Dissertacao Final PDF
Dissertacao Final PDF
Dissertacao Final PDF
1
FREUD, Sigmund. Uma neurose demoníaca do século XVII, v. XIX, 1923. In: FREUD, Sigmund.
Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1977. p. 91.
1
Na mentalidade da Antiguidade, seres sobrenaturais tinham funções específicas
e determinantes na existência em todos os âmbitos. A presença de Entes não visíveis,
deuses, deusas e variedade de espécies espirituais na imagética das crenças do povo
faziam grande diferença no curso das coisas, a ponto de Homero, no canto XIII 1-4 da
Ilíada, explicar da seguinte maneira o porquê dos problemas dos Troianos: “Depois que
aproximou das naus, Héctor e os Troianos à beira delas, Zeus Pai os largou sozinhos
padecendo trabalhos e penas sem trégua”2.
O demoníaco como o lado lúgubre dessa influência, por exemplo, está presente
na maioria das religiões. Tudo que está no âmbito da ilusão, do desconhecido, do
caótico, da desordem e irracionalidade, tem nele respostas últimas. Nos Cristianismos, a
personificação do mal racionaliza muito das perguntas sobre origem e existência das
desgraças e absurdos que atingem a natural condução das coisas.
Em especial, o Novo Testamento reflete uma prolífera crença na existência de
seres malignos responsáveis por calamidades. Assim, pode-se perceber claramente que
o mundo representado na literatura neotestamentária está repleto de demônios.
Uma mente “técnico-cientificista” não compreende o poder de realidade das
imagens demoníacas dessa literatura da antiguidade, pois a presença desses seres é real
para o (s) sujeito (s) que os produzem, pois influênciam seus pensamentos, sentimentos
e comportamentos, talvez mais do que a realidade captada pelos sentidos.
Atualmente, a pesquisa a respeito da figura de Jesus, que leva em consideração o
contexto judaico, interpreta como algo importante a imagem do messias e sua luta
contra Satanás e seus aliados demoníacos, pois faz parte do mundo simbólico presente
no contexto das expectativas messiânicas das tradiçôes judaicas do segundo templo,
primordialmente, na literatura apocalíptica. Para se compreender o simbolismo da fé
messiânica aplicada a Jesus e seu movimento do primeiro século, presente nos
evangelhos, faz-se necessário levar em consideração os demônios, porque eles entram
na elaboração imagética da perspectiva e construção do messias.
Uma coisa deve ser dita: os demônios não são preocupações periféricas dos
autores dos evangelhos sinóticos, mas fazem parte de um projeto redacional que leva em
consideração uma “escatologia apocalíptica”, enquanto cosmovisão, a qual o mundo
seria impactado pela guerra cósmica onde de um lado estaria o ungido de Deus e, do
outro, Satanás e os demônios.
2
CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero. Vol. II. trad. Haroldo de Campos. São Paulo, Arx, 2002. p.
11.
2
Por isso, a figura demoníaca não deve ser subestimada em sua importância, pois
faz parte do mundo e do projeto religioso judaico-cristão, onde Jesus é interpretado,
proclamado e vivido.
Dentro desse contexto de pesquisa, não da preocupação pelo Jesus histórico, mas
do conhecimento das imagens demoníacas presentes nos evangelhos, situa-se o tema
deste trabalho. Em especial sua aparição, especialmente em Marcos, como espírito
imundo.
Entre os evangelhos, Marcos tem um bom material preservado sobre possessão
maligna e ação demoníaca. Interessante que nos quatro relatos de exorcismo desse
evangelho (1,21-28; 5,1-20; 7,24-30; 9,14-29) a expressão pneûma akátharton sempre
está presente. A preocupação do trabalho é exatamente essa expressão. No início, o
tema intentava um estudo das possíveis raízes para imagem do espírito imundo como
um tipo de manifestação demoníaca nos sinóticos e bem comum no evangelho de
Marcos. Contudo, no decorrer das leituras e estudos percebeu-se que essa expressão não
se refere a uma espécie autônoma, presente na mentalidade popular palestina, mas um
tipo de adjetivação para o demoníaco, por isso a preocupação do tema mudou
sutilmente: não mais para manifestação de uma espécie de demônio, mas para o porquê
de conhecê-los como espíritos imundos.
Em termos de delimitação, o trabalho perguntará pela origem simbólica e
histórica do imaginário que rodeia essa expressão, como uma interpretação do
demoníaco pelos evangelhos sinóticos.
Por isso, a pesquisa se norteará por uma pergunta central e outras pontuais:
1. De onde provém o imaginário dos demônios como espíritos imundos presentes nos
escritos evangélicos?
2. Por que os demônios são chamados de impuros/imundos? Isso teria relação com
tradições Judaicas?
3
4. De forma mais delimitada, a figura do espírito imundo nos evangelhos sinóticos
pode revelar alguma coisa a respeito da história da leitura e história da recepção do
Mito dos vigilantes?
4
mas como resultado de interações culturais diversas. As relações com a cosmovisão
babilônica, persa e helênica também contribuíram para possibilidade da crença nesses
seres, passando pela tradição enoquíta e depois presente no Novo Testamento.
Não privilegiaremos uma perícope para análise minuciosa. Contudo, a pesquisa,
enquanto exegética, procurará compreender o contexto simbólico de o porquê tratar
esses seres como pneûma e especialmente akátharton, abrindo assim a possibilidade,
enquanto história das idéias ou imagética, de descobrir suas apropriações para se
identificar influências na mentalidade religiosa e mítica encontradas em textos das
tradições judaicas e cristãs.
Para isso o conceito de indício, utilizado pelo historiador da Cultura Carlo
Ginzburg, será um eficaz instrumento heurístico. Esse é tratado por Carlo Ginzburg
como modelo epistemológico, onde se articulam disciplinas diversas consideradas
indiciárias. O método explica-nos que no “interior de um sistema de signos
culturalmente condicionados como o pictório, há a involuntariedade dos sintomas”.
Assim, indícios mínimos podem ser elementos reveladores de fenômenos mais gerais3,
como visão de mundo de uma classe social, de um escritor, ou de toda uma sociedade.
Nesse sentido, o conceito de mito adotado neste trabalho torna possível a
aproximação e diálogo com o que se pensa sobre indícios.
Desta forma, uma história das idéias e de seu desenvolvimento, como o conceito
de espírito imundo, pode ser estudada dentro do mundo onde é utilizado dando-nos
indícios que permitem deslumbrar a sua trajetória, uma vez que também revela traços e
restos de tradições que se relacionam e interagem gerando sentidos, preservando no
texto culturas diversas. No seu início, o método indiciário servia para descobrir os
resquícios involuntários dos artistas nas obras, para encontrar o seu autor. Como
“conceito paradigmático”4, os indícios como um negativo de foto, pode revelar um
mundo imagético.
Por isso, as influências apresentadas, especialmente na parte final do trabalho,
não se limitam às indicações literárias claras, mas a resquícios que denunciam, no
imaginário do demoníaco, antigas narrativas míticas. Esses podem ser percebidos na
linguagem, nas expressões de fé e crenças dos judeus e cristãos dos primeiros séculos.
3
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário. In: ____. Mitos, emblemas, sinais:
morfologia e história. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
4
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário... passim.
5
Enfim, temos narrativas de demônios chamados de espíritos impuros ou imundos
nos sinóticos, possivelmente um desenvolvimento histórico que se pode traçar na leitura
de textos judaicos antigos, servindo de janelas para as idéias e mentalidades dos grupos
religiosos em torno desses textos. O trabalho, então, testará as contribuições do Mito
dos Vigilantes, à luz de uma longa duração, para o demoníaco, em especial, nas
imagens simbólicas da expressão pneûma akátharton.
6
CAPÍTULO I:
7
1. O Livro Etíope de Enoque: história da pesquisa
O Mito dos Vigilantes está preservado no Livro dos Vigilantes, que pertence a
uma obra maior conhecida como I Enoque. Este texto, por sua vez, somente foi
preservado totalmente na versão etíope (em Ge’ez), e tem aproximadamente 49
manuscritos5. A publicação do Enoque etíope iniciou-se no séc. XIX, impulsionando
muitos pesquisadores a levarem a sério sua importância. A primeira edição do texto
etiópico foi realizada por R. Laurence em 1839. Depois dessa, surgiu uma edição crítica
feita em 1851 por A. Dillmann, sendo sucedida em 1902 pela obra crítica de J.
Flemming. Quatro anos depois, R.H Charles apresentou seu “The Ethiopic Version of
the Book of Enoch”6. Somente em 1978 Michael Knibb7 lança sua edição etíope
levando em consideração os textos aramaicos editados por J. T. Milik. Em aramaico
temos somente fragmentos encontrados entre os textos das cavernas de Qumran, perto
do Mar Morto. Para esta pesquisa, os textos de Qumran mostraram que desde o terceiro
século a.C. o Livro dos Vigilantes já circulava em língua aramaica 8.
Existem, também, alguns textos de I Enoque em grego. A versão grega está
presente em quatro textos: 1) Codex Panopolitanus descoberto em 1886 na Panópolis,
no Egito, e publicado em 1892 por U. Bouriant. Esse contém I Enoque 1-32; 2) Codex
Vaticanus, achado em 1809 e publicado por Card A. Mai em 1844, preservando I
Enoque 82,42-49; 3) Fragmentos conservados na Chronography de G. Syncellus. O
primeiro a publicar os textos de G. Syncellus foi o estudioso renascentista Joseph
Scaliger em 16069; 4) Papiro Chester Beatty-Michigan, um códice do Séc. IV contendo
I Enoque 97,6 - 107,14, publicado por C. Bonner em 1937.
5
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination: an Introduction to the Jewish Matrix of Christianity. New
York, CROSSROAD, 1989. p. 33.
6
DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento. Vol. IV. Madri, Ed. Cristiandad, 1987. p.
34.
7
KNIBB, Michael A. The Ethiopic Book of Enoch: a New Edition in the Light of the Aramaic Dead Sea
Fragments. Oxford, Claredon Press, 1978.
8
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and Apocalyptic. Studies on the Aramaic Texts from
Qumran. LEIDEN. NEW YOURK. KÖLN, E.J. Brill, 1994. p.60-72; KVANVIG, H.S. Gen 6,3 and the
Watcher story. In: Henoch 25 (2003): 278-299; KVANVIG, H.S. Gen 6,1-4 as an Antediluvian Event. In:
Jornal for the Study of the Old Testament 16 (2002): 79-112.
9
REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism and Christianity. The Reception of
Enochic Literature. New York, Cambrigde University Press, 2005. p.2; NICKELSBURG, George W. E.
Jewish Literature Between the Bible and the Mishnah. Philadelphia, Fortress, 1981.
8
É consenso entre os pesquisadores que I Enoque tem caráter compósito, uma
coleção de cinco livros que não estão na ordem cronológica, pertencentes a um longo
período do judaísmo desde o segundo templo até a era cristã10.
Na década de 70, J. T. Milik11 editou os fragmentos aramaicos encontrados em
Qumran. Segundo ele, as mais antigas partes de I Enoque são do período pré-macabaico
(Livro dos Vigilantes e Livro Astronômico). Mesmo que Milik date o Livro
Astronômico como anterior ao Livro dos Vigilantes12, “este tem provado ter mais
utilidade na iluminação da emergência e desenvolvimento da literatura apocalíptica,
especialmente concernente a origem do mal”13.
A divisão dos livros é a seguinte: Livros dos Vigilantes (6-36), Parábolas de
Enoque (37-71), Livro Astronômico (72-82), Livros dos Sonhos [com o apocalipse dos
Animais] (83-90) e Epístola de Enoque (91-105). Dentro da Epístola de Enoque
encontramos o Apocalipse das Semanas (93, 1-10; 91, 11-17). Em Qumran foram
achadas em aramaico partes de todos os livros de I Enoque14 – com exceção ao livro das
Parábolas. Do Livro Astronômico, por exemplo, foram encontradas quatro copias em
lugares diferentes. Um fato intrigante para os pesquisadores é a presença de onze cópias
do “Livro dos Gigantes” (1Q23; 2Q26; 4Q203; 4Q530-3; 6Q8)15. O Livro dos Gigantes
não estaria na coleção etíope, segundo P. Sacchi, Milik e Diez Macho, porque tem a
audácia de afirmar o arrependimento de Semiaza e dos anjos caídos, que em outro lugar
aparecem como condenados e sem perdão. Sua heterodoxia levou o Livro das Parábolas
ficar em seu lugar16.
10
Desde R. H. Charles tem se estabelecido que I Enoque é uma coleção de pelo menos cinco separados
escritos. REED, Annette Yoshiko. Fallen Angels and the History of Judaism… p. 3. Ver também:
CHARLES, R. H. The Book of Enoch or 1 Enoch. Oxford, 1912. p. XXVII-XXX; COLLINS, J. J.
Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls. London, Routledge, 1997.
11
MILIK, J. T. The Books of Enoch. Aramaic Fragments of Qumran Cave 4. Oxford, Clarendon Press,
1970.
12
Ao contrário, G. Boccaccini acredita ser o livro dos vigilantes anterior ao Livro Astronômico. Para ele
a ordem cronológica seria a seguinte: Livro dos Vigilantes (1-36), Livro Astronômico (72-82), Livros dos
Sonhos (83-90), Epistola de Enoque (91-105), Parábola de Enoque (37-71). BOCCACCINI, Gabriele.
Beyond the Essene Hypothesis: The Parting of the Ways Between Qumran and Enochic Judaism. Grand
Rapids, William B. Eerdmans, 1998. p. 12.
13
REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism… p. 3
14
Livro Astronômico (4Q208-11); Livro dos Vigilantes (4Q201,202); combinação do Livros dos Sonhos
e Livros dos Vigilantes (4Q201,202). 4Q204 tem fragmentos do Livros dos Vigilantes, Livro dos Sonhos,
Epistola de Enoque e o Livro de Noé (I Enoque 104-107). Ainda temos outros fragmentos dos livros dos
Sonhos (4Q207) e da Epístola de Enoque (4Q212).
15
COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls… p.22. Para uma exposição detalhada do Livro
dos Gigantes, ver: GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and Apocalyptic… p. 97-115.
16
DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento... p.20
9
A discussão a respeito da formação em cinco livros de I Enoque, como uma
espécie de Pentateuco, existe desde 1925 com G. H. Dix, quando afirmou ter sido a
coleção enóquica um modelo para a coleção mosaica 17. Segundo J. T. Milik ocorreu o
contrário, pois I Enoque foi quem se modelou a partir do Pentateuco de Moisés. E
ainda, acrescentou que os dois circulavam em Qumran desde 100 a.C18. Sua proposta,
escrita na edição dos textos aramaicos afirma ser os cinco livros representantes de um
pentateuco contrário ao mosaico. Em 2001 Knibb ainda reafirma que “é clara a
evidência de um Pentateuco enóquico”19 Contudo, não há evidencias textuais para esse
tipo de afirmação 20, e desde 1983 D. Dimant tem apresentado a hipótese de que a ordem
da coleção reflete uma projeção da carreira de Enoque21.
Na edição etíope, os capítulos 1-5 são tratados como introdução, enquanto 106-
108 como epílogo. Neste último bloco, encontramos o apocalipse ou Livro de Noé. Para
Florentino García Martínez, o Livro de Noé é um texto autônomo perdido, mas
testemunhado em alguns textos judaicos. Por exemplo, no 4QMess Ar ele acredita
encontrar parte da obra noélica22.
O Livro de Noé não é encontrado no catálogo dos livros apócrifos. No entanto,
sua existência é atestada em duas explicitas alusões na literatura judaica do segundo
templo (Jub 10,13; 21,10). Segundo García Martínez no livro de I Enoque são
reconhecidos pelos estudiosos três tipos de inserções do Livro de Noé23:
a) No Livro dos Vigilantes: 6,3-8; 8,1-3; 9,7;10,1-3; 17-1924.
b) No Livro das Parábolas: 39,1-2; 54,7-55,2; 60 ; 65-69,25.
c) No cap. 106-107.
Além dos já mencionados, em Jubileus ele apresenta outras passagens que
preservam o Livro de Noé (Jub 5,6-11; 7,21-25; 6,2-4. 10-14; 7,27-33; Jub 7, 34-37; Jub
8,9-9,25)25.
17
DIMANT, D. The Biography of Enoch and the Books of Enoch. In: Vetus Testamentum 33, n. 1 (1983):
14-29. p. 18.
18
Ver sua discussão em: MILIK, J. T. The Books of Enoch… pp. 4, 22, 54-5, 57-8, 76-7, 109-10,
183-5, 227, 310
19
KNIBB, M. Christian Adoption and Transmission of Jewish Pseudepigrapha: The Case of I Enoch. In:
Journal for the Study of Judaism 32, n. 4 (2000): 396-415. p. 403.
20
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination… p. 33.
21
DIMANT, D. The Biography of Enoch... p. 19-29.
22
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and Apocalyptic.… p. 24.
23
GARCÍA MARTINES, Florentino. Qumran and Apocalyptic… p. 27.
24
Contudo, García Martínez somente percebe a presença do Livro de Noé em um lugar do Livro dos
Vigilantes (10,1-3). GARCÍA MARTINES, Florentino. Qumran and Apocalyptic… p. 6
25
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and Apocalyptic… p. 39.
10
Toda essa exposição feita por García Martínez é muito hipotética, por isso
incerta. Ele mesmo mostra como as possíveis alusões ao livro de Noé variam de autor
para autor26. Por isso, se realmente existiu o livro, foi diluído em outras obras. Desta
forma, o material presente em I Enoque, e suas utilizações posteriores, será tratado
como tradições enoquitas.
Diante da vasta literatura ligada a figura de Enoque, podemos afirmar a
existência de um judaísmo autônomo – depois veremos também não somente como
Judaísmo, mas movimento – enoquita27, tendo como mito fundante e reposta para a
origem do mal o Mito dos Vigilantes (I Enoque 6-11).
26
GARCÍA MARTINES, Florentino. Qumran and Apocalyptic… p. 27. Nessa parte o autor mostra um
quadro onde lista as posições de alguns autores em relação aos textos na tradição de Enoque.
27
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis; BOCCACCINI, Gabriele. Roots of Rabbinic
Judaism: an Intellectual History, from Ezekiel to Daniel. Brand Rapids, Eerdmans, 2002.
28
REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism … p.1.
11
pecado, prevê a história, e até intercede pelos anjos pecadores29
30
.
Ao lermos o livro de I Enoque logo nos deparamos com a nítida relação do Mito
dos Vigilantes (6-11) e o livro de Gênesis, em especial com a narrativa de Gn 6,1-4. A
29
REED, Annette Yoshiko. Fallen Angels and the History of Judaism… p.1
30
Como afirmou Anderson de Araújo, numa recente dissertação: “A tradição de Enoque, ou enoquismo,
teve um grande florescimento no período pós-exílio devido ao contexto político, sociológico e cultural do
Oriente Médio, período este marcado por intensas lutas políticas, divisões, levantes e diversidade
ideológica entre os judeus, favorecendo, dessa forma, o surgimento do apocalipsismo e da literatura
apocalíptica da qual 1 Enoque faz parte”. Ver: ARAÚJO, Anderson Dias. Anjos Vigilantes e Mulheres
Desveladas: Uma relação possível em 1 Coríntios 11,10? Dissertação (mestrado em Ciências da
Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, 2009. p. 5. Sobre a discussão teórica a respeito do
apocalipsismo, ver a nota 93.
31
Para um maior aprofundamento do assunto, ver: GIESCHEN, Charles A. Angelomorphic Christology
Antecedents and Early Evidence. Leiden, Brill, 1998. p. 51-187.
32
Ver: MACHADO, Jonas. Transformação Mística na Religião do Apóstolo Paulo. Recepção do Moisés
glorificado em 2 Coríntios na perspectiva da experiência religiosa. São Bernardo do Campo, 2007, Tese
(doutorado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo. Em especialmente o
capítulo III.
33
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and Apocalyptic… p. 19.
34
Para o desenvolvimento do personagem Enoque na literatura judaica, temos o antigo, mas importante
trabalho de Vanderkam: VANDERKAM, James C. Enoch, a Man for All Generations. Columbia,
University of South Carolina Press, 1995. Também temos o importante comentário de Nickelsburk de
2001: NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch: a Commentary on the Book of 1 Enoch, chapters 1-36;
81-108. Minneapolis, Fortress, 2001; e o trabalho de J. J. Collins: COLLINS, J. J. Apocalypticism in the
Dead Sea Scrolls; COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination.
12
pergunta que vem a mente é: quem surge primeiro? Ou, quem depende de quem? No
decorrer da história da pesquisa, algumas soluções foram propostas. Contudo, não há
um consenso entre os especialistas.
Como veremos no decorrer deste trabalho, o próprio mito é uma obra compósita
de pelo menos duas tradições (Semiaza e Azazel) reunidas num mesmo bloco textual (6-
11), posteriormente relido e preservado no mesmo livro, nos capítulos 12- 16. Neste
sentido, a narrativa de seres angelicais caídos ou possuindo mulheres é comum na
literatura judaica desde, pelo menos, o segundo século a.C. No entanto, o testemunho
textual de 6-11 não representa sua mais antiga existência, pois a tradição de Semiaza e
Azazel tem suas histórias particulares, mais antigas do que próprio mito dos vigilantes
enoquita. Ou seja, a antiguidade dessas tradições pode complicar até mesmo as
afirmações de Gênesis como anterior a I Enoque 6-11.
Milik em sua edição optou pela hipótese de I Enoque como texto parente de
Gênesis, e anterior ao texto bíblico35. Na década de noventa, Paolo Sacchi esclareceu
que Gn 6,1-4 é um simples sumário de uma história maior. Essa longa história é
encontrada em I Enoque 6-11, cujo centro seria uma outra narrativa, mais antiga, o
“Livro de Noé” (que mencionamos)36. Para ele, Gênesis é uma reação à história de anjos
que coabitam com mulheres, numa espécie de demitologização, transformando o texto
numa etiologia aos heróis do mundo antigo 37. Em 1993, P. R. Davies ainda nas mesmas
perspectivas de Sacchi e Milik, afirma que o texto de Gênesis pressupõe o
conhecimento de I Enoque 6-11 por parte de seus leitores38.
Posteriormente, a ordem foi invertida, e é a mais aceita entre os estudiosos
39
atuais . Nessa perspectiva, lê-se Gênesis como porta de entrada para fórmulação da
história de I Enoque 6-11. P. S. Alexandre chegou dizer que esse texto é um elaborado
midraxi de Gn 6,1-440.
35
MILIK, J. T. The Books of Enoch… p. 31.
36
SACCHI, P. Jewish Apocalyptic and its History. JSPSup 20. Sheffield, Sheffield Academic, 1990. p.82.
37
SACCHI, P. Jewish Apocalyptic and its History… p. 178
38
KVANVIG, H.S. Gen 6,1-4 as an Antediluvian Event… p.278.
39
A lista é grande, mas apresento aqui alguns dos mais significativos. Nickelsburk: 1 Enoch (2001); The
Book of Enoch in Recent Resarch. In: Religious Studies Review, 7 (1981): 210-217. James Vanderkam:
Enoc and the Growth of an apocalyptic Tradition. CBQMS 16. Washington, DC: CBA, 1984; Enoch, a
Man for All Generations. Para maiores detalhes, ver: VANDERKAM J. The Interpretation of Genesis in
1 Enoch. In: FLINT, P.W. (ed.). The Bible at Qumran. Text, Shape and Interpretation. Grand Rapids,
2001, p.129-148.
40
ALEXANDRE, P. S. The Targumim and Early Exegesis of ‘Sons of God’ in Genesis 6. In: Journal of
Jewish Studies 23 (1972): 60-71. p. 60.
13
H. S. Kvanving, num recente artigo, mostra que essa relação de Gênesis e I
Enoque 6-11 não é tão simples, como pressupõe a maioria dos pesquisadores modernos.
Ele admite a dependência da tradição enoquita, mas diz que a relação entre a história
dos Vigilantes e Gênesis é muito mais complexa que simplesmente assumir que os
escribas enoquitas utilizaram o texto de Gênesis em sua forma como está na Bíblia
hebraica. Segundo o autor, o que se reflete em I Enoque é um antigo estágio da tradição
de Gênesis. E por outro lado, os escribas de Gênesis também conheciam uma tradição
enoquita, ou um primeiro estágio dessa tradição, anterior ao que nós conhecemos41.
O autor do Mito dos Vigilantes utilizou-se do texto, ou de uma parte antiga, de
Gênesis para adequar suas propostas teológicas da origem do mal e dos pecados na
Terra. Com suas novas leituras, em especial I Enoque 12-16, temos até mesmo o tema
da origem dos seres malignos, não mais diretamente pelo texto bíblico, mas no próprio
Mito dos Vigilantes.
Gênesis narra da seguinte maneira a má ação pré-diluviana:
41
KVANVIG, H.S. The Watcher Story and Genesis an Intertextual Reading. In: Scandinavian Journal of
the Old Testament 18, n. 2 (2004): 163-183. p. 180-181.
42
WRIGHT, A. T. Evil Spirits in Second Temple Judaism: the Watcher Tradition as Background to the
Demonic Pericopes in the Gospels. In: Henoch 28 (2006): 141-160.
14
deu significado bem negativo aos gibborim43. Em I Enoque 7,4 eles comeram tudo, até
mesmo os seres humanos.
Ainda, em Gênesis nem mesmo a ação dos filhos de Deus aparentava ter alguma
conotação negativa44. E isso fica claro no texto porque o dilúvio é uma ação de Deus
contra os pecados humanos e não contra os Nefilins e muito menos contra os gibborim,
pois são os homens de renome. O que está por trás de Gênesis não é o Mito dos
vigilantes, mas provavelmente imagens do épico Atrahasis45.
O tema da sexualidade está presente nas duas tradições. No entanto, a imagem
dos ensinamentos ocultos é uma das alterações feitas pela tradição de Enoque. Com I
Enoque 6-11, lido juntamente com 12-16, nós temos uma narrativa onde a causa do mal
do mundo é fruto de uma ação celeste, servindo de etiologia para o pecado e maus
espíritos (I Enoque 15).
43
A LXX lê esse texto à luz da antiga literatura grega e babilônica, traduzindo tanto gibborim e Nefilins
como gigantes. Por isso as muitas confusões.
44
COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls… p. 30. NICKELSBURG, George W. E.
Apocalyptic and Myth in 1 Enoch 6-11. In: Journal of Biblical Literature 96, n. 3 (1977): 383-405. p.
386. Segundo R.S. Hendel em Gênesis os filhos de Deus não são tratados como rebeldes e nem punidos.
E ainda, a mistura sexual com as mulheres não é diretamente condenada. Hendel, R. S. Of Demigods and
the Deluge: Toward in Interpretation of Genesis 6:1-4. In: Journal of Biblical Literature 106/1 (1987):
13-26. p. 16.
45
COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls… p.31; KVANVIG, H.S. The Watcher Story
and Genesis… p. 181. Ver também KVANVIG, H.S. The Watcher Story… p. 181-183.
46
As citações dos textos serão feitas em comparação às edições de J. Charlesworth, Diez Macho e
Niklesburg and Vanderkam. Cf.: CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha -
Apocalyptic Literature and Testaments. Vol I, New York, Doubleday, 1983; DIEZ MACHO, Alejandro.
Apócrifos del Antigo Testamento. Vol. IV; NICKELSBURG, George W. E.; VANDERKAM, James C. 1
Enoch: A new translation. Minneapolis, Fortress, 2004.
47
Ver a lista proposta por García Martínez: GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and
Apocalyptic… p. 61.
48
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination... p.36.
15
36 (viagens de Enoque). Vanderkam faz uma divisão ainda mais complexa. Ele divide
os capítulos do Livro dos Vigilantes da seguinte maneira49:
A introdução, dos capítulos 1-5, inicia dizendo serem “as palavras da benção de
Enoque”, onde ele abençoa os justos e eleitos que estarão presentes no dia da aflição,
quando forem destruídos os ímpios e malvados (1,1-2). Este ato de abençoar relembra a
benção mosaica de Dt 33, num contexto escatológico; esta é uma paráfrase da benção
final de Moisés50. No verso 2, o texto toma emprestadas as imagens do oráculo de
Balaão de Nm 22-24. Os capítulos de 1-5 nas últimas pesquisas são vistos como
introdução não para o livro todo, mas para o Livro dos Vigilantes51. Contudo, em sua
forma final, torna-se introdução da obra inteira de I Enoque.
Essa introdução apresenta uma profecia onde Deus iniciaria um julgamento
tendo como reminiscência as teofanias de Dt 33, Juizes 4, Habacuque 3, Miquéias 1
etc52. A introdução ao livro, em suma, mostra o conjunto da criação que obedece ao
Criador, enquanto os homens não cumprem os desígnios divinos. Por isso, acontece o
dilúvio onde somente os eleitos se salvarão e viverão uma vida de paz e gozo.
De acordo com o relato dos capítulos 6-11, um grupo de seres angelicais,
nomeados como Vigilantes53, se atraiu pela beleza das filhas dos homens [mulheres] e
conspiraram entre si sob a liderança de Semiaza, com o propósito de possuírem-nas.
49
VANDERKAM, James C. Enoch and the Growth of an Apocalyptic Tradition. Washington, DC: The
Catholic Biblical Association of America, 1984.
50
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and Apocalyptic… p.61.
51
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and Apocalyptic… p. 61
52
Vanderkam percebeu que existe clara dependência na narrativa teofânica de I Enoque 3b- 7,9 das
teofanias veterotestamentárias, tanto nos temas como no vocabulário. Ver: VANDERKAM, James C. The
Theophany of Enoch. In: Vetus Testamentus 23, n. 2 (1973): 129-150.
53
Em nota Vanderkam diz: “O termo Vigilantes, do aramaico ‘îrîn (em inglês traduzido por Watchers),
pode se referir tanto para bons ou maus anjos. Em Dn 4,13.17.23 é usado para anjos que servem a Deus;
em outro lugar, como no Livro dos Vigilantes, ele é um título para os anjos de Gn 6, 1-4 que desceram
para terra e pecaram com as filhas dos homens ”. VANDERKAM, James C. Enoch and the Growth…
p.110. Segundo Rick Strelan a palavra ‘îr provavelmente deriva do hebraico/aramaico rw[ que significa
“estar acordado/atento”, embora ele creia que a idéia carregue o significado de “proteção”. Cf.
STRELAN, R. The Fallen Watchers and the Disciples in Mark. In: Journal for the Study of the
16
Quando os filhos dos homens se multiplicaram, naqueles dias,
nasceram-lhes filhas bonitas e graciosas. E os vigilantes, filhos
do céu, ao verem-nas, as desejaram e disseram entre si:
“Venham, escolhamos para serem nossas esposas as filhas dos
homens, e tenhamos filhos!” Disse-lhes então o seu chefe
Semiaza: “Eu receio que vós não queirais realizar isso,
deixando-me no dever de pagar sozinho o castigo de um grande
pecado.” Eles responderam-lhe e disseram, “Nós todos estamos
dispostos a fazer um juramento, comprometendo-nos a uma
maldição comum mas não abrir mão do plano, e assim executá-
lo.” Então eles juraram conjuntamente, obrigando-se a
maldições que a todos atingiram. Eram ao todo duzentos os que,
nos dias de Jared, haviam descido sobre o cume do monte
Hermon. Chamaram-no Hermon porque sobre ele juraram e se
comprometeram a maldições comuns. (1 Enoque 6,1-5)
Pseudepigrapha 20 (1999): 73-92. Este é um termo peculiar para literatura apocalíptica. O substantivo
refere-se em Dn 4,13 a um anjo, onde na LXX ry[ é traduzido como a[ggeloj. Na edição de Charlesworth,
Issac traduz o termo etiópico TEGUHAN como “diligentes guardas”. Cf. ISAAC, E. I (Ethiopic
Apocalypse of) Enoch: A New Translation and Introduction. In: CHARLESWORTH, James H. The Old
Testament Pseudepigrapha… p. 13. Para mais detalhes sobre questões semânticas do conceito ‘îr ver:
MURRAY, R. The Origin of Aramaic ‘îr, Angel’. In: Orientalia (n.s.) 52 (1984): 303-17.
54
BLACK , M. Apocalypsis Henochi Grace. PVTG 3. Lieden, Brill, 1970.
55
NOGUEIRA, Paulo A. S. O Mito dos Vigilantes: apocalípticos em crise com a cultura helenista.
Religião e Cultura, n. 10 (2006): 145-155.
17
Armaros: como anular encantamentos
Baraquiel: os astrólogos
Kokabiel: os signos
Tamiel: astrologia
Asradel: o ciclo lunar.
