Teoria Social Realista UFMG 2010 PDF

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TEORIA SOCIAL REALISTA

UM DIÁLOGO FRANCO-BRITÂNICO

teorial social realista.indb 1 27/1/2010 11:22:47


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor: Ronaldo Tadêu Pena
Vice-Reitora: Heloisa Maria Murgel Starling

EDITORA UFMG
Diretor: Wander Melo Miranda
Vice-Diretora: Silvana Cóser

CONSELHO EDITORIAL
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Juarez Rocha Guimarães
Márcio Gomes Soares
Maria das Graças Santa Bárbara
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Beirão
Silvana Cóser

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Frédéric Vandenberghe

Teoria Social Realista


UM DIÁLOGO FRANCO-BRITÂNICO
Gabriel Peters
Estela Abreu
Ana Liési Thurler
Tradução

Belo Horizonte Rio de Janeiro


Editora UFMG IUPERJ

2010

teorial social realista.indb 3 27/1/2010 11:22:47


© 2010, Frédéric Vandenberghe
© 2010, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.

Vandenberghe, Frédéric.
V227t Teoria social realista : um diálogo franco-britânico /
Frédéric Vandenberghe ; tradução de Gabriel Peters,
Estela Abreu, Ana Liési Thurler. Belo Horizonte : Editora
UFMG ; Rio de Janeiro : IUPERJ 2010.
368 p. : – (Humanitas)
Coletânea de artigos do autor sobre o assunto.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7041-809-8 (Editora UFMG)
ISBN: 978-85-98272-21-4 (IUPERJ)
1. Sociologia – França. 2. Sociologia – Inglaterra. I Peters, Gabriel.
II. Abreu, Estela. III. Thurler, Ana Liési. IV. Título. V. Série.
CDD: 301.944
CDU: 316(44)

Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação


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de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Sociologia e Ciência Política da
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Diretor de Ensino: Jairo Nicolau
Diretor de Pesquisas: Adalberto Cardoso
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Um francês, um inglês e um alemão receberam a
incumbência de fazer um estudo sobre o camelo.

O francês foi ao Jardim Botânico, lá passou meia


hora, fez perguntas ao guarda, jogou pão para o
camelo, cutucou o bicho com a ponta do guarda-
-chuva e, de volta à casa, escreveu para seu jornal
um folhetim cheio de piadas e ditos picantes.

O inglês, levando a cesta do chá e um confortável


material de acampamento, foi montar sua tenda nos
países do Oriente de onde trouxe, depois de uma
estada de dois ou três anos, um enorme livro cheio
de fatos sem cronologia nem conclusão, mas de
inegável valor documental.

Quanto ao alemão, com supremo desprezo diante


da frivolidade do francês e da falta de ideias gerais
do inglês, fechou-se em seu quarto para redigir uma
obra em vários volumes intitulada: Ideia do camelo
tirado do conceito do eu.

(Le Pèlerin, 1º de setembro de 1929, citado por Ferry


e Renaut, 1988)1

1 Como um brasileiro conduziria uma pesquisa sobre o camelo? Para o


esboço de uma pesquisa intercontinental sobre o simpático animal do
deserto, ver o Apêndice neste livro.

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S umário

Prefácio 09
José Maurício Domingues

Introdução
Realismo em um só país? 13
Tradução: Gabriel Peters

Capítulo 1
“O real é relacional”
Uma análise epistemológica do
estruturalismo gerativo de Pierre Bourdieu 43
Tradução: Gabriel Peters

Capítulo 2
A era dos epígonos
A teoria social pós-bourdieusiana na França 85
Tradução: Gabriel Peters

Capítulo 3
Para Michel Freitag
Uma fenomenologia do espírito
para nosso tempo 111
Tradução: Gabriel Peters

Capítulo 4
Reconfiguração da
teoria dos actantes rizomáticos 123
Tradução: Estela Abreu

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Capítulo 5
Construção e crítica
na nova sociologia francesa 147
Tradução: Ana Liési Thurler

Capítulo 6
Uma ontologia realista
para a sociologia
Morfogênese da sociedade e
estruturação das subjetividades coletivas 183
Tradução: Gabriel Peters e Estela Abreu

Capítulo 7
Você sabe com quem está falando
quando fala consigo mesmo?
Margaret Archer e a
teoria das conversações internas 257
Tradução: Gabriel Peters

Notas 273

Bibliografia 325

Apêndice
Esboço de uma pesquisa
intercontinental sobre um camelo 361

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PREFÁCIO

Um prefácio de livro implica um diálogo com aquilo que


está presente em si perante o leitor. Implica também jogar luz
sobre uma presença que é apenas parcial: o autor cujo livro se
está justamente apresentando. Ao buscar dar conta dessas duas
tarefas aqui, inevitavelmente o testemunho pessoal se mesclará
com a reflexão de cunho objetificante acerca do autor e de seu
labor teórico.
Conheci Frédéric Vandenberghe em Montreal, no ano de 1998
– lá se vão 10 anos – no congresso da Associação Internacional de
Sociologia. Ainda mais jovens do que hoje, trocamos exemplares
de nossas teses de doutorado, ambas publicadas havia pouco.1
Seu tema fundamental naquele momento era a “reificação”, e
Habermas se punha como seu autor favorito. Fui acompanhando,
a partir da leitura dessa obra de dois largos volumes, de grande
fôlego, que cobre a teoria crítica e seus antecessores na sociologia
e na filosofia alemãs, vários de seus artigos sobre teoria geral – ou
“metateoria”, como prefere defini-la –, nos quais se engajou com
vários temas cruciais das ciências sociais, incluindo até mesmo a
“subjetividade coletiva”, conceito com o qual eu mesmo buscara
refrasear a teoria sociológica. Nesses trabalhos posteriores, pude
acompanhar também a ascensão do realismo crítico de Bhaskar
e da sociologia de Bourdieu em suas articulações conceituais,
conquanto já na conclusão de seu primeiro livro aquele já se
anunciasse com força. São alguns desses artigos que se encontram
aqui coligidos. Entrementes, Vandenberghe se dedicou a alguns
temas mais específicos e substantivos, em particular à biotecnologia,

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embora a teoria sempre empreste o norte à sua pesquisa (no caso,
a partir de uma discussão com Latour).2 Assim, vai se delineando
uma obra que certamente se desdobrará em vários outros livros
e em múltiplas direções.
Frédéric Vandenberghe foi chegando aos poucos ao Brasil,
ao Rio de Janeiro, ao IUPERJ. Vem somar-se a uma florescente
comunidade, pequena, é verdade, mas bastante ativa, de cientistas
sociais dedicados à teoria, a qual tem seu eixo, desde meados
dos anos 1990, no GT de Teoria Social da Anpocs. Trata-se, a
meu ver, de adição essencial a essa comunidade, a qual ajudará
a se desenvolver com seus escritos sofisticados, suas construções
conceituais, sua inquietação intelectual e com os alunos que
formará. Ademais, vale notar que, em se tratando de sociólogo
com sólida formação, a partir da qual são permitidos avanços na
direção da filosofia e da teoria social, contribuirá certamente para
a consolidação e a renovação da sociologia como disciplina bem
definida no Brasil (além disso, oxalá ajude a liquidar a teoria da
modernização, sempre ressurgente entre nós, roupagens menos
clássicas, não obstante).
Seria ocioso e maçante tentar resumir o conteúdo dos textos
que compõem este volume, que realiza um diálogo original
entre o realismo crítico inglês e a sociologia francesa da segunda
metade do século XX e algumas de suas extensões no século
XXI. Gostaria apenas de assinalar que o conceito de “emergência”,
que já se fazia presente na conclusão de seu primeiro livro,
cumpre aqui papel absolutamente central. Pergunto-me, contudo,
se não há forte tensão entre ele e o conceito de reificação tão
fundamental em suas elaborações anteriores, e se o realismo
crítico não poderia abrir mão das construções do estruturalismo
social de tipo gerativo (e inclusive das do tipo descritivo). Não
seria possível tratar os aspectos, por assim dizer, “duros” da vida
social em plano mais propriamente ontológico (antes que ôntico)
e ao mesmo tempo processual e institucional (para além de
uma noção de “substância”, tradicional e que acaba sendo reite-
rada pelo conceito de “emergência”)? Seja como for, é com esse
conceito que Vandenberghe busca permitir autonomia ao ator
social dentro de um quadro em que as determinações estruturais
circunscrevem essa liberdade de movimentação.
O livro em que o leitor está prestes a mergulhar o levará a um
terreno rico de temas teóricos e de soluções conceituais, todas

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de cunho necessariamente polêmico – até porque o autor assim
teceu seus argumentos –, com os quais aprenderá muito. Eis aí a
marca dos livros que importam, a característica dos autores que
vale a pena conhecer.
José Maurício Domingues

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INTRODUÇÃO
REALISMO EM UM SÓ PAÍS?

Não há alternativa à ontologia.

Bhaskar. From science to emancipation: odyssey of a soul

Na realidade, devo confessar, não há muito diálogo ocorrendo


entre sociólogos franceses e britânicos. A conexão entre França
e Alemanha é tradicionalmente mais forte, enquanto a Inglaterra
permanece ligada, como de costume, aos Estados Unidos. Na
filosofia, a fratura entre França e Inglaterra corresponde à divisão
entre as tradições continental e analítica. Ainda que a Inglaterra
tenha a sua tradição empirista própria, doméstica, que vai de
Locke e Hume até Ayer e Russell, a divisão entre as tradições
foi exacerbada pelos austríacos (Frege, Wittgenstein, Popper).
Deixando-se de lado os franceses tornados plenamente analíticos
(“neoneopositivismo” e filosofia da mente) e os britânicos torna-
dos continentais (pós-estruturalismo e desconstrução), é notável
que os poucos filósofos continentais que dialogaram seriamente
com a tradição analítica (como Apel, Tugendhat e Ricœur) ten-
dam a ter uma sólida formação em filosofia alemã (hermenêutica,
fenomenologia e teoria crítica). Algo similar ocorre com os raros
filósofos analíticos (como Taylor, McDowell e Brandom) que
enfrentam as questões reais e aplicam seus métodos de decorti-
cação para rejuvenescer o “espírito objetivo”.
No campo das ciências sociais, a conjunção entre estatísticas
booleanas e teoria da escolha racional tornou-se a opção

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padrão do homo lattes com múltiplos projetos de pesquisa e um
estável plano de carreira. Destituídos de seus “assuntos/sujeitos”1
tradicionais, os antropólogos seguiram Clifford Geertz e James
Clifford em suas rotas para os estudos culturais e embarcaram
em todas as viradas, voltas e reviravoltas das humanidades.2
Para sobreviver, apostaram suas fichas em interdisciplinas subdefi-
nidas, como os estudos culturais, estudos da ciência, estudos de
gênero, estudos latino-americanos e estudos pós-coloniais, para
nomear apenas alguns. Eles agora fazem seu trabalho de campo
na cidade ou, seguindo os sujeitos pesquisados onde quer que
estes se encontrem, nas aldeias globais da sociedade em rede. A
sociologia, por sua vez, se estilhaçou em uma miríade de
subcampos altamente especializados. Confrontada com “para-
digmose múltipla”, ela parece ter desistido inteiramente da ideia
de uma teoria sociológica geral.3 Assim como os antropólogos
perderam seus “sujeitos” tradicionais com o advento da moder-
nização, os sociólogos temem perder seu “objeto” moderno com
o advento da globalização. O individualismo metodológico e o
temor do nacionalismo metodológico chegam à mesma conclusão
de Mrs. Thatcher: “a sociedade não existe” (mas e o capitalismo?).
Como os europeus, os sociólogos tornaram-se um grupo bastante
nostálgico, olhando para o passado em busca do momento de
síntese conhecido como o “novo movimento teórico” dos anos
1980 (Alexander, 1987a) – com Bourdieu como o novo Durkheim;
Giddens, o novo Weber; Habermas, o novo Marx; e Luhmann,
o novo Parsons –, isto quando não estão se movendo em alta
velocidade para as mais recentes modas e tendências.4

SOCIOLOGIA NA METRÓPOLE

No mercado da teoria global, os franceses, alemães, britânicos


e estadunidenses continuam dando as cartas.5 Os alemães traba-
lham nas fundações, os ingleses constroem a casa, os franceses
são chamados para a decoração interna e os americanos tomam
conta do orçamento. Até recentemente, as principais tradições
nacionais eram bastante provincianas. Anthony Giddens e Pierre
Bourdieu fizeram um excelente trabalho de desprovincianização
das sociologias britânica e francesa respectivamente. Graças a um
conhecimento detalhado das tradições francesa, anglo-americana

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e alemã, Giddens foi bem-sucedido em superar os estreitos marcos
empiricistas que caracterizam a sociologia nos Estados Unidos
(Estatísticos Unidos?) até hoje. Ainda que eu duvide seriamente
da possibilidade de que a teoria da estruturação figure proemi-
nentemente nos futuros manuais de sociologia, a contribuição
histórica de Giddens consiste, em minha opinião, em haver legiti-
mado a teoria social como um subcampo relativamente autônomo
da sociologia. Ao invés de terceirizarem o trabalho conceitual
deixando-o a cargo dos filósofos, os sociólogos podem agora
perseguir questões filosóficas no interior da sociologia sem terem
de refazer todo o caminho de volta aos pré-socráticos.
Bourdieu (que nunca cita Giddens, afora alguns bem colocados
comentários maliciosos sobre a terceira via) abriu o campo das
ciências sociais francesas a um diálogo ativo com as tradições
europeia e anglo-americana de filosofia, antropologia e socio-
logia. Dessa forma, ele contribuiu para aumentar significativa-
mente o nível da sociologia francesa – e, com a enorme recepção
internacional de seu trabalho no final dos anos 1990, também
da sociologia mundial. De fato, talvez não seja exagerado dizer
que a sociologia crítica de Bourdieu ocupa agora uma posição
homóloga àquela que foi ocupada pelo estrutural-funcionalismo
de Parsons nos anos 1950. A heresia tornou-se doxa; o profeta
tornou-se um padre.
Tanto Giddens como Bourdieu dialogaram ativamente com a
teoria social alemã, não apenas com os clássicos, mas também,
e especialmente, com o trabalho de Jürgen Habermas, o mais
sociológico dos filósofos vivos. Habermas cita ocasionalmente
tanto o trabalho de Giddens, cujo conceito de agência como
poder transformativo vem diretamente de Bhaskar, como o
de Bourdieu, o racionalista crítico que é frequentemente visto
como realista crítico. No entanto, tal como seu colega francês,
Habermas nunca se refere ao trabalho de Roy Bhaskar, o
fundador do realismo crítico. Apesar de os realistas críticos haverem
escrito extensivamente sobre a principal figura da segunda
geração da Escola de Frankfurt (Keat, 1981; Stockman, 1983;
Outhwaite, 1994), Habermas parece nem mesmo saber da exis-
tência do realismo crítico. Giddens, por sua vez, esteve direta-
mente envolvido em um debate com Roy Bhaskar, enquanto
Margaret Archer, a principal representante do realismo crítico na
sociologia (que estudou com Bourdieu na École des Hautes

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Etudes en Sciences Sociales em Paris, no final dos anos 1970),
desenvolveu uma sólida crítica da teoria da estruturação (Archer,
1988; Archer, 1995), mas nem o trabalho de Bhaskar nem a teoria
morfogenética de Archer parecem ser bem conhecidos fora do
Reino Unido.

O QUE É CRÍTICO NO REALISMO CRÍTICO?

Neste livro, pretendo introduzir o realismo crítico a um público


lusófono e utilizá-lo para iluminar alguns problemas centrais na
sociologia francesa contemporânea. Dado que a influência da
filosofia e sociologia francesas é tradicionalmente muito forte no
Brasil – quando chove em Paris, os guarda-chuvas sobem em
São Paulo –, utilizarei o restante deste ensaio para delinear os
princípios fundamentais do realismo crítico. O realismo crítico
é um movimento internacional, de base britânica, na filosofia e
nas ciências humanas, movimento inspirado pelos (primeiros)
trabalhos de Roy Bhaskar, especialmente A realist theory of
science (1975-1978), que constitui um marco na filosofia da
ciência, juntamente com os trabalhos de Popper, Lakatos, Kuhn,
Bachelard ou Canguilhem.6
Como uma crítica radical das filosofias positivista e pós-modernista
da ciência, o realismo crítico oferece uma filosofia alternativa para
as ciências naturais e sociais que confere destaque às questões
ontológicas. Invertendo o idealismo de Kant, ao mesmo tempo
em que mantém o método da análise pressuposicional, ele coloca
a filosofia transcendental “de volta sobre seus pés”. O realismo
crítico reivindica a ontologia como uma teoria do ser, distinta da
epistemologia, e defende a tese forte de que a teoria do ser não
pode ser reduzida à teoria do conhecimento. Ainda que essências
e existências só possam ser conhecidas “por nós” sob certas
descrições, elas existem, não obstante, independentemente de
tais descrições. Demonstrando, por meio de argumentos transcen-
dentais, que a ontologia não pode ser reduzida à epistemologia,
o realismo crítico desenvolve uma ontologia não antropocêntrica
para as ciências naturais e uma praxiologia humanista para as
ciências sociais.
A expressão “realismo crítico” (que Lukács também utilizou
para referir-se à estética marxista) surgiu a partir da combinação

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das expressões “realismo transcendental” (referente à filosofia das
ciências naturais de Bhaskar) e “naturalismo crítico” (referente
à sua filosofia das ciências sociais), mas é agora aceita de modo
generalizado para designar trabalhos em filosofia (Harré, Bhaskar,
Collier), sociologia (Archer, Outhwaite, Sayer), psicologia (Harré,
Secord, Keat), geografia (Sayer, Massey, Thrift), ecologia (Soper,
Benton, Dickens), economia (Lawson, Brown, Fleetwood), direito
(Norrie, Bowring), linguística (Pateman), estudos de gênero (New,
Soper, Hamlin) e até mesmo literatura comparada (Potter, Tew)
associados, de algum modo, ao pensamento de Romano Harré,
Roy Bhaskar e Margaret Archer.
Como um antipositivista militante, me interessei primeira-
mente pelo realismo crítico porque este oferecia o martelo que
eu procurava para esmagar os números. Através de uma análise
de experimentos científicos, ele mostra que o positivismo não
é adequado sequer para as ciências naturais. Se este é o caso e
Popper entendeu tudo errado, então seriam necessários argu-
mentos muito fortes para tornar a posição positivista nas ciências
sociais minimamente plausível.7 A rejeição do modelo positivista
de explicação não significa, entretanto, que nas ciências sociais só
haja espaço para interpretação. As críticas-padrão do positivismo
são parasitárias do positivismo. Elas simplesmente invertem-no
e atacam-no onde ele é mais fraco, mas não o confrontam e o
derrotam em seu próprio terreno. Mesmo quando o positivismo
em si é abertamente contestado, como na famosa Positivismusstreit
dos anos 1960 (Adorno et al., 1969), que opôs teóricos críticos
(Adorno, Habermas) a racionalistas críticos (Popper, Albert), as
partes em disputa aceitam tipicamente um retrato essencial-
mente humiano da lei natural e das teorias científico-naturais. Ao
introduzir uma nova concepção de causalidade e romper com
a errônea concepção empiricista das ciências experimentais, o
realismo científico derrota o realismo empiricista em seu próprio
território e oferece uma coerente abordagem dialético-transcendental
da realidade, abordagem que aponta para além dos dilemas da
“controvérsia Explicação-Compreensão [Erklären-Verstehen]”.
Tal como as abordagens de Jürgen Habermas (1968) e Karl
Otto-Apel (1981, II), o realismo crítico é transcendental – ele parte
da reflexão sobre as condições de possibilidade ou necessidade
do conhecimento científico para fazer afirmações ontológicas
sobre o mundo. Ele é também dialético, dando continuidade à

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tradição hegeliana com meios analíticos e buscando uma recons-
trução do marxismo. Mas Bhaskar é mais radical em sua crítica
do positivismo, pois, diferentemente de seus colegas alemães, ele
não questiona apenas os limites do positivismo e a reificação do
mundo social a que ele induz quando ultrapassa seus limites, mas
rejeita a sua validade no terreno mesmo das ciências naturais.
O realismo crítico adentra a “guerra das ciências” lutando
em duas frentes. Esta não é uma “guerra de posição”, mas uma
“guerra de movimento” sendo travada simultaneamente contra
duas concepções de ciência: empiricistas-positivistas, de um lado,
e convencionalistas, construtivistas e relativistas, de outro, estas
últimas fundadas sobre o idealismo e tendentes ao superidealismo.
Contra o naturalismo, que busca no positivismo uma concepção
unificada das ciências, a hermenêutica, o estruturalismo e a
desconstrução insistem na tese de que a natureza é social
e linguisticamente construída.8 Este é o caso, pois os fatos
são sempre e inevitavelmente “sobredeterminados” pela teoria,
enquanto as teorias são sempre “subdeterminadas” pelos fatos.
A “tese da subdeterminação” sustenta que, para todo fato,
há sempre uma variedade de explicações teóricas compossíveis
com o mesmo, de modo que, se se manipula suficientemente a
cláusula ceteris paribus, sempre é possível “salvar os fenômenos”
(Duhem). O social entra neste retrato para reduzir a multiplicidade
de teorias possíveis e criar ordem, reduzindo a complexidade
a proporções mais administráveis. Como Deus no pensamento
de Leibniz, o social assume a tarefa de reduzir o número de
mundos compossíveis a um – o melhor dos mundos possí-
veis. Quais teorias são selecionadas em última instância é algo
que depende, entre outras coisas, da Weltanschauung que
for compatível com a teoria e da distribuição de relações de poder
no interior do campo científico.
Se a tese da subdeterminação preenche o hiato entre a teoria
e os fatos por meio da introdução do social, a “tese da sobre-
determinação” elimina o hiato completamente e socializa o apa-
rato inteiro da ciência, das categorias básicas às tecnologias de
observação. Para demonstrar que os fatos são impregnados de
teoria, imaginemos Johannes Kepler e Tycho Brache sentados um
ao lado do outro em uma montanha, observando o nascer do
sol (Hanson, 1958). Eles viram a mesma coisa? Não, não viram.
Kepler concebe o sol como fixo e percebe o mundo em

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movimento descendente, enquanto Tycho, que segue Ptolomeu,
concebe a Terra como fixa e percebe o sol erguendo-se no
horizonte. Os fatos não falam por si mesmos. Na medida em que
são sempre categorizados e esquematizados por uma ou outra
teoria, a qual é ela mesma sócio-historicamente determinada, não
há observação que não seja uma interpretação e interpretação
que não envolva uma representação imaginária da realidade.
Aquilo que se observa é paradigmaticamente induzido, e para-
digmas se modificam com o tempo. Assim, quando Thomas Kuhn
escreve que, após uma revolução científica, o cientista “trabalha
em um mundo diferente” (Kuhn, 1970: 121), está apenas dizendo
o óbvio, embora sem a devida cautela. O que se transformou
foi o mundo da vida, o meu ou o seu mundo, o “mundo” se
quisermos, mas não o mundo em si mesmo. Este estava lá antes
da chegada do cientista à cena e, presumivelmente, continuará lá
após a morte do último ser humano (daqui a alguns milênios se
tivermos sorte, em alguns séculos ou décadas se não tivermos).
Quem quer que sugira que o mundo se transforma a cada
mudança de paradigma está deslizando para o superidealismo
e flertando com o irracionalismo. Sem a pressuposição de que
diferentes teorias oferecem retratos alternativos do mesmo mundo,
nenhuma ciência é possível. No limite, chegamos à conclusão
patentemente absurda de que o número de mundos é igual ao
número de teorias e teóricos; e, portanto, uma vez que todos
são teóricos, que o número de mundos é igual ao de indivíduos
(mas, se se está falando de mundos da vida, a última proposição
faz bastante sentido. Poderíamos até invertê-la e dizer que todo
indivíduo é um mundo, uma mônada).
O realismo crítico aceita sinceramente o relativismo epis-
têmico, mas, para evitar o irracionalismo da multiplicação de
mundos, introduz uma distinção categórica entre as dimensões
intransitiva (ou ontológica) e transitiva (ou epistêmica) da rea-
lidade. A dimensão intransitiva refere-se a entidades no mundo
que são reais e existem independentemente do que pensamos
(externalismo), enquanto a dimensão transitiva refere-se a coisas
também reais, mas cuja existência depende daquilo que pensamos
(internalismos 9) Graças a essa distinção crucialmente importante
entre a independência que o mundo tem da teoria (dimensão intran-
sitiva) e a variabilidade sócio-histórica do conhecimento científico
(dimensão transitiva), o realismo crítico é capaz de evitar a “falácia

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epistêmica” que reduz a ontologia à epistemologia e define o ser
em termos do conhecimento. Graças a este duplo foco, o realismo
crítico consegue combinar e reconciliar o realismo ontológico,
o relativismo epistemológico e racionalidade de julgamento.10
Ele é, assim, singularmente compatível com uma sociologia da
ciência e da tecnologia, ao mesmo tempo que evita os excessos
do (des)construcionismo radical.
O realismo crítico não apenas destrói e desconstrói; ele
também constrói e reconstrói, agindo, como diz Bhaskar citando
Locke, como “o trabalhador subterrâneo” ou “ajudante de obra”
da ciência (1978: 10). Ele limpa o terreno e remove os ídolos
(Bacon), as ideologias (Marx) e outros obstáculos epistemológicos
(Bachelard) que bloqueiam uma melhor compreensão das
práticas científicas. Além disso, ele corta o cordão umbilical que
ata a ciência à filosofia da ciência reinante e desenvolve uma
alternativa inclusiva animada por um interesse na emancipação,
no Iluminismo (em sentido ocidental) e na Iluminação (no sentido
oriental). Como uma filosofia para a ciência (e contra as ideologias
que a ameaçam), o realismo crítico oferece fundações ontológicas
sólidas não apenas para as ciências naturais, mas também para
as ciências sociais.11
Nas ciências da natureza, o realismo crítico leva a um total
eclipse do positivismo. Nas ciências sociais, ele leva a uma refor-
mulação conscienciosa do marxismo, a qual é capaz de superar
o velho debate dos anos 1960 sobre a coupure epistemológica
que supostamente separaria o jovem doutor Marx do analista
maduro de Das Kapital (Althusser, 1965). Ao invés de opor leituras
humanistas (hegelianas) a leituras estruturalistas (spinozistas) de
Marx, Bhaskar desenvolve uma concepção fortemente relacional
da estrutura social que deriva de uma leitura realista de Althusser,
mas que não sacrifica nem a agência em favor da estrutura, nem a
ciência em favor da emancipação. Como todos os bons marxistas
que conhecem seu Aristóteles e seu Hegel, Bhaskar concebe o
marxismo como uma filosofia prática da emancipação e propõe
um modelo transformacional da ação social que supera, de modo
dialético, a oposição entre agência e estrutura. Como um socialista
confesso, nosso teórico social também se pergunta sobre “como
modificamos o processo social de uma chave primordialmente
reprodutiva para uma chave primordialmente transformativa”
(Bhaskar, 1989: 8).

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Ainda que a praxiologia de Bhaskar possua algumas afinida-
des notáveis com a teoria da estruturação de Giddens, ela evita
alguns dos principais problemas dessa última, os quais estão
relacionados principalmente ao teorema da “dualidade da estru-
tura” e à omissão do fenômeno da emergência. Através de uma
ênfase reiterada no fenômeno da emergência (Bhaskar, 1982) e de
uma reintrodução implícita do dualismo entre agência e estrutura
(Archer, 1996) – ou melhor (para evitarmos a linguagem confusa
de Giddens, que identifica a estrutura à cultura), entre mundo da
vida e sistema (Habermas, 1981) –, o realismo crítico oferece uma
ontologia estratificada capaz de levar em consideração a autono-
mia alienante dos sistemas sociais, mas sem negar que os agentes
possuem o poder de mudar o mundo e a si mesmos. Dado que
essa ontologia estratificada não reduz os sistemas sociais a estru-
turas sociais ou as estruturas sociais à agência, ela evita a dupla
redução que caracteriza a falácia da “conflação central” (Archer,
1988: 72-100; Archer, 1995: 87-134; ver mais adiante o Capítulo
7 deste livro). Embora o realismo crítico ainda careça, em minha
opinião, de uma fundamentação fenomenológico-hermenêutica
mais forte do que aquela que Harré, Bhaskar e Archer, talhados
na filosofia anglo-saxã da ação e da linguagem ordinária, pude-
ram oferecer até o momento, estou bastante confiante de que
ele fornece os melhores alicerces para uma sólida teoria crítica
da sociedade que se pretenda capaz de integrar, em uma única
perspectiva, a crítica da reificação e a promessa da emancipação
(Vandenberghe, 1997: 98: Conclusão).

AS TRÊS ONDAS DO REALISMO

Bhaskar Roy é um homem de muitas ocupações e com muitas


vidas. Nascido na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial,
filho de pai indiano e mãe inglesa (ambos teósofos), ele estudou
filosofia, ciência política e economia em Oxford. Tendo terminado
seu doutorado sob orientação de Romano Harré, começou a
desenvolver o sistema filosófico do realismo transcendental no
final dos anos 1960, quando, preocupado com o problema do
subdesenvolvimento no Terceiro Mundo, chegou à conclusão
de que a economia é autista e sem relevância para o mundo
real de pessoas reais.12 Como seus ilustres predecessores que

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desenvolveram perspectivas inteiramente novas impulsionados
por um senso de missão, bem como por uma forte convicção
de que resolveriam não apenas os problemas da filosofia, mas
também da humanidade, o filósofo inglês de origem indiana é
um homem de ambições grandiosas e inúmeros projetos. Mais
de uma vez ele anunciou livros (ou séries de livros) com títu-
los grandiloquentes que nunca foram publicados (pelo menos,
não ainda): História crítica da filosofia ocidental; A filosofia e o
eclipse da razão; Hume, Kant, Hegel, Marx; Ideologias filosóficas;
Teoria social dialética; A filosofia do dinheiro; Transcendência e
totalidade; Entre Oriente e Ocidente; Reencantando a realidade;
Vivendo a metarrealidade.
Sua trajetória é um tanto similar àquelas de Auguste Comte
e Charles Sanders Pierce. Como Comte, ele começou com uma
forte crença na ciência e terminou em águas místicas situadas para
além da religião. Como Peirce, ele tem algo de gênio (publicou
seu primeiro livro quando tinha 20 anos), mas, conforme avançou
em suas reflexões e aprofundou suas ideias, seus escritos e sua
linguagem começaram a ficar mais e mais idiossincráticos, obscu-
ros e esotéricos. Ele abusa de neologismos, ATLs (acrônimos de
três letras) e argumentos semiformalizados com representações
gráficas n-dimensionais. Consciente do problema, Bhaskar adi-
cionou glossários aos seus livros, mas, como estes estão repletos
de referências internas, não são muito úteis para a compreensão
plena do Bhaskarês.13
Como o feminismo, o realismo crítico vem em três ondas.
Em uma primeira onda (1975-1993), Bhaskar investigou as
fundações da filosofia das ciências naturais. Sequencialmente,
ele desenvolveu o sistema do realismo transcendental para as
ciências naturais, o sistema do naturalismo crítico para as
ciências sociais e também delineou uma crítica explanatória do
positivismo como ideologia. Quando a crítica explanatória do
positivismo se metamorfoseou em uma metacrítica de todas as
filosofias prévias, dos antigos gregos ao neomarxismo do século
XX, passando por Hume, Kant e Hegel, o realismo crítico sofreu
uma inflexão dialética. Investigando a causalidade dos vazios e
o trabalho do ausente, o realismo crítico da segunda onda (1993-
2000) desembocou no realismo crítico dialético, pensado como
um sistema mais inclusivo que buscaria superar todos os
dualismos e contradições. Desde 2000, o realismo crítico entrou

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em sua terceira onda. Passando do transcendental ao transcendente,
Bhaskar desenvolveu uma filosofia new age monista, espiritual
e esotérica – a filosofia da metarrealidade – e desapareceu em
algum lugar na Índia.

A PRIMEIRA ONDA: REALISMO CRÍTICO

A primeira e mais forte onda do realismo crítico pode ser


subdividida em três momentos: 1) realismo transcendental; 2)
naturalismo crítico; e 3) crítica explanatória.
1 - Realismo Transcendental - Em um momento primeiro,
fundacional, que coincide com a publicação simultânea de A
realist theory of science, por Bhaskar (1975), e Causal powers, por
Rom Harré e E. Madden (1975), Bhaskar expande a inovadora
crítica de Harré ao conceito humiano de lei com uma investigação
conceitual das condições de possibilidade das práticas científicas.
Como filósofo, ele trata exatamente do mesmo mundo de que
tratam as ciências naturais, mas transcendentalmente, i.e., da
perspectiva do que tais práticas científicas pressupõem acerca
do mundo antes mesmo de qualquer investigação empírica,
colocando-se a questão crucial: “Como deve ser o mundo para
que a ciência seja possível?” (Bhaskar, 1978:23). A resposta a essa
questão merece ser chamada de ontologia.14
Como uma investigação da ontologia de tipos naturais, o
realismo transcendental submete o mundo dos positivistas a um
exame crítico e, pensando as pressuposições dos experimentos
científicos, conclui que o familiar modelo nomológico-dedutivo
de Mill, Popper e Hempel é errôneo. Ao se concentrarem na
invariância empírica da relação entre eventos observáveis (se
x, então y), os positivistas reduziram o mundo a um mundo de
fatos atomizados, um mundo plano e previsível de eventos sem
estrutura que se assemelha a uma mesa cósmica de bilhar onde
as bolas (preferencialmente brancas e vermelhas) colidem umas
com as outras sem necessidade, sem conexão interna, sem se
encontrarem imersas em um campo gravitacional.
No rastro do exame da intervenção causal do cientista nos
experimentos científicos realizado por Wright (1971), Bhaskar
demonstra que as práticas científicas só fazem sentido se se

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assume que o mundo é um sistema aberto em que uma multi-
plicidade de fatores opera ao mesmo tempo.15 Os experimentos
são designados para isolar artificialmente o sistema. Permitindo
o controle meticuloso de todos os fatores e condições ante-
cedentes (as quais seriam, caso contrário, contrabandeadas para
a cláusula ceteris paribus, que gera estragos se não controlada),
os experimentos tornam possíveis a explicação causal e a
predição. Restringindo significativamente a validade do modelo
dedutivo-nomológico, Bhaskar (1975:103) afirma que “é apenas
sob condições de isolamento que, dado o antecedente, a dedução
do evento consequente é possível, de modo que as condições da
teoria popperiano-hempeliana da explicação sejam satisfeitas”.
Diferentemente dos positivistas, os quais, seguindo Hume,
pensam as leis como conjunções constantes (ou associações
empiricamente invariantes) de eventos observáveis contingen-
temente relacionados (a colisão de duas bolas de bilhar) e
assumem que as leis podem ser observadas na natureza, os
realistas críticos sabem que as conjunções constantes de eventos
são raras na natureza, sendo provocadas através do isolamento/
fechamento artificial do sistema. Fazendo abstração da intervenção
causal do cientista nos experimentos, os positivistas inadvertida-
mente identificam as leis da natureza observadas em circunstâncias
experimentais às leis na natureza. Consequentemente, genera-
lizam seus achados para além do cenário experimental e não
percebem que, ao identificarem as leis causais com conjunções
constantes de eventos artificialmente produzidas, são levados à
absurda conclusão de que eles, cientistas, causam e até modificam
as leis da natureza!
Há uma “diferença ontológica” entre as leis científicas e as
sequências de eventos. Enquanto as últimas são provocadas pelo
ser humano e pertencem à dimensão transitiva da realidade, as
primeiras pertencem à dimensão intransitiva da realidade e
existem independentemente dos seres humanos. Para tornar
inteligível a atividade experimental, deve-se conceber as leis
como enunciados sobre “poderes causais” (Harré) ou “tendências”
(Bhaskar) de mecanismos gerativos subjacentes e transfactuais
(como um campo gravitacional) que o cientista não produz, mas
que operam na natureza, mecanismos cuja existência presumida
explica as conjunções de eventos que o cientista efetivamente
observa e registra no laboratório como necessárias.

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Ainda que estes mecanismos gerativos possam ser em si
mesmos invisíveis, ou tornem-se visíveis apenas através de
tecnologias de extensão dos sentidos (a “fenomenotécnica” de
Bachelard), sua existência é, não obstante, pressuposta na prática
científica para que seja possível explicar a conjunção observável
entre eventos. Afirmar a existência de mecanismos gerativos que
conectam internamente causas e efeitos não nos leva de volta
à metafísica (nem à psicodelia – a virtus dormitiva do ópio, de
acordo com o famoso médico de Molière).
A bem da verdade, boa parte da construção de teorias nas
ciências naturais envolve a formulação de modelos de mecanismos
gerativos e o estabelecimento de testes para descobrir qual é a
sua estrutura e como eles funcionam (Harré, 1970). Eventos não
devem ser concebidos como produtores de outros eventos sem
que haja um mecanismo intermediário capaz de estabelecer um
laço ontológico conectando causa e efeito, não de modo con-
tingente, mas necessário. Em virtude da sua estrutura interna, a
coisa tem a disposição que tem para agir de certo modo e, assim,
deve produzir o efeito que produz, em condições favoráveis e
na ausência de restrições. Como disse Mao (1966: 235): “A causa
fundamental do desenvolvimento de uma coisa não é externa,
mas interna.” A conjunção contingente entre ácido e papel de
tornassol não explica por que o papel ácido azul fica vermelho.
É porque o papel de tornassol é sensível ao ácido que, sob certas
condições, ele se torna vermelho quando combinado à solução
ácida. Em virtude de sua natureza intrínseca, por causa de sua
estrutura interna, o papel de tornassol é sensível e muda de cor
quando mergulhado no ácido apropriado. Na ciência, observamos
uma regularidade empírica, inventamos uma explicação plausível
para esta e depois checamos a realidade das entidades e processos
postulados na explicação.
Diferentemente dos positivistas, que privilegiam indevidamente
as experiências empíricas, o realismo crítico é uma ontologia
modal que confere prioridade à potencialidade sobre a atualidade
16
e à atualidade sobre a experiência. Destacando os poderes
causais de entidades e processos, ele sublinha que as tendências
dos mecanismos gerativos podem ser reais mesmo quando não
exercidas, exercidas mesmo quando não atualizadas, e atuali-
zadas independentemente da percepção ou detecção humana.
Um poder causal pode ser exercido repetidamente ou não ser

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exercido de modo algum. Ainda que exercido, seu poder pode
ser neutralizado por outros poderes contrabalançadores (o gás
cloro torna branco o papel de tornassol azul), de modo que nada
efetivamente resulte e, factualmente, nada aconteça. E, quando
algo acontece, pode muito bem acontecer sem que ninguém se
dê conta disso, como a árvore que cai na floresta amazônica. De
qualquer modo, a situação experimental na qual o real (o poten-
cial), o atual (o factual) e o empírico (o observável) coincidem
é excepcional e não deve ser tomada como regra.
A ciência nunca termina. Quando um mecanismo gerativo hipo-
tético que explica a relação entre fenômenos como necessária
é identificado, confirmado e descrito, a hipótese torna-se um
fato que necessita não apenas de mais exploração, mas também
de mais explicação. Com efeito, o explicans de hoje torna-se o
explicandum de amanhã. Os cientistas olham mais adiante e
mergulham mais profundamente na busca de um mecanismo
gerativo subjacente mais básico que explique a emergência dos
fenômenos. Devido ao fenômeno da emergência, a realidade
é estratificada, de modo que a ciência não possui apenas uma
trajetória horizontal, mas também vertical. “A ciência está
(verticalmente) em movimento em um mundo (horizontalmente)
em movimento” (Bhaskar, 1986: 40). Como um trabalhador das
minas, a ciência cava sempre mais profundamente, movendo-se
de um estrato da realidade para o próximo (dimensão vertical) e
descobrindo em cada estrato uma multiplicidade de mecanismos
gerativos que explicam a relação entre eventos (dimensão hori-
zontal). E, ao final desse processo, a ciência descobre a base ou
fundamento de todos os seres, erguendo o véu de Ísis e revelando
o mistério do próprio ser: Aletheia.17 Nem tudo que é (ou pode
ser) pode consistir em objeto das ciências.
2. Naturalismo Crítico - Em The possibility of naturalism (1979),
seu segundo grande livro, que coincide com o segundo momento
da primeira onda, Bhaskar se move das ciências naturais para as
ciências sociais. Explorando os limites do realismo transcendental,
ele desenvolve o naturalismo crítico como uma filosofia antiposi-
tivista, praxiológica e hermeneuticamente informada do mundo
social, filosofia que é compatível com o marxismo humanista.
Como produtos contínuos das práticas humanas, os sistemas
sociais são, por definição, sistemas abertos.18 Por motivos ontoló-
gicos, e não apenas morais, experimentos controlados dificilmente
são possíveis nas ciências sociais (Harré; Secord, 1972).19

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Nas ciências sociais, a explicação é possível, mas não a
predição. É suficiente tornar pública uma predição para que
ela seja potencialmente refutada. Isso acontece porque a
“dupla hermenêutica” enfraquece a distinção entre as dimensões
transitiva e intransitiva das ciências.20 As teorias e discursos que
são parte da dimensão transitiva da ciência estão implicados na
(e são constitutivos da) dimensão intransitiva do mundo social.
Diferentemente das bolas de bilhar, que não são conscientes
de si mesmas, os seres humanos são animais autoconscientes e
autointerpretantes, suspensos em teias de representações sim-
bólicas da realidade que revelam e constituem esta última como
uma totalidade dotada de sentido.21 Contra o pano de fundo
desse universo simbólico pré-interpretado e significativo, os
atores levam suas vidas com os outros de modo consciente,
reflexivo e intencional, agindo sozinhos ou conjuntamente em
situações de todos os tipos e reproduzindo e transformando, por
meio dessas ações, seus ambientes materiais, culturais, sociais e
pessoais. A natureza humana é tal que qualquer ação social tem
repercussões inevitáveis, não importa o quão pequenas, nas
transações materiais com a natureza, na totalidade ausente da
linguagem, nas relações sociais com outros atores e na persona-
lidade dos atores mesmos.
A dimensão hermenêutica da realidade humana limita seriamente
a possibilidade do naturalismo nas ciências humanas. Mesmo se
transpuséssemos o modelo realista de explicação das ciências
naturais para as ciências sociais, permaneceriam os fatos de que
as ciências sociais são ciências humanas e de que a explicação da
ação social pressupõe sempre, necessária e inevitavelmente, uma
interpretação prévia da ação, não apenas por parte do analista,
mas também e acima de tudo pelos próprios atores. Para nós,
humanistas, uma mesa de bilhar é relevante apenas na medida
em que esteja cercada por jogadores que sejam membros da
sociedade e estejam envolvidos em vários jogos de linguagem,
imersos em diferentes formas de vida. Jogadores que agem, falam
e bebem juntos em torno de uma mesa de sinuca o fazem em
condições que escolheram livremente – mas o jogo que jogam, a
língua que falam e a mesa em que se apoiam estão previamente
dados e são pressupostos por cada um dos jogadores.
Através de uma investigação dos limites ontológicos do
naturalismo nas ciências sociais, Bhaskar analisa as condições de

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possibilidade da sociologia. Mais uma vez, a questão que o move
é transcendental: “Que propriedades possuídas pelas sociedades
tornam-nas possíveis como objetos de conhecimento para nós?”
(Bhaskar, 1989: 25).22 Dado que as sociedades são feitas pelo ser
humano, não se pode fazer abstração das pessoas, de suas ações
e paixões, seus conceitos e crenças, suas vidas e suas histórias.
Se estudássemos as pessoas como estudamos partículas em
colisão em um acelerador, estaríamos reificando e desumanizando
as sociedades. Uma sociedade humiana, na qual experimentos
naturais seriam possíveis e seríamos capazes de prever ações
humanas, não seria uma sociedade humana. Não importa o quão
qualificado, o naturalismo está proscrito nas ciências sociais –
pelo menos, enquanto os humanos sejam humanos e a ciência
não os tenha reduzido a zumbis ou a cérebros em tonéis de
laboratório. O que Hannah Arendt (1958: 40) escreveu sobre o
behaviorismo também vale para outras formas de determinismo
da regularidade:

uniformidade estatística não é, de modo algum, um ideal


A
científico inofensivo; é o ideal político não mais secreto de uma
sociedade que, inteiramente submersa na rotina da vida cotidiana,
está em paz com a concepção científica inerente à sua própria
existência.

Baseando-se no trabalho de Peter Winch (1988), nosso filó-


sofo social insiste pesadamente no fato de que as sociedades
são dependentes de ações e conceitos, do que também deriva,
portanto, sua transitoriedade.

struturas sociais, diferentemente de estruturas naturais,


E
i) não existem independentemente das atividades que
governam, ii) não existem independentemente das concepções
que os agentes têm a respeito do que estão fazendo em
suas atividades iii) e podem ser apenas relativamente duráveis
(de modo que as tendências que elas sustentam podem não ser
universais, no sentido de invariantes no espaço-tempo) (Bhaskar,
1979: 38).

Além de tais limites ontológicos ao naturalismo, há também


um limite epistemológico. Dado que as estruturas sociais são
necessariamente imperceptíveis e estão presentes apenas em
seus efeitos, a confirmação empírica será sempre indireta, por

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meio da detecção de seus efeitos. De fato, as estruturas sociais
e formações sociais não são tangíveis, mas acaso isto significa
que elas não existem, que a sociologia é irrelevante e pode ser
reduzida à psicologia? Como uma totalidade ausente de relações
entre significados presentes apenas em suas instanciações, a
linguagem é um sistema virtual, mas deveríamos por isso descartar
a linguística estrutural como uma forma de metafísica e limitar
a análise à pragmática e às performances? Como um sistema de
relações entre capital e trabalho, o capitalismo é transfactual
(devido a distorções ideológicas, ele pode ser até contrafactual),
mas deveríamos por isso concluir que ele não existe e analisá-lo
em termos da economia neoclássica? Se a resposta a todas estas
questões for positiva, então podemos dispensar não apenas o
realismo, mas também a sociologia. Se a resposta não for positiva,
podemos prosseguir com a investigação e propor uma ontologia
regional para a sociologia que incorpore e inter-relacione as rela-
ções materiais (marxismo), as estruturas culturais (hermenêutica)
e as práticas (Wittgenstein).23
Mais uma vez, nosso teórico-mestre está envolvido em
uma guerra dupla, mas agora não se trata de uma “guerra de
movimento” e, sim, de uma “guerra de posição” contra o indivi-
dualismo e o holismo. Contra os individualistas, protipicamente
representados pelos weberianos, ele defende uma concepção
relacional da sociedade influenciada pelo marxismo althusseriano.
Enquanto um produto da ação humana, a sociedade representa,
por assim dizer, a dimensão quase intransitiva de uma ciência
social relativamente autônoma. Ela não consiste em indivíduos
em situações de ação ou interação, mas é feita de relações huma-
nas abstratas, porém reais e persistentes, entre posições sociais
que formam um sistema. O sistema de relações sociais pode ser
analisado, em termos realistas, como uma série de mecanismos
gerativos frouxamente inter-relacionados e dotados de proprie-
dades emergentes e poderes causais.
Relações de classe constituem o exemplo supremo, embora
não o único, de tais relações sociais que preexistem aos indivíduos,
predefinem sua situação de ação e condicionam suas práticas sociais.
Relações raciais e patriarcais de exclusão e inclusão também
podem ser vistas em termos de sistemas de relacionamentos
internos entre posições sociais.24 Compreendida relacionalmente,
a sociedade é a totalidade de sistemas de relações humanas entre

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posições sociais, cada um dos quais tem seus próprios poderes
causais, propriedades, tendências e capacidades. O capitalismo
é real em seus efeitos, que podem ser reforçados, como é o caso
no Brasil, pelo atavismo de relações senhor-escravo generalizadas
dotadas de um colorido racial (a combinação entre classe e raça
pode ser letal). Ainda que os sistemas sociais e seus poderes
existam no nível macro, eles estruturam as microssituações de
interação, como qualquer empregada doméstica interagindo com
seu patrão poderá lhe dizer. Sistemas flexivelmente interconectados
de relações internas não operam acima das cabeças dos atores
humanos, mas os afetam causalmente ao condicionarem suas
ações em termos de oportunidades e restrições, interesses e ideias,
projetos e impossibilidades.
Contra o holismo, personificado pelo seu estereotípico
Durkheim, Bhaskar reintroduz as práticas sociais no retrato
e propõe um modelo transformacional da atividade social
inspirado em Aristóteles e Marx. Este modelo dialético da práxis,
que forma o núcleo da ontologia social de Bhaskar, é, grosso
modo, similar ao modelo de Giddens, mas, diferentemente da
teoria da estruturação, está mais fortemente comprometido com
o projeto da teoria crítica e dotado, portanto, de uma incli-
nação mais materialista e emancipatória.25 Os sistemas sociais
emergem das práticas e pressupõem-nas (a ação como “causa
eficiente”), enquanto as práticas pressupõem, por sua vez, sistemas
simbólicos que estruturam a agência (a estrutura como “causa
material”), mas nenhum dos sistemas pode ser completamente
reduzido às práticas.
Ainda que as sociedades sejam o produto de práticas passadas e
existam e persistam apenas em virtude da agência humana
intencional, estas práticas pressupõem a existência da sociedade
como uma condição não reconhecida e possuem consequências
não intencionais no nível sistêmico (às vezes de uma natureza
sistemática: alienação, reificação). A sociedade é, assim, tanto a
precondição transcendentalmente necessária, mas não reconhecida,
quanto a consequência não intencional, porém emergente, da
agência humana intencional (a “dualidade da estrutura”, para
utilizar o jargão de Giddens). E, similarmente, a agência humana
é tanto a produção consciente quanto a reprodução inconsciente
da sociedade (a “dualidade da agência”). As pessoas não falam
para transformar a linguagem, assim como não trabalham para

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reproduzir a economia capitalista, mas estes são, não obstante, os
efeitos não intencionais inexoráveis de suas atividades. Insistindo
na dimensão poiética da ação transformativa, Bhaskar ressalta que
a estruturação é sempre uma mistura de reestruturação e repro-
dução. O caráter transformacional da práxis garante, assim, que
os agentes estejam sempre transformando as estruturas que estão
reproduzindo e, como não há criação ex nihilo, reproduzindo as
estruturas mesmas que estão transformando.
3. Crítica Explanatória - O realismo crítico oferece uma
refutação transcendental do positivismo nas ciências naturais
e sociais. Tendo argumentado convincentemente que todas as
ciências possuem uma dimensão intransitiva e uma dimensão
transitiva (“dualidade da verdade”), Bhaskar (1986) introduz,
em um terceiro momento, a dimensão metacrítica como uma
terceira esfera de qualquer filosofia da ciência que se respeite. Toda
filosofia da ciência pressupõe, explícita ou tacitamente, uma
ontologia filosófica (na dimensão intransitiva), uma sociologia
filosófica (na dimensão transitiva) e uma sociologia histórica do
conhecimento (na dimensão metacrítica). Como uma espécie de
retorno reflexivo às pressuposições filosóficas, sociológicas e
ideológicas dos retratos positivista, idealista e realista da ciência,
a metacrítica busca tipicamente identificar a presença de signi-
ficativas ausências no pensamento e abrir caminho para uma
crítica explanatória de argumentos falsos. Diagnosticando os
limites do retrato positivista das ciências, Bhaskar desenvolve uma
crítica imanente da “ilusão positivista” e mostra que o positivismo
concebe erroneamente a natureza do mundo, da sociedade, da
ciência e de si mesmo. O problema com o positivismo é que ele
não pode sustentar nem a ideia de uma realidade independente
(dimensão intransitiva), nem a ideia de uma ciência socialmente
produzida (dimensão transitiva). Como vimos, o positivismo
pressupõe uma ontologia empiricista. Na esteira de Hume, ele
reduz as leis a sequências regulares de eventos e os eventos
a experiências observáveis. Incapaz de sustentar a existência
independente da natureza, ele confunde a natureza (an sich)
com a “natureza” (für uns) e comete assim a falácia epistêmica.
Fazendo abstração dos experimentos em que conjunções
constantes de eventos podem ser observadas, ele reifica os fatos
científicos, transformando-os em coisas. O positivismo não
apenas humaniza a natureza. Com sua sociologia de indivíduos

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atomizados, ele também naturaliza a sociedade. Ao reduzir os
humanos a agentes passivos que registram os fatos da natureza
e dificilmente se comunicam entre si, ele dessocializa e desis-
toriciza a ciência. Como resultado desse eclipse da historicidade
da teoria, o positivismo é incapaz de lidar adequadamente
com a mudança social e a mudança científica. Juntas, a reifi-
cação dos fatos científicos e a naturalização da ação humana
transformam o positivismo em uma ideologia, no sentido
marxista do termo, que reproduz e reflete, racionaliza e mistifica
a ciência normal e o senso comum, assim como a relação entre
ambos. Como uma forma de falsa consciência, ele representa
erroneamente a ciência natural – apresentando-se como um
reflexo da natureza, ele omite o trabalho necessário à sua
produção.
Tendo demonstrado que as ciências naturais possuem uma
dimensão hermenêutica e uma função ideológica, Bhaskar volta-se
para as ciências sociais e argumenta que elas são ciências morais.
Contra Weber e sua neutralidade axiológica, ele afirma que as
ciências sociais são intrinsecamente críticas (das ideologias e das
crenças de senso comum, assim como dos objetos de tais crenças
e ideologias) e que elas o são porque descrições neutras não
são neutras. Como o mundo social é constituído não apenas de
crenças, mas também de valores, não se pode despir o mundo de
predicações de valor em nome da ciência. Considere-se o famoso
exemplo do holocausto dado por Isaiah Berlin:

enunciado de que “milhões de pessoas foram massacradas”


O
não é apenas mais avaliativo, mas também mais preciso e acurado
do que os enunciados crescentemente anêmicos e insatisfatórios
de que “milhões de pessoas foram mortas”, “milhões de pessoas
morreram” e “o país foi despovoado” (Bhaskar, 1991: 154).

Contra Hume, ele rechaça ousadamente a falácia naturalista e


afirma, de modo pouco convincente em minha opinião, que, se
podemos demonstrar que uma crença é falsa e explicar esta crença
como um caso de ideologia, então podemos e devemos passar
a uma avaliação negativa do sistema que provoca a crença falsa
e, ceteris paribus, a uma avaliação positiva da ação remediadora
que busca remover ou transformar o sistema em questão.

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A SEGUNDA ONDA: REALISMO
CRÍTICO DIALÉTICO

Após 1993, nosso filósofo transcendental radicalizou sua


tentativa de superar todas as dicotomias da filosofia e das
ciências humanas (sujeito/objeto, compreensão interpretativa/
explicação causal, valor/fato etc.) e desenvolveu uma teoria
dialética detalhada dos domínios ontológico, epistemológico
e ético da realidade. Retrospectivamente, podemos ver que a
guinada metacrítica do realismo crítico não apenas anunciava
um retorno a Marx e Hegel, mas também que a tentativa de
Bhaskar em superar Hegel hegelianamente inaugurou a segunda
onda do realismo crítico. O imenso, mas ilegível, Dialectic: the
pulse of freedom apresenta o realismo crítico dialético como um
sistema filosófico guiado pela alienação em direção à liberdade
pela onto-lógica da ausência – ausência como falta (substantivo),
mas também (como verbo) como a ausentificação de ausências
e da agência ausentificante.
O sistema é composto de quatro movimentos: o primeiro
momento (1M) corresponde, grosso modo, ao realismo trans-
cendental, mas o reformula ao introduzir a não identidade e a
alteridade; a segunda inflexão (2I) aprofunda o conceito de não
identidade, revelando uma ausência que a causa, e propõe o
processo de ausentificação como uma transição dialética da não
identidade à totalidade; no terceiro nível (3N) da totalidade, a
ausência é ausentificada e as contradições são superadas em um
sistema holístico de elementos inter-relacionados ou intra-ativos
que codeterminam causalmente uns aos outros e, assim, codeter-
minam causalmente o todo; finalmente, a quarta dimensão (4D),
da unidade entre teoria e prática na prática, é alcançada graças à
intervenção da prática transformativa radicalmente transformada
– Bhaskar diz: uma “práxis transformada (autoplástica), transfor-
mativa (aloplástica), confiável (fiduciária), totalizante, transfor-
mista (orientada para a mudança estrutural profunda, global e
dialeticamente universal)” (Bhaskar, 1993: 156, 401) –, resultando,
em última instância, na liberdade de todos e de cada um.
Se o movimento dialético 1M-4D soa como álgebra filosófica,
bem, minha amiga e meu amigo, é porque (temo) é realmente
disso que se trata.26 Ainda que a dialética da ausentificação não

33

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seja destituída de insights ocasionais e clarificações úteis de
argumentos anteriores, ela é escrita, de certo modo, no limite
entre o nonsense e a insanidade. Em Plato, etc., outro livro
ilegível, Bhaskar (1994: 161) resume o realismo crítico dialético
em sete teses substantivas:

1 . A humanidade não é o centro do cosmos. 2. Existem realidades


não atuais. 3. Não seres existem. 4. Entidades permeiam umas às
outras. 5. A causalidade intencional existe. 6. Valores podem ser
derivados de fatos. 7. A boa sociedade está implícita no desejo
elementar.

Menciono essas sete teses crípticas aqui sem maior comentário,


pois a conexão que ela sugere entre o cosmos e a eudaemonia
serve como uma boa transição para a terceira onda do realismo
crítico.

A TERCEIRA ONDA: REALISMO CRÍTICO


DIALÉTICO TRANSCENDENTAL

Na aurora do milênio, Bhaskar (2000) publica From east to


west na série Critical realism: interventions, com uma linda rosa
perfumada na capa. O livro veio como um choque e foi rece-
bido com descrença. Enquanto os antigos marxistas e os novos
hegelianos esperavam um tratado de teoria social dialética, Roy
Bhaskar conferiu uma inflexão espiritual ao seu pensamento e
apresentou o realismo crítico dialético transcendental como uma
filosofia reencantadora da e para a autorrealização universal.
Ainda que seu flerte com a verdade alética não fosse destituído
de nuanças místicas, ninguém esperava que ele fosse introduzir
Deus como o ens realissimum. Como fundamento último da
realidade, Deus é, por assim dizer, o poder causal dos poderes
causais. Ele é, ao mesmo tempo, real e atualizado, experienciado
e experienciável, de diferentes modos, pelo ser humano, mais
notavelmente em momentos de transcendência. “O realismo onto-
lógico acerca de Deus na dimensão intransitiva é consistente com
o relativismo epistêmico ou experiencial na dimensão transitiva”
(Bhaskar, 2002b: 146).27 Reconectando-se à terra natal de seu pai,
nosso filósofo indiano discute seriamente a ideia de reencarnação

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e borrifa seu texto com palavras como karma, moksha, shakra
e kundalini, cujos significados podem ser explicados pelo seu
professor de ioga após uma sessão de “meditação ativa”. Como
se isso não fosse suficiente, para tornar estes orientalismos plausí-
veis, ele adiciona ao livro um romance narrativo no qual reconta
autobiograficamente sua vida nas últimas 15 encarnações!
Rejeitado pelo sistema universitário, Ram Roy Bhaskar (2002a;
2002b; 2002c) teve a coragem de expandir sua mente, abrir seu
coração e escutar com seu terceiro ouvido. Sem constrangi-
mentos – usando livremente uma linguagem inspirada, inteligível
àqueles preparados para ouvi-la –, ele reflete abertamente
sobre amor, paz, criatividade, espiritualidade e unidade. Como
sempre, busca superar dualismos – entre Oriente e Ocidente,
feminino e masculino, yin e yang, mente e corpo, sagrado e
profano, céu e terra. Indo além do realismo – “o realismo
no que toca à transcendência leva à própria transcendência do
realismo” (Bhaskar, 2002a: 229) –, ele desenvolveu sua própria
filosofia esotérica da metarrealidade como uma filosofia do ser
que fundamenta e, ao mesmo tempo, supera o realismo crítico
dialético. O “meta” refere-se à filosofia que vem após o realismo
crítico (metarrealismo), à sabedoria que vem após a filosofia
(espiritualidade) e, em última instância, a um nível etéreo situado
além, ou por trás, da realidade (Deus).
As principais teses dessa filosofia alternativa do espírito são as
de que este nível da realidade é real, que, em última instância,
tudo é um e que esta unidade não está além da experiência. O
mundo que conhecemos, o qual constitui o objeto das ciências,
é um mundo dual, um reino da dualidade que é sustentado por
– e existe apenas em função de – um reino da não dualidade.
O mundo dual é uma “demi-realidade” – uma ilusão, mas a
ilusão é real e causalmente eficaz (ver o que dizem Marx sobre
o fetichismo e Baudrillard sobre a hiper-realidade). O mundo da
dualidade pode ser investigado empiricamente pelas ciências e
transcendentalmente pelo realismo crítico. Abaixo, além, acima e
no interior do demirreal, há um reino último. Mais real do que a
realidade, esse reino é a metarrealidade. Ele pode ser vivenciado
em momentos de transcendência, quando levantamos o véu de
Maia e nos sentimos em sintonia com nós mesmos, com nossas
próprias ações, com os outros e com todos os seres do universo.
Diferentemente do realismo crítico, que oferece o melhor retrato

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do mundo dual – de fato, ele oferece o melhor retrato daquilo de
que devemos nos livrar! –, a filosofia da metarrealidade especula
sobre uma ontologia expandida para além da ciência:

esta concepção vastamente expandida do ser, e na própria


N
ontologia expandida necessitada por esta concepção, vemos
agora o ser como reencantado, isto é, valioso, sutil, misterioso
e contendo qualidades e conexões invisíveis (mais frequente-
mente desconhecidas e até não manifestas), sutis, misteriosas e
até mágicas que nossas ciências contemporâneas desconhecem
completamente (Bhaskar, 2002a: 257-258).

Em contraste com o realismo crítico, a filosofia da metarreali-


dade não está “tão preocupada em pensar o ser, mas em ser
o ser” (Bhaskar, 2002c: 224). O “ser o ser” a respeito do qual
nosso guru fala é, na verdade, um tornar-se ser, o tornar-se
nosso próprio ser quando nos conectamos a uma realidade mais
profunda e alcançamos nosso self real. Este self não tem nenhum
senso de self e certamente nenhum ego. Propondo uma refor-
mulação budista da famosa máxima de Freud Wo es war, soll ich
werden (“Onde havia id, que passe a haver ego”), poderíamos
dizer que onde há self, nenhum ego deve haver. Perfeitamente
descondicionado, o self se acha no seu “estado-base” de ser,
em que, através da identificação transcendental com todos os
seres, torna-se hiperconsciente e imediatamente conectado com
tudo que existe no universo. Em compasso com o misticismo
oriental, Bhaskar afirma que o divino é ingrediente em todos os
seres e que tudo está infinitamente conectado no nível último
do universo, que ele denomina o “envelope cósmico”. Mas, se
o self pode se identificar com seres que não são explicitamente
conscientes – como uma pedra, uma flor ou as estrelas –, então
temos de imputar uma consciência implícita a todos os seres. “Do
mesmo modo que tudo no universo está implicitamente contido
na minha consciência e, implicitamente, contido em mim; i. e.,
todo objeto no universo está contido em minha consciência, i. e.,
copresente a mim” (Bhaskar, 2002a: 215). Quando me torno
consciente de todo o universo contido em mim (= Deus), estou
em meu estado-base e, sem esforço, me conecto ao “envelope
cósmico” (que está gradualmente tomando consciência de si).
Vejo o mundo de modo diferente, sinto o outro de maneira mais
intensa e, tendo modificado o modo como sou, também ajo de
modo diferente – com amor, cuidado e compaixão.

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Com essa guinada para a espiritualidade, Bhaskar desenvolveu
uma filosofia new age “dentro dos marcos do secularismo, consis-
tente com todas as fés e com nenhuma fé” (Bhaskar, 2002a: 93).
Esta virada para o interior não significa que ele tenha se afastado
da sociedade. Ao contrário, ao conectar o iluminismo ocidental à
iluminação oriental, ele afirma ter radicalizado o projeto emanci-
patório da Aufklärung com um projeto humanista de autotrans-
formação universal.28 Seu misticismo é prático e intramundano.
Temos de nos retirar do mundo para poder transformá-lo. Os
iluminados estão no mundo, mas não são do mundo, se quisermos
variar outra fórmula weberiana. A realização da boa sociedade
só é possível se nos libertarmos das estruturas de opressão e
alienação. A causa última de todo sofrimento é a alienação em
relação a nosso verdadeiro ser. Quando nos desconectamos do
mundo para nos conectarmos ao nível mais profundo do Dasein,
ficamos livres e paramos de alimentar o sistema que nos aliena.
Começamos a transformar o sistema heterônomo quando cortamos
as linhas de suprimento de que ele depende. Bhaskar argumenta
que, na verdade, já somos essencialmente livres. As estruturas de
opressão e exploração só persistem porque as pessoas não são
conscientes daquilo que as liga; o sistema depende parcialmente
da atividade livre, espontânea, criativa, generosa e amorosa.
Os marxistas irão, sem dúvida, ficar perplexos diante de sua
afirmação de que a guerra é sustentada pelo amor (a solidariedade
dos soldados no front) e a exploração pela criatividade:

É o amor que sustenta todas as emoções negativas e todas as


formas de opressão e violência. De modo similar, é a criatividade
que mantém a exploração em andamento. (...) Quanto mais se
cava, mais se descobre que ela subsiste sobre um nível de alegria,
felicidade, amor e criatividade (Bhaskar, 2002a: 41).

De modo tipicamente indiano, nosso filósofo integral afirma


que a autorrealização individual é a única rota para a autorrea-
lização universal. “A unidade mínima necessária para a eman-
cipação é toda a espécie humana” (Bhaskar, 2002c: XXVIII).
Conectando a nova era à nova esquerda, ele repete o mantra
dos anos 1960: o pessoal é político. A realização individual
pressupõe um compromisso moral com a autorrealização
universal, e um compromisso moral implica um engajamento
político com a realização da sociedade eudemonística. Não foi

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Marx quem disse que o livre desenvolvimento de cada um era
a condição do livre desenvolvimento de todos? Os esquerdistas
podem não gostar dessa conclusão, mas a única coisa que
podemos mudar agora somos nós mesmos. Comecemos então
com uma revolução interna e, quem sabe, talvez um dia, quando
minhas “conversações internas” se harmonizarem com as suas
e todos entrarmos na comunicação planetária, formaremos um
movimento social que mudará o mundo.

UM PANORAMA DO LIVRO E
ALGUNS AGRADECIMENTOS

Em seu famoso excurso sobre o estrangeiro, parte de um


capítulo mais amplo sobre a sociologia dos espaços e lugares,
Georg Simmel (1995: 764-771) observou que o estrangeiro
frequentemente assume o papel do intermediário que conecta
grupos distintos, difundindo seus bens e estabelecendo a
mediação entre as suas posições. Oriundo da parte flamenga da
Bélgica, uma “zona de comércio” no coração da Europa que é
bem mais conhecida pelo seu chocolate e sua cerveja do que por
sua sociologia ou filosofia, sempre trabalhei na intersecção entre
a filosofia social alemã, a teoria social britânica e a sociologia
francesa. Se eu tivesse de vender meu trabalho, diria que estou no
ramo de negócios da “hermenêutica de importação e exportação”.
Neste livro, uma espécie de cartão de apresentação no Brasil,
gostaria de estabelecer contato e comunicação entre a sociologia
pós-bourdieusiana na França e a sociologia pós-estruturacionista
no Reino Unido.
O Capítulo 1 deste livro é devotado ao mais importante soció-
logo da segunda metade do século XX: Pierre Bourdieu. Em um
longo e pesado texto, proponho uma reconstrução interna e uma
crítica realista do estruturalismo gerativo. Ao invés de iniciar com o
conceito de habitus, como é feito normalmente, tento reconstruir
sistematicamente a teoria de Bourdieu por meio de uma análise
da lógica relacional que permeia todo o seu trabalho. Rastreando
a dívida que a abordagem de Bourdieu possui em relação ao
racionalismo de Bachelard e ao relacionismo de Cassirer, examino
seus escritos epistemológicos dos anos 1960 e 1970.

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No Capítulo 2 apresento o estado da arte da teoria sociológica
na França. Como a maior parte dos protagonistas da sociologia
francesa é composta de antigos colaboradores de Bourdieu,
o campo é definitivamente pós-bourdieusiano, embora não
necessariamente antibourdieusiano. Exponho, na ordem, a
sociologia pragmática (Luc Boltanski), a teoria do ator-rede
(Bruno Latour), a midiologia (Régis Debray) e o movimento do
MAUSS (Alain Caillé). Em um pós-escrito cosmopolita à sociologia
francesa, também delineio um esboço das principais tendências
na sociologia mundial. Embora o trabalho de Michel Freitag, um
sociólogo nascido na Suíça que escreve em francês e vive no
Canadá, seja pouco conhecido na França, considero-o um dos
grandes sociólogos do nosso tempo. Como uma espécie de
homenagem à sua monumental sociologia dialética, o Capítulo
3 é dedicado à Escola de Montreal.29
Sem nunca mencionar o trabalho de Latour e seus acólitos, o
Capítulo 4 propõe uma reconstrução dialética da ontologia dos
actantes rizomáticos. A despeito de seu tom brincalhão, gosto de
pensar que o capítulo oferece uma crítica ontológica, metodoló-
gica e teórica séria da teoria do ator-rede. Com Martin Heidegger,
Karl Marx e Marcel Mauss, considero o status de humanos,
mercadorias, dádivas. Em rápida velocidade, avanço em direção a
uma interpretação fenomenológico-hermenêutico-dialética da narrato-
logia actancial, interpretação que reencaixa as redes sociotécnicas
na sociedade capitalista em rede de onde elas obtêm sua forma.
A visão estratificada do mundo social que esboço apres-
sadamente em meu ensaio sobre Latour é trabalhada mais
sistematicamente no Capítulo 5, formando sua espinha dorsal
metateórica. Por meio de uma investigação do uso dos conceitos
de constituição (ou construção) e crítica, proponho uma análise
comparativa da sociologia crítica de Bourdieu, da sociologia da
crítica de Boltanski e da crítica da sociologia de Bruno Latour.
Ao invés de argumentar com Boltanski e Latour contra Bourdieu
ou vice-versa, argumento com Bourdieu e Boltanski contra a
ontologia plana da teoria do ator-rede. Através de uma leitura
quiasmática de Bourdieu e Boltanski, tento reintroduzir a refle-
xividade no habitus e o campo nas práticas de justificação. O
resultado dessa leitura cruzada é uma visão tridimensional do
mundo social que integra estruturas sociais (sistemas de relações
entre posições sociais) e cultura (regimes discursivos e vocabu-
lários de motivos) em uma praxiologia hermenêutica.

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No Capítulo 6 desenvolvo uma ontologia para a sociologia
que é fortemente inspirada pelo realismo crítico. A tarefa que me
proponho nesse longo capítulo é dupla: desenvolver uma teoria
relacional da sociedade e articulá-la a uma teoria das subjetivi-
dades coletivas que intervêm na sociedade para reproduzi-la ou
transformá-la. Tento alcançar o primeiro objetivo estabelecendo
um diálogo com os principais protagonistas do realismo crítico.
Introduzo novamente o trabalho de Roy Bhaskar, discuto a
psicologia discursiva de Rom Harré e utilizo a teoria morfogené-
tica de Margaret Archer para clarificar e pensar sistematicamente
as relações entre ação, interação, instituição, estrutura e sistema.
Com vistas ao alcance do segundo desiderato, busco ser mais
original e estendo o realismo crítico ao domínio das subjetividades
coletivas, um conceito “guarda-chuva” que tomo de empréstimo
a um amigo para me referir a todos os tipos de atores coletivos
(categorias, classes, movimentos sociais, redes etc.). Como o
proletariado está fora de moda nesses dias, substituo-o pela
humanidade. Acompanhando as mediações simbólicas, tecnoló-
gicas e políticas que transformam categorias abstratas em grupos
concretos capazes de ação coletiva, analiso como os coletivos são
progressivamente constituídos. Começo com a fenomenologia da
díade, passo às comunidades imaginadas, trago à discussão os
movimentos sociais em rede e concluo com os porta-vozes que
representam, em pessoa, o coletivo mais amplo.
Finalmente, no Capítulo 7, intitulado (com as devidas desculpas
a Roberto DaMatta) “Você sabe com quem está falando quando
fala consigo mesmo?: Margaret Archer e a teoria das conversações
internas”, discuto o trabalho de Margaret Archer, a decana do
realismo crítico, de modo a introduzi-lo para um público brasi-
leiro. No mais recente estágio de sua teoria social morfogenética,
ela trouxe à baila o fascinante tema das conversações internas
que as pessoas mantêm consigo mesmas, pensando-as como um
mecanismo mediador entre agência e estrutura. Como um realista
crítico e adepto da hermenêutica, gostaria de modificar o verbo:
ao invés de dizer que temos conversações com nós mesmos,
acredito que somos essas conversações.
Os capítulos que reuni neste livro, e que aqui aparecem
revisados e reformulados em diversos pontos, foram escritos
em períodos diferentes (entre 1998 e 2008) e lugares diferentes
(Londres, Amsterdam, New Haven). Como uma continuação de

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minhas reflexões metateóricas sobre as condições de possibilidade
de uma teoria crítica inspirada no trabalho de meu mentor Jürgen
Habermas, os capítulos são momentos no desenvolvimento de
uma teoria crítica realista e cosmopolita da ação em comum em
um mundo global. Após 20 anos de perambulações pelo mundo
acadêmico na Bélgica, França, Reino Unido, Alemanha, Itália,
Holanda e Estados Unidos, cheguei agora ao meu destino (final?):
a Cidade Maravilhosa. Apesar da miséria, há muito mais alegria
no Brasil. Estou tão feliz em estar aqui que duvido poder voltar
à Europa ou aos Estados Unidos. Cheguei ao Brasil via Brasília
em 2003, alguns dias após o início da segunda guerra do Iraque.
É verdade que não há esquinas no Plano Piloto, mas gostei tanto
de lá que retornei em 2004-2005. Sei que tenho amigos na UnB,
e meus colegas dessa instituição sabem que têm um amigo no
Rio. Agradeço a todos pela calorosa acolhida, mas acima de tudo
a Christiane Girard, que pensa como eu penso, valoriza o que
eu valorizo e sente o que eu sinto. Também gostaria de agra-
decer aos meus amigos e colegas do Recife por me convidarem
a ficar com eles durante a estação chuvosa de 2005. O Depar-
tamento de Sociologia da UFPE é bom, vibrante e estimulante
(definitivamente um 6 na escala Capes). Gostaria de agradecer
especialmente a Cynthia Hamlin, que introduziu o realismo crítico
no Brasil e a quem este livro é dedicado com “fraternura”. Tendo
deixado Recife para juntar-me a Seyla Benhabib na Universidade
de Yale, comecei gradualmente a entender e sentir o que os
brasileiros querem realmente dizer quando falam da saudade.
Então, resolvi me demitir. Em 2007, cheguei ao IUPERJ, o que
transformou minha vida – não apenas as rotinas da vida coti-
diana, mas as fibras mesmas da minha existência. É uma honra,
mas também um prazer genuíno, ser parte da “casa”. Apesar
da agonística e do teatro, há companheirismo e solidariedade
autênticos na Rua da Matriz. Para mim, o IUPERJ tornou-se, em
mais de um sentido, meu “New Haven”30 ou, melhor ainda, o meu
“Porto Seguro” – um local de refúgio e abrigo. Sou grato a todas
as divisões que compõem a corporação: o corpo de professores,
os estudantes, os funcionários e os trabalhadores terceirizados da
limpeza. Gostaria de agradecer individualmente a cada pessoa,
da portaria até o escritório do diretor. Como isso não pode ser
feito, que me seja permitido mencionar alguns por nome: Florita,
Simone, Carolina, Ricardinho e Edson. José Maurício Domingues,

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que sugeriu o título “Teoria social realista”, e Marcus Figueiredo,
o diretor de divulgação científica (bem como Al Heimer, seu
assistente), também merecem uma menção especial. Quero agra-
decer, além disso, a Cláudia Boccia pela edição do manuscrito e
a Felipe Dutra pela organização da bibliografia. Sou grato a Jessé
Souza, a quem considero um dos melhores sociólogos da minha
geração, por escrever a “orelha” deste livro. Por fim, fui mais do
que afortunado com os tradutores. Enquanto Estela Abreu e Ana
Liési Thurler traduziram do francês com dedicação, diligência
e competência, meu amigo Gabriel Peters, que é também meu
assistente de pesquisa, traduziu do inglês e revisou o livro inteiro
com um senso notável de perfeição. Este livro é, literalmente,
nosso livro, embora eu assuma total responsabilidade pelo seu
conteúdo.
Tradução de Gabriel Peters

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C A P Í T U LO 1

"O REAL É RELACIONAL"


UMA ANÁLISE EPISTEMOLÓGICA DO
ESTRUTURALISMO GERATIVO DE PIERRE BOURDIEU

Por meio de conceitos e símbolos, buscamos fazer com que


uma ordem temporal de palavras corresponda a uma ordem
relacional de coisas.

S. Langer. Philosophy in a new key

“Entidades do mundo-relacionai-vos!” (Emirbayer, 1997: 312).


Esse poderia ser o lema de uma sociologia relacional.1 Bourdieu
optou por um outro, que contém uma irônica referência a Hegel,
ao invés de Marx. Em Meditações pascalianas, uma meditação
sociológica sobre as filosofias do nosso tempo (de Searle a
Habermas e Rawls), Bourdieu descreveu a si mesmo como um
pascalien (Bourdieu, 1997a: 9). No entanto, acredito que, na
medida em que seu “estruturalismo gerativo”2 (Harker; Mahar;
Wilkes, 1991: 3) pode ser mais bem compreendido como uma
tentativa de transpor sistematicamente a concepção relacional
das ciências naturais para o terreno das ciências sociais – uma
tentativa que toma a forma de uma síntese original entre a
sociologia (Weber; Marx; Durkheim; Mauss [Brubaker, 1985:
747-749], mas também Elias, Mannheim e Goffman), a fenome-
nologia (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty), a filosofia linguística
(Wittgenstein e Austin) e, por último, mas não menos importante, a
epistemologia racionalista neokantiana (Bachelard e Cassirer,

teorial social realista.indb 43 27/1/2010 11:22:49


mas também Panofsky e Lévi-Strauss) –, poderíamos também,
e talvez de modo ainda mais adequado, descrevê-lo como um
bachelardien.3 Ainda que a influência de Gaston Bachelard
sobre Bourdieu tenha frequentemente escapado à atenção
dos acadêmicos anglo-americanos, os quais não estão bem
informados a respeito da tradição francesa de história e filosofia da
ciência, podendo ter encontrado os nomes de Bachelard, Koyré,
Canguilhem ou Cavaillés apenas indiretamente, através de seu
interesse em Althusser, Foucault ou Kuhn – cujo famoso livro
A estrutura das revoluções científicas (Kuhn, 1970) foi direta-
mente influenciado por Bachelard –, pretendo voltar aos anos
formativos do sociólogo francês (final dos anos 1960 e início dos
1970, quando suas ideias seminais estavam em gestação) para
mostrar que a sua teoria social pode ser mais bem entendida como
uma tentativa de transpor, de modo sistemático, o “racionalismo
aplicado” de Bachelard do reino das ciências naturais para o
domínio das ciências humanas.4
Entretanto, o foco sobre Bachelard não deve obscurecer o
quanto Bourdieu deve às análises protoestruturalistas do princípio
relacional nas ciências modernas (da matemática à física e à
linguística) realizadas por Ernst Cassirer.5 De fato, o “núcleo duro”
(Lakatos) metacientífico e não falseável do programa progressivo
de pesquisa de Bourdieu é formado por uma sofisticada síntese
entre o racionalismo de Bachelard e o relacionismo de Cassirer.
Juntas, tais perspectivas formam a metateoria do conhecimento
sociológico que fundamenta e gera a teoria sociológica dos
campos de produção, circulação e consumo de bens culturais.
Essa metateoria estruturalista do conhecimento é naturalista, mas
não positivista. Assim como representantes contemporâneos do
realismo crítico (Harré, Bhaskar, Archer etc.), Bourdieu advoga
uma interpretação não positivista da epistemologia das ciências
naturais, reformulando-a sistematicamente de modo tal que uma
ciência social naturalista se torne possível. 6 Apesar de seus
ataques nominais a filosofias realistas (empiricistas) e substan-
cialistas (não relacionais) da ciência, as quais não levam a cabo
a ruptura epistemológica com as concepções espontâneas da
realidade,7 gostaria de mostrar que sua metaciência sociológica
representa uma versão racionalista do realismo crítico.
Ainda que eu seja, de modo geral, simpático à abordagem
de Bourdieu, gostaria de formular uma crítica positiva do

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teorial social realista.indb 44 27/1/2010 11:22:49


racionalismo e tentar argumentar a favor da necessidade de
uma conversão filosófica do racionalismo para o realismo na
apropriação da obra desse autor. Uma vez que a base filosófica
esteja esclarecida, passarei a uma reconstrução sistemática da
concepção relacional que forma o núcleo do estruturalismo
gerativo, de modo a investigar em maior detalhe como, na
trilha de Bachelard, Bourdieu diz adieu a relatos empiricistas da
ciência e conquista, constrói e verifica os fatos científicos. Nesse
contexto, também exporei o famoso conceito de habitus – o
qual, ao atualizar as estruturas, relaciona os campos às ações e
estabelece a mediação entre ambos – como uma tentativa bache-
lardiana de transcender antinomias filosóficas, tentando conferir a
este conceito uma inflexão voluntarista mais alinhada à intenção
política e moral que anima a teoria crítica bourdieusiana. Partindo
desta análise metateórica da teoria do conhecimento sociológico,
analisarei em seguida a teoria geral dos campos de Bourdieu como
uma aplicação do modo relacional de pensamento, apresentando
um relato altamente formalizado dos princípios e propriedades
gerais dos campos e subcampos. Para ilustrar como a sua teoria
dos campos representa uma aplicação sociológica da conjunção
entre as metateorias racionalista e relacionista das ciências
naturais de Bachelard e Cassirer respectivamente, reconstruirei
os primeiros estudos dos campos religioso e científico realizados
por Bourdieu, examinando suas ressonâncias weberianas e
mannheimianas. Finalmente, concluirei com uma avaliação geral
do programa de pesquisa do Centro de Sociologia Europeia e
uma questão final sobre ética.

A POSSIBILIDADE DO NATURALISMO

Em que medida a sociedade pode ser estudada da mesma


forma que a natureza? Sem exagero, é possível afirmar que a
questão acerca da possibilidade do naturalismo nas ciências
sociais constitui o problema central da filosofia das ciências
sociais (Bhaskar, 1989). Desde a dupla fundação da sociologia por
Auguste Comte e Whilhelm Dilthey, a história deste assunto tem
sido polarizada em torno de uma disputa entre duas tradições,
gerando respostas rivais ao enigma. Uma tradição naturalista, cujos
antecedentes filosóficos imediatos estão nos trabalhos de Hume,

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teorial social realista.indb 45 27/1/2010 11:22:49


Comte, Mill, Mach e do Círculo de Viena, defende que as ciências
estão (efetiva ou idealmente) unificadas na sua concordância
com os princípios positivistas, baseados, em última instância, na
noção humiana de lei como a sucessão regular de dois eventos
observáveis. Em oposição ao positivismo, uma tradição antinatu-
ralista, que encontra sua ancestralidade filosófica em Vico, Kant,
Hegel, Dilthey, Husserl e Wittgenstein, postulou uma clivagem
de método entre as ciências naturais e sociais, fundada em uma
diferenciação de seus objetos. Para esta tradição hermenêutica, o
domínio de investigação das ciências sociais consiste essencial-
mente em objetos significativos, sendo seu objetivo a elucidação
do significado de tais objetos. O grande erro que une esses dois
antagonistas é, como afirma Bourdieu, sua “falsa representação
da epistemologia das ciências naturais” (Bourdieu; Chamboderon;
Passeron, 1973: 18), i.e., a aceitação de um retrato essencialmente
positivista das ciências da natureza, ou, pelo menos, de uma onto-
logia empiricista. De fato, desenvolvimentos recentes na filosofia
da ciência, em particular aqueles exemplificados no trabalho de
Rom Harré (1970), os quais Roy Bhaskar (1978) sistematizou sob
o título de “realismo transcendental”, demonstraram convincen-
temente que a ciência efetivamente praticada pelos cientistas e
reflexivamente reconstruída pela epistemologia não é conforme
o cânone positivista.8
As ciências não pretendem chegar a leis universais por meio
da generalização indutiva da sucessão regular de fenômenos
observáveis, mas antes inteligir o que está “por trás” ou “além”
dos fenômenos revelados pela experiência sensorial, de modo
a oferecer-nos conhecimentos das “estruturas numênicas”
(Bachelard) ou “mecanismos gerativos” (Harré) que, de algum
modo, necessitam esses fenômenos. Nessa perspectiva
anti-humiana, as leis não mais se referem à conjunção regular
de eventos, mas são analisadas em termos disposicionais, i.e.,
como poderes causais ou, mais precisamente, tendências de
mecanismos gerativos subjacentes. As tendências combinadas
dessas estruturas “profundas” e mecanismos transfactuais podem
gerar eventos passíveis de observação, mas os eventos podem
ocorrer independentemente de haver ou não alguém para
observá-los, sendo que as tendências das estruturas numênicas
permanecem as mesmas mesmo quando se contrapõem umas
às outras de modo tal a não produzirem qualquer mudança

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observável na realidade. No lugar da ontologia da experiência e
de eventos atomísticos constantemente conjugados, o realismo
transcendental estabelece, assim, uma ontologia de poderes e
mecanismos causais não observáveis. De modo semelhante, no
lugar de uma análise de leis como conjunções constantes de
eventos, esta perspectiva analisa leis em termos das tendências
dos mecanismos subjacentes que geram os eventos, os quais
podem ou não ser percebidos. “Tendências podem ser possuídas,
mas não exercidas; exercidas, mas não realizadas; realizadas,
mas não percebidas (ou detectadas) pelos homens”9 (Bhaskar,
1978: 184).
De modo a combater o retrato humiano das ciências e
superar sua fixação empiricista na percepção e nos dados
sensoriais, Bhaskar (1978: 56-62) propõe a substituição da
“ontologia plana” dos empiricistas por uma visão mais estratificada
da realidade, capaz de distinguir entre os domínios sobrepostos
do real, do atual e do empírico. Se o domínio do real é composto
de mecanismos e estruturas gerativas transfactuais que normal-
mente escapam à observação direta, os domínios do atual e do
empírico abarcam, respectivamente, padrões de eventos que são
gerados por esses mecanismos e estruturas e as experiências
através das quais aqueles padrões são apreendidos. Dado que o
domínio do real não pode ser reduzido ao domínio do empírico,
o bispo Berkeley e os realistas empíricos estão simplesmente
errados: ser não é ser percebido. O fato de que a realidade
existe independentemente das observações e descrições que
possuímos acerca dela não significa, entretanto, que possamos
conhecer a realidade independentemente de tais observações e
(re)descrições. A realidade só pode ser conhecida graças à inter-
venção de categorias, teorias e quadros conceituais, mas – pace
Kuhn, Foucault e Rorty – eles não determinam a estrutura do
mundo. Observações são sempre sobredeterminadas pela teoria,
e as teorias são sempre subdeterminadas pelas observações, mas,
se quisermos evitar a “falácia epistêmica” (Bhaskar, 1978: 36-38)
que consiste na redução de questões ontológicas a questões
epistemológicas, temos de distinguir categoricamente entre os
“objetos transitivos” e os “objetos intransitivos da ciência”
(Bhaskar, 1978: 17): entre nossas categorias, teorias e quadros
conceituais, de um lado, e as entidades, mecanismos, estruturas e
relações reais que compõem o mundo natural e social, de outro.

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Sem esta distinção entre o nível epistêmico (ou transitivo) e o
nível ôntico (ou intransitivo) do conhecimento, nos arriscamos a
projetar nosso conhecimento sócio-historicamente determinado
dos objetos nos próprios objetos do conhecimento, substituindo
estes por aquele e tomando o objeto projetado pela coisa em si,
com o resultado de que o mundo torna-se literalmente (a reifi-
cação da) minha vontade e representação.10
Uma vez superado o retrato essencialmente positivista das
ciências naturais, compartilhado tanto pelos defensores positi-
vistas do naturalismo quanto pelos seus críticos hermeneutas, a
questão concernente à possibilidade do naturalismo nas ciências
sociais pode ser levantada de modo refrescantemente novo.
Agora que o positivismo foi recusado e refutado, as contribuições
das tradições hermenêuticas e fenomenológicas podem ser
apropriadas e, assim, pode ser explorada a possibilidade de
uma terceira posição ou (com as devidas desculpas a Giddens)
uma “terceira via”, nomeadamente, aquela de um naturalismo
não positivista qualificado, fenomenologicamente informado e
hermeneuticamente sensível.11 Como outros sociólogos e filósofos
franceses da sua geração que estudaram na École Normale Sup
na Rue d’Ulm (e.g., Desanti, Macherey, Badiou etc.), Bourdieu
é um produto da tradição filosófica da “epistemologia histórica”
(Lecourt, 1974), a qual engendra o que ele se referiu como “uma
preocupação quase obsessiva com problemas epistemológicos”
(Bourdieu; Passeron, 1967: 197-198). Consequentemente, não
é surpresa que Bourdieu tenha desenvolvido uma teoria do
conhecimento sociológico que explora sistematicamente a
possibilidade do naturalismo social. Procedo agora a uma análise
de sua epistemologia estruturalista, mostrando sua dívida para
com o racionalismo de Bachelard e comparando-a criticamente
com o realismo crítico de Bhaskar. Desnecessário dizer, Bourdieu
não pode ser considerado um mero “aplicador” de Bachelard
ou Cassirer. Nenhum deles fez quaisquer contribuições diretas
à sociologia. O autor de Distinção fez, e isto é, sem dúvida, seu
legado distintivo para nosso campo disciplinar.

