Reis C de Garret A Eca Razoes Da Historia PDF
Reis C de Garret A Eca Razoes Da Historia PDF
Reis C de Garret A Eca Razoes Da Historia PDF
DE GARRETT A EÇA:
Razões da História
177
CARLOS REIS
(Univ. de Coimbra)
razões da História são lidas na literatura, isso significa que estamos a colocar-nos não
apenas no nosso lugar de leitores distanciados - distanciados do tempo do romantismo
e do liberalismo, no caso que aqui trago -, mas que estamos também a beneficiar do
relativo (e mais reduzido) distanciamento que a literatura oitocentista cultivou, ao
tematizar factos e figuras históricas. Justamente: Julián Marías fala da necessidade
desse distanciamento quando alude a uma outra razão, que é a da filosofia: «A razão
não é 'instantânea'», declara Marías, «não consiste na simples intelecção de algo que
está presente; requer a descoberta de modos de conexão e .fundamentação, (Marías:
1993, p. 132).
um relato em princípio hipodiegético, enunciado por uma personagem-narrador, cuja palavra é cancelada
(cf. Reis e Lopes: 2002, pp. 299-300).
CARLOS REIS
2 Palavras de Carlos, ao terminar a carta a Joaninha: -Creio que me vou fazer homem político, falar
muito na pátria com que me não importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos serviços
que nunca fiz por vontade; e quem sabe? ... talvez dê por fim em agiota. que é a única vida de emoções
para quem já não pode ter outras• (Garrett: 1983, p. 335).
DE GARRETTA EÇA: Razões da História
como se ele fosse, mesmo no discurso de um putativo historiador, uma razão para a
História a que é preciso dar atenção especial: a relação de Eça com Oliveira Martins e
do Po11ugal Contemporâneo com Os Maias mostra que o ficcionista aceita essa linha
de prevalência do romantismo como razão da História, dos seus factos e das suas figu-
ras, enquanto entidades inseridas na ficção. O que, para ser devidamente aceite desde
já, carece de três pistas de reflexão adicionais, aqui brevemente mencionadas porque
já desenvolvidas algures: primeira, o facto de em Eça não se ter cancelado nunca o
fascínio pela História, fascínio que se ia aprofundando no tempo da composição d'Os
Maias (cf. Reis: 1999, p. 103 ss.); segunda pista, a que reconhece no Portugal Contem-
porâneo, do ponto de vista da substância histórica oitocentista, a fonte dominante
d' Os Maias (cf. Rosa: 1964, p. 345 ss.); terceira, a que aponta para a preferência que
Eça dá a Oliveira Martins, na problematização surda do romantismo, do liberalismo e
182 das razões que os moviam, em detrimento de Garrett, o que constitui mais um dos
episódios do insidioso silenciamento a que o grande romancista sujeitou o autor das
Viagens (cf. Reis: 2002).
3 Uma análise da arquitectura temporal d'Os Maias encontra-se em Coelho: 1976, p. 167 ss.
!)E GARRETFA EÇA: Razôes da História
que permite apurar o ano de 1849, data em que o marechal Saldanha foi afastado da
esfera do poder, na sequência do regresso de Costa Cabral, que, aliás, apoiara. Sinto-
maticamente, é neste episódio e quando termina o almoço, que Afonso toma o braço
do procurador, apoiando-se nele como se lhe tivesse chegado «a primeira tremura da
velhice» (Queirós: s/d, p. 31). Parece claro: este é, simbólica e realmente, o princípio
da decadência da família, porque Afonso (que andaria por pouco mais de cinquenta
anos) fica evidentemente fragilizado com a decisão do filho, que há-de conduzir a um
suicídio obviamente romântico. E esse princípio de decadência não pode dissociar-se
do tempo histórico que se vive, nas primícias da regeneração em que decorrerá a vida
mundana e social de Pedro e Maria, até à fuga desta com o romanesco Tancredo. Tudo
isto em sintonia com a atmosfera político-cultural que então se vive, em que pontifica
o ainda jovem, mas já irremediavelmente romântico, Alencar e que é atravessada,
como no romance se diz, pelo »sopro romântico da regeneração» (Queirós: s/d, p. 36). 183
O terceiro tempo histórico d'Os Maias começa praticamente no Outono de
18754, quando avô e neto vêm viver para o Ramalhete, depois da viagem de Carlos
pela Europa e logo que está terminada a sua formação em medicina. Historicamente
estamos no tempo das sequelas da Regeneração propriamente dita (1851-1868), no
mesmo ano em que é fundado o Partido Socialista Português (sob o impulso de José
Fontana e Antero de Quental) e quando começa a manifestar-se o interesse por África
e pela causa colonial portuguesa, como é atestado pela fundação da Sociedade de
Geografia, também em 1875 5; num outro plano, vive-se em Portugal a emergência do
realismo-naturalismo, em parte decorrendo das Conferências do Casino (1871) e
concretizada na publicação da primeira e da segunda versões d' O Crime do Padre
Amaro (1875 e 1876). A família Maia - reduzida ao avô e ao neto (netos, quando se dá
o reconhecimento de Maria Eduarda) - entra em colapso irreversível, com a revelação
do incesto, a morte de Afonso e a partida de Carlos. O último tempo histórico d' Os Maias
está, de novo, claramente datado, de 1887, quando Carlos regressa a Lisboa e nela vê
coisas velhas (o Chiado e o Ramalhete) e coisas novas (os Restauradores e a Avenida).
