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Drummond

Este documento apresenta uma biografia resumida do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Em três frases: Drummond foi um dos principais poetas modernistas brasileiros e autor do famoso poema "No meio do caminho". Publicou seu primeiro livro em 1930 e trabalhou como jornalista em Minas Gerais antes de se mudar para o Rio de Janeiro em 1934, onde trabalhou no governo federal. Foi considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX por sua obra revolucionária e experimentação com novas formas poéticas.

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Drummond

Este documento apresenta uma biografia resumida do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Em três frases: Drummond foi um dos principais poetas modernistas brasileiros e autor do famoso poema "No meio do caminho". Publicou seu primeiro livro em 1930 e trabalhou como jornalista em Minas Gerais antes de se mudar para o Rio de Janeiro em 1934, onde trabalhou no governo federal. Foi considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX por sua obra revolucionária e experimentação com novas formas poéticas.

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Carlos Drummond de Andrade.

O poeta e escritor que detinha o sentimento do mundo

Editorial
“No meio Além da entrevista com eles, o projeto de uma ética
do caminho global é o tema da entrevista com o Prof. Dr. Manfredo
tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho.” Araújo de Oliveira, da Universidade Federal do Ceará.
Quem não lembra de Carlos Drummond de Andrade Na página eletrônica do IHU, pode ser acessado o IHU-
quando escuta esses versos já clássicos? Fórum On-line sobre o tema.
Na sexta-feira da semana passada, dia 17 de agosto, O pensamento de Celso Furtado, sempre atual e
recordamos a morte do poeta, há 20 anos. questionador, é o tema da entrevista com o economista
Esta edição sobre Drummond inicia com uma crônica Pedro Cezar Dutra da Fonseca, vice-reitor da UFRGS.
inédita de Affonso Romano de Sant’Anna, na qual ele Ele estará participando, nesta quarta-feira, dia 22, do III
recorda momentos de sua convivência com o poeta, de Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia.
quem foi amigo pessoal. Por sua vez, Alcides Villaça, E, numa conjuntura marcada pela turbulência do
professor da USP, analisa o “eu poético retorcido” de mercado financeiro internacional, será exibido, no
Drummond; John Gledson, da Universidade de Liverpool, próximo sábado, dia 25, o filme A fraude, de James
Inglaterra, afirma que é um erro trágico separar o Dearden. O filme será debatido pelo Prof. Francisco
Drummond social do formalista; Iumna Maria Simon, Antônio Mesquita Zanini, que trabalhou por longos anos
professora da Unicamp, fala sobre a poesia e as crônicas no sistema financeiro e hoje é professor na Unisinos. “O
de Drummond; e Luiz Costa Lima, professor da PUC-Rio, filme e o debate são muito oportunos, especialmente
classifica Drummond como “o poeta brasileiro do século nestes dias em que o mercado financeiro global passa por
XX de maior grau de penetração”. Ana Lúcia Liberato outro período de turbulência”, atesta o professor na
Tettamanzy, professora no Instituto de Letras da UFRGS, entrevista publicada nesta edição.
e Ronald Polito, historiador, poeta ensaísta e tradutor, A Profa. Dra. Christa Berger, jornalista e pesquisadora
também contribuem nesta matéria de capa. Na do PPG em Comunicação da Unisinos, na entrevista
elaboração desta edição contamos com a ajuda especial concedida à IHU On-Line desta semana, reflete sobre a
de André Dick, que trabalha no IHU e é doutor em contribuição da mídia para a formulação de uma política
Literatura Comparada. de memória que será o tema dos Encontros de Ética do
Hans Küng estará no dia 22 de outubro na Unisinos dia 27 de agosto.
discutindo o Projeto de Ética Global. A iniciativa do
teólogo alemão será debatida nesta quinta-feira no IHU A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente
Idéias, pelos professores Dr. Vicente de Paulo Barretto, semana!
pesquisador do PPG em Direito – Unisinos, e Dr. Alfredo
Culleton, pesquisador do PPG em Filosofia – Unisinos.

