Teoria Social Realista UFMG 2010 PDF
Teoria Social Realista UFMG 2010 PDF
Teoria Social Realista UFMG 2010 PDF
UM DIÁLOGO FRANCO-BRITÂNICO
EDITORA UFMG
Diretor: Wander Melo Miranda
Vice-Diretora: Silvana Cóser
CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (presidente)
Carlos Antônio Leite Brandão
Juarez Rocha Guimarães
Márcio Gomes Soares
Maria das Graças Santa Bárbara
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Beirão
Silvana Cóser
2010
Vandenberghe, Frédéric.
V227t Teoria social realista : um diálogo franco-britânico /
Frédéric Vandenberghe ; tradução de Gabriel Peters,
Estela Abreu, Ana Liési Thurler. Belo Horizonte : Editora
UFMG ; Rio de Janeiro : IUPERJ 2010.
368 p. : – (Humanitas)
Coletânea de artigos do autor sobre o assunto.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7041-809-8 (Editora UFMG)
ISBN: 978-85-98272-21-4 (IUPERJ)
1. Sociologia – França. 2. Sociologia – Inglaterra. I Peters, Gabriel.
II. Abreu, Estela. III. Thurler, Ana Liési. IV. Título. V. Série.
CDD: 301.944
CDU: 316(44)
Prefácio 09
José Maurício Domingues
Introdução
Realismo em um só país? 13
Tradução: Gabriel Peters
Capítulo 1
“O real é relacional”
Uma análise epistemológica do
estruturalismo gerativo de Pierre Bourdieu 43
Tradução: Gabriel Peters
Capítulo 2
A era dos epígonos
A teoria social pós-bourdieusiana na França 85
Tradução: Gabriel Peters
Capítulo 3
Para Michel Freitag
Uma fenomenologia do espírito
para nosso tempo 111
Tradução: Gabriel Peters
Capítulo 4
Reconfiguração da
teoria dos actantes rizomáticos 123
Tradução: Estela Abreu
Capítulo 6
Uma ontologia realista
para a sociologia
Morfogênese da sociedade e
estruturação das subjetividades coletivas 183
Tradução: Gabriel Peters e Estela Abreu
Capítulo 7
Você sabe com quem está falando
quando fala consigo mesmo?
Margaret Archer e a
teoria das conversações internas 257
Tradução: Gabriel Peters
Notas 273
Bibliografia 325
Apêndice
Esboço de uma pesquisa
intercontinental sobre um camelo 361
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SOCIOLOGIA NA METRÓPOLE
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UM PANORAMA DO LIVRO E
ALGUNS AGRADECIMENTOS
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A POSSIBILIDADE DO NATURALISMO
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RELACIONISMO APLICADO
Embora o objeto pareça preceder o ponto de vista, Bourdieu
compartilha da pressuposição construtivista de Saussure,
segundo a qual, na verdade, é “o ponto de vista (que) cria o
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RACIONALISMO APLICADO
Agora que analisamos como o fato científico é conquistado
contra o senso comum e sistematicamente construído como
um efeito relacional da teoria, podemos proceder à análise do
processo de verificação da teoria. Contra o dogma empiricista
da percepção imaculada, Bourdieu enfatiza uma vez mais que
os fatos são sempre e necessariamente sobredeterminados
pela teoria. Na medida em que os instrumentos e técnicas da
pesquisa empírica são, como disse Bachelard certa vez, “teoremas
realmente reificados” (Bachelard, 1971c: 137), todas as operações
da pesquisa sociológica, da formulação de um questionário à sua
codificação e análise estatística, têm de ser consideradas como
“várias teorias em ação” (Bourdieu; Chamboredon; Passeron,
1973: 59). Um conhecimento acurado daquilo que se faz sobre e
com os fatos, bem como do que os fatos podem ou não fazer, é,
portanto, o primeiro requisito da pesquisa sociológica. Por
exemplo, a técnica da análise multivariada, que parece apli-
cável a todos os tipos de relações quantificáveis, pressupõe a
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O HABITUS, OU A ATUALIZAÇÃO
OCASIONAL DO REAL
De acordo com o mentor de Bourdieu, o pensamento
progride dialeticamente por meio de um movimento de engloba-
mento que abarca posições e tenta incorporá-las em um quadro
conceitual mais amplo que supere com sucesso suas limitações
anteriores. Este movimento dialético de alargamento opera por
meio de uma mediação através dos (mas, pace Adorno, não
“nos”) extremos. “Pode-se falar de uma lei psicológica da bipolari-
dade dos erros. Assim que uma dificuldade torna-se importante,
podemos estar certos de que, ao evitá-la, esbarraremos em um
obstáculo oposto” (Bachelard, 1993: 20). Assim, para tomar a
história do nosso campo no pós-guerra como exemplo, quando
a uni-dimensionalidade do estrutural-funcionalismo (e de posições
objetivistas correlatas como estruturalismo, marxismo etc.)
tornou-se crescentemente manifesta no final dos anos 1960, uma
reação microssociológica surgiu e, ao final dos anos 1970, já
havia levado o pêndulo metateórico para o outro extremo, o do
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O CAMPO RELIGIOSO
Na medida em que a teoria da religião de Weber relaciona
sistematicamente os discursos religiosos do mago/feiticeiro, do
profeta e do sacerdote aos interesses sociais mais amplos dos
estratos em que estes se inserem (Weber, 1966: 237-268; Weber,
1972: 259-279), ele desenvolve, pelo menos em princípio, uma
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O CAMPO CIENTÍFICO
Poderíamos argumentar plausivelmente que o núcleo das
novas sociologias “radicais” da ciência consiste em uma “correção
e expansão” (Lynch, 1993: 42) contínuas da Wissenssoziologie de
Mannheim, orientadas no sentido da inclusão das ciências exatas,
as quais Mannheim explicitamente eximiu do alcance da sua
sociologia (Mannheim, 1936: 43, 179, 272; Mannheim, 1952: 170).
