A Desigualdade de Gênero Nas Relações Parentais
A Desigualdade de Gênero Nas Relações Parentais
A Desigualdade de Gênero Nas Relações Parentais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NOTAS
O texto das leis que normatizam as relações familiares deixam claro que no caso
de separação, invariavelmente, a custódia dos filhos caberá à mãe. O discurso
jurídico diz que deve prevalecer o interesse da criança(19), e sendo assim não
haveria, necessariamente, preferência pela mãe na custódia. Mas o que significa
“interesse da criança” ? Quem define esse interesse e como isso é feito? Ao tentar
circunscrever o “interesse da criança” entram em cena valores morais, significados
de masculino e feminino que definem as atribuições maternas e paternas e
consequentemente influenciam as decisões judiciais. A ausência paterna embora
condenada é socialmente aceita sem muitos sustos; mas que mulher teria
coragem de, deliberadamente, abrir mão de seus filhos, seja em favor de
temporariamente investir em uma carreira profissional, seja porque conclui que o
marido virá a ser melhor cuidador do que ela? Além disso, as decisões judiciais
são minuciosamente subsidiadas por pareces psicológicos, cujos princípios estão
pautados na crença de que a mãe é peça insubstituível na formação
socioemocional da criança. Por trás do discurso jurídico e de senso comum se
escondem valores morais e culturais sobre o que deve ser a boa maternagem e
paternagem, até o momento pouco questionados à luz das atuais mudanças nas
relações parentais. A meu ver, o texto do novo Código Civil corrobora essas
concepções ao não explicitar o direito do pai à custódia dos seus filhos. O direito
paterno é presumido e garantido somente se a mulher for considerada incapaz de
assumir a custódia. A questão é polêmica, sem dúvida, e, por isso mesmo, merece
ser problematizada sob o risco de tornarmos intocáveis alguns guetos de poder,
femininos e masculinos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De uma maneira geral, podemos afirmar que a responsabilidade pelo cuidado dos
filhos é incorporada como uma atribuição de gênero feminino. Por outro lado, a
estrutura social, mesmo marcada por relações desiguais e organizada segundo
divisão sexual, não tem dificultado mudanças. O homem já não é mais o único
responsável pelo orçamento doméstico; a mulher, por sua vez, tem dificuldades
em aceitar passivamente uma dupla jornada de trabalho. De outro lado, os
homens querem decidir sobre quando e como ter filhos, são mais participativos; as
mulheres têm outros projetos além da maternidade. Esses aspectos inovam os
comportamentos familiares, de tal modo que homens passam a sentir-se à
vontade para reivindicar a guarda de seus filhos ou a adoção de crianças, mesmo
sendo solteiros. Embora o número de crianças convivendo com a mãe e o pai não
A mulher era a “companheira, consorte e colaboradora do marido” (grifo meu) e
não sua subordinada. Segundo o princípio da igualdade jurídica dos cônjuges(16)
que rege o moderno direito de família, “desaparece o poder marital e a autocracia
do chefe de família é substituída por um sistema em que as decisões devem ser
tomadas de comum acordo entre o marido e a mulher.” (Diniz, 1993. p.11) A
Constituição Federal estabeleceu a igualdade no exercício dos direitos e deveres
do homem e da mulher, mas não propôs, como bem observa Diniz (1993), “uma
isonomia entre marido e mulher relativa aos seus direitos e deveres”. Apesar de
homens e mulheres serem sujeitos com iguais direitos e deveres, no Código Civil
a distinção de gênero se evidenciava ao situar o homem como chefe e a mulher
como sua colaboradora.
O direito de família observa que, num sentido técnico, “a família é o grupo fechado
de pessoas, composto dos pais e filhos, e para efeitos limitados, de outros
parentes, unidos pela convivência e afeto numa mesma economia e sob a mesma
direção” (Diniz, 1993). O Estado reconhece a família como uma instituição privada,
e como “base da sociedade” é considerada passível de intervenção estatal, como
reza o artigo 226 da Constituição Federal. O casamento é o centro de onde
emanam as normas básicas que regem o direito de família. Com relação ao
matrimônio essas normas disciplinam os “impedimentos matrimoniais, a
celebração, a nulidade; o estabelecimento de direitos e deveres comuns, as
relações econômicas (regime de bens) e a dissolução da sociedade conjugal e do
vínculo matrimonial” (Diniz, 1993). Curiosamente, o Código Civil praticamente
ignorava as relações familiares fora do matrimônio. Mesmo na Constituição,
apesar do reconhecimento da união estável entre homem e mulher como entidade
familiar, é recomendada sua conversão em casamento, fortalecendo, de certa
maneira, a concepção de família legítima (CF, 1988, artigo 226, § 3º). Contudo,
como a legislação e a jurisprudência evoluíram no sentido de proteger a concubina
e o reconhecimento da paternidade extraconjugal, o novo texto do Código Civil
coloca que a família não se origina mais apenas do casamento, mas da “união
estável entre o homem e a mulher” e conseqüentemente reconhece como
legítimos os filhos dessa relação.