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 1


Leia nesta edição
PÁGINA 01 | Editorial

A. Tema de capa
» ENTREVISTAS

PÁGINA 06 | Affonso Romano De Sant’anna: Novas estórias com e sobre Drummond


PÁGINA 11 | Alcides Villaça: Um eu poético retorcido
PÁGINA 15 | John Gledson: Separar o Drummond social do formalista é um erro trágico
PÁGINA 20 | Iumna Maria Simon: A obra poética de Drummond foi feita de viradas e experimentação de novas formas
PÁGINA 25 | Luiz Costa Lima: O poeta das sete faces
PÁGINA 29 | Ronald Polito: Um enigma não revelado
PÁGINA 33 | Ana Lúcia Liberato Tettamanzy: “Uma pedra irrevogável no meio da poesia brasileira”

B. Destaques da semana
» Teologia Pública
PÁGINA 35 | Manfredo Araújo de Oliveira: O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng
» Memória
PÁGINA 40 | Ingmar Bergman: relações entre o real e o imaginário
» Filme da Semana
PÁGINA 45 | A Fost sau n-a fost?, de Corneliu Porumboiu
» Analise de Conjuntura
PÁGINA 47 | Destaques On-Line
PÁGINA 49 | Frases da semana

C. IHU em Revista
» EVENTOS
PÁGINA 53 | Agenda da Semana
PÁGINA 54 | Pedro Cezar Dutra da Fonseca: Para Celso Furtado a política econômica não pode ter a estabilização como
um fim em si mesmo
PÁGINA 58 | Alfredo Culleton e Vicente Barretto: Ética mundial e Direito: uma contribuição de Hans Küng
PÁGINA 60 | Francisco Zanini: Filme A Fraude para compreender o capitalismo financeirizado
PÁGINA 63 | Christa Berger: A contribuição da mídia para a formulação de uma política de memória
» PERFIL POPULAR
PÁGINA 66| Andréa Moscarelli Mota
» IHU REPÓRTER
PÁGINA 69| Marcos Knewitz

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 2


Carlos Drummond de Andrade – notas biográficas

Carlos próprio poeta. Um dos críticos, Gondim da Fonseca, por


Drummond de exemplo, escreveu: “O sr. Carlos Drummond é difícil. Por
Andrade mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra
(Itabira, 31 de no meio do caminho, coisa que todos os dias sucede a
outubro de 1902 toda gente (mormente agora que as ruas da cidade
— Rio de inteira andam em conserto) e fica repetindo a coisa feito
Janeiro, 17 de papagaio”. Em 1925, o poeta concluiu o curso de
agosto de 1987) Farmácia, nunca tendo exercido a profissão, pois queria
é considerado “preservar a saúde dos outros” e casou-se com Dolores
um dos Dutra de Morais (com quem ficaria casado a vida inteira,
principais poetas passando pela morte de um filho recém-nascido, em
da literatura 1927, e, em 1928, pelo nascimento da filha Maria Julieta,
brasileira, que seria sua maior confidente). Em 1926, lecionou
pertencente ao que se conhece como segunda geração de Português e Geografia no Ginásio Sul-Americano de
poetas do modernismo, da qual fazem parte, entre Itabira. Em 1930, publicou seu primeiro livro, Alguma
outros, Murilo Mendes1 e Jorge de Lima2. Era filho de um poesia. Em 1934, depois de trabalhar como redator nos
pequeno fazendeiro e estudou em sua cidade natal e em jornais Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da
Belo Horizonte, antes de ir para o Colégio Anchieta da Tarde, de forma simultânea, mudou-se para o Rio de
Companhia de Jesus, em Nova Friburgo, de onde, em Janeiro, onde passou a trabalhar como chefe de gabinete
1919, foi expulso por “insubordinação mental”. No ano de Gustavo Capanema3, amigo de infância e então novo
seguinte, mudou-se para Belo Horizonte. No mesmo ano, ministro de Educação e Saúde Pública. Entre
publicou na Revista de Antropofagia, de São Paulo, o lançamentos de novos livros, em 1945 deixou a chefia do
poema “No meio do caminho”: “No meio do caminho gabinete de Capanema e, aceitando convite de Luís
tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do
caminho”, que causou bastante polêmica, sendo acusado
de maluco por alguns críticos, o que rendeu até um livro 3
Gustavo Capanema Filho (1900-1985): político e advogado
com todas as declarações, intitulado Uma pedra no meio brasileiro. Formou-se pela Faculdade de Direito de Minas Gerais.
do caminho: biografia de um poema, organizado pelo Vinculou-se, quando universitário, ao grupo de intelectuais da rua da
Bahia, junto com Mario Casassanta, Milton Campos e Carlos Drumond de
Andrade. Em 1927, ele iniciou sua carreira política. Nas eleições de
1
Murilo Mendes (1901-1975): poeta brasileiro, expoente do 1930, apoiou a candidatura de Getúlio Vargas. Foi nomeado, em 1959,
movimento modernista. (Nota da IHU On-Line) por Juscelino Kubitschek, ministro do Tribunal de Contas da União,
2
Jorge de Lima (1893-1953): escritor brasileiro, alagoano. Suas cargo que ocupou até 1961. Capanema elegeu-se senador por Minas
obras se dividem em três fases mais notórias: a primeira, de cunho Gerais, em 1970, e também foi Presidente do Museu de Arte Moderna e
parnasianista/simbolista; a segunda, quando aderiu ao movimento membro do Conselho Deliberativo da Fundação Milton Campos.
modernista; e a terceira, quando seus livros exibiam um profundo traço Encerrou sua carreira política em 1979, ao término de seu mandato no
surreal e religioso, notadamente católico. (Nota da IHU On-Line) Senado. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 3