E, de fato, do mesmo modo que o chamado “programa forte”
(Bloor, 1991: 3-23) da sociologia do conhecimento científico só
faz sentido se colocado contra o pano de fundo da sociologia do
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SOCIOLOGIA PRAGMÁTICA
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A TEORIA DO ATOR-REDE
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MIDIOLOGIA
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CONCLUSÃO
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POST-SCRIPTUM COSMOPOLITA:
TEORIA SOCIAL NEOCLÁSSICA E ALÉM23
Alguns de nossos colegas têm reclamado (mas, enfim, eles
sempre reclamam...) que a sociologia está tomada pelo desâ-
nimo e que nada de excitante vem acontecendo nesses dias.
Nostalgicamente, eles se referem ao chamado “novo movimento
teórico” dos anos 1980 e aos seus heróis (Habermas, Luhmann,
Bourdieu, Giddens, Alexander), que apresentaram, quase ao mesmo
tempo, sínteses ambiciosas e multidimensionais da tradição
clássica que eram capazes de (ou, pelo menos, tentavam) superar
as antinomias e ambiguidades clássicas que os pais fundadores
da sociologia herdaram de sua disciplina-mãe, a filosofia: sujeito
versus objeto, liberdade versus determinismo, idealismo versus
materialismo, história versus estrutura, cultura versus natureza
etc. Na medida em que ainda consideramos (e ensinamos) as
teorias sociais formuladas na década de 1980 como realizações
protoparadigmáticas, elas podem ser apropriadamente conside-
radas como sociologias neoclássicas. Apoiando-se nos ombros
daqueles protagonistas para verem mais longe ou, como é muito
frequentemente o caso nesses dias, para avançarem em suas
próprias carreiras por meio de ataques a um deles (argumen-
tando, por exemplo, com Habermas e Bourdieu contra Giddens,
ou com Luhmann e Bourdieu contra Habermas), pesquisa-
dores mais jovens com grandes ambições teóricas estudam e
dissecam os textos do novo Durkheim (Bourdieu), do novo Marx
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CRÍTICA REDENTORA
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A FORMA DO FETICHE E O
CONTEÚDO DA MERCADORIA
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OS ACTANTES E A HISTÓRIA
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CRÍTICA E CONSTRUÇÃO
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CONCLUSÃO
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Que seja uma rede de vozes... Uma rede de vozes que não
apenas falem, mas também lutem e resistam pela humanidade.
Subcomandante Marcos
INTRODUÇÃO
A MARCA DO SOCIAL
Até o momento, os sociólogos falharam, no entanto, em
chegar a qualquer acordo acerca do status ontológico da
sociedade. Logo que começam a fazer perguntas mais precisas a
respeito das propriedades distintivas que definem a essência do
social, os sociólogos imediatamente se distanciam da metafísica de
Durkheim por medo de cometerem a falácia da reificação. A crítica
da reificação tão comumente dirigida a Durkheim, é parcialmente
justificada em minha opinião, mas a fonte desta reificação não
deve ser encontrada tanto em seu sociologismo militante quanto
em seu extravagante cientificismo. O que é problemático não é
sua concepção realista dos fatos sociais, mas o empiricismo que
a acompanha (e que entra em conflito com sua identificação dos
fatos sociais com fatos morais). Fatos sociais são dados dos
sentidos, mas não na acepção em que os empiricistas os
compreenderam. Não observamos a sociedade tal como vemos
um trem entrando em uma estação, mas a sentimos na pele,
vaga ou intensamente, como uma sensação qualitativa e difusa
(Sandelands, 1994). Ao insistir na coercitividade e na exterioridade
dos fatos sociais, Durkheim trouxe ao primeiro plano sua facti-
cidade e deixou em segundo plano sua socialidade. Deveríamos
notar, segundo ele, que os fatos sociais compartilhavam essas
propriedades com os objetos das ciências naturais, propriedades
em virtude das quais aqueles se tornariam os objetos apropriados
de uma sociologia “científica”. Durkheim falhou, portanto, em
especificar a marca do social (Greenwood, 1997: 1-2).
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A FORMAÇÃO DE COMPROMISSO
Na sociologia, as três posições ontológicas reaparecem entre
as diferentes frações da disciplina como subontologias regionais,
as quais frequentemente funcionam como marcos simbólicos
de correntes teóricas mais ou menos articuladas. Geralmente, o
sociólogo empírico no campo é um realista que se ignora como
tal. Seja um investigador da estratificação ou de organizações
empresariais, da discriminação na escola ou da competição es-
portiva, da violência no Complexo do Alemão ou do crescimento
das igrejas evangélicas, ele irá, na maior parte do tempo, seguir o
senso comum e tomar como certo que os objetos da sua pesquisa
realmente existem no mundo “lá fora”. É verdade que os sociólogos
supostamente deveriam efetuar uma “ruptura epistemológica”
com o senso comum, construindo seus conceitos como conceitos
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QUESTÕES DE ONTOLOGIA
A FALÁCIA EPISTÊMICA
A filosofia analítica é um método. Há anos está na moda.
Busca-se ser preciso, e até mesmo rebuscado, sem ser profundo
demais. Faz-se a distinção entre o sentido forte e o fraco das
noções, examinam-se minuciosamente os erros gramaticais e os
raciocínios redundantes, inventam-se situações imaginárias e
bastante estranhas para elucidar as estruturas conceituais do
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OS LIMITES DO NATURALISMO
Em The possibility of naturalism (1979), seu segundo livro,
Bhaskar passa das ciências naturais às ciências humanas e
indaga se os fenômenos sociais podem ser estudados do mesmo
modo que os fenômenos naturais. Utilizando argumentos que os
hermeneutas, os fenomenólogos, os interacionistas e os teóricos
da ação opuseram ao positivismo, Bhaskar responde negati-
vamente e desenvolve um “naturalismo crítico” que pretende
ser rigorosamente antipositivista.6 No mundo social, não existe
propriamente dimensão intransitiva do conhecimento. Como a
realidade social é um produto humano, o antiantropocentrismo
do realismo transcendental não pode ser mantido nas ciências
humanas. Ora, se a natureza da realidade social não permite que
se transponha tal qual o realismo transcendental das ciências
naturais para as ciências humanas, isso não significa que se deva
excluir de antemão a existência das estruturas gerativas no mundo
social. “Toda ciência”, inclusive a sociologia, é uma “ciência do
oculto”, segundo a feliz expressão de Bachelard (1986: 38). De
fato, cabe afirmar com Marx e Durkheim que uma das principais
tarefas da sociologia consiste em revelar as estruturas profundas
e os mecanismos gerativos que são relativamente independentes
da consciência, da crença, das intenções e das ações dos indi-
víduos. É possível ir ainda mais longe e afirmar que o “princípio
de não consciência” fundamenta a sociologia como ciência e que
todos os sociólogos, inclusive Weber, implícita ou explicitamente,
reconheceram isso (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1973).