Curiosamente não houve nenhum avanço no texto do novo Projeto do Código Civil
sobre a custódia dos filhos. O artigo 1.587 observa que em caso de separação
consensual, a custódia deverá seguir a decisão dos pais. Por outro lado, se a
separação tiver sido solicitada por um dos cônjuges os filhos menores ficarão com
o “cônjuge inocente”. O parágrafo primeiro do artigo 1.588 observa, porém, que
“se ambos os cônjuges forem responsáveis, ficarão em poder da mãe os filhos
menores, salvo se o juiz verificar que de tal solução possa advir prejuízo de ordem
moral ou social para eles”. Se somente a separação de corpos estiver
Se para a maioria dos pesquisadores e profissionais atuantes em ONGs não
existe um modelo único ou padrões rígidos de relações conjugais, a concepção de
família como uma instituição sólida é bastante forte no imaginário social. Essa
concepção norteia em grande medida a elaboração das leis que regem a vida
privada e as decisões judiciais, tais como sobre a custódia dos filhos no caso de
separação do casal. A meu ver, a legislação sobre a família é um interessante
objeto de análise de como a desigualdade de gênero reforça as instituições e pode
ser reforçada por elas. Não há dúvida de que os valores culturais definem
atribuições paternas e maternas, dificultando a redefinição da divisão das tarefas
familiares. Ainda assim, homens e mulheres têm buscado estabelecer relações
mais igualitárias. A reivindicação da custódia dos filhos pelos homens é um
indicador. Mas será que o Novo Projeto do Código Civil garantiu alterações,
minimizando a desigualdade de gênero nas relações parentais e favorecendo o
envolvimento dos homens no universo familiar?
Porém, no Código Civil até há pouco vigente era bastante nítida a distinção entre
os direitos e deveres da mulher e do homem. Este era descrito como o chefe da
sociedade conjugal, sendo um dos seus deveres prover a manutenção da família.
disponibilidade para as necessidades dos filhos, mas não há indícios de alteração
na divisão das tarefas familiares e domésticas. O trabalho em nossa sociedade é
organizado por gênero e não prevê a participação masculina nas tarefas
familiares.
***
pais é estar mais próximos dos filhos (...) Porque não tem outro jeito, você vê, se a
mulher não trabalha, no meu caso a minha não trabalha, a gente separa, se ela
ficar com o filho vai sobreviver como? Da pensão que vou dar? Vai ser pouco,
então ela vai trabalhar fora. (...) se ela for trabalhar fora, ela não vai poder ficar
cuidando dos filhos, então já parte em igualdade com o homem, que já está
trabalhando fora. Então, já parte dessa igualdade. Se a mulher já trabalha, a
igualdade já está colocada”...( Luciano, 35 anos, pai de duas meninas)
O pai torna-se uma figura importante no caso de filhos adolescentes. Nesta fase,
ele aparece como aquele que poderá orientar o filho para a vida lá fora.
“Não, eu acho que se for muito pequeno, eu acho que se fosse comigo, por
exemplo, se fossem crianças muito pequenas, apesar de eu gostar muito de tê-los
comigo, acho que é muito mais importante ter a mãe por perto. Não sei te explicar
por que, objetivamente, mas eu acho que é uma fase assim em que a ausência da
mãe pode ser mais sentida por eles. Já numa pré-adolescência, numa
adolescência eu acho que talvez seja até o contrário, a ausência de um pai seja
mais complicado para a formação deles, no aspecto emocional”. (Carlos, 48 anos,
2 filhos, um menino e uma menina)
Uns mais, outros menos, todos os dez pais entrevistados participam da educação
dos filhos — o que significa acompanhar tarefas e o desenvolvimento escolar,
presenciar as reuniões na escola; procuram conciliar o trabalho profissional com
as demandas dos filhos. Embora reconheçam e acreditem em sua capacidade de
cuidar das crianças, a estrutura familiar, nestes casos, ainda é marcada por
atribuições de gênero. Para eles, a mulher trabalhar fora, seguir uma carreira “é
fundamental para a saúde da relação”, e se revela uma preocupação para aqueles
cuja mulher não está trabalhando. O homem se envolver com os filhos e com as
coisas da casa não é um bicho de sete cabeças, mas algumas rupturas são ainda
difíceis. Essa conciliação não significa necessariamente uma reorganização da
divisão de tarefas e do ritmo de trabalho desses homens; refere-se muito mais a
“encaixes”, como por exemplo aproveitar o trajeto entre a casa e o trabalho para
deixar o filho na escola ou, então, levá-lo para alguma atividade extracurricular
após o expediente de trabalho(15). É possível falar em uma relativa
As mulheres têm buscado não somente ocupações remuneradas, dentro ou fora
de casa, mas também sua realização profissional e pessoal. De certa maneira,
essa atitude das mulheres tem provocado um processo de barganha que favorece
o estabelecimento de relações mais igualitárias. Porém, a conquista pelas
mulheres de uma relativa igualdade na esfera do trabalho, se mantém ao lado da
desigualdade de gênero na esfera privada. Essa aparente contradição é
reveladora de um foco de tensões: o desejo feminino em compartilhar com os
homens as responsabilidades familiares se mescla ao desejo de não abrir mão de
um dos poucos espaços de poder que as mulheres dispõem. Esse é um aspecto
dos conflitos das relações de gênero, outro são os obstáculos culturais a uma
redefinição da divisão do trabalho doméstico.