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A TEORIA DO CONHECIMENTO SOCIOLÓGICO

REALISMO VERSUS RACIONALISMO


Em Le métier de sociologue, um manual de epistemologia que
ele agora descreve como “quase escolástico”, mas que contém os
princípios epistemológicos e metodológicos básicos em que toda
a sua sociologia estrutural está fundada, Bourdieu avança uma
“teoria do conhecimento sociológico”, abarcando o “sistema de
princípios que definem as condições de possibilidade de todos os
atos e discursos propriamente sociológicos, e somente destes”12
(Bourdieu; Chamboderon; Passeron, 1973: 15-16, 48; ver também
Bourdieu, 1968: 681-682). Ele especifica que os princípios lógicos
e epistemológicos da teoria do conhecimento sociológico são
metacientíficos, na medida em que são simplesmente particula-
rizações sociológicas dos princípios nos quais toda ciência está
baseada. Uma vez interiorizados, os princípios da teoria do conhe-
cimento sociológico formam o “habitus sociológico” (Bourdieu;
Chamboderon; Passeron, 1973: 16; ver também Brubaker, 1993),
entendido como a disposição operacional do sociólogo praticante
em aplicar princípios abstratos na pesquisa empírica concreta.
Bachelard, o funcionário dos correios tornado filósofo que foi
um dos professores de Bourdieu na prestigiosa École Normale
Supérieure, é citado quase tão frequentemente quanto Durkheim
nas suas primeiras reflexões epistemológicas acerca da lógica
da descoberta nas ciências sociais. Um olhar mais aprofundado
sobre a teoria do conhecimento sociológico revela que Bourdieu
tomou seus principais princípios de empréstimo à reconstrução
racional das práticas teóricas nas ciências naturais realizada por
Bachelard. Este oferece, acima de tudo, uma reconstrução da
filosofia cotidiana dos cientistas, i.e., da filosofia implícita em sua
prática espontânea, que ele opõe criticamente à filosofia “noturna”
dos filósofos, forjada nas escolas do positivismo empírico, para o
qual os cientistas tendem a retornar quando refletem sobre sua
prática (Bachelard, 1988: 13; Bachelard, 1990: 19). Examinando
as implicações epistemológicas das revoluções científicas em
química, biologia e, acima de tudo, na física (teoria da relatividade
e física quântica), ele concluiu que esses acontecimentos minaram
tanto o apriorismo dos retratos idealistas da razão científica

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quanto o empiricismo ingênuo das caracterizações positivistas
das ciências. A epistemologia de Bachelard é sintética, ou, como
ele mesmo diz, “dialética” e “discursiva”. É dialética, não porque
proceda de modo hegeliano em direção a uma totalidade fechada
que abarque tudo, mas porque o movimento do pensamento
é visto como um infindável “movimento de englobamento”
(mouvement d’enveloppement; Bachelard, 1988: 137), no qual as
limitações de um quadro conceitual particular são descobertas,
superadas e integradas em um quadro mais amplo que inclui o
aspecto previamente excluído.
Na mesma veia dialética, Bachelard busca mostrar que a
lógica prática do cientista imerso em seu trabalho transcende
naturalmente as oposições filosóficas entre o racionalismo
idealista e o realismo empiricista.13 Cientistas praticantes não
são incomodados por disputas e antinomias filosóficas. Espon-
tânea e ecleticamente, eles combinam a imaginação construtiva
dos idealistas (racionalismo) com a experiência instruída dos
empiricistas (realismo), as quais os filósofos tendem a separar,
declarando-as incompatíveis. Assim, a filosofia sintética com
base na qual eles agem, e que combina a teoria abstrata
(racionalismo) e a pesquisa concreta (empiricismo), é aquela que
Bachelard denomina “racionalismo aplicado” (Bachelard, 1986)
ou “materialismo racional” (Bachelard, 1990). Eles não coletam
fatos simplesmente, mas constroem elaborados modelos teóricos
abstratos de estruturas numênicas que necessitam de fatos feno-
mênicos, montando experimentos que “realizam” tecnicamente
e tornam concretamente manifesto o fenômeno que a teoria
aponta hipoteticamente como um efeito possível das estruturas
numênicas. Portanto, instruído pela teoria abstrata e aplicando
a “fenomenotécnica”, o cientista cria ou “realiza” tecnicamente
o fenômeno. De modo a acentuar a ruptura com o realismo
ingênuo dos empiricistas, entretanto, é essencial destacar que
Bachelard não deixa dúvida quanto à “direção do vetor episte-
mológico”, que vai do “racional ao real” e “não do real ao geral”
(Bachelard, 1991: 8), como tem sido professado por todos os filósofos
desde Aristóteles até Bacon. A primazia é claramente concedida à
reflexão teórica e à construção do objeto teórico, não à “percep-
ção imaculada” (Nietzsche) dos empiricistas. Sendo a “realização”
da teoria (Bachelard, 1991: 98), o real é, assim, para todos os
efeitos, racionalizado. Paradoxalmente, é para tornar o contato

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com a realidade mais preciso e penetrante que a ciência é forçada
a realizar, como Gilles-Gaston Granger diz de modo tão belo, “um
desvio pelo reino da abstração” (Granger, citado por Hamel, 1997:
16). Na medida em que os fatos não são imediatamente dados,
mas consistem, propriamente falando, no resultado mediado
da realização técnica da teoria, o realismo de Bachelard pode
ser caracterizado como um “realismo de segunda posição, um
realismo que reage contra a realidade usual, um realismo feito de
razão realizada e experimentada” (Bachelard, 1991: 9).
Se este realismo de segunda posição for comparado com
o realismo transcendental de Bhaskar (para uma comparação,
ver Bhaskar, 1989: 41-48), podemos ver claramente que ambos
rejeitam e reagem contra o retrato-padrão positivista das ciências
naturais. Indo além do empiricismo e contra ele, ambos enfa-
tizam o caráter impregnado de teoria dos fatos, bem como a
importância de estruturas numênicas e mecanismos gerativos
transfactuais que necessitam e explicam os fenômenos. Entretanto,
a partir da perspectiva vantajosa do realismo transcendental de
Bhaskar, que busca sustentar uma clara concepção da realidade
independente do ser (dimensão intransitiva ou ontológica) em
face da relatividade do conhecimento (dimensão transitiva ou
epistemológica), o realismo de Bachelard aparenta ser essen-
cialmente uma forma sofisticada de idealismo transcendental
neokantiano que, de certo modo, reverte a natureza real da
dependência entre ciência e ser.14 Enquanto, para o realismo
crítico, a ontologia é simplesmente irredutível à epistemologia,
Bachelard é ambíguo a respeito desse tema e sugere algumas
vezes não apenas que o mundo só pode ser conhecido tal como
é através da ciência, o que não é problemático, mas também que
o mundo é o que é graças à ciência, o que é mais controverso.
Pois, na opinião de Bachelard, é o fato de que a ciência ocorre
que dá ao mundo uma estrutura, de modo que este possa ser
conhecido pelos homens, enquanto, na opinião de Bhaskar, é
o fato de que o mundo tem tal estrutura que torna a ciência
possível. Da perspectiva de Bhaskar, o historiador das ideias
científicas francês comete, portanto, a “falácia epistêmica”, pois,
assumindo que asserções acerca do ser podem ser reduzidas a
asserções acerca do conhecimento, ele conclui erroneamente, do
fato de que o mundo só pode ser conhecido pela ciência, que a
natureza mesma desse mundo é determinada pela ciência. A ideia

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de que o ser pode ser analisado em termos do conhecimento do
ser, de que é suficiente para a filosofia “tratar apenas da rede e
não do que a rede descreve” (Wittgenstein, 1961: 6.35), resulta
na dissolução de um mundo independente da ciência – como
pode ser visto, por exemplo, no problemático enunciado de
Kuhn segundo o qual “quando os paradigmas mudam, o próprio
mundo muda com eles” (Kuhn, 1970: 111).
Não obstante o pesado investimento de Bourdieu na pesquisa
empírica e o fato de que objetos sociais não existem independen-
temente das ciências sociais, podendo ainda ser causalmente
afetados por elas, penso que ele comete a mesma falácia epistêmica.
Como seus predecessores estruturalistas (Lévi-Strauss, Althusser
e Foucault), entretanto, ele tende a se situar ambiguamente entre
uma interpretação realista e uma interpretação convencionalista
da ciência.15 Ainda que Bourdieu sugira algumas vezes que as
representações científicas da realidade tenham seu fundamen-
tum in re, a direção principal de seus argumentos epistemoló-
gicos aponta para a adoção de uma posição mais racionalista,
na qual as representações científicas não estão tanto fundadas
na realidade, mas a “realidade” é que está fundada nelas (como
indicado pelo fato de que palavras como “real”, “realidade” e
“realização” são sempre colocadas entre aspas). Neste ponto,
gostaria de notar que minha crítica ao racionalismo de Bourdieu
não pretende ser uma acusação final à sua metaciência, mas um
convite para a retomada do “movimento de englobamento” dia-
lético do pensamento na direção do realismo crítico. Em outras
palavras, gostaria que Bourdieu tivesse abandonado seu ceticismo
a respeito da existência de um mundo independente de teoria
e aceitado a ideia de que o mundo, o qual de fato só pode ser
conhecido através de diferentes (re)descrições, existe, na reali-
dade, independentemente de tais (re)descrições; ou, melhor
ainda, que estas (re)descrições alternativas do mundo oferecem
retratos alternativos do mesmo mundo. Esse convite é mais do
que uma escaramuça filosófica. Dado que a pressuposição
realista segundo a qual as (re)descrições da realidade referem-
-se ao mesmo mundo é uma precondição necessária para a
comparação racional entre teorias e, assim, para uma escolha
racional de teoria, a ideia de desenvolvimento científico depende
eventualmente (a longo prazo) da superação do racionalismo
científico. Em uma formulação algo paradoxal, poderíamos

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dizer que a racionalidade da ciência pressupõe o abandono do
“surracionalismo” científico (Bachelard, 1988: 28).
Em O estruturalismo e a teoria do conhecimento sociológico,
Bourdieu desenvolve uma teoria estruturalista do social na qual
a realidade empírica é concebida como um reflexo analógico das
relações entre elementos que formam, segundo postula o modelo
teórico, uma estrutura hipotética, porém invisível. “A teoria,
como um sistema de signos organizados de modo a representar,
através das suas próprias relações, as relações entre os objetos, é
uma tradução, ou melhor, um símbolo articulado àquilo que ele
simboliza por meio de uma lei de analogia” (Bourdieu, 1968: 689).
Assim, na medida em que as relações reais entre os elementos
são, de certo modo, reduzidas a um reflexo analógico das relações
teóricas estabelecidas entre os elementos da estrutura teórica, a
ontologia do mundo é, de fato, derivada de uma epistemologia
estrutural do mundo. Entretanto, como ele está ciente do risco da
ontologização de proposições epistemológicas, Bourdieu muda
de direção no último momento e recorre à estratégia kantiana
de imunização pelo recurso ao ficcionalismo analítico: “Todas as
proposições do discurso sociológico deveriam ser precedidas por
um signo que poderia ser lido como ‘tudo se passa como se...’”
(Bourdieu, 1972: 173; Bourdieu, 1980: 49).16 Como resultado deste
estratagema convencionalista, as proposições sociológicas não
são mais tidas como capazes de apreender o mundo tal como
ele é, mas ceticamente reduzidas ao status de (re)descrições da
“realidade” que não poderiam ser nunca mais do que artifícios
heurísticos desenvolvidos para representar ou “salvar” analogi-
camente os fenômenos.
Graças a esta vigilância epistemológica, Bourdieu evita o
risco da reificação da teoria, mas apenas ao preço da covardia
ontológica, se eu puder ousar me expressar nesses termos. O
movimento reificador do modelo da realidade para a realidade
do modelo é efetivamente evitado, mas, como resultado desta
inflexão convencionalista, a relação referencial entre o modelo
e a realidade torna-se ontologicamente obscura. Quando o
movimento referencial do modelo da realidade para a realidade
do modelo, ou do significante para o significado, é rejeitado a
priori e denunciado como um movimento reificador que vai da
hipótese à hipóstase, não é mais possível testar racionalmente
as pretensões ontológicas do modelo. Em nome de um medo

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“ontofóbico” da “falácia da falsa concretude” (Whitehead, 1930:
65), não é mais permitida a investigação das possibilidades de
que o modelo efetivamente refira-se à realidade e a capture ou,
ao contrário, apenas leve à sua reificação. Nesse sentido, uma
interpretação realista coloca isso mais em jogo do que uma con-
vencionalista, pois, se o cientista possui o conceito de um reino
ontológico distinto das suas reivindicações correntes de
conhecimento, sua pesquisa pode efetivamente mostrar que sua
hipótese sobre a coisa real era, na realidade, apenas uma hipós-
tase real da coisa. O pragmatismo epistemológico, por outro lado,
evita o risco da reificação, mas apenas ao preço do relativismo
epistêmico, pois, se a conexão entre os níveis ontológico e
epistemológico é elástica, i.e., se utilizamos modelos analógicos
da realidade sem produzir afirmações acerca da realidade,
chegamos, do ponto de vista lógico, a uma situação anarco-dadaísta em
que “vale tudo” (Feyerabend, 1978: 28, 186, 296). Com Bhaskar,
penso que uma teoria tem de ser ontologicamente ousada, mais
do que epistemologicamente cautelosa (Outhwaite, 1987: 19-44).17
Ao invés de fazermos afirmações convencionalistas a respeito de
necessidades conceituais ou das características que precisamos
necessariamente atribuir às coisas, devemos utilizar definições
reais das coisas e tentar captar sua estrutura real. Aceitamos o fato
(quiniano) de que a realidade só pode ser conhecida através de
diferentes descrições, mas, na ausência de uma teoria da corres-
pondência entre o modelo e a realidade, não podemos averiguar
o que a realidade é e terminamos na absurda situação em que
existem tantos mundos quantas sejam as descrições sob as quais
a realidade pode ser conhecida. Com o realismo crítico, podemos
concluir, assim, que é apenas se possuirmos o conceito de um
reino ontológico distinto de nossas reivindicações correntes de
conhecimento que poderemos pensar na possibilidade da crítica
racional de nossas afirmações.

REMOVENDO OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS


Retornando das grandiosas alturas da crítica filosófica,
podemos proceder a uma análise da transposição da episte-
mologia bachelardiana para o reino do social realizada por
Bourdieu. Como Bachelard, Bourdieu recomenda a “vigilância
epistemológica”. A ciência procede apenas por meio de erros,
da correção de erros. O primeiro erro é o erro empiricista do

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realista ingênuo que toma os fatos como dados e não como
um resultado, como algo a ser conquistado e sistematicamente
construído. Com Bachelard, Bourdieu afirma, em suas “preli-
minares epistemológicas” à sociologia, que o “fato científico é
conquistado, construído (e) verificado” (conquis, construit,
constaté; Bourdieu; Chamboderon; Passeron, 1973: 24, 81).
Consequentemente, a hierarquia epistemológica dos atos cien-
tíficos subordina a verificação do fato à sua construção e sua
construção à ruptura com as concepções espontâneas do social.
O “primeiro obstáculo epistemológico” (Bachelard,1993:
23-54) a ser superado, caso a sociologia pretenda ser uma
ciência rigorosa, é a adesão espontânea do sociólogo à
“experiência dóxica” imediata do senso comum e às explicações
senso-comunais (comon-sensical explanations) do social avan-
çadas por teorias sociológicas tradicionais.18 Na medida em
que a objetividade científica só é possível se rompermos com
o objeto imediato, o primeiro imperativo da sociologia é a
“ruptura epistemológica” (Bachelard, 1986: 104) entre a concepção
de senso comum (doxa) e a concepção científica (episteme) do
social.19 A partir desta perspectiva, o “postulado de adequação” de
Schutz, que estipula que conceitos científicos (de segunda ordem)
devem sempre permanecer entrelaçados aos conceitos do senso
comum (de primeira ordem) e ser traduzíveis para estes (Schutz,
1974: 289, 324 et seq.; Schutz, 1962: 44), deve ser categoricamente
rejeitado.20 Na opinião de Bourdieu, uma ciência só pode ser
científica se aplica, do início ao fim, o princípio determinista da
“razão suficiente”. Transposto para o domínio da sociologia, o
princípio do determinismo toma a forma do “princípio da não
consciência” durkheimiano (Bourdieu; Chamboderon; Passeron,
1973: 31): a vida social tem de ser explicada não pelas concepções
dos seus participantes, mas por causas estruturais que escapam
à sua consciência, explicando e necessitando os fenômenos
observados. Toda vez que nos referimos a explicações psicoló-
gicas ou interacionistas de fatos sociais, podemos estar certos de
que invertemos as causas e os efeitos. Bourdieu não deixa dúvidas
a respeito disso: “É a estrutura das relações que constituem o
espaço do campo o que comanda a forma assumida pelas relações
visíveis de interação” (Bourdieu, 1982a: 42).21
Os fatos sociais só podem, portanto, ser explicados por fatos
sociais (Durkheim, 1986: 109), devendo estes ser sistematicamente

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construídos contra o senso comum, bem como objetivados em
um sistema de relações de modo tal que as relações estruturais
objetivas entre os elementos fenomênicos necessitem e expliquem
o comportamento dos elementos da relação construída entre os
elementos.22 A análise estatística das relações numéricas entre
os elementos é útil na medida em que permite ao sociólogo
romper com as redes ilusórias de relações que são espontane-
amente tecidas na vida cotidiana, mas estas relações numéricas
são apenas um primeiro passo e têm de ser inseridas em uma
rede relacional de ordem mais elevada, capaz de garantir uma
explicação racional das relações estatísticas observadas.23 A
resistência que a ciência sociológica gera quando priva a
experiência imediata de seu privilégio gnosiológico é inspirada
por uma filosofia humanista da ação social, que toma o sujeito
como referência ontológica última sem notar que o sistema
objetivo, embora invisível, de relações entre os indivíduos tem
“mais realidade” do que os sujeitos que ele articula. Ou, dizendo
o mesmo na linguagem escolástica tão cara a Bourdieu: não
são os indivíduos visíveis, mas é o espaço invisível de relações
entre indivíduos o ens realissimum (Bourdieu, 1994: 53). No
entanto, este sistema real de relações, embora invisível, não flutua
simplesmente no ar das ideias platônicas. Ele não existe em si
mesmo, mas, similarmente aos “habitantes” do “mundo 3” de
Popper (o “mundo dos sistemas teóricos”), só se manifesta
empiricamente no mundo real (“mundo 1”, o mundo dos
eventos observáveis, cujas regularidades objetivas são sistemati-
camente capturadas por dados estatísticos) graças à intervenção do
habitus, que pertence ao “mundo 2” (“o mundo dos estados de
consciência, ou dos estados mentais, ou talvez de disposições
comportamentais”), mas que estabelece a mediação entre o
mundo 3 e o mundo 1, “realizando” assim o sistema teórico das
relações construídas (ver Popper, 1979: 106-90).

A PRIMAZIA DAS RELAÇÕES


De acordo com Bachelard e Bourdieu, que segue seu mentor
neste ponto, uma pesquisa só é científica se e na medida em que
efetiva uma ruptura epistemológica entre a doxa e a episteme. O
movimento do reino dóxico da mera “opinião” para o reino
científico do “conhecimento” pressupõe um “desvio (teórico)
através do reino infinitamente aberto das abstrações, de modo

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a tornar o contato com a experiência mais penetrante, poderoso
e preciso” (Granger, citado por Hamel, 1997: 31). Na medida
em que esse desvio teórico busca romper com o “essencialismo
cotidiano”, que naturalmente toma como substâncias o que são
na verdade relações, a construção racionalista (ou realista) dos
objetos teóricos como conjuntos de relações está inerentemente
ligada a um modo relacional de produção intelectual. A conquista
do fato científico contra a percepção espontânea e pré-construída do
“objeto real” é inseparável de sua construção sistemática como
um “objeto teórico”, por meio da sua objetivação em um sistema
coerente de relações construídas. Se o senso comum adere espon-
taneamente a uma filosofia substancialista, a ciência desconstrói
reflexiva e metodicamente as substâncias fenomênicas de
modo a reconstruir o fenômeno como um tecido entrelaçado de
relações, i.e., como uma configuração racional, ou de segunda
ordem, de atributos relacionais.24
Ainda que Bachelard tenha claramente percebido a primazia
das relações sobre as substâncias que caracteriza as ciências
naturais modernas e, talvez, até mesmo a lógica das visões de
mundo modernas em geral (Dux, 1982) – como pode ser visto no
seu lema: “No princípio era a relação” (Bachelard, 1929: 65) –,25
Bourdieu recorre a Ernst Cassirer, o qual, em seu livro seminal
Substância e função, analisou brilhantemente a substituição da
lógica aristotélica das substâncias por uma lógica funcional das
relações gerativas que pode ser encontrada na matemática e na
física modernas, bem como na geometria e na química.26 A análise
neokantiana do conceito de função desenvolvida por Cassirer
é orientada para a elaboração de uma lógica transcendental na
qual o objeto não é mais pressuposto pela lógica, mas é, por
assim dizer, gerado por ela. Os conceitos científicos não perma-
necem não relacionados uns aos outros, mas são organizados
em “campos” ou “figurações” conceituais coerentes, ou ainda,
para usar a linguagem preferida por Cassirer, em uma “série
ordenada de progressões” (Reichenfolge) que revela e constitui
uma região analítica da realidade de modo sistemático. Nesta
concepção relacional, o particular não é mais subsumido no geral,
como no caso do silogismo aristotélico, mas uma inter-relação
funcional ou dialética é estabelecida entre ambos de modo tal
que o particular, que é sobredeterminado pela teoria, aparece
como a síntese concreta de um conjunto de relações gerais. “O

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conceito não mais descarta desdenhosamente os particulares que
especificam os conteúdos que ele subsume, mas, ao contrário,
busca descobrir a necessidade da manifestação e a conexão dos
próprios particulares. O que o conceito propõe, assim, é uma
regra universal que nos permite compor e combinar o elemento
particular em pessoa” (Cassirer, 1994: 25).27
Por exemplo, para tomarmos uma ilustração do campo da
geometria: iniciando por uma fórmula matemática geral, podemos
formar as figuras geométricas particulares do círculo, da elipse
e assim por diante, apenas modificando os parâmetros que
constituem a figura, de tal maneira que ela descreva e atravesse
uma série contínua de valores. Tomando um exemplo mais
sociológico, consistentemente desenvolvido em A distinção
(a obra-prima de Bourdieu que já é um clássico da sociologia
[Bourdieu, 1979a]): começando por um volume e uma estrutura
particulares de capital, podemos variar os parâmetros e proceder
continuamente da região mais elevada do espaço construído de
posições sociais, constituída pela fração dominante da classe
dominante (a burguesia industrial), passando pela região inter-
mediária, constituída pela fração dominada da classe dominante
(profissionais liberais e acadêmicos) e pela fração dominante da
classe dominada (os comerciantes e artesãos), até a região mais
baixa, constituída pela fração dominada da classe dominada
(camponeses, trabalhadores manuais não qualificados e excluí-
dos28). Como resultado da aplicação do modo de pensamento
relacional, “os conceitos científicos não mais aparecem como
imitações de existências coisificadas, mas como símbolos repre-
sentando ordens e articulações funcionais presentes na realidade”
(Cassirer, 1971: 3). Na medida em que a realidade dos objetos se
dissolveu em um mundo de relações racionais, podemos de fato
dizer, com Bachelard e Hegel, que “o real é racional” (Hegel,
1971: 24), bem como, com Cassirer e Bourdieu, que “o real é
relacional” (Bourdieu, 1987b: 3; Bourdieu; Wacquant, 1992: 72,
203; Bourdieu, 1994: 17).

RELACIONISMO APLICADO
Embora o objeto pareça preceder o ponto de vista, Bourdieu
compartilha da pressuposição construtivista de Saussure,
segundo a qual, na verdade, é “o ponto de vista (que) cria o

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objeto” (Saussure, 1985: 23). A delimitação do campo é, portanto,
analítica.29 Graças à construção metodológica de um sistema
fechado, autônomo e autorreferencial de relações internas entre
conceitos, um modelo coerente da realidade pode ser criado e
tomado como estruturalmente homólogo à mesma. Como vimos
acima, entretanto, Bourdieu não deseja avançar um argumento
ontológico sobre a realidade; afirmando que “funções sociais são
ficções” (Bourdieu 1982a: 49), ele recorre em última instância ao
gesto convencionalista do “como se”. Para construir o sistema de
relações entrelaçadas, duas coisas são importantes: em primeiro
lugar, o sistema tem de ser completo, i.e., toda a população de
elementos relevantes tem de ser levada em consideração; em
segundo, os elementos têm de estar ligados uns aos outros por
meio de relações internas, ou seja, de tal modo que não possam
ser definidos independentemente uns dos outros, portanto de
maneira que estejam mútua e conceitualmente implicados uns nos
outros. A escala musical e as melodias oferecem bons exemplos
de sistemas paradigmáticos e sintagmáticos de relações internas,
ou, para falar como Saussure, de diferenças arbitrárias, porém
internamente relacionadas: as notas formam um sistema para-
digmático completo, o valor de cada uma sendo rigorosamente
determinado pela posição de todas as outras; a melodia, por sua
vez, que reordena sintagmaticamente as notas, não é nada senão
a realização contingente de uma série internamente relacionada
de possibilidades musicais. Outra boa ilustração é a descrição
do ciclo econômico por Marx (Marx, 1973: 81-11): produção,
consumo, distribuição e troca de bens econômicos estão mutua-
mente implicados em um silogismo dialético. Como “membros
da totalidade”, representam apenas “distinções no interior de uma
unidade” e, enquanto tais, são “em sua forma unilateral determi-
nados pelos outros momentos”. Mais do que isso, estes processos
são idênticos, ainda que analisados de ângulos diferentes.30 O
mesmo poderia ser dito não apenas das posições que compõem
um campo, mas também das principais categorias de Bourdieu:
as noções de campo, capital e habitus não podem ser definidas
separadamente; na verdade, o campo é idêntico à distribuição
de capital e o habitus é idêntico ao campo, embora analisado a
partir de uma perspectiva diferente.
Ainda que Bachelard e Bourdieu não utilizem a distinção entre
essências e aparências, eles certamente concordam com Marx

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quanto ao fato de que a ciência sempre almeja o conhecimento
do oculto (Bachelard, 1986: 38; Bourdieu, 1996: 16). De modo
a descobrir o que está encoberto, a ciência tem de construir
“modelos analógicos” do mundo social, ou, dito talvez de uma
melhor forma, do espaço social, modelos que “recuperem os
princípios ocultos subjacentes às realidades que eles interpretam”
(Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1973: 76). A construção de
um modelo ideal-típico do espaço de relações estruturais entre
as relações fenomênicas permite que tratemos as diferentes
formas sociais como várias realizações distintas da mesma
função (simbólica). Nessa perspectiva, “o real” aparece, como diz
Bachelard e gosta de repetir Bourdieu, como “um caso particular
do possível” (Bachelard, 1991: 62), o que pressupõe, é claro, que
o caso particular seja relacionado às propriedades mais gerais
das quais ele é uma função. Assim, para tomar um exemplo do
campo acadêmico, quando sabemos a posição exata de um “indi-
víduo epistêmico” (Bourdieu, 1984a: 36), definida pela totalidade
das propriedades relevantes – como trajetória, volume e estru-
tura dos diferentes tipos de capital (econômico, cultural, social,
simbólico etc.), – que podem ser atribuídas a ela e que são tomadas
como eficazes na explicação da variação das posições no campo,
não importa realmente se consideramos diferentes “indivíduos
empíricos” como Lévi-Strauss, Braudel ou Foucault, pois, do
ponto de vista do analista que considera-os como “realizações do
possível” (ou “personificações” de estruturas, como diria Marx),
eles apenas representam “casos similares do possível”, sendo,
como tais, quase indistinguíveis. Uma vez que as propriedades
invariantes (illusio, interesses, luta pelo monopólio da autoridade,
volume e estrutura do capital, oposição entre frações dominantes
e dominadas das diferentes classes, estratégias de conservação
e subversão etc.) de um dado campo de práticas sejam conheci-
das, e uma vez que os princípios gerativos e unificadores de um
sistema de relações estejam codificados e formalizados no modelo
teórico, tal modelo pode ser transposto para, e comparado com,
outros campos de práticas, visando-se à descoberta de homologias
estruturais e funcionais.
Esta transposição de modelos de um campo a outro não
implica, no entanto, que Bourdieu não reconheça a diferenciação
funcional que caracteriza a sociedade moderna (Bohn, 1991:
133-139; Alexander, 1995: 157-164). Embora os campos tenham

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emergido historicamente e adquirido certa autonomia, eles estão
interconectados de maneiras complexas, e a aplicação comparativa
da fórmula gerativa de sua estrutura e função mostra precisamente
como a invariância “formal” ou estrutural e a variação “material”
ou empírica podem ser pensadas conjuntamente, de modo que a
tendência em direção à redução de um campo a outro, casu quo
ao campo econômico, possa ser evitada.31 Entretanto, mesmo que
o reducionismo da infame “última instância” possa ser evitado deste
modo, o problema do reducionismo reemerge sob uma outra
forma, qual seja, como uma “espécie de reducionismo de campo”
(Swartz, 1997: 293) no qual os “produtores de produtos” culturais
tendem a ser vistos como emanações da lógica do campo intelectual,
sendo seus produtos concebidos como vários epifenômenos das
respectivas posições que ocupam naquele. Como um teórico-
-pesquisador de campo(s), Bourdieu multiplicou sua pesquisa
comparativa em diferentes campos da prática (haute couture, lite-
ratura, arte, esporte, filosofia, política, mercados imobiliários e, por
último, mas não menos importante, a mídia [Bourdieu, 1996] e a
economia [Bourdieu, 1997b]), chegando a anunciar a publicação de
um livro, em que estava aparentemente trabalhando, acerca da
teoria geral dos campos, obra que, entretanto, não foi publicada.

RACIONALISMO APLICADO
Agora que analisamos como o fato científico é conquistado
contra o senso comum e sistematicamente construído como
um efeito relacional da teoria, podemos proceder à análise do
processo de verificação da teoria. Contra o dogma empiricista
da percepção imaculada, Bourdieu enfatiza uma vez mais que
os fatos são sempre e necessariamente sobredeterminados
pela teoria. Na medida em que os instrumentos e técnicas da
pesquisa empírica são, como disse Bachelard certa vez, “teoremas
realmente reificados” (Bachelard, 1971c: 137), todas as operações
da pesquisa sociológica, da formulação de um questionário à sua
codificação e análise estatística, têm de ser consideradas como
“várias teorias em ação” (Bourdieu; Chamboredon; Passeron,
1973: 59). Um conhecimento acurado daquilo que se faz sobre e
com os fatos, bem como do que os fatos podem ou não fazer, é,
portanto, o primeiro requisito da pesquisa sociológica. Por
exemplo, a técnica da análise multivariada, que parece apli-
cável a todos os tipos de relações quantificáveis, pressupõe a

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independência das variáveis dependentes e independentes. E
os sociólogos, que rotineiramente aplicam esse modo linear de
pensamento sem pensar muito a respeito, não estão nem mesmo
atentos ao fato de que as variáveis estão internamente ligadas e
só assumem seu valor numérico, bem como são o que são, graças
à sua posição e função em uma figuração estrutural (Elias, 1985:
234). Além disso, dado que não pensam em termos de causalidade
estrutural, eles se agarram à identidade nominal de suas variáveis,
assumindo que seus efeitos são puramente lineares e não perce-
bendo que, em cada uma das variáveis, a rede de relações entrelaçadas
exerce sua eficácia através de todas as outras (Bourdieu, 1979a:
113-122, 512-514).32 O resultado da aplicação-padrão da técnica da
análise multivariada é uma confusão ontológica entre o método
e a “coisa em si” (Ding an sich), levando a uma situação em que
o método é simplesmente reificado em uma “realidade linear
geral” (Abott, 1988).33 De maneira a evitar o risco da reificação,
qualquer correlação estatística entre variáveis obtida pela análise
multivariada tem de ser sistematicamente reinterpretada como
uma função do sistema de relações entre relações que dá sentido
à relação estatística observada. Com a técnica estatístico-descritiva
da análise de correspondência, uma variante avançada da análise
fatorial que é, obviamente, a técnica favorita de Bourdieu, isso não
é necessário, pois tal técnica não é nada mais, por assim dizer,
do que a materialização operacional do modo de pensamento
relacional que caracteriza o estruturalismo gerativo.34
Na medida em que cada fato implica toda a teoria e
que toda a teoria está implicada em cada fato, popperianos
consideram o modo estrutural de verificação (que se baseia não
em uma teoria da verdade como correspondência, mas como
coerência) como não científico ou, pior ainda, como “dogmático”
e “intrinsecamente terrorista” (Ferry; Renaut, 1988: 259-68).35
Entretanto, contra a falsificação popperiana de hipóteses
ad hoc, deve-se acentuar, com Duhem, que “um experimento
não pode nunca falsificar uma hipótese isolada, mas apenas uma
totalidade teórica” (Duhem, citado por Bourdieu; Chamboredon;
Passeron, 1973: 89-90). Além disso, contra Popper e com Lakatos
(1970) – que deve ser lido como um hegeliano e, portanto, como
um primo intelectual de Bachelard –, deve-se considerar que o
estruturalismo gerativo de Bourdieu não representa uma teoria
singular isolada que pode ou não ser refutável, mas um fértil e

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bem integrado programa de pesquisa que incorpora ou “engloba”
uma multiplicidade de outras teorias, de Garfinkel a Elias. Admi-
tidamente, o “núcleo duro” deste programa de pesquisa é muito
duro. Entretanto, se concordarmos com Lakatos e aceitarmos que
uma disciplina só é científica na medida em que programas de
pesquisa “progressivos” triunfam sobre “degenerativos”, então,
mutatis mutandis, não há razão para considerarmos o projeto do
“coletivo científico” que Bourdieu dirigia de Paris como pseudo
ou não científico. Alargando um pouco esse argumento e abando-
nando deliberadamente a postura “cientificista” do “estruturalista
feliz”, eu estaria até inclinado a relaxar o critério de cientifici-
dade e considerar seu programa de pesquisa em termos mais
estéticos.36 Embelezado como é por sua tonalidade proustiana, o
modo de análise relacional-estrutural de Bourdieu oferece um
“retrato” coerente e sistemático do mundo social. A esse respeito,
ele lembra uma pintura que, graças ao refinamento constante,
torna-se mais unificada, enquanto cada detalhe, se desligado do
todo, perde significado e termina por não representar nada.37
Para Bourdieu, o mundo não é apenas sua apresentação, mas,
em última instância, também sua construção e verificação, um
composto de construtos conceituais realizados e ideias verificadas.

O HABITUS, OU A ATUALIZAÇÃO
OCASIONAL DO REAL
De acordo com o mentor de Bourdieu, o pensamento
progride dialeticamente por meio de um movimento de engloba-
mento que abarca posições e tenta incorporá-las em um quadro
conceitual mais amplo que supere com sucesso suas limitações
anteriores. Este movimento dialético de alargamento opera por
meio de uma mediação através dos (mas, pace Adorno, não
“nos”) extremos. “Pode-se falar de uma lei psicológica da bipolari-
dade dos erros. Assim que uma dificuldade torna-se importante,
podemos estar certos de que, ao evitá-la, esbarraremos em um
obstáculo oposto” (Bachelard, 1993: 20). Assim, para tomar a
história do nosso campo no pós-guerra como exemplo, quando
a uni-dimensionalidade do estrutural-funcionalismo (e de posições
objetivistas correlatas como estruturalismo, marxismo etc.)
tornou-se crescentemente manifesta no final dos anos 1960, uma
reação microssociológica surgiu e, ao final dos anos 1970, já
havia levado o pêndulo metateórico para o outro extremo, o do

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subjetivismo unidimensional, representado (por razões pedagógicas)
por Schutz, Blumer, Garfinkel e outros. Foi apenas quando as
limitações do objetivismo e do subjetivismo foram ambas acentua-
das que a possibilidade de uma articulação sintética entre micro
e macro eventualmente emergiu nos anos 1980 (Alexander et al.,
1987c). Ainda que nosso filósofo-tornado-antropólogo houvesse
desenvolvido o principal esboço de sua tentativa de transcender
a “bipolaridade” dos erros subjetivista e objetivista já no início dos
anos 1970 (Bourdieu, 1972), sua teoria da prática é claramente
parte de um movimento “estruturista” mais amplo na teoria social,
que adquire sua inspiração nas Teses sobre Feuerbach, de Marx, e
do qual Sartre, Berger, Luckmann, Habermas, Giddens, Bhaskar
e o Castoriadis tardio são provavelmente os representantes mais
bem conhecidos (Vandenberghe, 1998: 322-339).
Movendo-nos de considerações epistemológicas para discussões
mais metatéoricas, podemos agora apresentar a tentativa bour-
dieusiana de superar a oposição entre subjetivismo e objeti-
vismo por meio da introdução de uma relação suplementar: um
relacionamento vertical que estabelece a mediação entre o sistema
de posições objetivas e as disposições subjetivas. Este é, evidente-
mente, o momento em que aparece na cena o velho e venerável
conceito aristotélico de hexis, que Boécio e Tomás de Aquino
traduziram como habitus e que o etnofilósofo francês transformou
em um de seus conceitos centrais.38 Como é bem conhecido agora,
Bourdieu utiliza o conceito de habitus – sempre entendido como
habitus de classe e definido como um sistema de “disposições du-
ráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcio-
nar como estruturas estruturantes” (Bourdieu, 1972: 155; Bourdieu,
1980: 88-89) – como uma espécie de “operador teórico” que,
ao conferir uma coerência formal a ações que são extremamente
diferentes materialmente, estabelece a mediação entre o sistema
invisível de relações estruturadas (pelas quais as ações são mode-
ladas) e as ações visíveis dos atores (que estruturam as relações39).
Como um construto lógico “irredutível às suas manifestações”
(Bourdieu, 1974: 31), o habitus em si não pode ser observado,
mas, tal como as instanciações práticas das estruturas virtuais de
Giddens (Giddens, 1979: 53-76; Giddens, 1984: 16-28), pode ser
detectado nas suas atualizações, quando uma “condição permis-
siva” (o estado do campo, do mercado etc.) fornece a ocasião
apropriada para a disposição virtual se manifestar, concretamente,

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na relação com uma situação particular (Bourdieu, 1979a: 112;
Bourdieu, 1984b: 135; Bourdieu, 1997a: 178).40 Assim, como um
mediador entre energeia e actu (Aristóteles), o habitus (ou suas
variantes lógicas, práticas e corpóreas) também estabelece a
mediação entre as estruturas e as ações, resolvendo, portanto, a
antinomia entre objetivismo e subjetivismo:

ão se deve esquecer que, em última instância, as relações


N
objetivas não existem e não se concretizam realmente exceto nos
e através dos sistemas de disposições dos agentes, produzidos
pela internalização das condições objetivas. Entre o sistema de
regularidades objetivas e o sistema de condutas diretamente
observáveis uma mediação sempre intervém, a qual não é nada
mais do que o habitus, o locus geométrico dos determinismos
e de uma determinação individual (Bourdieu et al., 1965: 22;
Bourdieu, 1968: 705).

Entre o habitus e o campo há uma “cumplicidade onto-


lógica” (Bourdieu, 1982a: 47; Bourdieu, 1994: 154): quando
o habitus entra em relação com o mundo social do qual é o
produto, o habitus sente-se em casa – “como um peixe n’água”.
O habitus está internamente ligado ao campo, a ponto de cada
um referir-se à mesma coisa, porém considerada de um ângulo
diferente: como ergon (opus operatum) ou energeia (modus
operandi).41 O habitus é a interiorização ou incorporação de
estruturas sociais, enquanto o campo é a exteriorização ou
objetivação do habitus. Entretanto, não se deve conceber a
relação entre os dois como puramente circular, relação na qual o
habitus, “produto das estruturas e produtor das práticas e
reprodutor das estruturas” (Bourdieu; Passeron, 1970: 244),
simplesmente reproduz as estruturas.42 De fato, como o coman-
dante Mao costumava dizer, deveríamos “torcer o bastão na
outra direção”, ler Bourdieu com os olhos de Giddens, ver seu
trabalho como uma preliminar a Habermas e insistir nas capaci-
dades transformativas do habitus.43 Não obstante a autocensura
de Bourdieu,44 penso, entretanto, que ele encorajaria tal leitura
transformativa.45 Mais do que isso, penso que ele deveria tê-lo feito
se quisesse tornar sua teoria alinhada às suas intenções políticas,
as quais, ao final de sua carreira, não eram mais reprimidas, mas
abertamente declaradas (Bourdieu, 1998).

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É certo que o habitus é o produto de estruturas sociais, mas,
se pararmos aqui, podemos cair na armadilha da leitura deter-
minista pura e esquecer que, como princípio gerador de ações,
avaliações e percepções, o habitus também estrutura o mundo
social.46 O habitus reproduz o mundo social, mas, dado que um
processo de “seleção” (Bourdieu, 1997b: 63) – ou “autointeração”
(Blumer, 1969: 15, 50), ou ainda (por que não?) “comunicação
racional” (Habermas, 1981: 69, 212) 47 – sempre intervém entre
o estímulo e a resposta, “não se pode inferir mecanicamente o
conhecimento dos produtos do conhecimento das condições
de produção” (Bourdieu, 1984b: 135). O habitus transforma
aquilo pelo qual ele é determinado, e, mesmo que o princípio
da transformação possa ser achado na fissura entre a estrutura e
o habitus, não há razão para se supor que a profundidade dessa
fissura e o seu significado não dependem do habitus (Bourdieu,
1997a: 177-178). Afinal de contas, os agentes são determinados,
mas apenas na medida em que determinam a si mesmos. Se
“sempre há espaço para uma luta cognitiva relativa ao signifi-
cado das coisas do mundo” (Bourdieu, 1998b: 19), nada exclui,
portanto, o potencial do agente para transformar o mundo de
modo não previsível. Além disso, o reconhecimento aberto da
criatividade do habitus e de sua possibilidade de refletir sobre suas
próprias determinações tem a vantagem não negligenciável de
tornar as pressuposições metateóricas de sua teoria da ação – que
é, afinal de contas, uma teoria que enfatiza o “primado da razão
prática” (Bourdieu, 1987a: 23) – mais alinhadas com a intenção
crítica que anima seu pensamento. 48 Penso que sua indignação
moral, sublimada em “hiperviolência teórica” (Caro, 1980: 1.175),
geraria mais frutos se o hiperdeterminismo fosse enfraquecido,
de modo que o voluntarismo pudesse obter o que lhe é devido.
Como Sartre costumava dizer, “o que importa realmente não é o
que se faz com um homem, mas o que ele faz com o que é feito
a ele” (citado por Terrail, 1992: 229).

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A TEORIA DOS CAMPOS

O CAMPO DE PRODUÇÃO CULTURAL


Assim como a noção de habitus foi concebida com a intenção
de romper com o paradigma estruturalista sem recair na velha
filosofia do sujeito ou da consciência, “para sair”, portanto, “da
filosofia da consciência sem perder de vista o agente na sua
verdade, como um operador prático de construções da realidade”
(Bourdieu, 1992: 253), a noção de campo (champ) foi concebida
desde o início como um modo de “rejeitar a alternativa entre
uma interpretação interna e uma explicação externa” (Bourdieu,
1992: 254) diante da qual todas as ciências culturais (ciências da
religião, história da arte ou da literatura, sociologia da religião, do
direito ou da ciência) estavam situadas. Em assuntos culturais, a
oposição entre a análise formalista, que oferece uma interpretação
imanente (ou “tautegórica”) do significado (e.g., semiótica, arqueo-
logia, gramatologia, pós-modernismo, a nova “nova crítica” etc.),
e a análise reducionista, que apresenta uma leitura externa (ou
“alegórica”), que relaciona diretamente o significado à economia
(e.g., marxismo) ou ao poder (e.g., nietzschianismo, weberianismo),49
pode ser superada mostrando-se que as influências e coações
externas (econômicas e políticas) são sempre mediadas e “refra-
tadas” pela estrutura do campo cultural particular (literatura, arte,
ciência etc.) que intervém entre as posições sociais do produtor
e as posturas (prises de positions) nas quais aquelas posições são
expressas, posturas cujo princípio encontra-se na estrutura e no
funcionamento do campo de posições.50
A teoria do campo é a realização concreta do pensamento
relacional em uma esfera particular de ação. O princípio-guia
de todas as teorias de campos foi formulado por Kurt Lewin,
um dos pupilos de Cassirer: “Ao invés de abstrair um ou outro
elemento isolado de uma situação, elemento cujo significado
não pode ser compreendido sem a referência à situação total, a
teoria do campo começa por uma caracterização de toda a situa-
ção” (Lewin, 1963: 104). Diferentemente de Lewin, entretanto,
Bourdieu confere uma inflexão agonística à sua teoria dos
campos. Ainda que fosse perfeitamente concebível que os elementos
internamente relacionados pudessem “conspirar” pacificamente

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para formar um todo orgânico, Bourdieu sempre pensou no
campo como um campo de lutas, ou, como diz Elias, de “tensão”
(Elias, 1984: 127). Desde o início, sua concepção relacional do
campo estava combinada a uma visão altamente conflitual do
mundo como uma arena de batalha por poder, prestígio e toda
espécie de capital, arena em que a distinção competitiva, a domi-
nação e o desconhecimento51 prevalecem sobre a cooperação, o
desinteresse e o reconhecimento (Swartz, 1997: 63). De qualquer
modo, seja o campo concebido de modo conflitual ou não, dado
que as relações entre os elementos individuais são a resultante de
todos os fatores que constituem a “figuração”, deve-se sempre,
quando analisando o campo, “começar pelas relações e pensar
a partir daí em direção às partes relacionadas” (Elias, 1984: 127).
Analisar a totalidade de relações que estruturam o campo
não significa, no entanto, que se deva investigar todos os eventos
que ali se desenrolam. “Significa, sim, revelar as estruturas
fundamentais que dão uma configuração específica à orientação e
à morfologia dos eventos singulares no interior do campo” (Elias,
1976: 393). Bourdieu, que tomou a noção de empréstimo a Lewin
(o qual, por sua vez, se referiu explicitamente a Cassirer) e a
Elias, primo distante de Cassirer,52 ligou sistematicamente a noção
de campo àquela de “capital”, de modo a poder definir o campo
– ele também usa as noções de “mercado” e “jogo” – como um
espaço estruturado de posições sociais no qual as posições e suas
inter-relações são determinadas pela distribuição de diferentes
tipos de capital (capital econômico – i.e., riqueza material, sob
a forma de dinheiro, ações da bolsa etc.; capital cultural – i.e.,
conhecimento, habilidades e outras aquisições culturais; capital
simbólico – i.e., prestígio e honra acumulados; e capital social
– i.e., relações e redes de influência). Campos devem ser vistos
como sistemas de posições dominantes e subordinadas nos quais
cada posição epistêmica, que é contingentemente concretizada
na forma de uma instituição, organização, grupo ou indivíduo
empírico, obtém suas propriedades distintivas do seu relaciona-
mento interno com todas as outras posições epistêmicas. Dado
que as posições concretas, que representam manifestações do
possível, estão internamente relacionadas, uma mudança em
uma delas terá necessariamente repercussões para todas as
outras (e.g., quando duas firmas gigantes se fundem, a estrutura
de todo o subcampo econômico é afetada, tal como a teoria

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da relatividade de Einstein modificou o subcampo inteiro da
física). Uma das mais importantes propriedades dos campos é a
maneira como permitem que uma forma de capital (e.g., capital
econômico) seja transformada em outra forma de capital (por
exemplo, capital cultural, que pode existir em três estados diferentes:
incorporado ao proprietário – e.g., habilidades linguísticas e
familiaridade pessoal com trabalhos artísticos; objetificado – e.g.,
em livros, pinturas etc.; e certificado, em função de diplomas e
credenciais formais [Bourdieu, 1979b]).
Na medida em que a concepção relacional é inseparável, para
Bourdieu, de uma Weltanschauung conflitual, o campo é sempre
um campo de forças e de lutas no qual os indivíduos procuram
manter ou alterar as relações de força e a distribuição das formas
de capital a ele específicas. Ainda que as partes em competição
se oponham umas às outras (dissenso), todas compartilham
algumas pressuposições fundamentais (o “consenso no dissenso”
[Bourdieu, 1966: 902]) constitutivas do próprio funcionamento
do campo.53 Elas acreditam no jogo que estão jogando e no
valor daquilo que está em causa nas lutas que disputam (illusio).54
Em qualquer momento no tempo, a estrutura do campo, i.e., o
espaço de posições sociais, pode ser determinada pela estrutura
da distribuição das diferentes espécies de capital entre os grupos
e classes. Bourdieu caracteriza as classes de posições sociais ao
longo de três dimensões (Bourdieu, 1979a: 128-144), duas das
quais são espaciais, sendo a outra temporal: 1) o volume de capital
possuído; 2) a estrutura do capital, i.e., a composição global do
capital, de acordo com o peso específico das diferentes espécies
em relação ao capital global; 3) e a trajetória social objetiva,
passada, presente e potencial, como indicada pelos movimentos
ao longo dos eixos espaciais.
A análise da cultura em termos de campo procede em três
estágios (Bourdieu; Wacquant, 1992: 80). Primeiramente, ainda
que o campo cultural (artístico, literário, jurídico, filosófico etc.)
seja relativamente autônomo, deve-se situá-lo, entretanto, no
campo do poder, do qual ele é relativamente dependente, dado
que a luta que se desenrola no campo do poder determina se o
princípio de hierarquização do campo das relações de classe será
de natureza econômica ou cultural.55 Em nossas sociedades,
o capital econômico é o princípio dominante de dominação,
sendo o capital cultural o princípio dominado. Assim, o campo

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intelectual, por exemplo, ocupa uma posição dominada no campo
do poder, que está ele mesmo situado no polo dominante do
campo das relações de classe. Em qualquer momento no tempo,
o campo intelectual é o locus de lutas entre dois princípios de
hierarquização: um critério heterônomo (o sucesso, tal como
medido pela venda de livros) que trabalha em benefício daqueles
que dominam o campo econômica e politicamente (as pessoas “de
terno” que distribuem os recursos, integram os comitês decisórios
e decidem sobre o potencial mercadológico dos livros); e um
critério autônomo (a qualidade, tal como medida pelo reconhe-
cimento dos pares), que favorece os “verdadeiros intelectuais”.
Em segundo lugar, deve-se descobrir a estrutura objetiva de
relações entre as posições ocupadas no campo pelos agentes ou
instituições em competição uns com os outros no seu interior.
Aqui, o propósito é o de revelar a hierarquia dos produtos e dos
produtores, baseada na oposição entre o “campo da produção
restrita”, em que os produtores produzem para outros produtores,
e o “campo da produção para audiência de massa”, que é sim-
bolicamente excluído e desqualificado (Bourdieu, 1971c: 54-55).
Finalmente, a análise do campo também deve incluir investigações
detalhadas das trajetórias e das disposições dos produtores em
competição uns com os outros no seu âmbito. Compreender as
práticas dos produtores e os seus produtos implica compreender
que eles são o resultado da história das posições que ocupam e
da história de suas disposições. Quando o agente é introduzido no
campo, pode-se dinamizar esse retrato e analisar a dialética entre
posições objetivas e disposições subjetivas, explicando assim as
posturas (prises de positions) dos produtores de um dado campo.56
O modelo generalizado do campo de produção cultural apre-
sentado acima é o resultado de uma longa série de estudos de
campos particulares que Bourdieu iniciou nos anos 1960 com
uma análise do campo intelectual, de Flaubert e o Nouveau
Roman até o jazz e o cinema (Bourdieu, 1966),57 um modelo cujo
quadro conceitual é, em larga medida, inspirado em uma brilhante
e original reinterpretação do capítulo de Weber sobre a religião
em Economia e sociedade (Weber, 1972: 245-381) nos termos
da sua teoria geral do conhecimento sociológico (Bourdieu,
1971a; Bourdieu, 1971b).58 Na medida em que sua interpretação
confere uma inflexão marxiana às noções de bens ideais e
interesses ideais de Weber, ela também lança as bases de uma

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teoria geral da economia dos bens simbólicos que, ao estender
a lógica do cálculo econômico a todos os bens, materiais assim
como simbólicos, sem distinção, intenta demonstrar que há uma
economia política dos bens culturais. Como resultado dessa
leitura ostensivamente materialista de Weber, que gera uma
espécie de perspectiva supermarxista antecipada por Mannheim,
uma interpretação econômica de setores não econômicos e até
antieconômicos (como o religioso, por exemplo) torna-se
possível, interpretação que consistentemente mostra que um
desinteresse bem-intencionado e conspícuo por recompensas
materiais sempre gera lucro de um modo ou de outro, mesmo
que este lucro não seja conscientemente intencionado pelo agen-
te. Quando a “ação estratégica” sem cálculo estratégico explícito
ou a “ação tradicional” com propósito racional são descobertas
em todo lugar, surge a suspeita de reducionismo econômico e
hiperutilitarismo à la Gary Becker, reducionismo que detecta o
egoísmo inconsciente no altruísmo consciente, levando assim,
inevitavelmente (e, até certo ponto, justificavelmente), ao oxí-
moro do “cálculo inconsciente” (ver Joppke, 1986; Honneth,
1990; Caillé, 1992; Alexander, 1995).
O eixo central de variação entre os campos é o seu grau de
autonomia. Campos altamente autônomos, como o científico,
seguem o código binário do verdadeiro e falso; campos altamente
heterônomos, como o político, o código schmittiano do amigo e
inimigo (Bourdieu, 1986: 10). Primeiramente, consideraremos o
campo religioso, que está aberto a determinações externas e cuja
“verdade” não é nada além da imposição legítima de um arbitrário
cultural que expressa sobretudo os interesses dos dominantes.
A penúltima seção irá analisar o campo científico, campo que é
mais autônomo e no qual os produtores produzem para outros
produtores, e não para uma audiência de massa, como é o caso
no campo religioso.

O CAMPO RELIGIOSO
Na medida em que a teoria da religião de Weber relaciona
sistematicamente os discursos religiosos do mago/feiticeiro, do
profeta e do sacerdote aos interesses sociais mais amplos dos
estratos em que estes se inserem (Weber, 1966: 237-268; Weber,
1972: 259-279), ele desenvolve, pelo menos em princípio, uma

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teoria da autonomia relativa do campo religioso que o permite
transcender a oposição entre uma teoria (estruturalista) que
interpreta o conteúdo mutável das mensagens religiosas em
termos das leis imanentes do espírito e uma teoria (marxista) que
concebe tais mensagens como um reflexo direto da infraestrutura
material da sociedade, cometendo assim o erro do curto-circuito.
O problema com Weber é duplo. Em primeiro lugar, ele perma-
neceu preso ao modo substancialista de pensamento. Ao invés
de relacionar sistematicamente os protagonistas da ação religiosa
(profeta, mago e sacerdote) uns aos outros, ele desenvolveu um
tipo ideal de cada um que buscou suas principais características
gerais nos próprios protagonistas, chegando assim a uma “teoria
mosaico” da realidade (Parsons, 1949: 621). Em segundo lugar,
Weber também permaneceu imerso na “ilusão ocasionalista”
(Bourdieu, 1972: 184). Ao invés de construir a estrutura das
relações objetivas entre as posições que os agentes religiosos
ocupavam no campo religioso, ele reduziu a “estrutura objetiva”,
que determina as relações interpessoais, à “estrutura conjuntural”
das suas interações em grupos e situações particulares.
Estes dois problemas podem, entretanto, ser facilmente
resolvidos de acordo com Bourdieu. Para colher os frutos da rica
análise weberiana das interações entre os especialistas religiosos,
de um lado, e a população leiga, de outro, é suficiente construir
o sistema completo das relações objetivas entre os profetas, os
sacerdotes, os magos e seus seguidores seculares, reinserindo-se a
análise de Weber no esquema estrutural bourdieusiano. Uma vez
que isso esteja feito, a dinâmica do campo religioso e a transfor-
mação dos próprios conteúdos religiosos podem ser explicadas
em termos de uma análise das “transações entre os especialistas e
a população leiga que são estabelecidas com base nos diferentes
interesses e relações de competição que opõem os diferentes
especialistas no interior do campo religioso” (Bourdieu, 1971b:
313). De fato, para decifrar o significado e as funções sociológicas
das ações religiosas, é necessário considerar os interesses religiosos
daqueles que produzem, difundem e recebem mensagens reli-
giosas. Enquanto os especialistas religiosos têm um interesse na
acumulação do capital “religioso” e competem, portanto, pelo
monopólio da administração dos bens de salvação e pelo exercício
legítimo do poder religioso sobre a população leiga, entendido
como o poder de inculcar duravelmente um habitus religioso na

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mesma, a população leiga tem um interesse nas mensagens dos
especialistas na medida em que, de acordo com suas respectivas
posições no campo das classes, seus membros necessitem, seja
de uma justificação de seus privilégios sociais (classe dominante),
seja de compensação para sua relativa deprivação (classe
dominada). A oferta de “teodiceias” (Leibniz) pelos especialistas
encontra, portanto, seu complemento na demanda de “sociodi-
ceias” (Bourdieu) pelas massas. De acordo com a demanda destas,
a oferta daqueles flutua. Se as classes populares, e especialmente
os camponeses, pressionadas pela urgência econômica, buscam
sobretudo gratificação imediata, a qual encontram na manipu-
lação mágica profana e profanadora de demônios pelos magos,
as outras classes, menos pressionadas pela urgência econômica,
o que explica por que elas podem se distanciar da sua situação
imediata, possuem uma demanda pela sistematização das repre-
sentações religiosas e pela moralização das práticas religiosas
(Weber, 1966: 252-256; Weber, 1972: 259). Elas se dirigem seja
à Igreja e aos seus sacerdotes, seja aos profetas e às suas seitas.
Em qualquer momento dado, a estrutura do campo religioso
é determinada pelo balanço de poder resultante das lutas
passadas pelo monopólio da administração de bens religiosos
entre os sacerdotes, os profetas e os magos, monopólio que é ele
mesmo uma função da extensão em que todos estes conseguem
mobilizar as massas e satisfazer às suas demandas. A Igreja, que
reivindica um monopólio da interpretação legítima do mundo,
está sempre confrontada com a possibilidade de competição
por parte do profeta, que oferece uma interpretação sistemática
alternativa do mundo, bem como do mago, que responde a
demandas pontuais pragmáticas. O profeta, um produto
herético de uma visão sistemática do mundo, se opõe à Igreja, essa
instância de reprodução do “carisma rotinizado” (Weber, 1972:
142-148), e à sua ortodoxia. Engajado em estratégias de subversão
da ortodoxia reinante, o profeta tenta convencer as massas de sua
interpretação rival do mundo. O caráter bem ou malsucedido de tal
esforço não depende tanto do seu carisma pessoal, como Weber
pensou, mas da demanda das massas, especialmente dos intelectuais
proletaroides, assim como das tensões sociais que reinam no
interior da Igreja e no mundo mais amplo. Na medida em que
profetas e heréticos tendem a aparecer às vezes em momentos
de crise social e pregar àqueles que já estão convertidos, sua

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aparição deve ser explicada em relação à figuração particular
formada pelos sacerdotes, a população leiga e o profeta.
Para conter as estratégias de subversão do profeta e a compe-
tição com o mago, a Igreja responde com duas estratégias típicas
de conservação. De um lado, ela impõe uma ritualização crescente
das práticas religiosas e a anexação das crenças mágicas; de outro,
ela adapta sua mensagem original e a reinterpreta para apelar
a uma audiência mais ampla, introduzindo assim uma ambigui-
dade fundamental através da qual, graças à “recepção seletiva”
(Bourdieu, 1971b: 315) relativa à posição ocupada na estrutura
social, todas as categorias da população podem encontrar a si
mesmas naquela mensagem. Dado que a autoridade religiosa e
o poder secular que as instâncias religiosas podem mobilizar em
sua luta por legitimidade religiosa não são nunca independentes
do peso da população leiga que tais instâncias mobilizam, as lutas
travadas no campo religioso não são apenas sobredeterminadas
pela estrutura de relações de poder entre as classes no campo do
poder, mas também têm inevitavelmente implicações para esse
campo. Essa homologia estrutural entre os dois campos explica
por que a luta no campo religioso produz “formas eufemizadas”
(Bourdieu, 1977b: 410) da luta política e econômica entre as
classes e como as estratégias para a conservação da ordem
simbólica contribuem diretamente para a conservação da ordem
política, enquanto as estratégias de subversão da ordem simbólica
só podem afetar a ordem política quando são acompanhadas pela
subversão política dessa ordem. Assim, como pessoa de situações
extraordinárias, o profeta só pode ser revolucionário se a própria
situação está em um estado revolucionário.

O CAMPO CIENTÍFICO
Poderíamos argumentar plausivelmente que o núcleo das
novas sociologias “radicais” da ciência consiste em uma “correção
e expansão” (Lynch, 1993: 42) contínuas da Wissenssoziologie de
Mannheim, orientadas no sentido da inclusão das ciências exatas,
as quais Mannheim explicitamente eximiu do alcance da sua
sociologia (Mannheim, 1936: 43, 179, 272; Mannheim, 1952: 170).
E, de fato, do mesmo modo que o chamado “programa forte”
(Bloor, 1991: 3-23) da sociologia do conhecimento científico só
faz sentido se colocado contra o pano de fundo da sociologia do

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conhecimento de Mannheim, o contínuo interesse de Bourdieu
na sociologia do campo científico (Bourdieu, 1976; Bourdieu,
1990; Bourdieu, 1997c; Bourdieu, 2001) deve ser visto como uma
tentativa de generalizar a tese da determinação social das ideias
de Mannheim. Em um ensaio premiado de 1928, intitulado A
competição como um fenômeno cultural (Mannheim, 1952: 191-
229) – texto que antecipa em larga medida a sociologia da ciência
de Bourdieu –, o jovem Mannheim defende a tese da “relatividade
existencial do conhecimento”.59 Essa tese não estipula que todo
conhecimento pode ser simplesmente reduzido às circunstâncias
sociais da sua produção (o erro do epifenomenalismo), mas
sim que tanto a produção como a recepção do conhecimento
científico sócio-histórico são social e historicamente determinadas.
Do mesmo modo que a produção do conhecimento é uma função
das posições sociais particulares que os vários grupos ocupam
na estrutura social, sua recepção (seleção) é função de uma certa
formação da mente (incluindo sua estrutura categorial), ela mesma
ligada a uma posição social particular.60 Mais particularmente,
Mannheim quer mostrar que o “fenômeno sociológico geral da
competição” (Mannheim, 1952: 195-196), do qual a competição
econômica é apenas um caso particular, pode e deve explicar a
dinâmica da produção social do conhecimento cultural. Na me-
dida em que o movimento do pensamento depende, em última
instância, das tensões que dominam a esfera social, o conflito
teórico está sempre relacionado ao conflito social, sendo sobre-
determinado por este.

Do ponto de vista das ciências sociais, toda peça histórica,


ideológica, sociológica de conhecimento (ainda que se prove ser
a Verdade Absoluta) está claramente enraizada no desejo de
poder e reconhecimento de certos grupos sociais particulares
que querem tornar sua interpretação do mundo a interpretação
universal (Mannheim, 1952: 196-197).

A luta pela interpretação pública da realidade (ou, pelo menos,


pelo prestígio que vem com ela) é, portanto, o objetivo pelo qual as
pessoas lutam, e as diferentes interpretações do mundo geralmente
correspondem às posições sociais particulares que elas ocupam
em sua luta pelo poder. Parafraseando Clausewitz, poderíamos
dizer, portanto, que a ciência é a política perseguida por outros
meios (Latour, 1984: 257).

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É contra este pano de fundo mannheimiano da relação social
geral de competição que podemos apreciar melhor o enorme
talento de Bourdieu para concretizar ideias abstratas. Como
Mannheim, Bourdieu inicia sua análise do campo de práticas
científicas com a proposição de que este é a arena de uma luta
competitiva, cujo objetivo (enjeu) particular é o monopólio da
autoridade científica. A relativa indiferença de cientistas em
relação ao dinheiro e ao poder não deve esconder o fato de que
todas as suas práticas são orientadas para a aquisição e acumulação
de capital científico (autoridade, prestígio, reconhecimento,
celebridade etc.), que é uma instância particular do capital social,
o qual pode então, é claro, ser convertido para outras formas de
capital (e.g., capital econômico). O campo científico é altamente
autônomo (“campo restrito de produção cultural”). É apenas porque
este segue suas próprias leis imanentes (as leis do mercado
acadêmico são iredutíveis às leis do mercado stricto sensu) e gera
seus próprios valores e imperativos (universalismo, comunismo,
desinteresse e ceticismo organizado [Merton, 1968: 604-615]) que
os interesses dos cientistas aparecem como desinteressados. Uma
vez que entendamos, entretanto, que os interesses no conhe-
cimento (Erkenntnisinteressen) dos cientistas são estritamente
internos ao campo em que eles desempenham um papel quase
econômico e quase político, podemos compreender também por
que os cientistas têm um “interesse no desinteresse” (Bourdieu,
1976: 94; ver também Bourdieu, 1994: 149-167) e podem obter o
lucro de verem a si próprios e de serem vistos pelos outros como
desinteressados pela forma vulgar de lucro (ver também Mulkay,
1976). Suas estratégias de desinvestimento aparente são estratégias
de segunda ordem, que dissimulam as estratégias de investimento
de primeira ordem pelas quais buscam, conscientemente ou não,
“fazer um nome para si mesmos”, fazer seu próprio nome (e
para alguns até seu primeiro nome, como o Gilberto ou o Jessé)
conhecido no campo dos colegas competidores.
A luta que os cientistas travam no interior do campo é
sempre uma luta pelo poder de determinar a definição da ciência
mais adequada aos seus interesses específicos, definição que,
se aceita como legítima, os levaria a ocupar com legitimidade
a posição dominante no campo. E, dado que não há árbitro
externo e imparcial, as reivindicações de legitimidade científica-e-
-política são sempre uma função do poder relativo dos grupos em

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competição. A partir dessa perspectiva conflitual sobre o campo
da produção científica, a qual relaciona sistematicamente a
luta pelas “relações de definições” (Beck, 1988: 211-226) às
“relações de produção” que estruturam as posições no campo,
até mesmo “conflitos epistemológicos” (e.g., realismo versus
empiricismo versus racionalismo etc.) podem ser analisados como
“conflitos políticos” (Bourdieu, 1976: 90). Dependendo do estado da
competição no mercado acadêmico, que pode variar, como
mostrou Mannheim, da posição de monopólio de um grupo
particular à competição atomística entre uma multiplicidade de
grupos competidores (Mannheim 1952: 207-210), a oposição
entre as estratégias “sacerdotais” de conservação e as estratégias
proféticas de subversão da estrutura do campo assumem diferentes
significados e funções.
A situação de monopólio é caracterizada por um conflito
permanente entre os estabelecidos – os quais, em uma tentativa de
defender a ortodoxia reinante e manter seu monopólio dos meios
de produção intelectual (controle sobre o treinamento educacional,
instâncias de consagração e revistas científicas), selecionam cuida-
dosamente seus sucessores e tentam impedir a entrada de heréticos
recém-chegados no jogo – e os “heréticos” – como Einstein ou Marx,
que se revoltam não apenas contra o establishment científico,
mas também contra o establishment social como tal. À medida
que os recursos científicos acumulados aumentam, o capital
científico incorporado necessário para apropriá-los e, assim,
para ter acesso a problemas e ferramentas científicas também
aumenta. O custo de entrada no campo torna-se cada vez maior.
Como resultado, o grau de homogeneidade entre os competidores
aumenta e a oposição entre as estratégias de sucessão da fração
dominante e as estratégias de subversão da fração dominada tende
a perder seu significado. Até mesmo os outsiders são agora, de
certo modo, estabelecidos, e as disputas que são travadas entre os
competidores se desenrolam contra o pano de fundo da doxa
indisputada (“consenso no dissenso”), tomada como evidente por
todas as partes em luta e nunca colocada em questão por elas.
À medida que a competição torna-se institucionalizada
de capital necessária à realização de revoluções científicas
tende crescentemente a ocorrer de acordo com proce-
dimentos regulados, as grandes revoluções periódicas são
substituídas por uma multiplicidade de pequenas revoluções

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permanentes e crescentemente despidas de efeitos políticos. Em
suma, o campo científico se torna mais autônomo e, conforme
se torna mais autônoma e autorregulada, a razão científica
progride e eventualmente a “força da razão” (Kant) torna-se a
única forma de força reconhecida e legitimamente utilizada no
campo. Neste ponto, Bourdieu se junta a Apel e Habermas, mas
com essa diferença notável: a razão não é mais considerada como
um universal trans-histórico, mas como o resultado histórico da
progressiva institucionalização de discussões racionais no campo
da ciência (Bourdieu, 1997a: 111-151)61 e, o que é possível e
desejável, também no mundo mais amplo – embora isso
dependa da institucionalização das condições de discussão racional
em outros campos altamente autônomos da produção cultural
(Bourdieu, 1989: 548-559; Bourdieu ,1992: 459-473; Bourdieu, 1993b;
Bourdieu, 1994: 164-167, 239-244).62 De acordo com Bourdieu, as
ciências sociais ainda não atingiram essa autonomia. Diferente-
mente dos campos científicos, capazes de produzir e satisfazer um
interesse estritamente científico e, assim, de manter um processo
dialético de crítica mútua e racional a partir do qual a razão surge
e se desenvolve, “os campos de produção de discursos eruditos”
(Bourdieu, 1976: 100) são altamente dependentes de instâncias
externas, e o aparente esoterismo dos “doxósofos” não deveria
esconder a dependência exotérica que eles mantêm em relação
a demandas sociais. “Falsamente autônomas” e operando com
uma “falsa ruptura” com o senso comum e os interesses reais
das classes dominantes, as ciências sociais são “falsas ciências”,
condenadas a produzir e manter “falsas consciências” (Bourdieu,
1976: 100-103). Apresentando-se com as aparências tecnológicas
da cientificidade (e.g., modelos log-lineares, análises de trilha
etc.) e com a retórica da cumulatividade (e.g., neomarxismo,
neofuncionalismo etc.), as ciências sociais não buscam se realizar
como ciências reais, mas apenas realizar a imagem oficial da
ciência. E até mesmo os sociólogos radicais, incluindo aqueles da
Escola de Frankfurt, que contestam o “consenso ortodoxo” e se
alinham com as classes dominadas, permanecem negativa, porém
necessariamente, presos às pressuposições da falsa ciência dos
seus colegas do mainstream. “Os conflitos manifestos entre as
tendências e doutrinas mascaram, para os próprios participantes,
a cumplicidade subjacente que eles pressupõem e que chama a
atenção do observador externo ao sistema” (Bourdieu, 1966: 902).

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Ao invés de revelarem reflexivamente as pressuposições dos seus
oponentes, eles assumem-nas, e as oposições que estabelecem
(consenso versus conflito, análise quantitativa versus análise
qualitativa, objetivismo versus subjetivismo etc.) funcionam como
várias “armadilhas especulares” (mirror-traps) (Bourdieu, 1991:
383). Assim, apenas os sinais são invertidos e, ao fim do dia, a
oposição mútua mostra que o mesmo jogo foi jogado mais (e
mais) uma vez.
Bourdieu sustenta que uma “sociologia reflexiva” (Bourdieu;
Chamboredon; Passeron, 1973: 95-106; Bourdieu, 1982a; Bourdieu,
1984a: 9-51; Bourdieu; Wacquant, 1992: 45-70), uma sociologia
da sociologia capaz de objetivar o sistema completo de posições
que engendra as estratégias rivais, permite que ele transcenda
a “rivalidade mimética” (Girard, 1982) opondo os aliados
objetivos. Retoricamente, esse movimento baseia-se na distinção
mannheimiana entre as concepções “especial particular” e
“total geral” de ideologia (Mannheim, 1936: 55-58, 264-286),
que Bourdieu agora reformula em termos de uma distinção
radical entre os usos “polêmico” e “reflexivo” da sociologia do
conhecimento (Bourdieu, 1983b: 51): no primeiro caso, a
sociologia do conhecimento é utilizada para desqualificar as estra-
tégias dos oponentes (“Fulano é um pequeno burguês” – o soció-
logo é sempre o melhor crítico dos seus oponentes); no segundo
caso, ela é utilizada para objetivar o campo inteiro, incluindo a
posição que se ocupa (sociologia autorreflexiva por meio de uma
“objetivação participante” [Bourdieu; Wacquant, 1992: 48], i.e.,
da auto-observação através da objetivação do sujeito objetivante
e da sua relação com o objeto). De acordo com Bourdieu, a
objetivação sistemática do campo como a totalidade de posições
possíveis e de seus correspondentes pontos de vista (prises de
positions), que ele opõe às objetivações parciais e interessadas
dos agentes envolvidos no campo, “permite que se estabeleça
a verdade das diferentes posições e os limites da validade dos
diferentes pontos de vista” (Bourdieu, 1997c: 38-39).
Esse movimento bachelardiano pelo qual o autor de Homo
Academicus tenta criar uma terceira posição para ele mesmo é, no
entanto, problemático, primeiramente porque ele próprio afirmou
claramente que não há, e não poderia haver, uma posição inde-
pendente sobre o campo advinda do interior do próprio campo.
Em segundo lugar, porque a aplicação reflexiva da sua própria

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sociologia à sua própria sociologia desmascara sua posição epis-
temológica como uma posição ideológica e, assim, como um
movimento interno ao próprio campo. E, de fato, tudo se passa
como se Bourdieu estivesse apenas reintroduzindo no campo
da sociologia uma versão reelaborada da distinção ideológica de
Althusser entre ciência e ideologia, de maneira a transcender a
oposição entre a sociologia radical e a ortodoxa. E, até mesmo
mais problematicamente, se esse movimento não é polêmico,
mas reflexivo, não “cínico”, mas “clínico” (Bourdieu, 1996: 68),
então a questão permanece sendo: como pode ele ter acesso
à posição de “espectador imparcial”, observando suas próprias
observações e aquelas dos outros, vendo o que eles não veem e
talvez até o que ele não vê?63 Com efeito, este parece ser o ponto
em que a sociologia bourdieusiana torna-se algo divino – “socio-
logia bourdivina”. Ainda que Bourdieu fosse tentado às vezes a
totalizar e fechar seu próprio esquema totalizante, ele estava, de
fato, alerta aos problemas deste tipo de procedimento, como pode
ser inferido de sua altamente reflexiva aula inaugural sobre a aula
no Collège de France, em que ele alerta explicitamente contra
as tentações platônicas e hegelianas da “intelligentsia livremente
flutuante” ao notar que “não se deve esperar de um pensamento
sobre os limites que dê acesso a um pensamento sem limites”
(Bourdieu, 1982a: 23).
Bourdieu sempre foi um intellectuel engagé (e também
enragé). Embora ele tenha tendido a manter alguma separação
residual entre ciência e política, a natureza política das suas
empreitadas científicas tornou-se clara, ao final de sua carreira,
não apenas para os leitores de Libération, o suplemento político
internacional a Actes de la Recherche en Sciences Sociales, mas
também para a audiência mais ampla de leitores de Libération,
Le Monde e Le Monde Diplomatique.64 No verdadeiro espírito
do Esclarecimento, avançando a ciência em nome da eman-
cipação e a emancipação em nome da ciência, o mais famoso
sociólogo da França escolheu intervir como um agitador político na
esfera pública para dar voz aos excluídos (os desempregados e os
pobres, os gays e as lésbicas, os intelectuais argelinos e os
imigrantes ilegais na França etc.) e subverter a hegemonia
neoliberal. De fato, desde a greve de dezembro de 1995 (ver
Duval et al., 1998), Bourdieu multiplicou suas intervenções “por
uma esquerda na esquerda” (Bourdieu, 1998c) – e não por uma

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“esquerda da esquerda”, como seus inimigos gostavam de mal
interpretá-lo –, analisou criticamente e atacou os intelectuais
midiáticos e outros fast thinkers por sua cumplicidade com
as classes dominantes (Bourdieu, 1996), propôs uma série de
poderosos argumentos para se contrapor ao ataque ao Estado
de bem-estar social e à política global da “flexploração” com
uma proposta para um estado social europeu (Bourdieu, 1998a)
e, por último, mas não menos importante, lançou uma série
bem-sucedida de pequenos livros financeiramente acessíveis,
bem documentados e legíveis, cujo formato lembra o dos Kleine
Politische Schriften de Habermas e que eram “animados pela
vontade militante de difundir o conhecimento indispensável à
reflexão e à ação políticas em uma democracia (“Preâmbulo” para
Halimi, 1997).65 Como o principal porta-voz de um “intelectual
coletivo autônomo”, Bourdieu, com sua estratégia metapolítica
de tipo gramsciano que buscava subverter a hegemonia cultural
do neoliberalismo (tanto na direita como na esquerda – “a troika
Jospin-Blair-Schröder”), foi tão bem-sucedido que teve de negar
publicamente as especulações selvagens de que criaria um novo
partido político e se apresentaria como candidato nas eleições
de 1999 para o Parlamento Europeu (“O candidato Bourdieu não
existe”, Libération, 27/8/1998).

CONCLUSÃO: DA CRÍTICA À RECONSTRUÇÃO

No fim das contas, o estruturalismo gerativo de Bourdieu


pode ser visto como uma reflexão sociofilosófica e variação
empírico-teórica sobre o tema do pensamento relacional, as quais
permitem que ele “deixe as categorias dançar”, como disse Marx
em outro contexto, “ao som de suas próprias melodias políticas”.
De fato, movendo-nos progressivamente, e rio abaixo, ao longo
do continuum das abstrações científicas, partindo de reflexões
filosóficas, epistemológicas e metateóricas sobre uma teoria
social relacional até chegarmos a suas implementações teóricas,
metodológicas e empíricas em uma sociologia dos campos, vimos
como o argumento de Bourdieu pode ser internamente recons-
truído como uma transposição sistemática, das ciências naturais às
ciências sociais, da reformulação bachelardiana e cassireriana
do ultrajante enunciado de Hegel segundo o qual o “real é racional”

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e o “racional real”. A centralidade do modo de pensamento
relacional para o projeto de Bourdieu está provada pelo fato
de que as duas preocupações metassociológicas centrais que
guiaram seu programa de pesquisa durante quarenta anos
– nomeadamente, a substituição de uma concepção substancialista
por uma concepção relacional da realidade social e a transcen-
dência da antinomia fundamental entre abordagens subjetivistas
e objetivistas no estudo da vida societária – podem ser respec-
tivamente interpretadas como uma aplicação horizontal e uma
aplicação vertical deste modo relacional de produção intelectual.
Se a primeira preocupação metassociológica encontrou seu caminho
sociológico em uma teoria conflitual das propriedades dos campos
sociais e em uma impressionante série de investigações empíricas dos
diferentes campos de produção, distribuição e consumo cultural,
a segunda levou à recuperação sociológica das descrições feno-
menológicas do habitus em uma sofisticada teoria das práticas e
de seu papel na reprodução das estruturas. Juntas, a teoria dos
campos e a teoria do habitus (com suas parafernálias teóricas:
autonomia relativa, capital, illusio, interesse, libido etc.), que estão
de tal modo internamente relacionadas que uma instância pode
aparecer seja como meio prático (modus operandi), seja como
consequência (opus operatum) da outra, formam o “núcleo duro”
do programa progressivo de pesquisa de Bourdieu.
Se minha reconstrução interna do estruturalismo gerativo
mostrou consistentemente o que Bourdieu deve a outras teorias
(de Bachelard, Cassirer etc.), como sua teoria se entrelaça com
outras teorias (de Elias, Mannheim etc.) ou até mesmo como
ela poderia se beneficiar de outras teorias (do realismo crítico,
Giddens, Habermas etc.), isto não foi feito para negar sua
originalidade, tampouco para depreciar seu incomparável
talento, mas com um olhar dirigido à exploração da possibilidade
de alianças (meta)teóricas e coalizões político-intelectuais entre
diferentes tendências de pensamento. A reconstrução interna
do sistema de teorias de Bourdieu que propus foi toda ela
inspirada no motivo dialético da “crítica imanente” (Benhabib, 1986:
1943). Recusando o uso de elementos e critérios de julgamento
externos à teoria, uma crítica imanente segue de perto as
curvaturas da teoria e busca julgá-la de acordo com seus próprios
critérios, argumentando assim contra a teoria a partir de dentro
da mesma, não para refutá-la, mas no intuito de descobrir e, em

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última instância, de remediar suas tensões e limites, de modo a
tornar a teoria mais forte e coerente.
Nessa veia dialética, avancei duas críticas principais a
Bourdieu. Primeiramente, uma crítica epistemológica. De maneira
a evitar a “falácia epistêmica” que reduz questões ontológicas
a questões epistemológicas, ele deveria ter afastado todos os
equívocos em torno de interpretações racionalistas e realis-
tas de seu trabalho, abandonado o estratagema convencio-
nalista do “como se” e colocado sua teoria nas sólidas fundações
ontológicas que o realismo crítico estava muito feliz em oferecer.
O mundo social não é um reflexo analógico das relações que a
teoria descreve (racionalismo), mas o inverso é que é verdadeiro.
Se Bourdieu quisesse que sua teoria crítica do social fosse criti-
camente avaliada, de modo que ela pudesse, por sua vez, avaliar
criticamente o social, se ele quisesse que sua teoria desse conta
do mundo social e produzisse efeitos neste, então ele tinha de ter
pressuposto, em última instância, que o mundo social era mais
do que um efeito epistêmico da sua teoria. Em segundo lugar,
também avancei uma crítica metateórica. Se Bourdieu quisesse
tornar sua teoria sociológica mais alinhada às suas intenções
políticas, ele deveria ter aberto seu sistema, evitado descrições
deterministas da reprodução estável e concedido o que era devido
ao voluntarismo. Isto pressupunha que a criatividade do habitus
fosse abertamente reconhecida e que a cultura fosse vista não
apenas como violência simbólica sublimada, não apenas como
um instrumento de dominação, mas também como um instru-
mento de libertação. Afinal de contas, uma teoria crítica não é
apenas aquela que descobre a natureza arbitrária da necessidade
social (dominação), mas também aquela que é capaz de revelar a
possibilidade do improvável (emancipação). Ela certamente
descreve práticas reprodutivas, mas apenas para estimular a
práxis; e, se ela analisa os mecanismos pelos quais os atores são
reduzidos a agentes (para não dizer meros suportes de estruturas),
é apenas para contribuir para a construção de “algo como um
sujeito” (Bourdieu, 1980: 41). Como afirma Gabriel Peters,

a o amplificar a consciência dos determinismos que coagem a


conduta social, não apenas daqueles que se exercem sobre os
atores a partir de “fora”, mas também “através” dos atores a partir
de “dentro”, isto é, pela mediação das disposições práticas
socializativamente internalizadas em suas subjetividades, Bourdieu

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pretende oferecer armas eficientes de contra-atuação sobre essas
estruturas e mecanismos coativos e contribuir com a consecução
de uma margem de liberdade em relação aos mesmos (Peters,
2006: 135-136; Peters, 2008: 26).66

Tardiamente, nos seus humores mais militantes e apelos políticos


a uma Realpolitik da Razão (Bourdieu, 1992; Bourdieu, 1994;
Bourdieu, 1997a), Bourdieu reconheceu a espontaneidade da
ação e a eficácia das ideias. Mais recentemente, ele até deixou de
lado suas criticas teóricas do Estado e dos seus assim chamados
“aparatos ideológicos” para defender o valor universal da
educação (Areser, 1997) e o Estado de bem-estar social (Bourdieu,
1998a: 34-50, 66-75) contra seus detratores monetaristas; mas
estas concessões políticas ainda precisavam encontrar expressão
teórica no seu corpus científico.
E, finalmente, uma questão: Por que não ir mais longe, perfa-
zendo o caminho desde uma teoria crítica da dominação até uma
teoria política da emancipação, e daí para uma teoria normativa
da ética? Se uma sociologia crítica pressupõe não apenas uma
análise das forças da dominação social, mas também uma análise
das forças sociais da emancipação, bem como a possibilidade
de uma política transformativa emancipatória, então ela também
pressupõe uma ética, ou, ao menos, alguma formulação de
critérios normativos de julgamentos morais e alguma indicação
da “boa vida”. Bourdieu nos deu sua crítica da razão pura e sua
crítica do juízo, mas gostaríamos de ter visto também sua crítica
da razão prática.67
Tradução de Gabriel Peters

(Capítulo publicado originalmente em: VANDENBERGHE, Frédéric.


The real is relational: an inquiry into Pierre Bourdieu’s Constructivist
Epistemology. Sociological Theory, v. 17, n. 1, p. 32-67, 1999.)
Gostaria de agradecer a Craig Calhoun, Löic Wacquant, Jeffrey Alexander,
Saa Méroe, Bridget Fowler, Frank Papon, Peter Wagner, Steve Woollgar,
Mike Lynch, Dick Pels, José Maurício Domingues e Gabriel Peters pelos
comentários e críticas construtivas. Não fosse por dois pareceristas
anônimos de Sociological Theory, este capítulo teria a metade de sua
extensão, mas também a metade de sua qualidade.

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C A P Í T U LO 2

A ERA DOS EPÍGONOS


A TEORIA SOCIAL PÓS-BOURDIEUSIANA NA FRANÇA

Os franceses não produzem apenas alta-costura, bons vinhos


e queijos finos; também produzem intelectuais sofisticados e
exportam seus preciosos pensamentos como itens valiosos de
consumo e distinção acadêmicos. O sistema educacional elitista
e altamente centralizado das grandes écoles é singularmente
apropriado para a produção de batalhões bem treinados de
pensadores altamente cultivados, polivalentes, originais e
provocativos, tais como Foucault, Bourdieu e Derrida, os quais
estabelecem a agenda intelectual em todo o mundo. Invejosos,
de certo modo, diante do espírito francês, sociólogos de outros
países frequentemente pensam na França como um país em
que todo sociólogo na ativa é, por natureza, um teórico social
que combina elegância com profundidade e engajamento. Mas,
paradoxalmente, se a república conta de fato com um impressio-
nante número de teóricos sociais internacionalmente famosos, ela
não conhece a teoria social como tal, pelo menos se entendida
como o subcampo relativamente autônomo da sociologia que
busca construir uma visão unificada do mundo social através da
exegese dos clássicos (Marx, Weber, Durkheim) e da reconstrução
ou desconstrução do cânone contemporâneo.
Na França, o sociólogo não deve trabalhar na teoria pela
teoria. O erudito que submete os textos sociológicos a uma
investigação ontológica, epistemológica e ideológica não está
fazendo teoria social, mas epistemologia.1 Desconfiada diante

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das elaborações escolásticas dos “idealistas sem ideal” e das
especulações dos “materialistas sem material”, a sociologia francesa
permaneceu durkheimiana a esse respeito. Se se quer enfrentar as
grandes questões teóricas, pode-se fazê-lo, mas apenas através de
estudos de caso ou do trabalho de campo investigativo. O
trabalho de Bourdieu é exemplar nesse sentido, mas não excep-
cional. Touraine desenvolveu a perspectiva acionalista acerca da
ação histórica enquanto fazia pesquisa sobre a consciência da
classe operária nas fábricas da Renault; Michel Crozier teorizou
os “círculos viciosos da burocracia” no curso de uma análise das
estratégias de poder na administração de dois empreendimentos
públicos; Edgar Morin expandiu sua teoria sistêmica da comple-
xidade com uma análise multidimensional da mudança social
na pequena vila de Plozevet; e, mais recentemente, Albert Piette
(1992) desenvolveu, paradoxalmente, uma grandiosa teoria da
teorização em modo menor.

TRêS GERAÇÕES DE SOCIOLOGIA

A despeito de sua institucionalização precoce em torno


de Durkheim, Mauss e da revista L’Année Sociologique, a
sociologia francesa permaneceu, durante um longo tempo, sob as
asas da filosofia. Na verdade, foi apenas após a Segunda Guerra
Mundial que a sociologia tornou-se plenamente reconhecida
como uma disciplina autônoma, com sua própria agenda de
pesquisa e currículo de ensino. Desde então, três gerações de
sociólogos emergiram. Nos anos 1950 e 1960, o campo foi
largamente dominado (da direita à esquerda) por Raymond
Aron, Claude Lévi-Strauss, Georges Gurvitch, Lucien Goldmann
e Louis Althusser. Após 1968, Pierre Bourdieu, Alain Touraine,
Michel Crozier e Raymond Boudon assumiram o campo principal
da sociologia.2 A “gangue dos quatro” controlaria efetivamente
o campo até o final dos anos 1980, deixando as margens para
sociólogos pós-modernizantes como Michel Maffesoli, Pierre
Sansot e Jean-Claude Kaufmann, que se agrupam em torno de
Georges Balandier, um socioantropólogo político, e publicam na
sua revista Cahiers Internationaux de Sociologie.
Se o “estruturalismo genético” de Bourdieu e a “sociologia
acionalista” de Touraine são relativamente bem conhecidos no

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exterior (inclusive no Brasil, graças, nesse último caso, à mediação
de Fernando Henrique Cardoso, que foi assistente de Touraine
em Nanterre), o mesmo não pode ser dito do “individualismo
metodológico” de Boudon e, menos ainda, da “análise estratégica”
de Crozier. Nos anos 1980, Touraine propôs uma reconceituação
dos movimentos sociais como Sujeitos em busca de significado, ao
invés de portadores da “historicidade”. Desde os anos 1990, seu
pensamento assumiu uma inflexão personalista e uma tonalidade
trágica. Ele agora concebe a modernidade “tardia” (ou “baixa”)
em termos de uma dissociação entre o sistema e o ator, enquanto
a sociedade, que costumava constituir a articulação entre ambos,
se partiu em um mundo global de coisas e um mundo tribal de
identidades (Touraine, 1997). O “individualismo metodológico”
representa a variante francesa da teoria da escolha racional. Para
escapar ao utilitarismo estrito desta última, Boudon ampliou o
conceito de racionalidade. Assumindo uma posição contra o
relativismo, sua sociologia do conhecimento explora e explica
“escolhas erradas” em termos de “boas razões”. Tardiamente, o
antigo colaborador de Lazarsfeld buscou inclusive reconsiderar
a racionalidade com relação a valores de Weber ao longo de
linhas similares (Boudon, 1995). Enquanto o “individualismo
metodológico” aparece como uma reformulação moderada da
escolha racional, a “análise estratégica” representa uma aplicação
da análise da racionalidade limitada à sociologia das organizações.
Em L’acteur et le système, Crozier e Friedberg (1977) desenvol-
veram um quadro de referência sistemático para a análise das
relações de poder no interior de organizações. Concentrando-se
sobre as “margens de liberdade” que os atores sociais podem
manipular estrategicamente de modo a avançarem seus próprios
interesses, eles analisam as organizações como construções
contingentes e coletivas derivadas da ação organizada.
Nos anos 1980 e 1990, uma nova geração de sociólogos, teóricos
sociais e filósofos políticos emergiu na cena. Reagindo contra
os novos “mestres da suspeita” pós-estruturalistas – bourdieu (o novo
Marx), Foucault (o novo Nietzsche), Lacan (o novo Freud) e
Derrida (o novo Heidegger) –, eles introduziram uma mudança
paradigmática nas ciências sociais: do estruturalismo e da crítica da
dominação para o pragmatismo, a fenomenologia e a hermenêutica
da interpretação. 3 Os sociólogos que se voltaram para a
ação insistem, com Ricœur, Habermas, Dewey e Garfinkel –

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mas contra Bourdieu –, nas capacidades reflexivas do agente.
Influenciados pela “virada linguística” nas filosofias analítica e
continental, eles seguem a trilha do pragmatismo estadunidense,
do interacionismo simbólico, da fenomenologia e da etnometodo-
logia, buscando superar a oposição entre agência e estrutura por
meio de uma análise construtivista da interação situada.4 Mesmo
que as novas sociologias sejam variadas, elas apresentam, não
obstante, algumas interessantes “semelhanças de família”: reação
contra o determinismo da teoria da reprodução de Bourdieu e, em
uma menor extensão, o historicismo da sociologia dos movimentos
sociais de Touraine; forte influência da filosofia anglo-saxã, da
hermenêutica continental e da microssociologia americana; abor-
dagem multidisciplinar do mundo social com particular atenção
à antropologia, à história e à economia; combinação entre grand
theory e grounded theory através de minuciosas análises etnofi-
losóficas da ação; insistência sobre a competência ordinária dos
atores, articulada a tentativas de introduzir a sociedade, a história
e a política por meio de intervenções na esfera pública ou, ao
menos, nas colunas dos principais jornais de qualidade.
Bourdieu é um monumento da sociologia francesa do pós-
-guerra. Sua posição no campo francês pode ser facilmente
comparada àquela que Parsons ocupou no campo estaduni-
dense até os anos 1960. Goste-se disso ou não, sua influência é
tamanha que é preciso pensar com ou contra Bourdieu. Os mais
interessantes desenvolvimentos na sociologia francófona são
definitivamente pós-bourdieusianos, embora não necessariamente
antibourdieusianos. No capítulo que se segue, apresentarei
primeiramente as publicações póstumas de Pierre Bourdieu
e, em seguida, partirei para a sociologia pós-bourdieusiana
propriamente dita. Na ordem, exporei a sociologia pragmática
de Luc Boltanski, Laurent Thévenot e Eve Chiapello, a teoria
do ator-rede de Bruno Latour e Michel Callon, os estudos de
mediação de Régis Debray, a filosofia política de Marcel Gauchet e
a sociologia da dádiva de Alain Caillé e, atravessando o Atlântico,
concluirei com a Escola de Montreal liderada por Michel Freitag.
Na tentativa de desprovincianizar a teoria social, também adicionei
um pós-escrito sobre novas tendências na sociologia mundial.

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PUBLICAÇÕES PÓSTUMAS DE PIERRE BOURDIEU

Algumas pessoas são esquecidas antes de sua morte; outras,


como Pierre Bourdieu (1930-2002), expiram sob o brilho da
publicidade. Ainda que a publicação da quase totalidade de suas
intervenções na esfera pública – da guerra na Argélia àquela na
Bósnia e da reforma das universidades ao seu ataque mordaz à
mídia (Bourdieu, 2002a) – tenha mostrado que ele foi sempre um
“animal político”, foi apenas na última década de sua vida que
ele deliberadamente assumiu o papel do “intelectual total” à la
Sartre e tornou-se uma celebridade nacional. Em La sociologie est
un sport de combat, um documentário de Pierre Carles lançado
em 2001, observa-se o proeminente sociólogo viajando o país
para criticar a política neoliberal da globalização, dando voz aos
“sem” (les sans), aqueles que não têm voz, trabalho, documentos,
nada. Desde sua morte, Loïc Wacquant (1999; 2000; 2006), seu
intérprete transatlântico que estuda boxe, guetos e prisões nos
Estados Unidos e que, na última década, já esteve sete vezes no
Brasil para estabelecer um laboratório ao ar livre de pesquisa
da violência, parece haver herdado o habitus pugilístico de seu
mestre.5
Esboço de uma auto-análise, um ensaio autobiográfico,6 foi
primeiramente publicado em alemão (!) em 2002 (Bourdieu,
2002b). Esse texto estende a palestra final do curso sobre a socio-
logia reflexiva da ciência que ele ministrou no Collège de France
(Bourdieu, 2001) com uma prolongada autoanálise de sua jornada
intelectual. Sua ambivalência diante do mundo intelectual, que
se expressa em uma estranha, embora compreensível, mistura
de arrogância intelectual e autodepreciação, aparece como uma
sedimentação psíquica dos anos de sofrimento solitário que ele
experimentou no internato, uma “instituição total” que quase o
despedaçou. Após seus estudos de filosofia na École Normale
Supérieure, onde ele sofreu a influência da “epistemologia histórica”
de Gaston Bachelard e Georges Canguilhem, o jovem filósofo
da província foi para a Argélia cumprir seu serviço militar.
Durante a guerra de independência, ele realizou extenso trabalho
de campo e tornou-se antropólogo. O catálogo de exibição
das fotos que ele tirou na Argélia mostra que ele tinha não
apenas uma mente aguçada, mas também um bom olhar para os
detalhes da vida cotidiana (Bourdieu, 2003). Tendo passado, nos

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anos 1950, da filosofia para a etnologia, o jovem antropólogo
“converteu-se” à sociologia na metade dos anos 1960. Mergu-
lhando freneticamente em todo tipo de pesquisas sociológicas
sobre toda espécie de objetos e sujeitos (fotografia, revistas em
quadrinhos, gosto cultural, Heidegger etc.), o gênio da sociologia
desenvolveu, no escopo de poucos anos (1966-1972), uma teoria
total do mundo social. Bourdieu estava apenas nos seus trinta
e tantos anos quando formulou, no nível mais alto de abstração
e com máxima precisão conceitual, as teorias inter-relacionadas
do “campo”, do habitus e da “violência simbólica” que formam
a espinha dorsal do seu programa progressivo de pesquisa sobre
a reprodução das estruturas de dominação.
A publicação póstuma de três textos (Bourdieu, 2002c),
escritos em momentos diferentes, nos quais ele analisa a exclusão
progressiva do mercado matrimonial sofrida pelos camponeses,
permite que se siga em detalhe como ele desenvolveu e integrou
sucessivamente seus principais conceitos em uma grandiosa teoria
da reprodução social. No primeiro texto, Bourdieu apresenta uma
descrição total de sua vila nativa no sul da França. Ele explica o
celibato do camponês através de uma habilidosa descrição do seu
habitus – “ele arrasta seus grandes sapatos de madeira ou suas
pesadas botas mesmo que esteja usando seus sapatos de domingo”
(Bourdieu, 2002b: 114). No segundo texto, a mesma problemática
é tratada mais uma vez, mas agora as práticas matrimoniais são
explicadas em termos de estratégias inconscientes de reprodução.
No terceiro texto, a dimensão simbólica da exclusão econômica
dos camponeses é coberta em uma análise da modernização das
regiões rurais. O livro é concluído com um pós-escrito violento
em que Bourdieu critica severamente as representações urbanas
do rural e ataca Foucault em uma nota de rodapé.
Desde a segunda metade dos anos 1990, a recepção interna-
cional da sua œuvre cresceu a ponto de se transformar em uma
pequena indústria, comparável talvez aos estudos habermasianos e
foucaultianos.7 A publicação da bibliografia completa de Bourdieu
(Bourdieu, 2002d) veio, portanto, a calhar. Dificilmente é possível
abrir uma revista especializada hoje sem se deparar com um artigo
sobre Bourdieu ou algum de seus conceitos (habitus, capital etc.).
Quanto tempo até que a Revista de Estudos Bourdieusianos seja
lançada? Na França, seu trabalho tem sido seriamente estudado
(Lahire, 1999). Livros introdu-tórios e outras apresentações dirigidas

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a estudantes são gerados em abundância. Pelo menos cinco livros
escritos pelos amigos e colaboradores mais próximos de Bourdieu
foram publicados em homenagem ao mestre (Encrevé; Lagrave,
2003; Heilbron; Lenoir; Sapiro, 2003; Bouveresse; Roche, 2004;
Pinto et al., 2004; Mauger, 2005). Dois dicionários apareceram
nos últimos dois anos (Revel, 2006; Cazier, 2006). Não há dúvida
de que, em breve, uma estátua será erguida em sua homenagem.
Enquanto Philippe Corcuff (2003) está pensando “com
Bourdieu (e Boltanski) contra Bourdieu”, Bernard Lahire (1998)
é mais ambicioso e tenta pensar de modo diferente de Bourdieu.
Iniciando por uma análise das práticas cotidianas da escrita
de listas de compras, planos de viagem etc., ele introduziu a
reflexividade no habitus e desenvolveu uma ambiciosa teoria de
atores plurais na qual os indivíduos aparecem como produtos de
processos de socialização múltiplos, heterogêneos e conflitantes.
Sua crítica da tese da “transferabilidade” dos esquemas constitu-
tivos do habitus deu ensejo a um interessante questionamento
das relações sociais com a cultura (Lahire, 2004). Analisando as
preferências e práticas culturais sob o ângulo da variação intra-
individual de comportamentos, ele descobriu a alta frequência
estatística de perfis culturais individuais compostos de elementos
heterogêneos ou dissonantes. Essa frequência de dissonâncias
culturais pode ser explicada tanto pela pluralidade de disposições
culturais incorporadas no habitus quanto pela pluralidade de
domínios de práticas culturais de que o indivíduo participa.

