquanto a
primeira encerra todas as virtudes.

53. Na minha juventude aconteceu-me estar numa cidade,


bastante grande, e no tendo ido mesa cedo, me senti
furiosamente tentado pela intemperana e a vanglria; mas
como eu temi os efeitos desonrosos da gula, preferi sucumbir
tentao da vaidade; pois eu sabia que nos jovens o demnio
da vanglria cede facilmente o passo ao demnio da
intemperana, o que no de espantar. Mas se para as pessoas
do mundo a avareza consiste na fonte funesta e principal de
toda espcie de males, o mesmo podemos dizer da intemperana
em relao aos monges.

54. No podemos deixar de observar que Deus permite algumas


vezes que pessoas espirituais permaneam sujeitas a pequenos
defeitos, que no chegam a ser capazes de manch-las nem de
ofender o Senhor, a fim de que, foradas a fazer a si mesmas
reprimendas contnuas, elas possam adquirir um grande tesouro
de humildade slida que se torna impossvel de ser roubada
pelos inimigos.

55. Os que no viveram sob o jugo salutar da obedincia no


so capazes de alcanar uma humildade sincera e verdadeira.
Podemos avaliar o quanto, por aqueles que aprendem alguma
arte ou algum ofcio: se s tiverem a si prprios como
mestres, faro algo alm de seguir os jogos de sua
imaginao? Conhecero eles as regras de sua arte?

56. No sem razo que nossos pais identificam a santidade


da vida com a prtica constante da humildade e da temperana,
virtudes que, aos olhos dos homens, parecem ser bem
ordinrias e bem comuns. Com efeito, a temperana nos priva
dos prazeres dos sentidos, e a humildade nos conserva nesta
privao e impede as volpias carnais de fazer brotar em ns
novos botes de vcios. com a mesma finalidade que a
penitncia tem dois efeitos salutares: ela apaga nossos
pecados e nos faz adquirir a humildade.

57. Em geral, os homens piedosos se sentem levados a dar a


quem lhes pedem e lhes expe suas necessidades; mas as
pessoas quem possuem essa preciosa qualidade num grau mais
perfeito no perguntam pelas necessidades de seus irmos e,
para fazer benemerncia, no aguardam que se lhes pea. No
retomar nem exigir a restituio do que nos tomaram,
prprio dos homens que renunciaram a toda afeio pelos bens
perecveis.

58. Jamais deixemos de nos lembrar dos vcios e das virtudes,


a fim de que possamos saber onde estamos em relao
piedade. Estamos no comeo? Avanamos? Aperfeioamo-nos?

59. Os combates que nos fazem os demnios provm de trs


causas diferentes: nosso amor aos prazeres, nosso orgulho e a
inveja que sentem por ns. Felizes so os que so objeto da
inveja dos demnios; mas so infelizes, e bastante, os que se
entregam ao orgulho; e inteis e vos , os que so escravos
dos sentidos e ligados aos prazeres da carne.

60. Existe um sentimento, ou antes um hbito, ao qual podemos


chamar de fora e pacincia, por meio do qual no tememos nem
recusamos nenhum trabalho ou pena: este esprito de fora,
de generosidade e de pacincia que inflamava de tal modo o
corao dos mrtires, que estes chegavam a desdenhar dos
tormentos mais temveis.

61. Devemos estabelecer uma grande diferena entre vigiar os


pensamentos de nosso esprito e vigiar as afeies de nosso
corao; pois assim como o oriente est distante do ocidente,
est a vigilncia sobre as afeies de nosso corao, em
termos de dignidade e excelncia, acima da vigilncia que
exercemos sobre os pensamentos de nosso esprito, ainda que
um d mais trabalho e penas do que o outro.

62. Servir-se da orao para combater os maus pensamentos,


afast-los com horror, desprez-los e triunfar inteiramente,
no so coisas indistintas entre si. Aquele que disse a Deus:
Venha em meu auxlio, meu Deus, apresse-se em me
socorrer[53], e outras coisas semelhantes, nos d um exemplo
dessas trs coisas; o mesmo, nos ensinou sobre a segunda,
dizendo: Eu responderei s injustas acusaes dos que me
carregam de reprovaes[54], e tambm: Voc nos colocou em
disputa com todos os nossos vizinhos[55]; enfim, ele nos
ensinou a terceira, quando proferiu estas palavras: Eu
coloquei uma guarda na minha boca; quando o pecador se
levantou contra mim, eu me calei e mantive o silncio[56]. E
ainda: Os orgulhosos agiram com enorme injustia a meu
respeito, mas eu no me desviei de sua santa lei[57]. Ora,
quem possui a segunda dessas disposies, muitas vezes deve
recorrer orao, pois ainda no est suficientemente
preparado nem forte para resistir aos demnios; quem se
utiliza da prece sem querer incitar em si o horror aos maus
pensamentos no poder jamais os expulsar nem afastar de seu
esprito; enfim, que possui a terceira, rejeita com desdm e
desencoraja inteiramente os demnios.

63. No podemos, falando naturalmente, captar nem limitar o


que simples e espiritual. Somente Deus, que criou a tudo,
capaz disso.

64. Como quem tem um excelente olfato sente facilmente o


perfume de uma pessoa que se aproxima, ainda que esta o
oculte, tambm uma alma pura sente facilmente, por um dom
especial de Deus, o bom odor da virtude recebida. Eu vou mais
longe ainda, e no temo dizer que algumas vezes ela o sente
nos outros, sem que eles se apercebam disso, o mau odor dos
vcios dos quais conseguiu se libertar com sucesso.

65. Se verdade que nem todos podero desfrutar da


impassibilidade, que liberta de todas as paixes,
igualmente verdade que todos podem se reconciliar com Deus e
obter a salvao eterna.
66. Evitem estimar e querer imitar certas pessoas que devem
ser estranhas a vocs, ou seja, pessoas curiosas que
pretendem temerariamente penetrar nos segredos da divina
Providncia, aprofundar as iluminaes que Deus distribui
para algumas almas privilegiadas e pronunciar para si
prprias que Deus faz acepo de pessoas. Todo esse tipo de
gente nos fazem ver realmente o quanto so os tristes filhos
e infelizes escravos do orgulho.

67. A avareza, para se ocultar, se cobre s vezes com o manto


da humildade; a vanglria, ao contrrio, bem como a
incontinncia, fazem grandes esmolas. Quanto a ns, faamos
todos os esforos para nos libertar dessas duas paixes
detestveis, e no cessemos de ter sentimentos de
benevolncia para com os pobres, e de fazer-lhes o bem.

68. Alguns j disseram que existem demnios inimigos de


outros demnios, e que eles guerreiam uns contra os outros.
Quanto a mim, tudo o que eu sei que todos desejam a perda
de nossas almas.

69. Nossos exerccios espirituais, sejam exteriores e


visveis ou interiores e invisveis, so normalmente
precedidos de uma boa resoluo e de um bom propsito, de uma
santa afeio e de um piedoso desejo; mas todas essas
disposies felizes, ns as devemos graa de Deus, que age
em ns e conosco.

70. Sem um bom propsito, ns no faramos boas obras; pois


se, como nos ensina o Eclesiastes, tudo o que se passa sob o
cu deve ser feito em um tempo conveniente, ns estamos
essencialmente obrigados em nosso santo estado, que uma
repblica celeste, a considerar com a maior ateno quais so
as coisas que convm s circunstncias nas quais nos
encontramos, e de que maneira elas convm; pois certo que,
para os que combatem na carreira da vida religiosa, existe um
tempo em que se desfruta de uma grande tranquilidade de alma
e no qual se est livre de toda perturbao e de toda
agitao. Falo aqui aos que acabam de ingressar dessa santa
carreira. Tambm certo que existe um tempo de lgrimas e um
tempo de aridez e de dureza do corao, um tempo para
obedecer e um tempo para comandar, um tempo para jejuar e um
tempo para comer, um tempo de guerra no qual nosso corpo o
inimigo a combater, e um tempo de paz em que triunfamos com
sucesso sobre os ardores da concupiscncia, um tempo de
tempestade e um de serenidade, um tempo de tristeza e um de
alegria, um para ensinar e um para aprender, um tempo em que
o inchao do corao mancha a conscincia e um tempo em que a
humildade a purifica; um tempo de combate e um tempo de
repouso, um tempo de tranquilidade e um de trabalho, um tempo
para orar longamente e com assiduidade e um tempo para
exercer as funes de estado dou de seu emprego. por isso
que, longe de nos deixarmos arrastar por um ardor cheio de
orgulho, no faamos cada coisa seno no tempo assinalado e
conveniente. Evitemos buscar no inverno os frutos que s
encontraremos no vero, e tentar colher quando se trata de
semear; pois existe um tempo destinado a semear os gros
preciosos do trabalho, dos suores e das austeridades, e um
outro tempo para recolher seus frutos inestimveis e
incompreensveis.

71. Existem pessoas que, por uma disposio secreta e


impenetrvel da divina providncia, recebem a recompensa do
trabalho antes mesmo de inici-lo; outros, enquanto o fazem;
outros, depois de hav-los terminado; outros ainda s a
recebem aps a morte. Devemos tentar entender aqui quais so
as mais humildes dentre esses diferentes tipos de pessoas.

72. Lembraremos aqui que existe uma espcie de desespero que


provm da multitude de pecados que cometemos, das censuras
que nos sacodem a conscincia e da tristeza cruel e
insuportvel que a viso de sua enormidade inspira alma.
Esse desespero acontece normalmente aos que so oprimidos
pela quantidade impressionante de feridas que suas paixes
lhes causaram, e que sucumbem sob o peso imenso de suas
iniquidades. Observaremos tambm que existe outro tipo de
desespero que nasce do orgulho e da tola estima que sentimos
por ns mesmos. Esta nova espcie de desespero tpico das
pessoas que, depois de haverem tombado em algumas faltas
considerveis, no querem reconhecer serem culpadas por elas.
Mas se refletirmos um pouco, veremos que quem tem a
infelicidade de se entregar ao primeiro tipo de desespero
est exposto a cair em toda espcie de crimes, e que quem se
entrega ao segundo tipo poder ainda continuar a ser fiel
exteriormente aos santos exerccios da vida religiosa, ainda
que seus sentimentos sejam contrrios sua conduta. No
entanto, estes dois tipos de pecadores podem encontrar a
cura: o primeiro, corrigindo-se em colocando-se em fiel
confiana; o segundo, praticando a humildade e deixando de
fazer julgamentos temerrios.

73. Existe uma coisa extraordinria e surpreendente, mas que


no deveria espantar ningum, que escutar as pessoas que
fazem os discursos mais edificantes e em seguida v-las cair
nas faltas mais temveis. De fato, o orgulho nos cus
desnaturou e ps a perder os anjos.

74. Que em todas as suas aes e em todos os seus exerccios


sua regra consista em examinar suas poses e suas operaes
corporais, bem como as que so puramente espirituais, e ver
se esto em conformidade com a lei de Deus; e esta regra diz
respeito tanto aos que esto submetidos ao jugo da obedincia
como os que no reconhecem superior. Assim, por exemplo, se
desde o comeo de nossa carreira religiosa nos dedicamos a
algum exerccios, pouco ou muito importante, e se depois de
nos havermos dedicado a eles, no nos tornamos mais humildes,
devemos temer que esses exerccios no foram feitos de modo a
agradar a Deus e segundo sua santa Vontade. Com efeito, sendo
to novios nos caminhos da vida religiosa, ser certamente a
humildade que nos far conhecer se nossas aes esto
conformes a Deus; nos que esto bastante avanados na
perfeio, so o repouso da alma e a libertao das paixes
que lhes do este saber; e nos que alcanaram essa perfeio,
a superabundncia da luz celestial.

75. Algumas vezes as almas elevadas avaliam mal as coisas que


de fato tm bem pouca importncia; mas frequentemente os
espritos superficiais e inconsequentes veem como sendo de
grande importncia algo que no nem bom nem perfeito de
modo algum.

76. Quando o ar puro, vemos brilhar os raios do sol; do


mesmo modo uma alma que Deus purificou com sua graa v
brilhar nela mesma os raios da luz celeste.

77. Diremos aqui que cometer uma falta, levar uma vida
ociosa, se entregar negligncia, sentir inclinaes
desregradas e content-las, so coisas distintas umas das
outras. Que aquele que recebeu as luzes necessrias para
encontrar esta diferena a procure com sinceridade.
78. Muitos elevam at o cu e veem como a felicidade da vida,
a graa e o poder de fazer milagres e de ser grande perante
os homens pelos favores e as graas extraordinrias e
sobrenaturais; mas estes se enganam, eles ignoram que os dons
do cu que menos nos expem a quedas so na verdade os mais
preciosos favores que podemos receber de Deus.

79. Um homem perfeitamente purificado de seus pecados conhece


o estado e as disposies interiores de seu prximo, ao menos
de uma maneira imperfeita. Progredindo, ele julga o estado de
alma a partir do corpo.

80. Um fogo insignificante pode incendiar uma floresta


inteira, e uma pequena falta capaz de nos fazer perder todo
o fruto de nossos trabalhos espirituais.

81. Existe um pequeno alvio que podemos conceder a carne


rebelde e inimiga, que d foras alma sem excitar os
ardores da concupiscncia; mas existem tambm grandes fadigas
que a fazem se revoltar contra o esprito. Deus permite que
seja assim a fim de que, no depositando nossa confiana em
ns mesmos, a depositemos somente em Deus, o qual, por meios
ocultos, pode mortificar em ns os fogos mais ardentes da
concupiscncia.

82. Quando vemos pessoas que nos amam segundo Deus e por
Deus, conservemos em relao a elas uma reserva conveniente e
evitemos abusar de certas familiaridades; pois nada to
capaz de prejudicar a amizade e transformar as afeies
ternas em sentimentos de raiva e averso, do que uma
liberdade exagerada.

83. O olho de nossa alma sutil e penetrante; pois,


exceo dos anjos, ele ultrapassa em luz e sutileza a todas
as outras criaturas. assim que vemos que mesmo as pessoas
ainda agitadas por suas paixes desde que ainda no tenham
sido enterradas na lama de seus pecados em virtude do
grande afeto que sentem por seus irmos, conhecem os
pensamentos e os sentimentos que existem em suas almas.

84. Nada mais oposto a um ser simples e espiritual do que a


matria e o corpo; quem ler estas palavras, compreenda-as.

85. As observaes que as pessoas do mundo com seu esprito


mundano e carnal fazem sobre o curso da divina Providncia,
no podem produzir neles, e entre os monges, so trevas
espessas e funestas.

86. As pessoas pouco firmes e pouco constantes na prtica da


virtude no devem ignorar que , pelo fato de Deus tomar um
cuidado especial com sua salvao que ele permite que elas
fiquem expostas a indisposies corporais, a perigos e
acidentes lamentveis; quanto aos perfeitos, devem ver nas
calamidades sensveis uma prova consoladora da presena do
Esprito Santo e uma marca segura do aumento dos dons
celestes em suas almas.

87. Devemos nos precaver contra o demnio que, quando estamos


a ponto de dormir, procura encher nosso esprito com maus
pensamentos. Ele espera que, com nossa negligncia em
expuls-los e em nos armarmos com a orao, nos entreguemos
ao sono junto com esses pensamentos, os quais nos causaro
sonhos maus durante a noite.

88. Existe um esprito que podemos chamar de precursor, que


se apresenta a ns em nosso despertar, a fim de nos tentar e
corromper a pureza de nossa alma com os pensamentos infames
que ele tenta nos inspirar. por isso que devemos tomar o
maior cuidado em consagrarmos a Deus as primcias de cada
dia; pois o dia pertencer quele que dele tomar posse
primeiro. Um grande servidor de Deus me disse um dia estas
palavras memorveis: Eu prevejo e conheo o que serei
durante o dia pelo estado em que me encontro quando ele
comea.

89. Existem muitos caminhos que levam as almas piedade, mas


tambm muitos que as podem conduzir infelicidade eterna.
Dentre as vias que levam salvao, existem algumas que
convm a certas pessoas, mas no a outras, mesmo que a
conduta de umas e outras seja agradvel e Deus.

90. Em todas as tentaes s quais estamos expostos, os


demnios fazem todos os esforos para nos fazer dizer e
cometer coisas inconvenientes. Se eles no conseguem obter o
que desejam, eles tentam habilmente nos fazer dar graas a
Deus pela vitria que obtivemos, com esprito e sentimento de
orgulho.
91. Aqueles que sentem gosto pelas coisas celestes, seja por
terem renunciado voluntariamente s coisas da terra, seja por
terem sido libertos pela morte, sobem gloriosamente ao cu,
enquanto que, ao contrrio, os que no amam seno as coisas
da terra, descem para o fundo aps a morte. No existe meio-
termo.

92. Mas no uma coisa surpreendente que a alma, que foi


criada em nosso corpo e que nele recebeu sua natureza e sua
existncia, e no em si mesma, possa, no obstante existir
fora de nosso corpo, quando a morte a separa dele?

93. As mes piedosas fazem nascer filhos piedosos, e foi o


Senhor que criou suas mes. Ora. Seria absurdo aplicar esta
regra em sentido contrrio.

94. Quem no sente em si a coragem necessria, no deve ir


guerra; o que Moiss, ou antes o Senhor, proibiu aos
israelitas; pois devemos temer que a ltima perdio de uma
alma seja ainda pior do que sua primeira queda.

Do discernimento judicioso

95. Assim como so os olhos que iluminam todos os membros de


nosso corpo, podemos assegurar que a discrio que a luz
de todas as virtudes que devemos praticar. por isso que um
cervo pressionado pela sede busca com mais ardor as guas
refrescantes de uma fonte, e por isso que as almas
verdadeiramente religiosas no buscam conhecer nem
compreender qual a vontade do Senhor a seu respeito, e
menos ainda discernir, no apenas as coisas que lhes seriam
diretamente contrrias ou diretamente conformes, mas ainda
aquelas que lhes seriam contrrias sob um aspecto e conformes
segundo outro. Teramos muito que dizer a respeito, mas a
matria no fcil. Com efeito, seria preciso examinar
aquilo que devemos fazer sem delongas e prontamente, segundo
as palavras da Escritura: No esperem de um dia para outro,
nem de um momento para outro[58], e aquilo que devemos fazer
com vagar, sabedoria e reflexo, como nos advertiu Salomo:
No devemos fazer a guerra seno depois de tomar todas as
precaues necessrias e depois que tudo esteja pronto[59],
e tambm so Paulo, dizendo-nos que tudo deve ser feito com
decncia e segundo a ordem[60]. Mas isto no serve para
todos; no, no a todos que possvel discernir de
imediato e com clareza coisas cujo discernimento bastante
difcil; pois Davi, que estava cheio do Esprito de Deus, e
que, com sua inspirao, nos legou tantas e to belas coisas,
no cessava de lhe pedir o dom precioso do discernimento em
suas oraes fervorosas: Ensine-me, Senhor, a fazer sua
santa vontade, pois voc o meu Deus; e: Conduza-me, meu
Deus, pelo caminho de sua verdade, e instrua-me, porque voc
meu Deus e meu Salvador[61]; e tambm: Faa-me conhecer a
via pela qual devo marchar, porque elevei minha alma at
voc[62].

96. Todos os que so animados pelo desejo sincero de conhecer


a vontade de Deus a seu respeito devem, em primeiro lugar,
imolar sua prpria vontade, renunciar generosamente a si
prprios e orar com uma f viva e ardente e uma grande
simplicidade; em seguida, devem consultar com humildade e
confiana seu superior e mesmo seus irmos, receber suas
opinies e seus conselhos, como se viessem da boca do prprio
Deus, mesmo que sejam contrrios ao objetivo desejado, e
mesmo que os autores desses conselhos e opinies no sejam
to versados nas coisas espirituais; pois Deus bastante
justo e bom para jamais permitir que almas que, com um
esprito de f, humildade e simplicidade, sejam enganadas e
se percam por se submeterem aos conselhos e direo de
outros. Com efeito, por desprovidas de luz e de prudncia que
possam ser as pessoas consultadas com to boas disposies e
com uma viso to pura e santa, ser Deus a falar por suas
bocas. Confesso que, para seguir essa regra, preciso estar
cheio de humildade; mas depois de tudo, se Davi com sua harpa
pode descobrir e conhecer as coisas que desejava, quanto mais
uma alma dotada de razo e inteligncia deve superar as
cordas de um instrumento!

97. Existem muitos que se recusam a utilizar esse meio to


seguro e fcil, porque tm uma complacncia secreta e uma
confiana presunosa em suas prprias luzes. E assim os
vemos, para conhecer a vontade de Deus, empregar mil meios
diferentes que no passam de puras invenes e de vs
opinies.

98. Mas existem outros que, desejando sinceramente saber qual


a vontade de Deus a seu respeito, renunciam a toda afeio
por si prprios, voltam-se humildemente para o Senhor por
meio de preces ardentes, lhe oferecem e sacrificam seus
pensamentos e seus projetos, submetem a ele inteiramente seu
esprito e suas luzes, se despojam perfeitamente da prpria
vontade, a qual tanto os poderia levar a tomar um partido,
como os engajaria em outro; tendo assim perseverado por algum
tempo nestas felizes disposies, eles conseguem enfim saber
o que Deus lhes pede e exige, seja porque aprenderam pelo
ministrio de um esprito enviado de parte de Deus, seja por
conhecerem por si mesmos, porque o prprio Deus apagou de seu
esprito as razes que apoiariam ou destruiriam o partido que
pensavam tomar.

99. Existem outros ainda que, a partir das perturbaes e das


agitaes s quais estavam expostos, tomaram sua deciso e
julgaram em seguida que ela seriam conforme a vontade de
Deus, fundados sobre as palavras do Apstolo: Muitas vezes
quisemos visit-lo, mas Satans nos impediu[63].

100. Outros, ao contrrio, concluram que o que haviam


resolvido fazer seria agradvel a Deus, por terem sido
socorridos por sua graa para execut-lo; e, para se
tranquilizar, eles pensaram nesta sentena: Deus vem em
auxlio daquele que se prope a fazer o bem[64].

101. Assim, quem tem a felicidade de possuir a Deus em seu


corao, recebe dele e sem demora as luzes abundantes que ele
lhe comunica e a certeza de que o que faz est de acordo com
a Sua vontade, seja por colocar sua determinao sobre coisas
que era urgentes, seja sobre coisas que podiam ser adiadas.

102. Permanecer um longo tempo indeciso e irresoluto sobre o


partido a tomar, normalmente no um sinal de que nos falta
o esclarecimento de Deus, mas sim de que somos escravos da
vanglria.