no sarcasmo de João da Ega: quando Sousa Neto lhe pergunta se pertence à Sociedade Protectora dos
Animais, Ega responde: ,,_ À Sociedade Protectora dos Animais? ... Não, senhor, pertenço a outra, à de
Geografia. Sou dos protegidos. // A baronesa teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se
extremamente sério: pertencia à Sociedade de Geografia, considerava-a um pilar do Estado, acreditava na
sua missão civilizadora, detestava aquelas irreverências., (Queirós: s/d .. p. 395).
CARLOS REIS
6 Vivendo em Inglaterra, com o conforto da fortuna paterna, Afonso -bem depressa esqueceu o seu
ódio aos sorumbáticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no café dos Remolares a recitar
Mirabeau, e a República que quisera fundar, clássica e voltairiana, com um triunvirato de Cipiões e festas
ao Ente Supremo. Durante os dias da Abri/ada estava ele nas corridas de Epsom, no alto de uma sege de
posta, com um grande nariz postiço, dando burras medonhos - bem indiferente aos seus irmãos de Maço-
naria, que a essas horas o senhor infante espicaçava a chuço. pelas vielas do Bairro Alto, no seu rijo cavalo
de Alter.• (Queirós: s/d, p. 15).
f)J:: G:4RRE7T A EÇ'.4: Razões da História
7. O tempo de Carlos da Maia, nos anos de 1875 a 1877, confirma esta tendência,
agravada por comportamentos que desembocam no incesto. É preciso dizer, antes de
mais, duas coisas: em primeiro lugar, que o tempo histórico de Carlos, vivido numa
atmosfera política agora não apenas pacificada mas, mais do que isso, verdadeiramente
modorrenta e incaracterística, surge consideravelmente desvanecido', sem balizas identi-
ficadoras tão visíveis como as que enquadram a juventude do avô; em segundo lugar,
que nesse tempo se vai insinuando e acentuando, à medida que se instala a ameaça
de extinção da família, urna sensação de acabamento, em direcção a um fim anunciado
e disseminado no episódio final, em 1887. É nesse ano que Carlos retorna a Lisboa, 185
depois de uma ausência que, à sua maneira já finissecular reedita o exílio do avô,
agora sob o signo de um dandismo refinado e não isento de um toque de fradiquisma8.
O trajecto pessoal de Carlos da Maia partira, como se sabe, de um estigma de
ruptura e excesso românticos (a fuga da mãe e o suicídio do pai), que a educação
britânica, diferente para melhor, tanto quanto no capítulo III se percebe, da de Pedro
e da de Euzebiozinho de certa forma procura anular. Contra as expectativas criadas
por essa educação e por uma carreira profissional divergente do que seria previsível9 ,
Carlos mergulha numa existência dispersiva, afectada pelo donjuanisnmo e pelo elitismo
cultural em que a sua actividade se fixa; ambos sào, à sua maneira, prenúncio da esteri-
lidade que, num outro plano, o incesto e as suas interdições hão-de impor, tudo
conduzindo à displicente conclusão que João da Ega, com a concordância de Carlos,
formula numa conversa já epiloga!: «Falhámos a vida, menino!« (Queirós: s/d, p. 713).