18
para anunciar aos Vigilantes seu julgamento. Nesses capítulos (12-16), os anjos
Vigilantes são descritos como “sacerdotes” que abandonaram sua posição sacerdotal no
templo celestial e “atravessaram” a fronteira entre céus e Terra, fornicando com
mulheres e se contaminando com o sangue delas (15,4). A figura de Azazel é
proeminente, enquanto Semiaza desaparece.
A condenação de Azazel é anunciada e depois do julgamento de todos os
Vigilantes (13, 1-3). Então, aparece a cena de intercessão de Enoque pelos anjos a Deus.
Suas petições são negadas, e a única coisa que resta a eles é a condenação e desgraça
futura (13,4-10)58.
Os gigantes são condenados à destruição (14,5). Contudo, com a morte desses,
filhos das mulheres com os anjos, seus espíritos são liberados e transformam-se em
espíritos malignos gerando uma vasta proliferação de demônios.
No capitulo 17, Enoque inicia sua jornada guiado pelos anjos: “me levaram a um
lugar que onde os que estão são como fogo abrasador, e quando querem, se aparecem
como anjos” (17,1). Na sua primeira viagem Enoque é transladado às câmaras da luz,
raios, tronos e águas primordiais. Ali contempla os depósitos dos ventos e o lugar final
do castigo dos anjos (estrelas): “Vi as câmaras de todos os ventos... vi os fundamentos
da terra” (18,1). Segundo esta primeira jornada, ele vê os anjos que se uniram às
mulheres: “aqui permanecem os anjos que se uniram às mulheres”. Eles são acusados de
levarem os homens a adorarem aos demônios (19,1). E a Enoque é confirmada a
condenação desses no dia do juízo. Assim, o capitulo 19 termina com uma conclusão
dessas primeiras visões (19,3).
No capítulo 20 há uma listada de anjos. No manuscrito etíope são listados seis,
mas no manuscrito grego há sete. Os primeiros quatro anjos são citados durante a
58
Os capítulos 14-16 mostram as visões de Enoque concernentes à condenação dos Vigilantes.
19
segundo jornada de Enoque (Uriel, Rafael, Raquel e Miguel). A cada anjo é dada uma
função, que serve como uma introdução para a segunda viagem de Enoque. Para Diez
Macho esse texto deveria estar depois do capítulo 959.
Assim, no capítulo 21 a viagem é prolongada; alguns chamam de segunda
viagem de Enoque. Primeiro ele vai até o caos, um lugar “deserto e terrível”. Guiado
por Uriel, que dialoga com ele, é revelada a identidade dos presos daquele lugar terrível:
seriam os anjos que pecaram contra as ordens de Deus, e foram aprisionados por toda
eternidade.
No capitulo 22 Enoque é levado para outro lugar. É onde estão os espíritos dos
mortos, presos até os dias do julgamento. Neste lugar estavam tanto as almas dos justos
como dos pecadores. O lugar é dividido em quatro sessões: 1º (22, 5-7) para os justos
que sofreram perseguição e morte injusta, tendo como tipo Abel; 2º (22, 8-9) está o
resto dos justos; 3º sessão (22, 10-11) os pecadores que não sofreram nenhum castigo
enquanto vivos e a 4º sessão (12-13), onde estão os pecadores perseguidos durante sua
vida e assassinados por outros pecadores. Contudo, esta divisão do lugar visto por
Enoque tem suas controvérsias. Charles e Collins60 contam somente três lugares,
enquanto Knibb, como Diez Macho, contam quatro. Para Knibb a divisão seria assim: 1º
para os justos em geral (22, 9b), 2º (22, 10-11) para os ímpios prósperos, 3º (22,12) para
os justos martirizados e 4º (22,13) para os ímpios que sofreram em vida61. Assim, o
capítulo 22 termina com uma espécie de conclusão: “Bendito és meu Senhor, Senhor da
glória e justiça, que reinas eternamente”.
Nos capítulos 23-26 Enoque é levado a vários lugares, ainda dentro do contexto
da segunda viagem. Primeiro, a outro lugar no ocidente até os confins da Terra (23,1),
com auxílio do anjo Raquel; depois para outro lugar na terra, onde viu um monte de
fogo que clareava de dia e noite (24,1), ali há sete montes esplendorosos (24,2). O
sétimo era rodeado por árvores aromáticas. Este monte era onde estava sentado o
Senhor da glória (v.3). Numa linguagem escatológica, o texto diz que esse aroma será
acessado pelos justos depois do juízo. O verso 7 do cap. 24 novamente há uma
exaltação a Deus como em 22,14. Na terceira deslocação de Enoque ele vai para o
centro da terra: “De lá fui pelo centro da terra e vi um lugar bendito e fecundo” (26,1),
onde viu o monte santo. Esta é uma referência a Jerusalém. Nas cenas dos capítulos 26 e
59
DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento… p.56.
60
CHARLES, R. H. The Book of Enoch; COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination… p. 1-17.
61
DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento… p.58.
20
27 o anjo que está ao lado de Enoque é Rafael, que explica para quem seria o vale que
viu no capítulo 26: “Este vale maldito é para os malditos até a eternidade” (27,2).
Nos capítulos 28-33 Enoque é levado na metade da montanha do deserto, que
talvez seria Arabah, vale regado pelo Jordão62. Nesta parte da viagem ele contempla
árvores aromáticas. Acima dos lugares das árvores que exalavam perfume, ele vê
lugares de águas inesgotáveis. Depois de contemplar as árvores aromáticas, ele vai para
cima de sete montes, no capítulo 32, e depois de passar o mar Eritreo (Golfo Pérsico,
Oceano Índico) e Zotiel, ele chega ao paraíso, onde havia ainda mais árvores
aromáticas. No meio das árvores, ele encontra a árvore do conhecimento, do livro de
Gênesis. O capítulo termina com Rafael identificando a árvore: “Esta é a árvore do
conhecimento, a qual comeram teu antigo pai e antiga mãe antes de você, e adquiriram
sabedoria e abriram seus olhos de modo que perceberam que estavam nus e foram
expulsos do paraíso” (26,6).
Segundo Nickelsburg, em seu comentário, a descrição da árvore do
conhecimento em 26,3-6 e a árvore da vida em 24,4–25,6, em paralelo, é suficiente para
indicar que os textos foram compostos por um mesmo autor, ou que um foi composto
com o outro em mente. Chama atenção, também, uma importante diferença: a árvore da
vida, localizada no paraíso montanhoso de Deus, tinha grande significado escatológico;
ela pode ser transplantada para Nova Jerusalém, o local da vida eterna no futuro.
Diferentemente da árvore do conhecimento, limitada ao passado histórico em relação
com os primeiros pais.63
Depois de passar pelo paraíso, Enoque vai para os confins da terra, onde vê
enormes bestas, distintas uma das outras, e compara-as às aves. Paralelo ao Livro
Astronômico, nos versos 3-4 aparecem instruções sobre os astros dos céus, suas
constelações, posições, número e tempo. Tudo isso ele anota em escrito, para guardar os
seus nomes, leis e funções.
A sessão de I Enoque 34-36,4 é a conclusão do livro dos Vigilantes na sua
presente forma (etíope), e especificamente a conclusão da segunda jornada iniciada no
capítulo 21. Enoque vai para o norte, leste, sul e depois volta para o oeste e contempla
três portas abertas no céu, de onde saem os ventos. Estas portas estão presentes no norte
(cap. 34), no ocidente (cap. 35), no sul e no oriente (cap. 36). Depois de passar pelos
pontos cardeais, ele volta para o oriente (leste) de onde ele saiu no capítulo 33.
62
DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento… p. 61.
63
NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch… p. 302.
21
Nickelsburg acredita que 34,2-3 e 36, 1 formam um sumário para o capítulo 76 de I
Enoque64.
Como acontece no fim dos capítulos 22, 24, 25, 26 e 27 o texto termina com
uma doxologia, bendizendo o Senhor da glória e referindo-se a anjos e seres humanos,
acrescentando um cósmico escopo para a conclusão do livro dos Vigilantes.
64
NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch… p. 307.
65
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis; BOCCACCINI, Gabriele. Roots of Rabbinic
Judaism.
66
Ver: SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios em Decápole. Exegese, história, conflito e interpretação de
Mc 5,1-20. Dissertação (mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo,
1999. SCHIAVO, Luigi. O mau e suas representações simbólicas. O universo mítico e social das figuras
de Satanás na Bíblia. In: Estudos da Religião 19 (2000): 65-83; SCHIAVO, Luigi. O Simbólico e o
diabólico: a vida ameaçada. In: Phoînix 8 (2002): 230-243; RABUSKE, Irineu J. Jesus Exorcista. Um
22
existe uma proliferação de demônios, de maneira bem esquematizada e organizada.
Perguntar-se somente pelo pano de fundo na literatura do Antigo Testamento para essa
visão de mundo não é suficiente, pois teremos poucas respostas. Não temos na Bíblia
hebraica a presença de uma personificação do mal ou um termo para designar um
demônio com autonomia, ou um líder de hostes malignas, ou muito menos uma visão
dualista, onde esses seres são inimigos de Deus, ou desejam impedir seus planos e
projetos. Concordo com Schiavo que “a figura independente do mal, é difícil de
identificar no Antigo Testamento por ser fruto de uma grande mistura cultural, com
influências da magia, da religiosidade popular, do ritualismo apotropáico oficial, do
simbolismo poético”67.
Em alguns textos da Bíblia hebraica, o bem e o mal estavam ligados a Javé (Is
45,6-7; Jó 2,10; Am 3,6). Por sua teologia exclusivista as ações de características
demoníacas eram atribuídas a Deus, ocorrendo em alguns textos o que podemos chamar
de “assimilação mítica”, onde “ao adotar antigas tradições, geralmente pré-israelitas, a
teologia oficial suprime os demônios das mesmas, transferindo os traços demoníacos a
Javé”68.
Posteriormente, fruto do contato cultural exílico e pós-exílico percebemos um
desenvolvimento da teologia israelita em relação ao mal, pois aparecem outras figuras
geradoras de males, mas mesmo elas estão debaixo das ordens de Javé. Vemos esse
desenvolvimento, por exemplo, em 2 Sm 24, 1 e 1 Cro 21.1, onde Davi, no primeiro, é
pelo Senhor incitado a recensear o povo (ação que seria posteriormente desaprovada),
enquanto no segundo foi por Satã. Ao recontar a história, o cronista para poupar Deus
da culpa direta, pois neste momento o problema da teodicéia pós-exílica é resolvido
estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30. São Paulo, Paulinas, 2001; KILPP, Nelson. Os Poderes
demoníacos no Antigo Testamento. In: Estudos Bíblicos 74 (2002): 23-36; PAGELS, Elaine. The Social
History of Satan, Part II: Satan in the New Testament Gospels. In: Journal of the American Academy of
Religions. 52\ 1 (1994): 221- 241. PAGELS, Elaine. The Social History of Satan, the ‘Intimate Enemy’:
A Preliminary Sketch. In: Harvard Theological Review. 84/2 (1991): 105-128. PAGELS, Elaine. As
Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna.
Rio de Janeiro, Ediouro, 1996; HAMILTON, Victor. Satan. In: Freedman, D. N. (ed.). The Anchor Bible
Dictionary. New York, Doubleday, 1992; FORSYTH, Neil. The Old Enemy: Satan and the Combat Myth.
Princeton, Princeton University, 1987.
67
SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios em Decápole... p. 133.
68
KILPP, Nelson. Os poderes demoníacos no Antigo Testamento... p. 25. Kilpp mostra como exemplo
Gn 32,23-33, onde a crença popular de demônios no rio Jaboc, que atacavam a noite e perdiam as forças
pela manhã, foi assimilada e integrada a figura de Javé: quem lutou com Jacó, na nova apropriação
israelita, era ninguém menos que Javé. Há a mesma assimilação em Ex 4, 24-26, onde a crença antiga de
um demônio do deserto que atacava quem pousasse em seu território, e o sangue poderia afastá-lo; no
texto o sangue afasta a Javé.
23
com seres celestiais como responsáveis pelas desgraças, sugere a invasão de um ser da
corte divina que se infiltrou na casa real e motivou Davi a pecar69.
Satã, originalmente é uma atribuição dada a algum ser humano, no sentido de
inimigo ou adversário. Em I Sm 29,4 Davi é considerado um !j"ßf' ( Satan); o inimigo de
Salomão também é um Satan (I Rs 11,23); em Nm 22,22.32 o anjo do Senhor que se
opôs a Balaão se porta como um Satã. No sentido de opositor, o anjo age naquele
momento como um obstáculo, ou seja, a expressão, também aqui, não diz que o anjo é
um ser denominado “Satã”70 . Com o tempo, esse mesmo Satã se torna uma figura não
terrena que está na corte celestial (Zc 3,1s; Jó 1,6s; 2.1) debaixo das ordens de Deus,
como um promotor de acusação dentro da imagem das cortes do Antigo Oriente. Em Jó
e Zc isso é bem claro. Como se percebe satã não é na Bíblia hebraica um líder de
demônios e muito menos um adversário de Deus. O diabo, na Bíblia hebraica, é diabo
de Deus.
Os espíritos que levam os profetas a mentirem a Acab, em um quadro evidente
de corte celeste de Javé71, são enviados por Deus (I Rs 22, 19-23) e o espírito que
atormenta a Saul, não tem autonomia: vem de Javé ( I Sm 16,23).
Um episódio único na Bíblia hebraica está em 1 Sm 28. Saul participa de um
ritual de necromancia, em En-Dor – uma prática distintivamente cananita72. No verso 13
aparece a expressão elohim que sobem da terra73. Brian B. Schmidt, lendo esse episódio
à luz da necromância mesopotâmica, onde se tinha a idéia da participação dos deuses
que também subiam do abismo74, chega à conclusão que o termo elohim designa os
“deuses conhecidos por serem convocados para auxiliar a necromancia na recuperação
de um espírito”75. Essa lenda a respeito de Saul foi preservada pelos interesses
deuteronomistas de mostrar que a terra e as suas bênçãos dependiam da completa
separação das práticas religiosas dos outros povos76.
69
PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás... p. 70.
70
RUSSEL, Jeffrey Burton. O Diabo: as percepções do mal da antiguidade ao cristianismo primitivo. São
Paulo, Paulus, 1997.
71
WOLFF, Hans Walter. Bíblia: Antigo Testamento. Introdução aos escritos e aos métodos de estudo.
São Paulo, Paulinas, 1978. p. 16.
72
SCHMIDT, Brian B. The “Witch” of En-Dor, 1 Samuel 28 and Ancient Eastern Necromancy. In:
MEYER, Marvin; MERECKI, Paul (ed.). Ancient Magic and Ritual Power. LEIDEN/NEW YORK/
KÖLN, Bril, 1995. p. 111
73
A LXX traduz ~yhiîl{a/ como Qeou.j
74
SCHMIDT, Brian B. The “Witch” of En-Dor... p. 125.
75
SCHMIDT, Brian B. The “Witch” of En-Dor... p. 126.
76
SCHMIDT, Brian B. The “Witch” of En-Dor... p. 128
24
Até Belial (bly‘l), como acredita C. Martone, na Bíblia hebraica é um conceito e
não personificação do mal. Na LXX nunca é traduzido como um substantivo próprio,
mas sempre por meio de termos tais como a;ndrej para,nomoi (homem sem lei, contra
lei, Dt 13,14), também como ui`oi. loimoi. (filhos da pestilência, I Sm 2,12), ou avnh.r
a;frwn (homem insensato, imprudente, Pv 16,27), até mesmo no chamado Targum
Onkelos (III d.C) as passagens de Dt 13,14 e 15,9 não se refere a um nome próprio77.
Isso muda na literatura apócrifa e pseudepígrafa, em Qumran e na literatura cristã.
Na literatura judaica não-canônica, pode-se ver a personificação de Belial,
especialmente no Testamento dos Doze Patriarcas . Aqui bly‘l ou Beliar é o nome dado
ao Príncipe do Mal, Espírito das Trevas (Test. Levi 19,1): 1) Os homens maus são
dominados por seus espíritos (Test. de Ash 1,8; Test. de Levi 3,3, Test. de José 7,4); 2)
ele é oposição a Deus (Test. Dan 1,7; Test. De Naf. 3,1)78; 3) também aparece Belial
como aquele que fornece aos seus seguidores uma espada causadora de muitos males
(Test. de Ben. 7,1-2. 3); 3) esse Belial será vencido nos últimos dias pelo messias ( Test.
de Judá 25,3; Dn 5,10; Test. Ben. 3,8).
No livro de Jubileus ele é um príncipe do mal, e inimigo da humanidade (Jub.
1,20-21). Em Qumran Belial pode indicar algo abstrato, como no uso bíblico, ou um
anjo do mal, como na literatura apocalíptica. Qumran é o elo, que traz a idéia abstrata
bíblica, genericamente negativa, e a personificação da literatura apocalíptica e do Novo
Testamento, assim como da literatura patrística 79.
77
MARTONE, C. Evil or Devil? Belial from the Bible to Qumran. Henoch 36 (2004):115-127. p. 117.
78
Martone explica que o texto grego do Testamento dos XII patriarcas é fundado em duas formas ou
recessões (a e b). Por exemplo, no texto da recessão b onde fala da “vontade do diabo” lê-se “vontade de
Belial”. Neste caso vemos uma clara identificação filológica de Belial com mal: uma posterior evidencia
que a história do texto é a história da cultura envolvendo o texto original. MARTONE, C. Evil or
Devil?... p. 118.
79
1QS I,16-18; 22-24 vemos a dominação de Belial (mmšlt bly‘l), como lote de Belial (I QS II,4-5). A
dominação de Belial (mmšlt bly‘l) é o mundo fora da seita, e o lote de Belial são os que vivem naquele
mundo, mudar para salvação seria se associar a seita. Os filhos das trevas (bny hwšk) estão debaixo da
dominação dos anjos das trevas (ml‘k hwšk) descritos na instrução dos dois espíritos (1QS III, 13 –
IV,26). Para Martone ml‘k hwšk é bly‘l. O autor acredita que os últimos redatores do Rolo da
Comunidade entendiam o termo bly‘l como o anjo do mal. Contudo nos Hodayot (1QHa XI 27-30,32;
1QHa XII 9-14; 1QH 26-27;39) podem ter as duas idéias (um substantivo próprio ou a idéia de
“worthlessness”). Diferentemente dos Hodayotes, outros textos como Rolo da Guerra personifica Belial,
onde este com seu lote estarão numa guerra final contra Deus e seu lote (1QM 1,5; 15,3;18.1-3). De
acordo com os textos de 1QM, pode-se perceber que em Qumran acreditava-se que o mal era parte dos
planos divinos, como também sua final destruição. Aqui está a idéia dos “dois espíritos”, onde ele tem a
ação das duas forças que o próprio Deus criou. Mas, com a ajuda de Deus pode-se livrar dos planos de
Belial (4QMidrEscat XXII, 12 // 1QS III,24 – sobre os dois espíritos). A figura demoníaca na instrução
dos “dois espíritos” é o ml‘k hwšk e não menciona bly‘l, enquanto em 4QMidrEscat podemos ler uma
similar passagem com a menção de Belial. Isso pode sustentar que em certo estágio do desenvolvimento
da teologia da Qumran, Belial e o Anjo das Trevas eram entendidos como alguma entidade, a saber, uma
personificação da má dominação do mundo fora da seita. MARTONE, C. Evil or Devil?... p. 121-123.
25
Ocorrem na Bíblia hebraica expressões de seres animalescos e aterrorizantes,
termos invocadores de imagens míticas de monstros marinhos, dragões, seres desérticos
e divindades estrangeiras. Estes termos e imagens não são organizados como uma
demonologia veterotestamentária, num escopo dualista, mas aparecem como seres do
imaginário israelita em diálogo com as religiões circunvizinhas. 80
A imagem dualista da existência e a possibilidade do surgimento de uma
demonologia mais prolífera, menos tímida (como aparece no Antigo Testamento), estão
ligadas as interações culturais exílica e pós-exílica, onde a religião de Israel moldou
uma demonologia mais definida e rica. É digno de nota também a influência da
tradução da Septuaginta (LXX), que traduziu como diabolos, carregado do conteúdo
grego, expressões como Satan, mudando o teor demonológico da Bíblia hebraica81.
Então, quando falamos das contribuições culturais para a demonologia
neotestamentária devemos levar em consideração esse aglomerado de tradições e
interações culturais. Por isso, não é a intenção afirmar que o mito dos Vigilantes seja a
tradição onde esgotamos as raízes da demonologia do Novo Testamento, pelo contrário,
até mesmo ele deve ser situado dento do contexto babilônico, persa e helênico. As
contribuições das relações com a Pérsia, Babilônia e Grécia para o imaginário dos
demônios e seres malignos são inquestionáveis. Por isso, partir-se-á da literatura
apócrifa e pseudepígrafa, em especial a apocalíptica, onde percebemos um “oculto
mundo de anjos e demônios que é diretamente relevante para o destino humano”82.
80
Tsiyyim (Is 13,21; 34,14; Jr 50,30; Sl 72,9); se‘irîm (Lv 17,7; 2 Rs 23,8; Is 13,21; 34,14; 2 Cr 11,15);
shedim ( Dt 32,17; Sl 106, 37); Reshef/ qeteb/deber ( Dt 32,24; Hab 3,5; Sl 78,48; Jó 5,7e Ct 8,6); Azazel
(Lv 16,18; 10,26); Lilith (Is 34,14; sijjîm e ‘ ijjîm (Is 13,2s; 34, 14; Jr 50,39; Sl 72,9); Elilîm (Is 19,3);
Leviatã (Is 27,1; Sl 74, 14; 104, 26); Raab (Sl 89,11; Jó 9,13; Is 51,9); Tannin (Is 27,1; 51,9: o dragão).
81
Cf. LUTHER, Link. O Diabo: a máscara sem rosto. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. Para
discussão da figura do diabo e o desenvolvimento de sua imagem, ver também: DATLLER, Frederico. O
mistério de satanás: Diabo e Inferno na Bíblia e na Literatura Universal. São Paulo, Paulinas, 1997;
STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. Rio de Janeiro, Gryphus, 2003; NOGUEIRA, Carlos
Roberto F. O diabo no imaginário Cristão. Bauru, EDUSC, 2000.
82
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination… p.7.
26
3.2. A questão do mito: porta de entrada ao mundo do imaginário.
Nosso objeto de pesquisa é lido como um mito: Mito dos Vigilantes. Por isso,
faz-se necessário apresentar os pressupostos e como se aproximará da narrativa
enquanto mítica, e quais os pressupostos para sua leitura.
A tendência de interpretar o mito como pensamento superado, de explicações
pré-científicas – um estado imperfeito da linguagem antagônica à científica,
correspondente a uma etapa primitiva – há tempo na academia é rejeitada, pois não
contempla sua complexidade e capacidade de “instauração de realidade”83.
É possível, de outra forma, tratar o mito com uma hermenêutica instauradora que
valoriza sua racionalidade simbólica, uma forma de conhecimento e de acesso à
realidade com valor permanente, em termos arquetípicos, onde ele revela âmbitos mais
profundos, como expôs Jung84. Contudo, por mais que esse tipo de leitura supere a idéia
desvalorizadora e racionalista do mito, para o “como” tratar a narrativa mítica o trabalho
caminhará nas trilhas dos cientistas/fenomenologos da religião: Severino Croatto e
Mircea Eliade.
Segundo Croatto, “o mito é o relato de um acontecimento originário, no qual os
deuses agem e cuja finalidade é dar sentido a uma realidade significativa”85. Desta
forma, o mito tem seu caráter originário, onde são apresentadas as causas da existência
presente. Para Eliade,
83
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo, Paulinas, 2001. p. 209.
84
Cf. JUNG, C. G. Psicologia y religión, Buenos Aires, 1961. pp. 106-168; JUNG, C. G. Símbolos da
Transformação, 4 ed., Petrópolis, Vozes, 1999. Para uma leitura onde a linguagem mitológica serve como
um desvelar da alteridade arquetípica do sagrado e do supra-histórico, ver: RICOEUR, P. Finitud y
Culpabilidad, Madrid, 1969. pp.9-26, pp. 699-713; RICOEUR, P. Poética e simbólica. In: Iniciação a
prática da teologia, São Paulo, 1992. pp. 29-48.
85
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa... p. 209.
86
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. p.11.
27
Por ser relato das origens, ações dos Entes Sobrenaturais, ou dos heróis, a
narrativa não está situada na cronologia histórica, pois ocorre no illud tempus87, no
tempo primordial. Por isso, o mito serve como intérprete da realidade, a qual se torna
significativa por ser resultado da ação de seres sobrenaturais num período outro, não
datado, no “antes” primordial88.
Mesmo sendo um acontecimento imaginativo do homo religiosus, quem vive o
mito vive-o, por versarem sobre a origem das coisas e das instituições, como
verdadeiro89. Assim, Eliade conclui sua conceituação do mito afirmando que ele é
considerado uma história sagrada, e, portanto, uma “história verdadeira”, por que
sempre se refere à realidade90. Assim, o mito da criação do mundo, por exemplo, é
verdadeiro porque ele está aí; ou, como versa o Mito dos Vigilantes, o mal está aí,
presente, e isso é uma prova da sua realidade. Eliade ainda afirma,
O mito, além de relato das origens, “é uma visão de mundo, uma maneira como
as pessoas vêem e se relacionam com o mundo; histórias que expressam os valores da
cultura e suas aspirações profundas”92; ou seja, uma forma de perceber a realidade.
Como cosmovisão, temos nos mitos algo interessante: um mundo que é compreendido e
comunicado de maneira simbólica. Não como uma simples alegoria da situação
histórico-social, mas uma criação simbólica que transforma e representa a realidade
vivida dentro de sua própria interpretação. Então, ele tem um ambiente histórico-social
que o sustenta, e é interpretado. A escatologia apocalíptica, como uma perspectiva
ou cosmovisão93, por exemplo, mostra o cosmos como arena de duas forças, numa
87
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... passim.
88
Eliade explica que o mito ao ser ritualizado, eleva seus agentes ao nível da realidade primordial, na
qual saem do tempo histórico e vivem a realidade vivida pelos Entes Sobrenaturais, repetindo seus feitos,
a ponto de criarem novamente a realidade e o mundo desgastado. Ver: ELIADE, Mircea. Mito e
Realidade... (em especial cap. III)
89
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa...p. 191, p. 211.
90
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... p. 12
91
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... p. 16.
92
JIND, J. Y. On Myth and History in Prophetic and Apocalyptic Eschatology. In: Vetus Testamentum
55, n. 3 (2005): 412-415. p. 412.
93
Para os conceitos apocalipse, escatologia apocalíptica e apocalipsismo ver: HANSON, Paul D.
“Apocalypse, genre” and “Apocalypticism”. In: Interpreter’s Dictionary of the Bible. (Suplementary
28
interpretação em categorias dualistas. J. Y. Jind, ao fazer distinção entre escatologia
profética e escatologia apocalíptica, diz ser a primeira uma história interpretada
mitologicamente e a segunda um mito interpretado historicamente94. Tanto no primeiro
como no segundo, o mito está relacionado ao contexto histórico, numa relação
hermenêutica.
Por isso, Croatto pode fazer a seguinte relação entre mito e história:
O mito tem um fundo, um mundo, que o alimenta e está nele como um “negativo
de fotografia”. Este é a realidade significativa com quem o mito dialoga e revela; assim
o mito supõe uma “função social”96. Neste sentido, como função nas relações sociais,
podemos perceber no mito um instrumento para construção de identidade e fixação de
fronteiras étnicas.
Mesmo tendo seu mundo fundante, também encontramos o papel criador do
indivíduo na elaboração e transmissão do mito97. Como compreendeu Nickelsburg, os
mitos estão “abertos a reinterpretações e reaplicação em ampla variedade de situações
Volume). Nashville, Abingdon Press, 1976. p. 27-34; DITOMMASO, Lorenzo. Apocalypses and
Apocalypticism in Antiquity (Part I). In: Currents in Biblical Research 5.2 (2007): 235-268; COLLINS,
J.J (ed.) Apocalypse: The Morphology of a Genre. In: Semeia 14 (1979); BOER, Martinus de. A
influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social. In:
Estudos de Religião 19 (2000): 11-24. J.J. Collins fez a distinção entre apocalipsismo como visão de
mundo e apocalipse como forma literária, ver: COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination... p. 1-17.
Para um resumo da discussão: COLLINS J.J. Apocalyptic Eschatology as the Transcendence of Death. In:
Catholic Biblical Quarterly 36 (1974): 21-43. Para as orígens e natureza da apocalíptica, ver: HANSON,
Paul D. The Dawn of Apocalyptic. The Historical and Social Roots of Jewish Apocalyptic Eschatology,
Philadelphia, Fortress, 1975. Para uma definição do termo apocalipse, mas numa perspective crítica aos
trabalhos de J. J. Collins e P. Hanson, ver: GRABBE, Lester L. and HAAK, Robert D. Knowing The End
form the Beginning: The Prophetic, the Apocalyptic and their Relationships. In: Jornal for Study of the
Pseudepigrapha, Supplements, v. 46 (2003): 2-37.
94
JIND, J. Y. On Myth And History… p. 413
95
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa... p. 301-2. Frisar a parte entre
parentes: a configuração acontece no plano do sentido.
96
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa...p. 272
97
O próprio Eliade percebeu em suas pesquisas que “as variantes se afastam sensivelmente dos protótipos
(...) Os mitos registrados são sempre modificações mais ou menos sensíveis de um texto preexistente.
Essas pesquisas, entretanto, trouxeram à luz o papel dos indivíduos criadores na elaboração e na
transmissão dos mitos”. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... p. 128-129.
29
novas”98. Desta forma, os mitos podem ser utilizados em diferentes situações
históricas99, criando indícios100 passiveis de identificação dos rastros de sua utilização e
influência.
Ao encontrarmos variações das narrativas míticas, deparamo-nos não somente
com mudanças literárias, pressupondo desgaste da fonte original, mas à possibilidade de
mutação dos mitos dentro de contextos culturais diferentes e a capacidade criativa dos
seus portadores e transmissores diante de desafios diferentes. Além disso, as imagens
dos mitos podem se diluir nas culturas, criando práticas sociais.
Paulo Nogueira, por isso, pode assim se referir ao Mito dos Vigilantes:
A partir, então, do que foi dito, o Mito dos Vigilantes torna-se muito mais do
que alucinações de escribas judeus, onde anjos e mulheres se deixam levar pelos
prazeres sexuais e geram gigantes. Essa narrativa, por ter estrutura mítica e funções
míticas, foi vivida como história verdadeira para seus leitores na antiguidade, pela qual
no decorrer de suas releituras respondia a perguntas pela existência e problema do mal e
dos seres malignos no mundo, dando sentido e servindo de interpretação da história
vivida102.
É importante frisar que essa “re-apropriação” do mito pode ser literária,
percebida por alusões diretas, mas também imagéticas. Pensa-se imaginário como
sistema de idéias e imagens de representação, como uma visão de mundo. São
conceitos, imagens, linguagem e símbolos percebidos nas práticas culturais, em especial
98
NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch…p. 170.
99
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Technique: Setting and Function in the Book of Watchers. In:
Catholic Biblical Quarterly 44, n. 1 (1982): 91-111.
100
A expressão aqui tem como pressuposto o método utilizado pelo historiador italiano Carlo Ginzburg.
Ver: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, Companhia das
Letras, 1989.
101
NOGUEIRA, Paulo A. S. O Mito dos Vigilantes... p. 145-146.
102
Para verificação da hipótese do mito dos vigilantes como uma resposta da origem do mal no mundo,
ver: WRIGHT, A. T. Evil Spírits in Second Temple Judism... p.141-160; WRIGHT, A. T. Some
Observations of Philo’s de Gigantibus and Evil Spirits in Second Temple Judaism. In: Journal for the
Study of Judaism 36, n. 4 (2005): 472-488.
30
em sua visão e interpretação do mundo. É diferente de mentalidades, pois esta é
analisada em longa duração e adquirida num movimento estrutural, enquanto imaginário
é construção e representação, com forças transformadoras103. Este âmbito da realidade
não pode ser percebido somente nas citações diretas (como sempre pressupôs a crítica
das formas ou da tradição104), mas na perspectiva da Nova História Cultural. Segundo
Peter Burke
103
Para um bom trabalho sobre o conceito, ver: PESAVENTO, Sandra J. Em busca de uma outra história:
imaginando o imaginário. In: Revista Brasileira de História 15, n. 29 (1995).
104
UWE, Wegner. Exegese do Novo Testamento. Manual de Metodologia. 3 ed. São Leopoldo/são Paulo,
Sinodal/Paulus, 2002. Cap. 6.
105
BURKE, Peter. O Que é História Cultural? Rio de Janeiro, Jorge ZAHAR, 2005.
106
CHARTIER, Roger & CAVALLO, Guglielmo. História da Leitura do Mundo Ocidental. São Paul,
Ática, 1994.
107
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano I. Artes de Fazer. Petrópolis, Vozes, 2000.
