Em Meio Às Águas Da Existência, Um Diálogo de Age de Carvalho e Olga Savary - Estudos Do Poema

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

MESTRADO EM LETRAS
DISCIPLINA: ESTUDOS DO POEMA
PROFESSORA: LILIA SILVESTRE CHAVES
ALUNA: ANDRÉA JAMILLY RODRIGUES LEITÃO
BELÉM, 29 DE JANEIRO DE 2013

EM MEIO ÀS ÁGUAS DA EXISTÊNCIA: UM DIÁLOGO ENTRE


AGE DE CARVALHO E OLGA SAVARY

BELÉM
2013
Este trabalho se propõe a estabelecer um diálogo profícuo entre a poética de dois
poetas paraenses vivos: Age de Carvalho e Olga Savary. Dentre a rica e extensa produção
literária dos escritores, um poema de cada autor foi escolhido para advir ao proscênio desse
intercâmbio poético: “Poema complementar sobre o rio” e “Só na poesia?”, respectivamente.
O percurso interpretativo parte de um elemento em comum: o signo das águas. Comecemos,
então, pelo poeta homenageado deste V Simpósio: Olhares sobre o Poético, coordenado pela
professora Lilia Chaves. Segue abaixo o poema na sua íntegra:

Poema complementar sobre o rio

a José Maria de Vilar Ferreira

O rio consagrado: a vazante


lembrança que escoa em maré
baixa e retorna — água escura
— na preamar.

O rio sangrado: invólucro de céu


e margem, e duas visagens
dos caboclos amantes. O rio

passado: cismando na crisma, paresque


dumas lembranças que trabalham a solidão:
o paralelo das margens, uma igara partida,
as águas sujas que sempre voltam.
(CARVALHO, 1990, p. 175).

O poema, que integra a obra Arquitetura dos Ossos (1980), é dedicado ao também
poeta paraense José Maria de Vilar Ferreira, cuja obra poética apresenta o esplendor da
paisagem amazônica e do imaginário que constitui a experiência de vida do homem
ribeirinho. Sendo assim, o poema de Age de Carvalho evoca esse conjunto de crenças
pertencente à região a partir da presença de “duas visagens dos caboclos amantes” e, ainda,
estiliza o falar do caboclo por meio da apropriação poética da expressão “paresque”. Mais do
que isso, “Poema complementar sobre o rio” opera uma profunda reflexão não somente acerca
do rio, mas do homem e da própria existência.
Na primeira estrofe do poema, há a referência à dinâmica do movimento periódico do
fenômeno das marés – maré baixa: maré vazante; preamar: maré cheia –, que alude ao
“escoar”, ao fluxo e re-fluxo incessante da “água escura” e barrenta das lembranças. Neste
sentido, o espaço da memória arquiteta-se de modo fluído, móvel, lacunar, obscuro – a
1
matéria vertente. Tal como a dinâmica cíclica da maré, os acontecimentos passam e, ao
mesmo tempo, “retornam”, presentificando-se no e pelo ato de recordar. Pois, a memória é
senão a unidade entre o que já foi – passado –, e o que está sendo – presente.
Em seguida, o poema de Age de Carvalho configura a seguinte imagem o “rio
sangrado”. A saber, que abre fendas e deságua o líquido imprescindível da vida: o sangue. O
rio-vida, “consagrado”, espelha a imensidão infinda do céu e o horizonte de águas. No seio
sacralizado da natureza amazônica, as águas rubras acolhem os corpos dos “caboclos
amantes”, os quais se consomem sob a promessa do amor.
Já na passagem da segunda para a terceira estrofe – o desmembramento da
construção, no caso de um substantivo (“rio”) mais adjetivo (“passado”), de um verso para
outro possibilita dar maior ênfase a carga semântica da palavra destacada, para além dos
significados comuns –, a expressão “rio passado” não sugere o que passou definitivamente, o
que está acabado. Pelo contrário, o rio do passado – o tempo vivido e re-vivido em meio ao
devir incessante e ao estado natural de impermanência das coisas. Deste modo, evoca a
própria dimensão do tempo e sua inter-relação com a existência do homem, pois este está
desde sempre jogado no e pelo tempo, como a sua própria condição de realização.
Nos encontros e desencontros dos amantes, o passado traz à tona o que está exilado
fisicamente em um outro tempo, “trabalhado” na solidão, na ausência, no abandono das
formas. Sob o signo das águas, as memórias pulsam no vai e vem da dimensão cíclica da
existência. No próprio plano da arquitetura poética do poema, este sugere a circularidade, a
partir da retomada, no verso final, do mote figurado na primeira estrofe: “as águas sujas que
sempre voltam”. Além disso, percebe-se uma gradação na disposição dos adjetivos, pois na
primeira estrofe está expressa a construção “água escura”; por outro lado, na última estrofe,
está “águas sujas”. Há, pois, uma verdadeira intensificação e agravamento nos sentidos de
sombrio e obscuro para algo maculado e manchado, de modo que aponta para a condição fatal
de irreversibilidade, na qual se conjuga a dinâmica da existência do homem em meio às suas
ambiguidades, inconstâncias e contingências inerentes.

