E Book17
E Book17
Organização:
André Dias
Marcos Pasche
Rauer Ribeiro Rodrigues
ABRALIC
Associação Brasileira de Literatura Comparada
Rio de Janeiro
2018
ABRALIC
Associação Brasileira de Literatura Comparada
Coordenação editorial
Ana Maria Amorim
Frederico Cabala
Série E-books ABRALIC, 2018
ISBN: 978-85-86678-20-2
APRESENTAÇÃO – p. 5
André Dias; Marcos Pasche; Rauer Ribeiro Rodrigues
APRESENTAÇÃO
LITERATURA E DISSONÂNCIAS
André Dias
Marcos Pasche
Rauer Ribeiro Rodrigues
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Série E-book | ABRALIC
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Literatura e dissonâncias
1Estudante de mestrado em Literatura Brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF), orientado pelo Prof.
Dr. André Dias.
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interrompido que se tem notícia, e Crônica da casa assassinada2. Vale dizer que
não buscamos, com isso, propor um sentido originário para esse último
romance, mas vislumbrar como a prosa de Lúcio Cardoso, embora
fragmentária, pode ser situada em um projeto estético mais amplo, com
diversas integrações entre obras dispersas.
Imagem 1 - A luz no subsolo faria parte de uma trilogia intitulada "A luta
contra a morte"
2 Doravante Crônica.
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Que sucedera ao romancista Lúcio Cardoso? Por que Apocalipse não chegara a tomar
forma definitiva? Por que as perguntas colocadas nas páginas finais de A luz no
subsolo não tinham tido resposta imediata? Por que o autor se lançara então, e tão
ardorosamente, na técnica da novela, para, anos depois, tentar com igual paixão, o
substitutivo do drama? Por que a tentação das pequenas confissões que são o substrato
dos livros de poesia, das páginas do Diário, do próprio Dias perdidos? Por que esse
como que tatear no vago, essa verdadeira luta contra as sombras interiores, que se diria
mais uma fuga ante um intransponível obstáculo do que um itinerário de autêntico
ficcionista? (CARDOSO, 1997, p. 663)
São questões fixas para Otávio de Faria. No ano de 1958, ele já as fizera
pessoalmente a Lúcio Cardoso, conforme indica o diário do autor mineiro:
“Por que deixei em suspenso a pergunta formulada em A luz no subsolo? Calo-
me.” (CARDOSO, 2012b, p. 445).
Ecoando tais apontamentos e em busca de situar tais perguntas sem
respostas, pretendemos observar aqui como o Apocalipse pode ter sido uma
espécie de fio condutor entre o início da prosa marcadamente introspectiva
de Lúcio Cardoso e seu coroamento décadas depois com a Crônica. A relação
que buscamos estabelecer, é bom frisar, não é de causalidade, mas de certos
temas e estilos exercitados durante um largo espectro temporal, e que
contaminariam sua última obra.
Para tal, os diários e o material de arquivo do autor, disponível no acervo
literário da Fundação Casa de Rui Barbosa, revelam indicações relevantes.
Em um trecho de seu diário, inscrito no mês de novembro de 1949 (sem
precisão do dia), em meio às frustrações que interromperiam seu filme A
mulher de longe, Lúcio confidencia o desejo de retornar à atmosfera de sua
primeira trilogia, estacionada no primeiro volume:
Atormentado durante todo o dia pela ideia de escrever romances. Já não penso em
novelas, o que resolvia um pouco a minha preguiça em atacar temas muito extensos,
mas em retomar o velho painel de A luta contra a morte. Sem dúvida teria de vencer as
deficiências do primeiro volume, publicado quando eu tinha pouco mais de vinte anos.
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Mas com alegria iria desaguar nos outros, cujos temas há tanto vivem em minha mente,
cujos personagens conheço tão bem, numa paisagem feita de tão obstinadas
recordações! (CARDOSO, 2012b, p. 226).
O plano do romance [No manuscrito: Apocalipse. Nota do editor dos Diários.] avança.
Já agora, transpostos os limites da novela, derrama-se numa vasta extensão e, unindo-
se a ideias antigas (todo eu sou o mapa antigo de um romance que ideei na
adolescência; quando aprofundo muito os veios novos, converto-os em afluentes do
mesmo rio dominador e soberano; quando deixo as ideias vicejarem espontâneas,
acondiciono ilhotas e pequenos territórios ao país oculto que trago em mim...) converte-
se numa série inteira: o velho, o nunca abandonado “Apocalipse”, que já mudou de
nome várias vezes. (CARDOSO, 2012b, p. 334)
Queria conversar com você, e especialmente sobre a Crônica que finalmente tenho
quase terminada em sua terceira versão. Não sei se você se lembra de uma coisa que
anunciei há muitos anos, o Apocalipse, logo depois que publiquei A luz no subsolo. Pois
bem, com o correr do tempo mudou-se ele para um ‘roman-fleuve’, em vários volumes,
e é um trabalho que considero a minha melhor coisa, a mais bem realizada.”
(CARDOSO, 1997, p. 755).
3 A primeira menção à Crônica no diário data de outubro de 1951. O livro, então, se chamaria Crônica da cidade
anunciada. Em 1953, jornais já começam a anunciar que o romance, com título definitivo, já estaria com publicação
prevista pela editora José Olympio. Nesta época, Lúcio também escrevia O viajante simultaneamente à Crônica e, até
certo momento, ao Apocalipse, o que reforça a hipótese de um encadeamento de ideias entre o que se iniciou por volta
de 1936 e sua fase posterior.
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Literatura e dissonâncias
O que é uma obra? O que é pois essa curiosa unidade que se designa com o nome obra?
De quais elementos ela se compõe? Uma obra não é aquilo que é escrito por aquele que
é um autor? [...] será que tudo o que ele escreveu ou disse, tudo o que ele deixou atrás
de si faz parte de sua obra? (FOUCAULT, 1992, p. 38-39)
textos corridos. Além dessa pasta, que atende pela chamada “LC 29 pi”,
também há que se considerar os fólios do documento “LC 27 pi”, intitulado A
revolta, os quais somam 10 páginas. Entre as duas pastas, nota-se forte
contiguidade entre os enredos, que apresentam diversos pontos comuns
acerca dos mundos narrados.
Aparentemente vasto, o material apresenta, contudo, alguns desafios
para a pesquisa. A começar pela falta de datação de quase todo o material, o
que dificulta, se não impossibilita, uma posterior organização com início,
meio e fim se o objetivo for compreender como Lúcio Cardoso imaginou o
desenvolvimento desse romance. É possível saber somente que há ali
documentos que vão desde 1936 até 1951, último ano assinalado. É uma
informação importante, que nos permite vislumbrar o longo (e sinuoso)
espectro de tempo em que Lúcio manteve o projeto no horizonte criativo.
Importante reiterar, ainda, que o autor parece ter se dedicado seriamente ao
Apocalipse após o registro em seu diário da vontade de retomar esse “velho
painel”, grande parte do material datiloscrito encontra-se organizado a partir
de tal datação. Uma outra limitação diz respeito ao caráter fragmentário do
material. Partes essenciais da narrativa estão ausentes. Notamos buracos no
enredo, que em diversos momentos apresentam saltos de partes
supostamente importantes (talvez essa seja a principal razão desses
documentos nunca terem sido reunidos para publicação como foram os outros
projetos inacabados de Lúcio). Por fim, parte dos papéis também está
danificada ou retalhada.
Embora interponha tais barreiras, o material não deixa de desvelar
indicações que apontam para o que tentamos propor aqui: que naqueles
planos se encontram marcas observadas também na ficção madura do
escritor, notadamente na Crônica. Tais similaridades ocorrem principalmente
em aspectos de estilo e repetições temáticas. Para esta apresentação,
focaremos no espaço da casa como componente central nas duas peças. Antes,
vale informar que uma parte inicial do Apocalipse foi publicada em folhetim
em 1938 e, dois anos depois, já como novela, em um jornal: na primeira ocasião
recebeu o título de A morte de um pecador e a novela foi nomeada Céu escuro.
Publicada no suplemento literário do jornal A noite, Céu escuro se apresenta
como um objeto intrigante: seu texto “original”, de 1940, foi quase
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4Há que se destacar o notável trabalho de organização e publicação dos contos esparsos de Lúcio Cardoso promovido
pela pesquisadora Valéria Lamego no livro Contos da ilha e do continente, cuja 1ª edição, da Civilização Brasileira, data
de 2012.
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quanto São João das Almas5 do Apocalipse se caracterizam por serem paisagens
fincadas em tradições rurais, em que a religiosidade ocupa espaço
incontornável e a população cultiva forte curiosidade sobre a vizinhança ao
redor; os moradores estão sempre observando uns aos outros. Outro topos de
aproximação é o peso da casa no destino dos personagens, o que
discorreremos aqui mais alongadamente.
O casarão da Chácara dos Meneses e o casarão da Fazenda do Desterro
concentram em si o peso opressivo de um tempo pretérito de esplendor social
e econômico sobre a decadência da geração vigente. Essa questão é patente na
condição física da casa das famílias de Apocalipse e da Crônica. Em tais
ambientes, observa-se a presença de móveis aristocráticos, agora antigos e
empoeirados, também a pintura desgastada das paredes e o permanente odor
de mofo. Passagens de Apocalipse como “E reviu Mateus na larga sala de
jantar, adormecido sobre a mesa de madeira escura, um daqueles poucos
móveis que tinham sobrado do tempo do avô Silvestre” (CARDOSO, LC 27
pi, s/d); “Um pouco antes dessa noite em que o vira tombado sobre a mesa,
encontrara-o caído numa cadeira de balanço que o avô usava para as suas
leituras.” (CARDOSO, LC 29 pi); “[...] um desses aposentos comuns a tantas
fazendas, de chão empoeirado e paredes sujas, de janelas protegidas por
grossas barras de ferro, onde os móveis pareciam guardar uma
impassibilidade secular” (Ibidem). Notamos ainda o “cheiro de velhice e de
mofo, de madeiras antigas [...]” (Ibidem). Manuel então revela que tal
convivência lhe transporta a outros tempos, “[Manuel] lembrava-se de que se
haviam detido no tempo e fixado para sempre uma existência: a única a que
realmente tinham pertencido no passado” (Ibidem). Nesse sentido, outros
objetos como quadros cujas molduras se encontram carcomidas por cupins,
candeeiros com correntes de ferro, cinturão de couro, xales bordados a ouro,
une em Apocalipse personagens e tais seres inanimados, o que gera pavor no
personagem principal do texto:
Manuel sempre tivera horror à sua casa, às suas escadas carunchosas, aos seus móveis
enormes, desafiando o tempo, aos seus quartos vazios e inúteis, marcados cada um
5São João das Almas também foi o cenário de uma outra novela do autor: Mãos vazias, de 1938. Observamos, nesse
sentido, como a recorrência do cenário, elemento tão importante na fase madura do escritor, estava já delineada na
sua prosa nos anos finais da década de 1930.
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pela lembrança de uma morte. Um avô, um tio, uma parenta distante, todos haviam
agonizado debaixo daqueles candeeiros que rangiam ao descer nas correntes de ferro;
todos haviam exalado o último suspiro com as mãos recurvas agarradas ao cortinado
de pano escuro. E era desse ar de morte e ao mesmo tempo de coisa inviolada que
teimava em se perpetuar, que Manuel tinha horror [...] (CARDOSO, LC 27 pi, s/d.)
[...] aquele ambiente tão característica de família, com seus pesados móveis de vinhático
ou de jacarandá, de qualidade antiga, e que denunciavam um passado ilustre, gerações
de Meneses talvez mais singelos e mais calmos; agora, uma espécie de desordem, de
relaxamento, abastardava aquelas qualidades primaciais (CARDOSO, 2000, p. 130)
Adiante, lemos:
[...] essas velhas casas mantinham vivo um espírito identificável, capaz de orgulho, de
sofrimento e, por que não, de morte também, quando arrastadas à mediocridade e ao
chão dos seres comuns. E não era isto o que acontecia, com a escória última daqueles
Meneses que já não chegavam mais ao tope do prestígio mantido pelos seus
antecessores? (Ibidem, p. 245)
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Até aqui discutimos que o tempo solar de tempos idos não ilumina mais
as duas mansões, adensadas agora em silêncios e sombras de objetos
envelhecidos. É importante acrescentar como isso se reflete, tanto em
Apocalipse como na Crônica, na própria posição dos personagens
representantes da geração atual, todos parecem tatear sem rumo e estão
envoltos a valores do passado. Ou seja, em ambas as obras, vemos a criação
de uma atmosfera de fusão entre ambiente doméstico e personagens, em que
a própria decomposição estrutural de paredes e de móveis se atrela ao declínio
moral dos Meneses e dos descendentes de Silvestre.
A simbiose de que falamos pode ser notada na alteração do ambiente
provocada pela morte do personagem Mateus, em Apocalipse, e Nina, na
Crônica. Vejamos o primeiro caso:
Até ali o quarto tinha conservado o seu antigo aspecto, defendendo com bravura a sua
personalidade; eles eram os intrusos diante dos móveis decadentes e da sua fisionomia
severa e inadequada. Por uma misteriosa metamorfose tudo isto tinha cessado
bruscamente – a força do agonizante tinha se imposto e no cheiro vago dos remédios,
nos flocos de algodão espalhados nos degraus e no odor quase indistinto das velas,
diluía-se a surda oposição do quarto, como se, em cada morte, os objetos que durante
tanto tempo acompanharam o homem também agonizassem um pouco. (CARDOSO,
LC 29 pi, s/d)
[...] senti que ela realmente começava a morrer, porque sua presença, como um fluido
que se esgotasse, também principiava a se afastar das coisas, a desertar dos objetos,
como sugada por uma boca enorme e invisível. Tudo o que significava seu calor refluía
dos objetos que ela tocara em vida e que guardavam até aquele momento a marca
inesquecível de sua passagem. Como sob o efeito de uma droga, eu olhava para todos
os lados e via escorrer essa presença dos móveis, da cama, das janelas, dos cortinados,
como fios baixos, ligeiros córregos de luto [...]. (CARDOSO, 2000, p. 433)
Todos os maus-tratos, pancadas, gritos e opressões que tinham feito dele um ser
inofensivo e assustado retornavam ao pó das suas lembranças, para se reerguerem
inteiramente transformadas num desejo absoluto de domínio e impiedade.
Instintivamente pensava no cinturão de couro roçando o tapete esfiapado e ocorrera-
lhe a ideia de que também poderia usá-lo, caso fosse preciso. (CARDOSO, LC 27 pi,
s/d).
Voltando os olhos para a cama, Manuel lembrara então o cinturão que ficara
abandonado no tapete quando saíra e que tinha desaparecido ao seu regresso.
Provavelmente, Mariana... Não, talvez tivesse sido uma das empregadas. Um ódio
surdo dominou-o por instantes: haviam de ver! Mas naquele momento não pôde fazer
um gesto. (LC 29 pi, s/d).
Não eram vestimentas comuns, restos de uma pessoa morta, o que ele atirava fora:
eram coisas vivas, que ainda valiam em toda extensão de seu batalhador significado.
Mais fortemente ainda essa impressão se acentuou quando, do fundo de uma caixa,
como se emergisse de um poço, apareceu um vestido verde que ela usara logo após sua
última chegada do Rio. A visão paralisou-nos a todos: era como se a própria Nina ali
estivesse, e nos olhasse naquela tarefa de espezinhar seus despojos. (CARDOSO, 2000,
p. 454)
Padre, perdoe minha veemência, mas desde que entrei para esta casa, aprendi a referir-
me a ela como se se tratasse de uma entidade viva. Sempre ouvi meu marido dizer que
o sangue dos Meneses criara uma alma para estar paredes – e sempre andei entre estas
paredes com certo receio, amedrontada e mesquinha, imaginando que desmesurados
ouvidos escutassem e julgassem meus atos. (Ibidem, p. 103)
E naquele instante, diante da trouxa aberta, também Mariana devia ter compreendido.
Toda a Fazenda parecia se inclinar ante a surda imposição dor mortos. Lá estavam eles,
não apenas como Mateus, apoiado à mesa, mas ocupando a escada com seus corpos
pesados, as cadeiras, o espaço vazio da sala – lá estava a sua mãe estendida na rede, o
livro aberto, o avô apoiado à bengala, outros mais distantes, faces mais pálidas, vultos
que apenas emergiam da eternidade indevassável em que tinham mergulhado.
(CARDOSO, 2012, p. 247)
Conclusão
REFERÊNCIAS
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CABRAL, Cleber A.. Escutar os arquivos com os olhos: uma proposta e duas cenas.
Revista Z Cultural (UFRJ) , v. X, p. 1-16, 2015.
FARIA, Otávio de. Lúcio Cardoso. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa
assassinada. Edição crítica de Mario Carelli. 2. ed. Madrid: Allca, 1997. p. 659-
680.
PINO, Claudia Amigo. A ficção da escrita. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2004.
SANTOS, Cássia dos. A luz no subsolo e a obra madura de Lúcio Cardoso. In:
WERKEMA, Andréa Sirihal (org). Literatura Brasileira: 1930. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2012.
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ABSTRACT: The aim of this paper is to present and discuss how the
representation of the nature in dialogue with the notion of culture permeates
a series of aesthetic codes, whose resonances emphasize when they are
intertwined with the concept of civilization.For this purpose, the discussion
aims to observe such unfoldings in the poem "ÀsArtes", by the "Árcade" poet
Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). Furthermore, it offers
reflection on how an american artist moves through movements legitimized
by the European artistic model, seeking to sublimate the aspirations of his
own reality and to give new meaning to the already crystallized codes /
patterns. The reading of the work "El Idilio", by the avant-garde painter María
Izquierdo, paves the way to all these inferences.
KEY WORDS: Civilization, Culture, Nature, Poetry, Silva Alvarenga
Universidade Federal Fluminense – UFF
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1MaríaCenóbiaIzquierdo Gutiérrez (1902-1955) foi uma pintora mexicana. Nascida numa pequena e conservadora
aldeia rural, mudou-se para a movimentada cidade do México aos 21 anos de idade e teve a oportunidade de
frequentar círculos artísticos da pós-revolução mexicana. No final dos anos 20, ingressou na Escola de Belas Artes,
cursando História da Arte, com aulas ministradas por renomados nomes do ofício. Sua primeira exposição foi no
Palácio de Belas Artes do México, cuja apresentação foi realizada por Diego Rivera, companheiro de Frida Kahlo,
que era na época diretor da Escola Nacional de Belas Artes e que dispensava muitos elogios à pintora; viria a ser,
posteriormente, a primeira mulher mexicana a ter uma exposição individual na Arts Center Gallery, em Nova Iorque,
EUA, no ano de 1930. Sua obra se caracteriza pelo uso de cores intensas e temáticas que vão desde autorretratos e
paisagens até a instância do onírico. Sua filiação artística insere-se no movimento de vanguarda Surrealista, afinada
com a estética dos moldes europeus, estando, assim, sempre em diálogo com tal produção cultural.
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sobretudo, pela figura humana que, ao mesmo tempo em que está inserida no
meio das árvores secas, está também em posição de dominação sobre a
natureza.
Em “Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas”, Claudete Daflon, refletindo sobre literatura e ciência, verifica a
recorrente aparição da palavra cultura imbricada a esses conceitos e
compreende que “há implicações no termo (...) e que uma discussão sobre o
significado atribuído ao conceito é necessária.” (Daflon, 2013, p. 27). Para
tanto, recorre à análise feita por Charles P. Snow acerca do termo, na tentativa
de situar o que o escritor e físico chama de cultura. Nas palavras de Daflon,
A defesa do emprego que faz da palavra cultura, indica dois sentidos que considera
aplicáveis (...). O primeiro corresponderia à definição disponibilizada pelo dicionário,
segundo a qual, tratar-se-ia de “desenvolvimento intelectual”. Ou de um modo, que
designa como mais refinado, seria uma definição derivada de Coleridge (Snow,
1995:86): “(cultura seria) o desenvolvimento harmônico das qualidades e faculdades
que caracterizam a nossa humanidade.” (Daflon, 2013: p.28).
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5 Grifo meu.
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(É) difícil sumariar em algumas palavras tudo o que se pode descrever como
civilização. Mas, se examinamos o que realmente constitui a função geral do conceito
de civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atitudes e atividades
humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de uma descoberta muito
simples: este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. (...) a
consciência nacional. (...) a sociedade ocidental procura descrever a que lhe constitui o
caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas
maneiras, a desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo (...). (1994,
2v: p.23).
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A historiadora da arte Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho, em seu estudo sobre
Mestre Valentim, destaca como o Passeio Público baseou-se num ‘ideal de civilidade
instituído nas modernas cidades europeias da época: um monumental jardim público,
como sinônimo de bom gosto, luxo e entretenimento – uma expressão da natureza
dominada pela razão do homem – ...’. O controle sobre o meio natural, nesse contexto,
implicava uma concepção urbanística que incluiria preocupações sanitárias. De fato, o
jardim fora construído onde antes havia a Lagoa Boqueirão, cujas águas eram
consideradas infectas. Além do aterramento e a consequente eliminação de um possível
foco de doenças na cidade, estava em questão, com a construção de chafarizes, a
disponibilização de água apropriada ao consumo. Trata-se do alinhamento político e
ideológico entre civilidade, progresso e saúde (...)” (Daflon, 2016,p. 7).
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6 Prometeu era um dos Titãs, pertencia a essa raça considerada gigantesca que habitou a terra antes dos homens;
Titãs nasceram da dissipação do Caos, casamento da Terra e do Céu antes de serem separados. A Prometeu foi
incumbida a missão de fazer o homem e assegurar-lhe todas as faculdades necessárias a sua preservação.
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Tendo às mãos instrumento belos e valiosos, a mais bela das Artes entoa,
junto à Calíope, musa da Poesia Épica, coros de engrandecimento à sabedoria
e elogios ternos, de gratidão e moralizantes à Rainha Augusta, encerrando,
assim, o desfile dos saberes.
7 Matrona, na Roma Antiga, indicava uma senhora de status social elevado ou de grande moralidade; em termos
etimológicos, matrona vem do verbo latino mater, donde mãe.
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8Antonio Candido se dedica a analisar, em Formação da Literatura Brasileira, os rondós de Glaura, deixando de
verificar a poesia de cunho didático e atribuindo, de maneira breve, a maturidade literária do poeta à produção dos
madrigais. O crítico associa a presença da natureza à personalidade pessoal do poeta, descrito pelo teórico como
“pessoa amável e jovial, de maneiras polidas (...)” e cuja tradição aponta como homem de “profunda melancolia”.