108
Esses usos são ações, ou melhor, táticas empregadas pelos “fracos” para inscrever suas maneiras de
utilizar nos espaços em que a vigilância estratégica imposta pelo sistema panóptico dos “fortes” deixa vazio.
Sobre essas operações de reemprego Certeau diz que: “Sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe
uma lei, (...) aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação (...) tira daí efeitos
imprevistos” . Ao utilizar os “bens culturais” frabicados pela cultura dominate o “fraco” modifica-lhe o
registro, ele instaura aí uma maneira de utilizar própria de suas práticas e a serviço de si e talvez de outros.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano I... p. 76, 97,100.
31
(...) em particular ao considerar que cada “consumidor” cada
espectador, cada ouvinte produz uma apropriação inventiva da
obra ou do texto que recebe. Nessa perspectiva, o consumo
cultural passa a ser visto também como uma forma de
produção, na medida em que é uma apropriação e uma
construção simbólica (muito embora, como lembra o próprio
Certeau, seja uma produção silênciosa, disseminada,
anônima)109.
109
ALMEIDA, M. A. Cada Leitor seu Texto: Dos Livros à Redes de Leitores. In: Enc. Blibli: Revista
Eletrônica de Biblioteconomia Ciêntífica e Informação (edição especial), n. 1 (2009): 154-173.
110
NICKELSBURG, George W. E., Apocalyptic and Myth in 1 Enoch 6-11... p. 383; ver também:
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination…p. 36; COLLINS, J. J. The Apocalyptic Technique… p.
95; VANDERKAM, James C. Enoch and the Growth… p. 123. C. Newson diz ser I Enoque 6-11 um
tradição idependente do livro de I Enoque. Para mais detarlhes, ver seu artigo:
NEWSOM, C.A. The Development of I Enoc 6-19: Cosmology and Judgment. In: Catholic Biblical
Quarterly 42 (1980): 310-29.
111
NICKELSBURG, George W. E. Apocalyptic and Myth… p. 384.
32
anjos e sua prole são os causadores do mal no mundo (7,3-5), enquanto na tradição de
Azazel, os anjos são os que ensinam a metalurgia, e quem faz mal são os próprios
homens (8 , 1-2). Até mesmo nas funções dos anjos é percebida a duplicação:
1º. Gabriel contra os filhos dos Vigilantes (10,9) // Miguel contra os filhos dos
Vigilantes (10, 15);
2º. Rafael como aquele que sara a terra desolada pelos Vigilantes (10,7) // Miguel como
aquele que purifica a terra de toda impureza ( 10, 16. 20).
1. A proposta de pecar
2. O ato: casamento e geração de Gigantes
3. A súplica por julgamento
4. A resposta angelical
5. Resposta de Deus: Ele comissiona seus anjos para executar o julgamento e
conduzir o escaton.
112
NICKELSBURG, George W. E. Apocalyptic and Myth… p. 386
113
Sobre uma análise da tradição de Semiaza, ver: HANSON, P. D. Rebellion in Heaven, Azazel, and
Euhemeristic Heroes in I Enoch 6-11. In: Jornal of Biblical Literature 96/2 (1977): 195-233.
33
3.2.2. Mito dos Vigilantes: mundo interpretado e preservação de identidade
114
NICKELSBURG, George W. E. Apocalyptic and Myth… p. 390.
115
NICKELSBURG, George W. E., Apocalyptic and Myth… p. 391.
116
COLLINS, J. J..The Apocalyptic Technique: Setting and Function in the Book of Watchers. In:
Catholic Biblical Quarterly, 44 1 (1982):91-111. p. 97.
117
SUTER, David. Fallen Angel, Fallen Priest: The Problem of Family Purity in 1 Enoch 6-16. In:
Hebrew Union College Annual 50, n. 01. (1979): 114-135. p. 124-31.
118
COLLINS, J. J..The Apocalyptic Technique… p. 97.
119
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Technique… p. 98
34
permite o mito ser reutilizado em situações históricas diferentes120. Nickelburg, em
2001, também percebeu essa possibilidade, pois os eventos são velados pelo caráter
ficcional da narrativa, por sua natureza mítica e simbólica, abertos a reinterpretações e
reaplicações121. Para Collins, o mito dos vigilantes é um exemplo da dificuldade para
achar o lugar específico dos textos apocalípticos122.
Collins conclui: “podemos, de maneira sensata, afirmar que o Mito dos Vigilantes,
ambas as tradições de Semiaza e Azazel e sua combinação refletem algum tipo de
crise”123. Contudo, no mito, ambas as possibilidades (diádocos ou sacerdotes de
Jerusalém) são plausíveis. E por causa de seu caráter mítico, pode ser aplicado em
momentos análogos da história.
A situação de crise que o mito interpreta e critica, apresenta pistas para
preservação da identidade e fronteiras étnicas em relação com a cultura helenista,
mesmo que posteriormente sirva para novos contextos históricos.
Siân Jones refletindo sobre a relação entre cultura material e fontes escritas para
interpretação dos grupos étnicos, mostra que a consciência de etnicidade emerge no
contexto da interação sócio-cultural entre pessoas de tradições culturais discrepantes124.
Sua grande preocupação e incômodo, e ele deixa isso claro no início de seu artigo, está
no doentio e viciado uso circular e auto-referencial da evidência documental e
arqueológica, ou seja, o privilégio da palavra escrita sobre a arqueologia, aquela
guiando esta para a fusão dos vestígios materiais às categorias étnicas monolíticas.
Jonathan Hall caminha nos mesmos pressupostos da Siân Jones, quando afirma como
um dos seus pressupostos a negação do caráter estático dos grupos étnicos, de
categorias monolíticas e com fronteiras impermeáveis125. Ele acredita na dinâmica e na
situacional construção natural da etnicidade.
Militando pela perspectiva fluída da construção da identidade, Hall afirma que
identidade étnica pode somente ser constituída por oposição de outras identidades
étnicas126. Ela é construída pelo reconhecimento das distinções entre si, uma distinção
autoconsciente. É uma objetivação percebida na compreensão de fundamentos
120
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Technique… p. 110.
121
NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch…p. 170.
122
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Technique… p. 99.
123
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Technique… p. 98.
124
JONES, Siân. Categorias Históricas e a práxis da identidade: a interpretação da etnicidade na
arqueologia histórica. In: FUNARI, Pedro Paulo e OLIVEIRA, Solange Nunes (org). Identidades,
discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea. São Paulo, Annablume, FAPESP, 2005.
125
HALL, J. M. Ethnic Identity in Greek Antiquity. Cambridge, University Press, 1997. p. 3.
126
HALL, J. M. Ethnic Identity… p. 4.
35
compartilhados de práticas e experiências. Assim, o grupo étnico se estabelece nas
interações socialmente situadas, por isso seu caráter fluído, que Hall não cansa de
afirmar. O conteúdo cultural da etnicidade pode variar substancialmente e
qualitativamente em diferentes contextos, como também a importância da etnicidade.
Ou seja, a práxis da etnicidade resulta de múltiplas realizações transitórias da diferença
étnica em contextos particulares.
Frederik Barth, no seu texto introdutório à obra coletiva publicada sob sua direção
em 1969, a respeito da organização social da diferença de cultura, substitui – na mesma
perspectiva defendida por Siân Jones, na arqueologia histórica, e Jonathan Hall, na
construção da identidade étnica – a proposta estática da identidade étnica por uma
concepção dinâmica127.
Philippe Poutignat, interpretando Frederik Barth, afirma que,
127
BARTH, F. Ethnic Groups and Boundaries. The Social Organization of Culture of Difference. Olso,
Universitetsforlaget, 1969.
128
POUTIGNAT, Philippe. Teorias da Etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de
Fredrik Barth. São Paulo, UNESP, 1998. p. 11.
36
preservador em contextos diferentes, onde as somas das diferenças consideradas como
significativas, são defendidas e preservadas.
Para essa preservação e identificação de identidade, juntamente a possíveis
críticas, encontramos uma linguagem simbólica, própria do discurso mítico, na qual
imagens malignas perpassam sua narrativa. Desde o mito em sua originalidade (6-11),
passando por sua releitura (12-16) não somente na obra de I Enoque, mas também nas
apropriações e releituras das tradições judaicas do segundo templo (em especial no
mundo da apocalíptica), tem servido imagens para cosmovisões de alguns judaísmos e
posteriormente cristianismos.
129
REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism… p. 2.
130
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis... p.72.
37
Por isso, J. J. Collins diz que “desta forma a revolta dos vigilantes tornou-se a
maior causadora da existência dos maus espíritos e, por implicação, do pecado da
humanidade”131. A proliferação de seres malignos, que se torna mais tensa em Jubileus
(cap. 10), dialoga também com o imaginário do mundo antigo, em especial com as
religiões dos povos que tiveram contato direto com o mundo judaico. No Mito dos
Vigilantes percebemos a imagem do dualismo, pois temos anjos do grupo da divindade
contra os rebeldes. Uma imagem que dialoga com o mundo antigo. A própria idéia de
divindades que caem está presente na tradição ugarítica132. Em Ugarit, cidade litorânea
da Síria, foram encontradas peças épicas onde aparece a divindade Attar, concorrente de
Baal, numa queda do céu133. Como também na Grécia o mito da queda de Faeton, filho
de Eos.
As imagens religiosas e míticas da Mesopotâmia podem também ser percebidas.
No mito de combate de Tiamat e Marduk, existem terríveis seres ao lado de Tiamat. No
mundo imaginário Mesopotâmico havia várias espécies de espíritos malignos. Estes
eram voadores, e entravam até em frestas, fazendo vários males. Eles atacavam os seres
humanos e eram comedores de carne e sangue, como aparece no Livro dos Vigilantes.
Vistos como impuros e sujos emitiam um odor horrível134
Com a data, fruto dos achados de Qumran, e com o nítido conhecimento da
geografia da Babilônia no Livro dos Vigilantes, acredita-se na possibilidade de sua
origem na diáspora oriental135. O próprio Enoque é modelado, de alguma forma, pelo
sumério Enmudurank136, mostrando o contato entre literatura enoquita e mundo
babilônico. Sua cosmologia ajudou a pensar intermediários entre Deus e o homem,
como os presentes em I Enoque.
A apocalíptica tem também no mundo persa uma matriz, pois já se encontra a
periodização da história, a questão da ressurreição e as forças sobrenaturais do bem e do
mal137. No Zoroastrismo, que foi a religião da Pérsia desde o século VI a.C, também
131
COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls… p. 31.
132
CROSS, F. M. Canaanite Myth Hebrew Epic. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1973;
PAGE, Hugh Rowland. The Myth of Cosmic Rebellion. A Study of its Reflexes in Ugaritic and Biblical
Literature. Leiden, Brill, 1996.
133
Possivelmente este bloco mítico está por trás do texto de Is 14. Enquanto Ez 28 reflete o mito grego
de Faeton.
134
COHN, Norman. Cosmos, Caos e Mundo que Virá. As origens das crenças no apocalipse. São Paulo,
Companhia das Letras, 1995.
135
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination…p. 21.
136
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination…p. 21. Para mais informações sobre o assunto
VANDERKAM, James C. Enoch and the Grouwth. Cap 3.
137
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination…p. 25.
38
havia um mundo de seres causadores de mazelas que estavam do lado de Angra Mainyu.
Faziam várias coisas como, por exemplo, estimular a embriaguez e colocar veneno nas
plantas e animais (Cf. I Enoque 69,12).
Não é objetivo da pesquisa perpassar todos esses temas para analisar
profundamente a influência das religiões do mundo Antigo para o mundo bíblico138.
Contudo, basta saber que para nosso tema da origem e imagem do mal no mundo e dos
demônios, os imaginários cosmológicos babilônicos, persas e gregos deram contornos e
possibilidades de apropriação de idéia para o Judaísmo apocalíptico.
O mundo mitológico grego também foi importante para fórmulação das idéias de
I Enoque 6-11. Como diz Nickelsburg: “Nossa breve análise indica certa lembrança
entre a tradição de Semiaza e os mitos gregos, e podemos sugerir que nosso autor foi
influênciado por eles” 139. Não somente a tradição de Semiaza, mas a de Azazel,
encontram no mito de Prometeu assimilação imaginária. Em I Enoque 8, no texto
preservado em Syncellus, alinha paralelamente a combinação dos materiais tradicionais
de “Azazel” e “Semiaza” com o texto de Hesíodo140. O que ocorreu foi uma utilização
de Gn 6 e Lv 16 com instrumentação do mito grego de Prometeu141.
Por isso, somente neste mesmo locus imaginário do mundo Antigo pode ser
possível existir uma narrativa dos Vigilantes, e se fazer interpretar como foi feito em I
Enoque 15 e 19: “tomando muitas formas tem corrompido os homens e seduzem a
ofertar aos demônios como a deuses” (I Enoque 19,1). Outro texto que comunga com
essa mesma possibilidade, dentro da tradição de I Enoque está no Livro das Parábolas
(37-71), onde também relaciona a imagem demoníaca à narrativa dos vigilantes:
138
Para uma discussão sobre esses assuntos ver COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination. Cap. I;
COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls. Cap. III.
139
NICKELSBURG, George W. E. Apocalyptic and Myth… p.396
140
NICKELSBURG, George W. E. Apocalyptic and Myth… p.400.
141
Para uma explicação mais detalhada, ver: NICKELSBURG, George W. E. Apocalyptic and Myth… p
395-405. Para uma relação do mito dos vigilantes com Lv 16 e o Targum do pseudo-Jonatam, ver:
HANSON, P. D. Rebellion in Heven... p. 220-232.
39
No segundo bloco das parábolas, Enoque vê um vale profundo que ardia em
chamas (54,2) onde estavam os reis e poderosos. Neste momento da narrativa, ele
comtempla grilhões e pergunta para quem seria. Então o Anjo lhe responde:
142
SACCHI, P. Jewish Apocalyptic and its History… p. 228
143
DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento… p77.
144
COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination…p. 20.
145
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis... p. 73. Para mesma questão ver: SACCHI,
P. Jewish Apocalyptic and its History… p. 211-232.
40
homens, tem sua primeira menção no livro de Noé, que ele data em 500 a.C146. Na
nossa pesquisa constatamos que se existiu esse livro, está diluído ou dentro da tradição
de I Enoque, em especial nos cap. 6-11.
Assim, como percebido, a narrativa dos vigilantes, em suas releituras no Livro
dos Vigilantes e na obra de I Enoque serviu como canal para esse mundo imaginário das
hostes malignas. Desta forma, os três temas (impureza, ensinamentos impróprio e
violência) se relacionam com a narrativa dos Vigilantes e a imagem do demoníaco.
146
SACCHI, P. Jewish Apocalyptic and its History… p. 212.
147
Ela não se constrange em chamar de primitivos, pois na sua perspectiva “primitivo” não tem sentido
valorativo, mas metodológico. E assim afirma: “Em suma, uma visão primitiva de mundo dá para um
universo que é pessoal em vários sentidos diferentes. As forças físicas são consideradas como
entrelaçadas com as vidas das pessoas. As coisas não são completamente distintas das pessoas e as
pessoas não são completamente distintas de seu ambiente externo. O universo reage ao discurso e a
mímica. Discerne a ordem social e intervém para mantê-la”. Ver. DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo.
São Paulo, Perspectiva, 1966. p. 100-102.
41
Não há sujeira absoluta: ela existe aos olhos de quem a vê. Se
evitamos a sujeira não é por covardia, medo, nem receio ou
terror divino. Tampouco nossas idéias sobre doença explicam a
gama de nossos comportamentos no limpar ou evitar a sujeira. A
sujeira ofende a ordem. Eliminá-la não é um movimento
negativo, mas esforço positivo para organizar o ambiente. 148
Superando a idéia de sujeira no sentido bacteriano do séc. XIX, ela indica duas
condições: a) um conjunto de relações ordenadas, e b) uma contravenção desta ordem,
chegando a afirmar que “onde há sujeira, há sistema”149, sendo não um acontecimento
único e isolado.
Assim, Mary Douglas explica como ordenamos e dividimos os lugares. Segundo
ela, nossas impressões são esquematicamente determinadas desde o início,
selecionamos os estímulos que caem em nossos sentidos, os que nos interessam, e
nossos interesses são governados por uma tendência a padronizar. Por isso, num caos de
impressão, cada um constrói um mundo estável no qual objetos têm formas
reconhecidas, e permanência. Neste processo, novas coisas surgem, e são rejeitadas ou
mantidas no sistema de percepção para serem inseridas; e para isso a estrutura de
pressupostos precisa ser modificada. Assim, enquanto a aprendizagem continua, os
objetos recebem nomes. Então, Mary Douglas conclui: “seus nomes, então, afetam o
modo como são percebidos na próxima vez: uma vez rotulados, são mais rapidamente
enfiados nos seus lugares no futuro.”150
Desta maneira, ela pensa a questão da sujeira no nível – como ela mesma diz –
de “princípio organizatórios mais enérgicos”151:
Por isso, o sistema organizado cria uma ordem onde os lugares são
estabelecidos. Assim, no processo de imposição dessa ordem, seja na mente ou no
148
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p. 12.
149
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p. 50.
150
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p. 51.
151
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p. 16.
152
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p. 50.
42
mundo exterior, a sujeira (expandida à idéia de impuro por seu caráter simbólico) está
fora de lugar, como ameaça a boa ordem153.
Nós todos desenhamos linhas no próprio mundo relativo às coisas, pessoas,
lugares, atividades e tempo. Essas linhas dizem-nos o que e quem pertence quando e
onde, porque ajudam classificar e arranjar nosso mundo de acordo com alguns
princípios dominantes, que marcam por todo seu arranjamento estrutural e abstrato
valores do mundo social, do qual nós somos partes154. Assim, pureza se refere ao
sistema cultural e para a organização de princípios de um grupo. Por isso, Mary
Douglas nota que a idéia de pureza é uma abstrata maneira de lidar com os valores,
mapas e estruturas de um dado grupo155. A impureza seria exatamente essa
desorganização, ou mudança indevida de posição cósmica. Assim, é impuro quando
alguma coisa está fora de lugar ou quando viola o sistema de classificação no qual está
estabelecido/marcado. Como bem interpretou Jerome H. Neyrey, em seu artigo sobre
pureza em Marcos: “há um lugar para tudo, tudo tem seu lugar”156.
A essa idéia de pureza, a antropologa aproxima a imagem de integridade do ser:
“a santidade requer que os indivíduos se conformem à classe a qual pertencem. Em
santidade não pode haver confusão 157”. Por isso, nada de híbrido em todos os níveis
pode ser aceito passivamente, pois afeta a ordem e torna-se impuro. Por isso, Mary
Douglas pode compreender as listas de carnes impuras de Levítico como restrições à
comensalidade de animais membros imperfeitos de suas classes ou cuja própria classe
confunde o esquema geral do mundo158.
Independente da coerência das afirmações exegéticas de Mary Douglas a
respeito dos preceitos legais de Levítico, sua intuição à idéia de pureza como princípio
organizador e a ameaça a isso como poluição ou impureza, nos ajuda entender por que I
Enoque interpreta os vigilantes, os gigantes e seus espíritos como seres impuros e
poluidores. Ao afirmar – depois de extensos exemplos de sociedades primitivas – que
pessoa poluída está sempre no erro, pois desenvolveu alguma condição indevida, ou
simplesmente, cruzou alguma linha que não deveria ter sido cruzada, e este desvio
153
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p. 194.
154
MALINA, Bruce. The New Testament World: Insights from Cultural Anthropology. Atlanta, GA: John
Knox, 1981.
155
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p. 49.
156
NEYREY, Jerome H. The Idea of Purity in Mark’s Gospel. In: Semeia 35 (1986): 91-127. p. 92. .
157
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p.70.
158
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p.72.
43
desencadeia perigo para alguém159, ela abre-nos horizontes heurísticos para
entendermos a valoração de impuro e purificação pós-diluviana. O texto afirma que os
Vigilantes abandonaram seu posto no céu. As fronteiras estabelecidas por Deus foram
violadas e se misturou carne com espírito, ocasionando impureza/sujeira: “Tem ido até
as filhas dos homens (..) e com elas cometido impureza” (I Enoque 9,8). Em 15, 4 diz:
Logo depois de falar da imortalidade dos Vigilantes, o texto diz o motivo porque
não poderiam se misturar com as mulheres: “porque os seres espirituais têm o seu lugar
no céu” (15,7). Assim, o resultou saída do lugar destinado aos seres espirituais foi uma
grande mazela: junção sangue/carne-espírito. Numa posterior apropriação do mito, no
Testamento de Nafitali, temos a crítica aos Vigilantes que “subverteram a ordem da
natureza” (Test. de Naf. 3,4-5).
Por trás dessa relação híbrida está a desestabilização de um sistema que o
próprio texto deixa visível:
Mulheres Vigilantes
Espécie: Sangue/carne/mortal Espécie: espiritual
Fronteira: Mundo humano Fronteira: Celestial
Relação: humano (mortais, perecedores) Relação: eternidade
O texto mostra em seu imo simbólico uma imagem de rebelião, mas qual tipo de
rebelião? Uma transgressão das fronteiras carne-espírito, humano-celeste, mortal-
eternidade, como se houvesse uma linha demarcatória organizadora. É tão forte essa
imagem, que cada nome tem caráter de ordem cósmica com funções celestes, ao
descerem desorganizam o cosmos organizado por Deus. A própria imagem dos gigantes
159
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo... p. 139.
44
como possuidores de naturezas misturadas, carrega peso de impura, pois é resultado de
violação e tem caráter híbrido.
Os vigilantes são aprisionados nas profundezas do deserto, onde ficariam até
julgamento final (10, 4-6), exatamente onde se pensa como caótico ou desordenado. E
ainda, purificação futura [dilúvio] é a volta ao caos para o recomeço da organização.
A mesma imagem de impureza acaba sendo amalgamado ao mito da descida dos
anjos por meio daqueles que são frutos da relação desordenada: os gigantes. Esses
violam algumas leis relacionadas à comensalidade:
160
Segundo a mesma antropóloga inglesa, que analisa a pureza na Bíblia hebraica, até mesmo essas regras
são resultados de estruturas estabelecidas de local apropriado para cada ser de acordo com pré-estruturas.
161
WRIGHT, A. T. Evil Spirits in Second Temple Judaism… p.145.
45
essas duas proibições são violadas. A prática de comer sangue dos gigantes junta-se aos
ensinamentos de magia e feitiço dos Vigilantes, seus pais (I Enoque 8,2).
A questão de impureza é amalgamada à imagem dos anjos que descem. No
decorrer das utilizações da narrativa dos anjos em I Enoque, forma-se um grupo de
indícios de representações que rodeiam a questão do demoníaco, pois esses são
resultados de seres que se tornaram impuros, e seria difícil desvinculá-los de suas
origens. Em Jubileus será possível pensar em demônios poluídos/impuro, pois os
símbolos se juntam aproximando as camadas narrativas dentro de um mesmo
imaginário.
3.3.2.2. Ensinos impróprios: à imagética de impureza, encontramos no
desenvolvimento da narrativa dos Vigilantes a questão de seres possuidores de
ensinamentos ora perigosos ora para defesa. Reed critica, depois de analisar alguns
sumários dos pecados angelicais no Mito dos Vigilantes, a postura de alguns que tratam
secundariamente o tema dos ensinamentos proibidos162.
No Mito dos Vigilantes há pelo menos três sumários onde são apresentadas as
ações dos anjos consideradas perniciosas (7,1-6; 8, 1-4 e 9,6-10), nos quais temos pelo
menos em dois a centralidade do tema dos ensinamentos proibidos. A esse se agrupam o
tema da relação impura dos vigilantes e a violência posterior.
Vejamos o primeiro sumário 7,1-6:
162
REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism …p. 34.
46
corromperam os bons costumes (...). Semiaza ensinou
encantamentos e as porções de feitiço. Herman ensinou
feitiçaria e dissipação de encantamentos, mágica e outras
técnicas. Baraqel ensinou a leitura dos sinais dos relâmpagos.
Kokabel ensinou a leitura dos sinais das estrelas. Ziqel ensinou
a leitura dos sinais das estrelas cadentes. Arteqof ensinou os
sinais da terra. Shamsiel ensinou os sinais do sol. Sahriel
ensinou os sinais da lua. E todos eles começaram a revelar os
mistérios as suas esposas e seus filhos e os homens pereceram,
e o lamento chegou ao céu ( I Enoque 8,1-4).
163
NICKELSBURG, George W. E. Apocalyptic and Myth… p. 397-398.; NICKELSBURG, George W.
E. I Enoch... p. 195-196.
164
REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism… p.35-36.
47
seduziu Eva (69,6) . Ainda nas parábolas há outros ensinamentos que são dados pelos
anjos. Como, por exemplo, a escrita com tinta e papel (69,9).
Nos sumários já se percebe a relação entre ensinos - gigantes - violência. Num
mesmo campo imaginário, os pais dos gigantes, que possuem conhecimentos celestiais
equivocadamente transmitidos às mulheres ou a todos os homens, são relacionados ao
nascimento dos gigantes, e posteriormente os seus espíritos, ou seja a própria imagem
dos demônios, que por sua vez são fruto dessas revelações e estão inter-relacionados
pela linguagem mitológica. O ápice das imagens presentes na narrativa dos anjos é a
final violência dos gigantes.
3.3.2.3. Violência: o tema da impureza e dos Vigilantes como conhecedores de
mistérios acopla-se ao da violência. Os gigantes são figuras assustadoras por causa de
sua violência. Na narrativa mítica eles mataram seres humanos e comeram suas carnes,
e devoraram toda a comida da terra. Eram grandes, por isso tanta força e fome. Deus
até mesmo usa essa violência ao condená-los, pois pede a Gabriel para fazê-los se
matarem mutuamente (I Enoque 10,10).
A presença deles na terra gera muito sangue por causa das muitas mortes. A essa
imagem de violência, temos acoplada a imagem dos espíritos maus que saem dos seus
corpos. Segundo e leitura de Wright, utilizando o texto grego, esse são também espíritos
fortes165. E desencarnados ficam no mundo para atormentar os homens.
165
O texto Gregopan de I Enoque 15 lê os espíritos dos Gigantes como pneu,mata i`scura,. Cf. WRIGHT,
A. T. Evil Spirits in Second Temple Judaism… p. 141-160; WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits.
The Reception of Genesis 6.1-4 in Early Jewish Literature (Wissenschaftliche Untersuchungen zum
Neuen Testament, 2 Reihe - WUNT 198). Tübingen, Mohr Siebeck, 2005. p. 146.
48
O texto mostra que a mesma natureza dos gigantes enquanto corpos carnais está
na sua estrutura desencarnada. Os seres são livres e devastam a terra com muitas
desgraças. São causadores de desagradáveis situações. Eles possuem a natureza dos
seus pais: celeste e terrestre, e assim carregam a simbólica relação eternidade-
mortalidade. Segundo P. S. Alexandre o texto de I Enoque 15, 11-12, depois de analisar
a lista de ações dos espíritos dos gigantes, percebe a possibilidade de invasão ou
possessão desses espíritos sem corpos – segundo ele isso está presente até mesmo em
alguns textos de Qumran166.
Os temas são separados pedagogicamente na exposição feita, mas estão
interligados na narrativa mítica. Isso se percebe no próprio texto quando, ao falar dos
espíritos dos gigantes, afirma que os Santos Vigilantes foram a origem de sua criação.
Por isso, já em Jubileus temos a imagem dos “demônios impuros”, e posteriormente a
confusão dos próprios espíritos dos gigantes (demônios) com os anjos que caíram,
sempre ligado a idéia de força, impureza, violência e possessão. De acordo com I
Enoque 54, Azazel e sua tropa estão no mundo, e não presos como nas outras narrativas.
Como os próprios espíritos dos gigantes, vivem sobre a terra. Paolo Sacchi percebe que
aqui não há mais a distinção entre os demônios (espíritos livres dos corpos dos gigantes)
e os anjos caídos167. Temos, assim, alguns exemplos onde as imagens míticas são
fundidas e as distinções não são percebidas mais.
Com o tempo, no mundo imaginário judaico onde dialoga com a idéia do
demoníaco, em especial no mundo da literatura apocalíptica, temos imagens e
resquícios desse desenvolvimento da narrativa dos Vigilantes. Assim, impureza,
conhecimento de revelações celestes e violência rodeiam a imagem do demoníaco, pois
é fruto desse mundo mítico originário. Por isso, a narrativa mostra uma progressão (ou
regressão) de seres angelicais a origem de demônios.
A origem e existência do demoníaco, no imaginário presente no Mito dos
Vigilantes e nas suas primeiras apropriações, pintam um quadro de características que
fazem parte do imaginário dos demônios ou espíritos maus:
1. são desencarnados;
2. geram problemas aos homens ;
166
ALEXANDRE, P. S. The Demonology of the Dead Sea Scroll. In: FLINT, P. W. and VANDERKAM,
J. C. The Dead Sea Scrolls after Fifty Years: a Comprehensive Assessment. Vol. 2. Leiden, Brill, 1999. p.
331-353.
167
SACCHI, P. Jewish Apocalyptic and its History… p.228.
49
3. são possuidores de uma natureza impura (origem e condição);
4. são espíritos;
5. são responsáveis por vários males;
6. são grande e fortes;
7. violentos;
8. estão relacionados a práticas de ensinos ocultos e misteriosos;
9. vagam sobre a terra;
10. são muitos.
4. Resumo e conclusão
50
violência. Dessa relação também surgem os gigantes, que são seres híbridos. Com a
morte dos gigantes seus espíritos saem do corpo e são chamados de seres malignos ou
demônios. Por isso, encontramos no mito dos vigilantes algumas características
relacionadas ao mundo dos demônios e sua origem. Segundo os autores que tratamos,
temos aqui o início na tradição judaica da invenção do demoníaco, que canalizou do
mundo antigo o imaginário das forças malignas. Situado num locus Religiosus persa e
grego, que se percebe desde o babilônico, temos o Mito dos Vigilantes servindo
material simbólico para o mundo dos demônios que organizará a teologia judaica e
cristã.
Basta-nos agora observar as apropriações do mito na literatura pseudepígrafa e
apócrifa judaica do segundo templo e as suas imagens do demoníaco, desde seu mundo
dualista até as características demonológicas, para percebermos se há resquícios do Mito
dos Vigilantes.
51
CAPÍTULO II:
52
1. O Judaísmo Enoquita e a influência do Mito dos Vigilantes
168
BOCCACCINI, Gabriele. Introduction: From the Enoch Literature to Enochic Judaism. In:
_________. Enoch And Qumran Origins: New Light On A Forgotten Connection. Grand Rapids, William
B. Eerdmans, 2005. p.4.
169
SACCHI, P. Jewish Apocalyptic and its History… cap. III
170
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... passim.
171
BOCCACCINI, Gabriele. Introduction... p. 5.
172
COLLINS, J.J. Seers, Sibyls and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, JSJSup 54. Leiden, Brill, 1997.
p. 37.
173
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Qumranica Minora I: Qumran Origins and Apocalypticism
(Studies on the Texts of the Desert of Judah, 63). Leiden-Boston, Brill, 2007. p. 4. Essa obra de 2007
possui dois textos do García Martínez (Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls e Qumran Origins and
Early History: A Groningen Hypothesis), que me foram disponibilizados pelo próprio autor via e-mail.
Por isso, utilizarei a bibliografia do livro impresso e a numeração do texto enviado. Desde já agradeço a
bondade do professor García Martínez por conceder um texto particular.
53
tradição ideológica, chamada de escola enoquita. Mesmo com as contradições, os textos
fazem parte de um mesmo fundo tradicional, ou melhor, de uma mesma escola174.
Caminhando nessa perspectiva, Boccaccine parte da hipótese de Groningen para origem
de Qumran, e faz uma convincente apresentação da existência de um movimento escriba
sacerdotal conhecido como judaísmo enóquico ou enoquíta, que teve grande influência
no mundo judaico do segundo templo e nos Cristianismos.
Esse grupo ou comunidade acreditava que ao possuir a divina sabedoria contida
nos textos de I Enoque, tornavam seus membros uma comunidade escatológica de
escolhidos, que esperavam o julgamento e a consumação do fim dos tempos. Na
verdade, não podemos saber como se chamavam ou se autodenominavam, mas
certamente tinham Enoque como figura central175.
Segundo Boccaccini, esses textos de Enoque foram escritos por membros do
sacerdócio de Jerusalém, mas um grupo anti-zadoquita. Uma espécie de movimento
sacerdotal dissidente, ativo em Israel no fim do período persa e início do helênico (IV
séc.). Contudo, Boccaccini deixa claro que o enoquismo era um grupo de oposição entre
a elite do templo, e não um simples grupo de separatistas. No entanto, o centro do
judaísmo enoquita não era a Torah nem o Templo176. Os dois grupos (zadoquitas e
enoquitas) interpretavam Ezequiel de formas diferentes177 e tinham idéias
completamente contrastantes sobre a origem do Mal. Até cerca de 200 a.C, enoquismo
e zadoquismo eram duas distintas e paralelas linhas de pensamentos no judaísmo178.
