A Constituição Histórica Da Doença Mental - Michel Foucault
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by Vinicius Siqueira
Published novembro 23, 2016
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efeitos de uma imaginação desregrada ou do desequilíbrio dos humores ou dos espíritos. Neste casos, não há um
desenvolvimento propriamente médico (não mais que paralelo) na relação do trabalho dos pro ssionais, do
desenvolvimento de uma explicação para a possessão e da igreja, pois o que se percebe é a própria experiência
religiosa que necessitou – de um modo secundário – da explicação médica para ter apoio em seus objetivos, sendo
os casos descritos por Foucault pedidos de intervenção da medicina em casos de possessão feitos pela igreja
católica contra o protestantismo e o paganismo.
Diferente da experiência contemporânea, é fato que a loucura era reconhecida de maneira polimorfa. Já na
medicina grega uma parte do domínio da loucura era classi cado como patológico e recebia práticas que
patologias deveriam receber. Durante a história é comum encontrar hospitais que reservavam leitos para loucos,
com objetivo de enclausurar os furiosos. Mas é importante entender que esta relação com o louco era uma fatia do
todo. Sendo que esta característica ” era somente um setor restrito, limitado às formas da loucura que se julgavam
curáveis (frenesis, episódios de violência, ou acessos ‘melancólicos’). De todos os lados, a loucura tinha uma
grande extensão, mas sem suporte médico”[1].
A loucura não tinha um tratamento estável, único. Ela dependia sempre de uma certa integração com a cultura que
variava com o tempo e o espaço. Era possível ver livros de moral sobre a loucura, como em O Elogio da Loucura de
Erasmo; pinturas como em Bosch com a Nave dos Loucos; espetáculos populares que acontecem em volta de
eventos da loucura, como o Navio Azul em Flandres; e, na literatura, o próprio teatro elisabetano e francês com
cenas de demência, sonhos e con ssão.
Isto não quer dizer que o Renascimento não cuidou dos loucos. Pelo contrário, foi no século XV que se viu abrirem-se
na Espanha inicialmente (em Saragossa), depois na Itália, os primeiros estabelecimentos reservados aos loucos. São
aí submetidos a um tratamento, sem dúvida, em grande parte inspirado da medicina árabe. Mas estas práticas são
localizadas. A loucura e no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do cenário e da
linguagem comuns, é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar. Há na
França, no começo do século XVII, loucos célebres com os quais o público, e o público culto, gosta de se divertir;
alguns como Bluet d’Arbêre escrevem livros que são publicados e lidos como obras de loucura. Até cerca de 1650, a
cultura ocidental foi estranhamente hospitaleira a estas formas de experiência[2].
No entanto, a segunda metade do século XVII guardava mudanças. Foi neste período que a loucura deixou de ser o
estranho habitual e foi encaixada em status de exclusão. Os hospitais de internamento de loucos foram criados por
toda a Europa e lá se vê não só loucos, mas sujeitos muito diferentes uns dos outros, pelo menos diferentes para os
nossos critérios:
Esses hospitais, por sua vez, não têm como objetivo curar ou tratar os internados. Sua motivação médica era nula e
o objetivo de sua existência era enclausurar aquilo que a sociedade não queria ver e não poderia lidar a olho nu: a
desrazão. A permanência dos asilos está diretamente ligada ao programa de trabalhos forçados (que imita as
workhouses inglesas) feitos pelos internos: vários objetos eram ados e tecidos, depois lançados em mercado com
baixos preços para nanciarem a própria existência do sanatório. Não obstante, o trabalho tem papel de controle
moral,
É que, no mundo burguês em processo de constituição, um vício maior, o pecado por excelência no mundo do
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comércio, acaba de ser de nido; não é mais o orgulho nem a avidez como na Idade Média: é a ociosidade. A categoria
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comum que agrupa todos aqueles que residem nas casas de internamento, é a incapacidade em que se encontram de
tomar parte na produção, na circulação ou no acúmulo das riquezas (seja por sua culpa ou acidentalmente). A
exclusão a que são condenados está na razão direta desta incapacidade e indica o aparecimento no mundo moderno
de um corte que não existia antes.[4]
Foi a partir do internamento de loucos junto a libertos e criminosos maiores e menores que a loucura foi associada
com o mau, o obscuro, aquilo que deve-se afastar. Foi quando esta estabeleceu um paralelo de culpa moral e social
com tais infrações: não se ca surpreso, portanto, com o fato da loucura ser muitas vezes a causa e a absolvição do
crime, ser o relacionada com os “crimes do amor”. Sua nova posição requer que ela carregue o peso da má conduta
e que o sujeito acometido por ela não seja responsável juridicamente sobre si.
Com um século de internamentos e silêncio aos loucos, irrupções da loucura começam a reaparecer em ambiente
público. As reformas passam a ser discutidas e o louco como pura culpa passa a ser deslocado para outras esferas: é
aqui o momento em que os hospitais passam a ser considerados focos do mal, lugares obscuros e traumáticos.
Mas como os reformadores resolveriam os problemas dos hospitais? O objetivo era acabar com dois problemas de
uma só vez: 1) acabar com o internamento como ruptura com a opressão do sistema monárquico pré-revolução
francesa e 2) diminuir a assistência hospitalar para escamotear a existência de uma classe miserável.