Para Candido, “esta disposição de temperamento levá-lo-ia a ressaltar na teoria literária os valores da sensibilidade,
o culto à emoção, que exprime os impulsos naturais e corresponde a verdades mais fundas que as da razão”. Analisa
ainda que a partir de uma notória musicalidade nos versos – ocasionada por rimas não tão complexas e até justificada
pelo gosto e dedicação do poeta ao saber musical – o valor específico da palavra estaria prejudicado, porque, ao ler
os poemas, o leitor poderia distrair-se no ritmo melódico e esquecer-se da razão (ancorada no campo da palavra),
visto que, embalado pela sugestiva canção, terá menor capacidade para ordenar formalmente o campo das emoções.
Embora o teórico considere o poeta como precursor do romantismo por via de um fazer poético que exprime certos
tons de sensibilidade, certa cor local, afirma que sua produção esbarra com o que chama de “monótona elegância
dos mestres de facilidades”, cuja tendência está para a inércia intelectual e o clichê. O nacionalismo artístico, dentro
dessa concepção, quando não mediado pela razão, compromete a universalidade da obra, fixando-a no pitoresco e
no material bruto da existência. Pensando na representação do mundo pelas palavras, falta à Silva Alvarenga, na
visão do crítico, o equilíbrio fundado no pressuposto de que as formas elaboradas pela inteligência se regem por leis
essencialmente análogas às do mundo natural. Nesse sentido, a palavra considerada menor que a natureza interfere
negativamente na capacidade de produção de uma literatura empenhada. (CANDIDO, 2007, p. 28 – 39; 141 – 156). O
teórico deixa de analisar, no entanto, tantas outras produções de Silva Alvarenga que são atravessadas por vetores
ideológicos e possuem, portanto, a capacidade de representar, através da palavra, um mundo mediado pela razão.
Mundo este que pôde, inclusive, ser projetado em solo americano.
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REFERÊNCIAS
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LUCAS, Fábio. Autos da Devassa: prisão dos letrados do Rio de Janeiro, 1794.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002.
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Esse ‘eu’ que tanto assim se anuncia não é um ‘eu’ no sentido em que até o século XIX
se entendia esse termo. Fragmentário e não subjetivo, ele bóia lúcido e sem afeto num
mundo rico de variedade e intensidade mas deprovido de sentido. É o não-herói (não
o anti-héroi) pós-moderno literariamente realizado. (Veloso,C.apud Paula,J.A.2001,p.3)
Existe um intervalo de tempo que eu levo para mergulhar em mim mesmo. Nos
primeiros instantes eu permaneço perdido e procurando qualquer coisa. Não sei
definir o que eu procuro. Fui encontrado por mim... (p.190)
Ainda que o livro não seja uma narrativa clássica, com parágrafos que
não seguem uma ordem contínua, é possível identificar um fio narrativo,
como esse “Eu”, um escritor, se comporta em uma cidade para onde acabou
de se mudar. Esse “Eu” que transita entre uma reflexão quase existencialista,
numa perspectiva sartreana, é impelido frequentemente ao movimento, ao
trânsito no espaço urbano. E quando isso ocorre, a narrativa é pautada por
quase um descritivismo desnudo de qualquer tipo de reflexividade.
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Eu estou preso ao imediato. Este instante. Este instante. Os ruídos isolados da máquina
de escrever. O presente faz com que eu... a voz da bibliotecária. Escrevendo com uma
caneta esferográfica de tinta azul, presa entre os dedos, os dedos ligados à mão, a mão
ligada ao antebraço, o antebraço ligado ao braço, o braço ligado ao ombro, o ombro
ligado ao tórax, o tórax ligado ao tronco, o tronco ligado ao corpo, o corpo ligado à
cadeira, a cadeira ligada ao solo, o solo ligado à terra, a terra ligada... Um
desprendimento do passado e uma inexistência do futuro. A bibliotecária sorri. O
importante é preencher a folha em branco. As palavras cobrem a folha em branco. As
palavras cobrem a folha em branco. Movimentar a mão para que a mão escreva. (p.217)
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Por exemplo, essa espécie de ruminação dolorosa: existo – sou eu que a alimento. Eu.
O corpo vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento, sou eu que o
continuo, que o desenvolvo. Existo. Penso que existo. (...) Meu pensamento sou eu: eis
por que não posso parar. Existo porque penso... e não posso me impedir de pensar.
(Sartre.1996.p.145)
Esse trecho talvez sintetize bem como Agrippino constrói a sua narrativa
em Lugar Público, e a mudança de atitude do “Eu”. Em alguns momentos o
“Eu” está apenas movido pela ação, pelo movimento, pelo transitar no espaço
urbano, na biblioteca, no cinema, nos cafés e lojas, encontrando os outros
personagens apenas para transitar entre as cidades, como no trecho abaixo:
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O Eu agrippínico em PanAmérica
A primeira referência se realiza no sentido de mostrar que foi no dia do golpe que o
narrador/soldado conheceu outro soldado com o qual passa a ter relações sexuais: 'E
depois chegou o soldado de lábios vermelhos que eu havia concebido no dia do golpe
militar e nós deitamos entre as granadas`. (PA 95) Logo em seguida, nova referência
feita pelo mesmo soldado: 'Depois que o cabo saiu do alojamento eu pensei que o
comando estava misturando várias divisões e hierarquias no mesmo alojamento, o que
não acontecia antes do golpe de estado' (PA 96). A terceira, parte de Harpo Marx, que
é terrorista, e de um boliviano: 'os dois continuavam rindo e dizendo coisas engraçadas
a respeito do golpe militar`. (PA 104) E uma última que aponta para consequências
mais sociais do golpe: melhoria do salário dos militares '(...) e o ordenado dos militares
havia aumentado depois do golpe de estado' (PA 120). (Paula,.apud Hoisel. 2014,p.56)
Agrippino parece ter incluído o golpe em seu texto como uma espécie
de demarcação contextual, sem contudo entrar em detalhes ou incitar
reflexões sobre o evento político ocorrido em 1964. O livro aponta mesmo para
outras direções que fogem dos debates políticos, como veremos.
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Literatura e dissonâncias
YulBrynner entre outros. A cena, a fuga dos judeus pelo mar vermelho tem
proporções monumentais, com centenas de milhares de figurantes,
maquinários gigantescos, dezenas de helicópteros e um mar de gelatina.
Segue um dos trechos:
O mar de gelatina abriu para os lados construindo uma muralha verde e no fundo do
gigantesco corredor ascendeu a imensa coluna de fogo. O lança-chamas funcionava
perfeitamente e eu vi a multidão de judeus transpor Moisés, que se mantinha estático
com as mãos para cima, e entrar correndo em pânico pelo imenso corredor aberto no
mar de gelatina (...) Os trezentos mil arqueiros e os quatrocentos mil soldados de lanças
elevadas acima da cabeça corriam saltando os tufos da vegetação(...) (Paula,., p.28)
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Literatura e dissonâncias
A grande arte móvel, arte industrial típica, o cinema, instituiu uma divisão de trabalho
rigorosa, análoga àquela que se passa numa usina, desde a entrada da matéria bruta
até a saída do produto acabado; a matéria prima do filme é o script ou romance que
deve ser adaptado; a cadeia começa com os adaptadores, os cenaristas, os dialogistas,
às vezes até especialistas em gag ou em humantouch, depois o realizador intervém ao
mesmo tempo que o decorador, o operador, o engenheiro de som, e finalmente, o
músico e o montador dão acabamento à obra coletiva. É verdade que o realizador
aparece como autor do filme, mas este é o produto de uma criação concebida segundo
as normas especializadas da produção.(1969,p.33)
O cinema, por conta de sua dimensão visual intrínseca, consegue dar forma concreta
aos ambientes prescindindo de uma descrição literária, o que facilita a assimilação de
certos contextos, principalmente os históricos. E sobre isso, também há aspectos
interessantes a comentar: o cinema histórico foi um dos primeiros gêneros a ganhar
forma e linguagem próprias no cinema, e sua própria denominação representa uma
confluência das definições características do gênero épico, uma vez que, ao que se
denomina em francês ‘Filmhistorique’, em inglês a tradução é justamente ‘Epicfilm’.
(cf. website Salles,2013)
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Literatura e dissonâncias
O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente,
purifica-as , inocenta-as, fundamenta-as em natureza e em eternidade, dá-lhes uma
clareza , não de explicação, mas de constatação(...) (Barthes, 2013, p.235)
Eu segurei o meu membro rijo entre os dedos diante de Marilyn Monroe e ela abriu as
suas pernas mostrando os pêlos de seu sexo. Eu me ajoelhei segurando o meu membro
latejante e aproximei a cabeça vermelha do meu membro do membro do sexo de
Marilyn, e ela encolhei mais as pernas junto do corpo e abriu com os dedos as peles
que formavam os lábios do seu sexo. Eu rasguei com a unha a tampa de papel que era
a virgindade de Marilyn Monroe, a tampa de papel estava pregada nos bordos do sexo
de Marilyn onde não existia pelos. Eu rasguei com a unha a tampa de papel que era a
virgindade de Marilyn Monroe, e depois introduzi o meu membro na vagina apertada
e úmida. Marilyn Monroe soltou um gemido e eu caí em cima dela enterrando o meu
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Literatura e dissonâncias
membro na vagina apertada de Marilyn. Depois eu senti o gozo saindo pelo canal
estreito do meu membro rijo preso entre as paredes da vagina, e caía sobre ela
extenuado e arfado. (Paula, J.A. 2001, p.62)
O "Eu," que inicialmente não era tomado pelo desejo ou pela raiva,
começa a entrar em choque com o esportista Joe Di Maggio, que foi marido de
Marilyn na vida real. Os encontros com diMaggio acabam sempre tornando-
se cenas de violência extrema, como o trecho a seguir:
(...) Os dois blocos se encontraram e partiram em quatro pequenos blocos formados por
motocicletas, porta-aviões, bicicletas, máquinas de lavar-roupa, flechas e espadas. Os
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Série E-book | ABRALIC
REFERÊNCIAS:
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Literatura e dissonâncias
Veloso, C. Prefácio. IN: PAULA, José Agrippino de. PanAmérica. São Paulo:
Editora Papagaio, 2001.
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Série E-book | ABRALIC
Flávia Amparo1
Não vivemos uma crise do capitalismo, mas, pelo contrário, o triunfo do capitalismo
de crise. A “crise” significa: o governo cresce. (...) Quando se corta pela metade o
vencimento dos funcionários públicos gregos, isso é feito sob o argumento de que seria
possível nunca mais lhes pagar. A cada vez que se aumenta o tempo de contribuição
dos assalariados franceses para a seguridade social, isso é feito sob pretexto de “salvar
o sistema de aposentadorias”. A crise presente, permanente e omnilateral, já não é a
crise clássica, o momento decisivo. Pelo contrário, ela é um final sem fim, apocalipse
sustentável, suspensão indefinida, diferimento eficaz do afundamento coletivo e, por
tudo isso, estado de exceção permanente. A crise atual já não promete nada: ela tende,
pelo contrário, a libertar quem governa de toda e qualquer contrariedade quanto aos
meios aplicados. (Comitê invisível, 2016,p.28).
2Comitê Invisível: grupo de intelectuais anônimos, de origem francesa, que vem publicando obras de cunho
revolucionário na França e em outros países do mundo, como L’Insurrection qui vient (La Fabrique, 2007), et A nos
amis (La Fabrique, 2014).
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Série E-book | ABRALIC
construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de
expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos;
(3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e
inconsciente.(Candido, 2011, p. 176)
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(...) as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em
declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até
aqui visto como sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como
parte de um processo amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos
centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos
indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.(Hall, 2005, p.7)
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Literatura e dissonâncias
O meu trabalho literário foi incinerado na língua em que o escrevi, no mesmo país onde meus
livros ganharam como amigos milhões de leitores. Assim, não pertenço a lugar algum, em toda
parte sou estrangeiro ou, na melhor das hipóteses, hóspede; a própria pátria que o meu coração
elegeu para si, a Europa, perdeu-se para mim, desde que se autodilacera pela segunda vez numa
guerra fratricida. Contra a minha vontade eu me tornei testemunha da mais terrível derrota da
razão e do mais selvagem triunfo da brutalidade dentro das crônicas dos tempos; nunca – eu não
registro isso de maneira alguma com orgulho, mas sim com vergonha – uma geração sofreu
tamanho retrocesso moral, vindo de uma tal altura intelectual como a nossa. No pequeno
intervalo desde que meus primeiros fios de barba cresceram até começarem a ficar grisalhos,
nesse meio século aconteceram mais transformações e mudanças radicais do que normalmente
em dez gerações, e cada um de nós sente: aconteceu demais! Tão diferente é meu hoje de qualquer
dos meus ontens, minhas ascensões e minhas quedas, que às vezes me parece que vivi não uma
única existência, mas várias, inteiramente diferentes entre si. (...) entre o nosso hoje, o nosso
ontem e o nosso anteontem, todas as pontes se romperam. (Zweig, 2014, p. 14)
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Série E-book | ABRALIC
Para nós hoje, que há muito riscamos a palavra “segurança” do nosso vocabulário, é
fácil sorrir da ilusão otimista daquela geração ofuscada pelo idealismo de que o
progresso técnico da humanidade forçosamente traria consigo uma ascensão também
rápida em termos morais. Nós, que no novo século, aprendemos a não nos surpreender
mais com nenhuma eclosão de bestialidade coletiva, nós, que de cada dia esperamos
ainda mais perversidade que do anterior, somos bem mais céticos em relação a uma
educabilidade moral do gênero humano. Tivemos que dar razão a Freud, que viu na
nossa cultura, na nossa civilização, apenas uma fina camada que a cada momento pode
ser perfurada pelas forças destrutivas do submundo. Aos poucos, fomos obrigados a
nos acostumar a viver sem chão sob nossos pés, sem direitos, sem liberdade, sem
segurança. Há muito já renunciamos à religião de nossos pais, à sua crença numa
ascensão rápida e constante da humanidade. A nós, que ganhamos experiência com a
crueldade, aquele otimismo açodado parece banal ante uma catástrofe que nos fez
retroceder mil anos de um só golpe em nossos esforços humanos. (Zweig, 2014, p. 22)
(...) a existência desse pendor à agressão, que podemos sentir em nós mesmos e
justificadamente pressupor nos demais, é o fator que perturba nossa relação com o
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Literatura e dissonâncias
Origem: de onde vem essa terrível onda que ameaça levar de enxurrada tudo o que dá
cor à vida, tudo o que é diferente? Qualquer pessoa que já esteve lá sabe: dos Estados
Unidos. Os historiadores do futuro um dia haverão de registrar na página seguinte à
da grande guerra europeia que na nossa época teve início a conquista da Europa pela
América. Mais ainda: já está em pleno curso, mas nós ainda não o percebemos (todos
os derrotados costumam pensar muito lentamente). (...) Ainda nos iludimos a respeito
dos objetivos filantrópicos e econômicos dos Estados Unidos, quando, na verdade,
estamos nos tornando colônias de sua vida, de seu estilo de vida, servos de uma lógica
profundamente alheia à europeia: a da máquina.
(...) É dos Estados Unidos que vem a terrível onda de uniformidade que dá a mesma
coisa a cada um: o mesmo macacão sobre a pele, o mesmo livro nas mãos, a mesma
caneta entre os dedos, a mesma conversa nos lábios e o mesmo automóvel no lugar dos
pés. Fatidicamente, do outro lado do nosso mundo, da Rússia, chega-nos a mesma
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Aos poucos tornou-se impossível naquelas primeiras semanas de guerra (...) manter
uma conversa sensata com quem quer que fosse. As pessoas mais pacíficas e bondosas
estavam como que embriagadas com o cheiro de sangue. Amigos que eu sempre
conhecera como individualistas decididos e até anarquistas intelectuais se
transformaram da noite para o dia em patriotas fanáticos, e de patriotas em
anexionistas insaciáveis. Toda conversa terminava em frases tolas como: “Quem não
sabe odiar tampouco sabe amar”, ou em suspeitas grosserias. (Zweig, 2014, p. 214)
Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa,
seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser
vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento
- pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo
tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer
sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros
critérios de conveniência. Ficará claro, então, o duplo significado da expressão "Campo
de extermínio", bem como o que desejo expressar quando digo: chegar no fundo. (Levi,
1988, p. 33)
... Até quando? Os velhos habitantes do Campo riem desta pergunta: uma pergunta
pela qual se conhecem os recém-chegados. Riem, e não respondem: para eles, desde
meses e anos o problema do futuro longínquo foi se apagando, perdeu toda
intensidade, perante os problemas do futuro imediato, bem mais urgentes e concretos:
como a gente comerá hoje, se vai nevar, se vamos ter que descarregar carvão. Se
fôssemos seres razoáveis, teríamos que aceitar esta evidência: que não podemos,
absolutamente, prever nosso destino; que qualquer suposição é arbitrária e carece de
todo fundamento. Raramente, porém, os homens são razoáveis quando está em jogo a
sua própria sorte; eles preferem sempre as atitudes extremas. (Levi, 1988, p. 47)
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Série E-book | ABRALIC
Desejaríamos, agora, convidar o leitor a meditar sobre o significado que podiam ter
para nós, dentro do Campo, as velhas palavras "bem" e "mal", "certo" e "errado". (...)
Essa, então, é a vida ambígua do Campo. Desse modo brutal, oprimidos até o fundo,
viveram muitos homens do nosso tempo; todos, porém, durante um período
relativamente curto. Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se
convém que de tal situação humana reste alguma memória.
A essa pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim. Estamos convencidos
de que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser
analisadas; de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre
positivos) desse mundo particular que estamos descrevendo. Desejaríamos chamar a
atenção sobre o fato de que o Campo foi também (e marcadamente) uma notável
experiência biológica e social. Fechem-se entre cercas de arame farpado milhares de
indivíduos, diferentes quanto a idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos, e ali
submetam-nos a uma rotina constante, controlada, idêntica para todos e aquém de
todas as necessidades; nenhum pesquisador poderia estabelecer um sistema mais
rígido para verificar o que é congênito e o que é adquirido no comportamento do
animal-homem frente à luta pela vida. Não acreditamos na dedução mais óbvia e fácil:
de que o homem é essencialmente brutal, egoísta e estulto, como pareceria demonstrar
o seu comportamento ao ruir toda a estrutura social (...) Preferimos pensar que, quanto
a isso, pode-se chegar apenas a uma conclusão: frente à pressão da necessidade e do
sofrimento físico, muitos hábitos, muitos instintos sociais são reduzidos ao silêncio.
(Levi, 1988, p. 126-128)
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Literatura e dissonâncias
É como se eu também ouvisse isso pela primeira vez: como um toque de alvorada,
como a voz de Deus. Por um momento esqueci quem sou e onde estou.
Pikolo me pede para repetir esses versos. Como ele é bom: compreendeu que está me
ajudando. Ou talvez seja algo mais: talvez (apesar da tradução pobre e do comentário
banal e apressado) tenha recebido a mensagem, percebido que se refere a ele também,
refere-se a todos os homens que sofrem e, especialmente, a nós: a nós dois, nós que
ousamos discutir sobre essas coisas, enquanto levamos nos ombros a alça do rancho.
(Levi, 1988, p. 167-168)
3“Relembrai vossa origem, vossa essência;/ vós não fostes criados para viver como brutos, e sim para a virtude e a
experiência”. Tradução retirada da nota de rodapé da edição consultada (LEVI, 1988).
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Série E-book | ABRALIC
Venho dum país em que aprendemos a temer ou aborrecer tudo quanto diga respeito
à burocracia. Lei para nós chega a ser uma palavra temível. Nos meus tempos de
menino, sempre que à noite, nas sombrias ruas de minha cidade natal, eu encontrava
um guarda da polícia municipal, estremecia de horror, porque esses homens de má
catadura, de uniforme zuarte e espadagões à cinta eram o símbolo do capanguismo
político, tinham uma tradição de violência e arbitrariedade. Cresci com esse medo na
alma, e com a subterrânea ideia de que o funcionalismo público é uma organização
destinada especialmente a dificultar as coisas e de que no fim das contas o Governo
não passa mesmo dum instrumento de opressão. (Veríssimo, 2007, p. 19)
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Série E-book | ABRALIC
Dear Principal: O formulário da Argonne School criou para mim uma dúvida que
nunca havia me preocupado no Brasil. Estou agora diante dum espelho a perguntar a
ele e a mim mesmo se sou branco, preto, mexicano ou japonês. Se me declaro branco, o
espelho – que espero seja fiel como o da história da Branca de Neve – por certo
replicará: “Se te consideras branco, ó pretensiosa criatura, como se poderá então
classificar uma loura como Lana Turner?” (...) Sempre desconfiei que tivesse sangue
índio, mas num melting pot como é o Brasil (e, diga-se de passagem, também os
Estados Unidos) a gente nunca sabe ao certo que espécie de sangue traz nas veias.
Assim, depois de muitas e sérias cogitações resolvi fazer uma afirmação que pode não
ser esclarecedora, mas que será absolutamente honesta: “Sou um ser humano”. Isso
não é bastante, minha prezada diretora? (Veríssimo, 2007, p. 110 – grifo do autor)
... e o que me deixa apreensivo, meu caro Vasco, é verificar que esses comentaristas
políticos raramente ou quase nunca mencionam em seus artigos as causas profundas
desta guerra. Porque a coisa não pode ser simplificada a ponto de afirmarmos que a
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Literatura e dissonâncias
Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de
que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como
a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando
que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim,
segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada
elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos
repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.” (Veríssimo, 1974,
p. 45)
REFERÊNCIAS
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Série E-book | ABRALIC
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2011.
COMITÊ INVISÍVEL. Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: n-1
edições, 2016.
LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Ed.
Rocco, 1988.
VERÍSSIMO, Érico. A volta do gato preto. 18 ed. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
______. Gato preto em campo de neve. 21 ed. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
______. Solo de clarineta. memórias.3 ed. vol 1. Porto Alegre: Ed. Globo, 1976.
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1Doutoranda da área de Língua e Literatura Alemã da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo – FFLCH USP.
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A demonização do nacional-socialismo
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Literatura e dissonâncias
Eu não poderia garantir, levando em conta como fui educado até 1945 – se tivesse
nascido três ou quatro anos antes, poderia ter sido envolvido de forma ativa em
processos criminosos. Não posso garantir se teria tido força, para me defender
adequadamente, contra isso. Acho que não, não tinha formação, não tinha preparação
para isso (Vormweg, 2002, p. 15)2.
