Bagno - Sujeito em PB e PE
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MAFALDA RESPONDE
TRANSLATION: A MIRROR OF CHANGE?
MAFALDA ANSWERS
Marcos Bagno*
RESUMO
Diversas mudanças linguísticas ocorridas no português brasileiro têm provocado um
distanciamento cada vez maior entre essa língua e o português europeu. Uma dessas
mudanças é a crescente obrigatoriedade, no português brasileiro, de explicitação do sujeito,
devida à simplificação da morfologia verbal decorrente da expansão dos usos de você(s) e
a gente. Com isso, o português brasileiro se afasta das línguas que favorecem a elipse do
sujeito, como o espanhol, o italiano e o português europeu, e se aproxima de línguas em
que a explicitação do sujeito é obrigatória, como o francês. Faz-se aqui uma comparação
entre a gramática do português brasileiro e a gramática do português europeu usando como
corpus traduções das tiras da personagem Mafalda, de Quino, feitas no Brasil e em Portugal.
Por ser um gênero textual em que se procura uma aproximação à realidade da língua falada,
espera-se que essas traduções reflitam os usos normais das interações orais em cada uma das
culturas linguísticas em que foram produzidas, ainda que se trate de uma oralidade fingida.
Palavras-chave: mudança linguística; explicitação de sujeito; oralidade fingida.
ABSTRACT
Many linguistic changes that have been taking place in Brazilian Portuguese have given
rise to a growing gap between this language and European Portuguese. One of these
changes is the near impossibility, in Brazilian Portuguese, of dropping the subject, due to
the simplification of verbal morphology ascribable to the growing use of você(s) and a gente.
As a result, Brazilian Portuguese takes distance from the group of languages which permit
subject-dropping, like Spanish, Italian, and European Portuguese, and comes nearer to
languages where the expression of the subject is mandatory, like French. Here we compare
the grammars of Brazilian and European Portuguese using as corpus translations of strips from
Quino’s Mafalda made both in Brazil and Portugal. Once comic strips are a genre in which
there is an ambition of approaching the reality of spoken language, we expect that those
translations mirror the normal uses of oral interaction in each of the two language cultures
where the translations have been made, despite of being a fake orality.
Keywords: language change; subject-dropping; fake orality.
Introdução
2.“De maneira geral, as pesquisas indicam que o fenômeno de variação entre nós e a gente, na
variedade brasileira, pode ser caracterizado como um processo de mudança linguística, no qual,
gradativamente, a forma inovadora tem ocupado os espaços da mais antiga” (VIANNA; LOPES,
2015, p. 109).
a monitorar sua fala quando se trata de interações mais formais, essa morfologia
binária (eu vs. não-eu) também ocorre na atividade verbal de falantes mais letrados e
de zona urbana em situações de menor monitoramento estilístico.
3. Exemplo extraído do acervo do projeto NURC (Norma Urbana Culta), inquérito D2/SSA/98.
Figura 1
(A)
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(B)
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essas tarifas.
pronome vós e sua morfologia, “desde o século XIX a segunda pessoa do plural sai
completamente do uso falado normal” (TEYSSIER, 1997, p. 90). No pb não existe
nenhuma variedade em que ainda sobreviva esse pronome e sua morfologia. Em
Portugal, o pronome vós e a morfologia correspondente se conservam em variedades
do norte e do centro do país, mas, conforme explica Segura (2013, p. 130), “o
português-padrão [europeu] substituiu, na interação verbal com interlocutor plural,
o pronome vós por vocês [...] usando o verbo na 3a pessoa do plural”. Dessa forma,
vocês é tanto o plural de tu quanto de você, tal como se dá também no pb. No Brasil,
por outro lado, o plural de o senhor/a senhora é, com muita frequência, vocês, raramente
os senhores.
Do mesmo modo que, no Brasil, a expansão dos usos de você provocou
cruzamentos morfológicos nos usos de tu (isto é, a convivência de formas como
tu foste e tu foi), também em Portugal o uso dialetal de vós provoca cruzamentos
morfológicos nos usos de vocês, conforme os dados abaixo, oferecidos por Segura
(2013, p. 131):
suj cp possessivo cd ci
da gente
2sg tu ti, contigo teu, tua, teus, tuas te, lhe, se te, lhe
Uma língua presente numa extensão geográfica tão vasta como o espanhol,
falado por quase meio bilhão de pessoas em mais de vinte países – incluindo os
Estados Unidos, onde o número de falantes da língua (mais de 40 milhões10) está
perto de alcançar o da população total da Espanha (46,5 milhões11) –, apresenta
obviamente um amplíssimo espectro de variação em todos os níveis do sistema
De fato, assim como a forma você, no pb, tem como correferente oblíquo mais
comum a forma te (“você sabe que eu te amo”), também a forma vos, no espanhol rio-
platense, tem correferentes derivados da 2a pessoa do singular do quadro “clássico”
de pronomes: te (“[vos] sabés que te quiero”) e os possessivos tu(s) e tuyo(s)/tuya(s).