1
Expressão pela qual Riobaldo, o personagem principal da obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães
Rosa, refere-se às suas incursões pelos desvãos da memória, a fim de construir o seu narrar acerca dos
acontecimentos do passado: “Eu sei que isto que estou é dificultoso, muito entrançado. [...] E estou contanto não
é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente” (ROSA, 1985, p. 93).
2
No horizonte de transformações e permanências, existir é insistir, é um persistir
contínuo no vagar da transitoriedade. Eis, então, o que subsiste, o que continua vigorando em
meio aos “jogos-rituais” 3 do amor, aos desígnios das águas, às linhas irregulares das margens
do mundo, à matéria perecível das igaras: “o rio, o tempo, o homem”. 4
Neste sentido, em
ocasião da escritura da orelha da obra, o filósofo Benedito Nunes, que elenca os princípios
norteadores da experiência da criação poética, vinculando-os à conduta de um genuíno poeta
– tal como o é Age de Carvalho mediante o engendrar poético de seu livro de estreia –,
destaca o vigor das palavras, “o ‘poder de silêncio’ que concentram, como apelo capaz de
revelar o mundo ao homem e o homem a si mesmo”.
A poética de Olga Savary, por sua vez, possui o elemento da água como o símbolo
básico da sua poesia eminentemente erótica. O poema “Só na poesia?”, o qual pertence à obra
Linha-d’Água (1987), apresenta-se em forma de diálogo, iniciando em tom de
questionamento, o que já se figura desde o seu título. Segue abaixo o poema completo:

Eu te pareço bela ou bela


é só minha poesia quando
só assim me entrego?

Depois de derrubada, foi em mim


que te ergueste fortaleza
– fortaleza de água, de igapó
e igarapé (a que me comparas).

Então aposso-me do teu rio


que corre para minhas águas
e me carrega ao momento de entrega:
ensolarada.
(SAVARY, 1998, p. 235).

A beleza, referida na primeira estrofe, reside não somente no plano físico ou estético,
mas que se relaciona com o próprio, com a poesia autêntica de cada um que se deixa
descortinar no instante fulcral da entrega amorosa: “Eu te pareço bela ou bela/ é só minha
poesia quando/ só assim me entrego?”. Não diz respeito ao belo que paira no domínio do
sublime – sob um viés platônico –, mas à experiência inesgotável de busca pela instância

2
Referência ao verso do poema “As bananeiras indecentes alvoroçando suas pernas”, da obra A fala entre
parênteses (1982), escrito à moda de renga com o poeta Max Martins.
3
Verso do poema “Cuatro territorios para Julio y Hugo”, da obra Arena, areia (1986).
4
Reelaboração dos versos do poema “O espaço desocupado em inúmeros azuis”, da obra Arquitetura dos ossos:
“a praia, o tempo,/o homem” (CARVALHO, 1990, p. 147).
primordial da poíēsis, como a essência da experiência criativa, na qual se constitui, por
excelência, o operar da arte; em suma, pelo conhecimento e pela sabedoria, percorridos no e a
partir do corpo, conduzindo-o a um momento de revelação: a carne se faz palavra, reveste-se
da “poesia (inexplicável) da vida”. 5
Mais do que apenas a conjugação de palavras, a poesia acontece no encontro erótico
das águas, no enlace sinuoso dos corpos, na vida que vige potencialmente em cada homem. A
própria metáfora sexual, tecida ao longo do poema, revela a poesia operando, na medida em
que possibilita o “comparar”, ou melhor, o transfigurar da materialidade dos corpos no
movimento das águas em meio à pulsão erótica do envolvimento carnal. Octavio Paz (1994, p.
12) revela uma forte ligação entre o erotismo e a poesia, chegando a exprimir, por meio de sua
genuína veia literária, que “o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica
verbal”. O corpo constitui-se como a tessitura de um texto, como o espaço da criação e do
lavrar de sentidos; ao passo que a poesia se realiza no corpo da linguagem, na fecundidade do
gesto criador, no movimento de cópula de sonoridades, de imagens e de metáforas. Neste
sentido, o escritor mexicano defende a existência de uma instância inventiva e criativa que
impulsiona tanto a fruição da pulsão sexual quanto a dimensão da criação: “O erotismo é
sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o
poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e
metáfora” (PAZ, 1994, p. 12).
Na segunda estrofe, após ser “derrubada”, despida e deflorada na nudez do seu corpo,
o ser feminino revela-se plenamente, à luz da atividade fecunda de semeadura. O “tu” da
interlocução, com sua força e vigor, erige a sua “fortaleza”, o seu domínio na encenação
erótica, o qual não se sustenta, uma vez que os corpos se encontram regidos sob o movimento
intermitente e incessante do fluxo das águas: “fortaleza de água, de igapó/ e igarapé”.
Segundo Marlene de Toledo (2009, p. 84), que se debruçou significativamente sobre a poética
da escritora, “o erotismo explode em Linha-d’Água, como, de resto, em toda a poesia
savaryana, como vida, energia. A natureza é mais que natureza: é a natureza do corpo, a água
do corpo, a água do orgasmo”. Se no poema de Age de Carvalho os amantes se consomem
amorosamente em meio à paisagem edênica da Amazônia; na tessitura poética de Olga
Savary, por sua vez, os corpos se transfiguram nas próprias forças vitais da natureza, a saber,
encarnam o movimento vital das águas. Sendo assim, a natureza vigora na constituição carnal