2Ichkönnte für mich nicht garantieren, so wie ich bis 1945 aufgewachsen bin – drei Jahre früher geboren, hätte ich
unter Umständen in verbrecherische Vorgänge tätig hinein verwickelt sein können. Ich kann nicht dafür garantieren,
ob ich da Abwehrkräfte genug gehabt hätte. Ich glaube nicht, ich war dafür nicht ausgebildet, nicht
ausgerüstet.(Vormweg, 2002, p. 15),
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3 Em relação ao fato de ter-se calado sobre seu envolvimento com a Waffen-SS e ter-se utilizado da máscara de seus
personagens, Grass, em suas memóriasNas peles da cebola, apresenta reflexão a respeito:
[...]Ela [a culpa] aprendeu desde cedo a procurar refúgio[...], assim que a cebola diminui, membrana a membrana,
inscrita duradouramente nas peles mais jovens: às vezes em letras maiúsculas, outras, na condição de oração
subordinada ou de nota de rodapé, de quando em quando perfeitamente legível, em seguida mais uma vez em
hieróglifos que, se é que podem ser decifrados, podem sê-lo apenas com muita dificuldade. Para mim vale, legível,
a inscrição breve:
Eu me calei.
Mas porque tantos se calaram a tentação de ignorar de todo o próprio fracasso é grande, acusar a culpa coletiva para
compensar, ou apenas falar de maneira imprópria, em terceira pessoa, de si mesmo: ele foi, viu, teve de, disse, ele
calou... E isso para dentro de si mesmo, onde há muito espaço para jogos de esconde-esconde (Grass 2006, p. 31).
Sie hat von früh auf gelernt, gebeichtet in einer Ohrmuschel Zuflucht zu suchen[…],sobald die Zwiebel Pelle nach
Pelle geschrumpft ist dauerhaft den jüngsten Häuten eingeschrieben: mal in Groβbuchstaben , mal als Nebensatz
oder Fuβnote, mal deutlich lesbar, dann wieder in Hieroglyphen, die, wenn überhaupt, nur mühsam zu entziffern
sind. Mir gilt leserlich die knappe Inschrift: Ich schwieg.
Weil aber so viele geschwiegen haben, bleibt die Versuchung groβ, ganz und gar vom eigenen Versagen abzusehen,
ersatzweise die allgemeine Schuld einzuklagen oder nur uneigentlich in dritte Person von sich zu sprechen: Er war,
sah, hat, sagte, er schwieg… Und zwar in sich hinein, wo viel Platz ist für Versteckspiel (Grass, 2006, p. 36).
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de uma realidade histórica que ele próprio vivenciou, ainda que, em grande
parte, de maneira inconsciente.
Em sua narrativa, Oskar mostra que sempre teve consciência de que a
culpa esteve o tempo todo a sua espreita, esvaziando tudo o que o cercava.
Ele constrói a culpa, que precisará ser expurgada de alguma forma, e escolhe
sua narrativa para fazer isso. Não quer a salvação, quer mostrar onde a culpa
está e, para isso, lança mão do artifício de contar suas memórias,
reconstruindo-as. A memória é fundamental, pois seu oposto, o
esquecimento, parece ter acometido todos à volta de Oskar, impedindo-os de
avaliar o que havia acabado de acontecer.
O recurso de apresentar os fatos históricos e a memória coletiva como
base da narrativa atribui a ela credibilidade, dissolvendo o fantástico no real.
O leitor não consegue se identificar com essa personagem, talvez devido à
conduta de Oskar, que rompe com tabus, vai contra os princípios morais de
uma sociedade, situação que levou à indignação da crítica. Oskar força o leitor
a apreciar sua narrativa de maneira distanciada, e dá as ferramentas para que
o leitor articule sua interpretação a respeito dos acontecimentos ali presentes
de forma crítica, utilizando-se da ironia da personagem.
Em Katz und Maus (Gato e o rato), cuja composição foi objeto de trabalho
de grande rigor genérico, Grass revela-se como mestre da pequena forma, a
novela. Com um olhar retrospectivo lançado a partir do ano de 1959, na
Danzig dos tempos de guerra, Pilenz, o narrador, conta-nos acerca do
admirado e desprezado colega de turma Joachin Mahlke, cujo pomo de adão
é maior do que o normal e faz dele uma espécie de figura marginal. Um aluno
de estranha postura por suas obsessões pela Virgem Maria e pela chave de
parafusos que trazia ao pescoço. O foco da narrativa é tratar da trajetória de
Mahlke desde sua entrada no Conradium, escola onde estudavam, sua
expulsão da escola, ingresso no exército para lutar na Segunda Guerra,
deserção e morte.
A mola propulsora da narrativa é o sentimento de culpa, até então não
processada, oculta, que toma conta do narrador, e que percorre todas as obras
da trilogia. Pilenz, o narrador, escreve sobre uma sensação de culpa e
vergonha que se refere tanto a um fato narrado no início da narrativa, em uma
cena em que está ao lado de Joachin e descreve pela primeira vez seu colega e
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Descascando a cebola
Assim que invoco o garoto de então, que fui quando tinha treze anos, fazendo citações,
interrogo-o com severidade e sinto a tentação de condená-lo, porventura sentencia-lo
como um estranho, cujos apuros me deixam frio, vejo um moleque de altura mediana
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em calças curtas e meias até os joelhos, que não para de fazer caretas. Ele se desvia de
mim, não quer ser julgado, não quer ser condenado. Foge para o colo de sua mãe. E
grita: “Eu era apenas uma criança, uma criança apenas...”
Tento acalmá-lo e peço-lhe que me ajude a despelar a cebola, mas ele se recusa a dar
informações, não quer ser explorado como meu autorretrato imaginativo de outrora.
Recusa-me o direito de, conforme ele diz, “acabar” com ele, e além disso “de cima para
baixo”. (Grass, 2007, p. 31-32).4
4Sobald ich mir den Jungen von einst, der ich als Dreizehnjäriger gewesen bin, herbeizitiere, ihn streng ins Verhör
nehme und die Verlockung spüre, ihn zu richte, womöglich wie einen Fremden, dessen Nöte mich kaltlassen,
abzuurteilen, sehe ich einen mittelgroßen Bengel in kurzen Hosen und Kniestrümpfen, der ständig grimassiert.
Erweicht mir aus, willnicht beurteilt, verurteilt werden. Er flüchtet auf Mutters Schoß. Er ruft: “Ich war doch ein
Kind nur, nur rein Kind…”
Ich versuche, ihn zu beruhigen, und bitte ihn, mir beim Häuten der Zwiebel zu helfen, aber er verweigert Auskünfte,
will sich nicht als mein frühes Selbstbild ausbeuten lassen. Er spricht mir das Recht ab, ihn, wie er sagt,
“fertigzumachen”, und zwar “von oben herab”.4(Grass, 2006, p. 37)
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REFERÊNCIAS
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Evanir Pavloski1
Introdução
[...] um projeto "global" deve ser de tal forma que envolva na sua totalidade o modo de
viver dos homens em sociedade, isto é, um projeto que não seja voltado para um único
fim, mas que seja, porém importante e significativo, um pormenor que seja, mas que
ao contrário envolva a sociedade no seu complexo. (Firpo, 2005, p. 229)
[...] a utopia deve ser radical, porque um projeto que implique leves variantes,
pequenos retoques, um deslocamento quase imperceptível das estruturas da sociedade
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Por muito tempo o senhor Palomar se esforçou por atingir uma impassibilidade e um
alheamento tais que só levavam em conta a harmonia serena das linhas do desenho:
todas as lacerações e contorções e compressões que a realidade humana deve sofrer
para identificar-se com o modelo deviam ser consideradas acidentes momentâneos e
irrelevantes. Mas se por um instante ele deixava de fixar a harmoniosa figura
geométrica desenhada no céu dos modelos ideais, saltava a seus olhos uma paisagem
humana em que a monstruosidade e os desastres não eram de todo desaparecidos e as
linhas do desenho surgiam deformadas e retorcidas. (Calvino, 1997, p. 98)
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[...] o discurso eugênico apresentava alguns pontos básicos para a regeneração social e
moral dos cidadãos brasileiros: a luta contra a sífilis, vinculada a defesa da abstinência
sexual antes do casamento, e a fidelidade conjugal como elementos saneadores da
sociedade; combate à prostituição, ao álcool e às drogas; defesa da educação sexual e
moralização dos costumes; o aperfeiçoamento de medidas legislativas de higiene pré-
nupcial e regulamentação da imigração (Matos, 2005, p. 57).
[...] o Antigo Brasil cindira-se em dois países, um centralizador de toda a grandeza sul-
americana, filho que era do imenso foco industrial surgido às margens do Paraná. Com
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cataratas gigantescas ao longo do seu curso, acabou esse fecundo Nilo da América
transformado na espinha dorsal do país que em eficiência ocupava no mundo o lugar
imediato aos Estados Unidos. O outro, uma republica tropical, agitava-se nas velhas
convulsões políticas e filológicas. Discutiam sistemas de voto e a colocação dos
pronomes da semi-morta língua portuguesa. Os sociólogos viam nisso o reflexo do
desequilibro sanguíneo consequente à fusão de quatro raças distintas, o branco, o
negro, o vermelho e o amarelo, este ultimo predominante no vale do Amazonas
(Lobato, 1979, p. 77-78).
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Em vez de um país á moda dos Estados Unidos, absolutamente homogêneo, com uma
consciência coletiva que reage da mesma maneira de norte a sul e de leste a oeste,
ficamos uma série de compartimentos estanques – a Amazônia, o Nordeste, São Paulo,
Minas, o Rio Grande, separados, fortemente diferenciados, cada região com sua
consciência regional, sua psíquica regional, sua política regional – e dia a dia cada vez
mais antagonizados. Chegamos a tal ponto de separação que os choques interregionais
já começaram (Lobato, 1948, p. 28-29).
O idealismo dos americanos não é o idealismo latino que recebemos com o sangue.
Possuem-no de forma especifica, própria, e de implantação impossível em povos não
dotados do mesmo caráter racial. Possuem o idealismo orgânico. Nós temos o utópico.
Veja a França. Estude a Convenção Francesa. Sessão permanente de utopismo furioso
— e a resultar em que calamidades! Por quê? Porque irrealizável, contrario á natureza
humana. Veja agora a América. Em todos os grandes momentos da sua historia, sempre
vencedor o idealismo orgânico, o idealismo pragmático, a programação das
possibilidades que se ajeitam dentro da natureza humana (Lobato, 1979, p. 47).
senhorita Benson chega a afirmar, inclusive, que Ford teria sido o criador de
uma forma de idealismo orgânico que teria influenciado diretamente o futuro
dos Estados Unidos, tendo como corolário a sociedade vislumbrada pelo
porviroscópio.
Por mais audacioso que nos pareça o pensamento de Henry Ford, que é ele senão o
reflexo do mais elementar bom senso? [...] No entanto, tamanha é a crosta que nos
recobre o bom senso natural que Ford nos parece um messias da Ideia Nova. [...]
Ninguém melhor do que eu poderá dizer isto de Henry Ford, porquanto devassei o
futuro e por toda parte vi reflexos do seu pensamento. É pois o melhor tipo atual do
idealista orgânico. Sonha, mas sonha a realidade de amanhã. (Lobato, 1979, p. 47-48).
E o mundo americano não podia deixar de ser assim, senhor Ayrton, continuou ela.
Note apenas: que é a América, senão a feliz zona que desde o inicio atraiu os elementos
mais eugênicos das melhores raças europeias? Onde a força vital da raça branca, se não
lá? Já a origem do americano entusiasma. Os primeiros colonos, quais foram eles? A
gente do Mayflower, quem era ela? Homens de tal têmpera, caracteres tão
shakespearianos, que entre abjurar das convicções e emigrar para o deserto, para a terra
vazia e selvagem onde tudo era inospitalidade e dureza, não vacilaram um segundo.
Emigrar ainda hoje vale por alto expoente de audácia, de elevação do tônus vital. Deixar
sua terra, seu lar, seus amigos, sua língua, cortar as raízes todas que desde a infância
nos prendem ao solo pátrio, haverá maior heroísmo? Quem o faz é um forte, e só com
esse fato já revela um belo índice de energia. Mas emigrar para o deserto, deixar a pátria
pelo desconhecido, isto é formidável! (Lobato, 1979, p. 48).
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Série E-book | ABRALIC
Também aqui arrostamos com igual problema, mas a tempo acudimos com a solução
pratica — e por isso penso que ainda somos mais pragmáticos do que os americanos.
A nossa solução foi admirável. Dentro de cem ou duzentos anos terá desaparecido por
completo o nosso negro em virtude de cruzamentos sucessivos com o branco. Não acha
que fomos felicíssimos na nossa solução? (Lobato, 1979, p. 49)
A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as
suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de
caráter, consequente a todos os cruzamentos entre raças dispares. Caráter racial é uma
111
Literatura e dissonâncias
cristalização que às lentas se vai operando através dos séculos. O cruzamento perturba
essa cristalização, liquefá-la, torna-a instável. A nossa solução deu mau resultado.
(Lobato, 1979, p. 49).
Até a mistura entre os metais ‘nobres’ e ‘baixos’ deve ser evitada, porque da mescla
surgirão a ‘variação’ e a ‘absurda irregularidade’, coisas que, segundo o projeto, não
devem aparecer numa sociedade que se procura aperfeiçoar também através do
controle da concepção, e não apenas da natalidade. (Coelho, 1985, p. 37).
Em vez de entrada franca a quem quisesse vir localizar-se no país, organizou o governo
americano em todas as nações do velho mundo um serviço de importação de valores
humanos, consistente em atrair para lá a fina flor eugênica das melhores raças
europeias. Já aliviada do seu ouro em favor da América, viu-se a Europa também
aliviada da sua elite. (Lobato, 1979, p. 52).
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Entre cortar no inicio o fio da vida a uma posta de carne sem sombra de consciência e
deixar que dela saia o ser consciente que vai vegetar anos e anos na horrível categoria
dos "desgraçados", a crueldade está no segundo processo. A lei espartana reduziu
praticamente a zero o numero dos desgraçados por defeito físico. (Lobato, 1979, p. 53)
113
Literatura e dissonâncias
Só depois da aplicação de tais leis é que foi possível realizar o grandioso programa de
seleção que já havia empolgado todos os espíritos. Desapareceram os peludos — os
surdos-mudos, os aleijados, os loucos, os morféticos, os histéricos, os criminosos natos,
os fanáticos, os gramáticos, os místicos, os retóricos, os vigaristas, os corruptores de
donzelas, as prostitutas, a legião inteira de malformados no físico e no moral,
causadores de todas as perturbações da sociedade humana. (Lobato, 1979, p. 53)
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Progress and idealism have always attracted the human race. To be unable to believe
that things can and will get better is at best negative, at worst destructive. But to believe
that the realization of an ideal is worth any sacrifice, or that progress by its very nature
must be good for humanity, is extremely dangerous. Orwell and Huxley were both very
worried about the tendency towards these beliefs.2(Calder, 1976, p. 07)
2Tradução nossa: O progresso e o idealismo sempre atraíram a raça humana. Ser incapaz de acreditar que as coisas
podem e irão melhorar é na melhor das hipóteses negativo e na pior das hipóteses destrutivo. Mas, acreditar que a
realização de um ideal vale qualquer sacrifício ou que o progresso, por sua própria natureza, deve ser bom para a
humanidade é extremamente perigoso. Orwell e Huxley estavam ambos muito preocupados com a tendência para
essas crenças.
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Literatura e dissonâncias
Por maior que seja a tentativa, os homens não conseguem criar um organismo social,
apenas podem criar uma organização. Insistindo nas tentativas de criação de um
organismo, os homens instituirão tão somente um despotismo totalitário. O Admirável
Mundo Novo apresenta um quadro fictício e um pouco grosseiro de uma sociedade em
que a tentativa de recriar seres humanos à semelhança de térmites foi levada quase até
as raias do possível. (Huxley, 2000, p. 47)
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A Guerra dos Nove Anos começou em 141 d.F. [...] O barulho de quatorze mil aviões
avançando com ordem de atacar. Mas no Kurfürstendamm 3 e na Oitava Circunscrição
de Paris, a explosão das bombas de antracita 4 fez pouco mais barulho que um saco de
papel [...] A técnica russa para contaminar os suprimentos d’ água era particularmente
engenhosa [...] A Guerra dos Nove Anos, o Grande Colapso Econômico. Restava a
escolha entre a Direção Mundial e a destruição. (Huxley, 1982, p. 72, 73).
3Kurfürstendamm corresponde ao nome da avenida principal de Berlim em sua região oeste. Trata-se de uma rua
comercial que teve seu desenvolvimento no século XIX e no início do século XX.
4 Antracita, antracite ou antracito é uma variedade de carvão mineral bastante valorizado pela grande liberação de
energia durante a sua queima, a qual se dá de maneira límpida e produzindo pouca fuligem.
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Literatura e dissonâncias
A procissão avançava; um a um, os ovos eram transferidos dos seus tubos de ensaio
para os recipientes maiores; com destreza, a guarnição de peritônio era incisada, a
mórula era posta no seu lugar, a solução salina era transvasada... e já o bocal seguia
adiante, tocando então a vez aos Rotuladores. A hereditariedade, a data da fecundação.
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— Era uma vez — começou o Diretor — quando Nosso Ford ainda estava neste mundo,
um rapazinho chamado Reuben Rabinovitch [...] O caso do pequeno Reuben ocorreu
apenas vinte e três anos depois do lançamento do primeiro Modelo T de Nosso Ford.
(Aqui o Diretor fez o sinal do T sobre o estômago e todos os estudantes seguiram-no
reverentes.) (Huxley, 1982, p. 45, 47).
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Literatura e dissonâncias
Assim, tereis uma geração nova bem menos culta. Daí sairão chefes pouco capazes de
zelar pelo Estado e que não sabem notar a diferença nem das raçasde Hesíodo nem das
vossas raças de ouro, prata, bronze e feno. Deste modo,misturando-se o ferro com a
prata e o bronze com o ouro, resultará destas misturas um defeito de conveniência, de
regularidade e de harmonia que, uma vez instaurado, engendra sempre a guerra e o
ódio. E esta a origem que se deve atribuir à discórdia, em toda parte que se declare.
(Platão, 1997, p. 302).
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Literatura e dissonâncias
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As crianças Alfa vestem-se de cinza. Trabalham muito mais do que nós, porque têm
inteligência extraordinária. Realmente, estou muito feliz de ser Beta, porque não
trabalho tanto. Ademais, somos muito melhores do que os Gamas e os Deltas. Os
Gamas são estúpidos. Todos se vestem de verde e as crianças Deltas se vestem de cáqui.
(Huxley, 1982, p. 50).
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Literatura e dissonâncias
Agora o mundo é estável. O povo é feliz; todos têm o que desejam e nunca querem o
que não podem ter. Sentem-se bem; estão em segurança; nunca ficam doentes; não têm
medo da morte; vivem na perene ignorância da paixão e da velhice; não se afligem com
pais e mães; não têm esposas, filhos, nem amantes a que se apeguem com emoções
violentas; são condicionados de modo a não poderem deixar de se comportarem como
devem. (Huxley, 1982, p. 268).
Considerações finais
REFERÊNCIAS
BERLIN, Isaiah. Limites da utopia: capítulos da história das idéias. São Paulo:
Companhia das Letras: 1991.
CALDER, Jenni. Huxley and Orwell: Brave New World and Nineteen Eighty-Four.
London: Edward Arnold, 1976.
5With the discovery of the counter-finality of reason, which is lived in the collective imaginary via the affirmation of
counter-utopias, it is not only isolated errors or risks of corruption that are experienced and experienced and
exhibited; it is the very mechanism of rationalization that is ‘suspended’, thrown into crisis and under accusation
worldwide. It is apparently no longer by chance that counter-utopia comes to the fore in an age when, at the level of
common consciousness, there is a marked dissolution of the ideology of progress.
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Literatura e dissonâncias
1Doutora em Letras, na área de Teoria e Estudos Literários, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP), campus de São José do Rio Preto.
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Se o leitor quiser, este pode ser um livro de contos. Um livro com 13 histórias
independentes, girando sempre em torno de um mesmo tema: amor. Amor e sexo,
amor e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e memória, amor e medo, amor
e loucura. Mas se o leitor também quiser, este pode ser uma espécie de romance-móbile.
Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se, esclarecer-
se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneiras umas às outras, para formarem uma
espécie de todo. Aparentemente fragmentado, mas de algum modo — suponho —
completo. (Abreu, 2014, p. 13; grifo no original)
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Literatura e dissonâncias
2Evocamos o conceito de fábula que os formalistas russos utilizavam, isto é, enquanto “descrição de acontecimentos”
(Eikhenbaum, 1973, p. 22).
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3“Os espaços, na narrativa, têm força e significado; eles estão relacionados a valores e crenças humanas; e integram
o vasto universo do homem, incluindo ações e eventos.” (Kort, 2004, p. 11 – tradução nossa)
131
Literatura e dissonâncias
— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que
antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir
como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais
carinhosa, embora inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. (Abreu, 2014, p. 16; grifos
nossos)
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É por meio das sugestões, dos elementos constituintes do texto, aliás, que
chegamos à compreensão de que ambas as personagens, mãe e filho, estão
diante de um grande drama existencial. Nada é dito de forma explícita no
conto, tudo vai sendo sugerido, para que o leitor preencha as lacunas e
participe efetivamente da construção do sentido. Na medida em que vamos
atribuindo significado às argutas insinuações tecidas por Caio Fernando
Abreu, aos influxos presentes na condução do narrador, nos diálogos, nas
ações e caracterizações das personagens, e, especialmente, nos detalhes que
compõem o espaço, podemos chegar ao entendimento de que as personagens
principais estão lidando, mais precisamente, com a proximidade ou a
possibilidade da morte. Não apenas a mãe e o filho, mas a cadela também,
Linda, que está bem velha, cega, e reflete de modo imediato a condição de sua
dona, a mãe, a mulher idosa. Nesse ponto, citamos o seguinte trecho: “— Sai,
Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu.
— Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe
dormir, comer e cagar, esperando a morte.” (Abreu, 2014, p. 16-17; grifo
nosso).
Observando o enorme contraste entre o nome da cadela e seu aspecto
físico, podemos notar a ironia ferina contida no título do conto. E essa ironia
aponta, justamente, para o fato de que as personagens estão passando por
uma experiência aterradora.
Salientamos que a mãe é uma personagem mais plana, então, sua
situação fica, desde o começo do texto, um tanto mais óbvia para o leitor.