103. Deus no injusto, e os que batem com humildade porta


de suas misericrdias no so despedidos nem rejeitados.

104. essncia para ns considerar essas coisas diante de


Deus a fim de nos propormos a fazer o que deve ser feito logo
e faz-lo, e o que pode ser adiado, adi-lo; pois tudo o q1ue
fazemos com uma inteno reta e pura, desde que seja algo bom
em si mesmo, se o fizermos verdadeira e unicamente por Deus,
e jamais com outra finalidade, mesmo que no seja de uma
santidade perfeita, Deus o levar em conta, no tenhamos
dvida. Mas estaremos correndo riscos, se tivermos a
imprudncia de tentarmos fazer o que est acima de nossas
foras;

105. Os julgamentos de Deus a nosso respeito so


inexplicveis e incompreensveis; e muitas vezes, por uma
disposio especial de sua Providncia, ele no nos deixa
conhecer aquilo que ele gostaria que fizssemos, porque ele
prev com certeza que, se o soubssemos, no o faramos, e
que este conhecimento seria para ns um funesto motivo para
castigos mais severos.

106. Um corao reto na diversidade das coisas que deve fazer


se preserva de toda curiosidade e caminha com segurana pelas
vias da inocncia.

107. Existem almas generosas que, pelo amor ardente com que
queimam por Deus, vivem sempre na prtica de uma humildade
profunda e fazem esforos extraordinrios para praticar
coisas que esto acima de suas foras; mas tambm existem
almas orgulhosas que fazem o mesmo. Reparem que o objetivo e
a finalidade a que os demnios se propem nessas
circunstncia, estes cruis e impiedosos inimigos nossos, o
de nos engajar a fazer aquilo que no podemos, a fim de
omitir o que podemos, de nos fazer perder o mrito e a
recompensa e de nos expor sua prpria irriso.

108. J vi gente que, por causa da fraqueza de sua alma e de


seu corpo, haviam tentado praticar austeridades acima de suas
foras, com o fito de expiar as numerosas faltas que
reprovavam em si; mas fui obrigado a lhes fazer compreender
que Deus no julga tanto o valor de nossos trabalhos e de
nossa penitncia pela grandeza de nossas austeridades, mas
pela medida e a sinceridade de nossa humildade.

109. s vezes a m educao recebida, s vezes a


frequentao com pecadores, que nos precipita no abismo; mas
o mais comum ser apenas a perversidade do corao a nos
fazer perder. Quem vive na solido normalmente est ao abrigo
das duas primeiras causas que fazem cair no pecado, e talvez
at da terceira; mas quem perverso em si mesmo e cujo
corao como um fruto estragado, ser sempre e em toda
parte vicioso; o prprio cu no conseguiria p-lo a salvo.
110. Depois de havermos respondido uma ou duas vezes com
doura e caridade aos que nos atacam, abandonemo-los, sejam
essas pessoas herticas ou pags. Mas se percebermos que no
existem neles ms intenes, mas um desejo sincero de
instruo, no deixemos de lhes dar as instrues santas e
salutares que nos pedem; no entremos em disputa com eles e
no os instruamos seno para fortalecermos a ns mesmos na f
e na piedade.

111. Aquele que, ao ouvir contar as belas aes que os Santos


praticaram, e, vendo que elas ultrapassavam as foras da
natureza, se deixa abater e desesperar, um homem sem juzo
nem razo; pois essas aes nos so teis, e muito, sob dois
aspectos: elas nos incitam a fazer todos os esforos para
caminhar sobre as pegadas dessas almas santas e generosas, e
nos conduzem por meio da humildade a conhecermos a ns mesmos
e a sentirmos nossa miservel fraqueza.

112. Dentre os demnios, alguns so piores do que os outros;


mas os piores de todos so os que nos encorajam no apenas a
pecar, mas a buscarmos cmplices para nossas prevaricaes, a
fim de atrairmos castigos ainda mais temveis. Eu encontrei
em minha vida um homem que, por seus exemplos e lies
funestos havia arrastado outro para um mau hbito. Ora, o
primeiro, que causou a runa espiritual de seu irmo, caiu em
si, deixou de pecar e comeou uma severa penitncia; mas esta
penitncia foi intil e no frutificou, por causa dos pecados
que continuou a cometer o outro, a quem ele havia seduzido.

113. A malcia do demnio varia quase at o infinito; ela


grande e muito difcil de conhecer, e poucas pessoas so
capazes de penetr-la; ouso dizer que ela jamais foi
inteiramente conhecida. Com efeito, como poderamos, vivendo
em meio s delcias e nos entregando aos excessos da
intemperana, observarmos ainda as necessrias viglias, como
se segussemos as leis da mais estrita sobriedade e da mais
rigorosa abstinncia? Donde nos vem que, enquanto jejuamos e
praticamos as maiores austeridades, nos vemos oprimidos pelo
sono? Como acontece que, enquanto guardamos o silncio
perfeito da solido, sentimos nosso corao duro e
insensvel, e que, quando nos entregamos dissipao na
companhia de alguns irmos, experimentamos sentimentos da
mais ardente compuno? possvel compreender porque sonhos
inoportunos nos fadigam noite, mesmo quando sofremos fome e
sede, ou que dormimos livres dessas sonhos, quando estamos
plenamente saciados? Como possvel explicar que, em pleno
seio da pobreza e da temperana, seja nosso esprito envolto
em trevas e nosso corao ferido pela insensibilidade,
enquanto que no meio da abundncia e mesmo dos excessos do
vcio, nos sintamos espirituais e sejamos levados s lgrimas
e penitncia? Ora, de todas essas coisas to diferentes, se
algum recebeu do Senhor as luzes capazes de conhecer suas
razes secretas, que partilhe conosco; pois eu confesso
francamente minha ignorncia. Mas devo dizer no entanto que
essas vicissitudes e essas mudanas to extraordinrias nem
sempre provm da malcia dos demnios, mas s vezes vm de
uma mistura e de uma aliana entre a carne e o sangue, que
formam ao nosso redor um bem estar perigoso e enganador que,
no sei de que maneira, atira nosso esprito nas mais
espessas trevas.

114. Para saber atravs de quais princpios acontecem esses


efeitos contrrios, coisa que dificlima de saber, no
temos outro meio seno nos dirigirmos a Deus com preces
sinceras e feitas com grande humildade; e se, depois de
nossas humildes splicas, ainda experimentarmos as mesmas
perturbaes e a mesma agitao, deixemos de atribuir essas
coisas aos demnios e consideremo-las como simples efeitos da
natureza. Mas no deixemos de observar que muitas vezes a
divina Providncia arranja as coisas de tal modo a que aquilo
que nos parece contrrio aos nossos interesses eternos seja
na verdade favorvel, e que o que Deus quer abater nosso
orgulho e nossa vaidade por todos os meios.

115. Os julgamentos de Deus so um abismo impenetrvel. Quem


tentou sond-los s o fez por causa de uma curiosidade e
orgulho insuportveis.

116. Algum um dia indagou a um homem experiente nos caminhos


de Deus, por que o Senhor, que prev com uma cincia
infalvel as faltas de certas pessoas, nem por isso deixa de
favorecer essas pessoas com os dons mais raros e preciosos, e
mesmo com a virtude de fazer milagres; , respondeu ele,
para tornar os outros homens mais sbios e mais vigilantes,
para nos fazer conhecer a liberdade de que desfruta nossa
vontade, e para tornar indesculpveis perante o Juzo final
aqueles que tenham cado em pecado depois de haver recebido
favores to extraordinrios.

117. Por causa de suas imperfeies, a Lei se contentava em


dizer aos homens: Vigie e a si mesmo[65]; mas nosso Senhor,
o autor e consumador da Lei, no nos encarregou simplesmente
de vigiar a ns mesmos, mas ainda de corrigir os irmos,
segundo estas palavras: Se seu irmo cair em falta, v e
mostre o erro dele, etc.[66]. Ora, se sua corrigenda for
temperada com sinceridade e modstia, se seu conselho for
caridoso, mais do que uma amarga reprimenda, vocs estaro
cumprindo com preciso a vontade do Senhor, ao realizar este
dever de caridade, sobretudo diante dos que recebam
positivamente suas advertncias e admoestaes; e se voc no
se considerar perfeito coisa que de fato no para dar
lies aos outros, faa ao menos o que a lei manda.

118. Se voc vir seus melhores amigos se tornarem seus mais


cruis inimigos, no se espantem, mas lembrem-se de que os
demnios se servem da perfdia e da inconstncia desse tipo
de gente, como instrumentos necessrios para fazer guerra aos
homens, em especial contra aqueles a quem eles odeiam de modo
particular.

119. A coisa que deve toc-los com extraordinria


estupefao, ver a Deus, que tudo pode, nos ajudar com sua
graa, os anjos e os santos nos socorrerem com sua proteo
na prtica da virtude, enquanto que o demnio, que nada pode,
ser o nico a nos levar ao vcio e nos arrastar com mais
facilidade ao mal do que todo o resto ao bem; mas no posso e
nem quero aprofundar este tema aqui.

120. Assim, se todas as criaturas esto dispostas e


arranjadas conforme s suas naturezas, como possvel,
perguntava-se o santo Gregrio, que eu, que sou a imagem de
Deus, no passe de uma mistura de barro, e seja formado, de
certa forma, desta ignbil matria? Se certo que um ser que
no se encontre num estado que convenha sua natureza faa
todos os esforos para chegar a ela, quais cuidados devemos
tomar e que violncias nos fazer para nos elevarmos at Deus,
que o nosso centro, de modo a merecer nos sentarmos no
trono eterno que sua Ternura nos preparou? Que ningum use a
dificuldade como desculpa para subir ao alto! Pois o caminho
que nos leva at l e a porta pela qual nos introduziremos
so iguais para todo o mundo.
121. O exemplo e os relatos das aes admirveis que nos pais
fizeram para chegar at l devem nos tocar e nos animar com
generosa emulao.

122. A doutrina celeste com a qual alimentamos nossas almas


uma luz capaz de dissipar as trevas que poderiam nos tirar a
vista do caminho que leva para l, de nos conduzir de volta,
quando temos a infelicidade de abandon-lo, e de nos iluminar
constantemente mesmo em meio maior escurido. Quem possui o
dom do discernimento saber encontrar a sade necessria, e
curar sua alma de todas as enfermidades.

123. Costumamos admirar as pequenas coisas nos outros, por


duas razes principais: ou por uma grande ignorncia, ou por
uma profunda humildade que nos faz buscar conhecer e
salientar suas belas aes.

124. Empreguemos todas as nossas foras, no digo para


simplesmente nos defendermos de nossos inimigos espirituais,
mas para atac-los e lhes fazer uma guerra declarada; pois
quem se contenta em resistir aos demnios tanto os fere como
por eles ferido; mas o que lhes faz uma guerra aberta os
persegue at o final.

125. No esqueamos de que quanto mais ferimentos causamos


aos demnios, mais vitrias obtemos sobre nossos maus
pendores, e que, agindo sempre como se estivssemos expostos
sua violncia, usamos de um piedoso artifcio que
desconcerta nosso inimigo e nos torna invencveis. Um dia um
irmo temente a Deus havia sido tratado de forma ignominiosa;
porm ele no sentiu nem perturbao nem emoo, e se
ofereceu inteiro ao Senhor no secreto de seu corao. No
obstante, ele se ps a chorar e a se lamentar os ultrajes
recebidos, e com essa demonstrao ocultou a perfeita
tranquilidade que sentia no fundo de sua alma. Outro monge,
que se considerava realmente indigno de ter um dos primeiros
lugares na comunidade, fingia desej-lo ardentemente. Ousarei
ainda acrescentar outro, cuja castidade e pureza estavam
acima de qualquer suspeita, e que entrou num lugar mal
afamado, como se tivesse a inteno de ofender a Deus, e de
l retirou uma miservel criatura, a quem fez abraar a vida
religiosa. Um solitrio, a quem outro solitrio trouxera pela
manh deliciosas uvas, comeu com grande avidez, embora no
sentisse gosto nem apetite; ele agiu assim para fazer crer
aos demnios que era um homem empedernido. Outro, que perdera
algumas tmaras, passou o dia com cara de quem sofrera uma
grande perda. Mas os que quiserem empregar esses meios para
fazer a guerra ao demnio devem usar de uma grande prudncia
e circunspeco: pois correm o perigo de se tornarem seus
prprios joguetes ao agir assim, e essas pessoas certamente
devem se contar entre aquelas de quem o Apstolo falou: So
considerados como sedutores e enganadores, mas so amigos
sinceros da verdade[67].

126. Se algum pensa e deseja oferecer a Deus um corpo casto


e lhe apresentar um corao puro, que se dedique a praticar a
pacincia e a doura, a temperana e a mortificao; pois sem
essas virtudes, suas penas e trabalhos no lhe sero de
grande valia.

127. O sol da inteligncia derrama em nossa alma luz que so


mais ou menos abundantes e mais ou menos vivas, a fim de que
ela distinga os objetos espirituais, do mesmo modo como os
olhos distinguem os objetos materiais. De fato, tanto ele nos
ilumina por meio das lgrimas da penitncia que ele derrama
pelos olhos do corpo, quanto por meio dos gemidos interiores
que ele faz pulsar em nosso corao; aqui por meio de uma
santa alegria que a palavra de Deus incita em nossa alma, ali
pelo repouso e a obedincia que ele derrama sua luz
benfazeja. Mas alm dessas maneiras, existe uma outra em
especial, secreta e inexplicvel: quando a alma, por um
celeste arrebatamento, colocada na presena de Cristo.

128. Devemos considerar as virtudes sob dois aspectos, seja


como filhas, seja como mes. Todos os que so dotados de
sabedoria e prudncia fazem seus esforos para adquirir e
conservar as virtudes-me, e o prprio Deus, pela
onipotncia de seu Esprito, quem nos faz conhecer essas
virtudes. Quanto s virtudes-filhas, no faltam mestres para
no-las ensinar.

129. Devemos ainda cuidar para no substituir pelas douras


do sono as delcias das quais nos privamos jejuando e nos
mortificando. Agindo assim, estaremos sendo insensatos; a
conduta oposta sim prova de sabedoria.

130. Encontrei alguns servidores de Deus que, por certas


razes, haviam relaxado um pouco sua mortificao s
refeies; mas eles haviam tomado a generosa resoluo de
passar as noites em viglias, sem sequer sentar-se para
repousar. Por este meio eles se puniram to bem de sua
intemperana, que em seguida puderam se abster de todo
excesso no comer, no apenas com facilidade mas ainda com uma
alegria e contentamento deliciosos.

131. O demnio da avareza muitas vezes faz a guerra contra


pessoas que nada possuem. Ele no cessa de persegui-las. Se
ele no consegue faz-las abandonar a pobreza por si mesmas,
ele procura desvi-las, inspirando-lhes sentimentos de
comiserao em favor dos indigentes. por meio dessa
tentao sutil e por esse pretexto especial que muitas
pessoas que haviam se libertado com sucesso da afeio pelas
coisas da terra s quais haviam renunciado, retornam
miseravelmente aos negcios tumultuosos do sculo.

132. Se a viso de nossas faltas nos inspira o pensamento do


desespero, apressemo-nos a considerar a ordem que um dia o
Senhor deu Pedro, quando o ordenou perdoar setenta e sete
vezes a quem o houvesse ofendido[68]. Ora, aquele que indicou
este preceito a seu apstolo, nos perdoou e nos perdoar
certamente muitas vezes. Se, ao contrrio, a lembrana e o
pensamento de nossas boas obras que incham nosso corao e
nos sugerem sentimentos de orgulho, devemos opor a esta
tentao as palavras: Aquele que tiver cumprido com toda a
lei espiritual, mas que faltar em um nico ponto, como por
exemplo se deixando levar pela vaidade, ser punido como se
houvesse faltado com toda a lei[69].

133. Pode acontecer de os demnios, to maus como invejosos,


no se retire de perto das almas santas seno para que,
deixando estes de lhes fazer guerra, fiquem privados de obter
sobre eles novas vitrias e de aumentar seus mritos e seus
tesouros.

134. Ningum duvida que as pessoas pacficas meream ser


chamadas de felizes; e no entanto j vi pessoas consideradas
felizes, embora s levassem a discrdia e a desunio aos seus
irmos! Com efeito, havia dois homens que se amavam com um
amor criminoso; um padre, dos mais virtuosos e mais
esclarecidos, tentou separ-los, inspirando neles uma averso
mtua. Ele o conseguiu, dizendo a um que seu amigo havia
falado mal dele, e fez o mesmo ao outro. Foi assim que a
sabedoria e a prudncia deste bom padre desmanchou a malcia
e os triques do demnio, e que, por uma espcie de averso
que ele lhes sugeriu, acabou por expulsar o amor impuro do
corao daqueles infelizes.

135. Existem pessoas que, para serem fiis a determinados


pontos da lei, parecem violar outros; assim que j observei
jovens que se amavam muito, mas com uma afeio pura e casta,
os quais, para no causar escndalo entre os irmos e no
ferir sua conscincia, interromperam as relaes de sua santa
amizade.

136. Assim como um casamento difere de um funeral, o orgulho


contrrio ao desespero, embora esses dois vcios, pela
malcia dos demnios, se achem algumas vezes reunidos numa
mesma pessoa.

137. Existem espritos impuros que, quando nos iniciamos na


religio, se apressam em interpretar por si mesmos as santas
Escrituras; eles o fazem sobretudo aos que so escravos da
vanglria, e mais ainda, aos que, no mundo, estudavam as
cincias humanas e viviam segundo a prudncia do sculo. O
objetivo desses demnios em se conduzir assim perante essas
pessoas consiste em faz-las cair em alguma heresia, ou faz-
las proferir blasfmias. Nessas circunstncias, a perturbao
interior da alma, uma alegria indiscreta e imoderada do
corao nos faro saber que essas interpretaes provm do
demnio, e que elas no podero nos explicar as palavras
sagradas, mas obscurec-las e profan-las.

138. Existem criaturas a quem Deus determinou a ordem e o


princpio; outras, a quem Deus igualmente ordenou e
determinou o termo e o fim; mas a virtude possui um fim que
sem fim, segundo o salmista: Eu vi as coisas mais perfeitas;
mas seu mandamento, Deus, de uma extenso infinita[70].
Ora, se existem pessoas capazes de passar dos exerccios da
vida ativa s virtudes e ao santo repouso da vida
contemplativa, se existem coraes nos quais age a caridade,
e dos quais o Senhor, segundo o pensamento do rei dos
profetas, guarda a entrada que o temor de seus
julgamentos e a sada que o amor por sua bondade no
fica evidente que esse amor de Deus sem limites e sem fim,
porque sempre possvel progredir mais e mais nele, seja
neste mundo, seja no outro, onde nossas luzes recebero sem
cessar novos esplendores? E ainda que aquilo que vou dizer
possa parecer um paradoxo a muitos, no hesitarei, bem-
aventurado pai, em extrair esta consequncia de tudo o que eu
disse, e direi ento que os esprito celestes no permanecem
no mesmo estado e que sua glria e seus conhecimentos
aumentam sempre.

139. No se espantem se os demnios nos inspiram


primeiramente alguns bons pensamentos, e a seguir os combatem
em ns de certa maneira: pois com isso eles pretendem nos
fazer crer que conhecem perfeitamente o que existe de mais
oculto em nosso corao.

140. Sejam prudentes e discretos nas censuras e nos


julgamentos que fizerem sobre as pessoas que do aos outros
numerosas, belas e sublimes lies, mas que pouco as colocam
em prtica para si mesmas; pois pode acontecer que os
benefcios que elas trazem aos seus irmos substituam as boas
obras que elas deixam de fazer. Com efeito, no no mesmo
grau nem da mesma maneira que iremos adquirir e possuir os
bens da alma, pois existem os que so melhores nas palavras
do que nas aes, enquanto que com outros acontece o
contrrio

141. Deus no nem o autor nem o criador do mal; enganam-se


os que pretendem que certas paixes sejam naturais da alma,
ignorando que ns que transformamos em paixes as
qualidades constitutivas de nossa natureza. Por exemplo, a
natureza nos fornece o esperma para nossa procriao; mas ns
o pervertemos, utilizando-o para a luxria. A natureza nos
deu a clera contra a serpente, mas ns nos servimos dela
contra o nosso prximo. A natureza nos anima de zelo para a
emulao da virtude, mas ns o usamos para o mal. Existe na
alma, por causa da natureza, o desejo de glria, mas da
glria do alto. natural sermos arrogantes, mas contra o
demnio. A alegria tambm natural, mas por causa do Senhor
e do bem que chega ao nosso prximo. A natureza tambm nos
deu o ressentimento, mas contra os inimigos da alma. Ns
recebemos o desejo de uma alimentao agradvel, mas no
pelos excessos da mesa.

142. Uma alma generosa excita os demnios contra si. Mas


quando os combates aumentam, as coroas se multiplicam. Quem
jamais foi ferido pelo inimigo, tambm jamais ser coroado.
Ao contrrio, quem no se deixa abater apesar das quedas,
ser glorificado pelos anjos como um bom combatente.

143. Aquele que permaneceu por trs dias no tmulo e


ressuscitou para no mais morrer; pelo mesmo motivo, aquele
que, em trs ocasies diferentes, venceu as tentaes, j no
estar exposto a morrer.

144. Se Deus, a fim de nos instruir e nos corrigir, permite


que o Sol de Justia, segundo a expresso de Davi, depois de
se ter elevado em nossa alma, alcance o momento de se por e
desaparecer, causando alma com sua ausncia trevas
profundas e uma noite escura, e se, durante esta noite
desoladora, os lees furiosos e outros animais ferozes, vale
dizer: nossas paixes, se retornam sobre ns, ainda que os
tivssemos antes derrubado e vencido, e fazem novos esforos
para nos roubar a bela esperana que tnhamos na vitria, e
tambm para nos sujar fazendo-nos consentir em maus
pensamentos e assim cometer aes criminosas; se, enfim,
nossa humildade profunda faz com que mais uma vez nasa sobre
ns o sol de luz, e que todas as bestas selvagens se renam
para se retirar para seus covis, ou para os coraes desses
miserveis que se deliciam com as volpias sensuais, para no
mais nos inquietarem, ento os demnios so obrigados a
confessar que, para sua vergonha, o Senhor fez grandes coisas
em nosso favor[71], e que ele nos deu uma prova sensvel de
sua bondade e de sua benevolncia; quanto a ns, podemos lhes
responder: Certamente o Senhor fez grandes coisas, e estamos
inundados de alegria[72]. Quanto a vocs, que sofreram essa
terrvel provao da parte dos demnios, podero dizer: Eis
que o Senhor subir numa nuvem rpida, ou seja, sobre suas
almas acima de todas as afeies terrestres, e entrar no
Egito, vale dizer no corao que antes se achava repleto de
trevas espessas, cumulado com os ventos impetuosos das
paixes, e todos os dolos do Egito tombaram diante de sua
Face, ou seja, todos os maus pensamentos foram
dissipados[73].