Bhaskar, socialista convicto, sustenta essa posição. Por meio
de uma comparação do modo de existência dos mecanismos
do mundo natural e social, ele enfatiza que a autonomia das
estruturas sociais só pode ser relativa, porque, se as estruturas
são independentes em relação a um conjunto de indivíduos bem
especificados, elas não são independentes em relação ao conjunto
dos indivíduos em geral, e isso sob vários aspectos (Bhaskar,
1979: 47-69):
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ois bem, foi que umas pessoas se reuniram e tiveram uma conversa
p
sobre conversas na tevê e, depois, convidaram várias outras
pessoas, por carta, telefone ou correio eletrônico, para que se
reunissem e, depois, houve outras conversas e algumas pessoas
convidadas receberam documentos, e houve mais conversas,
culminando [na frase que se vê no jornal] e outras inscrições
similares (Harré, 1998: 48).
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QUESTÕES DE SOCIOLOGIA
AS ORDENS DA SOCIEDADE
Contra os novos convencionalistas como Harré, que virtualizam
a sociedade e trabalham na fronteira da psicologia social com a
sociologia, desejo apresentar a tese segundo a qual a sociologia
não pode desistir do conceito de sociedade e que esta não pode
ser reduzida a uma associação em larga escala. A sociedade
existe como efeito emergente e essa emergência é o fundamento
da sociologia como disciplina relativamente autônoma. Com os
pensadores da complexidade, parto da ideia de que a realidade
é um sistema complexo de estratos emergentes emaranhados e
que as ciências se superpõem como patamares em profundidade.
O que uma ciência menos complexa considera como um efeito
de “superveniência” torna-se o patamar da ciência seguinte mais
complexa, de sorte que as sínteses de umas podem aparecer como
produtos semiterminados das outras. Assim, é possível ordenar as
ciências de acordo com uma ordem de complexidade crescente:
física, química, biologia, psicologia, história e sociologia.
Embora cada ciência pressuponha os resultados da ciência que
a precede, a autonomia de cada uma deve ser judiciosamente
preservada, a ordenação se justificando pela articulação ontoló-
gica dos efeitos de emergência e de superveniência. Ao reduzir
os efeitos de emergência de um estrato mais complexo a efeitos
de agregação de um estrato menos complexo, procede-se por
eliminação ontológica e pratica-se um “enticídio” que extermina
a complexidade da realidade, simplificando-a. Assim, ao propor a
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PESSOAS E PARTES
Compreender a sociedade de modo realista implica, por
definição, a aceitação dos teoremas acoplados da emergência e
da autonomia relativa da sociedade: a sociedade é mais e outra
coisa que indivíduos, os grupos e as instituições em interação; há
efeitos sistêmicos que transcendem e englobam os indivíduos,
os grupos e as instituições. Retomando parte das análises de
Luhmann, Jürgen Habermas (1981: 229-293) demonstrou, de
modo convincente a meu ver, que, como consequência de um
processo de diferenciação interna da sociedade, os subsistemas
sociais da economia e da administração de Estado emergem
historicamente do mundo da vida no momento da grande transição
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A MEDIAÇÃO DA AÇÃO
O estado da cultura (contradição versus integração sistêmica)
pode influenciar ou ser influenciado pela estrutura social, mas,
seja qual for a influência que os sistemas exerçam um sobre o
outro – podem até bloquear-se mutuamente –, só podem fazer
isso indireta e mediatamente, passando pelas ações, interações e
instituições do mundo da vida. De acordo com a visão realista,
Archer concebe a cultura e a estrutura como mecanismos gera-
tivos dispondo de um poder causal. Esse poder causal é real e
não imaginário. Pode ser exercido e manifestar-se no mundo da
vida ou não, depende; mas, em todos os casos, o sistema de rela-
ções entre as “partes” só pode exercer seu poder causal graças à
mediação feita pelos “atores”. Ademais, convém notar que os
atores nunca se confrontam com os sistemas. O poder causal
da cultura e da estrutura social manifesta-se concretamente na
estruturação da situação de ação sob forma de injunções ou de
facilidades. O peso das injunções ou das facilidades depende,
objetivamente, da posição social que os atores ocupam na
sociedade – posicionamento involuntário que determina seus
interesses materiais – e, subjetivamente, dos projetos pessoais
que os atores perseguem, ambos ligados até certo ponto pela
“causalidade do provável” (Bourdieu, 1979a: 3-42) que ajusta as
vontades à possibilidade.