E tal como o plural de tu, no pb, convergiu para a mesma forma do plural de você,
isto é, vocês, no espanhol rio-platense o plural de vos é ustedes, que também é o plural
de usted, pronome de tratamento formal. Ao contrário de você(s), porém, que se
serve unicamente da morfologia verbal da 3a pessoa (singular e plural), a morfologia
de vos é híbrida, pois apresenta algumas formas próprias (como no presente do
indicativo sos, cantás, partís, querés etc., diferentes de [tú] eres, cantas, partes, quieres etc.)
e outras que derivam diretamente da morfologia “clássica” da 2a pessoa do singular
(vos/tú cantabas, vos/tú hablarías, vos/tú dejaste etc.). Temos assim o seguinte quadro de
pronomes-sujeitos nas variedades peninsular e rio-platense12:
12. O quadro tenta dar uma visão mais geral dos usos dos pronomes, sem levar em conta as inevitáveis
variações regionais e/ou sociais que existem tanto na Espanha quanto na Argentina e no Uruguai.
(espanha) (argentina/uruguai)
1 sing
a
yo yo
tú (informal) vos (informal)
2a sing
usted (formal) usted (formal)
3a sing él/ella él/ella
1 plur
a
nosotros nosotros
vosotros (informal) ustedes
2a plur
ustedes (formal) (formal e ijformal)
3 plur
a
ellos/ellas ellos/ellas
13. As tiras da Mafalda na edição completa em espanhol são numeradas de 1 a 1.920. O número da tira
aparece discretamente em algum ângulo de um dos quadros. No exemplo, trata-se da tira 581. Essa
numeração será usada aqui para indicar a localização das tiras.
Tanto quanto nas demais línguas em que o pronome-sujeito pode ser elidido,
também nessa variedade a enunciação do pronome assume, conforme se mencionou
mais acima, um caráter de realce pragmático-discursivo, como no caso de vos e yo nas
seguintes tiras:
O que a autora afirma sobre a relação espanhol-pb também se aplica, a meu ver,
à relação pb-pe: as mudanças ocorridas em ambas as línguas podem provocar, e com
frequência de fato provocam, problemas de intercompreensão mútua. Conforme se
argumentou mais acima, o apagamento de você no português europeu, por exemplo,
pode gerar enunciados que, para falantes de português brasileiro, se aproximariam
da agramaticalidade.
Uma vez que o interesse aqui é investigar em que medida a tradução espelha
(ou não) os processos de mudança ocorridos especificamente no português brasileiro
no que diz respeito ao tratamento dos pronomes-sujeitos, e não propriamente uma
análise comparativa das gramáticas do espanhol e do português, remetemos o leitor
interessado aos ensaios reunidos em Fanjul e Maia González (2014), fundamentais
para quem se dedica ao ensino de espanhol no Brasil, ao ensino de português a
falantes de espanhol e ao ensino de línguas estrangeiras de modo mais geral.
[...] comparando-se o pb com o pe, tem-se notado que a ocorrência da categoria vazia não
é a mesma nessas duas variedades: no Brasil preenche-se mais a posição do sujeito que a
de objeto direto, enquanto em Portugal a relação seria inversa. [...] Na literatura sobre a
diacronia da elisão do sujeito, vem-se estabelecendo uma relação entre morfologia verbal
rica e omissão de sujeito e, ao contrário, morfologia verbal pobre e retenção do sujeito. A
hipótese é particularmente instigante no caso do pb, pois essa variedade vem “simplificando”
sua morfologia. Assim, de um quadro de seis formas verbais (como em canto, cantas, canta,
cantamos, cantais, cantam), tivemos, com a substituição de tu por você, e de vós por vocês, uma
redução para quatro formas (visto que você[s] leva o verbo para a terceira pessoa) e, depois,
para três formas, quando se começou a substituir nós por a gente. (CASTILHO, 2010, p. 293).
3. A oralidade fingida
Convém ressaltar que o adjetivo fingida, que qualifica oralidade nesse conceito,
não pretende emitir nenhum julgamento de valor negativo, como em seus sinônimos
14. Na teoria dos atos de fala de John Austin (1962), as condições de felicidade são os critérios que precisam
ser satisfeitos para que um enunciado performativo seja bem-sucedido. Atos de fala como promessa,
ameaça, solicitação etc. precisam estar formatados adequadamente, em termos linguísticos e
extralinguísticos, para que possam ser corretamente interpretados como tais pelo interlocutor a
quem são dirigidos.