145. Se Cristo no hesitou em fugir da presena de Herodes,


no foi para nos ensinar que os temerrios e os imprudentes
no devem se atirar no meio dos perigos? Com efeito, ao se
expor temerariamente, eles se tornam indignos de que o Senhor
vele por eles para impedir que seus ps sejam embaraados
pelos esforos de seus inimigos, e meream que aquele que
est encarregado de cuidar deles cochile e adormea[74].

146. O orgulho se mistura magnanimidade, mais ou menos como


a trepadeira, que se parece com a hera, se entrelaa no
cipreste. Vigiemo-nos com grande cuidado, e no
negligenciemos nada para no deixar entrar em nosso esprito
pensamento algum, por mais inocente que nos parea, e que
seja capaz de nos fazer crer que possumos a menor virtude, e
que tenhamos feito sequer uma boa obra de qualquer valor.
Quando sentirmos essa tentao, examinemos sria e
atentamente as propriedades e as marcas do bem e da boa obra
que acreditamos ter feito: este exame no deixar, sem
dvida, de nos convencer que somos inteiramente desprovidos
de todo bem e de toda virtude. Procurem exatamente e
descubram quais so as paixes que mais tiranizam seus
coraes; pois esta descoberta os far conhecer um grande
nmero de outras que vocs ignoram.

147. Ns os ignoramos precisamente porque estamos debaixo de


seu funesto domnio, porque eles j nos reduziram a uma
deplorvel fraqueza e porque j lanaram em nosso corao
razes muito profundas.

148. Nas coisas que ultrapassam absolutamente nossas foras


Deus se contenta com a boa vontade com a qual as realizamos;
mas o mesmo no acontece com aquelas que nos so possveis:
sua bondade exige imperiosamente que as faamos.
Verdadeiramente grande diante de Deus que faz todo o bem
que pode; mas ainda maior aos seus olhos quem, com
sentimentos de uma humildade sincera, se esfora por fazer
mais do que pode.

149. Mas ainda aqui devemos desconfiar dos demnios, pois


muitas vezes eles nos desviam das coisas fceis que somos
obrigados a fazer, para nos levar a tentar coisa maiores e
mais difceis.

150. Vi na santa Escritura que Deus louvou o santo patriarca


Jos, no por ter ele preservado seu corao de toda afeio
desregrada, mas por ter fugido da oportunidade de pecar. Ora,
cabe a ns ver em quais circunstncia e quanto f possumos
para que mereamos a recompensa reservada queles que fogem
da ocasio do pecado. Existe uma grande diferena entre
evitar, mesmo a sombra do pecado, e correr para junto do Sol
de Justia.

151. Quem vive no meio das trevas de suas paixes, est


terrivelmente exposto a tropear. E estes tropeos e quedas
que elas lhe proporcionam acabaro por lhe trazer a morte.
Normalmente bebendo muita gua que as pessoas que tomaram
vinho em excesso recobram o uso da razo que haviam perdido
por causa da bebida; e por meio das lgrimas sinceras da
penitncia que aqueles a quem os vapores envenenados das
paixes fizeram perder as luzes preciosas da graa, podem
recuper-las e sair desses estado deplorvel.

152. Se deixar levar s faltas contra a continncia, se


atirar dissipao e se deliciar nas trevas so trs coisas
muito diferentes entre si. A abstinncia, a mortificao e os
jejuns podem nos purificar dos pecados que cometemos contra a
castidade; a solido e o retiro so capazes de nos curar da
dissipao; uma estrita obedincia e uma humilde submisso
so prprias para nos fazer sentir averso s trevas e para
nos tirar delas; mas acima de tudo, ser a graa daquele que
se tornou obediente por nossa causa, que poder nos libertar
de todos esses males.

153. Podemos ainda aqui nos servir do exemplo de dois tipos


de operrios que trabalham para limpar e preparar os tecidos
necessrios para fazer roupas, para compreendermos que
existem duas maneiras das quais devem se servir os que
desejam ardentemente se preparar para merecer e receber os
dons celestes. por isso que chamaremos os mosteiros de
prensas, porque nessas casas que as almas so de certo modo
prensadas e purificadas de suas manchas, se desembaraam da
ferrugem das paixes e abandonam suas deformaes; chamaremos
de lugares onde so tingidas as ls lavadas e purificadas a
solido dos anacoretas e as celas dos religiosos, porque l
que as pessoas que foram lavadas das ndoas que a
incontinncia, a lembrana das injrias e os movimentos de
clera haviam imprimido em suas almas, levam perfeio
ltima sua santificao.

154. Existem os que dizem que as recadas no pecado costumam


acontecer porque no fizemos uma penitncia adequada dos
pecados, proporcional grandeza e ao nmero de faltas
cometidas. Mas poderemos afirmar que fizeram uma penitncia
verdadeira, todos os que no tiveram mais recadas?

155. Ouso dizer aqui: as pessoas que recaram no pecado, foi


porque, de um lado, esqueceram cedo demais das faltas
cometidas; de outro, porque sua preguia e negligncia as
levaram a crer que Deus demasiado bom e misericordioso;
enfim, porque elas desesperaram de vencer suas paixes e de
resistir aos seus maus pendores; e no sei se no me
condenaro por acrescentar que alguns que recaem no pecado o
fazem porque no conseguem mais vencer seus inimigos, porque
esto submetidos ao jugo de sua tirania e se veem
acorrentados por ligaes com os maus hbitos que contraram.

156. Podemos examinar aqui o porqu de nossa alma, que um


puro esprito, no ser capaz de ver os espritos que possuem
a mesma natureza que ela, nem conhecer de que maneira eles
recebem as impresses dos objetos. Mas no podemos imaginar
que ela no v os outros espritos por causa de sua unio com
o corpo, que lhe serve de vu? De resto, o nico que conhece
este mistrio Aquele que criou a alma e o corpo e que uniu
um ao outro.

157. Um homem dos mais esclarecidos me fez um dia esta


questo: Diga-me, pois desejo ardentemente aprender, quais
so os demnios que, fazendo-nos cair em pecado, abatem a
coragem das pessoas seduzidas por eles; e quais so os
demnios que, depois de levar a cometer faltas, inflam o
corao dos que corromperam. Mas como ele me viu embaraado
com essa questo difcil de responder, e que de resto eu lhe
confessei sob juramento que no seria capaz de lhe responder,
ele prprio respondeu ao que perguntara, e me disse com
bondade: Vou lhe dar alguns exemplos que o faro conhecer
alguns desses espritos malignos, e que reunidos s suas
prprias luzes serviro para faz-lo discernir os demais. Os
demnios que levam luxria, clera, intemperana,
preguia e ao desnimo no costumam levar orgulho s pessoas
que se entregam a esses vcios desonrosos; mas os demnios
que conduzem avareza, dominao, s honrarias,
loquacidade, costumam acrescentar pecado sobre pecado,
enchendo o corao de orgulho e de vaidade: por essa razo
que o demnio que nos incita a fazer julgamentos temerrios
se rene a esses ltimos.

158. Um monge que visita estrangeiros ou que os recebe em sua


cela, e que, depois de estar entretido por horas inteiras ou
talvez por todo o dia com eles, sente tristeza porque deve se
separar, ao invs de experimentar um sentimento interior de
alegria por se ter livrado de uma companhia que o impedia de
cumprir seus deveres, demonstra ser um triste joguete do
demnio da vaidade ou do demnio da incontinncia.

159. Devemos antes que todas as coisas prestar ateno de que


lado vem o vento da tentao, a fim de no inflar as velas do
barco espiritual de nossa alma de um modo prejudicial e
contrrio.

160. No h dvida de que a caridade deve nos levar a buscar


algum consolo e suavidade aos ancios verdadeiros que
passaram longos anos nos exerccios da vida religiosa e que
desgastaram seus corpos com jejuns e austeridades; mas essa
mesma caridade deve nos engajar fortemente a conduzir
prtica da continncia por todos os meios possveis, e acima
de tudo por meio do pensamento dos juzos de Deus, da
eternidade e dos suplcios do infernos, aos jovens que, por
causa dos inmeros pecados de sua jovem vida, tm a
infelicidade de tanto maltratar suas pobres almas.

161. impossvel, conforme j dissemos, que logo depois de


nossa converso e de nossa entrada na religio nos vejamos
perfeitamente liberados dos movimentos da intemperana e dos
sentimentos de vanglria. Evitemos querer combater a vaidade
com o luxo e as delcias; pois a prpria vitria que as
pessoas recm convertidas obtm sobre a gula lhes inspira
sentimentos de vanglria. Antes sirvamo-nos da abstinncia
para combater e vencer a vaidade; pois chegar a hora, para
os que tm boa vontade, em que o Senhor nos conceder enfim a
graa de submeter essa funesta paixo.

162. Mas observemos aqui que no so as mesmas paixes que


fazem a guerra aos jovens e aos velhos que acabam de se
converter e se consagrar ao Senhor na religio. Com efeito,
so muitas vezes paixes contrrias que atacam a uns e
outros. por isso que chamamos feliz e duplamente feliz a
santa humildade por meio da qual os velhos e os jovens
encontram sua salvao e a vitria sobre suas tentaes, e
que eles podem facilmente encontrar e praticar, tanto uns
como outros.
163. No se perturbem com o que vou dizer: encontramos
dificilmente e raramente almas direitas e puras que sejma
isentas de toda malcia, de toda dissimulao e de toda
hipocrisia, que tenham verdadeiro horror pela sociedade e
pelas conversaes mundanas, que sigam com constncia e
estrita fidelidade as opinies e conselhos de um bom diretor,
que meream passar da paz e tranquilidade da vida solitria e
religiosa que um porto felicidade celeste, e que
possam se preservar das sujeiras, das agitaes e dos
escndalos que se encontram em toda parte, inclusive nas
comunidades religiosas.

164. Deus, para converter os homens voluptuosos, serve-se


normalmente de outros homens: ele emprega o ministrio dos
anjos para a converso das pessoas cheias de artifcios e
malcia; mas somente ele pode operar a converso dos
orgulhosos.

165. Em favor das pessoas que se aproximam retiradamente de


vocs, empreguem essa espcie de caridade que consiste em
deixa-las agir; permitam que faam o que quiserem, e durante
esse tempo mostrem-lhes sempre a benevolncia e um rosto
simptico e jovial.

166. No obstante, preciso examinar e conhecer de que


maneira vocs devem usar dessa indulgncia, at quanto tempo
e em que circunstncias devem e podem utiliz-la; enfim,
saber e poder contar que a penitncia feita desta maneira,
que no foi estabelecida seno para destruir e eliminar o
pecado, no ser capaz de destruir tambm as virtudes e a
disciplina religiosas.

167. Precisamos de um grande discernimento e de uma rara


prudncia para distinguir o bem e para sabermos quando
podemos cessar ou continuar os diferentes combates que
sustentamos contra a matria e o cadinho do pecado; pois pode
acontecer que, devido nossa miservel fraqueza, nos seja
necessrio evitar o combate, empreendendo uma sbia fuga, a
fim de evitar o encontro com os inimigos para no estarmos
expostos a sermos vencidos e perecer miseravelmente.

168. preciso ter para com essas ocasies crticas um


cuidado e uma ateno particulares; pois s vezes a amargura
faz o fel parecer suave: examinemos seriamente quais so os
demnios que nos inflam o orgulho, que nos abatem e nos
desencorajam, que nos endurecem e nos tornam insensveis, que
nos consolam e acariciam, que nos precipitam nas trevas e que
depois fingem nos iluminar, que nos tornam estpidos e
bestiais, espiritualmente iludidos, que nos atiram num humor
sombrio e triste e que nos restabelecem no contentamento e na
alegria.

169. Se, no incio de nossa retirada e de nossa carreira na


vida religiosa, nos sentimos mais agitados e mais
atormentados por nossas paixes, do que quando estvamos em
pleno sculo, no nos perturbemos e no fiquemos espantados;
pois necessria uma grande comoo nos humores que nos
ocasionaram as enfermidades para podermos chegar a uma cura
perfeita. De resto, quando estvamos no mundo, as paixes
semelhantes a animais selvagens buscavam a obscuridade, a fim
de que, no as vendo, no nos inspirasse horror.

170. Os demnios podem provocar uma falta, uma fraqueza nas


pessoas que no estavam afastadas da perfeio; estas devem
relevar corajosamente e com grande vantagem por meio da
pacincia, e, pela prtica das boas obras, reparar ao
cntuplo a perda.

171. Vemos algumas vezes que os ventos fazem apenas ondular o


mar, e que outras vezes eles o agitam at em seus abismos;
ora, observamos os mesmos efeitos nas paixes em relao a
ns mesmos: pois existem aqueles que ficam expostos ao seu
furor, e que s vezes so perturbados e agitados at o fundo
de sua alma; e h os que, por uma vitria obtida sobre elas e
pelo progresso feito na virtude, geralmente no se perturbam
mais do que na superfcie de sua alma. por isso que estes
ltimos, conservando seu corao puro e inocente, logo entram
na paz e na calma de uma boa conscincia.

172. Somente aos que alcanaram a perfeio dado conhecer e


discernir sempre quais so os pensamentos que vm de sua
prpria conscincia, quais os que provm de Deus e quais
provm dos demnios; pois esses espritos malignos e
traioeiros nem sempre nos inspiram pensamentos contrrios
piedade. por isso que o discernimento que devemos ter a
respeito dos pensamentos que so obra sua no fcil obter.

173. Concluamos dizendo que, assim como nosso corpo


iluminado pelos olhos, tambm nossa alma iluminada pelos
olhos sutis e penetrantes da discrio.
Breve recapitulao de tudo o que precede.

1. Uma f firme nos conduz eficazmente a renunciar ao mundo,


mas a falta de f ocasiona o contrrio em ns.

2. A esperana inquebrantvel a porta pela qual expulsamos


de nosso corao todas as afeies pelas coisas da terra; mas
a ausncia desta virtude opera o efeito oposto.

3. O amor a Deus nos faz abandonar generosamente o sculo,


mas a indiferena ao Senhor nos retm nele.

4. A obedincia produzida pelos julgamentos que


pronunciamos contra ns mesmos e pelo desejo de recuperar a
sade de nossa alma.

5. A conservao desta preciosa sade obtida por meio de


uma severa abstinncia. o pensamento da morte, a lembrana
do fel e do vinagre que foram apresentados ao Senhor no
Calvrio, que engendram em ns a santa e salutar abstinncia.

6. A solido e o repouso do e conservam a temperana e a


castidade. O jejum extingue os fogos da concupiscncia. A
contrio e a compuno so inimigas irreconciliveis dos
maus pensamentos.

7. A f, assim como a fuga do mundo, causa a morte da


avareza. A comiserao e a caridade so capazes de nos fazer
expor nossa prpria vida para aliviar nossos irmos.

8. A preguia encontra seu tmulo no exerccio contnuo e


fervoroso da prece. A lembrana dos julgamentos de Deus
enchem o corao de fervor e devoo.

9. O amor s humilhaes extermina a clera.

10. A salmodia, a bondade do corao e o amor pobreza


enchem a alma de uma alegria totalmente celeste.

11. A insensibilidade em relao s coisas sensveis e


corporais nos faz sentir e saborear as coisas espirituais.

12. O silncio e o retiro so os carrascos felizes da


vanglria; e, se voc estiver numa comunidade religiosa, ser
o amor ao desprezo.

13. O rebaixamento e o aviltamento exteriores podem nos curar


do orgulho, exteriormente; mas somente Deus, que existe desde
antes dos sculos, pode nos curar interiormente.

14. O cervo, diz-se, despreza o veneno de todos os animais


peonhentos, e a humildade consome e faz desaparecer o veneno
de todos os maus pensamentos.

15. As coisas criadas e sensveis que vemos servem para


conhecermos as coisas espirituais que no vemos.

16. Como impossvel serpente se desfazer de sua pele


velha se no passar por alguma pequena abertura bem estreita;
da mesma forma nos impossvel corrigir nossos maus hbitos,
renovar a juventude de nossa alma, desembaraarmo-nos da
tnica do homem velho, se no passarmos pelo caminho estreito
e difcil do jejum, do despreza e da humilhao.

17. Assim como os pssaros cheios de carne e de gordura no


podem se elevar muito nos ares, tambm no o pode aquele que
nutre e agrada sua carne.

18. Assim como a lama ressecada no pode mais servir aos


porcos para se espojar, tambm nossa carne seca e ressequida
pelos jejuns e as austeridades j no prpria para servir
de retiro e de repasto aos demnios.

19. Assim como muita lenha verde afoga as chamas e produz


muita fumaa, tambm uma tristeza levada ao excesso enche a
alma, por assim dizer, de fumaa e trevas, e faz secar a
fonte das lgrimas.

20. Como um cego no ser bem sucedido fazendo tiro ao alvo,


tambm um discpulo que resiste ao seu superior e o reprova,
no poder seno perecer de modo deplorvel.

21. Como uma pea de ferro em bom estado capaz de afiar


outra que no est igualmente boa, tambm um monge fervoroso
capaz muitas vezes de proteger da danao eterna um
religioso desleixado e preguioso.

22. Assim como os ovos deixados num lugar quente e fechado


do pintinhos, tambm os pensamentos de bem, cuidadosamente
escondidos, acabam normalmente por produzir aes e se
manifestando atravs delas.

23. Assim como os cavalos de corrida animam-se mutuamente na


carreira, tambm os religiosos que vivem juntos sob a mesma
regra se incitam uns aos outros prtica das virtudes e da
disciplina.

24. Assim como as nuvens escondem o sol e obscurecem o brilho


de sua luz, tambm os maus pensamentos obscurecem as luzes de
nossa alma e a expem a se desviar e se perder.

25. Assim como um criminoso condenado pena capital no se


diverte, ao partir para o local da execuo, falando de
divertimentos e de espetculos, tambm uma pessoa
verdadeiramente aflita por suas faltas no se ocupa na terra
em contentar suas inclinaes pela intemperana e a boa mesa.

26. Assim como os pobres, ao verem os grandes tesouros de um


rei, conhecem e sentem mais vivamente sua misria, tambm uma
alma que contempla as admirveis virtudes dos santos se torna
mais humilde e se confunde, da por diante, com a viso de
sua indigncia espiritual.

27. Como o m, por fora de sua natureza, atrai o ferro para


si, tambm os homens que se deixam corromper e dominar pelos
maus hbitos so violentamente atrados pelo pecado.

28. Assim como o azeite acalma o mar, por mais furioso que
esteja, tambm, por violentos que sejam os ardores da
concupiscncia, eles sero incapazes de resistir virtude do
jejum e da mortificao.

29. Como as guas comprimidas em canais estreitos se elevam


no ar com mpeto, tambm uma alma cercada e pressionada por
perigos se lana com fora para Deus por meio das santas
lgrimas da penitncia e assim obtm sua salvao.

30. Como algum perfumado, mesmo que no queira, se anuncia


fazendo sentir seu suave odor por todos, tambm uma pessoa
que possui o esprito de Deus, mesmo que no queira, d a
conhecer aos outros, por suas aes e sua humildade.
31. Assim como o sol torna o ouro visvel fazendo-o cintilar,
tambm a virtude faz brilhar quem a possui.

32. Como os ventos impetuosos suscitam tempestades


amedrontadoras no mar, tambm a paixo da clera, mais do que
as outras paixes, excita furiosas tempestades numa alma e a
perturba.

33. Assim como as coisas que no vemos nos do pouco desejo


por possu-las, ainda que tenhamos ouvido falar delas, tambm
aquele que conservou seu corpo puro e casto no pensa nos
prazeres dos sentidos e vive em grande contentamento.

34. Assim como os ladres no frequentam os lugares onde


ficam guardadas as armas do Estado, tambm os demnios se
previnem de visitar as pessoas que sabem estar continuamente
armadas com a orao.

35. Assim como no possvel ao fogo produzir neve, tambm


no possvel que um homem que no tenha ardor seno pelas
coisas da terra possa merecer a glria celeste.

36. Como uma pequena fagulha pode colocar fogo numa imensa
floresta e reduzi-la a cinzas, tambm uma nica boa ao pode
apagar e eliminar um grande nmero de faltas considerveis.

37. Assim como sem boas armas no se pode exterminar animais


ferozes, tambm impossvel vencer e exterminar a clera sem
as armas da humildade.

38. Como no h meio natural de conservar a vida seno


comendo e bebendo, tambm no se pode conservar a vida da
alma seno por maio da vigilncia e da perseverana na
virtude.

39. Assim como os raios do sol, ao penetrar num cmodo, o


iluminam e permitem distinguir os menores objetos, tambm o
temor a Deus no corao, iluminando-o, lhe permite ver as
ndoas produzidas ali pelo pecado.

40. Assim como fcil agarrar os caranguejos, por causa dos


seus movimentos, s vezes para trs, s vezes para frente,
tambm uma alma que se atira a uma alegria imoderada e logo
ao pranto, penitncia por seus pecados e logo s douras de
uma vida folgada e afeminada, se deixa agarrar pelo demnio,
perde os frutos de seu trabalho e perece.

41. Assim como fcil roubar tudo das pessoas mergulhadas no


sono, tambm os que se tornam paralisados pelos vapores do
sculo cujas mximas seguem, abrem todas as avenidas de seu
corao aos ladres de almas e aos assassinos de boas obras.

42. Assim como um homem que combate contra um leo furioso


no pode desviar os olhos deste inimigo perigoso sem se
arriscar a ser devorado, tambm aquele que combate contra sua
prpria carne no pode desviar os olhos de sua ateno e de
sua vigilncia sem se colocar num perigo iminente de se
perder por toda a eternidade.

43. Como as pessoas que sobem numa escada podre colocam sua
vida em perigo, tambm as dignidades, a glria, o poder e a
autoridade, que so todos inimigos da humildade e consistem
em degraus verdadeiramente podres, colocam aqueles que os
possuem em risco de se perder por toda a eternidade.

44. Como algum que devorado pela fome pensa


necessariamente em po, tambm as pessoas que desejam com
verdadeiro ardor alcanar a salvao, pensam necessariamente
na morte e nos julgamentos do Senhor.

45. Como a gua serve para apagar as letras, tambm as


lgrimas da penitncia servem para nos purificar de nossos
pecados.