A ideia inicial, de libertar os loucos, criava o problema dos cuidados: como a família conseguiria tomar conta de um
louco agressivo? A resposta foi o isolamento. Os asilos deixaram de aprisionar um número inde nido de tipos de
indivíduos e, paulatinamente, passaram a internar somente loucos. Os reformadores, portanto, libertaram todos
os outros, menos os loucos, e o internamento passou a ser reconhecido como uma medida de caráter médico. São
vários os nomes que ajudaram nessa nova constituição da loucura: Pinel na França, Tuke na Inglaterra, Wagnitz e
Riel na Alemanha. São eles os “pais” do humanismo na medicina em conjunto com seu status de ciência positiva.
Ainda assim, as práticas adotadas por Tuke não se diferenciam das já aplicadas antes da Revolução. O louco é
con nado num espaço que deve considerar algo parecido a seu lar, é então aplicado castigos como privação
alimentar, humilhações, castigos e ameaças para lhe inculcar um sentimento de dependência, humildade e culpa,
aquilo que realmente lhe faria curar – o louco é infantilizado e culpabilizado. Em Bicetre, Pinel liberta os
acorrentados para, em seguida, lhes dominar por meio de grilhões morais, “que transformava o asilo numa
espécie de instância perpétua de julgamento”[5].
As técnicas terapêutica dos manuais médicos do século XVII e XVIII se mantiveram após a reforma. Os tratamentos
desses manuais não separava o corpo da alma, a loucura da saúde física. Por isso, os tratamentos eram físicos e
psicológicos: “submetia-se o doente a ducha ou ao banho para refrescar seus espíritos ou suas bras; era-lhe
injetado sangue fresco para renovar sua circulação perturbada; procurava-se provocar nele impressões vivas para
modi car o curso da sua imaginação”[6].
Quando retomadas por Pinel e seus sucessores, todas essas técnicas perderam seu conteúdo terapêutico de corpo e
alma e foram inseridas num contexto repressivo e moral.
A ducha, não refrescava mais, punia; não se deve mais aplicá-la quando o doente está “excitado”, mas quando
cometeu um erro; em pleno século XIX ainda, Leuret submeterá seus doentes a uma ducha gelada na cabeça e
empreendera neste momento, com eles, um diálogo durante o qual forçá-los-á a confessar que sua crença é apenas
delírio. O século XVIII havia também inventado uma máquina rotatória onde se colocava o doente a m de que o
curso de seus espíritos demasiado xo numa idéia delirante fosse recolocado em movimento e reencontrasse seus
circuitos naturais. O século XIX aperfeiçoa o sistema dando-lhe um caráter estritamente punitivo: a cada
manifestação delirante faz-se girar o doente até desmaiar, se ele não se arrependeu.[7]
A loucura perde sua característica de fenômeno global, deixa de pertencer ao corpo e a alma e passa a ser algo
interior, um fato da alma humana e, consequentemente, recebe um status psicológico. Foucault indica que esta
operação encobre uma mais profunda, a da inserção da loucura no sistema de repressões e culpa morais, em que o
louco é minorizado e aparentado como um criança, sendo sua conduta classi cada como erro (este novo louco
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nasce, portanto, sob as regras que mais tarde darão luz ao evolucionismo do desenvolvimento psicossexual
proposto pela psicanálise).
Até agora, Foucault mostrou as formas como a psicologia analisa a doença mental (o evolucionismo da psicanálise,
a história individual e as ambivalências da existência), não é novidade que todas elas se enquadrem nos temas que
de nem sua problemática desde Esquirol: “relações da liberdade com o automatismo; fenômenos de regressão e
estrutura infantil das condutas; agressão e culpa”[8].
A psicologia, assim, precisa do louco para surgir. Ela não classi ca, mas necessita do louco: a loucura é classi cada
na medida em que diz algo sobre a psicologia. Foi na experiência patológica que ela se formou como ciência, como
objetividade, como psicologia positiva. “Foi uma análise dos desdobramentos que ocasionou uma psicologia da
personalidade; uma análise dos automatismos e do inconsciente que fundou uma psicologia da consciência; uma
análise dos dé cits que desencadeou uma psicologia de inteligência”[9]. O homem tornou-se sujeito da psicologia
no momento em que sua relação com a loucura o permitiu o nascimento da psicologia, ou seja, quando seu corpo
passou a ser excluído do convívio, encarcerado em sanatórios e castigado, e quando sua alma passou a ser
devedora em âmbito moral, em débito com a culpa.
É sobre a experiência da desrazão, que pede a exclusão e a culpa do sujeito, onde a psicologia vai formar sua base
epistemológica. Ela é somente uma camada na no qual o homem moderno busca sua verdade, diz Foucault.
Nunca a psicologia poderá, dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da psicologia.[10]
A psicologia da loucura levada ao extremo seria o extermínio de seu corpus, seu desaparecimento, pois a relação
essencial que teria espaço para análise (e uma análise não moralizável, já que não seria psicológica) voltaria a ser a
da razão com a desrazão.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Traduzido por Lilian Rose Shalders. Título original: Maladie
mentale et psychologie (Presses Universitaires de France). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.53.
[2]
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.54.
[4]
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.55.
[6]
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.57.
[7]
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.58.
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[8]
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.58.
[10]
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.60.
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Muito contributiva esta resenha sobre doença mental e psicologia. As obras de foucault acaba sendo um pouco
difícil de entender, principalmente para quem esta começando na vida académica.
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