Trata-se de uma mulher idosa, viúva, encerrada no espaço doméstico, em uma
casa velha e decadente, e a única companhia que ela tem é a cadela igualmente
velha. Tudo aquilo que compõe a personagem da mãe, e que a cerca, aponta
muito diretamente para a ideia de ruína. Quanto a seu aspecto físico, frisamos:
“Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as
inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado.” (Abreu, 2014, p. 19). Com
a metáfora do “papel de seda amassado”, o autor expressa a evidência da
velhice nas rugas que vincam a pele da personagem, sobressaindo-se entre o
tecido de sua roupa, um robe estampado com flores roxas. Simbolicamente,
em sua extensão negativa, a cor roxa pode reforçar a indicação de decadência
e morte. Naquilo que se refere ao reflexo da condição dessa personagem no
133
Literatura e dissonâncias
A analogia que se estabelece entre o tapete da casa, o filho e a cachorra acaba revelando
a vetustez das personagens e da casa. Unindo-se as descrições das degradações físicas
– a cadela que está velha e sarnenta, o tapete que perde a sua tonalidade com o passar
dos anos e o filho que se encontra envelhecido precocemente –, percebe-se que este
esteja gravemente doente. (Welter, 2016, p. 7)
4Aos leitores que se interessarem pela questão da AIDS na obra de Caio Fernando Abreu, deixamos, aqui, a referência
de autores que a trabalham de forma mais aprofundada: Antonio Eduardo de Oliveira (2009) e Fernando Oliveira
Mendes (1988), por exemplo.
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Série E-book | ABRALIC
As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo
de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres,
guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via.
Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro
quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na
doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado. (Abreu, 2014, p.
17-18; grifo no original)
135
Literatura e dissonâncias
Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos
descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas
vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido
desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do
interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias.
Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os
dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta. (Abreu, 2014, p. 15-16)
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Série E-book | ABRALIC
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor.
Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto,
sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu
depois. (Abreu, 2014, p. 16; grifos nossos)
Antes de abrir a porta, ela olha pelo vidro, e o narrador focaliza seu rosto
enquadrado pela pequena janela, forte estímulo figurativo de sua condição de
clausura. Esses são os primeiros indícios do isolamento social da mãe, e ao
longo do texto existem muitos outros. Conforme o diálogo entre as duas
personagens, mãe e filho, vai se desenrolando, o leitor pode inferir que há
uma outra filha, Elzinha. O protagonista pergunta porque a mãe não vai
morar com essa filha e o genro, e podemos flagrar, assim, uma forte sugestão
de que há um descaso por parte da família em relação a essa idosa. Até mesmo
do protagonista, porque ele também esteve longe durante muito tempo e volta
somente quando está doente. A respeito dessa questão, citamos um trecho do
conto:
— Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é
grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?
Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava
com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de
manchas marrons segurando o cigarro quase no fim. (Abreu, 2014, p. 20-21)
137
Literatura e dissonâncias
quase no fim pode ser lida como metáfora de uma vida que vai se esgotando,
que vai chegando ao fim.
Esse estado de isolamento ou marginalidade vai se estender para o filho,
na medida em que ele também acaba se fundindo com o espaço decadente da
casa da mãe. Conforme ocorre essa integração, o leitor pode inferir sua
condição socialmente estigmatizada e propensa à discriminação, isto é, um
homossexual, soro positivo, no contexto dos anos 1980. Nesse sentido,
destacamos o final do conto, seu clímax: após receber o filho e conversar com
ele, a mãe sai da cozinha e vai dormir, então o protagonista fica sozinho,
desabotoa a camisa e olha para a imagem de si mesmo no espelho, magro,
com os cabelos ralos, e a pele cheia de manchas:
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para
o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga,
numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos
quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a
mesa, tirou o casaco.
Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a
camisa manchada de suor e uísque.
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais
clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do
tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na
ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se
apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus,
pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio
de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito,
embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda. (Abreu, 2014, p. 27-28)
De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a
fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de
entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha
de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do
Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado.
Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E
desejou. Alívio, vergonha. (Abreu, 2014, p. 18)
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Literatura e dissonâncias
REFERÊNCIAS
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Literatura e dissonâncias
Introdução
1Doutoranda em Literatura Italiana com Bolsa CAPES no Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected].
2Inicialmente chamada de Comedia di Callimaco et di Lucretia, possivelmente em alusão à Dante e sua Commedia,
tomando como referência um verso presente no prólogo: “un nuovo caso in questa terra nato”, em que o autor deixa
clara a intenção de contar uma segunda história na mesma cidade de Florença tomada como base na obra de Dante.
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Série E-book | ABRALIC
Sobre o autor
3Embora seja esta a data mais comumente aceita, estudos mais recentes nos relatam que a obra foi mais
provavelmente escrita alguns anos antes, por volta de 1514/1515 (cf. Stoppelli,2006).
4 Nome de batismo do autor, a título de ilustração. Para fins deste trabalho, consideraremos a versão
143
Literatura e dissonâncias
Vale ressaltar que, embora não viesse de uma família nobre ou rica,
Maquiavel recebeu uma educação clássica, e na infância já dominava a
retórica greco-romana e redigia em latim. A presença de uma biblioteca
clássica na casa do pai e o seu gosto pelos estudos parecem ter sido as
primeiras motivações que o teriam levado a tornar-se um leitor assíduo dos
clássicos da antiguidade, sobretudo os romanos.
Aos sete anos, seguindo a tradição de educação da época, foi enviado ao
primeiro professor para estudar as bases dos elementos da língua latina,
chamado Matteo, depois passando a ser orientado por Battista Poppi. Em
1480, começou a estudar também matemática e ábaco. Aos doze anos redigia
em latim e traduzia textos para a língua italiana, tendo como professor Ser
Paolo da Ronciglione. Ainda segundo Stoppelli, não existem registros de uma
aprendizagem de grego. Neste período, entre os anos de 1488 e 1497,
Maquiavel realiza a transcrição dos textos De rerum natura, de Lucrécio, e
Eunuchus6, de Terêncio, assinando com o nome de Nicolaus Maclavellus 7
(Stoppelli, 2005, p. 30), posteriormente se aprofundado com a tradução para o
vulgar de Andria, também de Terêncio. Sobre esta obra, segundo Ridolfi
(1969), existem duas versões para o texto, a primeira datando de 1517-1518, e
a segunda 1520. Esta segunda versão, diferente da primeira que consistia em
uma tradução literal, traz uma readequação dos diálogos e detalhes da trama
à realidade renascentista de Florença, contendo em suas páginas uma crítica
aos valores locais que o então Secretário gostaria que fossem mudados.
Entrou para a política aos 29 anos como secretário do Conselho dos Dez
da Guerra e segundo chanceler da república florentina, ou seja, ocupou postos
de destaque em Florença em outros conselhos da república de 9 de junho de
1498 até 7 de novembro de 1512, porém com a vitória dos Médici neste ano,
foi forçado a abandonar o seu cargo, na condição de cidadão comum,
desprovido de renda e com uma família para prover. Condenado e acusado
injustamente de ter tramado contra a nova família governante, foi preso e
torturado. Anistiado e sem recursos, se transferiu com sua família para a casa
que possuíam em San Casciano. Durante o seu “exílio” escreve suas principais
obras: Il principe, I discorsi, Andria, Mandragola, Clizia, L’arte della guerra, entre
Maquiavel e a comédia
8Os Orti Oricellaripertenciam à família Rucellai, cujo nome oricellari é uma variante antiga do nome da família. A
inclinação em patrocinar (mecenas) da família Rucellai, semelhante a dos Medici, realizou ali a Academia platônica
que hospedou alguns dos mais importantes literatos e homens de cultura como Maquiavel, Jacopo Nardi e Papa
Leão X. Na Academia se falava frequentemente de política e sobre a questão republicana. Em 1513, uma
conspiração verdadeira teve como fundo as ideias que circulavam no círculo acadêmico, culminando emalgumas
prisões, dentre elas, a de Maquiavel, que teve uma pena leve, diferente de seus colegas Pietro Paolo Boscoli e
Agostino Capponi, que por serem os maiores responsáveis pela conspiração, foram torturados e condenados à
morte. O fechamento definitivo da academia aconteceu em 1523.
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Literatura e dissonâncias
A comédia do Renascimento
9Espressioni “orali, vivaci”, quotidiane, perché il volgare era distante alla loro lingua.
10Dando inclusive origem ao fenômeno do imitatio, no qual as novas obras eram feitas tomando como base um
modelo pré-estabelecido.
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Série E-book | ABRALIC
11Entre essas as anônimas Comedia di opinione fra gli dei, Farsa dell’uomo che si vuol quietare e vivere senza
pensieri, Conmedia di adulatione, Farsa in qua dannati sunt iuvenes, ou os textos dos araudos, dos Commedia
della Ingratitudine, de Giovanbattista de Cristofano dell’Ottonaio, e a Comedia di Fortuna, de Jacopo del Polta,
detto Bientina, para citar somente algumas (DRAMMATURGIA, 2017).
12 “farsa deve ser entendida no sentido em que sugere a derivação medieval do lema 'farsa', do latim vulgar farsa,
preencher, e, em seguida, no sentido genérico de enchimento, mistura, sinônimo de alguma forma de sátira.”
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Literatura e dissonâncias
que abordam o tema são Donato Giannotti (1492-1573) com Vecchio amoroso
(1533), Lorenzino de’Medici (1514-1548) com Aridosia (1536), Agnolo
Firenzuola(1493-1543) com La trinuzia e I lucidi (1539), Giovan Battista Gelli
(1498-1563) com suas comédias La sporta (1543) e L’errore (1553) e o autor que
mais escreveu comédias: Anton Francesco Grazzini (detto il Lasca – 1505-1584),
um dos fundadores da Accademia degli Umidi, que em 1541 foi transformada
em Accademia Fiorentina e pouco depois em Accademia della Crusca, que
escreveu 7 obras nesse estilo – Gelosia (1551), Spiritata (1560), La Strega (1545-
1550), La Pinzochera (1566), La Sibilla (1582), I Parentadi (1582)e L’arzigogolo13.
Em Siena, o teatro cômico floresce por meio da Accademia degli Intronati, com
a comédia Ingannati (1531), de autoria anônima, atribuída por alguns a
Castelvetro (1505-1571) e por outros a Piccolomini (1504-1464). Em Roma, a
comédia mais conhecida viria a ser La Cortigina (1525), de Pietro Aretino (1492-
1556), que mostra o revés dos ideais do Cortegiano (1518-1520) e representa a
corrupção de Roma e da Igreja. Outro grande exemplo de texto teatral é La
Venexiana, de autoria anônima e escrita entre 1509 e 1517, descoberta em 1928
por Emilio Lovarini (1866-1955), filólogo, que a encontrou e traduziu. O ciclo
se fecharia já próximo ao final do período com o Candelaio (1582), de Giordano
Bruno (1548-1600), que marca a passagem do século e é centrada na zombaria
e nos “otários” que se deixam enganar14. A Comédia do Cinquecento, em sua
grande variedade de autores e títulos, interpreta o gosto pela conversação,
dialoga com a influência de Plauto e Terêncio, porém traz - em alguns casos -
aspectos da própria contemporaneidade, podendo ser entendida como uma
leitura do antigo, conduzida pelos modernos que querem representar sua
própria modernidade sem deixar de lado a estrutura clássica. A partir de
Maquiavel, e consequentemente nas obras que sucedem sua produção, serão
utilizadas como fonte também as novelas de Boccaccio, introduzindo assim
novos sabores e nuances ao gênero. O Cinquecento italiano trata-se, portanto,
de um século recheado de grandes comédias, verdadeiras formas de arte
literária, com características e incomparáveis em outros séculos ou culturas.
13 Sem uma data precisa. Aparece somente em 1750 e pode ser uma ampliação de uma farsa perdida, Lagiostra,
também de data desconhecida.
14 Evidentemente não foram citadas neste momento todas as comédias do cinquecento italiano, por não ser este o
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Literatura e dissonâncias
15Possivelmente em referência a Piero Soderini (Firenze, 1452 – Roma, 1522); Maquiavel com 29 anos foi convocado
para assumir a secretaria da segunda chancelaria do novo regime republicano instalado no regime pós-Médici. Cargo
esse que, foi conseguido devido ao reconhecimento que o seu pai tinha com Piero Soderini, golfanoleiro que anos
mais tardeserá destituído do poder. O regime republicano foi derrubado em setembro de 1512. Os Médici voltaram
para reinar expulsando todos os republicanos que restaram, inclusive Maquiavel, que se retirou da vida
pública.(Larivaille, 1988)
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A Mandrágora
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na cama de Lucrezia pelo próprio marido, e esta, que inicialmente era contra
o plano, após a declaração de amor de Callimaco, se entrega ao adultério, sem
que seu marido suspeite que foi enganado.
A obra baseada em uma impiedosa e real averiguação da natureza
humana e da corrupção da sociedade, trazendo para alguns críticos um
naufrágio da moral tradicional e familiar. Pode-se verificar no prólogo o autor
define a sua obra como uma fábula – “la favola Mandragola si chiama” – e se
desculpa por escrever uma peça indigna de um escritor sábio e grave:
desrespeito com as mulheres, e como passara por cima de seus valores para
obter retorno financeiro. Este comportamento também pode ser observado
quando o frei abusa de sua habilidade dialética nas afirmações “bíblicas” para
convencer Lucrezia a contrariar suas convicções e participar do ato que estava
sendo arquitetado. Primeiro afirma que é a vontade quem peca, e não o corpo,
afirmando que mesmo com a traição ela continua virtuosa, pois somente seu
corpo seria entregue a outro homem, não tendo ela, portanto, cometido
nenhum pecado, por não existir interesse de sua parte em outro homem; A
segunda afirmação, de teor ainda mais grave, é de que o maior pecado seria
descontentar seu marido, devendo a mulher obedecer o marido em todas as
situações, expondo aqui o pensamento machista da sociedade no período,
mas, ainda mais relevante, colocando a vontade do homem acima da vontade
de Deus (ou, por outro enfoque, que a vontade de Deus se moldaria à do
homem).Argumento semelhante pode ser encontrado em Decameron (VII, 3),
onde o personagem frei Rinaldo usara de argumentos supostamente
doutrinários para convencer Agnese a dormir com ele, afirmando que tal ato
não seria pecado visto que eles possuíam uma ligação, uma vez que ele havia
batizado seu filho.
Lucrezia é apresentada como uma “jovem muito prudente”, definida
por Callimaco como uma mulher lindíssima, honesta e virtuosa, mas que
durante a comédia se adapta as circunstâncias do adultério imposto pelo
próprio marido, pelo seu confessor e por sua mãe, que é apresentada
inicialmente como “sábia e boa”, longe de revoltar-se e resistir, cede resignada
e, no fim, se mostra verdadeiramente satisfeita.
Neste ponto, fica novamente evidente o pessimismo do autor,
principalmente com a condição humana é característica marcante na obra,
personificada nos personagens de Fra Timoteo e Sostrata, respectivamente o
confessor e a mãe de Lucrezia. Estes que deveriam ser o alicerce moral da
jovem, por simbolizarem a Igreja e a família, são justamente os protagonistas
em sua queda e abandono dos valores cristãos. Entretanto, o pessimismo de
Maquiavel não se restringia ao cunho moral ou religioso, mas se mostrava um
(“Senhora Lucrezia é sábia e boa: mas eu confiarei em sua bondade. E todas as mulheres têm afinal pouco cérebro
e quando uma delas sabe dizer duas palavras, se vangloria, porque em terra de cego quem tem um olho é rei” –
Machiavelli, 2006 p.78)
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Conclusão
REFERÊNCIAS
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Anna Faedrich1
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[...] situar, sociologicamente, essa mulher que vai ser chamada de escritora, num
momento da história ocidental em que a atividade feminina, mesmo a intelectual, era
completamente desprestigiada, e a condição feminina não dava acesso à
profissionalização. Acrescente-se a esse quadro que o destino da mulher era o
casamento e a maternidade; atribuições, ou melhor, funções que em nada ou quase
nada mudavam a condição feminina, uma vez que a mulher continuava tutelada pelo
marido e mantida como uma ‘menor’, uma ‘marginalizada’, diante do poder
constituído. No início do século XIX, a mulher brasileira, genericamente falando, pois
sempre houve exceções, era destituída de qualquer instrução. Seu universo resumia-se
aos afazeres domésticos comezinhos e aos trabalhos de agulha, uma vez que, sendo
branca de classe média ou da aristocracia, deixava os demais cuidados domésticos
entregues às escravas negras, que formavam a base da pirâmide social das mulheres
brasileiras (Moreira, 2003, p. 52).
Outrora, no Brasil de anquinhas, ser poetisa era suspirar. [...] Hoje tudo mudou. Se há
suspiros, é em casa das doceiras: clara de ovo batida com açúcar e assada no forno aos
pingões. Suspiro poético, arrancado ao imo da alma à força de contrações do diafragma
e sibilo de nariz, isso morreu, saiu de moda, acabou. E é pena (Lobato, 2008, p. 193).
O lamento de Lobato deixa revelar a condição feminina à época, o
casamento como o negócio supremo da vida das mulheres e o fato de não
poderem sequer escolher seus maridos: “Se não tinha graça num marmanjão
de cabeleira que morria hético aos 20 anos, tinha-a demais nas representações
do sexo hoje ex-frágil, cujos corações não eram consultados nem para o
negócio supremo das suas vidinhas: casar” (Lobato, 2008, p. 193). Considero
importante a análise crítica do lamento de Lobato. Aparentemente, o
comentário é favorável às escritoras, uma vez que Lobato afirma que há mais
graça “nas representações do sexo hoje ex-frágil” do que “num marmanjão de
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2O termo poetisa acabou se tornando pejorativo, tanto quanto literatura de mulher/senhora, utilizado sobretudo no
século XIX para menosprezar a poesia feita pelas mulheres. Este exemplo de Lobato esclarece o modo tendencioso
como a palavra poetisa era empregada. Os poetas homens eram considerados superiores, “criaturas de fina elegância
mental”. Às poetas mulheres, forjou-se o feminino do termo, considerado comum de dois gêneros (cf. Houaiss), a
fim de marcar diferença valorativa entre as produções literárias de homens e mulheres. Ainda hoje não há um
consenso a respeito do termo ideal para denominar a poesia escrita por mulheres. Neste texto, optei pelo uso de
poeta para fugir de possíveis interpretações depreciativas, infelizmente ainda comuns nos meios acadêmico e
literário.
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mulher, ou seja, vão contra o ideal requerido pela ordem dominante e, por
isso, são punidas. Tratam-se de vozes abafadas.
O meu Policarpo do qual tirei 2.000, há dois anos, está longe de esgotar-se, apesar de tê-
lo vendido (a edição) quase pelo preço da impressão. A Dona Albertina Berta foi mais
feliz e a D. Gilka Machado, com seus livros de versos, a 5$000 a plaquete, ainda mais.
Isto dá a medida da inteligência do leitor do Rio. [...] Além disso, uma outra coisa influi
poderosamente no sucesso do livro: a tendência erótica, com uma falta total de
pensamento próprio sobre as coisas e homens do meio. O leitor carioca não quer
julgamento... (Barreto, 1956, p. 57)
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[...] Creio não possuir qualidade alguma que me recomende como futura mãe de
família... Adoro a paz, a solidão, as coisas estranhas... Sou extremamente independente.
Gastarei dias a ler, estudar... Rio-me muito, digo tolices; mas também tenho
melancolias impenetráveis, que me roem as próprias fontes de existência; é-me um mal
ingênito (Bertha, 2015, p. 68).
— Não te deixarei partir, ficarás aqui comigo, ao meu lado, não nunca mais me
abandonarás... Nunca mais... – Dizendo isso, ele apertava-a loucamente, cingi-a com os
braços, numa exaltação extraordinária.
Ladice, ainda vencida pela veemência de sua sensibilidade, não podia falar, e retribuía
esses excessos de amor com afagos lentos, com beijos longos, deliciosos, que nunca
acabavam, beijos ardentes que deixavam, de cada vez, um pouco de seu coração, de
sua alma, de sua ternura. [...] Ladice, ao seu lado, como uma grande sombra, ninava-o,
cantava baixinho, apertava-o, rosto contra rosto, beijava-lhe silenciosamente,
pausadamente, o canto dos olhos, das orelhas, os cílios, os cabelos, espalmava-lhe as
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mãos pelo dorso, como se este gesto quisesse abrange-lo por inteiro, absorvê-lo em si
[...] (Bertha, 2015, p. 143-144).
Só nos resta, portanto, fazer um apelo às mulheres criteriosas, para que lhe fechem as
portas, para que lhe neguem lugar em sua estante, onde a sua presença só pode
acarretar-lhes o descrédito. Sobretudo pedimos às mães de família que proíbam as suas
filhas a leitura de um livro tanto mais perigoso quanto tem o falso brilho que
deslumbra, o perfume inebriante que estonteia.
Estendemos este apelo aos homens sensatos e creio que eles são ainda bem numerosos.
Proíbam os pais de família a suas filhas essa leitura corruptora, elemento de destruição
para a família (Bittencourt, 1916).
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O poetastro Filinto de Almeida, outro fundador daquela casa injusta, acadêmico mais
famoso por causa do tamanho de seus pés do que pelos seus versos, era casado com
uma escritora de talento, Júlia Lopes de Almeida, mas como esta, pelo fato de pertencer
ao sexo feminino, não tinha condições de virar ‘imortal’, ele foi eleito para ocupar a
cadeira número 3. Filinto recebeu então este apelido: ‘O Acadêmico Consorte’. Quando
ele entrava na sala da Academia, exibindo o seu corpanzil e os seus grandes pés, o
irreverente Carlos de Laet fazia este comentário: —Lá vem ‘O Acadêmico Consorte’,
que como poeta está sem sorte... (Jorge, 1999, p. 25).
3Vale notar que o neto Claudio Lopes de Almeida está escrevendo a biografia do avô Filinto de Almeida e desmente
essa versão da história, defendendo a importância política e literária do avô, o que justificaria a sua entrada na ABL
por mérito próprio. Para Claudio, Filinto lamenta o fato de Júlia não poder fazer parte da ABL porque ele era a favor
do ingresso de mulheres.
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Sua produção – ainda que veiculada por órgãos inofensivos à ordem vigente e em
princípio reforçando valores femininos secularmente predeterminados pelo viés
masculino – veio com uma carga de coragem e transgressão incomuns para a época
(Martins, 2008, p. 462).
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Convenci-me hoje de que todas as mulheres devem ter uma profissão. Conheço duas
senhoras desgraçadas. Uma ficou órfã, a outra viúva, e nenhuma está habilitada a bem
ganhar a vida. Lembrei-lhes o comércio. Não sabem contabilidade. Lembrei-lhes a
tipografia, a telegrafia, a gravura, a farmácia, mas de que expedientes se hão de valer
para sustentar a família enquanto estudem? Este exemplo fez-me tremer. Se eu tiver
filhas... por Deus! Que hei de prepará-las para poderem vencer estas dificuldades
(Almeida, 1914, p. 128-129).
Ama sempre teu marido, sem humilhação, com sinceridade e alegria. Está nisto o
segredo da ventura na terra. Que ele te ame igualmente, com o mesmo extremo, o
mesmo carinho, e caminhem assim, fortes, unidos e serenos para os dias de risos ou de
lágrimas que hão de vir (Grifo meu. Almeida, 1914, p. 14).