A literatura Zadoquita seriam os textos bíblicos, com exceção do final de Esdras
e Daniel, e os apócrifos Epístola de Jeremias, Tobias e Siracida. Essa literatura é um
grupo de tradições antigas produzidas no judaísmo, mas que durante o período persa e
helênico foram coletadas, editadas e transmitidas pelos sacerdotes de Jerusalém da casa
de Zadoque179.
Boccaccini acaba sendo polêmico, pois afirma que este enoquismo judaico é o
moderno nome dado para os conhecidos essênios, dos quais a comunidade de Qumran
saiu, como uma radical, dissidente e marginal filha. Uma parte do movimento
enoquico/essênio se separou seguindo o Mestre da Justiça. Para o autor, o primeiro
174
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Qumranica Minora I… p. 5.
175
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis...p 161- 185.
176
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond The Essene Hypothesis... p. 78.
177
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond The Essene Hypothesis... p. 78.
178
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis...p.76.
179
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis... p. 68.
54
documento que registra isso é “Documento de Damasco”180. O CD distingue-se dos
outros textos enoquitas por sua idéia de eleição. Para o Documento de Damasco, os
seguidores do Mestre da Justiça são os eleitos entre os eleitos, o verdadeiro Israel, a
verdadeira casa de Judá. Por isso, Boccaccini conclui que os qumranitas não são
zadoquitas, mas enoquitas. Subsequentemente, o enoquico/essênio judaísmo rejeitou
Qumran181. Assim, as raízes do essenismo é o movimento enoquita, e os qumranitas
fazem parte de uma facção dos essênios. Assim, segundo Boccaccini o judaísmo
enoquita está mais próximo ao movimento de Jesus. A hipótese essenia foi
esquematizada da seguinte maneira182:
SamaritanismoJudaísmo
Moviment. de
Jesus Cristianismo
Judaísmo Qumrânico
180
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis... p.119.
181
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis... p. 16.
182
Esquema retirado da obra de Boccaccini. (Beyond the Essene Hypothesis...p xxii).
183
A hipótese de Groningen diz ser os essênios um grupo de origem apocalíptica presente na palestina
antes da crise antioquiana, isso marcaria sua origem do Séc. III ao inicio do II Séc. Deste grupo maior
saiu o grupo que formou a comunidade de Mar Morto, liderado pelo mestre da justiça. Ver: GARCÍA
MARTÍNEZ, Florentino. Qumranica Minora I…cap. I (Qumran Origins and Early History: A Groningen
55
A tensão contra sua proposta é por causa da afirmação de que Qumran era
enoquita, e não zadoquita. Boccaccini apresentou sua hipótese – fruto da análise da
idéia que já circulava por algum tempo: “a ligação entre Enoquismo e textos de
Qumran”184 – pela primeira vez na VI Conferencia de Estudos do Novo Testamento,
organizada pela Associação Bíblica Italiana, em 1995. Essa conferência foi revisada e
publicada em 1997 na RSR 7 (Recherche de science religieuse)185. Em 1998 ele
publicou o livro que apresentaria suas hipóteses de um judaísmo Enoquita - Essenismo -
Qumran186. Suas hipóteses foram tão impactantes, que geraram duas reuniões do Enoch
Seminar (2001 e 2003) na Itália, onde suas conclusões foram discutidas, resultando na
publicação dos papers em 2005, na forma de livro 187.
A grande crítica a sua hipótese se resume em que, se o judaísmo enoquita é anti-
zadoquita, e se há ligação entre Qumran e Enoque, como pode os qumranitas se tratarem
como “filhos de Zadoque”. C. Martone chega perceber um grande número de elementos
zadoquitas em Qumran188. Por isso a primeira conclusão: os qumranitas seriam
membros da família de Zadoque e não do enoquita/essenismo. A essa crítica,
Boccaccini dá pelo menos quatro contra-repostas189:
1) As antigas fontes acreditam que os descendentes do sumo sacerdote Zadoquita
fugiram não para Qumran, mas para o Egito, onde construíram um templo rival
na Heliopoles;
2) Há mais material de textos enoquicos em Qumran do que zadoquita, e mais
referencias a Enoque do que a Zadoque. Sendo eles zadoquitas, por que
preservariam tantos textos não-zadoquitas?
3) A teologia enoquica estava presente na de Qumran. Se os qumranitas eram
zadoquitas, por que dividiriam a idéia enoquita de que o templo era contaminado
56
desde sua origem e a não legitimidade do sacerdócio? Sendo eles zadoquitas
deveriam militar pela pureza do templo antes da chegada dos macabeus.
4) E, ao mesmo tempo em que se denominam “filhos de zadoque” desprezam todos
os feitos zadoquitas, e preservam com grande estima a literatura de seus
inimigos enoquitas. Por isso, ele defende a expressão “filhos de zadoque” como
algo tipológico, seguindo a hipótese de 1987 de Philip Davies, e não como uma
prova de relação genealógica.
C. Martone, diante desse impasse, faz uma espécie de síntese com Sacchi-García
Martínez-Boccaccine ao analisar os textos de 1QS (5, 1-4), 4Q256 e 4Q258. . Seguindo
algumas pesquisas, ele afirma que 4QS pertence ao período mais antigo da história da
comunidade, quando ainda não havia referência aos filhos de Zadoque (4Q256 5;
4Q258 1). Em algum momento, por causa da morte de Onias III, os elementos
zadoquitas entraram nessa comunidade. Esses zadoquitas qumranicos, longe de mudar
radicalmente a enoquica/essenica tradição, assumiu-a em seu âmbito escatológico, pois
ao serem removidos da cena histórica somente elementos escatológicos podem oferecer
uma última esperança para ver a legitimidade do restabelecimento do sacerdócio. Esta
mudança do sacerdote zadoquita de um histórico para um escatológico nível, está
apontado no Documento de Damasco 3: 12 – 4:3. Assim, C. Martone conclui que o
novo estágio é representado pela leitura de 1QS190.
Essa proposta leva em consideração a pluralidade de tradições na comunidade,
caso realmente tenha havido uma comunidade em Khirbet Qumran191. E ainda encaixa-
se bem na posição de García Martínez na questão de um desenvolvimento ideológico
refletido nos documentos dessa suposta comunidade. O mais importante dessa discussão
sobre o movimento enoquita, em relação a nossa pesquisa, gira na hipótese de que
muito do imaginário religioso qumranita dialoga com o enoquismo. Por isso, a
apocalíptica em Qumran dialoga com a tradição de Enoque, e tem as seguintes idéias192:
1) origem do mal, 2) periodização da história e expectativa do fim, 3) a comunhão com
o mundo celeste e 4) uma visão da guerra escatológica.
190
MARTONE, C. Beyond Beyond the Essene Hypothesis… p. 363- 365.
191
Outras hipóteses são propostas, as quais dizem ser Qumran uma fortaleza, uma vila ou um centro de
passagem. Para idéia de uma fortaleza, ver: GOLP, Norman. Who Wrote the Dead Sea Scrolls? New
York, Secribner, 1995. Segundo Golp, os manuscritos de Qumran pertenciam a uma biblioteca de
Jerusalém ante do cerco em 68-70 d.C. Para a hipótese de que Qumran era um lugar de parada na rota
comercial, ver: CROWN, A. D and CANSDALE, L. Qumran: Was it an Essene Settlement? In: Biblical
Archaeology Review 20/5 (1994): 24-35. p. 73-78.
192
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Qumranica Minora I… p. 1.
57
Boccacini também traça as idéias presente na religiosidade de Qumran, que
podem ser resumidas em: 1) dualismo cósmico e antropológico, onde o mundo inteiro é
dividido entre duas forças, uma do grupo dos maus espíritos, liderada por figuras que
podem variar (Belial, Melki-resha) e outro grupo do bem, liderado por figuras como
Melquisedec ou Miguel. Como veremos, para Qumran há também no ser humano duas
forças, as quais militam dentro dele por suas escolhas; essas foram colocadas pelo
próprio Deus; 2) Neste sentido, há uma predestinação divina, pois o homem já nasce
com os dois espíritos e Deus determina a quantidade de espíritos maus e bons em cada
ser humano, determinando sua tendência; 3) Deus é visto como dono da história,
ofuscando a liberdade humana e 4) Há também uma identificação da impureza com o
mal e pecado193.
Neste sentido a relação do mito dos anjos, que se tornou central na tradição de
Enoque acaba perpassando muitos textos qumranitas, e não somente estes, mas de todo
o movimento essênico que está presente na palestina e fora dela. Assim, em Qumran
temos a genuína representação de uma continuidade com a visão de mundo de antigos
apocalipses, em especial o de I Enoque, adaptando novos discursos de maneira
própria194. Por isso, García Martínez afirma:
193
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond The Essene Hypothesis... p. 61-62. A esses ainda é incluído o
exclusivismo soteriológico de Qumran.
194
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Qumranica Minora I… p.29.
195
Aqui sectário são os textos que supostamente foram escritos na comunidade em Qumran, enquanto os
outros pertenciam ao grupo essênico maior.Ver: BOCCACCINI, Gabriele. Beyond The Essene
Hypothesis...p. 58. A divisão entre textos sectários, textos com conteúdo sectário e não sectário, para o
autor, não leva em consideração seu conteúdo e nem sua cronologia. Então ele é levado a acreditar que a
biblioteca de Qumran desenvolve-se de não sectária para sectária. Em outro momento, Boccaccini gasta
algumas páginas para caracterizar o antigo enoquismo, que pode ser percebido entre os heterogênios “não
sectários”. Ver também a discussão sobre o assunto, com algumas bibliografias em: GARCÍA
MARTINEZ, Florentino. Qumranica Minora I…p. 6-11.
58
Nesta perspectiva, há possibilidade de caminharmos para os textos da tradição
judaica do segundo templo, em especial os apócrifos e pseudepígrafos e os vinculados
aos Manuscritos do Mar Morto (MMM), para percerbemos indícios literários e rastros
do imaginário da tradição de Enoque, em especial do Mito dos Vigilantes, e a origem e
presença do mal.
196
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário... passim.
59
judaica, e depois para os indícios que marcam a influência imagética dos temas do mal,
em especial sua personificação, relacionados ao desenvolvimento do Mito dos
Vigilantes nos mesmos textos judaicos e nos MMM.
Esse imaginário, tanto nas relações com os textos judaicos como para os
evangelhos, será visto dentro da proposta da circularidade cultural. Como demonstrou
Jacqueline Hermann, esse conceito é o desenvolvimento da perspectiva metodológica de
Carlo Ginzburg, de uma tendência à idéia de “mentalidade vitoriosa”, presente nos seus
primeiros trabalhos, para uma visão mais circular197. Essa tem sua origem nas obras de
Mikhail Bakhtin, onde as culturas são tratadas em caráter recíproco de influência.
Assim, as culturas populares não são cópias mal feitas das culturas dominantes. Como
mostra a metáfora, utilizada por Jonas Machado, dos dois carros que se chocam: ambos
serão deformados. “Ocorre, de fato, um choque na relação de culturas e cada uma
continua seu percurso, mas agora deformada, ainda que geralmente de modo
desproporcional”198.
Desta forma, percebe-se a existencia de uma continuidade de símbolos atarvés
dos resquícios míticos na religiosidade popular. Isso é possível por causa na relação de
troca entre as culturas. Em especial, com o contato com outras culturas da antiguidade,
o Mito dos Vigilantes recebeu contornos demoníacos em sua narrativa. Esta, por sua
vez, gerou imagens no imaginário religioso do segundo templo.
197
Jacquelie Hermann diz o seguinte: “Durante o trabalho sobre os benandanti, Ginzburg encontrou o
processo de Menocchio e, dez anos depois, era publicada a história do moleiro friulano. Entre os dois
livros, no entanto, um longo percurso teórico-metodológico alterou substancialmente as idéias de
Ginzburg acerca das relações entre as classes subalternas e dominantes, ou, para falarmos dos processos
inquisitoriais estudados, entre inquisidores e camponeses populares acusados de feitiçaria. Se no caso dos
benandanti a assimilação das acusações parecia refletir sem muita dificuldade a dominação de uma
“mentalidade” vitoriosa, no caso de Menocchio as certezas deram lugar a uma flexibilidade maior e à
necessidade de refórmulações nas peças de um delicado quebra-cabeça”. HERMANN, Jacqueline. A
História de Carlo Ginzburg. Rio de Janeiro, UFRJ, 2004. Acessado em:
<<http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0013.htm>>.
198
MACAHADO, Jonas. Cultura Popular e Religião: Subsídios para a Leitura de Textos Bíblicos a Partir
da História Cultural de Carlo Ginzburg. In: Oracula, 1.1, 2005.
60
2.1.1. Jubileus: Comecemos com o livro dos Jubileus. Considerado como
pertencendo ao Séc. II a.C199, foi o primeiro, depois de I Enoque 12-16, a reler o Mito
dos Vigilantes. Por isso, é muito certo entre os estudiosos acreditar na dependência de
Jubileus a I Enoque, especialmente ao Livro dos Vigilantes, Livro Astronômico e Livro
dos Sonhos, que são considerados anteriores a ele200. Em Jub 4,17 depois de falar do
nascimento de Enoque, informa sobre o livro “dos signos do céu” escrito por ele.
De fato, com Jub 4,17-26 há certeza de que o autor de Jubileus conhecia muito
sobre a tradição de Enoque. Contudo, J. Van Ruiten opina que o primeiro não é
simplesmente dependente do segundo, pois a redação dos dois é diferente. O problema
encontrado pelo autor é o fato de Vanderkam afirmar uma dependência de quase todo
texto de I Enoque201. Contudo, Ruiten afirma que tanto Jubileus e o Livro dos Sonhos
são dependentes de uma mesma tradição: O Livro dos Vigilantes202. Desta forma, ele
pode questionar a importância de I Enoque num todo para Jubileus, mas não toca na
influência do Livro dos Vigilantes.
Mesmo a íntima relação com as idéias enoquitas, este texto tenta identificar
Moisés como seu autor, e sem dúvida a bíblica história de Gênesis e Êxodos, cobrindo
da criação ao Sinai, formam a espinha dorsal da sua narrativa: a narrativa começa no
Monte Sinai e termina no Monte Sinai (50,20). Ele pode ser tratado como um targum,
comentário ou reescrito bíblico, em especial de textos de Gênesis e Êxodo203. Contudo,
Ruiten acredita que Jubileus – juntamente com Gênesis Apócrifo e Liber Antiquitatum
Biblicarum de Pseudo-Filon – é melhor classificado como “reescrito bíblico”. Esse
termo significa um tipo de apropriação das narrativas bíblicas. Contudo, os textos são
parafraseados, expandidos e, implicitamente, comentados204. Por isso, a reposta para
junção de duas tradições tão antagônicas (enoquíta e zadoquíta) seja o gênero literário.
199
Para uma discussão sobre a data do livro e língua original, ver: VANDERKAM, James. C. Jubilees,
Book of. In: Anchor Bible Dictionary (1992) 3:1039-42; e também: WINTERMUT. O.S. Jubilees. A New
Translation and Introduction. In: CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha…
Vol. 2. p 43-45.
200
WINTERMUT. O.S. Jubilees… p. 45. Outro autor que mostrou muito bem como o texto de Jubileu é
muito claramente dependente de I Enoque é J. C. Vanderkam. Ver: VANDERKAM, James. C. Enoch
and the Growth of an Apocalyptic… p. 179-188; Id. Enoch, a Man for All Generations. Columbia,
University of South Carolina Press, 1995. p. 110-121.
201
RUITEN, Jacques Van. A Literary Dependency of Jubilees on 1 Enoch? In: BOCCACCINI, Gabriele.
Enoch and Qumran Origins… p. 93
202
RUITEN, Jacques Van. A Literary Dependency of Jubilees… p. 93.
203
KVANVIG, H. S. Jubilees — Between Enoch and Moses. A Narrative Reading. In: Journal for the
Study of Judaism 25, 3 (2004): 243-261. p. 243.
204
RUITEN, Jacques Van. Primaeval History Interpreted. The Rewriting of Genesis I-II in the Book of
Jubilees. Leiden.Boston.Köln, Brill, 2000. p. 3; NICKELSBURG, G. W. E. The Bible Rewrintten and
Expanded. In: STONE, M.E. (ed.). Jewish Writing of the Second Templo Period. Apocrypha,
61
O que Jubileus faz é uma mediação entre as tradições mosaica e enóquica,
usando Moisés para enfatizar a importância de Enoque205. Por isso, Jubileus é uma
primeira demonstração da mistura das idéias zadoquitas e enoquitas206. No mesmo
tempo que ele se utiliza do Livro Astronômico da existência das tábuas celestes (I
Enoque 81,1-10), por exemplo, ele faz Moisés ser portador de revelação (Jub 1,19) e
escritor de instruções divinas (Jub 1,26). Ele faz de Moisés um revelador como Enoque,
e os anjos também apresentam a Moisés as tábuas da divisão dos anos, desde o tempo
da criação até a nova criação (Jub 1,29)207.
Neste sentido vemos a grande importância dada ao mito dos Vigilantes, em sua
narrativa a história dos Vigilantes não é somente o paradigma de pecado, essa é também
a raiz do mal que assombra o homem. Em Jubileus os maus atos dos Vigilantes e dos
Gigantes continuam através dos atos dos maus espíritos (7,27; cf. 10,1-14; 11,4-5;
17,15-18,2; 19,28; 48,2.9.12-18; 49,2)208. Contudo isso será tratado com mais tempo na
continuidade do trabalho, aqui basta-nos saber o quanto o mito foi importante para essa
obra judaica.
Das várias reminiscências de I Enoque em Jubileus (ex: 4,15-26; 5,1-10; 7,20-
39; 10, 11-17), citaremos duas que retratam bem a dependência direta ao Mito dos
Vigilantes:
Pseudepigrapha, Qumran Sectarian Writing, Philo, Josephus. Philadelphia (CRI 2/2), 1984. p. 89-156.
Recentemente Nickelsburg revisou os pressupostos da maneira como usou esse termo, e admitiu ser um
pouco anacrônico, pois “não podemos ter certeza se já era ‘Bíblia’ o que foi reescrito no tempo de sua
reescrição”. NICKELSBURG, G. W. E. Ancient Judaism and Christian Origins: Diversity, Continuity,
and Transformation. Minneapolis, fortress, 2003. p.12.
205
KVANVIG, H. S. Jubilees… p. 243.
206
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond The Essene Hypothesis... p. 88. Boccaccini caracteriza essa fusão de
tradições como “ingênua”. Eu leria de outra forma, à luz da capacidade imagética de juntar símbolos e
criar novas possibilidades de relações muito mais fluidas de tradições e esquemas ideológicos.
207
KVANVIG, H. S. Jubilees… p. 244.
208
KVANVIG, H. S. Jubilees… p. 250.
62
Percebemos na primeira citação a releitura de Gêneses à luz do Mito dos
Vigilantes; e na segunda, a citação na ordem como está no Livro dos Vigilantes:
fornicação-Gigantes-violência. Para essa primeira aproximação podemos perceber a
presença das imagens da narrativa dos Vigilantes nesse livro tão importante para os
MMM. De fato, como percebeu Vanderkam, o autor conhecia a história do Livro dos
Vigilantes, mas inseriu novos elementos em sua própria proposta209.
2.1.2. Testamento dos Doze Patriarcas: O Testamento dos Doze Patriarcas
contém doze seções, cada qual reproduz em sua narrativa o quadro das últimas palavras
e testamentos dos doze filhos de Jacó210, tendo como modelo o capitulo 49 de Gênesis,
onde se narra as últimas palavras de Jacó. A questão da origem cristã ou judaica
desse(s) texto(s) é alvo de muitas discussões. Vanderkam 211 e H.C Kee212, acreditam
pertencer ao segundo século os extratos mais antigos, com interpolações posteriores de
caráter cristão – em especial joaninas213.
Em seis testamentos, dos doze, temos citações que pressupõem a existência do
livro de I Enoque (Test. de Sim. 5,4; Test. de Levi 10,5; 14,1; Test. de Dan 5,6; Test. de
Naf. 3,4-5; 4,1; Test. de Ben. 9,1; 10,6 e Test. de Rub. 5, 4-6). Dessas citações, duas
fazem referência ao Mito dos Vigilantes (Test. de Rub. 5, 4-6 e Test. de Naf. 3, 4-5):
209
VANDERKAM, James C. The Angel Story in the Book of Jubilees. In: CHAZON, Esther G. and
STONE, Michael. Pseudepigraphic Perspectives: the Apocrypha and Pseudepigrapha in Light of the
Dead Sea Scrolls. Studies on the texts of the desert of Judah XXXI. Leiden. Boston. Köln, Brill, 1999. p.
151-170.
210
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p. 143.
211
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p.144-145
212
KEE, H. C. Testaments of the Twelve Patriarchs. A New Translation and Introduction. In:
CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha… p. 775
213
KEE, H. C. Testaments of the Twelve Patriarchs… p. 777. Segundo Vanderkam, os achados de
Qumran, em especial os fragmentos aramaicos do Testamento de Levi, e os textos em hebraico do
Testamento de Naftalí, servem para datação dos Testamentos dos Doze Patriarcas no segundo século a.C.
Para uma exposição e reconstrução do Testamente Aramaico de Levi (1Q21;4Q213,4Q14) ver:
KLUGLER, Roberto A. From Patriarch to Priest. The Levi-Priestly Tradition from Aramaic Levi to
Testament of Levi (SBL Early Judaism and Its Literature, 09). Georgia, Scholars Press, 1996.
63
mostravam-se. E as mulheres em seus pensamentos conceberam
desejos pelas formas visíveis deles, e assim deram a luz
gigantes; pois os Vigilantes apareciam-lhes como tendo a
estatura do céu (Test. Rub. 5, 4-6).
Mas vós, meus filhos, não sejam como falarei: “no firmamento,
na terra, no mar e em todos os produtos de sua técnica discerne
o Senhor que faz todas as coisas. De forma, que não sejam como
Sodoma, que perverteu a ordem da natureza. Da mesma forma,
os Vigilantes outrora subverteram a ordem da natureza; o
Senhor acentuou e penalizou com o dilúvio. Por essa culpa o
Senhor ordenou que a terra ficasse sem habitante ou fruto (Test.
de Naf. 3, 4-5)
214
Ver essa discussão no capítulo I (em 3.3.2.2)
215
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p. 147.
216
COLLINS, J.J. Sibylline Oracles. A New Translation and Introduction. In: CHARLESWORTH, James
H. The Old Testament Pseudepigrapha… p. 317.
217
COLLINS, J.J. Sibylline Oracles... p. 317.
218
Para uma introdução para cada livro ver: COLLINS, J. J. Sibylline Oracles... p.329-472.
64
chega a segunda geração, os Vigilantes aparecem. De acordo com o texto, Deus forma a
segunda geração “dos mais justos homens restantes” e nessa entra a citação dos
Vigilantes:
65
classificado como pap7QEn219, que contém em grego os textos de I Enoque 103,3-8, 12;
98,11 ou 105,1 e 103,15. Desta forma, a perspectiva de uma influência da tradição de
enoque em Qumran aumenta, pois não falamos mais de onze testemunhas textuais de I
Enoque em Qumran, mas doze (11 fragmentos em aramaico na caverna 4 e 1 em grego
na caverna 7). Por isso, temos a prova da presença também da tradição grega de Enoque
e, talvez, de um corpo de textos gregos enoquitas na comunidade do Mar Morto.
Além desse vasto material enoquita em Qumram, encontramos as citações
diretas ao Mito dos Vigilantes.
2.1.4.1. O Documento de Damasco: O CD é de grande importância para a
compreensão da história de Qumran. Segundo Boccaccini, ele representa os momentos
pré-sectário e sectário da comunidade. Segundo o pesquisador italiano, temos neste
texto o estágio imediatamente precedente à vida sectária em Qumran. Ou seja, um
documento que serve de ligação entre o grupo maior essenico/enoquita e os sectários de
Qumran220. O Documento de Damasco, além de considerar a autoridade do livro
Jubileus (CD 16,3)221, faz uma citação direta ao Mito dos Vigilantes. O CD cita a
história dos Vigilantes no curso da admoestação para andar nos perfeitos caminhos do
Senhor, servindo-se dessa história como um exemplo negativo:
219
FLINT, P. W. The Greek Fragments of Enoch from Qumran Cave 7. In: BOCCACCINI, G. Beyond
Enoch And Qumran Origins… p. 224-233.
220
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond The Essene Hypothesis... p. 128.
221
COLLINS, J.J. Seers, Sibyls… p. 291.
66
e seus enormes filhos tornando-se um elemento de persuasão moral. Segundo
Vanderkam, esse seria o propósito da versão dessa história no antigo folheto
enoquita222. Por ser um texto com muitas cópias em Qumran, podemos perceber o
quanto o mito foi importante.
2.1.4.2. Período da Criação (4Q180-4Q181): Outro texto que temos uma citação
do mito de I Enoque 6-11 e trata com o tema dos Vigilantes é 4Q180, como também
4Q181. O primeiro inicia-se com o “Pesher concernente aos períodos feitos por Deus”
(Frag. I. 1), os quais Deus estabeleceu. E tudo foi escrito em tábuas celestes (Frag. I. 3).
Logo em seguida menciona a geração de Noé, Sem e Abraão. Neste contexto o mito é
citado:
Interpretação (rfp) sobre Azazel (lazzc) e os Anjos que [foram às
filhas dos homens] [e] geraram delas gigantes. E sobre Azazel
[que os extraviou no erro] [para amar] a iniqüidade e para fazê-
los herdar a maldade todos os seus pe[ríodos, para destruição]
[pelo zelo] dos juízos e o juízo do conselho de [...]. (4Q180
Frag. 1, 1-10)223.
O uso da forma Pesher (rfp) para interpretar o mito enoquita dos anjos caídos
pressupõe certa autoridade do livro dos Vigilantes na comunidade de Qumran224. A
forma como está escrito o termo Azazel (Asael) no fragmento pode demonstrar a
influência da expressão de Lv 16225.
4Q181 faz alusão ao Mito e coloca juntamente com a citação da geração de
Abraão: “[a Abraão até que ele gerou Isaque; [as dez gerações. Azazel e os anjos que
foram] [às filhas de] homem e geraram delas gigan[tes...]” (4Q181 Frag. 2, 1).
2.1.4.3. Gênesis Apócrifo (1QapGn): Os pergaminhos desse texto chegaram até
nós em péssimas condições, durante décadas, esporadicamente, algumas letras foram
decifradas através de avançadas técnicas fotográficas. Contudo a maioria da composição
é irrecuperável226. O texto em aramaico, além de recontar as histórias de Gênesis, ele
menciona o episódio dos Vigilantes conectado ao nascimento de Noé, que por ser uma
criança muito especial, seu pai Lameq suspeitou não ser seu filho, mas dos Vigilantes.:
222
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p.122.
223
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino e TIGCHELAAR, Eibert J. C. The Dead Sea Scrolls Study Edition.
Vol. 1. Leiden/Boston/Kön/Grand Rapis/ Cambridge, Brill/Eerdmanns, 2000.
224
REED, Annette Yoshiko. Fallen Angels and the History of Judaism …p.98.
225
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p. 123.
226
VANDERKAM, James C. The Dead Sea Scrolls Today. Grand Rapids, Eerdmans, 1994.
67
Então pensei em meu coração que a concepção era obra dos
Vigilantes, e a gravidez dos Santos, e pertencia aos Gigan[tes] e
meu coração se transformou em meu interior por causa desta
criança. Vacat. (1QapGn Col. II, 1-2)
227
NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch…p. 172.
228
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man...p. 125. Logo na década de setenta na edição dos fragmentos
da caverna 4, 4Q203 já era identificado como o texto base que serviu a Mani, que tinha como título, em
Medo-Persa, Kawân “Os Gigantes”. Ver: GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumran and Apocalyptic…
p. 98.
229
Para uma proposta de reconstrução do Livro dos Gigantes ver: STUCKENBRUCK, L. The
Sequencing of Fragments Belonging to the Qumran Book of Giants: an Inquiry Into the Structure and
Purpose of an Early Jewish Composition. In: Journal for the Study of the Pseudepigrapha 16 (1997): 3-
24.
230
REED, Annette Yoshiko. Fallen Angels and the History of Judaism …p.100.
68
Baruc) foi redigido depois da queda do templo (70 d.C)231 na palestina232. Por mais que
J. Collins afirme que 2 Baruc ignora a origem do mal descrita pelo Mito dos Vigilantes,
admite a presença na obra de um sumário da narrativa dos anjos caídos233, confirmando
ainda aqui a importância do mito dos anjos que coabitam com mulheres. A citação está
no bloco 53,1-74,4 onde ele tem a visão de uma nuvem de onde águas claras e escuras,
de maneira alternada, são derramadas. O mito aparece especificamente no capitulo 56:
O texto menciona a liberdade dos anjos, detalhe que não está diretamente
exposto, mas pode ser um eco do juramento dos anjos no monte (1 Enoque 6), pois
nesse episódio há um quadro de escolha e liberdade235. Mesmo não tendo um papel
essencial no texto de 2 Baruc236, podemos perceber a presença do imaginário do mito de
anjos possuidores de mulheres.
2.1.6. 2 Enoque: Também conhecido como Enoque Eslavo ou livro dos
Segredos de Enoque, é um pseudepígrado judaico, que narra o rapto de Enoque para o
céu, onde entre outras coisas, a ele é dado conhecer os segredos da criação, os
fundamento dos astros, a medida do tempo, a origem dos fenômenos meteriológicos, o
futuro dos homens depois da morte, o papel dos espíritos no governo do mundo e suas
funções no trono de Deus e o futuro da humanidade depois do dilúvio237. O texto
231
KLIJN, A. F. J. 2 (Syriac Apocalypse of) Baruch. A New Translation and Introduction. In:
CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha… p. 615.
232
KLIJN, A. F. J. 2 (Syriac Apocalypse of) Baruch... p. 617.
233
COLLINS, J.J. Seers, Sibyls… p. 297.
234
KLIJN, A. F. J. 2 (Syriac Apocalypse of) Baruch... p. 641.
235
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man...p. 155.
236
Contudo, R. H. Charles acredita haver pelo menos onze referencias a I Enoque em 2 Baruc. Ver:
CHARLES, R. H. Apocrypha and Pseudepigrapha Of The Old Testament. Vol. II. Oxford, Clarendon,
1913. p. 174.
237
OTERO, A. Santos. Livro de Los Secretos de Henoc (Henoc eslavo). In: DIEZ MACHO, Alejandro.
Apócrifos del Antigo Testamento...p. 150.
69
completo somente se encontra em língua eslava, e alguns fragmentos em copta238.
Contudo, Vanderkam supõe ser ele composto em hebraico e traduzido de uma versão
grega239. Sua datação é um enigma, mas para maioria dos pesquisadores o texto foi
concluído no final do 1º séc. d.C240.
2 Enoque é dependente da tradição de I Enoque, com algumas modificações241.
O autor cita o Mito dos Vigilantes, mas como foi afirmado, as recepções e apropriações
sempre são criativas. No texto, como veremos, os Vigilantes são chamados de Grigori,
palavra que o tradutor eslavo preservou em grego, e o líder dos anjos da rebelião é
Satanael.
Enoque, depois de passar por quatro sessões celestiais, onde contemplou
fenômenos astronômicos (primeira), trevas e anjos aprisionados e tristes (segunda), o
paraíso e lugar de tormento (terceira) e fenômenos astronômicos (quarta), viu os
Grigori, que tinham feição triste. Nessa parte encontramos o Mito dos Vigilantes:
Por que estão tão tristes, e seus rostos tão compungidos e suas
bocas taciturnas e por que não há serviço neste céu? E me
responderam os dois varões: – Estes são os Grigori que se
apostataram do Senhor – duzentos miríades no total –
juntamente com seu príncipe Satanael, e os que seguiram seus
passos se encontram agora acorrentados numa esfera negra no
segundo céu. Estes são os que desceram do trono do Senhor242
para terra, um lugar chamado Hermón, onde fizeram a promessa
em cima do monte Hermón, manchando a terra com suas
transgressões. As filhas dos homens cometeram muitas
abominações em todas as épocas deste século, violando as leis,
misturando-se (com eles) e gerando os grandes gigantes, os
monstros e a grande iniqüidade. E por essa razão (o Senhor) os
condenou em um grande juízo, enquanto eles choram por seus
irmãos e esperam sua confusão no grande dia do Senhor. Então
disse aos Grigori: – Eu vi seus irmãos e suas obras, seus
tormentos e suas orações; eu roguei também por eles, mas Deus
238
ANDERSEN, F. I. 2 (Slavonic Apocalypse of) Enoch . A New Translation and Introduction. In:
CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha… p. 92.