Passa-se tudo isto num cenário com marcas culturais nítidas: os anos 70 e seguintes
são aqueles em que está socialmente institucionalizada uma actividade chamada litera-
tura, centrada num protagonista cultural com algum destaque social, o escrito1~ perso-
nagem importante na ficção oitocentista e na queirosiana em especial1°. Nesse cenário,
afirma-se e discute-se o naturalismo, a sua pertinência literária e o seu impacto moral,
ao mesmo tempo que sobrevive um romantismo cuja "catedral", a "Ideia nova", justa-
mente vem fazer ruir, para revolta do poeta Alencar.
Curiosamente, no tempo histórico de Carlos da Maia parece ter-se sumido uma
entidade fundamental no passado de Afonso, na reflexão de Oliveira Martins e nas
digressões garrettianas, como se agora ela não fosse já necessária para explicar os
rumos da História e.da sociedade. Chama-se liberalismo esse actor quase desaparecido
da cena da ficção; e nas escassas oportunidades em que ele surge, as referências não
abonam em favor do que ele pode ainda significar, do que ele fora outrora ou do que
ele quisera ser. Menciono duas dessas referências, em dois níveis de ponderação dife-
rentes: o de Afonso da Maia que expressamente aconselha «aos políticos: "menos libe-
' Não assim com Maria Eduarda: na sua história (e na outra História em que ela decorre) perpassam
mesmo os episódios sangrentos da Comuna de Paris, tudo relatado a Carlos da Maia como se de um outro
mundo diegético se tratasse (cf. cap. À'V do romance).
8
Desde o ensaio fundamental de António José Saraiva (cf. Saraiva: 2000, p. 131) os estudiosos do
caso-Fradique reconhecem as afinidades de vária ordem entre o pensamento e as poses desta figura
engendrada pelo ''último Eça" e o Carlos da Maia que se encontra no episódio final.
9 Recorde-se o passo d'Os lvlaias em que se diz que •esta inesperada carreira de Carlos (pensara-se
sempre que ele tomaria capelo em Direito) era pouco aprovada entre os fiéis amigos de Santa Olávia•: a
isto responde Afonso da Maia: •Num país em que a ocupação geral é estar doente, o maior serviço
patriótico é incontestavelmente saber curar." (Queirós: s/d, pp. 88-89).
10 Vale aqui por todos e no caso da ficção queirosiana, o romance inacabado A Capital! Começos
duma carreira. A este tema dedicou Ana Isabel Pereira uma dissertação de mestrado (cf. Pereira: 1999).
CARLOS REIS
186 «Era uma vasta solenidade oficial. Tenores do Parlamento, rouxinóis da literatura,
pianistas ornados com o hábito de Sant'Iago, todo o pessoal canoro e sentimental
do constitucionalismo ia entrarem.fogo. Os reis assistiam, já se teciam grinaldas
de camélias para pendurar na sala. Ele, apesar de demagogo, fora convidado
para ler um episódio das 111emórias de Um Átomo: recusara-se, por modéstia,
por não encontrar, nas Memórias, nada tão suficientemente palerma que agra-
dasse ã capital. Mas lembrara o Cruges; e o maestro ia ribombar ou arrulhar
uma das suas Meditações. Além disso, havia uma poesia social pelo Alencar.
Enfim, tudo prenunciava uma imensa orgia ...
- E a Sr.'1 D. Maria - acrescentou ele - devia ir! ... É sumamente pitoresco. Tinha
Vossa Excelência ocasião de ver todo o Portugal romântico e liberal, à la besogne,
engravatado de branco, dando tudo que tem na alma!» (Queirós: s/d, pp. 536-537).
O que assim se confirma, nas palavras de um Ega tão lúcido como sarcástico, é
a cumplicidade do liberalismo com o romantismo, sendo este, contudo, que precede
aquele: "º Portugal romântico e liberal», diz Ega. E Tomás de Alencar há-de confirmá-
-lo eloquentemente, quando, no sarau, declamar «A Democracia», tentativa para, por
um lado, incutir à vivência romântica uma dimensão ideológica "socializante" e para,
por outro lado, superar um romantismo sentimental que é assimilável ao da segunda
geração romântica. Na prática, contudo, Alencar falha rotundamente estes propósitos,
como hem o sugerem os versos que declama, citados e resumidos a partir do ponto
de vista de João da Ega; e em deriva para o que proclama ser, de certa forma para além
do quadro de um liberalismo esgotado, a República «da mansidão e do amor» (Queirós:
s/d, p. 609), a prática da sua tão generosa como idealista "Democracia" consuma urna
redução lírico-sentimental da ideologia social, assim como uma desfiguração romântica
do liberalismo e, indo um pouco mais longe, uma verdadeira anulação da História.