Tenho diante dos olhos uma página de homem – A arte de envelhecer – que se me afigura
ter sido escrita diante de um espelho pérfido. Essa página suave e bem feita analisa
essa hora delicada e de difícil interpretação, em que há em todos o mesmo
estremecimento de susto, e o mesmo estender de mãos para agarrar o que passou e que
não voltará jamais – a mocidade (Almeida, 1906, s/p).
A vaidade das mulheres, mesmo quando não é maior que a dos homens, é pior, pois
está totalmente voltada para coisas materiais, a saber, para sua beleza pessoal e, na
sequência, para o brilho, a pompa, o esplendor. É por isso que a sociedade é, com razão,
seu elemento. Isso, juntamente com seu intelecto inferior, a faz inclinar-se ao
esbanjamento [...]. A vaidade dos homens, ao contrário, volta-se frequentemente para
preferências não-materiais, como o entendimento, a erudição, a coragem e coisas do
gênero (Schopenhauer, 2004, p. 31-32).
Com uma escrita repleta de humor e sutil ironia, Júlia Lopes de Almeida
desconstrói alguns mitos sexistas. Nesta crônica, argumenta que a vaidade
não é atributo apenas da mulher, como nos faz crer o filósofo em questão. A
crônica de Júlia mostra que o homem também é vaidoso e se preocupa com a
chegada dos indesejados cabelos brancos:
Não somos só nós, minhas amigas, que vemos com terror brilhar por entre as nossas
madeixas castanhas, louras ou pretas, o primeiro fio de cabelo branco. As dolorosas
apreensões desse momento eram-nos só atribuídas a nós, como se não nascêramos
senão para a mocidade e o amor.
O homem envergonhado, e com receio de se confessar vaidoso, sem perceber talvez
que a primeira denúncia da velhice tem para nós amarguras mais sutis que a do simples
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medo de ficarmos mais feias, teve sempre para a nossa decepção um sorriso de
inclemente ironia.
[...] Pensávamos que os primeiros sinais outoniços, que são para as mulheres os mais
terríveis, não os alarmassem a eles, sempre embebidos em tão grandes ideais, que nem
tivessem vagar para perceber a ruína do próprio corpo. Enganamo-nos; o homem é
também sensível como nós às apreensões que a vista do primeiro cabelo branco sugere.
Um fio de cabelo, nada há mais frágil, nem mais quebradiço nem mais leve, e entretanto
vê-se que mundo de sensações ele prende e arrasta! Até aqui, eram só as nossas,
supúnhamos, mas agora sabemos que são as de toda a gente! (Almeida, 1906, s/p).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Júlia. Livro das noivas. 3a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves & cia,
1914 [1896].
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ALMEIDA, Júlia. Livro das damas e donzelas. Rio de Janeiro: Francisco Alves &
cia, 1906. Disponível em:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=3
7033. Acesso em: 14 ago 2017.
RIO, João do. Um lar de artistas. In: RIO, João do. O momento literário. Rio de
Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1994.
(Coleção Raul Pompeia, vol. 1)
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Em geral, os folhetos não têm data [de publicação], isto é, não fixam o dia de sua
produção ou de seu lançamento. Contudo, como constitui um autêntico meio de
comunicação, a difusão de um fato tal como faria um jornal, o dia (do mês ou do ano)
é menos importante, pois o registro é quase automático. (Diegues Júnior, 1973, p. 22)
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já que são contemporâneos e/ou contíguos. Por outro lado, o que se pode
afirmar a partir da análise do conteúdo do material é que há uma diferença de
postura nítida entre as duas “linhas” de produção. Nas publicações em que
há a narração a partir do ponto de vista do cangaceiro, o que temos são
narrativas contando as batalhas vencidas, grandes feitos, expressões da
destreza física e esperteza. Ao contrário, nas edições em que há narração em
terceira pessoa ou um narrador em primeira pessoa assemelhado àqueles das
literaturas orais há grande incidência de obras cujos enredos envolvem
lamentações, arrependimentos, derrotas etc.
Em sua tese de doutoramento, o estudioso germânico Ronald Daus
afirmou sobre a estratégia de seleção da voz narrativa:
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ser cavaleiro/ Até nas pedras monta/ Espinho que há de picar/ Logo ao nascer
traz a ponta.” (Barros, 1910-1912c, p.1)
A sabedoria popular aparentemente informa sobre a existência de um
destino que está na natureza de todos os seres, desde homens a espinhos. Uma
primeira leitura nos leva a crer que esse destino seja sinônimo de
predestinação mística. Essa visão, no entanto, não resiste à leitura atenta das
estrofes que vêm a seguir.
Fui eu e o camarada,
Achamos tudo direito
O delegado de lá
Recebeu-me satisfeito,
Chegou depois uma força
Levando tudo de eito.
Um alferes de polícia
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Eu achei um desaforo
E uma falta de ação
Um cabra matar meu pai
E nem dar satisfação,
Matei e o fiz em postas
Abri ele pelas costas
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A ideia de “matar o pai sem dar satisfação” tem uma dimensão cômica
bastante evidente. E essa característica ameniza a contundente crítica social de
afirmar que “devido a não ter dinheiro”, após o assassinato de seu pai, a
justiça lhe falhou.
E a morte e a injustiça são a condição necessária para que o escudo ético
do cangaceiro seja levantado:
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justificação dos atos como o sertão está para o campo geográfico do escudo de
defesa. É uma ética em tudo associada a seu espaço.
É também em Proezas de Antônio Silvino (1907-1908) que a geografia
aparece como espécie de complemento da personalidade do cangaceiro em
suas variadas paisagens: “Na Paraíba do Norte/ Eu sou vigário colado,/No Rio
Grande do Norte/ Eu servi de advogado,/ Em Pernambuco eu sou tudo,/ Lá já
fiz falar um mudo/ Fiz correr um aleijado.” (Idem, p.1)
Do trecho em destaque evidencio a relação do cangaceiro com
determinadas espaços do Nordeste: as façanhas de Silvino estão atreladas à
geografia da região. Há também outra estratégia cômica que perpassa todo
esse folheto em específico: o efeito proporcionado pela oposição, como nos
pares falar/mudo e correr/aleijado. As “proezas”, como o título diz, são
geograficamente identificáveis e comicamente exageradas.
Em Antônio Silvino – o rei dos cangaceiros (1910-1912a) há estratégias
também semelhantes. No entanto, certas características movem o olhar para
outra direção. Cito a obra:
No Pilar da Paraíba
Eu fui juiz de direito
No povoado – Sapé,
Fui intendente e prefeito,
E o pessoal d’ali,
Ficou tudo satisfeito.
Ali no Entroncamento
Eu fui vigário-geral,
Em Santa Rita fui bispo
Bem perto da capital.
Só não fui nada em Monteiro,
Devido a ser federal.
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Veio de Taquatiringa
Soldados de fantaria (sic)
De versos inferiores
Para sua garantia.
Era 26 de Outubro
O dia designado
Para o célebre cangaceiro
No tribunal ser julgado
Perante a justiça pública
E o seu advogado
[...]
No salão do tribunal
Entrou ele amedrontado
Porque conheceu que ali
Havia de ser julgado
Dizia-lhe a consciência
- É triste teu resultado. (Barros, 1914?a, p.1)
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que: “Porém o senhor não sabe/ Porque vem aos tribunais?/Eu vim porque me
trouxeram/ Disse Silvino, afinal/ Sou um homem ignorante/ Não conheço bem
nem mal.” (Idem, p. 2 e 3)
A alegada ignorância é certamente argumento de defesa, e irá reverberar
mais à frente no folheto, na fala do advogado. Revela, no entanto, uma postura
humilde. Ao relembrarmos que o narrador apresenta o réu como sendo um
“célebre cangaceiro” é de se concluir que seja a fama devida às falsas
acusações do povo e à ignorância do réu. O que lhe tira o peso da
intencionalidade do agir: aspecto relevante para a valentia – que é força
objetivamente direcionada para fins específicos (vingar-se, na maior parte das
vezes).
As falas da personagem reverberam na voz do advogado, demonstrando
nas malhas do texto que talvez o cangaceiro não fosse tão ignorante assim. A
partir dos estratagemas do discurso jurídico transpostos para a obra em
versos, o advogado assim se expressa:
[...]
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[...]
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Como atitude poetizante [dichterich], a fantasia poética [poetische] não nos coloca
diante dos olhos, tal como o plástico [Plastik], a coisa mesma em sua realidade exterior,
mesmo que ela tenha sido produzida pela arte, mas fornece apenas uma intuição e
sentimento interiores da mesma. (Hegel, 2004, p. 155)
Tomo a definição de Hegel, mas ressalto que não entendo que o folheto
se torne lírico. Proponho percebermos que há dimensões de lirismo que se
expressam na suspensão da narrativa em favor do desenvolvimento da
subjetividade do cangaceiro. As paisagens íntimas são coloridas em lugar
daquelas geográficas:
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A liberdade do povo
Os encantos do sertão
Os cantos dos passarinhos
Um tempo de aparição
O homem que não chorar
Nunca teve coração.
Em ti nasci e criei-me
Só enquanto fui criança
A cruel sorte apagou
A luz da minha esperança
Se fui feliz não me lembro
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Não existe nem a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto
dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os
sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais
ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar
(renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em
qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e
ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo
desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão relembrados e reviverão
em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada
sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo. (Bakthin, 2006, p. 410)
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REFERÊNCIAS
HEGEL, Georg Wilhelm Fredrich. Cursos de Estética, volume IV. Trad. Marco
Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. (Col.
Clássicos 26)
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Literatura e dissonâncias
RESUMO: Este artigo propõe uma comparação entre dois autores separados
por alguns séculos, mas que se encontram, em contextos opostos, na questão
sobre o tempo, a infinitude e a condição humana. O objetivo de tal
comparação se justifica no forte diálogo presente na obra literária do escritor
argentino Jorge Luis Borges com a filosofia do alemão Leibniz. Os contrastes
entre os dois nos aproximam de uma compreensão da condição humana na
época moderna, a qual se vê constantemente abalada pelo problema do tempo
e de Deus (ou sua ausência). Em Leibniz, vemos a tentativa de resolver o
problema do infinito dentro de uma perspectiva teológica. Em Borges, ao
contrário, percebemos que, na ausência de Deus, o tempo infinito constrói o
caos paradoxal da existência humana. Queremos, com este estudo, penetrar
nos aspectos da vida moderna que, na literatura e na filosofia, possibilita a
compreensão sobre o destino e a condição do homem atual.
PALAVRAS-CHAVE: Borges; Leibniz; Infinito.
*Doutorando em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/Bolsista CNPq). E-mail:
[email protected]
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para ser perfeita e digna do criador, a obra de Deus deve, portanto, conter tudo que é
possível, ou seja, inumeráveis seres individuais, inumeráveis Terras, inumeráveis
astros e sois – poderíamos, assim, dizer que Deus necessita de um espaço infinito a fim
de nele colocar esse mundo infinito. (KOYRÉ, 2010, p. 49)
outros; desse modo, não poderia ter sido de outra forma? Se Epicuro diz que
“nada impede a infinidades de mundos” (EPICURO, p. 55, 1985), Leibniz
procuraria a razão que é capaz dar ordem aos diversos mundos possíveis no
tempo. E a natureza do seu pensamento foi, desde o início, a busca da razão
para sair do labirinto da infinitude.
Os futuros contingentes
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Literatura e dissonâncias
existência, nosso mundo, segundo Leibniz, precisa ser o melhor. Este seria
outro princípio da constituição racional. Pois, se Deus, enquanto razão última,
dotado de uma suprema inteligência e presciência infinita, quando escolheu
o mundo criado dentre todos os que poderia criar, naturalmente precisou
escolher o melhor. Algo diferente disso provaria ou a má fé de Deus, pondo
em questão sua bondade e misericórdia, o que não seria possível para um
Deus; ou sua incapacidade e, portanto, sua falha ao escolher um mundo que
poderia ser melhorado. Ambas as hipóteses devem ser descartadas tendo em
vista a absoluta sabedoria divina. O princípio do melhor é um princípio
racional associado a Deus enquanto o portador do conhecimento de todas as
causas.
Dizer que Deus é a razão primeira de todas as coisas significa que ele é
a única coisa necessária, pois é eterna. Todas as outras coisas decorrentes da
liberdade de Deus são limitadas e, por isso, contingentes, isto é, não há nada
em si que torne sua existência necessária. Portanto, achar a razão da existência
do mundo é buscar o modo de reunir as coisas contingentes em torno da
substância que lhe confere sentido. Isso quer dizer que tudo o que existe
poderia existir de outra maneira, pois tudo é contingente, exceto Deus, que é
a única coisa necessária. Uma vez que Deus tenha criado nosso mundo, por
que ele é dessa forma, com essa sequência de eventos, com essas estruturas
materiais e não de outra? Existe, na mente de Deus, um universo com todas
as séries de mundos possíveis. Para justificar a existência atual do mundo,
segundo Leibniz,
é preciso também que essa causa seja inteligente, pois esse mundo que existe sendo
contingente, e uma infinidade de outros mundos sendo igualmente possíveis e
pretendentes igualmente à existência tanto quanto ele, por assim dizer, é preciso que a
causa do mundo tenha tido consideração ou relação com todos esses mundos possíveis,
a fim de determinar um deles (LEIBNIZ, 2013, p. 138).
Uma vez que Deus alcança em si tudo aquilo que é possível, como “causa
inteligente deve ser, de todas as maneiras, infinita e absolutamente perfeita
em poder, em sabedoria e bondade” (LEIBNIZ, p. 138, 2013). É a respeito dos
futuros contingentes, da liberdade de Deus e do homem, que o princípio do
melhor vai recair como tentativa de aplacar o labirinto dos mundos possíveis.
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Série E-book | ABRALIC
Bastava que dois objetos estivessem em lugares diferentes para que fossem diferentes,
e se eram diferentes, estavam necessariamente diferentes. O lugar exato era um sinal
essencial. Para a microtopologia atual já não é assim: dois objetos podem muito bem
estar na mesma célula, são então espacialmente idênticos, são geometricamente
indiscerníveis; nenhuma experiência pode distingui-los; sobretudo, não podem ser
distinguidos por propriedades dinâmicas diferentes: a incorporação numa mesma
célula acarreta uma uniformidade completa. (BACHELARD, 2010, p. 41)
mas o responsável por essa ordenação é Júpiter. Dessa maneira, não caberia
qualquer súplica de Sextus. Ele, então, se encaminha para o templo de Júpiter
para indagar sobre o destino cruel que a ele foi reservado. Ele faz os sacrifícios
ao deus e faz suas queixas, suplicando um futuro que seja diferente do
infortúnio que o aguarda. Júpiter objeta que, para que Sextus fosse feliz e
sábio, ele precisaria renunciar Roma, de tal maneira que lhe será fiado outro
destino. Porém, Sextus fica indignado porque acredita poder ser um grande
rei, e indaga ao Deus que assim o responde: “Não, Sextus; eu sei o que lhe é
preciso. Se você for a Roma está perdido”. Diante da possibilidade da coroa,
renunciar tamanha esperança se torna um sacrifício demais para Sextus que
deixa o templo e se encaminha para seu destino de soberba, traição e violência.
Ao assistir ao diálogo de Sextus, Teodoro, servo fiel e realizador de
sacrifícios, se dirige a Júpiter falando do espanto causado por esse fato, e
pediu mais esclarecimentos sobre sua grandeza e bondade. O Deus manda
Teodoro ao encontro de Palas, para que ela o guie diante dos meandros do
seu conhecimento. Ao chegar ao templo de Atenas, Teodoro recebe a ordem
de se deitar calmamente. Nesse momento, inicia sua viagem onírica através
do mistério. Quando Teodoro começa a sonhar, encontra-se numa terra
estrangeira, grandiosa e com um brilho inconcebível. A deusa lhe aparece e o
guia na luminosa construção do palácio dos destinos. “Há representações”,
diz Palas sobre o palácio, “não apenas daquilo que acontece, mas ainda de
tudo aquilo que é possível; e Júpiter tendo passado isso em revista antes do
começo do mundo existente, digeriu as possibilidades em mundos, e fez a
escolha do melhor”. Dentro desse lugar mágico, guardado na mente de Deus,
é possível ver representado, como num teatro, as muitas possibilidades de
tudo aquilo que se pode querer saber, caso existisse. Esses mundos se
encontram, nas palavras de Palas, em estado de ideias. A partir das
explicações acerca da natureza de tal mecanismo, a deusa parte para mostrar
a Teodoro os mundos incompossíveis de Sextus. “Em um mundo você
encontrará Sextus muito feliz e elevado, em outro um Sextus contente por um
estado medíocre, Sextus de toda espécie e de uma infinidade de maneiras”.
Assim, passa a conduzir Teodoro pelos diversos cômodos do palácio, e cada
cômodo era um mundo. Num piscar de olhos, ele consegue ver Sextus
seguindo para uma cidade perto de Corinto; nela, cultiva um jardim, no qual
215
Literatura e dissonâncias
O labirinto infinito
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Literatura e dissonâncias
que Ts’ui Pen passou os últimos treze anos construindo; e, ao fim, foi
considerado incompreensível, caótico e, naturalmente, um esboço inacabado.
A natureza dos seus escritos revelava as descobertas misteriosas do sábio
chinês, e o que não se poderia imaginar, porém, era que, mesmo em
fragmentos contraditórios, aqueles manuscritos eram a expressão fiel do
mundo que buscou compreender até seus últimos dias e cuja organização
máxima consistia em construir um labirinto.
A obra do Ts’ui Pen é a conclusão a respeito de um mundo confuso,
regido por uma complexa e intrincada ordem, que se prolifera
indefinidamente no tempo. No conto de Borges, seu romance é definido como
um “labirinto de símbolos”, “um invisível labirinto de tempo”. E o mais
inquietante a respeito da intenção de Ts’ui Pen: ele queria construir um
labirinto infinito. A absoluta confusão em torno de sua obra e recepção
negativa diz respeito à natureza infinita de seu problema. “O livro é um
acervo indeciso de apontamentos contraditórios. Examinei-o certa vez: no
terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo” (BORGES, p. 103, 1972).
O que à primeira vista se apresenta como erro do escritor, rascunho, indecisão
a respeito da trama, é, na verdade, a peculiar visão de Ts’ui Pen. O que planeja
com esse livro, cujo nome é o mesmo do conto, é redesenhar a configuração
do universo em sua dimensão temporal. O mundo do homem é habitado pelo
tempo atual, mas também assombrado pelas sequências que se bifurcam
indefinidamente. Borges constrói, com isso, uma nova versão do mundo
leibniziano. Contudo, sua história deixa o melhor dos mundos de lado para
nos dizer que não só o melhor como todos os mundos estão em constante
correspondência nas veredas do labirinto, sem que, com isso, exista um que
prevaleça sobre os outros. A tese de Ts’ui Pen é, em poucas palavras, a
experiência do infinito na literatura como extensão de uma existência de
profunda crise. O inferno barroco se estende já sem nenhum meio de
ordenação.
A explicação da controversa obra de Ts’ui Pen parte da seguinte
anotação em um de seus manuscritos, cheia de mistério e poesia: “Deixo aos
vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se
bifurcam”(BORGES, 172, p. 105) . Não poderia deixar sua obra a um único
futuro, mas a vários; não poderia deixar para todos os possíveis, porque em
218
Série E-book | ABRALIC
muitos deles ela não poderia existir. O desenho de seu labirinto se faz com
essa compreensão. Existimos, mas não em todos os caminhos do tempo.
O caráter contraditório do romance segue os princípios de um mundo
labiríntico. Seu traço singular é que os caminhos não se perdem no espaço,
mas no tempo. E o que é aceito como contraditório, no labirinto do tempo, é a
mais perfeita representação da realidade. Ts’ui Pen acredita que diante de um
caminho aberto no tempo, assim como no espaço, não se fecha atrás de si como
numa fatalidade; quando seguimos numa direção do futuro são abertas
passagens paralelas do mesmo fato como se essas bifurcações se
materializassem perfeitamente. A imagem clássica de um jardim inverte,
entretanto, seus sentidos tradicionais. Onde comumente se atribui o espaço
da razão por excelência, da ordenação cartesiana do homem diante do espaço
natural, temos, na concepção da metafísica borgiana, um lugar para além do
entendimento cuja realização existe numa plena contradição. Embora diverso,
a analogia é irônica ao pensarmos no jardim epicurista, onde o mestre
acreditava poder construir uma experiência de felicidade para os homens. O
jardim dos caminhos que se bifurcam é também o lugar de aprendizado da
experiência humana, entretanto, a garantia de felicidade está reservada ao
futuro, mas não a todos. A revelação dos segredos do universo por Ts’ui Pen
é carregada de obscuridade e sua representação constitui um pavor diante do
qual tudo ainda é enigmático.
Leibniz já havia se deparado com os problemas dos mundos possíveis.
O aspecto indomável da realidade que se apresenta sob o signo do infinito e
da liberdade só permanecia em um centro coeso quando encontrava em Deus
o mais possível entre os possíveis, o necessário entre a demasiada
contingência da matéria. O caráter ordenador de Deus assegura estabilidade
e viabiliza, por fim, a própria razão. De tal maneira que Leibniz pode dizer
com toda certeza que “não existe caos no interior das coisas” (LEIBNIZ, 2013,
p. 62). Entretanto, a imagem do palácio dos destinos mais se assemelha ao
labirinto de Ts’ui Pen, diferindo deste apenas pelo cume da pirâmide, que é
capaz de guardar os mundos possíveis como fantasmas. A imagem de um
lugar onde se bifurcam todos os Sextus possíveis, se multiplicando pelos
corredores, assumindo diversas formas através do tempo, é a representação
de um labirinto infinito. Em Borges, isso ganha a forma que, em Leibniz, não
219
Literatura e dissonâncias
Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua porta; Fang decide
matá-lo. Naturalmente, há vários desenlaces possíveis: Fang pode matar o intruso, o
intruso pode matá-lo, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de
Ts’ui Pen, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras
bifurcações. (BORGES, 1972, p.105)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
222
Série E-book | ABRALIC
André Gardel*1
223
Literatura e dissonâncias
por meio da voz narrativa, também direta, de Menelau, nos contando que
Ulisses se encontrava na ilha de Ogígia, preso aos encantos da deusa Calipso;
num procedimento de encaixe de caixas de narrativas, de história-dentro-de-
história que perpassará toda a Odisseia. Enfim Telêmaco recebe a informação,
em poucos versos, e de modo quase ocasional, de que seu pai ainda está vivo.
Nós leitores já sabíamos disso por meio dos primeiros versos do poema e pela
cena dos deuses em assembléia; no entanto, Telêmaco teve que descobrir pela
experiência que nasce de seu próprio esforço humano, “para chegar a um
saber disponível no plano divino” (Süssekind, 2015, p.73).