46. Se no tivermos gua para apagar as letras, podemos


empregar outros meios; o mesmo acontece em relao aos nossos
pecados: em lugar das lgrimas, podemos nos servir dos
suspiros, dos gemidos e de uma viva contrio.

47. Como uma grande quantidade de estrume produz uma


quantidade prodigiosa de vermes de toda espcie, tambm uma
grande quantidade de comida produz em ns uma multido
inumervel de iniquidades, de maus pensamentos e de sonhos
desonestos.

48. Como um cego no enxerga para caminhar, um preguioso no


pode ver o bem, nem fazer o bem.
49. Como algum que tem os ps acorrentados no pode caminhar
sem grandes dificuldades, tambm os que acumulam tesouros
sobre tesouros se colocam em posio de no conseguir chegar
ao Reino dos Cus.

50. Como uma ferida recente pode facilmente ser curada,


tambm , por um princpio contrrio, as feridas inveteradas
da alma so difceis de curar, mesmo que sejam suscetveis de
cura.

51. Como um pessoa a quem a morte feriu j no pode mais


caminhar, tambm impossvel que aquele que desespera de sua
salvao possa, enquanto estiver neste miservel estado,
salvar sua alma.

52. Um homem que afirma professar a verdadeira f, mas que


cai sem cessar no pecado, se parece com uma pessoa que no
tem olhos.

53. Um homem que no tem f, mas que realiza boas obras, se


parece com um insensato que retira gua de um poo para
coloc-la num odre furado.

54.Assim como um barco dirigido por um piloto experiente e


protegido do cu chega com sucesso ao porto, tambm uma alma,
ainda que tenha a infelicidade de cair por um tempo num
grande nmero de pecados, se for dirigida e conduzida por um
diretor cheio de sabedoria, de luzes e de prudncia,
alcanar facilmente o porto da salvao e obter o cu.

55. Como um viajante sem guia, por mais prudente que seja,
perder muitas vezes o caminho e se perder, tambm o
religioso que vive e se conduz por si prprio se desviar do
caminho e se perder, por mais perfeita que seja a sabedoria
mundana com que for dotado.

56. Que aquele que cometeu faltas enormes, e que no pode


suportar os rigores da penitncia por causa de enfermidades
corporais, caminhe estritamente sobre a via da humildade; que
siga em tudo o esprito e os sentimentos que so prprios
desta virtude, pois para ele no existe outro modo capaz de
lev-lo salvao.

57. Como algum que sofreu uma molstia longa e grave no


pode recuperar num instante sua sade perfeita, tambm o
pecador que, durante longo tempo esteve sob a servido das
paixes, ou mesmo de uma nica paixo, no capaz de se
livrar disso de um golpe s.

58. Considerem atentamente o vcio e a virtude, e descobriro


os progressos que fizeram para se corrigir do primeiro para
adquirir a segunda.

59. Como algum que troca ouro por barro no faz uma troca,
mas incorre apenas numa perda real, tambm as pessoas que
falam das coisas espirituais da mesma maneira que das coisas
mundanas, a fim de satisfazer sua vaidade, sofrem uma perda
essencial

60. Se podemos dizer que existem pecadores que receberam logo


o perdo de seus pecados, no podemos afirmar que haja
pessoas que deste modo tenham alcanado a impassibilidade:
pois este um favor que no pode ser obtido seno depois de
muito tempo e trabalhos, e por uma graa particular de Deus.

61. Observemos com toda ateno quais so os animais


selvagens e quais as aves que procuram roubar de nosso
corao a semente da graa, seja antes de germinar, seja
enquanto ainda muda, seja quando os frutos alcanaram a
maturidade, e tratemos de lhes estender exatamente as mesmas
armadilhas que nos pem, e de faz-los cair em nossas redes,
ao invs de nos deixarmos prender nas suas.

62. Se mpio e injusto que um doente coloque fim a seus


dias para terminar com as dores cruis que lhe faz sofrer uma
febre ardente, igualmente mpio e injusto para um pecador,
enquanto tiver ainda um sopro de vida, se precipitar nos
horrores do desespero.

63. vergonhoso para um homem que acabou de cumprir com seus


ltimos deveres para com seu pai, passar da beira de seu
tmulo para uma animada festa de bodas; tambm vergonhoso
para um pecador que geme e chora por suas numerosas
prevaricaes, buscar as honras, os prazeres e a glria da
vida presente.

64. As casas que hospedam os cidados no so construdas da


mesma maneira que aquelas onde se encerram os prisioneiros e
os criminosos; assim, preciso que vivam de modo diferente
as pessoas que fazem penitencia por seus pecados, em relao
quelas que, durante sua vida, jamais tiveram a infelicidade
de sujar sua conscincia com uma falta mortal.

65. Um grande general evita dispensar um soldado que traz


ferimentos honorveis; ele eleva sua dignidade, a fim de se
servir beneficamente de coragem e sua bravura contra os
inimigos do Estado. Ora, assim que age o Rei dos reis em
relao a um religioso que sustentou com grande valor os
combates contra os demnios.

66. A sensibilidade algo prprio de nossa alma; mas o


pecado fere esse sentimento com redobrados golpes e o cobre
de vergonhosos tapas. este sentimento precioso que em nossa
conscincia alimenta ou diminui a paz e os remorsos; ela
mesma que d nascimento aos remorsos, e ela que dirige ou
reprime o anjo guardio que Deus nos concedeu pelo batismo.
por essa razo que vemos que as pessoas que no receberam
este sacramento no sentem tanto remorso quando cometem ms
aes.

67. medida que deixamos de cair em pecado, perdemos o


hbito de comet-los. Ora, essa desistncia do pecado se
torna o comeo da penitncia; o comeo da penitncia se torna
o comeo da salvao; o comeo da salvao, a resoluo de
bem viver; a resoluo de bem viver, o comeo dos trabalhos;
o comeo dos trabalhos, o comeo das virtudes; o comeo das
virtudes, o comeo da flor das virtudes; o comeo da flor das
virtudes, o comeo da boa vontade; o comeo da boa vontade, o
comeo do costume da virtude; o comeo do costume da virtude,
o comeo do temor a Deus; o comeo do temor a Deus, o comeo
da fidelidade em observar os mandamentos do Senhor; o comeo
da fidelidade em observar os mandamentos do Senhor, o comeo
do amor ao Senhor; o comeo do amor ao Senhor, o comeo de
uma profunda humildade; o comeo de uma profunda humildade, o
comeo da paz soberana do corao; e o comeo da paz soberana
da alma se torna a perfeio da caridade. Ora, esta perfeio
da caridade ela prpria esta santa e perfeita amizade com a
qual Deus honrar todos os que, tendo se libertado das
afeies desregradas, possuem a pureza em seus coraes. Pois
eles vero a Deus[75]. A ele, honra e glria por todos os
sculos dos sculos. Amm.
VIGSIMO STIMO DEGRAU

Do repouso sagrado do corpo e da alma, ou da vida eremtica e


solitria

1. Foram sem dvida a vergonhosa escravido de minhas paixes


tirnicas e os males que elas me fazem sofrer, que me
ensinaram as artimanhas maldosas, a conduta maliciosa, a
dominao cruel e as mentiras desoladoras dos demnios. Mas
felizmente nem todos os homens experimentam a mesma
infelicidade; pois existem aqueles que possuem uma
conscincia plena e inteira dos artifcios desses espritos
das trevas, pela presena interior do Esprito Santo, que os
ilumina com suas divinas luzes, depois de t-los preservado
de suas armadilhas e embustes; existe uma grande diferena
entre uma pessoa que julga a alegria e o contentamento que
traz a sade aps uma longa e dolorosa enfermidade, e a que
julga as dores que devemos sofrer durante a molstia pela
alegria que experimenta na sade. Como nos encontramos entre
aqueles a quem a doena rouba as foras, receamos com razo
falar a vocs do porto tranquilo e feliz da solido. De
resto, sabemos bem que no existe comunidade, por santa e
regular que seja, na qual, semelhante a um co faminto junto
mesa de seu dono, o demnio no se encontre e no esteja
continuamente emboscado para surpreender uma alma e carreg-
la para um local secreto e escondido, a fim de devor-la a
seu gosto. Assim, para no favorecer o demnio e no dar
ocasio aos temerrios de ser devorados por este co raivoso,
devo declarar aqui que no falarei nem da paz nem do repouso
da solido s pessoas que, nos combates que sustentam sob o
estandarte de nosso Rei, mostram tanta fora, coragem e
constncia; eu me contentarei em dizer-lhes que suas coroas e
suas recompensas no sero inferiores s que sero concedidas
aos que, por amor a Deus, vivem na solido dos desertos. No
obstante, para que ningum se ponha a murmurar por no termos
dito nada a respeito da vida eremtica e de seus benefcios,
diremos alguma coisa, mas com reserva.

2. O repouso do corpo, de que se trata aqui, consiste no


conhecimento e na arrumao de todos os movimentos e de todos
os sentidos segundo a razo iluminada e dirigida pela f. O
repouso da alma o conhecimento de suas operaes
espirituais e uma dedicao calma e inviolvel ao santo
exerccio da orao.

3. O verdadeiro amigo da vida eremtica toma resolues


inquebrantveis e fortes, vigia sem cessar porta de seu
corao para interditar a entrada a todos os maus pensamentos
ou para sufoc-los. Aquele que alcanou esse precioso repouso
do corao deve certamente me compreender; mas ainda est bem
longe de saber em que consistem a paz e a tranquilidade da
alma, aquele que acabou de entrar no caminho da piedade, e
que ainda no provou de suas maravilhosas douras. O
solitrio prudente e experiente no precisa que lhe dirijam
longos discursos e suficientemente iluminado pelas boas
aes de sua vida.

4. O primeiro degrau da vida eremtica consiste em afastar


tudo o que pode causar distraes alma e perturbar a paz do
corao; e a perfeio dessa vida consiste em no temer mais
nada e em permanecer imvel e insensvel no meio dos maiores
objetos de confuso e distrao.

5. Quem pretende avanar nos caminhos desta vida bem-


aventurada, gosta especialmente de guardar silncio, de
praticar a mansido e de fazer constantemente de seu corao
o santurio da caridade.

6. Quem no gosta de falar se entrega dificilmente clera,


enquanto que um grande falador ser frequentemente e
facilmente escravo dessa paixo incendiria.

7. O verdadeiro solitrio se esfora em manter encerrado como


numa priso em seu prprio corpo a substncia incorprea da
alma supremo paradoxo.

8. O gato, para agarrar alguns ratos, utiliza mil artifcios


e uma grande ateno; o solitrio deve empregar todos os
recursos de seu esprito e a maior vigilncia para agarrar o
demnio, que um rato muito ruim. Que esta comparao, eu
lhes peo, no lhes parea desprezvel, ou eu serei obrigado
a lhes dizer que vocs ignoram completamente em que consiste
a vida eremtica.

9. O religioso que vive na solido bem diferente do


religioso que vive em comunidade. O solitrio deve jejuar
muito, ter muita fora de esprito e uma grande coragem para
perseverar, pois tudo o que ele possui seu anjo guardio
para socorr-lo e protege-lo, enquanto que o cenobita pode
sempre receber o auxlio de seus irmos.

10. Os esprito celestes tm prazer em permanecer ao lado e


agir com um bom anacoreta; mas podemos dizer o mesmo de um
mau solitrio?

11. imensa a profundidade dos mistrios da f; um abismo


sem fundo. Quem quiser penetrar a no poder faz-lo sem se
expor evidentemente a se perder.

12. A cela de um solitrio encerra seu corpo, e seu corpo


encerra o princpio de seus pensamentos.

13. Qualquer um que, achando-se agitado por paixes


insolentes, ouse abraar a vida eremtica, comparvel a um
insensato que, viajando por mar, salta no meio das ondas na
esperana de que uma simples prancha seja capaz de lev-lo
com sucesso ao porto.

14. Aqueles que precisam combater uma carne rebelde no podem


ainda se retirar para a solido. preciso que aguardem um
tempo favorvel; e mesmo com a chegada deste tempo, ainda
precisaro encontrar um condutor prudente, sbio e piedoso.
Com efeito, para abraar uma vida to perfeita, preciso ter
a virtude e a fora dos anjos; entenda-se bem, quando falo
assim, que me refiro apenas vida solitria, que se refere
tanto ao corpo como ao esprito, e que separa o homem
completamente da sociedade humana.

15. O solitrio negligente no temer empregar a mentira para


fazer crer aos outros, por meio de palavras obscuras e de
duplo sentido, que eles devem faz-lo deixar a solido; mas
assim que abandona a cela, ele se agarra ao demnio. Infeliz!
No sabe que ele mesmo seu prprio demnio?

16. J vi anacoretas que, no deserto, satisfaziam


admiravelmente bem seu desejo ardente de agradar a Deus por
meios extraordinrios, constantes e mil vezes repetidos;
ademais, eles acrescentam sem cessar novas chamas ao seu amor
por Deus, novos ardores sua piedade e ao seu fervor, e uma
nova vivacidade de desejo piedoso.
17. Um verdadeiro anacoreta um anjo terrestre que, por sua
vigilncia e seu fervor, bane de suas preces e de suas
comunicaes amorosas com Deus toda espcie de negligncia e
tibieza.

18. Este pode com sucesso dizer sempre a Deus: Meu corao
est pronto, meu Deus, meu corao est pronto[76]; ou
ento: Eu durmo, mas meu corao vigia[77].

19. Fechem estritamente a porte de sua cela ao seu corpo, a


porta de sua lngua s palavras e a porta de seu interior ao
demnio.

20. A serenidade e os ardores do sol do meio dia permitem


conhecer a pacincia do marinheiro; a privao das coisas
necessrias vida demonstra a constncia do anacoreta em
sofrer, pois o marinheiro fatigado pelos raios do sol que o
queimam pode se atirar gua para se refrescar, enquanto que
o solitrio abatido pelo desgosto que lhe causa a solido se
precipita no meio da multido para a encontrar a dissipao.

21. No tema, veja como se fossem jogos as tempestades que os


demnios suscitam ao nosso redor. A verdadeira penitncia no
teme nem treme.

22. Todos os que costumam fazer suas oraes com a disposio


requerida falam a Deus da mesma maneira como um favorito fala
a seu soberano; mas as pessoas que s falam com a boca se
assemelham gente que, quando o rei comunica seu conselho,
se atiram aos seus ps; e as que oram estando ainda no sculo
parecem homens que apresentam peties ao seu prncipe no
meio do tumulto de todo o povo. Entendam o alcance dessas
comparaes, se tiverem a felicidade de conhecer o verdadeiro
modo de orar.

23. Cuidado para se manterem na parte mais elevada de vocs


mesmos para ver como, quando e de onde vm os ladres que
desejam devastar a vinha espiritual de sua alma, e para saber
o quanto eles so numerosos.

24. Uma alma fatigada pelos exerccios de piedade poder se


restabelecer e assistir orao, e depois retomar seus
exerccios espirituais com ardor renovado.
25. Um homem que havia provado pessoalmente tudo o que
mencionei, tomara a deciso de s falar disso com cuidado e
exatido; mas ele temia que, se o fizesse, diminuiria o ardor
das pessoas que se apresentavam para o combate cheias de zelo
e de coragem, e que, pelo rudo de suas palavras ele poderia
assustar os que marcham generosamente no caminho da
perfeio.

26. Quem quer que fale da vida solitria com exatido e


conhecimento atrair sobre si a fria dos demnios, pois ele
ensinar a discernir os meios artificiais que esses
miserveis utilizam para fazer com as almas se percam.

27. O anacoreta cheio de fervor penetra nos julgamentos


secretos do Senhor; mas ele no recebe este favor eminente
seno depois de haver combatido e vencido mil tentaes,
triunfado sobre os demnios num grande nmero de combates,
expulsado para longe de si toda perturbao e toda agitao
e, podemos acrescentar, depois de ter sido amassado e moldado
sob o peso dessas provas terrveis. Se no me engano, o que
o prprio apstolo Paulo nos mostra com seu exemplo. Com
efeito, teria ele conhecido os segredos inefveis que lhe
foram revelados, se antes no tivesse sido transportado ao
cu, como a um lugar de repouso perfeito[78]?

28. Deus permitir escutar grandes coisas, a quem levar uma


vida anglica na solido. por isso que vemos no livro de J
este homem sbio que, falando em nome desse repouso sagrado e
sbio da solido, pronuncia esta sentena: No far o Senhor
que escutem meus ouvidos coisas extraordinrias?[79].

29. realmente um bom praticante dos deveres da vida


eremtica, aquele que, sem averso, evita com todo o cuidado
encontrar as pessoas que tentam v-lo. Pois ele age assim
para conservar as douras celestes que teve a felicidade de
experimentar.

30. Se vocs quiserem deixar o mundo para viver na solido,


desfaam-se prontamente de tudo o que ainda os pode ligar ao
sculo; distribuam todos os seus bens aos pobres, pois, para
vend-los, seria preciso tempo; deem-nos sobretudo aos monges
pobres, a fim de que eles unam suas preces s de vocs, e que
vocs se tornem dignos de abraar a vida solitria. Em
seguida tomem sua cruz e carreguem-na cumprindo fielmente
todos os deveres impostos pela santa obedincia. Sustentem
corajosamente o fardo que lhes for imposto ao renunciar de
modo perfeito prpria vontade: Venham e me sigam, e eu os
conduzirei a este repouso bem-aventurado, a esta santa
familiaridade e a esta inefvel unio com Deus, e lhes
ensinarei os exerccios e a maneira de viver das potncias
celestes. Ora, assim como os anjos jamais deixaro, durante
os sculos eternos, de catar louvores a Deus, tambm uma
pessoa que penetrou no paraso da solido no cessar de
celebrar a glria de seu criador e benfeitor. As puras
inteligncias no sofrem as penas das necessidades corporais,
porque no possuem corpos; e os homens que, por assim dizer,
mesmo tendo corpos no tm corpos, no mantm nenhuma
inquietao com relao s suas necessidades corporais. Os
anjos no precisam se alimentar, e os religiosos solitrios
se alimentam sem sentimentos de prazer. Os anjos desprezam o
ouro e as riquezas, e os solitrios acrescentam a esse
desprezo o desdm pelas perseguies que lhes fazem os
demnios. Os espritos celestes no so tocados nem movidos
pelo amor s coisas visveis, e os anacoretas, cujo corpo
est sobre a terra, mas o corao est no cu, so igualmente
insensveis a todas essas coisas: toda sua estima e afeio
esto voltadas para os bens celestes. Os anjos sempre iro
progredir no amor a Deus, e os solitrios nunca deixaro de
caminhar sobre suas pegadas. As beatitudes celestes no
ignoram que seu progresso no amor a Deus aumenta suas
riquezas e seus tesouros, e os anacoretas sabem bem que eles
crescem na graa de Deus na medida em que crescem em seu amor
e seu fervor por Ele. Enfim, estes fervorosos religiosos no
se detero jamais, mas faro todos os esforos para chegar o
mais prximo possvel da perfeio dos Serafins, e no tero
repouso enquanto no se tiverem tornado novos anjos. Feliz
aquele que espera usufruir de tamanha felicidade! E trs
vezes feliz aquele que, tornando-se um anjo no cu, possui a
a alegria pela qual suspirou com tanto ardor sobre a terra!

Diferentes aspectos da vida eremtica

31. Ningum ignora que em todas as artes e todas as cincias


existem opinies diversas e sentimentos diferentes; pois os
homens no so igualmente perfeitos em todas as coisas, tanto
pela falta de trabalho e de diligncia como pela falta de
inteligncia e de luzes. assim que vemos gente se
apressando em correr para a solido, na esperana de a
encontrar um porto seguro de salvao; mas, infelizmente, o
que encontram um abismo sem fundo que os engole: onde
pretendiam curar a lngua da intemperana nas palavras e os
vergonhosos hbitos do corpo, tudo o que conseguiram foi
aumentar seus males. Vemos a outros voando para os desertos,
porque, no conseguindo triunfar sobre seu humor irascvel
enquanto viviam entre os irmos, esperam venc-lo mais
eficazmente na solido; mas este um erro miservel. Vemos
outros abraarem a vida eremtica porque, cheios de orgulho,
preferem viver segundo sua prpria vontade a se deixar
conduzir por um superior ou um diretor; outros seguem para a
solido porque, vivendo em meio a situaes perigosas, no
tm em si a fora para resistir a elas; outros desejam a vida
solitria a fim de cumprir mais estritamente com seus
deveres; outros escolhem esse gnero de vida a fim de poder
punir mais severamente as prprias faltas; outros no buscam
a solido seno para fazer nome diante dos homens; outros,
enfim, supondo que o Filho do homem, voltando terra para
julgar o mundo, aqui encontrasse semelhantes pessoas,
unicamente inflamadas pelo amor a Deus e encontrando neste
amor as delcias inefveis, se entregam vida eremtica como
a uma esposa unicamente amada. E eles no tomam este caminho
sem antes fazer um divrcio absoluto em relao negligncia
e tibieza. Com efeito, a unio da vida eremtica com um
esprito de preguia gera uma espcie de fornicao
espiritual.

32. Tais so as diferentes disposies que levam os homens


vida eremtica: o que pude expressar segundo minhas poucas
luzes; cabe a cada um encontrar quais lhe fazem desejar viver
na solido. Ser por ser a opo mais fcil, no seguindo
seno a prpria vontade, ou ser para buscar a estima dos
homens? Ser para mortificar a incontinncia da lngua, ou
para triunfar sobre a clera? Ser para fugir das ocasies de
pecado, ou para expiar mais facilmente as faltas cometidas?
Ser para se tornar mais rgido e mais fervoroso nos
exerccios da piedade, ou para aumentar em si mesmo o fogo
sagrado do amor a Deus? Os primeiros sero os ltimos, e os
ltimos sero os primeiros. Ora, desses oito tipos de vida
solitria existem sete que representam os sete dias da
semana, e esta semana a imagem da vida presente; mas
algumas agradam a Deus, outras lhe so odiosas. Quanto
ltima, podemos dizer ousadamente: ela a imagem da
felicidade eterna.

33. Vocs que vivem na solido, observem atentamente o tempo


em que os animais ferozes que fazem a guerra s suas almas
costumam atacar; de outro modo ser impossvel a vocs
estenderem as armadilhas capazes de as prender e encarcerar.
Se a preguia, qual vocs renunciaram inteiramente, no
lhes faz mais companhia, vocs combatero e vencero sem
dificuldade todos os inimigos; mas se, ao contrrio, ela
ainda reina em vocs, eu no vejo como nem por que louvar o
gnero de vida que vocs abraaram.

34. De onde vem que no haja tantos homens extraordinrios em


luzes e em santidade no mosteiro de Tabene do que em Sceta?
Poderia haver. No posso falar a respeito, ou melhor: no
desejo faz-lo.