SOCIOLOGIA PRAGMÁTICA

Luc Boltanski, um sociólogo, e Laurent Thévenot, um econo-


mista, são antigos colegas de Bourdieu que trabalhavam sobre
a construção social das categorias e grupos socioprofissionais
quando romperam com o mestre.8 Juntos, eles escreveram De la
justification: les économies de la grandeur (Boltanski; Thévenot,
1999), um tratado acerca da pragmática da justiça no qual articulam
sistematicamente a microssociologia dos conflitos ordinários à
“economia das convenções”, uma escola heterodoxa de economia
institucional que analisa o papel das representações sociais
na coordenação das ações. Rompendo com as pressuposições
estruturalistas da sociologia crítica da dominação de Bourdieu,

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eles se movem decididamente em direção a uma sociologia mais
hermenêutica da crítica e da legitimação, a qual reemprega
a teoria das esferas de justiça de Michael Walzer no interior de
uma teoria pragmatista da ação situada.
A teoria da justificação analisa pequenos fragmentos de ações
(cuja duração varia entre 30 segundos e meia hora) nos quais
atores denunciam publicamente situações de injustiça e oferece
uma “gramática das disputas” em que diferentes princípios de
justiça estão simultaneamente em operação. As disputas são
analisadas como conflitos nos quais a “grandeza” ou “estatura”
das pessoas está em jogo. Para explicar a “lógica do inquérito”
(Dewey) que permite qualificar as pessoas e objetos que compõem
a situação concreta de disputa, Boltanski e Thévenot constroem um
modelo, conhecido como o modelo das “Cidades” (Cités 9), que
formaliza as exigências argumentativas e normativas que os atores
têm de levar em consideração para que sua crítica seja válida.
Cités são ordens axiológicas, construídas em torno de um valor
central, nas quais uma visão da “boa vida com e para os outros
em instituições justas” (para citar Ricœur) é sistematicamente
elaborada. Baseando-se nos trabalhos clássicos da filosofia polí-
tica (Santo Agostinho, Bossuet, Hobbes, Rousseau, Saint-Simon
e Adam Smith), eles distinguem seis ordens de justificação, com
seus valores correspondentes: a Cidade Inspirada (graça e
intuição), a Cidade Doméstica (lealdade e confiança), a Cidade
do Renome ou Fama (opinião e reconhecimento), a Cidade
Cívica (igualdade e solidariedade), a Cidade Industrial (eficácia
e competência técnica) e a Cidade Mercantil (competição e
performance econômica).10 Os autores não pretendem sugerir,
é claro, que pessoas comuns leram qualquer destes autores. Seu
argumento é o de que, quando os atores proferem uma crítica,
agem necessariamente como metafísicos práticos e referem-se
implicitamente a vocabulários filosóficos de justificação que
apelam a um bem comum.
Movendo-se das grandiosas alturas da filosofia política até
os lugares-comuns da vida cotidiana, Boltanski e Thévenot
seguem a sugestão da teoria do ator-rede (ver a próxima seção) e
introduzem objetos ordinários no modelo da justificação. Dife-
rentemente dos humanos, que podem aspirar à grandeza em
qualquer das Cidades, não estando, assim, atados a nenhuma
delas em definitivo, não humanos possuem um caráter bem

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definido. Um cronômetro pertence ao mundo da indústria, um
poema ao mundo da inspiração e uma nota promissória ao mundo
do mercado. Estes objetos comuns desempenham um papel
central em disputas. Quando são ativados in situ, um registro
correspondente de justificação é automaticamente selecionado,
e a estatura do ator pode ser consequentemente avaliada.
Um curriculum vitae vazio encaminhado a um empregador é
suficiente para desqualificar o candidato como um “jogador
pequeno” no mercado de trabalho, enquanto uma aparição na
capa de uma revista define alguém como “grande” no mundo
da fama. Protagonistas de uma disputa também possuem a
capacidade de trazer os objetos para o primeiro plano, apontando
para os mesmos de modo a redefinir a situação para sua vantagem
ou estabelecer acordos.
Concentrando-se em microssituações de conflito, De la
justification não leva efetivamente em consideração macroes-
truturas de dominação. Em Le nouvel esprit du capitalisme, Luc
Boltanski e Eve Chiapello (1999) estendem o modelo pragmático
das Cités à análise das transformações estruturais do capitalismo
desde os anos 1960. O argumento básico desse grande livro, que já
é um clássico menor na França, é o de que o capitalismo cooptou
de modo bem-sucedido a crítica anticapitalista, tornando-se mais
forte do que nunca, enquanto a crítica ao capitalismo parece, por
sua vez, bastante desarmada. O capitalismo, ou a acumulação
ilimitada de capital por meios formalmente pacíficos, não pode
funcionar sem uma ideologia que o justifique em termos do bem
comum. O capitalismo necessita de um espírito. Desde o século
XIX, três espíritos do capitalismo se sucederam. O “primeiro
espírito” corresponde a um capitalismo predominantemente
doméstico e focado no empreendedor individual. Os valores
centrais são a família e a competição. Confrontado com a questão
social, entretanto, o capitalismo liberal se reorganiza ao longo de
linhas tayloristas, fordistas e keynesianas. A figura dominante no
capitalismo organizado é o diretor administrativo. As formas de
justificação invocadas pelo “segundo espírito” são de natureza
cívica e industrial, concernindo principalmente à segurança (no
emprego, nas promoções, na renda etc.). Na medida em que o
capitalismo não mais pôde “custear” o arranjo neocorporativo dos
“trinta anos de ouro” (1945-1973), ele começou a se reestruturar,
nos anos 1980, ao longo de linhas neoliberais.11

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Boltanski e Chiapello analisam o “novo espírito do capi-
talismo” por meio de uma análise comparativa da literatura
empresarial dos anos 1960 e 1990. Eles distinguem entre duas
formas de crítica ao capitalismo – a crítica “social” e a crítica
“artística” –, argumentando que a guinada neoliberal dos anos
1980 pode ser explicada em termos da progressiva incorporação
da crítica artística do capitalismo pelo próprio capitalismo. A crítica
social corresponde à crítica tradicional do capitalismo feita pelo
movimento operário. Ela denuncia a pobreza, a desigualdade e a
exploração em nome da solidariedade e da justiça. A crítica artís-
tica é pós-moderna. Ela se dirige à natureza alienante e desuma-
nizante do capitalismo organizado, em nome da espontaneidade,
criatividade e autenticidade. Em Maio de 1968, as duas críticas se
uniram e o capitalismo foi seriamente desafiado. Primeiramente,
os empregadores negociaram com os sindicatos a respeito dos
salários. Nos anos 1980, eles começaram a dar ouvidos à crítica
artística. Contornando os sindicatos, ofereceram uma interpretação
neoliberal às exigências libertárias por criatividade, introduziram
a flexibilidade no local de trabalho e transformaram a organização
em uma rede contratual. Confrontado com a insegurança, o
trabalhador flexível (flexi-worker) tornou-se um profissional em
rede (networker) que vende seu self, suas habilidades e seu
projeto no mercado. Criticando a injustiça do capitalismo em rede,
Boltanski e Chiapello clamam por uma renovação da crítica social.

A TEORIA DO ATOR-REDE

Bruno Latour, um teólogo e antropólogo pós-moderno, e


Michel Callon, um engenheiro e sociólogo, fundaram o Centre de
Sociologie de l’Innovation (CSI) da École des Mines, em Paris.12
Juntos, eles desenvolveram a teoria do ator-rede (actor-network
theory – ANT), uma das mais originais, provocativas e iconoclas-
tas dentre as sociologias atualmente em oferta. A ANT começou
como uma ramificação radical dos estudos sociais da ciên-
cia nos anos 1970 e 1980, os quais buscaram desconstruir as
filosofias da ciência através de um estudo etnográfico da
ciência em seu processo de feitura.13 Inspirando-se criativamente na
filosofia da tradução de Michel Serres e na rizomática de Deleuze
e Guattari, Latour e Callon introduzem com vigor novos objetos

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na sociologia, analisando a sociedade em processo de constituição
como uma rede sociotécnica em expansão que associa humanos
e não humanos em um heterogêneo “tecido sem costuras”. Gra-
ças aos bons serviços de John Law no Reino Unido,14 a ANT está
agora se tornando uma história de sucesso global na academia.
As principais teses da ANT podem ser resumidas em três
sentenças:
1) A ciência é social (Latour, 1985). Através da tecnografia
de um laboratório científico na Califórnia, Latour e Woolgar
(1979) mostraram como os fatos científicos são, literalmente,
construídos e fabricados por cientistas. Trabalhando com
“artifícios de inscrição” que representam (re-present) a natu-
reza no papel e reduzem a realidade a uma superfície plana,
os cientistas se mostravam ocupados transformando ratos
e produtos químicos em uma série de rabiscos, gráficos e
figuras que pudessem ser integrados aos seus artigos. Na medida
em que sua visão da natureza tornava-se generalizadamente aceita
pelos colegas, que citavam o artigo, a representação científica
da natureza era progressivamente fortalecida e transformada em
um fato científico, sendo o trabalho necessário à sua construção
“fechado em uma caixa-preta” (blackboxed). Quando as aspas
da referência à “natureza” eram eventualmente removidas, a
natureza terminava por aparecer não como algo que foi feito,
mas descoberto pelo cientista. A despeito de suas pressuposições
radicalmente construtivistas, não se deve concluir muito apres-
sadamente, entretanto, que Latour seja anticiência. Seu trabalho
sobre inscrições científicas pretende mostrar como os cientistas
constroem a natureza como um fato científico por meio de uma
“cascata de representações” que descreve a natureza de modo
mais e mais acurado.
2 ) A sociedade é natural (Latour, 1996). Fatos científicos são
socialmente construídos, mas não podem ser reduzidos ao social,
uma vez que o social também é feito de objetos mobilizados para
construí-lo. Durante muito tempo, os sociólogos analisaram a
sociedade como uma comunidade de humanos (sujeitos), sem
compreender que a sociedade é impossível sem não humanos
(objetos) que estabilizem as relações sociais e mantenham a
sociedade unida. O que distingue babuínos de humanos é o fato
de que os últimos utilizam objetos que dão consistência material

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ao contrato social. Graças aos objetos comuns (paredes, portas,
mesas, televisões etc.) – e contrariamente ao que pensam os
etnometodólogos, que tratam os humanos como se fossem
babuínos! –, a ordem social não tem de ser continuamente
renegociada e constantemente refeita in situ. Não humanos não
apenas substituem e ocupam o lugar dos humanos – e.g., o sinal
de trânsito substitui um policial e a porta automática um por-
teiro –, mas podem ser considerados como atores eles mesmos.
Baseando-se na semiótica estrutural, Greimas, Latour e Callon
introduzem a noção de “actante” para se referirem a qualquer
ator, humano ou não humano – Deus, cientistas, micróbios, mo-
luscos etc. –, que intervém na constituição da sociedade como
rede heterogênea de humanos e não humanos.
3 ) A natureza e a sociedade são coconstruídas em e
através de redes sociotécnicas que associam humanos e não
humanos em um tecido sem costuras (Callon; Latour, 1981). A
natureza e a sociedade não estão dadas, mas sempre em processo
de constituição; nenhuma delas é causa, ambas são resultados
e emergem da rede que continuamente transforma e performa
a realidade. Mutuamente constitutivas, a natureza e a sociedade
são coproduzidas e constituídas na e através da rede heterogênea
que associa humanos e não humanos. Redefinindo a sociologia
como a ciência das associações, a ANT analisa como microatores
tornam-se macroatores através do recrutamento de humanos e
não humanos em uma rede rizomática em expansão. Nesse ponto,
a sociologia da ciência embarca em uma guinada política, e a
ciência passa a ser analisada como política por outros meios.
Cientistas naturais (como Pasteur), que representam a
natureza, ou cientistas sociais (como Bourdieu), que representam
a sociedade, falam em nome de outros e dão a eles uma voz.
Falando em nome de outros, eles “traduzem” seus interesses,
associam-nos ao seu projeto, integram-nos em um coletivo e
progressivamente compõem o mundo como uma rede de redes
que potencialmente cobre o mundo inteiro.

MIDIOLOGIA

Tal como Boltanski, Thévenot e Latour, Régis Debray costumava


ser próximo de Bourdieu, mas, expulso do cenáculo, rompeu

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com este para seguir seu próprio caminho. Antigo camarada de
armas de Che Guevara, ex-consultor do presidente Mitterrand
para o Terceiro Mundo, aguerrido defensor do Estado-nação, esse
polímata, romancista e teórico da política, é uma figura bastante
controversa. Por conta própria, ele inventou a midiologia como
uma nova ciência das mediações, lançou uma nova revista, Les
Cahiers de Mediologie, e reuniu alguns dos mais interessantes
filósofos da tecnologia (Bernard Stiegler, François Dagognet,
Pierre Lévy, mas também Bruno Latour e Antoine Hennion)
em torno de seu projeto.15 Como Latour, Debray é um seguidor
de Michel Serres e concebe a tecnologia como um construto
sociotécnico; diferentemente de Latour, entretanto, ele não
é influenciado por Deleuze e Guattari, mas por Paul Valéry
(um ensaísta), André Leroi-Gourhan (um paleontólogo) e pela
escola de estudos da mídia de Toronto (McLuhan, Derrick de
Kerckhove, Harold Innis).
A midiologia (ou Estudos de Mediação) amplia a noção de
mídia de maneira a incluir todos os vetores materiais e institu-
cionais de comunicação – dos caminhos, canais, portos e portais
até as seitas, igrejas e partidos. Ela define a mediação como a
totalidade de interações entre a cultura e a tecnologia que tornam
possíveis a difusão (através do espaço) e a transmissão (através do
tempo) de ideias. Escarnecendo dos especialistas em comunicação
que trabalham na tradição de Roland Barthes, Debray apresenta
a nova interdisciplina como uma ciência sucessora dos estudos
de mídia, integrando a análise semiótica dos conteúdos a uma
filosofia inclusiva da história das tecnologias de transmissão da
cultura através das gerações.
No nível mais geral, a midiologia estuda as condições materiais
e institucionais de transmissão simbólica da cultura e de (re)
produção da sociedade. Em Critique de la raison politique,
Debray (1981) analisou o papel da ideologia na estruturação dos
coletivos. Ele argumentou que as religiões (que unificam) e as
nações (que dividem) não são simples representações da reali-
dade; na medida em que movem emocionalmente as pessoas,
elas possuem uma eficácia simbólica e uma força performativa
capazes de transformar as pessoas, a sociedade e a história.
Cours de médiologie générale (Debray, 1991) é o texto fundante
do estudo das mediações. Ele aprofunda a análise metapolí-
tica das ideologias e da formação de grupos com uma análise

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dos modos tecnossociais de transmissão das ideologias e das
ideias. Religiões e ideologias podem capturar as massas, mas o
profeta e o ideólogo só podem intervir como uma força na histó-
ria se puderem contar com uma organização social efetiva e um
sistema poderoso de difusão e transmissão de suas ideias. Situada
na encruzilhada entre a filosofia, a teologia, a antropologia, a
arqueologia, a história, a sociologia, a ciência política, a semiótica
e os estudos culturais e da mídia, a midiologia é uma disciplina
relativamente autônoma que analisa a totalidade dos processos de
mediação que intervêm entre a cultura e a agência e transformam
ideias em forças materiais.
Na esteira de Serres e Latour, Debray concebe a mediação
como um processo sociotécnico de hibridização que interco-
necta cultura (ideias e textos, como o Manifesto Comunista),
pessoas (como Marx, mas também intelectuais e trabalhadores) e
tecnologia (dos instrumentos de impressão aos meios de
transporte) em uma rede ativa. Para se compreender como se
pode “fazer coisas com palavras”, deve-se abrir a caixa-preta do
meio e analisar a mediação como um processo duplo no qual
ideias são transmitidas por vetores tecnológicos, ao mesmo tempo
que pessoas são organizadas em grupos e sociedades.
A midiologia concebe a mídia não tanto como causa material,
mas como causa formal, no sentido aristotélico da palavra. Os
meios de comunicação não são vetores neutros de transmissão
cultural, mas impõem uma certa visão de mundo e configuram
um certo modo de pensar, sentir e agir. Para analisar o impacto
mutável da mídia falada, escrita e audiovisual sobre a sociedade
e a política, Debray introduz a noção ecológica de “midiosfera”
como um conceito-mestre e analisa o desenvolvimento e inte-
gração sucessivos da logosfera (escrita), grafosfera (impressão)
e videosfera (audiovisual).16 A atual passagem da logosfera para
a videosfera implica não apenas uma mudança do predomínio
das palavras para o predomínio das imagens, mas também está
ligada à comercialização da vida intelectual e política. Nostálgico,
de certo modo, em relação aos tempos em que a televisão não
governava a política, Debray deplora e critica o atual estado de
“midiocracia” como “mediocracia” em um fluxo de livros.17

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A RECOMPOSIÇÃO DA SOCIEDADE
ATRAVÉS DO POLÍTICO

Marcel Gauchet e Alain Caillé são ambos antigos estudantes de


Claude Lefort e críticos de Pierre Bourdieu. Inspirados na crítica
ao totalitarismo da revista Socialisme ou Barbarie (Lefort, Castoriadis,
Lyotard), eles consideram “o político” como a dimensão funda-
mental da vida social. Em oposição ao socialismo e ao liberalismo,
insistem nos potenciais da democracia radical e se voltam para a
sociedade civil na esperança de infundir vida nova na sociedade
atomizada de indivíduos egoístas. De um modo ou de outro,
ambos estão explorando a questão da ordem social a partir da
perspectiva da antropologia histórica comparativa e insistindo na
importância das representações simbólicas para a estruturação
da sociedade. Finalmente, ambos são intelectuais públicos de
esquerda que animam uma revista e buscam estimular um debate
público não partidário.
Marcel Gauchet é o editor-chefe de Le Débat. A despeito de
seu classicismo, ele bem poderia ser o sucessor de Michel Foucault.
Como Foucault, ele mergulha nos arquivos do passado de modo a
desenvolver uma “história do presente”.18 O que Gauchet pretende
entender é a confluência entre a secularização da religião, o
advento da historicidade e a invenção da democracia, confluência
que marca a prolongada transição para a modernidade e as
consequentes aventuras da democracia em sociedades individua-
listas como as nossas, nas quais os indivíduos dão a si mesmos
suas próprias leis. Através de uma história da psiquiatria (que
é, ao mesmo tempo, uma crítica da História da loucura de
Foucault), de um estudo sobre a Revolução Francesa e a invenção
dos direitos humanos e, acima de tudo, de uma história política
da religião, Gauchet investigou a transição de uma concepção
holista, hierárquica e heterônoma de sociedade para uma
concepção individualista, igualitária e autônoma.
Em Le désenchantement du monde, um tratado weberiano
sobre teologia política, ele interpreta o cristianismo como a
“religião da saída da religião” (Gauchet, 1985: II). Subsequen-
temente à invenção do monoteísmo durante a era axial, a
humanidade projetou-se em um Deus pessoal transcendental que
oferecia uma representação simbólica da unidade da sociedade,
fundando assim a ordem social. Com a emergência do Estado

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nas sociedades tradicionais, a ordem transcendental tornou-se
progressivamente “introjetada” na sociedade sob a forma de
poder mundano. A representação simbólica da sociedade foi
incorporada primeiramente ao rei absoluto; posteriormente, com
a Revolução Francesa, o poder foi democratizado e passou a
ser representado pelo direito. A revolução democrática marca a
emergência do individualismo e inverte a ordem de fundação do
topo para a base. A coexistência de indivíduos e a unidade da
sociedade serão, doravante, produções dos próprios indivíduos.
Através da democratização do poder, as sociedades renunciam à
ideia de unidade, despersonalizam o poder, tornam-se pluralistas
e aceitam o conflito como um dado fundamental da vida social.
Enquanto o totalitarismo tenta reintroduzir, à força, a unidade das
sociedades holistas e hierárquicas nas sociedades individualistas e
igualitárias, o liberalismo endossa o individualismo, concebendo
a ordem social como algo que emerge espontaneamente a partir
“de baixo”.
A longo prazo, entretanto, os sucessos da democracia liberal e
dos direitos humanos solapam os alicerces políticos da socie-
dade. Oferecendo uma avaliação crítica da sociedade e da política
contemporâneas, Gauchet (2002) aponta para as contradições da
democracia em diferentes campos (religião, educação, psicologia,
ecologia, movimentos sociais etc.). Convencido de que as socie-
dades não podem existir sem uma referência holística, ele alerta
para a despolitização e individualização da sociedade. A ordem
social requer uma representação simbólica e normativa de sua
própria unidade; sem esta, ela se decompõe em uma sociedade
atomizada de indivíduos egoístas.
Menos republicano que Gauchet, Alain Caillé também clama
por uma recomposição democrática da sociedade e deposita sua
esperança na política das associações. Caillé é o fundador do
Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais – o MAUSS – sigla
para Mouvement Anti-Utilitariste en Sciences Sociales – e o editor
da Revue du Mauss, revista bianual devotada ao estudo da dádiva
na qual antropólogos, sociólogos, economistas e filósofos políticos
da esquerda exploram os contornos de uma ciência e uma socie-
dade alternativas, não baseadas no autointeresse e no egoísmo.19
Fundando o movimento em 1981 para combater a hegemonia do
utilitarismo nas ciências sociais (teoria da escolha racional) e na
sociedade (neoliberalismo), Alain Caillé desenvolveu, a partir do

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clássico ensaio de Mauss sobre a dádiva, uma engajada sociologia
política das associações que considera a tripla obrigação – “dar,
receber e retribuir” – como a base da vida social (Caillé, 1998;
Caillé, 2000; Godbout; Caillé, 1992).
Reintroduzindo os símbolos e a agência na sociologia de
Durkheim, Mauss construiu uma sociologia generosa das relações
sociais (a generous sociology of social relations) que supera a
oposição entre indivíduo e sociedade. Livre, ainda que obrigatório,
o “espírito da dádiva” é o catalisador de relações sociais que torna
a sociedade possível como uma rede primária de associações,
da qual emergem o mercado e o Estado como formações secun-
dárias, estas, por sua vez, sendo atualmente incorporadas a uma
rede terciária de relações globais. Caillé não ignora a natureza
agonística da dádiva primitiva, nem acredita que as sociedades
contemporâneas são dirigidas apenas pelo interesse. Ao contrário,
ele defende a primazia da dádiva e concebe-a como um “fato
social total” que anima todas as instituições da sociedade. Ela
envolve o conflito e a paz, a obrigação e a liberdade, o interesse
e a generosidade. A dádiva não representa apenas um terceiro
paradigma sociológico entre o individualismo e o holismo, mas,
institucionalizada em um terceiro setor de associações voluntárias,
também oferece uma genuína terceira via entre o liberalismo e
o socialismo. Na medida em que a política é concebida como a
continuação da dádiva por outros meios, as associações locais
que implementam a política da dádiva podem ser compreen-
didas como movimentos sociais que visam defender e preservar
a economia moral contra o mercado e o Estado. As associações
não pretendem abolir o Estado ou o mercado, mas rejuvenescer
o tecido social e “reencaixar” (como diz Polanyi) o mercado e o
Estado no mundo da vida. Contra as versões contratualistas da
organização das relações de trabalho, o movimento antiutilita-
rista defende a renda básica como uma expressão generalizada
de reciprocidade capaz de regenerar a solidariedade. A ideia é
que, quando cada cidadão receber uma “bolsa-cidadania” incon-
dicional (uma espécie de “bolsa-família” para todos, inclusive os
vagabundos e os milionários), ele fará algo em troca pela comu-
nidade, contribuindo assim para a realização do sonho maussiano
do socialismo associativo e cooperativo.

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A ESCOLA DE MONTREAL

Enquanto isso, no Canadá francófono, Michel Freitag, um


velho amigo de Caillé e antigo estudante de Touraine, desen-
volveu uma monumental teoria social crítica neodialética (Freitag,
1986). A teoria da sociedade de Freitag tem algumas afinidades
com a teoria da estruturação de Giddens, mas, através da incor-
poração da história da representação simbólica das sociedades
desenvolvida por Gauchet, ela reelabora a análise sincrônica das
condições de produção e reprodução da sociedade no interior
de um quadro de referência dialético mais amplo, o qual analisa
diacronicamente a transformação histórica de suas mediações
através das eras, das sociedades primitivas e tradicionais até as
modernas e pós-modernas. O resultado é uma teoria histórica dos
modos de regulação das práticas e de constituição da sociedade
facilmente comparável à teoria da comunicação de Habermas e
à teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann. Seja como for, a
teoria dialética da sociedade culmina em uma crítica militante das
tendências dessimbolizantes do modo sistêmico de reprodução
característico da pós-modernidade.
O projeto original de Dialectique et societé compreende cinco
volumes, apenas dois dos quais foram publicados até agora.20 No
primeiro volume, o sociólogo nascido na Suíça apresenta uma
teoria geral da prática simbólica. Sua ideia básica é a de que a
prática está, sempre e inevitavelmente, suspensa em uma rede
de representações e significações simbólicas que funciona como
uma ordem transcendental a priori de determinação que regula e
unifica as práticas, as quais por sua vez reproduzem a sociedade.
Introduzindo a cultura como uma totalidade virtual que forma,
informa e regula a priori as práticas simbólicas que produzem
e reproduzem a sociedade, Freitag forjou com sucesso uma
conexão dialética entre a regulação das práticas e a reprodução
da sociedade. Esta “dialética dupla” entre agência e estrutura
forma o ponto de partida da teoria desenvolvimental dos modos
de reprodução formal da sociedade, apresentada no segundo
volume. Analisada sob uma perspectiva histórica e diacrônica,
a descrição ideal-típica de uma sociedade concebida como uma
comunidade linguística reaparece agora, formalmente, como o primeiro
modo de reprodução da sociedade, o modo “simbólico-cultural”,
o qual, “suprassumido”,21 será sucedido na modernidade pelo

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modo “político-institucional” e, posteriormente, subvertido e
tendencialmente abolido pelo modo “decisório-operacional” na
pós-modernidade. O modo “cultural-simbólico” de reprodução
da sociedade caracteriza as sociedades primitivas. No momento
em que tais sociedades tornam-se cientes de si mesmas através de
uma projeção idealizada de sua representação simbólica em mitos
e religiões (cf. Gauchet), a transição para o modo de reprodução
político-institucional já se iniciou. Em seguida à destranscenden-
talização progressiva do Divino nas sociedades tradicionais, as
sociedades modernas começam a produzir reflexivamente suas
próprias mediações e regulações sob a forma de instituições
políticas legítimas. Com a transição para a pós-modernidade e
o advento do modo “decisório-operacional” de reprodução, as
mediações transcendentais que conferem uma unidade a priori
às sociedades são progressivamente dissolvidas. Como resultado,
as sociedades são transformadas em sistemas sociais autorre-
ferenciais, unificados a posteriori através da adaptação e da
acomodação a um ambiente em mutação. A análise luhmanniana
do sistema mundial é empiricamente correta, de acordo com
Freitag, mas normativamente falsa.
Em uma série de extensos artigos publicados em Societé, o órgão
da Escola de Montreal, Freitag apresentou a pós-modernidade como
uma decomposição sistêmica da sociedade que significa, ao mesmo
tempo, o fim da cultura, da subjetividade e da política. Sua crítica
da pós-modernidade é tudo menos pós-moderna, no entanto. No
espírito da Escola de Frankfurt, ele oferece uma análise e uma crítica
sistemáticas das tendências dessimbolizantes e desumanizantes
do mundo contemporâneo (Freitag, 2002). Ao mesmo tempo, ele
também revisita a história dos conceitos de civilização e explora a
possibilidade de uma mundialização genuína como alternativa ao
tecnocapitalismo globalizado que ameaça a sobrevivência da
humanidade22 (Freitag, 2008).

CONCLUSÃO

Desde o declínio do “novo movimento teórico” dos anos 1980,


a teoria social europeia parece haver entrado na era dos epígonos.
O Reino Unido é pós-giddensiano (Roy Bhaskar, Margaret Archer,
Nikolas Rose), a Alemanha é pós-habermasiana (Axel Honneth,

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Hans Joas, Ulrich Beck) e a França é pós-bourdieusiana. Durante
25 anos, Bourdieu dominou o campo da sociologia francesa e
determinou sua agenda de pesquisa. Oriundo da filosofia, ele
introduziu conceitos filosóficos na sociologia e colocou-os para
funcionar na pesquisa empírica concreta. Mesmo os principais
opositores de Bourdieu são influenciados por ele, perseguindo,
como Bourdieu, as grandes questões teóricas por meio da inves-
tigação empírica e utilizando suas pesquisas para formarem um
ponto de vista político. Podemos, assim, concluir esta revisão
panorâmica da sociologia francesa na virada do milênio do mesmo
modo como Lévi-Strauss (1945) concluiu a sua há 50 anos: “a
dependência da sociologia francesa em relação à filosofia, bem
como sua abertura à política, podem muito bem ser seus grandes
trunfos”.

POST-SCRIPTUM COSMOPOLITA:
TEORIA SOCIAL NEOCLÁSSICA E ALÉM23
Alguns de nossos colegas têm reclamado (mas, enfim, eles
sempre reclamam...) que a sociologia está tomada pelo desâ-
nimo e que nada de excitante vem acontecendo nesses dias.
Nostalgicamente, eles se referem ao chamado “novo movimento
teórico” dos anos 1980 e aos seus heróis (Habermas, Luhmann,
Bourdieu, Giddens, Alexander), que apresentaram, quase ao mesmo
tempo, sínteses ambiciosas e multidimensionais da tradição
clássica que eram capazes de (ou, pelo menos, tentavam) superar
as antinomias e ambiguidades clássicas que os pais fundadores
da sociologia herdaram de sua disciplina-mãe, a filosofia: sujeito
versus objeto, liberdade versus determinismo, idealismo versus
materialismo, história versus estrutura, cultura versus natureza
etc. Na medida em que ainda consideramos (e ensinamos) as
teorias sociais formuladas na década de 1980 como realizações
protoparadigmáticas, elas podem ser apropriadamente conside-
radas como sociologias neoclássicas. Apoiando-se nos ombros
daqueles protagonistas para verem mais longe ou, como é muito
frequentemente o caso nesses dias, para avançarem em suas
próprias carreiras por meio de ataques a um deles (argumen-
tando, por exemplo, com Habermas e Bourdieu contra Giddens,
ou com Luhmann e Bourdieu contra Habermas), pesquisa-
dores mais jovens com grandes ambições teóricas estudam e
dissecam os textos do novo Durkheim (Bourdieu), do novo Marx

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(Habermas), do novo Weber (Giddens) ou do novo Parsons
(Luhmann) como textos neoclássicos.
Mas o que aconteceu com nossos heróis? Lamentavelmente,
Bourdieu e Luhmann faleceram demasiado cedo, embora seus
espíritos vivam, enquanto Habermas e Giddens abandonaram
o campo da sociologia, o primeiro para retornar à filosofia, o
segundo para adentrar a Câmara dos Lordes. Como Bellah e
Geertz, Alexander reformulou o funcionalismo normativo de
Parsons em uma direção mais estética e desenvolveu um programa
forte e pujante para uma sociologia cultural neodurkheimiana que
combina a semiótica a uma teoria da sociedade civil, da perfor-
mance e do trauma. Dos cinco, Bourdieu é sem dúvida aquele
que maior impacto teve na sociologia. Sua posição no campo
da sociologia mundial é agora homóloga àquela que Parsons
ocupou nos anos 1950. Pode-se ser a favor ou contra sua variante
de sociologia, mas não se pode mais ignorá-lo.
A recepção do neoclassicismo inspirou uma nova espécie de
escolasticismo, que é altamente profissional, mas de certo modo
derivativo e repetitivo. A excitação e a alegria estão em outro
lugar, por todos os lugares, por todo o mundo, dispersas e não
unificadas. Com efeito, em uma disciplina de pós-graduação
que ensino no IUPERJ, venho explorando e mapeando as novas
tendências na sociologia mundial. Como turistas japoneses,
visitamos o mundo em treze semanas e paramos na França (pós-
-bourdieusiana), na Inglaterra (pós-giddensiana), na Alemanha
(pós-habermasiana) e nos Estados Unidos (pós-goffmanianos).
Começamos nosso passeio pela França e nos deparamos primei-
ramente com o legado bourdieusiano. Bernard Lahire, o mais
interessante e criativo dos críticos de Bourdieu, embarcou em
uma sociologia do indivíduo que se afasta da coerência monolítica
do habitus e analisou como disposições plurais são ativadas ou
desativadas em diversos contextos e situações. Posteriormente,
seguimos os passos de Luc Boltanski, um antigo colaborador
de Bourdieu, e demos uma rápida olhada em sua carreira, de
seus primeiros trabalhos construtivistas sobre os cadres (execu-
tivos) até sua sociologia pragmática da capacidade crítica (com
Laurent Thévenot) e, daí, para sua inovadora análise crítica (com
Eve Chiapello) de como o capitalismo conquistou o mundo ao
incorporar a crítica que lhe era dirigida. Nossa próxima parada foi
na Science Po. Visitamos o laboratório de Bruno Latour e demos

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boas risadas. Infelizmente, ele não estava. Seu escritório estava
abarrotado de gigantescos arquivos, coisas estranhas, objetos
cabeludos e, segundo o testemunho de um dos estudantes, havia
até um babuíno no corredor. Isso é o necessário para compor
um mundo. Também tivemos um encontro com Régis Debray,
antigo camarada de armas de Che Guevara, ensaísta e fundador
da nova interdisciplina da “midiologia”. Os estudos de mediação
se concentram sobre as condições materiais e institucionais de
transmissão cultural e tratam, literalmente, dos caminhos, canais,
estações, portos, portais e outros tipos de vetores materiais e insti-
tucionais através dos quais ideias e ideologias são transmitidas de
geração a geração. Dali, fomos para o quartel-general do MAUSS
(Mouvement Anti-Utilitariste en Sciences Sociales) e conhecemos
Alain Caillé, que, a partir do seminal ensaio de Mauss sobre a
dádiva, desenvolveu uma sociologia política das associações que
considera a tripla obrigação – “dar, receber e retribuir” – como
a base da vida social. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe passaram
por lá e discutimos seus livros mais recentes sobre a democracia
agonística e o significante flutuante do populismo. Michel Freitag,
principal representante da Escola de Montreal e autor de uma
monumental teoria crítica neodialética, também estava presente.
Ele apresentou gentilmente os princípios fundamentais de sua
teoria das transformações históricas dos modos de regulação das
práticas e constituição da sociedade através das eras, mas tivemos
de sair cedo para pegar o Eurostar para Londres.
Na Inglaterra, tomamos chá no Centro para o Realismo
Crítico. Roy Bhaskar tentou convencer-nos de que a realidade
(lá fora) existe independentemente das descrições que fazemos
dela. Transpondo o argumento realista acerca de mecanismos
causais gerativos das ciências naturais às ciências sociais, ele
explicou seu modelo da ação social transformada, transforma-
tiva e transformacional. Ele nos deixou um tanto perplexos, no
entanto, quando adicionou, com um sorriso, que o realismo
crítico dialético era certamente a melhor teoria disponível da
“demi-realidade”, mas que, para erguer o véu de Maia e acessar
o ser real, a conversão espiritual e a meditação eram necessárias.
Margaret Archer, a decana do movimento realista nas ciências
sociais, concordou com Roy, mas confessou que acreditava em
um Deus pessoal. Ela se lançou em uma crítica da teoria da estru-
turação de Giddens porque esta funde agência e estrutura e não

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pode dar conta da emergência de estruturas sociais e culturais
com seus próprios poderes causais. Como uma alternativa, ela
propõe uma teoria morfogenética da cultura, da estrutura e da
agência. Intrigantemente, Archer sugeriu que os atores mediam
ativamente seu próprio condicionamento social e cultural por
meio de conversações internas que mantêm consigo mesmos
a respeito de seus projetos de vida. Nossa última parada na
Inglaterra foi na LSE, onde esbarramos com Nikolas Rose, a princi-
pal força por trás da interdisciplina anglo-australiana dos Estudos
sobre a Governamentalidade. Estes teorizam e analisam empiri-
camente a multiplicidade de teorias e vocabulários, metodologias
e tecnologias, instrumentos e técnicas de domínio por meio dos
quais uma rede heterogênea de agências governamentais e não
governamentais busca controlar e regular, moldar e modular a
conduta dos indivíduos de uma população ao se exercerem sobre
(e através das) suas aspirações e intenções. Permanecendo no
campo neofoucaultiano, também checamos os escritos de Hardt
e Negri sobre a “Multidão” e de Giorgio Agamben sobre o estado
de exceção. Esperávamos deste uma dura análise das prisões da
Baía de Guantánamo, mas, ao invés disso, fomos arrastados para
o debate entre Benjamin e o nazi-filósofo Carl Schmitt sobre as
brechas na constituição e na ditadura.
No dia seguinte, voamos para a Alemanha, onde a teoria dos
sistemas e Habermas ainda dão as cartas. Como Luhmann não
está mais por lá, tivemos de nos contentar com um de seus livros.
Escolhemos Ecological communication e tentamos descobrir
como a junção espaguética de conceitos como contingência,
sistema, ambiente, complexidade, comunicação, significado,
autopoiesis, abertura via fechamento, reentrada etc. funciona
de fato dentro de uma abrangente superteoria sistêmica e inter-
disciplinar da sociedade mundial funcionalmente diferenciada.
Logo depois, fomos a Frankfurt e encontramos Axel Honneth
trabalhando no antigo escritório de Adorno. Ele nos explicou
como, através de uma leitura cruzada de Mead, Hegel e da
teoria das relações de objeto, havia tentado partir dos escritos do
jovem Hegel para pensar a luta pelo reconhecimento como uma
alternativa corretiva à teoria da ação comunicativa de Habermas,
alternativa que seria capaz de integrar a ética do cuidado (ethics
of care), a ética comunitária e a moralidade kantiana em uma
perspectiva integrada que buscaria compreender as lutas atuais

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dos movimentos sociais, como os levantes na França, por exemplo,
que haviam acabado de explodir quando deixamos Paris. Em
Munique, fomos recebidos por Ulrich Beck, recém-chegado do
Reino Unido. Como sua trilogia sobre o cosmopolitismo ainda
não havia sido traduzida, ele decidiu nos dar uma aula sobre as
“categorias-zumbi” da primeira modernidade, como Estado-nação,
classe, família e trabalho por exemplo, e apresentou a teoria da
modernização reflexiva como uma mudança positiva de proble-
mática para pensar os desafios da sociedade mundial de risco.
Nos Estados Unidos, pesquisamos os legados parsoniano
e goffmaniano e convidamos Harold Garfinkel, Anne Rawls e
Randall Collins para um workshop com Jeffrey Alexander na
Universidade de Yale. Garfinkel apareceu com uma meia de
cada cor e nos apresentou algumas evidências para fenômenos
localmente produzidos e naturalmente inteligíveis e justificáveis
de ordem*, lógica, razão, significado, método etc. na e como
parte da essencial quididade da sociedade ordinária imortal.24
Anne Rawls, outra integrante da gangue etnometodológica,
desenvolveu uma análise goffmaniana da ordem da interação
como uma ordem moral sui generis e apresentou-a como a
contraparte sociológica da ética do cuidado. Por último, mas
não menos importante, Randall Collins nos ofereceu um resumo
de sua teoria das cadeias de interação ritual. Por meio de uma
fascinante montagem teórica baseada na sociologia do conflito
de Weber, na microssociologia radical e na análise de redes, ele
compactou 2000 anos de desenvolvimento da filosofia no mundo
e explicou a evolução desta em termos de uma luta contínua
entre cadeias de pessoas, movidas por energia emocional e
capital cultural, em busca da ocupação de um pequeno número
de centros de atenção. Tendo revisado panoramicamente as
novas tendências da sociologia tomando-as contra o pano de
fundo da sociologia cultural de Alexander, que operava como
referência e repertório comum para nossa própria teorização,
nos perguntamos como poderíamos remoralizar e repolitizar as
estruturas culturais hegemônicas e fundá-las em uma fenome-
nologia mais dialética da ação. A sugestão veio quando estávamos
tentando reconectar a sociologia cultural ao realismo crítico, o
realismo crítico à hermenêutica filosófica, a hermenêutica filo-
sófica ao pós-estruturalismo, o pós-estruturalismo à teoria dos
sistemas e a teoria dos sistemas à teoria crítica da sociedade. Em

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outras palavras, o que emergia no horizonte, sempre recuando
conforme nos aproximávamos, era uma teoria social multi-
dimensional do presente que integraria uma hermenêutica
crítica do espírito objetivo a uma fenomenologia moral da ação
social transformativa transformada. 25 De qualquer maneira,
concordamos em nos reunir novamente, no ano seguinte, para
refletir mais, cavar mais fundo, ir mais longe com Cornelius
Castoriadis, Johan Arnason, Michael Mann, Boaventura de Sousa
Santos, Dipesh Chakrabarty, Jan Nederveen Pieterse, Löic
Wacquant, Craig Calhoun, Charles Tilly, Barry Wellman, Nigel
Thrift, Hans Herbert Kögler, Stephan Fuchs e Alberto Mellucci.
Tradução de Gabriel Peters

(Capítulo publicado originalmente em: VANDENBERGHE, Frédéric. The


age of epigones: post-bourdieusian social theory. In: DELANTY, G. (Ed.).
Handbook of contemporary European social theory. London: Routledge,
2006.
Agradeço a Gerard Delanty pelos comentários e a Bernard Lahire por sua
colaboração.)

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C A P Í T U LO 3

PARA MICHEL FREITAG


UMA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO
PARA NOSSO TEMPO

Durante mais de trinta anos, Michel Freitag, o spiritus rector


da École de Montréal, vem trabalhando, em relativo isolamento,
no desenvolvimento de uma grandiosa teoria social total, dialética
e crítica cujos graus de generalidade, complexidade e sistemati-
cidade facilmente igualam – e talvez até superem! – aqueles das
teorias de Arendt, Habermas, Giddens, Luhmann ou, neste caso,
Touraine, que orientou sua dissertação sobre teorias do desen-
volvimento nos anos 1960. Embora Freitag tenha, nesse meio
tempo, adquirido um discipulado e uma reputação em Québec
quase comparável àquela de Charles Taylor, seu homólogo an-
glófono em Montreal, temos de reconhecer que, na França, seu
trabalho não recebeu a atenção que merece, permanecendo, como
resultado, em larga medida, desconhecido. Talvez os mundos
anglófono e lusófono tenham primeiramente de descobri-lo e
discuti-lo antes que o universo francófono venha a notar, even-
tualmente, que possuía um grande teórico no seu meio durante
todo esse tempo. De qualquer modo, se escrevo este texto, é
porque estou convencido de que sua obra merece ser traduzida
e na esperança de que isto leve a uma recepção internacional e
discussão crítica do trabalho de Michel Freitag.1

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UMA FENOMENOLOGIA SOCIOLÓGICA
DO ESPÍRITO

Largamente viajado e bastante erudito, Michel Freitag é


um homem da Renascença que busca apreender, como disse
Hegel, seu próprio tempo em pensamentos. Apesar de sua
modéstia pessoal, seu projeto teórico é altamente ambicioso e
um tanto anacrônico, na medida em que busca nada menos do
que sistematizar e sintetizar os diferentes fragmentos do conheci-
mento humano em uma inclusiva filosofia sociológica da história,
humanista em intenção e enciclopédica na forma. Refletindo
filosófica, antropológica, sociológica e historicamente acerca da
condição humana em todas as suas dimensões – da religiosa e
cultural à econômica e tecnocientífica –, o teórico social nascido
na Suíça apresenta uma tipologia desenvolvimental dos modos de
produção da sociedade, tipologia que reconstrói criticamente a
história universal em seus aspectos ontológico, epistemológico,
teórico e metodológico. Freitag, no entanto, não é apenas um acadê-
mico, mas está engajado existencial e politicamente; trata-se de um
intellectuel engagé que combina magistralmente pesquisa rigorosa
e engajamento vigoroso, como pode ser visto, por exemplo, em
sua ácida crítica do chamado “AMI”, o Acordo Multilateral de
Investimentos (MAI – Multilateral Agreement on Investments)
que desencadeou a resistência do movimento antiglobalização
em Seattle quando ficou claro que o que estava sendo realmente
proposto pela Organização Mundial do Comércio era a capitulação
legal da política dos Estados-nação aos interesses corporativos da
classe capitalista transnacional (Freitag; Pineault, 1999).
De modo a seguir as aventuras do “espírito objetivo” ao longo
das eras, Freitag se insere na tradição neo-hegeliana e teoriza a
história universal em termos de uma sequência dialética, mas não
teleológica, em que o espírito descobre a si mesmo e se interio-
riza na tradição, se exterioriza na modernidade e, finalmente, se
aliena e se perde na pós-modernidade. Seu projeto de desen-
volver uma teoria social dialética das condições de produção e
reprodução da sociedade, bem como da transformação histórica
de suas mediações através das eras (das sociedades primitivas e
tradicionais às modernas e pós-modernas), deveria aparecer
inicialmente em cinco volumes, dos quais apenas dois vieram a
lume até agora.2 O projeto geral de Dialectique et Société abrange

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quatro níveis. Perfazendo seu caminho da base ao topo, “como
na construção de um prédio que se quer solidamente fundado”
(Freitag, 2002: 41), Freitag apresenta o projeto de uma teoria
geral da prática simbólica como a fundação fenomenológico-
-hermenêutica de sua construção (volume 1), fundação na qual
a tipologia desenvolvimental dos diferentes modos de regulação
das práticas e de constituição da sociedade está baseada (volume 2).
A distinção ideal-típica entre três modos formais sucessivos e
superpostos de reprodução da sociedade (os modos “simbólico-
-cultural”, “político-institucional” e “decisório-operacional”),
distinção que forma o principal andar da construção, serve como
um preâmbulo teórico-geral para uma análise histórico-sociológica
mais concreta da dinâmica da sociedade (volume 3), a qual, por
sua vez, encontra seu ponto de culminância e aplicação na crítica
das tendências dessimbolizantes do modo sistêmico de repro-
dução característico da pós-modernidade (volume 4). Sendo a
lógica abstrata do desenvolvimento histórico assim substanciada
com uma análise concreta da dinâmica social da história, análise
que forma, por assim dizer, o segundo andar da construção, o
edifício se completaria supostamente com uma reflexão realista
crítica, antipositivista e hermenêutico-dialética sobre a natureza
ontológica do social e os métodos adequados de análise socio-
lógica da constituição da sociedade.
Os artigos longos, densamente argumentados e firmemente
estruturados sobre pós-modernidade, cultura, política, economia
e tecnologia, os quais Freitag reescreveu e atualizou especial-
mente para o livro L’oubli de la société (2002), são fragmentos
do terceiro e quarto volumes, que formam o segundo andar da
construção teórica.3 Como tais, os artigos pressupõem ao menos
algum conhecimento prévio da teoria geral da prática simbólica
e da teoria do desenvolvimento societal nas quais estão alicerça-
dos – o que explica em parte por que, apesar da sutileza do seu
pensamento, a escrita é por vezes repetitiva, enquanto a leitura
é invariavelmente pesada.
A teoria geral da prática simbólica tem algumas afinidades
notáveis com a teoria da estruturação, mas, diferentemente
de Giddens, Freitag opta resolutamente por uma concepção
holista, realista e estruturalista de sociedade, compreendida
como a totalidade de mediações objetivas que determinam as
práticas simbólicas. A ideia básica da teoria geral da prática

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simbólica – entendida, com Piaget e Arendt, como uma relação
desenvolvimental de objetivação – é a de que toda prática
já está sempre e inevitavelmente embebida em uma teia de
representações (do mundo, da sociedade, do outro e do self) e
significações (cognitivas, normativas e estéticas), teia que funciona
como uma ordem transcendental a priori de determinação que
regula e unifica as práticas, as quais, por sua vez, reproduzem a
sociedade. Ao introduzir a cultura como uma totalidade virtual
transcendental que forma, informa e regula a priori as práticas
simbólicas que produzem e reproduzem a sociedade (práticas
que bebem da ordem simbólica e, ao fazerem-no, atualizam
algumas de suas representações e significados), Freitag forjou de
modo bem-sucedido uma conexão dialética entre a regulação
das práticas e a reprodução da sociedade, estabelecendo, ao
mesmo tempo, uma conexão interna entre agência e estrutura, a
última sendo “não apenas o meio, mas também o resultado” das
práticas significantes.
A “dialética dupla” entre agência e estrutura, inicialmente
apresentada em uma perspectiva ontológica e sincrônica, forma
a base e o ponto de partida de uma teoria desenvolvimental dos
modos de regulação das práticas e de reprodução da sociedade.
Reanalisada em uma perspectiva histórica e diacrônica, a descrição
ideal-típica de uma sociedade concebida como uma comunidade
linguística reaparece agora, formalmente, como o primeiro
modo de reprodução, o modo “simbólico-cultural”, o qual,
“suprassumido”, será sucedido na modernidade pelo modo
“político-institucional” e, posteriormente, subvertido e tenden-
cialmente abolido na pós-modernidade pelo modo “decisório-
-operacional”.
O modo “simbólico-cultural” de reprodução da sociedade é
característico de sociedades primitivas “sem política” e “sem
história”, ou, mais precisamente, “sem historicidade” (no sentido de
Alain Touraine). Tão logo essas sociedades tornam-se conscientes de
si mesmas através de uma projeção idealizada de sua representação
simbólica, primeiramente sob a forma de mitos, mas também, mais
tarde, sob a forma de seus equivalentes funcionais (cosmologias,
religião e as ideologias de legitimação do Iluminismo/Esclarecimento),
a transição para o modo político-institucional de reprodução já
se inicia. Baseando-se nas teologias políticas de Claude Lefort e
Marcel Gauchet, Freitag teoriza a transição da Gemeinschaft para

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a Gesellschaft por meio de uma análise histórica das modifica-
ções nas representações simbólicas da sociedade (da absoluta
transcendência de Deus à relativa transcendência da sociedade na
forma de um poder quase divino, simbolicamente representado,
primeiramente, pela pessoa do Rei e, posteriormente, do século
XVIII em diante, pela instância do Direito) que mantêm a unidade
da sociedade para além dos conflitos que a dividem, dando a
ela, assim, um senso de unidade, identidade e orientação. Graças
a esta suprassunção, sublimação e racionalização progressivas
da representação simbólica que têm de si mesmas, as socie-
dades modernas podem produzir reflexivamente suas próprias
mediações e regulações, sob a forma de instituições políticas
legítimas que geram normas e regras e assumem algumas das
funções anteriormente preenchidas pela linguagem, garantindo
assim sua própria reprodução. Na medida em que a instituição
política que legisla sobre normas e regras permanece atada, para
sua legitimação, a certos princípios universais (razão, direitos
humanos, a constituição, o estado de direito etc.), a referência à
unidade transcendental da sociedade é mantida.
Com a transição à pós-modernidade e o advento do modo
“decisório-operacional” de reprodução que a define, este não é
mais o caso. De acordo com Freitag, o modo “decisório-operacional”
de reprodução da sociedade tende assintoticamente à dissolução
das mediações transcendentais que dão uma unidade a priori à
sociedade e, portanto, à dissolução da própria sociedade, com
sua transformação em um sistema social autorreferencial unificado
a posteriori através de uma adaptação e acomodação ao seu
ambiente mutável – como brilhantemente teorizado por Luhmann,
o arauto da pós-modernidade.Diferentemente das sociedades
tradicionais e modernas, os sistemas sociais pós-modernos não
“suprassumem” (negam e preservam em uma síntese superior),
mas subvertem as mediações simbólico-culturais que conferem
um significado e um sentido às práticas simbólicas do mundo da
vida, ao mesmo tempo que desfiguram as mediações político-
institucionais (que até então imbuíam a sociedade de uma
capacidade de orientação normativa e autoprodução) ao utilizá-
-las para seus próprios fins:

ma regulação das relações sociais através da instituição


U
a priori de regras gerais idealmente sancionadas de modo

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uniforme será sucedida, portanto, por um novo regime de
controle direto da realidade ambiente, tanto social como
natural, que irá operar a posteriori e localmente de modo
estratégico, pragmático, procedimental e operacional, por
meio de adaptação, programação e decisões; tudo isto está
acontecendo independentemente de qualquer referência univer-
salista a um princípio comum e abstrato de legitimidade, mas de
acordo com critérios circunstanciais de eficácia e no contexto
de relações de poder que são, por definição, móveis (Freitag,
2002: 61).

Ainda que a transição da modernidade à pós-modernidade


seja contínua e, por assim dizer, insidiosa – as instituições da
modernidade são subvertidas e minadas a partir de dentro para
que seja possível resolver ou, ao menos, acomodar algumas de
suas tensões e contradições estruturais –, ela não representa
simplesmente uma transformação estrutural da modernidade,
constituindo, na realidade, uma “mutação ontológica” na própria
constituição da sociedade.

O FIM INADVERTIDO DA SOCIEDADE

L’oubli de la société é inteiramente devotado a uma análise


genealógica e crítica do modo “decisório-operacional” de repro-
dução que define a pós-modernidade, em oposição às mediações
institucionais da modernidade e às mediações simbólicas da
tradição. Logo após a introdução útil e clara ao projeto socio-
teórico de Dialectique et société por Yves Bonny (um de seus
antigos estudantes que é também um renomado jogador de
xadrez), Michel Freitag abre o primeiro capítulo do livro com uma
apresentação geral dos contornos distintivos da pós-modernidade,
acompanhando, no restante da obra (organizada tematicamente),
suas implicações nos campos da cultura e das artes (cap. 2), da
identidade e da política (cap. 3), da economia (cap. 4) e da ciência
e tecnologia (cap. 5) – os desenvolvimentos nos dois últimos
campos condicionando e desencadeando os desenvolvimentos
nos dois primeiros. Ainda que a análise crítico-genealógica do
modo sistêmico de reprodução seja, de modo geral, clara e
convincente, ela é, entretanto, um pouco unilateral, para não
dizer unidimensional. Freitag dramatiza o advento iminente da

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pós-modernidade a tal ponto que a mutação ontológica da socie-
dade assume a aparência de uma aterrorizante catástrofe antro-
pológica – o fim inadvertido da sociedade representa também o
fim da cultura e da política, enquanto a dominação da economia
e da tecnologia anuncia o agourento fim da subjetividade em
termos que são assustadoramente similares àqueles da Escola de
Frankfurt. Mas, antes de criticarmos o rumo principal dos
argumentos do livro, resumamos brevemente cada um dos seus
capítulos.
O capítulo sobre a cultura afirma que, em seguida à dife-
renciação e autonomização do Estado e da economia entre
os séculos XV e XVIII, a cultura perdeu a função sintética a
priori que possuía quando ainda era coextensiva ao mundo
da vida. Liberta de sua função reprodutiva, a cultura comum
de outrora se estilhaçou em um processo duplo de fragmentação
e especialização: por um lado, ela fragmentou-se em uma
multiplicidade de culturas quase folclóricas que servem como
reservas de significado e, por outro, se diferenciou em uma série
de subsistemas culturais que seguem suas próprias leis. Como uma
reação e compensação à dissolução das mediações culturais, o
conceito de alta cultura emergiu na modernidade com o projeto
e a promessa de retotalização – a arte como uma “promessa de
felicidade” (Stendhal). O projeto modernista falhou, no entanto,
de acordo com Freitag: objetivamente, o mundo unificado da arte
se decompôs em uma pluralidade de mundos artísticos invadidos
pelo mercado; subjetivamente, a arte moderna não é mais uma
expressão do sujeito, mas constitui hoje o objeto de uma angus-
tiada busca de identidade.
As transformações históricas na rede de relações entre
identidade, alteridade e política são tratadas no próximo
capítulo, iniciado mais uma vez com uma análise da moderni-
dade. Na modernidade, a unidade e a identidade da sociedade
são representadas pelo Estado, que cuida do interesse geral e
encontra sua legitimação última em uma referência transcen-
dental à razão universal, da qual cada indivíduo participa, ideal
e contrafactualmente, como pessoa e cidadão. Historicamente,
esta unificação da sociedade em um Estado que a representa
foi realizada, entretanto, sob a forma de concessões políticas
do Estado-nação a comunidades particularistas em luta contra a
tradição e pela soberania.

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Apesar desse elemento particularista, os movimentos políticos
da modernidade retiveram, não obstante, uma referência a uma
fundação transcendental como uma legitimação da soberania
do Estado e agiram como um sujeito histórico unificado em suas
lutas contra a tradição e a aristocracia. Este não é mais o caso
com os movimentos sociais e, a fortiori, com os novos movi-
mentos sociais, cuja aparição na cena marca a plena transição à
pós-modernidade de acordo com Freitag. Decompondo o sujeito
histórico-político da modernidade em uma pluralidade de (novos)
movimentos sociais, como o movimento dos trabalhadores, o
movimento das mulheres, o movimento civil nos Estados Unidos
etc., eles dirigem suas demandas coletivas a diferentes instâncias
públicas e semipúblicas e negociam com estas com vistas à reali-
zação de seus interesses particulares, não tendo mais como alvo
a sociedade como tal.
Através de uma brilhante leitura crítico-ideológica da descrição,
oferecida por Schumpeter, da emergência da economia como uma
disciplina autônoma no século XVIII, Freitag analisa, no penúl-
timo capítulo, as condições de emergência da economia como
um sistema social autônomo (como uma “crematística” que não
é mais uma oikonomia, como diria Aristóteles). Começando pela
demonstração de que a emergência da economia pressupõe o
direito à propriedade e seu reconhecimento pelo Estado, Freitag
não apenas mostra que a economia não pode ser desconectada
da política e que ela é, de fato, “planejada” (como disse Polanyi
certa vez), mas também, e mais interessantemente, que este reco-
nhecimento institucional da propriedade privada pressupõe, por
sua vez, a liberação dos bens em relação aos contextos normativos
em que estavam tradicionalmente imersos, liberação que se dá
com respeito tanto à sua produção e consumo quanto às relações
sociais de dependência que tais bens mediavam. Dessa forma,
liberado de seu contexto social e normativo concreto, o “livre mer-
cado” torna-se autônomo e começa a colonizar o mundo da vida,
como diria Habermas. Na Europa, as tentativas social-democratas
de reformar e domesticar o capitalismo falharam, enquanto os
movimentos sociais foram incorporados ao sistema. Nos Estados
Unidos, na esteira do reconhecimento jurídico das corporações
privadas como pessoas morais e legais, a “revolução gerencial”
dos anos 1930 pavimentou o caminho para uma sociedade pós-
-moderna que está totalmente fora de controle e funciona como
um sistema cibernético autônomo e auto-organizado.

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O livro conclui sua crítica radical da “mutação ontológica” da
sociedade em direção a um sistema tecnocrático com uma análise
genealógica da natureza da tecnologia. Ontologicamente, a tecnologia
representa uma dimensão formal de atividade já presente no
mundo animal, ainda que só encontre seu pleno desenvolvimento
nas sociedades humanas. Diferentemente das sociedades pré-
-modernas, as quais interiorizaram a ordem simbólica que unifica
sinteticamente as práticas, as sociedades modernas exteriorizaram
a ordem instrumental em um sistema tecnológico autônomo que
permite a elas um domínio bem-sucedido da natureza. As socie-
dades pós-modernas completam a destruição moderna da cultura
comum e suplementam a dominação tecnológica da natureza com
a administração tecnocrática da sociedade, operante através do
controle científico direto da consciência e do comportamento dos
indivíduos. Por meio da comunicação, da informação e de outras
operações tecnocientíficas de natureza tecnocrática, os indivíduos
são diretamente integrados ao sistema e aos seus subsistemas
como componentes, enquanto a unidade da sociedade e de seus
subsistemas é reestabelecida a posteriori em e através de um
sistema cibernético autônomo de controles interligados. Tudo isso,
conclui Freitag com um toque de desespero, mostra que Luhmann
está tragicamente certo, ainda que normativamente errado.

CRÍTICA REDENTORA

A crítica dialética da pós-modernidade desenvolvida por nosso


sociólogo combatente não é, obviamente, pós-modernista. Mas
também não estou convencido de que ela seja modernista. Na
realidade, por vezes suspeito que Freitag, o homem da Renas-
cença, nos apresente não tanto uma crítica moderna, mas uma
crítica pré-moderna da modernidade e da pós-modernidade.
Expandindo e atualizando a crítica radical da modernidade
levada a cabo pela Escola de Frankfurt, o fundador da Escola de
Montreal não projeta, entretanto, o início da história da reificação na
Odisseia, como fizeram Adorno e Horkheimer, mas parece
localizar, não obstante, o estopim do movimento de decompo-
sição da ordem simbólica transcendental (decomposição que
marca o fim inadvertido da sociedade) em algum lugar no fim
da Renascença. Com efeito, em sua reconstrução dialética da

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lógica interna dos modos de reprodução da sociedade, tudo se
passa como se a transição da modernidade à pós-modernidade
já estivesse pré-inscrita – como um bicho na maçã – na transição
da tradição à modernidade. Se este é efetivamente o caso e o
fim da religião já anuncia inevitavelmente o fim da sociedade,
então não há saída, mas apenas um caminho de volta – a Weber:
“Retornem em silêncio, simples e quietamente, para os braços
abertos da igreja, plena de clemência.”
Isto pode soar excessivamente duro, mas não é, pois o outro
lado de minha crítica é a congratulação, e até mesmo o fascínio,
diante da beleza e profundidade de sua análise do modo simbólico-
-cultural de reprodução, assim como da ontologia normativa em
que esta análise está fundada, ontologia à qual Freitag alude
de tempos em tempos, em comentários de passagem sobre o
mundo como um Universum bem ordenado que prescreve as
normas próprias para cada existência contingente – dos piolhos
e camelos até nós mesmos. O único problema, entretanto, é
que, conforme o tempo avança e nos aproximamos do presente,
o modo simbólico de regulação das práticas tende simplesmente
a desaparecer da cena. Ainda que Freitag insista repetidamente
em que sua descrição do modo “decisório-operacional” de
reprodução é apenas uma extrapolação (e, portanto, um “exagero”,
como diria Adorno), bem como que a pós-modernidade repre-
senta apenas o horizonte de um futuro possível que ainda não
chegou, a distância entre nosso passado e o futuro iminente é
tão imensa que torna-se um abismo no qual todas as mediações
simbólicas e institucionais tendem a desaparecer “como uma vaca
na noite negra” (Hegel).
Esta visão sombria do presente poderia, no entanto, ser
facilmente superada com uma dose extra da dialética capaz de
redimir o passado e colocá-lo para trabalhar no presente, de modo
a corrigir o futuro. Ao invés de assumir que a base simbólica da
sociedade é “suprassumida” e “subvertida” na pós-modernidade,
pode-se também insistir na presença necessária e contínua do
modo simbólico e, assim, ao mesmo tempo, romper (e romper
com) as pressuposições evolucionistas da sua narrativa histórica
grandiosa que nos traz da pré-modernidade até a modernidade
dos Estados-nação europeus e, então, cada vez mais depressa,
à pós-modernidade e à hegemonia dos Estados Unidos e de
sua “não cultura”. Procurando, com Hegel, “pela rosa na cruz

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do presente”, pode-se assim submeter o presente a “uma crítica
redentora”, mostrar que o passado ainda está ativo no presente
e talvez até mesmo espacializar todo o exercício de maneira que
os modos diacrônicos de reprodução da sociedade possam ser
sincronicamente justapostos uns aos outros e encontrados em
operação em qualquer formação social.
Mobilizando mais uma vez o método dialético contra o
fechamento tendencial do sistema, abrimos caminho para
uma interpretação mais construtiva do presente, interpretação
que segue e rastreia as manifestações do espírito objetivo não
apenas em sua ausência, mas também em sua presença. Tal inter-
pretação dialética do presente ainda apontaria para a reificação
do espírito, mas também indicaria, ao mesmo tempo, as forças
e movimentos sociais que buscam reanimá-lo. Da perspectiva
desta “crítica redentora”, os novos movimentos sociais não
seriam mais vistos como meros grupos de pressão que aparecem
e desaparecem, mas analisados, compreendidos e apoiados, por
meio de uma intervenção sociológica, como uma encarnação
do “espírito do mundo” e um sinal de que um sujeito histórico
global está surgindo sob a forma de uma rede global de
resistência flexivelmente organizada. A despeito das intenções
críticas de Freitag, não considero sua análise dos movimentos
sociais muito útil, para não falar dos novos movimentos sociais.
Necessitamos de mais dialética precisamente porque vivemos às
vésperas da pós-modernidade e nos confrontamos com a petri-
ficação global do espírito objetivo.
E também de mais diálogo. Com teorias e teóricos sociais.
Com seu ex-orientador Touraine, obviamente, mas também com
Habermas, o qual, juntamente com seu amigo Karl Otto-Apel,
é muito rapidamente descartado por “haver sucumbido durante
trinta anos” a uma abordagem “pragmática” e “operacional” das
ciências sociais que constituiria parte e parcela da tecnocracia e
da pós-modernidade. E também, talvez, com Deleuze e Latour,
que são de fato pós-modernistas, mas cuja abordagem rizomática
do social pode ajudar nosso professor de sociologia aposen-
tado a fluidificar suas categorias e a teorizar as resistências ao
sistema pós-moderno que se apresentam a partir do seu inte-
rior. Portanto, o que é necessário é mais diálogo entre Freitag
e seus contemporâneos, de maneira que os últimos não sejam
apressadamente descartados como pós-modernistas, nem o

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primeiro como um tradicionalista que, seguindo os passos de seu
compatriota Rousseau, desapareceria na floresta canadense.
Através do diálogo, maiores doses de dialética e de modernidade
serão inseridas na crítica da pós-modernidade. Mais diálogo, para
que a crítica da pós-modernidade e dos pós-modernistas possa
ser flexibilizada, e mais dialética também, para que, por meio de
uma correção interna do seu antimodernismo, a crítica radical
da pós-modernidade possa ser transformada imanentemente em
uma teoria crítica da modernidade tardia, tomada em toda a sua
ambivalência, perigos e esperanças.
Tradução de Gabriel Peters

(Capítulo publicado originalmente em “A phenomenology of spirit for our


times”. European Journal of Social Theory, v. 6, n. 3, p. 357-365, 2003.)

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C A P Í T U LO 4

RECONFIGURAÇÃO DA TEORIA DOS


ACTANTES RIZOMÁTICOS

Ser radical é tomar as coisas pela raiz,


mas a raiz para o homem é o próprio homem.
Marx. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel

Sem nunca mencionar explicitamente os membros funda-


dores do coletivo CALL, formado por Callon, Akrich, Latour
e Law – e sobretudo sem invocar as “massas ausentes” de
acólitos fiéis e outros contadores oficiais de “breves relatos”
que misturam alegremente humanos e não humanos, mas sem
chegar ao extremo de confundir seus cônjuges com chapéus –, vou
tentar neste texto “refuncionalizar” (Brecht) politicamente a teoria
dos actantes rizomáticos, a fim de orientá-la dialeticamente na
direção crítica e humanista. Começando com os mesmos
elementos da linguagem voluntariamente empobrecida da teoria
do ator-rede, vou modificá-los ligeiramente para que entrem,
como no theologumenon judeu, numa nova constelação que
considera os humanos e, quem sabe?, também os não humanos
“do ponto de vista de sua redenção” (Adorno, 1980: 283).

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ONTOLOGIAS REGIONAIS:
DASEIN E MITSEIN DOS SERES

Vamos partir de Wittgenstein e adotar provisoriamente seu


modo de expor paratático. Assim como “as explicações devem
terminar em algum ponto” (Wittgenstein, 1953: 3), a rede
emaranhada que confunde experimentalmente humanos e não
humanos não pode continuar indefinidamente. Para demonstrar
isso, proponho que se reconsidere a famosa cena de abertura
das Philosophical investigations (Wittgenstein, 1953: 3 et seq.; cf.
também Wittgenstein, 1958: 77 et seq.): a comunicação entre um
pedreiro A e seu ajudante B. B deve trazer tijolos para A. Há
tijolos e lajes, vigas e traves, colunas e colunetas. Quando A grita
“tijolo”, B traz uma pedra de certo tamanho, e quando grita “laje”,
B traz uma pedra de tamanho diferente. Quando A ordena “este
tijolo!”, B traz o tijolo indicado; quando A grita bem alto “lá, o
tijolo!”, o ajudante leva o tijolo para o lugar designado. Vamos,
por isso, dizer que A e B estão unidos pelos tijolos, que o tijolo
é, por assim dizer, o cimento que os mantém juntos? Ou vamos
preferir dizer que A e B coordenam seus planos de ação porque
conhecem o jogo de linguagem dos pedreiros e sabem como
ordenar os atos de linguagem?
Para responder a essa pergunta, vamos transportar nosso
pedreiro e seu ajudante de Cambridge para Frankfurt e conside-
remos outra cena de ação (Habermas, 1981, v. 2: 185 et seq.): o
pedreiro A diz a seu auxiliar B para ir buscar umas cervejas para
a hora do almoço. B entendeu muito bem a ordem do patrão e,
dali a meia hora, volta com meia dúzia de garrafas de cerveja. Os
pedreiros param de trabalhar, sentam-se ao lado da camionete,
pegam a caixa com o lanche e abrem as cervejas para começar
a refeição. Nenhuma ambiguidade. Mas vamos agora pensar
uma cena ligeiramente diferente. B é um jovem desempregado
que acaba de ser admitido como aprendiz. A manda que ele vá
buscar a cerveja. Embora tenha entendido a ordem, B recusa-se
a cumpri-la, a pretexto de não haver nas imediações nenhum
bar, ou porque ele não é escravo, ou ainda afirmando claramente
que já está farto de ser ridicularizado pelo patrão. Pouco importa
que as pretensões à validade emitidas nos atos de linguagem
pertençam ao domínio cognitivo, normativo ou expressivo: é
claro que a ação só pode proceder sem escolhos quando as

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pessoas em questão estão de acordo numa definição consensual
qualquer da situação de ação. Ao contrário das aparências, não
são as garrafas de cerveja que “ligam” nossos pedreiros, mas sim
o fato de compartilhar uma forma de vida na qual os planos de
ação em comum são coordenados por um entendimento implí-
cito ou explícito sobre as pretensões à validade que cada ato de
linguagem contém.
O jogo de linguagem não é puramente linguístico. Contém
não só palavras, mas também coisas. Ambas estão articuladas
pelas práticas discursivas que constituem os tijolos como tijolos-
-de-construção (Laclau; Mouffe, 1985: 108). Mesmo que a noção
de jogo de linguagem seja entendida de modo a incluir o não
linguístico – como fazem os pós-estruturalistas ao conceber as
práticas discursivas como práticas materiais que remetem a ideias
e a ideologias que se infiltram e se incorporam nas organizações,
instituições, interações etc. –, são sempre as formações discursivas
que juntam os tijolos e as lajes e que organizam as garrafas de
cerveja e os sanduíches dispersos num conjunto relacional. Os
tijolos e as lajes, as vigas e as traves, as caixas de lanche e as
cervejas agem? Coordenam suas ações por meio de uma definição
comum da situação? Mantêm-se juntas ou ficam separadas por
acordos, conflitos ou mal-entendidos? É claro que não. Não se
deve confundir o pedreiro com a casa. Tijolos, vigas e lajes não
agem, e as caixas de lanche e as cervejas também não. Só os ho-
mens (e os animais) podem agir (ou padecer), no sentido forte e
antropomorfo da palavra. Como não dispõem de intencionalidade,
os artefatos (inclusive os computadores e os robôs) não agem.
Voltando às coisas mesmas (zu den Sachen selbst) a fim de
analisar como garrafas de cerveja, vigas, tijolos, macieiras em flor
e pedreiros se entregam à consciência e são intencionalmente
constituídos como dados da consciência, podemos ver com
evidência que os humanos e os não humanos são diferentes
por essência, ou, para usar a linguagem um pouco antiquada
da fenomenologia de Husserl, que eles pertencem a diferentes
“ontologias regionais” (Husserl, 1952, I: 7-23; III: 21-53). Seja qual
for o ser humano ou o ser não humano que consideramos, e seja
qual for o modo como os consideramos, a essência (eidos) – que
predetermina o que eles devem necessariamente ser para serem
efetivamente seres de certa natureza – pode ser determinada
a priori pelo processo chamado “variação eidética”. Graças à

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instalação de um processo experimental de variação imaginada
dos dados imediatos da consciência, podemos estabelecer a
determinação categorial daquilo que faz com que um ser humano
seja humano e um ser não humano, não humano. Começamos
com uma coisa material, por exemplo uma garrafa de cerveja.
Por um ato de imaginação, eu duplico seu tamanho e teor
alcoólico, e, vindo do país da cerveja, substituo a cerveja clara
por uma cerveja escura dos padres trapistas. Depois, mudo sua
composição e o vidro torna-se pedra. Eu a imagino primeiro como
um tijolo, depois como laje ou coluneta. Sejam quais forem as
variações imaginadas, a coisa permanece uma coisa material, o
que significa que ela se estende no espaço-tempo, está sujeita
às leis da natureza, deixa-se subdividir e ser quebrada. Mas, a
menos que eu esteja completamente embriagado, não posso
imaginar que a coisa se põe a dançar ou a falar como um pedreiro,
porque não é da essência da coisa material o mover-se por si
ou falar. Os corpos animados se movem e as pessoas falam; os
seres não humanos não fazem nada disso. Não são animados
como almas incorporadas e não se exprimem. Pertencem a
outra região ontológica – a região da natureza material e não à
da natureza animada ou do mundo do espírito (Husserl, 1952,
II: 90 et seq., 172 et seq.).
Uma das regras fundamentais da análise eidética estipula que
“um conceito fundamental pertencente a uma região ontológica
não pode ser transformado por variação eidética num conceito de
outra região” (Husserl, 1985, II: 435). A “variação livre” (Husserl)
dos humanos e dos não humanos não proscreve sua “associação
livre” (Callon), mas, ao fazer entre eles uma distinção categorial,
limita essencialmente a “livre invenção” de ontologias experi-
mentais, como a da “teoria dos actantes-rizomas” (Lynch), que
contrariam o bom senso e o senso comum e que, ao que se
sabe, nenhum ator histórico jamais reconheceu – a menos que
esteja completamente bêbado. Os pedreiros precisam de tijolos
e de cerveja e, mesmo que sejam explorados e, de fato, quase
sempre tratados como coisas, não podem ser reduzidos ao estado
de entulho assim como as mesas não podem se pôr a dançar
por vontade própria – “para encorajar os outros” (Marx, 1965a:
605, nota 1).
Os humanos e os não humanos não pertencem à mesma
região ontológica. O Dasein dos humanos e o ser dos não humanos

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constituem modos de ser essencialmente diferentes, incomparáveis e
irredutíveis. No entanto, se quisermos compreender corretamente
o ser desses entes, devemos nos assegurar das “condições de
possibilidade dessas ontologias” (Heidegger, 1927: 11) e “revelar”
o fundamento pré-ontológico do qual surge a questão da essência
dos humanos e dos não humanos. Contrariando toda a tradição
intelectualista de Descartes a Husserl e Woolgar, devemos inverter
a prioridade da teoria sobre a prática, constatar que a teoria se
fundamenta na prática, e compreender nosso modo primordial
de ser como um modo prático de ser-no-mundo. Em vez de
analisar como os objetos noemáticos se entregam à consciência
e são sintetizados como objetos de consciência pelo Ego trans-
cendental, devemos analisar, de maneira existencial, o modo de
ser primordial do ente que constitui objetos na consciência.
O modo primordial de ser do Dasein consiste em ser-no-
-mundo, cercado por objetos que encontramos como objetos
“disponíveis” (zuhanden) e não “subsistentes” (vorhanden),
presentes como objetos que se oferecem a nós na preocupação
(práxis) e não na contemplação (teoria) da vida. Tais objetos
que encontramos no interior do mundo ambiente como objetos
disponíveis – tijolos, lajes, martelos, mesas, garrafas etc. – são
“instrumentos” (Zeug) (Heidegger, 1927: 68). É próprio do ser
do instrumento ser essencialmente “algo para... ”, contendo
uma remissão de alguma coisa a alguma coisa, e de inserir-se
num conjunto de instrumentos. Os tijolos e as lajes, as caixas de
lanche e as garrafas estão discretamente disponíveis, “vistas sem
serem percebidas” (seen but not noticed, como diria Garfinkel),
presentes como conjunto de instrumentos ao alcance da mão,
prontas para o lanche. Elas não são encontradas como simples
coisas (res), desconexas, descontextualizadas, autossuficientes,
apresentando-se como entidades espaço-temporais analisáveis
e decomponíveis à vontade, mas como uma série concreta
de objetos (pragmata), disponíveis para o lanche. Um instru-
mento não remete apenas a outros instrumentos, mas também,
indiretamente, à matéria de que é feito e às pessoas que o forne-
ceram, que o prepararam e deixaram disponível com previdência
em relação ao uso que dele será feito. A garrafa de cerveja remete
à areia, ao fogo, ao vidro, ao malte, à água e também, em última
instância, aos consumidores.

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obra não faz apenas encontrar o ente que existe segundo o
A
modo de disponibilidade, mas também o ente que existe segundo
o modo do humano: é para a preocupação deste que o objeto
se tornará um ente disponível. É com esse ser que aparece o
mundo onde vivem os usuários e os consumidores, mundo que
é também o nosso mundo (Heidegger, 1927: 71).

Os humanos e os não humanos estão assim ligados e inter-


conectados num “tecnograma” (Latour) materializado, mas o
modo de ser do Dasein – que é, evidentemente, o modo de ser
dos humanos – é essencialmente diferente do modo de ser dos
não humanos. Ser humano é ser-no-mundo-com-os-outros, ao
passo que os não humanos são indiferentes ao humanos, aos não
humanos e a eles mesmos. Como diz com pertinência Sloterdijk
(2004: 14): “As pedras, uma ao lado da outra, não conhecem a
abertura extática de uma pela outra.”
Quando, no cotidiano, encontramos humanos e não humanos, não
os encontramos como simples coisas, como entes subsistentes
que se produzem no mundo como entidades a conhecer ou a
manipular, nem aliás como aliados potenciais que é preciso
agregar ao coletivo, mas como entidades que pertencem ao
nosso mundo da vida e que estão disponíveis para o uso na
vida cotidiana. Apreendidos sob o “regime da familiaridade”
(Thévenot, 1994a), nós os tratamos com (ou sem) precaução
(Umsicht). Só quando algo não dá certo e os objetos se tornam
inoportunamente indisponíveis em sua “objeticidade” (Latour) e
sua “recalcitrância” (Stengers), é que tomamos consciência deles
e de nós. Então abandonamos a “atitude natural” em proveito
da “atitude naturalista” e começamos a teorizar, caindo assim no
“erro escolástico” (Bourdieu) que consiste em interpretar todos
os modos de ser, humano e não humano, segundo o modo do
ser-subsistente (Vorhandenheit). Esse modo abstrato de teorizar
e de especular, que objetiva tanto os não humanos como os
humanos afastando-os de seu contexto natural por uma violenta
abstração, não leva ao conhecimento de nosso ser-no-mundo, mas
nos afasta dele. Ao renunciar a toda tentativa de compreender
o mundo ambiente pelo lado interior e de interpretá-lo como
um mundo da vida que já compreendemos desde sempre, já
que ele nos compreende em sua mundanidade, entronizamos
como conhecimento um modo “deficiente” de compreensão e,
no final, chegamos a um conhecimento descontextualizado de

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um mundo “desmundanizado” que já não podemos compreender
e reconhecer como o mundo da vida que conhecíamos desde
sempre, mas sem saber.
Uma análise em exterioridade que já não compreende o ser
em primeira instância como ser-no-mundo, mas que passa por
cima do ser daquilo que é disponível, só pode conceber os
não humanos, assim como os humanos, como um contexto de
objetos subsistentes, cognoscível como um “fundo de reserva”
(Gestell) que recruta para seus próprios fins. Tal análise extramun-
dana, que não examina o fenômeno da mundanidade, resvala
necessariamente para um conceito atomístico e formalista do
mundo como concatenação de fatos empiricamente observáveis.
Esse conceito “tractariano” é formalista, já que, em vez de
compreender o mundo pela perspectiva do participante, impõe-
-lhe sua concepção de observador. E ele é atomístico, porque,
ao desfazer a conexão interna entre os seres, elimina o Inter-esse
do conhecimento, o Mitsein próprio do Dasein, e deixa atrás de
si uma massa de humanos e de não humanos essencialmente
desconectados, mas mesmo assim conectáveis à vontade, que já
não se interessam uns pelos outros, tal como o ímã não se inte-
ressa pela agulha. Na medida em que tal análise em exterioridade,
que recusa, apesar das aparências e de empréstimos superfi-
ciais, os mais elementares ensinamentos da fenomenologia e da
etnometodologia, não leva em conta a significância do contexto,
também não pode de fato levar em conta o significado dos
conteúdos da ação. Por conseguinte, as ações perdem o sentido.
Quando são dirigidas para os não humanos, são invariavelmente
pensadas como ações instrumentais, e, quando se referem aos
humanos, são pensadas como ações estratégicas. Em todos
os casos, a análise existencial do Interesse, que caracteriza o
ser-no-mundo primordial do Dasein entre os humanos e os
não humanos, é sistematicamente deslocada por uma análise
formal, atomística, intelectualista e utilitarista dos interesses
vulgares dos humanos que, indo estrategicamente ao encontro
dos humanos e dos não humanos, traduzem seus interesses
na exploração recíproca das atividades de uns e outros, para
a satisfação dos interesses bem entendidos de cada um dos
partidos em questão. Os humanos, portanto, já não são vistos
como seres sociais e cooperantes, motivados por normas e valores,
mas como seres racionais, egoístas e autointeressados que se

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comportam como “centros de cálculo”, associando e dissociando
estrategicamente os humanos assim como os não humanos,
procurando seus próprios objetivos políticos por meios econô-
micos. Conclusão: quando a ciência entra em ação, já não há
“mundanidade”, em mundo simbólico, nem ação significativa,
mas unicamente um mundo dessimbolizado e pasteurizado,
cheio de humanos desumanizados, agindo de maneira puramente
estratégica.

REIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E


SOCIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES “COISAIS”

Dependendo dos regimes discursivos nos quais figuram,


garrafas de cerveja, tijolos, vigas, martelos e macieiras em flor
podem ter um sentido (ou perdê-lo) como objetos intencionais
da consciência, como instrumentos, ou como simples entes
subsistentes. Em todos os casos, basta seguir os objetos até suas
raízes para encontrar, no fim do percurso, os humanos como
arché e como telos. Seja qual for a maneira pela qual os humanos
estão ligados aos não humanos, são sempre os humanos que
encontram os não humanos e lhes conferem sentido, valor de
uso ou valor de troca. Os não humanos têm um sentido para os
humanos, seja de maneira proximal, porque os encontram no
mundo ambiente e os percebem no interior de uma multiplicidade
de regimes axiológicos de justificação – dos regimes doméstico
e cívico aos regimes mercantil e industrial (Thévenot, 1994b) –,
seja de maneira última, porque eles os fizeram. Artefatos, como
máquinas ou outros objetos sociotécnicos do mesmo gênero, nada
mais são que o espírito objetivado e materializado. Por meio de
uma reconstrução do sentido intencional que os humanos lhes
deram ao produzi-los, ao utilizá-los ou ao consumi-los, podem
ser entendidos como “objetivações humanas” (Weber, 1972: 3).
Como disse Vico: Verum et factum convertuntur – já que pro-
duzimos os fatos, podemos compreendê-los. Para os modernos
que somos, os fatos e a ficção se encontram e se confundem,
mas não forçosamente para os outros, para os “a-modernos”
autoproclamados, porque eles são obrigados a trazer os deuses
para compreender o que não fizemos.

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Os humanos não encontram apenas não humanos em seu
mundo da vida, mas encontram também humanos, seja direta-
mente, por todo tipo de comunicação, seja indiretamente, ao
inserir não humanos entre eles como dons ou mercadorias. Ao
introduzir os dons e as mercadorias, estamos introduzindo as
relações sociais entre as coisas, o que nos permite descer das
alturas especulativas e esotéricas da antropologia filosófica para
as planícies exóticas da antropologia social e econômica. Na
análise antropológica da troca de riquezas, o dom e a mercadoria
são tradicionalmente considerados conceitos de combate rivais
e antagonistas (Gregory, 1982). Na economia moral da dádiva,
pretensamente dominante nas sociedades arcaicas, são as relações
qualitativas entre os humanos que importam em primeiro lugar.
Os não humanos só intervêm para lançar ou relançar o ciclo de
reciprocidade que liga os humanos entre si. Os humanos são
interdependentes e sua interdependência recíproca é mantida pela
troca de objetos simbólicos não alienáveis. Depois da transação,
os donatários não se tornam proprietários dos objetos trocados.
Possuem os direitos incorpóreos sobre os objetos, mas não os
objetos em si, uma vez que estes continuam como propriedade
inalienável dos humanos que formam a rede de interdependência.
Na economia do dom, a propriedade não se concebe portanto
como uma coisa, mas como “uma rede de relações sociais que
governam a conduta das pessoas quanto ao uso e à disposição
das coisas” (Hoebel, citado por Hann, 1998: 4).
Em compensação, na economia política das mercadorias,
que supostamente usurpou o lugar da economia moral do
dom, os bens podem efetivamente ser alienados. Por não serem
personalizados, são objetivados e reificados em propriedade,
esta passando a ser considerada uma coisa. Depois da transação
mercantil, os objetos trocados perdem qualquer vínculo com os
sujeitos da transação. Na troca mercantil, os humanos não são
portanto interdependentes. Desconectados uns dos outros, são
dependentes dos não humanos para se reconectarem à rede social.
Não são, na verdade, eles que importam, e sim os não humanos,
contanto que tenham valor de troca, esta sendo entendida como
uma relação quantitativa entre os bens.
A distinção entre a economia do dom e a economia mercantil
é uma distinção sistêmica, remetendo às condições sociais obje-
tivas que tornam possível a alienação dos bens. Embora não se

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possa decidir, por simples inspeção dos bens, se determinada
transação acarreta ou não a alienação deles, é possível mesmo
assim analisar o sistema econômico no interior do qual se efetua
a transação e determinar se é a tendência à personalização dos
não humanos, específica das economias da dádiva, que está
predominando sobre a tendência à reificação dos humanos,
específica da economia de mercado, ou se é o inverso (Simmel,
1995: 661 et seq.). Caso os limites culturais à alienação universal,
que transforma os bens em mercadorias, sejam quase inexistentes,
se tudo – inclusive as mães, os filhos e seus órgãos – pode ser
objetivado, alienado e permutado no mercado abstrato em troca
de seu equivalente monetário, então estamos mesmo diante de
uma economia mercantil.
Como a distinção sistêmica entre os dois sistemas econômicos
é analítica, nada exclui previamente que mercadorias circulem
no interior da economia do dom ou que dons circulem no
interior da economia de mercado (Appadurai, 1986). É por isso,
aliás, que a distinção efetuada é perfeitamente compatível com
a observação acertada de Parry, segundo a qual é apenas num
mercado relativamente livre que encontramos os dons puros,
completamente desinteressados (Parry, 1986). Mas ela resiste à
tentação pós-moderna de desconstruir e de derrubar todas as
distinções conceituais. Nick Thomas está certo quando afirma
que não podemos supor que “os dons são sempre dons e as
mercadorias sempre mercadorias” (Thomas, 1991: 39), mas está
enganado quando sua tentativa de dissolver, por uma recontex-
tualização dos objetos particulares, as categorias gerais do dom
e da troca o leva (quase) a negar a distinção entre a economia
do dom e a economia da mercadoria como tais. A exemplo dos
escravos, os objetos podem de fato entrar e sair da economia
mercantil, mas, mesmo que as mercadorias sejam objeto de
um dom e que dons sejam trocados no mercado, a economia
mercantil permanece economia de mercado assim como a eco-
nomia do dom permanece economia do dom.
Dependendo da maneira como os sujeitos se apropriam dos
objetos quando deixam o sistema generalizado de equivalência
e de troca, estes podem ser repersonalizados pelo consumo
(Miller, 1987: 189-196) e pelo sacrifício (Bataille, 1967: 93-97)
ou – e é o caso que nos interessa no momento – tornar-se dons
com valor e significado simbólico (Mauss, 1950), o que os afasta

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definitivamente das trocas sociais comuns. Por essa personali-
zação, o objeto torna-se uma “posse inalienável”, apropriada e
autenticada como diferente e não trocável com um equivalente:
“A propriedade dessas posses faz da autenticação da diferença,
mais que do balanço das equivalências, o traço fundamental da
troca” (Weiner, 1992: 40). Na economia mercantil, a transação é
sempre considerada do ponto de vista do receptor e raramente
ou nunca do ponto de vista do doador, manifestando assim que
o que importa é o estabelecimento de uma equivalência entre
os bens trocados que encerra o ciclo da reciprocidade, e não o
estabelecimento de uma relação pessoal de endividamento que
aciona o ciclo de reciprocidade. Na economia moral do dom, a
dívida não é apagada, mas é retomada e institucionalizada pela
norma de reciprocidade. Quanto mais se deve a alguém, mais
ligado se fica a ele, pois com o dom contrai-se uma dívida de
compromisso pessoal para com o doador, assim como o donatário
está ligado pelo contradom que ele deve supostamente retribuir.
A relação entre os humanos é, no caso, mediatizada pelos não
humanos, mas estes só têm importância na medida em que
reativam e perpetuam o ciclo de reciprocidade entre os humanos.
Diferentemente da troca mercantil, que visa realizar um valor de
bem, o dom representa e realiza um valor relacional ou um “valor
de vínculo” (Godbout; Caillé, 1992: 244).
Graças ao dom, que restabelece a primazia das relações entre
os humanos, a relação entre os não humanos torna-se derivada e
secundária. Parafraseando a célebre caracterização do fetichismo
da mercadoria, é possível dizer, com Marx, que as relações
entre os homens já não aparecem como relações entre as
coisas, mas que a relação entre as coisas aparece agora como
uma relação entre os homens. De fato, segundo Marcel Mauss,
que se faz aqui o porta-voz de Ranaipiri, o ancestral dos maoris, a
economia do dom é eminentemente social, de tal forma que os não
humanos, que fazem a ligação entre os humanos, são considerados
humanos até certo ponto, e que a relação estabelecida por inter-
médio dos não humanos seja considerada uma relação de almas
entre o doador e o donatário:

que, no presente recebido, trocado, obriga é que a coisa recebida


O
não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, ela ainda é algo
dele. (...) No direito maori, o vínculo de direito, vínculo pelas
coisas, é um vínculo de almas, porque a própria coisa tem alma,
é da alma (Mauss, 1950: 159 et seq.).

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Mas, se a coisa tem alma e se a alma liga o corpo ao sobrena-
tural, então a coisa tem forçosamente um significado cosmológico
ou teológico. Segundo Ranaipiri, que se torna então o porta-voz e
mensageiro dos deuses, as coisas são dadas e retribuídas porque
estão animadas pelo “espírito do dom”. Este transforma o objeto
em símbolo e explica por que a comunicação entre os humanos
por intermédio dos não humanos é igualmente uma comunhão
com o sobrenatural e, portanto, com eles mesmos – pelo menos
se aceitarmos nesse ponto o que diz Durkheim. Nesse sentido,
os dons são símbolos do vínculo social que, ao representarem
a aliança entre os humanos por não humanos espiritualizados,
estabelecem esse vínculo.
Mais uma vez, vê-se que os humanos não são mantidos juntos
pela comutação dos não humanos, e sim pela comunicação por
símbolos interpostos, livremente dados e retribuídos, que permitem
que os humanos comunguem entre si. Ao transformar os não
humanos em humanos, ao lhes dar um “significado imaginário”
(Castoriadis), os discursos simbólicos representam e “performam”o
vínculo social como coletivo de seres humanos que, graças à
comunicação com os espíritos, comungam entre si por meio do
dom e do contradom de seres não humanos. Na medida em que
as práticas concretas do dom e do contradom são mediadas por
uma “estrutura transcendental”, o modo de regulação e de repro-
dução da sociedade é fundamentalmente cultural. A síntese social
é efetuada numa “dupla dialética” – a cultura estrutura a priori
as práticas que a reproduzem e contribuem para a integração da
sociedade (Freitag, 1986, II: 77-167).
Se, em vez de serem inseridos na economia do dom – que
os personaliza e espiritualiza, a ponto de a relação entre os não
humanos aparecer como uma relação entre os homens –, os
objetos forem incorporados na economia mercantil, eles ficarão
objetivados e desencantados, desconectados dos produtores, que
também estarão desconectados das relações sociais e desencan-
tados, a tal ponto que as relações entre os humanos aparecerão
então como relações entre não humanos: “É apenas determinada
relação social dos homens entre si que reveste aqui para eles
a forma fantástica de uma relação das coisas entre elas” (Marx,
1965a: 606). Essa inversão fantástica dos humanos e não humanos
não decorre porém de uma ilusão, pois, na medida em que
exprime sob forma ideológica a natureza real das relações

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sociais num ambiente mercantil competitivo, ela está, literalmente,
fundada nas coisas (fundamentum in rebus). Nas sociedades
capitalistas dominadas pela economia de mercado, a economia
já não está encastrada na sociedade. Mesmo que a economia
do dom ainda subsista, não apenas na economia informal mas
também nos círculos da sociabilidade primária do mundo da vida,
a sociedade é que está encastrada na economia.
As sociedades mercantis não são simplesmente sociedades
dominadas pela economia, mas sociedades em que, em decor-
rência da destruição das formas de vida tradicionais pela impo-
sição planificada do mercado ao mundo da vida pelo Estado
(Polanyi, 1944: 249), a economia se fundamenta no interesse
privado e no individualismo possessivo (MacPherson, 1982).
Este individualismo é realmente uma forma ideológica de justifi-
cação e de legitimação do individualismo atomístico, que centra
a sociedade em torno dos indivíduos e da propriedade privada,
esta sendo considerada uma coisa e não um feixe de relações
sociais. Na ideologia individualista, o indivíduo é mais valorizado
que a sociedade: esta é vista como um efeito emergente, mas
não intencional, da busca anárquica e estratégica dos interesses
privados por cada um dos indivíduos que agem. Por viverem
num “mundo desencantado” (Schiller), os indivíduos já não são
“supersocializados”, mas atomizados e “superindividualizados”.
Independentes uns dos outros, planejam cuidadosamente a sua
vida em função dos próprios interesses e da autoconservação
e, eventualmente, seus interesses particulares são moderados
e seus planos de ação coordenados pela troca de bens e de
serviços no mercado. As atividades de uns e outros não são
coordenadas com consciência e vontade pela comunicação, mas
a posteriori pela “mão invisível” do mercado. Embora o mercado
seja formado pelas livres ações dos agentes, o próprio mercado
acaba constituindo-se como agente autônomo que se impõe aos
indivíduos ao infligir-lhes suas exigências. Graças à ação dual
do mercado, que torna o homem tanto agente como paciente
(Dilley, 1992: 15-21), as relações de dependência pessoal entre
os humanos são substituídas por relações materiais entre os
não humanos, e a integração social dos humanos é imposta de
fora pela interconexão sistêmica dos não humanos. Essa substi-
tuição do modo de reprodução “cultural-simbólico” por um modo
“sistêmico-operacional” de reprodução da sociedade (Freitag,

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1986, I: 55-66), correspondente à passagem da economia do
dom para a economia mercantil, explica a inversão fetichista das
relações entre humanos e não humanos: “As relações de seus
trabalhos privados parecem o que são, i.e., não relações sociais
imediatas de pessoas em seus próprios trabalhos, e sim relações
sociais entre coisas” (Marx, 1965a: 606 et seq.)