Se a ativação do poder causal dos sistemas culturais e sociais
depende dos projetos pessoais (sem projetos, não há influências
restritivas ou capacitadoras), a formulação dos projetos depende
da deliberação reflexiva dos atores sobre as grandes questões
da existência: Quem sou? Quais são meus valores? Que posso
esperar? Que quero fazer? Tais reflexões ocorrem no foro
íntimo da pessoa e tomam a forma de uma “conversação interna”
(Archer, 2003; Archer, 2007a). São duplamente importantes: por
um lado, têm o poder de transformar o indivíduo interiormente
(“Torna-te o que és!”); por outro, mediatizam a influência causal
dos sistemas. Momento de mediação entre o poder causal da
ordem cultural e o da ordem social, a reflexão intrassubjetiva
também possui um poder causal pessoal que pode transformar
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“PERSONAGENS” SOCIOLÓGICOS
A ideia realista de que coletivos existem na sociedade como
mecanismos gerativos que possuem poderes causais, os quais,
ainda que em um estado virtual, podem produzir movimento
social no mundo da vida, vai fundamentalmente de encontro a
teorias nominalistas, analíticas, construtivistas e desconstrucio-
nistas de ambos os lados do Atlântico, teorias que buscam explicar
ou interpretar os coletivos de modo a dissolvê-los, ou então
negar sua existência reduzindo o coletivo a uma representação
do coletivo. Convencidas de que os coletivos só podem existir
como grupos, comunidades ou redes nos níveis interacionais
ou institucionais da sociedade, elas acusam os realistas de
hipostasiarem seus construtos teóricos ao introduzirem enti-
dades causais no nível macro da realidade. Eles confundiriam
“as coisas da lógica com a lógica das coisas” – a acusação que Marx
(1976: 216) dirigiu contra Hegel é agora dirigida, mais uma vez
(por Bourdieu, por exemplo), contra os realistas.29 De acordo com
os construtivistas, os coletivos, a começar pelas classes, referem-
se apenas a entidades teóricas e hipotéticas. Como tipos ideais,
eles representam utopias conceituais que não existem, como tais,
na realidade. O sociólogo que constrói classes como categorias
analíticas não deveria ser autorizado a tomar seus conceitos
por realidade, assim como não pode fazê-lo com seus desejos.
Não é porque os atores tomam as classes como reais em suas
sociologias espontâneas que os sociólogos deveriam segui-los,
apresentando-as como reais em suas teorias. Ao invés de reforçar
a personificação de categorias características do senso comum
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MORFOGÊNESE TRIPLA
Harré coloca uma questão real. Mas a oposição que ele estabe-
lece entre grupos e categorias é excessivamente rígida, e também
excessivamente estática, para ser inteiramente satisfatória. O que
é preciso é uma abordagem mais dialética e dinâmica, capaz de
rastrear o desenvolvimento imanente das categorias (no sentido
hegeliano do termo) e sua transformação em grupos. Coletivos
taxonômicos e grupos estruturados não são necessariamente
opostos e nem sempre se excluem mutuamente, mas formam
um continuum: sob certas condições, que teremos de analisar,
coletivos taxonômicos podem ser organizados em grupos estrutu-
rados e formar redes organizadas que se tornam mais e mais reais
conforme se estruturam, realizando seu potencial no processo (da
dynamis à energeia). Para evitarmos a impressão construtivista
de que coletivos taxonômicos não existem na realidade e de
que são sempre e inevitavelmente reificações que “flutuam nas
cabeças dos atores”, como disse Max Weber (1972: 7), devemos
provavelmente reformular a questão e manter as teses: a) de que
os coletivos são reais; b) e de que existem como grupos virtuais
cujo poder causal se manifesta progressivamente conforme são
estruturados em grupos capazes de produzir movimento social,
gerando impactos em toda a sociedade. Para evitar a reificação
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CATEGORIZAÇÃO, IDENTIFICAÇÃO E A
CONSTITUIÇÃO DA COMUNIDADE SIMBÓLICA
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RITUAIS DE INTERAÇÃO
A teoria da consciência coletiva intencional de Husserl é
essencialmente cognitiva. A despeito de suas nuanças
durkheimianas, ela desconsidera o fato de que a emergência
de pessoas de ordem superior não está baseada apenas em um
acordo racional e consciente entre mentes. A comunicação ativa
está baseada na sintonização mútua dos participantes e pressupõe
sínteses passivas de uma natureza mais difusa e emocional, as
quais precedem as cognições na ordem fundacional. Tal como
as cognições, as emoções são fenômenos intersubjetivos, rela-
cionais e transacionais (Emirbayer; Goldberg, 2005: 483-493).
As emoções surgem não somente no interior dos corações e
mentes dos indivíduos (como “estados mentais”), mas também,
e primariamente, entre atores. Como fenômenos transacionais e
transitórios, elas são passivamente constituídas e emergem na e
a partir da situação de interação. Seguindo Durkheim e Goffman,
podemos conceber a comunicação como uma “cadeia de interação
ritual” (Collins, 2004) que pode ser decomposta nos seguintes
ingredientes: duas ou mais pessoas estão fisicamente reunidas
em um mesmo local, de modo que afetam uma(s) à(s) outra(s)
em uma situação de copresença, seja no primeiro plano da sua
atenção consciente (“síntese ativa”) ou não (“síntese passiva”). A
situação de copresença física é espacialmente demarcada e seus
participantes possuem um senso de quem está tomando parte na
comunicação, bem como de quem está excluído. Os participantes
concentram sua atenção em um objeto ou atividade comum e,
unificados por uma consciência intencional comum dirigida ao
mesmo noema, comunicam esse foco uns aos outros de modo
que cada um deles se torne ciente do foco de atenção de todos
os outros.
Além disso, eles também compartilham um estado comum
de humor e de experiência emocional e estão sintonizados uns
com os outros através da sincronização de movimentos corporais,
do entrosamento rítmico e do estímulo mútuo de sentimentos.