239
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p.158.
240
ANDERSEN, F. I. 2 (Slavonic Apocalypse of) Enoch... p. 94-95.
241
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p.158
242
Num trabalho recente, Anderson Dias de Araújo aponta , utilizando a tradução de F.I Andersen, que no
texto cita três anjos que saíram do trono de Deus, percebendo neste detalhe uma mudança da narrativa
originária de I Enoque 6-11. Contudo, não encontrei essa mudança ou informação em nenhuma parte da
tradução usada pelo autor supracitado. Essa variante é encontrada não no texto oficial, mas como indica a
nota de rodapé da tradução de F.I Andersen, está presente no manuscrito J P, enquanto o manuscrito B
afira que “dois príncipes e duzentos andaram em seus caminhos”. Contudo, F.I Andersen não usa nenhum
desses testemunhos para sua reconstrução da narrativa. Cf. ARAÚJO, Anderson Dias. Anjos Vigilantes e
Mulheres Desveladas... p. 26-27; ANDERSEN, F. I. 2 (Slavonic Apocalypse of) Enoch... p. 131.
70
os condenou (a estarem) debaixo da terra até o fim da terra e céu
para sempre (2 Enoque 7,4-10) 243.
243
OTERO, A. Santos. Livro de Los Secretos de Henoc (Henoc eslavo)... p. 169. Na tradução do OTP o
texto está referenciado em 18, 1-7. Cf. ANDERSEN, F. I. 2 (Slavonic Apocalypse of) Enoch... p. 131-
132.
244
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p. 148. Por isso, discordo de Anderson Dias de Araújo que
afirma encontra em Vanderkam a negação do conhecimento do mito dos Vigilantes, pois afirmar que Filo
não leu o texto de Gênesis como a tradição de Enoque, não quer dizer necessariamente que não conheceu.
Cf. ARAÚJO, Anderson Dias. Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas...p. 22.
245
WRIGHT, A. T. Some Observations of Philo’s de Gigantibus... p. 480.
246
MARTÍN, J. P. Alegoría de Filón sobre los ángeles que miraron con deseo a lãs hijas de los hombres.
In: CIRCE. Instituto de Estudios Clásicos, n. 7 (2002): 261-282. p. 272.
247
YONGE, C.D. The Works of Philo Complete and Unabridged . Peabody, Hendrickson, 1961.
71
Deus), Moises chama de anjos248. A leitura de Filo como “anjos de Deus” concorda com
a interpretação mitológica disseminada na literatura hebraica canônica como não-
canônica249. Percebemos então a presença do conhecimento do texto de Gênesis e sua
relação com interpretações como a da tradição de Enoque. Em sua obra Questões em
Gênesis, no livro I, ele pergunta sobre a origem dos gigantes, e refere-se a idéia de
serem filhos de anjos com mulheres (I. 92)250. No texto não parece se referir somente a
mitos gregos, mas a narrativas judaicas com essa temática. Então temos aqui outra
referencia de Filo ao mito de anjos que caem do céu para procriarem com mulheres
humanas.
Na obra Antiguidade Judaica de Flávio Josefo, terminada em 93 d.C·, onde narra
a história universal dos primórdios adâmicos até seus dias, com propósitos
propagandistas, aparece a narrativa do Mito dos Vigilantes (Livro I, cap. 3, 1). A
história dos anjos aparece no seu texto no contexto da exposição sobre as sete gerações
que creram no Senhor, mas que depois se desviaram para os vícios. O texto afirma que
muitos anjos de Deus se ajuntaram a mulheres, e geraram filhos que se mostraram
insolentes251. Percebemos nessa parte do texto de Josefo a presença do mito dos
Vigilantes.
Depois dessas observações, pode-se afirmar a presença em muitas obras
judaicas, que cobrem um grande período, a presença de temas que reportam ao Mito dos
Vigilantes. Por isso, podemos supor com mais segurança a influência das imagens da
narrativa dos Vigilantes no mundo judaico e, posteriormente, no cristão.
Basta-nos aqui tratar especificamente da questão do demoníaco no mundo
judaico e sua relação com esse mito tão importante, perguntando o quanto de seus temas
e imagens estão presentes no imaginário dos demônios. Já percebemos que os três temas
(ensinamentos, impureza e violência) estão presentes em quase todas suas recepções.
Primeiro analisarei a recepção demonológica do mito em Jubileus, e depois
observarei em Qumran essa mesma recepção. Isso nos aproximará do mundo
neotestamentário, especificamente dos evangelhos.
248
YONGE, C.D. The Works of Philo... p. 185.
249
MARTÍN, J. P. Alegoría de Filón... p. 274.
250
YONGE, C.D. The Works of Philo... p. 810. Feldman faz referência a essa obra de Filo para falar sobre
o mito dos Vigilantes em Flávio Josefo. Cf. FELDMAN, Louis H. Judean Antiquities 1–4. Translation
and Commentary. In: MASON, Steve (ed.). Flavius Josephus Translation and Commentary. Vol. III.
LEIDEN · BOSTON · KÖLN, BRILL, 2000. p. 26.
251
FELDMAN, Louis H. Judean Antiquities 1–4… p. 26. Em outra tardução: injustos . cf. JOSEPHUS, F.
& WHISTON, W. The Works of Josephus: Complete and Unabridged. Includes Index. Peabody,
Hendrickson, 1996.
72
2.2. Indícios em Jubileus: o imaginário do demoníaco e o mito dos anjos caídos
252
WINTERMUTE, O. S. Jubilees... p. 75
253
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 155.
73
Ao ser informado desses infortúnios, Noé ora ao Senhor, chamando-o de Senhor
de todos os espíritos (10,3), lembrando-O de como salvou ele e seus filhos do dilúvio,
não os deixando perecer como os filhos da perdição (10, 3-5). Na oração ele pede: “não
deixe os maus espíritos dominá-los, para que não os destrua (seus netos) da terra. Mas
me abençoa e aos meus filhos” (10, 3)254. Dentro da mesma oração, ele identifica
aqueles seres (espíritos poluídos, demônios) como sendo os filhos dos Vigilantes: “E
você sabe que seus Vigilantes, os pais desses espíritos, fizeram em meus dias e também
aqueles espíritos que são livres” (10, 4-5). Os espíritos dos Gigantes são considerados
impuros/poluídos. Os demônios como espíritos impuros posteriormente aparecem no
Testamento dos Doze Patriarcas (Test. de Sim. 4,9 e Test. de Benj. 5,2).255 Em Qumran
também aparece algumas vezes a imagem de espíritos impuros (11QPsalmsa 19, 15;
4Q444 Frag. 2 Col I Linha 4)256.
O texto identifica esses maus espíritos como filho dos Vigilantes, sendo próxima
a imagem pintada por I Enoque 15. Os mesmos podem causar danos aos homens e levá-
los, em Jubileus, a corrupção (10, 5). Eles são cruéis e criados para destruir (10,6). Na
mesma oração Noé afirma serem seus filhos (netos) sujeitos a esses espíritos, porque
são fortes (10,6).
Os temas do Mito dos Vigilantes são preservados pelo autor de Jubileus. E de
certa forma se misturam, pois os espíritos dos Gigantes são poluídos/impuros257 como
seus pais, próximo também ao imaginário dos Gigantes e dos Vigilantes no mito
enoquita, e são violentos e destrutivos. A idéia de ensinamentos também aparece em
Jubileus 4,15, onde os Vigilantes são anjos do Senhor que trazem ensinamentos. Assim,
o imaginário dos demônios e temas do Mito dos Vigilantes estão conectados, tornando a
narrativa dos anjos que possuem mulheres não somente uma etiologia dos demônios,
254
WINTERMUTE, O. S. Jubilees... p. 76.
255
BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard (ed.). Exegetical Dictionary of the New Testament. Vol I.
EDINBURGH, T & T CLARK LTD, 1990. p. 271.
256
WRIGHT, A. T. Evil Spirits in Second Temple Judaism… p. 157. Ver os textos em: GARCÍA
MARTÍNEZ, Florentino e TIGCHELAAR, Eibert J. C. The Dead Sea Scrolls Study Edition... p.295.
257
Para uma análise da questão da impureza e pureza no livro dos Jubileus ver o recente artigo de L.
Ravid, onde trata Jubileus como um texto que testemunha a rejeição do culto do segundo templo e as leis
de pureza e impureza. A proposta feita por L. Ravid denuncia ausência da idéia de pureza ritual em
Jubileus. Cf. RAVID, Liora. Purity and Impurity in the Book of Jubilees. In: Journal for the Study of the
Pseudepigrapha 13.1 (2002): 61-86. Contudo, como no mito dos Vigilantes, os seres são considerados
impuros por que de alguma forma transgrediram fronteiras, mesmo que legais; imaginário que está
presente na afirmação “espíritos poluídos” para os espíritos dos gigantes. Para uma crítica a essa proposta
de L. Ravid ver: VANDERKAM, James C. Viewed Rom Another Angle: Purity and Impurity in the Book
of Jubilees. In: Journal for the Study of the Pseudepigrapha 13.2 (2002): 209-215.
74
mas servidora até mesmo de conteúdo imagético, como violência, impureza e ligados
genealogicamente a seres com conhecimentos celestiais.
Depois da oração feita por Noé, Deus reponde dizendo que prenderia todos eles
(10,7). Então, aparece Mastema258 como chefe dos espíritos que atormentavam os filhos
de Noé, e faz um pedido:
Deus permite que um décimo dos espíritos fique livre, liderados por Mastema
(10,9). Os espíritos dos Gigantes estão em liberdade no mundo, segundo a releitura de
Jubileus, como acontece com os espíritos de I Enoque 15260, mas agora tem um líder261,
tornando-se uma espécie de príncipe dos demônios. No Test. de Rub. 2,2 Belial é líder
de oito espíritos contra o homem. Em Qumran aparecem novos nomes para designar os
líderes das hostes malignas. A idéia de um exército com um líder, presente em Jubileus,
influenciou profundamente a comunidade do Mar Morto262.
Então, depois de deixar uma parte dos demônios, Deus ensina Noé usar ervas
para curar as ações dos demônios (Jub 10, 10.12). Depois Noé escreve tudo num livro e
entrega a seu filho (Jub 10, 13-14). A oração de Noé, e também, os ensinamentos
antropopaicos de ervas, podem ser descritos como exorcismos263.
Em Jubileus, os demônios impuros, são como um exército, um grupo de seres
aptos a fazer mal aos homens, mas ainda debaixo da própria liberdade dada por Deus.
Nesse sentido, o livro apresenta um mundo cheio de seres espirituais, anjos e demônios,
258
O termo Mastema originou-se da raiz hebraica STN (satan), e a origem de sua personificação está na
Bíblia hebraica. TOORN, Karel Van Der & BECKING, Bob. Dictionary of Deities and Demons in the
Bible: Second Extensively Revised Edition Book Description. Leiden.Boston. Köln, Abrill, 1999. p. 553.
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 157.
259
WINTERMUTE, O. S. Jubilees... p. 76.
260
Hanneken, mesmo admitindo algumas diferenças entre Jubileus e o Livro dos Vigilantes, garante que
a idéia dos espíritos dos gigantes serem identificados como os demônios e trazerem prejuízos pós-dilúvio
está preservada nas duas tradições. Cf. HANNEKEN, Todd Russel. Angels and Demons in the Book of
Jubilees and Contemporary Apocalypses. In: Henoch 28 (2006): 11-25. p. 17.
261
Na mesma obra, este mesmo Mastema foi usado por Deus para matar os primogênitos no Egito, no
episódio da libertação de Israel (Jub 49, 2). No mesmo texto a décima parte dos demônios ficaram como
súditos de Satan (Jub 10,12).
262
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumranica Minora I…p. 7.
263
RUITEN, Jacques Van. Primaeval History Interpreted… p. 340.
75
com ligação originária com o Mito dos Vigilantes, que influênciam a vida terrestre,
entre o período do dilúvio e o escaton264, como aparece na literatura apocalíptica,
especialmente em Qumran, como também no Testamento dos Doze Patriarcas265.
Assim percebem-se algumas imagens do demoníaco em Jubileus: (1) há um
grupo de seres liderados por Mastema, uma espécie de príncipe das trevas; (2) em
espécie de exército; (3) como seres espirituais sem corpos; (4) que tentam e atacam os
humanos causando danos; (5) são impuros, como os Vigilantes e sua prole [os
Gigantes], de onde saem e (6) como mostra I Enoque 15, 11 e pressupõe Jub 10, os
espíritos desencarnados dos Gigantes rodeiam a terra, são livres para vagar sobre ela.
Enquanto desencarnados podem invadir os corpos humanos, como afirma P. S.
266
Alexandre . Deste o Livro dos Vigilantes (15,12) – bem nítido em Jubileus – já
começa se traçar uma espécie de antropologia: o homem frágil a ataques de espíritos
maus267, algo bem presente na demonologia de Qumran.
Como afirma Wright, os maus espíritos introduzidos na tradição dos Vigilantes,
com seus novos traços, especialmente em I Enoque 15 e Jubileus 10, podem ter
influênciado ou servido material simbólico para o desenvolvimento da demonologia
encontrada em alguns documentos de Qumran268. Isso, desde a idéia dualista, onde se
encaixam os seres malignos, até as próprias imagens do demoníaco em si, como seres
que podem possuir corpos impuros.
264
HANNEKEN, Todd Russel. Angels and Demons… p. 16.
265
PIÑERO, Antonio. Testamentos de los Doce Patriarcas. In: DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del
Antigo Testamento. Vol. V. Madrid, Ediciones Cristiandad, 1987. p.21.
266
ALEXANDRE, P. S. The Demonology of the Dead Sea Scroll… p. 339.
267
WRIGHT, A. T. Evil Spirits in Second Temple Judaism… p. 153
268
WRIGHT, A. T. Evil Spirits in Second Temple Judaism… p. 153. WRIGHT, A. T. The Origin of Evil
Spirits... p. 166. Collins admite que tanto o Livro dos Vigilantes como Jubileus teve grande influencia e
respeito na literatura de Qumran (CD 16,3). Inclusive, o calendário adotado por Qumran, objeto de grande
conflito da seita com o templo de Jerusalém (4QMMT), está muito próximo da tradição de Enoque e
Jubileus. Cf. COLLINS, J.J. Seers, Sibyls… p. 291. Ainda com a presença já identificada dos textos de I
Enoque, e Jubileus, pode reafirmar essa importância. Cf. GARCÍA MARTINEZ, Florentino. Qumranica
Minora I… p. 7.
76
estrutura dualista, que abrange a vida interior do ser humano, assim como todo o cosmo,
muitas vezes em linguagem militar.
Neste ponto nos deteremos em algumas questões da demonologia de Qumran: a
idéia de grupos de seres malignos liderados por um ser demoníaco, as características
desses seres, a questão da possessão, e ainda a imagem dualista, onde todo esse
imaginário está situado. Começaremos pelo dualismo, pois ele é chão para localização
dos seres malignos e suas batalhas, perguntando pela influência do Mito dos Vigilantes.
Segundo García Martínez a tradição de Enoque serviu material simbólico para o
dualismo qumranita269.
O tema mais óbvio em Qumran é o dualismo270 (ver, por exemplo, 1QS 3,13-
4,26; 1QH 9, 5-38; 5,1-12; 1QM; 11QMelquisedec). Em se tratando de dualismo, o
texto mais característico é o Tratado dos dois Espíritos, que está dentro da obra Rolo da
Comunidade (1QS III 13- IV 26)271. Por isso, pode-se tomar esse texto para observar a
visão dualista de Qumran e sua relação com a tradição de Enoque.
Collins, diferente de García Martínez, afirma certa influência de Jubileus e I
Enoque em Qumran, mas acha exagerado tratar o dualismo de Qumran como uma
perspectiva transformada dessas duas tradições272. Falando tanto do dualismo em 1QM ,
como do Tratados dos Dois Espíritos, ele aproxima mais do Zoroatrismo do que da
tradição de Enoque. Para o primeiro, depois de localizá-lo no imaginário da “guerra
santa”, com raízes ugaríticas (Yamm ou Mot e Baal) e mesopotâmicas (Marduc e
Tiamt), ele afirma que “o Rolo da Guerra (1QM) não deriva basicamente da estrutura
cananita do mito do caos, mas do dualismo persa da luz e trevas”273.
269
Primeiramente no artigo de 1983: GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Orígenes apocalípticas del
movimiento esenio y orígenes de la secta qumránica”, Communio 18 (1985): 353-368. E posteriormente:
MARTINEZ, Florentino. Qumranica Minora I… cap. intitulado “Apocalypticism in the Dead Sea
Scrolls”.
270
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis... p. 60.
271
Referido de GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino e TIGCHELAAR, Eibert J. C. The Dead Sea Scrolls
Study Edition.
272
COLLINS, J. J. Seers, Sibyls… p. 291-293.
273
COLLINS, J. J. The Mythology of Holy War in Daniel and the Qumran War Scroll: A Point of
Transition in Jewish Apocalyptic. In: Vetus Testamamentum 25, n. 3 (1975): 596-612. p. 604. Não
podemos discorrer aqui a principal idéia de Collins de uma possível transformação da idéia da guerra
77
Para Collins, o Tratado é uma nova e diferente maneira de conceber a origem do
mal, antagônica a do Mito dos Vigilantes274, pois não cita a queda dos anjos; ou seja,
para ele 1QS ignora I Enoque e Jubileus, e seu dualismo está somente relacionado ao
mito iraniano encontrado nos Gatas. Contudo, o mesmo Collins admite algo, que servirá
para García Martínez como um dos seus questionamentos contra Collins para propor a
influência enoquita: “no zoroatrismo o espírito mal se tornou mal por escolha, enquanto
275
no Tratado judaico, ele é criado mal por Deus” . Sobre o dualismo do Tratado dos
Dois espíritos, ao afirmar essa diferença, Collins admite ser uma apropriação do mito
persa, mas em diálogo com tradições judaicas276, como faz ao falar do dualismo no Rolo
da Guerra277. Contudo, ele descarta a possibilidade de qualquer influência enoquita278.
Para García Martínez, a perspectiva é completamente diferente. Ele afirma a
influência persa para a estrutura básica, como mundo religioso, e não canal único de
influência. Ele acredita numa continuidade entre a tradição de Enoque e Daniel em
Qumran, inclusive para o dualismo 279.
Sobre o Tratado dos dois Espíritos, mesmo que Collins fale de outras narrativas
da origem do mal, isso não quer dizer um desconhecimento do Livro dos Vigilantes, ou
o seu descarte. Para García Martínez, até nas diferenças há relação tradicional280.
O Tratado inicia com uma solene introdução (III 13-15), seguido por um básico
princípio determinista: “do Deus do conhecimento procede tudo o que é e o que será
(...)”. Desse determinismo deduz-se toda a fórmulação dualista do Tratado, expressada
pelo símbolo de luz e trevas281. Há dualismo antropológico em termos individuais: “pois
nele dois espíritos da verdade e falsidade (...)” (III 17-19), e também para toda
santa em Daniel e 1QM. Contudo, P. R. Davies fez ferrenhas críticas a esse artigo de Collins. Cf.
DAVIES, P. R. Dualism and Eschatology in the Qumran War Scroll. In: Vetus Testamamentum 28, n.1
(1978): 28-36. No entanto, no mesmo ano, Collins respondeu às críticas de Davies mostrando que foram
embasadas numa errada apropriação do que ele escrevera naquele artigo de 1975. Cf.: COLLINS, J. J.
Short Notes. Dualism and Eschatology in I QM. A reply to P. R. Davies. In: Vetus Testamamentum 29, n.
2 (1978): 212-215. Collins reafirma essa perspectiva da dependência do dualismo persa para o Rolo da
Guerra, e para todos os textos com essas características em suas obras posteriores. Cf. COLLINS, J.J. The
Apocalyptic Imagination... p. 23-26; COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls… p. 38-51
274
COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls… p. 38; COLLINS, J. J. Seers, Sibyls… p.
293. Contudo, como explicou García Martínez essa diferença não é problema, pois pertencem a uma
mesma tradição e serve para ampliar uma a outra. Cf.: MARTINEZ, Florentino. Qumranica Minora I…p.
4.
275
COLLINS, J. J. Seers, Sibyls… p. 294; COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls… p.
43.
276
COLLINS, J. J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls… p. 43.
277
COLLINS, J. J. The Mythology of Holy War... p. 608-609.
278
COLLINS, J. J. Seers, Sibyls… p. 295.
279
MARTINEZ, Florentino. Qumranica Minora I…p. 7-10.
280
MARTINEZ, Florentino. Qumranica Minora I…p.4.
281
MARTINEZ, Florentino. Qumranica Minora I…p. 7
78
humanidade, num sentido cósmico ( III 20-21): um grupo nas mãos do Anjo das Trevas
e outro na do Príncipe da Luz. Esse mesmo dualismo se expande para o mundo dos
Anjos, colocando-os em dois campos: “Ele criou os anjos da luz e das trevas, e sobre
eles fundou todas as obras...”. O Tratado mostra o resultado para os que seguem a luz
ou as trevas. Existe uma luta interna sob a influência dessas duas forças (IV 24-25), que
podem levar ao pecado, até os santos, mas o pecado é culpa dos espíritos das trevas (III
21-24). E numa perspectiva escatológica o Tratado prevê a destruição no fim, na
visitação divina, quando os pecados desaparecerão e a justiça triunfará (IV 18-23).
Segundo García Martínez, o primeiro contato com o Livro dos Vigilantes é que
o mal se origina no céu. No entanto, no Tratado há uma radicalização:
282
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumranica Minora I…p. 9.
79
Zoroastrismo e usou-as para radicalizar as idéias que ele recebeu
da tradição sapiencial e apocalíptica283.
283
GARCÍA MARTÍNES, Florentino. Qumranica Minora I…p. 9.
284
COLLINS, J. J. The Mythology of Holy War... p. 608.
285
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 158.
286
JONGE, M. de / Woude, A. S. van der. 11QMelquisedec and the New Testament. In: New Testament
Studies 12 (1966): 301-326; DAVIDSON, M. Angels At Qumran. A Comparative Study of 1 Enoch 1-36,
72-108 and Sectarian Writings from Qumran. Sheffield, Academic Press, 1992.
80
publicou uma edição preliminar287, mas desde sua publicação causou grande interesse
nos exegetas e estudiosos do judaísmo do segundo templo e cristianismos originários.
James Kurianal288 afirma que em Qumran Melquisedec aparece em quatro
textos: 1QapGen xxii 13-17, 4Q‘Amram 2,1-6;3,1-2, 4Q401 11 1-3 e o próprio 11Q13.
No Gêneses Apócrifo (1QapGen xxii 13-17), uma nova apropriação de Gn 14, a imagem
de Melquisedec não se modificou muito: “... e todo o saque, e subiu para encontrá-lo.
Foi a Salém, que é Jerusalém. Abraão acampava no vale de Save, que é o Vale do Rei,
o Vale de Bet há-Keren. Melquisedec, rei de Salém tirou comida e bebida para Abraão
e para todos os homens que havia com ele. Ele sacerdote do Deus Altíssimo...”
(1QapGen xxii 13-15).
Em 4Q‘ Amram 2,1-6;3,1-2 por conjectura – mas James kurianal garante a
aceitação da maioria dos estudiosos289 – o nome Melquisedec pode ser reconstruído.
Se a conjectura estiver correta, este é o primeiro documento que apresenta Melquisedec
como um Anjo 290.
O Gêneses Apócrifo não é inquestionavelmente qumranita291, mas o Cântico de
Sacrifício Sabático (4Q401 11, 1-3) parece ser292, e nele novamente surge a imagem de
Melquisedec. Aqui Melquisedec é um anjo e também é apresentado como sacerdote,
bem diferente a Gn 14293. Na terceira linha, o nome Melquisedec é parcialmente
reconstruído: “[Melqui]sedec, sacerdote na assemb[léia] de Deus” ( 4Q401 11,3)294.
Também na caverna 11, o Cântico de Sacrifício Sabático, pode ter a citação de
Melquisedec: “os chefes dos príncipes dos sacerdotes maravilhosos de Melqu[isedec]”
(11Q17 ii 7).295 Contudo, somente em 11Q13 Melquisedec tem funções centrais e
próximas a figura de Jahvé296.
287
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Las Tradiciones sobre Melquisedec em los manuscritos de
Qumrán. In: Bíblica 81 (2000). p. 71.
288
KURIANAL, James. Jesus Our High Priest: Ps 110,4 as the Substructure Of Heb 5,1-7,28. Frankfurt,
Peter Lang, 2000. p. 170.
289
KURIANAL, James. Jesus Our High Priest… p. 171.
290
KURIANAL, James. Jesus Our High Priest… p. 171
291
Ver. ARANDA PÉREZ, G.; GARCÍA MARTÍNEZ, F.; PÉREZ FERNÁNDEZ, M. Literatura judia
intertestamentaria (Introducción estúdio de la Bíblia 9) Estella, Verbo Divino, 1996.
292
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Las Tradiciones sobre melquisedec... p. 70
293
KURIANAL, James. Jesus Our High Priest… p. 172.
294
Essa é uma reconstrução de C. A. Newson de 4Q401 11,3. In: GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Las
Tradiciones... p. 70
295
Reconstrução de GARCÍA MARTÍNEZ de 11Q17 ii 7. In: GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Las
Tradiciones...
296
Melquisedec também aparece em 2Enoque nos capítulos 71-72, onde se narra a origem e nascimento
sobrenatural de Melquisedec. Fílon e Josefo também citam Melquisedec em suas obras. Na literatura
gnóstica de Nag Hamamadi também há menção a Melquisedec. Para uma apresentação dessas citações e
algumas discussões a respeito ver.: HORTON, F.L. The Melchizedek Tradition. A Critical Examination of
81
O texto é complexo, entrelaça citações formais e informais do Antigo
Testamento criando um caráter escatológico – podemos perceber que as interpretações
presentes no texto estão marcadas pelo tempo futuro297 – que gira em torno da imagética
veterotestamentária do jubileu, que inclusive logo no início é referenciado. O texto
associa e interpreta vários textos fundamentais: Lv 15,13 e Dt 15,2; Sl 82,1-2; Dn 9,23;
Is 52,7 e Is 61,1. Por isso, é reconhecido como pesher, um modo de interpretação
comum em Qumran. Há pelo menos três tipos de pesharim, o de 11Q13 é o chamado
temático, pois junta vários textos bíblicos para interpretação de certos temas298. Para
César Carbullanca, esse gênero consiste numa interpretação escatológica do presente da
comunidade299.
O fio condutor é Levítico 25300 conectado a Deuteronômio 15,2301. Neste
contexto a figura enigmática de Melquisedec é inserida possuindo um papel espetacular
de execução do julgamento divino no décimo Jubileu. Esse é um tempo escatológico de
paz e prosperidade. O texto repete por mais vezes as palavras “Melquisedec” e
“Jubileus”, permitindo-nos pensar esses como eixos interpretativos para leitura e
compreensão desse julgamento. No texto, o dualismo cósmico, comum à literatura de
Qumran, também está presente, nas imagens de Melquisedec e seu lote versus Belial e
seu lote (linha 13).
Vejamos o texto de 11Q13302:
the Sources to the Fifth century A.D and in the Epistle to the Hebrews. Cambridge, Cambridge University
Press, 1976. Em especial o capítulo 3 (The Bacground Souces II: Philo, Qumran, and Josephus) e 5 (The
Later Sources II: Gnosticism).
297
César Carbullanca identificou no texto 46 verbos. Destes a maioria estão dando sentido futuro. Cf.
NÚÑEZ CARBULLANCA, César. Mesianismo Y Mística en Qumran. Estudos de Alguns Textos de
Qumran: exegesis y comentário teológicos. Apostila do Curso ministrado no programa de pós-graduação
e Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo. Texto não publicado.
298
ADRIANO FILHO. José. Melquisedec, um redentor celestial e juiz escatológico. Um estudo de
11QMelquisedec (11Q13). In: Estudos de Religião Estudos de Religião 19 (2000): 45-65; GARCÍA
MARTÍNEZ, Florentino. Las Tradiciones… p. 73.
299
NÚÑEZ CARBULLANCA, César. Melquisedec y la cristologia del Evangelio de Juan. In: Estudos de
Religião 22 (2008):14-52.
300
ADRIANO FILHO. José. Melquisedec, um redentor celestial... p. 48.
301
JONGE, M. de / Woude, A. S. van der. 11QMelquisedec and the New Testament... p. 304.
302
A tradução é minha com consulta a edição de C. A. Newson, traduzida para o inglês por Florentino
García Martínez e J. C Tigcherlaar, e à tradução para o português feita por Valmor da Silva do texto
espanhol de Florentino García Martinez. Cf. GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino e TIGCHELAAR, Eibert
J. C. The Dead Sea Scrolls Study Edition. Vol 1 e 2. Leiden/Boston/Kön/Grand Rapis/ Cambridge,
Brill/Eerdmanns, 2000; GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Textos de Qumran. Edição fiel e completa
dos Documentos do Mar Morto. Petrópolis, Vozes, 1995.
82
2 [...] E o que diz: Neste303 ano do Jubileu [cada um retornará a sua respectiva
propriedade, sobre [isso] está escrito: “Esta é]
3 a maneira de [remissão: todo credor fará remissão do que tiver emprestado [ao seu
próximo”. Não precionará304 o seu próximo nem o seu irmão porque proclamou]305 a
remissão
4 de (para) Deus. [Sua interpretação] para os últimos dias sobre os cativos, dos quais [--
] e cujos
5 mestres tem sido ocultados e em segredo da herança de Melquisedec, porque [--] eles
são heran[ça de Melqui]sedec, que
7 na semana primeira do Jubileu que segue os no[ve] Jubileus. E o dia [das expiaçõ]es é
o final do Jubileu décimo
9 porque é tempo do “ano de graça para Melquisedec”, e para exaltar o povo santo de
Deus pelo domínio de Juízo, como escrito
10 sobre (ele) nos cânticos de Davi, que diz: Elohim se ergue na assem[bléia de Deus]
no meios dos Deuses Julga”. E sobre (ele) diz : “sobre,
11 do alto, retorna, Deus julgará os povos”. E o que diz: Até quando julgareis
injustamente e guardareis consideração aos malvados?
12 sua interpretação concerne a Belial e sobre os espíritos de seu lote, que [foram
rebeldes], quando se apartaram dos mandamentos de Deus para [fazer o mal].
13 E Melquisedec executará vingança dos juízos de De[us nesse dia. E eles serão
libertos das mãos] de Belial e das mãos de todos os es[píritos de seu lote].
14 E em ajuda (virão) todos os deuses da [justiça309 e é e]le que [--] todos os filhos de
Deus. E [ --].
303
A melhor tradução para tnXb é “Neste ano”, pois está relacionado ao ano do jubileu que será citado na
frase logo a frente.
304
Xwgy awl está no qal imperfeito e a expressão está relacionada à questão de pressão econômica. Em Dt
15 está relacionada a dívidas.
305
O verbo arq está no qal perfeito na 3º pess. sing. mas. : proclamou.
306
E não “os fará retornar a eles” como se lê na tradução para o português do texto de Florentino García
Martínez. In: GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Textos de Qumran… p. 180. (linha 6)
307
Com o vav consecutivo no perfeito o verbo deve ser traduzido por um futuro: arqw (proclamará)
308
A expressão bny or ( rwa ynb) está presente em vários lugares de Qumran (1QS I,9; 1QS 2,16; 1Qs
III,13; 1QM I,1; 4Q177 Col. IV,12; e outros), onde é traduzida por filhos da Luz. Inclusive, no texto
Cadeia Exegética (1Q177) a expressão está no contexto de resgate das mãos de Belial e reunião dos bny
or: “[..] o anjo de sua verdade resgatará todos os bny or do poder de Belial [...]. [...] Belial e todos os
homens de seu lote se acabarão para sempre, e todos os bny or serão reunidos [..]” (4Q177 Col. IV,
12.16)
309
A expressão aqui usada é qd, c, a mesma para formar a expressão “Melquisedec”.
83
15 Este mesmo é o dia de [paz qu]e disse pelo profeta Isaías: “que belos
16 sobre os montes os pés daquele que anuncia a paz, do proclamador do bem que
anuncia a salvação] dizendo para Sião: ‘[ reina ] Elohim’”.
17 Sua interpretação: estes (montes) são os profetas [...] estes [--]m˜Ù [.] para todo [...].
19 Bem que anuncia a salvação é aquele do qual está escrito que [...]
20 “Para con[solar”. Sua interpretação]: para que sejam instruídos em todos os tempos.
21 Em verdade [...].
23 [...] nos juízos de Deus conforme se diz: “Dizendo a Sião: ‘reina Elohim’”. Si[ão] ela
25 [-- Melquisedec quem os livrará das mãos de Belial. E o que diz: “o que faz soar o
chifre em todo o país.