A FORMA DO FETICHE E O
CONTEÚDO DA MERCADORIA

O mistério do fetiche da mercadoria não reside no conteúdo


oculto pela forma, mas na própria forma.1 Que o fetiche é
um fato, um artefato e, portanto, um produto humano, não é
mistério. Não precisamos de Marx para revelar que os fetiches são
produtos materializados das objetivações de atos significativos.
Vico, para mencionar um entre muitos hermeneutas, já sabia que
os fatos são artefatos que se deixam interpretar como “quase
textos” (Ricœur, 1986: 175). Apesar de ele ter evitado afirmar que
podemos compreender Deus, já que fomos nós que o fizemos,
ele não tinha a menor dúvida sobre o fato de o fetiche não ser
apenas um “fatiche” (sic), mas também, como objetivação de
atos significativos, uma mistura de fato e ficção, e, portanto, seria
possível dizer um “fictiche” (not factish but fictish). No esforço
para imitar a cientificidade das ciências naturais, só os naturalistas
e os positivistas haviam rejeitado essa verdade básica das ciências
humanas. Mas vamos rejeitar e esquecer os positivistas e voltar
de preferência a Marx e à dialética do concreto para penetrar no
“núcleo oculto” do fetichismo das mercadorias.
É fácil compreender que a mercadoria seja valor de troca obje-
tivado que incorpora trabalho. A dificuldade para compreender
o fetiche mercantil provém da necessidade de explicar por que
o próprio trabalho assume a forma do valor mercantil e por que
ele não pode reivindicar sua característica social unicamente sob
a forma mercantil de seu produto. Para compreender a forma
mercantil, que marca cada produto quando ele é produzido
como mercadoria, é preciso ver que a mercadoria não é uma
coisa concreta, mas só se torna concreta se for considerada “uma
síntese de numerosas determinações, logo [considerada] unidade
da diversidade” (Marx, 1965b: 255), portanto, quando é concebida
como o ponto de junção materializado das relações sociais.

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Nessa perspectiva dialética generalizável, a qual é preciso
generalizar além da mercadoria – já que a forma de “objeti-
vidade fantoche” característica da mercadoria já afeta não apenas a
economia, mas tende a colonizar o mundo da vida e a atingir
“toda a vida exterior e interior da sociedade” (Lukács, 1960: 110
et seq.) –, a reificação fetichista das relações sociais em uma coisa,
a falsa visão da relação social entre os humanos como relação
material entre os não humanos, aparece como o resultado da
atribuição errônea do poder social que os não humanos possuem
(em virtude das propriedades emergentes do sistema social mais
amplo no qual estão inseridos) aos próprios não humanos, como
se se tratasse de uma propriedade que lhes pertence.
De maneira bem mais elegante, Slavoi Žižek expressa assim
a mesma ideia:

que é na verdade um efeito estrutural, o efeito da rede de


O
relações entre os elementos, aparece como propriedade imediata
de um único de seus elementos, como se essa propriedade fosse
também sua fora de sua relação com os outros elementos (Žižek,
1989: 24).

Esse erro de atribuição fetichista é um erro tipicamente empirista.


Quem desconhece a relação entre a rede invisível de relações
sociais, que sobredetermina o elemento visível, e esse próprio
elemento visível, quem se limita ao aspecto superficial e se fia
nas aparências comete mais uma vez a “falácia da falsa concre-
tude” (Whitehead, 1930), mas, por assim dizer, de modo inver-
tido. Mesmo que esse elemento – um artefato qualquer: garrafa
de cerveja ou martelo, navio português ou metrô automático
– seja concebido como uma rede composta de elementos hete-
rogêneos, associando humanos e não humanos, ele permanece
abstrato. A ilusão fetichista só se dissolve, a rede sociotéc-
nica só se torna concreta quando, percorrendo a “cadeia das
mercadorias” (Wallerstein, citado por Gerrefi; Korzeniewicz,
1994) que liga o consumo, a distribuição e a produção através
do mundo, recompõe-se sistematicamente a rede das relações
de produção e de exploração que estrutura o sistema mundial
da economia capitalista. Só então se compreende que a rede
sociotécnica é dialeticamente sobredeterminada pela rede estru-
tural englobante e mundial de relações emaranhadas na qual está
encastrada e que sobredetermina sua manifestação empírica.2

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A distinção entre forma e conteúdo remete a uma distinção
entre três dimensões ou níveis da análise sociológica que estão
mutuamente implicados e superpostos de tal modo que os níveis
superiores condicionam os níveis inferiores, sem por isso deter-
miná-los. A fim de visualizar os diferentes níveis, que podem ser
ordenados num continuum de complexidade que vai dos simples
“amontoamentos” às “figurações relacionais” (Elias, 1956: 242 et
seq.), é possível imaginar um gráfico estatístico no qual a nuvem
de pontos aleatórios represente o primeiro nível, os eixos X e Y
e as variáveis o segundo nível, e a rede de relações sociais ema-
ranhadas, que sobredetermina a relação linear entre as variáveis
do segundo nível, forme o terceiro nível.
No primeiro nível de análise, representado pela etnometo-
dologia, a dispersão das atividades cotidianas é descrita de tal
maneira que as atividades são vistas como relatórios dos modos
habituais pelos quais a ordem*3 social imortal é reflexivamente
posta em ação e corretamente realizada pelos membros como
uma realização contínua e infinita (Garfinkel, 2002). Nessa
perspectiva, a ordem* social é sempre concebida como ordem
endógena e entendida como uma realização puramente local
e contingente dos membros. Como nenhuma estrutura externa
pode ser invocada, ela só pode ser “reespecificada” nos termos
de uma descrição hiperdetalhada do modo específico no qual as
estruturas sociais são postas em ação localmente, realizadas para
tal fim e estabilizadas no próprio lugar.
No segundo nível de análise, a ordem social torna-se mais ou
menos estável à medida que as atividades locais dos membros,
tal como são laboriosamente descritas pelos etnometodólogos,
são então retomadas (mas não “reespecificadas”), de tal forma
que podem agregar-se e ser transpostas além das localidades e
temporalidades sempre particulares nas quais ocorrem. Graças a
esforços constantes de persuasão e de negociação, os membros
ausentes são recrutados e associados pelos membros presentes
a seus projetos de ação, de modo que traduzem a vontade dos
ausentes em sua linguagem bem peculiar, tornando-se seus porta-
-vozes e falando afinal numa só voz, no caso a voz do Mestre. Esse
contrato social se materializa a seguir em objetos que estabilizam
a ordem social e, quando esses objetos já não são contestados, a
rede composta de humanos e de não humanos é fechada numa
“caixa-preta”; a partir de então, o processo de recrutamento pode

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prosseguir até que se chegue a uma fileira tão grande de “caixas-
-pretas” que fica muito custoso adiar a arrumação em questão e,
forçosamente, desfazer a rede sociotécnica dos humanos e dos
não humanos.
No terceiro nível, a rede invisível mas real de relações sociais
(rede de origem) é introduzida como condição concreta de
possibilidade da rede sociotécnica composta de humanos e de
não humanos (rede de destinação). A fileira de “caixas-pretas”
é, por assim dizer, embalada numa metacaixa, e isso de modo
que a ilusão fetichista seja enfim dissolvida. A rede sociotécnica
é então compreendida como sendo não apenas a condição mas
também, o que é bem mais importante, como consequência de
forças sociais mais amplas na qual está encastrada.4
A distinção entre forma e conteúdo da mercadoria nos
incita assim a prolongar a análise “performativa” da construção
da rede de elementos visíveis por atores locais através de uma
análise mais sistêmica e realista das estruturas relacionais que
sobredeterminam a forma que pode, ou não, adotar a articulação
sociotécnica dos elementos. A introdução de um metanível de
determinação concreta não significa, porém, que tudo o que se
passa localmente é determinado por estruturas globais e englo-
bantes, mas permite analisar como, e até que ponto, as estruturas
existentes de dominação tendem a excluir a emergência de uma
ordenação alternativa das relações sociais entre humanos, assim
como elementos heterogêneos que elas associam e juntam num
conjunto sociotécnico. Assim como o tecnocratismo esconde
a determinação dos fins sob um “véu tecnocrático” (Marcuse),
também as relações sociais condicionam estruturalmente a forma
das redes dos humanos e dos não humanos encerrando-os numa
“caixa-preta” que funciona como a “gaiola de ferro” weberiana,
de tal modo que as discussões abertas e sem constrangimento
sobre a transformação das relações sociais que as envolvem desapa-
recem sistematicamente do caderno de reclamações (Habermas,
1968). Confrontadas com a estabilidade e a materialidade da
aliança heterogênea que é a rede, certas questões referentes à
ordenação alternativa e aos contraprogramas nem podem ser
pensadas, e menos ainda submetidas à discussão pública e demo-
crática, aberta a todos e todas que são concernidos. Além disso, na
medida em que o terceiro nível de determinação introduz estruturas
relacionais que condicionam a forma de manifestação das redes e

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que não são visíveis nas próprias redes, podemos entender melhor
suas aparências empíricas. Consideremos um par de sapatos, por
exemplo. Como diz Daniel Miller: “Não pensamos em termos de
sapatos capitalistas e socialistas” (Miller, 1987: 115) e, no entanto,
se queremos compreender a diferença e não seguir os próprios
sapatos refazendo todo o percurso do consumidor e do sapateiro
ao curtumeiro e ao fazendeiro que cria gado, mas compreender
também as relações estruturais que formam o conteúdo da rede
sociotécnica dos bois, do couro, dos curtumeiros, dos cordões de
sapato e dos sapateiros, temos de ler e decodificar os artefatos
como “hieróglifos sociais” (Marx, 1965a: 608) e passar para o
nível superior de uma análise sistêmica das estruturas que deter-
minam concretamente a forma de composição heterogênea dos
humanos, dos animais e dos não humanos. A tarefa do analista
consiste em propor e desenvolver uma “sociologia da tradução”
capaz de decifrar o artefato como conteúdo formado, i.e., como
conteúdo formado pela estrutura das relações sociais de tal modo
que a aparência concreta seja entendida em sua atualidade como
uma emanação empírica de um campo de tensões estruturais que
tendem a excluir ordenações alternativas.
Tal sociologia dialética da tradução, que dissolve o artificialismo e
a fixidez do dado, não pode contentar-se com uma ontologia plana,
rasa e sem relevo; ela precisa adotar uma visão estratificada da
realidade e distinguir os domínios do real, do atual e do empírico
(Bhaskar, 1978: 56-62). Nessa perspectiva transcendentalmente
realista, é claro que o domínio do real (correspondente a nossas
determinações relacionais do terceiro nível) compreende mecanismos
gerativos transfactuais e estruturas relacionais que costumam
escapar da observação direta, ao passo que os domínios do
atual e do empírico (correspondentes a nossas determinações do
segundo e do primeiro níveis) compreendem respectivamente
a série de acontecimentos e as redes sociotécnicas geradas e
estruturadas por esses mecanismos, e as práticas e etnométodos
concretos pelos quais elas são captadas e constituídas como
relatos (no sentido em que a etnometodologia fala de accounts).
Nessa perspectiva realista, a ontologia plana já não é espichada
e prolongada ao infinito – ou o que, na ocorrência, é bem mais
prático e provável, até que o contador de histórias se canse e vá
dormir –, mas substituída por um “dispositivo de massa folhada”
(Greimas; Courtès, 1979: 103) que interpreta de maneira crítica

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e retraduz de maneira dialética as descrições da concatenação
heterogênea dos humanos e dos não humanos de modo que o
conteúdo atual das descrições possa ser explicado e mais bem
entendido – já que “explicar mais é entender melhor” (Ricœur,
1995: 51) – como sendo formado ou deformado pelas estruturas
relacionais do real.

OS ACTANTES E A HISTÓRIA

Como a terceira dimensão é observável apenas em seus


efeitos, e como a “retrodução” dos efeitos às causas pressupõe
uma intervenção “abdutiva” (mas controlada) da imaginação,
surgem problemas de representação (Pels, 2000): como saber
que o real existe já que é invisível? Quem fala do real? Quem
fala em nome do real? Fazemos isso, é claro, como intelectuais.
E, justamente porque nunca podemos estar de todo seguros
que falamos em seu nome e em seu lugar, precisamos refletir
muito quanto a nossas pressuposições político-ideológicas e estar
prontos a manter sempre uma discussão aberta e “sem injunções”
de nossas posições e disposições, a fim de permitir, àqueles e
àquelas que pretendemos representar e em nome dos quais
tomamos a palavra, que respondam e incluam o máximo de
pessoas em nosso auditório, que é contrafactualmente idêntico
ao auditório universal (incluindo até quem já faleceu). Inspirado
pela sensibilidade moral de Habermas quanto à expropriação
daqueles que nada têm a perder além da voz, convém tentar
combinar o interesse emancipatório do conhecimento na aquie-
tação do sofrimento com o princípio democrático que estipula
que “só pode haver participantes num processo de emancipação”
(Habermas, 1971a: 45). Se o interesse emancipatório obriga-nos
a introduzir na análise uma terceira dimensão e a revelar as
estruturas de dominação, o princípio democrático força-nos, por
outro lado, a procurar o máximo possível de garantias para nossas
pretensões epistêmicas. Assim, a impudência teórica se combina
com a prudência moral.
A introdução de uma multiplicidade de vozes potenciais não
tem nada a ver com a celebração do “pós-ismo” de uma cacofonia
de interesses e de intertextos, mas visa superar a voz do Mestre e
quebrar o feitiço dóxico de suas representações hegemônicas da

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realidade. Com frequência, os sociólogos da inovação (mas não
o próprio Latour5) que seguem os atores acabam nos escritórios
dos executivos, dos tecnocratas e dos organizadores, descre-
vendo o mundo existente e adotando de certa forma seu ponto
de vista neoliberal, o que explica em parte as representações
utilitárias e agonísticas do mundo como um mercado no qual
os que ganham levam tudo (the winner takes it all). O ponto de
vista do Mestre é o ponto de vista utilitário do vencedor. Walter
Benjamin lembra, com o sentido da nostalgia e a esperança dos
desesperados, que “os dominantes sempre aproveitam a empatia
com o vencedor” (Benjamin, 1974: 696). Sabemos de fato como
descrever a realidade social do ponto de vista dos vencedores,
mas será que sabemos descrevê-la do ponto de vista dos perde-
dores? Sabemos como recuperar e atualizar as possibilidades do
tempo perdido? Sabemos como percorrer a história num sentido
novo e fazer explodir sua continuidade? Muitas vezes analisamos
o passado sob a perspectiva do presente, com a contingência e a
“flexibilidade interpretativa” (Bijker) no início e o determinismo
e o “encerramento autopoiético” (Luhmann) no fim, mas rarissi-
mamente analisamos o presente sob a perspectiva dos que foram
oprimidos no passado e excluídos no presente. Sabemos bem
analisar o fechamento das “caixas-pretas” da história, mas muito
pouco como abri-las de novo para reatualizar as possibilidades
do passado e realizar as esperanças dos excluídos.
As redes sociotécnicas existentes estão sempre imersas num
campo de tensões estruturais que podem sustentar vários projetos
sistêmicos por superposição. No encontro do ato com a potência,
do real com o possível, as redes sociotécnicas dos humanos e
dos não humanos podem funcionar como acionadores históricos.
Potencialmente, elas são as “portas estreitas por onde o Messias
poderia entrar” (Benjamin, 1974: 704) – contanto que estejamos à
espera de sua volta. E, para esperar sua volta, devemos erguer “o
véu da ignorância” (Rawls) e conceder os mesmos direitos tanto
aos que fazem parte do sistema e dele se aproveitam como aos
que dele estão excluídos e podem agir sobre o sistema a partir
de um mundo da vida que o sistema ainda não colonizou de
todo. Ao lado do princípio da simetria das teorias que tiveram
êxito e das que não tiveram, introduzido nos anos 1970 pelos esco-
ceses, e da simetria dos humanos e dos não humanos, proposta
durante os anos 1980 pelos franceses, deve-se agora introduzir

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a “simetria do programa e do antiprograma” (Feenberg, 1999:
119) como princípio de justiça universal, pelo menos nos casos
em que os dominados da história são capazes de ressuscitar as
oportunidades do passado, de ativar o antiprograma que
contém a rede sociotécnica e de construir um novo sistema social
democrático de relações estruturais (redistribuição) e culturais
(reconhecimento). Na medida em que o terceiro princípio de
simetria pressupõe o “desligamento” da ontologia achatada para
uma ontologia em massa folhada, nominalistas, reflexivistas e
interativistas poderiam fazer objeções de ordem epistemológica
ao contraprojeto de emancipação proposto, mas é possível
esperar que suas discórdias acadêmico-escolásticas não impeçam
a formação de alianças intelectuais na esfera pública ou não sejam
obstáculo para sua adesão e recrutamento no projeto inconcluso
da modernidade.
Quando o pensamento para de repente para incluir as vozes da
minoria silenciosa excluída dos discursos do Mestre e de seus
porta-vozes numa “constelação cheia de tensões”, ele torna a arru-
mar os elementos da configuração e “dá um choque na conste-
lação que, por isso mesmo, se cristaliza em mônada” (Benjamin,
1974: 703). Na perspectiva benjamino-leibniziana da teologia
política, que envolve e reconfigura a perspectiva científico-
-política dos leibnizianos-maquiavélicos, a mônada pode ser
lida como uma ““expressão” das contradições e das tensões que
percorrem a estrutura das relações sociais e deixam sua marca
nos perdedores como cicatrizes de um sofrimento que poderia
ser eliminado – bastava que a junção dos humanos com os não
humanos entrasse numa constelação ligeiramente diferente. Seria
a Utopia de Greimas.
Formalmente, esta modificação da constelação pode ser
expressa por uma “reconfiguração” hermenêutica do famoso
“modelo actancial” de Greimas (1966: 172-191). Tal reconfiguração
pressupõe no entanto que se pare de simplesmente “seguir a
história” para “pô-la em narração” e “recontá-la” no futuro do
pretérito. Paul Ricœur, venerável adepto da hermenêutica reden-
tora da memória, descreve a receita para iniciar a narração da
semiótica estrutural da seguinte forma: “Assim que é construído
o quadrado semiótico, a análise é teleologicamente guiada pela
antecipação do estágio final, i.e., o da narração, como criador de
valore” (Ricœur, 1992: 449).

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Vejamos agora como tal “reconfiguração hermenêutica” funcio-
na, projetando as categorias agenciais no “quadrado semiótico”:

Destinador --------- Actante-Objeto Destinatário


Ajudante Actante-Sujeito Oponente

Generalizando de tal forma a dimensão teleológica do desejo


dos Actantes (que são, como se sabe, as classes de atores “no
papel” introduzidos por Tesnière para substituir a antiga noção de
pessoa) para que ela inclua os objetos, os animais e os conceitos,
a posição do Actante-Sujeito já não seria tomada pelo Mestre
(representado, por exemplo, pelos mestres da Casa-Grande, pelas
elites do Plano Piloto etc.), mas por aqueles que se opõem a ele
(representados, por exemplo, pelos ex-escravos, quilombolas,
favelados etc.). O Actante-Objeto ideológico do desejo já não seria
representado pela maximização dos interesses do Mestre, mas por
uma mutação qualitativa, no modo d’Inter-esse não apenas dos
dominados, mas de todos os humanos, sem distinção, chegando a
uma situação pacífica na qual as relações humanas predominariam
sobre as relações entre os não humanos. A transformação mais
importante, porém, não ocorreria na dimensão teleológica, mas
na dimensão comunicacional do modelo actancial, que concebe
o Actante-Objeto como o projeto que o destinador transmite ao
destinatário. De fato, a transformação do Sujeito e do Objeto
acarretaria uma passagem súbita do nível dos atores-redes para o
nível propriamente sistêmico. O Destinador, que dá uma missão
ao Sujeito, não seria simplesmente uma agregação contingente de
redes sociotécnicas, mas a História, concebida do ponto de vista
de sua redenção. Quanto ao Destinatário, de quem o sociólogo
é o porta-voz, já não seria o mundo dos objetos, mas a Humani-
dade como tal. Enfim, a dimensão do Ajudante e do Oponente,
de fato transfigurações do Anjo e do Diabo, ficaria invertida: a
estabilidade das “caixas-pretas” seria o Oponente, ao passo que
sua instabilidade seria o Ajudante. Em todos os casos, o vento
da história sopraria de novo em suas velas. Poderíamos então
conceber que o espírito do mundo não está sentado num cavalo
branco, como pensava Hegel, nem num míssil V2, como Adorno
insinuava, mas sim localizado em cada artefato, contanto que este
seja considerado do ponto de vista de sua redenção. A última
palavra, entretanto, não pertence ao Mestre, mas ao Rabino:

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ara estabelecer o reino do paz, não é necessário destruir tudo
P
e criar um mundo totalmente novo. É suficiente apenas mover
esta xícara ou esta pedra, e de modo similar com todo o resto.
Mas é este “apenas” que é tão difícil de realizar, e os humanos
são incapazes de fazê-lo; é por isso que o advento do Messias é
necessário (Bloch, citado por Agamben, 1990: 56).
Tradução de Estela Abreu

(Capítulo publicado originalmente em: VANDENBERGHE, Frédéric.


Reconfiguration et rédemption des acteurs en réseaux: critique humaniste
de la sociologie actantielle de Bruno Latour. Revue du MAUSS, v. 17, p.
117-136, 2001. O capítulo é seguido de uma resposta do próprio Bruno
Latour (Revue du MAUSS, v. 17, p. 137-152).
Agradeço a Nathalie Heinich, Kirsten Campbell, Ruth McNally e Christina
Toren por seus comentários “construtivos”.)

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C A P Í T U LO 5

CONSTRUÇÃO E CRÍTICA NA NOVA


SOCIOLOGIA FRANCESA

A partir de uma comparação argumentativa das diversas


formulações e articulações das noções centrais de “construção”
e de “crítica”, gostaria de submeter a “sociologia crítica” de Pierre
Bourdieu, a “sociologia pragmática” de Luc Boltanski e Laurent
Thévenot e a “sociologia das redes sociotécnicas” de Bruno Latour
e Michel Callon ao exercício um tanto escolar da comparação
triangular (“comparai e contrastai...”).1 Apesar das “semelhanças
de família” aproximando os diferentes matizes da crítica e da
construção sociais que encontramos entre as novas sociologias
francesas, os protagonistas, tanto quanto os comentadores da
vida intelectual parisiense (Chateauraynaud, 1991; Corcuff, 1995;
Dosse, 1995; Bénatouïl, 1999), frequentemente compararam a
sociologia pragmática e a sociologia das redes sociotécnicas, sem
dúvida para melhor refletir sobre as variações com a sociologia
crítica de Bourdieu, contra as quais elas foram explicitamente
construídas. As continuidades e as convergências entre a
sociologia crítica e a sociologia pragmática são, desde uma visão
externa, tão consideráveis quanto as divergências que separam
a sociologia interpretativa de Boltanski-Thévenot da sociologia
experimental de Latour-Callon.
Ao dizer isso, de forma alguma minimizo a importância da
“mudança de paradigma” dos anos 1980 (Gauchet, 1988), mas à
medida que isso ocorre contra o “pensamento de 68” e, portanto,
contra o estruturalismo genético de Bourdieu, eu me pergunto

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se uma leitura mais simpática e menos reducionista, que tente
abrir o sistema bourdieusiano desde o interior, pensando “com
Bourdieu contra Bourdieu” (Passeron), não seria mais apropriada
para se desenvolver uma sociologia crítica “pós-bourdieusiana”
que não seja, simplesmente, antibourdieusiana. Mantendo,
assim, a continuidade entre a sociologia crítica e seus críticos,
essa aproximação permitiria abrir a via a uma correção mútua
que, no lugar de torcer o bastão, como dizia Mao, toma-o ao
meio para restabelecer a comunicação e tentar construir uma
teoria crítica da sociedade.

CRÍTICA E CONSTRUÇÃO

Nos anos 1980, viu-se emergir na Inglaterra (Giddens, Bhaskar


e Archer), na Alemanha (Habermas, Luhmann e Beck), nos Estados
Unidos (Collins, White e Alexander), na França (Bourdieu) e no
Canadá (Freitag) um “novo movimento teórico” sintético, procu-
rando superar de maneira sistemática a oposição entre a micro
e a macrossociologia que dividiu a sociologia pós-parsoniana
desde o pós-guerra. À medida que as novas sociologias francesas
se esforçam para sair das antinomias e ambiguidades herdadas
da filosofia (sujeito-objeto, ideal-material, individual-coletivo,
micro-macro) por meio de uma reconstrução desfetichizante
da gênese do objeto, elas podem ser ditas “construtivistas”, no
sentido amplo do termo (Corcuff, 1995).
A fim de introduzir um mínimo de clareza conceitual na noite
construtivista e escapar dos amálgamas fáceis do construtivismo
radicalmente chique além-Atlântico, assim como das complexi-
dades do construtivismo sistêmico do além-Reno (Knorr-Cettina,
1983), gostaria de distinguir, e rapidamente apresentar, três
constelações intelectuais na galáxia do construtivismo social
que influenciaram as novas sociologias francesas: a constelação
fenomenológica, a dialética e a estruturalista.2
A primeira versão do construtivismo – mais orientada para
uma microssociologia – tem suas origens na fenomenologia da
constituição de Edmund Husserl. Analisando minuciosamente as
operações cognitivas pelas quais o mundo comum de significações
ou de experiências vividas é, intencionalmente, constituído pela
consciência transcendental (Husserl) ou mundana (Schütz) – como

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“mundo” –, o construtivismo fenomenológico trata o problema do
consenso por uma perspectiva próxima das teorias do contrato
social e da comunicação. Com isso, se opõe à segunda versão
do construtivismo: a versão macrossociológica e dialética, de
inspiração marxista-hegeliana ou weberiana que, na esteira de
Lukács e Mannheim, cerca as determinações existenciais e sociais
dos sistemas de pensamento para descobri-los ou, conforme o
caso, superá-los em uma síntese englobante. Substituindo o termo
fenomenológico da “constituição” pelo da “construção”, Berger e
Luckmann (1967) forjaram uma aliança entre os dois construtivismos
em The social construction of reality, abrindo uma via, assim, a
um aparato de construções sociais e de desconstruções textuais
de tudo, processos caracterizadores da sociologia das ciências
pós-blooriana, na qual a teoria das redes sociotécnicas constitui
a linha de fuga mais radical. Insistindo no caráter arbitrário dos
sistemas de representações sociais, pode-se fazer remontar à
sociologia das formas de classificação de Durkheim e Mauss a
terceira versão do construtivismo e religá-la, passando por Saussure
e Lévi-Strauss, ao modo desconstrutivista dos pós-estruturalistas,
acolhidos e revistos pelo pós-modernismo, os cultural studies
e o feminismo diferencialista da terceira onda (Hacking, 1999).3
Enquanto Bourdieu tentou integrar as três variantes do construti-
vismo social em uma teoria neokantiana do conhecimento socio-
lógico que rompe, em um primeiro momento, com a constituição
do mundo ordinário pelo senso comum para reintegrá-lo diale-
ticamente, em um segundo momento, em uma fenomenologia
crítica da constituição dóxica do mundo, Latour desfez a síntese
bourdieusiana, radicalizando e pós-modernizando o construti-
vismo constitutivo dos etnometodólogos, enquanto Boltanski
e Thévenot desenvolveram uma versão original e pluralista do
construtivismo constitutivo-consensual, a partir de um desvio
pragmático da sociologia crítica. Nas páginas que seguem, apre-
sentarei as respectivas versões em termos da construção estrutural
do objeto, da constituição pragmática do mundo comum e da
coconstrução performativa do mundo e das redes sociotécnicas.
As novas sociologias francesas não são somente construti-
vistas. São, igualmente, de uma ou outra forma, críticas. Tanto
quanto a noção de “construção”, a noção de “crítica” é polissê-
mica e, facilmente, presta-se à confusão. Relativamente às ciências
sociais, convém distinguir a crítica epistemológica da sociologia da
crítica social da sociedade, mesmo que em uma teoria crítica da

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sociedade se deva combiná-las, perseguindo sistematicamente as
reificações e as alienações (Vandenberghe, 1997; 1998).4 A crítica
epistemológica remonta evidemente à Crítica da razão pura de
Kant. Tratando das condições de possibilidade do conhecimento,
ela busca manter o conhecimento no interior dos limites da razão
e analisa transcendentalmente como as categorias do pensamento
sintetizam a multiplicidade empírica. Reconduzida ao terreno do
conhecimento sociológico, a crítica epistemológica gira em torno
da questão do naturalismo e se dedica a denunciar a redução
da ação significativa ao comportamento, assim como a hipóstase
dos conceitos e das abstrações, como o Estado, a Igreja ou a
Sociedade, que o sociólogo toma como realidades que agiriam
como pessoas.
Emergindo não da epistemologia, mas da ideologia, a crítica
social que julga e condena, protesta e denuncia as injustiças em
nome de ideais e de grandes princípios pode ser considerada
como a forma reflexiva e articulada das denúncias espontâneas
da vida cotidiana ou, como diz belamente Michael Walzer, “o
primo educado do lamento ordinário” (Walzer, 1987: 65). Na
filosofia política e moral contemporânea, podemos assinalar ao
menos quatro tradições vivas da crítica social e, portanto, de
modos pós-metafísicos para fundar os julgamentos proferidos:
a tradição racionalista da “invenção”, a tradição romântica da
“interpretação”, a tradição hegeliana da “reconstrução” e a tradição
cética da “desconstrução”.5
Na tradição kantiana, tal como a encontramos atualizada por
John Rawls, os critérios de julgamento são racionalmente dedu-
zidos dos procedimentos normativos determinados pela própria
teoria e “inventados”, independentemente do contexto sócio-
-histórico. Na tradição romântica e hermenêutica, representada
por Michael Walzer e Charles Taylor, a crítica se apoia sobre as
normas e os valores vigentes no interior de uma dada comunidade
e por meio dos quais ela “interpreta” e explicita as representações
da justiça. Se o modelo romântico permanece preso ao chão da
comunidade, o modelo dialético o ultrapassa, integrando o univer-
salismo da “invenção” e o contextualismo da “interpretação” em
uma síntese superior. No “modelo reconstrutivo”, característico da
tradição hegeliana-marxista – notadamente a Escola de Frankfurt
(incluindo aí Habermas e Apel) –, os critérios de julgamento estão,
em parte, já realizados e incorporados nas instituições existentes,

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mesmo transcendendo-os, oferecendo assim sólidos padrões para
uma “crítica imanente”. Por fim, temos o modelo genealógico
de procedência nietzschiana, no qual a crítica intempestiva de
foucaltianos e deleuzianos se inspira amplamente, atacando a
todos os modelos precedentes sob pretexto de que toda visão
normativa da sociedade é repressiva e só poderá, cedo ou tarde,
se tornar justificadora da exclusão e da dominação.
Enquanto a teoria crítica de Bourdieu ataca aqueles que hiposta-
siam o substantivo em substância e se apoia, ao mesmo tempo,
sobre a tradição hegeliana-marxista para denunciar as injustiças
da dominação de classe, Boltanski e Thévenot criticam a teoria
crítica pela arrogância epistemológica e normativa e, permanecendo
atentos ao cerne da situação, procuram explicitar o sentido da
justiça e reconstruir a gramática dos atos de justificação dos quais
os atores dão prova quando denunciam uma injustiça. Desconstruindo
alegremente todas as oposições legadas pela tradição filosófica
e sociológica, Latour adota facilmente a postura nietzschiana, se
fazendo de porta-voz das coisas excluídas da constituição moderna
e propondo uma nova ontologia experimental com ressonâncias
ecumênicas. Nas próximas páginas, apresentarei as versões
respectivas da crítica que encontramos na nova sociologia francesa,
com os deslocamentos sucessivos da sociologia crítica à sociologia
da crítica e à crítica da sociologia.
A comparação lógica entre as três sociologias será apresentada
aqui como um declive progressivo de uma visão do alto para uma
visão no nível da realidade social. Do mundo tri-dimensional da
sociologia durkheimiana-marxista de Bourdieu, com as figurações
relacionais e materiais que sobredeterminam as estruturas sim-
bólicas, assim como as ações e as interações, passeremos a seguir
ao mundo bidimensional da sociologia weberiana-durkheimiana
de Boltanski e Thévenot, na qual as ações em situação de pessoas
particulares são coordenadas e mediatizadas pelas convenções
gerais superiores, para chegar, no final do percurso, ao mundo
plano, terra a terra, da sociologia serresiana-deleuziana de Latour
e Callon, com os encadeamentos rizomáticos de seres humanos
e não humanos. Essa comparação lógica das novas sociologias é
concebida como uma etapa na construção de uma teoria dialética
da sociedade que integra, dialeticamente, o momento herme-
nêutico no interior das estruturas de dominação e reconfigura a
teoria dos atores-rede em uma teoria crítica do mundo presente.

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SOCIOLOGIA CRÍTICA: A CONSTRUÇÃO
ESTRUTURAL DO OBJETO COMO SISTEMA
RELACIONAL

Em seu ensaio póstumo de auto-sócio-análise, lançado


primeiramente na Alemanha, Pierre Bourdieu (2002a) conta como,
retornando da Argélia, conheceu uma verdadeira “conversão”
da filosofia à etnologia e à sociologia antes de mergulhar em
uma pesquisa sociológica de campo que transpõe as noções
filosóficas para a sociologia empírica, de modo a retomá-las,
em última análise, contra a própria filosofia. Religando siste-
maticamente as noções veneráveis de “campo”, habitus e de
“violência simbólica”, ele desenvolveu, em um período de
poucos anos (1966-1972), uma “grande teoria” unitária, total e
superfortificada do mundo social, capaz de superar, ou melhor,
de deslocar a antinomia da ação e da estrutura, em uma teoria
construtivista neo-objetivista das práticas de reprodução sociais.
Retrospectivamente, nos damos conta de que a totalidade de
suas pesquisas ulteriores sobre os campos (e os subcampos) da
produção e do consumo culturais encontra sua origem na
formulação precoce de uma teoria sociológica neokantiana
do conhecimento que integra o racionalismo de Bachelard
com o relacionismo de Cassirer para, em seguida, transpor o
pensamento racionalista e relacional das ciências naturais para
as ciências sociais (ver Capítulo 1 deste livro).
Em O ofício de sociólogo, Bourdieu e seus colegas apresentam uma
versão forte da teoria do conhecimento sociológico, entendida
como “sistema dos princípios que definem as condições de
possibilidade de todos os atos e de todos os discursos propria-
mente sociológicos e somente destes” (Bourdieu; Chamboredon;
Passeron, 1973: 15-16; Bourdieu, 1968: 681-682). Funcionando
como uma verdadeira embreagem da teoria do campo e do habitus
científico-sociológico, sistema de esquemas mais ou menos
dominados pela interiorização da teoria e aplicação repetida de
seus princípios abstratos em uma pesquisa de campo concreta,
a teoria do conhecimento sociológico prescreve ao sociólogo
conquistar o fato científico contra o senso comum – é o momento
bachelardiano da “ruptura epistemológica” – e construir o sistema
completo de relações objetivas sobredeterminando a manifestação

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empírica do objeto, tal como ele se apresenta à observação – é
o momento cassireriano da construção do objeto científico como
estrutura relacional.
Aplicando conscienciosamente o método estrutural, o soció-
logo se dispõe a objetivar a realidade social como um sistema
de relações entre pessoas e a compreender a posição (e as
tomadas de posições) de cada pessoa no interior de uma confi-
guração que a coloca em relação a todas as outras posições (e
tomadas de posições) e lhe confere seu sentido objetivo, permi-
tindo assim explicar o sentido das ações a partir da rede completa
de relações nas quais e pelas quais as ações se realizam. Ainda
que a construção do objeto crie impasse sobre a ordem da inte-
ração e considere-as do alto, como uma emanação das posições
estruturais que os atores ocupam no campo, ela introduz, de fato,
uma terceira dimensão na análise social: o primeiro nível sendo
constituído pelas práticas, o segundo pela ordem de interação
e o terceiro, envolvendo e sobredeterminando os dois níveis
inferiores, pelo sistema estrutural de relações entre as posições
sociais dos atores no campo.
A construção sociológica do objeto científico como sistema de
relações objetivas, nas quais os indivíduos se encontram inseridos
como uma partícula em um campo energético, coincide com o
momento objetivista e determinista da explicação científica própria
a cada ciência. Em sociologia, o princípio determinista da
“razão suficiente” toma a forma do “princípio de não transparência
dos fatos sociais”, princípio aceito explícita (Durkheim, Marx) ou
implicitamente (Weber) por todos os sociólogos, segundo o
qual a vida social não deve ser explicada pela consciência dos
indivíduos, mas pelas causas profundas que escapam à consciência
e explicam os fatos empiricamente observados. Cada vez que reme-
temos os fatos sociais a explicações psicológicas ou interacionais,
simplesmente invertemos as causas e os efeitos.
Mas, se as causas estruturais explicam a coerência formal das
ações e das interações, essas últimas são necessárias para atua-
lizar as estruturas profundas e torná-las visíveis em seus efeitos
concretos, em uma situação de ação particular. Entre a estrutura
do campo e as ações concretas que a reproduzem, Bourdieu faz
intervir o habitus, definido como “sistema de disposições – orgâ-
nicas ou mentais – e de esquemas inconscientes de pensamento,
de percepção e de ação” (citado por Boltanski, 1971: 209) que o

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indivíduo incorporou no transcorrer de sua existência.Funcionando
como um “operador teórico” que dá uma coerência formal a ações
materialmente muito diferentes, o habitus realiza, de fato, a ligação
e a mediação entre o sistema invisível das relações estruturadas
que formam o campo (pelo qual as ações são formadas) e as ações e
interações visíveis dos atores (que estruturam e reproduzem as
relações que formam o campo).
Se a construção do campo constitui o momento objetivista e
determinista da análise, a explicação pelo habitus constitui seu
momento subjetivista e genético, reintegrando o senso comum
e as prenoções, assim como as ações e as interações situadas
na análise do campo.6 Compreendendo as ações e as interações
situadas como produto das estruturas sociais interiorizadas,
que regem a produção dos atos que, em certas circunstâncias
bem específicas, reproduzem as estruturas das quais elas são o
produto, Bourdieu integra dialeticamente a ação e a estrutura,
o habitus e o campo, em um mesmo sistema de reprodução,
superando, assim, a oposição entre o subjetivismo e o objeti-
vismo, mas dando-lhe um deslocamento claramente objetivista.
Forçando conscientemente a relação e minimizando o livre-
-arbítrio dos atores, reduzidos a agentes, Bourdieu busca desvelar
a exterioridade no coração da interioridade e a desfetichizar as
determinações sociais que levam os atores a agir como o fazem.
A liberdade não consistiria na negação dos determinismos, mas,
como em Spinoza, no conhecimento que permite ao sujeito, em
parte, se liberar dos determinismos e agir com os outros com
conhecimento de causa para transformá-los. Saber para prever,
prever para poder, como dizia Comte.
Ainda que Bourdieu assuma plenamente o deslocamento obje-
tivista que conduz a todo tipo de tensões em sua obra, ele teria
podido evitá-las se, no lugar de sublimar sua indignação moral
em uma hiperviolência teórica e científica, ele tivesse acentuado
mais as capacidades reflexivas de que dispõem os atores uma vez
que se encontram em uma situação de ação ou de interação. Ele
recusou-se a fazê-lo. Contrariamente a seus detratores – notada-
mente Jeffrey Alexander (1995: cap. 4) –, penso que sua arqui-
tetura teórica e metateórica o permite. É suficiente ler Bourdieu
com os óculos da teoria da estruturação de Anthony Giddens,
como prelúdio à teoria da ação comunicativa de Habermas, para
curvar a teoria da reprodução em uma direção mais voluntarista,

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capaz de pensar, ao mesmo tempo, a reprodução da sociedade
e sua transformação, tal como ela se efetua potencialmente em
cada situação de ação e de interação, mas também nos momentos
ocasionais de ruptura consciente e desejada com a ordem vigente.
Pela limitação de espaço, posso destacar aqui somente algumas
tensões na teoria bourdieusiana e indicar as inflexões necessárias
para resolvê-las. Primeiro, a objetivação das estruturas objetivas
permite tal privilégio epistemológico ao sociólogo que ele acaba
por se separar dos membros ordinários da sociedade, quando é
suficiente interpretar o desvelamento das estruturas como uma
formalização dos atos de denúncia efetuados pelos membros
e considerar, como o próprio Bourdieu (1980: 44) indica, “o
trabalho teórico” do sociólogo como uma “forma particular” de
teorização que encontramos no mundo da vida, para manter a
continuidade entre os desvelamentos de uns e de outros. Nessa
perspectiva – que é, aliás, a de Habermas (1968) –, animada por
um “interesse de conhecimento emancipatório”, a teoria crítica
confere uma forma metódica à experiência do sofrimento, apon-
tando a violência estrutural que está em sua origem.7
A seguir, reatando com o “postulado da adequação” de
Schutz, a partir do qual as construções teóricas do sociólogo
devem ser compreensíveis para os membros da sociedade, não
se restabelece somente a continuidade entre as teorizações de
uns e de outros, mas pode-se também compreender melhor o
efeito rebatido do desvelamento das estruturas exteriorizadas e
interiorizadas da dominação. Mesmo se tal hermenêutica crítica
somente for possível com a condição de que a reflexividade seja
explicitamente reintroduzida no habitus (Kögler, 1997), a socio-
logia crítica a pressupõe, apesar das denegações. Se o sociólogo
escreve para expor os determinismos que pesam sobre a ação e
para, com isso, contribuir para a formação de um sujeito autô-
nomo, ele deve supor a interpenetrabilidade hermenêutica entre
ciência e senso comum, aceitar que a reflexão teórica é eficaz e
que as ideias podem mudar o habitus, se não o mundo.
Enfim, para evitar que o habitus funcione como o gênio
maligno da reprodução, seria necessário insistir mais nas capa-
cidades transformadoras do habitus, indicando que é sempre
ativado em situações particulares. Entre as condições de ativação
do habitus e sua realização em uma situação particular, há, em
princípio, um espaço para uma reflexão, para uma conversação

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interna (Archer, 2003; Archer, 2007a) e – por que não? – para
uma comunicação racional, capaz de transformar aquilo pelo
qual o habitus é determinado. Mesmo se o princípio dessa
transformação estiver na tensão entre a estrutura e o habitus, não
há razão para se supor que a intensidade e o sentido dessa tensão
não dependam da reflexão do ator, cujas ações são determinadas
à medida que ele mesmo se determina em uma situação de ação
particular e contingente.

SOCIOLOGIA DA CRÍTICA. A CONSTITUIÇÃO


PRAGMÁTICA DO MUNDO COMUM NO REGIME
DA JUSTIFICAÇÃO

Em ruptura com a sociologia crítica de Pierre Bourdieu, mas a


partir de uma análise construtivista dos grupos sociais (Boltanski,
1982) e das categorias socioprofissionais (Desrosières; Thévenot,
1988), tributária de seus trabalhos sobre as classes e as classi-
ficações sociais, Luc Boltanski, Laurent Thévenot e sociólogos,
economistas e estatísticos que trabalham com eles no Groupe
de Sociologie Politique et Morale foram levados, no fio de suas
pesquisas, a romperem com a crítica bourdieusiana da “ilusão
ocasionalista” (Bourdieu, 1972: 184), inferindo diretamente as
práticas de propriedades inscritas na situação e se interessando
pelas situações de ações e pelas interações enquanto tais, sem
considerar a estrutura conjuntural em que elas ocorrem como
simples epifenômenos da estrutura objetiva. Retomando uma
metáfora aérea utilizada por Bernard Lahire (1996: 383) para
teorizar a variação das escalas de análise e dos contextos de
observação, poderíamos comparar a passagem da visão top down
da macrossociologia bourdieusiana para a visão bottom up da
microssociologia pragmática a uma descida de paraquedas que
mergulharia o observador no meio de ações e de interações,
dando acesso, diretamente, à observação da vida social in situ.
Os autores de De la justification observam os litígios, as
disputas, as contendas, as cenas, as demandas, em suma, as
discórdias de todo tipo, nas quais a grandeza relativa das pessoas
é publicamente colocada em causa. A fim de analisar as operações
críticas (denunciar, disputar, acusar, justificar etc.) por eles

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observadas em situações concretas de disputa e submetidas a um
imperativo de justificação, Boltanski e Thévenot construíram um
modelo pragmático arquitetado na competência do julgamento
que permite compreender como os atores manifestam seus
desacordos sem recorrer à violência e justificam suas pretensões à
justiça, se referindo a valores gerais (as “Cidades”) e se apoiando
sobre objetos comuns (os “Dispositivos”).
Os teóricos da justificação renunciam à história de longa
duração, incorporada nos corpos ou objetivada nos sistemas
sociais, para se ligarem, resolutamente, ao presente imediato,8
recusando projetar as características estruturais na situação
observada e vincular os atores a atributos e qualificações
fixas herdadas do passado. Atentos ao cerne da situação, eles
se situam resolutamente na tradição do pragmatismo ameri-
cano e apresentam uma análise relacionada às sequências de
ação e de disputa relativamente curtas, a fim de apreender as
pressões situacionais, materiais e ideais sobre as operações de
justificação9 (Dodier, 1991; Dodier, 1993). Contrariamente ao
teórico do habitus, eles não estão tão interessados pelo passado
ou pelo futuro quanto pelo presente. O que lhes interessa não
é o sistema, nem a estrutura, mas as ações e as práticas; não
os atores nem os agentes, mas a situação; não os homens e as
mulheres, mas seus momentos – moments and their men, para
retomar uma fórmula célebre de Goffman (1967: 3). Os
“momentos críticos” (Boltanski; Thévenot, 1991: 31) retêm mais
particularmente sua atenção. Nesses momentos não habituais de
crítica e de questionamento, que por vezes duram apenas alguns
segundos ou minutos, os atores exprimem, publicamente, suas
reclamações e se voltam para a justiça.
Os antigos colaboradores de Bourdieu se mantêm na teoria
neowittgensteiniana das práticas, mas, doravante, concebem-nas
como práticas “fora do campo” e não determinadas pelo
habitus. Com Bourdieu, Giddens, Garfinkel e outros teóricos da
prática sustentam a tese ontológica segundo a qual a realidade
social é, em última instância, composta de práticas situadas e
distribuídas, incorporadas ou reflexivas, interligadas e coorde-
nadas por entendimentos tácitos ou explícitos que estão no
cadinho do mundo social e o constituem como mundo comum
(Schatzki, 2001: 2-4). Enquanto princípios motores do mundo,
as práticas são formadoras e constitutivas: elas constituem os

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indivíduos, as ações, as interações, o mundo da vida, a linguagem,
a cultura, as instituições, as organizações, as estruturas e os sistemas
sociais.10 Sobre esse ponto, Boltanski e Thévenot se mantêm em
acordo com a retomada de Wittgenstein por Bourdieu, ainda
que eles se recusem doravante a envolver dialeticamente as
práticas nas estruturas e nos sistemas, considerando-as, ao final
da análise, como epifenômenos. Sem se permitir as facilidades de
uma perspectiva totalizante, eles eliminam as estruturas materiais
que sobredeterminam o espaço de interações e incorporam o
espaço tridimensional em um espaço em dois níveis, contendo,
de um lado, pessoas particulares em interação, situadas com
outras pessoas e objetos, e, de outro, diferentes convenções gerais
orientadas para um bem comum, permitindo definir a grandeza
relativa das pessoas (Boltanski; Thévenot, 1991: 43, 46, 141, 244;
Boltanski, 1990: 31, 67, 74; Boltanski; Chiapello, 1999: 409, 625).
Eliminando as estruturas materiais em benefício dessas estru-
turas ideais – as Cidades –, o desvio pragmático gira na direção
do idealismo hermenêutico. Essa estratégia metateórica tem
vantagens, mas apresenta também inconvenientes. A introdução
das convenções normativas permite romper com a visão reificada
e desencantada da sociedade como um sistema de relações entre
as posições sociais (o campo) cujas pressões são atualizadas pelos
atores, buscando seus interesses em situação de dominação. Uma
vez que o sociólogo rompa com o postulado da determinação
da ação pelas estruturas materiais de dominação e aceite que
os atores são motivados por ideias, por normas e por valores,
ele pode escapar, ao mesmo tempo, da visão determinista e
materialista das estruturas sociais e de seu complemento, i.e.,
a visão utilitarista e estratégica das ações que a acompanha.
Bourdieu permaneceu ligado a uma análise um pouco circular
da reprodução da dominação, na qual o papel da causalidade
da liberdade – para falar como Kant – era conscientemente
minimizado, à semelhança da teoria crítica da Escola de Frankfurt.
A intensa introdução de convenções normativas pela sociologia
pragmática a reconcilia com a razão prática, mas, na medida em
que essa introdução tende a abandonar as questões do poder e
da distribuição desigual (e injusta) de recursos diversos (capital
econômico, social, cultural etc.), me pergunto se não seria neces-
sário integrar dialeticamente a sociologia da justificação em uma
sociologia hermenêutica da dominação, capaz de perseguir, desde

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o interior, a comunicação sistematicamente distorcida.11 Em tal
perspectiva crítica, as justificações em situação seriam analisadas,
mas sem partir da hipótese de que todos os atores dispõem de
igual poder de justificação (Ramaux, 1996). Ou seja, o sociólogo
não oporia simplesmente a justificação à dominação, mas, preci-
samente a fim de desativar os efeitos de poder que pesam sobre
a situação de disputa e, notadamente, sobre as argumentações e
os argumentos que os atores podem (ou não podem, em certos
casos) fazer valer, ele analisaria em que medida a justificação
é afetada desde o interior pela dominação. Incluindo assim a
violência simbólica da comunicação sistematicamente deformada
no modelo pragmático da justificação, a meu ver, poderíamos
dar conta melhor dos elementos externos que manifestam suas
pressões na situação e pesam sobre o desenvolvimento interno
da disputa. Afinal, as situações de disputa estão longe de serem
situações ideais de fala.
Se Bourdieu depreciava as práticas, concebendo-as como
epifenômenos da estrutura material, Boltanski e Thévenot, ao
contrário, as elevam, conferindo-lhes uma dignidade metafísica.
Para compreender as práticas, é necessário, daqui em diante,
fazer uma curva hermenêutica pelas convenções metafísicas
invocadas por pessoas comuns em situações de disputa. São
elas que orientam suas práticas significativas e lhes conferem um
sentido. A sociologia pragmática rompe com o “paradigma do
desvelamento” dos mestres da suspeita (Marx, Nietzsche, Freud)
para se ligar ao paradigma da interpretação dos hermeneutas e
dos fenomenólogos, recusando invocar os mecanismos sociais e
as forças inconscientes que determinariam o ator (sem que ele o
soubesse) e explicariam suas ações. A sociologia da justificação
apreende o ser humano “como um ser livre” (als freihandelndes
Wesen) e se reconecta ao ponto de vista da antropologia
pragmática de Kant, insistindo mais sobre o que o ser humano
faz do que sobre o que é feito dele. Diferentemente da sociologia
crítica, ela toma seriamente os discursos, os princípios e os valores
legitimadores que dão um sentido à ação, sem ver aí ilusões bem
fundadas que, em nome de um conhecimento superior, em nome
da ciência, seria necessário submeter à crítica. Contrariamente ao
mundo tridimensional da dominação, o mundo bidimensional da
justificação é um mundo sem estruturas profundas a desvelar e
sem ilusões a dissipar.

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Modestamente, sem ilusões, o sociólogo se reconecta ao
mundo dos atores, não para criticá-los, nem para explicar sua
ação, mas para compreendê-los, explicitando as competências
das quais dão prova quando denunciam uma injustiça. Nessa
perspectiva interpretativa, explicar é “explicitar” e fazer com-
preender o desenrolar da ação, organizando o relato em uma
trama compreensível, excluindo tanto as causas materiais quanto
as reificações (Veyne, 1971: 111-144). Denunciar uma injustiça,
desvelar realidades ocultas e desigualdades, reclamar uma
correção da situação e convocar a uma transformação da socie-
dade não são tarefas monopolizadas pela sociologia crítica. Em
sociedades altamente reflexivas como as nossas, em princípio,
cada um dispõe de capacidades críticas e é capaz, ainda que em
graus diferentes e com resultados desiguais, de denunciar uma
injustiça, apoiando-se sobre trabalhos de intelectuais midiáticos.
Estimando que o bom senso crítico é a coisa mais bem divi-
dida no mundo, os teóricos do senso comum democratizam a
competência crítica e passam, como Ulrich Beck, da “teoria crítica
da sociedade” a uma “teoria da autocrítica da sociedade” (Beck,
1993: 4), que se apresenta mais modestamente como uma socio-
logia pragmática da crítica.
A sociologia crítica – reinterpretada em concordância com o
pragmatismo que se recusa a opor a reflexão à ação, conside-
rando-a como uma fase no interior mesmo da ação – pode agora
se reconectar ao mundo da vida e ser tratada como uma siste-
matização e uma formalização das competências críticas que os
atores acionam sem o saber, mas sabendo o que fazem, quando
devem explicar as razões de suas ações e as dos outros ou dar
conta das situações nas quais eles se encontram. Entretanto, mesmo
que a sociologia bourdieusiana possa ser considerada como
uma formalização exemplar do sentido crítico ordinário – a tal
ponto que poderíamos dizer estar ela para o senso comum como
a epistemologia está para a ciência –, ela permanece marcada
por uma rigidez que destoa relativamente da flexibilidade do
senso comum. Denunciando as injustiças a partir da perspec-
tiva da Cidade Cívica – essa “Cidade das Cidades” que não é
uma Cidade como as outras (Ricœur, 1995) –, ela se apresenta,
definitivamente, incapaz de passar de um registro de avaliação
a um outro e de julgar as injustiças de uma maneira pluralista,
se apoiando sobre diferentes esferas de justiça. A sociologia

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pragmática, ao contrário, pode tudo isso. Tendo renunciado à
posição “(bour)divina” (Aron) de desvio, a única vantagem que
ela mantém, relativamente aos atores, consiste no fato de, não
estando engajada na ação, dispor de um observatório que lhe per-
mite reconstruir o espaço estrutural das justificações possíveis.12
Na encruzilhada da hermenêutica e da fenomenologia, do
pragmatismo e do interacionismo simbólico, da teoria dos
atos de fala e da etnometodologia, a sociologia da justificação
mostra-se como uma microssociologia da ação que coloca as
práticas significativas – e notadamente as práticas constitutivas
da situação – no centro da análise. Na esteira de Habermas,
Boltanski e Thévenot tomam o problema da ordem social, i.e.,
da coordenação das ações em situação, como ponto de partida
analítico (Habermas, 1981; Boltanski; Thévenot, 1991: 39-59,
425-431; Thévenot, 1990). A coordenação da ação pressupõe
um entendimento sobre a “definição da situação” (W. I. Thomas):
Quais são os seres presentes? Como qualificá-los? Para responder
a essas questões práticas, Boltanski-Thévenot introduzem
as Cidades como mediações simbólicas e axiológicas que
permitem constituir a situação como um conjunto bem orde-
nado de interações vividas entre as pessoas e os objetos que
os atores encontram em seu ambiente imediato. Normalmente, esse
entendimento sobre a definição da situação é tácito, não sendo
necessário interromper a ação para tematizar, explicitamente, a
constituição da situação enquanto tal. Esta é dada, experenciada
e constituída de maneira contínua, sustentada com um contex-
to vivido e significativo, “qualitativo e qualificativo” (Dewey,
1938: 70), de interações entre os humanos e as coisas cujo ator
constrói, imediata e ingenuamente, a experiência e promove um
andamento de comportamento (course of behavior) (Dewey, 1938:
67).13 Mesmo se os etnometodólogos tivessem razão em insistir
sobre o fato massivo e incontornável de que a ordem social é
sempre uma realização prática, contingente, local, endógena,
natural, observável em situação (Garfinkel, 2002: 91-120), ainda
restaria o fato de que, normalmente, isto é feito de maneira
pré-reflexiva e pré-predicativa, sobre o pano de fundo compar-
tilhado de um mundo da vida em comum.
Ora, em certas situações – notadamente em situações de
contendas –, esse acordo tácito deixa de valer. Torna-se necessário
submeter, explicitamente, a constituição da situação ao que podemos

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chamar, com Dewey, uma “pesquisa de senso comum”. Há
“qualquer coisa que falha” e, para superar o embaraço, os atores
são obrigados a acordarem sobre os registros convencionais de
avaliação para qualificar as pessoas e as coisas que constituem
a situação. Como Simmel e Habermas, Boltanski e Thévenot
insistem sobre o momento consensual do debate: para disputar
e discutir, é necessário ao menos estar de acordo sobre não estar
de acordo e acordar em situação sobre os critérios normativos
de julgamento que permitem estabelecer a realidade, no caso
de contestá-la. À diferença de Habermas (e de Bourdieu), eles
distinguem uma pluralidade de registros de argumentação e de
justificação com pretensões universais, as Cidades, que oferecem
referências normativas convencionais – supostas comuns –,
mediatizando a ação, permitindo aos atores julgarem os outros e
suas ações, apoiando-se sobre objetos e sem recorrer à violência.14
Boltanski e Thévenot insistem, como Habermas, sobre o
caráter público das discussões e das disputas. Eles não o fazem
tanto por razões filosóficas – referindo-se aos fundamentos da
justiça – quanto por razões sociológicas – dizendo respeito
à observação e à descrição dos motivos e das intenções dos
atores em situação (Boltanski; Thévenot, 1991: 436-438). Em lugar
de compreender os motivos e as intenções verbalizadas como
indícios de uma interioridade inefável à qual teríamos acesso
por empatia (Einfühlung), nos projetando na situação do Outro,
como pensava ainda Husserl (Cefaï, 2001), eles as analisam como
os modos públicos de descrição, de configuração e de relato da
ação ou, como diz C.W. Mills, se inspirando no behaviorismo de
Mead e no pragmatismo de Dewey, como “vocabulários” típicos
e convencionais de motivos normativos socialmente aceitáveis
que os atores invocam nos contextos de justificação.15
A sociologia pragmática ultrapassa o “situacionismo” radical da
etnometodologia e se junta à hermenêutica e à sociologia compre-
ensiva, incluindo as Cidades como vocabulários convencionais e
repertórios trans-situacionais de justificação que os atores utilizam
e introduzem nas situações de disputa para definir os termos do
acordo ou do desacordo e coordenar suas ações em justiça.16 Para
configurar a ação e agir em comum, os atores devem fazer uma
volta pela cultura e beber no fundo comum das representações
coletivas. Graças às Cidades, são assim superadas as platitudes
do empiricismo da etnometodologia e da teoria do ator-rede e

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chegamos a uma construção teórica em dois níveis (individual/
coletivo, particular/geral), onde são reencontradas as entidades
relevantes das três ontologias regionais: as pessoas humanas (as
“almas”) em interação com os objetos e as coisas (os corpos não
animados), assim como com os seres metafísicos (os “espíritos”)
que mediatizam as interações entre as pessoas e os objetos,
permitindo situá-los “em equivalência” e, assim, qualificá-los.
Ainda que as disputas girem, o mais frequentemente, em
torno de uma gratificação contestada e contestável dos objetos
e dos recursos, e os atores não possam denunciar as injustiças
sem exigir ao mesmo tempo uma retribuição mais equitável dos
bens, é assinalável que os economistas da grandeza definam a
disputa como um desacordo que se apoia, em primeiro lugar,
sobre a “grandeza das pessoas” e, então, sobre o caráter mais
ou menos justo de sua distribuição na situação. Nas disputas, as
pessoas procuram se engrandecer e diminuir as demais, tratando-as
como se elas tivessem usurpado um estado de grandeza não
justificado. Com efeito, ainda que os recursos e os objetos sejam
levados em conta e joguem um papel primordial nas “provas de
grandeza”, como veremos mais adiante, eles são introduzidos e
concebidos, à primeira vista, não como objetos de distinção que
manifestariam o pertencimento do ator a uma classe social, mas
como “instrumentos de grandeza” que os atores acionam para
se atribuir valor.
Para se medir e avaliar a grandeza das pessoas mediante os
objetos que se encontram no ambiente imediato, é necessária
uma referência, uma forma de generalidade que, transcendendo
as pessoas e as coisas particulares, permita colocá-las em equi-
valência e qualificar sua grandeza relativa. Essa colocação “em
equivalência” – ou “em relação”, como diria Simmel – das pessoas
e das coisas não é automática, mas pressupõe primeiramente um
“investimento de forma” (Thévenot, 1986), “formatando” os dados
de tal modo que elementos materialmente diferentes possam ser
considerados como equivalentes e subsumidos nas categorias ge-
rais e homogêneas.17 Resultando de tais investimentos de formas,
as diferentes Cidades representam formas de investimentos gerais
que funcionam como “formas categoriais” (Kant) ou “simbólicas”
(Cassirer) que unificam e estruturam, de modo diferencial, os da-
dos da experiência, captando-os em suas “redes de significações”.
Diferentemente das formas de entendimento de Kant e das formas

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simbólicas de Cassirer, as Cidades não são formas analíticas, mas
formas sintéticas. Verdadeiros “transcendentais históricos”, elas
são o resultado de uma colocação em forma coletiva, institucio-
nal e convencional que precede os indivíduos e lhes fornece os
instrumentos de equivalência necessários para que eles possam
se colocar em acordo sobre a unidade-referência medindo sua
grandeza relativa. Transcendendo a situação, elas oferecem en-
tão os padrões da justiça que permitem aos indivíduos definir
a situação de disputa e agir em comum. Podemos, então, dizer
com Georg Simmel que as Cidades são “formas de associação”
(Formen der Vergesellschaftung) que estruturam as interações em
situação de “uns com, por e contra os outros” (Simmel, 1992: 18).
Enquanto convenções normativas, orientadas para o bem
comum e o interesse geral, as Cidades exprimem diferentes
princípios históricos, mas universais, de justiça aos quais as
justificações e as acusações ordinárias devem fazer referência,
implicitamente, para serem recebidas como legítimas. As justifi-
cações e as acusações que não invocam o interesse geral e que
não fazem referência a um valor socialmente aceito, tal como a
eficácia técnica, a performance econômica, a igualdade cívica, a
celebridade, a confiança ou a inspiração não são admissíveis.18
À diferença de Habermas e de Rawls, que retêm um só princípio
da justiça – o princípio imparcial e republicano da universali-
zação kantiana, própria à Cidade cívica –, mas vagamente em
acordo com Walzer – que pluraliza a ideia de justiça, projetando
os princípios de justiça em esferas autônomas –, Boltanski
e Thévenot enumeram várias ordens axiológicas legítimas,
irredutíveis e incompatíveis, abastecendo de “vocabulários” de
justificação os atores, que os invocam para definir a situação de
disputa e coordenar suas ações. Concebidas como ordens
axiológicas construídas em torno de “princípios superiores
comuns” que servem como marcos e repertórios de legitimação,
o modelo axiomático das Cidades formula três exigências que
toda filosofia política deve levar em conta: primo, nenhuma
pessoa pode ser excluída de uma cidade (exigência da comum
humanidade); secundo, cada um pode aceder a todas as cidades
(exigência cosmopolita); tertio, cada membro de uma cidade
pode ser ordenado conforme um princípio de grandeza e ser
qualificado de “grande” ou de “pequeno” (exigência da ordem19).

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Para inventariar e formalizar esses vocabulários de justificação
que remetem cada um a um fim diferente da “boa vida com e
para os outros em instituições justas” (Ricœur, 1990: 202), eles
recorreram a seis textos canônicos da filosofia política e moral
e trataram suas obras como “gramáticas do laço político”, que
explicitam e sistematizam as pressões argumentativas que os
atores devem considerar para tornar suas críticas aceitáveis. Dos
textos de Santo Agostinho (Civitas Dei), Bossuet (La politique
tirée des propres paroles de l’écriture sainte), Hobbes (Leviathan),
Rousseau (Du contrat social), Adam Smith (The Wealth of Nations)
e Saint Simon (Du système industriel), retiraram seis Cidades: a
Cidade Inspirada, a Cidade Doméstica, a Cidade do Renome, a
Cidade Cívica, a Cidade Mercantil e a Cidade Industrial.20 Bem
entendido, Boltanski e Thévenot não querem sugerir que os ato-
res leram esses livros. Seu argumento consiste em dizer o que os
atores dispõem, por metafísica infusa, de um conhecimento tácito
de seus conteúdos, que acionam ao se referirem à inspiração e
à graça, à lealdade e à tradição, à opinião e ao reconhecimento,
à igualdade e à solidariedade, à competitividade e ao mercado
ou à eficácia e à competênca técnica para assentar um acordo
ou sustentar um litígio.
À semelhança dos tipos ideais weberianos, as Cidades são
utopias conceituais que não existem de fato. Na realidade, não
se encontram mais anjos que almas imaculadas e puros espíritos,
mas sempre situações compostas envolvendo humanos e não
humanos. Inspirados pela “revolução anticopernicana” de Latour
e Callon, que colocaram os objetos no centro da análise socio-
lógica, Boltanski e Thévenot introduzem com força, em seu
modelo, as coisas como “instrumentos de qualificação” das pessoas
segundo uma grandeza. Retomando uma metáfora de Weber,
poder-se-ia dizer que os objetos jogam o papel “do orientador”
que seleciona as Cidades e determina as vias da justificação,
definindo a natureza das “provas de grandeza” que permitem
testar a estatura das pessoas. Os objetos podem jogar esse papel
de comutador, porque, diferentemente das pessoas, os objetos
são, por natureza, ligados e religados a mundos determinados.
A exigência de humanidade e a exigência cosmopolítica
interditam a reificação dos humanos, mas não valem para os não
humanos. Pode-se ligá-los, então, sem escrúpulos, religá-los
de modo permanente às Cidades e analisar a reificação como

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um procedimento de resolução de conflitos. A cada Cidade
corresponde todo um “Mundo Comum”, mobiliado de objetos,
de “coisas” de todo tipo (regulamentos, diplomas, códigos, merca-
dorias, prédios etc.), integrados ou não a “Dispositivos”. Tribunais
eleitorais são de natureza “cívica”, enquanto as fábricas são de
natureza “industrial” e as joias de família de natureza “doméstica”.
Acionando os objetos de uma certa natureza, os atores mobilizam
e determinam igualmente os repertórios de justificação que definem
a situação e permitem determinar a grandeza das pessoas. Assim,
um curriculum vitae mal preenchido, apresentado ao empregador
após uma entrevista, situa o candidato ao emprego como
“pequeno” no mundo do mercado, enquanto uma carta de amor
comovente define o amante como “grande” no mundo inspirado.
Ou seja, situações nas quais os objetos são ajustados às Cidades,
de tal modo que sua agregação constitui um mundo comum
coerente, claramente definido por uma prova de grandeza bem
determinada, podem ser subvertidas pela presença de objetos
“enraizados” ou “cabeludos” (Latour), pertencentes a outras
cidades, integrados a outros mundos.
A introdução parasitária de uma grandeza estrangeira por
meio de um objeto mediano, previsivelmente descartável
ou simplesmente desativado, serve para alavancar a crítica e
relançar a disputa, mas agora como conflito entre mundos. O
desacordo se funda sobre o princípio de justiça que deve regular a
mensuração das grandezas e sobre o mundo no qual a prova
deve ser agenciada para ser convincente. O secretário demitido
por falta profissional pode fazer valer a presença da foto de
família no escritório do patrão para fazer surgir um outro mundo,
introduzir um outro princípio e reverter a situação em seu favor,
envolvendo um testemunho do mundo doméstico. Introduzindo
a foto de família na situação de disputa, um outro princípio de
julgamento, mantido até então oculto, é desvelado e, visto da
cidade doméstica, o “grande” patrão demonstra ser, “na verdade”, um
“pequeno” déspota. Alternativamente, os atores podem aproveitar
a presença de objetos enraizados para “demarcar um compro-
misso” entre os princípios de justiça, procurando um princípio
superior de síntese que integre os princípios superiores comuns
para estabilizar o compromisso nas redes sociotécnicas sólidas.
Tal empresa – verdadeira materialização de um compromisso
histórico mercantil-industrial – é composta de todas as naturezas

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possíveis, enfraquecendo atualmente provas instituídas do arranjo
neocorporatista dos “trinta gloriosos” e revolucionando o mundo,
transformado em um magma rizomático de redes sociotécnicas
(Boltanski; Chiapello, 1999). Como materializações de compromissos
marcados e de provas passadas, essas redes associam humanos e
não humanos e se deslocam entre o micro e o macro (Boltanski;
Chiapello, 1999: 74), funcionando, assim, como ponto de passagem
entre a microssociologia pragmática e a macrossociologia das
transformações sociais. Considerando as provas como operadores
que permitem religar a situação de ação ao contexto mais amplo
da sociedade conexionista contemporânea, a sociologia pragmática
retoma algumas ideias centrais da teoria das redes. Na medida em
que a análise da network society desemboca em uma crítica norma-
tiva da flexploitation mundial do neocapitalismo contemporâneo,
pode-se notar, com uma ponta de ironia, que a teoria de Callon
e Latour funciona, na verdade, como uma trégua que permite
à sociologia pragmática uma reconciliação com a sociologia
crítica de Bourdieu. Essa reconciliação ideológico-política com a
teoria crítica não anula a crítica pragmática da sociologia crítica,
mas reconfigura-a de modo idealista. Introduzindo as visões
normativas do mundo como motores das transformações sociais,
ela oferece uma “crítica corretiva” da teoria da dominação que
reduz um pouco rápido demais as visões normativas a ideologias
e as ideologias a distorções e dissimulações da realidade. Dando
assim justiça à justiça, a sociologia pragmática, ao mesmo tempo,
deslegitima a teoria do ator-rede como uma visão acrítica do
mundo, que acompanha e performa a sociedade conexionista
neocapitalista emergente – mesmo que ela tenha permitido
efetuar, metodologicamente, a ligação entre os níveis micro e
macrossociológico de análise.
Resumamos: partindo de uma observação microssociológica
das práticas de justificação e de denúncia agindo nos momentos
críticos nos quais a ação de uns e de outros não é mais coordenada
espontaneamente, a sociologia pragmática propõe um modelo
que permite compreender como os atores se fixam para definir
a situação, invocando os registros e os repertórios convencionais
e transituacionais da justificação, orientados para o bem comum,
que apresentam os instrumentos de equivalência necessários
para se colocar de acordo sobre a grandeza relativa assim que
se engagem em suas provas e se apoiem sobre os objetos e as

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coisas integradas nos dispositivos. Esses dispositivos heterogêneos
– resultado de provas passadas e que estabelecem a situação
– podem, igualmente, introduzir novas provas e engendrar
transformações sociais em dimensões que ultrapassem a situação
e subvertam, duradouramente, o mundo – para melhorá-lo ou
piorá-lo.

CRÍTICA DA SOCIOLOGIA: A COCONSTRUÇÃO


PERFORMATIVA DO MUNDO E DAS REDES

Há muito, economistas e empresários falam sobre os humanos


e os recursos, mas esse não é o caso dos sociólogos. Ainda que
Marx, Durkheim, Weber, Simmel e Mead não tenham negligenciado
completamente os objetos em suas teorias e em suas pesquisas,
somente há pouco os artefatos fizeram sua aparição na cena
sociológica (Pels; Hetherington; Vandenberghe, 2002). Devemos
essa introdução estrondosa dos objetos nas ciências humanas ao
talento provocador de Bruno Latour, Michel Callon e John Law.
Melhor conhecida sob a designação de “Actor-Network Theory”
(ANT), a teoria dos actantes-rede integra, de modo original, os
trabalhos de Deleuze, Serres, Greimas, Leroi-Gourhan e Simondon
em uma espécie de romance experimental metafísico, digno de
um Gombrowicz, sobre a composição progressiva e performa-
tiva de um mundo comum aos objetos e sujeitos, humanos
e não humanos, que se coconstituem, construindo, de modo
experimental, o mundo ou – o que o pós-modernismo obriga –
“versões” do mundo.21
Situando-se resolutamente na tradição hobbesiana, a ANT
reformula o problema da ordem social, incluindo aí os objetos
como bases que contêm as relações sociais e estofam a socie-
dade dos humanos pela reificação, preservando-a, assim, da
delitescência (Callon; Latour, 1981; Latour, 2005: 1-17). A partir
de uma desconfiança profunda em relação aos humanos e suas
capacidades comunicacionais de alcançar um acordo e a partir
daí funcionar, os sociólogos pós-modernos acusam seus colegas
de tratar os humanos como macacos, ao modo dos etnometo-
dólogos que concebem a ordem social como uma ordem local
constantemente renegociada, e de ignorar o papel funda-
mental que jogam os objetos na estabilização dos acordos e

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materialização da ordem social. Considerando que a ordem
social não é, nem pode ser, puramente social, pois os humanos
têm necessidade dos não humanos e devem se associar a eles
para formar uma sociedade durável, Callon e Latour propõem
refuncionalizar a sociologia, definindo-a não mais como ciência
da sociedade, mas como “ciência das associações” (Latour, 1984:
45-48, 229), ou seja, cunhando uma nova palavra, como “asso-
ciologia”. Até mesmo como a-sociologia, pois, diferentemente de
Simmel, associação não é entendida aqui como uma comunidade
espiritual, como uma associação de sujeitos, conscientes de
formar uma unidade, uma sociedade, mas como uma associação
heterogênea de sujeitos e objetos sem alma, separados do espí-
rito objetivo.
Indicando as paredes, as portas, as janelas, as mesas, os
livros, os artigos, os rascunhos, as canetas, todos esses objetos
ordinários dos quais “dispomos” e que “mobiliam” nossa vida
cotidiana, “emolduram” nossas interações e as tornam possíveis,
o antropólogo da a-modernidade se questiona se a sociologia,
concentrando-se sobre os humanos e os símbolos que os ligam,
não seria, literalmente – mas diferentemente da filosofia –, “sem
objeto”: “Os sociólogos não procurariam o meio-dia às 14 horas,
construindo o social com o social ou revestindo suas fissuras
com o simbólico, quando os objetos são onipresentes em todas
as situações nas quais eles buscam o sentido?” (Latour, 1994a:
597). Eles não veem que são os objetos que mantêm os humanos
juntos (é o momento realista da reificação, representado por um
“tecnograma”), como são os humanos que mantêm os objetos
reunidos (é o momento construtivista da mobilização, repre-
sentável por um “sociograma”)? Eles não compreendem que os
objetos não são meios, mas mediadores, do mesmo modo que as
Cidades são mediações simbólicas? Eles não podem abandonar
seus reflexos vétero-humanistas e conceber que os objetos fazem
agir e podem, nessa condição, ser legitimamente considerados
como quase sujeitos, até mesmo como atores integrais?
Com um golpe, esvaziando a mediação pelo espírito objetivo
e os símbolos que dão um sentido à ação e estruturam as práticas
que (re)produzem a sociedade, a a-sociologia dos atores-rede
introduz os objetos como “actantes” (Tesnière),22 suscetíveis de
individuação, que “fazem” a sociedade e a preservam, ligando
os humanos. Antropomorfizando os objetos a todo custo, Latour

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não comete somente um erro de categorias – para não dizer um
erro ontológico –, arriscando-se a ofender humanos (e humanistas
em particular), mas ele reduz também os objetos a simples coisas
utilitárias e instrumentais, “subsistentes” (Vorhanden), como diria
Heidegger, pertencendo ao mundo “mercantil-industrial”. Ele
desconhece, assim, a pluralidade das modalidades de agencia-
mento de humanos e não humanos inventariadas pela sociologia
pragmática (Thévenot, 1994b). Despindo-se do simbólico (“os
símbolos”), a crítica da sociologia elimina, no mesmo gesto, as
relações sociais entre os humanos (“o social”), essas relações
intersubjetivas que “são” a sociedade, como dizia Simmel, em
proveito das relações interobjetivas que “fazem” a sociedade.
Reduzindo também a relação ternária entre o sujeito (ego), o
objeto e o outro (alter) a uma relação binária entre o objeto e o
sujeito, a natureza e a cultura, amalgamando-se sob esse último
termo a sociedade e os indivíduos (Blandin, 2002: 9, 105, 168
et seq.), a interobjetividade usurpa o lugar da intersubjetividade,
excluindo o alter ego para substitui-lo pelo alter techno.
Ainda que o A de ANT indique ser ela compreendida como
uma teoria da ação, sua insistência sobre a interobjetividade,
assim como a dessimbolização da realidade por ela realizada,
“descentram” a tal ponto o sujeito que podemos nos perguntar
se ela ainda permanece no âmbito da teoria da ação pragmática
na qual ela se inspira, extirpando os resíduos humanistas até a
raiz. Atribuindo uma capacidade de ação aos objetos, integrando
os não humanos na ação e “distribuindo” a ação dos humanos
sobre seu ambiente material, Callon e Latour radicalizam o
modelo da teoria da “ação situada” (Garfinkel, Suchman, Conein)
e da “cognição distribuída” (Norman, Hutchins, Kirsh).23 Desse
modo, eles se aproximam mais e mais do pós-estruturalismo.
Com efeito, a distribuição da ação sobre os objetos, os artefatos,
os instrumentos, as máquinas, em suma, sobre os dispositivos
materiais que substituem as mediações simbólicas, não evocam
simplesmente as tentativas pós-estruturalistas de “dissipar” o su-
jeito unitário da ação, “disseminando-o” por meio da linguagem
e fragmentando-o em uma miríade de “posições de sujeito na
linguagem”, como dizem os lacanianos, mas também permite
pensar que Callon e Latour “traduziram” e “transpuseram” os
tropos do pós-estruturalismo na linguagem da sociologia da ação,
descentrando radicalmente o sujeito em benefício dos objetos.

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Desse ponto de vista, as “práticas materiais” dos actantes-objetos,
dotados de intenções e capazes de agir como sujeitos, dos quais
falam Pickering (1993) e Barad (1996), parafraseando Latour,
aparecem como uma retomada pseudofenomenológica e pós-
-humanista das “práticas discursivas” do pós-estruturalismo que
nada mais tem a ver com a tradição da sociologia interpretativa
da ação.
Restam as práticas. De acordo com a crítica do representacio-
nismo, elas são redefinidas como performances que produzem
e fabricam, efetivamente, aquilo que elas descrevem. Como na
sociologia pragmática, as práticas se tornam formadoras e constitu-
tivas do mundo comum, mas doravante elas não são mais somente
concebidas como práticas fora do campo e “desabitualizadas”, mas
ainda objetivadas e vitalizadas como práticas “dessimbolizadas”,
energéticas, entelechiques,24 que performam o mundo comum.
Não sendo mais um mundo da vida, esse mundo comum volta
a tornar-se, então, literalmente Lebenswelt.
Seguindo os actantes através do mundo, em todas as suas
associações e dissociações, a sociologia das redes sociotécnicas
analisa como os mundos se formam e se estabilizam ou se
decompõem e se dissolvem, mas, diferentemente de Boltanski e
Thévenot, ela não leva em conta as convenções normativas que
orientam significativamente as ações e permitem coordená-las,
qualificando as pessoas e os objetos em situação. Abandonando
nietzschianamente as Cidades e a Justiça ao proveito da força e
das provas de força – “Só há provas de força ou de fraqueza”
(Latour, 1984: 177) –, a ANT recusa a “interpretose” (Deleuze;
Parnet: 1996: 58).25 Se ela abandona o idealismo dos hermeneutas
e dos fenomenólogos apóstatas, ao mesmo tempo não se
reconcilia com o materialismo dialético de Bourdieu, mesmo se
o abandono das Cidades pode somente reduzir a ação a uma
dimensão “estratégica”. Com Foucault (1994, III: 124-130), essa
última é, doravante, radicalizada e compreendida em um sentido
militar e marcial. Como ações estratégicas, as batalhas, ações e
reações, ofensivas e contraofensivas procuram definitivamente
conquistar o poder e ocupar o terreno por todos os meios.
Se alguns dizem que a sociologia é um esporte de combate,
podemos, agora, acrescentar que ela é uma arte marcial…
A insistência comum sobre as estratégias, os estratagemas e
as táticas de combate não pode mascarar que Bourdieu e Latour se

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combatem violentamente, de modo direto ou indireto – por meio
de representantes como Bricmont ou Bouveresse –, na “guerra das
ciências” opondo o realismo ao construtivismo (Sokal; Bricmont,
1997; Bourdieu, 2001: 55-64). Tudo, começando pela filosofia das
ciências, opõe a hipercrítica marxizante de Bourdieu à hipocrítica
nietzschiana de Latour. Do mesmo modo que podemos descrever
Michel Serres como o anti-Bachelard, poderíamos apresentar
Bruno Latour como o anti-Bourdieu e resumir as oposições,
declarando que o materialismo de Bourdieu é realista, estrutura-
lista, racionalista e relacionista, tanto quanto o materialismo de
Callon-Latour é nominalista, empirista, vitalista e conexionista.
Essas diferenças epistemo-ontológicas explicam por que palavras
superficialmente similares – como “relação”, “performance”,
“representação”, “porta-voz”, sem esquecer a etiqueta do “realis-
mo construtivista” que reencontramos como autodesignação entre
os dois protagonistas –, assumem uma significação profundamente
oposta nas sociologias da inovação e da reprodução.
Recusando definir as estruturas profundas e as forças invi-
síveis que substituiriam os atores e os levariam a agir sem seu
conhecimento, Latour insiste, com Boltanski e Thévenot, que
a sociologia não tem mais que construir o objeto como um
sistema invisível de relações que sobredetermina e explica a ação.
Contra eles, acrescenta imediatamente, não se há de explicitar e
interpretar como os atores constituem a situação. “Experimentai,
não interpretai jamais” (Deleuze; Parnet, 1996: 60); “Traduzi,
não explicai jamais”, tais parecem ser os preceitos metodoló-
gicos que Callon e Latour preparam tão logo eles “seguem os
atores” e observam de longe e do exterior (adotando a posição
de observadores estrangeiros) como eles compõem progressi-
vamente o mundo, associando os humanos e os não humanos em
experimentações sociotécnicas. Eliminando tanto as alturas dos
idealistas e seus valores quanto as profundezas dos materialistas,
a teoria das redes se mantém, como os estetas, na aparência das
coisas. Reduzindo o espaço tri, em seguida o bidimensional, a
uma só dimensão, a da phylum vital, a ANT nivela e rebaixa “a
ontologia em massa folhada” de uns e outros para reter um só
plano de análise – o “plano da imanência” (Deleuze) ou o “plano
da dança” (Nietzsche) – onde os seres mais heterogêneos (Deus,
o vento, os humanos, os animais, as coisas etc.) se reencontram,
se confundem e se agrupam na noite caosmótica, que está na
origem da criação dos mundos.

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O mundo não é a totalidade dos fatos, mas uma concatenação
infinita, concreta e quase viva de humanos e não humanos em
devir, que se coconstituem, construindo um mundo em comum.
Assim poderia-se anunciar a primeira proposição do Tractatus
Scientifico-Politicus do colaborador do CSI. Em seu tratado de
sociologia experimental, Bruno Latour escolheu, entretanto, uma
outra, mais nietzschiana, mais afirmativa em sua rejeição jubi-
lante dos sistemas da filosofia primeira que, desconhecendo a
diferença e a alteridade, reduzem tudo à unidade e à identidade:
“1.1.1. Nenhuma coisa é, por si mesma, redutível ou irredutível
a qualquer outra. (…) Nada se reduz a nada, nada se deduz de
nada do outro, tudo pode se aliar a tudo” (Latour, 1984: 177, 182).
Desenvolvamos: nada se reduz a nada, pois tudo é complexo,
complicado, composto, ambivalente, diferente, suplemento.
Nada se deduz de nada, pois não há totalidade, nem verdade,
nem essências, nem substâncias sobre as quais poderíamos erigir
um sistema. Nada é dado, pois tudo pode ser desconstruído. A
Sociedade, a Natureza, a Cultura, a Ciência, a Política, a Religião,
a Economia, o Direito etc.,26 tudo isso não existe e, seguindo o
imperativo anticategórico, sobretudo não no singular e capita-
lizado ou no estado puro, sem corte, mistura, acoplamento ou
aliança. Nada pode existir por si mesmo, mas tudo pode se aliar
e deve se associar a tudo, tudo está para se refazer e reconstruir.
Tudo, todo um mundo de humanos (os cientistas, os políticos, os
pescadores, os deficientes etc.) e de não humanos (os micróbios,
os grooms, os navios portugueses, EDF, as vieiras, as palavras
etc.) pode ser associado, interessado, mobilizado, enrolado,
encadeado e alinhado pela força ou pela astúcia, tradução ou
traição, delegação ou representação, em uma rede rizomática de
actantes em devir. Sem escrúpulos e sem efetuar uma distinção
de natureza entre a Natureza e a Cultura ou a Sociedade, a teoria
dos actantes rizomáticos religa os seres mais heterogêneos em
uma cadeia sociotécnica que se propaga através do espaço e,
assim fazendo, constrói progressivamente o mundo, assim como
seu próprio contexto e seu próprio meio associado.
Com efeito, mesmo que os objetos técnicos em Simondon
(1958: 50-65) mediatizem a relação entre os humanos e seu
ambiente por “adaptação-criação” de um meio técnico-geográfico
associado quase vivo que os condiciona, tanto quanto eles são
também condicionados, mesmo as redes-técnicas se constituem,

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ao mesmo tempo que constituem o mundo.27 Como mediação
entre o humano e a natureza, a rede sociotécnica é um mediador
híbrido que não somente relaciona os elementos, mas os
“performa” e os “transforma”, mediatizando-os.28 Filosoficamente
falando, a relação é ontologicamente primeira. Ela tem, como
diz ainda Simondon (1964: 68), “valor de ser”. A relação não liga
os elementos quando eles estão já constituídos (inter-relação).
Os relata não preexistem à relação, mas, como operação, a
relação os constitui como entidades que emergem da relação,
como dos relata, internamente religados (intrarrelação). Nessa
perspectiva performativa, não se trata tanto de “ver as relações entre as
coisas”, quanto de “ver”, como diz tão bem Marilyn Strathern
(1996: 19), “as coisas como relações”. Ver coisas como relações,
isso quer dizer ver que as coisas são ontologicamente o que elas
são graças à relação que as constitui por introação dos elementos,
pois é a mediação que as fabrica e as produz, por metalepse,
como origem presumida da relação. Pensar a relação de modo
performativo é pensar transversalmente a partir do meio e pensar
a relação como mediação constitutiva que transforma e performa
os relata, inserindo-os em um contexto relacional. Assim, para
tomar um exemplo trivial, mas representativo da “filosofia
empírica” holandesa, a prescrição que liga o médico ao paciente
asmático intervém como um actante que transforma o paciente e
o médico, integrando-os em uma rede operatória. Prescrevendo
um tratamento diferente a seus pacientes asmáticos, ele lhes trata
diferentemente. Essas práticas diferentes não tratam, entretanto,
somente de doentes diferentes, mas, aparentemente, elas também
produzem e performam asmas diferentes e, na crença do autor,
criam mesmo pulmões diferentes 29 (Willems, 1998).
Retomemos a oposição entre a Natureza e a Cultura ou
Sociedade. As redes sociotécnicas que as colocam em relação
funcionam como mediadores e performadores da relação, que
transformam e performam a Natureza e a Cultura ou Sociedade
conjuntamente, de modo que essas jamais são dadas, e jamais
separadamente, mas sempre coconstruídas, coconstituídas e
coproduzidas conjuntamente pela intrarrelação e “entre-captura”
dos termos, como efeitos de uma rede heterogênea emergente. O
que Latour exprime como: “Natureza e Sociedade não são mais
os termos explicativos, mas aquilo que requer uma explicação
conjunta” (Latour, 1991: 110). Desde que compreendamos que

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a Natureza e a Sociedade são conjuntamente coconstitutivas na
e pela operação que as mediatiza e que coproduz ou performa
a realidade, compreendemos igualmente por que não se pode
mais explicar a vida em sociedade pela Sociedade, como queria
Durkheim. Continuamente construída e produzida pelos humanos
e não humanos, a sociedade não é terminus a quo, mas terminus
ad quem: “A sociedade não é o que nos reúne, mas o que é
reunido. As ciências sociais tomaram o efeito pela causa, o passivo
pelo ativo, o colado pela cola” (Latour, 1986: 276).
Redefinida como ciência das associações e das dissociações,
as mais heterogêneas, a sociologia é refuncionalizada em “tecno-
logia”, ciência experimental da sociotécnica ou, se quisermos,
“gênio heterogêneo” (ingenium heterogenesis). Com efeito,
religando os seres em um tecido sem costura, a associologia não
busca somente misturar experimentalmente as regiões ontológicas
clássicas (os humanos, os animais e as coisas), mas, igualmente,
superar a “grande divisão”, pretensamente modernista, entre a
ciência ou a técnica, de um lado, e a politica ou a moral, de
outro. Para os sociólogos da Escola das Minas, fazer ciência é
fazer política ou, como diz Latour, parafraseando o pensamento de
Clausewitz, “a ciência é a política continuada por outros meios”
(Latour, 1984: 257). Fazer política é forjar coalizões e fazer coexistir
seres, redesenhar o coletivo e mudar o mundo, se necessário,
indo de encontro ao senso comum e revolucionando a ontologia
– precavendo-se de que novas associações e múltiplas conexões
sejam criadas: “O múltiplo, é necessário construí-lo” (Deleuze;
Guattari, 1980: 13).
Sob a influência de uma perspectiva nietzschiana das redes
rizomáticas que transpõe a vontade de poder sobre a tecnologia,
a sociologia das inovações canta os louvores do gênio criador
dos empreendedores e dos inovadores técnicos. Fundando
o pragmatismo, o vitalismo e o futurismo em um “vitalismo
técnico”, ela se inscreve no prolongamento da tradição literária –
indo de Júlio Verne a Marinetti e Junger. Exaltada pela vitalidade
das técnicas, ela descreve com admiração o surgimento de novos
seres heterogêneos e insólitos que perturbam nossas categorias
de percepção ordinárias (Dodier, 1995: 29-47). A meio caminho
entre a micro-história e a grande metafísica, a “cientificização”
latouriana se apresenta como uma etnografia literária, “infrarrefle-
xiva” (Latour), “multissituada” (Marcus) e “combinatória” (Dodier),

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que se propõe a seguir os atores que configuram e performam
tecnicamente o mundo conforme seguimos e construímos uma
história, que prolifera como um romance.
A partir de um desvio da nova sociologia anglo-saxônica das
ciências (Bloor, Collins, Mulkay etc.), a ANT propõe um modelo
original para estudar a construção (social) da realidade pelas
ciências e pelas técnicas. Para construir uma rede sociotécnica que
resista, é necessário mobilizar e associar tantos actantes (humanos
e não humanos, sociais e técnicos) quanto possível, interessá-los
e traduzir seus interesses de modo que eles se engagem; uma
vez engajados e inscritos, é necessário estabilizar e consolidar a
rede construída, vinculando duradoura e, se possível, irreversi-
velmente, os actantes a objetos técnicos ou fatos científicos, de
tal sorte que a associação seja materialmente aprisionada em um
dispositivo que funcione como uma “caixa-preta”, da qual não
necessitamos considerar os conteúdos.
Para analisar a passagem progressiva da construção social do
coletivo para tradução à sua reificação em um dispositivo socio-
técnico, partamos de um pequeno actante, um pequeno Príncipe
maquiavélico, que se associa a outros actantes e traduz seus inte-
resses para associá-los a seu projeto e, se possível, dissociá-los
de outro projeto. Traduzindo seus interesses, ele os desloca e
transforma, capturando-os em seu projeto; inevitavelmente, ele se
deixa, ao mesmo tempo, capturar nos projetos deles, pois mesmo
mobilizados e aprisionados, os actantes continuam a agir por sua
própria conta. À medida que o projeto se forma e se transforma
em “quase objeto”, os actantes nele são vinculados, como os
jogadores de rugby estão ligados à bola assim que a recebem
nas constelações moventes. Traduzindo os interesses dos actantes
que ele captura e vincula a seu projeto, ele fala em seu nome
e, como diria Bourdieu, também em seu lugar. Falando em seu
lugar, o actante do início lhes torna presentes e, representando
a eles e a seus interesses, em seu projeto, ele se engrandece e se
torna um ator coletivo, capaz de falar com uma só voz e de agir
como um só homem. Veja Hobbes e seu Leviatã, contratualmente
autorizado a falar e a agir em nome de todos. Ou Pasteur, que se
exprime em seu laboratório em nome dos micróbios. Ou ainda
Bourdieu, que, movido pelo desejo de dar a palavra àqueles que
não têm nem documentos, nem palavra, torna-se o porta-voz
dos dominados, assim como das estruturas de dominação.