Essas concepções não estão apenas presentes nos valores dos/as juízes/as, são
fantasmas que permeiam o imaginário social em diferentes camadas sociais.
Embora venha crescendo o número de homens que solicitam a custódia de seus
filhos, muitos pais sentem-se inseguros quanto à possibilidade de assumir essa
tarefa, mesmo entre a camada média intelectualizada. O desejo de se envolver
mais com o cotidiano familiar é proporcional à confusão quanto às atribuições
paternas e maternas, especialmente quando os filhos são pequenos. É isso o que
indica a fala de dez homens, casados(12), pais de filhos com idade entre 2 e 9
anos, entrevistados para minha pesquisa de mestrado(13). Ao perguntar(14) a
eles o que pensam sobre homens que em caso de separação do casal solicitam a
custódia de seus filhos, todos afirmaram ser um direito do homem, porém, apenas
dois foram taxativos em responder que reivindicariam a guarda dos filhos, aliás,
das filhas, no caso.
Para Luciano (todos os nomes são fictícios), por exemplo, pai e mãe estão em pé
de igualdade com relação à responsabilidade pelos filhos, principalmente se a
mulher também trabalhar fora.
“Se tem pai e mãe, são iguais em direito. Precisa ter os dois para ter os filhos,
então já parte desta concepção (...) Então se os dois trabalham, então, os dois vão
ter a mesma dificuldade em educar. Educar não, estar mais próximo. A função dos
gerando novas dinâmicas e arranjos familiares”. Essa dinâmica redefine as
relações de gênero, colocando em questionamento algumas atribuições paternas
e maternas.
Ainda assim, entre as atribuições maternas e paternas uma delas continua sendo
definida como uma tarefa das mulheres: o cuidado com os filhos, mantendo-se os
homens como coadjuvantes nessa atividade. Uma explicação possível seria a de
que a maternidade — e conseqüentemente a maternagem —, pela ligação com o
corpo, é ainda um elemento muito forte em nossa cultura, determinando que
cuidar seja uma atribuição exclusiva de gênero feminino. As responsabilidades
parentais são pois definidas considerando como principal referência a mãe, a
partir do princípio biológico de que é no corpo dela que o bebê é concebido.
Por outro lado, nossa tradição patriarcal, reforçada pela formação católica,
contribuiu para estruturar, ao longo da história, as relações familiares em uma
rígida divisão de atribuições. A atividade de cuidar dos filhos é representada no
imaginário social como uma função natural da mulher e, por sua vez, o bom pai é
aquele que garante o exercício dessa atividade. De certa maneira, a maternagem
se mantém atrelada a um aspecto biológico. A paternagem, em oposição, se
define social e culturalmente e aparece desvinculado do processo reprodutivo.
Mas de que homens e mulheres se está falando? Que contexto social é esse que
favorece a emergência de tais transformações? Boa parte dos estudos se referem
especialmente a indivíduos de camadas médias e a um estilo metropolitano de
vida, onde coexistem códigos individualistas e hierárquicos na construção da visão
de mundo e na organização das relações sociais, conforme salienta
dumondianamente(9) Tânia Dauster (1987).
O que teria então, motivado, neste momento, um maior enfoque das Ciências
Humanas na importância do envolvimento masculino em questões como
reprodução, paternidade e sexualidade? Esse interesse está relacionado à
constatação de que a compreensão e o conhecimento das práticas masculinas
podem contribuir para melhorar os resultados de programas voltados para a saúde
das crianças, para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e nas
decisões sobre planejamento familiar(5). A meu ver, essa demanda surge, num
primeiro momento, a partir de necessidades concretas das mulheres(6), mas
também é possível pensarmos em demandas colocadas pelos próprios
homens(7). De um lado, com a entrada das mães no mercado de trabalho(8), os
pais foram convocados a se ocupar dos filhos, e de outro, há indícios de desejo
masculino em ampliar seu envolvimento na criação dos filhos, tendência esta que
se reflete no crescimento de solicitações, pelos homens, da custódia dos filhos.
Pretendo neste artigo refletir sobre o lugar que o homem-pai vem ocupando no
grupo familiar e mais especificamente na família cosmopolita de camadas médias.