A experiência de atenção mútua acentuada e de alinhamento
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SUJEITOS PLURAIS
A introdução de componentes emocionais e cinestésicos na
fenomenologia da intersubjetividade de Husserl nos permite
compreender a constituição do grupo não somente como uma
comunidade unificadora de mentes, mas também de corações
e corpos. Um sentido de pertencimento é essencial para a
constituição de um grupo, mas também o é sua delimitação em
relação a outros grupos. Para mostrar que a constituição do
grupo é concomitante à sua identificação contra um terceiro,
me dirijo agora à teoria analítica de “sujeitos plurais” de Gilbert
(1989; 1990).40 Em sua tentativa de clarificar noções de senso
comum como “comunidade”, “grupo”, “nós”, “ação comum”
etc., a filósofa britânica submete atividades ordinárias comuns
como “andar junto”, “dançar junto” ou “viajar junto” a uma
investigação conceitual detalhada. São necessários pelo menos
dois para “andar junto”, mas o simples fato de andar ao lado
de outra pessoa, ou na companhia de outra pessoa, não é
suficiente. É preciso que cada um dos caminhantes expresse
abertamente ao outro sua intenção de andar com ele e que os mesmos
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POLÍTICAS DE FRONTEIRA
A primeira estratégia aparece em duas versões, uma universalista
e outra mais diferencialista.47 O cosmopolitismo procedimental
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A DIALÉTICA DA IDENTIFICAÇÃO E
DA CATEGORIZAÇÃO
Agora que apresentamos uma rápida revisão das diferentes
estratégias teórico-políticas que buscam superar o fechamento
schmittiano do coletivo e manter porosas as suas fronteiras,
poderemos retornar à distinção de Rom Harré entre coletivos
taxonômicos e grupos estruturados. Sabemos que o filósofo de
Oxford opõe categorias a grupos, mas acredito que, se seguirmos os
insights de Barth acerca da implicação constitutiva das definições
de si e do outro, da identificação e da categorização, poderemos
dissolver dialeticamente a oposição entre categorias e grupos. A
formação da identidade é “trabalho conjunto” (Barth, 1994: 16).
Um grupo não é apenas constituído pela identificação como
um “nós” colocado contra um “eles”, mas também, e talvez de
modo igualmente importante, constituído como um grupo por
meio das categorizações de outros (no sentido etimológico de
“acusações públicas”, ainda que não devamos excluir a priori
atribuições identitárias mais afirmativas). A identificação autofe-
nomenológica do coletivo pelos membros do grupo e a categori-
zação alterfenomenológica do coletivo por um observador externo
não excluem uma à outra. Ambos os processos de identificação de
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MEDIAÇÕES DO COLETIVO
Para que o coletivo se constitua como um grupo estruturado
e unificado, capaz de ação coletiva, é necessário mais do que
uma identidade coletiva. Não é suficiente que os membros do
grupo se identifiquem com os demais integrantes do in-group
e se diferenciem daquelas pessoas situadas no seu exterior
(out-group). Duas outras condições têm de ser satisfeitas:
primeiramente, os membros presumidos de um grupo potencial
têm de ser capazes de entrar em contato uns com os outros e
formar uma rede comunicativa virtual; em segundo lugar, eles
têm de ser representados por um porta-voz que fale em seu nome
e atualize o coletivo como um grupo organizado que existe no
espaço e persiste no tempo. Para que os coletivos passem da
potencialidade à efetividade e exercitem seus poderes causais,
eles têm de se “estruturar” ou, como diz Domingues (1995), se
“centrar”.51 A autoidentificação dos membros é uma condição
necessária, mas não suficiente, da estruturação dos coletivos.
Um coletivo que deseje agir e intervir no mundo da vida para
transformar o sistema (ou se opor à sua transformação) necessita
da intervenção de uma “mediação tecnológica” que transforme a
comunidade simbólica em um quase-grupo, bem como de uma
“representação política” que transforme o quase-grupo em um
grupo organizado.52
Na linha da tentativa grandiloquente de Régis Debray (1991;
2000) para fundar a midiologia como uma ciência enciclopé-
dica que estuda a sociologística da transmissão cultural e da
organização política, concebo a mediação tecnológica e a
representação política como dois lados de um único processo
de mediação que organiza pessoas e coisas, humanos e não
humanos (para falar como os seguidores de Michel Serres) em
uma associação heterogênea.53 A mediação possui dois lados – um
lado logístico, relativo à organização tecnológica da matéria, e
um lado estratégico, relativo à organização das pessoas em uma
rede. Para difundir uma mensagem através da sociedade e organizar
234
MEDIAÇÕES DE MASSA
Para formar um grupo estruturado e unificado, o coletivo
necessita de uma identidade cultural (nacional, étnica, linguística,
de classe etc.) que simbolize e represente a unidade do grupo.
Pós-estruturalistas, pós-modernistas e psicanalistas sabem que a
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COMUNIDADES IMAGINADAS
Tomando de empréstimo um conceito que teve grande
impacto no campo emergente dos estudos culturais, poderíamos
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A HUMANIDADE EM AÇÃO
A conexão entre a base e o topo é grandemente facilitada pela
comunicação mediada por computador. Do mesmo modo que a
imprensa do século XVIII foi instrumental na superação do caráter
episódico e localizado do protesto popular, facilitando a formação
de coalizões em uma escala nacional (Tarrow, 1994: 48-61), os
meios de comunicação de massa do século XX, e acima de tudo a
televisão, tornaram possível uma imensa sincronização de mentes
e desempenharam um papel central na formação de comunida-
des imaginadas globais, como a aldeia global de McLuhan, que
inclui todos os habitantes do planeta em uma comunidade de
destino autoconsciente.62 Se a televisão torna possível a sincro-
nização de mentes, a Internet permite a coordenação eficiente
de ações coletivas através do espaço. Redes eletrônicas ligam
indivíduos a movimentos e também os movimentos uns aos ou-
tros. Listas de e-mail, por exemplo, permitem uma interconexão
instantânea de mentes (on-line) que pode ocasionalmente levar a uma
congregação em massa de corpos (off-line) em uma manifestação
de protesto. “É a capacidade de movimento fácil de relaciona-
mentos online para relacionamentos off-line que torna possível
a mudança de escala do ativismo transnacional” (Bennett, 2005:
205).