O conhecimento dos deuses - “que são, por definição, ideais humanos”
e “agem como instrumento da Justiça no mundo” (Carpeaux, 1978, p.44),
cumprindo, junto a outros elementos composicionais, a função de ponto de
“equilíbrio entre realismo e idealidade”, “que confere aos poemas homéricos
a vida eterna” (Carpeaux, 1978, p.45) – se caracteriza por ser mais simultâneo
do que sucessivo, abrangendo, portanto, uma temporalidade alargada. Essa
potência epifânica cegaria os homens se fosse revelada em sua verdade
última. Por isso é transmitida por meio de ações e falas disfarçadas, por meio
de enigmas, elipses, sugestões, máscaras, poesia – a linguagem humana por
excelência. Atena, deusa protetora de Ulisses e Telêmaco, age por contrafação:
profere profecias e aparece hierofanicamente como um mortal, Mentes,
soberano dos Táfios, um estrangeiro, o que implica em um discurso
duplamente ambivalente cuja significação se esconde nas entrelinhas: por ser
emitido por alguém que vem de fora do socius e por ter “a aparência do
conhecimento humano, no qual a verdade se encontra cercada de incertezas e
misturada a falsidades” (Süssekind, 2015, p.74). Ou seja, um conhecimento
que nasce da multiplicidade do universo sensório, e que, por isso, é sempre
um saber parcial da verdade, pois esta se encontra restrita aos deuses e aos
áugures, que a desvelam por meio de sinais da natureza; desse modo, para se
atingir a verdade, são necessários os muitos esforços e caminhos tortuosos
empreendidos pelos heróis no mundo da vivência a fim de adquirir
experiência2.
2 Podemos explicar o possívelcontrassenso principal do poema a partir do seguinte pressuposto: como o mais
inteligente dos homens, Ulisses, é o último guerreiro a retornar ao lar? Podemos inferir que o retorno existe para ser
vivido e cantado, experimentado, não para simbolizar a busca de um repouso implicado na volta para um lar estável.
Com isso, o herói continua sendo o mais sagaz, o que mais multiplicou experiências transmissíveis.
225
Literatura e dissonâncias
3Escrevi, em comunicação publicada nos anais do XV Congresso Internacional da Abralic – 2017, sobre a ciência
‘primeira’ da bricolagem, a partir das reflexões presentes no estudo clássico de Lévi-Strauss, O pensamento
selvagem:“(...) o repertório heteróclito e já elaborado, feito não de matérias-primas mas de ‘uma coleção de resíduos
de obras humanas’ (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.34), opera por meio de signos – portanto na tensão dinâmica entre a
percepção/ imagem e o conceito -, que exigem que ‘uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao real’
(LÉVI-STRAUSS, 1989, p.35). Afora isso, o que caracteriza a operacionalidade de tal ciência é o duplo movimento
constante de inventariar e rearranjar os elementos fragmentários, (re) (des) funcionalizados que compõem o seu
conjunto que, ‘mesmo sendo extenso, permanece limitado’ (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.32). Uma epistemologia, com
isso, sob o signo da variabilidade e da virtualidade, tanto pelo eixo paradigmático de seus elementos em si (elementos
de origem, sob o viés de Benjamin) - procedentes de ambientes, contextos, funções, situações, usos, propriedades,
relações outras -, quanto de possibilidades relacionais transversais múltiplas de composição e arranjo (semelhantes
a constelações benjaminianas).” (Gardel, 2017, pags. 3 e 4)
226
Série E-book | ABRALIC
(...) Será que a Odisseia não é o mito de todas as viagens? Talvez para Ulisses/ Homero
a distinção verdade/ mentira não existisse, talvez ele narrasse a mesma experiência ora
na linguagem do vivido ora na linguagem do mito, como ainda hoje para nós cada
viagem, pequena ou grande, sempre é Odisseia. Calvino, 1993, p. 24.
227
Literatura e dissonâncias
Mas é sobre outra cena mítica da Odisseia que nos deteremos um pouco
mais agora, a da aparição de Proteu, que, além de cumprir a função de
“imagem especular do mundo real”, servirá, neste trabalho, como cena
alegórica de origem. O conceito de origem – que mantém sua intensidade de
ideia-coisa no tempo, ao se restaurar e reconfigurar, se dilacerar e reconceber
em suas múltiplas presentificações -, como já deve ter sido percebido,
tomamos de empréstimo a Walter Benjamin, de modo semelhante a outros
que vimos usando como, por exemplo, os de constelação e alegoria (Santi,
2006). Vamos, então, ao episódio do “ancião do mar”. Menalau, por razões
diversas, também teve um nostos, um retorno de Tróia acidentado e adiado
feito o de Ulisses, passando sete anos, não dez como o itácio, como joguete
dos deuses, antes de retornar a Esparta. Por “hecatombes imperfeitas”, os
numes condenam-no a permanecer no Egito, e é diante deste país, numa ilha
distante “uma jornada”, chamada Faro, “ótimo ancoradouro”, que fica detido
por vinte dias “sem ressoprar o vento”. Antes que “as provisões e as forças de
todos os heróis” (Homero, 2011, p. 115) se esgotassem, uma deusa se apieda
deles, Eidóteia, a filha de Proteu. Pedindo auxílio à plenissapiente deusa,
Menalau recebe a resposta de que “circula nas paragens um ancião verídico/
do mar: Proteu egípcio, sabedor maior/ do que há no baixo oceano. Seu tutor:
Posêidon”, e que somente prendendo-o “de atalaia”, ele indicará “a rota e o
quanto falta a percorrer no mar/ piscoso em teu sendeiro de retorno”; afora
isso, poderá, ainda, “deixar-te a par/ das coisas boas e das coisas más que em
casa/ têm ocorrido enquanto trilhas sendas árduas”. (Homero, 2011, p.117)
Sabedor de que “aos deuses não se impõe derrota fácil”, Menelau pede
a Eidóteia um plano de ação a fim de conseguir obter de Proteu as informações
exatas a respeito do nume que está impedindo a sua volta. A deusa manda
que ele fique de tocaia, na aurora, junto com “três sócios, os melhores da
tripulação” (Homero, 2011, p.117), e traz “quatro peles de focas recém-
escorchadas” (Homero, 2011, p.119), para disfarçá-los, para que assim se
confundissem com o rebanho de focas que Proteu sempre trazia para a praia,
ao meio-dia, com o intuito de contá-las e depois se deitar e descansar na areia.
Após uma “manhã de espera, toda ela de paciência” (Homero, 2011, p.221),
somente suportando o nauseabundo “odor/ dizimador de focas
salsoalimentadas”, porque a deusa encontrou “um paliativo bom:/ a ambrosia
229
Literatura e dissonâncias
sofre em seu movimento - das águas, dos barcos, das luzes do sol e da lua, das
formas de vida múltiplas –de incorporação/ reordenação constante; por outro,
na narrativa-retorno de um herói que é muitos, que não se deixa pegar, cheio
de estratagemas, jogatinas, ardis, máscaras, deslocamentos internos e
externos, disfarces para manter a sua liberdade e metas, chegando ao extremo
moderno de se autodenominar “Ninguém” (Homero, 2011, p.271).
Desdobrando elementos que vimos discutindo, Trajano Vieira, no final
do posfácio à sua tradução da Odisseia, assevera sobre Ulisses e o poema
homérico:
Numa passagem do poema (XXII, 35), Odisseu alude a seu retorno a Ítaca com a
palavra hypotropos. Em se tratando de um personagem com domínio verbal incomum,
dotado de rara capacidade de invenção literária, devemos nos perguntar o que ele quis
dizer exatamente com o prefixo hypo. Os dicionários, levados pelo contexto em que o
vocábulo aparece, traduzem-no por ‘re’. Ocorre que o advérbio/ preposição hypo não
tem esse sentido, significando, antes, ‘sob’. Ou seja, num primeiro momento, a volta de
Odisseu é bem-sucedida graças ao encobrimento de sua identidade. Mas, se
lembrarmos do primeiro epíteto que o descreve na abertura, polytropos, seremos
levados a pensar na correspondência entre hypo e poly, entre ‘sob’ e ‘pluri’, nos modos
(tropoi) e nas modalidades de expressão (tropoi) de um personagem e de um poema que
se fundamenta (‘sob’) na multiplicidade. A essência plural e aberta de um texto
inesgotável, originalíssimo em sua estrutura, que se revela, a cada passo (tropos),
inédita, simboliza, na tradição ocidental, a própria ideia de invenção literária. Vieira,
2011, p. 785.
231
Literatura e dissonâncias
popa ergueu, e mergulhou/ no fundo a proa, à suma decisão”, “até que o mar
enfim nos sepultou”. (Dante, 1979, p.329).
Segundo o filósofo e poeta/ letrista Antonio Cicero, “quando apenas se
anuncia a madrugada do mundo moderno”, Dante, apesar da visada cristã
punitiva a toda sorte de temeridade, na passagem que vimos de A Divina
Comédia, tece os fios que desvelam a atualidade do mito, pois
235
Literatura e dissonâncias
237
Literatura e dissonâncias
gênios maus etc” (Cicero, 2017, p.150), para delinear o homem moderno como
aquele que “viu desabarem, ao sopro da razão, todos os castelos de carta das
crenças tradicionais: o homem que caiu em si” (Cicero, 2017, p.151). E essa
nova queda do paraíso, traz ao homem a razão que duvida, a razão crítica, a
única autossuficiente, pois, “duvidando, nega a consistência de todas as coisas
que a ela se submetem; e que só não é capaz de negar a si própria porque,
justamente ao tentar fazê-lo, afirma-se”. A cisão do sujeito moderno adviria,
com isso, do fato de ver-se, por um lado, como positivo e determinado e, por
outro, como indeterminado e negativo, “sem propriedade que me
individualize, que me diferencie de qualquer outra pessoa”, tratando como
“contingente, condicionado e relativo” tudo o que pertence “ao meu corpo, à
minha psicologia, à minha biografia, à minha situação no mundo”. Assim,
perante a razão-crítica-negação, pode-se não ser “necessariamente nada do
que pensava ser”, e sendo “o seu – o meu – nada, então eu poderia ter sido
outro; poderia vir a ser outro; outro poderia ser eu” (Cicero, 2017, p. 152). E
não ser nada nem ninguém permite-me, homem moderno que sou, imaginar
tudo. Antonio Cicero, então, sentencia sobre a vivência da experiência
moderna por Pessoa:
O que o distingue é que ele não só viveu as possibilidades, mas viveu-as através da
própria obra poética, até as últimas conseqüências, e com uma intensidade
incomparável. Creio, por isso, que ele estava certo ao se descrever como ‘um poeta
impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas’. Cicero,
2017, p. 153.
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Literatura e dissonâncias
4Referência ao poema de Keats, traduzido por Augusto de Campos (1987), Ode a um Rouxinol.
5 Tradução do autor: “Jokerman dance que o pássaro canta/ Voa bem alto onde a lua é mais branca/Oh, oh, oh,
Jokerman” (“Jokerman dance to the nightingale tune/ Bird fly high by the light of the moon/ Oh, oh, oh, Jokerman”).
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6 Tradução do autor: “Livre, toda a vida só pra você/ Mas co’a verdade escondida/ Que bem vai fazer?”
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You were born with a snake in both your first, while a hurricane was blowing. 7
7 Tradução do autor: “Pára sobre as águas, divide o seu pão/ Enquanto os olhos do ídolo de ferro vão brilhando/
Barcos, névoa, pélago profundo/ Com serpentes nos punhos veio ao mundo/ No olho de um furacão surfando”.
8 Tradução do autor: “É um mundo de sombras, o céu escorre cinzento”.
11 Tradução livre do autor: “(...) um mundo feio e terrível de pobreza, doença, prostituição, guerra, explosão, e social,
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13 Tradução do autor: “É um mundo de sombras/ o céu escorre cinzento/ Um príncipe nasceu recitando ao vento/
Num manto de sangue/ Vai pôr o padre no bolso, a navalha na brasa/ Às crianças de rua vai dar casa/ Vai pôr sob a
asa da Flor do Mangue”.
14 Tradução do autor: “Algemas, jatos d’água, pimenta nos olhos,/ coquetel molotov, pedradas, debaixo dos panos”.
16 Tradução do autor: “Oh, Jokerman, você sabe o que ele quer/ Oh, Jokerman, você nunca mostra quem é”.
17 Tradução do autor: “Manipulador de multidões”. “Tecelão de sonhos”. “Michelangelo, demente, seu perfil
esculpia”.
245
Literatura e dissonâncias
REFERÊNCIAS
ABRAMS, Meyer Howard, ed. The romantic period. In: The Northon
Anthology of English Literature.EUA: W. W. Norton & Company, 1975.
ARISTÓTELES. Poética. Trad.; introd e notas: Paulo Pinheiro. SP: Editora 34,
2015.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vols. I, II, II. Petrópolis: Vozes,
2013.
248
Série E-book | ABRALIC
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? Trad.: Nilson Moulin. SP: Cia das
Letras, 1993.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Org. Emanuel Paulo Ramos. Portugal: Porto
Editora LDA, 1985.
HOMERO. Odisseia. Trad., posfácio e notas de Trajano Vieira. SP: Ed. 34,
2011.
KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas. Trad.: José Paulo Paes. RJ: Nova Fronteira,
s/d.
249
Literatura e dissonâncias
Canções de LPs
250
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Introdução
português como: “Eu não sou o indígena que você tinha em mente”. A partir
do verso apresentado, é possível começar a discutir uma questão bastante
importante e relevante no que diz respeito aos Povos Tradicionais, o problema
dos estereótipos que são impostos às comunidades ancestrais, bem como do
preconceito em relação aos povos indígenas.
A visão eurocêntrica sobre asFirstNations, ou Primeiros Povos, termo
utilizado para designar as nações indígenas do Canadá e reforçar sua presença
no território anterior à chegada dos colonizadores, demonstra muitas das
vezes o olhar que foi educado para desprezar e inferiorizar as comunidades
ameríndias, bem como a sua cultura e o seu modo de pensar.
O termo indígena está atrelado a um imaginário que foi, e ainda
continua sendo, construído e difundido com base em ideais românticos do
passado, os quais em nada condizem com a realidade das diversas
comunidades ameríndias canadenses, conforme discorre Rubelise da Cunha
no artigo “(Re)conhecimento: um olhar transcultural no ensino de literatura
indígena” (2014). O discurso carregado de preconceito em relação aos povos
indígenas pode ser encontrado em diversos segmentos da sociedade,
inclusive dentro das academias que desqualificam a produção literária
ameríndia com o argumento de os textos dos autores e autoras indígenas não
considerados literatura, não é possível encontrar a literariedade de tais obras.
Os primeiros registros sobre as FirstNations do Canadá datam do século
XIX, com os relatos realizados pelos jesuítas sobre os povos indígenas. É a
partir de tais narrativas, que há a inserção do ameríndio na literatura. Um dos
livros que descreve, pela perspectiva do ocidental, os povos ameríndios é
JesuitRelations, uma obra que conta com relatos dos colonizadores que
entraram em contato com as tribos Algonkin e Huron, no século XVI. Esses
discursos, entretanto, eram parciais e nada favoráveis aos indígenas, ao
contrário constituíam-se de registros preconceituosos que desqualificavam os
ameríndios, a sua cultura e o seu local de fala.
Grande parte do discurso ocidental decorrente do período da
colonização sobre os povos das Primeiras Nações era de que estes não
1 Trata-se do vídeo idealizado, escrito e dirigido por Thomas King com o objetivo de lutar contra o retrato
estereotipado das comunidades indígenas, o qual é com frequência reproduzido pela mídia, pelas instituições de
ensino, pela sociedade, pelo governo entre outros. O vídeo pode ser acessado através do link a seguir:
http://www.nsi-canada.ca/2012/03/im-not-the-indian-you-had-in-mind/.
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Série E-book | ABRALIC
Entre os séculos XVII a XIX, o ameríndio tornou-se objeto de um vasto acervo literário
escrito por não índios, que reflete não só os dois lados da dicotomia – bom selvagem
ou demônio – mas principalmente o retrata como uma raça moribunda e em processo
de degeneração física e espiritual. O novo direcionamento formal e teórico da segunda
metade do século XX, como o pós-moderno e pós-colonial, permitem um reexame dos
pressupostos românticos e modernistas em relação ao ameríndio e isso proporciona o
surgimento de uma literatura indigenista que revisita a literatura colonial e
desencadeia uma crítica dos estereótipos vigentes na cultura ocidental (2015, p. 192).
253
Literatura e dissonâncias
A literatura indígena
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Série E-book | ABRALIC
Historically the oral literature of aboriginal peoples everywhere has been deemed
inferior by literate western societies not only because it was unwritten, but also because
it was not understood properly. The highly developed and extensive body of native
Canadian oral literature was no exception2 (1990, p. 3).
2Historicamente, a literatura oral dos povos indígenas em todos os lugares foi considerada inferior pelas sociedades
ocidentais alfabetizadas, não só porque não era escrita, mas também porque não era compreendida corretamente. O
corpo altamente desenvolvido e extenso da literatura oral canadense nativa não era exceção.
255
Literatura e dissonâncias
Emily Pauline Johnson (Mohawk) (1861 – 1913) pode ser considera como
a primeira mulher nativa canadense a escrever sobre a história e as estórias
dos povos indígenas e sobre a luta dessas comunidades no contexto de sua
obra literária. A partir do início dos anos de 1880, a cultura ocidental no
Canadá começava a dar os primeiros sinais e a escrita e a publicação dos textos
de Pauline Johnson ajudou a fomentar o surgimento de uma literatura
indígena canadense. De 1884 até 1891, ela já havia escrito e publicado mais de
sessenta poemas, que em sua maioria apareceram nas revistas Saturday Night
e The Week. Em janeiro de 1884, seu primeiro poema “Mylittle Jean” (“Meu
pequeno Jean”) foi publicado no prestigiado periódico GemsofPoetry.
O reconhecimento como escritora deu-se logo após seus textos
começarem a ser divulgados em jornais e revistas de Ontário. Carole Gerson
e Veronica Strong-BoagemPaddling her own canoe: the times and texts of E.
Pauline Johnson (Tekahionwake) (2000), tratam da representatividade de
Johnson enquantoescritora. Elasafirmam que:
From about 1885 onward, Pauline Johnson joined a critical mass of writers who were
constructing a distinct national identity for former colonies struggling towards
collective consciousness3(Gerson; Strong-Boag, 2000, p. 100-1).
3Johnson estabeleceu-se rapidamente como uma escritora canadense, cultivando um público leitor nacional nas
páginas de consagrados periódicos de Toronto, incluindo The Globe, The Week e Saturday Night. Como uma poeta
mulher de sucesso, ela contribuiu significativamente para o surgimento da atividade literária canadense, que ocorreu
durante a era da efervescência de um nacionalismo cultural e político, em ambos os lados do Atlântico. A partir de
1885, Pauline Johnson, reuniu-se com um grupo de escritores críticos que estavam construindo uma identidade
nacional distinta para as antigas colônias que lutavam por uma consciência coletiva Todas as traduções do original
em Inglês foram realizadas pelo autor deste trabalho.
257
Literatura e dissonâncias
4 [...] um povo que, de acordo com o padrão do homem branco é selvagem, sem educação, analfabeto e bárbaro.
259
Literatura e dissonâncias
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Série E-book | ABRALIC
período, que eles aprendem sobre o local que irão após a morte e a reverenciar
o Grande Espírito. A religião em uma concepção indígena segue caminhos
bastante diversos em relação à visão ocidental. Para as comunidades
ameríndias, não há um único Deus, mas divindades, as quais apresentam
diferentes funções em contextos variados. A imposição de uma religião aos
moldes ocidentais em nada é benéfica para os povos nativos.
Ainda nessa parte, a autora explica que uma das regras de etiqueta que
todas as crianças indígenas precisam seguir, qual seja, a de nunca falar
enquanto estão se alimentando, ou reclamar do alimento. Falar durante a
refeição e desdenhar o alimento são considerados infrações graves, as quais
são repreendidas pelos pais com severidade, para que não torne a se repetir.
Conforme se percebe na citação a seguir:
Mais uma vez é possível verificar que a educação fornecida dentro das
comunidades indígenas serve como forma de moldar aquele que será o
responsável por carregar e transmitir a tradição de seu povo.
“Truques de como recolher o alimento” é o terceiro capítulo. Nesse
momento, as crianças são ensinadas como deve ser realizado o ritual de
recolher o próprio alimento. O responsável por essa tarefa é o avó, pois é nele
que pode se identificar a figura do mais experiente do grupo, uma vez que ele
já passou por todas as etapas, estando apto para educar o mais jovem. O
ensinamento é feito de forma minuciosa a cada umadas crianças,
demonstrando a arte e os artifícios da grande luta em conseguir o próprio
alimento para si, e, principalmente, para aqueles que futuramente possam vir
a precisar. As crianças são treinadas em condições extremas onde aprendem
5 Acompanhando o seu treinamento religioso está aliado a etiqueta de extrema importância que é a de aceitar o
alimento sem comentários. Nenhum indígena conversa enquanto se alimenta, ou discute sobre ele enquanto come.
Ele não deve pedir e nem comentar sobre o alimento, e uma criança que faz comentários sobre a refeição a sua frente,
mesmo que seja um comentário simples, sente imediatamente o descontentamento na forma de repreensão por parte
de seus pais. É um dos crimes imperdoáveis.
261
Literatura e dissonâncias
6 Ele é incansavelmente disciplinado na veneração da idade, seja homem ou mulher. Ele deve ouvir com muita
atenção a opinião e os conselhos dos homens mais experientes. Ele deve se manter em absoluto silêncio enquanto
eles falam, deve sempre procurar pela oportunidade em lhes prestar deferência.
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Série E-book | ABRALIC
[…] and when, finally, he goes forth to face his forest world he is equipped to obtain
his own living with wisdom and skill, and starts life a brave, capable, well-educated
gentleman, though some yet call him an uncivilized savage7(Johnson, 1913, p. 126).
Conclusão
7[...] e quando ele, finalmente, vai viver a sua vida na floresta, ele está preparado para conduzi-la, com sabedoria e
com habilidade, e começa uma vida de bravura, capaz e bastante educado, embora alguns ainda o chamem de
selvagem e não civilizado.
263
Literatura e dissonâncias
à vida textos, seja em verso ou prosa, passando pelas fronteiras dos vários
gêneros literários. As suas obras são constituídas pelas estórias do passado,
bem como as narrativas do presente. Uma escrita que pode ser considerada
como um ato resistência, e como forma de afirmar a própria existência. A
literatura indígena passa pelos estágios da criatividade verbal e da tradição
oral, dois fatores que contribuem para a elaboração da narrativa ameríndia.