310
xyXm˜ (( mshyh).
311
O texto usado na tradução portuguesa não apresenta o que Daniel diz. Ver. GARCÍA MARTÍNEZ,
Florentino. Textos de Qumran… p. 181 (linha 18).
312
Novamente xyXm˜ (( mshyh).
313
A expressão aqui usada é qd, c, a mesma para formar a expressão “Melquisedec”.
314
JONGE, M. de / WOUDE, A. S. van der. 11QMelquisedec and the New Testament... p. 304.
315
Cf. JONGE, M. de/ WOUDE, A. S. van der. 11QMelquisedec and the New Testament… p. 304.
84
decreto dado no tribunal celeste316 (fala-se de assembléia em esfera judicial). Contudo,
com a junção dos Salmos 82 e 7, como são citados nas linhas 10 e 11, ele será o
protagonista desse julgamento divino no décimo Jubileu. Nessa parte do texto aparece a
idéia de condenação para os ímpios e libertação para os justos em esfera escatológica. O
julgamento está inserido dentro do imaginário dualista do antagonismo “Melquisedec x
Belial”. Como bem identificou R. Tuschiling, em 11Q13 Melquisedec é líder do lote do
bem, incluindo um (angelical) exército, oposto a Belial e seu lote, incluindo os
espíritos317.
Como vimos, o dualismo é muito caro para a comunidade de Qumran. Ele pode
ser percebido em sua antropologia: Ele criou o homem para dominar o mundo, e pôs
nele os dois espíritos (twxwr ytX) para que caminhe por eles até de sua visita: são os
espíritos da verdade, e da fonte das trevas as gerações de falsidade (1QS col. III, 17-
19). O mesmo dualismo se expande para o nível cósmico, onde são colocados frente a
frente seres que representam grupos do bem e do mal. Na Rolo da Guerra fala-se da
grande guerra cósmica entre o lote dos filhos da Luz contra o lote dos filhos das trevas:
“Para o Ins[trutor: da guerra. O primeiro ataque dos filhos da luz será lançado contra
o lote dos filhos das trevas, contra o exército de Belial...” (1QM Col I, 1). No âmbito
das relações sócio-históricas havia também a mesma interpretação dualista da realidade,
como se as imagens cósmicas fossem reflexos das experiências de separação bem
presentes nos códigos rigorosos de pureza na literatura de Qumran. Desta forma, essa
perspectiva dual da vida abrangia a constituição da substância humana, perpassava as
relações culturais/cotidianas (históricas) e alcançavam o cosmos, como se num reflexo
triplo da existência, marcado por forças em batalha, que lutam, lutavam e lutarão até o
fim dos tempos. É neste contexto cultural, religioso e mental que se localiza o texto
11Q13 e as figuras de Melquisedec e Belial.
No texto 11QMelquisedec, temos Melquisedec e seu lote (linha 8) e Belial e seu
lote (linha 12), que culmina nas linhas 13-14: “E Melquisedec executará vingança dos
juízos de De[us nesse dia. E eles serão libertos das mãos] de Belial e das mãos de todos
os es[píritos de seu lote]. E em ajuda (virão) todos os deuses da [justiça e é e]le que [-
-] todos os filhos de Deus..” Como indica Carmignac, o texto demonstra um dualismo
escatológico e indícios de confronto militar.318 A própria identificação de Melquisedec
316
NÚÑEZ CARBULLANCA, César. Melquisedec y la cristologia…p.28.
317
TUSCHLING, R. Angels and Ortodoxy. Mohr Siebeck, Tübingen, 2007. p. 131.
318
CARMIGNAC, J. apud. ADRIANO FILHO. José. Melquisedec, um redentor celestial... p.55.
85
com Miguel, com bases na relação de 1QM XIII 9-12 e 1QM XVII, 5-9 com
11QMelquisedec reafirma esse dualismo. Outra imagem dualista com a figura de
Melquisedec está em 4Q‘Amram, onde Melkîreša, que é o príncipe das trevas está em
conflito com Melquisedec, que é príncipe da luz.
A expectativa do Julgamento dos malvados (linha 11) é interpretada como
julgamento a Belial. Por isso, o juízo de Deus representa a libertação das mãos de
Belial319. Neste acontecimento a figura de Melquisedec, o ser celestial, é fundamental e
será acompanhado pelos “filhos de Deus”. Como um percussor dos últimos tempos
executará a vingança dos juízos de Deus. Essa vingança se relaciona com o julgamento
de Belial e seu lote, para assim acontecer a consolação dos aflitos e o tempo de salvação
que fora anunciado em Is 61,1-3.
Como percebemos, em 11Q13 temos a mesma estrutura imaginária dos demais
textos em perspectiva dualista, onde há um grupo de seres malignos que estão em
antagonismo a um grupo de outros com características benignas, liderados por algum
tipo de ser sobrenatural (Belial/Mastema/Príncipe das Trevas x
Melquisedec/Miguel/Anjo da Luz).
Deste modo, como afirma García Matínez320, as imagens do exército de seres
angelicais liderados por um ser, como acontece nas tradições ligadas a Enoque, dão
contornos ao mundo dualista em Qumran. Por isso: 1) a perspectiva dualista do mundo,
onde esta inserida a imagem dos demônios, 2) e a visão do próprio demoníaco, têm
relações com o Mito dos Vigilantes. Assim, na linha 12 (os rebeldes), lembram a
desobediência dos anjos e da sua prole (os Gigantes) no período pré-diluviano.
319
TUSCHLING, R. Angels and Ortodoxy... p. 131.
320
Ver as discussões de García Martínez e J.J. Collins acima no ponto 3.1.
86
A “antropologia” e demonologia iniciada na tradição dos Vigilantes servem
conceitos básicos, os quais alguns autores dos MMM desenvolvem sua demonologia e
antropologia321 Em 1QS III 24 descreve os espíritos que levam a humanidade para
iniqüidade (comparar com I Enoque 15,11; 19,1; Jubileus 10). Em 4Q511 Frag 3 5 e
Frag. 10 11 usa-se linguagem encontrada em I Enoque 1-5 e 12-16322. Em 11Q11 V
mencionam-se demônios que são talvez os filhos das mulheres com anjos (I Enoque
15,12; Jubileus).
Nos Manuscritos do Mar Morto encontramos três temas que sublinham a
realidade dos maus espíritos na cosmovisão do Judaísmo do segundo templo: 1) boa e
má inclinação, 2) o trabalho de Belial para afastar de Deus ou de seus comandos e 3)
orações de encantamento. Nessas orações que revelam um conhecimento da necessidade
de proteção contra os espíritos maus, encontram-se suas raízes na tradição dos
Vigilantes323. O terceiro tema e a questão da possessão em Qumran mais interessam
agora, pois revelam as relações com a tradição dos Vigilantes.
321
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 166-167.
322
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 167.
323
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 167.
324
Deve esse ponto ao trabalho de A.T. Wright e P. S. Alexandre. WRIGHT, A. T. The Origin of Evil
Spirits... p. 189; ALEXANDRE, P. S. The Demonology of the Dead Sea Scroll… p.331-353
325
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. Including The Demotic Spell Chicago,
The University of Chicago Press, 1996. p. xli.
326
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation…p. xli.
87
chegaram até nós, como explica G. Luck, pelo costume egípcio de se enterrar o mago
falecido com seus livros de magia, para que exercesse sua profissão no além-túmulo.327
A maior parte da coleção dos PMG foi achado por Jean d’Anastasi (1780?-
1857), um diplomata sueco, mas de origem armênia, residente em Alexandria. Grande
parte dos papiros foi achada na cidade de Tebas, talvez pertencente à tumba de algum
mago.328
Os PMG contêm várias espécies e fórmulas mágicas. Muitos contêm desenhos,
que deveriam ser copiados na areia e no pó. Outras vezes, as mesmas fórmulas mágicas
são transcritas com a intenção de formar figuras, gerando sons incompreensíveis,
chamados de voces magicae.329 Muitos dos encantamentos possuem uma espécie de
introdução, dizendo para que servem, como fazer e de quem é. Um exemplo é o PMG X
36-50, traduzido pelo professor de Religião da Universidade de Southern California,
que tem o título de Simpatia de Apolo. Além de informar que pertence a Apolo, ainda
instrui pegar uma lamina de canga de mulas, para gravar nela os nomes mágicos que
mais abaixo, no papiro, estão citados, e depois deveria ser colocado nela uma língua de
sapo. Logo depois, o papiro mostra uma fórmula mágica, ditos que deveriam ser
pronunciados enquanto se colocava esse material acima da sandália do beneficiado pela
simpatia. Nos papiros, de maneira sincrética, os rituais mais antigos e os mitos mais
sagrados são utilizados para curar a febre, para resolver problemas de digestão ou para
conquistar a moça desejada.
Um exemplo está no já citado PMG X. 36-50, onde o título é destinado a Apolo
(divindade grega), com palavras mágicas, e ao mesmo tempo aparecem os anjos da
tradição judaica: Michael, Rafael e Gabriel:
Outra maneira: Simpatia de Apolo para sujeição: pegue uma lâmina de uma
canga para mulas, grave nela os seguintes nomes e coloque nela uma língua de
sapo.
Spell (fórmula mágica), enquanto põe a canga com a língua de sapo na sua
sandália direita, diz: como estes nomes sagrados estão sendo pisados
(esmagados), assim que ele, N.N., o que está criando problemas, seja pisado
(esmagado).
327
LUCK, Georg. Arcana Mundi. Vol I: Magia miracoli e demonologia. Mondadori, Milano, 1997, p.
Xxiv.
328
CORNELLI, Gabriele. Convergências apocalípticas nas esquinas da magia. Apocalíptica e sincretismo
religioso no mundo helenista. In: Estudos de Religião 19 (2000): 187-203. p. 187
329
CORNELLI, Gabriele. Convergências apocalípticas... p. 189.
88
“ABRASAX”
AEÊIOYO MICHAEL
EEIOYOA RAPHAEL
EIOYOAE GABRIEL
IOYOAEE SOURIEL
AYOAEEI ZAZIEL
YOAEEIO BADAKIEL
OAEEIOY SYLIEI
330
PENNEY, Douglas L. and WISE, M. O. By the Power of Beelzebub an Aramaic Incantation Fórmula
From Qumran (4Q560). In: Journal of Biblical Literature 113/4 (1994): 627-650. p. 627.
331
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 189.
332
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p.180.
333
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 180.
334
Nomenclatura proposta por GARCÍA MARTÍNEZ. (The Dead Sea Scrolls Study Edition).
89
6335. Na coluna 4 descreve-se a invocação do nome divino contra os maus espíritos. Na
coluna 5 linha 6, é possível a alusão desses maus espíritos como os espíritos dos
Gigantes336 (os [filhos de] ).
Em 11Q5 (11QPsalmsa) o encantamento é encontrado na coluna 19 linhas 13-16
com uma invocação do nome de Deus contra Satan e os maus espíritos. A oração inicia
com reconhecimento da grandeza de Deus (linhas 1-12), seguida por um
reconhecimento de pecaminosidade, e da necessidade de purificação para que nas linhas
15-16 seja pedida a proteção contra os maus espíritos e Satan. Estes espíritos são
responsáveis por inclinações malignas. O texto mostra a capacidade desses seres
levarem os humanos a caminhos pecaminosos.
Em 4Q510 (4QShira ) e 4Q511 (4QShirb) encontram-se outros encantamentos. O
primeiro pode ser dividido em três componentes: a palavra de poder, banimento dos
demônios e o tempo do efeito da oração337. No segundo componente há identificação
dos espíritos afastados: “todos os espíritos dos anjos e devastadores os espíritos dos
bastardos, demônios, Lilith, corujas e [chacais...] e aqueles que atacam inesperadamente
para desviar o espírito de conhecimento, para entristecer seus corações” (4Q510 1 6-7) .
Esses seres são encontrados nas listas dos Vigilantes mostrando a demonologia de
4Q510 bem próxima das imagens simbólicas da tradição dos Vigilantes (I Enoque 19,1;
10,9) com imagens de Is 13,21; 34,14. Em 4Q511 também há encantamento contra os
demônios e os bastardos (os filhos dos Vigilantes, ver: I Enoque 19; Jubileus 10)338 nos
fragmentos 48, 49 + 51 linhas 1-3:
335
Na coluna II aparece a figura de Salomão como dominador de espíritos:
1 […] … […]
2 […] Salomão, e ele invoca[rá]
3 [… ] os espíri]tos e os demônios, […]
4 […] Existem [os demô]nios, e o Princi[pe da Animosida]de
Esta tradição de Salomão como exorcista está presente em Flávio Josefo (Ant. 8.45) e no Testamento de
Salomão, uma obra que foi terminada no terceiro século. Para um introdução ao TSal. Ver: DULING, D.
C. Testament of Solomon. A New Translation and Introduction. In: CHARLESWORTH, James H. The
Old Testament Pseudepigrapha, Vol. 2. p. 935-958.
336
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 184.
337
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p.187.
338
Na tradição de Enoque os Gigantes são chamados de bastardos. Na obra Pseudo- Clementina (do
terceiro século da era cristã), na Homilia 8,15quando fala dos Gigantes diz serem de natureza bastarda.
90
os espíritos] os bastardos, para subjugar [todos impuros]
[pecadores] parceiros dos bastardos339.
O autor afirma que Deus usa sua boca para assustar (expulsar) os espíritos dos
bastardos, que são os filhos dos Vigilantes, que depois da morte corporal seus espíritos
se tornaram espíritos maligna, como dita a tradição enoquita (I Enoque 19; Jubileus
10)340.
Segundo Esther Chazon existe um paralelo desses dois documentos com
4Q444341. Nesse texto há a seguinte linha: “[...aqueles que inspiram medo, todos os
espíritos dos b]astardos e os espíritos impuros” (4Q444 2 4)342. Por isso os espíritos de
4Q510 são considerados nos textos no 4Q444 como seres também impuros.
Nessas orações de proteção mágica percebemos a presença de seres que atacam e
desviam os homens. E os mesmos são afastados por Deus ou pela palavra inspirada por
Ele. A linguagem dos textos – desde as imagens dos seres malignos, a suscetibilidade ao
ataque por parte dos homens, sua ação violenta, de impureza e destruição – está próxima
às imagens presentes no desenvolvimento do mito dos Vigilantes (I Enoque 19 e
Jubileus 10). A proteção a esses seres já se percebe na tradição de Jubileus, uma espécie
de exorcismo insipiente, onde Noé é ensinado a se proteger desses seres e ele, por sua
vez, transmite aos seus filhos (Jub 10, 10-14). Imagem essa importante para as orações
em Qumran contra os espíritos maus. Como afirma Wright: “Os MMM revelam um
esforço dos Judeus para estabelecerem orações de proteção contra a atividade de maus
espíritos que podem conter ecos da tradição dos Vigilantes em geral” 343. Clinton
Wahlen, num recente trabalho, teve a mesma intuição, pois ao falar sobre as figuras
demoníacas dos textos de Qumran concordou que o imaginário dos textos está próximo
da tradição dos Vigilantes de I Enoque e Jubileus344.
339
GARCÍA MARTINÉZ, Florentino e TIGCHELAAR, Eibert J. C. The Dead Sea Scrolls Study
Edition... p. 1035.
340
P. S. Alexandre afirma categoricamente que a expressão espíritos dos bastardos (~yrzmm twtwr) refere a
etiologia dos demônios de I Enoque. Cf. ALEXANDRE, P. S. The Demonology of the Dead Sea Scroll…
p. 333-334.
341
CHAZON, Esther. Hymns and Prayes in the Dead Sea Scroll. In: FLINT, P. W. and VANDERKAM,
J. C. The Dead Sea Scrolls after Fifty Years… p. 1:244-70.
342
GARCÍA MARTINÉZ, Florentino e TIGCHELAAR, Eibert J. C. The Dead Sea Scrolls Study
Edition... p. 925.
343
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits... p. 179.
344
WAHLEN, Clinton. Jesus and the Impurity of Spirits in the Synoptic Gospels. (Wissenschaftliche
Untersuchungen zum Neuen Testament, 2/185). Tübingen, Mohr Siebeck, 2004. p. 34.
91
3.1.2.2. Possessão demoníaca em Qumran e a tradição dos Vigilantes:
92
identifica-o como impuro: “Não deixar um espírito impuro ( )רוח אמונהtomar posse dos
meus ossos” (19,15). No texto, como já indicamos, tenta-se afastar esses espíritos
impuros.
Em 1QS 3 20-22 e 4 21-22, onde já mostramos, fala-se sobre possessão,
encontramos na linha 22 da Col. 4 a informação que o espírito envolvido na possessão é
tratado como impuro. Aqui encontramos pessoas sendo afligidas por espíritos impuros.
Em 4Q444 (4QIncantação) encontramos um texto com função apotropaica350.
Nesse fragmentado testemunho, lemos sobre uma batalha contra os espíritos, onde na
linha 4 do fragmento 2 encontramos o fortalecimento de Deus contra eles. E depois no
fragmento 2 linhas 3 e 4 diz: [... aflições], e até seus domínios são completos [...aqueles
que inspiram medo, todos os espíritos dos bastardos e o espírito da impureza (ורוח
)האמונה. Percebe-se que os espíritos são chamados de impuros e estão relacionados a
questões de possessão, como mostra a análise em relação a 4Q510 (4QShira ) e 4Q511
(4QShirb).
Segundo a análise dos textos, e sua relação com o desenvolvimento da narrativa
dos Vigilantes, percebe-se, como indicam os autores aqui pesquisados, a presença do
imaginário disponibilizado pelo Mito dos Vigilantes. Os espíritos dos Gigantes, que
estão diretamente ligados a narrativa primordial do mito dos anjos que descem do céu,
gerou o imaginário presente nos textos judaicos do segundo templo, especialmente em
Qumran, do mundo cheio de espíritos maus, que causam males e tentações. Em Qumran
percebemos que a mesma narrativa, em diálogo com a tradição religiosa persa, serviu
material simbólico para a idéia dualista, que foi o campo para as relações entre grupos
em batalhas cósmicas e escatológicas da luz/bem e trevas/mal.
O caráter incorpóreo dos espíritos que surgem dos corpos dos Gigantes, permitiu
a possibilidade da idéia de possessão num estágio posterior em Qumran. Essa possessão
gera impureza, pois esses espíritos são impuros, como percebemos no primeiro capítulo,
e é testemunhado nos textos tratados.351 Assim, percebemos novamente a presença dos
temas de impureza e violência da tradição do Mito dos Vigilantes.
Por isso, na narrativa dos Vigilantes, no processo de seu desenvolvimento,
sempre criativo de dinâmico, novas imagens e contornos foram dando formas a suas
350
WAHLEN, Clinton. Jesus and the Impurity of Spirits...p. 44.
351
P. S Alexandre ainda coloca em sua lista 4Q230 1 1 e, com menos certeza, 4Q458 2 i 5 como
testemunhas em Qumran de possessão ligada a espíritos impuros.
93
idéias. Assim, serviu material imagético para os textos judaicos, em especial, a visão de
mundo dualista e das figuras demoníacas. Por isso, na tradição de Qumran, que dá pistas
de como as comunidades cristãs do primeiro século interpretavam o mundo, já temos a
presença do demoníaco envolvido em estruturas dualistas, possuindo pessoas e
carregando caráter de impuro, tudo isso, à luz do desenvolvimento do Mito dos
Vigilantes. Depois disso, podemos entrar nos evangelhos e olharmos o imaginário dos
espíritos malignos como imundos/impuros como resultado de um longo
desenvolvimento da tradição enoquita: “De vigilantes a espíritos impuros”.
4. Resumo e conclusão
94
num todo, e sua possível relação com os temas e imagens presentes no desenvolvimento
do Mito dos Vigilantes na tradição judaica.
95
CAPÍTULO III:
96
1. Mito dos Vigilantes e a literatura do Novo Testamento
352
Cf. CHARLES, R. H. The Book of Enoch or I Enoch. Oxford, Clarendon, 1912 (em especial o capítulo
“The Influence of 1 Enoch on the New Testament”). Em sua obra de dois volumes com tradução e
introdução a literatura apócrifa e pseudepígrafa do Antigo Testamento, no volume II, onde apresentou o
livro de 1 Enoque, ele acrescentou, a esse tópico citado, o intitulado como “Influence on New Testament
Doctrine”, onde ele mostra outros tipos de influências. Cf. CHARLES, R.H. Apocrypha and
Pseudepigrapha… p. 182.
353
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p. 170.
354
DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento (Vol.V)... p. 32.
97
Desde os trabalhos de R. H. Charles, as pesquisas continuaram e surgiram novas
conclusões a respeito das claras lembranças nos textos neotestamentários à tradição de
Enoque355. Nos autores citados há um senso comum de que a tradição enoquita teve
grande apreço nas comunidades cristãs, a ponto do primeiro livro de 1 Enoque estar na
lista dos canônicos na Igreja de língua etíope, na qual foram preservados os cinco livros
da coleção de 1 Enoque.
Além do imaginário dos demônios, que trataremos com mais calma, temos a
possível relação entre escritos neotestamentários nos seguintes textos: Jd 6; 14-15; 1 Pd
3,3-4 (adorno) 18-21 (espíritos em prisão); 2 Pd 2,4; 1 Tm 2,9-11; I Co 11,10.
a) Epístola de Judas: Como disse Nickelsburg “A epístola de Judas tem
especial aproximação com o enoquismo e outras tradições não canônicas”356. Segundo
R. Bauckham, o autor dessa obra poderia pertencer a um ciclo apocalíptico da
palestina357, por isso o interesse pela tradição de Enoque. A epístola parece relembrar a
tradição dos Vigilantes primeiramente no verso 6. No contexto das punições divinas358 o
texto diz o seguinte: “os anjos que não tinham mantido sua posição, mas tinham
abandonado sua morada, ele os mantém eternamente acorrentados nas trevas para o
julgamento do grande dia” (TEB). O texto relembra 1 Enoque 6-11, onde aparecem os
anjos que atravessam o céu (não mantendo a posição, abandonando sua morada)359. E
em 1 Enoque 10,4-6 e 12-14 fala-se do aprisionamento dos Vigilantes até o dia do
julgamento final.
Ainda mais direto são os versículos 14-15, onde a epístola fala de uma profecia
de Enoque, também no contexto de punição:
355
Ver por exemplo a tese doutoral de A. Reed, já citada nesse trabalho (Fallen Angels and the History of
Judaism) e de Nicklesburg (1 Enoch: a Commentary on the Book of 1 Enoch, Chapters 1–36; 81–108 )
356
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... p. 86
357
BAUCKHAM, R. Jude, Epistle of. In: FREEDMAN, D. N. Anchor Bible Dictionary. New York,
Doubleday, 1992. p. 1102.
358
Segundo Vanderkam, no Documento de Damasco, Test. de Naf. e Test. Ben. Sodoma é mencionada
em conexão com os temas de Enoque. Ver. VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p. 171.
359
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... p. 85; VANDERKAM, James C. Enoch, a Man...p. 170;
98
O texto é uma citação quase direta de 1 Enoque 1,9, onde aparece a mesma
idéia, num contexto escatológico, da vinda do Julgamento do Senhor com seus santos
(anjos), para condenar os ímpios360.
b) Epístolas Petrinas: Em 1 Pedro encontramos uma mesma visão de mundo
apocalíptica de 1 Enoque361. No texto 1 Pd 3, 18-20, é bem aceita a sua relação com a
história da missão de Enoque aos Vigilantes362. O texto afirma que Jesus “foi pregar
aos espíritos em prisão, aos rebeldes de outrora, quando se prolongava a paciência de
Deus nos dias em que Noé construía a arca, na qual poucos, isto é, oito pessoas foram
salvas pela água”. Os espíritos em prisão não são espíritos humanos, mas seres
angelicais363. O fato de ir pregar (poreuqei.j evkh,ruxen) refere-se a subir e anunciar a
seres aprisionados e rebeldes. Esses seres estão em relação com o dilúvio, e
provavelmente refletem a tradição de 1 Enoque 6-11364. A imagem de anúncio a seres
espirituais relembra 1 Enoque 12-16, onde Enoque viaja e anuncia a condenação dos
espíritos dos Vigilantes, os rebeldes365. Por isso, J. Elliott faz a seguinte afirmação:
360
Para mais detalhes da relação da epístola de Judas e 1 Enoque, ver: CHARLES, J. Daryl. Jude’s Use of
Pseudepigraphical Source-Material as Part of a Literary Strategy. In: New Testament Studies 37 (1991):
130–45.
361
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... p. 85. Não temos condições de discutirmos aqui as
questões de autoria e datação dessa epístola. Para uma análise sociológica dessa carta ver: ELLIOTT, J.
H. Um Lar Para Quem Não Tem Casa: Introdução sociológica a primeira carta de Pedro. São Paulo,
Paulinas, 1985. J. Elliott diz que a carta de 1 Pedro teve sua redação com propósitos sociais, de caráter
preservativo e, ao mesmo tempo, gerando esperança sócio-histórica para um grupo de peregrinos
(paroikoi/ parepidemoi) na Ásia Menor que viviam uma perseguição não institucional. Ver também:
ELLIOTT, J. H. 1 Peter: A New Translation with Introduction and Commentary. Vol. 37b. The Anchor
Bible. New York, Doubleday, 2008. Contudo nesses trabalhos Elliott não valoriza a cosmovisão
apocalíptica presente na carta. Para uma visão onde o apocalipsismo é levado em consideração, e
representa uma fase mais recente da tradição da carta, ver: TERRA, K. R. C. Um Lar (Celestial) Para
Quem Não Tem Casa: Uma Historia Da Tradição de 1 Pedro. In: Âncora Revista Digital de Religião,
2008; TERRA, K. R. C. Comunidade Apocalíptica de I Pedro: O sofrimento como anúncio consolador
escatológico. In: REIME, H.; VALMOR, Silva. Libertação - Liberdade. Novos olhares: contribuições ao
II Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. São Leopoldo, OIKOS, 2008. p. 219-227.
362
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... p. 560. Nessa parte Nickelsburg apresenta um excurso com
vinte paralelos entre 1 Enoque 180 e 1 Pedro.
363
ELLIOTT, J. H. 1 Peter: A New Translation… p. 697. Para uma crítica à interpretação feita por
Agostinho, e aceita na Idade Média, de tratar esses espíritos como almas humanas que morreram durante
o dilúvio, ver: HIEBERT, D. Edmond. The Suffering and Triumphant Christ: An Exposition of 1 Peter
3:18-22. In: Bibliotheca Sacra (1982): 146-158.
364
ELLIOTT, J. H. 1 Peter: A New Translation… p. 699.
365
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... p. 85.
99
para os angélicos espíritos punidos e aprisionados dos tempos de
Noé366.
366
ELLIOTT, J. H. 1 Enoch, 1 Peter, and Social Scientific Criticism. A Review Article on a Major 1
Enoch Commentary. In: Biblical Theology Bulletin 39 (2009): 39-43. p. 41.
367
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... p. 85.
368
BILLINGS, Bradly S. The Angels who Sinned . . . He Cast into Tartarus (2 Peter 2:4): Its Ancient
Meaning and Present Relevance In: The Expository Times 119 (2008):152-157.
369
BAUCKHAM, R. J. 2 Peter. In: MARTIN, Ralph P. and DAVIDS, Peter H. Dictionary of the Later
New Testament & Its evelopments. Downers Grove, Inter Varsity Press, 1997.
100
Assim, a história dos Titans e a tradição dos Vigilantes são assimiladas, para falar
do julgamento contra os falsos mestres370. Nicklesburg define bem a relação da epístola
de Judas, Mitos dos Vigilantes e mitologia grega em 1 Pedro:
370
BILLINGS, Bradly S. The Angels who Sinned... p. 536.
371
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... p. 86.
372
Para maiores detalhes sobre o texto e sua relação com o mito dos Vigilantes, ver a já citada dissertação
de Anderson Araujo Dias. ARAÚJO, Anderson Dias. Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas.
(especialmente o cap. III).
373
Ver. SEBASTA, J. L. Women’s Costume and Feminine Civic Morality in Augustan Rome. Gender e
History 9/3 (1997): 529-541.
101
Sem demora, retira todos aqueles pratos de iguarias, tira toda a
roupa, solta os cabelos com fina sensualidade, como Venûs
quando surge das vagas marinhas e, como ela, protegia, com sua
mãozinha rósea sua suave púbis, antes com malícia que com
recato. [grifo meu]. (Apoleio, O asno de ouro, 2,17)374.
Esses textos acima são os que tratamos com mais segurança como dependentes da
narrativa dos Vigilantes, pois estão entre os mais citados nas pesquisas sobre o assunto.
Contudo, outras referências podem ser admitidas375.
Ainda que não seja objetivo desse trabalho analisar, sabemos que autores dos
primeiros três (ou quatro) séculos além de se referirem aos ensinamentos ou livros de
Enoque usando termos como escrituras ou profecia376, conheciam bem a tradição dos
Vigilantes. Podemos citar a Epístola de Barnabé, Justino Mártir (Primeira Apologia
5,1-4; Segunda Apologia 5), Atenágoras (Suplicas pelos Cristãos 24-26), Irineu (Contra
Heresias 1.10.1; 1.15.6; 4.16.2; 4.36.4), Clemente de Alexandria (O Instrutor 3,2.14;
Eclogae Propheticae 53,5; Stromata III 7,59)377, Tertuliano (Apologeticum 22, 3-4; De
cultu feminarum i 2,1; ii 10, 2-3), Cipriano de Catargo (De habitu virginum 14),
Pseudo-Clementinas Homilias (8, 12-18), Pseudo-Clementinas Reconhecimento
374
Apud. FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clásica. A História e a cultura a partir dos Documentos.
2ºed. UNICAMP, 2002. p.61.
375
Tanto R. H Charles (Apocrypha and Pseudepigrapha) e Diez Macho (Apócrifos del Antigo
Testamento), Nicklesburg (I Enoch...) em suas introduções apresentam vários outros textos
neotestamentários dependentes a I Enoqoue, e alguns mais expecificamenta a Narrativa dos Vigilantes.
Outros autores ainda traçam mais paralelos e dependências temáticas. Num recente artigo, por exemplo,
R. Strelan mostra que “pescador de homens” está relacionado a julgamento escatológico. Por isso, assim
como os anjos teriam o papel de julgamento no fim dos tempos, Pedro e os demais que são chamados
relembram esse papel dado aos seres angelicais. Essa imagem ele relaciona com I Enoque 1, 9 onde temos
a afirmação de que Deus viria com miríades de seus santos para executar julgamento. Os discípulos
seriam, em sua leitura, os anjos que estavam com ele para julgar o mundo, e Pedro seria um anjo chefe.
Assim, o autor lê Marcos, concernente a imagem dos discípulos, à luz das tradições de Enoque, como se
as imagens lendárias dessa tradição moldassem a visão de mundo do autor do evangelho marcano. Cf.:
STRELAN, R. The Fallen Watchers And The Disciples in Mark. In: Journal for the Study of the
Pseudepigrapha 20 (1999): 73-92.
376
VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... p. 173.
377
Para uma exposição resumida e didática da utilização de Clemente de Alexandria, ver a recente
dissertação de Anderson Araújo. ARAÚJO, Anderson Dias. Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas... p.
55-56. E também o texto de Vanderkam : VANDERKAM, James C. Enoch, a Man... 173-180.
102
(4,26)378, Lactantius (Divine Institute 2,15). O Mito dos Vigilantes é também conhecido
em textos gnósticos como Pistis Sophia, Tratado sobre a origem do mundo e Apócrifo
de João379.
Com essa rápida amostra da influência de temas, imagens e idéias da narrativa dos
Vigilantes na literatura neotestamentária e nos posteriores textos cristãos, pode-se partir
para a questão do demoníaco nos sinóticos, especificamente na questão dos espíritos
impuros, para assim perguntar-se por sua relação com esse corpus tradicional enoquita
acumulado no desenvolvimento de suas releituras e apropriações, avaliando a possível
influência no âmbito do imaginário do demoníaco.
Em termos de importância literária, constatou-se aqui que o Mito dos Vigilantes –
desde as tradições judaicas, especialmente com cosmovisão apocalíptica, e na tradição
dos cristianismos das origens – angariou considerável importância.
Com a presença de um judaísmo ou movimento enoquita na palestina, como
apresentou Boccaccini, e a possível relação de Jesus e o cristianismo com essa
tradição380, podemos comprovar as hipótese da relação entre as idéias do (s)
Cristianismo (s) da (s) origem (ns) e o enoquismo.
Até mesmo a certeza da presença dessas tradições na Palestina, segundo
Nickleburg, pode ser garantida, pois o próprio texto de 1 Enoque 6-16, por causa de
suas informações geográficas, mostra que pelo menos essa parte pertencia à região
setentrional da Galiléia381. Isso torna a pesquisa interessante, pois muitas tradições nos
sinóticos relacionam Jesus à Galiléia e provavelmente a fonte Q teria sua origem e vida
naquelas regiões382. Por isso, juntamente com as tradições judaicas apocalípticas relidas
– que geraram muitas imagens demonológicas a partir da tradição enoquita, como
apresentado no capítulo II – alguns textos de Enoque tinham vida nas regiões da
palestina383.