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Falando em nome da vontade coletiva ou, como diriam Boltanski
e Thévenot, invocando maquiavelicamente “grandezas” para se
engrandecer, os pequenos atores se tornam, progressivamente,
grandes atores. Quer se trate de Hobbes, Pasteur ou Bourdieu,
do ponto de vista da sociologia da tradução, esses grandes
autores podem ser considerados como porta-vozes que, sentados
no cume de uma rede de caixas-pretas empilhadas, funcionam
como caixas vocais personalizadas que amplificam a palavra dos
pequenos atores.
Analisando como os atores se engrandecem traduzindo a
vontade dos outros, a sociologia da tradução se torna uma
sociologia política das redes de porta-vozes. Falar em nome
e no lugar dos outros é torná-los presentes e representá-los,
simplificando a complexidade e reduzindo a multiplicidade, se
possível, à unidade. É nesse ponto que as ciências intervêm na
história da construção da realidade, pois os cientistas em aventais
brancos, também eles são os porta-vozes que falam em nome da
natureza que não fala, como se sabe, “por ela mesma”, ainda que
ela se expresse na linguagem da ciência. Para falar em nome das
coisas, é necessário mobilizá-las e concentrá-las em um ponto, no
caso o laboratório, que se torna então um “ponto de passagem
obrigatório” (PPO), funcionando como um “centro de cálculo”
(Latour, 1987: 215-257). Para estudar os objetos reunidos no
laboratório, é necessário registrar sua presença, seus movimentos
e visualizar o todo nas cartas, diagramas, estatísticas ou outros
meios de inscrição que permitem reduzir as coisas a variáveis mani-
puláveis e calculáveis, mantendo a forma das coisas invariáveis
(Latour, 1985). Para manter a forma das coisas, apesar de suas
diferenças materiais, é necessário um trabalho contínuo, quase
industrial de “investimento nas formas” (Callon; Law, 1985: 87-
107), que coloca as coisas em equivalência e permite efetuar, por
transferência e transporte da forma imutável, uma tradução e uma
resolução contínua das palavras e das coisas. Por projeção das
variações sobre um plano de referência estável, passamos assim,
sem qualquer solução de continuidade, “do visível ao lisível”
(Serres, 1974: 15-72), na sequência do que o mundo é efetivamente
reduzido a um texto, se ele não for de papel.30 Representadas
em um texto científico, as coisas podem, agora, ser mobilizadas
politicamente como aliadas pelos pesquisadores que falam em
seu nome e constroem o mundo, associando os humanos e os

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não humanos em redes sociotécnicas sempre mais extensas e
sólidas. Como a razão de outrora, o mundo não é um dado, mas
uma tarefa. É necessário construí-lo, produzi-lo, fabricá-lo, mobi-
lizando as coisas, os fatos e as palavras para fazê-lo pronunciar-
-se. Fabricado e real, nisso nada há de contraditório, desde que
compreendamos que o mundo não é mais pressuposto, mas
continuamente “performado” e transformado, reificado e
realizado pelas associações e conexões que os cientistas
estabelecem, criando assim uma ilhota de ordem no meio do
arquipélago – como a senda no poema de Antônio Machado:
“Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar.
Caminhando se constrói o caminho e, olhando para trás, vemos a
ladeira que jamais voltaremos a pisar. Viajante, não há caminho,
mas um sulco no mar” (Canto XXIX, Provérbios e canções).
Construir uma rede rizomática – ou como diz atualmente
Latour, se inspirando em Isabelle Stengers, um “coletivo em
expansão” –, eis a missão da nova ecologia política científica.31
A política do religamento consiste em experimentar, em estabe-
lecer sempre mais conexões e associações entre os humanos e
os não humanos, até que, no final do percurso, tudo e todo o
mundo seja harmoniosamente reunido na luta política em uma
rede hegemônica heterogênea que cobre o mundo inteiro. Assim
formulado, o trabalho de totalização por associação dos actantes
em uma só e gigantesca sociedade anônima aparece como um
trabalho de mundialização. Para Latour (1999a: 270), entretanto,
é preciso: “o singular da palavra coletiva não quer dizer que ela
exista só”. Não estando ligado a um território ou a uma popu-
lação determinada, mas a uma visão qualquer de extensão e de
estabilização sociotécnica do Coletivo em expansão, cada um dos
coletivos busca se totalizar e se mundializar, um pouco como
as empresas multinacionais que querem conquistar o mercado
mundial (se especializando, uma em produtos alimentares, outra
em computadores, outra, enfim, na produção automobilística).
Diferentemente do sistema, que totaliza buscando o fechamento,
a rede se desterritorializa e se mundializa, aspirando à abertura.
Essa busca de abertura explica por que a rede não pode ser
representada em sua totalidade, pois, se estendendo e se asso-
ciando a outros atores que encontra no caminho, ela cria, pouco
a pouco, novas conexões funcionais, estabelecendo assim uma
solidariedade técnica entre os seres mais heterogêneos (Dodier,

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1995: 88-96). Topologicamente, a rede é um espaço complexo
e complicado. Nela – como em uma carta dobrada ou em um
lenço – “cada ponto pode e deve ser conectado a não importa
qual outro” (Deleuze; Guattari, 1980: 13), de tal modo que os
actantes mais distantes possam, de repente, se encontrar apro-
ximados (minha colega australiana em uma nota de pé de
página, o microprocessador coreano em meu computador ou
o pescador ligado à linha e, graças ao peixe, ao oceanólogo em seu
escritório), enquanto outros, vizinhos, permanecem distanciados
e podem mesmo ser ejetados se eles não preenchem mais função
na rede. Para essa “compressão-distanciamento” (Harvey-Giddens)
do espaço-tempo, as práticas locais são topologicamente religadas
às relações sociais mundiais, de modo que “situações locais são
influenciadas por acontecimentos que ocorrem a distância e inversa-
mente” (Giddens, 1990: 64), como se pode ver, por exemplo,
no caso em que o emprego dos trabalhadores filipinos da Nike
depende mais da venda dos tênis nos Estados Unidos do que
das ações diretas da gestão local.
Vimos que uma rede sociotécnica se constrói e se consolida
por associação e representação, dando voz àqueles que não a
tem, começando pelos não humanos. Excluídos da sociedade, mas
incluídos no Coletivo em via de expansão, a ANT quer estender a
democracia aos não humanos, reunindo-os em uma assembleia.
É a ideia um pouco bizarra, subentendida na proposição de
instaurar um “Parlamento de coisas” (Latour, 1994b), concebido
sobre o modelo da “mesa-redonda”, caro a Dewey (1927), mas
também a Habermas e Ulrich Beck, em torno da qual políticos,
cientistas e cidadãos se reúnem com o objetivo de chegar a um
consenso pragmático sobre os meios e os fins da política – ou,
como diz Latour, sobre o “bom modo de compor o mundo”. Nessa
assembleia, os não humanos seriam forçosamente representados
pelos humanos que falariam com competência em nome deles,
como fazem os cientistas, os tecnólogos e os tecnocratas, mas
também os industriais e os consumidores, assim que um produto
novo é lançado. O objetivo das discussões da assembleia seria
decidir e, decidindo democraticamente, autorizar e legitimar a
construção e a produção de redes sociotécnicas hegemônicas.
Assim, se poderiam imaginar sessões onde os especialistas
reunidos debateriam a melhor maneira de se produzir biocom-
bustível, produtos de beleza ou pintura. Pouco importa. O que

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importa é que a eleição dos representantes ocorra sobre bases
funcionais e técnicas, e não populacionais e sociais, que eles
representem as circunscrições diretamente interessadas na
matéria e que eles exprimam a opinião de todos aqueles que
estão diretamente implicados. Assim, por exemplo, o Senhor
Peixe, especialista da dinâmica dos bancos de peixes, não pode
transpor a entrada se ele não puder se fazer entender pelos
pescadores. Inversamente, um representante dos pescadores não
poderá aí participar sem dar prova de que ele pode implantar uma
experiência sobre a diminuição dos bancos de peixe que satisfaça
também aos ictiólogos (Latour, 2003). O que é verdade sobre os
peixes deve ser, igualmente, para os pássaros e os cachorros, as
árvores e as flores, os carros e as bicicletas etc. Na assembleia, o
Senhor Peixe apresenta uma proposição honesta para a Senhora
Flor, enquanto esta negocia com o Senhor Tesoura. À medida que
as negociações progridem e as proposições se articulam, se alonga
a lista dos seres com os quais é necessário compor o mundo
comum, enquanto o texto prolifera como um hipertexto, no qual
tudo é religado a tudo por um laço virtual. Ao fim, quando todos
os coletivos estão reunidos e todos os textos religados sobre o
plano da imanência, há somente um mundo desterritorializado
– o “Império” (Hardt; Negri, 2004). “É um universo enfeitiçado,
pervertido. Um mundo sem acima, nem abaixo, onde o Senhor
Capital e a Senhora Terra, caracteres sociais ao mesmo tempo que
simples coisas, dançam sua dança macabra” (Marx, 1983: 838).

CONCLUSÃO

Seguindo uma dialética descendente – das estruturas materiais


de Bourdieu às alturas ideais de Boltanski-Thévenot e às platitudes
de Latour-Callon –, apresentamos rapidamente o estruturalismo
genético de Bourdieu, como um pensamento racional e relacional
que confere prioridade às estruturas. Mostramos que a inclinação
objetivista da teoria dos campos e dos habitus tende a esvaziar as
capacidades reflexivas de que dispõem os atores e a reduzi-los a
simples agentes. A sociologia da crítica de Boltanski e Thévenot
permite retificar ou corrigir a sociologia crítica. Ela introduz com
força as mediações simbólicas que são as Cidades e, seguindo a
ANT, concebe os Dispositivos como comutadores que estabelecem

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o laço com a macrossociologia. Eliminando ao mesmo tempo as
estruturas materiais e ideais que configuram a ação, a ANT se fixa
nas práticas que performam o mundo, associando os humanos
e os não humanos em um tecido sem costura e sem fim que
cobre o mundo. Seria necessário, também, inverter a perspectiva
e propor uma dialética ascendente que, partindo das práticas
associativas da ANT, integre os símbolos que dão um sentido à
ação e permitem retificar a tendência à reprodução das estruturas
de dominação cara à sociologia crítica. Inversamente, a retomada
da hermenêutica no interior de uma teoria crítica das sociedades
contemporâneas permitiria superar a oposição entre a sociologia
da dominação e a da justificação. O resultado de uma tal elevação
construtivista-realista seria uma teoria hermenêutico-dialética da
sociedade que analisaria o tempo presente em uma perspectiva
crítica, reunindo a reflexão epistemológica de seus pressupostos
à crítica social das injustiças.
Tradução de Ana Liési Thurler

(Capítulo publicado originalmente em Sociedade e Estado, v. 21,


n. 2, 2006.)

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C A P Í T U LO 6

UMA ONTOLOGIA REALISTA


PARA A SOCIOLOGIA
MORFOGÊNESE DA SOCIEDADE E ESTRUTURAÇÃO
DAS SUBJETIVIDADES COLETIVAS

Que seja uma rede de vozes... Uma rede de vozes que não
apenas falem, mas também lutem e resistam pela humanidade.

Subcomandante Marcos

INTRODUÇÃO

Diferentemente da filosofia, que não é uma ciência e é literal-


mente “sem objeto”, como Althusser (1974: 18) disse certa vez, a
sociologia é uma ciência com um objeto próprio: o social. Ciência
do social ou ciência da sociedade, assim a sociologia sempre se
definiu de modo a demarcar fronteiras em relação às disciplinas
que lhe são vizinhas, especialmente em relação à filosofia, que
não é nem empírica nem científica, e à psicologia, que não trata
da sociedade, mas do indivíduo qua indivíduo. Poder-se-ia dizer
que, a despeito de todas as divergências filosóficas, teóricas,
metodológicas e ideológicas que diferenciam as diversas correntes,
escolas e capelas da sociologia, todo e qualquer sociólogo

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subscreveria qua sociólogo a tese da conexão que Durkheim
estabelece entre a autonomia relativa da sociologia e a autonomia
relativa do seu objeto. A sociologia é possível como uma ciência
(relativamente) independente, pois os fatos sociais existem de
modo (relativamente) independente de nossa consciência, não
podendo assim ser deduzidos de fatos psicológicos ou reduzidos
a estes, da mesma forma que a psique não pode ser reduzida à
biologia, nem a biologia à química. Diferentemente da psicologia,
a sociologia estuda fatos sociais, i.e., ações, relações, representações,
subjetividades, instituições, organizações e sistemas sociais
que possuem “essa propriedade particular de existirem fora
da consciência individual” (Durkheim, 1977: 4) – não de toda
consciência ou da consciência de todos, é claro, mas da sua e
da minha (existentia extra nos et praeter nos).

A MARCA DO SOCIAL
Até o momento, os sociólogos falharam, no entanto, em
chegar a qualquer acordo acerca do status ontológico da
sociedade. Logo que começam a fazer perguntas mais precisas a
respeito das propriedades distintivas que definem a essência do
social, os sociólogos imediatamente se distanciam da metafísica de
Durkheim por medo de cometerem a falácia da reificação. A crítica
da reificação tão comumente dirigida a Durkheim, é parcialmente
justificada em minha opinião, mas a fonte desta reificação não
deve ser encontrada tanto em seu sociologismo militante quanto
em seu extravagante cientificismo. O que é problemático não é
sua concepção realista dos fatos sociais, mas o empiricismo que
a acompanha (e que entra em conflito com sua identificação dos
fatos sociais com fatos morais). Fatos sociais são dados dos
sentidos, mas não na acepção em que os empiricistas os
compreenderam. Não observamos a sociedade tal como vemos
um trem entrando em uma estação, mas a sentimos na pele,
vaga ou intensamente, como uma sensação qualitativa e difusa
(Sandelands, 1994). Ao insistir na coercitividade e na exterioridade
dos fatos sociais, Durkheim trouxe ao primeiro plano sua facti-
cidade e deixou em segundo plano sua socialidade. Deveríamos
notar, segundo ele, que os fatos sociais compartilhavam essas
propriedades com os objetos das ciências naturais, propriedades
em virtude das quais aqueles se tornariam os objetos apropriados
de uma sociologia “científica”. Durkheim falhou, portanto, em
especificar a marca do social (Greenwood, 1997: 1-2).

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Qual é a marca do social? Quais são as propriedades distintivas
do social? Trata-se de um domínio sui generis, com sua própria
consistência e suas próprias leis e regularidades, ou estamos
lidando aqui com um agregado de fatos individuais sem emer-
gência ou superveniência? O social existe fora da mente, inde-
pendentemente de nossas representações, ações e intenções, ou
sua existência é meramente convencional? As instituições, classes,
grupos e outros coletivos existem? Eles têm poder causal e podem
agir? Essas são, admitidamente, questões metassociológicas difíceis
e ardilosas. Ainda que possam escapar ao domínio da sociolo-
gia concebida de modo restrito, tais questões são, no entanto,
fundamentais: elas fundam a sociologia. As respostas que damos
a essas questões fundacionais são empiricamente subdeterminadas
e filosoficamente sobredeterminadas.

REALISMO, NOMINALISMO, CONCEITUALISMO


A sociologia dá continuidade à tradição filosófica por outros
meios e herda algumas de suas oposições, antinomias e ambi-
guidades. Logo que começamos a pensar acerca da existência
da sociedade, encontramos as mesmas oposições ontológicas,
divisões epistemológicas e clivagens ideológicas de outrora.
Quando sociólogos ponderam sobre se a sociedade é uma
“realidade autossubsistente” ou apenas “uma simples concepção
da mente” (Porfírio, citado por Libera, 1996: 35), colocam
exatamente a mesma questão que Porfírio colocou em Isagoge
e que desencadeou a “querela dos universais” no final da Idade
Média; uma querela, na realidade, a respeito do conceito de
universal em Categorias, de Aristóteles. Debates contempo-
râneos entre Bhaskar e Harré, Collins e Mayhew ou Boudon e
Bourdieu, para nomear alguns exemplos, parecem um replay
dos debates dos séculos XI e XII em que Porfírio e Boécio,
Al-Farabi e Averróis, Abelardo e Ockham discutiam se o universal,
casu quo o coletivo, é na verdade uma coisa (res), um conceito
(vox), ou talvez até apenas um sopro gentil (flatus vocis), como
Roscelin defendeu em sua doutrina das vozes. Ligeiramente
transfigurada, a antiga oposição entre nominalismo e realismo
reaparece periodicamente na sociologia sob a forma de uma
oposição entre coletivismo e individualismo.1 Tal como a longa
história da filosofia, a curta história da sociologia é pontuada por
ondas alternativas de nominalismo, realismo e conceitualismo.

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Atualmente, a sociologia parece estar passando mais uma vez
por uma fase de nominalismo acentuado – com Randall Collins
como uma reencarnação de Guilherme de Ockham, Garfinkel
como um novo Johannes Buridan e Bruno Latour como uma
versão pós-moderna de Abelardo. De qualquer modo, a disputa
entre o coletivismo dos durkheimianos e o individualismo dos
weberianos explica o caminho que a sociologia tem trilhado entre
a Cila da reificação e a Caríbdis da redução.
Na esteira do realismo filosófico, o coletivismo confirma
o realismo ordinário do senso comum e afirma que fatos
sociais existem no mundo social, do mesmo modo que os
universalia existem no mundo trans-subjetivo. Contrapondo-se a essa
proposição ontológica, individualistas radicais rejeitam a exis-
tência dos coletivos in rerum natura, extra nos e praeter nos,
argumentando que apenas os indivíduos são reais. 2 Entre
os extremos do realismo e do nominalismo, individualistas
metodológicos se juntam às posições dos antigos conceitualistas
(Sorokin, 1957: 324-327). Tal como os conceitualistas vieram a
aceitar que os universalia existiam na mente como conceitos,
individualistas metodológicos negam que entidades coletivas
existam no mundo trans-subjetivo, mas, reduzindo fatos sociais a
fatos mentais, aceitam a tese de que os primeiros existem como
“representações, presentes nas mentes de pessoas individuais, de
algo que existiria realmente” (Weber, 1972: 7).

A FORMAÇÃO DE COMPROMISSO
Na sociologia, as três posições ontológicas reaparecem entre
as diferentes frações da disciplina como subontologias regionais,
as quais frequentemente funcionam como marcos simbólicos
de correntes teóricas mais ou menos articuladas. Geralmente, o
sociólogo empírico no campo é um realista que se ignora como
tal. Seja um investigador da estratificação ou de organizações
empresariais, da discriminação na escola ou da competição es-
portiva, da violência no Complexo do Alemão ou do crescimento
das igrejas evangélicas, ele irá, na maior parte do tempo, seguir o
senso comum e tomar como certo que os objetos da sua pesquisa
realmente existem no mundo “lá fora”. É verdade que os sociólogos
supostamente deveriam efetuar uma “ruptura epistemológica”
com o senso comum, construindo seus conceitos como conceitos

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científicos teoricamente informados, mas (a despeito do que dizem
bourdieusianos, pós-estruturalistas e pós-modernistas), quando
estão no campo, dificilmente parecem preocupados com reflexões
epistemológicas. De qualquer modo, não se pode fazer pesquisa
sobre um objeto e submetê-lo ao mesmo tempo a uma reflexão
sobre as condições de possibilidade de seu conhecimento. Como
a passagem de uma observação de primeira ordem (realismo)
para uma observação de segunda ordem (construtivismo) toma
tempo, não é possível efetuar uma observação dos dois níveis
simultaneamente. A observação de segunda ordem será mais
bem efetuada como um inquérito posterior, a ser realizado pela
“epistemologia noturna”, como sugeriu Bachelard.
Enquanto a sociologia empírica é, em larga medida (embora
implicitamente), realista, a reflexão filosófica sobre a sociologia,
por outro lado, se inclina claramente para o nominalismo,
confirmando a suspeita de Peirce de que toda a filosofia moderna
seria nominalista. De fato, seja ela kantiana e racionalista, analí-
tica e científica, existencial e construtivista, sistêmica e reflexiva,
desconstrucionista ou abertamente pós-modernista, a reflexão
epistemológica contemporânea, tomada em conjunto, tende a
dissolver os objetos do pensamento no pensamento do objeto
e a aceitar como reais apenas as atividades da consciência (no
sentido do espírito [Geist] para as versões idealistas e da mente
[Mind] para as versões materialistas).
Imprensada, por um lado, pelo realismo ordinário do senso
comum que multiplica as entidades e, por outro, pelo inquérito
reflexivo do filósofo que busca explicá-las ou interpretá-las de
modo a negar sua existência, a teoria sociológica está ontologi-
camente paralisada. Oscilando entre as tentações da reificação
e da redução, ela tende a privilegiar o vetor epistemológico
sobre o ontológico e propõe tipicamente a seguinte formação
de compromisso: individualismo ontológico (Weber) + coleti-
vismo metodológico (Durkheim) (para uma crítica, ver Archer,
1995; para uma aprovação, ver Sawyer, 2001).3 Weberiano por
convicção, durkheimiano por convenção, o teórico comum adota
uma versão conceitualista, convencionalista e cética da sociologia
de Durkheim. O filósofo Pierre Livet – outros exemplos poderiam
ser facilmente aduzidos – descreveu a essência da formação de
compromisso nos seguintes termos:

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omeçando pelo ponto de vista do indivíduo, poderemos
C
posteriormente integrar suas representações e hipóteses
sobre o coletivo. Mas, ao invés de ter de assumir que o
coletivo é uma entidade real e inclusiva mais ou menos
interiorizada pelo indivíduo, o coletivo é apenas “presumido”.
Ele tem sempre um status virtual. O coletivo pode, portanto,
permanecer um contrafactual, uma ficção (Livet, 1994: 18).

Quem sabe, daqui a vinte, cinquenta ou cem anos, quando o


espírito do tempo houver mudado novamente e tiver sido aban-
donado o ceticismo ambiente do último fim de século, perceberão
os sociólogos que o compromisso durkheimiano-weberiano da
Belle Époque é falho, levando a um questionamento da sociologia
como tal.
A afirmação segundo a qual os fatos sociais não existem, mas
tudo acontece como se (als ob) existissem, leva a uma aporia. Para
escapar ao dilema, ofereço um conselho: os sociólogos devem
defender o projeto da sociologia e declarar a autonomia relativa
do seu objeto. O que é requerido é ousadia ontológica: fatos
sociais realmente existem. Para ser compreendido por sociólogos
e filósofos da linha analítica, deixe-me ser claro: contra as receitas
terapêuticas de wittgensteinianos,4 defendo não apenas que, como
sociólogos, não podemos operar sem predicados coletivos, mas
também que estes predicados não se referem apenas a “represen-
tações coletivas” e sim a entidades coletivas (estruturas, sistemas,
mecanismos coletivos etc.) que existem de modo relativamente
independente das crenças e ações individuais e possuem poderes
causais emergentes e irredutíveis. A combinação entre a negação
ontológica da existência de entidades coletivas e fatos sociais e
a afirmação de sua pertinência (aplicabilidade) metodológica no
que diz respeito à explicação sociológica de ações individuais
não parece consistente para um sociólogo, levando diretamente
a uma contradição performativa: não se pode ser sociólogo e
negar, ao mesmo tempo, a possibilidade mesma da sociologia
como uma ciência relativamente autônoma.5
Neste penúltimo capítulo, pretendo, em primeiro lugar,
reapresentar brevemente as principais propostas da nova filosofia
realista das ciências naturais e sociais de Roy Bhaskar. Segundo
Bhaskar, é preciso manter (contra os idealistas) que a natureza
existe independentemente dos conceitos que dela possamos

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ter, bem como (contra os empiristas) que ela se constitui de
complexos mecanismos gerativos que podem escapar à
observação. Passando das ciências naturais às ciências sociais,
explorarei o delineamento de uma ontologia especificamente
sociológica que não reduz a sociedade a uma representação
social, como ocorre em Rom Harré, mas que a concebe dialeti-
camente, como um conjunto complexo e estratificado de posições
sociais que preexiste aos indivíduos e do qual cabe dizer que,
em virtude dos efeitos emergentes que produz, existe de modo
relativamente independente dos indivíduos. Na seção “Questões
de ontologia”, procuro demonstrar que o individualismo ontoló-
gico é inconsistente: não é possível pensar o indivíduo sem fazer
apelo a propriedades coletivas que o ultrapassam e o constituem
como ser social. A sociedade não é uma abstração, mas um
conjunto relacional estratificado em três níveis (micro, meso e
macro), que compreende cinco ordens entrelaçadas: pessoas,
interações, instituições, cultura e estrutura social. Na seção “A
representação política e o papel dos porta-vozes”, apresento
uma análise realista das subjetividades coletivas. Partindo de
uma distinção entre coletivos e grupos, proponho que, em
vez de opô-los como ficção e realidade, é preciso integrá-los
e analisar a estruturação das categorias em grupos de modo
dialético. A fim de sustentar a tese segundo a qual as categorias
representam entidades reais, porém virtuais, que podem ser
atualizadas e realizadas sob certas condições como grupos
efetivos, distingo e discuto a identificação simbólica, a mediação
tecnológica e a representação política como três momentos da
estruturação do coletivo.

QUESTÕES DE ONTOLOGIA

A FALÁCIA EPISTÊMICA
A filosofia analítica é um método. Há anos está na moda.
Busca-se ser preciso, e até mesmo rebuscado, sem ser profundo
demais. Faz-se a distinção entre o sentido forte e o fraco das
noções, examinam-se minuciosamente os erros gramaticais e os
raciocínios redundantes, inventam-se situações imaginárias e
bastante estranhas para elucidar as estruturas conceituais do

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pensamento (por exemplo: cérebros em tonéis, marcianos che-
gando à Terra, apanhadores de cogumelos cegos numa floresta,
homens sem braços tirando água do poço etc.). Apesar do
entusiasmo dos fenomenólogos e dos ex-marxistas convertidos
à filosofia analítica, a receptividade à produção de autores de
língua inglesa permanece seletiva. São traduzidos, conhecidos e
discutidos os textos de Brandom, Davidson, Frege, McDowell,
Putnam, Kripke, Quine, Rorty, Searle, Sellars e Van Fraasen,
mas as ideias de Bhaskar continuam ignoradas. Parece que as
comunidades de filósofos francófonos e lusófonos precisam ainda
descobrir Roy Bhaskar, Romano Harré, Margaret Archer e demais
autores ligados ao “realismo crítico” (Benton, 1977; Outhwaite,
1987; Archer et al., 1998; Collier, 1994; Sayer, 2000). No intuito
de contribuir para a recepção desse movimento intelectual
anglo-saxão no Brasil e alhures, apresento aqui algumas de suas
ideias principais.
Interdisciplinar e internacional, o “realismo crítico” é um movi-
mento na filosofia e nas ciências humanas que, inspirado nos
trabalhos de Roy Bhaskar, tenta introduzir, há quase vinte anos,
sólidas e bem fundamentadas reflexões ontológicas na filosofia
das ciências naturais e das ciências humanas. Contra os positivistas,
os idealistas e os pós-modernistas, o realismo crítico defende uma
ontologia robusta e não empiricista, irredutível à epistemologia.
Sustenta que o mundo não é feito de acontecimentos e fatos; em
última instância, compreende mecanismos, sistemas, estruturas
transfactuais (e talvez até inobserváveis) dotados de um poder
causal capaz de explicar os acontecimentos observáveis e os
fatos observados.
Em A realist theory of science (1975-1978), livro farol do
movimento realista (recusado como tese de doutorado na
Universidade de Oxford), Bhaskar desenvolve uma filosofia
transcendental realista das ciências que derruba a ontologia
empiricista e atomista dos positivistas e neopositivistas (inclusive
Popper). Pelo questionamento transcendental da atividade cientí-
fica, ele se opõe ao idealismo kantiano e estabelece que a ciência
pressupõe necessariamente um mundo que existe independen-
temente dos conceitos que os cientistas possam ter dele, embora
só possa ser conhecido por meio da intervenção de conceitos,
descrições e representações que têm dele. Efetuando uma
distinção categórica entre a “dimensão intransitiva” ou ontológica

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do conhecimento, remetendo ao que se poderia chamar “o
real an sich”, e a “dimensão transitiva” ou epistemológica do
conhecimento, referente à “realidade für uns”, ele pode assim
integrar numa filosofia realista a crítica convencionalista do
positivismo feita por Kuhn, Lakatos e Feyerabend (na versão
anglo-saxã) ou Duhem, Bachelard e Canguilhem (na versão
gálica), sem tombar no superidealismo, no relativismo ou no
irracionalismo. Pois, ao manter a ideia de uma realidade inde-
pendente da teoria e ao recusar a falácia epistêmica – a epistemic
fallacy, arma terrível do realismo crítico – que reduz a dimensão
intransitiva à dimensão transitiva do conhecimento, ele pode
aceitar a existência de visões alternativas da realidade, preci-
samente porque se trata de visões alternativas de uma única e
mesma realidade, e garantir a racionalidade dos juízos.

EX(H)UMAÇÃO DAS CIÊNCIAS


Contra os positivistas, o realismo transcendental afirma que o
mundo não é uma concatenação de acontecimentos e de expe-
riências empíricas causalmente ligados entre si numa sucessão
invariável (se A..., então B...), e sim um conjunto de estruturas
reais, transfactuais e causalmente eficazes. Ao inverso do que
repisam os positivistas desde Hume, a tarefa da ciência não consiste
em estabelecer leis universais, concebidas como uma conjunção
constante ou uma sucessão invariante entre acontecimentos, mas
em demonstrar a existência de um ou vários mecanismos causais
que estão na base das regularidades empíricas observáveis ou
observadas, e que as produzem e explicam. Na linha de Rom Harré
(Harré; Madden, 1975), que orientou sua tese, Bhaskar conceitua
as leis naturais por referência ao poder causal dos mecanismos
gerativos como tendências ou disposições naturais das coisas.
Em virtude de sua estrutura intrínseca, as coisas possuem um
poder causal ou dispõem dele; sob certas condições, agem de um
modo que lhes é próprio. Quando há bastante hidrogênio no ar,
este não está muito úmido graças à sua estrutura química instável,
a pólvora de canhão explode quando a acendem. Parafraseando
a ontologia das disposições de Ryle (1949: 116-153), é possível
dizer que a pólvora explode quando a acendem não porque um
fósforo a acendeu, mas que ela explode, quando o fósforo vai
acendê-la, porque ela é explosível. Concebido como disposição
e tendência, o poder causal das coisas pode passar do estado

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potencial ao atual e ser exercido ou, conforme o caso, não ser exer-
cido. Se o poder causal dos mecanismos for ativado, eles podem
entrar em ação e funcionar como mecanismos gerativos de efeitos
– ceteris paribus, um fósforo basta para acender a pólvora e fazê-la
explodir. Pode ocorrer, entretanto, que, em certas circunstâncias,
tais efeitos não se realizem, embora os mecanismos estejam
ativos. Isso porque outros mecanismos estão ativos e neutralizam
os efeitos de modo que não se produza nenhum acontecimento.
Se, porém, os acontecimentos ocorrem, nada garante que sejam
observados. Bhaskar resume sua ontologia disposicional modal
dizendo que “tendências [disposições] podem ser possuídas sem
ser exercidas, exercidas sem ser realizadas, e realizadas sem ser
percebidas ou detectadas pelo homem” (Bhaskar, 1978: 18).
Com a distinção que ela estabelece entre o domínio do real
(os mecanismos causais), o atual (os acontecimentos observáveis)
e o empírico (os fatos observados), essa ontologia estratificada
está muito distante do empiricismo dos positivistas. O real já
não está alojado nos dados dos sentidos, mas estes são
reconceituados como efeitos fenomenais das estruturas causais
profundas e numenais que, por sua vez, podem escapar à observação.
Digamos, de modo breve, que o real não é idêntico ao atual nem
ao empírico, mas que ele se atualiza e se manifesta em e por seus
efeitos e que, para explicar os efeitos observados, o cientista deve
postular a existência de mecanismos gerativos dos quais procura
compreender a estrutura e o funcionamento.
A ontologia das disposições que o realismo transcen-
dental propõe é uma ontologia filosófica. Por um argumento
transcendental, estabelece a priori que o mundo deve ser
composto de estruturas e de entidades transfactuais que são
causalmente eficazes, e isso independentemente das observações
que delas possamos fazer, para que a ciência, tal como é feita,
seja possível. É importante notar que, se o realismo afirma que a
ciência pressupõe necessariamente a existência de mecanismos
causais, nem por isso ele se pronuncia sobre quais são esses
mecanismos. É tarefa que incumbe às ciências concernidas
e não à filosofia. Compete aos cientistas pronunciar-se sobre
suas ontologias específicas e decidir-se sobre as entidades que
consideram reais. É possível que as entidades postuladas sejam
fantasmas da imaginação. Consequentemente, elas logo passam
do estado de hipótese ao estado de hipóstase, mas isso não

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invalida as proposições principais do realismo transcendental, ou
seja: 1) a reivindicação da ontologia como teoria do ser, distinta
e irredutível à epistemologia; e 2) a proposição de uma ontologia
estratificada, compreendendo mecanismos gerativos ativos (ou
não), acontecimentos observáveis (ou não) e fatos observados
(ou não).

OS LIMITES DO NATURALISMO
Em The possibility of naturalism (1979), seu segundo livro,
Bhaskar passa das ciências naturais às ciências humanas e
indaga se os fenômenos sociais podem ser estudados do mesmo
modo que os fenômenos naturais. Utilizando argumentos que os
hermeneutas, os fenomenólogos, os interacionistas e os teóricos
da ação opuseram ao positivismo, Bhaskar responde negati-
vamente e desenvolve um “naturalismo crítico” que pretende
ser rigorosamente antipositivista.6 No mundo social, não existe
propriamente dimensão intransitiva do conhecimento. Como a
realidade social é um produto humano, o antiantropocentrismo
do realismo transcendental não pode ser mantido nas ciências
humanas. Ora, se a natureza da realidade social não permite que
se transponha tal qual o realismo transcendental das ciências
naturais para as ciências humanas, isso não significa que se deva
excluir de antemão a existência das estruturas gerativas no mundo
social. “Toda ciência”, inclusive a sociologia, é uma “ciência do
oculto”, segundo a feliz expressão de Bachelard (1986: 38). De
fato, cabe afirmar com Marx e Durkheim que uma das principais
tarefas da sociologia consiste em revelar as estruturas profundas
e os mecanismos gerativos que são relativamente independentes
da consciência, da crença, das intenções e das ações dos indi-
víduos. É possível ir ainda mais longe e afirmar que o “princípio
de não consciência” fundamenta a sociologia como ciência e que
todos os sociólogos, inclusive Weber, implícita ou explicitamente,
reconheceram isso (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1973).
Bhaskar, socialista convicto, sustenta essa posição. Por meio
de uma comparação do modo de existência dos mecanismos
do mundo natural e social, ele enfatiza que a autonomia das
estruturas sociais só pode ser relativa, porque, se as estruturas
são independentes em relação a um conjunto de indivíduos bem
especificados, elas não são independentes em relação ao conjunto
dos indivíduos em geral, e isso sob vários aspectos (Bhaskar,
1979: 47-69):

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– Primeiro, ao contrário das estruturas naturais, as estruturas
sociais não existem independentemente das ações dos indi-
víduos. Elas só existem graças à e por meio da intervenção dos
efeitos que produzem, mas isso não significa que podem ser
reduzidas às ações dos indivíduos. Sobre esse ponto, Bhaskar
parece aproximar-se da ontologia das práticas de Anthony
Giddens (1984), mas, ao contrário do célebre teórico da estrutu-
ração, ele leva explicitamente em conta os efeitos emergentes.
Voltarei a esse ponto mais adiante.
– Depois, as estruturas sociais não existem independentemente
dos conceitos que os autores têm delas. Os conceitos são consti-
tutivos das estruturas. Por isso, nas ciências sociais, estamos
diante de uma “dupla hermenêutica”, como já havia percebido
MacIntyre bem antes que Giddens popularizasse essa noção:
“Na teoria social, utilizamos conceitos para compreender seres
que se definem pela utilização de seus conceitos e, às vezes, os
conceitos que eles utilizam são aqueles que usamos quando
tentamos compreendê-los” (MacIntyre, citado por Jarvie, 1978: vii).
– Enfim, da dependência das estruturas sociais das ações, e
das ações dos conceitos, é possível deduzir que as estruturas
sociais são estruturas históricas que podem ser conscientemente
transformadas pelos indivíduos. Conclui-se que o determinismo
não é cabível e que não pode haver predições em sociologia.
Ao indicar os limites ontológicos do naturalismo, Bhaskar
revisou significativamente o princípio da intransitividade para
torná-lo compatível com um conceito humanista das ciências
sociais. Afinal, o “naturalismo qualificado” que ele sustenta vai
redundar numa ontologia coletivista do mundo social. Se ele
reconhece que as estruturas sociais não existem independen-
temente das ações e dos conceitos dos indivíduos (logo, não
há reificação), recusa, no entanto, toda tentativa reducionista
e defende um conceito relacional da realidade social inspirado
pelo marxismo e pelo estruturalismo.7 Bhaskar cita e corrige
os Grundisse: “A sociedade não é constituída por indivíduos [e
pode-se acrescentar: por grupos], mas expressa o conjunto das
relações nas quais os indivíduos (e os grupos) se encontram”
(Bhaskar, 1979: 32). E conclui: “A sociologia se interessa, ao
menos paradigmaticamente, pelas relações persistentes entre os
indivíduos (e os grupos) e pelas relações entre suas relações”
(Bhaskar, 1979: 36).

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De acordo com Marx, é possível dizer que a sociologia não
se interessa por Pedro ou por Paulo. O operário e o capitalista
ou, se preferirem, o professor e o aluno, o marido e a esposa
ou o proprietário e o inquilino são apenas personificações das
relações sociais, e essas relações é que constituem o objeto da
sociologia. A sociologia trata, em primeiro lugar, das relações
sociais e, em segundo, dos grupos de indivíduos (as multidões e
as revoltas) e dos indivíduos nos grupos (os times de futebol e as
orgias). Essas relações são reais e têm consequências reais para
os indivíduos e os grupos, embora possam escapar à consciência
dos indivíduos. Não se consegue descobrir relações sociais por
questionário, mas pela “retrodução” a partir dos seus efeitos;
elas são construídas como um sistema relacional na hipótese
de poderem explicar os fatos observados. Bhaskar concebe as
relações sociais como relações sistêmicas entre posições (funções,
lugares, papéis etc.).8 Para ativar essas posições, os indivíduos
devem assumi-las. As relações entre as posições são definidas
como “relações internas”, i.e., como posições essencialmente
complementares, tais como as que existem entre mestre e escravo,
patrão e empregado, marido e mulher, pai e filho, que, por defi-
nição, não podem existir numa só pessoa. Juntas, essas relações
internas entre posições formam um sistema. Bhaskar insiste em
que esse sistema de posições e de práticas é um sistema gerativo
emergente que possui um poder causal sui generis, irredutível
às ações dos indivíduos.9 Como efeito emergente das relações, o
sistema social não é um epifenômeno. Propriamente irredutível
aos elementos de que é composto, ele exerce, em compensação,
uma causação “descendente” sobre os elementos (downwards
causation). Estes são, por conseguinte, transformados, como os
indivíduos o são em virtude das relações sociais entre as posições
que eles assumem.
Quem teme que o realismo crítico reassuma os equívocos do
estruturalismo francês durkheimiano-marxista pode ficar tranquilo.
O realismo crítico não esquece que as estruturas só existem e
persistem por meio das práticas dos atores que reproduzem ou
transformam as estruturas sociais. O modelo transformacional da
ação social de Bhaskar é bem próximo da teoria da estruturação
de Giddens: a sociedade é ao mesmo tempo causa material e
resultado da ação (“dualidade da estrutura”); os atores são ao
mesmo tempo causa eficaz da reprodução e da transformação

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das condições de produção da sociedade (“dualidade da ação”)
(Bhaskar, 1979: 43-44). Pensada segundo o modelo aristotélico-
-marxiano do trabalho, a produção da sociedade proporciona
uma alienação do produto em relação ao produtor. A sociedade
é um efeito não intencional das ações intencionais dos atores – os
atores não se casam para reproduzir o sistema patriarcal, mas
esse é o resultado inevitável, embora não intencional, da
expressão institucional de seu amor – e esses efeitos não
intencionais se cristalizam num sistema emergente que ninguém
previu e que ninguém quis e que funciona de modo relativamente
independente dos atores que o produziram seguindo suas próprias
leis autônomas (as Eigengesetzlichkeiten de Weber).
O reconhecimento explícito dos efeitos emergentes na teoria
da práxis chega a uma visão estratificada da realidade social que
ultrapassa o teorema da dualidade caro a Giddens: o poder causal
das estruturas sociais é relativamente independente do poder
causal dos indivíduos; as estruturas sociais não existem apenas
“na cabeça dos indivíduos” no momento em que elas são ativadas,
ou como traços de memória se não forem ativadas, mas, como
bem mostrou Margaret Archer (1988: cap. 4; 1995: cap. 4), em
sua crítica acerba ao professor Giddens, elas precedem temporal
e necessariamente sua instanciação. Como outrora no debate
sobre a autonomia relativa do Estado que opunha Poulantzas a
Milliband, o debate entre realistas e “estruturistas” trata mais uma
vez da questão da relatividade da autonomia das estruturas sociais.
Archer não contesta a afirmação ontológica de Giddens segundo
a qual as estruturas sociais não existem independentemente dos
atores (sem estruturas, não há atores)10, mas insiste em dizer,
como Comte e Durkheim, que as estruturas são uma herança do
passado: mostra que são estruturas “pesadas” que os contem-
porâneos herdam de seus predecessores, que não podem ser
transformadas de um dia para o outro, e que, por isso, são
estruturas relativamente independentes das ações dos contempo-
râneos. É possível que os teóricos da ação tenham razão e que
o conceito de emergência implique uma recaída na reificação
sociológica, mas, se for esse o preço a se pagar para pensar e
denunciar as imposições alienantes da sociedade contemporânea,
estou pronto a assumi-lo (Vandenberghe,1998, v. 2: Conclusion).

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O REALISMO DISCURSIVO E AS
MICROTRADUÇÕES DO MACRO
Com a introdução da sociedade como sistema emergente
das relações entre as posições sociais, dispondo de um poder
causal, relativamente irredutível aos indivíduos, que preexiste
a eles e condiciona suas ações, Bhaskar lançou as bases de
uma ontologia realista para a sociologia crítica. Essa ontologia
não é inconteste.11 Assim, Romano Harré, filósofo polivalente e
orientador de tese de Bhaskar, que introduziu a noção de “poder
causal” na filosofia das ciências desde os anos 1970, estima que,
apesar de bem-intencionados, os realistas críticos cometeram
a “falácia da eficácia deslocada” ao atribuir um poder causal
às estruturas sociais12 (Harré, 2002). Para Harré, os corpos e os
discursos são os constituintes últimos da realidade social: “Até
onde foi possível verificar, só há duas realidades humanas: a
fisiologia e o discurso (a conversação) – a primeira é um fenô-
meno individual, o segundo é coletivo” (Harré, 1990: 345). De
acordo com as premissas do construtivismo social, Harré julga
que um antropoide se torna social pela linguagem e que, graças à
conversação, ele se torna uma pessoa.13 Pessoas que conversam,
envolvidas em jogos de linguagem, seguindo regras, costumes
e convenções sociais, isto é tudo o que é necessário supor para
gerar um mundo social completo.
O mundo social constrói-se pela repetição contínua de intera-
ções em microssituações, sujeitas a todo tipo de regras normativas
das quais os atores têm só uma vaga consciência (know how em
vez de know that, para usar os termos de Ryle). Gente que sai de
casa para ir trabalhar, pega o metrô, lê o jornal e cumprimenta
os colegas ao chegar no escritório ou na fábrica: a realidade
social nada mais é que a agregação de tais ações repetidas no
tempo e no espaço.14 Toda a vida social pode ser reduzida a isso:
gente como você e eu agindo em microssituações empiricamente
observáveis. Do nascimento à morte, a vida humana é um rio
agitado por ações em microssituações. É impossível que alguém
esteja numa situação empírica que não seja uma microssituação.
Como presidente de uma grande nação, Lula é, com certeza,
um homem poderoso, mas ele só pode agir em microssituações.
Passando de uma cena ritual a outra (os encontros diplomáticos,
a entrevista na televisão etc.), ele nunca deixa uma microcena
por uma macrocena. Pode, com certeza, fazer macrorreferências

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a outras situações. Pode até invocar entidades abstratas, como
a América Latina, o Brasil, a Globo ou o fantasma da inflação,
mas essas entidades não podem agir e representam apenas,
na melhor hipótese, comentários que remetem de maneira
estenográfica à repetição de ações em microssituações, ou, na
pior hipótese, reificações, mistificações que as pessoas aceitam
como realidade, mas que, de fato, não existem (Collins, 1981a:
85-86). Assim, quando se lê no jornal “O governo decidiu...”,
“O Brasil não aceitará...” ou “A Globo deve ser imparcial”, essas
frases não devem esconder que, em última instância, só existem
pessoas concretas, inseridas em redes de interlocução e agindo
em microssituações bem determinadas, que decidiram fazer algo
particular. Na verdade, o que se passou,

ois bem, foi que umas pessoas se reuniram e tiveram uma conversa
p
sobre conversas na tevê e, depois, convidaram várias outras
pessoas, por carta, telefone ou correio eletrônico, para que se
reunissem e, depois, houve outras conversas e algumas pessoas
convidadas receberam documentos, e houve mais conversas,
culminando [na frase que se vê no jornal] e outras inscrições
similares (Harré, 1998: 48).

PALAVRÕES DE PSICOLOGIA SOCIAL


No mundo social, as únicas entidades que têm poder causal
são as pessoas. As estruturas sociais, que Harré concebe como
supracoletivos compostos de pessoas (people-structures), não
são supraindivíduos (Harré, 1979: 85): como não são “indivíduos
poderosos” (powerful particulars), não agem, não se agitam e
não têm nenhum poder causal.15 Nas Investigações filosóficas,
Wittgenstein (1953) demonstrou que não são as regras da
linguagem que utilizam as pessoas, mas sim o inverso. Mutatis
mutandis, a mesma observação vale para as estruturas sociais:
são formações secundárias que os atores criaram seguindo
regras ou convenções herdadas do passado. Além disso,
como essas regras e convenções são imanentes às práticas da
linguagem e não existem fora dessas práticas, é possível ontologi-
camente reduzi-las às pessoas e a suas práticas. Quanto às outras
entidades coletivas macrossociológicas, como o sistema capitalista
ou o “sistema de posições-práticas” a que se refere Bhaskar, são
apenas realidades discursivas sem o mínimo poder causal. São

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conceitos de combate, introduzidos no discurso para continuar
a luta de classes na teoria. O veredito do mestre, é claro; corrige
o aluno com severidade: “O realismo transcendental atribuído às
posições-práticas é um restabelecimento ideológico dos conceitos
macrossociais do século XIX, apresentado de maneira enganosa na
linguagem da teoria das forças causais” (Varela; Harré, 1996: 324).
Na linha do construtivismo social, todos os fatos sociais podem
ser considerados reificações (Finn, 1997: 11). Ao já não tratar os
fatos sociais como coisas que possuem poder causal, Harré os
trata como reificações. Eliminadas do mundo real, passadas pela
navalha occamista dos construtivistas, as entidades macrossocioló-
gicas ficam reduzidas a figuras de estilo, simples modos de falar.
Já não se fala de sociedade, mas da ideia de sociedade; não se
fala de Estado, mas do conceito de Estado; não se fala de grupos,
mas das representações comuns dos grupos. No final, tudo vira
falatório e a sociedade aparece como um enorme e ininterrupto
talk show coletivo. Pessoas que são apanhadas em redes de inter-
locução e utilizam “imensos palavrões”, como “classe”, “nação”,
“povo” etc., para impressionar os outros e ganhar fama, é essa a
visão dramática do mundo social que Harré propõe. Os termos
“imensos” (Harré) e “gloriosos” (Garfinkel) não remetem a nada,
mas, como flores de retórica, têm forte efeito nos interlocutores
que os tomam como reais – como as crianças que ainda acreditam
no Papai Noel ou em duendes (Gilbert, 1989: 5).16
Em Harré, existe uma estranha tensão entre o realismo e o
construtivismo (Shotter, 1990). Quando ele passa das ciências
naturais para as ciências humanas, os mecanismos causais se indi-
vidualizam e a sociedade se reduz a um jogo de linguagem – a
linguagem torna-se jogo (como em Goffmann) e o jogo, linguagem
(como em Wittgenstein). Assim como a causalidade dos mecanismos
gerativos produz o mundo natural, também a conversação produz
o mundo social. Tal ontologia discursiva e conversacional parece-me
perfeitamente aceitável para a psicologia social, mas não para a
sociologia. Interessada pelo comportamento dos indivíduos, não
isoladamente, mas como parte de um grupo, a psicologia social
não precisa adotar a ontologia disciplinar da sociologia. Pode
contentar-se com aceitar a existência das pessoas em pequenos
grupos e tratar as remissões e referências que ultrapassem a
situação como simples alusões a um contexto que vai além dela.
O famoso “Não existe fora do texto”, de Derrida (1967: 227),

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vale também para ela, mas apenas fora do contexto. Ao formular
uma ontologia discursiva e uma metodologia quantitativa para a
psicologia social, Harré propõe uma visão alternativa do mundo
humano que tem a vantagem de romper, uma vez por todas, com
a “ratologia” (cf. Rational Action Theory), à qual a psicologia
está acostumada.17 Isto é seu mérito, mas quando ele avança a
ontologia disciplinar da psicologia social contra a sociologia, o
sociólogo não pode segui-lo como sociólogo – mas nada impede
que mude de tema ao mudar de disciplina.

QUESTÕES DE SOCIOLOGIA

AS ORDENS DA SOCIEDADE
Contra os novos convencionalistas como Harré, que virtualizam
a sociedade e trabalham na fronteira da psicologia social com a
sociologia, desejo apresentar a tese segundo a qual a sociologia
não pode desistir do conceito de sociedade e que esta não pode
ser reduzida a uma associação em larga escala. A sociedade
existe como efeito emergente e essa emergência é o fundamento
da sociologia como disciplina relativamente autônoma. Com os
pensadores da complexidade, parto da ideia de que a realidade
é um sistema complexo de estratos emergentes emaranhados e
que as ciências se superpõem como patamares em profundidade.
O que uma ciência menos complexa considera como um efeito
de “superveniência” torna-se o patamar da ciência seguinte mais
complexa, de sorte que as sínteses de umas podem aparecer como
produtos semiterminados das outras. Assim, é possível ordenar as
ciências de acordo com uma ordem de complexidade crescente:
física, química, biologia, psicologia, história e sociologia.
Embora cada ciência pressuponha os resultados da ciência que
a precede, a autonomia de cada uma deve ser judiciosamente
preservada, a ordenação se justificando pela articulação ontoló-
gica dos efeitos de emergência e de superveniência. Ao reduzir
os efeitos de emergência de um estrato mais complexo a efeitos
de agregação de um estrato menos complexo, procede-se por
eliminação ontológica e pratica-se um “enticídio” que extermina
a complexidade da realidade, simplificando-a. Assim, ao propor a

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eliminação sistemática de todas as macrorreferências do discurso
sociológico, Harré simplifica a realidade social e, reduzindo a
sociedade ao mundo da vida, nega simplesmente a existência
de uma ordem social sistêmica que emerge historicamente do
mundo da vida e segue suas próprias leis. Na medida em que
os comportamentos interpessoais estudados pela psicologia
social são condicionados e influenciados pelos sistemas sociais
complexos que são o objeto da sociologia, julgo que, ao
sociólogo, não é conveniente eliminá-los. Como estes constituem
condições necessárias, mas não suficientes, daqueles, a sociologia
deve levá-los explicitamente em conta.
A afirmação dos realistas segundo a qual a sociedade existe
como conjunto relacional, emergente e superveniente no nível
sistêmico deve ser vista no âmbito de uma ontologia geral
estratificada da realidade social. A sociedade existe e, como
mostra a linguagem comum, existe de diferentes maneiras e em
diferentes níveis. Proponho, esquematicamente, a distinção de cinco
ordens sociais, remetendo a três níveis de existência da sociedade:
o nível micro (ordem individual + interacional), meso (ordem
institucional) e macro (ordem cultural e estrutural).18 Vou apre-
sentá-las de forma analítica e sequencial, mas na realidade elas
estão entrelaçadas e ligadas por um “acoplamento flexível” (loose
coupling) que permite combinar a autonomia relativa de cada
ordem com uma análise não reducionista de sua influência
mútua.19
(1) Ordem individual: a sociedade existe no nível micro como
ideia, conceito ou representação na mente dos indivíduos (e, sem
dúvida também, como sensação difusa em seu corpo). Numa
retomada realista e fenomenológica desse tema weberiano, os
conceitos já não são concebidos como construções analíticas e
ideal-típicas que o sociólogo constrói e impõe, mais ou menos
arbitrariamente, à realidade para compreender os sentidos que
orientam a ação dos indivíduos. As categorias e conceitos do
analista têm de estar reflexivamente ligadas àquelas que os atores
estão utilizando para conferir sentido à sua ação em uma situação.
As categorias do analista podem ser consideradas uma explicitação
pragmática das categorias do ator. Os conceitos são fundados na
realidade e ligados de modo mais ou menos sistemático entre si,
formando uma espécie de mapa da sociedade. Embora partilhado
pelos membros de uma sociedade, esse mapa pode ser vago e

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até errado. Além dessa representação aproximativa da sociedade,
o ator dispõe ainda de um conhecimento tácito ou explícito das
regras e das convenções sociais e sabe como utilizá-las na
prática. Formam uma espécie de gramática dos conceitos. Juntos,
o mapa e a gramática constituem as estruturas do mundo da vida.
Como tal, são objeto de uma protossociologia fenomenológica do
conhecimento (Berger; Luckmann, 1967; Schutz; Luckmann, 1973).
(2) Ordem interacional: a sociedade existe no nível micro como
interação ou associação de indivíduos ligados entre si por uma
conexão mental. Formam uma unidade e, se tiverem consciência
que formam uma unidade, constituem uma sociedade, no sentido
de Simmel e também de Husserl, que designa a comunidade
psíquica como uma “pessoa de ordem superior”. Como
associação (Vergesellschaftung), a sociedade pode ser compreen-
dida como um “sujeito plural” (Gilbert). Apesar de os sujeitos
plurais se originarem na díade, a sociedade só começa, como sabia
muito bem Simmel (1995: 96-121), a partir do número três, ou
seja, do trio. Na medida em que as interações “com, para e contra
os outros” (Husserl, Simmel) estão sujeitas a regras e convenções
normativas que são próprias do domínio do inter-humano e o
regulam, a associação se deixa analisar numa perspectiva micro-
durkheimiana como ordem de interação sui generis (Goffmann,
1983; Rawls, 1987; Collins, 2004).
(3) Ordem institucional: a sociedade existe no nível meso
como conjunto normatizado de ações e interações repetidas e
recursivas. A repetição no tempo e a recursividade no espaço
impelem a instituição para além da ordem interacional. Duas
pessoas que, juntas, escrevem um texto para uma conferência
ou que se encontram num jantar de família agem no nível
institucional, mesmo que certas ações suas sejam de ordem
interacional. As organizações formam um subtipo das instituições.
Criada para a realização mais eficaz de uma finalidade específica, a
organização compõe-se de membros e dispõe de procedimentos
e regras mais ou menos formais que permitem mobilizar e coor-
denar os esforços dos indivíduos, dos grupos e dos subgrupos da
organização a fim de perseguir um objetivo coletivo e corporativo.
Mais adiante, há uma análise mais detida do papel constitutivo
do porta-voz que representa a organização na estruturação do
coletivo como grupo organizado.

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(4) Ordem cultural: a sociedade existe no nível macro como
conjunto de relações estruturadas entre ideias, no sentido amplo
do termo. As normas, os valores, as regras e as ideias que regem
os comportamentos institucionais ou organizacionais não são
imanentes à situação de ação, mas formam um conjunto estrutu-
rado e sistêmico que transcende as situações e as instituições. O
conjunto de regras, normas, valores e ideias forma um sistema,
o sistema cultural que existe no nível macro. Ao contrário do
que sugeriram os funcionalistas – Parsons, em particular, mas a
mesma observação vale para os marxistas que analisam a cultura
por referência à “ideologia dominante” –, o sistema cultural não
constitui forçosamente um sistema integrado. A exemplo da ordem
social, ele contém falhas e tensões e, por vezes, contradições.
(5) Ordem social: a sociedade existe no nível macro como
conjunto de relações internas entre posições sociais. Como já
vimos, é a definição dada por Bhaskar, Bourdieu e outros dialé-
ticos de inspiração marxista. Diferentemente do sistema cultural,
que é sistema de ideias, o sistema das posições decorre da ordem
material.

PRIMEIROS FATORES E ÚLTIMAS INSTÂNCIAS


Na perspectiva do realismo crítico, a ordem cultural e a ordem
social que emergem no nível macrossocial constituem ordens
sistêmicas que possuem, em virtude de sua estrutura interna, um
poder causal. Essas ordens macrossociais podem interagir entre
si, mas em caso algum seu funcionamento pode ser reduzido
à ordem institucional, interacional ou individual. Nesse ponto,
os idealistas (como Parsons) e os materialistas (como Althusser)
estão de acordo. O desacordo aparece na questão da primazia
do ideal ou do material: O que faz o mundo girar? As ideias,
as normas e os valores ou as posições sociais e os interesses?
São as ideias que moldam os interesses ou, moldadas de forma
insidiosa por eles, não serão elas, em última instância, ideologias
que mascaram e, portanto, reproduzem os interesses ocultos das
classes dominantes? Em si, essa velha discussão de revolucionários
ainda fixados nos “primeiros fatores” e nas “últimas instâncias”
não deveria nos interessar. Como realistas, podemos muito bem
ser idealistas: idealistas porque materialistas, e materialistas
porque idealistas. Ora, como o idealismo tende muitas vezes,
mas nem sempre, para o nominalismo, julgo que o realista deve

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ficar atento e verificar cuidadosamente que as ideias existem
extra nos e não apenas na cabeça dos indivíduos – no “mundo
3” de Popper, e não apenas no “mundo 2” (Popper, 1979).
Mesmo que reconheça a relativa autonomia das ideias, o idealista
tende naturalmente a considerar que as referências a uma ordem
material são puramente conceituais, e até mesmo retóricas –
ilusões em ato mais do que alusões a uma ordem de conjunto
relacional, transfactual e relativamente autônoma de posições
materiais. Ao transformar as relações materiais em relações
conceituais, o idealista remete a sociedade ao mundo das ideias
e dos conceitos.20 Quase sempre, ele é cético quanto à existência
da sociedade. Por isso o realista consequente guarda uma des-
confiança. Entre o materialismo e o realismo, entre o realismo e
a teoria crítica existe, em compensação, uma “afinidade eletiva”.
Essa afinidade notória é de ordem ideológica e provém do
“interesse emancipatório do conhecimento” que o realismo crítico
partilha com a teoria crítica e que anima sua luta (idealista) comum
contra a dominação e a alienação dos indivíduos por estruturas
reificadas e reificantes (Vandenberghe, 1997; 1998). No texto que
se segue, adoto uma posição materialista, não porque eu aceite a
hipótese de que a estrutura social determina a cultura, mas porque
recuso a redução idealista da ordem social à ordem cultural. A
ordem social não é apenas uma ideia; ela é tão real – e talvez
mais real (ens realissimum) – que a ordem cultural, embora não
possa ser pensada e não possa existir sem o aporte da ordem
cultural que regula as práticas que (re)produzem a sociedade.

PESSOAS E PARTES
Compreender a sociedade de modo realista implica, por
definição, a aceitação dos teoremas acoplados da emergência e
da autonomia relativa da sociedade: a sociedade é mais e outra
coisa que indivíduos, os grupos e as instituições em interação; há
efeitos sistêmicos que transcendem e englobam os indivíduos,
os grupos e as instituições. Retomando parte das análises de
Luhmann, Jürgen Habermas (1981: 229-293) demonstrou, de
modo convincente a meu ver, que, como consequência de um
processo de diferenciação interna da sociedade, os subsistemas
sociais da economia e da administração de Estado emergem
historicamente do mundo da vida no momento da grande transição

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para a modernidade. Como consequência dessa disjunção entre
o sistema e o mundo da vida, e a despeito do que afirma o
idealismo hermenêutico, a sociedade já não se deixa reduzir ao
mundo da vida. A sociedade não é um conjunto de indivíduos, de
grupos ou de instituições em interação, mas, além das interações
entre indivíduos e grupos, além das relações entre instituições e
organizações, ela remete a um sistema relativamente autônomo
de relações sociais entre posições sociais (e de relações lógicas
entre ideias).21 Por isso a sociedade deve ser analisada conco-
mitantemente como mundo da vida e como sistema ou, como
diz precisamente Habermas (1981: 228) ao condensar as análises
de David Lockwood, como “conexão de ações sistemicamente
estabilizadas de grupos socialmente integrados”.
De acordo com a síntese que Lockwood efetua entre o funciona-
lismo sistêmico e a sociologia dos conflitos, é possível introduzir
uma distinção artificial entre “a integração social”e a “integração
sistêmica” da sociedade. “Enquanto o problema da integração
social chama a atenção para as relações cooperativas ou confli-
tuosas entre atores, o problema da integração sistêmica remete
a relações harmoniosas ou contraditórias entre as partes de um
sistema social” (Lockwood, 1964: 245) – essas “partes” podendo
ser posições, papéis, direitos, ideias, valores etc., enfim, quais-
quer elementos ligados entre si, tendo uma estrutura e formando
sistema. O conceito de integração social indica os conflitos ou
cooperações entre pessoas e grupos, ao passo que o conceito
complementar de integração sistêmica conceitua as contradições
e complementaridades entre as partes ou os elementos que
compõem o sistema. Se é possível dizer que as “partes” entretêm
relações entre si, não cabe dizer que elas interagem, porque só
pessoas podem fazê-lo. Fica entendido que a integração social
e a sistêmica podem variar independentemente uma da outra –
uma contradição sistêmica entre posições sociais (ou entre ideias)
incompatíveis não leva automaticamente a um conflito entre os
indivíduos que ocupam essas posições (ou que sustentam essas
ideias) e vice-versa; além disso – e aqui adoto a explicitação
sistemática que Margaret Archer (1996) propôs da tentativa de
Lockwood para integrar Parsons e Marx numa teoria funciona-
lista do conflito –, o contexto sistêmico precede e condiciona
as interações sociais que procuram preservar ou, se for o caso,
modificar o sistema social e/ou cultural.22

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MORFOGÊNESE E MORFOSTASE
Mantendo assim constante, para facilitar a análise, a distinção
entre o sistema e o mundo da vida (“dualismo analítico” – na
realidade, não é possível fixar o movimento dialético entre a
ação e a estrutura numa imagem parada), Archer pode estudar
a mudança social com muito mais profundidade e precisão do
que Giddens, que insiste na “dualidade” e na inseparabilidade
ontológica da estrutura e da ação, e repete que elas formam, como
dizia Espinosa em outro contexto, uma “tradução diferente [simul-
tânea] de uma mesma frase”. Em vez de escolher, previamente,
o voluntarismo ou o determinismo, o dualismo analítico tem a
grande vantagem de permitir que se diferenciem as situações em
que o sistema prevalece sobre as ações e as situações em que
cabe o voluntarismo.
Adotando alguns instrumentos conceituais do sistemismo
morfogenético de Walter Buckley (1967), a teórica de Warwick
mostra como o dualismo analítico pode ser utilizado com proveito
para modelizar as relações entre os níveis de análise sistêmica,
por um lado, e os níveis interacionais e institucionais, por outro.
O instrumento analítico da “sequência morfogenética”, composta
de três momentos analíticos (condicionamento sistêmico, inte-
ração sociocultural, elaboração sistêmica) que se sucedem num
infinito movimento espiralado, permite estudar a transformação da
sociedade (morfogênese do sistema) e dos atores (morfogênese
do ator), bem como as relações de transformação que ligam ator
e sistema, sem redução ou, como diz Archer, sem “conflação”
acionista, sistêmica ou estruturista. Alternando entre o sistema e o
mundo da vida, a sequência morfogenética/estática inicia-se com
o momento do condicionamento sistêmico: o estado do sistema
condiciona as ações, interações e instituições que ocorrem no
mundo da vida (segundo momento) e reproduzem ou modificam,
num terceiro momento, o estado do sistema que, num segundo
ciclo morfogenético, vai por sua vez condicionar as ações, inte-
rações e instituições etc.
A síntese ambiciosa entre o realismo crítico de Bhaskar e a
teoria morfogenética de Buckley que propõe Margaret Archer
transforma o pequeno ensaio de dez páginas de Lockwood numa
grande teoria sociológica complexa e relativamente compli-
cada da mudança social refratária ao resumo (o resumo leva

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ao formalismo). Num esquema bem simplificado da teoria morfo-
genética, desejo aqui apresentar algumas de suas ideias centrais,
porque ajudam a compor a análise das relações entre o sistema e
o mundo da vida. Nos dois primeiros volumes dos quatro livros
morfogenéticos, Archer analisa dois tipos de sistema, a cultura
(Archer, 1988) e a estrutura social (Archer, 1995), ou, para retomar
os termos propostos acima, a ordem cultural e a ordem social.
Ambos são concebidos como sistemas relacionais entre “partes”,
possuindo propriedades sistêmicas emergentes e exercendo uma
eficácia causal nas situações de interação social nas quais os atores
modificam ou preservam, consciente ou inconscientemente, a
estrutura do sistema cultural e/ou social. Enquanto a cultura se
apresenta como um conjunto de relações lógicas (contraditórias
ou complementares, necessárias ou contingentes) entre as ideias
pertencentes à livraria universal e intemporal da humanidade – o
“mundo 3” de Popper –, a estrutura social é compreendida, de
modo genérico, como um conjunto de relações internas entre
posições sociais de primeira, segunda e terceira ordem.
À medida que são transpostos os patamares sucessivos da
realidade social, as relações entre as partes produzem efeitos
de emergência nos níveis micro, meso e macro. Os efeitos não
intencionais das ações e das interações se ligam num sistema,
e as relações de primeira ordem se substituem sucessivamente
por relações de segunda ordem (relações entre as relações) e,
até, de terceira ordem (relações entre as relações das relações).
As relações entre as posições sociais (a de patrão-empregado,
por exemplo) aparecem primeiro como o resultado emergente,
mas não intencional, das interações interpessoais que ocorreram
anteriormente em microssituações de ação. Ora, uma vez instaladas,
elas condicionam as interações ulteriores e podem, por sua
vez, ocasionar a emergência de instituições e de organizações,
bem como relações de segunda ordem entre estas. Relações de
compatibilidade ou de contradição ainda podem existir entre
essas instituições e organizações. A despeito do que sugerem
as sínteses neo e teo-conservadoras do neoliberalismo e do
vetero-moralismo, nada garante, por exemplo, que o mercado
e a família nuclear sejam compatíveis. Enfim, as relações entre
organizações e instituições podem também levar a relações de
terceira ordem. Nesse nível propriamente macrossociológico, a
sociedade emerge como formação social global. Que ela seja

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reproduzida ou transformada depende das relações entre o
sistema cultural e o sistema social.

A MEDIAÇÃO DA AÇÃO
O estado da cultura (contradição versus integração sistêmica)
pode influenciar ou ser influenciado pela estrutura social, mas,
seja qual for a influência que os sistemas exerçam um sobre o
outro – podem até bloquear-se mutuamente –, só podem fazer
isso indireta e mediatamente, passando pelas ações, interações e
instituições do mundo da vida. De acordo com a visão realista,
Archer concebe a cultura e a estrutura como mecanismos gera-
tivos dispondo de um poder causal. Esse poder causal é real e
não imaginário. Pode ser exercido e manifestar-se no mundo da
vida ou não, depende; mas, em todos os casos, o sistema de rela-
ções entre as “partes” só pode exercer seu poder causal graças à
mediação feita pelos “atores”. Ademais, convém notar que os
atores nunca se confrontam com os sistemas. O poder causal
da cultura e da estrutura social manifesta-se concretamente na
estruturação da situação de ação sob forma de injunções ou de
facilidades. O peso das injunções ou das facilidades depende,
objetivamente, da posição social que os atores ocupam na
sociedade – posicionamento involuntário que determina seus
interesses materiais – e, subjetivamente, dos projetos pessoais
que os atores perseguem, ambos ligados até certo ponto pela
“causalidade do provável” (Bourdieu, 1979a: 3-42) que ajusta as
vontades à possibilidade.
Se a ativação do poder causal dos sistemas culturais e sociais
depende dos projetos pessoais (sem projetos, não há influências
restritivas ou capacitadoras), a formulação dos projetos depende
da deliberação reflexiva dos atores sobre as grandes questões
da existência: Quem sou? Quais são meus valores? Que posso
esperar? Que quero fazer? Tais reflexões ocorrem no foro
íntimo da pessoa e tomam a forma de uma “conversação interna”
(Archer, 2003; Archer, 2007a). São duplamente importantes: por
um lado, têm o poder de transformar o indivíduo interiormente
(“Torna-te o que és!”); por outro, mediatizam a influência causal
dos sistemas. Momento de mediação entre o poder causal da
ordem cultural e o da ordem social, a reflexão intrassubjetiva
também possui um poder causal pessoal que pode transformar

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o agente individual em um ator coletivo, membro de um movi-
mento social ou de um coletivo político, capaz de transformar o
mundo. Nesse ponto de junção em que os poderes causais da
estrutura social, da cultura e da pessoa se confundem na mediação
meditativa da reflexão pessoal e da conversação interior, a análise
que Archer faz da morfogênese social e cultural é substituída por
uma análise da morfogênese da ação e da pessoa. O “mudar o
mundo” de Marx e o “mudar a vida” de Rimbaud se encontram
na “ação social transformadora transformada” de que fala Ram
Roy Bhaskar (2000) em suas últimas tentativas mais espirituais de
integrar a New Left e a New Age numa filosofia emancipadora
da desalienação e da autorrealização universais.

ENTRE REIFICAÇÃO E REDUÇÃO


Oscilando entre o realismo ingênuo do senso comum e o nomi-
nalismo refletido dos filósofos, a sociologia encontra-se diante
de um dilema. Se insistir muito na emergência da sociedade
como formação autônoma, independente da consciência dos
indivíduos, ela corre o risco de cometer o erro da reificação,
que consiste em personificar a sociedade como ator pode-
roso e total e em alienar os indivíduos apresentando-os como
epifenômenos passivos da sociedade (os Träger de Althusser).
Se, ao contrário, insistir muito nos indivíduos, ela corre o risco
de reduzir a sociedade a uma simples agregação de ações
individuais e de esquecer que essas ações são tornadas possíveis
e condicionadas pelo sistema social e cultural circundante. Os
erros da reificação e da redução são complementares e podem
ser evitados, contanto que se tenha o cuidado de não apresentar
o funcionamento dos sistemas independentemente dos atores
(momento analítico-regressivo: conexão sistemática da ordem
cultural e estrutural com as ordens institucional, interacional e
individual) e de não apresentar os atores sem, ao mesmo tempo,
levar em conta as condições sistêmicas que tornam possíveis
suas ações (momento sintético-progressivo: conexão sistemática
das ordens individual, interacional e institucional com as ordens
cultural e estrutural).23
Para escapar à reificação, é importante destacar que a socie-
dade (ou a cultura) não age como tal. Como condição sistêmica
necessária mas não suficiente da ação, a sociedade é uma causa

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material, e não uma causa eficiente (para retomar os termos da
teorica clássica das “quatro causas” que Aristóteles apresentou na
Ética a Nicômaco). Os indivíduos e os grupos que produzem ou
transformam as condições da ação são as únicas causas eficazes
nessa história de morfogênese. Os homens fazem a história em
condições que não escolheram, mas como diz com argúcia Sartre
(1960: 61): “são eles que a fazem e não as condições anteriores”.
Condição anterior e efeito emergente das relações entre as ações,
as interações, as instituições e as organizações, a sociedade possui
de fato um poder causal. Embora esse poder não exista indepen-
dentemente das ações e só se manifeste nos e pelos efeitos que
exerce sobre a ação, a sociedade é mais e outra coisa que uma
repetição contínua de ações e interações em situação. Afirmar
o contrário é reduzir a sociedade a uma poeira de indivíduos,
fazendo violenta abstração dos efeitos de emergência, bem como
dos efeitos relacionais e sistêmicos que estruturam as situações de
ações nas quais os indivíduos se encontram e que condicionam
suas ações sem, com isso, determiná-las.
Se a reificação tende, no extremo, para a supressão dos indi-
víduos, a redução procura, em contrapartida, eliminar a sociedade.
“Não existe algo que seja a sociedade. Há indivíduos, homens e
mulheres, e há as famílias” – se deixarmos de lado a referência
tipicamente conservadora à família, essa famosa frase de Margaret
Thatcher resume perfeitamente a posição dos individualistas.24 Tal
posição é insustentável, a meu ver. Se evita o erro de reificação,
que personifica os coletivos fazendo abstração das ações, inte-
rações e instituições, comete o erro inverso de redução, que faz
abstração das estruturas sociais e omite os efeitos emergentes. Ao
desconhecer sistematicamente as condições materiais e ideais da
ação que precedem a ação, ela atribui ao indivíduo propriedades
que pertencem à sociedade, incorporando-as aos indivíduos. A
manobra passa relativamente despercebida só porque “as carac-
terísticas pertinentes do contexto social foram, por assim dizer,
embutidas no indivíduo” (Lukes, citado por Archer, 1995: 37).
Dessa forma, ao interiorizar a sociedade na pessoa, ao dissolver a
sociedade em processos de socialização e ao identificar socializa-
ção com individualização, apresenta-se o indivíduo como se fosse,
por natureza, uma pessoa. Com Bourdieu, é possível afirmar que
para o individualista tudo se passa como se o habitus pudesse
funcionar sozinho – sem um campo correspondente e, portanto,
sem estar ligado ao sistema de posições sociais que o modela.

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Assim como não é possível pensar – sob pena de reificação
– a sociedade fazendo abstração dos indivíduos, também não é
possível pensar o indivíduo – sob pena de redução – sem socie-
dade. Porque todas as propriedades que o indivíduo possui e
todos os predicados que lhe possam ser atribuídos como pessoa
são predicados sociais. Assim, uma pessoa pode ser “alta como
uma árvore” ou “dura como pedra”; pode também ser “má como
um cão” ou “ter fome de leão”, mas, se lhe forem atribuídos predi-
cados propriamente humanos, a referência será obrigatoriamente
a propriedades sociais.

problema não está tanto em saber como dar uma explicação


O
individualista do comportamento social e sim de saber como se
daria uma explicação não social e estritamente individualista do
comportamento individual ou, pelo menos, tipicamente humano.
Pois todos os predicados que designam propriedades específicas
das pessoas pressupõem um contexto social para seu uso. Um
homem de tribo pressupõe uma tribo, o depósito de um cheque,
um sistema bancário (Bhaskar, 1979: 35).

E o sistema bancário pressupõe um sistema econômico, que


pressupõe a propriedade privada, que pressupõe o trabalho, que
pressupõe o mercado etc.
Seguindo a cadeia das pressuposições necessárias e das
deduções coletivas, seria possível, em princípio, tirar a sociedade
inteira de cada pessoa, como o coelho que se tira da cartola.
Seria possível mostrar que cada palavra pressupõe um sistema
simbólico que estrutura as ações que reproduzem a linguagem
(Freitag), como se poderia mostrar que cada ato de linguagem
pressupõe e produz um sistema material de relações sociais entre
posições sociais (Bourdieu). Embora haja certo exagero nessas
afirmações, elas mostram que o individualismo é falso. A expli-
cação e a compreensão do indivíduo já pressupõem predicados
sociais irredutíveis. O realismo vai mais longe e, sem se intimidar
com a crítica das ilusões gramaticais, afirma que os predicados
sociais remetem, em última instância, a sistemas sociais de relações
entre sinais e posições que existem fora de nós e antes de nós.
Na linha do movimento intelectual do realismo crítico, sus-
tento a tese coletivista de que a sociedade existe em todos os
níveis da realidade social e que as ordens sociais representam
ordens emergentes e, portanto, relativamente irredutíveis umas

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às outras. Como sistema de relações internas entre posições e
ideias, a sociedade existe e subsiste como ordem social e cultural,
ordens macrossociais que formam condições de possibilidade
necessárias mas não suficientes das ordens institucionais, intera-
cionais e individuais que mediatizam e atualizam, reconduzem ou
transformam os efeitos sistêmicos no âmbito do mundo da vida.
Sem ser uma entidade tangível, a sociedade não é uma ideia
(como a de Deus), mas uma realidade sui generis que possui
poder causal. Tal como o Estado, esse objeto esquivo que os
politólogos sempre querem reduzir a uma representação (macro
– a ideia do Estado), a um sistema (meso – o sistema de Estado
administrativo) ou a uma comunidade (micro – a polity), também
os sociólogos ainda custam a aceitar a existência da sociedade no
nível macro e, em vez de procurar uma explicação da sociedade,
costumam muitas vezes propor uma redução dela.
Se passarmos agora da sociedade como sistema paradigmático
de relações funcionais entre “partes” (posições, papéis, ideias
etc.) para a sociedade como conjunto sintagmático de relações
entre “atores” (pessoas, instituições, organizações etc.), vamos
nos deparar com as mesmas oposições ontológicas, as mesmas
questões epistemológicas e as mesmas divisões ideológicas já
encontradas.25 Retomando a antiga “querela dos universais”
que opunha o realismo ao nominalismo, é todo o debate entre
coletivistas, institucionalistas, situacionistas e individualistas que
recomeça. Após este texto, desejo preencher uma lacuna no
realismo crítico, retomando, com novos argumentos, a questão
da ontologia dos coletivos.

COLETIVOS TAXONÔMICOS, GRUPOS


ESTRUTURADOS E REDES

A posição do coletivismo ontológico com a qual estou compro-


metido é inspirada pelo “realismo crítico”, mas o estende ao
novo domínio das subjetividades coletivas. Dado que as principais
ideias do realismo crítico já foram apresentadas, deixem-me
apenas recapitular os princípios mais relevantes para minha análise.
Primeiramente, da mesma forma que Bhaskar assume que a
natureza existe independentemente das concepções, descrições
e representações que o cientista pode ter acerca dela, assumo

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que subjetividades coletivas existem independentemente das
concepções que o analista possui sobre elas, ainda que obvia-
mente não independentemente das concepções que os agentes
possuem acerca delas. Em outras palavras, como Bhaskar, distingo
entre a dimensão “intransitiva” (ou ontológica) do conhecimento
e a dimensão “transitiva” (ou epistêmica) da ciência, recusando
a “falácia epistêmica” que confunde sistematicamente a dimensão
intransitiva do conhecimento com sua dimensão transitiva, redu-
zindo assim a realidade a uma representação da realidade.
Em segundo lugar, seguindo a ontologia disposicional de
Bhaskar, concebo o mundo como um conjunto de estruturas e
mecanismos gerativos reais, transfactuais e causalmente eficazes,
estruturas e mecanismos dotados de poder causal. Poderes causais
devem ser analisados como tendências e potencialidades. Em
virtude de sua estrutura intrínseca, as coisas possuem poderes
causais. Quando o poder causal da coisa é atualizado, ele pode
entrar em ação e funcionar como um mecanismo gerativo que
produz certos efeitos empiricamente observáveis no mundo da
vida. No mundo social, sistemas sociais, coletividades e indivíduos
possuem propriedades causais emergentes.
Finalmente, como Bhaskar, analiso o mundo como uma
realidade estratificada, composta pelos estratos da natureza,
da vida, da psique e da sociedade, cada estrato emergindo do
estrato inferior e possuindo seus próprios poderes causais
irredutíveis. O estrato mais alto da realidade, a sociedade, é ele
mesmo composto por cinco ordens emergentes flexivelmente
inter-relacionadas (as ordens social, cultural, institucional, inte-
racional e individual) e existe em três diferentes níveis da realidade,
nomeadamente, micro, meso e macro. No nível mais alto da
sociedade, encontramos a ordem social e a ordem cultural. Ambas são
concebidas em termos relacionais, como sistemas de relações
paradigmáticas entre posições sociais (ordem social) e entre ideias
(ordem cultural), os quais condicionam, mas não determinam, as
ordens inferiores da realidade, bem como mediatizam e atualizam
os poderes causais do sistema no mundo da vida. No nível meso,
encontramos a ordem institucional: a sociedade existe como um
conjunto de instituições, i.e., ações e interações repetidas que
são normativamente reguladas e coordenadas. Organizações e
corporações, criadas para alcançar um fim específico do modo
mais eficaz, constituem um subtipo de instituições. No nível micro

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da sociedade, esta existe tanto como uma “representação” (de
ordem individual), quanto como uma associação intencional de
indivíduos que interagem e estão interconectados através de uma
conexão mental (a ordem da interação).

A ESTRUTURAÇÃO DOS COLETIVOS


A partir da perspectiva do realismo crítico, enfrentemos mais
uma vez a difícil questão da ontologia dos coletivos. Afirmo que
os coletivos existem, do mesmo modo que a sociedade existe,
ainda que – e isto é importante – na sociedade, bem como que
tais coletivos possuem poderes causais.26 Em minha opinião,
não faz muito sentido opor categorias a grupos. Ao invés de
opor categorias ou “coletivos taxonômicos” a “grupos estrutu-
rados”, sugerindo, como fazem Rom Harré (1981) e outros, que
os primeiros constituem ficções teóricas da macrossociologia,
enquanto os últimos são entidades empíricas institucionais ou
interacionais, argumentarei: 1) que categorias devem ser enten-
didas como grupos potenciais que podem organizar e atualizar
a si mesmos; 2) que essas categorias se manifestam, de fato,
no mundo da vida; 3) e que devemos investigar essa passagem
da potentia ao actus – a passage à l’acte – como um processo
praxiológico de estruturação por meio do qual categorias
sociais são progressivamente organizadas em grupos (Giddens,
1980: 105-117).27 Tal como os pássaros, os coletivos assumem
múltiplas listras e cores: de povos, nações, raças, gêneros, classes,
partidos e grupos de status até a humanidade (e, talvez mais
além, até as associações cósmicas interestelares de espíritos).
Minha entrada na questão se dá via classe e movimentos sociais.28
Ainda que eu não vá falar do proletariado, sua existência mesma
está em questão neste capítulo, assim como aquela dos novos
movimentos sociais e de outros presumidos sucessores do
movimento da classe trabalhadora do século XIX.
A partir de uma perspectiva realista, a ontologia dos coletivos
aparece como uma teoria genérica da ação coletiva que se distingue
de outras teorias em função de atribuir poder causal a atores
coletivos e de concebê-los como mecanismos gerativos trans-
factuais que podem ser ativos ou não, mas cuja inação pode ainda
assim produzir movimento social. Na sua teoria da subjetividade
coletiva, José Maurício Domingues (1995; 2000) formula o efeito

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motor dos coletivos nos seguintes termos: “Com sua causalidade
própria, coletiva, as subjetividades coletivas criam movimento na
vida social (independentemente de serem móveis ou não), produ-
zindo estabilidade e provocando mudança” (Domingues, 1995:
137). Mesmo que não sejam ativos ou mobilizados, os coletivos
possuem uma influência real no mundo da vida em virtude de
sua mera existência, o que acontece pelo menos de dois modos:
primeiramente, o mero fato de que eles existem já possui um
efeito sobre outros coletivos. Ao registrar a existência virtual
daqueles, estes últimos são obrigados a levá-los em consideração.
Em segundo lugar, como coletivos potenciais, eles já oferecem
esboços e aparições antecipatórias de grupos em formação.

“PERSONAGENS” SOCIOLÓGICOS
A ideia realista de que coletivos existem na sociedade como
mecanismos gerativos que possuem poderes causais, os quais,
ainda que em um estado virtual, podem produzir movimento
social no mundo da vida, vai fundamentalmente de encontro a
teorias nominalistas, analíticas, construtivistas e desconstrucio-
nistas de ambos os lados do Atlântico, teorias que buscam explicar
ou interpretar os coletivos de modo a dissolvê-los, ou então
negar sua existência reduzindo o coletivo a uma representação
do coletivo. Convencidas de que os coletivos só podem existir
como grupos, comunidades ou redes nos níveis interacionais
ou institucionais da sociedade, elas acusam os realistas de
hipostasiarem seus construtos teóricos ao introduzirem enti-
dades causais no nível macro da realidade. Eles confundiriam
“as coisas da lógica com a lógica das coisas” – a acusação que Marx
(1976: 216) dirigiu contra Hegel é agora dirigida, mais uma vez
(por Bourdieu, por exemplo), contra os realistas.29 De acordo com
os construtivistas, os coletivos, a começar pelas classes, referem-
se apenas a entidades teóricas e hipotéticas. Como tipos ideais,
eles representam utopias conceituais que não existem, como tais,
na realidade. O sociólogo que constrói classes como categorias
analíticas não deveria ser autorizado a tomar seus conceitos
por realidade, assim como não pode fazê-lo com seus desejos.
Não é porque os atores tomam as classes como reais em suas
sociologias espontâneas que os sociólogos deveriam segui-los,
apresentando-as como reais em suas teorias. Ao invés de reforçar
a personificação de categorias características do senso comum

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com uma reificação de grupos na análise social, os sociólogos
deveriam ser nominalistas metodológicos e eliminar os grupos
de sua caixa de ferramentas analítica. Em uma impressionante
crítica da tendência à transformação reificadora de categorias
em grupos, Rogers Brubaker alerta seus colegas para a falácia
do “grupismo”: “a tendência a se tomar grupos discretos, clara-
mente diferenciados, internamente homogêneos e com fronteiras
demarcadas em relação ao seu exterior como constituintes bási-
cos da vida social, principais protagonistas de conflitos sociais e
unidades fundamentais da análise social” (Brubaker, 2002: 164).
Categorias analíticas não são categorias empíricas, e categorias
de senso comum não são categorias científicas. As categorias
não deveriam de modo algum ser hipostasiadas e reificadas,
transformadas em personagens vivos que agem no palco da
história. Os coletivos teóricos – que reagrupam atores sociais
“pré-agrupados”, os quais ocupam uma posição social similar
em uma estrutura social e cuja localização involuntária explica
por que eles tendem a “se assemelhar e se reunir” (resemble and
assemble) em grupos para defender seus interesses, compar-
tilhar suas ideias ou expressar suas identidades – existem apenas
“no papel” (Bourdieu, 1984d: 4). O resultado dessa reificação é
um coletivo altamente personificado, imbuído de propriedades
causais e que age e opera na sociedade como um supraindivíduo.
Na verdade, esses macrocoletivos que povoam o mundo não são
apenas metaindivíduos que assombram o sociólogo, realizando
seus truques no teatro interno de sua mente. O sociólogo que
toma erroneamente a palavra pelo mundo (the word for the world)
incorre em um enorme “erro de categoria” e desliza para algum
tipo de mitologia conceitual (com deuses, espíritos e assom-
brações – portanto, para uma “assombrologia” (hauntology30),
para tomar de empréstimo uma das bon mots mais felizes de
Derrida). Afinal de contas, “a Inglaterra”, “os Estados Unidos da
América”, “o Proletariado”, “o movimento antiglobalização”, todos
esses sujeitos proposicionais são ficções gramaticais, cunhadas
sob o mesmo molde de “o rei calvo da França” (Russell) ou “a
Universidade de Cambridge” (Ryle).31

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CATEGORIAS E GRUPOS
Em um ensaio seminal acerca dos aspectos filosóficos do
problema micro-macro, Rom Harré (1981; ver também Harré,
1979: 83-97, 139-143; e Harré, 1997), o mentor de Roy Bhaskar,
questiona o status ontológico dos coletivos macrossociológicos.
Para mostrar como estes são construtos lógicos que existem
apenas no discurso, bem como que seu uso é, consequen-
temente, puramente retórico e ideológico, ele introduz uma
distinção clara e rígida entre “coletivos taxonômicos” (ou
categorias) e “grupos relacionais e estruturados” (ou redes
interpessoais).32 Os primeiros referem-se a um “conjunto de
indivíduos que formam um grupo porque cada membro tem
uma propriedade que é como aquela de cada outro membro”,
enquanto os últimos são “constituídos por uma estrutura de
relações pelas quais os indivíduos vêm a possuir suas proprie-
dades definidoras” (Harré, 1981: 147). Na medida em que
as relações entre os membros de coletivos taxonômicos são
relações lógicas (e não interacionais ou institucionais), os
coletivos taxonômicos, de acordo com Harré, existem apenas
na mente do classificador que situa-os na mesma categoria. As
similaridades presumidas entre as crenças, disposições, ações
etc., as quais permitem que os indivíduos sejam classificados na
mesma categoria, como os muçulmanos sunitas, os expatriados
belgas, os fenomenólogos ou o proletariado, são abstrações
constituídas por um observador, existindo apenas na sua mente.
Entre a vendedora pobre que chega em casa tarde da noite e a
eminente professora da Universidade de São Paulo que acorda
às 10h da manhã, não há qualquer relação, ainda que ambas
sejam mulheres brasileiras que vivem em São Paulo. A mesma
observação vale para o metalúrgico do Rio de Janeiro, o eletri-
cista demitido que trabalhava para a Petrobras em Santos e o
trabalhador manual explorado em Taguatinga. Não há qualquer
relação entre eles, mesmo que, presumivelmente, todos sejam
membros da classe trabalhadora explorada.
Com grupos estruturados, como clubes de futebol, depar-
tamentos universitários, grupos locais de apoio, comandos de
combate e outras redes firmemente estabelecidas, a situação é
completamente diferente. Conectados através de uma cultura
comum, normas compartilhadas de interação, regras e regulações
institucionais e talvez até mesmo convenções legais, os membros

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de grupos estruturados têm relações reais uns com os outros.
Nossa distinta professora, por exemplo, tem relações reais com
colegas, secretários e estudantes no departamento onde ensina.
Se ela fosse (mais uma vez) dormir até mais tarde, poderia pedir
a uma de suas colegas que a substituísse ou pedir a outra que a
representasse na reunião dos professores. Em certos coletivos,
as relações podem ser tão regulares e reguladas, densas e siste-
máticas, que até mesmo um cético como Harré estaria disposto
a conceder a eles poder causal e a considerá-los como entidades
supraindividuais genuínas – e, quem sabe, talvez até como quase
pessoas com uma vida e mente próprias.