35. Dentre aqueles que passam sua vida em profundas solides,


alguns trabalham especialmente no sentido de mortificar suas
paixes; outros se entregam ao conto dos salmos ou empregam a
maior parte de seu tempo no santo exerccio da orao;
outros, enfim, se dedicam meditao e contemplao das
coisas do cu. Quem quiser saber quais so as pessoas mais
avanadas na virtude e na perfeio da vida eremtica, poder
faz-lo se servindo da comparao com os degraus de uma
escada. Mas quem desejar dar uma soluo a este problema no
se dedique a tanto seno na medida das luzes que recebeu do
Senhor.

36. preciso confessar aqui que existem nos mosteiros


cenobticos almas relaxadas e preguiosas que, encontrando
objeto e ocasio de alimentar sua vergonhosa e criminosa
indolncia, no caminham, mas correm para a perda eterna; mas
existem outras que aproveitam o ardor e o zelo das pessoas
com as quais vivem para se corrigir de sua tibieza e de sua
negligncia. Mas no so s os homens formados e dominados
pela preguia que se perdem nos mosteiros: acontece ainda de
os mais fervorosos relaxarem pelo mau exemplo dos negligentes
e preguiosos.

37. Ora, o mesmo que dizemos da vida cenobtica, somos


obrigados a dizer da vida eremtica: pois muitas pessoas que
a abraaram, antes de faz-lo pareciam ser fervorosos e
prprios prtica das virtudes mais belas e mais raras; mas
essa vida os estragou e corrompeu, porque eles s entraram
nela para viver e se conduzir com mais liberdade e segundo
seus gostos. por isso que eles deveriam perceber e se
reprovar por no ser seno pessoas amigas dos prazeres e das
comodidades da vida. Outros, ao contrrio, que desde o
princpio no haviam escolhido a solido seno por um
esprito de preguia e desleixo, tocados e apavorados com o
pensamento daquilo que os espera no tribunal de Deus, quando
tero que responder pela aes de sua vida, fizeram prodgios
no caminho da virtude e adquiriram um grande fervor nos
exerccios da piedade.

38. Que aquele que escravo da clera, do orgulho, da


dissimulao, da hipocrisia e da lembrana das injrias,
evite dar um s passo para entrar na solido; pois de se
temer para este homem, que o nico fruto que ele obter com
sua temeridade, ser cair num funesto enrijecimento. Quanto
aos que se libertaram com sucesso de seus vcios, talvez
possam compreender o partido que devem tomar; mas no creio
que o possam fazer sozinhos ou por si prprios.

39. As qualidades, as ocupaes e os raciocnios das pessoas


que, por razes suficientes, abraaram a vida solitria,
consistem na calma perfeita da alma que se colocou ao abrigo
de todas as tempestades excitadas pelo vento das paixes, nos
pensamentos santos e puros, numa unio ntima com Deus, na
lembrana constante dos suplcios eternos, no pensamento da
morte que nos ameaa de perto, num amor insacivel pela
orao, na vigilncia constante sobre os sentidos, na total
runa das afeies desonestas, na libertao dos apetites
carnais, na morte do esprito e das mximas do mundo, na
indiferena quanto ao que comer, na meditao das verdades
sobrenaturais, nas luzes de um discernimento sbio e
prudente, no dom das lgrimas de uma penitncia sincera, na
recusa absoluta aos discursos vos e inteis, e em tudo o que
no agradvel s pessoas que vivem sem regra nem ordem.

40. E eis aqui, de outro lado, as marcas pelas quais podemos


reconhecer que no abraamos a vida eremtica por motivos
bons e louvveis: a privao dos dons, das graas e das
riquezas do cu, o aumento do mau humor, os acessos de
clera, a lembrana das injrias, o esfriamento da caridade,
o aumento do orgulho, e muitos outros defeitos sobre os quais
me calarei.
41. Mas, uma vez que chegamos at aqui, me parece que convm
dizer alguma coisa das pessoas que vivem sob a obedincia e a
direo de um superior, ainda mais porque a estes que
dedicamos este pequeno tratado. Diremos ento quais os sinais
que distinguem aqueles que realmente, sinceramente e com
grande pureza de inteno, abraaram esta santa e honrada
virtude da obedincia. Ora, foram nosso pais, este homens
virtuosos e cheios do esprito de Deus, que no-la ensinaram;
e ainda que as qualidades dos felizes filhos da obedincia
no devem receber sua perfeio seno no tempo que o Senhor
fixou para tanto, elas no deixaram de aumentar e crescer a
cada dia entre eles. Esses sinais e essas qualidades da
verdadeira obedincia consistem assim num aumento contnuo da
humildade, numa diminuio progressiva da clera, na extino
do fel e da blis, na dissipao sensvel das trevas do
esprito, no crescimento da caridade, na libertao das
paixes e dos pendores viciosos, numa renncia generosa a
toda averso e a toda raiva, na mortificao da carne segundo
os conselhos recebidos, na fuga de toda preguia e de toda
negligncia, numa diligncia estrita no cumprimento dos
deveres, numa terna e eficaz compaixo para com os irmos e
na destruio perfeita do orgulho. Mas esta ltima qualidade
da obedincia devemos buscar com o maior cuidado para obt-
la; e no entanto muito poucos a possuem: pois, a uma fonte
sem gua, podemos cham-la de fonte? Quem for manso e
inteligente me compreender facilmente.

42. Uma jovem esposa que viola o juramento feito a seu esposo
profana seu corpo e se desonra; uma alma que viola a
confiana que dera a Deus, suja e amesquinha sua conscincia.
A averso pblica, a fraqueza de carter, os castigos e,
acima de tudo, um deplorvel divrcio so os males que atrai
sobre si uma esposa infiel. A infidelidade sacrlega de uma
alma seguida de mil mculas, do esquecimento da morte, de
uma insacivel intemperana, da insolncia e o despudor dos
olhos, do amor vanglria, da necessidade contnua de
dormir, do endurecimento do corao, da cegueira do esprito,
de uma horrvel confuso de pensamentos, de uma vontade cada
vez mais dirigida ao pecado, da escravido s paixes mais
vis, de um tumulto e uma desordem assustadores, do esprito
obstinado e da contradio, de uma abominvel afeio pelas
criaturas, da infidelidade na f, de uma desconfiana indigna
em relao a Deus, de uma insuportvel loquacidade, de uma
licenciosidade horrorosa, de uma v confiana em si prprio
que pode com justia ser vista como o maior dos males e, o
que o cmulo da misria, da secura do corao, que o torna
incapaz do menor gesto de penitncia e de compuno, e que,
quando negligenciada, se transforma numa estpida
insensibilidade, que abre as portas a todos os vcios e a
todos os crimes.

43. Podemos afirmar aqui que dentre os oito pecados capitais,


existem cinco que fazem guerra aos anacoretas e trs aos
cenobitas.

44. Um solitrio que se diverte combatendo a preguia de


forma direta perde um tempo que poderia ser melhor empregado
na prece e na meditao.

45. Eis o que me aconteceu no tempo em que eu vivia


solitrio: um dia fui assaltado em minha cela por uma
desencorajamento to grande, que estava a ponto de abandon-
la; mas ao mesmo tempo chegaram alguns visitantes que me
fizeram tantos louvores sobre a vida que eu levava, que os
pensamentos de vanglria logo expulsaram de mim o desnimo e
outros pensamentos que me abatiam. A este respeito eu nunca
pude admirar suficientemente a maneira com que o demnio da
vanglria derrubou os outros demnios; para eles, foi uma
verdadeira ratoeira.

46. No deixem, a toda hora, de observar os movimentos, as


idas e vindas, bem como a fora das inclinaes que vocs
sentirem pela tibieza que se une intimamente alma, e
conheam bem de onde vm essas coisas funestas, e para onde
elas podem conduzi-los; mas no se esqueam de que somente
so capazes de discernir essas coisas com sucesso as pessoas
que, com o socorro do Esprito Santo, alcanaram a
tranquilidade do corao.

47. A primeira e principal coisa qual um solitrio deve se


dedicar expulsar de seu esprito todos os cuidados e
inquietaes causados pelos diferentes assuntos, bons e maus.
Com efeito, quem se ocupar com paixo dos assuntos bons,
acabar pouco a pouco se ocupando tambm dos maus. E assim
sofrer uma funesta queda. A segunda coisa que lhe ser
necessria uma prece contnua e fervorosa; a terceira, uma
vigilncia estrita de seu corao, capaz de torna-lo
invulnervel. possvel a uma pessoa que no conhece sequer
as letras, ler um livro? Mas isto ser mais fcil do que, ao
solitrio que no possua estas trs coisas de que falamos,
adquirir as duas seguintes.

48. Tendo tido a felicidade de obter a segunda, eu me vi em


meio aos seres que sustentam o estado intermedirio, e um
deles me ensinou as coisas que eu desejava saber. Ainda
estando em meio a eles, eu me permiti perguntar-lhes qual era
o estado no qual eles contemplavam o Filho de Deus antes de
sua encarnao; e o mesmo anjo me respondeu, dizendo que ele
no poderia satisfazer minha questo, porque o Filho de Deus,
prncipe e rei dos anjos, no lhe permitia. Diga-me ao
menos, respondi-lhe eu, em que estado ele se encontra
presentemente. Eis a resposta que ele me deu: Ele est no
estado que lhe prprio, e no em outro. Mas, indaguei
ainda, de que maneira est ele sentado direita de Deus
Pai?. Trata-se de um mistrio, respondeu ele,
incompreensvel ao esprito humano. Por fim eu implorei
receber aquilo que eu desejava com tanto ardor. A hora,
disse-me ele, ainda no chegou; voc no possui a chama do
fogo celeste. Ora, eu no sei nem posso afirmar se esta
viso se passou no meu corpo ou fora do meu corpo.

49. raro que ao meio dia, sobretudo durante o calor do


vero, no sintamos necessidade de dormir. Neste momento, e
somente nele, convm se ocupar de algum trabalho manual.

50. Minha prpria experincia me fez conhecer que o demnio


da acdia que se apresenta primeiro a ns, a fim de preparar
o caminho para o demnio da luxria. por isso que ele
agarra fortemente os msculos e os nervos de nossos corpos
para paralis-los e nos mergulhar no sono, a fim de que,
neste estado, ele possa nos fazer cair em alguma falta.
Assim, se voc resistir fortemente e com coragem a esses dois
demnios, eles lhe faro uma guerra extrema e, para
desencoraj-lo e faz-lo abandonar o campo de batalha, faro
todos os esforos e se utilizaro de todos os meios pra faz-
lo acreditar que voc no obter nenhum benefcio espiritual
pela vida solitria que voc abraou; mas nada demonstra
melhor que os vencemos, do que quando eles nos atacam com
mais furor.

51. Voc obrigado a sair de sua cela e aparecer em pblico?


Cuidado para no perder o pouco de virtude que adquiriu. De
fato, se voc deixar a porta de uma gaiola aberta, os
pssaros no demoraro a fugir dali. O mesmo podemos dizer
das boas obras de um solitrio, se deixar a porta de seu
corao aberta dissipao.

52. O menos objeto nos olhos fadiga e perturba a viso, e o


menor cuidado inquietante perturba a paz e o repouso da
solido; pois a vida eremtica consiste essencialmente em
deixar de lado todos os pensamentos e todas as inquietaes
da vida presente, mesmo as que parecem justas e permitidas, a
fim de no se ocupar seno dos assuntos da eternidade.

53. As pessoas que abraaram essa vida com todo corao no


se preocupam sequer com os cuidados e necessidades do corpo;
pois eles sabem que Aquele que prometeu cuidar de seus filhos
no ser capaz de faltar com sua palavra.

54. Quem pretende oferecer a Deus uma alma pura e digna de


lhe ser agradvel, mas que ao mesmo tempo agitado por mil
cuidados com as mais diversas coisas, se parece com algum
que, tentando correr mais depressa e caminhar mais
facilmente, amarrasse pesos aos seus ps.

55. Poucos so os homens que fizeram nome das cincias e na


sabedoria da filosofia; mas mais raros ainda so os que
mostraram excelncia na cincia e na filosofia essenciais
vida eremtica.

56. O homem que no conhece a Deus nem se comunica com ele


com uma santa familiaridade, est longe de poder levar essa
vida, e, se a abraar, se expe a uma infinidade de perigos;
pois a solido sufoca os que no possuem nenhuma experincia
nos caminhos do Senhor, e que, no tendo jamais experimentado
as douras do Senhor, passam seu tempo em meio a trevas
fatigantes, contnuas distraes, desnimos dilacerantes, uma
tibieza delirante e preguias insuportveis.

57. Quem possuir com sucesso o dom da orao, evite


cuidadosamente a borbulhante sociedade dos homens; fuja com
tanto horror como o asno[80]; pois no a prpria orao que
o torna, de certa forma, selvagem, retirando-o totalmente da
companhia dos seus semelhantes?
58. Quem ainda refm dos pendores desregrados do corao
devem empregar todo seu tempo na solido, para reprimir seus
movimentos e resistir a eles. o que me ensonou este santo
ancio George Arsilaita, cujo nome e virtudes, meu reverendo
Pai, no lhe so desconhecidos. Eis o que ele me disse,
quando, sem sucesso, ele tentava e se ocupava em me formar
nos exerccios da vida eremtica: Eu observei, dizia-me ele,
que os demnios da vanglria e da luxria nos atacam
sobretudo pela manh, e que ao meio dia nos tentam o demnio
da preguia, da clera e da tristeza, e tarde o demnio
da intemperana que nos faz a guerra.

59. Um cenobita pobre vale infinitamente mais que um


anacoreta continuamente agitado por distraes.

60. Quem entra na solido por motivos justos e razoveis, e


que no observa a cada dia algum progresso na virtude, ou
qualquer outro benefcio espiritual, deve se perguntar se
est se conduzindo de acordo com o esprito de Deus, ou se
est se deixando enganar pelo demnio do orgulho.

61. A vida solitria consiste numa unio contnua com Deus


por meio de um amor ardente e de uma adorao perptua.

62. Que a lembrana de Jesus reine sempre no seu esprito e


no seu corao! Assim voc comear a conhecer qual o fruto
de sua solido.

63. Observem que, como a ligao com sua prpria vontade faz
tombar o religioso que vive sob a orientao e a autoridade
de um superior, tambm a omisso ou a interrupo da prece
ocasiona quedas ao religioso solitrio.

64. Saiba que no significa agradar a Deus, mas sim contentar


a prpria preguia e desleixo, sentir alegria e prazer quando
um grande nmero de visitantes vem perturbar o repouso de sua
cela.

65. A orao de pobre viva que era achacada pelo cobrador


impiedoso deve ser o modelo da prece. O grande Arsnio, este
digno mulo dos anjos, o exemplo que todo cenobita deve
seguir; procurem imitar em sua solido o modo de vida que ele
levava, e no percam jamais de vista que esse anjo da terra,
a fim de no faltar com as ordens da Providncia e no se
privar das comunicaes que mantinha com Deus, no temia
jamais despachar as pessoas que vinham visit-lo para
consultas.

66. Observei mais de uma vez que os demnios costumam levar


os solitrios volveis e inconstantes e que entraram para a
solido por um esprito de vertigem, a visitar muitas vezes
os anacoretas cheios de fervor e de recolhimento; mas isto
para que esses solitrios vagabundos impeam os verdadeiros
servidores de Jesus Cristo de se aplicarem aos seus
exerccios de piedade. Preste ateno, caro irmo; eu lhe
suplico, preste ateno a esses levianos, e no hesite em
lhes fazer com caridade reprimendas capazes de faz-lo
enrubescer por sua funesta dissipao, mais do que pela
humilhao a que voc os submeteu, e de lev-los a abandonar
a vida errante e vagabunda, fixando-se em suas celas. Porm,
se voc colocar em prtica esse conselho, cuidado para no
entristecer demasiado alguma alma que, devorada por uma sede
ardente de graa, venha a voc para buscar a gua de que
necessita e que deseja, e para obter o socorro pelo qual
suspira. De resto, em diferentes circunstncias preciso ser
dotado de grande sabedoria e de um discernimento especial.

67. A vida dos anacoretas, ou para melhor diz-lo, dos


religiosos, deve ser dirigida pelas luzes de uma conscincia
reta e pura, e por sentimentos e afeies de um corao
slida e sinceramente piedoso e devoto. Ora, quem caminha
assim nessa ilustre carreira, no se prope outra coisa que o
cumprimento da vontade do Senhor em todos os seus exerccios,
em todos os seus pensamentos, em todos os seus modos e em
todos os seus movimentos. No h nada nele que no faa com
um grande sentimento de zelo e de fervor pela glria de Deus,
com o desejo de lhe agradar e sempre em sua santa Presena; e
quem no se encontra nestas felizes disposies, ou que as
abandona, porque ainda no adquiriu a virtude necessria.

68. Algum j disse: Eu descobrirei, tocando minha harpa, ou


que terei a lhe propor, ou seja, deste modo eu darei a
conhecer meu sentimento, por causa da fraqueza de meu
julgamento; quanto a mim, eu oferecerei a Deus toda a minha
vontade num prece fervorosa e estou certo de que ele me
atender e me far compreender quais so seus adorveis
desgnios a meu respeito.
69. A f uma das asas sobre a qual repousam nossas preces
para subir at o trono de Deus; mas se aquelas que eu lhe
dirigi no forem dignas de chegar at ele, com a cabea
curvada sobre meu peito eu as repetirei com mais f e
insistncia.

70. A f ensina alma um certeza to firme que ela se torna


inquebrantvel em meio s maiores adversidades.

71. O homem que tem f no exatamente aquele que acredita


que Deus tudo pode, mas o que est persuadido que obter do
Senhor todos os pedidos a ele endereados.

72. A f coloca ao nosso alcance mesmo aquilo que no


ousaramos esperar; o prprio bom ladro nos d a prova
disso.

73. O que abre a porta de nossa alma f so a adversidade e


a retido do corao; a adversidade, por nos tornar firmes e
constantes; e a retido, por nos aperfeioar na constncia e
na firmeza.

74. A f a me da vida eremtica; possvel conceber como


os solitrios poderiam amar a solido, se no cressem?

75. Um criminoso na priso treme todo o tempo ao simples


pensamento dos magistrados que devero julg-lo e conden-lo;
ora, um cenobita em sua cela, no deveria temer o Senhor? O
criminoso no tem tantas razes para temer o lugar onde
dever ser julgado, quanto o solitrio tem pelo tribunal de
Deus ao qual dever comparecer. Meu caro irmo, em sua
solido este temor salutar absolutamente necessrio, a fim
de que voc possa expulsar e rejeitar para longe de si a
tibieza e a negligncia; este o meio mais seguro e eficaz
para ter sucesso.

76. Quando um criminoso foi condenado, ele tem constantemente


no esprito o instante em que viro busc-lo para conduzi-lo
ao suplcio, mas um verdadeiro servidor de Deus no perde de
vista o momento em que o Senhor se agradar em tir-lo da
priso de seu corpo. Um criminoso diariamente presa da mais
aguda dor, e um solitrio chora todo o tempo por seus desvios
e suas faltas.
77. Se voc tomar o basto da pacincia, ele servir pata
afastar de voc os ces, e para impedi-los de ficar latindo
ao seu redor.

78. A pacincia coloca a alma num estado feliz, e com ela


esta pode, sem se abater, trabalhar por sua salvao e seu
aperfeioamento em meio aos rigores e s dificuldades
fatigantes e obstinadas desses trabalhos.

79. A pacincia um limite colocado tribulao, porque ela


acolhe cada dia aps dia.

80.Um homem paciente incapaz de cair, e mesmo que lhe


acontea cair, a prpria queda lhe fornecer os meios para se
reerguer com vantagens e derrubar o inimigo que o fez tombar.

81. A pacincia uma forte e generosa determinao em sofrer


todos os motivos de aflio que podem ocorrer diariamente;
uma deteno severa de todas as ocasies capazes de nos
desviar do cumprimento de nossos deveres; uma vigilncia
cerrada sobre tudo que se refere salvao.

82. O religioso tem menos necessidade do po que conserva a


vida do corpo do que da pacincia que conserva a vida da
alma; com efeito, pela pacincia que ele merece a vida
eterna; e basta um pouco mais de alimento do corpo para
contribuir para a perda dessa vida eterna.

83. O homem que pratica a pacincia est morto antes de


morrer, e sua cela seu tmulo.

84. A esperana e a dor pelos pecados produzem a pacincia no


corao; pois quem no possui essas duas virtudes costuma ser
escravo da preguia.

85. O atleta de Cristo deve saber quais, dentre os seu


inimigos, ele deve combater de longe e quais os que melhor
atacar de perto. s vezes os combates nos fazem merecer as
coroas e outras vezes a fuga do combate faz de ns pessoas
ms e corruptas, mas aqui no podemos entrar em todos os
detalhes para fazer entender melhor essas coisas. De fato,
nem todos temos as mesmas inclinaes, nem somos afetados da
mesma maneira, nem temos os mesmos hbitos e as mesmas
disposies.
86. Tudo o que podemos dizer que de suma importncia para
ns observarmos e conhecermos quem o chefe dos inimigos que
nos fazem a guerra, pois ele quem no nos d trgua nem
repouso; ele quem nos persegue sem cessar; ns o
encontramos em toda parte, quer nos detenhamos, quer
caminhemos, quer repousemos, ou nos movimentemos, quer
estejamos mesa, quer no, quer oremos, quer durmamos.

87. Alguns dos que abraaram a vida solitria no cessam de


meditar sobre as palavras do salmista: Eu mirei
continuamente o Senhor, e o tive sempre diante de meus
olhos[81]. Mas, como os pes feitos com o fermento celeste
para alimentar as almas no so todos feitos da mesma
maneira, outros encontram seu alimento espiritual na
meditao do preceito de Jesus Cristo: Vocs possuiro sua
alma na pacincia[82], e outros neste preceito: Vigiem e
orem sem cessar[83]; outros: Organize seus negcios na
cidade e preparem o campo com cuidado, para que possam
construir sua casa[84]; outros mantm continuamente no
esprito estas palavras: Por que fui humilde, o Senhor
cuidou de mim e me libertou[85]; outros repassam todo o
tempo em sua memria esta bela sentena: Os sofrimentos da
vida presente no so nada comparados com a glria futura que
esperamos[86]; e outros pensam nesta sentena: Vocs que
caram no esquecimento de Deus compreendam essas coisas, e
temam que ele os possa levar de um s golpe, e que ningum os
poder libertar de suas mos[87]. Todos correm na mesma
corrida; mas somente um arrebatar o prmio.