378
STRELAN, R. The Fallen Watchers... p.74.
379
Para maiores referências da tradição dos Vigilantes no gnosticismo, ver: STROUMSA, G. Another
Seed: Studies in Gnostic Mythology (Nag Hammadi Studies 24). Leiden, E.J. Brill, 1984. pp. 19-34.
380
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis...p 195.
381
NICKELSBURG, George W. E, I Enoch... 65. Ainda, em um famoso artigo, o autor apresenta a
relação entre as tradições de Enoque, Levi e Pedro ao monte Hermon, em âmbito revelatório, localizando
as três tradiçãoes na Galiléia setentrional. Cf. NICKELSBURG, George W. E. Enoc, Levi, and Peter:
Recipients of Revelation in Upper Galilee. In: Journal of Biblical Literature 100 (1981): 581-82.
382
VAAGE, Leif E. Galilean Upstarts. Jesus’ First Followers According to Q. Harrisburg, Trinity Press
International, 1994; VAAGE, Leif E. O Cristianismo Galileu e o Evangelho Radical em Q. In: RIBLA 22
(1995): 84-108.
383
Falamos da Palestina de maneira generalizada com as devidas reservas, pois somos cientes das
pesquisas em âmbito regionalista, as quais diferenciam Galiléia e Jerusalém (Judéia). Cf.: HORSLEY, R.
Galilee: History, Politics, People. Valley Forge, Trinity Press International, 1995; HORSLEY, R.
103
2. O demoníaco nos sinóticos como Espíritos Imundos.
Neste ponto do trabalho, entraremos nas narrativas dos sinóticos com o objetivo
de olharmos, primeiramente, a relação entre a expressão pneu/ma avka,qarton e o
demoníaco. Luigi Schiavo, na sua excelente dissertação, falou da importância de
explicar a diferença entre “espíritos imundos” e “demônios” no Mundo Antigo384.
Contudo, ele acaba não fazendo isso, ou se fez não foi possível perceber claramente. No
entanto, nesta pesquisa, pelo contrário, a questão precisa ser respondida, pois
influenciará de forma relevante nos resultados finais: “espírito imundo é uma
manifestação demonologica autônoma? Uma espécie de demônio? Ou seria a maneira
de perceber a essência, como uma adjetivação, dos seres demoníacos?
Os termos usados nos sinóticos para designar a presença dos seres malignos, que
causam danos aos homens, são estes:
Arqueologia, História e Sociedade na Galiléia. Contexto Social de Jesus e dos Rabis. São Paulo, Paulus,
2000. Para uma crítica aos trabalhos de R. Horsley, na qual apresenta uma improvável relação entre os
ensinos de Jesus e o antigo norte da Galiléia, ver: REED, J. L. Archeology and the Galilean: A Re-
examination of the Evidence. Harrisburg, Trinity Press International, 2000.
384
SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios em Decápole… p. 25.
385
RILEY, G. J. ‘Demon’. In: TOORN, Karel van der (ed.). Dictionary of Deities and Demons in the
Bible. Leiden. Boston. Köln, Brill, 1999. p. 235.
386
RILEY, G. J. ‘Demon’... p. 235
387
RILEY, G. J. ‘Demon’... p. 235.
104
Como as divindades no período clássico poderiam ser boas ou más, os daimones
poderiam ser bons ou maus – nos evangelhos e nos Cristianismo sempre terá
conotação negativa.
388
ALVEREZ, A. El Diablo y el demônio son lo mismo?: aclaraciones para una correta comprensión. In:
Selecciones de Teologia 34 (1995). p. 61.
389
Segundo Schiavo “dado o número considerável de exorcismo na atividade de Jesus, eles fogem do
gênero literário mais amplo milagres, para constituir um gênero próprio, que chamamos relatos de
exorcismo”. SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios em Decápole… p. 62.
105
expressão, como uma categoria ou interpretação do demoníaco pelos evangelhos
sinóticos.
390
GUELICH, R. A. Word Biblical Commentary: Mark 1- 8:26. Word Biblical Commentary. Vol 34a.
Dallas, Incorporated, 1989. p. 56.
391
KEE, H. The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. In: New Testament Studies 14 (1968): 232-
246.
392
TAYLOR, V. Evangelio segun San Marcos. Madri, Ediciones Cristiandad, 1980. p. 187.
106
Em Mc 1, 21-28, no exorcismo inaugural, ao entrar numa sinagoga de
Cafarnaum no sábado, Jesus encontra alguém (homem) com um pneu,mati avkaqa,rtw
(espírito imundo/impuro) (v.23). Nesse texto não há variação terminológica para
identificação do ser que foi expulso, pois no verso 26 ele é chamado também de espírito
impuro. No verso 27 as testemunhas, informa Marcos, reconheceram que Jesus tinha
autoridade sobre os espíritos imundos, agora no plural.
Nesse texto, o espírito imundo parece conhecer bem quem era Jesus, e diz ser ele
o` a[gioj tou/ qeou/ (Santo de Deus). Eles possuem conhecimentos cósmicos, e de
alguma forma a presença desse santo de Deus os incomoda. O espírito também mostra-
se muito violento, e sai do possesso aos gritos (v.26). No verso 27 diz que Jesus manda
até nos “espíritos imundos” (no plural), ou seja, o singular do verso 23 representava um
grupo maior. Essa idéia tem paralelo com a forma como o espírito imundo dirige-se a
Jesus, pois no verso 24 ele fala em nome de um coletivo (que há entre nós e ti; vieste
para nos destruir.), e depois volta a falar no singular: “conheço-te (oi=da, se) quem és...”.
Parece existir outros espíritos como ele, que não estão satisfeitos com a presença de
Jesus.
Na primeira aparição, o que está no homem da sinagoga é um ser chamado de
espírito imundo, que é violento – ele sacode violentamente o possesso e sai aos gritos,
numa imagem selvagem e forte. Esses espíritos também conhecem Jesus, e sua presença
incomoda, pois temiam ser destruídos/perdidos (avpole,sai h`ma/j [v.24]). Não temos
variação dos termos, o que está no homem em toda narrativa é chamado de pneuma
akátharton e não de demônio.
393
GUELICH, R. A. Word Biblical Commentary... p. 148.
107
Aqui também os espíritos imundos revelam algo, e Jesus deseja que seja
silenciado. No sumário de Mc 1, 34, também num contexto de cura, o autor diz que
Jesus expulsou muitos daimónia (demônios) e não os deixavam falar, pois conheciam
Jesus. Este sumário tem o mesmo conteúdo daquele, mas é usado duas vezes o
nominativo plural daimónia (daimo,nia) no lugar de espírito imundo. A impressão é que
chamar de espíritos impuros ou demônios, a luz do paralelo desses sumários, não há
diferença. Em 1, 39 também são chamados de demônios.
394
GUELICH, R. A. Word Biblical Commentary... p. 168.
395
GNILKA, J. El Evangelio Segun Marcos – Mc 1- 6.26. Vol. I. Salamanca, Ediciones Segueme, 1986.
p. 144-145.
108
ba’al zĕbûl , que significaria o “Príncipe Baal” ou “Exaltado Baal”396, que é usada aqui
para se referir a satanás397.
Jesus responde dizendo que Satã não pode expulsar Satã (23). Desta forma, no
texto Satã, Beelzebul e príncipe dos demônios se referem ao mesmo ser398. O problema
é que enquanto no v. 22 Beelzebul, líder dos demônios, está no singular e pelo seu
poder Jesus expulsa os demônios (no plural), no verso 23 Jesus responde no singular,
como se também os demônios fossem o próprio Satã. No verso 30, o texto identifica a
acusação de Jesus ter Beelzebul, que seria o líder dos demônios ou o próprio Satã, como
se o acusa-se de possuir um espírito imundo (pneu/ma avka,qarton). O verso conclusivo da
perícope diz: “isso, porque dizem: ‘Ele tem um espírito impuro’” (3,30). Para o autor,
Satã (Beelzebul) é um pneûma akátharton.
Nesta perícope Jesus está em Gerasa, onde se encontra com um homem possuído
por um espírito imundo (vv.2,8 [no singular]). Segundo M. W. Newheart seria uma
região perfeita para o aparecimento de um espírito imundo, pois era considerada impura.
Isso se harmoniza quando os espíritos impuros entram em porcos, que são
também impuros399. Esse homem morava nos túmulos e montanhas (vv. 2, 5), e era
muito forte, até correntes não o seguravam (v.3): “ele morava nos túmulos e ninguém
podia prendê-lo, nem sequer uma corrente.
Como em 1,26 e 3,11 tinha reações nervosas de gritos (5, 5) e se cortava com
pedras, numa imagem de violência como das convulsões de 1,26. Como em 3,11 ele se
prostra (proseku,nhsen). Além de se prostrar, como em 1,24, ele se sente incomodado
com a presença de Jesus (v.7) e agora o chama de “Filho do Altíssimo”. Mesmo que
neste momento o espírito imundo estivesse tentando bloquear o exorcista, antecipando-o
ou até mesmo querendo “exorcizá-lo”, como alguns interpretam pelo fato de usar o
396
LEWIS, T. J. ‘BEELZEBUL’. IN: FREEDMAN, D. N. The Anchor Bible Dictionary. Vol. I. New Yourk,
Doubleday, 1992. p. 638
397
PENNEY, Douglas L. and WISE, M. O. By the Power of Beelzebub… p. 633.
398
Meyrs diz que os escribas usam duplo eufemismo para satanás: Beelzebul e líder dos demônios. Ver:
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo, Paulinas, 1992.
399
NEWHEART, M. Willett. My Name is Legion: the Story and Soul of the Gerasene Demoniac.
Collegeville, Liturgical Press, 2004. p. 45.
109
nome de Jesus400, o que ocorre outra vez é uma revelação: Jesus é o “Filho do
Altíssimo”. No verso 13, a expressão espírito imundo está no plural, mas a terminologia
não muda. Desde o verso 9 a expressão legião denota coletividade de espíritos,
confirmada com a entrada em porcos (no plural)401.
Nos versos 15, 16 e 18 Marcos usa o verbo daimoni,zomai no passivo (os dois
primeiros no particípio presente: daimonizo,menon/ daimonizome,nw|; e o terceiro no
particípio aoristo: daimonisqei.j) para dizer o que tinha aquele homem: estava possuído
pelo(s) demônio(s). Então, estar com um espírito(s) imundo(s) é o mesmo que possuir
demônios. Na história há uma combinação de duas maneiras de olhar o exorcismo:
como uma batalha entre Jesus e os demônios (que seriam espíritos imundos) e como a
cura de uma pessoa402.
Na ordem e lógica presente do texto, independente de suas questões diacrônicas,
o demônio era um espírito imundo; como um adjetivo ou algo que revelava sua
característica própria: ser imundo.
ei=cen to. quga,trion auvth/j pneu/ma avka,qarton (v.25) [tinha a filha dela (um) espírito
imundo ]
i[na to. daimo,nion evkba,lh| evk th/j qugatro.j auvth/j (v. 26) [para que o demônio expulsasse
da filha dela].
400
Ver.: SMITH. Jesus the Magician. São Francisco, Harper & Row Publisher, 1978; Gnilka, J. El
Evangelio Segun Marcos... p. 237.
401
TAYLOR, V. Evangelio segun San Marcos... p. 324. Entram em 2000 mil porcos, demonstrando a
grande quantidade de seres que invadiram o homem.
402
WAHLEN, Clinton. Jesus and the Impurity of Spirits… p. 153.
110
O problema a ser resolvido era a possessão de uma menina, que o texto diz ter
um espírito imundo e logo depois, sem qualquer diferenciação, é chamado de demônio.
Como acontece em 3,30, novamente Marcos diz ser o demônio um espírito imundo.
Inclusive, na explicação conclusiva de Mc 7, no verso 30, novamente quem saiu da
menina foi o demônio: “o demônio (to. daimo,nion) a deixou”.
Nesse texto, fica ainda mais clara a relação entre espírito impuro e demônio. O
primeiro é uma espécie de característica ou um adjetivo para o segundo. Assim, o
demônio é para Marcos, neste texto, um espírito impuro.
403
GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos – Mc 8.27-16.20. Vol II. Salamanca, Ediciones.
Sigueme, 1986. p.53.
111
kwfo.n pneu/ma) (v.25). No inicio da narrativa ele era espírito mudo, agora é identificado
como sendo um espírito imundo, surdo e mudo. O texto organiza as expressões assim:
Nesse texto parece que espírito, espírito mudo e espírito surdo são identificados
como espíritos imundos, não havendo, como nos textos anteriores, diferença entre eles.
Ser espírito mudo e surdo é ser um espírito imundo.
Basta agora perguntar pelos outros sinóticos. Como vêem a relação entre espírito
imundo e os demônios? Os textos paralelos a Marcos, onde aparece a expressão
espíritos imundos, nos mostrarão se existe uma forma rígida a ponto de diferenciar
112
daimonion de pneûma akátharton (Mc 1,23-28// Lc 4, 31-37; Mc 5,1-20// Mt 8, 28-34//
Lc 8,26-39; Mc 7,24-30 // Mt 15, 21-28; Mc 9,14-29// Mt 17,14-21 // Lc 9, 37-43),
como também as passagens onde aparecem as expressões espíritos imundos que não
têm paralelos em Marcos.
1. Em Lucas 4, 31-37, em paralelo com Mc 1, 23-28, mostra-se o exorcismo
na sinagoga de Cafarnaum404. Em Lc 4, 33 o homem na sinagoga tinha um “espírito de
demônio imundo” (pneu/ma daimoni,ou avkaqa,rtou), enquanto em Mc 1,23 é
simplesmente espírito imundo (pneu,mati avkaqa,rtw). É a única vez em Lucas e nos
sinóticos que espírito impuro e demônio são mesclados formando uma mesma
expressão. Akátharton está em relação predicativa com daimonion. Como predicativo
serve para afirmar alguma coisa digna de destaque sobre o substantivo que predica, o
que se afirmou é implicitamente uma sentença, e o pensamento pode permanecer no que
foi afirmado405. Assim, Lucas afirma com essa sentença que o espírito de demônio é
impuro406, lembrando a mesma idéia presente em Marcos: revelava sua característica
própria, algo de seu ser. F. Bovon e H. Koester, ao comentarem o texto, chegam à
conclusão que akátharton e daimonion são pleonasmos407.
No verso 35 esse espírito é chamado de demônio, como se falasse do mesmo
ente. No verso 36, do específico, novamente, se faz uma sentença geral: tem autoridade
sobre os espíritos impuros, em forma atributiva (toi/j avkaqa,rtoij pneu,masin). As
modificações de termos mostram-se assim:
v. 33: Kai. evn th/| sunagwgh/| h=n a;nqrwpoj e;cwn pneu/ma daimoni,ou avkaqa,rtou... (E na
sinagoga estava um homem tendo um espírito de demônio imundo...).
v. 35: kai. r`i/yan auvto.n to. daimo,nion eivj to. me,son evxh/lqen avpV auvtou (e tendo
arremessado-o para o meio, o demônio saiu dele.)
404
De Lc 4,31 até 6, 19 segue a descrição de Marcos. BOVON, F., & KOESTER, H. Luke 1: A
Commentary on the Gospel of Luke 1:1-9:50 Minneapolis, Fortress Press, 2002. p. 158.
405
Ver: SWETNAM, Jones. Gramática do Grego do Novo Testamento. Parte I: Morfologia. Vol I. São
Paulo, Paulus, 2002. p. 20; CHAPMAN, B. Greek New Testament Insert. 2º ed. revisada. Quakertown,
Stylus Publishing, 1994.
406
É recomendada nas traduções de adjetivos em função predicativa a utilização do verbo ser (eimí), que
está subtendido nessas expressões. Ver: SWETNAM, Jones. Gramática do Grego do Novo Testamento...
p. 20.
407
BOVON, F., & KOESTER, H. Luke 1: A Commentary on the Gospel of Luke... p. 162.
113
v. 36: o[ti evn evxousi,a| kai. duna,mei evpita,ssei toi/j avkaqa,rtoij pneu,masin kai.
evxe,rcontai; (... com que autoridade e poder ordena aos impuros espíritos e eles saem?)
Com o verso 36 fica claro que, ao falar sobre o espírito que atormentou aquele
rapaz, o caracteriza como impuro: O demônio (to. daimo,nion) do verso 35 é impuro, é
um espírito impuro, como mostra a expressão do verso 33. O que sai do homem em Mc
1,26 diz ser o espírito imundo, enquanto Lucas, como se vê, chama-o de demônio.
Como em Marcos, aqui ele tem reações violentas e aos gritos revela seu conhecimento
de Jesus (Lc 4, 34)408.
2. Em Lc 8, 26-39, o paralelo de Marcos 5, 1-20, temos por seis vezes daimo,nia
(demônios) para falar do possesso em Gerasa (vv. 27, 29, 30, 33, 35 e 38)409, e uma vez
o pneûma akátharton (v. 29). No verso 36 Lucas diz estar o homem endemoninhado,
mesmo afirmando no verso 29 que Jesus chamou o espírito de “espírito imundo”. Em
Mateus 8, 28 e 33 os gadarenos também estavam endemoniados, e somente usa o
substantivo dai,monej410 (demônios) para se referir aos seres que o possui. Confundem-
se, na comparação sinótica, nestes textos, demônios com o espírito imundo.
3. Em Mt 15, 21-28, que está em paralelo com Mc 7, 24-30, diz estar a menina,
filha da mulher siro-fenícia, endemoniada (daimoni,zetai) (v. 22). Ela em Marcos tinha
um espírito imundo (7,25), que segundo os outros versículos era um demônio
(26,29,30), e que em Mateus tornava-a endemoniada, ou seja, ter demônio (s).
4. Em Mt 17, 14-21, que está em paralelo com Mc 9, 14-29, somente no verso
18 é reconhecido a presença de algo maligno no rapaz. Mateus resume as declarações
sobre o espírito que possui o rapaz e chama de demônio. Na perícope lucana de 9, 37-
43, no mesmo verso é chamado de demônio (v. 42) e espírito imundo (v. 42), deixando
claro que para o autor estava falando da mesma coisa, quando usava espírito imundo ou
demônio.
5. A controvérsia de Mt 12, 25- 32, paralelo à Mc 3, 22-30 e Lc 11, 15-23 com
consideráveis variações, é introduzida pela informação de uma cura feita por Jesus a um
possesso cego e mudo (v. 22-23). Ao ser curado, que no texto é ser exorcizado, ele
voltou a falar e ver. Logo após a introdução aparece três vezes o substantivo demônios
(vv. 24, 27 e 28), e também a acusação de Jesus expulsar os demônios pelo poder de seu
408
Kee examina o verbo πιτιμάω (repreender) e sua correspondente raiz semítica( גער1QapGen 20. 16-
32). Cf. KEE, H. The Terminology of Mark’s Exorcism... p. 236-240.
409
Como em Mc há imagem de pluralidade, eram demônios.
410
Única vez nos sinóticos que se utiliza o substantivo daímon.
114
líder (Beelzebul), e a frase: “se a Satã expulsar Satã...”, dando, como em Mc e Lc, a
idéia de identificação de Beelzebul com Satã. A diferença está no fato de Marcos, em
sua conclusão, chamar essas figuras (Satã e Beelzebul) de espírito (s) imundo (s) (
3,30). Em Lucas, antes da controvérsia de Beelzebul, de maneira mais clara menciona o
exorcismo de um demônio mudo, o qual ao sair deixa o rapaz livre da mudez (Lc
11,14). O demônio era a causa de seu problema411. Assim, o exorcismo tem caráter de
cura, pois extrai o causador da doença (aqui a cegueira).
6. Em Lucas ainda temos a presença do espírito imundo em 11, 24, paralelo a Mt
12, 43. Em Mt 12, 43, no começo da frase aparece a conjunção de,, que parece ser uma
estratégia literária de Mt para sinalizar uma transição. Nos mesmos versículos, Mateus
utiliza o advérbio de negação ouvc enquanto Lucas utiliza mh,. A forma usada por Mateus
é mais enfática. Talvez, ele tenha feito isso para enfatizar ainda mais a decepção na
procura do espírito por um lugar de descanso no deserto. A esses advérbios Mt e Lc
ligam ao verbo “encontrar”. Contudo, Mt escreve o verbo no presente ativo, enquanto
Lc preserva o texto no particípio presente. Desta forma, Mt enfatiza ainda mais a cena e
termina a oração com o ponto final.
O advérbio to,te usado por Mt depois do ponto final, não se encontra em alguns
manuscritos e códices de Lc. Depois, do to,te é anunciada as palavras do espírito
impuro. Em Mt 12, 44 e Lc 11,24 são diferentes:
a) Mt 12, 44: eivj to.n oi=ko,n mou evpistre,yw o[qen evxh/lqon (para casa minha
voltarei de onde saí).
b) Lc 11, 24: ~Upostre,fw eij t,on oi=ko,n mou o[qen exh/lqoôn (voltarei para a casa
minha de onde saí).
A imagem é de um lugar vazio, preenchido por seres piores do que aquele que
estava antes. O espírito imundo verifica o local, pois o Lc 11, 25 diz que a “acha
varrida...” “Então vai e carrega consigo outros sete”. Por isso, a situação depois de sua
volta seria pior do que a primeira. O verbo stre,yw nos dois textos está no futuro, mas
Mt usa a forma com epi, enquanto Lc utiliza com a forma upo. Outro detalhe, que
diverge entre Mt e Lc nesta parte é a falta do verbo scola,zonta em Lc. Mt insere-o no
411
NOLLAND, J. Word Biblical Commentary: Luke 9:21-18:34. Vol. 35b. Dallas.Word, Incorporated,
2002. p. 643.
115
aspecto particípio presente ativo acusativo, sendo ligada a dois verbos no particípio
perfeito passivo. Talvez seja um acréscimo de Mateus, para mostrar que encontra a casa
desocupada, tendo sido varrida e ornamentada. Isso torna o texto mais compreensivo,
pois os dois verbos no particípio perfeito médio/passivo ligados diretamente ao verbo
presente ficariam um pouco “truncados”. Em Lucas 11, 24-26, possivelmente
pertencente à fonte Q412, o que sai do corpo e volta trazendo mais sete é chamado de
pneûma akátharton. Assim, na fonte Q também temos a presença da expressão “espírito
imundo”, com a característica dos demais demônios dos sinóticos de possuir pessoas. E,
além disso, como espírito dodeia livremente, até voltar.
O espírito imundo vai para os lugares áridos ou desérticos. Na mentalidade da
antiguidade era a hospedagem dos maus espíritos413. Para esses, o local habitado era o
cosmos, conhecido, desbravado, seguro. Contudo, as regiões desérticas, áridas,
desconhecidas faziam parte do mundo caótico, com seres estranhos que constantemente
ameaçavam o cosmos, por isso a necessidade diária dos ritos e as batalhas dos entes
sobrenaturais414. Na Mesopotâmia, estavam no deserto as criaturas malignas que faziam
parte da tropa de Tiamat. Um deles era Pazuzu, que tinha quatro garras e cabeça
deformada. Ainda, o próprio deserto era visto como forma de perigo contra a ordem, ou
seja, o reino do caos415.
Em Lv 16, 8 Azazel estava no deserto. Em Tob 8, 3 o demônio ao ser afastado
com cheiro de peixe (possível idéia de exorcismo) foge para os lugares áridos (Egito). O
interessante é que os Vigilantes também estão ligados ao deserto em I Enoque 10, 4
(deserto de Dudael) e 4 Macabeus 18,18. É no deserto que acontece a batalha cósmica
412
. Ver: VAAGE, Leif E. O Cristianismo Galileu e o Evangelho Radical em Q. In: RIBLA 22 (1995): 84-
108; KLOPPELBORG. J. The Formation of Q: Trajectories in Ancient Wisdom Collection, Philadelphia:
Fortress Press, 1987. Ver a lista apresentada em: ROBINSON, J. M., HOFFMANN, P., &
KLOPPENBORG, J. S. The Critical Edition of Q: Synopsis Including the Gospels of Matthew and Luke,
Mark and Thomas With English, German, and French Translations of Q and Thomas. (Hermeneia critical
and Historical Commentary on the Bible). Minneapolis; Leuven, Fortress Press; Peeters, 2000. R. Brown
acredita que no bloco 9,51-19,27, em especial 9-51-18,14, encontra-se a maior utilização lucana da fonte
Q. Cf. BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 2004. p. 275.
413
ALBRIGHT, W. F. and MANN, C. S. Matthew. A New Translation With Introduction and
Commentary. The Archor Bible. Vol. 26, Doubleday, New York, 1987.
414
Ver. ELIADE, Mircea. Imagem e símbolo. Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo,
Martins Fontes, 1996.
415
COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá: as origens das crenças no Apocalipse. São
Paulo, Companhia das Letras, 1996.
116
entre Jesus e Satã também na Fonte Q (Q 4, 1-12)416. Por isso, em Q o espírito impuro é
confundido com qualquer outro ser maligno ou demônio.
7. Nos sumários de Lucas, para os exorcismos, são usadas as expressões:
demônio (4,40); espírito imundo (6,18) e espíritos maus (pneuma,twn ponhrw/n) (7,21 e
8,2). Em Lc 9,1, temos a informação do poder dado aos discípulos sobre os demônios,
como em Mc 3,15. Na comissão dos doze, de Mc 6, 7-13, quando os enviou de dois em
dois deu-lhes autoridade sobre espíritos imundos, como em Mt 10,1. Contudo, no
mesmo texto Mateus diz ser a autoridade dos discípulos sobre os demônios (v.8). Ter
autoridade sobre os demônios era tê-la sobre espíritos imundos; como se estes se
referissem àqueles. No episódio onde foram apresentados os exorcismos feitos pelos
não discípulos (Mc 9,38-39 // Lc 49-50), o texto informa que demônios eram expulsos.
416
SCHIAVO, Luigi. A Batalha Escatológica na Fonte dos Ditos de Jesus. A Derrota de Satanás na
Narrativa da Tentação (Q 4,1-13)? Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista
de São Paulo, 2003.
117
de espíritos imundos. Como, também, às vezes Mateus chama de espíritos imundos, em
paralelo com Lucas, os espíritos que possuem e causam enfermidade.
Os demônios, o próprio Satã e os espíritos surdos e mudos, são considerados
como espíritos imundos, não havendo um ser autônomo com essa nomenclatura. Por
isso, a idéia que aparece nos sinóticos não é de duas entidades diferentes. Os demônios,
em Lucas e Mateus, se olharmos paralelamente com Mc, e Satã/Beelzebul/líder dos
demônios, são espíritos imundos, ou seja, são chamados ou adjetivados como imundos.
Archibald Woodruff chegou à mesma conclusão ao analisar as manifestações
demoníacas em Marcos417.
Por isso, nossa pergunta a partir de então seria pela razão desses seres serem
tratados como espíritos impuros. Ou melhor, o que contribuiu para construção
imaginária dos seres malignos/demônios como impuros.
As respostas mais comuns dessa impureza – como maculação de quem tem o
espírito, ou por impedir que a santidade de Deus se torne plena e abrangente, ou pelo
simples fato de não proceder de Deus418 (ou como diz Uwe Wegner: são impuros
porque não são espíritos santos ou puros419) –, deixam de lado a imagem da própria
impureza que o espírito tem em si.
A possível resposta para o porquê da impureza dos demônios pode estar no
desenvolvimento do demoníaco na história cultural da religião judaica. Adela Y. Collins
tratando da expressão espírito impuro no evangelho de Marcos, afirma:
417
WOODRUFF, Archibald M. O Demoníaco no Evangelho de Marcos. In: Estudos de Religião 33
(2007):108-120.
418
SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios em Decápole; NETO, Antonio Lazarini. Messias Exorcista: O
Combate aos Espíritos Imundos e a Estrutura de Marcos (Exegese de Mc 1.21-28). dissertação (Mestrado
em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, 2007.
419
WEGNER, Uwe. Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos. In:
Estudos Teológicos, n. 2 (2003): 83-103. p. 87. Ver também: DATTLER, F. O mistério de Satanás:
diabo e inferno na Bíblia e na literatura universal. São Paulo, Paulinas, 1977, p. 32.
118
(ato) de impureza. Então, Jubileus pode referir-se em geral para
‘impuros demônios’420.
1. são espíritos
2. são muitos (legião, 2000 porcos)
3. estão em batalha cósmica contra forças do Reino (Jesus x Demonios/ Trevas x
Luz)
4. são liderados (Belzebul/Satã).
5. utilizam-se de corpos humanos ou não-humanos;
6. geram quadros de violência (gritos, convulsões, destruição de correntes, ranger
de dentes, rolar no chão);
7. podem ser expulsos;
8. incomodam-se com a presença de Jesus e reconhecem seu poder (prostrar, pedir
permissão, medo de serem destruídos);
9. sabem segredos que não devem ser revelados, ou segredos que Jesus não deseja
que sejam anunciados421;
10. mudam o curso natural das expressões humanas;
420
COLLINS, A. Y. Mark and His Readers: The Son of God among Jews. In: Havard Theological
Review 92/4 (1999): 393-408. p. 400.
421
“possuem especial conhecimento”. COLLINS, A. Y. Mark and His Readers… p. 401.
119
11. não fazem distinção de gênero ou etnia para possessão e perturbação (judeu de
uma sinagoga, menina filha de uma siro-fenícia);
12. podem fazer resistência ao serem exorcizados (suplica para não sair da região,
não sai com os discípulos);
13. são identificados como produtores dos problemas, doenças e males (quem
identifica: as testemunhas, Jesus, o pai e a mãe dos possuídos). Quando
exorcizados cura-se a enfermidade.
14. São fortes, deixam o possesso com forças não humanas (quebrar correntes)
120
Wright422. Ao serem mortos no dilúvio, os espíritos que saíram dos corpos dos
Vigilantes são livres para vagar pela terra, esses são os espíritos maus (1 Enoque 15). A
mesma imagem de liberdade aparece nos sinóticos e em Q. Um exemplo se encontra em
Lc 11,24, que ao sair do homem vaga por lugares áridos.
No decorrer das tradições Judaicas, a imagem de seres espirituais sem corpos
gerou a possibilidade desses seres possuírem corpos. Assim, gera-se uma
gigantologia423, na expressão de A. Wrigth. Essa imagem parece estar relacionada à
possibilidade de suscetibilidade humana ao seu ataque424, para possibilidade de seres
malignos invadirem os corpos.
No Antigo Testamento, um grande aglomerado de referências para um mau
espírito ocorre no contexto do conflito de Saul com Davi. Um espírito maligno toma o
corpo de Saul logo depois da saída do Espírito do Senhor (1 Sm 16,14). Contudo,
segundo C. Wahlen, não há uma clara identificação do espírito com o termo demônio. O
que se percebe é a possibilidade dessa tradição servir como pavimento para posteriores
tradições425, como na gigantologia e antropologia presente na tradição de Enoque, onde
seres malignos atacam seres humanos suscetíveis a tais investidas, que perpassa
Jubileus, Qumran e tradições pseudepígrafas.
Nos sinóticos os demônios são seres espirituais que possuem os corpos,
inclusive de animais (porcos, Mc 5, 1-20 e paralelos). Eles, como foi dito, análogo aos
espíritos dos Gigantes, têm certa liberdade, e quando saem do corpo, por exemplo,
vagam. Os possuídos apresentam quadro de violência, e a possessão gera forças
desumanas (como ficou claro na análise dos exorcismos dos sinóticos), a ponto do
gadareno quebrar correntes. Na tradição de Jubileus, os espíritos dos gigantes, os maus
espíritos são deixados para atormentar os homens, por isso a necessidade de meios para
afastá-los (Jub 10, 10.12; 4Q444). Nos sinóticos, os mesmos espíritos causam situações
desagradáveis aos possuídos.
O Testamento de Salomão mostra como era comum essa visão de seres malignos
como causadores de males humanos. Mesmo datado no séc. III d.C, esse texto,
provavelmente reflete os conceitos do tempo do Novo Testamento 426, por isso dialoga
422
Cf. WRIGHT, A. T. Evil Spirits in Second Temple Judaism… p. 141-160; WRIGHT, A. T. The Origin
of Evil Spirits... p. 146.
423
Ver: WRIGHT, A. T. Evil Spirits in Second Temple Judaism… p. 141-146.
424
Ver: 3.1.2.2
425
WAHLEN, Clinton. Jesus and the Impurity of Spirits...p.26.
426
NOGUEIRA, Paulo A. S. Experiência religiosa e crítica social no Cristianismo primitivo. São Paulo,
Paulinas, 2003. p. 215.