ANÁLISE DE REDES SOCIAIS


A análise de Harré é muito perceptiva, mas é pouco útil. Se
quisermos compreender como coletivos são estruturados, temos
de superar o “imperativo anticategórico” (Emirbayer; Goodwin,
1994: 1.414), analisando a inter-relação entre categorias e
grupos. Tal como está, a distinção entre coletivos, categorias e
classes taxonômicas, de um lado, e grupos, comunidades e redes
estruturais, de outro, é demasiado rígida. Minha crítica a Harré
é dupla. Primeiramente, ele confunde grupos relacionais com
redes, reduzindo as últimas aos primeiros; e, em segundo lugar,
ele negligencia o fato de que as pessoas pertencem a redes assim
como a categorias, bem como que as categorias referem-se, na
realidade, a grupos potenciais.
A despeito do fato de que Harré insiste nas relações inter-
pessoais que compõem a rede, ele não se baseia na análise
de redes sociais (social network analysis) e parece assumir
implicitamente que os grupos são unidades de pequena escala,
multiplexas, densamente articuladas e claramente demarcadas,
mais parecidas com famílias, vizinhanças, orquestras, partidos
políticos ou microempresas do que com relacionamentos de longa
distância, diásporas, fã-clubes, movimentos sociais ou
corporações transnacionais. Se cada grupo é necessariamente uma
rede, nem toda rede é, entretanto, um grupo. Seguindo a “análise
de redes sociais”, tal como desenvolvida primeiramente na antro-
pologia britânica pela Escola de Manchester e, posteriormente,
também na sociologia estadunidense pelos discípulos de Harrison
White, podemos definir redes, genericamente, como conjuntos de

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laços ligando membros de sistemas sociais (membros chamados
algumas vezes de “nós”, de modo a evitar sua identificação com
indivíduos) ao longo ou através de categorias sociais e grupos
demarcados.33 A definição de rede como um conjunto de nós
interconectados deixa em aberto a sua morfologia, a natureza
de seus laços e as suas fronteiras. Embora a análise de redes
insista nas inter-relações estruturais que compõem a rede, ela não
predefine a sua estrutura, a qual pode ser regular como um cristal,
esquizoide como um rizoma ou complexa como uma nuvem. De
modo similar, ela não predetermina as fronteiras e a natureza
dos laços. As conexões podem ser globais ou locais, lineares ou
multiplexas, densa ou esparsamente costuradas, firme ou flexi-
velmente demarcadas. Em contraste, as redes são concebidas
como estruturas abertas que podem se expandir, integrando
novos nós enquanto se difundem pelo espaço.
Consequentemente, da perspectiva da análise de redes, o
grupo aparece como “apenas um tipo especial de rede social,
o qual é densamente articulado (a maior parte das pessoas está
diretamente conectada) e fortemente demarcado (a maior parte
das relações permanece ocorrendo no interior do mesmo conjunto
de pessoas)” (Wellman, 1999: 16). Se estudarmos um grupo – por
exemplo, um grupo de colegas na festa de ano novo de um
departamento – como uma rede e seguirmos os laços que conectam
seus membros, para onde quer que eles se dirijam, iremos
rapidamente transcender as fronteiras do grupo e descobrir laços
não locais que se espalham ao redor do mundo. É um mundo
pequeno de fato; e, se pudermos acreditar em Stanley Milgram
(1967), apenas cinco intermediários são necessários para se entregar
um arquivo do Kansas à esposa de um estudante de divindade
(teologia) em Cambridge, Massachussetts, ou um documento de
Nebraska a um corretor de ações em Sharon, Massachussetts. A
topologia das redes sociais é tal que liga dois nós quaisquer no
mundo todo por meio de cinco laços indiretos entre conhecidos.
As redes não atravessam apenas grupos demarcados, mas
também categorias sociais. Ainda que isso possa parecer
inicialmente uma concessão a Harré, podemos, entretanto,
interpretar tal tese como um modo de abrirmos e afrouxarmos
seu conceito de grupos e de interconectarmos diferentes grupos
em uma rede em expansão. A participação em categorias pode
ser considerada como uma medida aproximada e uma indicação

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de um relacionamento estruturado potencial entre nós. Os nós
na rede não são necessariamente indivíduos, mas podem ser
grupos de todos os tipos, de “panelinhas” (grupos de pessoas
em que todas se conhecem) e agrupamentos (pessoas cujos
laços são relativamente densos, mas que não constituem uma
“panela”) até corporações, Estados-nação e federações. Estudos
de diretorias entrelaçadas mostraram a “força dos laços fracos”
(Granovetter, 1973) que permitem a interconexão de diferentes
redes. De fato, os nós são geralmente interconectados através de
indivíduos que pertencem a múltiplos círculos sociais. Quando os
nós são interconectados por meio de laços que ligam membros
de diferentes categorias, os membros tornam-se então potencial-
mente ligados em uma rede flexível. Isso será mais importante
em um estágio posterior do argumento, mas introduzo esse
ponto aqui para indicar a possibilidade de “reticulação” entre
grupos, a qual perpassaria categorias, por meio da “articulação”
das suas diferenças.34

MORFOGÊNESE TRIPLA
Harré coloca uma questão real. Mas a oposição que ele estabe-
lece entre grupos e categorias é excessivamente rígida, e também
excessivamente estática, para ser inteiramente satisfatória. O que
é preciso é uma abordagem mais dialética e dinâmica, capaz de
rastrear o desenvolvimento imanente das categorias (no sentido
hegeliano do termo) e sua transformação em grupos. Coletivos
taxonômicos e grupos estruturados não são necessariamente
opostos e nem sempre se excluem mutuamente, mas formam
um continuum: sob certas condições, que teremos de analisar,
coletivos taxonômicos podem ser organizados em grupos estrutu-
rados e formar redes organizadas que se tornam mais e mais reais
conforme se estruturam, realizando seu potencial no processo (da
dynamis à energeia). Para evitarmos a impressão construtivista
de que coletivos taxonômicos não existem na realidade e de
que são sempre e inevitavelmente reificações que “flutuam nas
cabeças dos atores”, como disse Max Weber (1972: 7), devemos
provavelmente reformular a questão e manter as teses: a) de que
os coletivos são reais; b) e de que existem como grupos virtuais
cujo poder causal se manifesta progressivamente conforme são
estruturados em grupos capazes de produzir movimento social,
gerando impactos em toda a sociedade. Para evitar a reificação

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dos coletivos, devemos, entretanto, conceder aos construtivistas
que estes coletivos não são dados como entidades acabadas, mas
constituem produtos sociais que são sempre social e localmente
construídos em situações concretas de ação; que eles não são
coisas, mas processos; não reificações, mas realizações ou
talvez até mesmo “fabricações”, como diria Latour. Ofereço essas
especificações gramaticais não apenas para evitar “erros de cate-
goria”, mas também para indicar que uma ontologia realista dos
coletivos poderia facilmente integrar as ontologias performativas
dos construtivistas, como a teoria do ator-rede, por exemplo, em
uma análise processual e dinâmica da estruturação progressiva
de coletivos. Coletivos podem ser mais ou menos estruturados.
Podem crescer ou minguar. Ainda que eu defenda que os coletivos
sejam reais, não pretendo negar que a “grupalidade” (groupness)
é variável. Como Brubaker e Cooper (2000: 28), considero a
“grupalidade” não como um dado, mas como uma “propriedade
emergente de cenários estruturais ou conjunturais particulares”.
No restante deste capítulo, teorizarei a estruturação dos
coletivos como um processo morfogenético triplo. Identificação
simbólica, mediação tecnológica e representação política serão
apresentadas como diferentes “momentos” que estruturam e
transformam dialeticamente o coletivo em uma comunidade
simbólica, a comunidade simbólica em um quase-grupo que pode
ser mobilizado, e o quase-grupo em um grupo organizado capaz
de representar seus membros ausentes. O que analisarei nesses
três momentos (“trialéticos”) da estruturação dos coletivos são as
condições da ação coletiva, não a ação em comum como tal.35

CATEGORIZAÇÃO, IDENTIFICAÇÃO E A
CONSTITUIÇÃO DA COMUNIDADE SIMBÓLICA

PESSOAS DE ORDEM SUPERIOR


Até agora, sugeri que não devemos opor coletivos taxonômicos
a grupos estruturados. Devemos, ao invés disso, tentar dissolver a
oposição e integrar categorias e redes em um esquema dialético
mais dinâmico que possa analisar como os coletivos são efeti-
vamente constituídos como uma comunidade simbólica através

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da implicação mútua das descrições performativas do coletivo
na primeira pessoa do plural e das descrições estruturais do
coletivo na terceira pessoa do plural. Nessa perspectiva “realista-
-construtivista”, os coletivos possuem uma existência dupla.
Primeiramente, existem objetiva e virtualmente como categorias
que abarcam membros de um conjunto em função da posição
que estes ocupam na estrutura social; em segundo lugar, existem
subjetiva e intencionalmente como comunidades simbólicas nas
quais os membros estão interconectados através de uma ligação
mental ou espiritual.36 Se coletivos taxonômicos são constituídos
por categorizações alterfenomenológicas de um observador que
oferece uma descrição estrutural do coletivo da perspectiva da
terceira pessoa, grupos são constituídos através de uma categori-
zação autofenomenológica, i.e., uma autoidentificação por parte
dos próprios membros. Diferentemente daquela, esta não é trazida
a partir de fora do coletivo, mas aplicada ao grupo pelos seus
próprios membros, que são assim constituídos como um “nós”. O
“nós” é uma Gesamtperson, uma subjetividade ou personalidade
supraindividual social constituída intencional e politeticamente
como um coletivo vivo, sendo experienciada como tal por todos
os membros do grupo.
Seguindo a descrição fenomenológica que Edmund Husserl
(1973, II: 165-230) ofereceu acerca dos fenômenos da intra e
da intersubjetividade, podemos dizer que o grupo é intencio-
nalmente construído pelos seus membros como uma “pessoa
de ordem superior” graças à comunicação.37 A comunicação
estabelecida entre os membros de um grupo está fundada sobre
a constituição da intersubjetividade pelo ego transcendental. Ela
pressupõe as sínteses noéticas e noemáticas do ego transcen-
dental, mas, ao mesmo tempo, realmente supera o solipsismo
da mônada solitária através do estabelecimento de uma relação
real, efetiva, interespiritual e intercorpórea entre os sujeitos que
se desenrola no mundo da vida.38 O outro não é constituído
como um alter ego, mas encontrado como um socius com o qual
se pode interagir em tempo real. Na medida em que a comu-
nicação intersubjetiva é intramundana, e não intrassubjetiva, a
análise de Husserl é perfeitamente compatível com a teoria da
ação comunicativa de Habermas. Na comunicação, Ego e Alter
“dão-se as mãos espirituais” (Husserl, 1973, II: 168) e realmente
entram em contato um com o outro. Assumindo um interesse

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ativo pelo outro, os atores não apenas possuem uma consciência
mútua de sua reciprocidade, mas os atos de um também afetam
diretamente o outro, tornando-se assim entrelaçados; os atores
podem unificar suas vontades e coordenar reciprocamente suas
ações em uma única ação coletiva. Toda a operação, o trabalho
coletivo, é “minha operação”; no entanto, ao mesmo tempo,
é também a operação dele ou dela, especificamente “em um
sentido fundacional e superior”, pois quando, de modo cons-
ciente, informado e recíproco, coordenamos nossas ações em
uma única cadeia operativa, minha ação apoia a ação do outro e
torna-se complementar a ela. Tal como minhas intenções, meus
planos e minhas ações se misturam com os dele, chegamos à
ação em comum e formamos uma subjetividade coletiva com
intencionalidade coletiva. O resultado de nossa ação em comum
é uma conquista comum, que alcançamos juntos, de modo
cooperativo e intencional.
Se agora nos movermos, ascendentemente, da comunicação
entre duas pessoas à associação entre mentes e vontades de várias
pessoas, poderemos facilmente transferir a análise comunicativa
e proto-habermasiana de Husserl a respeito da unificação de
vontades, bem como da coordenação social da ação por ego
e alter em uma subjetividade coletiva, para a investigação de
grupos estruturados.39 Através da comunicação, as mentes das
pessoas são unidas em um “fluxo comum de consciência” (Husserl,
1973, II: 203). Uma consciência supraindividual é formada. Esta
consciência vive em toda e qualquer pessoa que participa do
grupo. Ela flui através deles, ainda que, ao mesmo tempo, emane
deles. Como uma unidade complexa, essa consciência coletiva
quase durkheimiana resulta de um ato coletivo de unificação.
Fundado sobre unificações individuais, o ato coletivo de unifi-
cação é um ato sintético que integra politeticamente as sínteses
individuais em uma unidade superior, a qual opera como uma
consciência pessoal. “Essa subjetividade comum”, diz Husserl,
“é uma subjetividade com múltiplas cabeças, uma forma do
ego-alteri” (Husserl, 1973, II: 218). Distribuída entre todas as
pessoas que participam na ação conjunta ou compartilhada ao
alinharem espontânea e mutuamente suas ações intencionais em
uma única ação comum, essa consciência suprapessoal forma
aparentemente o correlato intencional único da comunidade
psíquica, ainda que cada pessoa conserve necessariamente um

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certo grau de independência e que a consciência individual
coincida e se sobreponha apenas parcialmente à consciência
supraindividual do coletivo.

RITUAIS DE INTERAÇÃO
A teoria da consciência coletiva intencional de Husserl é
essencialmente cognitiva. A despeito de suas nuanças
durkheimianas, ela desconsidera o fato de que a emergência
de pessoas de ordem superior não está baseada apenas em um
acordo racional e consciente entre mentes. A comunicação ativa
está baseada na sintonização mútua dos participantes e pressupõe
sínteses passivas de uma natureza mais difusa e emocional, as
quais precedem as cognições na ordem fundacional. Tal como
as cognições, as emoções são fenômenos intersubjetivos, rela-
cionais e transacionais (Emirbayer; Goldberg, 2005: 483-493).
As emoções surgem não somente no interior dos corações e
mentes dos indivíduos (como “estados mentais”), mas também,
e primariamente, entre atores. Como fenômenos transacionais e
transitórios, elas são passivamente constituídas e emergem na e
a partir da situação de interação. Seguindo Durkheim e Goffman,
podemos conceber a comunicação como uma “cadeia de interação
ritual” (Collins, 2004) que pode ser decomposta nos seguintes
ingredientes: duas ou mais pessoas estão fisicamente reunidas
em um mesmo local, de modo que afetam uma(s) à(s) outra(s)
em uma situação de copresença, seja no primeiro plano da sua
atenção consciente (“síntese ativa”) ou não (“síntese passiva”). A
situação de copresença física é espacialmente demarcada e seus
participantes possuem um senso de quem está tomando parte na
comunicação, bem como de quem está excluído. Os participantes
concentram sua atenção em um objeto ou atividade comum e,
unificados por uma consciência intencional comum dirigida ao
mesmo noema, comunicam esse foco uns aos outros de modo
que cada um deles se torne ciente do foco de atenção de todos
os outros.
Além disso, eles também compartilham um estado comum
de humor e de experiência emocional e estão sintonizados uns
com os outros através da sincronização de movimentos corporais,
do entrosamento rítmico e do estímulo mútuo de sentimentos.
A experiência de atenção mútua acentuada e de alinhamento

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emocional comum pode ocasionalmente ser tão intensa que
transforma a comunicação em uma forma de “comunhão, i.e.,
uma fusão de todos os sentimentos particulares em um senti-
mento comum” (Durkheim, 1960: 329) que emana do coletivo,
transcende todos os participantes e flui através de cada um
deles. Essa experiência de “efervescência coletiva” dá origem
subsequentemente a emblemas sagrados do grupo e a outros
símbolos catéticos de identidade, como totens, bandeiras e
líderes, mas também palavras e slogans, todos os quais expressam,
condensam, corporificam, estocam e prolongam o sentimento
transitório de unidade em um objeto material ou ideativo que
simboliza o coletivo mesmo quando seus membros não estão
reunidos. Através de uma radical microtradução e secularização
da sociologia da religião de Durkheim em termos de interações
rituais situadas, a situação de comunicação pode ser abordada
e analisada como um processo ritual que produz subjetividades
coletivas através da atenção mutuamente orientada, da sincro-
nização de movimentos e do compartilhamento de emoções, os
quais geram um senso de pertencimento e símbolos de pertença
ao grupo.

SUJEITOS PLURAIS
A introdução de componentes emocionais e cinestésicos na
fenomenologia da intersubjetividade de Husserl nos permite
compreender a constituição do grupo não somente como uma
comunidade unificadora de mentes, mas também de corações
e corpos. Um sentido de pertencimento é essencial para a
constituição de um grupo, mas também o é sua delimitação em
relação a outros grupos. Para mostrar que a constituição do
grupo é concomitante à sua identificação contra um terceiro,
me dirijo agora à teoria analítica de “sujeitos plurais” de Gilbert
(1989; 1990).40 Em sua tentativa de clarificar noções de senso
comum como “comunidade”, “grupo”, “nós”, “ação comum”
etc., a filósofa britânica submete atividades ordinárias comuns
como “andar junto”, “dançar junto” ou “viajar junto” a uma
investigação conceitual detalhada. São necessários pelo menos
dois para “andar junto”, mas o simples fato de andar ao lado
de outra pessoa, ou na companhia de outra pessoa, não é
suficiente. É preciso que cada um dos caminhantes expresse
abertamente ao outro sua intenção de andar com ele e que os mesmos

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concordem conjuntamente em formar um “nós ambulante”,
unificado pelo objetivo comum de andarem juntos na compa-
nhia um do outro. A despeito do fato de que andar junto seja
uma experiência eminentemente cinestésica, Gilbert abstrai a
intercorporalidade e considera a unificação de vontades e cons-
ciências que marca a ação conjunta como o cadinho da sociedade.
Essa assimilação da sociedade (Gesellschaft) à sociabilidade
(Geselligkeit) é, no entanto, problemática. Henry David Thoreau
foi talvez melhor sociólogo quando sugeriu, em um epigrama,
que são necessários três para formar uma sociedade: “Tenho
três cadeiras em minha casa: uma para a solidão, duas para
companhia, três para a sociedade” (citado por Collins, 2004: 376,
nota 8). De fato, Gilbert não apenas tende a reduzir a sociedade
a um pas de deux, mas também esquece que díades (ou, nesse
caso, tríades, quartetos e quintetos) sempre possuem previamente
um local na sociedade. Essa abstração tipicamente individualista
da estrutura social e da cultura presentes nos níveis sistêmicos
da sociedade explica por que a filósofa pode considerar a ação
comum de “andar junto” como um fenômeno social paradig-
mático que ofereceria um modelo da sociedade como um todo.
Seguindo os passos de Georg Simmel – que era mais arguto nesse
sentido e tinha um “senso” tão forte da existência de estruturas
sociais que até Durkheim pôde reconhecê-lo –, Gilbert pensa
que o fenômeno de “andar junto” ilustra maravilhosamente o
que Simmel teria em mente quando disse que “a consciência de
constituir com os outros uma unidade” é a condição necessária e
suficiente da sociedade.41 Reduzindo a sociedade a um coletivo,
o coletivo a uma associação, a associação a uma díade e a díade
a um “nós”, Gilbert formaliza a análise protofenomenológica
da associação (Vergesellschaftung) feita por Simmel e oferece a
seguinte fórmula como uma notação estenográfica da sua aná-
lise de “sujeitos plurais” que compõem um coletivo: “Os seres
humanos X, Y e Z constituem uma coletividade (grupo social)
se, e apenas se, cada um concebe corretamente a si mesmo e
ao outro, tomados juntos, como um “nós”* (Gilbert, 1989: 147).42

NÓS CONTRA ELES


A semântica do “nós” pode elucidar de modo bem-sucedido
as condições gramaticais de constituição intencional do coletivo
através da autoidentificação dos membros do grupo com o

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grupo. Ela permanece, entretanto, bastante limitada. Gilbert
não vê que o “nós” sempre pressupõe um “vocês”. Coletivos
estão sempre relacionados a outros coletivos. Um coletivo se
constitui como uma comunidade simbólica ao se distinguir de outra
comunidade da qual tenta se diferenciar. A constituição de um
“nós” mais ou menos unificado pressupõe uma diferenciação
em relação a “eles”. Em outras palavras: não há identidade sem
diferença. Para evitar a sugestão de que as identidades são unifi-
cadas, estáveis e homogêneas, compostas de uma única, ao invés
de várias e por vezes conflitantes identidades, podemos talvez
adicionar, com Freud, que não há identidade sem identificação
e identificação sem diferenciação.
Na medida em que a constituição da identidade do “nós”
pressupõe sua diferenciação com respeito a outro “nós”, a categori-
zação dos “outros” está implicada na identificação do “nós”. Disso
se segue, como Stuart Hall (1996a: 3; 1996b: 608) corretamente
notou, que a identificação é uma construção, que ela está sempre
“em processo”, um processo que, por sua vez, permanece sempre
incompleto. Para consolidar o processo de construção do coletivo
como um grupo autofenomenológico, a identificação necessita de
um “outro”, um “exterior” que é “constitutivo” da identidade do
grupo. As identidades nunca são completamente unificadas,
no entanto. Elas são descentradas e deslocadas, compostas de
diferentes elementos provisoriamente “colados” ou “suturados”
uns aos outros através da “articulação” das diferenças em uma
identidade cultural comum (Laclau; Mouffe, 1985). Por serem
construídas pela referência à representação de uma diferença, um
“outro”, “um exterior constitutivo” que está sempre já incluído no
interior do coletivo e afetando sua identidade a partir de dentro,
as fronteiras simbólicas entre grupos são necessariamente permeáveis
(ainda que estejam se fechando rapidamente). Para chegarem a
um fechamento, o qual, por definição, só pode ser provisório,
as identidades são continuamente construídas, reconstruídas e
desconstruídas. Mesmo que eu não queira endossar, nesse ponto,
as teorias pós-estruturalistas e pós-modernas da identidade e da
diferença, aceito completamente suas conclusões ontológicas (e,
dado o recente e desenfreado aumento da islamofobia, também
suas conclusões políticas).
A oposição entre “nós” e “eles” não é idêntica à oposição
entre amigo e inimigo e não deveria ser identificada com esta

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última. Enquanto a distinção entre “nós” e “eles” permanece
relativamente porosa, a distinção entre amigo e inimigo enrijece
as categorizações e transforma marcos culturais diacríticos de
diferença relativa (nação, linguagem, etnicidade, raça, religião)
em oposições absolutas de tipo. Em Der begriff des politischen
[O conceito do político], Carl Schmitt insiste na tese de que o
inimigo é “em um sentido muito intenso existencialmente outro”,
um estranho que é “natural e essencialmente diferente” (Schmitt,
1933: 8).43 O binário schmittiano funciona como uma máquina
de guerra conceitual. Como o inimigo não pode ser assimilado
pelo grupo, ele tem de ser expulso e eliminado e, se necessário,
exterminado. A designação do outro como um inimigo realiza o
grau mais extremo de unidade e separação, e de associação e
dissociação. Quando o grupo fecha as portas a partir de dentro e se
unifica contra o inimigo externo, as fronteiras se endurecem
e perdem sua fluidez, a ponto de não poderem mais ser cruzadas
por indivíduos de qualquer dos lados.
A questão crucial não é apenas se os coletivos têm sempre de
ser constituídos contra outros coletivos, mas se o antagonismo
é inevitável.44 Embora a lógica política da soberania force, de
certo modo, as comunidades a se definirem como um demos ao
distinguirem entre “nós” e “eles”, Wir und die Anderen – esse
tanto poderia ser concedido a Schmitt45 –, a verdadeira questão
normativa diz respeito a como a identidade e a diferença podem
ser articuladas em coletivos abertos e flexíveis que não excluam a
priori a inclusão de outsiders. Observando de perto as fronteiras
e dissolvendo a linha imaginária que separa as comunidades,
podemos investigar a construção social daquelas fronteiras e
descobrir como elas são abertas ou fechadas e como podem
ser atravessadas. Para evitar o fechamento do coletivo e as
implicações fatais da ultrapolítica de Carl Schmitt, duas estratégias
intelectuais parecem estar disponíveis. É possível redesenhar as
fronteiras (“mudança de fronteiras” [boundary shifting]) ou, alter-
nativamente, mantê-las, mas permitindo o intercâmbio de pessoas
entre elas (“cruzamento de fronteiras” [boundary crossing]).46

POLÍTICAS DE FRONTEIRA
A primeira estratégia aparece em duas versões, uma universalista
e outra mais diferencialista.47 O cosmopolitismo procedimental

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de Habermas (1997), com sua vívida defesa do “patriotismo
constitucional”, oferece provavelmente o exemplo contemporâneo
mais bem conhecido da estratégia modernista de reconstrução
universalista. Ela busca incluir o outro como um cidadão em uma
comunidade através de um progressivo alargamento dos limites da
coletividade. Em seu notável livro acerca dos direitos dos estran-
geiros, Seyla Benhabib (2004) aplicou recentemente o princípio da
justificação D (princípio oriundo da ética do discurso, de acordo
com o qual todos os que estão preocupados com as consequências
da adoção de uma norma ou são afetados por ela devem ter direito
a opinar sobre a sua formulação) ao tema da imigração. O problema
é que imigrantes, os quais são, por definição, não cidadãos,
estão inicialmente excluídos do pacto social. Preocupada com
a inclusão do outro na comunidade nacional, Benhabib sugeriu
que a tensão entre a lógica exclusionária da política (soberania)
e a lógica inclusiva da moralidade (direitos humanos) pode ser
negociada por meio de “iterações democráticas” nas quais o
coletivo periodicamente reconstitui e redefine a si mesmo de
modo a permitir a extensão da voz democrática aos novos
membros da sociedade, que estavam excluídos no momento da
articulação inicial da identidade. Através de “iterações democrá-
ticas”, os outros/estrangeiros são progressivamente incluídos na
comunidade, enquanto o reconhecimento do outro como outro
torna-se um traço da identidade comum do povo.
Se a estratégia da reconstrução universalista pretende trans-
formar estranhos em amigos, visitantes em residentes e cidadãos,
a estratégia da desconstrução diferencialista pretende converter
inimigos em adversários que compartilhem de uma mesma
adesão aos princípios da democracia liberal, mas lutem para
afirmar suas diferenças contra seus oponentes, sem a possi-
bilidade de chegarem algum dia a um consenso racional. A
estratégia desconstrucionista é talvez melhor representada por
Laclau e Mouffe (1985) e sua influente formalização da lógica
diferencialista que anima a política pós-moderna da identidade.
A despeito da dificuldade da prosa, a mensagem básica dos
pós-estruturalistas neogramscianos é relativamente simples. Toda
ordem é política e baseada em alguma espécie de exclusão do
outro. Sempre existem, entretanto, outras possibilidades que
foram reprimidas através da hegemonia e que podem ser reati-
vadas por meio de práticas contra-hegemônicas de articulação.

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Para reativar tais possibilidades reprimidas, a identidade hege-
mônica vigente deve ser desconstruída por lutas democráticas.
A desconstrução problematiza a unidade do “nós” e a alteridade
dos “outros”, ao questionar a separação radical que torna a
oposição possível em primeiro lugar. A desconstrução não destrói a
fronteira entre os insiders e os outsiders, mas a desloca. Ela
decompõe e recompõe, desarticula e rearticula identidades. À
medida que as linhas de conexão são multiplicadas e as alianças são
modificadas, as identidades são continuamente feitas e refeitas.
Pensando “com Schmitt contra Schmitt”, Mouffe (1999a: 6;
1999b: 52, nota 2) revisita seus escritos sulfúricos e os revisa para
o contexto das sociedades pluralistas.48 Desafiando a insistência
de Schmitt sobre a homogeneidade do demos, ela argumenta
que não há identidades fixas nem inimigos absolutos. Em uma
sociedade pluralista, existem apenas adversários que colidem para
afirmar suas diferenças e forjar novas identidades. A constituição
do coletivo é agonística, baseada em lutas democráticas, e não
antagonística e existencial, como no decisionismo de Schmitt.
Na medida em que o coletivo é continuamente redefinido por
meio de lutas hegemônicas e contra-hegemônicas, as fronteiras
tornam-se arbitrárias e contingentes. A “fronteira é interna”, não
externa. Ao fim do dia, não está mais claro quem está dentro e
quem está fora.49
Se as estratégias de reconstrução e desconstrução borram as
fronteiras, a estratégia de intercâmbio de pessoas as mantém,
mas permite aos membros de diferentes categorias que cruzem
as fronteiras e modifiquem suas identidades. Essa estratégia é
adotada pelo antropólogo social Frederik Barth (1969; 1994) em
seu inovador trabalho de campo sobre a manutenção de fron-
teiras e a organização social da diferença cultural entre os Swat
Pathans. Trabalhando na tradição europeia, Barth é um antro-
pólogo social, não cultural. Ele analisa a organização social da
diferença cultural e concebe a identidade como um traço da orga-
nização social, ao invés de uma nebulosa expressão da cultura. A
premissa básica de sua abordagem é a de que grupos étnicos são
dialeticamente constituídos e socialmente construídos através de
práticas de identificação autofenomenológica (“autoatribuição”
identitária) e de categorização alterfenomenológica (“atribuição
identitária a outros”). Não é tanto o grupo que define as fronteiras
simbólicas, mas são as práticas de atribuição de identidades e de

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constituição de fronteiras sociais que definem os grupos sociais.
Ao invés de nos concentrarmos sobre os elementos culturais que a
fronteira engloba, deveríamos nos concentrar sobre a fronteira e os
processos de constituição de fronteiras que definem o grupo.
Barth não nega que as fronteiras possam se mover e se
modificar. Ele também reconhece que as características culturais dos
membros podem ser transformadas. Mas insiste em que, apesar de
todas as práticas de articulação, a dicotomização entre os internos
e os externos, os familiares e os estranhos, tende de certo modo
a permanecer. O que pode mudar, entretanto, são as pessoas e
suas identidades. O intercâmbio de pessoas deixa as categorias
intactas (ainda que afete seus números), mas recategoriza os
estrangeiros como membros, os estranhos como amigos. A
fronteira entre os que estão dentro e fora do grupo permanece no
lugar, mas os outsiders têm a permissão de cruzar as fronteiras e
ser eventualmente aceitos e identificados como membros internos
do grupo. Ao transformar sua identidade, eles estão livres para
“passar”, tornando-se membros plenos da comunidade.

A DIALÉTICA DA IDENTIFICAÇÃO E
DA CATEGORIZAÇÃO
Agora que apresentamos uma rápida revisão das diferentes
estratégias teórico-políticas que buscam superar o fechamento
schmittiano do coletivo e manter porosas as suas fronteiras,
poderemos retornar à distinção de Rom Harré entre coletivos
taxonômicos e grupos estruturados. Sabemos que o filósofo de
Oxford opõe categorias a grupos, mas acredito que, se seguirmos os
insights de Barth acerca da implicação constitutiva das definições
de si e do outro, da identificação e da categorização, poderemos
dissolver dialeticamente a oposição entre categorias e grupos. A
formação da identidade é “trabalho conjunto” (Barth, 1994: 16).
Um grupo não é apenas constituído pela identificação como
um “nós” colocado contra um “eles”, mas também, e talvez de
modo igualmente importante, constituído como um grupo por
meio das categorizações de outros (no sentido etimológico de
“acusações públicas”, ainda que não devamos excluir a priori
atribuições identitárias mais afirmativas). A identificação autofe-
nomenológica do coletivo pelos membros do grupo e a categori-
zação alterfenomenológica do coletivo por um observador externo
não excluem uma à outra. Ambos os processos de identificação de

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coletivos estão dialeticamente implicados na dupla morfogênese
dos coletivos como grupos e categorias:

rimeiramente, a categorização – definição externa – é básica


P
para a definição interna. O processo de definição do “nós” exige
que “eles” sejam contrastados conosco. A identificação do grupo
torna-se mais provável, ao menos em parte, com a categorização
de outros, seja positiva, seja negativamente. Em segundo lugar,
a definição externa – a definição de quem somos nós pelos
outros – afeta nossa(s) definição(ões) interna(s), no mínimo
porque influenciará o modo como eles orientam seu comporta-
mento em relação a nós (Jenkins, 2000: 9).

As implicações dessa linha de argumentação são as teses de que os


coletivos tornam-se grupos ao serem constituídos como categorias,
bem como de que as categorias taxonômicas referem-se a grupos
potenciais que podem se transformar ou ser transformados, por
meio da pressão externa, em grupos estruturados e organizados,
imbuídos de uma consciência coletiva e de uma vontade de agir
distribuída entre os membros do grupo.
Até agora, analisamos a constituição progressiva do coletivo
como uma comunidade simbólica consciente de sua própria
identidade e de suas diferenças em relação a outros coletivos.
Para evitar a indevida reificação dos coletivos, começamos com
unidades bem pequenas e, trabalhando gradualmente, partindo
de díades e tríades até chegarmos a comunidades mais amplas,
seguimos uma dialética ascendente. Sem questionarmos dema-
siadamente as pressuposições individualistas de Husserl, Collins
e Gilbert, procedemos como se os processos de categorização,
identificação e simbolização formassem uma sequência lógica.
Na verdade, a ordem da apresentação deveria ser invertida. A
constituição de coletivos é sempre levada a cabo já no interior
da ordem simbólica, que constitui, propriamente falando, o
alicerce transcendental da sociedade (Freitag, 1986). O indivíduo
aparece como concreto apenas porque foi abstraído da totali-
dade simbólica. As complexas redes de representações e signifi-
cações funcionam como uma ordem transcendental a priori de
determinação que regula e unifica as práticas que constituem os
coletivos. As práticas constitutivas dos coletivos são elas mesmas
constituídas como práticas através da mediação simbólica da cultu-
ra. Como um repertório de gramáticas, narrativas e vocabulários de

232

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tipificação, a cultura define, motiva e orienta as práticas sociais
que são dirigidas a outros, àqueles que são parte e àqueles que
não são parte do grupo, mas também, implicitamente, para além
destes, em direção à comunidade mais abrangente de seres hu-
manos dotados da capacidade de discurso.
Além disso, deve-se notar que as comunidades simbólicas
não emergem no vazio, mas estão estruturalmente localizadas em
um sistema de relações entre posições que, seguindo Hegel,
podemos descrever como “relações senhor-escravo” generalizadas.
Nas sociedades capitalistas, estas relações senhor-escravo gene-
ralizadas assumem a forma de relações de classe que imprimem
uma marca ideológica à cultura e configuram a consciência de
classe. A distinção hegeliana de Marx entre a “classe-em-
-si” e a “classe-para-si” oferece uma boa ilustração da dialética
da identificação que transforma um coletivo taxonômico em
um grupo estruturado, consciente de sua localização estrutural
na sociedade e organizado para transformar esta de acordo
com seus interesses materiais e ideais. Ela também confirma
a tese realista de que coletivos existem mesmo antes de se
manifestarem no mundo da vida como grupos estruturados (ou,
para usar uma formulação mais dialética, antes que o mundo
da vida se manifeste no grupo). Devo, entretanto, acrescentar
imediatamente que as classes são determinadas pela luta de
classes e emergem por meio da resistência coletiva às relações
senhor-escravo generalizadas que caracterizam a opressão de
classe. A classe é certamente um produto do conjunto de relações
sociais que opõem uma categoria social a outra, mas ela tem ainda
de ser produzida e constituída como um coletivo autoconsciente
mais ou menos unificado. A unidade da classe é um resultado
de múltiplas articulações e negociações, decisões e conflitos que
os atores trazem à baila. Se uma análise realista da “classe-
-em-si” define o espaço no qual a consciência e a solidariedade
de classe podem emergir e esboça as linhas de divisão entre as
classes, tal análise ainda tem de ser dialeticamente complemen-
tada pela perspectiva mais construtivista da teoria da ação, que
analisa como uma classe se constitui intencionalmente como um
movimento social que luta para se definir não apenas em termos
de identidade (I) e oposição (O), mas também de totalidade (T),
a última referindo-se ao projeto utópico de transformação de
todo o campo de relações no qual as lutas pela identidade se
desenrolam (Touraine, 1978: 103-133).50

233

teorial social realista.indb 233 27/1/2010 11:22:55


MEDIAÇÃO TECNOLÓGICA,
COMUNIDADES IMAGINADAS E A
CONSTRUÇÃO DO QUASE-GRUPO

MEDIAÇÕES DO COLETIVO
Para que o coletivo se constitua como um grupo estruturado
e unificado, capaz de ação coletiva, é necessário mais do que
uma identidade coletiva. Não é suficiente que os membros do
grupo se identifiquem com os demais integrantes do in-group
e se diferenciem daquelas pessoas situadas no seu exterior
(out-group). Duas outras condições têm de ser satisfeitas:
primeiramente, os membros presumidos de um grupo potencial
têm de ser capazes de entrar em contato uns com os outros e
formar uma rede comunicativa virtual; em segundo lugar, eles
têm de ser representados por um porta-voz que fale em seu nome
e atualize o coletivo como um grupo organizado que existe no
espaço e persiste no tempo. Para que os coletivos passem da
potencialidade à efetividade e exercitem seus poderes causais,
eles têm de se “estruturar” ou, como diz Domingues (1995), se
“centrar”.51 A autoidentificação dos membros é uma condição
necessária, mas não suficiente, da estruturação dos coletivos.
Um coletivo que deseje agir e intervir no mundo da vida para
transformar o sistema (ou se opor à sua transformação) necessita
da intervenção de uma “mediação tecnológica” que transforme a
comunidade simbólica em um quase-grupo, bem como de uma
“representação política” que transforme o quase-grupo em um
grupo organizado.52
Na linha da tentativa grandiloquente de Régis Debray (1991;
2000) para fundar a midiologia como uma ciência enciclopé-
dica que estuda a sociologística da transmissão cultural e da
organização política, concebo a mediação tecnológica e a
representação política como dois lados de um único processo
de mediação que organiza pessoas e coisas, humanos e não
humanos (para falar como os seguidores de Michel Serres) em
uma associação heterogênea.53 A mediação possui dois lados – um
lado logístico, relativo à organização tecnológica da matéria, e
um lado estratégico, relativo à organização das pessoas em uma
rede. Para difundir uma mensagem através da sociedade e organizar

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os membros de uma categoria em um “grupo triplo ‘I’”, o qual
defende, de modo bem-sucedido, suas “ideias, identidades e in-
teresses”, não se deve apenas garantir as condições materiais e
tecnológicas de transmissão das ideias através da sociedade, mas
também organizar e mobilizar os membros em um grupo corpo-
rativo densamente articulado que possa representar a multidão
e agir “como um único homem”. Diferentemente dos estudos de
comunicação, estudos de mediação não estão restritos apenas
a jornais, televisões em cores e redes da Internet, mas analisam
todos os vetores possíveis de transmissão que permitem o trans-
porte de mensagens através do espaço e das gerações – de estra-
das e canais, portos e portais até monumentos e documentos. Na
ausência de ondas sonoras, de cordas vocais e da laringe, não há
voz e, portanto, comunicação; sem as bicicletas das sufragistas,
as ideias feministas provavelmente não teriam se espalhado pela
zona rural da Inglaterra (Bertho Lavenir, 1998).
Porém, mesmo que o mundo material seja tecnologicamente
organizado de tal modo que os indivíduos possam estar inter-
conectados, de modo bem-sucedido, em uma rede de comu-
nicação – e, graças às tecnologias modernas de informação e
comunicação (TICs), as pessoas podem atualmente se comunicar
sem a necessidade de proximidade, i.e., sem terem de estar fisi-
camente copresentes –, ainda é preciso organizar os indivíduos
em grupos políticos ativos, como partidos, uniões e milícias,
escolas, academias e institutos, ou ainda seitas, capelas e igrejas,
os quais possam representar todos os indivíduos que aderem
aos ideais, identidades ou interesses do grupo e falar em nome
do coletivo mais amplo. De qualquer modo, a identificação
simbólica, a mediação tecnológica e a representação política
são os três momentos da estruturação do coletivo que levam à
atualização ou efetivação de seu poder causal.54 Comunidade
simbólica, quase-grupo mobilizável e grupo organizado, são estes
os três avatares do coletivo, correspondentes aos três momentos
da sua estruturação.55

MEDIAÇÕES DE MASSA
Para formar um grupo estruturado e unificado, o coletivo
necessita de uma identidade cultural (nacional, étnica, linguística,
de classe etc.) que simbolize e represente a unidade do grupo.
Pós-estruturalistas, pós-modernistas e psicanalistas sabem que a

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identidade do grupo é, em larga medida, imaginária: ela pressu-
põe uma representação simbólica do grupo na linguagem que
projete a unidade do grupo para fora de si e permita, assim,
que ele supere sua “falta” e resolva suas diferenças por meio de
uma identificação imaginária com a totalidade (Hall, 1996b). Na
modernidade, a representação simbólica do coletivo é quase inva-
riavelmente fragmentada e fraturada. Ela é composta de colagens e
montagens de múltiplas descrições alterfenomenológicas que
oferecem múltiplas descrições autofenomenológicas de uma
identidade potencial com a qual o grupo pode se identificar e a
partir da qual o grupo pode se constituir como uma comunidade
simbólica. Atualmente, as representações simbólicas dos
grupos são predominantemente veiculadas, expressas e difundidas
por meios de comunicação de massa, sob a forma de imagens
comerciais, produtos culturais e discursos ideológicos. As práticas
discursivas dos meios de comunicação de massa propõem “po-
sições-de-sujeito”, que projetam identidades culturais em telas
coletivas, que funcionam como espelhos althusseriano-lacanianos,
nos quais coletivos são representados e interpelados, “conclama-
dos” a se reconhecerem e se articularem como sujeitos coletivos.
Meios de comunicação de massa não são, entretanto, apenas
maquinarias de representação simbólica. São também maqui-
narias de mediação sociotécnica que interconectam os membros
de uma comunidade simbólica em uma rede, membros que
nunca estariam integrados em um quase-grupo potencial sem
a sua intervenção (Calhoun, 1991, 1992). Como tecnologias
de representação e mediação, as tecnologias da informação
e da comunicação são vetores tecnológicos que permitem o
“distanciamento” (Giddens) e a “compressão” (Harvey) do
tempo-espaço. Propiciando o desencaixe das relações de
copresença, os meios de comunicação recompõem e distribuem
as relações interpessoais de tal modo que pessoas separadas no
tempo e no espaço possam, não obstante, entrar em contato
umas com as outras (virtual ou efetivamente, direta ou indireta-
mente), formando uma rede social virtual passível, se necessário,
de ser ativada e mobilizada para defender interesses comuns,
identidades coletivas ou ideias compartilhadas. Mesmo que as
pessoas não se encontrem diretamente ou não se comuniquem
face a face, elas sabem que, graças aos vários meios de comuni-
cação, poderiam fazê-lo se desejassem. Em concordância com a

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concepção realista da sociedade, poderíamos dizer que são as
relações entre as posições sociais que condicionam e tornam
possível a emergência dos coletivos, entendidos como meca-
nismos gerativos que produzem movimento social. Mas, para
aparecerem no mundo da vida como quase-grupos estruturados
que podem ser mobilizados para reproduzir ou transformar
a estrutura e a cultura da sociedade de acordo com os inte-
resses, identidades e ideias que correspondem às suas posições
sociais, os coletivos têm de se constituir primeiramente como
comunidades simbólicas cujos membros estão virtualmente inter-
conectados através dos meios de comunicação.56
Os meios de comunicação funcionam como “meios simbó-
licos generalizados” (Parsons-Luhmann). Em teoria, eles nos
permitem pensar conjuntamente a “integração social” e a “integração
sistêmica” (Lockwood, 1964). Como cinturões de transmissão
que ligam o sistema global aos mundos da vida locais, eles são
as ferramentas ideais para a construção de articulações sistemá-
ticas entre relações sistêmicas entre posições sociais e ideias,
de um lado, e relações interpessoais e intergrupais, de outro.
Na medida em que estabelecem a mediação entre relações
interpessoais e permitem que pessoas e grupos que não estão
fisicamente copresentes, mas compartilham interesses e ideias em
virtude da posição que ocupam no sistema, entrem em contato
e se comuniquem, as mídias funcionam essencialmente como
sistemas sociotécnicos de integração social que permitem
aos atores coordenar suas ações por meio da comunicação,
mesmo fora de situações de interação. Isso é, sem dúvida,
aquilo que G. H. Mead tinha em mente quando sugeriu que a
sociedade deveria ser concebida, em última instância, como um
complexo organizado de processos e atividades cooperativas de
desempenho de papéis, as quais se tornam conscientemente
coordenadas e funcionalmente integradas quando cada um dos
indivíduos assume a atitude do “outro generalizado” e dirige seu
comportamento de acordo com tal atitude, entrando assim “em
relações sociais definidas (não importa quão indiretas) com um
número quase infinito de outros indivíduos” (Mead, 1934: 157).

COMUNIDADES IMAGINADAS
Tomando de empréstimo um conceito que teve grande
impacto no campo emergente dos estudos culturais, poderíamos

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dizer, com Benedict Anderson (1983), que os meios de comu-
nicação produzem “comunidades imaginadas”. Comunidades
imaginadas não são comunidades imaginárias, como aquelas que os
filósofos analíticos e economistas gostam de inventar, mas
coletivos taxonômicos que se referem a comunidades possíveis
compostas por pessoas que compartilham uma característica
diacrítica comum, que as diferencia de outras comunidades.
Em suas reflexões acerca da origem e difusão do nacionalismo,
Anderson deixa bastante claro, desde o início, que comunidades
imaginadas, como as nações – mas poderíamos facilmente estender o
conceito para abarcar classes, grupos étnicos, minorias sexuais
e outros agrupamentos políticos e culturais57 –, não são grupos,
mas quase-grupos. “A comunidade é imaginada”, diz ele, “porque
mesmo os membros da menor nação não irão jamais conhecer a
maior parte dos demais membros, encontrá-los ou mesmo ouvir
falar deles, ainda que nas mentes de cada um viva a imagem da
sua comunhão” (Anderson, 1983: 6). Reforçando este ponto, ele
adiciona imediatamente: “De fato, todas as comunidades mais
amplas que aldeias primordiais de contato face a face (e talvez
até mesmo estas) são imaginadas” (Anderson, 1983: 6).
Anderson encontra o modelo da construção social das
nações na construção das classes; não das classes trabalhadoras,
entretanto, mas da burguesia: “Em termos histórico-mundiais, as
burguesias foram as primeiras classes a adquirir solidariedade
em uma base essencialmente imaginada” (Anderson, 1983: 77).
Graças às imagens e aos discursos publicados nos jornais e
revistas, os burgueses foram capazes de visualizar a existência de
milhares e milhares de donos de propriedades como eles. Graças
à mídia impressa, relações potenciais entre, digamos, um dono
de fábrica em Manchester e um em Rochester ou Leeds puderam
ser imaginadas. Mais tarde, quando os donos de propriedade
se organizaram na Confederação da Indústria Britânica para
defender seus interesses corporativos, as relações que eles haviam
antecipado na imaginação seriam efetivamente realizadas. Se
introduzo esse exemplo imaginário, é para avançar duas ideias
teóricas: primeiramente, a passagem de categorias a grupos estru-
turados pressupõe o estabelecimento de relações entre pessoas;
e, em segundo lugar, as relações entre pessoas não têm de ser
diretas, mas podem ser indiretas e mediadas por tecnologias de
comunicação, informação e transporte, da voz ao táxi, do telefone
celular ao avião.

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Relações entre pessoas são sempre mediadas por uma inter-
face técnica (ela mesma o resultado do metabolismo do ser hu-
mano com a natureza, o qual tem também sua própria história).
Combinando os aspectos material, social e cultural da transmissão
de ideias, identidades e interesses, Régis Debray (1991) introduziu
a noção de “midiosfera” para analisar os intercâmbios ecológicos
entre as mídias e seus ambientes ao longo das eras. Meios de
comunicação não são apenas vetores tecnológicos de transmissão
cultural; eles impõem uma certa visão de mundo, configuram
um certo modo de pensar, condicionam as formas possíveis
de sociabilidade e moldam a política da era determinada. Cada
época tem seu próprio meio dominante, que condiciona a forma
das ideologias, práticas e instituições dominantes de seu tempo.
McLuhan estava certo: o meio é o mensageiro, o mensageiro é
a mensagem, portanto o meio é a mensagem. A invenção da
mídia impressa (meio) no século XV mudou o locus do poder da
Igreja para os intelectuais (mensageiros), e esta mudança tectônica
levou à emergência da esfera pública nos séculos XVII e XVIII; de
modo similar, a invenção da televisão (meio) na primeira metade
do século XX mudou o locus do poder dos intelectuais para os
jornalistas (mensageiros) na segunda metade desse mesmo século,
com o declínio da esfera pública (Öffentlichkeit) e a emergência
da publicidade como consequências (mensagem). A invenção
da escrita, a mídia impressa e, mais próximos de nós, o rádio, a
televisão e a Internet alteraram dramaticamente a vida intelectual,
a opinião pública e a política. Debray discute extensamente a
“logosfera”, a “grafosfera” e a “videosfera”, mas tem pouco a dizer
sobre a “hiperesfera” – possivelmente devido ao fato de que ele
não usa computador e ainda escreve seus livros à mão.

REDES DE CIMA A BAIXO


Dado que a Internet tornou possíveis novas formas de asso-
ciação flexível que permitem a coordenação da ação coletiva
em uma escala global, a hiperesfera merece, no entanto, mais
atenção. A comunicação mediada por computador (CMC) não
permitiu apenas a transmissão de informação e a comunicação
à velocidade da luz ao longo de fronteiras tecnológicas, sociais
e geográficas, mas também deu origem a novos tipos de iden-
tidades e comunidades. Talvez ainda mais importante para o
tópico em vista, os telefones celulares, as tecnologias de fluxo

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contínuo, a Internet e as redes sem fio também estimularam a
emergência de uma rede global de redes que interconecta ONGs
internacionais, redes de advocacia, movimentos sociais, organi-
zações comunitárias, igrejas, sindicatos, intelectuais e jornalistas
em movimentos sociais globalmente orientados que levaram a
imensas mobilizações episódicas de resistência (Bennett, 2003,
2005; Langman, 2005).
“Seattle”, ou a resposta organizada ao AMI (Acordo Multila-
teral de Investimentos), que pretendia subordinar a política dos
Estados-nação em todo o mundo aos interesses mercadológicos
do grande capital (Freitag; Pinault, 1999), prova que, sob a
pressão das circunstâncias, a comunicação mediada por compu-
tador pode difundir discursos militantes e planos de ação que
possibilitam a interconexão de ativistas dispersos em todo o mun-
do. A “batalha de Seattle” não foi um evento espontâneo, mas a
conclusão altamente organizada e publicizada de uma sequência
de meses de intensa formação e mobilização de redes via Internet
(Internetworking), nas quais estava envolvida uma multiplicidade
de movimentos sociais (nacionais) e redes (transnacionais) em
diferentes escalas e níveis (Johnston; Laxer, 2003).
Protestos espetaculares de alto nível, como o de Seattle,
ou aqueles que agora acompanham as reuniões dos líderes
mundiais, capturam a atenção dos meios de comunicação de
massa e a imaginação de simpatizantes em todo o mundo. Falando
metaforicamente, tais protestos nessas reuniões são como uma
festa rave bem frequentada que ocorre no topo de uma monta-
nha onde está fincada uma bandeira com as cores do arco-íris
(bandeira que corporifica, expressa e simboliza a “unidade na
diversidade” do movimento coletivo). Abaixo do topo, mas ainda
acima das nuvens, achamos uma configuração bem mais ampla de
práticas mais dispersas e menos publicizadas. Enquanto milhares
de ativistas agitados estavam lutando em Seattle e aparecendo na
televisão, protestos de massa simultâneos estavam acontecendo
em mais de cinquenta cidades em todo o mundo, de Londres a
Nova Déli, de Seul a Manila.
Mais abaixo da montanha, sob as nuvens, achamos os
campings e as barracas das organizações de movimentos sociais,
as OMSs da teoria da mobilização de recursos (Zald; McCarthy,
1987), que organizaram os protestos (bem como os contra-
protestos que ocorreram simultaneamente no outro flanco da

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montanha).58 Este é o nível da “indústria de movimentos sociais”
que organiza as campanhas, recruta os “adeptos” (simpati-
zantes) e mobiliza os “integrantes” (ativistas) para a ação. Aqui
achamos uma grande variedade de organizações e redes de ati-
vistas que mobilizam e controlam recursos, especialmente tempo,
dinheiro e trabalho, mas também o capital social de conexões que
podem ser ativadas, bem como seus porta-vozes. É também o
local no qual as ligações com outros movimentos sociais, grupos,
associações e redes de todos os matizes são estabelecidas através
de contínuas práticas de “reticulação” e “articulação” entre os
ativistas. Diferentemente dos velhos movimentos sociais do
passado, como o movimento dos trabalhadores, os novos movi-
mentos sociais do presente formam um grupo heterogêneo, uma
espécie de coalizão arco-íris59 que perpassa categorias (as lésbicas,
os fazendeiros, os índios, os trabalhadores etc.) e fronteiras (local,
nacional, transnacional, global). Os membros frequentemente
pertencem a diferentes redes. Conexões cruzadas (cross-linkages)
entre grupos em diferentes níveis, bem como negociações entre
seus porta-vozes, formam a base estrutural de coalizões globais.
Quando as redes estão interligadas em coalizões e a ação coletiva
destas coalizões é, por sua vez, coordenada em um nível mais
alto, uma “mudança de escala” ocorre (Tarrow, 2005: 99-140).
Os movimentos sociais estão hoje flexivelmente integrados em
uma rede de redes em expansão, colados uns aos outros pelos
múltiplos pertencimentos dos seus membros e pelas práticas
articulatórias de seus porta-vozes.60
Finalmente, na base da montanha, encontramos os milhões,
se não bilhões, de simpatizantes e adeptos que acreditam nos
objetivos do movimento e apoiam suas ações.61 Eles não aderiram
aos protestos, ao menos não dessa vez, mas, como uma massa
crítica, constituem uma reserva de forças capilares que o movi-
mento pode arregimentar e que pode ser ocasionalmente mobi-
lizada para defender os interesses, ideias ou identidades gerais
que o movimento representa por delegação. Dispersos como um
rizoma, os adeptos formam uma “rede submersa” (Mellucci, 1989:
70-73) na vida cotidiana, rede que pode ocasionalmente emergir
do subsolo e formar um denso “grupo em fusão” (Malraux-Sartre)
para confrontar uma autoridade pública em um dado assunto,
defendendo os interesses, ideias e identidades do movimento.
Seguindo Sartre (1960: 381-431), “grupos em fusão” podem ser

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concebidos mais genericamente como comunidades intencionais
e práticas mobilizadas ao redor do projeto coletivo de luta em
comum contra as estruturas “prático-inertes” de dominação.

A HUMANIDADE EM AÇÃO
A conexão entre a base e o topo é grandemente facilitada pela
comunicação mediada por computador. Do mesmo modo que a
imprensa do século XVIII foi instrumental na superação do caráter
episódico e localizado do protesto popular, facilitando a formação
de coalizões em uma escala nacional (Tarrow, 1994: 48-61), os
meios de comunicação de massa do século XX, e acima de tudo a
televisão, tornaram possível uma imensa sincronização de mentes
e desempenharam um papel central na formação de comunida-
des imaginadas globais, como a aldeia global de McLuhan, que
inclui todos os habitantes do planeta em uma comunidade de
destino autoconsciente.62 Se a televisão torna possível a sincro-
nização de mentes, a Internet permite a coordenação eficiente
de ações coletivas através do espaço. Redes eletrônicas ligam
indivíduos a movimentos e também os movimentos uns aos ou-
tros. Listas de e-mail, por exemplo, permitem uma interconexão
instantânea de mentes (on-line) que pode ocasionalmente levar a uma
congregação em massa de corpos (off-line) em uma manifestação
de protesto. “É a capacidade de movimento fácil de relaciona-
mentos online para relacionamentos off-line que torna possível
a mudança de escala do ativismo transnacional” (Bennett, 2005:
205).
Comparados com os movimentos mais centralizados do
passado, movimentos sociais articulados e mobilizados via
Internet (Internetworked) apresentam um grau notável de flexibili-
dade organizacional e fluidez estrutural. No ponto mais extremo,
podem até dispensar completamente uma liderança, ainda que
provavelmente não o uso de porta-vozes. Negri e Hardt, os
talentosos porta-vozes das frações anarco-comunistas das redes
de ação direta, sugeriram que as novas lutas da multidão estão
tomando a forma de uma matriz de redes distribuídas que são
simultaneamente fluidas, coletivas e individualistas, não apresen-
tando uma hierarquia organizada de comando:

ão há centro e todos os nós podem se comunicar diretamente


N
uns com os outros (...) A rede distribuída pode ser imaginada

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como um formigueiro ou um enxame de abelhas – uma multi-
plicidade aparentemente amorfa que pode atacar em um único
ponto a partir de todos os lados ou se dispersar no ambiente de
modo a tornar-se quase invisível (Hardt; Negri, 2004: 57).

Baseada na comunicação entre nós sem núcleo ou centro, a


inteligência-enxame da multidão pode ser caracterizada como
policéfala (ainda que não exatamente no sentido pretendido por
Husserl quando este disse que a intencionalidade coletiva da
personalidade de ordem superior tinha várias cabeças).
Os novos meios de comunicação contribuem para a
organização de diferentes movimentos sociais (anticapitalistas,
eco-pacifistas, feministas, gays e lésbicas etc.) e ajudam-nos a se
reunirem em um único, embora flexivelmente articulado, movi-
mento social global que pode contrafactualmente representar a
humanidade e advogar seus interesses (Brunkhorst, 2002). Desse
ponto de vista, o assim chamado movimento antiglobalização do
século XXI aparece como o legítimo sucessor do movimento da
classe trabalhadora do século XIX e talvez até do proletariado
como o “sujeito-objeto idêntico” da história. Ainda que ele fale com
muitas vozes e possua muitas cabeças, pode muito bem
representar a encarnação contemporânea do Weltgeist. Ele
não está mais sentado em um cavalo branco e entrando
triunfalmente na cidade de Iena, mas se manifestando nas ruas
de Seattle, Davos e Gênova e fazendo aparições episódicas no
Fórum Social Mundial em Porto Alegre, Mumbai e Caracas. Inter-
conectando todos os indivíduos que se sentem preocupados com
o estado do mundo (do planeta) em uma rede oculta, dispersa e
virtual que pode ocasionalmente se centrar e se manifestar como
um “grupo em fusão”, a rede global de redes trabalha como um
poderoso meio para liquidar a “serialidade” do coletivo e inter-
conectar os indivíduos em um grupo de ação consciente de si e
capaz de ação coletiva comum, agora ou no futuro. “Estamos aqui
agora, estávamos lá antes e estaremos juntos no futuro. Somos
um movimento” (Eyerman, 2006: 196).

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A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
E O PAPEL DOS PORTA-VOZES

CATEGORREDES E PORTA-VOZES
Se a representação e a visualização do coletivo pelos membros
do grupo transformam o coletivo em uma comunidade simbólica,
a mediação tecnológica, que conecta potencialmente os membros
de uma comunidade em uma rede latente e dispersa, transforma
esta rede em um quase-grupo serial que pode, por vezes, se
manifestar como um grupo em fusão. A representação simbólica
e a mediação tecnológica são dois momentos necessários, ainda
que insuficientes, da estruturação de coletivos. Para tornar-se
um “grupo triplo ‘I’” real com interesses, ideias e uma identidade
que persiste através do tempo, o quase-grupo necessita de uma
estrutura organizacional que transforme o grupo mobilizável em
um grupo mobilizado, capaz de agir “como um único homem”,
tomando decisões que implicam o compromisso do grupo como
um todo.
Ao se organizar, o grupo estabiliza, canaliza e externaliza
permanentemente as energias fundidas em uma instituição social,
a qual mantém o poder causal do grupo em estado de prontidão e
garante, a quase todo momento, a possibilidade de uma práxis
coletiva futura dirigida contra as estruturas reificadas da sociedade.
Sartre (1960: 440) está certo: “Contra a serialidade que ameaça
dissolvê-lo, o coletivo tem de criar uma inércia artificial que o protege
da ameaça do prático-inerte.” Essa inércia artificial que protege contra
a inércia é a organização. Sartre pensa a organização como uma
entidade, mas ela também pode ser concebida como um processo
que reforça a identidade comum do coletivo ao mesmo tempo
que unifica sua estrutura. A organização soluciona e dissolve o
problema de Harré: ela efetivamente transforma categorias de
pessoas que compartilham alguma característica comum em
redes de pessoas ligadas umas às outras, direta ou indiretamente,
por um tipo específico de ligação interpessoal. Acatando uma
sugestão de Harrison White, Charles Tilly (1978: 62-64) introduziu
o exótico conceito de “categorredes” (catnets )63 na pesquisa sobre
movimentos sociais para referir-se a grupos de indivíduos que
compõem tanto uma categoria quanto uma rede. Categorredes

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são fortes quando combinam um alto grau de identidade comum
(“alta categoricidade”) com um alto grau de interconectividade
(“alta densidade de rede”).
Já analisei a construção social de identidades categoriais
que transformam o coletivo em uma comunidade simbólica
(alta categoricidade), bem como as mediações tecnológicas que
permitem a coordenação de ações dispersas e a formação de um
quase-grupo (densidade de rede baixa a média). Quero agora
concluir este capítulo com algumas considerações finais sobre
o papel dos porta-vozes na organização do coletivo (alta densi-
dade de rede). A noção de “porta-voz” não pretende resgatar o
partido de vanguarda leninista (que representaria o interesse de
uma classe que não pode representar a si mesma), mas busca
oferecer uma modesta contribuição à teoria da mobilização de
recursos.64 Tomando livremente de empréstimo a Pierre Bourdieu
e Bruno Latour algumas ideias sobre o papel do porta-voz (Pels,
2000), gostaria de defender a tese de que a transformação do
quase-grupo em um “grupo triplo ‘I’” fortemente organizado e
empiricamente existente como uma instituição, organização ou
corporação nos níveis meso e macro da sociedade, é resultado
do trabalho de representação política do coletivo por porta-vozes.

A VOZ DA REDE
O poder de um porta-voz é, em larga medida, metonímico,
como Keck e Sikkink (1998: 207) observaram: “A rede-como-ator
deriva um alto grau de sua eficácia da rede-como-estrutura.”
Um porta-voz condensa a rede. Falando em seu nome, ela
– vamos assumir, pelo menos desta vez, que se trata de uma
mulher negra – dá voz à rede.65 Redes são estruturas comuni-
cativas. Ainda que necessitem de um mínimo de consenso para
coordenar as ações de seus diferentes membros (ou “nós”
– membros também podem ser grupos), elas não deveriam ser
pensadas como antiquadas caixas de música habermasianas com
apenas um tema musical armazenado. A comunicação não exclui,
mas pressupõe e inclui a articulação de diferenças em busca de uma
linguagem e posição comuns. A busca crítica do que é “idêntico na
aparente diversidade de forma e do que é distinto, e mesmo
oposto, na aparente uniformidade” resulta em “fórmulas de unidade e
federação” que “organizam e interconectam intimamente o

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que é similar” (Gramsci, 1971: 190-191). Muito do que se passa
dentro das redes concerne à formação de um consenso viável,
através da articulação de diferenças e similaridades. Quando uma
posição divergente entre os membros emerge, a discussão
pretende alargar o frame 66 de modo a abarcar progressi-
vamente o ponto de vista do dissidente em um novo consenso. Na
pesquisa sobre movimentos sociais, tais práticas interpretativas
que ligam interativamente posições divergentes, transformando-as
em posições congruentes e complementares que superam o “dife-
rendo” (o différend de Lyotard), podendo, consequentemente, ser
defendidas e assumidas por todos os integrantes, são chamadas
de “alinhamento de frames” (Snow et al., 1986).67
Alinhar frames significa defini-los, redefini-los, refiná-los
ou ajustá-los categorialmente, de modo tal que os elementos
eventualmente se harmonizem e caminhem juntos de uma
forma relativamente unificada e significativa, que possa ser aceita
como um consenso factível pelos protagonistas sem comprometer
sua posição moral ou sugar sua energia emocional. A “conexão
entre frames” (a articulação de dois ou mais frames ideologi-
camente congruentes, mas estruturalmente desconectados, como o
combate ao desmatamento e a defesa do desenvolvimento
regional, por exemplo) e a “extensão de frames” (extensão de
fronteiras dos frames originais de modo a incluir diferentes
questões e abarcar outros membros) são as principais rotas que
levam ao realinhamento dos protagonistas. Processos de nego-
ciação e articulação que buscam realinhar os protagonistas e
seus discursos não ocorrem apenas no interior das redes, mas
também entre redes, que são assim unidas em um novo “bloco”,
i.e., “uma unidade de opostos e de distintos”, para falar como
Gramsci (1971: 137).
Porta-vozes que representam, formulam e traduzem as
posições de suas respectivas redes frequentemente têm de
articular e negociar, reformular e refrasear sua posição antes
de entrarem em acordo sobre uma plataforma comum de ação.
Como artifícios de organização e articulação, os discursos de
direitos humanos ou, mais recentemente, aqueles sobre justiça
global, têm sido bastante instrumentais como frames suficien-
temente amplos para reunir diferentes movimentos (representando
mulheres, gays e lésbicas, deficientes, minorias étnicas,
movimentos indígenas e os trabalhadores explorados do “terceiro

246

teorial social realista.indb 246 27/1/2010 11:22:55


mundo”) sob um único guarda-chuva e para alinhá-los em uma
coalizão arco-íris que fala com uma voz. “A ‘voz’ da rede não
é a soma dos seus componentes, mas o produto da interação
de vozes (e diferente da voz particular de qualquer membro da
rede)” (Keck; Sikkink, 1998: 207).
Comparadas com os velhos e novos movimentos sociais do
último século, as redes transnacionais de hoje são muito mais
heterogêneas, flexíveis e fluidas em sua infraestrutura (“redes
distribuídas”) e muito mais abertas, inclusivas e tolerantes em suas
identidades (“unidade na diversidade”). As diferenças são agora
aceitas e encorajadas, reinterpretadas como um recurso e não mais
como uma desvantagem. As redes transnacionais atuais também
são mais democráticas, individualistas e anarquistas. Contrastando
a primeira geração do ativismo transnacional descrita por Keck e
Sikkink (1998) com o ativismo direto da segunda geração, Lance
Bennett argumenta que as redes ativistas flexíveis (que adotam
tecnologias organizativas mediadas por computador) buscam
advogar múltiplas causas e assumir identidades flexíveis

ão apenas para desafiar formas organizacionais anteriores de


n
ativismo transnacional. Estas redes também desafiam teorias de
movimentos sociais que se concentram em coalizões agenciadas,
enquadramento ideológico e identidades de movimentos coletivos
construídas em torno da política nacional (Bennett, 2005: 213).

Qualquer que seja o nível em que desconfiem de autoridades


e lideranças, defendo que elas não podem, entretanto, dispensar
completamente o uso de porta-vozes. Estes são inescapáveis, mas
sua existência pode ser democratizada de modo a permitir
formas mais flexíveis de construção do consenso. A comuni-
cação não é apenas um procedimento (como em Habermas)
para se chegar a um consenso, mas também uma arte e uma
técnica. As redes de ativistas desenvolveram toda uma gama
de técnicas e instrumentos inovadores, tais como conselhos de
porta-vozes (spokescouncils), técnicas de discussão pública em
“aquários” (fishbowls) e monitores de emoções dos participantes
(os chamados vibe-watchers), por exemplo, que facilitam a
formação de consenso sem sufocar vozes dissidentes.68 Ainda que
as porta-vozes estejam agora multiplicadas e possam falar com
muitas vozes, elas ainda devem almejar ao caminho moralmente
superior e aspirar à formação de um consenso que seja mais do
que um interesse particular.

247

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A REALIZAÇÃO PERFORMATIVA DO COLETIVO
A representação é em larga medida metonímica, conden-
sando a rede na pessoa que a corporifica. Ela também tem
um forte efeito performativo que acrescenta seu próprio poder
simbólico ao poder do grupo.69 O próprio ato de representação é
também um efeito de trans-substanciação – ao invocar o grupo, a
porta-voz busca evocá-lo e trazê-lo à existência. Representando o
grupo e falando em seu nome, a porta-voz o chama à existência.
Como uma representante oficial do grupo, ela produz e realiza
o grupo, que a autoriza por delegação a representá-lo sob a for-
ma de instituições, organizações e corporações que existem no
espaço e perduram no tempo. A porta-voz representa o grupo
“em pessoa”, como os fenomenólogos gostam de dizer, agindo
como uma mediadora entre os membros do grupo e o grupo:
na ausência dos primeiros, ela fala em seu nome e os torna
presentes; ao representá-los, ela “presentifica” o grupo (se me
permitem este heideggerianismo). Por delegação, ela torna o
coletivo visível, quase tangível, e afirma e defende suas ideias,
interesses e identidades em público. Essa representação do gru-
po por sua representante dá uma visibilidade permanente ao
grupo e, na verdade, o traz à existência não apenas para os seus
membros, mas também para aqueles situados em outros grupos.
Seguindo a importante análise da formação da categoria
profissional dos cadres (executivos) feita por Luc Boltanski
(1982), podemos utilizar fecundamente a polissemia da noção de
representação para teorizarmos acerca do poder de delegação.
A visibilidade de um coletivo, como os cadres ou outros grupos
que são designados por um único substantivo, é o resultado final
de um longo e paciente trabalho de objetivação que finalmente
canaliza as representações mentais, sociais e legais do grupo para
a sua representação política, fazendo-o através da delegação:

[ Os cadres] são o produto de um esforço social de representa-


ção aplicado não apenas ao reino das representações mentais
(categorias de pensamento e esquemas de percepção do mundo
social) e das representações sociais (no sentido que a psicologia
social estadunidense confere ao conceito de "apresentação" ou
"exibição"), mas também ao reino da representação política no
sentido da “delegação”, através da qual um grupo se equipa com
porta-vozes oficiais autorizados a falar e a agir em seu nome,

248

teorial social realista.indb 248 27/1/2010 11:22:55


a corporificarem-no na luta com outros grupos e outras classes
(Boltanski, 1984: 484).70

Graças à delegação conferida à porta-voz, que personaliza o


coletivo e o representa política e legalmente em situações de
interação, o coletivo se manifesta e se realiza não apenas in rerum
natura como um supraindivíduo, mas também como uma entidade
personificada que não é apenas uma ficção coletiva, existindo
somente em algum lugar nas cabeças dos indivíduos. Autorizada
pelos membros do grupo que ela representa, a porta-voz objetiva
o grupo e o transforma em uma organização ou corporação (a
universitas personarum da Lei Romana). Legalmente reconhecida
pelo Estado, que a considera como uma pessoa moral, a organi-
zação torna-se um agente social autorizado capaz de agir como
uma pessoa supraindividual.
Se os coletivos existem in potentia no nível macro, as organizações
existem in actu no nível meso. Escritórios, secretarias, mesas,
telefones, caixas de correio, papel oficial timbrado, listas de
e-mail dos membros, reuniões regulares, discussões reguladas e
assim por diante – tal como a própria porta-voz –, todos estes
índices materiais do grupo organizado estão disponíveis para
inspeção e podem ser vistos e checados diretamente no local.
Ninguém, nem mesmo o positivista radical ou o empiricista bem
financiado, negaria sua existência – o que não significa, é claro,
que sua legitimidade tenha de ser aceita de modo acrítico. Como
uma representante do coletivo, a porta-voz age em microssituações,
mas, autorizada pelo coletivo organizado, suas ações podem de
fato ter um impacto considerável no nível macro. A porta-voz é,
portanto, um “mega-ator” (Mouzelis, 1995: 16-18), i.e., um indi-
víduo corporativo que pode mobilizar recursos organizacionais
importantes e cujas decisões localmente situadas transcendem
as situações locais de ação, afetam a organização e podem até
transformar o sistema social. É devido ao fato de que a porta-voz
é uma intermediária entre o grupo e seus membros que ela pode
funcionar como uma mediadora entre os níveis micro e macro
da sociedade. Como uma personificação do poder causal do
coletivo, ela corporifica e representa a organização do coletivo
e, falando em seu nome, representa, realiza e reifica performa-
tivamente o coletivo. Ele já existia potencial e virtualmente, mas
agora, graças às ações da porta-voz, seu potencial é atualizado.

249

teorial social realista.indb 249 27/1/2010 11:22:55


Aparecendo na sociedade como uma comunidade organizada que
pode ser mobilizada ocasionalmente e mobilizar seus membros
como um grupo em fusão, o coletivo aparece agora “como se”
sempre houvesse existido como um corpo organizado capaz de
ação coletiva comum.

BOURDIEU: VOX POPULI


Em sua teoria “realista-construtivista” da construção social das
classes, Pierre Bourdieu (1984d; 1987) ressalta o papel consti-
tutivo de porta-vozes. A porta-voz intervém como uma espécie
de hífen vivo que permite ao autor conectar sua teoria realista das
classes, entendidas como categorias teóricas ou taxonômicas que
existem “no papel”, a uma análise mais construtivista que concebe
classes como grupos práticos que existem e se manifestam na
sociedade. Falando em nome do grupo, as palavras da porta-voz
possuem a qualidade mágica das invocações que “performam”
o coletivo e trazem-no à existência, não como uma categoria
analítica construída pelo observador (“classe-em-si”), mas como
um grupo empírico, intencionalmente constituído pelos atores
(“classe-para-si”) e reconhecido por outros grupos organizados,
o qual realiza, atualiza e exerce o poder coletivo do grupo.
Mesmo que as categorias analíticas estejam fundadas na realidade,
elas ainda necessitam da intervenção da porta-voz para atualizar
seu potencial, realizar a teoria e transformar o coletivo em uma
força histórica efetiva, capaz de intervir no mundo “com vontade
e consciência” (Marx).71 “Em outras palavras”, diz Bourdieu ao
resumir sua análise com uma referência ao trabalho de seu antigo
assistente sobre os cadres (Boltanski, 1982),

oder-se-ia mostrar que, inclusive para outras categorias, como


p
o proletariado ou os professores, para deixar a existência serial
para trás e ter acesso à existência coletiva, não há nenhum outro
caminho além da passagem pelo porta-voz (Bourdieu, 1984c: 50).

Ainda que Bourdieu tenha corretamente percebido que


a porta-voz utiliza o poder de delegação para representar o
grupo e torná-lo visível ao mobilizá-lo, deve-se, entretanto, notar
também que suas análises são significativamente enfraquecidas,
epistemologicamente, por um manifesto ceticismo, bem como,
politicamente, por um populismo latente. O ceticismo de Bourdieu

250

teorial social realista.indb 250 27/1/2010 11:22:55


está manifesto no fato de que ele nunca considera coletivos, como
a nação, o povo ou o proletariado, como atores hipotéticos, mas
sim como atores hipostasiados. Para subverter e corrigir essa veia
nominalista em seu trabalho, suas análises construtivistas devem
ser reformuladas em uma perspectiva realista. Isto não significa
que se deva tomar a existência dos coletivos como garantida e
introduzi-los sem crítica na análise. Ao contrário, deve-se analisar
suas condições de possibilidade e investigar as mediações de
sua atualização. O populismo latente de Bourdieu se expressa
em sua crítica desconstrutiva do fetichismo da delegação política
(Bourdieu, 1984c), bem como em algumas de suas intervenções
na esfera pública (Bourdieu, 2002a: 81 et seq., 159 et seq.).72
Na tradição de Roberto Michels e outros teóricos das elites
oriundos da esquerda e da direita, ele parece pensar que formas
complexas e efetivas de organização estabelecidas para mobilizar
o povo darão às porta-vozes novos interesses para avançarem e
defenderem, bem como que estes novos interesses irão necessa-
riamente entrar em conflito com os interesses que estas porta-vozes
deveriam representar e defender em primeiro lugar (“lei de ferro da
oligarquia”). A alternativa forçada que ele enxerga entre a
“demissão por abstenção” e a “espoliação por delegação” mostra
que ele considera a delegação como uma alienação política da
maioria silenciosa pela porta-voz. Ao invés de dar voz àqueles
que estão destituídos dela, a porta-voz toma seu voto, sua voz e
seu silêncio. Assim, ela não apenas priva os membros do grupo
de suas vozes, mas também privatiza tais vozes, utilizando-as
publicamente para fazer avançar seus próprios interesses. Como
resultado dessa desconfiança de princípio em relação à represen-
tação e à delegação, Bourdieu é levado a considerar a porta-voz
como uma impostora, usurpadora e ventríloqua que não fala em
nome dos membros do grupo, mas no lugar deles.

oda uma série de efeitos simbólicos que aparecem todo dia na


T
política baseiam-se nessa espécie de ventriloquismo do usur-
pador, que consiste em fazer com que falem aqueles em nome
de quem se fala, em fazer com que falem aqueles em nome de
quem se está autorizado a falar, em fazer com que fale o povo
em nome de quem se está autorizado a falar (Bourdieu, 1984c: 52).

Para afastar a desconfiança diante da democracia represen-


tativa e o populismo que lhe é concomitante, deve-se analisar

251

teorial social realista.indb 251 27/1/2010 11:22:55


o papel da representante a partir da perspectiva da democracia
deliberativa oriunda da teoria do discurso (Habermas, 1990).
Deve-se analisar não tanto as condições de impossibilidade da
representação democrática do poder, mas as condições proce-
dimentais de possibilidade de instituição de um poder legítimo
que não confiscaria a voz do povo, mas a exprimiria, de modo
contrafactual e representativo, ao se colocar a serviço do inte-
resse geral. Ao reformular a análise bourdieusiana da porta-voz
em uma perspectiva realista e radicalmente democrática, pode-se
mostrar como ela consulta os membros, como eles alcançam
um consenso que “articula” a vontade coletiva e como essa
prática discursiva não apenas legitima a porta-voz, mas também
contribui performativamente para a organização política do
coletivo que busca reformar democraticamente a sociedade e
eliminar as estruturas de dominação que não tanto exprimem
como reprimem o interesse geral dos adeptos.73

LATOUR: O PARLAMENTO DAS COISAS


Radicalizando o nominalismo que subjaz à crítica populista
do fetichismo político, Bruno Latour adiciona seu maquiavelismo
ao nietzschianismo de Bourdieu e expõe seu antigo orientador
como um impostor que exerce um efeito de dominação ao
promover-se como um porta-voz dos dominados – “eu sou o
porta-voz, o arauto de um coletivo oprimido que não pode
falar” (Bourdieu, 2002b: 232). Quando Bourdieu define “as forças
invisíveis que manipulam os atores” e faz isso em nome da ciência
e “no lugar dos atores”, ele fala como um cientista e, dando voz
às estruturas ocultas de dominação, assume um privilégio episte-
mológico, silenciando assim, do alto de sua cátedra, o ignorante
(Latour, 1998). Nessa perspectiva ultrabourdieusiana, a sociologia
crítica é desmascarada como uma pérfida continuação da política
da dominação que continua a luta de classes no plano da teoria,
de modo a fazer avançar seus próprios interesses e estender seu
poder sobre o campo acadêmico e para além dele.
Para foucaultianos, latourianos e outros deleuzianos, conheci-
mento e poder são a mesma coisa, embora vista de perspectivas
diferentes. Quando cientistas falam em nome da natureza ou da
sociedade, eles o fazem de modo a inseri-las em um ator-rede
em expansão, que cresce em tamanho e torna-se eventualmente

252

teorial social realista.indb 252 27/1/2010 11:22:55


um poderoso ator macrossocial que estende seu império sobre
o mundo. A partir desse ponto de vista estratégico, a ciência é a
continuação da política por outros meios, como disse Althusser
(1969) a respeito do pensamento de Lênin. Quando cientistas
transportam seus aliados humanos e não humanos para seus
laboratórios e os manipulam, eles o fazem para simplificar a realidade
e representá-la cientificamente sob a forma de números, gráficos,
estatísticas, palavras etc., os quais irão posteriormente inserir em
seus artigos e livros. Uma vez que as entidades tridimensionais
do mundo lá fora estejam transpostas, transformadas, planificadas,
simplificadas e representadas em textos, o mundo é, para todos
os efeitos, “reduzido a papel” (Latour, 2002: 242).
O cientista que fala em nome da ciência pode articular a palavra
ao mundo (the word to the world). Dando voz a humanos e não
humanos, ele representa-os científica e politicamente. Através
da ciência, o cientista torna-se porta-voz de humanos e não
humanos, dando continuidade à tarefa política de construção
do coletivo – embora o coletivo seja agora concebido como uma
rede sociotécnica que associa experimentalmente humanos
e não humanos (os chamados “actantes”) – em uma hetero-
gênea comunidade e coletividade socionatural pós-humana.
Como diz Latour em Politiques de la nature, congratulando a
si mesmo por haver desconstruído todas as oposições (entre
ciência e política, fatos e valores, natureza e sociedade, tecnologia
e sociologia) ao misturar e articular humanos e não humanos em
uma rede sociotécnica: “Descobrimos o que a ciência e a política
têm em comum: misturar as entidades do coletivo de modo a
articulá-las e fazê-las falar” (Latour, 1999a: 132).
Do mesmo modo que se deve reempregar a análise de
Bourdieu em uma perspectiva realista e democrática, pode-se
“refuncionalizar” a teoria do ator-rede em um quadro de referência
humanista e empregá-la em uma teoria crítica da globalização em
avanço na modernidade tardia (Vandenberghe, 2006a). Quando
se analisa a teoria do ator-rede sob a perspectiva do realismo
crítico, entende-se que ela é, na realidade, uma teoria empiri-
cista que associa livremente humanos e não humanos em redes
sociotécnicas. Concebendo a sociedade como uma associação
e concatenação de actantes, ela elimina seus níveis sistêmicos,
reduzindo-a a uma relação sintagmática entre actantes (juntos,
Thoreau e sua cadeira formam agora um tipo de associação).

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À la limite, estou preparado para conceder a Latour que redes
sociotécnicas podem ser concebidas como sujeitos coletivos
que constroem associações e produzem organizações, mas não
se deve, entretanto, esquecer que as redes que performam e
transformam a sociedade estão alojadas no interior da mesma.
Ao invés de reduzir a sociedade a uma rede que existe no nível
meso e é construída no nível micro, deve-se reinserir a rede na
sociedade e mostrar que as relações empíricas entre os actantes
são sempre condicionadas e “sobredeterminadas” por relações
estruturais e culturais mais inclusivas presentes no nível sistêmico
da sociedade. Desde que não trabalhemos com uma ontologia
social plana, reduzindo-a a uma ordem interacional ou institu-
cional, podemos incorporar a análise performativa da construção
sociotécnica da sociedade a uma análise realista e dialética da
estruturação dos coletivos e de sua consequente transformação
em grupos organizados.
Se deixarmos calmamente de lado as provocações da excên-
trica ontologia vitalista e pós-humanista de actantes rizomáticos
que Latour propõe, podemos aceitar, como uma importante
contribuição à sociologia, a ideia de que a integração social é
impossível sem objetos que organizem e estabilizem as interações
humanas. O mesmo vale, no nível meso, para a estruturação
dos coletivos. De modo a estruturar o coletivo e transformá-lo
em um grupo organizado, representado e mobilizado por uma
porta-voz, deve-se de fato associar humanos e não humanos em
instituições, organizações e corporações. O coletivo necessita
de uma porta-voz e, atualmente, um telefone celular e acesso
à Internet são requisitos mínimos para qualquer porta-voz. Mas
isso não transforma a porta-voz em uma associada da Nokia,
da Microsoft ou da Tim. O que é determinante (em última
instância) são as relações entre as posições sociais e as ideias,
não as relações entre os actantes. Estas são contingentes, e sua
forma depende da estrutura do sistema mais amplo que as abarca
e que elas buscam reproduzir ou, como pode ser o caso, reformar
e transformar.

254

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CONCLUSÃO: HISTÓRIA E SOCIOLOGIA

Diferentemente da filosofia, a sociologia não pode escrever a


História (com letra maiúscula) modo futuri exacti. A sociologia pode,
sem dúvida, propor tipos ideais desenvolvimentais da história
universal (ver Max Weber, por exemplo), mas não introduzir
uma subjetividade coletiva – seja o proletariado ou a própria humani-
dade – como o “sujeito-objeto idêntico” (Lukács) que corporifica
o logos da História e realiza seu telos. Uma filosofia dialética da
história englobaria a sociologia e totalizaria seus resultados em
uma visão inclusiva capaz de desvendar a lógica interna do
desenvolvimento da Razão que impulsiona a História adiante, em
direção à sua plena realização (concebida não apenas como um
ideal regulativo, mas como um logos vivo imanente à realidade).
A sociologia não pode ser especulativa e deve se limitar à
pesquisa. Sua tarefa é a Forschung (pesquisa), não a Darstellung
(a apresentação dialética da pesquisa), mas ela é capaz, não
obstante, de oferecer sua modesta contribuição ao analisar
como subjetividades coletivas são efetivamente construídas.
Neste capítulo, apresentei uma teoria realista das subjetividades
coletivas que preenche o hiato entre categorias e redes. Categorias
são concebidas como grupos virtuais e potenciais. A estruturação
de coletivos, que faz aflorar e realiza os poderes causais destes,
foi analisada como um processo morfogenético triplo que
compreende três “momentos” (identificação simbólica, mediação
sociotécnica e representação política) e produz três avatares do
coletivo (a comunidade simbólica, o quase-grupo mobilizável e
o grupo organizado). No fim dessa análise, grupos que representam
contrafactualmente a humanidade, sendo representados por
porta-vozes que advogam vicariamente os interesses daqueles no
mundo real, aparecem na cena da história como atores coletivos.
Os filósofos podem agora reiniciar seu trabalho e especular sobre
os fins da História, mas a realização ou não realização de tais fins
pelos coletivos não depende desses filósofos. Como Marx disse,
não são os filósofos que fazem história, mas os próprios atores,
que o fazem em circunstâncias que não escolheram.
Tradução de Gabriel Peters e Estela Abreu
(Capítulo publicado originalmente em: “Avatars of the collective: a realist
theory of collective subjectivities”. Sociological Theory, v. 25, n. 4, p. 295-
324; e “Une ontologie réaliste pour la sociologie: système, morphogenèse

255

teorial social realista.indb 255 27/1/2010 11:22:55


et collectifs”. Social Science Information/Information sur les Sciences
Sociales, v. 46, n. 3, p. 487-542, 2007).
Como qualquer subjetividade coletiva, este capítulo é um empreendimento
coletivo que não teria visto a luz do dia sem a ajuda de outros. Gostaria
de agradecer a Danny Trom, o primeiro a me sugerir o tópico em um
workshop sobre coletivos políticos no Instituto Marc Bloch em Berlim,
em 2002, e a Seyla Benhabib, que me convidou a apresentar uma versão
reformulada deste texto no Colóquio Castle, na Universidade de Yale,
em março de 2006. Apresentei este capítulo em Montreal, no Seminário
do GIEP (Group Interuniversitaire d’Études sur la Postmodernité) em
março de 2006 e também me beneficiei muito dos comentários de Michel
Freitag e seu grupo de formidáveis dialéticos. Sou grato a Andreas
Glaeser, Boris Kapustin, Bruno Karsenti, Dick Pels, Fernando Suárez Müller,
Heidrun Friese, Hélène Colliot-Thélène, Jeffrey Alexander, Jonathan Schell,
Ron Eyerman e Scott Boorman por comentários, sugestões, correções e
discussões. Dedico este capítulo a meu amigo e colega José Maurício
Domingues, que por acaso também é o especialista em subjetividades
coletivas.

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C A P Í T U LO 7

VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO


QUANDO FALA CONSIGO MESMO?
MARGARET ARCHER E A TEORIA
DAS CONVERSAÇÕES INTERNAS

Em Structure, agency and the internal conversation (2003),


Margaret S. Archer, a decana do realismo crítico, conclui, de modo
bem-sucedido, suas reflexões sobre a cultura, a estrutura social e
a agência com uma investigação empírica do processo mediador
que estabelece a conexão entre o mundo da vida e o sistema.
Através de entrevistas em profundidade sobre as conversações
que os indivíduos pesquisados mantinham consigo mesmos,
ela ilustrou como projetos pessoais são formados e como esses
projetos mediatizam o exercício de influências sistêmicas
restritivas e capacitadoras sobre os agentes. O livro sob análise
constitui o quarto episódio dos Archers, 1 uma impressio-
nante série de seis obras na qual a abordagem morfogené-
tica é apresentada como uma alternativa realista à teoria da
estruturação.2 Nos dois primeiros livros, que podem ser conjuntamente
tomados como a contrapartida polêmica à apresentação
triádica da teoria da estruturação por Giddens (em New rules of
sociological method [1976]; Central problems in social theory [1979];
e The constitution of society [1984]), Archer se apoia no funcionalismo
marxista de David Lockwood e no realismo crítico de Roy Bhaskar para

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desenvolver uma sofisticada teoria morfogenética da emergência,
reprodução e transformação de sistemas culturais e estruturas
sociais. Nos dois livros seguintes do sexteto, os quais podem
ser considerados como uma réplica prolongada a Ways of being,
de Rom Harré (outra trilogia, composta de Social being [1979];
Personal being [1983]; e Physical being [1991]), ela se volta para o
problema da agência humana e analisa como os seres humanos
desenvolvem suas identidades pessoais e sociais à medida que
perseguem seus objetivos e preocupações últimas em projetos
de vida mais ou menos coerentes e factíveis.

A EMERGÊNCIA DO DUALISMO ANALÍTICO

Margaret Archer tem um problema – o problema da agência e


da estrutura. Há mais de 25 anos, ela tem trilhado seu próprio
caminho de resolução dos problemas de como pensar a
cultura, a estrutura social e a agência e de como conectá-las
sem redução ou “conflação”. Para construir sua própria solução,
ela precisou, entretanto, realizar primeiramente um trabalho de
limpeza do terreno deixado por seus predecessores. Nos
primeiros três volumes do sexteto, uma ofensiva vigorosa é lançada
contra as tendências reducionistas da teoria social contemporânea.
Revisitando os debates micro/macro que opuseram individualistas,
coletivistas e dialéticos desde os anos 1950, a teórica de Warwick
rastreou sistematicamente tendências conflacionárias e criticou
com vigor a teoria da escolha racional, os estudos culturais e a
teoria da estruturação por cometerem, de um modo ou de outro,
a “falácia da conflação”.3 Individualistas metodológicos e teóricos
da escolha racional como Max Weber, Karl Popper e Raymond
Boudon, ao resolverem o problema da relação entre estrutura
e agência concebendo a primeira como um efeito agregado de
ações individuais, apresentaram uma imagem excessivamente
voluntarista da sociedade e foram culpados da “conflação
ascendente” (upwards conflation). Se os individualistas explicam
(e, assim fazendo, dissolvem) a sociedade como uma repetição
de ações individuais, culturalistas e estruturalistas como Emile
Durkheim, Talcott Parsons ou Louis Althusser tendem a conceber
as ações individuais como meras emanações de estruturas
sociais. Eles cometem a falácia da reificação e são culpados

258

teorial social realista.indb 258 27/1/2010 11:22:55


da “conflação descendente” (downwards conflation). Estrutu-
racionistas como Peter Berger, Thomas Luckmann, Anthony
Giddens e Pierre Bourdieu, que veem a agência e a estrutura
como dialeticamente implicadas e mutuamente constitutivas,
cometem o erro da “conflação central”. Ao invés de articularem
a agência à estrutura, eles dissolvem as diferenças entre ambas,
com o resultado de que sua inter-relação não pode mais ser
investigada.
Incansavelmente, livro após livro, Margaret Archer tem
exposto as tendências conflacionárias da teoria da estruturação.
Apesar de suas críticas, Archer não é uma pensadora negativa. Ao
mesmo tempo que critica Giddens obsessivamente, ela avança
uma teoria alternativa da constituição da sociedade capaz de
superar não apenas a oposição entre agência e estrutura, mas também
os defeitos da teoria da estruturação. A principal falha da teoria da
estruturação consiste em sua rejeição da emergência e da
superveniência ontológicas. Embora Giddens reconheça que
as práticas podem resultar em importantes consequências
não intencionais da ação, sua ontologia das práticas desau-
toriza explicitamente a tese da emergência de um sistema
relativamente autônomo e dotado de poderes causais irredutíveis e
temporalmente anteriores às ações de indivíduos e grupos. A
professora Archer rechaça o teorema da dualidade de agência e
estrutura, optando, ao invés disso, por uma concepção estratifi-
cada da realidade que não elide as diferenças entre os estratos
sistêmico e interacional da sociedade, mas, ao contrário, reco-
nhece a autonomia relativa dos sistemas culturais e das estruturas
sociais, ao mesmo tempo que distingue ambos das práticas do
mundo da vida que os reproduzem ou transformam. Esta estra-
tégia dualista não nega que o exercício dos poderes causais dos
sistemas culturais e estruturas sociais seja sempre mediado pela
agência humana (sem agência: sem sistema), mas, com vistas
à elucidação da inter-relação entre estrutura e agência, separa
analiticamente os dois estratos, mantendo-os constantes. Graças
a esse truque metodológico, o mundo da vida e o sistema, bem
como as relações entre ambos, podem ser sequencialmente
analisados, por assim dizer, em câmera lenta. Quando não mais
se assume que a agência e a estrutura ou cultura são mutuamente
constitutivas e operam ao mesmo tempo, pode-se examinar suas
inter-relações, verificar se a cultura tem maior peso do que a
estrutura (ou vice-versa) e examinar como seus poderes causais
são mediados pela agência humana.

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O CICLO MORFOGENÉTICO

Diferentemente de Giddens, que é um pensador eclético e


um teórico oportunista, Archer é uma pensadora de tipo mais
sistemático que tece cuidadosamente uma série de conceitos
fundamentais (e.g., dualismo analítico, sequência morfogenética,
estratificação sociedade/agência etc.) e permanece resolutamente
ligada a eles. Desconfiada de ondas e modas, a grand lady da
teoria social britânica desenvolveu sua própria abordagem através
de uma síntese teórica que integra firmemente, em uma teoria
social morfogenética unificada, as complementaridades conco-
mitantes entre a teoria de sistemas morfogenéticos de Walter
Buckley, o marxismo funcionalista de David Lockwood e o
realismo crítico de Roy Bhaskar. Ainda que as ideias do
dualismo analítico e da sequência morfogenética já houvessem
sido formuladas e colocadas em bom uso em Social origins of
educational systems (1979) – uma análise comparativa, desenvolvida
ao longo de oitocentas páginas, de políticas educacionais na França,
Inglaterra, Rússia e Dinamarca –, seriam necessários, entretanto,
mais quatro livros para que a teoria morfogenética da mudança
social, cultural e pessoal fosse apresentada em detalhe. Desde
cedo, durante sua estada no Centro de Sociologia Europeia de
Bourdieu, Archer havia adquirido a forte convicção de que,
para se analisar apropriadamente a emergência, reprodução e
transformação de sistemas culturais e estruturas sociais, é pre-
ciso concentrar-se sobre a dinâmica entre o sistema e as inte-
rações socioculturais. Tomando de empréstimo alguns insights
do estudo cibernético de Buckley a respeito dos mecanismos
retroalimentadores de “desvio-amplificação” que impulsionam a
mudança sistêmica, ela decompôs essa dinâmica em uma série
de ininterruptos ciclos morfogenéticos que envolvem condiciona-
mento sistêmico, interação sociocultural e elaboração sistêmica:
a configuração particular do sistema (no estágio T1) condiciona
as práticas do mundo da vida (T2) que buscam reproduzir ou
transformar o sistema, levando, eventualmente (T3), a uma nova
elaboração do mesmo, que será contestada e modificada em um
segundo ciclo, e daí em diante.
Durante sua presidência da Associação Internacional de
Sociologia (1986-1990), Margaret Archer expandiu a abor-
dagem morfogenética de modo a transformá-la em uma teoria

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geral da cultura, da estrutura e da agência. Em Culture and
agency (1988), o primeiro e talvez o melhor livro do ciclo, ela
constrói um complexo, embora poderoso e elegante, modelo
analítico da mudança cultural, modelo em larga medida influen-
ciado pela tentativa teórica de David Lockwood em sintetizar o
estrutural-funcionalismo e a sociologia do conflito. Perfazendo uma
exploração de todas as permutações possíveis entre a “integração
social” e a “integração sistêmica”, ela explica a morfogênese do
sistema cultural em termos da disjunção entre as relações de
contradição e complementaridade entre as “partes” do sistema,
de um lado, e as relações de cooperação e conflito entre as
“pessoas”, de outro. Quando as contradições entre as ideias do
sistema cultural se combinam aos conflitos sociais do mundo da
vida, a morfogênese acontece; no caso oposto, a morfostase é
mais provável.
Se Culture and agency pode ser considerado uma
brilhante tentativa de desenvolver os insights do artigo seminal de
Lockwood em uma grandiosa teoria pós-estruturacionista da
mudança cultural, Realist social theory (1995), seu sucessor, se
inspira no realismo crítico de Bhaskar para dar profundidade
ontológica à teoria morfogenética. Mais uma vez, Archer
demonstra suas admiráveis habilidades analíticas, mas agora o
modelo morfogenético é elaborado para desenvolver uma
caracterização robusta das relações dinâmicas entre sistemas
culturais (relações lógicas entre ideias), estruturas sociais (relações
internas de primeira, segunda e terceira ordens entre posições)
e agentes humanos. Archer argumenta que os sistemas culturais
podem influenciar as estruturas sociais e vice-versa, mas ambos
só podem exercer tal influência indireta e mediatamente, ao
estruturarem as situações de ação através de condicionamentos
restritivos e capacitadores. A força dos últimos depende, objetiva-
mente, da posição social dos agentes e, subjetivamente, de seus
projetos, os dois estando relacionados até certo ponto pela
“causalidade do provável” (Bourdieu), que ajusta projetos a
possibilidades. Quando indivíduos e grupos agem em situações
particulares para defender seus interesses específicos e realizar
seus projetos, eles reproduzem ou transformam as condições estru-
turais e culturais com as quais se defrontam, mas, nesse processo,
são eles mesmos transformados, passando de agentes involun-
tariamente posicionados a atores sociais e pessoas individuais
(morfogênese dupla).

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Em seguida à análise da morfogênese estrutural, Archer inves-
tiga a morfogênese da agência em Being human (2000), o terceiro
e talvez o mais pessoal dentre os livros do ciclo. Sintonizada
com os princípios fundamentais do realismo crítico, ela confere
poderes causais à agência que não podem ser deduzidos dos
(ou reduzidos aos) poderes causais da sociedade e da cultura.
Para garantir que o ator não seja engolido pela sociedade ou
engolfado pela linguagem, ela desenvolve uma teoria da agência
humana que destaca os aspectos não sociais da humanidade.
Conferindo prioridade à prática em face da linguagem e da socie-
dade, ela desenvolve um retrato sequencial de nossas identidades
superpostas em que o sentido de self (selfhood) emerge da
consciência, a identidade pessoal emerge do sentido de self e
a identidade social emerge, por fim, da identidade pessoal.
Contrapondo-se ao retrato construtivista do self discursivo de
Rom Harré, Archer argumenta, com Jean Piaget e Maurice
Merleau-Ponty, que, mesmo antes da aquisição da linguagem e
portanto independentemente desta, a “diferenciação” do self em
relação ao mundo ocorre por meio do seu engajamento corpóreo
com este. Uma vez que um senso contínuo de self seja adquirido
na primeira infância, a formação da identidade pessoal pode ser
iniciada como uma busca de autenticidade que dura toda a vida.
Na esteira de Charles Taylor e Harry Frankfurt, a teórica realista
argumenta que nos tornamos quem somos através da deliberação
reflexiva a respeito de nossas “preocupações últimas”. Aquilo que
importa genuinamente para nós é o que nos define, em última
instância, qua pessoas. Archer afirma que todos nós temos
necessariamente três preocupações – bem-estar físico, competência
performativa e autoestima4 – e que é através de nossas conversações
internas que ordenamos tais preocupações, definimos nossa visão
da “boa-vida” e adquirimos, assim, uma identidade pessoal autêntica
que seja unicamente nossa. Enquanto a autoidentidade é o alfa
e a identidade pessoal o ômega da vida humana, a identidade
social intervém entre ambas como um aspecto da identidade
pessoal que expressa quem somos como pessoas na sociedade.
É nesse ponto na estrada do autodesenvolvimento que a “virada
linguística” ocorre e a história da transformação morfogenética
do agente individual em um ator social pode ser contada (como uma
sub-história da morfogênese da estrutura). Primeiramente, o ser
humano é um agente (bourdieusiano) que ocupa involuntariamente

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uma posição social definidora de suas oportunidades de vida. Na
medida em que se torna consciente dos interesses que compartilha
com outros membros de sua classe, o agente é transformado em
um agente corporativo (tourainiano) que transforma a sociedade de
tal modo que ele, a essa altura já um ator social capaz de assumir
papéis, possa não apenas ocupar e personificar o papel social
que assume, mas também personalizá-lo de acordo com as suas
preocupações últimas.