Uma escrita que está fortemente ligada ao seu local de fala.
Além disso, entende-se a importância de fortalecer e, também, de
valorizar as escrituras indígenas, que são as responsáveis por permitir uma
reflexão sobre o modo destes sujeitos de verem o mundo, e apresentam-se
como uma forma para a renovação da identidade indígena, reafirmando com
isso o orgulho de sua origem. Ler tais narrativas é ter acesso ao mundo da
performance, da tradição oral, da concepção e da elaboração, seja linguística
ou estética. Isso possibilita uma melhor compreensão do que é a produção
literária indígena.
Desse modo, estes textos dão a oportunidade de conhecer melhor a nós
mesmo, através da compreensão do outro. As vozes das Primeiras Nações
falam e escrevem, e é preciso ouvi-las e lê-las, de modo, a saber, o que elas têm
a dizer a todos. Como estudantes, professores e pesquisadores dentro das
instituições de ensino, é preciso que cada vez mais tempo seja dedicado ao
estudo da literatura de autoria indígena, cuja diversidade literária foi, e
continua sendo, tão pouco pesquisada e analisada.
REFERÊNCIAS
264
Série E-book | ABRALIC
LANE, Richard J. The Rutledge concise history of Canadian literature. Nova York:
Routledge, 2011.
PETRONE, Penny. Native literature in Canada: from the oral tradition to the
present. Toronto: Oxford University Press, 1990.
265
Literatura e dissonâncias
OS FANTASMAS DA ANTIPOESIA
"Desgraçadamente, não sou um poeta político; não sou um poeta que trabalha com
ideias nem com sentimentos. Eu não sei com que demônios trabalho."
Nicanor Parra
1.
O mundo percebido flui para nós continuamente. Esse continuum de
imagens e palavras, que não cessa de chegar, decide para nós o nosso contexto,
inclui pacificamente tudo que surge numa ordem desejável à sua razão,
definindo, desse modo, o que é familiar e o que é estranho. Por meio de tal
lógica, o visível – assim como o legível – se delimitam nas brumas do
incessante continuum. Mesmo quando seu fluxo ganha uma aparência caótica,
267
Literatura e dissonâncias
Se quisermos olhar a história como um texto, aplica-se a ela o que um autor recente diz
dos textos literários: em ambos o passado depositou imagens comparáveis às que
foram fixadas numa chapa sensível à luz. 'Só o futuro tem reveladores suficientemente
fortes para fazer emergir a imagem em todos os seus pormenores. Há páginas de
Marivaux ou de Rousseau que revelam um sentido secreto que os leitores do seu tempo
não conseguiram decifrar completamente'. O método histórico é um método filológico,
e assenta sobre o livro da vida. Hofmannsthal fala de 'ler o que nunca foi escrito'.
(Benjamin, 2013, p.184)
268
Série E-book | ABRALIC
poesia até certo limite. Uma procura pela distância que afastou o poema da
atualidade e do continuum, saturando-o de espectros.
No ensaio de Hermann Bröch a respeito do poeta, Hofmannsthal surge
translúcido como um homem desejoso de identificar-se com o "objeto"; como
“Eu” que necessita do “não-Eu”. Mas como fazê-lo diante de uma realidade
que não é una? E que, mesmo perdida em fragmentos, ainda não cessa de
desmoronar. A fragmentação total se sobrepõe à analogia de Baudelaire,
método ainda capaz de construir nexos. Aquela decomposição da realidade –
feita para reuni-la em outra forma, atingindo o que seria uma "verdade" – não
chega a se recompor. As palavra desmancham-se como "cogumelos podres"
(Hofmannsthal, 2010a, p.06) na boca do poeta, diz Hofmannsthal:
Tudo isso me parecia tão incomprovável, tão mentiroso, tão cheio de buracos quanto
possível. Meu espírito obrigava-me a ver tudo o que aparecia nessas conversas como
algo terrivelmente próximo. Como, uma vez, vi numa lente de aumento um pedaço da
pele de meu dedo mindinho assemelhando-se a um campo rachado cheio de sulcos e
crateras, assim via agora os homens e as ações. Não conseguia mais apreendê-los com
o olhar simplificado do hábito. Tudo desintegrava-se em pedaços; pedaços em mais
pedaços e nada mais conseguia ser abarcado por um conceito. As palavras isoladas
inundavam-me; aglutinavam-se em olhos que me fitavam e para os quais via-me
obrigado também a fitar: turbilhões, são as palavras. Sentia vertigens ao olhar para elas,
girando sem parar e através das quais só se consegue chegar no vazio. (Hofmannsthal,
2010a, p.06-07)
2.
A experiência das vanguardas – contemporânea de Hofmannsthal –
tentou, justamente, atualizar aquelas perguntas, "sobre o que escrever?",
"como escrever?", "por que escrever?", permitindo que engendrassem outras,
como, por exemplo, "para quem escrever?". A operação foi explorada por
269
Literatura e dissonâncias
Muitas de minhas últimas produções líricas não apresentam nem rima nem ritmo
regular, bem determinado. Por que as qualifico de líricas? Porque, se é verdade que
elas não têm ritmo regular, têm, entretanto, um ritmo (variável, sincopado, gestual).
(...) O problema era simples: eu precisava de um estilo elevado, mas o polido untuoso
270
Série E-book | ABRALIC
271
Literatura e dissonâncias
272
Série E-book | ABRALIC
E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência. (Brecht, 2017)
3.
TEMPOS MODERNOS
275
Literatura e dissonâncias
trabalha com o "já exposto", o "já dito". "A montagem seria para as formas o
que a política é para os atos" (Didi-Huberman, 2017, p.119). Benjamin, em suas
conversas com Brecht, nunca deixou de pensar a "sabedoria da posição" tanto
na ação política quanto na montagem. Ao aconselhar Brecht a iniciar-se no
xadrez, explica: "esse jogo confere unicamente às posições (e não à força maior
ou menor de cada peça, como no xadrez) sua 'justa função estratégica'" (apud
Didi-Huberman, 2017, p.119). Tendo a "coragem de designar", Nicanor toma
posição, ainda que sem uma pedagogia.
Aqui ele toma as ferramentas de Brecht para interrompê-lo. "O
pequeno burguês não reage/ A não ser quando se trata do estômago.", isto é,
nenhuma pedagogia pode ser transmissível na lírica. Uma voz de Marx em
Parra pediria a palavra para dizer: "condições materiais". O que em nenhum
momento Brecht cessou de lembrar, encaminhou Parra até outro campo de
contradições. Ainda mais desconfiado, mais pessimista. "[É preciso ter]
desconfiança acerca do destino da literatura, desconfiança acerca do destino
da liberdade [...] desconfiança e desconfiança com relação a qualquer forma
de entendimento mútuo: entre classes, entre povos, entre indivíduos"
(Benjamin, 2012, p.34). A descontinuidade entre intenções e consequências
não implica ausência de efeito político, mas perda de todo controle do circuito
de recepção da obra pelo poeta. O poema entra na história e passa a ser gerado
por razões políticas que tornam seu efeito como que anárquico. Ele se perde
da intencionalidade dos poetas bem intencionados.
O poema "Tempos modernos" não se endereça ao futuro utópico, ele
hesita sob a contradição de já ter dito algo, como vimos, enumerando o
presente com imagens intoxicantes – ele, com efeito, repete aquela pergunta:
"como habitar este mundo?". É a força do segundo estranhamento que
converteu palavras em "cogumelos podres" na boca de Hofmannsthal, mas
que na obra de Parra, naturalmente, não significou queda no silêncio
definitivo. O silêncio, na antipoesia, é uma estratégia com relação à pergunta:
"sobre o que escrever?"; o antipoeta silencia sobre o que não entra no interesse
da antipoesia. Por tal motivo, ela mais reorganiza a tradição, eliminando
quadros e cenas da tradição, do que investe qualquer ruptura. Parra indica
Shakespeare como sendo o primeiro dos antipoetas. Com efeito, estamos
falando de um outro Shakespeare, não o canônico do século XIX, nem mesmo
277
Literatura e dissonâncias
o do jovem Eliot, mas ainda assim Shakespeare. Talvez o prefixo "anti" não
deixe de ser um pretexto para se dizer novamente: "poesia".
O sentido prosaico, e portanto imagético, de Nicanor Parra, aproxima
seu processo de montagem da forma cinematográfica, enquanto procura
"desmontar o estado de coisas" e re-montá-las em seguida. A antipoesia, ao
invés de preocupar-se com os limites do dizível, preocupa-se em reorganizar
a realidade, com palavras simples (no sentindo de Benjamin), calando-se
sobre aquilo que não é "digno" de descer do Olimpo. No famoso poema de
Mallarmé "A tumba de Edgar Poe" o autor francês distingue o poeta como
anjo e a multidão como hidra. Trata-se do desgarramento do poeta moderno,
esse lugar também "contaminado de antemão". Talvez o lugar contaminado
por excelência, na perspectiva do antipoeta. O lugar "maldito". Mas "maldito"
tomado literalmente, sem qualquer arma de ironia para se defender.
(É próprio do espectro ser menos do que algo, mas eles continuam
enquanto campo de possibilidades. Espectros de Mallarmé e de
Hofmannsthal respiram, ainda agora, o "ar sujo" de "Tempos modernos").
REFERÊNCIAS
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. trad. José Pedro Antunes. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.
278
Série E-book | ABRALIC
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Editora 34, 2012.
_______________. "Aos que vierem depois de nós". Releituras.com. trad.
Manuel Bandeira. Disponível em:
http://www.releituras.com/bbrecht_aosquevierem.asp. Acesso 29 out. 2017.
279
Literatura e dissonâncias
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo:
Ática, 2004.
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Série E-book | ABRALIC
1Professor-Associado
de Teoria da Literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista-
pesquisador do CNPq e do Programa PROCIÊNCIA FAPERJ/UERJ.
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Literatura e dissonâncias
282
Série E-book | ABRALIC
285
Literatura e dissonâncias
A Mimi dava às suas mulheres um certo orgulho. Mulheres da Mimi passavam pelas
outras pensões da Santo Amaro pisando fino, de cabeça alta. A casa preferida pelos
usineiros, pelos ricaços do comércio, pelos figurões do governo fazia-se valer, investia
as suas damas de uma pose particular (Rego, 2006, p. 732).
Então Jacqueline pedia ao chofer para levar longe o carro, para um pouco mais longe.
E caíam nuas na água fria. Ficavam um tempo enorme gozando a vida. Jacqueline
pegava-se a ela e Clarinda sentia a carne quente da francesa. E dentro d’água, sentadas
na areia, como o chofer de longe, ela sentia com Jacqueline uma coisa que ela não sabia
286
Série E-book | ABRALIC
o que era. As ondas vinham até elas, entravam de pernas adentro, como línguas frias,
a espuma cobria as suas carnes e a lua, querendo se pôr ainda, deixava uma luz fraca
por cima do mar. Clarinda sentia-se feliz, cheia de vida. E o sono daquela madrugada,
naquela cama macia, sem homem junto dela, era um sono pesado, um grande sono dos
justos. Era feliz. Outras podiam se queixar da vida, Outras podiam se queixar da vida,
outras podiam se lamentar. Ela não (Rego, 2006, p.826).
287
Literatura e dissonâncias
para ele, era sempre a mesma. Só lhe falava de coisas que se relacionavam com os filhos
(Rego, 2006, p. 826).
289
Literatura e dissonâncias
a inegável atração que sente por ele, que ultrapassa a necessidade do ato
sexual. Fica claro, através da narrativa e na consciência do personagem
Ricardo, que Seu Manuel não é mera substituição da ausência de mulheres no
ambiente carcerário. Além disso, confrontam-se, na narrativa, as experiências
anteriores do jovemcom mulheres, que eram apresentadas como excitantes e
sexualmente satisfatórias nas páginas de O Moleque Ricardo, com o encontro
afetivo com esse homem rude, que propicia satisfação jamais experimentada:
De noite Seu Manuel ia para o quarto dele. Trancavam-se e o criminoso de três mortes
botava a cabeça de Ricardo nas pernas, passava as mãos na carapinha, como nunca
mulher nenhuma teria feito com ele. (...) Ricardo deixava-se ficar assim. Era um gozo,
uma volúpia desesperada com que ele passava o dia a sonhar, aquela de sentir-se bem
perto de Seu Manuel, o homem de quem no começo tivera medo, e sentir aquelas mãos
que se ensanguentaram alisando a sua cabeça com a delicadeza que nem Isaura e nem
Odete souberam ter. Esquecia-se de tudo, esquecia-se da ilha, do vento que corria, do
mar que gemia, de tudo que não fosse aquilo que lhe dava Manuel do Pajeú de Flores,
com 30 anos tirados no júri (Rego, 2006, p.688).
... Lembrava-se de Seu Manuel. Lembrava-se mais dele do que de Isaura. (...) Era nestas
noites de insônia que a saudade da ilha <prisão de Fernando de Noronha> chegava.
Quando abria os olhos estava pensando em Seu Manuel. Nunca mais viu uma amizade
que fosse escrava de outra como aquela. Nunca mais que uma pessoa lhe quisesse tanto
bem, lhe fosse tão dedicada (Rego, 2006, 759).
290
Série E-book | ABRALIC
Depois levaram Ricardo para a casa de Mãe Avelina. O moleque, estendido na cama
da mãe, só tinha de vivo os olhos, andando de um lado para outro. Avelina passava a
mão pela cabeça, alisando. Seu Manuel, na ilha fazia aquilo. Era a mão de seda de Seu
Manuel que ele estava sentindo (Rego, 2006, p. 908).
Às nove horas, quando Bom-Crioulo viu Aleixo descer, agarrou a maca e precipitou-se
no encalço do pequeno. Foi justamente quando o viram passar com a trouxa debaixo
do braço, esgueirando-se felinamente... Uma vez lado a lado com o grumete, sentindo-
lhe o calor do corpo roliço, a branda tepidez daquela carne desejada e virgem de
contactos impuros, um apetite selvagem cortou a palavra ao negro.
291
Literatura e dissonâncias
A claridade não chegava sequer à meia distância do esconderijo onde eles tinham se
refugiado. Não se viam um ao outro: sentiam-se, adivinhavam-se por baixo dos
cobertores. Depois de um silêncio cauteloso e rápido, Bom-Crioulo, aconchegando-se
ao grumete, disse-lhe qualquer cousa no ouvido. Aleixo conservou-se imóvel, sem
respirar. Encolhido, as pálpebras cerrando-se, instintivamente de sono, ouvindo, com
o ouvido pegado ao convés, o marulhar das ondas na proa, não teve ânimo de
murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e uma promessas de
Bom-Crioulo: o quartinho da Rua da Misericórdia no Rio de Janeiro, os teatros, os
passeios...; lembrou-se do castigo que o negro sofrera por sua causa; mas não disse
nada. Uma sensação de ventura infinita espalhava-se em todo o corpo. Começava a
sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade ingênita
de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se-lhe para o que ele quisesse — uma
vaga distensão dos nervos, um prurido de passividade... — Ande logo! murmurou
apressadamente, voltando-se. E consumou-se o delito contra a natureza. (Caminha,
1991, p.47).
292
Série E-book | ABRALIC
Crioulo: o fato da atração pelo mesmo sexo ser caracterizada como uma
descoberta de uma possibilidade de encontro humano não previsto no
percurso biográfico anterior dos personagens e que, portanto, não têm para
eles uma explicação consistente:
- A condenação do naturalismo
293
Literatura e dissonâncias
Quer se trate de uma obra do fim de século, dos anos Trinta ou da década de Setenta,
é dominante a correlação da atividade literária com as ações contidas em verbos como
“retratar”, “ver”, “olhar”, “enxergar”. Todas essas correlações lançam a literatura no
campo da ótica, da fotografia, da visão. É essa analogia que permite ao naturalismo a
obtenção de um efeito ótico e ideológico de identidade (Sussekind, 1984, p. 99).
294
Série E-book | ABRALIC
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O que achamos reparável na comédia As Asas de um Anjo não é o desenlace, que nos
parece lógico, é a situação de que nasce o desenlace; é o assunto em si. (...) O que nos
parece menos aceitável é o que constitui o fundo e o quadro da comédia; não há dúvida
alguma de que a peça é cheia de interesses e de lances dramáticos; a invenção é original,
apesar do cansaço do assunto; uma soma tão avultada de talento e de perícia
empregada em um assunto, que, segundo a nossa opinião , devia ser excluído da cena.
(Bosi, 1982, p. 75).
Pobre Pombinha! no fim dos seus primeiros dois anos de casada já não podia suportar
o marido; todavia, a principio, para conservar-se mulher honesta, tentou perdoar-lhe a
falta de espírito, os gostos rasos e a sua risonha e fatigante palermice de homem sem
ideal; ouviu-lhe, resignada, as confidências banais nas horas intimas do matrimônio;
atendeu-o nas suas exigências mesquinhas de ciumento que chora; tratou-o com toda
a solicitude, quando ele esteve a decidir com uma pneumonite aguda; procurou afinar
em tudo com o pobre rapaz; não lhe falou nunca em coisas que cheirassem a luxo, a
arte, a estética, a originalidade; escondeu a sua mal-educada e natural intuição pelo que
é grande, ou belo, ou arrojado, e fingiu ligar interesse ao que ele fazia, ao que ele dizia,
ao que ele ganhava, ao que ele pensava e ao que ele conseguia com paciência na sua
vida estreita de negociante rotineiro; mas, de repente, zás! faltou-lhe o equilíbrio e a
mísera escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento, libertino e poeta,
jogador e capoeira. O marido não deu logo pela coisa, mas começou a estranhar a
mulher, a desconfiar dela e a espreitá-la, até que um belo dia, seguindo-a na rua sem
ser visto, o desgraçado teve a dura certeza de que era traído pela esposa, não mais com
o poeta libertino, mas com um artista dramático que muitas vezes lhe arrancara, a ele,
sinceras lágrimas de comoção, declamando no teatro em honra da moral (Azevedo,
publ. online, p. 126).
298
Série E-book | ABRALIC
- Conclusão
imutável e que as donas de casa serão para sempre limitadas e infelizes nesse
sistema. No entanto, tanto a caracterização da infelicidade da usineira Dona
Dondon, em contraste com os momentos de prazer da prostituta Clarinda,
como a apresentação da medíocre e insatisfatória experiência conjugal de
Pombinha, em contraste com sua vida libertina, indicam perspectivas
semelhantes sobre a ordem familiar na obra de Aluísio Azevedo e de Lins do
Rego.
A continuidade dessa perspectiva crítica na abordagem da ordem
familiar, a proposta de desafiar as bases em que se assenta a sua pretensa
harmonia motivam certamente soluções semelhantes na fatura das obras. As
obras correspondem à necessidade de apresentar ao leitor alternativas à vida
em família, romper o silêncio, pautado pela hipocrisia, sobre sua existência. A
sedução para o convencimento alia-se à persuasão através dos sentidos, do
apelo à aproximação não racional, mas empática, dessas experiências
alternativas, muitas vezes marginalizadas.
Existem marcantes diferenças, tanto na fundamentação quanto na
condução dessa proposta desafiante da moralidade burguesa entre as obras
naturalistas e a de José Lins do Rego, assim como a de alguns de seus
contemporâneos, como Jorge Amado. A estética naturalista se associa à
confiança na contribuição da ciência para a compreensão dessas experiências
humanas marginalizadas. E mantém um compromisso com uma modalidade
de controle social, através da fidelidade ao pensamento científico do século
XIX, baseado em concepções sólidas do “natural” e da “normalidade”.
Releve-se, no entanto, que, ao se debruçar sobre os objetos considerados
desviantes desses padrões, o escritor naturalista acaba por desafiar os
próprios parâmetros de avaliação, ao colocar em xeque a hipocrisia e a má fé
em que se assenta a pretensa racionalidade da ordem burguesa. Portanto, os
escritores acabam criando recursos para seduzir o leitor para conhecer e
experimentar, no plano imaginário, aquilo que foge a padrões da naturalidade
e normalidade. A condenação explicitada no discurso narrativo fica, com isso,
ameaçada pelas possibilidades amplas que se abrem a cada leitor na recepção
das obras – e remeto aqui aos comentários de Flora Sussekind à Invenção de
Morel, discutidos anteriormente neste trabalho.
300
Série E-book | ABRALIC
REFERÊNCIAS:
301
Literatura e dissonâncias
ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Tradutor Procópio Abreu. Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
JAY, Martin. The rise of hermeneutics and the crisis of ocularcentrism. In:
HERNADI, Paul (edit.). The rhetoric of interpretation and the interpretation of
rhetoric. Durham: Duke University Press, 1989. p. 55-75.
REGO, José Lins do Rego. Ficção completa. Dois volumes: Volume I: Usina; O
moleque Ricardo; Menino do engenho: Volume II: Riacho Doce; Fogo morto.
1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2006.
SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua
história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
303
Literatura e dissonâncias
1Graduada em Letras, Inglês e Literaturas de Língua Inglesapela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ,
Mestranda em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ), redigiu esse artigo sob a orientação do professor Victor Hugo
Adler Pereira. Contato: [email protected].
304
Série E-book | ABRALIC
jantar mas Roger fica no apartamento, pois não tem dinheiro para comprar
comida.
Na ópera de Puccini, Mimi, a florista que sofre de tuberculose bate na
porta de Rodolfo, o escritor, pedindo que ele acenda sua vela, pois está com
muito frio, ela faz menção de voltar para seu apartamento, mas percebe que
havia deixado as chaves caírem na casa de Rodolfo. Ela retorna e, numa
mistura de pena, comoção e encantamento, Rodolfo é o primeiro a cantar
“Que Mãozinha Gelada” uma canção sobre as mãos gélidas da moça e sua
fragilidade, onde ele se oferece para aquecê-la, saudando a noite de lua e por
fim se apresentando como poeta, “na minha pobreza feliz / vivo como grande
senhor / rimas e hinos de amor” (Puccini, 1896, Ato I, “Che GelidaManina”,
tradução nossa). Ao final, ele roga para que Mimi se apresente. A seguir, a
personagem canta sua ária “Me chamam Mimi” em que ela se descreve como
uma jovem “tranquila e feliz / meu passatempo é plantar / lírios e rosas”
(Puccini, 1896, Ato I, “Mi Chiamano Mimi, tradução nossa). Ela conta que
mora e vive sozinha, dizendo que “as flores que eu cultivo / coitada de mim!
Não tem perfume”, sugerindo que há algo de errado com ela, uma florista
cujas flores não tem cheiro, uma mulher vazia, incompleta, talvez pela falta
do amor. Os dois só cantam juntos ao final do ato, quando já estão
apaixonados.