5
Verso do poema “Lembrete”, do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, da sua obra poética Corpo
(2011, p. 99).
do homem em meio à potência erótica dos seres amantes, a própria vida se derrama no
esplendor da figuração do corpo.
Na poética corporal da escritora, o elemento primordial da água encena o dinamismo e
a envergadura da união erótico-carnal, a entrega “desaguada” e visceral dos amantes com
singular plasticidade, ao mesmo tempo que evoca o princípio primordial da vida, o
fundamento primitivo da criação. Como se pode observar nos seguintes versos do poema
intitulado “Signo”, da mesma obra:

Se a outro pertencia, pertenço agora a este


signo: da liqüidez, do aguaceiro. E a ele
me entrego desaguada, sem medir margens,
unindo a toda esta água do teu signo
minha água primitiva e desatada.
(SAVARY, 1998, p. 231).

A cópula constitui-se mais do que simplesmente da soma de dois corpos envolvidos


pelo ardor caótico do desejo, mas a abertura para o momento “ensolarado” e resplandecente
de comunhão carnal entre duas existências que se autodesvelam, se entregam na vigência
plena do amor, o qual os integra em uma unidade, a partir da posse concreta das águas do
amante – sendo o corpo como lugar, por excelência, onde se dá a apropriação – no movimento
vertiginoso de encontro e de entrega: “Então aposso-me do teu rio/ que corre para minhas
águas”. Pois, como afirma o escritor Octavio Paz (1994, p. 118), “no amor tudo é dois e tudo
tende a ser um”.
A poesia dos corpos opera aberturas, experiências e revelações, não a partir de
respostas assertivas ou afirmações categóricas, mas de interrogações, de questionamentos, de
abismos e de um convite sempre renovado à reflexão. Deste modo, a experiência corporal
realiza-se como uma verdadeira obra de arte, aberta, jamais acabada e, por conseguinte, de
significados cambiantes, remetendo às possibilidades inaugurais e criativas de o homem
realizar-se, seja pela dimensão do corpo, seja pelo engendrar fecundo da própria arte.
A figuração poética dos poemas estudados manifesta, metaforicamente, a própria
condição do homem no mundo, uma vez que articular ou assimilar o seu corpo, sob o
movimento ininterrupto das águas, o conduz à apropriação da “vivacidade pura, o ritmo do
tempo” (PAZ, 1994, p. 196). Assim, evoca não uma dimensão supraterrena, imutável e
atemporal, e, sim, a realização concreta, ambígua e perecível do ser humano. Este que é e está
sempre sendo em um constante vir-a-ser, a partir da vigência do princípio vital que rege a
existência na Terra, do fluxo contínuo e cíclico do acontecer da realidade sob a mobilidade e a
fluidez do signo das águas.

NA ARQUITETURA DAS ÁGUAS...

A poesia de Age de Carvalho e a de Olga Savary possibilitam uma verdadeira imersão


nas águas originárias do ser humano, a saber, na sua própria condição no mundo, em meio às
mais diversas possibilidades de realização, sobretudo em relação ao fluxo irredutível do
tempo, ao movimento errante das lembranças e à experiência erótico-carnal dos amantes.
Estas manifestações intrínsecas à dinâmica da existência se encontram figuradas no vigor da
tessitura humana, à luz de uma obra de arte a qual está engendrada sob um horizonte ilimitado
e enigmático, aberto e sempre por ser reconstruído. Entre metáforas e imagens, experiências e
memórias, encontros e aberturas, o homem perfaz a sua travessia em comunhão não somente
com a realidade da natureza amazônica, mas com a sua própria natureza: cíclica, ambígua e
contingente.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. 21. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
CARVALHO, Age de. Ror: 1980-1990. São Paulo: Duas Cidades; Secretaria de Estado da
Cultura, 1990. (Coleção Claro Enigma).
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. 2. ed. São
Paulo: Siciliano, 1994.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 17. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.
SAVARY, Olga. Repertório selvagem: obra reunida – 12 livros de poesia (1947-1998). Rio
de Janeiro: Biblioteca Nacional/Multimais/Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.
TOLEDO, Marleine Paula Marcondes e Ferreira de. Olga Savary: erotismo e paixão.
Colaboradores Heliane Aparecida Monti Mathias e Márcio José Pereira de Camargo. Cotia,
SP: Ateliê Editorial, 2009.

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