A MEDIAÇÃO DA MEDITAÇÃO

Levando mais adiante a morfogênese dupla da agência e da


estrutura, o quarto episódio dos Archers está ocupado unicamente
em especificar como o poder causal de estruturas sociais e
sistemas culturais é mediado através da agência. A principal tese
de Strucuture, agency and the internal conversation estabelece
que as deliberações reflexivas por meio das quais os agentes
sociais delineiam e ordenam suas preocupações últimas,
construindo um projeto existencial e pessoal com o qual se
comprometem, assumem a forma de uma conversação interna.
Esta meditação do self pensativo constitui o mecanismo mediador
que conecta os poderes causais da estrutura à agência. Estruturas
sociais e sistemas culturais exercem seus poderes causais orga-
nizando a situação de ação através de influências limitadoras e
habilitadoras, mas, na medida em que a ativação desses poderes
causais depende dos projetos existenciais que os atores forjam
in foro interno (sem projetos: sem restrições ou oportunidades),
pode-se concluir que os atores mediam ativamente seu próprio
condicionamento cultural e social. Reformulando a tese nos
termos do estruturalismo gerativo de Bourdieu, poderíamos
afirmar que a conversação interna intervém entre o habitus e
o campo. Como resultado, a reprodução da sociedade torna-se
uma realização dos próprios agentes. Os atores são, de fato,
determinados, mas apenas na medida em que determinam a si
mesmos.
O livro Structure, agency and the internal conversation está
dividido em duas partes: a Parte I, na qual o argumento teórico
da conversação interna é desenvolvido em e através de uma
discussão do pragmatismo americano (James, Peirce e Mead)

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– discussão que trai a influência de Norbert Wiley (1994), o
pioneiro na investigação sociológica das conversações internas –,
e a Parte II, a análise empírica que explora a natureza e as formas
da deliberação reflexiva dos agentes. A análise das trilhas sonoras
da conversação interna revela três modos distintos de refle-
xividade e três posturas concomitantes em relação à sociedade,
consistindo em respostas diferentes ao condicionamento social.
Invertendo conscientemente os retratos sociológicos tradicionais
sobre o assunto, Archer abre a parte teórica do livro com a afir-
mação de que a vida privada é uma precondição da vida social:
“Se os seres humanos não fossem reflexivos, não poderia haver
sociedade” (Archer, 2003: 19). Antes de poder levar a cabo sua
crítica aos construtivistas sociais, entretanto, nossa distinta teórica
social tem primeiro de estabelecer a existência da vida privada e
refutar visões behavioristas e cognitivistas que buscam exorcizar
o “fantasma (da introspecção) na máquina”. Por meio de um
desvio pela filosofia analítica da mente (não do espírito), ela argu-
menta que dificilmente pode-se negar a existência de deliberações
reflexivas ocorrendo no interior da mente, bem como que estas
só são acessíveis a partir da perspectiva da primeira pessoa. Em
acordo com a crítica do empiricismo de Bhaskar, ela substitui o
critério perceptual de existência pelo critério causal e avança sua
principal tese: “Deliberações reflexivas possuem poderes causais,
i.e., poderes intrínsecos, que nos habilitam a monitorar e modi-
ficar a nós mesmos, e poderes extrínsecos, que permitem que
mediemos e modifiquemos nossas sociedades” (Archer, 2003: 46).
Uma vez demonstradas a interioridade, a subjetividade e a
eficácia causal de nossas deliberações reflexivas, o próximo
passo consiste em mostrar que estas deliberações introspectivas
assumem a forma de um diálogo interno em que deliberamos
com nós mesmos a respeito de nossas preocupações últimas e
forjamos nossa identidade pessoal. Para passar da introspecção à
conversação interna, a teórica social britânica estuda o pragma-
tismo estadunidense e emprega a abordagem semiótica do self
desenvolvida por Peirce para construir sua própria abordagem
morfogenética da comunicação intrasubjetiva. Enquanto Peirce
é celebrado como uma figura canônica, James é considerado
uma figura de transição e Mead descartado como um externa-
lista que teria desperdiçado o legado de Peirce ao socializar e
colonizar o self. Nesta leitura triangular do pragmatismo, James

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aparece como quem sugeriu inicialmente que o indivíduo realiza a
auto-observação e automonitoração não por meio de um “olhar
para dentro de si”, mas da “escuta de si”. Entretanto, James
conceitua o pensamento como um monólogo, não como um
diálogo em que falamos, ouvimos e respondemos a nós mesmos.
Peirce corrigiu essa falha e conceituou as deliberações internas
como “um diálogo entre diferentes fases do ego” em que este
se dirige ao seu antigo self como um Mim e invoca seu futuro
self como um Você. Enquanto o Ego pesquisa criticamente seus
hábitos e suas disposições sedimentadas do passado para
responder, de um modo pré-arranjado, a dadas circunstâncias,
ele se projeta no futuro e imagina um Eu contrafactual como
um Você futuro capaz de agir de outra forma e superar, assim,
as repetições do passado. Utilizando mais uma vez a sequência
morfogenética, Archer formaliza essa conversação interna como
uma infinda repetição de um processo trifásico básico em que
o self preexistente condiciona as atividades dialógicas do Eu
conversacional, o qual molda e elabora, por sua vez, o Você
do futuro. Através destas discussões internas que temos com
nós mesmos, tomamos decisões por meio do autoquestiona-
mento, clarificando nossas crenças e inclinações, diagnosticando
nossas situações, deliberando a respeito de nossas preocu-
pações e vislumbrando projetos existenciais que definem quem
realmente somos. “Em termos cotidianos, examinamos nossos
contextos sociais, perguntando e respondendo (falivelmente) a nós
mesmos a respeito da melhor forma de alcançarmos os
objetivos que determinamos, em circunstâncias que não são de nossa
escolha” (Archer, 2003: 133). A perpétua discussão interior chega
a uma conclusão provisória quando as diferentes partes do self
alcançam um consenso interno a respeito do curso projetado de
ação que melhor expresse a identidade autêntica do sujeito, mas
que também seja viável à luz de determinadas circunstâncias. Na
medida em que essas deliberações internas a respeito do curso
de ação articulam as preocupações últimas que definem a iden-
tidade pessoal do sujeito às circunstâncias objetivas que têm de
ser levadas em conta caso o projeto de uma vida pretenda ser
bem-sucedido, a conversação interna integra efetivamente os
projetos subjetivos e as circunstâncias objetivas em um modus
vivendi factível, o qual pode ser considerado como a conexão
viva entre estrutura e agência.

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Até agora tudo bem, não fosse por George Herbert Mead. Ainda
que o modelo da conversação interna entre o Eu, o Mim e o Você
que Archer extraiu habilidosamente de uma discussão de Peirce
se assemelhe à caracterização da socialização que encontramos
em Mead, ela reconstrói, entretanto, sua teoria da identidade
pelo desempenho generalizado de papéis como uma antiteoria
hipersocializada da mente que deveria ser rejeitada a qualquer
preço, caso não se pretenda desperdiçar o modelo peirciano
da conversação interna. No espaço de umas poucas páginas
(Archer, 2003: 78-92), que considero a parte mais fraca desse
livro de resto notável, Mead é duramente atacado como um
“externalista inflexível” e um “conflacionista descendente” que
teria entendido tudo errado. Sua concepção da mente seria tão
extensamente social que simplesmente não haveria lugar para a
interioridade. A conversação interior a respeito da qual ele fala
não seria um diálogo que se tem consigo mesmo, mas com a
sociedade, assim como o seu Mim seria, na realidade, um Nós.
O resultado seria uma teoria da intersubjetividade que não pode
conceber a conversação interna como intrapessoal. Embora
Archer esteja certa quando caracteriza o interacionismo simbólico
como uma teoria da intersubjetividade, penso que ela o rejeita
e o negligencia em seu próprio prejuízo. Poderíamos inclusive
inverter a perspectiva e avaliar a teoria morfogenética da identi-
dade pessoal “do ponto de vista de um behaviorista social”. Por
conseguinte, seria preciso avançar duas críticas.
Em primeiro lugar, a conversação interna retratada em sua
teoria é demasiado interna. Archer não apenas passou ao largo
da “virada linguística”, mas, como resultado, também perdeu a
conexão com teorias mais hermenêuticas da identidade pessoal
e da autenticidade que são bastante similares à sua em intenção.
Ao subestimar o papel da intersubjetividade e da linguagem,
ela perdeu a oportunidade de analisar a conversação interna
como uma narração do self e de perceber que é através da
autonarração de suas histórias de vida que os atores ordenam suas
preocupações e tornam suas vidas coerentes. A narração é aquilo
que dirige e “fornece uma trama” à conversação interna. Para
entender adequadamente como a identidade pessoal é formada,
deve-se compreender que a conversação interna toma a forma
de uma narração, enquanto a própria narração deve ser enten-
dida como uma conversação intrasubjetivamente intersubjetiva.

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Um agente tem conversações não apenas com “o si-mesmo
como um outro” (Ricœur), mas também com “o outro como
um si-mesmo” (Mead). É por meio de uma conversação interna
consigo mesmo que o agente se comunica com o outro. Mesmo
que se narre o próprio self, o outro permanece presente como uma
“testemunha interior” da identidade pessoal, testemunha com a
qual me comprometo, pela qual respondo moralmente e sou,
em última instância, responsável. De qualquer modo, estou
convencido de que Archer realmente se beneficiaria de um
diálogo prolongado com o trabalho de filósofos morais como
Paul Ricœur (Soi-même comme un autre, 1990), Charles Taylor
(Sources of the self, 1989) e Alessandro Ferrara (Reflective
authenticity, 1998). Isto iria não apenas conferir maior profun-
didade filosófica à ética da existência que ela está perseguindo,
conectando seu trabalho à comunidade de filósofos morais, mas
também permitiria a Archer oferecer, ao mesmo tempo, uma
fundamentação mais fortemente sociológica à hermenêutica
filosófica do self.
Em segundo lugar, sua teoria negligencia a comunicação
intersubjetiva, os movimentos sociais e a democracia. Ainda que a
conversação interna seja conceituada como um poder causal que
transforma tanto os agentes como a sociedade, apenas metade
da história é contada nesse livro. Destacando a morfogênese da
agência individual, a morfogênese da estrutura através da ação
coletiva mal é tematizada. O livro trata da ética da existência,
mas negligencia a política da vida. Isso não é um acidente, mas
deriva logicamente da excomunhão da intersubjetividade. Se
quisermos nos mover da ética à política, diálogos internos serão
simplesmente insuficientes, embora necessários. Precisamos
conversar com outros, sobre os outros e a respeito da sociedade.
Para expandir os limites de nossa mente e de nosso mundo da
vida, precisamos ampliar a comunidade de comunicação e adotar
o ponto de vista universalista do “outro generalizado”, para que
possamos criticar as sociedades existentes do ponto de vista de
uma sociedade alternativa mais inclusiva e democrática. É isso
que Mead tinha em mente, e é disso que Dewey sempre trata em
última instância. Se Archer pretende pensar a política e inserir
os movimentos sociais em sua análise da mudança social, penso
que ela faria bem em reler Mind, self and society, mas desta vez
de trás para frente, como fizeram Jürgen Habermas e Hans Joas

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quando extraíram uma teoria da democracia da última parte do
livro. Este, gostaria de sugerir, seria um tópico apropriado para
outro livro, que completaria as investigações da morfogênese
da agência e da estrutura, fechando a série com uma teoria dos
(novos) movimentos sociais. Se um título for necessário, sugiro:
Structure, agency and communication: a morphogenetic theory of
social movements [Estrutura, agência e comunicação: uma teoria
morfogenética dos movimentos sociais].5

ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO

Na segunda parte do livro, Archer oferece um estudo empírico e apre-


senta uma análise teoricamente informada de quinhentas páginas de
transcrições de entrevistas em profundidade que ela realizou com
vinte pessoas cujas situações de vida eram as mais diversas – de três
cabeleireiras adolescentes empregadas no mesmo salão até uma
freira missionária de 65 anos que retornou recentemente à América
Latina; de um ex-acadêmico que se tornou vendedor de sebo até
dois jovens encontrados em um albergue para desabrigados. Nas
entrevistas, os sujeitos foram apresentados à noção de conversação
interna, não rejeitada por nenhum deles, e perguntados acerca de
suas atividades mentais (planejar, ensaiar, refletir, ruminar, decidir
etc.), suas preocupações correntes (o que mais importa para eles:
os outros, o trabalho, o autodesenvolvimento etc.) e seus projetos
de vida. Em toda a discussão, o tom é o correto e os sujeitos são
tratados com o devido cuidado e respeito. A principal descoberta
da pesquisa, não prevista pela teoria, foi a de que as pessoas
praticam diferentes modos de reflexividade, os quais estão siste-
maticamente relacionados a “posturas” que elas adotam em relação
à sociedade, mediando o exercício de influências socioculturais
restritivas e capacitadoras de modos bastante distintivos. Archer
distingue essencialmente entre três modalidades de reflexividade,
apresentando-as em uma tocante galeria de retratos de reflexivos
comunicativos, reflexivos autônomos e metarreflexivos.
“Reflexivos comunicativos” são faladores extrovertidos (em
sua maior parte mulheres) cujas conversações internas são
quase imediatamente estendidas para o plano das conversações
interpessoais. Eles pensam e falam. Ainda que Archer não o
diga, eles são, na realidade, meadianos que desconfiam de suas

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conversações internas solitárias e dirigem-se a “outros significantes”
em seu ambiente imediato para resolverem dialogicamente suas
questões. Suas prioridades são claras: as principais preocupações
são “definitivamente a família e os amigos”. Reduzindo volun-
tariamente suas aspirações, nenhum dos entrevistados havia
concebido projetos que excedessem os limites de seus contextos.
Esquivando-se de oportunidades objetivas de avanço social, todos
reproduziram seus backgrounds familiares e mostraram contenta-
mento com seu destino. De um ponto de vista mais teórico, eles
podem ser considerados como “habermasianos conservadores” e
“bourdieusianos satisfeitos” que são guiados pela ação tradicional
e fortalecem a integração social do mundo da vida.
“Reflexivos autônomos” são pensadores solitários (em sua
maior parte homens) com mentes independentes, indivíduos
cujas reflexões internas são primordialmente orientadas para
objetivos. Eles pensam e agem. O trabalho parece ser sua principal
preocupação e, diferentemente dos reflexivos comunicativos,
eles subordinam suas relações interpessoais ao trabalho, não
tendo medo de se mudarem de seu contexto inicial. Na verdade,
parece que, cedo na vida, os reflexivos autônomos já articularam
projetos de vida que ultrapassam as fronteiras do seu ambiente
social. Ansiosos em aproveitar oportunidades sociais, eles tam-
bém sabem como contornar obstáculos antecipados para alcançar
seus próprios fins. De um ponto de vista mais teórico, podem
ser considerados individualistas metodológicos com um senso de
justiça rawlsiano que investem suas vidas em realizações perfor-
mativas e cujas ações racional-instrumentais beneficiam o sistema
e fortalecem a integração de seus componentes.6
Metarreflexivos são idealistas que refletem criticamente sobre
suas próprias reflexões (daí o “meta”) e parecem genuinamente
preocupados com suas preocupações últimas, as quais não se
ajustam precisamente entre si e não podem ser satisfatoriamente
harmonizadas. Eles pensam e pensam. Sua conversação interna
é dirigida para seus próprios selves. Preocupados com seus selves
(ou talvez eu deva dizer: com suas almas), eles buscam autoco-
nhecimento e praticam a autocrítica com vistas ao autoaperfei-
çoamento e à autorrealização. Movidos por uma missão pessoal,
também criticam seu ambiente, que invariavelmente consideram
insatisfatório. Dado que nenhum contexto disponível é sufi-
ciente para satisfazer suas exigências, eles são contextualmente

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deslocados e estão continuamente em movimento (inclusive através
de diferentes continentes), procurando um novo emprego, uma
nova carreira, uma nova vida, um novo self. Como não podem
ser comprados por incentivos instrumentais e estão dispostos a
pagar o preço da mobilidade descendente para realizarem seus
ideais, eles são imunes a influências restritivas e habilitadoras. Do
ponto de vista da teoria social, esses utopistas sociais agindo de
modo racional com relação a valores aparecem como autênticos
meadianos habermasianos, sempre julgando criticamente a si
mesmos e a suas sociedades do ponto de vista de um outro self
(“o outro generalizado”) e de uma outra sociedade (a “sociedade
racional”). No entanto, como Archer não concordaria com minha
leitura de Mead, os metarreflexivos podem muito bem ser conce-
bidos como os verdadeiros archerianos (ou, caso ela revise sua
interpretação de Mead, como “arquimeadianos”).
Finalmente, próximos e entre os reflexivos comunicativos,
os reflexivos autônomos e os metarreflexivos, há também
“reflexivos fraturados”. Estes são indivíduos com vidas despe-
daçadas cujos poderes de reflexividade foram temporariamente
suspensos, em virtude de seu movimento de um modo a outro de
reflexividade, ou mesmo inteiramente comprometidos, como
é o caso do pobre Jason, um delinquente desabrigado cuja
subjetividade parece ter sido sufocada como resultado de um
uso pesado de drogas. De qualquer modo, a reflexividade não
funciona para eles. Quanto mais pensam e falam consigo mesmos,
mais se tornam emocionalmente perturbados e cognitivamente
desorientados. Diferentemente de reflexivos plenos, reflexivos
fraturados não têm projetos reais, assim como nenhuma identidade
estritamente pessoal. Dado que suas deliberações internas não
permitem que lidem de modo bem-sucedido com suas situações,
eles são “agentes passivos” à mercê de seu ambiente social, que
os afeta a partir de fora como um ambiente pseudonatural. De um
ponto de vista mais teórico, eles são os humianos dos positivistas
e teóricos críticos, indivíduos que perderam o controle de sua
própria vida e só podem registrar passivamente o que acontece
com eles. Alienados e reificados como coisas, eles são as pessoas
com as quais as coisas “simplesmente acontecem”.
Apropriadamente, a história se encerra com um tributo aos
metarreflexivos que demonstram compaixão e preocupação
com os excluídos, oprimidos e globalmente desapossados,

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recusando o status quo em nome de algum ideal cultural, religioso
ou político. Esperemos que eles/as sejam os heróis e heroínas do
próximo episódio dos Archers, dedicado a uma análise empírica
dos novos movimentos sociais, culturais e religiosos.7
Tradução de Gabriel Peters

(Capítulo publicado originalmente em: VANDENBERGHE, F. The Archers:


a tale of folk (final episode?). European Journal of Social Theory, v. 8, n.
2, p. 227-237, 2005).

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NOTAS

Prefácio

1
VANDENBERGHE. Une histoire critique de la sociologie allemande.
Ele retomou um desses autores em livro já publicado em português: A
sociologia de Georg Simmel. Bauru: EDUSC, 2005 (original francês de
2001).
2
VANDENBERGHE. Complexités du post-humanisme. Trois essais
dialectiques sur la sociologie de Bruno Latour.

Introdução: realismo em um só país?


1
O autor explora o sentido duplo que o termo subjects possui em inglês.
(N. de T.).
2
Logo após Richard Rorty propagandear o advento da “virada linguística”
como “a mais recente revolução filosófica, a da filosofia linguística”
(Rorty, 1967: 3), advento que, incidentalmente, coincidiu com sua própria
transição da filosofia analítica para o pragmatismo, temos presenciado
uma enxurrada de declarações programáticas de espetaculares “guinadas”
e “viradas” no seio das ciências humanas, no que respeita tanto aos seus
ramos fenomenológico-hermenêuticos quanto semiótico-estruturalistas
(Bachmann-Medick, 2006). As viradas interpretativa, comunicativa,
dialógica e ética convergiram em direção a um retorno da religião; as
viradas espacial, performativa, afetiva, somática, visual e icônica levaram
a uma fina análise de performances e outras representações; à maneira
dos “Caminhos do Campo” (Holzwege) de Heidegger, as viradas pós-
-moderna, cultural, reflexiva, desconstrucionista e retórica não levam a
lugar nenhum. Como um signo dos tempos, após as viradas, vieram as
guerras: guerras da cultura, guerras de gênero, guerras de valores e agora
também a guerra das ciências.

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3
Para um bom panorama do atual estado da arte na teoria social, ver
a Revue du MAUSS, 2004, 24 (“Une théorie sociologique générale
est-elle pensable?”), assim como as atualizações ocasionais nos números
subsequentes da revista.
4
Para as mais novas tendências do radical-chique acadêmico, ver qualquer
número de Theory, Culture & Society; para um panorama do vocabulário
da moda (Agamben, Badiou, Dispositivo, Transtextual, Pós-Humano,
Entulho, Resquício, Etcetera.), ver a “Enciclomídia” (Encyclomedia) do
Novo Projeto da Enciclopédia (Theory, Culture & Society, 2006, v. 23, p.
2-3).
5
Para uma boa reconstrução dialógica das principais tradições nacionais da
sociologia euro-americana, ver Levine (1995). A sociologia metropolitana
tornou-se bastante cosmopolita – mas, como de costume, de modo
sobremaneira unidirecional: a teoria metropolitana é rapidamente
exportada para as semiperiferias do mundo, enquanto a teoria de origem
sulista raramente é reimportada para o centro (com as exceções ocasionais
de Bhabha, Spivak, Quijano e Canclini a confirmarem a regra, mas estes,
de qualquer modo, utilizam o pós-estruturalismo francês para criticarem
o colonialismo no seio da academia).
6
Os primeiros trabalhos de Bhaskar foram particularmente influentes.
Enquanto A realist theory of science (1978) desenvolve uma posição realista
para as ciências naturais, The possibility of naturalism (1979) a estende para
as ciências sociais. Scientific realism and human emancipation (Bhaskar,
1986) e Reclaiming reality (1989) são densos como todos os escritos de
Bhaskar, mas legíveis. Collier (1994) oferece uma introdução acessível
e não acrítica ao trabalho de Bhaskar. Archer et al. (1998) constitui uma
excelente compilação de textos essenciais de autoria de Bhaskar, Harré,
Archer, Sayer, Outhwaite e Porpora. Ainda que Bhaskar seja um filósofo
profissional (embora atualmente desempregado), seu trabalho é lido
principalmente por teóricos sociais. Escritos por sociólogos, os livros de
Keat e Urry (1982), Benton (1977), Outhwaite (1987) e Sayer (1992) são
excelentes. Em português, conheço apenas os textos de Hamlin (2000;
2008) e Duayer (2006). No Dicionário do pensamento social do século XX,
bem como no Dicionário do pensamento marxista, ambos coeditados
por Bottomore, há alguns verbetes da lavra de Bhaskar. A International
Association for Critical Realism tem sua própria série de livros na editora
Routledge, assim como sua própria revista, Journal of Critical Realism
(incorporando a defunta revista Aletheia), mas os realistas também
publicam regularmente em Journal for the Theory of Social Behaviour e
Radical Philosophy.
7
Considero Popper o filósofo mais superestimado do século XX. Seu
neopositivismo provocou bastante dano nas ciências naturais. Como
teve de admitir que o modelo nomológico-dedutivo não é efetivamente
aplicável às ciências sociais, ele desenvolveu um modelo alternativo de
explicação para as ciências humanas e introduziu a lógica situacional
da teoria da escolha racional como a segunda melhor opção para as
mesmas. Ainda que eu seja bastante ecumênico em minha abordagem e
tente integrar tantos filosofemas e teoremas quanto possível, me oponho

274

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categoricamente ao positivismo e à teoria da escolha racional por razões
filosóficas, científicas e normativas. Para uma crítica realista da teoria da
escolha racional, ver Archer e Tritter (2000).
8
Citemos um enunciado representativo: “Tornou-se, por conseguinte, cada
vez mais evidente que a ‘realidade’ física, não menos que a ‘realidade’
social, é no fundo uma construção social e linguística; que o conhecimento
‘científico’, longe de ser objetivo, reflete e codifica as ideologias
dominantes e as relações de poder da cultura que o produziu; que as
reivindicações de verdade da ciência são inerentemente dependentes
de teoria e autorreferenciais; e, consequentemente, que o discurso da
comunidade científica, apesar do seu inegável valor, não pode reivindicar
um status privilegiado com respeito a narrativas anti-hegemônicas
emanadas de comunidades dissidentes e marginalizadas” (Sokal, 1996:
217). Esta afirmação sobre a “hermenêutica transformativa” é certamente
representativa do mainstream pós-modernista, mas, como não era
sincera e pretendia apenas expô-lo como uma fraude institucionalizada,
desencadeou a “guerra das ciências”.
9
A insistência de Bhaskar na dualidade do conhecimento também pode
ser encontrada na tradição francesa da epistemologia histórica (Bachelard
e Canguilhem, mas também Althusser e Bourdieu). Canguilhem, por
exemplo, distinguiu claramente entre o objeto natural das ciências (o
referente intransitivo) e o objeto teórico da história das ciências: “A história
das ciências é, portanto, a história de um objeto que é e tem uma história,
enquanto as ciências lidam com um objeto que não é e não tem uma
história. (...) O objeto natural, situado fora de qualquer discurso acerca
dele, não é, obviamente, idêntico ao objeto científico” (Canguilhem, 1989:
10). O que falta à tradição francesa, entretanto, é uma reflexão filosófica
sistemática sobre a relação entre as ciências e a história/sociologia das
ciências.
10
Em sua mordaz crítica de Rorty, a qual recomendo fortemente a
qualquer pragmatista genuíno, Bhaskar (1991) argumenta que o ironista
estadunidense combinou os erros do positivismo e do pós-modernismo
em uma única filosofia. Dado que ele permanece ligado a um retrato
positivista das ciências naturais, Rorty apenas adicionou um exército
nietzschiano de metáforas a uma base ontológica humiano-hempeliana.
Ao reduzir o mundo a um jogo de linguagem, ele repete o caminho
kantiano para a resolução da terceira antinomia: somos rigorosamente
determinados enquanto corpos materiais, mas, como filósofos edificantes,
estamos livres para redescrever o mundo de acordo com nossa vontade.
11
Assim como Bachelard, o realismo crítico quer “dar à ciência a filosofia
que ela merece” (Bachelard, citado por Lecourt, 1972: 6).
12
Para tentativas convergentes de superação das cegueiras da economia
neoclássica, ver o site do Movimento para uma Economia Pós-Autista
(www.paecon.net).
13
Mais recentemente, a Associação Internacional para o Realismo Crítico
até compilou um dicionário de conceitos associados ao movimento
(Hartwig, 2007; o editor escreveu dois terços dos 500 verbetes). A seguinte

275

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sentença, retirada de Plato, etc. (com o arrogante subtítulo The problems
of philosophy and their resolution [Os problemas da filosofia e sua
resolução]), é típica do estilo crescentemente ruim de Bhaskar em 1994:
“A dialética da liberdade acontece da seguinte forma. Começamos com
a ausência, no contexto da poliadização primária, manifestando-se como
desejo. Isso implica separação referencial e estamos logo na classificação
e na causalidade e, portanto, no plano da estratificação ontológica e
da verdade alética. A ausência já foi pressuposta (e o círculo dialético
a pressupõe) e, no contexto das contradições nas e entre as entidades
diferenciadas e estratificadas, florescem a emergência e a totalidade
(...) A dialética é a lógica da ausência. Mas, ao satisfazer meu desejo na
agência ausentificante, estou portanto comprometido com o projeto de
emancipação humana universal” (Bhaskar, 1994: 169).
14
Há uma distinção entre ontologia filosófica e ontologias científicas
específicas (o plano “ôntico”). O argumento transcendental diz apenas
que, dado que a ciência ocorre, o mundo deve ser estruturado de uma
certa forma. O filósofo afirma somente que certas entidades existem no
mundo e independentemente da ciência, mesmo que elas só possam
ser conhecidas através da ciência; ele não diz o que essas entidades
são, deixando sabiamente o domínio ôntico para o cientista. Quarks e
supercordas não são da alçada do filósofo.
15
Karl-Otto Apel (1979) também utilizou a teoria intervencionista da
causalidade de Von Wright como trampolim para uma crítica imanente
do determinismo do modelo nomológico-dedutivo. Atualizando a
notável reconstrução filosófica de Apel, o realismo crítico pode ser
considerado como a quinta (e final) fase da prolongada controvérsia
Erklären-Verstehen. Vindo após o neokantianismo, o neopositivismo, a
filosofia neowittgensteiniana e a teoria crítica, o realismo crítico é o grand
finale que encerra a luta contra o positivismo.
16
Nas discussões que se seguem sobre a ontologia própria do realismo
crítico, o vocábulo atualidade será utilizado em seu sentido filosófico
técnico, referindo-se à condição daquilo que está em ato (i.e., do que é
atual) no mundo natural ou social, distintamente daquilo que permanece
em estado potencial ou virtual. O mesmo vale, é claro, para a noção de
atualização, que diz respeito, nesse sentido, à passagem ontológica da
potentia ao actus, do estado disposicional ao estado atual ou efetivo. (N.
de T.)
17
Para uma erudita exploração da metáfora do véu místico que cobre a
natureza, de Heráclito a Heidegger, ver Hadot (2004).
18
Abrindo a “caixa-preta” das ciências experimentais, os estudos sociais
da ciência demonstraram amplamente que o fechamento do sistema em
situações experimentais é um processo aleatório. Quando H. Collins, o
líder da Escola de Bath, critica Bhaskar por sua tese de que o experimento
é um sistema fechado (Collins, 1992: 25), ele está obviamente referindo-
-se à dimensão transitiva das ciências. Do fato de que uma controvérsia
científica não pode ser encerrada por experimentos cruciais, não se deve
concluir que é impossível controlar o ambiente do experimento e construir
um sistema isolado.

276

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19
Experimentos sociais tendem a criar confusão, não ordem. Isto é
válido para revoluções políticas (Lênin), situações criativas (Debord) e
experimentos de violação de expectativas sociais (Garfinkel).
20
A noção de “dupla hermenêutica” foi cunhada por Giddens (1982:
1-17) para tematizar a circulação (de mão dupla) de conceitos entre a
linguagem ordinária dos atores leigos e os dialetos especializados dos
cientistas profissionais. Na realidade, acredito que estamos diante de uma
hermenêutica quádrupla: as interpretações de senso comum do analista
não são parasitárias apenas das interpretações de senso comum dos atores
(dupla hermenêutica), mas, na medida em que as últimas estão embebidas
em interpretações simbólicas que são parte da cultura – interpreta-se o
que já está interpretado e entende-se o que já está entendido –, enquanto
as primeiras são formuladas com referência ao corpus status da disciplina,
nossas interpretações são de quarta ordem (pace Schutz, não de segunda
ordem).
21
É suficiente estudar outra época ou mover-se para uma cultura diferente,
para não falar em uma civilização diferente (como a Índia), para se
perceber a extensão em que nosso mundo da vida é um mundo pré-
-interpretado que já faz sentido. A experiência de “despaisamento”
(dépaysement) é radical, comparável apenas à conversão religiosa. A
alienação em relação à própria cultura que advém com a mudança
para uma nação estrangeira abre espaço para a possibilidade de uma
“hermenêutica de profundidade” (Tiefenhermeneutik) capaz de descobrir
e revelar “prejulgamentos” e “pré-conceitos” da própria cultura em que
se está imerso. Uma teoria crítica cosmopolita suplementaria a crítica da
economia política com uma hermenêutica crítica inspirada na antropologia
cultural. Ao invés de concentrar-se sobre a exploração e a alienação (a
Entfremdung de Marx), ela desenvolveria uma reflexão sistemática acerca
da experiência do estranhamento (a Verfremdung de Brecht).
22
Argumentos transcendentais são bastante comuns em sociologia (Rose,
1981). A sociologia clássica é impressionantemente neokantiana. Não foi
apenas Simmel quem se perguntou famosamente no primeiro excurso
de Soziologie: como a sociedade é possível? Tomando a efetividade
ou existência do seu objeto de conhecimento como dada, Weber e
Durkheim também buscaram explicitamente descobrir as suas condições
de possibilidade. A despeito de seu pedigree hegeliano, uma boa parte
do marxismo também tem sido entendida como uma crítica da sociologia
no estilo kantiano.
23
A ontologia do mundo social que Bhaskar propõe é filosófica, não
científica. Porém, como marxista, ele privilegia as relações materiais
em detrimento das relações e práticas ideais, terminando por defender
posições substantivas no interior da sociologia. Pode-se conferir maior
ou menor peso aos outros elementos que compõem o mundo social
(se privilegia a cultura e as práticas diante das relações materiais, o
realismo crítico confunde-se com a teoria da estruturação; se privilegia
as práticas em relação à cultura, a teoria da estruturação confunde-se
com a etnometodologia). De modo similar, podemos querer substituir a
hermenêutica pela semiótica ou Wittgenstein pela fenomenologia. Mas

277

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qualquer teoria social com ambições gerais terá necessariamente de fazer
referência a todos os elementos supracitados.
24
Uma relação R entre A e B é interna se A for uma condição necessária
à existência ou essência de B. As relações entre mestres e escravos,
capitalistas e trabalhadores ou marido e esposa são exemplos de relações
internas. Para uma análise mais sofisticada da lógica dialética das relações
internas, ver Ollman (1993).
25
Para uma penetrante comparação entre as concepções respectivamente
idealista e materialista de estrutura social de Giddens e Bhaskar, ver
Porpora (1998).
26
Em seus escritos posteriores, mais inspirados, ele irá adicionar a espiral
do esclarecimento/iluminação 5A-7D à dialética 1M-4D: o quinto
aspecto (5A) – a dimensão espiritual pressuposta por todos os projetos
emancipatórios, sejam seculares ou religiosos; o sexto reino (6R) – do
reencantamento; e a sétima zona (7Z) ou sétimo despertar (7D) – da não
dualidade. Resumindo (e na expectativa da teose ou realização máxima do
divino na Terra), aqui está a versão bhaskariana de O ser e o nada: “Em
virtude de seu compromisso com uma investigação do ser, e do ser como
estruturado, diferenciado e mutável; entendendo-se o ser como processual;
entendendo-se o ser como uma totalidade ou todo; entendendo-se o ser
como incorporando a práxis transformativa e a reflexividade e, no seu
último estágio, entendendo-se o ser como incorporando um aspecto ou
dimensão espiritual, o realismo crítico cava suficientemente fundo para
mostrar como o reino da demirrealidade baseia-se na possibilidade de
um modo de ser dual, mas não alienado, na realidade relativa” (Bhaskar,
2002c: 314).
27
Esta tese é defendida e elaborada em detalhe em Archer, Collier e Porpora
(2004). Nesse livro sobre a transcendência, Margaret Archer (uma católica
mística), o último Andrew Collier (um protestante) e Doug Porpora (um
adepto da teoria do design inteligente) saem do armário religioso e aplicam
os princípios fundamentais do realismo crítico à teologia. Como Bhaskar
é mais interessado em religiões orientais e, portanto, na imanência, ele
não figura no livro. Para aqueles leitores que se perguntam onde me
situo nessas questões, deixem-me dizer apenas que sou um humanista
praticante e um livre pensador com um senso de “misticismo fraco”.
Se parafraseio Bhaskar livremente e sem usar de ironia, é apenas para
revelar o tabu da religião e abrir caminho, por assim dizer, para uma
hermenêutica do oculto.
28
O problema com o Esclarecimento, senão com toda a tradição ocidental
de Platão à OTAN (from Plato to Nato) e de Marx a Marilena Chaui, é
que lhe falta Yoga.
29
Quando o texto, do qual originou este capítulo, estava prestes a ser
lançado, fui informado de que Michel Freitag havia falecido após sofrer
um ataque cardíaco fulminante. O que deveria ser uma homenagem
tornou-se, assim, um obituário.

278

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30
O autor brinca com o fato de que New Haven – expressão traduzível
como “Novo Porto” ou “Novo Abrigo (Recanto, Refúgio etc.)” – é o nome
da cidade que abandonou para vir ao Brasil, cidade onde se localiza a
Universidade de Yale. (N. de T.)

Capítulo 1 - “O real é relacional”:


uma análise epistemológica do
estruturalismo gerativo de
Pierre Bourdieu

1
Na sociologia conteporânea, o estruturalismo, a análise de redes e a
teoria dos sistemas são as principais tradições teóricas que enfatizam a
primazia das relações sobre e contra categorias e substâncias. Enquanto
Bourdieu baseia-se no estruturalismo e Emirbayer na análise de redes,
Fuchs (2001) funde a teoria sistêmica de Luhmann e a análise de redes
de White em um provocativo ataque ao essencialismo e ao realismo.
2
No original, lê-se generative structuralism. Embora tal expressão possa ser
considerada, grosso modo, como sinônima da noção de “estruturalismo
genético”, mais comum na caracterização do quadro teórico-metodológico
de análise da vida social formulado por Bourdieu, o conceito de
“estruturalismo gerativo” mobilizado por Vandenberghe foi mantido
nesta tradução por parecer mais adequado para evocar a dívida que
os alicerces epistemológicos da sociologia bourdieusiana possuem em
relação ao racionalismo de Bachelard e ao relacionismo de Cassirer, além
de já remeter também à ontologia “gerativista” (característica do realismo
crítico) por meio da qual o autor analisa criticamente o pensamento de
Bourdieu. Em comunicação pessoal, o próprio Vandenberghe confirmou
que era essa a sua intenção ao utilizar a expressão. (N. de T.)
3
Bourdieu não é um pensador sincrético, mas sintético e herético. Ele
se apoia em Durkheim, Marx, Weber e outros, mas, na medida em
que os corrige criticamente, poderíamos descrevê-lo também como um
durkheimiano antidurkheimiano, um weberiano antiweberiano ou um
marxista antimarxista. Poderíamos até dizer que ele pensa com Althusser
contra Althusser e contra Habermas com Habermas, mas não – e essa é
provavelmente a única exceção – que ele pensa com Bachelard contra
Bachelard.
4
Até recentemente, a maior parte dos comentadores havia negligenciado
a importante influência da tradição francesa de história e filosofia da
ciência em geral, bem como de Bachelard em particular. Wacquant
(1996c: 152) notou-a e, enquanto isso, Swartz (1997: 31-36) e Pinto (1998:
22-24) corrigiram a falta. Em Culture and power, Swartz introduz sua
análise da influência de Bachelard sobre Bourdieu notando que “muitas
das preocupações teóricas centrais de Bourdieu permanecem, de certo
modo, obscuras para boa parte das sociologias britânica e americana a

279

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não ser quando entendidas à luz dessa tradição filosófica” (Swartz 1997:
31). Antes de Swartz e Wacquant, Raynaud também notou tal influência,
mas infelizmente desembocou na caracterização redutiva da sociologia
de Bourdieu como a “modalidade distinta do materialismo vulgar”
(Raynaud, 1980: 93). Alexander (1995), por sua vez, também assumiu essa
caracterização parcial, mas sem notar a veia bachelardiana no pensamento
de Bourdieu. De outro modo, estou certo, ele não teria atacado Bourdieu
por ignorar a filosofia pós-positivista da ciência. Deixando-se de lado a
forma altamente polêmica e algumas de suas desconfianças, as quais são
devidas ao seu conhecimento superficial das complicações filosóficas
e políticas do campo francês de produção cultural (para uma crítica
extremamente violenta de Alexander, ver Wacquant, 1996d), a metacrítica
que Alexander dirige a Bourdieu pode ser justificada. Entretanto quero
adicionar que, ainda que a sua leitura “sintomática” seja uma dentre as
possíveis, não é certamente aquela que eu favoreceria – embora eu tenha
apresentado uma metacrítica da teoria crítica de Adorno baseada em
uma leitura habermasiana de Theoretical logic in sociology, de Alexander
(Alexander, 1982- 1983), metacrítica que, assim, é algo semelhante à sua
crítica de Bourdieu (Vandenberghe, 1998: 55-103). Mas Bourdieu não é
Adorno. Se Adorno (sem suas nuanças teológicas) pode ser lido como
um Bourdieu hiperdeterminista, ler Bourdieu como se se estivesse lendo
Dialética do esclarecimento é um tanto reducionista. Na realidade, leio
Bourdieu de modo voluntarista, como contrapartida sociológica e prelúdio
à teoria normativa da ação comunicativa de Habermas. Enquanto isso, o
nível de ataques a Bourdieu alcançou um histórico fundo do poço com a
publicação de um panfleto raivoso por uma das ex-adeptas de Bourdieu.
Em Le savant et le politique, perversamente subintitulado Essai sur le
terrorisme sociologique de Pierre Bourdieu [Ensaio sobre o terrorismo
sociológico de Pierre Bourdieu], Verdes-Leroux, uma historiadora que já
pesquisou o partido comunista e a extrema direita, não mais aponta para
as ressonâncias althusserianas no trabalho de Bourdieu, mas traça um
paralelo direto entre Bourdieu e Lênin – não o pensador, mas o tático, o
homem. Pegando embalo na recente popularidade (ou impopularidade)
de Bourdieu como a reencarnação do “intelectual total” sartriano e porta-
-voz da esquerda radical (“a esquerda da esquerda”), o enorme sucesso
comercial de um dos últimos livros de Bourdieu, La domination masculine
(Bourdieu, 1998b) – um best-seller absoluto que alcançou a quinta posição
na parada de livros mais vendidos durante o verão –, incitou seus velhos
inimigos (Mongin, L. Ferry, Finkielkraut, Debray, Grignon etc.) a juntarem-
-se ao burburinho polêmico e levarem a cabo uma série coordenada de
dispersos ataques ad hominem. No mesmo espírito, Nathalie Heinich
(2007), outra ex-estudante de Bourdieu, traçou recentemente paralelos
entre os panfletos de Bourdieu e a propaganda fascista.
5
Bourdieu, que publicou Cassirer nas coleções que ele dirigiu nas
Éditions de Minuit, é possivelmente o sociólogo mais influenciado pelo
autor neokantiano – de dois modos. Em primeiro lugar, a influência
da filosofia das formas simbólicas de Cassirer na teoria da violência
simbólica é abertamente reconhecida e discutida por Bourdieu no seu
principal tratamento desse tema central de seu trabalho (Bourdieu, 1977b:

280

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405-411). Não discutirei essa herança cassireriana aqui, mas concentrarei
minha exegese na concepção relacional de conhecimento de Cassirer,
mostrando como Bourdieu desenvolve-a em direção a uma grandiosa
teoria das propriedades dos campos. Seria também interessante explorar
as dívidas de Bourdieu em relação a Panoksfy, que foi colega de Cassirer
no Instituto Warburg de Hamburgo; infelizmente, essa análise terá de ser
postergada para outro momento.
6
Por “realismo crítico”, uma denominação que emergiu da combinação
entre as expressões “realismo transcendental” e “naturalismo crítico”, me
refiro a um movimento antipositivista na filosofia e nas ciências humanas,
movimento de origem britânica liderado por Roy Bhaskar e inspirado nos
seus livros seminais A realist theory of science, 1978) e The possibility of
naturalism (1979). Diferentemente do realismo de Putnam e Van Fraassen,
o qual é uma forma de “realismo da verdade”, o realismo crítico é uma
versão do “realismo das entidades”. Se o anterior tem como foco a verdade
putativa das teorias, o último está preocupado sobretudo com a realidade
de entidades, estruturas, mecanismos gerativos e poderes causais. Para
uma introdução geral à filosofia de Bhaskar, ver Bhaskar (1989); para
uma boa seleção das leituras essenciais do movimento realista, ver Archer
et al. (1998); para uma amostra de estudos realistas em teoria social, ver
Benton (1977), Keat e Urry (1982), Outhwaite (1987), Layder (1990),
Archer (1995) e Sayer (1992).
7
Nos seus estudos mais antigos, Bourdieu sempre utilizava o termo “realismo”
como uma Kampfwort para atacar o realismo ingênuo dos empiricistas.
Tardiamente, entretanto, o adjetivo “realista” adquiriu conotações mais
positivas, que pareciam sugerir um possível conhecimento do movimento
realista na filosofia anglo-saxã das ciências naturais e sociais. Ver, por
exemplo, La noblesse d’Etat, em que Bourdieu descreve sua epistemologia
como “inseparavelmente construtivista e realista” (1989: 186), ou La misère
du monde, sem dúvida o livro que parece mais distante de sua insistência
anterior na necessidade de ruptura com as concepções e prenoções
espontâneas do social, livro em que ele fala de uma “construção realista”
(1993a: 915-916).
8
O realismo crítico é “o último prego no caixão” do positivismo – o que
não exclui, é claro, que o falecido possa reaparecer, “como uma farsa”,
diria Marx. A força dos retratos positivistas das ciências naturais pode ser
medida pelo fato de que até mesmo uma crítica lúcida do positivismo
como a de Habermas toma como corretas as autointerpretações errôneas
de positivistas como Comte, Mach e mesmo Popper (ver Habermas,
1971a). A mesma observação é válida para um “antifilósofo” como Rorty,
que adota uma posição ultraconvencionalista, mas sem nunca questionar
a visão positivista das ciências naturais. Para uma devastadora crítica de
Rorty, ver Bhaskar (1991).
9
O fato de que as estruturas numênicas e os mecanismos gerativos só
sejam observáveis por meio das suas consequências levanta o problema
de sua representação: Como sabemos que essas estruturas transfactuais
existem? Quem concedeu primazia ao não observável sobre o observável?
Quem fala por essas estruturas? Quem fala em nome delas? Graças a tais

281

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questões críticas acerca da representação de mecanismos transfactuais e
do papel dos porta-vozes na ciência (Latour, 1984), podemos ter acesso
a uma sociologia reflexiva dos intelectuais (Pels, 1998). Nesse ponto, uma
junção e (quem sabe?) talvez até uma colaboração frutífera poderiam
ser estabelecidas entre formas realistas e racionalistas de construtivismo,
de um lado, e, de outro, suas contrapartes nominalistas, representadas
pelo construtivismo radical dos defensores da teoria do ator-rede, como
Callon (1986), Latour (1987) e Law (1994). Tal cooperação, entretanto,
requeriria dos construtivistas radicais o abandono de seu niilismo
ontológico e o uso apenas metodológico do “nexo antiessencialista
(relativismo, construtivismo, reflexividade)” (Grint; Woolgar, 1997: 5), de
modo a mostrar-nos como a “realidade” – i.e., as descrições, redescrições
e construções da realidade, mas não, é claro, a realidade mesma, a qual
existe independentemente de tais descrições, da mesma forma que um
cachorro late independentemente de termos ou não um conceito de
“cachorro” – é “performativamente” construída pelos seus porta-vozes.
Tal movimento do nominalismo ontológico ao metodológico implica uma
correlata mudança de uma postura “desconstrutivista” para uma postura
genuinamente “construtivista”, da construção para algo mais próximo da
constituição fenomenológica (Lynch, 1993) – mas isso pode ser pedir
demais aos “metarreflexivistas”, que estão convencidos, como Derrida,
de que não há hors texte.
10
O fato de que os próprios cientistas muitas vezes pensem que, ao
descrever o mundo, eles constituem-no, ou que possam ser céticos e
até compartilhar do agnosticismo convencionalista dos sociólogos que
observam sua vida de laboratório (Latour; Woolgar, 1979; Knorr-Cetina,
1983), tentando aniquilar a distinção entre a representação e o objeto
(Woolgar, 1991: 21-22), não prejudica a distinção entre as dimensões
transitiva e intransitiva do conhecimento e não deveria distrair-nos
quanto à importância da mesma. A sociologia do conhecimento científico
está preocupada apenas com o estudo das dimensões transitivas do
conhecimento, não das intransitivas. Ela é, portanto, epistemologicamente
relativista e ontologicamente realista. Garantido isto, podemos até aceitar
as conclusões mais provocativas de Latour e Woolgar (1979: 236-237):
“Observando a construção de artefatos, mostramos que a ‘realidade'
[aspas adicionadas] é a consequência da resolução de uma disputa, não
a sua causa. Se a ‘realidade' [aspas adicionadas] é a consequência e não
a causa desta construção, isso significa que a atividade do cientista está
dirigida não à realidade [aspas removidas], mas a essas operações sobre
enunciados.” Para uma crítica do “irrealismo” de Latour por um dos
decanos da sociologia do conhecimento científico, ver Bloor (1999), bem
como a réplica de Latour (1999c).
11
A exploração, realizada por Bhaskar, dos limites ontológicos que o reino
social impõe à pesquisa naturalista (como a dependência de conceitos,
a dependência de atividades e a maior especificidade espaço-temporal
de estruturas sociais) – limites que precluem a transposição totalizante
e não qualificada dos métodos das ciências naturais para as ciências
sociais – deu origem a um modelo transformacional da ação social que
é notavelmente similar à teoria da estruturação de Giddens (ver Bhaskar,
1989; e, para uma comparação crítica entre Giddens e Bhaskar, ver Archer,

282

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1988: 72-100; e Archer, 1995: 87-134), embora o primeiro, diferentemente
do segundo, teorize explicitamente o fenômeno da emergência, de modo
a não dissolver a estrutura na agência.
12
Diferentemente de Passeron, um dos coautores do manual de
epistemologia, que compreendeu a teoria do conhecimento sociológico
em um sentido fraco, compatível com uma pluralidade de teorias
sociológicas, Bourdieu compreendeu aquele manual, desde o início,
como um Manifesto de Escola da sua própria teoria sociológica do mundo
social.
13
É necessário mencionar que Bourdieu, como seu mentor, não pode
reconhecer uma antinomia sem tentar transcendê-la? A esse respeito, erros
e limites do pensamento parecem ser bem úteis. Eles estão lá para serem
corrigidos e superados, constituindo-se assim no meio para a verdade, no
modo de se aproximar mais da verdade, sempre concebida, de maneira
apropriadamente falibilista, como “a verdade até o momento”.
14
O campo da sociologia mundial ainda não é unificado, mas permanece
dividido ao longo de linhas nacionais. Isto provavelmente explica por
que comentadores anglo-saxões, não familiarizados com a tradição
racionalista da épistémologie francesa (Bachelard, Koyré, Canguilhem,
Cavaillès) ou com a tradição alemã neokantiana da Wissenschaftslehre
(Lask, Cassirer, Panofsky), projetam sua própria vertente de filosofia
da ciência (Bhaskar) na posição de Bourdieu, descrevendo-o como
um “realista crítico” (e.g., Harker et al. 1990: 201; Jenkins, 1992: 95-96;
Fowler, 1997: 6, 17, 82). Esta atribuição errônea é, entretanto, facilmente
compreensível, já que resulta da confusão entre os níveis epistemológico
e metateórico de análise. Em termos epistemológicos, Bourdieu é um
neokantiano e, assim, um idealista; em termos metateóricos, ele é um
weberiano-marxista e, assim, um materialista; a confusão entre ambos
os níveis de análise leva ao rótulo “realista”, que se refere à vertente
materialista da epistemologia. Desnecessário dizer, minha crítica dirige-se
apenas ao idealismo epistemológico, não ao metateórico. Diferentemente
dos críticos mais ferozes de Bourdieu, não estou afirmando que o seu
estruturalismo representa uma versão sofisticada do materialismo vulgar
ou reducionista, mas que ele (na pior das hipóteses) reduz a ontologia à
epistemologia e (na melhor das hipóteses) evita assumir compromissos
ontológicos recorrendo a um aceno convencionalista à “filosofia do como
se”, do neokantiano Vaihinger.
15
Para uma discussão deste assunto em relação a Althusser, ver Benton
(1984: 179-99). Esta referência a Althusser mostra que não é suficiente
inspirar-se no Marx tardio para tornar-se um realista. O que realmente
importa é se interpretamos Marx em termos racionalistas ou realistas.
O fato de que o próprio Althusser estava claramente navegando na
direção do racionalismo é revelado por seu comentário, aparentemente
insignificante (e que ecoa uma famosa passagem de Derrida), de que
“nunca saímos do conceito” (Althusser et al., 1970: II: 67; ver também p.
20 et seq.).

283

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16
Aqui Bourdieu parece seguir Lévi-Strauss quando este afirma que “o
princípio fundamental é que a noção de estrutura social não se refere
à realidade empírica, mas aos modelos que são construídos de acordo
com ela” (Lévi-Strauss, 1958: 331). A ruptura com o objetivismo de
Lévi-Strauss vem em um estágio posterior, quando Bourdieu irá criticar
a “falácia escolástica”, que consiste na transposição intelectualista dos
modelos teóricos para a cabeça dos próprios atores, entronizando-se
metadiscursos e metapráticas como princípios dos discursos e práticas,
bem como sugerindo-se que os atores agem de acordo com o modelo,
o que é um pouco como assumir que andamos constantemente por
qualquer lugar como turistas em uma cidade estrangeira, com um mapa
em nossas mãos. Como veremos posteriormente, na discussão da noção de
habitus, a estrutura invisível de diferenças assume uma existência real e é
“ocasionalmente” revelada na existência ordinária, disfarçada sob a forma
vivida da manutenção de distâncias, de afinidades e incompatibilidades,
simpatias e rejeições etc.
17
Ao dizer que a ciência deve ser ontologicamente ousada (ou até mesmo
“presunçosa”), mais do que epistemologicamente cautelosa (ou “modesta”),
estou questionando explicitamente a famosa defesa programática de uma
dissolução da ontologia por Kant – “O nome orgulhoso de uma ontologia
que presunçosamente afirma fornecer, em uma forma doutrinal sistemática,
um conhecimento sintético a priori das coisas em geral... deve dar lugar
modestamente a uma mera analítica do entendimento” (Kant, 1983: B
884). No entanto, na medida em que o realismo crítico sustenta que o
conhecimento é, em última instância, fundado a posteriori, ele não reverte
simplesmente o programa de Kant. O realismo estabelece, por meio de um
argumento transcendental, que a ciência pressupõe necessariamente uma
ontologia de mecanismos gerativos complexos, mas, sabiamente, deixa à
ciência a tarefa da investigação empírica de quais são estes mecanismos
e de como eles funcionam.
18
Aqui, Bourdieu baseia-se polemicamente na fenomenologia do mundo da
vida de Husserl. De acordo com Husserl, o mundo de senso comum, nosso
mundo ordinário, cotidiano, é um domínio da “doxa passiva”, i.e., um
domínio em que o real é tomado como dado e evidente em sua existência,
não sendo questionado reflexivamente a respeito dos atos intencionais
da consciência que o constituem. Na experiência dóxica do mundo, o
mundo está sempre lá, passiva e imediatamente dado à consciência como
a fundação inquestionada de todos os atos constitutivos da consciência
e das próprias ações. “Na doxa passiva, o ser não é apenas pré-dado
como o substrato de todas as realizações possíveis do conhecimento que
contribuem ativamente para ele, mas também como o substrato para todas
as avaliações, determinações práticas de fins e ações” (Husserl, 1985: 53).
19
A versão “dura” da ruptura com a “sociologia portátil” (Javeau) é exposta
no manual epistemológico (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1973),
sendo a versão “leve” apresentada em La misère du monde. Nesse belo
livro, que consiste principalmente em entrevistas transcritas com os
excluídos deste mundo (o comerciante racista, o negociante do gueto,
o sindicalista desiludido, o professor deprimido, a mulher argelina etc.),

284

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as quais são precedidas por pequenas mises en perspective sociológicas
de Bourdieu e seus colaboradores, o principal conceito (misère de
position, a miséria ordinária ligada à posição social) não é sequer definido
sociologicamente, embora as prenoções espontâneas da vida cotidiana
comum estejam inseridas em um esquema mais amplo de construções
sociológicas do objeto que Bourdieu elaborou em outro lugar, mas que
permanece em larga medida implícito nesse livro. A mensagem principal
é, de fato, política: se os políticos não intervierem para melhorar as
condições de vida das pessoas comuns, dos excluídos e dos marginais,
serão considerados “culpados pela não assistência a pessoas em perigo”
(Bourdieu, 1993a: 944).
20
Esta disjunção radical em relação às concepções de senso comum do
mundo social não exclui, é claro, a possibilidade de que os conceitos
científicos dos sociólogos sejam posteriormente disseminados e
apropriados pelas pessoas comuns (ou “sociólogos leigos”, como os
etnometodólogos as chamam) – Garfinkel e seus colegas não hesitam
em “reespecificar” jocosamente os chimpanzés como “colegas animais”
(Lynch; Livingston; Garfinkel, 1983: 213). No mínimo, a teoria social de
Bourdieu, que pretende no fim das contas ser uma teoria crítica, teria de
pressupor esse tipo de “reflexividade institucional” (Giddens, 1990: 15-
16) na qual o conhecimento “espirala dentro e fora” dos contextos que
descreve, reconstituindo, assim, performativamente, tanto a si mesmo
quanto ao seu contexto. De todo modo, permanece subteorizada no
trabalho de Bourdieu esta “dupla hermenêutica” através da qual os
conceitos científicos são reintegrados ao senso comum, o qual é por
sua vez esclarecido e transformado em uma nova configuração de
conhecimento prático que se aproxima da phronesis aristotélica. Para uma
teorização da segunda ruptura epistemológica (a ruptura com a ruptura),
ver Santos (2000: 31-45).
21
A consequência inevitável dessa inflexão teórica é, evidentemente, o
fato de que Bourdieu não pode levar em consideração ou explicar a
autonomia da ordem da interação (Luhmann, 1975a: 9-20; Goffman, 1983).
Outra consequência é o fato de que as “subjetividades coletivas”, como
movimentos sociais e grupos, tendem a escapar de sua teia conceitual
(Domingues, 1995). Bourdieu sempre concebe subjetividades coletivas,
como a nação, o povo ou o proletariado, como atores hipostasiados, não
hipotéticos. Para uma crítica do nominalismo de Bourdieu e a apresentação
de uma alternativa realista, ver minha análise da estruturação dos coletivos
neste livro (cf. Domingues, 1995: cap. 5).
22
Diferentemente da maioria dos lectores anglo-saxões de Durkheim (com
a exceção notável de Johnson, Dandeker e Ashworth, 1984), Bourdieu
sempre concebeu Durkheim como um racionalista e estruturalista, não
como um positivista. Para se acessar adequadamente o estruturalismo de
Durkheim, deve-se ler seu trabalho via Marcel Mauss e Lévi-Strauss, tal
como fez Bourdieu.
23
Para uma esclarecedora discussão analítica de relações de ordem mais
elevada (relações entre relações entre relações) que é, de certo modo,
similar àquela de Bourdieu, ver Archer (1995: parte II).

285

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24
Ainda que eu não vá dizer muito aqui sobre a “violência simbólica”, este
é o ponto em que Bourdieu insere a clássica análise de Marx sobre os
efeitos ideológicos da ilusão fetichista, que consiste na inversão reificadora
da interação entre coisas e relações, de tal modo que “as relações sociais
entre os homens assumem, aos seus olhos, a forma fantástica de uma
relação entre coisas” (Marx, 1970: 72). Para uma análise mais sistemática
da reificação, ver Vandenberghe (1997: caps. 1 e 5).
25
A exploração neofuncionalista de uma teoria relacional por Donati, que
se guia pelos pontos de vista de Alexander e Luhmann, também começa
com o slogan católico “No princípio está a relação” (Donati, 1991: 80).
Entretanto, sua teoria das relações é sistêmica, funcionalista e, em última
instância, interacionista, mas não estruturalista.
26
Para uma análise do pensamento de Cassirer que mostra a continuidade
entre Substância e Função e a filosofia das formas simbólicas, ver
Vandenberghe (2001).
27
Esta ideia leibniziana da (sobre)determinação relacional do concreto
particular por uma multiplicidade de variáveis, variáveis cuja relação
pode ser expressa por meio de uma função matemática, é claramente
formulada por Bachelard nos seguintes termos: “Tomado como um
complexo de relações, um fenômeno particular é uma função genuína
de diversas variáveis. A expressão matemática analisa-o de forma mais
precisa” (Bachelard, 1929: 209). Marx expressou a mesma ideia em 1857,
na “Introdução” aos Grundrisse, onde ele afirma: “O concreto é concreto
porque é a concentração de muitas determinações, portanto a unidade do
diverso. Ele aparece no processo de pensamento, dessa maneira, como
um processo de concentração, como um resultado e não um ponto de
partida, ainda que seja o ponto de partida na realidade e, assim, também
o ponto de partida para a observação e a concepção” (Marx, 1973: 101).
No entanto, contra Marx e com Sayer (1995: 18-42), que analisa a relação
entre a propriedade privada, o mercado e a divisão do trabalho, devemos
ressaltar que, se o concreto é de fato uma concentração ou função de
vários relacionamentos necessários, a forma da concentração é contingente
e, portanto, determinável apenas por meio da pesquisa empírica.
28
Na realidade, os marginais permanecem ainda “incluídos”, de certo
modo, segundo a topologia social de Bourdieu. Destituídos de todas as
espécies de capital e excluídos dos campos de produção e consumo,
eles estão localizados no andar hierárquico inferior do mundo social.
A abordagem luhmanniana da exclusão é mais radical (Luhmann, 1997,
II: 630-634) e, portanto, mais apta para analisar a situação na sociedade
brasileira. Aqueles que estão excluídos de facto de todos os subsistemas
funcionais (sem emprego, sem renda, sem CPF, sem relações íntimas
estáveis, sem acesso à justiça formal, a serviços médicos etc.) estão também
espacialmente separados daqueles incluídos no sistema. Excluídos de
todos os subsistemas, eles são reduzidos a corpos perigosos e talvez até
mesmo à “vida nua” passível de ser eliminada sem que isso constitua um
crime.

286

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29
Esta é uma linha de argumentação absolutamente não durkheimiana.
Como Durkheim deixou claro em seu discurso inaugural (Durkheim,
1970: 78-85), o projeto de estabelecimento da sociologia como uma
disciplina autônoma está analiticamente ligado à autonomia do seu objeto,
sendo dependente da mesma. Deve-se ressaltar também, nesse contexto,
que esta definição analítica do campo está em conflito com a análise
genética dos campos de Bourdieu, de acordo com a qual campos não
são invariantes históricas, mas só emergem nos tempos modernos como
sistemas autorreferenciais “diferenciados de seu ambiente” (Luhmann)
ou “desengatados do mundo da vida” (Habermas). Para uma exploração
da tensão entre a especificidade histórica e a validade trans-histórica do
aparato analítico de Bourdieu, ver Calhoun (1995: 132-161).
30
Esta “sobredeterminação” (Althusser) é o que distingue teorias dialéticas
de totalidades (laterais) de análises mais funcionais de sistemas (ver
Habermas, 1976). As inter-relações, ou melhor, intrarrelações dialéticas
entre os elementos de uma totalidade orgânica permanecem de difícil
compreensão para mentes mais analiticamente inclinadas, como Pareto,
por exemplo, que reclama que os conceitos de Marx são “como morcegos:
pode-se ver neles ratos e pássaros ao mesmo tempo” (citado por Ollman,
1971: 3).
31
A ideia da invariância estrutural de um “código universal” (Lévi-Strauss),
que gera e explica todas as diferenças fenomênicas, permite que sejam
estabelecidas correspondências formais ou homologias estruturais entre
diferentes campos. Essa combinação entre invariância formal e variação
material é o que torna possíveis comparações internacionais bem-
-sucedidas. Assim, para tomar o exemplo do campo educacional, mesmo
que fora da França não haja um equivalente exato, digamos, da École
des Hautes Estudes en Sciences Sociales ou do Collège de France (ainda
que o Iuperj, no Rio de Janeiro, esteja bastante próximo da primeira e a
All Souls College, de Oxford, bastante próxima do último), é suficiente
aplicar a grade relacional, transpô-la para um novo contexto e equivalentes
estruturais sem dúvida serão encontrados. A noção hologramática de
homologia vem, na sua versão estrutural, de Lévi-Strauss e, na sua versão
praxiológica, de Panosky.
32
O modo linear de pensamento viola, portanto, o que um analista de
redes chamou adequadamente de “imperativo anticategórico” (Emirbayer,
1997: 1.414). Este imperativo rejeita explicações que concebem o
comportamento social como o resultado da possessão comum de atributos
categóricos por indivíduos, estipulando que esses atributos categóricos
assumem seu significado apenas quando são inseridos em um sistema
estrutural de relações internas.
33
Cartografando as pressuposições lineares ocultas que subjazem à análise
multivariada, Abott descreve o efeito de reificação nos seguintes termos:
“Muitos sociólogos tratam o mundo como se a causalidade social
efetivamente obedecesse às regras das transformações lineares. Eles
fazem isso assumindo, nas teorias que abrem seus artigos empíricos, que
o mundo social consiste em entidades fixas com atributos variáveis, que
esses atributos têm apenas um significado causal de cada vez e que esse

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significado causal não depende de outros atributos, da sequência passada
de atributos ou do contexto de outras entidades” (Abott, 1988: 181).
34
“A análise de correspondência ajuda a entender o conteúdo das
associações entre variáveis por meio da sua visualização. Categorias
que coocorrem de modo relativamente frequente são aproximadas em
um mapa, enquanto categorias que se excluem mutuamente, i.e., que
coocorrem de modo relativamente raro são distanciadas entre si” (de
Nooy, 2003: 307). Indo contra a rejeição da análise de redes sociais por
Bourdieu, de Nooy argumenta não apenas que a análise de relações
objetivas (correspondência) e a análise de relações interpessoais (redes)
são complementares, mas que são, tecnicamente falando, idênticas.
35
Vistos de uma perspectiva popperiana, o materialismo histórico, a
psicanálise e a assim chamada “psicologia individual” aparecem como
“pseudociências”. Elas não são científicas porque não podem ser falseadas.
Sua força é sua fraqueza. Não há dúvida de que a crítica que Sir Karl
Popper dirige a Marx, Freud e Adler (mas nunca à sua própria teoria)
se aplica à teoria dos campos de Bourdieu: “Essas teorias pareciam ser
capazes de explicar praticamente tudo o que acontecia nos campos aos
quais elas se referiam. O estudo de qualquer uma delas parecia ter o
efeito de uma conversão ou revelação intelectual, abrindo seus olhos para
uma nova verdade oculta àqueles ainda não iniciados. Uma vez que seus
olhos estivessem abertos, portanto, você via exemplos confirmatórios em
todo lugar: o mundo estava cheio de verificações da teoria. O que quer
que acontecesse sempre as confirmava” (Popper, 1989: 34-35).
36
Caillé considera o trabalho de Bourdieu o símile sociológico da Comédie
humaine de Balzac, concluindo que ele pertence ao domínio da
“literatura conceitualizada” (Caillé, 1992: 113), sem, no entanto, e isto
é importante, emprestar conotações excessivamente negativas a essa
caracterização estética. De minha parte, considero o trabalho de Bourdieu
mais proustiano, eivado como é das sutilezas de sua observação, da
direção inovadora de suas associações e das reflexões minuciosamente
detalhadas sobre a vida cotidiana, através das quais a vida e o sangue são
inseridos no que seria, de outro modo, um sistema altamente formalista.
E, ainda que suas “sentenças pesadamente articuladas, que devem ser
reconstruídas praticamente como sentenças latinas” (Bourdieu, 1987a:
66), possam lembrar por vezes o “estilo elefantino” de Parsons, devo
dizer – ou melhor, confessar? – que gosto bastante das suas sentenças
de estilo germânico, com uso abundante da vírgula, do ponto e vírgula
e do hífen, frases imersas umas nas outras, acrobacias reflexivas, jogos
de palavras literários, referências eruditas à escolástica, oblíquos ataques
polêmicos a adversários não citados e uma predileção quase adorniana
por inversões quiasmáticas, negações e paradoxos.
37
A coerência da teoria e, assim, da sua “verdade”, também encontra
expressão no “politeísmo metodológico” de Bourdieu: “Não apenas ele
frequentemente triangula ou valida seus resultados ex post com diferentes
métodos – o encaixe entre os vários resultados assim gerados substituindo
a discussão técnica dos intervalos de confiança e questões do gênero –,
como também lê dados quantitativos ‘etnograficamente’, i.e., como meios

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exploratórios ou confirmatórios de localização de padrões subjacentes,
enquanto, inversamente, frequentemente interpreta observações de
campo ‘estatisticamente’, ou seja, com o objetivo de construir inferências
e elaborar relações entre as variáveis” (Wacquant, 1990: 683).
38
Para a história intelectual do conceito (Aristóteles, Boécio, Averróis,
Tomás de Aquino, Hegel, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Mauss e
Panofsky), ver Bourdieu (1985: 14), Funke (1974), Rist (1984), Héran
(1987) e Wacquant (2004; 2005). Em Bourdieu, a noção de habitus
inclui esquemas lógicos (o eidos), esquemas práticos (o éthos) e sistemas
de ação corporal (a hexis) (Peters, 2006: 82-85). Não obstante a longa
tradição do conceito, a influência do movimento fenomenológico é
realmente decisiva na minha opinião, embora, infelizmente, devido à falta
de espaço, eu não possa explorar essa veia fenomenológica aqui. Ainda
que Husserl utilize o conceito com certa regularidade, Bourdieu é mais
influenciado por Heidegger, seu “primeiro amor”, que usa o conceito
menos frequentemente. A despeito da influência significativa das Ideen
II (Husserl, 1952) sobre Bourdieu (e Merleau-Ponty), está claro que ele
não tem muita simpatia pelo cartesianismo radical da fenomenologia
transcendental de Husserl e está feliz em seguir a guinada de Heidegger,
que abandona a fenomenologia transcendental do “mestre” em direção
a uma analítica existencial do Dasein. Vista contra esse pano de fundo,
a crítica da filosofia da consciência feita por Bourdieu, manifesta na sua
insistência sobre a natureza prerreflexiva e rotinizada de nossas práticas,
começa a fazer sentido. Como Heidegger e contra Husserl, Bourdieu está
simplesmente convencido de que o “conhecimento é um modo fundado
(ou derivado) de ser-no-mundo do Dasein” (Heidegger, 1993: parte 1:
62). No entanto, no que tange ao conceito de habitus, está claro que a
análise do “hábito” de Merleau-Ponty é a que mais se aproxima daquela de
Bourdieu. Tendo lido Bourdieu antes de Merleau-Ponty, tive realmente a
impressão de estar lendo Bourdieu diante das descrições fenomenológicas
dos atos de “escrever na máquina de escrever” e “tocar órgão” (Merleau-Ponty,
1945: 166-172). Para uma boa exploração dos trabalhos praxiológicos do
habitus através de uma análise da hexis pugilística, ver Wacquant (1995),
e, para uma autoapresentação do trabalho e dos interesses variados deste
intérprete transatlântico designado pelo próprio Bourdieu, ver Wacquant
(1996a).
39
Para uma crítica forte e convincente do conceito bourdieusiano de habitus,
ver Lahire (1999: 121-152). Desde então, Lahire transformou sua poderosa
crítica de Bourdieu em um projeto autônomo de pesquisa que investiga
em detalhe as múltiplas manifestações contextualizadas de disposições
(Lahire, 1998; Lahire, 2002).
40
Nesse sentido, pode-se descrever os poderes virtuais do habitus
como “poderes passivos” ou “potencialidades”, bem como tais
potencialidades como as disposições do agente para agir em virtude
de sua natureza essencial, sendo o estímulo que ativa a disposição
do agente parte das circunstâncias extrínsecas (Harré, 1970: 272).
Assim como a disposição de roubar se manifesta apenas quando uma
situação apropriada se apresenta, o habitus só se torna atualizado e
manifesto em certas circunstâncias concretas que acionam seus poderes.

289

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41
A distinção entre ergon e energeia vem de Von Humboldt; ela corresponde
à distinção entre opus operatum e modus operandi, que vem de
Panofsky. Cassirer, que trabalhou com Panofsky no Instituto Warburg em
Hamburgo, é o mediador entre os dois autores.
42
Além do mais, é apenas em circunstâncias excepcionais, se é que alguma
vez, que o habitus funciona como o malin génie da reprodução perfeita.
O modelo é ideal-típico, o que significa, de acordo com Weber, que ele
nunca ocorre na realidade e, portanto, é puramente heurístico. Deve-se
lembrar que a situação-limite de reprodução perfeita é apenas um “caso
particular do possível”, evitando-se “universalizar inconscientemente o
modelo da relação quase-circular de quase perfeita reprodução, que
só é válido no caso em que as condições de produção do habitus e as
condições do seu funcionamento são idênticas ou homólogas” (Bourdieu,
1974: 5). Não obstante o fato de que Bourdieu também analisa situações
em que a “cumplicidade ontológica” (Heidegger) entre o habitus e o
campo é rompida (o assim chamado efeito de hysteresis; (ver Bourdieu,
1977a; Bourdieu, 1984a: 207-50), é preciso, no entanto, ressaltar que até
agora a situação de perfeita cumplicidade tem sido sistematicamente
privilegiada. A esse respeito, Bourdieu involuntariamente se assemelha
a Parsons. De fato, é suficiente manipularmos um pouco algumas
sentenças de The social system para obtermos possíveis extratos de A
reprodução: “Será assumido que a manutenção da complementaridade
das expectativas de papel (do habitus e do campo), uma vez estabelecida,
não é problemática; em outras palavras, que a ‘tendência’ à manutenção
do processo de interação é a primeira lei do processo social. Isto é
claramente um pressuposto” (Parsons, 1951: 205); “A teoria, em relação
a tais sistemas, está dirigida para a análise das condições sob as quais
um dado padrão constante do sistema será mantido e, inversamente, das
condições sob as quais ele será alterado de modos determinados. Esta,
podemos conjecturar, é a base fundamental do pressuposto de nossa
‘lei da inércia’ dos processos sociais” (Parsons, 1951: 482); e, por último,
mas não menos importante, “se a teoria é boa teoria, qualquer que seja
o problema que ela ataca mais diretamente, não há nenhuma razão para
acreditar que ela não será igualmente aplicável a problemas de mudança”
(Parsons, 1951: 435). E, com efeito, não sendo apenas “grandiosa”, mas
também “grande” e “boa” teoria, não há razão nenhuma para não se
ler o sistema teórico de Bourdieu, contra a corrente, como uma teoria
sistemática das condições de possibilidade da mudança social.
43
Sempre tive a impressão de que a topologia do espaço de possibilidades
metateóricas formulada por Bourdieu era perfeita. Como Bachelard
em seu “perfil epistemológico” (Bachelard, 1988: 41-51), Bourdieu
mapeou sistematicamente as oposições epistemológicas e metateóricas
que estruturam a disciplina sociológica: “A oposição entre Marx,
Weber e Durkheim, tal como é ritualisticamente invocada nos cursos e
dissertações, esconde o fato de que a unidade da sociologia está, talvez,
localizada no espaço de posições possíveis. O antagonismo, quando é
compreendido como tal, propõe a possibilidade da sua própria superação”
(Bourdieu, 1987a: 49; ver também Bourdieu, 1971b: 295). E ainda
que, no fim das contas, em sua tentativa de transcender as oposições

290

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rituais entre objetivismo e subjetivismo, determinismo e voluntarismo,
materialismo e idealismo, externalismo e internalismo etc., ele sempre
termine no mesmo polo da polaridade, “transcendendo, por exemplo,
o dualismo objetivismo-subjetivismo enquanto permanece firmemente
enraizado no objetivismo” ou “rejeitando raivosamente o determinismo
ao mesmo tempo que produz persistentemente modelos deterministas
de processos sociais” (Jenkins, 1992: 175), em princípio, nada deveria
impedir-nos de tentar torcer o bastão na outra direção. Ao argumentar
desta forma, estou tentando responder ao celebrado “retorno do sujeito”
e à inflexão pragmática, descritiva e interpretativa que caracteriza a
teoria social francesa pós-bourdieusiana e se manifesta na maior ênfase
conferida à natureza reflexiva da ação pelo eixo da práxis (the praxis
axis) habermasiano- Ricœur iano e pela fração da ação (action fraction)
“etno-boltanskiana” (Gauchet, 1988; Dosse, 1995). Se, por razões pessoais,
Boltanski e outros ex-bourdieusianos tiveram de romper com a teoria
social crítica de Bourdieu como tal, de modo a desenvolverem uma “teoria
da crítica social” (Boltanski; Thévenot, 1991), estou procurando chegar
à mesma posição por meio de uma “crítica imanente”. Argumentando
com Bourdieu contra Bourdieu, busco abrir o sistema a partir de dentro
e afrouxar as rédeas da sua problématique firmemente construída. Isso
não significa que eu não esteja interessado nos limites do sistema, mas
apenas que evito me situar fora dos confins do mesmo. Tal como o
próprio Bourdieu, sou fascinado pelo que se encontra fora do sistema:
a verdadeira dádiva, a verdadeira comunicação, a verdadeira amizade, o
verdadeiro amor, em suma, o “milagre” maussiano da “troca simbólica”
que escapa à dominação, ao cálculo, à manipulação etc.(Vandenberghe,
2008). Assim, para tomarmos seu livro mais recente sobre a dominação
masculina, que oferece uma reinterpretação “feminista” de sua antiga
pesquisa antropológica sobre os sistemas tradicionais de classificação na
Cabila (Bourdieu, 1972) e utiliza-a como um tipo ideal para descobrir
a onipresença da dominação simbólica masculina no Ocidente, o que
realmente me interessa é o “Post-Scriptum (não científico?) sobre o
amor e a dominação” (Bourdieu, 1998b: 116-119), no qual Bourdieu fala
abertamente, provavelmente pela primeira vez, sobre os limites do seu
sistema, casu quo o miraculoso cessar-fogo, o fim da guerra e das lutas,
o fim da troca estratégica, ou, mais positivamente, a não violência, o
reconhecimento mútuo, a reciprocidade plena, o desinteresse, a confiança,
o encanto, a felicidade ou “paz”, para falarmos como Adorno.
44
Apenas um exemplo: no fim de La noblesse d’Etat, Bourdieu esboça um
modelo da progressão histórica do universal. Em uma entrevista com
Wacquant (1993b: 35-36), ele confessa que, quando estava lendo as provas
do livro, decidiu cortá-lo, mas o gerente de produção das Éditions de
Minuit inadvertidamente deixou-o no volume.
45
Comparando seus primeiros trabalhos – inclusive aqueles mais praxiológicos,
como Esquisse d’une théorie de la pratique, em que Bourdieu afirma
explicitamente que as práticas “sempre tendem a reproduzir as estruturas
objetivas das quais são, em última análise, o produto” (Bourdieu, 1972:
175) – com seus trabalhos mais recentes (especialmente Bourdieu, 1997a),
podemos notar um enfraquecimento progressivo do hiperdeterminismo.

291

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Ainda que os acentos chomskyanos sobre a “capacidade gerativa” do
habitus estivessem presentes desde o início (Bourdieu; Passeron, 1967:
151-64), a ênfase na natureza ativa, improvisadora, inventiva e até mesmo
criativa do habitus é relativamente nova (Bourdieu, 1984b: 134-35;
Bourdieu, 1987a: 23; e Bourdieu, 1997a: 170-93).
46
É suficiente estabelecer uma comparação com o livreto metafísico de
Ravaisson sobre o habitus, do qual Heidegger gostou tanto e onde o
“hábito” é caracterizado como a transformação da Liberdade em Natureza
e da Vontade em Instintos (Ravaisson, 1997: 82-103), para perceber que
Bourdieu confere uma inflexão ativista ao conceito de “segunda natureza”.
47
Quando escrevi este texto, referi-me à comunicação com um aceno ao
pragmatismo e à teoria crítica. Desde então, Margaret Archer (2003)
convenceu-me de que mediamos ativamente a relação entre agência e
estrutura em e através de nossas conversações internas. Sobre a mediação
da meditação, ver Archer (2003: cap. 6).
48
Em uma soberba crítica da sociologia reflexiva de Bourdieu, Kögler (1997)
mostra que, embora Bourdieu pressuponha em princípio a possibilidade
de uma reconfiguração ou reestruturação reflexiva do habitus, ele
é incapaz, na realidade, de ultrapassar o abismo entre os discursos
leigo e intelectual, bem como de ligar a reflexividade do sociólogo à
reflexividade dos agentes. Baseando-se em Gadamer, Kögler tenta resolver
o problema interpretando hermeneuticamente o habitus, de tal modo
que a reconstrução teórica do habitus pelo sociólogo seja reconectada à
autocompreensão crítica dos habitus dos agentes.
49
A natureza reducionista das análises materialistas históricas da cultura é
bem capturada na contundente e largamente citada passagem de Sartre
sobre Valéry: “Valéry é um intelectual pequeno-burguês, não há dúvida
a respeito. Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry. A
inadequação heurística do marxismo contemporâneo está contida nessas
duas sentenças” (Sartre, 1963: 56). Para se entender por que Valéry (ou
Flaubert) escreve como escreve, é preciso reabrir o curto-circuito e inserir
o campo como um mediador autônomo entre a base e a superestrutura.
50
Sobre os campos, ver Bourdieu (1983a: 311-56; 1984b: 113-20; Bourdieu;
Wacquant, 1992: 71-91). Ao dizer que as influências externas são
“refratadas” pelas estruturas dos campos, Bourdieu parece aceitar e seguir
uma das teses centrais de Luhmann, qual seja, a de que os campos são
sistemas autorreferencialmente fechados que só podem se comunicar, ou,
mais precisamente, ressoar uns nos outros se as mensagens codificadas
oriundas de outros sistemas em seu ambiente são, de algum modo,
retraduzidas para o código binário do sistema receptor (para a mais
clara exposição da autorregulação de sistemas por meio de uma abertura
seletiva de tais sistemas para os seus ambientes, ver Luhmann, 1986).
51
No original: misrecognition. A tradução da expressão misrecognition
(no francês de Bourdieu: méconnaissance) por “desconhecimento” é
bastante inexata, mas não há um equivalente preciso em português para
transmitir a conjugação singular de reconhecimento e desconhecimento
implicada no conceito bourdieusiano (“reconhecimento errôneo” seria

292

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possivelmente a melhor alternativa). Tal conjugação tem de ser entendida
à luz da teoria da violência simbólica: ao conceber estruturas sociais como
mecanismos historicamente reproduzidos de distribuição assimétrica de
poder, o sociólogo francês se dedica a identificar tal poder nos espaços,
crenças e práticas em que o seu exercício é coletivamente dissimulado
ou “eufemizado” aos olhos de dominantes e dominados, i.e., tacitamente
reconhecido como legítimo e, o que vem a dar no mesmo na sua
perspectiva, desconhecido como arbitrário (daí as expressões méconnu
e misrecognised). (N. de T.)
52
Comunicação pessoal de Stephen Mennell em Toronto, agosto de 1997.
Para uma análise bem informada da relação entre Cassirer e Elias, ver
Maso (1995). Nesse ponto, deve ser ressaltado que Bourdieu não define o
campo como uma estrutura de relações entre pessoas, como faz Elias, mas
entre posições, ou, como diria Bhaskar, como um “sistema de posições-
-práticas” (Bhaskar, 1989: 41). Essa diferença, que pode ser formulada
como uma diferença entre concepções institucionais e figuracionais de
estrutura (Mouzelis, 1995: 69-80), explica por que, a despeito de todas
as similaridades, a sociologia figuracional de Elias tem ainda um eco
empiricista, o qual foi completamente descartado pelo racionalismo de
Bourdieu.
53
Essa ideia do “consenso no dissenso”, de acordo com a qual o dissenso
não apenas pressupõe, mas também reforça o consenso, ou, para o
dizer o mesmo de modo um pouco diferente, de acordo com a qual o
conflito na verdade contribui para a emergência de uma compreensão
compartilhada e, portanto, para a integração dos oponentes em uma
comunidade, é tipicamente francesa. Pode-se achá-la não apenas em
Bourdieu, mas também na analítica dos movimentos sociais de Touraine,
pensados como formações reativas baseadas nos princípios de Identidade,
Oposição e Totalidade (Touraine, 1978: 103-133), bem como no conceito,
formulado por Lefort, do político (le politique) como a forma gerativa e
fundacional da integração e divisão social (Lefort, 1986: 1-27).
54
A ideia de illusio (etimologicamente derivada de ludus, jogo) refere-se à
crença fundamental de que vale a pena jogar o jogo. Na medida em que o
jogador toma sua crença no jogo por dada e evidente, não questionando
as suas origens sócio-psico-genéticas, uma certa dose autoengano e
autoilusão está implicada em sua libido.
55
A essa altura, alguma clarificação analítica pode ser útil para distinguirmos
os conceitos, que estão encaixados uns dentro dos outros como bonecas
russas: 1) Um espaço é tudo aquilo que é topologicamente construído
como uma estrutura relacional de diferenças geradas por um princípio,
ou, como diria Cassirer, por uma “progressão ordenada” ou “função
matemática” que revela e constitui uma região da realidade. 2) Todas as
sociedades são espaços sociais, i. e., estruturas de diferenças relacionais
geradas pelo princípio da distribuição das diferentes espécies de capital
ali vigentes. 3) Espaços sociais são campos, i.e., campos de forças e de
lutas nos quais classes sociais buscam transformar a estrutura do campo.
4) A estrutura de forças do campo do poder determina, em qualquer
momento dado, o princípio de hierarquização das posições: se o princípio

293

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dominante será o capital econômico ou o capital cultural. As classes
lutam pela determinação do princípio dominante da dispersão hierárquica
de posições no campo. As classes dominantes só são dominantes se
conseguem impor de modo bem-sucedido seu tipo de capital como o
princípio dominante de hierarquização. 5) O campo do poder não deve
ser confundido com o campo político (analisado por Poulantzas (2000)
de um modo que antecipa, de certa forma, a análise do campo político
de Bourdieu), que é um subcampo como qualquer outro. O campo do
poder é uma espécie de “metacampo” que regula as lutas por poder em
todos os campos. Sua configuração determinada em qualquer momento
do tempo tem implicações para as lutas pela imposição do princípio
de hierarquização que se desenrolam nos subcampos da produção
cultural, pois a configuração do campo do poder sobredetermina a
configuração dos subcampos. O estado da estrutura do campo do poder
determina a estrutura das oposições do subcampo e, portanto, também
as possíveis alianças que podem ser formadas neste último, bem como
entre os membros do subcampo e aqueles de seu ambiente. Além disso,
a homologia estrutural existente entre o campo do poder e os subcampos
da produção cultural significa que as produções culturais podem oferecer,
e de fato oferecem, uma legitimação ideológica do status quo, na medida
em que a conservação da ordem simbólica contribui para a conservação
da ordem política. Por outro lado, deve-se notar também que a subversão
da ordem simbólica pode ter efeitos sobre a ordem política, mas apenas
se a subversão simbólica for acompanhada de uma subversão social do
campo do poder político.
56
Mas o que acontece com aqueles indivíduos de nossas sociedades que
estão fora do campo (como o povo ou, a fortiori, os mendigos, que estão,
por definição, excluídos do campo do poder)? E quanto às atividades
(como os encontros com os amigos ou os piqueniques no parque) que
não podem ser inscritas nos campos de lutas existentes? A respeito dessas
e de outras questões ardilosas, ver Lahire (1999).
57
Verdes-Leroux, que diz ter “lido e relido 10.000 páginas” da prosa
“seca, artificial, imensamente repetitiva e não-científica” de Bourdieu
sem ter encontrado nada que valesse a pena preservar, compilou
uma impressionante, embora incompleta, lista de campos (com suas
correspondentes espécies de capital) que indica indiretamente a
pluralidade dos seus interesses, o poder das suas ferramentas teóricas e a
fertilidade da sua prolífica produção: “Campo científico, campo literário,
campo do poder, campo religioso, campo jurídico, campo de construtores,
campo da produção de casas, campo dos poderes territoriais, campo
político, campo econômico, campo do jornalismo, campo da produção
ideológica, campo da produção cultural, campo da pintura, campo das
instituições de ensino superior, campo das ciências políticas, campo do
marketing político, campo das universidades, campo das grandes écoles,
campo da haute couture, campo das histórias em quadrinhos, campo da
arte pop, campo das editoras, campo da física contemporânea, campo
das galerias, etc. (e não esqueça os sub-campos)” (Verdès-Leroux, 1998:
199).

294

teorial social realista.indb 294 27/1/2010 11:22:57


58
Embora haja uma sobreposição entre os dois artigos, o segundo (Bourdieu,
1971b) é muito mais complexo do que o primeiro (Bourdieu, 1971a),
na medida em que Bourdieu funde sistematicamente Marx, Weber e
Durkheim (além de alguns outros) na sua argumentação e introduz sua
teoria altamente sofisticada e sintética do poder simbólico (Bourdieu,
1977b) na análise do campo religioso, de modo a revelar a contribuição
ideológica da religião para a manutenção da ordem social. Ainda que
a teoria da violência simbólica ocupe um lugar central no projeto de
Bourdieu (ver Wacquant, 1987; Wacquant, 1996b; e especialmente
Wacquant, 1993a: 1, em que ele afirma que “a œuvre inteira de Bourdieu
pode ser lida como uma tentativa de explicar a especificidade e a
potência do poder simbólico”), deixarei-a de fora de minha análise e me
concentrarei sobre os aspectos relacionais da teoria dos campos.
59
Ainda que as ideias de Bourdieu ecoem largamente àquelas do jovem
Mannheim, que ecoam, por sua vez, às de Carl Schmitt (Pels, 1998: 229-
231), nunca vi qualquer referência ao ensaio de 1928. Não está nem
mesmo claro se Bourdieu realmente o leu. De passagem, gostaria de
anotar que ele leu Bakhtin, mas que até agora a influência deste sobre sua
análise do mercado linguístico (Bourdieu, 1982b) não foi suficientemente
reconhecida pelos seus leitores.
60
Em termos que nos lembram a análise da relação entre o campo e o
habitus em Bourdieu, Mannheim escreve que “certos traços qualitativos de
um objeto encontrado no processo vivo da história são acessíveis apenas
a mentes de uma certa estrutura. Existem certos traços qualitativamente
distintos de objetos historicamente existentes que estão abertos à recepção
apenas por uma consciência formada e projetada por circunstâncias
históricas particulares” (Mannheim, 1952: 194). Para uma exploração mais
profunda das afinidades, ver Kögler (1997).
61
Em um esmerado artigo, Pels (1995) mostrou que o universalismo não
advém da internalização de uma “cultura do discurso crítico” normativa
(a CDC de Gouldner), mas de um conjunto de coações sociais que força
os rivais em um campo a uma checagem cruzada (cross-checking) de
seus produtos, a qual transforma, de modo não intencional, a busca do
autointeresse em um motor do progresso da razão (“vícios privados,
virtudes públicas”).
62
Exatamente como Foucault, Bourdieu compartilha da preocupação
de Habermas com a comunicação, ainda que analise-a de um ângulo
diferente. Para Habermas, a situação ideal de fala é caracterizada pela
ausência de poder, enquanto, para Bourdieu e Foucault, é a ausência
de comunicação sem violência simbólica o que caracteriza o poder. Esta
ênfase compartilhada sobre a comunicação (com e sem coações) é o
que permite uma leitura habermasiana de Bourdieu (e, possivelmente,
também de Foucault) e uma leitura bourdieusiana (ou foucaultiana) de
Habermas. Ao invés de simplesmente opor um ao outro, deve-se ver
que suas políticas do conhecimento são perfeitamente complementares.
Para Bourdieu, o poder sempre vem antes (o poder como arché). A
tarefa da política consiste na criação de um universo social igualitário
que torne possível uma discussão sem coações simbólicas (a discussão

295

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como telos). Para Habermas, por outro lado, a situação ideal de fala é
sempre já dada, ou, pelo menos, contrafactualmente antecipada como
dada (a comunicação como arché). A tarefa de uma política reformista
radical consiste na sua institucionalização em um sistema democrático.
Ainda que Bourdieu afirme corretamente que a situação ideal de fala não
existe, ele certamente não desejaria concluir disso que o ideal da situação
ideal de fala também não existe!
63
Observações de observações podem permitir que se relativize as
observações de primeira ordem, mas, na medida em que permanecem
observações, o “ponto cego” das suas próprias observações sempre
perdura. Ou, como diz Luhmann, “até a observação de segunda ordem
não pode ver o que não pode ver. Na melhor das hipóteses, ela pode
ver que não vê o que não pode ver” (Luhmann, 1989: 333). Para uma
investigação em profundidade da reflexividade das observações, ver
Luhmann (1990: cap. 2).
64
Após sua morte, todas as intervenções políticas de Bourdieu na esfera
pública foram reunidas em único livro (Bourdieu, 2002b).
65
Em seu livro sobre a globalização ou, como ele prefere chamá-la, “a
constelação pós-nacional”, Habermas cita com aprovação a nova proposta
internacionalista de Bourdieu para a criação de um Estado de bem-estar
social europeu (Habermas, 1998: 124). Juntamente com Beck (1997) e
Bauman (1998) – mas contra a “Terceira Via” de Giddens (1998), que se
vende para o Novo Trabalhismo –, podemos testemunhar a emergência
de uma defesa pós-marxista contra a involução do Estado de bem-
-estar e o que Beck chama (referindo-se à informalização do trabalho)
de “brasilianização” da Europa. Dada a predominância das passions
tristes (Spinoza) e a escalada da xenofobia, no entanto, podemos nos
perguntar se a Europa não precisa efetivamente de um pouco mais de
“brasilianização”.
66
De modo mais desenvolvido, o jovem sociólogo afirma:“Embora ressalte
que as disposições práticas do habitus sejam os mais frequentes dentre
os motores subjetivos da conduta humana, Bourdieu não afasta a
possibilidade de condutas causalmente eficazes motivadas sob a forma
de deliberações explicitamente articuladas na mente dos atores, apenas
apontando para o fato de que tal forma de comportamento depende
de condições sócio-históricas específicas de possibilidade. Afora os
casos de ‘histerese’ em que a ativação das disposições encarnadas no
habitus é exigida em contextos diferentes daqueles que o produziram
– circunstâncias sócio-históricas de quebra da cumplicidade ontológica
entre expectativas e disposições subjetivas, de um lado, e condições e
efeitos objetivos do milieu societário, de outro, que tornam possível
a transmutação da práxis em logos, a passagem do senso prático à
elaboração discursiva e à consideração consciente de alternativas de ação
–, a obtenção de um domínio reflexivo do próprio habitus também pode
ser amparada pela própria sociologia quando esta é mobilizada como
um ferramental de auto-sócio-análise. A despeito da diferença de teses
e métodos, a referência implícita à psicanálise na noção de socioanálise
serve para manifestar o enraizamento moral comum no projeto socrático

296

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da autoconsciência como caminho existencial emancipatório, i.e., no
propósito (realisticamente despido de qualquer componente soteriológico)
de expandir o nível da consciência humana para dimensões determinantes
da sua conduta as quais, se deixadas intocadas por esse esforço reflexivo
metodologicamente municiado, permanecem escondidas, reprimidas,
inconscientes, dissimuladas. Um Aüfklarer como Freud, Bourdieu
persegue, no entanto, um inconsciente distinto: as propensões práticas
de conduta socialmente interiorizadas de onde florescem as ações que
configuram nosso modo de ser no mundo. Se, como afirma Durkheim,
‘o verdadeiro inconsciente é a história’, o/a autoanalista sociologicamente
municiado/a pelo pensamento de Bourdieu, pensando a teoria do habitus
sob a égide do princípio ‘De te fabula narratur’, conhece a si mesmo/a
como ‘história feita corpo’, personalidade socialmente constituída, ser
dotado de um habitus que, em princípio, o possui, mais do que é
possuído por ele. A dimensão de desencanto dessa linha de análise é
insofismável, dado que ela não nos pinta como seres irredutíveis ao
mundo, mas mundanos, demasiado mundanos, moldados nos territórios
mais íntimos de nossa personalidade por determinações sócio-históricas de
início exteriores a nós, porém objetivadas na nossa subjetividade mesma.
Não obstante, esse mesmo esforço sociológico-reflexivo de ‘anamnese’
(na expressão de origem platônica recuperada por Bourdieu) constitui
uma via de acesso a um trabalho emancipatório de autorreapropriação,
pois, em uma esfera de realidade onde não estão em operação as leis
trans-históricas da natureza, reconhecer as forças que agem sobre nós
e, em particular, ‘dentro’ ou ‘através’ de nós, é adquirir uma ferramenta
para fazer alguma coisa a respeito, agindo sobre ou contra tais forças.
Reivindicando uma tarefa ‘clínica’ ou ‘délfica’ para a sociologia, Bourdieu
propõe a tese de que esta ‘liberta libertando da ilusão de liberdade’. O
verbo ‘libertando’, nesse caso, é tudo menos uma repetição pedante e
desnecessária, pois comunica a ideia de que a possibilidade de liberdade
oferecida pela objetivação dos condicionantes societários do pensamento
e da conduta vai além do resignado e impotente ‘reconhecimento da
necessidade’. Dado que as ‘necessidades’ operantes no mundo social
são historicamente constituídas e reproduzidas através das ações e
representações dos atores humanos, o reconhecimento daquelas por
parte dos agentes pode dar ensejo ao seu questionamento, combate ou
destruição” (Peters, 2008: 26-28).
67
Bourdieu me honrou com alguns “comentários francos e talvez algo
brutais” sobre o artigo que deu origem a este capítulo. Ele confirmou
que o “núcleo duro” da sua teoria era formado por uma síntese entre o
racionalismo de Bachelard e o relacionismo de Cassirer, rejeitou minhas
insinuações de que ele poderia ter sido um cripto-racionalista e declarou
que, como Bhaskar, cujo trabalho descobriu tardiamente, ele havia
sido um realista desde sempre, reclamando finalmente que eu abstraí
o conteúdo empírico de seu trabalho, o que explicava por que eu não
apenas cometi o que se poderia chamar de falácia escolástica do segundo
poder (minha expressão), mas também por que minha interpretação das
suas intervenções políticas na esfera pública não foi além do nível do
jornalismo (carta ao autor de 26/11/1998).