Comparados com os movimentos mais centralizados do
passado, movimentos sociais articulados e mobilizados via
Internet (Internetworked) apresentam um grau notável de flexibili-
dade organizacional e fluidez estrutural. No ponto mais extremo,
podem até dispensar completamente uma liderança, ainda que
provavelmente não o uso de porta-vozes. Negri e Hardt, os
talentosos porta-vozes das frações anarco-comunistas das redes
de ação direta, sugeriram que as novas lutas da multidão estão
tomando a forma de uma matriz de redes distribuídas que são
simultaneamente fluidas, coletivas e individualistas, não apresen-
tando uma hierarquia organizada de comando:
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CATEGORREDES E PORTA-VOZES
Se a representação e a visualização do coletivo pelos membros
do grupo transformam o coletivo em uma comunidade simbólica,
a mediação tecnológica, que conecta potencialmente os membros
de uma comunidade em uma rede latente e dispersa, transforma
esta rede em um quase-grupo serial que pode, por vezes, se
manifestar como um grupo em fusão. A representação simbólica
e a mediação tecnológica são dois momentos necessários, ainda
que insuficientes, da estruturação de coletivos. Para tornar-se
um “grupo triplo ‘I’” real com interesses, ideias e uma identidade
que persiste através do tempo, o quase-grupo necessita de uma
estrutura organizacional que transforme o grupo mobilizável em
um grupo mobilizado, capaz de agir “como um único homem”,
tomando decisões que implicam o compromisso do grupo como
um todo.
Ao se organizar, o grupo estabiliza, canaliza e externaliza
permanentemente as energias fundidas em uma instituição social,
a qual mantém o poder causal do grupo em estado de prontidão e
garante, a quase todo momento, a possibilidade de uma práxis
coletiva futura dirigida contra as estruturas reificadas da sociedade.
Sartre (1960: 440) está certo: “Contra a serialidade que ameaça
dissolvê-lo, o coletivo tem de criar uma inércia artificial que o protege
da ameaça do prático-inerte.” Essa inércia artificial que protege contra
a inércia é a organização. Sartre pensa a organização como uma
entidade, mas ela também pode ser concebida como um processo
que reforça a identidade comum do coletivo ao mesmo tempo
que unifica sua estrutura. A organização soluciona e dissolve o
problema de Harré: ela efetivamente transforma categorias de
pessoas que compartilham alguma característica comum em
redes de pessoas ligadas umas às outras, direta ou indiretamente,
por um tipo específico de ligação interpessoal. Acatando uma
sugestão de Harrison White, Charles Tilly (1978: 62-64) introduziu
o exótico conceito de “categorredes” (catnets )63 na pesquisa sobre
movimentos sociais para referir-se a grupos de indivíduos que
compõem tanto uma categoria quanto uma rede. Categorredes
244
A VOZ DA REDE
O poder de um porta-voz é, em larga medida, metonímico,
como Keck e Sikkink (1998: 207) observaram: “A rede-como-ator
deriva um alto grau de sua eficácia da rede-como-estrutura.”
Um porta-voz condensa a rede. Falando em seu nome, ela
– vamos assumir, pelo menos desta vez, que se trata de uma
mulher negra – dá voz à rede.65 Redes são estruturas comuni-
cativas. Ainda que necessitem de um mínimo de consenso para
coordenar as ações de seus diferentes membros (ou “nós”
– membros também podem ser grupos), elas não deveriam ser
pensadas como antiquadas caixas de música habermasianas com
apenas um tema musical armazenado. A comunicação não exclui,
mas pressupõe e inclui a articulação de diferenças em busca de uma
linguagem e posição comuns. A busca crítica do que é “idêntico na
aparente diversidade de forma e do que é distinto, e mesmo
oposto, na aparente uniformidade” resulta em “fórmulas de unidade e
federação” que “organizam e interconectam intimamente o
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A MEDIAÇÃO DA MEDITAÇÃO
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ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO
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Prefácio
1
VANDENBERGHE. Une histoire critique de la sociologie allemande.
Ele retomou um desses autores em livro já publicado em português: A
sociologia de Georg Simmel. Bauru: EDUSC, 2005 (original francês de
2001).
2
VANDENBERGHE. Complexités du post-humanisme. Trois essais
dialectiques sur la sociologie de Bruno Latour.
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1
Na sociologia conteporânea, o estruturalismo, a análise de redes e a
teoria dos sistemas são as principais tradições teóricas que enfatizam a
primazia das relações sobre e contra categorias e substâncias. Enquanto
Bourdieu baseia-se no estruturalismo e Emirbayer na análise de redes,
Fuchs (2001) funde a teoria sistêmica de Luhmann e a análise de redes
de White em um provocativo ataque ao essencialismo e ao realismo.
2
No original, lê-se generative structuralism. Embora tal expressão possa ser
considerada, grosso modo, como sinônima da noção de “estruturalismo
genético”, mais comum na caracterização do quadro teórico-metodológico
de análise da vida social formulado por Bourdieu, o conceito de
“estruturalismo gerativo” mobilizado por Vandenberghe foi mantido
nesta tradução por parecer mais adequado para evocar a dívida que
os alicerces epistemológicos da sociologia bourdieusiana possuem em
relação ao racionalismo de Bachelard e ao relacionismo de Cassirer, além
de já remeter também à ontologia “gerativista” (característica do realismo
crítico) por meio da qual o autor analisa criticamente o pensamento de
Bourdieu. Em comunicação pessoal, o próprio Vandenberghe confirmou
que era essa a sua intenção ao utilizar a expressão. (N. de T.)
3
Bourdieu não é um pensador sincrético, mas sintético e herético. Ele
se apoia em Durkheim, Marx, Weber e outros, mas, na medida em
que os corrige criticamente, poderíamos descrevê-lo também como um
durkheimiano antidurkheimiano, um weberiano antiweberiano ou um
marxista antimarxista. Poderíamos até dizer que ele pensa com Althusser
contra Althusser e contra Habermas com Habermas, mas não – e essa é
provavelmente a única exceção – que ele pensa com Bachelard contra
Bachelard.