Na ópera contemporânea, a personagem de mesmo nome, Mimi, bate à
porta de Roger, um músico compositor de rock, pedindo, também, que ele
acenda sua vela. Não é imediata a ligação entre os dois, pois Roger está
fechado para o mundo, sofrendo de um bloqueio criativo após o suicídio de
sua namorada April, que escrevera um bilhete avisando que ambos tinham
AIDS e cortara os pulsos em seguida, deixando o jovem músico traumatizado
com a perda e a descoberta da doença.
Apesar da resistência, a Mimi contemporânea consegue se aproximar,
contudo, ela não perde as chaves, mas sim um pacote com drogas. Eles cantam
alternadamente durante toda a música. Quando Roger aponta que as mãos
dela estão frias, ela responde que as dele também estavam. Ele não exalta a
fragilidade dela, dizendo que também já tivera essa aparência, que costumava
tremer e suar quando era um viciado.
306
Série E-book | ABRALIC
309
Literatura e dissonâncias
como uma grande favela. Benny ainda insiste no verso final dessa estrofe que
a boemia está morta.
(a) sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de
uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas,
homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As
minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão
torna-se queer. (Preciado, 2011, página 14)
5 Jaqueline Gomes de Jesus explica que cisgênero é um “conceito ‘guarda-chuva’ que abrange as pessoas que se
identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.”.
311
Literatura e dissonâncias
Uma das facetas de quem somos é como os outros nos veem. Os amigos
de Angel se juntam para prestarem homenagens após sua morte. Mark chega
a chamá-la de “ele” e se corrige, optando por “ela” e conta uma história de
quando Angel ajudara um grupo de turistas desconhecidos que haviam se
perdido por Nova Iorque. Mimi, sua melhor amiga, conta sobre uma vez
quando um skinhead importunava a amiga, que prontamente respondera que
ela “[era] mais homem do que [ele] jamais será e mais mulher do que [ele]
jamais terá” (Larson, 1996, tradução nossa). Essas histórias servem para
ilustrar como Angel se encaixava como membro da multidão queer que se
encontrava entre-lugares; e se portava como um indivíduo altruísta e
caridoso.
312
Série E-book | ABRALIC
Com seu namorado Tom Collins vivera o amor mais puro e trágico,
romance que remete à época das óperas de Puccini. Em uma das canções os
dois fazem promessas e sonham em ser o rei e a rainha do reino um do outro.
Durante o funeral de Angel, as outras personagem envolvidas em tramas
românticas, Mimi, Roger, Maureen e Joanne, cujos relacionamentos haviam se
deteriorado e acabam na mesma progressão vertiginosa que a saúde de Angel,
cantam desejando e exaltando o amor que Angel vivera, dizendo que
“morreriam com prazer para ter uma prova do amor que Angel tivera” (1996).
Maureen e Joanne reatam o namoro. Roger vende seu violão e compra um
carro para ir a Santa Fé, Mimi está em um relacionamento com Benny.
Mark confronta Roger antes que ele vá embora. Roger está
completamente sem esperanças e na partida de Angel sente mais próxima sua
própria mortalidade. O roqueiro sente à flor da pele, pois ele também vive
com HIV. Mark questiona se o amigo está realmente com ciúmes de Mimi ou
se ele está fugindo, pois teme que a morte da moça, que aparenta fraqueza,
esteja próxima.
Mimi ouvira tudo que os dois estavam discutindo e o confronta “Você
não quer bagagem / Sem garantias de tempo de vida / Você não quer me ver
morrer? / Eu só vim dizer / Adeus, amor” ao que Roger responde “Glória /
Uma faísca de glória / Eu preciso achar” (Larson, 1996, tradução nossa). Com
medo de ver mais uma pessoa amada sucumbir à doença que ele também
carregava, Roger acredita que precisa compor uma grande música antes de
morrer e que isso não será possível em Nova Iorque da escuridão, da doença
e da insegurança.
Roger parte, Mark e Benny acodem a moça que está muito fraca. Mark
sugere que ela vá para uma clínica de reabilitação, Benny se oferece para
pagar. A música termina com Mimi dizendo “Adeus amor / Olá doença”
(Larson, 1996, tradução nossa). Havia se passado exatamente um ano desde o
início da jornada e a aura de diversas mortes - literais e metafóricas – paira
sobre o ar, uma canção que diz que o tempo voa após o fim da compaixão é
entoada pelo coro. Morrera o afeto de seus amigos, a unidade do grupo,
morrera Angel, a personificação da compaixão.
Roger resolve voltar, ele achou sua música, seus amigos contam que
Mimi fugira da clínica de reabilitação e estava perdida nas ruas. É inverno
313
Literatura e dissonâncias
outra vez, é noite de Natal. Joanne e Maureen encontram Mimi na rua e gritam
à janela para que Roger, Tom e Mark as ajudassem a carregar a dançarina até
o apartamento. Mimi é posta sobre a mesa da sala, a jovem está fraca, quase
morrendo e Roger começa a cantar a música que finalmente havia conseguido
compor, cujo o tema, no final das contas, era a própria Mimi e o amor que eles
haviam cultivado. Por instantes, parece que Mimi está morta e Roger entoa
“Mimi”, como Rodolfo na obra de Puccini.
Porém, com um suspiro profundo, ela recobra a consciência. Volta à vida
e diz que enquanto desfalecida, caminhava em um túnel que tinha uma luz
no final. Mimi vê, envolta de luz, Angel, que “estava muito bem” (1996), lhe
dizer: “dê meia volta, garota, e vá escutar a música daquele menino” (Larson,
1996, tradução nossa). Mimi está ensopada de suor, sua febre está cedendo.
Em Angel está sua redenção. Ela é poupada da punição, que duzentos anos
atrás seria inexorável.
Na ópera de Puccini, Rodolfo acha que é a causa da desgraça de Mimi,
conta a Marcello que se sente responsável pela doença fatal que a acomete.
Diz ao amigo que “Mimi é como uma flor sem água e sol / só o amor não a
trará de volta à vida” (Puccini, 1986, tradução nossa). Mimi também acha que
contraiu tuberculose por ter ousado amar Rodolfo, ao argumento que ela é
punida não por amar, mas sim por ter saído do lugar de esquecimento que lhe
cabia. Ela morre por querer protagonismo. Ela morre por desobedecer os
limites que lhe haviam sido impostos. Mimi de Puccini, antes do dueto de
despedida, conta a Marcello que Rodolfo batia nela. Rodolfo nada mais é que
um instrumento da opressão tentando trazer ordem ao cosmos. Ele diz amá-
la, mas age como se Mimi fosse um ser maldito.
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Série E-book | ABRALIC
se os homens morrem, se eles são vencidos é porque possuem algum traço quase
imperceptível de uma feminilidade sobre a qual a ópera jamais se engana. Vencidos:
os meninos fracos, os mancos, os corcundas, os negros, os estrangeiros, os velhos; e é
nisso que eles se assemelham às mulheres. Vencedores: os pais, os reis, os tios, os
amantes. Vencedores: os poderes, as Igrejas, atrás das quais mal se esconde a imagem
divina. Vencidas: as forças da noite, as forças da sombra, as forças dos fracos,
deserdados; o paganismo dos muitos deuses, a vida desejável e rebelde das feiticeiras,
as transgressões. A ópera é impiedosa (Clément, 1993, páginas 34-5).
Vale notar que Clément escreve sobre óperas onde, em sua esmagadora
maioria, até os marginais satisfaziam em grande parte os preceitos da norma.
As mulheres e o conceito de feminino eram praticamente intrínsecos.
Questões de gênero não ultrapassavam a noção binária de homem e mulher
estereotipados. Quando Clément denuncia a derrota das mulheres, ela
delineia a dinâmica do oprimido e do opressor, que, na obra contemporânea
de Larson vai além da velha dicotomia.
Como expõe Clément, nas óperas do século XIX, eram punidos os seres
que tentavam transgredir o seu lugar imposto pela norma. A Mimi de Puccini
morre por não ser um sujeito íntegro. Nem uma mulher de virtudes, nem uma
boêmia, geniosa, extrovertida, artista, manipuladora como era Musetta. Mimi
315
Literatura e dissonâncias
REFERÊNCIAS:
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Série E-book | ABRALIC
André Dias1
Explicações necessárias
[...] Um dia, quando já não houver império britânico nem república norte-americana,
haverá Shakespeare; quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare. (Assis, 2008, p.
624)
Com poucas exceções, a dramaturgia é estudada com parcimônia, como se fosse mero
apêndice da nossa história literária. Por vezes, nem mesmo é levada em conta nos
programas da disciplina Literatura Brasileira. A exigência de um instrumental teórico
e analítico próprio, que nem sempre é do domínio de quem estuda a poesia e a prosa,
e o diálogo dos nossos dramaturgos com seus pares europeus e norte-americanos – o
que exige conhecimento de suas obras – são dificuldades que afastam professores de
Literatura Brasileira da dramaturgia. (Faria, 2013, p. 504 -505)
O que importa verificar é que a peça como tal, quando lida e mesmo recitada, é
literatura; mas quando representada, passa a ser teatro. Trata-se de duas artes
diferentes, por maior que possa ser a sua interdependência. A literatura teatral vira
teatro literário; o que era substantivo passa a ser adjetivo, o que era substância torna-
se acidente. Não é jogo de palavras. O fato descrito marca a passagem de uma arte
puramente “temporal” (a literatura) ao domínio de uma arte “espácio-temporal” (o
teatro), ou seja, de uma arte “auditiva” (deve considerar-se a palavra, na literatura,
como fenômeno essencialmente auditivo se não se tomam em conta as pesquisas
concretistas que invadem o terreno das artes plásticas) ao campo de uma arte áudio-
visual. Estas velhas distinções estéticas talvez pareçam um pouco pedantes. No
entanto, a sua importância salta aos olhos visto mostrarem que às palavras cabe no
teatro outro status ontológico que na literatura. (Rosenfeld, 1985, p. 24 - 25)
321
Literatura e dissonâncias
Tornou-se claro que o teatro é uma arte bem diversa da literatura. Se na literatura a
palavra é fonte da personagem, no teatro a personagem é fonte da palavra, graças à
metamorfose do ator em ser fictício. No palco, a personagem já “fala” antes de
pronunciar a primeira palavra. O silêncio do grande ator pode ser mais eloqüente do
que centenas de palavras, enquanto na literatura o próprio silêncio tem de ser mediado
por palavras. E pronunciando embora o mesmo texto, a personagem dirá outra coisa
conforme o ator for alto ou baixo, gordo ou magro. A comunicação será em cada caso
diversa, visto o público não apreender apenas palavras, na sua forma desencarnada,
mas o todo de uma comunicação áudio-visual em que nenhuma parcela pode ser
isolada da impressão integral.
O palco encarna sensivelmente os detalhes que a palavra apenas sugere. Daí a
necessidade da escolha radical entre mil possibilidades na hora em que o sistema de
coordenadas fornecido pelo texto deve ser preenchido pela criação teatral. A
indeterminação do esquema projetado pela língua torna possível a grande flexibilidade
do teatro vivo que pode preencher de mil maneiras os vãos e vácuos deixados pelo texto,
conforme a época, a nação, o gosto específico do público local. Por isso, as peças e as
representações não envelhecem como ocorre geralmente com os filmes. (Rosenfeld,
1985, 35 -36)
Cheguei em Madri e comecei a perceber que minha cabeça estava igual. [...] Aí comecei
a tentar me mexer um pouquinho mais. Jovem, furiosamente delicado, falei: “Vou sair
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Série E-book | ABRALIC
de Madri, vou botar mochila”. Porque carona, naquela época era cultura. Então, peguei
carona, com um pouquinho de dinheiro no bolso, uma miséria, desci pelo sul da
Espanha todo, Granada, Sevilha, até lá embaixo, Cádiz. Claro que, levando debaixo
do braço Rafael Alberti, levando Miguel Hernández, Antonio Machado, Pablo
Neruda e um pouquinho de Lorca [...]. Aí, eu estava lá, mas minha cabeça continuava
igual apesar das leituras. Falei: “vou fazer o norte da África por terra, carona”. Chego
no Marrocos, numa cidade chamada Fez [...]. Ficava maravilhado com aquilo e disse:
“vou continuar assim, vou seguir pela África”. Passo pela Argélia. [...] Estava em
guerra, De Gaulle não queria dar a independência à Argélia. [...] Tenho cara de árabe,
aí fui indo, cheguei em Argel. Queria ir até a Túnisia. Na Argélia já pensava: “Meu
Deus, o Camus aqui dizia: ‘entre a justiça e a minha mãe, eu prefiro a minha mãe’”. [...]
O Camus era um maravilhoso briguento com o Sartre, uma luta muito bonita entre os
dois: um existencialista e outro antiexistencialista [...] Em Túnis, claro fui até Salambô.
Por que Salambô? Flaubert, debaixo do braço, escreveu Salambô. Então, fiquei lá
vendo o que era aquilo [...] era bonito aquilo tudo e eu começava a compreender
Flaubert. Eu achava que a Madame Bovary era eu, sabe, apesar de estar em Salambô.
(Grifos meus) (Abujamra, 2001, p. 33).
As inquietações de um artista
325
Literatura e dissonâncias
327
Literatura e dissonâncias
Pois bem, é um fato que a farsa existe desde que existe o homem. Ao que chamamos
propriamente teatro precederam, em longos e profundos milênios da primitiva
Humanidade, outras formas da farsa que podemos considerar como pré-teatro ou pré-
história do teatro. Não podemos nos pôr agora a descrevê-las. Se aludi a elas é
simplesmente para poder sacar esta consequência: Sendo a farsa um dos fatos mais
permanentes da História, isto quer dizer que a farsa é uma dimensão constitutiva,
essencial da vida humana, que é, nem mais nem menos, um lado imprescindível de
nossa existência. Portanto, que a vida humana não é, nem pode ser “exclusivamente”
seriedade, que a vida humana é e tem que ser, por vezes, em certos momentos
“brincadeira”, farsa; que por isso o Teatro existe e que o fato de haver Teatro não é pura
casualidade e eventual acidente. A farsa, víscera do Teatro, vem a ser, vamos em
seguida descobri-lo, uma das vísceras de que vive nossa vida, e nisso que é como que
dimensão radical de nossa vida consiste a realidade e a substância última do Teatro,
seu ser e sua verdade. [...]
Não é enigmático, não é por isso mesmo atraente, apaixonante, este estranhíssimo fato
de que a farsa resulte ser consubstancial à vida humana, portanto, que, além de suas
outras necessidades ineludíveis, necessite o homem ser farseado e para isso ser
farsante? Porque, não há dúvida, esta é a causa de que o teatro exista.
Todo o resto de nossa vida é o que há de mais contrário à farsa que se pode imaginar –
é, constante, esmagadora “seriedade”.
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Literatura e dissonâncias
Somos vida, nossa vida, cada qual a sua. Mas isso que somos – a vida – não fomos nós
quem a no-la demos, mas já nos encontramos submersos nela justamente quando nos
encontramos conosco mesmos. Viver é achar-se de repente tendo que ser, que existir
em um orbe imprevisto que é o mundo, onde mundo significa sempre “este mundo de
agora.”(Ortega y Gasset, 2014, p. 50 - 51)
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1 – O Teatro é uma Baleia maior que a Moby Dick . Cabe tudo em teatro. O
que é preciso é decidir o que fazer, eu não aconselho mais. Façam o que
quiserem, enforquem-se na corda da liberdade. Assim o teatro fica infinito e
com o cunho trágico para a comédia...
2 –Quem não pensa que é sério quando jovem? Quando jovem eu pensava
dirigir uma peça para mudar o mundo. Tinha uma fúria dedicada. A maioria
que quis continuar sério: provocou o que está acontecendo no País
3 – Para que serve a utopia? Eu dou um passo, o teatro dá dois passos. Eu dou
dois passos, o teatro dá quatro passos. A utopia serve para isso: para continuar
caminhando.
5 – Eu fui um imbecil quando diretor. Diretor tem que ter regras, soluções, ter
rigor, tem que ser chato, já o ator não. O palco tem um lugar escuro que o
diretor não entra. O palco é do ator. Eu quero ser ator, brilhar, ser pavão. Eu
dirigi quarente e três anos, fui um imbecil. O negócio é ser ator.
6 – Sou um ator. Tenho que fazer televisão, cinema, teatro. Todos sabem que os
Hipermercados cobram também dos artistas. A preferência é sempre o teatro
que é a fornalha do ator. O resto é executar.
7 – É preciso ter a dor de sentir que a vida não tem roteiro e na vida não existe
nada seguro. Quem gosta de abismos tem que ter asas.
331
Literatura e dissonâncias
9 – Ando na rua, vejo o nome do fulano de tal na placa, me pergunto quem será.
Eu vou morrer, vai ter tabuleta na tabacaria, vai cair a tabuleta, vai cair o dono
da rua, vai cair tudo. Não quero deixar nada.
REFERÊNCIAS
ABUJAMRA, Antônio. “Abu curto e grosso”. Caros amigos, São Paulo, Ano V,
Edição 54, Setembro 2001, p. 33. Entrevista concedida à Marina Amaral,
Julianne M. do Carmo, Marina Vergueiro e Mylton Severiano.
__________________. “Antonio Abujamra, o mal-humorado bem-amado”. O
Estado de São Paulo, São Paulo, 16 jan. 2012. Estadão Cultura, p.1. Disponível
em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,antonio-abujamra-o-mal-
humorado-bem-amado-imp-,823170 . Acesso em 21 de julho, de 2017.
ASSIS, Machado de. Do teatro: textos críticos e escritos diversos. Org. João
Roberto Faria. São Paulo: Perspectiva: 2008.
BAKHTIN. Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra, São Paulo:
Ed. Martins Fontes. 2003.
_______________. Teoria do romance I – A estilística. Tradução, Notas e
Glossário Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2015.
DIAS, André. Lima Barreto e Dostoiévski: vozes dissonantes. Niterói, RJ, EDUFF,
2012.
GASSET, José Ortega Y. A ideia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2014. (Elos;
25).
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Série E-book | ABRALIC
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Literatura e dissonâncias
1
O que faz, de um escritor, um intelectual dissonante? O escritor há que
ser um intelectual? O que é um escritor dissonante? O que é um intelectual
dissonante? O que é um artista dissonante? O que é um poeta dissonante?
1 Professor de Literatura Brasileira na UFMS; doutor em estudos literários pela UNESP, com pós-doutorado em
literatura comparada pela UERJ; líder do Grupo de Pesquisa Literatura e Vida, GPLV.
2 Professor de História Contemporânea no Câmpus do Pantanal da UFMS, em Corumbá, MS; doutor em História
3 Fernando Almeida é médico, tendo se aposentado em 2017. Nasceu em Corumbá, mas não conseguimos
informações consistentes sobre o ano em que nasceu. Casado com uma professora universitária de língua inglesa,
também aposentada, é pai de um filho, estudante universitário, e que, devido aos estudos, não reside atualmente
com os pais. Não conseguimos, até o momento, mais informações biográficas sobre o poeta.
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Literatura e dissonâncias
Day off
Fernando Almeida
Senhores, afrouxem suas gravatas
soldados, desatem seus coturnos
doutores, pendurem seus jalecos
padrecos, dobrem suas batinas
uma vez por semana,
e amem,
pequem
à paisana.
Cochilo
Fernando Almeida
337
Literatura e dissonâncias
Poema em hífens
Fernando Almeida
Beija_flor
Bebe_flor
Quase inseto
Furta_cor
Metamorfose
Fernando Almeida
338
Série E-book | ABRALIC
Minadouro
Fernando Almeida
Daqui saem
Palavras
Afagos
Elogio
Sabão
Transborda constante
Utopia
Heresia
Magia
Canção
E as pessoas me buscam
Com vasos
Panelas
Tigelas na Mão.
Maturação
Fernando Almeida
339
Literatura e dissonâncias
De irmão.
Tenente Barrios
Fernando Almeida
Rua Predileta
Fernando Almeida
341
Literatura e dissonâncias
UomoDominatore
Fernando Almeida
O touro é fértil
Se o peão não castra
O bezerro mama
Se o leiteiro deixa
O passarinho voa
Se o menino solta
O peixe nada
Se a rede rasga
O galo canta
Se o vizinho aceita
342
Série E-book | ABRALIC
O pombo arrulha
Se o veneno é fraco
A onça urra
Se o tiro erra
O cabrito berra
Se a faca é cega
343
Literatura e dissonâncias
possível, no mesmo passo em que conclama a que nos neguemos todos a ser
o que a civilização ocidental nos fez ser.
estrutura formal do poema, pelos temas que invoca, pelo capital simbólico que
constrói e pela visão de mundo que depreendemos de sua poesia. Atitude
social, atitude poética e criação poética já se fixavam assim nos primeiros
versos, “publicados” há quarenta anos, valendo as aspas pela forma singular
com que publicizou e fez circular seus poemas e seus livretos.
Fernando Almeida, nos poemas mais recentes, transpõe poder e
dominação como elementos de um mundo masculinizado, tristemente
hemingwayniano. No quadro desse mundo masculinizado que é o referente
social, histórico e cultural que informa a poesia de Fernando Almeida, o
ambientalismo de seus poemas clama por um mundo de múltiplas
racionalidades, mais subjetivo e emotivo. Nesses termos, é um mundo, talvez,
composto por uma escrita feminina, por uma índole do feminino, pelo apelo
à paz, às relações de humanidade. Dissonante, Fernando Almeida nega o
mundo erigido sob o domínio do falo, sob o comando patriarcal, sob o tacão
da hierarquia bruta da força.
Se o tema e o conteúdo o fazem dissonante, e se a atuação ou recusa de
estar onde o poeta socialmente deveria estar amplificam a dissonância, a
estrutura do poema “Day off” também o mostra dissonante. Se a estrutura de
fazer o final dos versos sem pontuação não é original, tendo nesse cesura uma
pausa intermédia como uma semivírgula ou um ponto-e-vírgula ou mesmo
dois pontos, nesse caso em alguns autores, a consistência do procedimento em
outros poemas de Fernando Almeida mostra ser recorrência que constrói
significados e firma um modo de escrever.
Além disso, a pausa e sequência na ênfase da retomada reiterada pelo
vocativo dos quatro primeiros versos indica uma estrutura em escala, um
crescendo que significa uma ampliação para outras categorias, para outras
profissões, para o conjunto da sociedade, de modo que a estrutura do poema
constrói um todo, indicia o universal a partir das particularidades que evoca.
A estrutura, inclusive nas rimas, internas e suaves, cujos ecos prolongam o
significado dos vocábulos anteriores, também perfaz a postura dissonante do
poeta.
É como se, com ironia, Fernando Almeida nos indicasse a célebre frase
de Maiakóvski de que “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”,
conforme consta, por exemplo, na última capa de Mistério-Bufo, peça teatral
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