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Capítulo 2 - A era dos epígonos: a teoria
social pós-bourdieusiana na França

1
A defesa sistemática, feita por Passeron (1991), de um método não
popperiano, ideográfico e ilustrativo para as ciências sociais, bem como
o mapeamento dos “esquemas de inteligibilidade” sociológicos realizado
por Berthelot (2000), podem ser considerados como dois exemplos de
epistemologia social neste sentido estrito. É significativo que Alexander,
Honneth e, à la limite, mesmo o próprio Giddens, não sejam considerados
pelos franceses como sociólogos, mas como filósofos sociais. A Revue du
MAUSS (2004, n. 24) recentemente convidou alguns sociólogos (Touraine,
Boudon, Latour, Thévenot, Freitag, Quéré, Dubet) para falar acerca da
possibilidade de uma teoria sociológica geral.
2
Os quatro nomes referem-se, na verdade, a quatro escolas diferentes
com seus próprios programas de pesquisa, centros de pesquisa e jornais
prediletos (Ansart, 1990). Os principais colaboradores de Bourdieu
(L.Wacquant, L. Pinto, P. Champagne, R. Lenoir) trabalham no Centre de
Sociologie Européene da EHESS e publicam em Actes de la Recherche
en Sciences Sociales. Alain Touraine e seus associados (M.Wieviorka, F.
Dubet, F. Khosrokhavar, D. Martucelli) são membros do Cadis (Centre
d’Analyse et d’Intervention Sociologique), também na EHESS. Crozier
e seus colaboradores (A. Friedberg, J. C.Thoenig, R. Sainsaulieu) são
afiliados ao Centre de Sociologie des Organisations, sediado no Institut
de Sciences Politiques, e, assim como os tourainianos, escrevem para
Sociologie du Travail. Boudon e outros individualistas metodológicos da
Sorbonne, como F. Chazel, M. Cherkaoui e B. Valade, controlam as Presses
Universitaires de France e publicam na Revue Française de Sociologie.
3
Para uma análise influente do pós-estruturalismo francês, ver Ferry e
Renault (1988). Para uma interpretação mais profunda do diálogo entre
as principais tradições teóricas alemãs (hermenêutica, teoria crítica do
sujeito) e o estruturalismo e pós-estruturalismo franceses, ver Frank (1983),
Dosse (1995) e Corcuff (1995) apresentam boas revisões dos mais recentes
desenvolvimentos nas ciências humanas.
4
A influência da microssociologia americana (Goffman, Garfinkel, Sacks,
Cicourel) e da filosofia anglo-saxã da linguagem ordinária (Wittgenstein,
Anscombe, Searle) sobre as novas sociologias pragmáticas da ação de
L.Quéré, L.Thévenot, P.Pharo, B.Conein, D. Cefai e M. de Fornel não
pode ser subestimada. Estes autores publicam em Raisons Pratiques e
Réseaux. Tardiamente, sob a influência da filosofia analítica da ação,
alguns deles juntaram-se ao círculo “neoneopositivista” dos individualistas
metodológicos. Para uma amostra representativa da sofisticação da
microssociologia francesa, ver Ogien e Quéré (2005).
5
Vários dos textos de Wacquant podem ser encontrados no endereço:
<http://sociology.berkeley.edu/faculty/wacquant/>.
6
Na realidade, Bourdieu abre seu livro com a epígrafe “isto não é uma
biografia”. Trata-se, portanto, como bem assinalou Gabriel Peters, de “um
caso raro de autobiografia não autorizada” (2008: 26).

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7
Aqui, rendo-me à expressão de uso mais corrente, pedindo desculpas a
leitores mais ortodoxos que prefeririam ler “foucaldianos”. (N. de T.)
8
Na esteira do trabalho seminal de Bourdieu sobre classificações e
classes, a análise construtivista de grupos sociais (Boltanski), categorias
socioprofissionais (Thévenot) e estatísticas (Desrosières, 1993) tornou-se
um subcampo de pesquisa situado na encruzilhada da sociologia com
a história, subcampo que já tem sua própria revista: Genèses: Sciences
Sociales et Histoire. Boltanski e Thévénot fundaram juntos o GSPM (Groupe
de Sociologie Politique et Morale). O grupo, atualmente dirigido por
Nicolas Dodier, inclui entre seus membros algumas das melhores mentes
da geração mais recente (Bruno Karsenti, Danny Trom, Jean-Phillipe
Heurtin, Marc Bréviglieri). Devido a lutas internas, duas de suas “estrelas”
(Nathalie Heinich e Francis Chateauraynaud) deixaram recentemente o
GSPM.
9
Embora a palavra Cité possa ser efetivamente traduzida por “Cidade”, deve-
-se ressaltar que é o vocábulo ville, em francês, aquele que corresponde
ao sentido mais imediato que associamos ao termo. Vandenberghe me
chamou a atenção para o excelente trabalho de pesquisa de Diogo Corrêa,
que prefere recorrer à expressão “cidadela” como opção alternativa de
tradução, justificando-se pela referência a uma de suas definições no
dicionário Aurélio como “lugar de onde se pode estabelecer uma defesa”.
Preferi manter o termo “Cidade”, no entanto, pois, como Vandenberghe
demonstra a seguir, um elemento fundamental na construção do raciocínio
de Boltanski e Thévenot é sua referência a trabalhos clássicos da
filosofia política na descrição das ordens de justificação. Como a própria
etimologia da palavra “política” indica, a referência à “Cidade” ou Polis
na filosofia sobreviveu ao desaparecimento das cidades-estado gregas
para designar figurativamente os domínios de convivência organizada
entre seres humanos (e.g., estados-nação). Além disso, a partir de uma
tradição de pensamento inaugurada por Aristóteles, a “Cidade” também
designa um espaço de debate público onde se busca alcançar, pelo lógos,
o conhecimento do “justo” e do “injusto”, uma ideia similar à noção de
regimes de justificação em que a resolução de disputas se dá por meio
de discursos que apelam a concepções de justiça. Considerando que
Boltanski e Thévenot distinguem regimes de justificação de regimes de
violência, vale dizer, por fim, que a definição mais comum de cidadela
(a palavra também existe em francês: citadelle) como forte ou “fortaleza
defensiva”, no sentido militar, também a torna menos adequada do que
“Cidade” (desde que entendida no seu sentido alegórico) para designar
os primeiros. (N. de T.)
10
O número de Cités não é fixo. Lafaye e Thévenot (1993) acrescentaram
posteriormente uma Cidade Ecológica, enquanto Boltanski e Chiapello
(1999) introduziram a Cidade dos Projetos. Lamont e Thévenot (2000)
apresentam uma análise comparativa dos vocabulários da justificação na
França e nos Estados Unidos.
11
Esta periodização em três fases é similar àquela proposta por Peter Wagner
(1994), que também é um membro do GSPM.

299

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12
A maior parte dos textos de Latour está disponível em sua home page:
<http://www.bruno-latour.fr/>.
13
Para uma excelente caracterização dos estudos sociais da ciência por um
de seus protagonistas, ver Lynch (1993).
14
Ver o Actor Network Resource no site da Universidade de Lancaster:
<http://www.lancs.ac.uk/fass/centres/css/ant/antres.htm>.
15
O site da midiologia é: <http://www.mediologie.org>.
16
Debray menciona a hiper ou ciberesfera, mas a análise é deixada a Pierre
Lévy (1997), um visionário que concebe a Internet como um megacérebro
vivo produzindo um hipertexto único, complexo e em evolução.
17
No original, o autor recorre a uma única expressão: mediocracy (no
francês de Debray, médiocratie), que significa simultaneamente “domínio
da mídia” (midiocracia) e “domínio dos medíocres” (mediocracia). (N. de
T.).
18
Para uma primeira exploração do alcance de seus interesses, recomendo
sua entrevista com François Azouvi e Sylvain Piron (Gauchet, 2003).
19
A Revue du MAUSS, em sua versão permanente on-line
(<http://www.journaldumauss.net/>.), busca estimular o debate e
assim contribuir para a constituição de uma frente antiutilitarista
contra o pensamento hegemônico. Graças aos bons serviços de Paulo
Henrique Martins (UFPE), o jornal do MAUSS também existe em versão
iberolatinoamericana: <http://www.jornaldomauss.org/>.
20
Os livros estão disponíveis para download no portal “Les classiques des
sciences sociales”: <http://classiques.uqac.ca/>.
21
O termo utilizado por Vandenberghe é sublated, tradução para o inglês
da expressão alemã Aufgehoben, de origem hegeliana. O conceito de
“suprassunção” (as formas substantivadas correspondentes em inglês e
alemão são respectivamente sublation e Aufhebung) designa o processo
em que uma categoria, forma de consciência ou, no caso discutido por
Freitag, um modo de reprodução da sociedade é, ao mesmo tempo,
conservado e superado por sua inserção em uma configuração/totalidade
sintética mais inclusiva. (N. de T.).
22
Para uma análise mais aprofundada do pensamento de Freitag, ver o
Capítulo 3.
23
Publicação original: “Neoclassical social theory and beyond”. In: Theory.
newsletter of the research committee on Sociological Theory. International
Sociological Association. Winter (2005/2006).
24
A frase original, extraída do título ligeiramente insano de um artigo
de Garfinkel, é “evidence for locally-produced, naturally accountable
phenomena of order*, logic, reason, meaning, method etc. in and as of
the essential quiddity of immortal ordinary society”. Como justificativa
para minha infeliz façanha de propor uma tradução ainda mais prolixa
do que a passagem original, vale dizer que não há uma palavra única em

300

teorial social realista.indb 300 27/1/2010 11:22:57


português para comunicar o alcance da expressão accountable no jargão
etnometodológico, uma propriedade de ações “visivelmente racionais e
inteligíveis para todos os propósitos práticos” (Garfinkel), i.e., não apenas
compreensíveis em seu significado como também justificáveis, no sentido
de conformes às expectativas normativas dos membros de um determinado
grupo. A noção está, ainda, associada à ideia de que os relatos (accounts)
cotidianos por meio dos quais os atores retratam, uns para os outros, as
situações sociais em que agem não são meramente adjacentes às suas
práticas, mas consistem, eles mesmos, em formas de ação constitutivamente
envolvidas na produção e reprodução contínuas da vida societária. Nesse
sentido, práticas accountable são também “relatáveis”, i.e., passíveis de
caracterização sob a forma de relatos que configuram, ao mesmo tempo,
uma descrição de seu sentido/inteligibilidade e uma “prestação de contas”
de sua correção ou adequabilidade moral. (N. de T.)
25
Para uma crítica imanente da sociologia cultural de Alexander, remeto o
leitor ao meu Review Essay sobre seu livro The civil sphere (Vandenberghe,
2008).

Capítulo 3 - Para Michel Freitag: uma


fenomenologia do espírito para nosso
tempo
1
Até agora, apenas dois textos foram traduzidos para o inglês: “The
contemporary social sciences and the problem of normativity”, Thesis
11, 2001, v. 65, p. 1-26, e “The dissolution of society within the
social”, European Journal of Social Theory, 2002, v. 5, n. 2, p. 175-198.
Pessoalmente, estabeleci uma discussão crítica, porém construtiva, com
Freitag e seus colaboradores. Cf. Vandenberghe, F.: “Théorie critique
ou critique théorique de l’asociété’? Dialogue constructif entre Freitag,
Gauchet, Habermas et quelques autres”, Cahiers de Recherche du GIEP,
n. 54, p. 1-80.
2
Dialectique et société: v. 1: Introduction à une théorie générale du
symbolique; v. 2: Culture, pouvoir, controle: les modes de reproduction
formelle de la société (Lausanne: L’Âge d’Homme; Montréal: Saint-Martin,
1986; disponível na Internet: <http://classiques.uqac.ca/contemporains>.).
Embora os volumes já estejam em larga medida escritos, não é claro se
e quando eles serão publicados.
3
A maior parte dos artigos foi publicada anteriormente em Société, o órgão
da Escola de Montreal. Juntamente com os Cahiers de Recherche du GIEP,
uma série de textos de trabalho do Grupo Interuniversitário para o Estudo
da Pós-Modernidade, ele representa o principal veículo de exposição das
ideias de Freitag.

301

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Capítulo 4 - Reconfiguração da teoria
dos actantes rizomáticos

1
Para uma reconstrução completa da fascinante história da noção de
fetichismo, ver os trabalhos de William Pietz (1985; 1988).
2
Para pensar sistematicamente a conexão entre o local e o global, o concreto
e o abstrato, cunhei (mas ainda não patenteei) o conceito de fato social
total global. A ideia por trás do conceito é simples. A globalização não
é apenas um fato, é também uma perspectiva. Qualquer coisa (objeto,
sujeito, parte do corpo, tecnologia, ferramenta, mercadoria, dádiva etc.)
é uma condensação de uma teia complexa de relações e conexões entre
humanos, coisas e palavras que se espalham pelo mundo como um rizoma.
Tome-se o exemplo do texto que estou escrevendo. Ele contém várias
referências a colegas ao redor do mundo, o papel que vocês têm em mãos
é feito de madeira que pode vir da Amazônia ou da China e assim por
diante... Apenas seguindo as conexões, de onde quer que elas venham e
para onde quer que levem, posso analisar qualquer objeto concreto como
um fato social total global que implica todas as dimensões e instituições
da vida social – da esfera material à semiótica ou econômica.
3
O asterisco em “ordem*” transforma o conceito ordinário de ordem em
uma notação estenográfica para quaisquer fenômenos (tais como como
lógica, razão, significado, método etc.) alcançados de modo prático,
endogenamente produzidos, naturalmente organizados e reflexivamente
descritos pelos membros da sociedade. Uma vez que o significado do *
seja compreendido como uma injunção para reespecificar o fenômeno
da ordem de acordo com as diretrizes da etnometodologia, fenômenos
de ordem* tornam-se onipresentes – como o elefante na cozinha.
4
Uma breve referência à trilogia de Manuel Castells sobre a era da
informação deve ser suficiente para se entender o que digo. As redes
sociotécnicas são parte e parcela da sociedade em rede capitalista que
cobre o globo.
5
Promessa de bêbado: tinha prometido não mencionar diretamente os
membros do CALL, mas a partir do momento em que o próprio Latour
defende abertamente os “vencidos da história” e convida a recompor
progressivamente o mundo, de modo que as “versões” da realidade dos
excluídos sejam nele incluídas (Latour, 1999b: 258-264), pareceu-me que
o problema não é (de) “pessoal”. Se a teoria dos atores-rede passou a
ter tanto sucesso nas escolas de comércio, não é tanto por haver uma
afinidade eletiva entre os RATos (Rational Action Theorists) e os ANTas
(Actor-Network Theorists), mas porque Latour não tomou as devidas
precauções ético-políticas. Apesar de seu posicionamento à esquerda
do tabuleiro político, não existe nada em sua teoria, nem uma simples
“tranca” teórica, que possa impedir a assimilação oportunista pelo
sistema. Alain Caillé (2000) viu isso muito bem. Seu artigo tem o mérito
de apresentar com clareza a questão do laisser-faire que está contido na
política experimental de Latour.

302

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Capitulo 5 - Construções e crítica na
nova sociologia francesa

1
No Colóquio de Cérisy, dedicado aos trabalhos de Luc Boltanski e
Laurent Thévenot (Breviglieri; Lafaye; Trom, 2008), fui tentado a uma
tal comparação dos “grandes sociólogos” franceses, não diretamente,
mas passando pela sociologia da arte e da música e, especialmente,
contrastando a sociologia da singularidade de Nathalie Heinich e a
sociologia das mediações de Antoine Hennion.
2
Deixo de lado o construtivismo radical da teoria sistêmica não apenas
porque nenhum dos protagonistas é diretamente influenciado por ela,
mas também porque a introdução da reflexividade e da observação de
segunda ordem desafia radicalmente o realismo crítico. Precisamente
porque o desafio é sério (Luhmann, 1990: 68-121; Fuchs, 2001), não quero
simplesmente descartá-lo de modo apressado.
3
O prefixo “pós” aqui não é um marco temporal, mas indica o que
acontece com a teoria social inglesa e francesa quando ela chega aos
Estados Unidos. Quando os estudos culturais da Escola de Birmingham
atravessam o Atlântico, se transformam em pós-modernismo; quando
a desconstrução chega aos departamentos de literatura comparada das
universidades da Ivy League, se transforma em pós-estruturalismo.
4
Conforme Peirce, se poderia chamar à primeira “Critik” e à segunda
“Kritik”: “Essa palavra [Critik, ou em grego κριτικη, utilizada por Platão
(que divide todo o conhecimento entre a epitática e a crítica), foi adotada
em latim pelos Ramistas e em inglês por Hobbes e Locke. Tomando-a
de empréstimo a Locke, Kant, que sempre escreveu Critik – o c sendo,
possivelmente, uma reminiscência de sua origem inglesa – a introduziu no
alemão. Kant expressou claramente o desejo de que não se confunda essa
palavra com aquela da crítica, com a crítica literária (Kritik em alemão)”
(Peirce, 1960: 2.205).
5
Essa classificação combina as categorias da “invenção” e da “interpretação”
que se encontram em Walzer (1987) com as da “construção” e da
“reconstrução” utilizadas por Honneth (2000). A introdução do
hegelianismo de esquerda por Honneth permite corrigir a apresentação
enviesada da crítica social de Walzer. Com um bom manejo da
interpretação – “há somente uma via em filosofia moral” (Walzer, 1987: 21)
–, o comunitarista americano não somente descartou a via da “descoberta”
e da “invenção”, mas, sem dizê-lo, rebateu a crítica dialética sobre a
crítica hermenêutica. Eliminando o trabalho propriamente sociológico,
que consiste em analisar a sociedade como um conjunto de sistemas e
de estruturas, em um mesmo golpe ele reduziu a teoria crítica à crítica
jornalística dos intelectuais engajados.
6
É necessário registrar que a ideia estava no ar. Podemos reencontrá-la tanto
entre os estruturalistas quanto entre os fenomenólogos que influenciaram
o jovem Bourdieu. Assim, Lévi-Strauss (1955: 44-45) escreveu: “Para atingir
o real, é preciso primeiro recusar o vivido, reintegrá-lo, a seguir, em uma

303

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síntese objetiva, despojada de toda sentimentalidade.” Mais explícito,
Merleau-Ponty (1964: 31) afirma: “A exclusão [da intencionalidade] é,
aliás, somente provisória: a ciência reintroduzirá, pouco a pouco, o que
inicialmente descartou como subjetivo. Integrará, porém, como caso
particular das relações e dos objetos que, para ela, definem o mundo.”
7
Sobre o “pathos da vitimização” e a “política do ressentimento” que
caracterizam teorias que dão voz ao sofrimento, como é o caso com
Bourdieu, Boltanski e Honneth – em oposição a críticas mais schimittianas
(Balibar, Badiou, Negri) que invocam o político e denunciam o consenso
soft das democracias liberais –, remeto ao livro bem boltanskiano de
Danny Trom (2007) sobre a questão judaica na esquerda francesa.
8
A ligação ao presente deu lugar à recusa do “presentismo” (Laborier; Trom,
2003). Em defesa do pragmatismo, gostaria de destacar que a história pode
muito facilmente ser reintroduzida na situação de dois modos: insistindo,
com Koselleck e Foucault, sobre a mudança conceitual que afeta o uso
da linguagem em situação, ou considerando, com Foucault e Latour, os
Dispositivos como sedimentações materiais do passado. Em seguida,
Boltanski e Chiapello (1999) responderam à crítica e, explicitamente,
reintroduziram a dimensão histórica no modelo pragmático pelo viés das
transformações históricas das estruturas ideais que organizam as provas
materiais.
9
Em um curto prefácio a um livro de introdução à sua sociologia, escrito
por um de seus antigos estudantes, Boltanski confessa que o rótulo
“sociologia pragmática” não foi escolhido por ele (citado por Nachi,
2006: 10). Na realidade, quando estava escrevendo De la justification,
seu conhecimento do pragmatismo estadunidense era apenas superficial
e indireto (via interacionismo simbólico e etnometodologia).
10
Mais radicalmente pragmático e menos personalista que Boltanski,
Thévenot (1998) privilegia as práticas em detrimento dos indivíduos
e das pessoas e acaba por chegar às conclusões pós-humanistas dos
nietzschianos, optando resolutamente por um nível de análise “aquém
da figura do indivíduo autônomo” (p. 133), que aparece como um efeito
performático das práticas. Desconstruído pragmaticamente, o indivíduo
aparece in fine como “uma figura relativa a um mundo cultural ocidental”
(p. 137), prestes a se desfazer como uma figura na areia.
11
Desde o interior, como diz tão bem Ricœur (1986: 413),“uma hermenêutica
das profundezas é ainda uma hermenêutica”. Para um trabalho exemplar
de uma tal hermenêutica crítica, remeto a Kögler (1996). Parece-me
que, no Brasil, Jessé Souza (2000; 2006) está tentando desenvolver uma
hermenêutica crítica que não toma (ou não toma exclusivamente) como
modelo a economia política, mas a antropologia cultural. Ao invés de
passar por Gadamer ou Ricœur , ele envereda pelo atalho fornecido por
Charles Taylor.
12
Em sua sociologia da arte e da literatura, Nathalie Heinich (1998) conjuga
muito bem a construção estrutural do espaço das posições possíveis
e a interpretação do sentido da ação, demonstrando assim que as
duas posturas podem ser muito bem combinadas em uma sociologia
interpretativa na terceira pessoa.

304

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13
“O que é designado pela palavra ‘situação’ não é um objeto ou um
acontecimento isolado nem um conjunto de objetos e de acontecimentos
simples. Porque nós não experenciamos e não formamos julgamentos
sobre objetos e acontecimentos isolados, mas somente em conexão com
um conjuto contextual. Esse último é o que se chama uma ‘situação’”
(Dewey, 1938: 66).
14
O regime da justificação pública é um regime de ação entre outros.
Em seguida à publicação de De la justification, Boltanski e Thévenot
exploraram, cada um por seu lado, diferentes regimes de ação. Em
L’amour et la justice comme compétences, Boltanski (1990: 110-116)
distingue quatro regimes pragmáticos de ação: o amor, a justiça, a justeza
e a violência. Em oposição ao regime teleológico da ação consciente,
Thévenot explorou, em uma série de artigos, diferentes modalidades
de coordenação da ação: da coordenação local de regimes de ação
à conveniência pessoal (1990) e aos regimes mais convencionais da
justificação (1990), do direito (1992) e do projeto (1995).
15
“Os motivos são as justificações aceitas por programas ou ações passadas,
presentes ou futuras” (Mills, 1940: 907). Considerando os motivos
como os vocabulários de justificação, Boltanski-Thévenot dão uma
“torsão pragmática” à fenomenologia para evitar os problemas ligados
à introspecção e à intropatia. Eles permanecem, entretanto, vinculados
ao cognitivismo da fenomenologia husserliana e consideram as normas
e os valores não de modo normativo, como o fizeram Scheler, Parsons
e Habermas, mas de modo cognitivo, como o fazem Husserl, Mills e
Luhmann.
16
Em La souffrance à distance, livro sobre a “política da piedade” (Arendt),
Bolstanki (1993) analisa não tanto as ações como as paixões de um
espectador capaz de observar a miséria dos “pequenos” (como diriam
os cristãos), sem estar presente em sua situação e não podendo intervir
diretamente na mesma.
17
Nos anos 1980, Thévenot passou progressivamente da codificação
das categorias socioprofissionais para os investimentos de formas
e, generalizando e pluralizando esses últimos, chegou às Cidades.
Retrospectivamente, nos damos conta de que os investimentos de formas,
que seria necessário aproximar das tecnologias foucaultianas de governo
estudadas por Nikolas Rose (1999), eram concebidos originalmente como
formas pertencentes à Cidade Industrial.
18
A exemplo da filosofia política liberal, a sociologia da justificação insiste
sobre o fato de que os argumentos, as críticas e as justificações não são
admissíveis e legítimas a não ser que se orientem para o bem comum
e tenha pretensão contrafactual à universalidade. O universalismo da
sociologia difere, entretanto, do universalismo da filosofia, ao não relevar
o a priori, mas resultar de uma análise empírica das “condições de
felicidade” das acusações: “Os denunciadores devem, então, para escapar
à singularidade, realizar as conexões muito fortes e se ligarem aos outros
em um nível muito elevado de generalidade (por exemplo, invocando os
grandes princípios humanitários, a justiça em geral, os direitos huamanos
etc.)” (Boltanski, 1984: 22).

305

teorial social realista.indb 305 27/1/2010 11:22:57


19
Em seu livro “terrível” sobre o aborto, Boltanski (2004) irá abrir mão dos
princípios fundamentais da justiça. O feto será reificado e destruído sem
jamais acessar o status de pessoa.
20
O número das Cidades não é determinado de uma vez por todas, pois
antigas cidades podem desaparecer e novas cidades podem emergir por
síntese e compromisso. Ao lado de seis repertórios oficiais de justificação,
Lafaye e Thévenot (1993) esboçaram os contornos de uma “Cidade
Ecológica”, enquanto Boltanski e Chiapello (1999) introduziram em seu
grande livro sobre o capitalismo pós-fordista a “Cidade dos Projetos”.
A análise comparativa de repertórios de justificação permite destacar a
existência de variações nacionais na utilização dos princípios da justiça
(Lamont; Thévenot, 2000). Ainda que todas as Cidades estejam presentes
no toolkit cultural dos franceses e dos americanos, os autores constatam
que os últimos, mais liberais, privilegiam a performance do mercado nas
avaliações da desigualdade racial, da arte, da literatura ou da natureza,
enquanto os primeiros se mantêm republicanos até o final.
21
Em uma crítica do pós-humanismo ambiente e de seus laços com o
bio-capitalismo, explorei as bases vitalistas da filosofia neonietzschiana
da tecnologia tipicamente francesa, mostrando o que o conexionismo
latouriano deve a Deleuze, Serres e Cia (Vandenberghe, 2006a).
22
Retomada por Greimas e popularizada em seguida por Latour, a noção
semiótica de actante foi introduzida por Lucien Tesnières e definida como
um elemento do laço verbal: “O laço verbal exprime todo um pequeno
drama. Como um drama com efeito, ele comporta obrigatoriamente um
processo, e quase sempre, atores e circunstâncias. (…) Os actantes são
os seres ou as coisas que, a um título qualquer e de qualquer forma,
mesmo a título de meros figurantes e do modo mais passivo, participam
do processo” (Tesnières, 1959: 102).
23
Há excelente discussão em torno dessas questões em Quéré (1997).
24
O autor, sagaz e criativamente, não perdeu a oportunidade posta pela
versão francesa de “enteléquia” – Latour “entéléchie” – e, ao trazê-la para
este contexto, reconfigurou-a para “entéléchic”. (N. de T.).
25
Alternativamente, poderia-se interpretar a teoria dos actantes rizomáticos
na perspectiva da sociologia pragmática da justificação e ler Callon,
Latour e os outros autores da rede como os gramáticos políticos da
Cidade conexionista mundial neocapitalista em vias de emergir. Nessa
perspectiva, poderia-se considerar os Cosmopolitiques de Isabelle Stengers
(1996-1997) ou Politiques de la nature de Bruno Latour (1999b), como
textos canônicos do laço político. Se hesito, entretanto, em situar Latour
e Stengers na tradição de Rousseau e Santo Agostinho, é por causa de
seu amoralismo intempestivo. Boltanski e Chiapello notaram bem que
as teorias contemporâneas da complexidade reticular nada têm a fazer
com a transcendência das convenções normativas. “[Elas] são construídas
explicitamente contra as construções metafísicas do bem comum … de
modo a evitar, a contornar ou a tornar endógena a posição ocupada por
uma instância moral, de onde poderiam derivar os julgamentos legítimos
se referindo à justiça” (Boltanski; Chiapello, 1999: 226).

306

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26
A antropologia da modernidade que nos propõem Latour e Callon
visa enfraquecer o pensamento moderno e mostrar que somos todos
“primitivos modernos” (Latour, 1991). Como os pré-modernos, nós
misturamos sempre, sem confessá-lo, Natureza e Cultura em Naturas-
-Culturas inextricáveis. Aquilo que começou como uma antropologia
simétrica das ciências e das técnicas se transformou, em seguida, em
uma antropologia sistemática das formas ocidentais da veracidade com
fabricação de coletivos, todos azimutes. A Ciência, a Política, a Economia,
a Religião, o Direito e a Arte já foram objeto de uma desconstrução-
redescrição na linguagem semiótica dos actantes.
27
Tomo emprestado os termos da coconstituição e da coprodução da
realidade de Hennion (1993), mesmo que ele fale de mediação para
teorizar a operação do que Callon-Latour chamam, após Serres, tradução
ou translação. Quanto aos pós-estruturalistas, eles não falam de mediação
nem de tradução, mas da articulação para designar “toda prática que
estabelece uma relação entre os elementos de tal sorte que sua identidade
é modificada como resultado da prática articulatória” (Laclau; Mouffe,
1985: 105).
28
Introduzida por Austin para descrever os atos de linguagem que
performam a realidade que eles descrevem (“quando dizer é fazer”), a
noção de performatividade foi retomada e generalizada a seguir por Austin,
Derrida, De Man e Rorty para atacar a teoria representacional da verdade:
as teorias, os discursos, a linguagem não refletem e não representam a
realidade, mas são actantes e agentes que a produzem e a performam.
A sociologia da ciência (Woolgar, Latour, Mulkay, Ashmore, Mol etc.)
operacionaliza a noção de performatividade, mostrando como os cientistas
produzem, constroem e fabricam a realidade social em seus laboratórios.
Como queer theorist, Butler inova a teoria da performatividade, ligando-a
às teorias da performance teatral (performance studies).
29
Em Le normal et le pathologique, Canguilhem (1966: 43) já dizia:
“Tornar-se diabético é mudar de rim”.
30
Boa parte da etnofilosofia de Latour, da obra escrita com Woolgar que o
tornou célebre até seu último livro sobre o direito, pode ser considerada
como uma aplicação brilhantíssima da teoria serreseana-leibniziana da
tradução das variações fenomenais em um texto científico. O artigo sobre
o “Pedófilo de Boa Vista” (frequentemente reproduzido) oferece uma bela
ilustração fotográfica do trabalho de tradução contínua por transporte da
forma em uma cascata de imagens.
31
Dando um torneamento neogramsciano à cosmopolítica, poderíamos
descrever a construção do coletivo em expansão como formação contínua
e infinita de um bloco histórico heterogêneo (Laclau; Mouffe, 1985).
Nessa perspectiva pós-estruturalista, a política do coletivo hegemônico
em expansão aparece como uma política de identidade que procura
estabelecer, por articulação ou tradução dos interesses e das demandas
concretas dos diferentes movimentos sociais (feminista, ecologista,
antirracista etc.), relações entre diferentes grupos subalternos e construir,
assim, progressivamente, o “bloco histórico” como uma formação

307

teorial social realista.indb 307 27/1/2010 11:22:57


hegemônica contingente e militante que une a natureza e o espírito, a
base e a superestrutura, em uma “unidade de oposições e de distinções”,
como dizia Gramsci.

Capítulo 6 - Uma ontologia realista para


a sociologia: morfogênese da sociedade
e estruturação das subjetividades
coletivas

1
Três comentários acerca de coletivismo e individualismo. Primeiramente,
não se deve confundir coletivismo ou emergentismo com holismo. As
chamadas sociedades primitivas são sociedades holísticas, orientadas
para o passado e com um baixo grau de historicidade. Ideológica e
normativamente, elas quase não reservam um lugar para o indivíduo. As
visões coletivistas do social, como a que defendo, não são holistas. Elas
dão amplo espaço para o indivíduo e até insistem na tese de que o poder
causal da sociedade é sempre mediado (em última instância) pelo poder
causal dos indivíduos. Em segundo lugar, a oposição entre nominalismo
e realismo se sobrepõe apenas parcialmente àquela entre individualismo
e coletivismo. A etnometodologia, por exemplo, é coletivista sem ser
realista; assim como a sociologia de Tarde (1991), a teoria do ator-rede
é nominalista sem ser individualista. Finalmente, um nominalista radical
poderia facilmente argumentar que o indivíduo é tão abstrato quanto
a sociedade. Não se pode observar uma pessoa, tal como não se pode
observar uma sociedade. Ambas são entidades compósitas que não
existem como tais. Inversamente, o realista poderia concluir disso que
ambas são reais.
2
A despeito de suas credenciais marxistas, Jon Elster (1989: 248), por
exemplo, afirma: “Não há sociedades. Há apenas indivíduos que interagem
uns com os outros.”
3
O debate anglo-saxão dos anos 1960 entre coletivistas e individualistas
(O’Neill, 1973) terminou com uma trégua: vitória do individualismo
ontológico, derrota do individualismo metodológico. Um quarto de século
depois, Ogien (2000: 236) confirma o diagnóstico e renova o compromisso
histórico: “É possível dizer sem exagero que, de todas as teorias sociais
que sobreviveram ao debate, dificilmente há uma que tenha endossado
a posição (do coletivismo ontológico) sem reformulá-la radicalmente,
enquanto a maior parte delas foi construída com o objetivo explícito de
mostrar seu caráter absurdo (para salvar talvez as proposições básicas
[do coletivismo metodológico]).”
4
Para Wittgenstein, o deslize do substantivo à substância ou do predicado
à propriedade constitui um erro gramatical que só pode levar à introdução
de imagens filosóficas reificadas de uma essência: “Nós predicamos da
coisa aquilo que reside no seu método de representação... pensamos estar

308

teorial social realista.indb 308 27/1/2010 11:22:57


observando um estado de coisas da mais alta generalidade” (Wittgenstein,
1953: 104).
5
Sei que minha defesa do coletivismo ontológico corre o risco de cometer
a falácia da reificação e personificar os coletivos, mas temo que, ao optar
pelo individualismo, nos arriscamos não apenas a cometer a falácia da
redução como também a eliminar, ao mesmo tempo, a autonomia e a
legitimidade da sociologia. A necessidade de escolher entre reificação e
redução é falsa. Contra toda forma de reducionismo, opto resolutamente
pela sociologia. É por isso que, no ensaio que se segue desenvolvo
uma ontologia para a sociologia. A afirmação pode soar gratuita e
até grotesca, mas, na medida em que afirmo apenas que o projeto da
sociologia pressupõe um domínio de investigação relativamente autônomo
e irredutível, ela não pretende excluir do campo sociológico abordagens
radicalmente subjetivistas, construtivistas e desconstrucionistas, tais como
a etnometodologia, por exemplo. Aliás, em seu último livro, Garfinkel
(2002) subscreve explicitamente o projeto durkheimiano e confirma, a
seu próprio modo, a realidade objetiva dos fatos sociais.
6
Na verdade, Bhaskar responde afirmativamente, como se vê, aliás, pelo
título de seu livro. Mas como seu naturalismo crítico apresenta e propõe
uma crítica radical do naturalismo, também poderia tê-lo intitulado The
impossibility of naturalism.
7
Este conceito relacional da sociedade tem afinidades notáveis com o de
Bourdieu. Basta retomar a teoria dos campos numa perspectiva realista,
liberando-a de seus resquícios neokantianos, para aproximá-la de Bhaskar.
Para uma crítica realista e uma análise mais profunda da lógica relacional
no estruturalismo gerativo de Bourdieu, ver o Capítulo 1 deste livro.
8
Archer (1995: 195-246) desenvolve o tema realista das relações distinguindo
as relações emergentes de primeira ordem (relações micro entre atores),
de segunda ordem (relações meso entre instituições e organizações) e
as de terceira ordem (relações macro entre sistemas).
9
Não se deve confundir o efeito de emergência com o efeito de agregação ou
de adição dos individualistas metodológicos – que tentam maliciosamente
reduzir cada efeito de emergência a um efeito de agregação (Boudon;
Bourricaud, 1982; cf. verbis ação, ação coletiva, agregação). O conceito
de emergência, cunhado primeiramente por G. H. Lewes em 1875, é
difícil e escorregadio. Vários teóricos sociais proeminentes que utilizaram
o conceito (Homans, Blau e até mesmo Archer) modificaram sutilmente
suas posições sobre o tema ao longo de suas carreiras (Sawyer, 2001).
Ao contrário do efeito de agregação, o efeito de emergência é sistêmico
e não se deixa reduzir aos elementos que o compõem. Fala-se de efeito
de emergência quando a composição dos elementos favorece um todo
com novas propriedades de ordem superior. Como o todo é algo mais
e diferente da soma das partes, seu funcionamento já não pode ser
deduzido do, ou predito pelo, funcionamento dos elementos isolados.
Como a maionese que toma corpo, a formação em V de um bando de
aves migratórias oferece um bom exemplo. O comportamento de cada
ave baseia-se na posição relativa com referência às duas aves vizinhas. Na

309

teorial social realista.indb 309 27/1/2010 11:22:57


medida em que as aves não têm consciência de constituir uma formação
autônoma, o exemplo é porém limitado, pois não há verdadeira causação
descendente do todo sobre os elementos que o compõem.
10
Cabe uma aproximação entre a teoria da estruturação e a sociologia
dialética de Gurvitch (1967: 206 e 209): “A estrutura social é um
processo permanente: está compreendida num perpétuo movimento
de desestruturação e de reestruturação porque ela é um aspecto da
sociedade em ação que, como ‘obra’, não pode subsistir sem a intervenção
da ‘ação’ (...) As estruturas sociais se revelam de modo concreto como
sendo ao mesmo tempo produtoras e produtos das obras culturais (...)
Em sociologia, o todo é irredutível a seus elementos componentes e
participantes, mas ao mesmo tempo não pode subsistir sem eles, pois os
dois se movem juntos.”
11
A discussão atual que opõe realistas a estruturistas pode ser considerada
a sucessora da discussão entre individualistas e coletivistas do anos 1960
(O’Neill, 1973). Continua referindo-se à questão da reificação ou da
redução, mas num nível superior: doravante, todo mundo concorda em
dizer que as estruturas sociais são ao mesmo tempo o produto e o meio
das ações sociais, mas os partidos se opõem quando interpretam estruturas
e sistemas: efeitos emergentes ou efeitos de agregação? Estruturas materiais
ou ideais? Eu poderia ilustrar esse desafio aprofundando a discussão
entre Bhaskar e Giddens, Archer e Giddens ou Bourdieu e Archer, com
base nos comentadores especialistas e nos participantes de segunda
linha (Outhwaite, Layder, Porpora, Cohen, Craib, King, Stones etc.), mas,
como já tratei em outro trabalho dessa discussão (Vandenberghe, 1998:
Conclusion) – e, confesso, fiquei tão decepcionado com o desenvolvimento
dado ao assunto pelo professor Giddens –, restrinjo-me aqui à discussão
amigável e cortês entre Bhaskar e Harré (para uma transcrição, ver
Bhaskar, 1990: 96-124).
12
Rom Harré, filósofo britânico de origem neozelandesa, aluno de Austin
em Oxford nos anos 1950, é autor de mais de cinquenta livros que
tratam da filosofia da matemática, das ciências naturais e das ciências
sociais. Orientador de tese de Bhaskar, esse grande homem de pequena
estatura pode ser considerado o decano do movimento realista. Em
seus primeiros livros, ele atacou o modelo nomológico-dedutivo dos
positivistas, refutou o conceito de causalidade de Hume e desenvolveu
uma teoria realista do poder causal e da necessidade natural. Harré
também inovou no domínio da psicologia social. Ele trabalha sobre uma
psicologia social discursiva original, conhecida sob diversas denominações
(teoria etogênica, positioning theory etc.) que se inspira em Wittgenstein,
Vygotsky e Goffman. Numa trilogia (Ways of being: social being, personal
being, physical being), ele esboçou suas ideias de uma ontologia para a
psicologia social. Para melhor entender a extensão de seus interesses,
remeto ao liber amicorum, publicado sob a direção de Bhaskar (1990).
13
Essa visão social-construtivista é contestada por Archer (2000: 86-117).
Segundo ela, a identidade pessoal é em grande parte pré-social e
infralinguística. Embora eu não trate da psicologia social de Harré mas
de sua sociologia, minha crítica é de certo modo o inverso da crítica de

310

teorial social realista.indb 310 27/1/2010 11:22:57


Archer: enquanto ela ataca Harré por sua visão supersocializada da pessoa,
eu o critico por sua versão superpsicologizada da sociedade.
14
Nas passagens seguintes, utilizo livremente alguns argumentos da teoria
das cadeias de interações rituais que Randall Collins (1981a; 1981b) propôs
no âmbito de uma OPA microssociológica hostil à macrossociologia. Se
atribuo os argumentos de Collins a Harré não é por generosidade, mas
porque ambos partilham a mesma ontologia discursiva e seguem uma
estratégia similar de microrredução das entidades macrossociais e de
microtradução dos conceitos macrossociológicos. No trecho que se segue,
farei abstração da dimensão interacional-expressiva que existe nos dois
autores para me limitar aos aspectos mais ontológicos. Para os leitores
locais confrontados com os efeitos perversos da “sociabilidade violenta”
(como diria Luiz Antonio Machado) – ou que os estudam –, menciono
também que o último livro de Collins (2008) apresenta uma impressionante
microanálise de situações violentas, das pequenas brigas às guerras.
15
Tecnicamente falando, segundo Harré, só se pode imputar um poder
causal a um “indivíduo poderoso”: “Na aplicação da noção de causalidade,
o elemento crucial cuja presença faz da ação uma ação causal é um
poderoso indivíduo” (Harré; Madden, 1975: 5). Sendo apenas a reificação
de um termo abstrato, a estrutura social não é um indivíduo poderoso e,
por isso, não possui nem exerce um poder causal.
16
Na visão construtivista, o sociólogo encontra-se na mesma posição que
os pais. Ele sabe que os pequenos diabretes não existem realmente, mas
ele “faz de conta” e observa como o pequeno William faz para observar
os duendes no fundo do jardim sem ser visto por eles. A “indiferença
etnometodológica” e a injunção de tratar o “tema” como um “recurso”
podem ser consideradas uma espécie de formalização das observações
parentais: “Os traços distintivos da visão alternativa que aqui oferecemos
residem na proposição de que as estruturas objetivas das atividades sociais
devem ser consideradas uma realização prática e situada do trabalho pela
qual a aparência das estruturas objetivas [o aparecimento dos duendes]
é exibida e detectada” (Zimmerman; Pollner, 1971: 103).
17
Com muito humor, Harré introduz novos acrônimos no bestiário das
ciências sociais. Já conhecíamos ANT (Actor-Network Theory), RAT
(Rational Action Theory), CAT (Collective Action Theory) e MAUSS
(Mouvement Anti-Utilitariste en Sciences Sociales). Harré (1979: 112)
acrescenta BEAST (British Empirical Ameliorative Sociology Tradition) e
APE (American Pragmatic Empiricism).
18
A distinção entre micro, meso e macro corresponde mais ou menos à
distinção que Luhmann (1975a: 9-20) estabelece entre as interações, as
organizações e os sistemas. A noção de nível é entendida aqui num sentido
puramente comparativo. O que é macro para alguém pode ser micro para
outrem. É evidente que o micro está no macro, o macro no micro, o macro
no meso, etc. A fim de opor-se às tendências reducionistas, privilegio a
dialética descendente. Se eu quisesse insistir mais em dizer que a ontologia
estratificada do mundo social pressupõe e integra a ontologia da práxis,
poderia inverter a sequência dialética para seguir a coconstituição das

311

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ordens partindo das ações e das interações em situação para chegar, por
meio dos efeitos não intencionais e emergentes, aos sistemas sociais e
culturais.
19
Seguindo o realismo crítico, concebo a sociedade como um complexo
sistema relacional que existe nos níveis macro, meso e micro. Em
extensas conversas com o autor, Michel Freitag argumentou que a
concepção realista da sociedade é excessivamente formal e propôs
incluí-la em uma teoria dialética mais abrangente da sociedade,
analisando-a, sincronicamente, como uma totalidade transcendental que
forma, informa e regula a priori as práticas simbólicas e, diacronicamente,
como um conjunto, historicamente em evolução, de mediações que
regulam as práticas e reproduzem a sociedade (Freitag, 1986).
20
Transmutando as relações sociais em relações conceituais, o silogismo
de Winch oferece um bom exemplo da variante tipicamente idealista
da falácia epistêmica: “Se as relações sociais entre os homens existem
somente em e por suas ideias, então, visto que as relações entre as ideias
são relações internas, segue-se que as relações sociais também devem
constituir uma espécie de relação interna [entre ideias]” (Winch, 1988:
123).
21
Em Teoria da ação comunicativa, a cultura faz parte do mundo da vida
e, portanto, não se deixa analisar a partir da perspectiva objetivante da
terceira pessoa como um sistema. Até a publicação de sua obra-mestra em
1981, Habermas ainda seguia, porém, Parsons e concebia a cultura como
um sistema, como se vê, entre outros, em seu livro sobre os problemas
de legitimação do capitalismo tardio.
22
Margaret Archer é conhecida em certos meios por sua crítica tonitruante
da teoria da estruturação de Tony Giddens. Essa crítica sistemática (no
duplo sentido do termo) constitui parte integrante da teoria morfogenética/
estática da sociedade com a qual ela trabalha desde suas primeiras análises
comparativas dos sistemas de educação. Trabalhando lenta e solidamente
para a construção de uma grande teoria unitária do mundo social, ela
apresentou esta de modo sistemático numa série impressionante de
cinco livros – que formam uma espécie de resposta sociológica à trilogia
sociopsicológica que Harré dedicou à pessoa, ao psiquismo e ao corpo. O
primeiro livro dela refere-se à cultura, o segundo à estrutura e o terceiro
à pessoa, ao passo que os dois últimos propõem uma emocionante
análise empírica e qualitativa da conversação que as pessoas mantêm em
seu foro íntimo. Sobre esse tema, ver meu texto “Você sabe com quem
está falando quando fala consigo mesmo?” no presente livro, bem como
Archer (2008b), em que ela oferece um relato em primeira pessoa de sua
empreitada intelectual nos últimos anos.
23
Reformulando a distinção que faz Lockwood entre a integração social e
sistêmica como distinção entre estruturas figuracionais de dependência
entre as pessoas (Elias) e estruturas institucionais de relações entre papéis
(Parsons), Nicos Mouzelis (1995: 155) percebeu o equívoco: “Negligenciar
as estruturas ou os conjuntos figuracionais leva à reificação, e negligenciar
as estruturas ou os conjuntos institucionais leva a diferentes formas de
redução.”

312

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24
Ao negar a existência da sociedade em 1987, a Dama de Ferro não tinha
intenção ontológica. A citação completa da frase mostra que ela não se
referia à condição ontológica da sociedade ou do Estado – afinal, ela
reconhece a existência de famílias –, mas ao esquema assistencialista
e à mentalidade dos pobres que, em vez de assumir riscos, preferem
recorrer aos serviços sociais: “Julgo que saímos de um período em que se
mostrava a muitas pessoas que a tarefa do governo consiste em resolver
os problemas delas. ‘Tenho um problema, vou receber uma subvenção’,
‘Sou um sem-teto, o governo tem de me dar casa’. Elas empurram seus
problemas para a sociedade. Mas, como todos sabem, a sociedade não
existe. Há indivíduos, homens e mulheres, e há as famílias. E não existe
um governo que possa fazer qualquer coisa – só as pessoas podem fazer
qualquer coisa, e devem antes de tudo cuidar de si próprias. É dever delas
cuidar de si e de seus vizinhos” (citado por Dean, 1999: 151). Mais tarde,
Thatcher retomou essa declaração no intuito de melhor se explicar. Nesse
momento, derivou lentamente para uma posição holística: “O sentido
de minhas palavras era claro na época, mas, depois, foi deformado a
ponto de nem eu reconhecê-lo. Eu queria dizer que a sociedade não é
uma abstração, separada dos homens e das mulheres que a compõem,
mas uma estrutura viva de indivíduos, famílias, vizinhos e associações
voluntárias (...) Eu me opunha ao erro que consiste em ver na sociedade,
sobretudo, uma ajuda (...) Para mim, a sociedade não é uma desculpa,
mas uma fonte de obrigação” (Dean, 1999).
25
Em suas reflexões semióticas sobre as ciências sociais, Greimas (1976)
define “sujeitos coletivos de tipo sintagmático” em termos de um programa
que gera sequências de ações e integra-as em uma única ação: “o sujeito de
tal sequência é o conjunto dos homens na medida em que participam
de um fazer comum. O sujeito sintagmático não é, portanto, a coleção de
homens concretos, de carne e osso, mas uma coletividade de homens
considerados apenas como agentes de um fazer programado.”
26
Os coletivos não são a sociedade, mas existem na sociedade. Esta
diferença pode ser sutil, mas consiste em meu principal desacordo com
a teoria das subjetividades coletivas de José Maurício Domingues (1995;
2000). Enquanto Domingues está situado, no fim das contas, no eixo
giddensiano-estruturacionista, estou localizado essencialmente no âmbito
bhaskariano-realista.
27
O famoso conceito de “estruturação” de Giddens encontra sua origem no
debate sobre classes sociais. Giddens cunhou o conceito para conectar
teorias marxistas e neomarxistas da classe, entendida como uma categoria
econômica que se refere a uma série de posições sociais que compõem
uma formação social, a análises mais weberianas que concebem classes
como grupos estatutários de consumo que têm acesso diferencial ao
mercado. Antes de ser generalizado, reformulado e inserido em uma
ontologia da práxis que conecta diretamente a agência à estrutura (e,
indiretamente, a agência aos sistemas, através das estruturas), o conceito
de estruturação se referia simplesmente aos “processos pelos quais ‘classes
econômicas’ tornam-se ‘classes sociais’” (Giddens, 1980: 105). Neste
capítulo, me concentro na estruturação dos coletivos e não presto muita

313

teorial social realista.indb 313 27/1/2010 11:22:57


atenção ao processo reverso da sua “desestruturação”. O proletariado,
por exemplo, não é mais o que costumava ser. Ele foi intencionalmente
desconstruído, em um duplo sentido: a perda da consciência de classe
não é apenas o resultado de atos intencionais de desidentificação por
parte dos próprios trabalhadores, mas também da política neoliberal,
a qual buscou sistematicamente reduzir o coletivo a uma mera soma
de indivíduos. O proletariado pode ter perdido a sua atualidade, mas
permanece, entretanto, um grupo potencial.
28
Meu interesse sobre as classes, os movimentos sociais e a humanidade
explica em parte por que minha análise é epistemologicamente
“conservadora”. Considerações epistemológicas não podem ser
desconectadas de considerações políticas e morais. Se eu fosse me
concentrar sobre raça, etnicidade e identidade, assumiria uma veia mais
desconstrucionista e analisaria, como Brubaker; Cooper (2000; 2002), as
“curvas declinantes da grupalidade (groupness)”.
29
Bourdieu, que de resto é um bom dialético e realista, torna-se um
nominalista quando trata de coletivos. Sua resenha entusiástica da
decomposição analítica da categoria do Ser realizada por Denis Zaslawsky
deixa claro que o seu nominalismo deve mais à lógica filosófica informal
de Russell, Ryle e Strawson do que à Lógica de Hegel (cf. Bourdieu, 1982c;
Zaslawsky, 1982).
30
A crítica à ontologização espúria de ficções conceituais é reforçada pela
sonoridade semelhante das palavras hauntology (hantologie, em francês)
e ontology, semelhança perdida na tradução para o português. (N. de T.).
31
O turista que visita Cambridge e pede para ver a Universidade de
Cambridge, após ter observado a King’s College, St. John’s, Queens’ e a
Ponte Matemática [N. de T.: Mathematical Bridge é o nome popular de
uma pequena ponte de madeira situada sobre o rio Cam, o qual atravessa
o campus da Universidade de Cambridge], comete um erro categorial
de acordo com Ryle – “como se ‘a Universidade’ correspondesse a um
membro-extra da classe da qual todas essas outras unidades são membros”
(Ryle, 1949: 16). Passando do substantivo à substância, o pobre rapaz
comete a falácia da falsa concretude e não entende que a universidade
não existe, para além ou acima das suas faculdades, departamentos e
bibliotecas.
32
A distinção de Harré entre categorias e grupos é um tanto análoga àquela
que Lamont e Volnar (2002: 168) estabelecem entre fronteiras sociais e
fronteiras simbólicas. “Fronteiras simbólicas são distinções conceituais
feitas por atores sociais para categorizar objetos, pessoas, práticas. (...)
Fronteiras sociais são formas objetificadas de diferenças sociais manifestas
em desigualdades no acesso e na distribuição de recursos. (...) As primeiras
existem no nível intersubjetivo, enquanto as últimas se manifestam como
agrupamentos de indivíduos.” Ainda que eu defenda que as fronteiras
simbólicas são parte da cultura e que a cultura existe em todos os níveis
da sociedade (e não apenas no nível intersubjetivo), considero bem-vinda
a proposta de Lamont e Volnar em analisar como fronteiras simbólicas
geram fronteiras sociais, do mesmo modo que categorias geram grupos.

314

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33
A análise de redes é uma forma altamente especializada da análise
estrutural que ganhou proeminência na metade dos anos 1970. As
principais figuras nessa rede são Harrison White, Barry Wellman, Ronald
Burt, Ronald Breiger, Mark Granovetter, Peter Marsden, Edward Laumann e
Mustafa Emirbayer. A terminologia abstrusa (todos estruturais, equivalência
estrutural, laços fortes e fracos, relações multiplexas etc.) e o uso pesado
de complicados modelos matemáticos (teoria dos gráficos, modelagem
de blocos e análise de matrizes) são bastante desanimadores para os não
iniciados. Para uma boa introdução à análise de redes sociais que não
pressupõe proficiência em matemática, ver Wellman (1988; 1999).
34
“Articulação” é uma categoria central das teorias pós-estruturalistas da
identidade. A articulação acontece quando dois elementos externamente
relacionados são interconectados, por meio da comunicação, em uma
nova identidade. Articular significa enunciar, mas também conectar dois
elementos que não deveriam necessariamente estar conectados. Stuart
Hall (1996c: 141) dá o exemplo do “caminhão articulado”: “Um caminhão
onde a cabine e a carroceria podem estar, mas não necessariamente estão,
conectadas uma à outra.”
35
Para uma análise das diferentes formas de ação coletiva, da violência (as
máfias) e das ações convencionais (greves, marchas e protestos) até as
rupturas simbólicas, ver Tarrow (1994: 100-117).
36
Na seção “Mediação tecnológica, comunidades imaginadas e a construção
do quase-grupo” trarei a noção de “comunidade imaginada” para minha
argumentação. Veremos que a conexão entre almas pode ser direta
(conexão mental) ou indireta (conexão espiritual). Fazendo abstração da
mediação tecnológica, que discutirei em um estágio posterior, tratarei a
comunidade simbólica como um grupo intencional cujos membros estão
em contato direto uns com os outros.
37
Ainda que Husserl já mencione “personalidades de ordem superior” no
parágrafo 58 das Meditações cartesianas (Husserl, 1950), a ideia só é
trabalhada em um estágio posterior, sendo publicada postumamente no
segundo dos três volumes da Husserliana que lidam com a fenomenologia
da intersubjetividade (Husserl, 1973, especialmente textos 9 e 10). Para
impedir a inflexão em direção a uma posição ultradurkheimiana que
hipostasia desavergonhadamente o espírito objetivo ao transformá-lo
em uma mente de grupo, interpretarei a análise de Husserl a partir
de perspectivas micro e meso, mas não de uma perspectiva macro.
Essa interpretação microssociológica corresponde a uma reformulação
interacionista do projeto da quinta meditação cartesiana. Reterei as
ideias da distribuição da consciência coletiva e do entrelaçamento de
sínteses operativas, mas, por enquanto, evitarei deliberadamente todas as
referências macrossociológicas ao espírito da comunidade, da sociedade,
da Europa, dos povos e do mundo que encontramos em Husserl (para não
mencionar Max Scheler, que inclui anjos e mortos em suas comunidades
espirituais!).
38
A comunicação não supera apenas a solidão do ego transcendental, mas
também o regresso infinito da observação que caracteriza a reformulação

315

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sistêmica da fenomenologia transcendental por Luhmann (1984: 92-147;
especialmente 93, nota 3). De acordo com Luhmann, toda observação
do sistema pressupõe uma distinção-guia que o próprio sistema não
pode observar. Ela pode ver o que pode ver, mas não o que não pode
ver. Apenas um observador externo pode observar o ponto cego da
observação. Quando os sistemas observantes entram em comunicação,
eles podem, no entanto, se engajar na metacomunicação, encontrar uma
linguagem comum e superar o autismo do fechamento autorreferencial
do sistema.
39
Para uma investigação mais fina (que deve mais a Schutz e Mead do que
a Husserl) da passagem da díade à tríade em termos da institucionalização
das tipificações recíprocas da ação habitual, ver Berger e Luckmann
(1967: 53-67); para uma aplicação, ver também Berger e Kellner (1964).
Certamente, há limites para a integração social através da intencionalidade
coletiva. Existem atualmente 6 bilhões de habitantes no planeta Terra,
e as ações deles não podem de modo algum ser coordenadas por meio
da comunicação. “Mesmo que levemos em consideração que sistemas
conscientes no outro lado do globo estejam dormindo e outros, por
quaisquer que sejam as razões, não estejam participando da comunicação,
o número de sistemas operando ao mesmo tempo é tão grande que a
coordenação efetiva (e, portanto, a constituição de um consenso no
sentido empírico) está completamente excluída” (Luhmann, 1997, I:
115). Luhmann está certo nesse ponto, mas se os sistemas sociais se
globalizam (globalização a partir de fora), também o fazem os
sistemas psíquicos (globalização a partir de dentro). A emergência de uma
consciência planetária pode ser considerada a contrapartida subjetiva da
globalização sistêmica (da globalização an sich à globalização für uns).
40
Na filosofia analítica, o tema da intencionalidade coletiva e da ação
intencional conjunta também foi discutido por John Searle (1995), Michael
Bratman (1999) e Raimo Tuomela e Kaarlo Miller (1988). Se me concentro
em Gilbert, é porque ela lida mais explicitamente com os autores do
cânone sociológico. Penso, no entanto, que a crítica que dirijo a Gilbert
também se aplica a seus colegas. Ainda que todos insistam corretamente
na tese de que a “intencionalidade do nós” não pode ser reduzida à
“intencionalidade do eu”, todos esses autores têm uma concepção bastante
limitada da sociedade, que tendem a reduzir, de qualquer modo, a
convenções lewisianas. Todos eliminam o “espírito objetivo” e esquecem
que as mediações simbólicas que permitem a coordenação da ação não
são apenas intersubjetivas, mas também, propriamente falando, sociais.
Além disso, nenhum dos autores leva em consideração que instituições e
convenções existem na sociedade. Como acontece em todas as reduções
hermenêuticas, eles negligenciam o sistema de relações sociais materiais
presentes no nível macro.
41
Para uma análise mais complexa da sociologia formal, ver meu trabalho
sobre Simmel (Vandenberghe, 2005a).
42
O asterisco refere-se à análise avançada das “condições de felicidade”
semânticas que precisam ser satisfeitas para que um coletivo exista como
um sujeito plural capaz de corresponder ao sentido forte da primeira
pessoa do plural, a um “nós” no sentido pleno.

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teorial social realista.indb 316 27/1/2010 11:22:57


43
Na versão nazificada de 1933 (que não é aquela que tem sido republicada
em alemão, inglês, francês e português), Schmitt não deixa dúvida
de que “não é o soldado, mas o político quem determina o inimigo”
(Schmitt, 1933: 17). Ao designar o outro como um inimigo exterior, o
político (o Führer) transforma efetivamente marcos culturais (étnicos,
raciais, religiosos, linguísticos) em divisões mortais entre os incluídos e
os excluídos do grupo. Para a investigação de uma aplicação sangrenta
da teoria de Schmitt à guerra civil na antiga Iugoslávia, ver Vandenberghe
(1996a).
44
Em sua análise de pronomes pessoais, Benveniste (1966: 225-236, 251-257)
confirma a universalidade dos mesmos. A primeira, segunda e terceira
pessoas do singular ocorrem em todas as 64 línguas que ele analisou. “Eu”
e “Você” formam um casal. A fratura intervém com a terceira pessoa, que
refere-se, como ele diz, a uma “não pessoa”. Interessantemente, ele sugere
que o “nós” pode ser construído de dois modos: um modo inclusivo que
se refere a “eu + você” e um modo exclusivo que se refere a “eu + eles”.
45
Até Habermas concede que não há democracia sem cidadania e
cidadania sem exclusão: “Qualquer comunidade política que pretenda
compreender-se como uma democracia deve, ao menos, distinguir entre
membros e não membros” (Habermas, 1998: 161).
46
Para uma análise convergente das modalidades de incorporação do outro
na comunidade societal, ver a discussão de Alexander (2006: 409-457)
sobre assimilação, hifenação e multiculturalismo. Para uma crítica gentil
da sociologia cultural de Alexander, ver Vandenberghe (2008).
47
Os textos que menciono propõem diferentes abordagens que lidam com
diferentes coletividades e diferentes assuntos. Habermas e Benhabib estão
preocupados com cidadania e direitos civis. Laclau e Mouffe lidam com
classes e novos movimentos sociais, enquanto Barth, antropólogo, analisa
grupos étnicos em comunidades poliétnicas que não são sociedades
multiculturais. Na discussão que se segue, abstraio as diferenças entre
os autores e ajo como se eles estivessem lidando com a mesma questão,
para a qual ofereceriam respostas complementares.
48
Pensar com Schmitt, o filósofo fascista, contra Schmitt, o nazista filosófico,
me parece um empreendimento arriscado (ver, por exemplo, como Telos,
o jornal da Nova Esquerda, tornou-se, via Schmitt, estranhamente ligado à
Nova Direita). Ao invés de pensarmos com Schmitt, sugiro que pensemos
com todos os outros (Habermas, Derrida, Althusser, até Lacan e Lessa, se
necessário) contra Schmitt.
49
O confronto entre o “cosmopolitismo” de Benhabib e a “cosmopolítica” de
Mouffe pode não ser tão radical quanto aquele entre Schmitt e Habermas
– afinal de contas, “‘schmittianos de esquerda’ são ‘liberais de esquerda’ de
certo tipo” (Mouffe, 1999a: 4) –, mas constitui, não obstante, um conflito
sério, dizendo respeito ao papel da humanidade (ou da “bestialidade”,
como Schmitt diria) e, portanto, da ética na política. Minha própria posição
é humanista e cosmopolita: as fronteiras entre coletivos particulares têm
de ser desconstruídas para darem lugar ao maior coletivo que pudermos
imaginar. Através da comunicação intercultural e intercivilizacional, a

317

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articulação das diferenças é teleologicamente dirigida para a constituição
de uma subjetividade coletiva mais ampla (Humanidade), da qual cada
coletivo representa uma instanciação particular.
50
“Um movimento social é a conduta coletiva organizada de um ator de
classe lutando contra um adversário de classe pela direção social da
historicidade de uma coletividade concreta” (Touraine, 1984: 104). Devido
à falta de espaço, terei de negligenciar o papel da cultura (utopias,
narrativas, normas, valores) na emergência dos movimentos. Para uma
interessante abordagem cultural de novos movimentos sociais que casa
as lutas pela identidade e historicidade de Touraine com a teoria dos
interesses cognitivos de Habermas, ver a teoria da práxis cognitiva de
Eyerman e Jamison (1991: 66-93). Além disso, para ser capaz de distinguir
entre coletivos progressivos e regressivos, exemplares e patológicos, eu
teria também de desenvolver, mais explicitamente, argumentos normativos
de natureza filosófica.
51
Coletivos podem ser diluídos (como classes) ou centrados (como grupos).
Domingues (1995: 110-126) distingue duas dimensões do processo de
centramento, as quais podem variar independentemente: a identidade,
que se refere ao grau de autoconsciência do grupo, e a organização, que
se refere à capacidade de decisão do grupo. Essa grade de interpretação
é bastante útil para a análise da estruturação de subjetividades coletivas,
mas não para a investigação da constituição de sociedades. Ainda que
as sociedades sejam, em última instância, constituídas (produzidas,
reproduzidas e transformadas) pela ação coletiva (sem ação, não há
sociedade), há uma solução de continuidade entre subjetividades coletivas
e sociedades. Não se passa dos coletivos às sociedades por meio da
extensão ou da dissolução, mas da emergência e da diferenciação
sistêmica. Com Archer e Mouzelis (que foi membro da banca de defesa
de Domingues), mas contra Giddens (1984) e Domingues (2000), concluo
portanto que há, de fato, dualidade entre agência e estrutura (na realidade,
cultura), mas há também, sem dúvida, dualismo entre agência e sistema,
entre subjetividades coletivas e sociedades. Em suma: as sociedades não
são subjetividades coletivas diluídas ou descentradas.
52
Com alguma boa vontade, pode-se considerar os três momentos da
identificação, da mediação e da delegação como, na verdade, três
modalidades de representação: representação simbólica (ver Hall,
1996a; Hall, 1996b), representação tecnocientífica (ver Latour, 1987) e
representação política (ver Pitkin, 1967).
53
Para uma apresentação mais extensa da midiologia de Debray, ver
Vandenberghe (2007b).
54
Poderes causais podem ser exercidos sem serem realizados. Este é o
caso quando outros poderes causais, como aqueles do Estado, por
exemplo, intervêm e bloqueiam a atualização dos poderes do mecanismo
gerativo em foco. Faço abstração, no que se segue, das “estruturas de
oportunidade e custo” presentes no ambiente externo que podem bloquear
sistematicamente a atualização dos poderes causais do coletivo, tais como
uma massiva repressão política exercida pelo Estado.

318

teorial social realista.indb 318 27/1/2010 11:22:58


55
Tomo a noção de “quase-grupo” de empréstimo a Lord Dahrendorf
(1959: 179-182) – que, na realidade, tomou-a emprestada de Ginsberg –,
mas dou a ela um sentido ligeiramente diferente. Quase-grupos são
grupos potenciais, a meio caminho entre classes e grupos de interesse.
Os membros do grupo estão relacionados uns com os outros, mas apenas
potencial e indiretamente, em virtude de seu pertencimento comum a
uma classe e graças aos meios de comunicação. Na medida em que os
quase-grupos ainda não possuem uma organização ou um centro de decisão,
sua capacidade de ação é real, embora ainda virtual. Para atualizar essa
capacidade e transformar o quase-grupo em um grupo mobilizado, uma
organização e um porta-voz são necessários.
56
Q uando os membros de uma comunidade simbólica estão “interes-
piritualmente” conectados através dos meios de comunicação, eles formam
um público, tal como este conceito é definido por Tarde (1901: VI e 2):
“O público é uma multidão dispersa, na qual a influência das mentes
de uns sobre as mentes de outros tornou-se uma ação à distância (...)
O público é uma comunidade puramente espiritual, uma disseminação
de indivíduos fisicamente separados cuja coesão é inteiramente mental.”
Quando esses indivíduos estão interconectados por meios que permitem
a comunicação um a um, os públicos tornam-se redes virtuais.
57
Como os marxistas brasileiros, o irmão de Perry Anderson é um
nacionalista, mas, em princípio, nada nos impede de estender sua
análise do nacional para o transnacional (diásporas) e até para além
(humanidade). Em um artigo mais recente (1998), ele distingue entre
coletividades “não demarcadas e não enumeradas”, como a nação,
e coletividades “demarcadas e enumeradas”, como a França ou os
Estados Unidos. Enquanto as primeiras são representadas nos meios de
comunicação, as últimas são representadas no censo.
58
A mobilização de uma rede é quase sempre acompanhada de uma
contramobilização. A dinâmica “nós-eles”, analisada anteriormente em
termos da oposição entre identificação e categorização, reaparece aqui
como um entrelaçamento antagônico de movimentos e contramovimentos
no campo multiorganizacional da indústria dos movimentos sociais
(Klandermans, 1992).
59
No original: rainbow coalition. Naturalmente, a metáfora do arco-íris
busca, ao evocar suas múltiplas cores, destacar a heterogeneidade interna
dos atores individuais e coletivos articulados em tais tipos de coalizão,
sejam quais forem as bases sociais de tal heterogeneidade (classe,
raça, gênero, etnicidade, nacionalidade, sexualidade etc.). Pode-se,
nesse sentido, compreender a expressão como sinônima de “coalizão
heterogênea”. (N. de T.)
60
Para uma exploração da lógica das coalizões heterogêneas com referência
à realidade brasileira, ver Costa (2002). Diferentes grupos podem ser
conectados uns aos outros através de membros comuns que agem como
porta-vozes, mediadores e tradutores dos seus respectivos coletivos. Em
seu popular ensaio sobre o estranho, Georg Simmel (1995: 764-771)
apontou para o fato de que estranhos, ou cosmopolitas de modo geral,

319

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frequentemente funcionam como diplomatas que estabelecem “relações
exteriores” entre os diferentes grupos aos quais pertencem. Esse insight
foi elaborado e formalizado pela análise de redes sociais (Breiger, 1974).
61
Manifestantes em uma das contrarreuniões de protesto ocorridas no
encontro do G8 estavam carregando um cartaz com o slogan: “Vocês são
8, nós somos 6 bilhões”.
62
Mais cético, Craig Calhoun termina na companhia de Harré. Ele contesta
a tese de que a Internet produz comunidades, no sentido de ligar as
pessoas em relacionamentos densos e multiplexos. Na ausência de
relacionamentos diretos, as categorias tendem a predominar. Ele cita
Castells com aprovação: “Não estamos vivendo em uma aldeia global,
mas em habitações personalizadas que são globalmente produzidas e
localmente distribuídas” (Calhoun, 1998: 389). Para uma exploração
mais otimista das possibilidades de Internetworking, especialmente no
que tange ao chamado modelo da “comunicação entre pares” (peer to
peer communication), ver o trabalho de Michel Bauwens, o fundador da
Foundation for P2P alternatives: <www.p2pfoundation.net>.
63
O vocábulo catnets é formado a partir da fusão das palavras “Categories”
(categorias) e “Networks” (redes). (N. de T.)
64
A despeito de seu título promissor, Silence and voice in contentious
politics [O silêncio e a voz na política contenciosa] (Aminzade et al., 2001)
não tem muito a dizer sobre porta-vozes. O volume pretende destacar
os “silêncios” na teoria da mobilização de recursos e dar “voz” a tópicos
negligenciados na pesquisa sobre movimentos sociais, como espaço,
personalidade, emoções ou religião.
65
Seguindo esta sugestão de Vandenberghe, no que se segue, todas as
referências genéricas do próprio autor a porta-vozes serão feitas no
feminino. (N. de T.)
66
Uma justificação convincente para a manutenção da expressão frame
no original inglês é oferecida por Maria da Glória Gohn: “Preferimos
manter... o conceito de frame como no original inglês... porque para
expressar o significado que lhe é atribuído nas análises teríamos de usar
não uma só palavra, a partir de sua tradução (quadro, ou moldura, ou
estrutura – sendo esta última a pior opção, porque poderia ser confundida
com outros usos do termo), mas toda uma frase: ‘marcos referenciais
significativos e estratégicos da ação coletiva’” (GOHN, Maria da Glória
(2002). Teorias dos movimentos sociais. São Paulo: Loyola. p. 87.). No
contexto da argumentação de Vandenberghe, o conceito de frame deve
ser tomado em sua acepção mais ampla, como uma constelação complexa
e mutável que envolve esquemas de interpretação, modos de discurso,
valores morais, compromissos afetivos e orientações práticas de conduta
partilhadas pelos membros de um determinado movimento social (sobre
isso, ver a próxima nota do autor). (N. de T.)
67
Inspirada em Goffman, a análise de frames trouxe a análise cultural de
volta à teoria da mobilização de recursos, embora ainda compartilhe do
utilitarismo e do mentalismo da última (Cefaï; Trom, 2001). Ela estabelece

320

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uma concepção poderosa de interação estratégica, mas tende a reduzir
os frames a ferramentas culturais instrumentais, concebendo estas
últimas como representações cognitivas e subvalorizando suas dimensões
pragmáticas e afetivas. Além disso, tal abordagem refere-se com frequência
a uma psicologia social de estados mentais internalizados, enquanto os
frames proveem um “vocabulário de motivos” que são parte de culturas
públicas disponíveis em situações sociais.
68
Apenas alguns exemplos extraídos da caixa de ferramentas anarquista:
“Conselhos de porta-vozes são grandes assembleias que estabelecem
a coordenação entre ‘grupos de afinidade’ menores. Cada grupo de
afinidade (que pode ter entre 4 e 20 pessoas) seleciona um ‘porta-voz’,
que está habilitado a falar por eles no grupo mais amplo. Apenas os
porta-vozes podem tomar parte no processo efetivo da busca de consenso
no conselho, mas, antes de decisões importantes, eles se desmembram
novamente em grupos de afinidade e cada grupo chega a um consenso
sobre que posição eles desejam que seu porta-voz assuma (...) Pode-se
requisitar uma sessão de brainstorming, na qual as pessoas podem apenas
apresentar ideias, mas não criticar aquelas de outras pessoas (...) a técnica
do ‘aquário’ (fishbowl) só será utilizada no caso de uma diferença profunda
de opinião: pode-se escolher dois representantes para cada lado – um
homem e uma mulher – e fazer com que os quatro sentem-se no meio,
com todos em volta deles silenciosamente, verificando-se se os quatro
podem chegar a uma síntese ou acordo juntos, que podem apresentar
como uma proposta para todo o grupo” (Graeber, 2002: 71-72).
69
Seguindo a teoria dos atos de fala, enfatizo os efeitos ontológicos das
performances. Para uma abordagem mais dramática que acentua os
aspectos histriônicos das performances que “fundem” de modo bem-
-sucedido a porta-voz e o grupo que ela representa, ver Alexander
(2004, especialmente p. 549): “Performances bem-sucedidas superam o
adiamento de significado que Derrida reconheceu como diferença. Em
uma performance de sucesso, os significantes parecem efetivamente se
tornar aquilo que significam (...) O ator parece ser Hamlet; o homem
que faz o juramento do cargo parece ser o presidente (...) A performance
alcança verossimilhança – a aparência da realidade.”
70
Para uma análise social-construtivista de categorias socioprofissionais
influenciada por Boltanski e que enfatiza a inter-relação entre
representações sociais, científicas e políticas, ver Desrosières e Thévenot
(1988).
71
Como porta-voz do proletariado, Marx ilustra perfeitamente a teoria
performativa da representação política. Antes de Marx, havia
trabalhadores explorados, mas não proletariado. Graças ao trabalho
de representação por parte de intelectuais proletários menores e de
grandes intelectuais orgânicos, o marxismo se difundiu entre as classes
trabalhadoras. Quando elas se tornaram conscientes de seus interesses e
de seu poder, começaram a se organizar em partidos, sindicatos, células
etc, realizando e confirmando assim a teoria de Marx.

321

teorial social realista.indb 321 27/1/2010 11:22:58


72
A publicação da quase totalidade das intervenções de Bourdieu na
esfera pública, da guerra na Argélia às greves de 1995 e à consequente
aceitação de Bourdieu como um “intelectual total” nos âmbitos nacional
e internacional (Bourdieu, 2002a), mostra que sua desconfiança em
relação ao sistema político como um sistema de políticos fechado sobre
si mesmo foi uma constante em sua carreira. Essa desconfiança também
explica seu apoio ao comediante Michel Coluche como candidato às
eleições presidenciais de 1981. Todas as suas intervenções pretendem dar
voz àqueles que não têm acesso à fala, contam pouco para os políticos
e não são representados pelo sistema – “os preguiçosos, os sujos, os
drogados, os alcoólatras, os homossexuais, as mulheres, os parasitas,
os jovens, os idosos, os artistas, os prisioneiros, as sapatas [the butches], os
aprendizes, os negros, os pedestres, os árabes, os loucos, os travestis,
os ex-comunistas, os não votantes convencidos” (Coluche, anúncio de sua
candidatura para as eleições presidenciais, citado por Bourdieu, 2002a:
162).
73
Offe e Wisenthal (1980) apresentam uma análise comunicativa da
organização dos grupos de interesse. A despeito de seu brilhantismo, essa
análise habermasiana é, entretanto, um tanto parcial e datada. Os autores
argumentam que a lógica comunicativa se aplicaria apenas a sindicatos
trabalhistas; em contraste, para realizar seus interesses, as federações de
empregados poderiam operar com uma lógica monológica e estratégica.

Capítulo 7 - Você sabe com quem


está falando quando fala consigo
mesmo? Margaret Archer e a teoria das
conversações internas
1
The Archers é o nome da mais popular radionovela da Inglaterra
(protagonizada por uma família de classe média na vila ficcional de
Ambridge), que vai ao ar cinco vezes por semana desde 1950.
2
A série será composta, ao final, de seis livros. O quinto foi Making our
way through the world (2007a).
3
A despeito da estranheza do termo, a tradução de conflation por
“conflação” me parece a mais fiel aos propósitos teórico-metodológicos
de Margaret Archer, sobretudo em face do fato de que as alternativas
possíveis “redução” e “elisão” são explicitamente tomadas pela autora
como de uso mais restrito (o primeiro termo designando as conflações
“ascendente” e “descendente”, enquanto o segundo se refere ao pecado
da conflação “central”). Dessa forma, a noção de “conflação” é a única
capaz de fazer referência à sua tentativa de criticar, em bloco, todas as
abordagens teóricas que negligenciam, segundo sua visão, o caráter
ontologicamente estratificado da realidade social, inclusive perspectivas
sintéticas explicitamente não reducionistas como as de Giddens e

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Bourdieu: “Basicamente, conflacionistas rejeitam a natureza estratificada
da realidade social ao negarem que propriedades e poderes independentes
pertençam tanto às ‘partes’ da sociedade quanto às ‘pessoas’ no seu
interior. (...) Na conflação ascendente, os poderes das ‘pessoas’ são
tomados como orquestradores das ‘partes’; na conflação descendente,
as ‘partes’ organizam as ‘pessoas’. (...) Entretanto, há uma terceira forma
de conflação que não subscreve de modo algum o reducionismo. Há a
conflação central, que é arreducionista, pois insiste na inseparabilidade
entre as ‘partes’ e as ‘pessoas’. Em outras palavras, a falácia da conflação
não depende do epifenomenalismo, em tornar um nível da realidade
inerte e assim redutível. O epifenomenalismo não é o único modo de
destituir as ‘partes’ e as ‘pessoas’ de propriedades e poderes emergentes,
autônomos e causalmente eficazes. Qualquer forma de conflação tem
as mesmas consequências. Assim, a conflação é o erro mais genérico e
o reducionismo uma mera forma assumida por ela” (Archer, 2000: 5-6,
grifos da autora). ( N. de T.).
4
As três preocupações estão relacionadas às três ordens da realidade com
as quais temos inescapavelmente de lidar como seres humanos: as coisas
da ordem natural, os artefatos da ordem prática e as pessoas da ordem
social. No entanto, dado que Archer define a identidade pessoal em
termos do compromisso com preocupações últimas e diante de seu forte
interesse na religião, pode-se perguntar se a ordem transcendente não
deve ser introduzida explicitamente como uma ordem distinta (ao invés de
contrabandeada para a ordem prática). É exatamente isto que acontece em
Archer (2006). Em Transcendence, livro sobre o realismo crítico e Deus,
Margaret Archer, Andrew Collier e Douglas Porpora saem coletivamente
do armário religioso e introduzem Deus como um mecanismo gerativo não
observável que não apenas cria e sustenta o universo a cada momento,
mas também se revela ao ser humano e transforma interiormente aquele
que encontra e experimenta o amor divino: “Para nós [três], Deus é o alfa
e o ômega, o início e o fim...Deus é o fundamento último ou verdade
mais profunda de todas as coisas e, assim, de todos os seres. Em Deus, a
realidade encontra sua totalidade coerente. Existencial e essencialmente,
Deus é o fundamento de todos os fundamentos” (Archer; Collier; Porpora,
2004: 25).
5
Respondendo diretamente às minhas críticas, Archer (2007b) confirmou,
em um relato em primeira pessoa de sua trajetória intelectual, que ela
encerraria o ciclo morfogenético com uma investigação do papel da
reflexividade nos movimentos sociais.
6
Sobre Rawls e as conversações internas de um espectador imparcial, mas
capaz de simpatia, ver Vandenberghe (2008).
7
Continuando minhas conversações com Margaret Archer, desenvolvi uma
teoria onto-teleo-teológica do self fortemente inspirada na hermenêutica
de Gadamer. Em acordo com o realismo crítico, argumento basicamente
que não temos conversações com nós mesmos, mas que somos essas
conversações.

323

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APÊNDICE
ESBOÇO DE UMA PESQUISA
INTERCONTINENTAL SOBRE UM CAMELO

Aparentemente, os animais sempre se comportam de uma forma


que prova a correção da filosofia do humano que os observa.

Bertrand Russel. The history of my philosophical ideas

Sabemos que o realista crítico analisaria o camelo à maneira


de um filósofo alemão com tendências analíticas e místicas. To-
mando a existência do animal como um fato, ele: a) analisaria
transcendentalmente as condições de possibilidade da observação
de qualquer camelo; b) explicaria suas ações efetivas e poten-
ciais através da abdução, partindo dos efeitos observáveis para
as causas transfactuais (mas eficazes), identificadas as tendências
internas dos mecanismos gerativos; c) e, finalmente, subsumiria
dialeticamente toda a pesquisa existente sobre o camelo em
um sistema dialético totalizante que buscaria libertar todos os
camelos, de modo a realizar o florescimento universal de todos
os animais (incluindo os humanos) neste mundo (e também nos
outros mundos).
Para não sobrecarregar a análise, limitemo-nos ao momento
“b” e vejamos como esta análise conceitual poderia proceder:

Suponhamos que estamos interessados em explicar (no sentido


de Hempel e Hume) o comportamento de um certo indivíduo
N, digamos um elefante [ou um camelo - FV]. Um conhecimento
total do estado de coisas antecedente nos permitiria predizer o
seu comportamento? Não – pois se N é caracterizado por uma

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estrutura e complexidade internas, ele pode se comportar dife-
rentemente nas mesmas circunstâncias externas em virtude de
seus diferentes estados interiores. Assim, o que acontece quando
cutuco um [camelo] depende, pelo menos em parte, do estado
em que ele está, e.g., se está dormindo ou não; e, portanto, nessa
medida, o estado total do universo, do qual o [camelo] ocupa
uma parte, será uma variável (BHASKAR, R. (1975-1978). A realist
theory of science. Brighton: Harvester Press. 2 v.).1

A refutação transcendental do determinismo da regularidade


pressuposto pelo modelo nomológico-dedutivo prepara o terreno
para uma abordagem mais praxiológica e etológica das práticas,
hábitos e costumes – em suma, do ethos – do camelo. Como um
sociólogo humanista, eu buscaria inspiração na nova etologia,
que, no rastro do inovador trabalho de campo de Jane Goodall,
Frank Dewaal e outros primatólogos, utilizou a técnica de obser-
vação participante para revelar que os animais são dotados de
sentimentos morais, como compaixão, simpatia, solidariedade e
até perdão.2 Se Thelma Lowell pode fazer com que carneiros se
pareçam com macacos, não há razão para não se assumir que os
camelos não podem chorar como os elefantes.3

1 Margaret Archer me enviou gentilmente sua própria “ruminação sobre


os camelos no repertório dos realistas no Reino Unido”:
Os escoceses produziram um manual intitulado “Obtendo auxílios, sub-
sídios e quaisquer outros financiamentos semilegais para a introdução
de camelos nas Terras Altas da Escócia”.
Os irlandeses estavam presos em um impasse entre uma comparação – la-
mentavelmente – empiricista dos “méritos relativos do estrume de camelos
e vacas para o pequeno fazendeiro” e uma celebração criptoidealista da
“Iconografia animal na espiritualidade celta; o came-leão”.
Os ingleses da virada dialética ofereceram “A síntese em quatro planos
da Bela Alma do camelo na Metarrealidade”.
Realistas do País de Gales declinaram de participar, declarando que “Ca-
melos não pagarão aqui”.
2 CAILLÉ, A. (2008). Conditions de possibilité d’une subsidiarité solidariste:
eléments d’une théorie de l´action. In: ARCHER, M.; DONATI, P. (Ed.).
Pursuing the common good: How solidarity and subsidiarity can work
together. Vaticano: Pontifical Academy of Social Sciences; DESPRET, V.
(2002). Quand le loup habitera avec l’agneau. Paris: Les Empêcheurs de
Penser en Rond.
3 (MASSON, J.; McCARTHY, S. (1996). When elephants weep: The emotional
life of animals. London: Vintage). Sobre o choro dos camelos, ver, no
entanto, o documentário Os camelos também choram (2003), dirigido por
Byambasuren Davaa e Luigi Falorni.

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Mas, ainda que essas reflexões metametodológicas sobre
a etnografia humanista possam auxiliar a investigar o animal
com o devido cuidado, elas não responderiam à questão mais
antropológica sobre como um brasileiro faria uma pesquisa in-
tercontinental sobre o camelo.4 Como gringo, eu honestamente
não sei. O Brasil não é para iniciantes, como reza a famosa frase
de Nelson Rodrigues. A questão é intrigante, mas, como sinto
que tenho primeiramente de ir para a Índia para fazer alguma
pesquisa comparativa sobre camelos e elefantes, não arriscaria
uma resposta ainda. Então, perguntei a alguns colegas no IUPERJ
se eles poderiam me ajudar. As respostas vieram e, para o seu
prazer, eu as reproduzo aqui:

A) Jairo Nicolau (Professor - IUPERJ)

O estudo do camelo em duas versões da ciência política


brasileira:

1. Do camelólogo empírico: Depois de diversas medições


e aplicações do índice ICE (índice de corcovas efetivas),
ele descobre que não se trata de um dromedário. O ICE do
camelo = 2; do dromedário = 1; da mula = 0.
2. Do camelólogo teórico: Depois de ler tudo sobre as três
tradições de estudos camélicos, sugere um curso em três
módulos chamado As concepções de camelo na tradição
europeia: as versões francesa, inglesa e alemã.

B) José Maurício Domingues (Professor - IUPERJ)

No caso brasileiro, creio que, no espírito da paródia descrita,


podemos dividir a questão em duas. Em termos conceituais, duas
soluções seriam as mais prováveis: uma, que se apropria do que
todos os três disseram e julga os camelos brasileiros em função
da medida que a ciência europeia estabelece, negativamente –
não temos camelos ou temos uma mistura de camelo com jegue
(logo, estamos perdidos); a outra, supostamente positiva, afirmaria
4 Para uma pesquisa comparativa sobre as tradições nacionais de pesquisa
sobre macacos e uma análise da literatura científica sobre primatologia
no Brasil, ver: STRUM, S.; FEDIGAN, L. Primate encounters: Models of
science, gender and society. Chicago: University of Chicago Press, 2000.

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que não temos camelos, mas que se fizermos tudo certo um dia
nossos jegues virarão camelos. Enfim, metodologicamente, acho
que seria a mesma solução do francês, provavelmente sem o seu
charme. Felizmente, temos muitas exceções a essa paródia, mas
nem tantas como seria desejável.

C) Adalberto Cardoso (Professor - IUPERJ)

Aproveito as profundas ponderações de José Maurício Domingues


para sugerir uma variante. O brasileiro esperaria as reflexões do
alemão ou do francês (os ingleses não as criam, não é mesmo?),
então usaria as categorias de um ou de outro para analisar o jegue
como se ele fosse um camelo, concluindo que jegues são seres
muito complexos e multidimensionais, quase como camelos, e
que, portanto, a camelagem (ou camelidade) é múltipla. E isso
sem jamais se perguntar se o camelo existe realmente.

D) Gláucio Ary Dillon Soares (Professor - IUPERJ)

Um pesquisador brasileiro entra na Internet; verifica onde há


camelos; acidentalmente, descobre que também existem drome-
dários, escreve um projeto sobre o racismo de duas corcovas,
apresenta à Capes, recebe o auxílio, vai para Paris, onde escreve
um relatório pós-moderno sem nunca ter visto um camelo ou
um dromedário.
P.S.: O relatório é aprovado.

E) Thamy Pogrebinschi (Professora - IUERJ)

O pesquisador brasileiro vestiria uma bermuda, calçaria um par


colorido de sandálias Havaianas, iria para o boteco da esquina,
pediria um chope bem gelado e começaria a batucar na mesa um
sambinha: “um camelo, ôô, é um pouquinho de Brasil, iaiá...”.

F) Luiz Antônio Machado (Professor - IUPERJ)

O brasileiro tomou conhecimento da variedade de estudos


sobre o camelo quando estava realizando seu pós-doutorado
em uma universidade islandesa. Durante a conferência que foi

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convidado a fazer pelo colega sueco que dirigia o Instituto da La-
tinidade, resolveu aproveitar o tema, que estava na ordem do dia.
Referiu-se ironicamente ao etnocentrismo característico de todas
as variantes sociológicas do imperialismo, lembrando inclusive o
cavalo de batalha – sem trocadilho, ele disse – que Geertz havia
feito com a tartaruga do mito primitivo, objeto de sua descrição
densa. Como alternativa, propôs uma nova leitura, multicultural
porém de viés econômico, para o estudo dos animais.
Nosso conferencista foi muito aplaudido pelos estudantes
(maciçamente coreanos) por sua demonstração de que a periferia
nada tem a ver com quadrúpedes. Ele provou que o animal que
deveria ter recebido a atenção dos estudiosos, por ser represen-
tativo da realidade das formações sociais periféricas – cauteloso,
sugeriu que, em um primeiro momento, restringia-se às de
língua portuguesa –, é bípede: a galinha (na variante de granja,
não d’angola, apesar da proximidade entre as duas). Verdade
que houve alguma crítica, especialmente centrada na hipótese
de a galinha de granja ser mera derivação da autêntica galinha
d’angola, desvirtuada pelo processo de acumulação que a ab-
sorveu e massificou. Saliente-se que esboçou-se uma discussão
lateral, a partir da afirmação de Marx de que a chave da anatomia
do macaco é a anatomia do homem. Quanto ao homem, não
havia dúvida sobre ser bípede; já o macaco, se não fosse bípede,
desmontaria toda a argumentação, e não haveria acordo quanto à
sua classificação. Mas esta linha de debate foi abandonada, salvo
por um ou outro recalcitrante, dada a convicção generalizada de
que o marxismo está, ou deveria estar, enterrado.
O sucesso da conferência foi tal que o brasileiro viu-se pra-
ticamente forçado a propor um grupo de trabalho internacional
sobre a relação entre os animais e as transformações culturais
no capitalismo globalizado. E tem sido insistentemente sondado
para candidatar-se a presidente da Associação Internacional de
Sociologia. Com a modéstia e o desapego que o caracterizam,
tem dito um constrangido “sim” a todos os que o procuram para
isso. Parece que já há quem esteja repensando toda a teoria
socioanimalesca de modo a incorporar, em uma perspectiva de
conjunto, as duas pernas decepadas. Dada a gravidade da questão,
acho indispensável avaliar a oportunidade dessas modificações.

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G) César Guimarães (Professor - IUPERJ)

Nos dias que correm, pesquisadores brasileiros haveriam de


preferir pesquisas aplicadas, com recursos da agência financiadora
pertinente: “o uso do camelo nas secas nordestinas”; “o cultivo
familiar de camelos na produção de renda e de cidadania”; “Os
camelos também choram? – a corrupção política na administra-
ção dos camelódromos” – nesse caso, trata-se de uma tese de
doutorado, cuja originalidade já se anuncia no título. Finalmente,
no que se poderia chamar um veio mais construtivo, teríamos
“A produção social do camelo e a sociabilidade humana nos
zoológicos brasileiros – um estudo comparado”!

H) Gabriel Peters (Doutorando - IUPERJ)

O pesquisador Fulano da Silva procedeu a uma exegese minu-


ciosa do clássico “Ideia do camelo tirada do conceito do eu”, bem
como da ampla bibliografia gerada pelo animado debate acerca
dessa obra na academia alemã. Impressionado com a sofisticação
filosófica dos camelólogos germânicos, tão distante do empirismo
superficial anglo-saxão quanto da pseudoprofundidade afetada
da lítero-filosofia francesa, Fulano lamentou a falta de familiari-
dade dos pesquisadores brasileiros com Kant e Hegel (para não
falar em Platão e Aristóteles) e, ao final de seu esforço exegético,
publicou “A teoria crítica do camelo”, obra em que apresentava
fielmente as controvérsias em torno do status ontológico de suas
corcovas e das condições para a emancipação camelina.
eltrana de Souza reconhecia a importância da contribuição
B
alemã às ciências camelológicas, mas julgava que faltava aos
alemães a vitalidade retórica, a imaginação heurística e a ousadia
crítica dos franceses. Inaugurando toda uma vertente de came-
lologia francófila no Brasil, ela publica “A estrutura e a corcova:
o descentramento do camelo no pensamento francês contempo-
râneo”.
Sicrano Pereira lamentava profundamente que os estudos
camelológicos tupiniquins, ao invés de emularem o saudável
compromisso anglo-saxão com a minúcia observacional e a
clareza discursiva, permanecessem atravancados pelas verbor-
rágicas filosofices “continentais” (ele nunca havia lido Derrida,
mas estava certo de que o sujeito [sic] era um charlatão). Tendo

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até considerado inicialmente a possibilidade de empreender uma
investigação dos poucos exemplares da espécie no Brasil, ele
prefere redigir a defesa de um “neoempirismo esclarecido” em
um livro intitulado “Você sabe o que está observando?”.
Finalmente, Trajana Ribeiro, após uma mirada panorâmica
sobre toda essa produção camelológica brasileira, fica abismada
com nosso parasitismo em relação ao Velho Mundo e põe-se a
escrever “Camelos fora do lugar: o complexo de inferioridade
intelectual terceiro-mundista na camelologia”.

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