88. Quem progrediu nos caminhos da vida eremtica pratica a


virtude com grande facilidade, no apenas acordado, mas at
dormindo. assim que certas pessoas conseguem expulsar, em
seu sonhos, os demnios que tentam lev-las ao pecado, e
exortar prtica da castidade s pessoas que, em seus
sonhos, observam levadas a violar essa virtude celeste.

89. Mas no esperem por esse tipo de tentaes, como se elas


devessem chegar at vocs, e no se preparem para fazer
sermes s pessoas que vocs supem que poderiam vir a
colocar armadilhas sua conscincia; pois a vida de um
solitrio deve ser simples, livre e isenta de embaraos.

90. Aquele que pretende construir a torre celeste desta vida,


no deve se por obra antes de ter passado um bom tempo
observando e pesando diante de Deus os materiais necessrios
e outras coisas indispensveis para terminar sua obra, e s
depois de ter encomendado ao Senhor, por meio de preces
fervorosas, o sucesso de sua empreitada; deve temer ainda,
antes de lanar as fundaes desse edifcio espiritual, se
ter condies de termin-lo, para no se tornar motivo de
riso e dos joguetes dos inimigos, e uma pedra de tropeo e um
escndalo para as pessoas que tivessem o desejo de empreender
uma obra semelhante.

91. Deem especial ateno suavidade e s delcias


interiores que provarem; pois preciso temer que talvez
sejam mdicos cruis e perigosos inimigos aqueles que os
fazem sentir essas doura em sua alma, enganando-os com essa
suavidade imaginria.

92. Durante a noite vocs devem se consagrar orao e


meditao por todo o tempo que dispuserem. Quanto salmodia,
s a empreguem em alguns momentos. Em seguida, preparem-se
para bem cumprir todos os seus exerccios diurnos.

93. Nada contribui mais para iluminar e recolher o esprito


do que as santas leituras: elas so as prprias palavras do
Esprito Santo, e do inteligncia e sabedoria s pessoas que
as leem e meditam.

94. No estado que abraaram, preciso que suas leituras


sejam apropriadas para encoraj-los a cumprir exatamente suas
obrigaes; pois a resoluo firme e generosa de cumprir faz
com que no tenhamos mais necessidade de outros auxlios para
sermos fiis a essa resoluo.

95. Vocs encontraro certamente mais salvao nas prtica


das boas obras do que na leitura dos livros.

96. Vocs devem evitar ler livros estrangeiros e sobretudo


aqueles opostos ao gnero de vida que escolheram, mas no
percam jamais de vista que acima de tudo vocs devem ser
instrudos na cincia e fortalecidos pela virtude do Esprito
Santo. As palavras sempre obscuras dos homens no so
prprias seno para obscurecer cada vez mais as fracas luzes
de nossa inteligncia.
97. Para conhecer a qualidade do vinho, basta provar um
pouco; da mesma forma, uma nica conversao pode fazer
compreender aos que possuem discernimento, qual o estado e
quais as disposies de um anacoreta.

98. Evitem deixar de desconfiar do demnio do orgulho, e


nunca deixem de se precaver contra suas artimanhas; pois ele
o mais hbil e mais sutil inimigo de sua virtude.

99. Ao sair de suas celas, vigiem atentamente sua lngua,


pois ela capaz de faz-los perder em um instante todo o
fruto das boas obras que vocs praticaram com tantas penas e
trabalhos.

100. Abstenham-se escrupulosamente de toda ocupao que lhes


possa sugerir uma v curiosidade; no mnimo ela lhes ser
intil; pois a curiosidade por muitas coisas o que existe
de mais capaz para perturbar e manchar o santo repouso do
solitrio.

101. Seja para a alma, seja para o corpo, deem s pessoas que
vm visit-los todas as coisas que possurem. Se forem
religiosos poderosos em virtudes e sabedoria, contentemo-nos
em faz-los conhecer quem somos, e escutemo-los em silncio;
se, ao contrrio, forem simples religiosos, conversemos com
eles com um esprito de modstia e moderao, sem nos
esquecermos de pensar e crer que os outros valem mais do que
ns.

102. Queria aqui aconselhar as pessoas recm-entradas num


mosteiro, que se dediquem a trabalhos que no as desviem da
orao; mas o exemplo desse religioso que durante a noite
portava uma espada sob seu manto me impediu de faz-lo.

103. Assim como aquilo que a f nos ensina da santssima,


eterna e adorvel Trindade, diferente do que ela nos prope
crer sobre a encarnao do Filho de Deus, que uma das trs
pessoas da gloriosa Trindade pois aquilo que plural na
santa Trindade singular no Filho de Deus feito homem, e o
que singular na santa Trindade plural em Cristo da
mesma forma, existem exerccios que convm vida eremtica,
e outros que convm vida cenobtica.

104. O divino Apstolo disse: Quem o homem que conhece os


pensamentos e os conselhos do Senhor?[88]. Quanto a mim, eu
digo: quem pode compreender os pensamentos de um homem que,
em corpo e esprito, passa a vida na solido?

105. O poder de um rei consiste na abundncia e na riqueza de


seus tesouros e no nmero de seus sditos; mas o poder de um
solitrio consiste na abundncia de suas oraes.
VIGSIMO OITAVO DEGRAU

Da prece, santa e fecunda fonte das virtudes; do recolhimento


do esprito e do repouso do corpo que lhe so necessrios.

1. Se voc considerar a prece em si mesma, pense que ela


uma santa conversao, uma doce unio com Deus; mas se voc
considerar sua virtude e seu poder, preciso dizer que ela
converte o mundo, reconcilia a terra com o cu, produz as
lgrimas sinceras do arrependimento e s vezes, dele nasce
, apaga os pecados, triunfa sobre as tentaes, nos consola
e protege nos tempos duros das aflies, coloca fim e termo
s guerras cruis que nos fazem os inimigos, exerce em ns a
funo dos anjos, se torna o alimento dos espritos, atrai as
alegrias futuras, entretm o corao numa ao contnua, faz
adquirir virtudes, obter dons celestes e avanar a grandes
passos nas vias da perfeio; e podemos acrescentar que ela
o fermento da alma, a luz do esprito, a runa do desespero,
a mestra da esperana, o flagelo da tristeza, a fortuna dos
religiosos, o tesouro dos solitrios, a extino da clera, o
espelho do progresso na virtude, a demonstrao certa das
regras a seguir, a manifestao do estado de nossa alma, a
noo clara dos bens futuros e o ndice da glria eterna;
finalmente, ela , para a pessoa que ora, uma espcie de
palcio e tribunal onde o soberano Juiz, sem esperar pelo
ltimo dia, proclama a todo momento suas sentenas de justia
e de misericrdia.

2. Levantemo-nos e ouamos com ateno esta rainha das


virtudes que nos chama e nos dirige suas palavras em alta
voz: Venham a mim, vocs que penam e se curvam sob o peso do
fardo, e eu os aliviarei; tomem meu jugo, e encontraro o
repouso de suas almas e a cura de suas feridas. Pois meu jugo
doce[89], e eu tenho poder para apagar as maiores faltas.

3. Quando nos apresentamos diante de nosso Rei e nosso Deus


para lhe dirigir nossos votos e nossas splicas, tenhamos o
cuidado de nos havermos preparado para essa importante ao,
e temamos que, vendo-nos vir de to longe sem as armas
espirituais e sem outros ornamentos que ele exige de ns, no
ordene ele aos executores de sua justia que nos expulsem
vergonhosamente de sua presena, e que nos conduzam ao exlio
acorrentados, depois de haver destroado ante nossos olhos e
nos atirado no rosto nossos pedidos e nossas oraes.

4. Se vocs forem orar a Deus, vistam com cuidado sua alma


com os hbitos convenientes, despojem seu esprito e seu
corao de toda lembrana e de todo sentimento pelas injrias
recebidas dos irmos; pois essa lembrana e esse sentimento
paralisariam absolutamente o efeito de sua splica.

5. Faa com que sua orao seja simples, sincera e sem


afetao outrora bastou uma palavra para reconciliar com
Deus o publicano e o filho prdigo.

6. As pessoas que se apresentam diante de Deus para orar se


colocam quase todas na mesma posio; mas elas no oram todas
da mesma maneira, pois as formas e as variedades da orao
so inumerveis. Com efeito, algumas falam e agem com Deus
como o fariam com um amigo ou um mestre cheio de
benevolncia; e, oferecendo a Ele o incenso de seus votos e
de seus louvores, no pensam apenas em si mesmas, mas se
ocupam das necessidades e dos assuntos de seus irmos; outras
conjuram com ardor o Senhor, para que este lhes conceda
graas, favores espirituais, a glria celeste, e que aumente
nelas a confiana que tm em sua bondade; outras lhe pedem
todo o auxlio de que precisam para triunfar e se libertar
inteiramente dos esforos de seus inimigos; outras solicitam
com insistncia algum benefcio espiritual que desejam com
muito ardor; outros exprimem a Deus o quanto desejam ser
aliviados das inquietudes cruis que lhes causa a lembrana
das dvidas que tiveram a infelicidade de contrair diante de
Sua justia; outros anunciam o quanto eles suspiram por sair
da priso de seus corpos; outros, enfim, se contentam em
pedir o perdo pelas faltas que cometeram.

7. Testemunhar a Deus um vivo e sincero reconhecimento das


benesses que dele recebemos a primeira coisa que devemos
fazer, e que nunca podemos deixar faltar no comeo de nossas
oraes; uma humilde e humilhante confisso de nossos pecados
a segunda; expressar a Deus de todo nosso corao o horror
e a dor que sentimos por nossos pecados a terceira. Depois
que tivermos cumprido essas trs primeiras qualidades da
orao, continuaremos este santo exerccio pedindo ao Rei do
universo todas as graas que desejamos e as que temos
necessidade. Esta certamente a melhor maneira de fazermos
nossas oraes; assim o revelou um anjo a um monge fervoroso.
8. Vocs j compareceram perante um juiz da terra? Lembram-se
de que maneira agiram para ganhar seu processo, e conduzam-se
do mesmo modo diante de Deus. Se ao contrrio, jamais
estiveram diante de um juiz mortal ou se no tiveram ocasio
de ver a outros em seu tribunal, pensem nos doentes que sero
operados com ferro e fogo, e aprendero a orar a Deus. Vejam
com que ardor e com que palavras eles pedem ao mdico que
cuide deles e no os faam sofrer em demasia.

9. Evitem colocar em suas oraes palavras elegantes e bem


arrumadas; pois muitas vezes as palavras simples e
entrecortadas dos filhos atraram a amizade e as boas graas
de seu Pai que est nos cus.

10. Tambm no empreguem longos discursos ao orar; pois o


cuidado e o trabalho que tero em encontrar palavras capazes
de expressar seus pensamentos e sentimentos dissiparo seu
esprito e os faro perder o recolhimento necessrio. No foi
uma nica palavra do publicano que mereceu a plenitude das
Misericrdias do Senhor? No foi uma nica palavra que trouxe
a salvao ao bom ladro na cruz, no momento de expirar? As
grandes palavras e as belas frases no so apropriadas seno
para encher o esprito de iluso e de dissipao; enquanto q
eu algumas poucas palavras ditas por um corao cheio de f
foram o esprito a entrar em recolhimento e ateno.

11. Se voc se sentir emocionado ou tocado por algum


pensamento ou sentimento expresso a Deus, no passe para
outro: permanea a, detenha-se a; pois esta uma prova de
que o seu anjo guardio ora com voc.

12. Se voc tem slidas razes para crer que seu corao
puro e inocente, nem por isso fale a Deus com muita
familiaridade, mas sim com profunda humildade, e esta
humildade fortalecer sua confiana em Sua misericrdia.

13. Ainda que voc tenha adquirido todas as virtudes, no


cesse de pedir perdo a Deus pelos seus pecados. No dizia
so Paulo ser ele o primeiro de todos os pecadores[90]?

14. Temperamos as carnes com azeite e sal; mas com


temperana e lgrimas de penitncia que se temperam as
oraes.
15. Quando voc tiver adquirido uma perfeita mansido, e
tiver triunfado por completo sobre o azedume e a clera, voc
no precisar usar de muita violncia para se sentir livre de
toda perturbao e agitao durante suas oraes.

16. Enquanto no houvermos adquirido a prece verdadeira,


somos semelhantes a criancinhas que aprendem a andar.

17. Trabalhem para elevar seu esprito at o cu, ou antes,


para fix-lo na meditao de certas palavras que se acham nas
suas oraes; e, embora devido fraqueza de sua infncia
espiritual, lhes aconteam algumas quedas, levantem-se
prontamente e retomem corajosamente seu caminho. Infelizmente
a inconstncia um funesto apangio do esprito humano! Mas
o Todo-poderoso pode mudar essa inconstncia em uma
constncia e uma firmeza inquebrantveis. Ora, se vocs no
deixarem de lutar contra a instabilidade de seu esprito,
Deus, que fixou as margens s ondas agitadas do mar, far o
mesmo com as agitaes de seu esprito, e lhes dir: Vocs
podem chegar at a, mas no podem ir mais longe[91].
impossvel ao homem amarrar a desateno do esprito; mas
tudo possvel a Deus, pois foi ele quem criou o esprito.

18. Se voc algum dia contemplou a Deus, que o sol de


justia, voc poder conversar com ele segundo o respeito que
lhe devido; mas se voc jamais teve a felicidade de O ver e
conhece-Lo, como poder fazer para tratar diretamente com
ele?

19. Para merecer este grande bem, cuide para jamais comear
suas oraes seno depois de haver se desembaraado e
rejeitado com grande coragem todas as distraes que lhe
acorrerem; prossiga a seguir aplicando com todas as foras
seu esprito meditao das palavras que compem essas
oraes; enfim, tente termin-las com um santo arrebatamento
em Deus.

20. As douras e a alegria que os religiosos que vivem com


seus irmos experimentam durante o santo exerccio da orao,
so diferentes das douras e da alegria que provam os
religiosos que vivem na solido. Os primeiros se encontram
expostos s iluses da vaidade, enquanto que os solitrios
no esto expostos a isso, porque ele no tm seno a Deus
como testemunho de suas oraes, e a santa humildade se torna
a alma de suas comunicaes com o Senhor.

21. Voc estar sempre recolhido, mesmo mesa, se, por meio
de esforos constantes e uma ateno permanente, voc se
mantiver em recolhimento, e se conseguir reunir prontamente
seu esprito quando ele se perde. Se, ao contrrio, voc
deixar sua imaginao a liberdade de divagar e se dissipar,
voc ser incapaz de se dominar, ainda que seja para cumprir
um dever com seriedade e ateno.

22. por isso que so Paulo, este homem que possua uma
prece to santa e perfeita, no hesitou em nos assegurar que
ele preferia uma prece dita com cinco palavras do fundo do
corao, do que uma dita com dez mil palavras de boca[92].
Mas essa perfeio no pode ser partilhada pelos jovens
religiosos, nem por aqueles que comeam a servir a Deus.
Assim, convm a ns, enquanto nos contarmos entre os
imperfeitos, servirmo-nos em nossas oraes de um certo
nmero de palavras; este modo de orar ir nos conduzir pouco
a pouco a outro mais aperfeioado. Com efeito, vendo Deus
nossos esforos por tornar nossas oraes dignas dele, ainda
que elas sejam realmente imperfeitas, nos conceder o auxlio
de que precisamos para orar corretamente.

23. Mas tenhamos presente que existe uma grande diferena


entre o que mancha nossas preces, os que as destri, o que as
rouba de ns e o que as dissipa. Com efeito, ns manchamos
nossas preces nos deixando levar por pensamentos vos e
ridculos; ns as destrumos quando nos tornamos escravos e
joguetes de cuidados inteis e suprfluos; deixamos que no-
las roubem quando entregamos nosso esprito, sem perceber, a
pensamentos vagos e indiferentes; enfim, nos iludimos em
nossas preces quando, ao orar, nos deixamos levar por algum
movimento impetuoso.

24. Quando fizermos nossas oraes na presena de muitas


pessoas, esforcemo-nos interiormente para humilhar nossa alma
da mesma maneira como os que dirigem e apresentam suas
demandas diante dos prncipes, humilhando exteriormente seus
corpos. Se estivermos a ss, quando oramos sem diretor,
tambm no dispensemos as disposies corporais e exteriores
que convm orao; pois o esprito se conforma bastante com
o corpo nas pessoas que ainda no esto muito avanadas nos
caminhos de Deus.

25. Todos os que se apresentam diante do Rei eterno, mas


sobretudo as pessoas que desejam obter o perdo de seus
pecados, devem, entre seus interesses espirituais, lhe
oferecer os sentimentos sinceros de um corao contrito e
humilhado. Enquanto habitarmos estes nossos corpos, estamos
obrigados a observar a ordem e o conselho que outrora o anjo
deu a so Pedro[93].

26. Cinjam-se da cintura da obedincia; despojem-se


inteiramente de sua prpria vontade, e, mortos para si
mesmos, apresentem-se diante de Deus para lhe oferecer o
incenso de suas oraes. Pois se ns no nos estudamos seno
para conhecer a vontade do Senhor, sentiremos que ele vir
visitar nossa alma e conduzi-la sem perigo at a vida eterna.

27. Se vocs se elevarem acima do amor ao sculo e dos


prazeres da terra, vocs rejeitaro para longe de si todas as
inquietaes da vida presente, desembaraaro seu esprito de
todos os pensamentos vos e inteis e renunciaro ao prprio
corpo. Com efeito, a prece no outra coisa do que um
renncia perfeita a tudo o que pertence a este mundo
presente; um esquecimento de todas as coisas que vemos
nele, ou que no vemos, vale dizer, das coisas corporais e
das que so incorpreas. Digamos ento a Deus: o que existe
no cu para mim, Deus? Nada! Mas o que posso eu desejar
sobre a terra, seno voc, Deus de meu corao e meu nico
parceiro para a eternidade? O que eu desejo unicamente
estar to solidamente unido a voc pela orao que eu jamais
possa ser separado. Que uns suspirem e busquem riquezas e
grandes posses; outros, a glria e as honras; quanto a mim,
no tenho outro bem nem outro benefcio a desejar do que
estar unido e ligado ao meu Deus e de colocar nele apenas
todas as minhas esperanas e a impassibilidade de minha
alma[94].

28. a f que d asas orao; pois sem ela, esta no


poderia penetrar at o cu.

29. Quem quer que sejamos, ao experimentarmos os problemas e


agitaes trazidos pelas paixes e pelas ms tendncias, no
nos desencorajemos, mas peamos a Deus uma f firme e, com
insistncia, para sermos libertos, e no percamos de vista
que todas as pessoas que conseguiram alcanar a tranquilidade
do corao s chegaram a passando por esse mar de
perturbaes e agitaes.

30. Ainda que um juiz possa no temer ao Senhor, ele no


obstante far justia por causa das constantes importunaes
que o cansam; assim age o Senhor a nosso respeito: vendo
nossa alma, que lhe expomos, despojada de sua graa pelo
pecado, ele permitir a ela que triunfe sobre o corpo, que
seu adversrio irredutvel, e que se vingue dos demnios,
seus cruis inimigos.

31. Este bom e caridoso dispensador de dons e de favores


atende, sem diferenciar, as almas fervorosas e reconhecidas,
e em seguida as faz entrar no sagrado palcio de seu amor;
mas ele deixa as almas frias e sem reconhecimento sofrer
longo tempo a fome e a sede, a fim que de essas dores as
forcem, por assim dizer, a perseverar na prece. Estas almas
infelizes se parecem com ces que, no tendo recebido desde
cedo um pedao de po, se afastam da pessoa que poderia lhes
dar.

32. No diga que apesar de ter feito longas oraes voc no


fez progresso algum: voc no percebe que esta simples
constncia, mesmo que s ela, j para voc um enorme
benefcio? De fato, poder haver para voc algo mais precioso
do que essa unio que voc estabelece com Deus e esta
perseverana no santo exerccio da prece?

33. Um criminoso e um condenado ao suplcio tremem menos com


a lembrana da sentena que foi ou ser pronunciada pelos
juzes, do que um cristo que possui o desejo de fazer boas
preces treme com o pensamento de faz-las de uma maneira
indigna do Senhor. O simples pensamento da orao numa pessoa
sbia e fervorosa por sua salvao basta para afogar nela
todo ressentimento e toda lembrana das injrias recebidas,
reprimir os movimentos da clera, banir os cuidados
suprfluos, negligenciar os assuntos puramente temporais, no
dar nenhuma ateno s aflies e s penas da vida, guardar
uma estrita temperana, triunfas sobre as tentaes e se
preservar dos maus pensamentos.

34. por meio de uma prece contnua do corao que vocs


deve se preparar para a prece interior e exterior por meio da
qual vocs pretendem, apresentando-se diante de Deus, lhe
oferecer seus votos e suas splicas. Conduzindo-se dessa
maneira, no duvidem, vocs faro muito progresso em pouco
tempo. J vi pessoas eminentes na virtude da obedincia que,
conforme as foras e a ateno que possuam, se conservavam
fielmente na presena de Deus, e que quando se apresentavam
junto com os irmos para orar conseguiam num instante
recolher o esprito e o corao, e derramavam torrentes de
lgrimas. O que as preparava assim para a orao era a
obedincia que praticavam com total perfeio.

35. A salmodia que acontece junto com a comunidade pode,


verdade, expor a distraes e pensamentos confusos, enquanto
que a salmodia dos solitrios no sujeita aos mesmos
inconvenientes; mas a presena de nossos irmos recolhidos e
fervorosos pode nos trazer o fervor e nos tirar da
negligncia, enquanto que a preguia e o desleixo dos
solitrios no possuem estes mesmos remdios.

36. A guerra que um rei sustenta contra seus inimigos o faz


conhecer o amor e a ligao que seus soldados tm para
consigo; a prece manifesta o amor e a ternura que temos por
Deus.

37. Ela mostra a ns mesmos o estado de nossa alma. No sem


razo que os telogos a chamam de espelho da alma do monge.

38. Qualquer um que comece uma obra e a prossiga quando a


obedincia o chama para a prece, se engana grosseiramente: o
que ele segue a inspirao dos demnios; pois estes infames
ladres nos roubam, uma a uma, as horas de nossa vida.

39. Ainda que vocs no possuam o dom da prece, se algum se


recomenda a vocs enquanto vocs oram a Deus, no recusem
essa recomendao; pois muitas vezes a f viva da pessoa que
pede auxlio em nossas oraes obtm para aquele por quem foi
feita a recomendao a graa de uma sincera contrio que
justifica e salva.