4. Corpus e análise
1. Quino, Toda Mafalda. 19a ed. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2006.
2. Quino, Toda Mafalda, da primeira à última tira. 1a ed., 7a tiragem. Tradução de Andréa
Stahel M. da Silva, Monica Stahel, Pedro Luís do Carmo, Maria Thereza de
Vasconcellos Linhares, Antônio de Pádua Danesi, sob coordenação de Monica
Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
3. Quino, Toda a Malfada, da primeira à última tira. 2a ed. [Não constam créditos da
tradução] Lisboa: Dom Quixote, 1987.
15. Conforme dito na nota 13, as tiras da Mafalda são numeradas. As que serviram de corpus para esta
pesquisa foram: 1, 6, 13, 26, 44, 48, 56, 65, 67, 77, 80, 84, 85, 86, 87, 93, 97, 106, 107, 124, 126,
127, 128, 130, 134, 138, 139, 140, 142, 143, 160, 166, 169, 170, 171, 173, 174, 177, 178, 179,
193, 194, 196, 209, 213, 219, 221, 229, 247, 248, 249, 261, 265, 267, 268, 274, 280, 289, 290, 292,
301, 326, 341, 346, 355, 359, 366, 371, 380, 388, 389, 400, 404, 411, 414, 416, 419, 426, 480, 484,
485, 502, 504, 507, 520, 530, 535, 537, 540, 542, 562,565, 581, 590, 592, 601, 603, 610, 622, 656.
(6) porque...eu fiz o curso normal...porque eu havia perdido o meu pai fazia::ah no no
primeiro colegial...e::eu precisava...ter uma ah optar por uma carreira ... profissionalizante...
eu achei que as coisas dali para frente seriam mais difíceis, eu comecei o colegial... pensando...
em Medicina...e pensando em contar com o meu pai...para...o custeio do estudo mas desde
o momento em que eu...o perdi eu::preferi uma carreira profissionalizante...um colegial
profissionalizante para que eu tivesse chance de já trabalhar assim...que formar não é? e::daí
me empolguei pelo magistério lecionei algum tempo...e::ao terminar o normal eu logo optei
pela Pedagogia que era um curso assim que dá uma cultura...geral boa não é?...ah o nosso curso
foi...bem dado e tudo mais e eu gostei... [...] no quarto ano eu poderia ter feito...e a Psicologia
Clínica também que::eu poderia ter feito no quarto ano como opção... [...] .e::eu não fiz por
falta de tempo porque eu me casei no terceiro ano...de faculdade e daí logo vieram as gêmeas
e eu não::...não fiz...a Orientação no quarto ano porque a carga horária era muito grande...
sabe? então eu...preferi terminar a Pedagogia e fiz a licenciatura...mas [...] eu não falo como
pedagoga porque::eu não::me considero...como formada em Pedagogia...eu não usei o meu
diploma porque eu não lecionei no secundário sabe?...então daí o motivo de eu ter escolhido
Pedagogia...e gosto gosto muito...da::psicologia da criança...do adolescente a psicologia em
geral me cativa sabe?...então...aí está o motivo pelo qual...eu escolhi esse curso.16
Conclusão
REFERÊNCIAS bibliográficas
AUSTIN, J. (1962). How to do things with words. Oxford: Oxford University Press.
BECHARA, E. (1999). Moderna gramática portuguesa 39a ed. Rio de Janeiro: YHL.
DUARTE, M. E. L. (org.) (2012). O sujeito em peças de teatro (1833-1992). Estudos diacrônicos. São
Paulo: Parábola.
DUARTE, M. E. L.; RAMOS, J. (2015). Variação nas funções acusativa, dativa e reflexiva.
In MARTINS, M. A.; ABRAÇADO, J. (orgs.), Mapeamento sociolinguístico do português
brasileiro. São Paulo: Contexto.
17. É incontornável mencionar, a esse respeito, as diversas pesquisas realizadas e/ou orientadas por
Maria Marta Pereira Scherre sobre os usos do modo imperativo no português brasileiro. Com
recurso às histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, às letras das canções de Chico Buarque, a
diálogos de obras literárias etc., Scherre vem comprovando as transformações por que tem passado
o uso do imperativo na fala brasileira. Ver, entre outros, Scherre (2007).
FANJUL, A. P.; MAIA GONZÁLEZ, N. (orgs) (2014). Espanhol e português brasileiro: estudos
comparados. São Paulo: Parábola.
Recebido: 20/02/2018
Aceito: 26/02/2018