Desenvolve-se e inflama-se nestes termos a intervenção de Tomás de Alencar:
«- E que somos nós? - exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o colégio,
desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se gover-
nam na vida pelo sentimento, e não pela razão ... » (p. 714).
A razão a que alude João da Ega não é a razão da História de que aqui tenho
tratado. Mas ela sugere inevitavelmente uma outra razão: aquela que nos guia quando
queremos entender os fenómenos históricos. Fazemo-lo em função das grandes narra-
tivas que para tal convocamos e que estruturam um conhecimento que é sobretudo
da ordem da racionalidade, a racionalidade possível da História como narrativa, con-
forme sublinhou Lionel Gossman. «A narrativa», conclui, «é uma característica essencial
e não acidental da historiografia, apesar da persistente C. .. ) suspeita dos historiadores
e das suas constantemente renovadas tentativas para escaparem às suas constrições e
rotinas» (Gossman: 1990, p. 292). Isto não anula, antes, por outra forma, confirma
aquela espécie de cumplicidade funcional que Paul Ricreur notou, na relação entre
narrativa ficcional e narrativa histórica: «A história e a ficção», declara, «referem-se ambas
à acção humana, embora o façam na base de duas pretensões referenciais diferentes»
(Ricreur: 1980, pp. 57-58)u.
Não por acaso, as palavras finais das Viagens na Minba Terra são uma abertura
possível e não um fechamento irreversível do relato, afirmação última da noção de
que a História, afinal, não acabou, nem o progresso era o que parecia ser. Como
quem diz: se esta história está encerrada, isso não significa o esgotamento do potencial
de conhecimento (conhecimento histórico, como se viu) e do desejo de explicar aos
outros razões que só um logos narrativo formula devidamente: «Se assim o pensares,
leitor benévolo, quem sabe? Pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e
vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para contar» (p. 338).
11 E ainda: -As narrativas de ficção podem cultivar uma pretensão referencial de outro tipo, de acordo
com a referência desdobrada do discurso poético. Esta pretensão referencial não é senão a pretensão a
redescrever a realidade segundo as estruturas simbólicas da ficção- (Rica::ur: 1980, pp. 57-58).
CARLOS REIS
Referências bibliográficas
COELHO, J. do P.
1976, Ao Contrário ele Penélope, Amadora, Bertrand.
GARRETT, A.
1983, Viagens na .Minba Terra, Lisboa, Estampa.
GOSSMAN, L.
1990, Between Histo1y anel Literature, Cambridge/ London, Harvard Univ. Press.
HARTAMNN, N.
19832, A Filosofia do Idealismo Alemâo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
188
MARÍAS, J.
1993, Razón de la Filoso.fía, Madrid, Alianza Editorial.
MARINHO, M.ª de F.
1999, O Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras.
MARTINS, O.
1977, Portugal Contemporâneo, Lisboa, Guimarães.
MELÃO, D.
2001, ,formas de rever o passado: Scott nas páginas de Herculano e Ruskin,, in Actas
do I Congresso Internacional de Estudos Anglo-Portugueses, Lisboa, Centro de Estudos
Anglo-Portugueses.
PEREIRA, Ana I.
1999, A Figura do Escritor na Ficçâo Queirosiana, dissertação de mestrado, Coimbra,
Faculdade de Letras.
PETERS, F. E.
19832, Termos Filosqficos Gregos. Um léxico bistó11co, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
QUEIRÓS, E. de
s/d, Os Maias, Lisboa, Livros do Brasil.
REIS, C.
1999, Estudos Queirosianos. Ensaios sobre Eça de Queirós e a sua Geraçâo, Lisboa,
Presença.
RICCEUR, P.
1980, «Pour une théorie du discours narratif,, in TIFFENEAU, D. (ed.), La narratiuité,
Paris, C.N.R.S.
DE GARRETFA EÇA: Razr]es da História
ROSA, A. M. da
1964, Eça, Discípulo de Machado?, Lisboa, Presença.
WHITE, H.
1978, Tropics of Discourse. Essays in Cultural Criticism, Baltimore / London, The
Johns Hopkins University Press.
189