40. Quando Deus, vendo que voc ora por seus irmos, atende
suas preces, cuidem-se para no cair na vanglria; pensem que
foi a f deles que trouxe orao essa virtude e essa
eficcia.
41. A cada dia os preceptores obrigam seus alunos a prestar
conta exata das lies ministradas; da mesma forma Deus nos
pedir conta da fora e da virtude que ele nos deu em nossas
oraes. por isso que, quando rezamos com mais fervor,
devemos nos vigiar com uma ateno especial; pois ento que
os demnios nos atacam com mais violncia por meio de
movimentos de impacincia, a fim de nos fazer perder o fruto
de nossas oraes.

42. Devemos, sem dvida, praticar todas as boas obras com uma
grande afeio no corao; mas sobretudo na prece que
devemos colocar essa disposio de nossa alma; e podemos
dizer que uma alma ora com santa afeio no corao quando
ela triunfou perfeitamente sobre a clera.

43. Ah, como so slidos e durveis os bens espirituais que


adquirimos com muitas oraes e longos anos de provaes,
trabalhos e penas!

44. Quando temos a felicidade de nos unirmos a Deus, j no


nos inquietamos com as palavras que iremos usar para falar-
Lhe em orao; pois o Esprito Santo ora por Si mesmo, com
gemidos inefveis, na pessoa que se encontra neste feliz
estado[95].

45. Quando voc orar, expulse de seu esprito todas as


representaes e imagens que a se apresentarem, a fim de no
cair na cegueira e na insensibilidade.

46. A prpria prece o far conhecer e lhe dar a certeza de


que suas oraes esto sendo atendidas. Esta certeza uma
graa concedida pelo Esprito Santo, por meio da qual ele nos
retira toda dvida e hesitao.

47. Tem voc um desejo verdadeiro que suas preces sejam


atendidas? Seja bom e cheio de comiserao para com seus
irmos; pois a misericrdia que voc exercer em relao ao
prximo o far obter o cntuplo neste mundo e a vida eterna
no outro[96].

48. O fogo celeste inflama com seus benfazejos ardores as


preces que fazemos com a amor e reverncia; e, uma vez que
elas esto assim aquecidas, elas sobem at o cu e dele fazem
descer sobre a alma que ora nessas disposies felizes as
novas chamas que a purificaro e a santificaro cada vez
mais.

49. Existem pessoas que pensam que a prece mais til do que
a meditao da morte e daquilo que se seguir a ela; por mim,
eu louvo essas duas prticas de piedade, e as vejo como
igualmente salutares. Creio mesmo que ambas possuem a mesma
natureza.

50. Observemos que quanto mais um cavalo forte e ardente


avana para o objetivo ao qual se dirige, mais ele se anima,
se lana e, pela rapidez de sua corrida, se esfora para
chegar. Esta deve ser a conduta de uma alma no sagrado
exerccio da orao. Eu entendo a corrida desta alma orante
como sendo os louvores que ela presta a Deus. Assim, quando
essa alma generosa e ardente v chegar a hora do combate, ela
se anima, se encoraja, toma de suas armas, voa para o campo
de batalha e se mostra invencvel.

51. muito penoso para uma pessoa ser devorada pelos ardores
de uma sede que queima, ou ter roubada a gua com que
pretendia dessedentar-se; mas bem mais cruel para uma alma
que ora com grandes sentimentos de compuno ser obrigada a
interromper sua unio e sua conversao com Deus, que lhe
permitem experimentar tantas douras e consolaes, que ela
havia desejado com tanto ardor.

52. No encerre sua orao enquanto voc experimentar os


ardores do fogo que Deus colocou nela, e que no deixar
secar a fonte das lgrimas que sua graa derrama; pois talvez
em toda a sua vida voc no reencontre uma ocasio to
favorvel para merecer e obter o perdo de suas faltas.

53. muito comum que pessoas, depois de haver recebido de


Deus o dom da orao perfeita, depois mesmo de haver provado
por algum tempo das delcias e das consolaes celestes,
manchem miseravelmente sua conscincia com palavras
inconsideradas e temerrias, e depois busquem sem sucesso
aquilo que estavam acostumadas a encontrar em suas preces.

54. Existe uma grande diferena entre meditar interiormente


conversando com seu prprio corao, e conduzir este mesmo
corao seguindo as luzes da parte superior da alma que,
iluminada pela f, se torna rainha e capaz de oferecer a
Cristo as hstias agradveis a ele. , assim, com razo, que
um de nossos padres que, por sua cincia, mereceu o ttulo de
telogo, disse que um fogo santo e celeste desce nas pessoas
que se entregam meditao para inflam-las e purific-las
das impurezas e das ndoas que ainda lhe restam, e que este
mesmo fogo desce tambm nas almas daqueles que regraram seu
corao segundo as luzes da f, para ilumin-los mais e mais
e faz-los avanar nos caminhos da perfeio. por isso que
esse fogo salutar com justia chamado de luz que consome e
ilumina. E s vezes vemos tambm pessoas sarem do santo
exerccio da prece como de uma fornalha ardente, e sentirem-
se purificadas de suas manchas e de suas imperfeies, e
livres da concupiscncia, este terrvel e funesto cadinho de
pecados; outros saem cheios de luzes, revestidos de ricos
hbitos de humildade e inundados de alegria celeste. E oraram
mais com o corpo do que com o corao, aqueles que durante a
prece no sentiram nem um nem outros desses dois efeitos; sua
prece foi uma prece judaica.

55. Se os corpos so capazes de se transformar ao tocarem


outros corpos, como poderia permanecer no mesmo estado o
homem que, com a alma e as mos puras, tocasse a Deus na sua
orao?

56. Encontramos na conduta dos reis da terra uma imagem da


conduta de nosso Rei supremo e eterno. Com efeito, muitas
vezes eles distribui recompensas que ele concede aos seus
servidores; outras vezes, ele os distribui alguns favores por
intermdio de algum ministrio; outras vezes ele no emprega,
para fazer essa distribuio, mais do que o ministrio de
alguns oficiais inferiores; enfim, algumas vezes ele os
concede de uma maneira secreta e escondida. Mas lembremo-nos
de que todas essas distribuies de recompensas so feitas
conforme a humildade que reina em cada corao.

57. Um rei da terra no deixaria de ter horror a um homem


que, estando diante de si, virasse o rosto para conversar com
seu inimigo; ora, quanto horror no deve sentir o Rei do cu
por uma pessoa que durante a prece desvia o rosto de Si para
se entreter com maus pensamentos e louv-los?

58. Se o demnio vem distra-los durante suas oraes,


expulsem-no para longe, como expulsariam a um co, e no
cedam jamais sua importunao.
59. Peam a Deus seus dons e suas graas com lgrimas de
arrependimento e de penitncia; mas lembrem-se de que ser
por meio da obedincia que os recebero, e que com uma
pacincia cheia de perseverana que vocs devem bater porta
de suas misericrdia; ora, esta porta se abre logo a quem
bate dessa maneira; e cedo ou tarde a pessoa obter o objeto
de seus desejos e de seus votos, orando a Deus nessas
disposies.

60. Eu os aconselho fortemente a no se encarregarem de


impudentemente orar por uma mulher; pois devemos temer que o
demnio se sirva dessa ocasio para penetrar no corao e
roubar no tesouro precioso das graas com as quais Deus o
dotou e enfeitou.

61. Outra precauo que vocs devem tomar de no considerar


em especial e no examinar escrupulosamente as faltas
corporais que cometeram; pois vocs devem temer que seu
inimigo lhes estenda novas armadilhas e se sirva de vocs
mesmos para faz-los cair numa emboscada.

62. O tempo necessrio aos exerccios e aos assuntos


espirituais no deve ser usado para se consagrar orao;
isto seria uma artimanha do demnio por meio da qual ele
pretende impedi-los de obter o que existe de mais benfico e
salutar na vida religiosa.

63. Quem tiver o cuidado de caminhar apoiando-se sempre no


basto forte e poderoso da orao, no cair, ou, se tiver o
azar de falsear o passo, sua queda no ser total. De resto,
a orao uma doce e santa violncia que fazemos por Deus.

64. Ora, as vitrias e os triunfos que obtivermos contra eles


[os demnios], nos permitiro conhecer e sentir quais so o
poder e a virtude da orao. por isso que Davi escreveu:
Eu conheci, meu Deus, o seu amor por mim, porque voc me
assegurou que, na guerra que sustento, meus inimigos no
tero ocasio de aplaudir as vantagens que poderiam obter
sobre mim[97]. ainda por essa razo que o salmista disse:
Atenda-me, Senhor, e eu buscarei a justia de seus
mandamentos[98]. Enfim, foi para nos fazer compreender essa
importante verdade que Cristo nos fez ouvir esta sentena:
Quando dois ou trs estiverem reunidos em meu nome, eu me
encontrarei no meio deles[99].

65. Todas as pessoas, tanto em relao ao corpo quanto em


relao alma, no esto nas mesmas disposies para cantar
louvores a Deus; pois umas preferem cantar os salmos mais
depressa, outras mais lentamente; as primeiras o fazem, dizem
elas, para evitar as distraes e delas se livrarem, enquanto
as ltimas, porque tm dificuldade na pronncia ou na
compreenso das palavras que cantam.

66. Se voc implorar assiduamente o socorro do Rei do cu


contra seus inimigos, esteja certo de que eles no mais o
fatigaro; pois eles se retiraro rapidamente por si mesmos,
uma vez que nada temem tanto quanto lhe dar ocasio de obter
novos triunfos e novos trofus nos combates que voc vencer,
servindo-se contra eles de arma to poderosa como a prece. A
prece, como um fogo devorador, os afastar e os far fugir
para longe.

67. Tenham sempre uma firme confiana em Deus, e ele prprio


ser o mestre que os ensinar a salutar arte de bem orar. Ns
no podemos nos dar a faculdade de ver; foi Deus quem no-la
Deus quando nos criou. Seriam ento, todos os homens juntos,
capazes de nos permitir discernir e conhecer a excelncia da
orao? Ah! Somente Deus pode, durante o prprio exerccio da
prece, nos fazer compreender sua excelncia e os benefcios
que ela nos traz; sim, Deus quem d ao homem toda a cincia
de que este dotado, que concede a quem ora a graa de bem
orar, e que derrama as bnos de sua ternura sobre as almas
justas e santas.
VIGSIMO NONO DEGRAU

Do cu terrestre, vale dizer, da paz da alma, que a torna


semelhante a Deus,
aperfeioando-a e lhe concedendo a ressurreio antes da
ressurreio geral.

1. Eis que, malgrado minha ignorncia profunda, malgrado as


espessas trevas que minhas paixes derramam sobre meu
esprito, malgrado enfim as sombras da morte de meu corpo,
cheguei ao momento de ter a ousadia e a temeridade de falar
do cu terrestre. Ora, se as estrelas so o soberbo ornamento
do firmamento, as virtudes o so em relao tranquilidade
do corao. por esta razo que eu penso e digo que a paz ou
a tranquilidade da alma no so outra coisa sobre a terra do
que um verdadeiro cu no qual a alma que as possui j no
considera as artimanhas e maldades dos demnios seno como
joguinhos e verdadeiras diverses.

2. Verdadeiramente livre e mestre de todas as perturbaes e


agitaes da alma o homem que purificou sua carne de toda
espcie de cargas e de ndoas, e que, por este meio, a tornou
de certo modo incorruptvel; que soube elevar suas afeies e
seus sentimentos acima das coisas criadas, e submeter todos
os seus sentidos ao imprio da razo e da f; que, enfim, por
uma fora sobrenatural, pode colocar sua alma face a face
diante de Deus, consagrando-a a Ele com deliciosa confiana.

3. Alguns sustentam que este estado feliz da alma um


ressurreio, ou seja, um retorno da alma ao seu verdadeiro
estado, antes da ressurreio do corpo que ela anima. Outros
chegam a dizer que a paz e a tranquilidade da alma propiciam
um conhecimento de Deus semelhante ao que tm os anjos.

4. Este feliz estado de alma, embora consista na perfeio


dos coraes perfeitos, apesar disto susceptvel de
aumentar sem cessar, e quase at o infinito. essa
tranquilidade, conforme me assegurou um grande servidor de
Deus que teve pessoalmente essa deliciosa experincia, que
santifica e purifica de tal maneira uma alma, que a desliga e
liberta to vitoriosamente de todas as afeies pelas coisas
da terra, que, por um arrebatamento divino, a eleva at os
cus e, depois de hav-la conduzido ao porto da salvao, a
faz contemplar o prprio Deus. No deste arrebatamento que
experimentou Davi, e do qual ele disse que os deuses
poderosos da terra foram extraordinariamente elevados.
tambm aquilo que experimentou este santo religioso do Egito
que, nomeio dos irmos, orava quase que o dia inteiro com os
braos estendidos para o cu.

5. E no entanto essa admirvel paz da alma no a mesma em


todos que a possuem: pois ela pode ser mais ou menos eminente
em perfeita em uns do que em outros. Alguns, por exemplo, so
tomados por um horror extremo ao pecado, enquanto outros so
devorados pelo desejo de se enriquecerem de virtudes.

6. Com razo chamamos a castidade de paz da alma, pois esta


virtude anglica o princpio da ressurreio geral, da
incorruptibilidade e da imortalidade das criaturas que o
pecado tornou corruptveis e mortais. No dessa
tranquilidade de alma que quis se referir so Paulo, quando
disse: Quem o homem que conheceu o Esprito do Senhor?
[100].

7. No foi ainda esta virtude que quis assinalar um solitrio


do Egito, ao dizer que j no temia o Senhor? Pretendia ele
especificar outra coisa que no a paz da alma, este religioso
que pedia a Deus que lhe permitisse ser ainda provado pelo
fogo das tentaes? Quem ento a pessoa que, antes da
glria futura, pode ser considerada mais digna dessa
tranquilidade do corao do que este Srio que, enquanto
Davi, to ilustre entre os profetas, dizia a Deus: Conceda-
me, Senhor, no curso de minha peregrinao, algum refresco e
algum repouso, a fim de receber algum alvio antes que eu
parta para o mundo[101], dizia [este Srio]: Modere,
Senhor, as efuses transbordantes de graas e as consolaes
com que voc inunda minha alma?

8. Uma alma possui realmente essa preciosa paz, quando


levada ao bem e se identifica com a virtude, como os maus so
levados ao mal e absorvidos pelos prazeres dos sentidos.

9. Se o ltimo degrau da intemperana consiste em se auto


violentar para comer e beber depois que se est perfeitamente
saciado, a perfeio da temperana e da sobriedade consiste
em se privar de alimento e bebida, mesmo quando se tem muita
necessidade disso; ora, uma alma no chega a esse grau de
virtude seno pelo poder e a autoridade que ela adquire sobre
os apetites e as inclinaes do corpo. Se o mais execrvel
dos excessos a que a luxria pode levar um homem a quem
possui como escravo, o de buscar contentar sua paixo com
animais e objetos inanimados, o mais alto grau da castidade
no ser tocado nem movido, seja por criaturas animadas,
seja pelas que no o so. Se o fim da avareza consiste em
nunca parar de trabalhar para aumentar as riquezas que j se
possui e no se contentar jamais, certamente a prova mais
tocante de que algum ama e pratica a pobreza deve ser no
dar ateno alguma ao prprio corpo. Crer-se num estado doce
e tranquilo no meio das mais cruis aflies prova da mais
heroica pacincia. O cmulo da fria e da clera certamente
se entregar a ataques de furor quando se est s; o cmulo da
doura e da moderao deve ser permanecer com calma, seja na
ausncia, seja na presena de caluniadores. Se o ltimo
degrau do delrio ao qual pode conduzir a vanglria consiste
em pensar e crer que merecemos ser louvados e receber
louvores que ningum d nem pode dar, a marca mais segura de
que pisoteamos todo sentimento de vaidade no sentir o
menor movimento mesmo no meio dos elogios que nos fazem pelas
boas obras que tivemos a felicidade de praticar. Se o
verdadeiro carter do orgulho, esta maldita peste das almas,
de nos elevar acima dos outros, por vis e desprezveis que
sejamos, no devemos concordar que o carter essencial da
humildade, esta me fecunda das virtudes, consiste em
conservar sentimentos de rejeio e desdm por si mesmo no
meio das maiores empreitadas e das aes mais honradas e mais
espantosas? Se existe um testemunho irrefutvel que somos
escravos de todas as paixes quando, sem nenhuma resistncia,
sucumbimos a todas as tentaes do demnio, , na minha
opinio, uma marca certa de que alcanamos a paz da alma,
quando podemos dizer abertamente com Davi: Eu no reconheci
o mal que se afastou de mim[102], e acrescentar: Eu no sei
como nem por que ele veio, nem como se retirou; pois, estando
unido ao meu Deus por laos to fortes que no me permitiram
separar-me Dele, fiquei insensvel a todas essas coisas e a
outras semelhantes.

10. Ora, as pessoas a quem Deus se dignou conceder essa graa


to sublime, ainda que revestidas de uma carne frgil, se
tornam templos vivos da Divindade, que as dirige e conduz
suas palavras, aes e pensamentos, e que, por meio das luzes
abundantes com que iluminam seu esprito, as fazem conhecer
exatamente qual a sua adorvel Vontade; superiores a todas
as instrues dos homens, essas almas afortunadas clamam com
sentimentos de um arrebatamento celeste: Minha alma queima
de sede por meu Deus, que um Deus poderoso e vivo; quando
irei e quando estarei diante da face de meu Deus?[103]; e
elas acrescentam: eu no posso suportar a violncia do
desejo que me apressa; meu Deus, eu desejo, busco e peo
essa beleza imortal que voc me dera antes desta carne de
barro.

11. E o que podemos dizer mais? Quem quer que possua esta
tranquilidade da alma mais do que eminente, no estar este
autorizado a dizer com so Paulo: Eu vivo, mas no sou eu
quem vive, mas Jesus Cristo que vive em mim[104]? Ou
ento, com o mesmo apstolo: Eu combati o bom combate,
terminei a corrida, guardei minha f[105]?

12. H mais de uma pedra preciosa a ornar o diadema dos reis,


e a paz da alma no formada por uma nica virtude, mas pela
reunio de todas as virtudes ela no poderia existir ainda
que na ausncia de uma s.

13. Estejam convencidos de que essa paz , de certo modo, a


corte e o palcio do Rei dos cus; ora, neste palcio
comparvel a uma cidade, existem diferentes moradas para as
almas justas; e o muro que contorna esta nova Jerusalm a
remisso de nossos pecados. Corramos, portanto, irmos, e
cheguemos at o leito que nos foi preparado nesse palcio
celeste: a encontraremos o repouso perfeito. E se por uma
infelicidade deplorvel ainda nos encontrarmos carregados com
o peso de nossos maus hbitos, ou se estivermos embaraados
pelos assuntos da vida que to curta, apliquemo-nos no
mnimo a buscar um lugar ao redor do leito nupcial do esposo
celeste. Se nossa tibieza e nossa negligncia ainda nos
provarem dessa honra e dessa benefcio, faamos ao menos de
tal modo a que possamos penetrar no recinto desse palcio;
pois ser condenado a viver eternamente num solido
desesperadora junto com os demnios, o homem que, antes de
sua morte, no tenha entrado nesse recinto, ou melhor, que
no tenha escalado as muralhas da cidade celeste para
penetrar no seu recinto. absolutamente necessrio,
portanto, que com determinao forte e sincera possamos dizer
com Davi: Com o socorro de Deus atravessarei o muro[106]; e
este muro, ensina-nos o Profeta, so os nossos pecados: Suas
iniquidades, disse ele, estabeleceram um muro de separao
entre vocs e o seu Deus[107]. Trabalhemos com coragem, meus
amigos, para derrubar esse muro de separao que com tanta
infelicidade erguemos com nossa desobedincias. Busquemos a
todo custo a remisso dos pecados; pois no inferno ningum
poder nos fornecer os meios de pagar as dvidas que
contramos quando os cometemos. Sejamos cheios de zelo, caros
irmos, pelos interesses de nossa salvao; pois foi com esta
finalidade que Deus concedeu a graa de nos engajar em sua
milcia santa. Estejamos convencidos de que no podemos nos
escusar de sermos animados por esse ardor, nem pelas quedas
que sofremos, nem pelas circunstncias difceis dos tempos,
nem pela dificuldade em carregar o jugo do Senhor; pois todos
aqueles que, como ns, se revestiram de Jesus Cristo no
sacramento da regenerao, receberam de Deus o poder de se
tornar seus filhos[108], e foi a estes que Ele dirigiu estas
palavras: Deixem de lado suas empresas temerrias,
considerem e reconheam que eu sou o seu Deus[109], e
tambm: Eu sou a paz slida e verdadeira dos coraes. Ora,
a este Deus da paz a quem devemos glria e honra pelos
sculos dos sculos. Amm. Essa santa tranquilidade
transporta da terra ao cu uma alma que conhece e sente sua
misria, e desperta a coragem do pecador cheio de humildade
para faz-lo sair do mbito de suas paixes. Mas o amor, que
est acima de todo louvor, concede s pessoas que dele se
ornam o poder de ser colocadas dente os anjos, que so os
prncipes do povo de Deus.
TRIGSIMO DEGRAU

Da reunio das trs virtudes teologais, a f, a esperana e a


caridade

1. Depois de havermos falado de todas as coisas que nos


ocuparam at o momento, podemos dizer com o Apstolo que nos
resta a considerar a f, a esperana e a caridade, virtudes
que so o fundamento e a ligao de todas as virtudes crists
e religiosas. Ora, a maior e mais bela destas trs virtudes
a caridade, pois o prprio Deus chamado de Amor.

2. Ns enxergamos a f como um raio de sol que nos ilumina; a


esperana, como a luz deste raio que nos dirige e nos
encoraja; e a caridade, como o prprio sol que nos inflama e
fecunda em ns todo o bem que fazemos. Entretanto devemos
dizer que essas trs virtudes concorrem para formar a mesma
luz e o mesmo esplendor.

3. A f nos torna capazes de executar tudo o que ele nos faz


empreender. A misericrdia de Deus afirma e fortalece a
esperana, e no permite que esta virtude seja perturbada nem
confundida. A caridade no cai jamais, nem se detm em seu
curso, nem permite, a quem foi ferido pelas flechas divinas,
descansar ou deixar de se entregar a aes que o esprito do
mundo encara como irrazoveis e insensatas; aqui, porm, elas
constituem uma sbia e feliz loucura.

4. Todas as vezes que quisermos falar em caridade, de Deus


que estaremos falando. Veja-se por isto o quanto grande,
difcil e perigoso aquilo que desejam empreender as pessoas
que no do ateno grandeza daquilo que esto por comear,
quando pretendem falar de Deus.