4
Até recentemente, a maior parte dos comentadores havia negligenciado
a importante influência da tradição francesa de história e filosofia da
ciência em geral, bem como de Bachelard em particular. Wacquant
(1996c: 152) notou-a e, enquanto isso, Swartz (1997: 31-36) e Pinto (1998:
22-24) corrigiram a falta. Em Culture and power, Swartz introduz sua
análise da influência de Bachelard sobre Bourdieu notando que “muitas
das preocupações teóricas centrais de Bourdieu permanecem, de certo
modo, obscuras para boa parte das sociologias britânica e americana a
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1
A defesa sistemática, feita por Passeron (1991), de um método não
popperiano, ideográfico e ilustrativo para as ciências sociais, bem como
o mapeamento dos “esquemas de inteligibilidade” sociológicos realizado
por Berthelot (2000), podem ser considerados como dois exemplos de
epistemologia social neste sentido estrito. É significativo que Alexander,
Honneth e, à la limite, mesmo o próprio Giddens, não sejam considerados
pelos franceses como sociólogos, mas como filósofos sociais. A Revue du
MAUSS (2004, n. 24) recentemente convidou alguns sociólogos (Touraine,
Boudon, Latour, Thévenot, Freitag, Quéré, Dubet) para falar acerca da
possibilidade de uma teoria sociológica geral.
2
Os quatro nomes referem-se, na verdade, a quatro escolas diferentes
com seus próprios programas de pesquisa, centros de pesquisa e jornais
prediletos (Ansart, 1990). Os principais colaboradores de Bourdieu
(L.Wacquant, L. Pinto, P. Champagne, R. Lenoir) trabalham no Centre de
Sociologie Européene da EHESS e publicam em Actes de la Recherche
en Sciences Sociales. Alain Touraine e seus associados (M.Wieviorka, F.
Dubet, F. Khosrokhavar, D. Martucelli) são membros do Cadis (Centre
d’Analyse et d’Intervention Sociologique), também na EHESS. Crozier
e seus colaboradores (A. Friedberg, J. C.Thoenig, R. Sainsaulieu) são
afiliados ao Centre de Sociologie des Organisations, sediado no Institut
de Sciences Politiques, e, assim como os tourainianos, escrevem para
Sociologie du Travail. Boudon e outros individualistas metodológicos da
Sorbonne, como F. Chazel, M. Cherkaoui e B. Valade, controlam as Presses
Universitaires de France e publicam na Revue Française de Sociologie.
3
Para uma análise influente do pós-estruturalismo francês, ver Ferry e
Renault (1988). Para uma interpretação mais profunda do diálogo entre
as principais tradições teóricas alemãs (hermenêutica, teoria crítica do
sujeito) e o estruturalismo e pós-estruturalismo franceses, ver Frank (1983),
Dosse (1995) e Corcuff (1995) apresentam boas revisões dos mais recentes
desenvolvimentos nas ciências humanas.
4
A influência da microssociologia americana (Goffman, Garfinkel, Sacks,
Cicourel) e da filosofia anglo-saxã da linguagem ordinária (Wittgenstein,
Anscombe, Searle) sobre as novas sociologias pragmáticas da ação de
L.Quéré, L.Thévenot, P.Pharo, B.Conein, D. Cefai e M. de Fornel não
pode ser subestimada. Estes autores publicam em Raisons Pratiques e
Réseaux. Tardiamente, sob a influência da filosofia analítica da ação,
alguns deles juntaram-se ao círculo “neoneopositivista” dos individualistas
metodológicos. Para uma amostra representativa da sofisticação da
microssociologia francesa, ver Ogien e Quéré (2005).
5
Vários dos textos de Wacquant podem ser encontrados no endereço:
<http://sociology.berkeley.edu/faculty/wacquant/>.
6
Na realidade, Bourdieu abre seu livro com a epígrafe “isto não é uma
biografia”. Trata-se, portanto, como bem assinalou Gabriel Peters, de “um
caso raro de autobiografia não autorizada” (2008: 26).
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1
Para uma reconstrução completa da fascinante história da noção de
fetichismo, ver os trabalhos de William Pietz (1985; 1988).
2
Para pensar sistematicamente a conexão entre o local e o global, o concreto
e o abstrato, cunhei (mas ainda não patenteei) o conceito de fato social
total global. A ideia por trás do conceito é simples. A globalização não
é apenas um fato, é também uma perspectiva. Qualquer coisa (objeto,
sujeito, parte do corpo, tecnologia, ferramenta, mercadoria, dádiva etc.)
é uma condensação de uma teia complexa de relações e conexões entre
humanos, coisas e palavras que se espalham pelo mundo como um rizoma.
Tome-se o exemplo do texto que estou escrevendo. Ele contém várias
referências a colegas ao redor do mundo, o papel que vocês têm em mãos
é feito de madeira que pode vir da Amazônia ou da China e assim por
diante... Apenas seguindo as conexões, de onde quer que elas venham e
para onde quer que levem, posso analisar qualquer objeto concreto como
um fato social total global que implica todas as dimensões e instituições
da vida social – da esfera material à semiótica ou econômica.
3
O asterisco em “ordem*” transforma o conceito ordinário de ordem em
uma notação estenográfica para quaisquer fenômenos (tais como como
lógica, razão, significado, método etc.) alcançados de modo prático,
endogenamente produzidos, naturalmente organizados e reflexivamente
descritos pelos membros da sociedade. Uma vez que o significado do *
seja compreendido como uma injunção para reespecificar o fenômeno
da ordem de acordo com as diretrizes da etnometodologia, fenômenos
de ordem* tornam-se onipresentes – como o elefante na cozinha.
4
Uma breve referência à trilogia de Manuel Castells sobre a era da
informação deve ser suficiente para se entender o que digo. As redes
sociotécnicas são parte e parcela da sociedade em rede capitalista que
cobre o globo.
5
Promessa de bêbado: tinha prometido não mencionar diretamente os
membros do CALL, mas a partir do momento em que o próprio Latour
defende abertamente os “vencidos da história” e convida a recompor
progressivamente o mundo, de modo que as “versões” da realidade dos
excluídos sejam nele incluídas (Latour, 1999b: 258-264), pareceu-me que
o problema não é (de) “pessoal”. Se a teoria dos atores-rede passou a
ter tanto sucesso nas escolas de comércio, não é tanto por haver uma
afinidade eletiva entre os RATos (Rational Action Theorists) e os ANTas
(Actor-Network Theorists), mas porque Latour não tomou as devidas
precauções ético-políticas. Apesar de seu posicionamento à esquerda
do tabuleiro político, não existe nada em sua teoria, nem uma simples
“tranca” teórica, que possa impedir a assimilação oportunista pelo
sistema. Alain Caillé (2000) viu isso muito bem. Seu artigo tem o mérito
de apresentar com clareza a questão do laisser-faire que está contido na
política experimental de Latour.