121
também com a tradição de Enoque, a ponto de no capítulo 17 falar dos espíritos dos
Gigantes. Nos sinóticos, os possuídos causam muitos males, inclusive algumas doenças,
que depois do exorcismo são curadas.
Na tradição de Enoque, desde o cap. 15, passando por Jubileus e Qumran, e nos
demais pseudepígrafos, os espíritos maus, espíritos dos Gigantes, estavam no mundo em
grande quantidade (Jubileus fala de um décimo de todos). E mais, esses espíritos, a
partir de Jubileus tinham um líder (Mastema) que em outros textos aparece como Belial,
Príncipe das Trevas e Melkîreša, que já em Qumran estavam em um mundo dualista.
Nos sinóticos os demônios eram muitos427, nos sumários as expressões no plural
parecem corroborar com isso. Ainda, como se apresenta em Mc 3,20-30 (e paralelos), os
demônios têm também, no imaginário dos evangelhos, um líder.
Conhecimentos cósmicos: Outro tema presente na tradição de Enoque é a
questão do conhecimento especial dos Vigilantes. Na tradição de Azazel, expõem-se
alguns ensinamentos não permitidos, que geram futuras desgraças. Assim, a imagem
dos caídos como possuidores de ensinamentos celestiais está presente na tradição
enoquita. Nas releituras na tradição pseudepígrafa judaica essa particularidade dos anjos
caídos não é destacada. Talvez no texto de Jubileus haja essa idéia subtendida na ação
de levar à corrupção os filhos de Noé (Jub 10,5), pois os ensinamentos na tradição de
Azazel levam os homens a isso.
No evangelho de Marcos os demônios possuem um conhecimento especial de
Jesus: seu segredo messiânico. Na tradição enoquita não se fala dos espíritos dos
Gigantes como possuidores da mesma sabedoria, isso se a interpretação de Jub 10, 5
apresentada acima não estiver certa. Contudo, como acontece nas releituras dos pais
apostólicos, e Tertuliano é uma exemplo, não há uma diferenciação clara entre as
características dos Vigilantes (pais) e os Gigantes/seus espíritos (filhos)428. Esse
especial conhecimento é análogo no Testamento de Salomão em relação com o
demoníaco, onde os demônios parecem ter conhecimento sobre o futuro (Test. Sol. 5.5;
20.1-21)429. Um demônio chamado Ornias diz assim no texto: "Nós, demônios, vamos
até o firmamento do céu voar entre as estrelas, e ouvimos as decisões e a questão de
Deus sobre a vida dos homens" (Test. Sol. 20,12). Parece que o Testamento de Salomão
427
As questões sociológicas da relação de Legião (Mc 5,9) à divisão de soldados romanos é bem
conhecida, e não é descartada, ver, por exemplo: MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos... p. 33.
Contudo, na imagem pintada por essa expressão e os 2000 porcos onde os espíritos entram pintam um
quadro de multiplicidade de espíritos imundos.
428
Em seu texto Apologeticum , Tertuliano diz que os anjos que caíram eram ninhada demoníaca ( 22,3).
429
COLLINS, A. Y. Mark and His Readers… p. 401.
122
mostra a possibilidade de relação entre demônios e ensinos especiais, como acontece
com Marcos, em diálogo com a tradição enoquita. Assim, em Marcos os seres malignos
possuem um conhecimento especial ou cósmico, que o evangelho utiliza em seu
esquema redacional para o segredo messiânico.
Os temas de violência e conhecimento, em especial o da violência (comuns às
tradições de Enoque ligados aos espíritos dos Gigantes, que são, por sua vez, resultado
da narrativa dos Vigilantes), aparecem de forma bem nítida nos sinóticos. Essas
imagens estão ligadas a de causadores de problemas, doenças, tentação e outras
mazelas, que perpassa todo o imaginário judaico do segundo templo. Nos textos que
possuem cosmovisão apocalíptica, os mesmos demônios, ou espíritos maus, estão
inseridos no campo dualista de forças contra o lote de Deus, imaginário também
presente na tradição sinótica nos afrontamentos a Jesus.
Podemos assim traçar os seguintes paralelos sobre as imagens dos seres
malignos da tradição judaica do segundo templo que tem relação com 1 Enoque e os
sinóticos:
123
3.1. A impureza dos demônios nos sinóticos e o Mito dos Vigilantes.
As imagens dos demônios nos sinóticos estão em próximo diálogo com o mundo
judaico do segundo templo. Os conteúdos supracitados, que revelam as idéias em torno
do demoníaco nos sinóticos, estão ligados à impureza. Ao imaginário de seres
espirituais desencarnados, violentos e possuidores de conhecimentos cósmicos
inoportunos, tem-se a afirmação de serem maculados/impuros. Ou seja, os seres
impuros possuem as características supracitadas.
No Deutero-Zacarias (Zc 9-14), ou mais especificamente Trito-Zacarias (12-
430
14) , em Zc 13, 2, aparece a expressão ruah hattumah (ha'Þm.Juh; x:Wrï) que é traduzida pela
LXX como to. pneu/ma to. avka,qarton (espírito imundo). Nesses textos essa expressão
está relacionada ao verbo “remover”, juntamente com os profetas. Segundo C. Meyers e
A. Meyers, essa relação de impureza pode ser resultado de falsas afirmações sobre a
palavra do Senhor, bem como de profetizar em nome de outros deuses431. A expressão
ruah, pode ser traduzida, à luz da Bíblia hebraica (ex.Gn 6,17; Gn 8,1), como “fôlego”
ou “vento”, mas em Zc 13,2 a melhor tradução é espírito.
Desta forma, o espírito impuro estaria relacionado às práticas dos profetas, como
essência de suas ações, e nenhuma relação com questões do demoníaco. Talvez, esse
texto seja fonte para as imagens posteriores do demoníaco como agentes de idolatria,
assim como no mesmo os profetas estão ligados a idolatria. No Mito dos Vigilantes,
impureza não está a priori ligado a idolatria, mas questões de alimentação e casamentos
impróprios (transgressão de fronteiras).
Na tradição dos Vigilantes, percebemos que há a imagem de pelo menos duas
práticas impuras realizadas pelos caídos: 1) a invasão de fronteiras. De acordo com a
perspectiva antropológica de Mary Douglas, isso carregava na antiguidade peso de ação
430
COGGINS, R. J. Haggai, Zechariah, Malachi. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1996. p. 96
431
MEYERS, C. L., & MEYERS, E. M. Zechariah 9-14: A NewTtranslation With Introduction and
Commentary. New Haven; London, Yale University Press, 1998. p. 371.
432
MEYERS, C. L., & MEYERS, E. M. Zechariah 9-14... p. 372.
124
impura, pois tudo tinha seu “lugar estabelecido”. Era como um atravessar das linhas
demarcatórias, por isso a possibilidade de aplicação do Mito aos sacerdotes que
envolveram-se com mulheres helenizadas. 2) Outra forma de impureza estava ligada as
práticas dos Gigantes, pois sua alimentação era considerada impura para reivindicações
levíticas (animais impuros e carne humana). No entanto, por serem filhos de relações
impuras, a ponto de serem chamados de bastardos em I Enoque como também em
Qumran, já carregam um caráter de impureza antes das práticas alimentares. Em
Jubileus, os demônios são chamados de impuros (Jub 10,1-2), e atormentam os netos de
Noé433. Segundo Collins, a imagem dos Vigilantes como protagonistas de uma ação
impura – juntar-se a mulheres – tornou possível falar de “demônios impuros”434. Os
demônios impuros em Jub 10, 4 são identificados: os espíritos dos Gigantes. Em Lc
4,13-37 aparece a expressão espíritos de demônios impuros; expressão muito próxima a
Jub 10.
Em Qumran, novamente os mesmo espíritos maus, que estão ligados a tradição
de Enoque, como demonstrado, são tratados como impuros. Em 4Q510 (4QShira ) e
4Q511 (4QShirb) a luz de 4Q444 2 4 temos um exorcismo aos espíritos maus
reconhecidos como impuros. Ainda, outros textos de Qumran estão ligados os temas
possessão e impureza (11QPsalmsa 19, 15; 4Q444 1 8; 4Q458 2 i; 1QS IV 21-22).
Nos sinóticos, os demônios, ao serem chamados de impuros estão dialogando
com essas tradições e carregam os indícios do desenvolvimento da tradição do Mito dos
Vigilantes. Como em Jubileus, eles são demônios impuros, e como em Qumran,
possuem corpos num âmbito de impureza.
Dessa forma, os demônios nos sinóticos são impuros porque carregam as
imagens de impureza dos Vigilantes e dos Gigantes, onde encontramos sua origem na
tradição Judaica. Por isso, os demônios – seres espirituais, causadores de mazelas,
possuidores de corpos, possuidores de conhecimentos cósmicos – são impuros, pois
desde sua origem se envolveram com a impureza. São impuros, porque o imaginário
que carrega é de seres que atravessaram fronteiras, casaram com mulheres e comeram
carnes impuras.
Da narrativa de anjos Vigilantes, por intermédio de suas releituras e
apropriações no judaísmo, torna-se possível, em diálogo com as religiões antigas, a
433
Há também um feitiço para expulsar demônios que mostra a influência judaica e inclui a expressão
"até afastar este daimon imundo de Satanás que nele está”. Ver: BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical
Papyri in Translation…p.. 62.
434
COLLINS, A. Y. Mark and His Readers… p. 400.
125
apropriação imaginária dos demônios como espíritos impuros/imundos.
Consequentemente, os sinóticos preservam a imagem que pode ser bem popular nas
regiões da Palestina, na qual os serem demoníacos estão ligados às narrativas judaicas,
que lembram o Mito dos Vigilantes, pertencente à tradição de Enoque.
Assim, ao lermos a impureza dos demônios nos sinóticos nessa perspectiva,
podemos possivelmente chegar à seguinte hipótese sobre o demoníaco nos sinóticos:
“de Vigilantes os anjos tornaram-se espíritos imundos”.
4. Resumo e conclusão
Neste último capítulo foi feito a amarração final dos conteúdos dos outros
capítulos para comprovação da hipótese. Primeiramente apresentaram-se as influências
do Mito dos Vigilantes nas tradições cristãs dos primeiros séculos. Mesmo numa
exposição superficial ficou bem clara a possibilidade de grande apreço e a presença dos
temas e imagens do Mito dos Vigilantes nos escritos neotestamentários, em especial na
questão do aprisionamento de seres angelicais que pecaram nos tempos de Noé. Tudo
aplicado num âmbito escatológico.
Na análise sinótica [e Q] das relações entre espíritos imundos e o demoníaco,
percebeu-se que aquela não é uma entidade autônoma ou pertencente a uma espécie
desta, mas estão ligados no sentido de os demônios seres considerados seres impuros. A
impureza é o que caracteriza o estado dos seres demoníacos. Na mesma análise já foi
possível perceber as idéias que estavam ligadas ao imaginário dos espíritos impuros.
Com essas imagens foram feitas as relações com as acumuladas nas literaturas Judaicas
do segundo templo.
As aproximações demonstraram possíveis influências no imaginário do
demoníaco do Judaísmo, em especial apocalíptico, em torno do demoníaco nos
sinóticos. Como se percebeu nos capítulos anteriores, as mesmas características, ações e
temas da literatura do segundo templo estão em profunda relação com desenvolvimento
da tradição dos Vigilantes. Por isso, os temas violência e conhecimentos impróprios
perpassam, iniciando no Mito dos Vigilantes, as idéias demonológicas dos Judaísmos e
nos Cristianismos. Esses conectados a possessão, que causam malefícios.
126
Assim, passou-se especificamente a questão da impureza dos demônios nos
sinóticos, e mostrou-se a possibilidade da ligação da impureza estar relacionada ao
desenvolvimento do mito dos anjos caídos da tradição enoquita, como intuíram A.Y.
Collins e A. T. Wright. Os demônios carregam o caráter de impuros, pois sua origem e
práticas estão ligadas a impureza nas tradições enoquitas.
No desenvolvimento e releituras dessas tradições, novos contornos foram
desenhados na tradição dos Vigilantes, e ao demoníaco outras imagens se admitiram,
formando um mundo de idéias que o rodeiam. Assim, em Qumran os espíritos dos
gigantes já estão conectados de maneira incipiente ao conceito de impureza, ligados a
possessão e exorcismo, bem comum nos sinóticos. Assim, pode-se olhar o complexo e
não-monolítico desenvolvimento do imaginário do demoníaco, bem presente nos
sinóticos, em sua relação com o mito dos Vigilantes. Por isso, afirma-se que a impureza
dos demônios em Marcos, Lucas e Mateus mostra um estágio do desenvolvimento “dos
Vigilantes a espíritos imundos”.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
128
para a complexa imagem do demoníaco nos evangelhos. Por causa disso, passamos
rapidamente pelas pesquisas atuais sobre o assunto para comprovação dessa hipótese.
O trabalho começou analisando o Mito dos Vigilantes em suas duas tradições
mais antigas (I Enoque 6-11; 12-16), e levou-se em consideração a questão do
demoníaco, pois no capítulo 15, os espíritos dos Gigantes são chamados de espíritos
maus, causadores de grandes males aos homens. Percebeu-se a presença de temas como
violência, impureza e ensinamentos impróprios rodeando as imagens desses seres
malignos. Os mesmos temas foram encontrados em outras tradições relacionadas aos
demônios na literatura apocalíptica do mundo Judaico.
Em Jubileus, obra do Séc. II a.C, e próxima ao tempo do segundo bloco de I
Enoque (12-16), o Mito dos Vigilantes é relido e, novamente, o demoníaco é
relacionado à história dos Vigilantes. Os espíritos dos Gigantes são chamados de
demônios impuros. No mesmo texto, aparece a imagem de um líder para esses espíritos,
e a pedido dele uma quantidade desses seres malignos são deixados na terra pelo próprio
Deus para tentar o homem. O interessante desse texto é a relação de subserviência dos
espíritos malignos aos projetos de Deus. Eles fazem parte da organização cósmica de
Javé e são deixados livres, em bando, para testar os homens.
Essa imagem acaba dando corpo para o mundo cósmico do (s) Judaísmo (s)
posterior (es), pois quando lemos o Testamento dos Doze Patriarcas, por exemplo, e os
textos do Mar Morto, encontramos um mundo dualista repleto de demônios. Essa
cosmovisão presente em Qumran recebeu influência do mundo cósmico do mito dos
anjos rebeldes em seu desenvolvimento, especialmente em I Enoque 15 e Jubileus.
Esses deram ao judaísmo o imaginário do exército de seres malignos que saíram dos
corpos dos Gigantes, os filhos dos Vigilantes, e a presença de um líder. Com a
antropologia e gigantologia da tradição enoquita encontrou-se a possibilidade de
possessão em Qumran, que trata como invasão de corpos por espíritos maus. Esses, que
recordam tradições antigas de Saul e Davi e os textos de I Enoque 15 e Jubileus, são
tratados como impuros, e podem ser exorcizados, ou afastados. Inclusive, os textos de
Qumran acabam identificando esses seres como espíritos imundos.
O próprio movimento enoquita, ou o judaísmo enóquico, tinha grande relação
com os essênios e com o movimento de Jesus, por isso não seria impossível
encontrarmos essas imagens permeando o imaginário judaico e cristão, em especial para
a cosmovisão apocalíptica.
129
Quando entramos nos sinóticos a teia imaginária presa ao demoníaco já estava
quase toda traçada. O desenvolvimento das tradições judaicas nesse âmbito já dava
pistas para como os evangelhos se posicionariam sobre o assunto, e por que os
chamariam de impuros.
Ficou bem claro a relação da expressão espírito impuro e os seres malignos.
Aquele seria uma espécie de caracterização destes. Seres demoníacos são impuros,
independentemente de como são apresentados (espírito surdo e mudo, Belzeebul, Satã,
Príncipe dos demônios). Juntamente com isso, os evangelhos mostram algumas
características do imaginário, que é fruto da relação circular de culturas, sobre o
demoníaco. A análise mostrou que estão em diálogo, ou até mesmo respiram, o mundo
judaico percorrido nos capítulos anteriores. Por isso, a violência, a possessão, os ensinos
impróprios, o dualismo e outros detalhes dão contornos ao quadro do demoníaco nos
sinóticos e refletem um desenvovimento complexo e dinâmico das tradições enoquitas.
Essas, por sua vez, também passaram por transformações e dialogaram com outras
expressões religiosas com as quais tiveram contato.
Assim, os espíritos impuros possuíam características demarcatórias
identificadoras que estavam ligadas às tradições judaicas do segundo templo, e essas
tinham profunda relação com o mito dos Vigilantes.
Bastava agora perguntar-se o porquê de serem impuros. A impureza, tema muito
sério para tradição de Enoque, integrou a concepção dos Vigilantes e,
conseqüentemente, aos próprios espíritos maus que saíram dos corpos dos Gigantes, a
ponto de Jubileus chamá-los demônios impuros. Em Qumran os espíritos maus,
identificados como os espíritos dos Gigantes, eram também vistos como impuros. A
impureza estava relacionada à sua origem e práticas, que foram impuras.
Os sinóticos, carregando toda essa carga imaginário, também trataram os
demônios como impuros. Lendo essa expressão à luz desse desenvolvimento
demonológico complexo e não monolítico, encontramos a íntima relação entre sua
impureza com o desenvolvimento da tradição do Mito dos Vigilantes.
Por isso, ao chamarem os demônios de impuros estão refletindo uma
tranformação imaginária e longa que pode ser resumida da seguinte maneira: “de
Vigilantes a espíritos imundos”. Ou seja, na narrativa dos Vigilantes temos o início de
um processo dinâmico, com várias influências e novos contornos, que chegou até os
sinóticos, não simplesmente literariamente, mas no âmbito das idéias, imagens ou
imaginário.
130
Assim, o Mito dos Vigilantes teve influência não somente nas tradições petrinas,
paulinas, deuteropaulinas e de Judas, mas também nos evangelhos sinóticos,
especificamente na construção do demoníaco.
E mais ainda, como foi analisado, não há muitas informações ou instrumementos
para se determinar a origem ou o ambiente original do Mito dos Vigilantes. Suter,
Nicklesburg e outros tentaram localizá-lo historicamente, mas a perspectiva de suspeita
de J.J.Collins me parece mais equilibrada, pois leva em consideração a multi-
aplicatividade da narrativa mítica. Assim, além de percebermos como o mito foi
reutilizado, podemos intuir o quanto serviu de instrumento de construção ou
preservação de identidade nos Judaismos e Cristianismos, direta ou indiretamente.
Tanto na Antiguidade como nas práticas religiosas atuais. Isso porque, quando um
grupo religioso, como os pentecostais clássicos da Assembléia de Deus, impõem às
mulheres algumas regras sobre vestimenta ou ornamentação utilizando textos
dependentes em qualquer nível ao Mito dos Vigilantes, e chamam isso de preservação
das raízes assembleianas, temos práticas religiosas atuais nas quais o mito dos anjos
serve como preservador de identidade.
A partir da pesquisa realizada, novas perguntas são levantadas, como por
exemplo, a respeito da angelologia e demonologia paulina e dos demais escritos do
Novo Testamento e sua relação com esse complexo desenvolvimento do Mito dos
Vigilantes. A influência do mito dos anjos que casam com mulheres e a construção da
mulher como um ser perigoso e com traços demoníacos (tentador, possuidor,
sexualmente incontrolável). Ou ainda – e isso particularmente me interessa – a relação
da tradição de Enoque e as posições teológicas em relação ao templo na Galiléia. Será
que há alguma relação entre os movimentos nascidos no norte da Palestina e as
tradições enoquitas? Ou, haveria alguma realação entre o Movimento enoquita e as
tradições que ligam Jesus a Galiléia?
131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
i. Fontes Primárias:
DIEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento. Vol. IV e V. Madri, Ed.
Cristiandad, 1987.
ALAND, K et al. The Greek New Testament. Introducción traducida al castellano por
J. Sánchez Bosch, de Barcelona. 4º ed. Stuttgart, United Bible Societies, 1994.
ALEXANDRE, P. S. The Demonology of the Dead Sea Scroll. In: FLINT, P. W. and
VANDERKAM, J. C. The Dead Sea Scrolls after Fifty Years: a Comprehensive
Assessment. Vol. 2. Leiden, Brill, 1999.
132
ALEXANDRE, P. S. The Targumim and Early Exegesis of ‘Sons of God’ in Genesis 6.
In: Journal of Jewish Studies 23 (1970): 60-71.
ALMEIDA, M. A. Cada Leitor seu Texto: Dos Livros à Redes de Leitores. In: Enc.
Blibli: Revista Eletrônica de Biblioteconomia Científica e Informação (edição
especial), n. 1 (2009): 154-173.
AMARAL, André Luiz do. Considerações sobre pesquisa das origens da apocalíptica.
In: Oracula, 3.6, 2007.
BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard (ed.). Exegetical Dictionary of the New
Testament. Vol I. EDINBURGH, T & T CLARK LTD, 1990.
BILLINGS, Bradly S. The Angels who Sinned . . . He Cast into Tartarus (2 Peter 2:4):
Its Ancient Meaning and Present Relevance In: The Expository Times 119
(2008):152-157.
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. Including The Demotic
Spell Chicago, The University of Chicago Press, 1996.
133
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis: The Parting of the Ways
Between Qumran and Enochic Judaism. Grand Rapids, William B. Eerdmans,
1998.
BOVON, F., & KOESTER, H. Luke 1: A Commentary on the Gospel of Luke 1:1-9:50
Minneapolis, Fortress Press, 2002.
BURKE, Peter. O Que é História Cultural? Rio de Janeiro, Jorge ZAHAR, 2005.
CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero. Vol. II. trad. Haroldo de Campos. São Paulo,
Arx, 2002.
CHAZON, Esther. Hymns and Prayes in the Dead Sea Scroll. In: FLINT, P. W. and
VANDERKAM, J. C. The Dead Sea Scrolls after Fifty Years: a Comprehensive
Assessment. Vol. 2. Leiden, Brill, 1999.
COHN, Norman. Cosmos, Caos e Mundo que Virá. As origens das crenças no apocalipse.
São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
COLLINS, A. Y. Mark and His Readers: The Son of God among Jews. In: Havard
Theological Review 92/4 (1999): 393-408.
COLLINS, J.J. Seers, Sibyls and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, JSJSup 54. Leiden,
Brill, 1997
134
Watchers. In: Catholic Biblical Quarterly 44, n. 1 (1982): 91-111.
COLLINS, J.J (ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre. In: Semeia 14 (1979).
COLLINS, J. J. The Mythology of Holy War in Daniel and the Qumran War Scroll: A
Point of Transition in Jewish Apocalyptic. In: Vetus Testamamentum 25, n. 3 (1975):
596-612.
CROSS, F. M. Canaanite Myth Hebrew Epic. Cambridge, MA: Harvard University Press,
1973.
DAVIES, P. R. Dualism and Eschatology in the Qumran War Scroll. In: Vetus
Testamamentum 28, n.1 (1978): 28-36.
DIMANT, D. The Biography of Enoch and the Books of Enoch. In: Vetus Testamentum
33, n. 1 (1983): 14-29.
135
York, Doubleday, 1983.
ELLIOTT, J. H. Um Lar Para Quem Não Tem Casa: Introdução sociológica a primeira
carta de Pedro. São Paulo, Paulinas, 1985.
FREUD, Sigmund. Uma neurose demoníaca do século XVII, v. XIX, 1923. In: FREUD,
Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1977.
FLINT, P. W. The Greek Fragments of Enoch from Qumran Cave 7. In: BOCCACCINI,
G. Enoch And Qumran Origins: New Light On A Forgotten Connection. Grand
Rapids, William B. Eerdmans, 2005.
FORSYTH, Neil. The Old Enemy: Satan and the Combat Myth. Princeton, Princeton
University, 1987.
136
Texts from Qumran. LEIDEN. NEW YOURK. KÖLN, E.J. Brill, 1994.
GOLP, Norman. Who Wrote the Dead Sea Scrolls?. New York, Secribner, 1995.
GRABBE, Lester L. and HAAK, Robert D. Knowing The End form the Beginning: The
Prophetic, the Apocalyptic and their Relationships. In: Jornal for Study of the
Pseudepigrapha, Supplements, v. 46 (2003): 2-37.
HANNEKEN, Todd Russel. Angels and Demons in the Book of Jubilees and
Contemporary Apocalypses. In: Henoch 28 (2006): 11-25.
HAMILTON, Victor. Satan. In: Freedman, D. N. (ed.). The Anchor Bible Dictionary. New
York, Doubleday, 1992.
HANSON, Paul D. The Dawn of Apocalyptic. The Historical and Social Roots of Jewish
Apocalyptic Eschatology, Philadelphia, Fortress, 1975.
137
International, 1995.
HORTON, F.L. The Melchizedek Tradition. A Critical Examination of the Sources to the
Fifth century A.D and in the Epistle to the Hebrews. Cambridge, Cambridge
University Press, 1976.
ISAAC, E. I (Ethiopic Apocalypse of) Enoch: A New Translation and Introduction. In:
CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha. Vol. I. New
York, Doubleday, 1983.
JIND, J. Y. On Myth and History in Prophetic and Apocalyptic Eschatology. In: Vetus
Testamentum 55, n. 3 (2005): 412-415.
JONGE, M. de / Woude, A. S. van der. 11QMelquisedec and the New Testament. In: New
Testament Studies 12 (1966): 301-326.
KEE, H. C. Testaments of the Twelve Patriarchs. A New Translation and Introduction. In:
The Old Testament Pseudepigrapha. Vol. II. New York, Doubleday, 1983.
KEE, H. The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. In: New Testament Studies 14
(1968): 232-246.
KLIJN, A. F. J. 2 (Syriac Apocalypse of) Baruch. A New Translation and Introduction. In:
CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha. Vol. II. New
York, Doubleday, 1983.
KNIBB, M. A. The Ethiopic Book of Enoch: a New Edition in the Light of the Aramaic
Dead Sea Fragments. Oxford, Claredon Press, 1978.
138
KLOPPELBORG. J. The Formation of Q: Trajectories in Ancient Wisdom Collection,
Philadelphia: Fortress Press, 1987.
KURIANAL, James. Jesus Our High Priest: Ps 110,4 as the Substructure Of Heb 5,1-
7,28. Frankfurt, Peter Lang, 2000.
KVANVIG, H. S. Gen 6,3 and the Watcher story. In: Henoch 25 (2003): 278-299.
KVANVIG, H. S. Gen 6,1-4 as an Antediluvian Event. In: Jornal for the Study of the Old
Testament 16 (2002): 79-112.
LIM, Timothy H. The Wicked Priests of the Groningen Hypothesis. In: Journal of Biblical
Literature 112/3 (1993): 415-425.
LUCK, Georg. Arcana Mundi. Vol I: Magia miracoli e demonologia. Mondadori, Milano,
1997.
LUTHER, Link. O Diabo: a máscara sem rosto. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
MALINA, Bruce. The New Testament World: Insights from Cultural Anthropology.
Atlanta, GA: John Knox, 1981.
MARTÍN, J. P. Alegoría de Filón sobre los ángeles que miraron con deseo a lãs hijas de
los hombres. In: CIRCE. Instituto de Estudios Clásicos, n. 7 (2002): 261-282.
MARTONE, C. Evil or Devil? Belial from the Bible to Qumran. Henoch 36 (2004): 115-
127.
139
Qumran Zadokite Priesthood. In: Henoch 25 (2003): 267-176.
MURRAY, R. The Origin of Aramaic ‘îr, Angel. In: Orientalia (n.s.) 52 (1984): 303-317.
NEYREY, Jerome H. The Idea of Purity in Mark’s Gospel. In: Semeia 35 (1986): 91-127.
NEWHEART, M. Willett. My Name is Legion: the Story and Soul of the Gerasene
Demoniac. Collegeville, Liturgical Press, 2004.
NEWSOM, C.A. The Development of I Enoc 6-19: Cosmology and Judgment. In:
Catholic Biblical Quarterly 42 (1980): 310-29.
NICKELSBURG, George W. E. Jewish Literature Between the Bible and the Mishnah.
Philadelphia, Fortress, 1981.
140
São Paulo, Paulinas, 2003.
OTERO, A. Santos. Livro de Los Secretos de Henoc (Henoc eslavo). In: DIEZ MACHO,
Alejandro. Apócrifos del Antigo Testamento. Vol. IV. Madri, Ed. Cristiandad, 1987.
PAGELS, Elaine. The Social History of Satan, Part II: Satan in the New Testament
Gospels. In: Journal of the American Academy of Religions. 52\ 1 (1994): 221- 241.
PAGELS, Elaine. The Social History of Satan, the ‘Intimate Enemy’: A Preliminary
Sketch. In: Harvard Theological Review. 84/2 (1991): 105-128.
PAGE, Hugh Rowland. The Myth of Cosmic Rebellion. A Study of its Reflexes in Ugaritic
and Biblical Literature. Leiden, Brill, 1996.
PIÑERO, Antonio. Testamentos de los Doce Patriarcas. In: DIEZ MACHO, Alejandro.
Apócrifos del Antigo Testamento. Vol. V. Madrid, Ediciones Cristiandad, 1987.
RAVID, Liora. Purity and Impurity in the Book of Jubilees. In: Journal for the Study of
the Pseudepigrapha 13.1 (2002): 61-86.
REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism and Christianity. The
Reception of Enochic Literature. New York, Cambrigde University Press, 2005.
RILEY, G. J. ‘Demon’. In: TOORN, Karel van der (ed.). Dictionary of Deities and
141
Demons in the Bible. Leiden. Boston. Köln, Brill, 1999.
RICOEUR, P. Poética e simbólica. In: Iniciação a prática da teologia. São Paulo, 1992. .
RUITEN, Jacques Van. Primaeval History Interpreted. The Rewriting of Genesis I-II in
the Book of Jubilees. Leiden.Boston.Köln, Brill, 2000.
SACCHI, P. Jewish Apocalyptic and its History. JSPSup 20. Sheffield, Sheffield
Academic, 1990.
SCHIAVO, Luigi. O Simbólico e o diabólico: a vida ameaçada. In: Phoînix 8 (2002): 230-
243.
SCHIAVO, Luigi. O mau e suas representações simbólicas. O universo mítico e social das
figuras de Satanás na Bíblia. In: Estudos da Religião 19 (2000): 65-83.
SMITH. Morton. Jesus the Magician. São Francisco, Harper & Row Publisher, 1978.
142
STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. Rio de Janeiro, Gryphus, 2003.
STRELAN, R. The Fallen Watchers and the Disciples in Mark. In: Journal for the Study
of the Pseudepigrapha 20 (1999): 73-92.
SUTER, David. Fallen Angel, Fallen Priest: The Problem of Family Purity in 1 Enoch 6-
16. In: Hebrew Union College Annual 50, n. 01. (1979): 114-135.
TERRA, K. R. C. Um Lar (Celestial) Para Quem Não Tem Casa: Uma Historia Da
Tradição de 1 Pedro. In: Âncora Revista Digital de Religião, 2008.
TOORN, Karel Van Der & BECKING, Bob. Dictionary of Deities and Demons in the
Bible: Second Extensively Revised Edition Book Description. Leiden.Boston. Köln,
Abrill, 1999.
VANDERKAM, James C. Viewed Rom Another Angle: Purity and Impurity in the Book
of Jubilees. In: Journal for the Study of the Pseudepigrapha 13.2 (2002): 209-215.
VANDERKAM J. The Interpretation of Genesis in 1 Enoch. In: FLINT, P.W. (ed.). The
Bible at Qumran. Text, Shape and Interpretation. Grand Rapids, 2001.
VANDERKAM, James C. The Angel Story in the Book of Jubilees. In: CHAZON, Esther
G. and STONE, Michael. Pseudepigraphic Perspectives: the Apocrypha and
Pseudepigrapha in Light of the Dead Sea Scrolls. Studies on the texts of the desert of
143
Judah XXXI. Leiden. Boston. Köln, Brill, 1999.
VANDERKAM, James C. The Dead Sea Scrolls Today. Grand Rapids, Eerdmans, 1994.
VANDERKAM, James. C. Jubilees, Book of. In: Freedman, D. N. (ed.). The Anchor Bible
Dictionary Anchor Bible Dictionary. Vol. IV. New York, Doubleday,1992.
YONGE, C.D. The Works of Philo Complete and Unabridged . Peabody, Hendrickson,
1961.
WAHLEN, Clinton. Jesus and the Impurity of Spirits in the Synoptic Gospels.
(Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament, 2/185). Tübingen, Mohr
Siebeck, 2004.
WOLFF, Hans Walter. Bíblia: Antigo Testamento. Introdução aos escritos e aos métodos
de estudo. São Paulo, Paulinas, 1978.
WRIGHT, A. T. The Origin of Evil Spirits. The Reception of Genesis 6.1-4 in Early
Jewish Literature (Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament, 2
Reihe - WUNT 198). Tübingen, Mohr Siebeck, 2005b.
144
145