5. Os anjos conhecem a excelncia da caridade segundo o grau


de luz que o Senhor lhes comunicou.

6. Deus amor[110], e aquele que pretender explicar com suas


palavras o que Deus, ser mais insensato e mais cego do que
uma pessoa que pretendesse contar os gros de areia que
existem nas margens e nos abismos do mar.

7. A caridade assim uma coisa semelhante a Deus, e por sua


potncia ela torna os homens que a possuem semelhantes a ele,
na medida em que sua natureza o permita. Os efeitos que ela
produz numa alma ornada com ela consistem em entreg-la a uma
santa e deliciosas embriaguez, em ser para ela uma fonte
inesgotvel de f, um abismo de justia e pacincia, e um
oceano de humildade.

8. A caridade expulsa do esprito todo pensamento


desvantajoso ao prximo; ela no pensa mal de ningum[111].

9. A caridade, a paz do corao e a adoo que Deus nos


concede no batismo, para que sejamos seus filhos queridos,
so trs coisas que s diferem entre si pelo nome, mais ou
menos como o fogo, a luz e a chama. As trs possuem a mesma
natureza, a mesma ao e os mesmos efeitos; esta a ideia
que vocs devem guardar.

10. Temos maior ou menor temor segundo nossa seja nossa


caridade mais ou menos perfeita. O cristo que nada teme, ou
est cheio dessa virtude, ou ela se encontra inteiramente
extinta nele.

11. Creio no fazer algo intil ao me servir aqui de


comparaes extradas das aes humanas, a fim de ajudar a
compreender no que consiste o temor, o ardor, o zelo, os
cuidados, a pressa, o respeito, a obedincia e o amor que
devemos sentir por Deus. Feliz, portanto, o homem que ama a
Deus com uma afeio to ardente quanto um amante insensato
ama a beldade que arrebatou miseravelmente seu corao! Feliz
tambm aquele que no sente por Deus menos temos do que um
criminoso tem pelos juzes que o julgaro e condenaro! Feliz
ainda o cristo cujo zelo e ardor nas vias do Senhor inflamam
seu corao tanto quanto o ardor e o zelo inflamam o dos
servidores fiis e devotados a seus mestres temporais! Feliz
ainda aquele que no sente pela prtica das virtudes uma
afeio menos pronunciada nem menos ardente do que sentem os
maridos ciumentos pelas esposas a quem adoram! Felizes ainda
as pessoas que, em suas oraes, se apresentam a Deus com o
mesmo respeito que os oficiais se apresentam diante de seu
soberano! Felizes enfim as almas que se dedicam a agradar a
Deus com a mesma ateno que os prprios homens estudam
agradar aos outros homens!

12. Uma me cujo corao todo ternura, no ama tanto


abraar e apertar contra seu seio materno a criana a quem
deu luz e nutriu, quanto um verdadeiro filho da caridade
ama se unir a Deus.

13. Uma pessoa que ama ardentemente a outra espera sempre ver
o objeto de seu amor, o cobre dos beijos mais ternos e
afetuosos, e mesmo o sono no capaz de desviar seu esprito
ou seu corao do objeto amado: o amor que sente por essa
pessoa a apresenta a ela em sonhos. Ora, aquilo que
normalmente acontece na ordem natural, acontece tambm nas
coisas de ordem sobrenatural. isso que foi maravilhosamente
bem descrito por uma alma que foi ferida pela flecha do amor
a Deus: Eu durmo, disse ela, porque sou obrigado a ceder s
necessidades do corpo; mas meu corao vela sempre, por causa
da grandeza de meu amor[112].

14. Mas observem vocs que so de confiana, que a alma,


semelhante a um cervo, depois de ter dado morte a todos os
animais ferozes que pretendiam devor-la, queima com uma sede
ardente pelo Senhor; e, ferida pela flecha de seu amor,
suspira sem cessar junto a ele como se estivesse junto a uma
fonte de gua refrescante, cai desfalecida e parece querer se
perder e se extinguir em Deus.

15. Nem sempre fcil reconhecer a causa e o princpio da


fome que sentimos; mas o mesmo no se pode dizer da sede: ela
aparece abertamente, e permite ver de fora os ardores com que
atormenta internamente a pessoa sedenta. por isso que um
grande servidor de Deus disse: Minha alma queima inteira de
sede por Deus, que o Deus vivo e poderoso[113].

16. Se a presena de um amigo a quem queremos ternamente


produz em ns uma transformao notvel, se ela nos torna
alegres e contentes, capaz de afastar de nosso corao toda
pena e amargura, quo grande transformao, eu lhes pergunto,
no deve operar a presena de Deus numa alma pura, santa e
inflamada por amor a Ele, quando se apresenta a ela de
maneira invisvel, verdade, mas nem por isso menos sensvel
e deliciosa?

17. O temor a Deus que provm de um sentimento profundo do


corao costuma lavar e purificar a alma de todas as suas
manchas. por isso que o salmista dirigiu ao Senhor esta
prece admirvel: Trespassa, meu Deus, minha carne com seu
temor, como se a perfurasse[114]. Mas existem pessoas a quem
o santo amor a Deus devora e consome, segundo estas palavras
de Salomo: Voc trespassou meu corao, sim, voc
trespassou meu corao[115]. Encontramos outras a quem o
amor a Deus iluminou de tal forma, que elas se sentem
transportadas de alegria e contentamento, e clamam: Meu
corao colocou no Senhor toda a sua esperana e eu fui
socorrido, e minha carne como que refloresceu[116]. Mas no
fiquemos espantados: no derrama no rosto a alegria do
corao um frescor semelhante ao deu uma flor? Quando uma
pessoa tem a felicidade de ser inflamada pelos ardores da
caridade, e se v, de certa forma, identificada com esta
virtude celeste, podemos ver nela, como num espelho, a beleza
de sua alma. No o que aconteceu ao condutor do povo de
Deus? Moiss, este homem extraordinrio, que j havia muitas
vezes contemplado a Face de Deus, no foi ento publicamente
rodeado de sua Glria?

18.Os que alcanaram o grau da caridade, que prprio dos


anjos, esquecem-se at mesmo do alimento que seu corpo
reclama, e no pensam nisso. Mas no vemos tambm que no
decurso das coisas naturais uma paixo violenta capaz de
fazer perder o pensamento de comer? Assim, o que falamos da
caridade no tem nada de espantoso.

19. Penso mesmo que os corpos daqueles que a caridade tornou


incorruptveis de certo modo, esto menos expostos s
enfermidades; pois a chama purssima da caridade que os
purificou, depois de haver neles extinguido o fogo da
concupiscncia, faz com que no mais estejam expostos
corrupo.

20. Por isso eu ouso assegurar, porque estou intimamente


convencido disso, que essas pessoas tomam seu alimento sem
gosto e sem prazer; pois, se a umidade da terra nutre e
conserva as plantas, o fogo sagrado do amor de Deus nutre e
conserva as almas.

21. O crescimento do temor a Deus o comeo da caridade; mas


a perfeio da castidade o comeo dos verdadeiros
conhecimentos teolgicos.

22. Deus, por meio de uma palavra misteriosa e secreta,


instrui ele prprio as pessoas que esto perfeitamente unidas
a ele com todas as potncias de suas almas e de seus corpos;
mas aquelas que no esto unidas a Deus dessa maneira,
difcil poder falar dele.

23. O Verbo de Deus d uma castidade perfeita, e por sua


presena no corao, leva a morte prpria morte. Ora, a
destruio da morte d aos que aspiram ao conhecimento dos
mistrios as luzes necessrias para chegar at a.

24. Assim, quando falamos a Deus pelo Esprito de Deus,


nossas palavras so, de certo modo, as prprias palavras de
Deus, que so todas santas e que subsistem eternamente.

25. A castidade eleva verdadeiramente um homem ao


conhecimento dos mistrios celestes, de modo que ele consegue
conceber a doutrina que nos ensina o mistrio de um s Deus
em trs pessoas.

26.Quem ama a Deus sinceramente no deixa nunca de amar a seu


prximo, pois o amor que temos por nossos irmos que
manifesta e demonstra aquele que temos por Deus.

27. Este amor ao prximo no nos permite admitir que em nossa


presena se fale mal de outrem, como se ns mesmos nos
entregssemos maledicncia; este vcio nos causa horror e
temos mais medo de nos tornar culpados dele, mais do que de
cairmos no fogo.

28. Podemos comparar uma pessoa que nos assegura amar a Deus
e que no obstante nutre em seu corao sentimentos de clera
e animosidade, a um homem que durante o sono imagine que
viaja e corre.

29. A caridade se fortalece pela esperana; pois esta


ltima virtude que nos faz esperar o prmio e a recompensa de
nossa caridade.

30. Ora, a esperana um dom do cu que nos enriquece com


bens espirituais e invisveis.

31. A esperana um tesouro seguro que possumos neste


mundo, e que deve nos colocar na posse do tesouro imenso e
eterno que esperamos no outro.
32. Esta virtude divina nos consola e nos sustenta em nossas
penas e trabalhos, nos abre a porta da caridade, expulsa de
nosso corao todo sentimento de desespero; e, ainda que os
bens eternos ainda no estejam nossa disposio, ela nos
permite, de certa forma, possu-los e usufruir deles sobre a
terra.

33. A caridade perece se a esperana se retira e falta. a


esperana que nos encoraja a suportar com heroica pacincia
as penas e as amarguras da vida presente; ela que nos faz
amar nossos trabalhos e suores; ela que nos cerca com as
misericrdias do Senhor.

34. por sua poderosa proteo que o religioso sufoca a


tibieza e triunfa perfeitamente sobre a preguia e o
desnimo.

35. O gosto que sentimos pelos favores e os dons celestes faz


nascer em ns os sentimentos de esperana. A pessoa que no
provou, no fundo de sua alma, esses dons celestes, corre o
grande risco de no perseverar.

36. A esperana e a clera so inimigas irreconciliveis. Com


efeito, a esperana jamais nos cobre de confuso, e a clera
nos cobre de vergonha.

37. A caridade traz o dom da profecia e dos milagres; ela


uma fonte inesgotvel de luzes divinas, um cadinho de chamas
celestes que, quanto mais se derramam em abundncia em nosso
corao, mais o inflamam e consomem; ela a alegria dos
anjos, e nos faz avanar em glria para a eternidade.

38. bela virtude! mais bela de todas as virtudes! Diga-


nos, ns suplicamos, diga-nos: aonde voc conduz a pastar
seus caros rebanhos, onde voc repousa durante os ardores do
meio dia[117]? Ilumina-nos! Derrama sobre ns seu divino
orvalho, dirige-nos, conduza-nos e nos atraia a voc; pois
desejamos ardentemente subir at o palcio onde voc habita.
Voc comanda todas as coisas e reina sobre tudo; e voc feriu
meu corao; eu j no posso conter os ardores com que voc
me abrasou, e queimo de vontade de louv-la; ento eu lhe
direi: Voc domina as potncias do mar, e, quando lhe
agrada, amansa e acalma o movimento e a violncia das ondas;
voc humilha e destri os soberbos em seu orgulho, como
homens trespassados por flechas; e, com a fora de seu brao,
voc dispersou os inimigos[118], e tornou invencveis todos
os que a amam. Que me seja dado contempl-la, como o santo
patriarca Jac pode faz-lo, quando voc se apoiou naquela
escada maravilhosa que ele viu! Ah, amvel caridade, digne-se
ser favorvel minha orao ensine-me, se lhe agradar, em
que estado deverei eu estar para poder subir por essa escada
e chegar at voc. Que meios devo empregar para tanto, qual o
prmio e qual a recompensa que merece a pessoa que a ama, e
que, para subir por essa escada cujos degraus so todos
virtudes, as arranja e dispe em seu corao com intensa
atividade? Eu desejaria ainda saber o nmero de seus degraus,
e quanto tempo preciso para se alcanar o ltimo. Jac, que
outrora lutou contra um anjo e que mereceu ver esta escada,
nos ensinou quem so aqueles que devem nos conduzir para
subir por ela; mas ele no quis, ou, para melhor diz-lo, no
pode nos ensinar nada mais a respeito desse mistrio. Agora
que eu j falei a respeito, parece-me que a caridade se
mostrou a mim do alto dos cus e me fez ouvir estas palavras
em minha alma: enquanto voc no se libertar da priso de seu
corpo no lhe ser possvel, apesar de seu amor por Deus, ver
e contemplar os traos de minha beleza: contente-se em saber
que essa escada, no cimo da qual voc me viu apoiada, marca
com seus degraus a ordem e o encadeamento das virtudes,
conforme disse esse grande homem que, ainda quando vivo, foi
iniciado nos mistrios de Deus; pois foi ele quem ensinou que
no presente estas trs virtudes, a f, a esperana e a
caridade, permanecem e so necessrias; mas que a caridade
a mais excelente das trs[119].
So Joo Clmaco - A escada santa - Degraus 1 a 10

[1] Romanos II, 11.


[2] Salmo XIII, 1.
[3] xodo XIV, 15-22; XVII, 8-13.
[4] Salmo CXL, 4.
[5] Provrbios IV, 27.
[6] Eclesistico IV, 10.
[7] Mateus XVIII, 20.
[8] Salmo LXII.
[9] Jeremias XVII, 16.
[10] Mateus VIII, 22.
[11] Marcos X, 21.
[12] Mateus VIII, 22.
[13] Mateus V, 9-12.
[14] II Corntios VI, 17.
[15] Cf. Mateus XIV, 15.
[16] Joo IV, 44.
[17] Romanos XIV, 12.
[18] Romanos XIV, 21.
[19] Mateus XII, 49.
[20] Cf. Salmo XXIII, 6.
[21] Mateus VI, 24.
[22] Gnesis XII, 1.
[23] Cf. I Corntios XV, 33.
[24] Cf. Salmo LIV, 7.
[25] Romanos VIX, 23.
[26] Salmo XXXI, 5.
[27] Salmo XXXIX.
[28] I Corntios XIII.
[29] II Timteo IV, 2.
[30] Romanos VIII, 38-39.
[31] Filipenses IV, 13.
[32] Joo XIII, 35.
[33] Salmo CXXXII, 1.
[34] Oraes iniciais do ofcio, cf. Salmo XCIV, 1.
[35] Salmo XCIII.
[36] Salmo LXX.
[37] Eclesistico XXIV, 23.
[38] Salmo CXXXV, 23-24.
[39] Eclesiastes IV, 9.
[40] Lucas XVII, 10.
[41] Mateus X, 22.
[42] Sabedoria III, 6.
[43] Cf. Joo XX, 4.
[44] Cf. Salmo 6: 2.
[45] Cf. Salmo 37: 6-7.
[46] Cf. Salmo 101: 4-12.
[47] Salmo 79: 4.
[48] Cf. Lucas 1: 79.
[49] Cf. Salmo 78: 8.
[50] Salmo 66: 2.
[51] Isaas 49: 9.
[52] Cf. Romanos 8: 21.
[53] Joo 14.
[54] Mateus 8.
[55] Marcos 5.
[56] Salmo 9.
[57] Mateus 22.
[58] Isaas 22.
[59] Salmo 45.
[60] Salmo 123.
[61] Salmo 123.
[62] Salmo 88: 49.
[63] J 29: 2-3.
[64] Mateus 9: 22.
[65] Cf. Lucas 7: 47.
[66] Mateus 25: 29.
[67] Cf. Salmo 38: 14.
[68] Salmo 15: 8.
[69] Eclesiastes 7: 36.
[70] Salmo 101: 5.
[71] Mateus 25: 41.
[72] J 14: 11.
[73] Salmo 136: 4.
[74] 2 Corntios 6: 14.
[75] Salmo 141.
[76] Cf. Mateus 8? 9.
[77] Apocalipse 21: 4.
[78] Salmo 145: 8.
[79] Ezequiel 33: 13.
[80] Lucas 14: 35.
[81] Salmo 101: 5.
[82] Eclesiastes 1: 22.
[83] Salmo 6: 8.
[84] Cf. Mateus 6: 14-15.
[85] Salmo 100: 5.
[86] Lucas 6: 37.
[87] Mateus 7: 2.
[88] Cf. Lucas 18: 14.
[89] Cf. Salmo 63: 7.
So Joo Clmaco - A Escada Santa - Captulos de 11 a 20

[1] Salmo 38: 2.


[2] Eclesiastes 20: 18.
[3] Salmo 5: 7.
[4] Mateus 25: 36.
[5] Mateus 7: 13-13.
[6] Salmo 34: 13.
[7] As numeraes entre colchetes no constam do original que
passa do item 3 diretamente ao item 6.
[8] Este pargrafo termina abruptamente no original.
[9] Efsios 5: 12.
[10] Romanos 7: 24.
[11] Romanos 11: 34.
[12] O texto original encontra-se interrompido neste ponto.
No entanto, a frase admite uma continuidade no pargrafo
seguinte: Ora, se nosso esprito, por causa de maus
pensamentos surgidos enquanto dormimos, levado a prazeres
desonestos, no durmam nem se levantem sem a lembrana da
morte, e sem que a orao os mantenha sempre unidos a Jesus.
[13] Cf. Mateus 1: 30.
[14] Cf. Salmo 36: 35-36.
[15] I Corntios 4: 7.
[16] Salmo 6: 3)
[17] II Timteo 3: 10.
[18] Atos 20: 34.
[19] Cf. Mateus 6: 26.
[20] J 4: 15.
So Joo Clmaco - A Escada Santa - Captulos de 21 a 30
Final

[1] Na realidade, foi Evagro o Pntico quem primeiro


estabeleceu uma lista dos pecados fundamentais, aos quais
ele chamou de pensamentos, em nmero de oito: vanglria, ira,
acdia, tristeza, luxria, avareza, orgulho e gula. Seu amigo
e discpulo Cassiano o Romano simplificou esta lista, unindo
em um s os pensamentos da acdia e da tristeza, que se
tornaram a preguia. Posteriormente, o papa Gregrio Magno,
no sculo VI, organizou a lista que aceita atualmente pela
Igreja de Roma: gula, luxria, avareza, ira, soberba, inveja
e preguia.
[2] Espcie de armadilha que se coloca na terra, com pontas
metlicas dispostas de tal maneira que sempre uma est
apontada para cima para ferir a quem pisar.
[3] Isaas 3: 12.
[4] Este pargrafo no existe no original consultado.
[5] I Corntios 2: 11.
[6] Lucas 16: 10.
[7] Mateus 16: 26.
[8] Salmo 39: 15.
[9] Salmo 39: 16.
[10] I Reis 2: 30.
[11] Lucas 6: 26.
[12] Mateus 5: 16.
[13] Lucas 14: 11.
[14] Lucas 18: 11.
[15] Tiago 4: 6.
[16] Salmo 17: 42.
[17] Ibid.
[18] Cf. Mateus 22: 13.
[19] xodo 15: 1.
[20] Este pargrafo no existe no original consultado.
[21] Mateus 4: 9.
[22] Mateus 4: 10.
[23] Mateus 11: 29.
[24] Isaas 66: 2.
[25] Mateus 5: 4.
[26] Salmo 24: 9.
[27] Salmo 36: 2.
[28] Cnticos 1: 4.
[29] Salmo 24: 8.
[30] Salmo 7: 11.
[31] Salmo 11: 7.
[32] Mateus 19: 23.
[33] Mateus 11: 29.
[34] Salmo 135: 23-24.
[35] Salmo 114: 6.
[36] Cf. Joo 10: 8-9.
[37] Salmo 113: 9.
[38] Salmo 21: 26.
[39] Cf. Joo 13:35 e Lucas 10: 20.
[40] I Corntios 4: 4.
[41] Cf. Lucas 22: 43.
[42] J 42: 6.
[43] CF. Salmo 51: 18.
[44] Cf. II Samuel 12: 13.
[45] Ibid.
[46] Salmo 90: 13.
[47] Cf. Atos 1: 1.
[48] A lista apresentada por Joo Clmaco no tem
correspondncia em portugus.
[49] Cf. Mateus 6: 23.
[50] Cf. Salmo 67: 2.
[51] Cf. II Corntios 12: 9.
[52] Cf. Salmo 7: 12.
[53] Salmo 69: 2.
[54] Salmo 118: 42.
[55] Salmo 79: 7.
[56] Salmo 38: 2.
[57] Salmo 118: 51.
[58] Eclesiastes 5: 7-8.
[59] Provrbios 24: 6.
[60] I Corntios 14: 40.
[61] Salmo 142: 10.
[62] Salmo 142: 8.
[63] I Tessalonicenses 2: 18.
[64] Cf. Romanos 8: 28.
[65] Deuteronmio 4: 9.
[66] Mateus 18: 15.
[67] Cf. II Corntios 6: 8.
[68] Cf. Mateus 18: 22.
[69] Cf. Tiago 2: 10.
[70] Salmo 118: 96.
[71] Salmo 102: 20-23.
[72] Salmo 122: 2-3.
[73] Cf. Isaas 19: 1.
[74] Cf. Salmo120: 3.
[75] Cf. Mateus 5: 8.
[76] Salmo 56: 8.
[77] Cnticos 5: 2.
[78] Cf. II Corntios 12: 4.
[79] J 4: 12-18.
[80] Cf. J 39: 5-8.
[81] Salmo 15: 8.
[82] Lucas 21: 19.
[83] Mateus 26: 41.
[84] Provrbios 24: 17.
[85] Salmo 114: 6.
[86] Romanos 8: 18.
[87] Salmo 49: 22.
[88] Romanos 11: 34.
[89] Mateus 11: 28-30.
[90] Cf. I Timteo 1: 15.
[91] J 38: 11.
[92] I Corntios 14: 19.
[93] Cf. Atos 12: 8.
[94] Cf. Salmo 72: 25-28.
[95] Cf. Romanos 8: 26.
[96] Cf. Mateus 19: 29.
[97] Cf. Salmo 40: 12.
[98] Salmo 118: 145.
[99] Mateus 18: 20.
[100] I Corntios 2: 16.
[101] Cf. Salmo 38.
[102] Cf. Salmo 100: 4.
[103] Salmo 41: 3.
[104] Glatas 2: 20.
[105] II Timteo 4: 7.
[106] Salmo 17: 30.
[107] Isaas 59: 2.
[108] Cf. Joo 1: 12.
[109] Cf. Salmo 45: 11.
[110] Joo 1: 4.
[111] I Corntios 13: 5.
[112] Cnticos 5: 2.
[113] Cf. Salmo 118.
[114] Cf. Salmo 118.
[115] Cnticos 4: 9.
[116] Cf. Salmo 27.
[117] Cf. Cnticos 1: 7.
[118] Salmo 88: 9-10.
[119] Cf. I Corntios 13: 13.

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