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1
No Colóquio de Cérisy, dedicado aos trabalhos de Luc Boltanski e
Laurent Thévenot (Breviglieri; Lafaye; Trom, 2008), fui tentado a uma
tal comparação dos “grandes sociólogos” franceses, não diretamente,
mas passando pela sociologia da arte e da música e, especialmente,
contrastando a sociologia da singularidade de Nathalie Heinich e a
sociologia das mediações de Antoine Hennion.
2
Deixo de lado o construtivismo radical da teoria sistêmica não apenas
porque nenhum dos protagonistas é diretamente influenciado por ela,
mas também porque a introdução da reflexividade e da observação de
segunda ordem desafia radicalmente o realismo crítico. Precisamente
porque o desafio é sério (Luhmann, 1990: 68-121; Fuchs, 2001), não quero
simplesmente descartá-lo de modo apressado.
3
O prefixo “pós” aqui não é um marco temporal, mas indica o que
acontece com a teoria social inglesa e francesa quando ela chega aos
Estados Unidos. Quando os estudos culturais da Escola de Birmingham
atravessam o Atlântico, se transformam em pós-modernismo; quando
a desconstrução chega aos departamentos de literatura comparada das
universidades da Ivy League, se transforma em pós-estruturalismo.
4
Conforme Peirce, se poderia chamar à primeira “Critik” e à segunda
“Kritik”: “Essa palavra [Critik, ou em grego κριτικη, utilizada por Platão
(que divide todo o conhecimento entre a epitática e a crítica), foi adotada
em latim pelos Ramistas e em inglês por Hobbes e Locke. Tomando-a
de empréstimo a Locke, Kant, que sempre escreveu Critik – o c sendo,
possivelmente, uma reminiscência de sua origem inglesa – a introduziu no
alemão. Kant expressou claramente o desejo de que não se confunda essa
palavra com aquela da crítica, com a crítica literária (Kritik em alemão)”
(Peirce, 1960: 2.205).
5
Essa classificação combina as categorias da “invenção” e da “interpretação”
que se encontram em Walzer (1987) com as da “construção” e da
“reconstrução” utilizadas por Honneth (2000). A introdução do
hegelianismo de esquerda por Honneth permite corrigir a apresentação
enviesada da crítica social de Walzer. Com um bom manejo da
interpretação – “há somente uma via em filosofia moral” (Walzer, 1987: 21)
–, o comunitarista americano não somente descartou a via da “descoberta”
e da “invenção”, mas, sem dizê-lo, rebateu a crítica dialética sobre a
crítica hermenêutica. Eliminando o trabalho propriamente sociológico,
que consiste em analisar a sociedade como um conjunto de sistemas e
de estruturas, em um mesmo golpe ele reduziu a teoria crítica à crítica
jornalística dos intelectuais engajados.
6
É necessário registrar que a ideia estava no ar. Podemos reencontrá-la tanto
entre os estruturalistas quanto entre os fenomenólogos que influenciaram
o jovem Bourdieu. Assim, Lévi-Strauss (1955: 44-45) escreveu: “Para atingir
o real, é preciso primeiro recusar o vivido, reintegrá-lo, a seguir, em uma
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1
Três comentários acerca de coletivismo e individualismo. Primeiramente,
não se deve confundir coletivismo ou emergentismo com holismo. As
chamadas sociedades primitivas são sociedades holísticas, orientadas
para o passado e com um baixo grau de historicidade. Ideológica e
normativamente, elas quase não reservam um lugar para o indivíduo. As
visões coletivistas do social, como a que defendo, não são holistas. Elas
dão amplo espaço para o indivíduo e até insistem na tese de que o poder
causal da sociedade é sempre mediado (em última instância) pelo poder
causal dos indivíduos. Em segundo lugar, a oposição entre nominalismo
e realismo se sobrepõe apenas parcialmente àquela entre individualismo
e coletivismo. A etnometodologia, por exemplo, é coletivista sem ser
realista; assim como a sociologia de Tarde (1991), a teoria do ator-rede
é nominalista sem ser individualista. Finalmente, um nominalista radical
poderia facilmente argumentar que o indivíduo é tão abstrato quanto
a sociedade. Não se pode observar uma pessoa, tal como não se pode
observar uma sociedade. Ambas são entidades compósitas que não
existem como tais. Inversamente, o realista poderia concluir disso que
ambas são reais.
2
A despeito de suas credenciais marxistas, Jon Elster (1989: 248), por
exemplo, afirma: “Não há sociedades. Há apenas indivíduos que interagem
uns com os outros.”
3
O debate anglo-saxão dos anos 1960 entre coletivistas e individualistas
(O’Neill, 1973) terminou com uma trégua: vitória do individualismo
ontológico, derrota do individualismo metodológico. Um quarto de século
depois, Ogien (2000: 236) confirma o diagnóstico e renova o compromisso
histórico: “É possível dizer sem exagero que, de todas as teorias sociais
que sobreviveram ao debate, dificilmente há uma que tenha endossado
a posição (do coletivismo ontológico) sem reformulá-la radicalmente,
enquanto a maior parte delas foi construída com o objetivo explícito de
mostrar seu caráter absurdo (para salvar talvez as proposições básicas
[do coletivismo metodológico]).”
4
Para Wittgenstein, o deslize do substantivo à substância ou do predicado
à propriedade constitui um erro gramatical que só pode levar à introdução
de imagens filosóficas reificadas de uma essência: “Nós predicamos da
coisa aquilo que reside no seu método de representação... pensamos estar
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