Carlos Prestes4, atuou como co-editor do diário seguintes palavras: “Escrever para si mesmo é
comunista Tribuna Popular, do qual saiu contrariado narcisismo, ou medo disfarçado de timidez. Sem dúvida,
com algumas imposições. Foi chamado por Rodrigo M. F. todo sujeito honesto escreve por necessidade, mas nessa
Andrade para trabalhar na diretoria do Patrimônio necessidade está latente a idéia de comunicação”. De
Histórico e Artístico Nacional, onde se tornaria chefe da Drummond, João Cabral disse: “Drummond foi a árvore à
Seção de História, na Divisão de Estudos e Tombamento. sombra da qual mais poetas cresceram no Brasil”. Em sua
Bastante tímido e reservado, teve inúmeras amizades última entrevista, dada ao jornalista Geneton Moraes
(poetas ou não), como Manuel Bandeira5 e Mário de Neto (publicada em O dossiê Drummond. São Paulo: Ed.
6
Andrade . Por sua introspecção, ele se considerava um Globo, 1990), poucos dias antes de sua morte, ocorrida
“urso polar”. Mesmo assim, apoiava poetas da geração apenas doze dias depois da morte da filha, vítima de
seguinte à sua, como João Cabral de Melo Neto7, para câncer, fez uma declaração curiosa, encerrando o
quem escreveu, numa carta de 17 de janeiro de 1942, as diálogo. Perguntado sobre os versos “E como ficou chato
ser moderno. / Agora serei eterno!”, Drummond
4
Luís Carlos Prestes (1898-1990): militar e político comunista respondeu: “Isso, evidentemente, é uma brincadeira.
brasileiro. Foi secretário-geral do Partido Comunista do Brasil (PCB),
Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo
posteriormente chamado Partido Comunista Brasileiro. Casou-se com
contrário: tenho a impressão de que daqui a vinte anos –
Olga Benário, morta na Alemanha, na câmara de gás, pelos nazistas.
Em 1936, Prestes foi preso, perdeu a patente de capitão e inicia o e eu já estarei no Cemitério São João Batista – ninguém
cumprimento de sua pena, que durou nove anos. Com o fim do Estado vai falar de mim, graças a Deus. O que quero é paz”. Seu
Novo, foi anistiado, elegendo-se Senador. Após o golpe de 1964, com o
pedido, obviamente, não foi atendido.
AI-1, teve seus direitos de cidadão novamente revogados, dessa vez por
dez anos. Exilou-se na União Soviética, para não ser novamente preso,
regressando ao Brasil devido à anistia de 1979. (Nota da IHU On-Line) A poesia de Drummond lida com diversos tipos de
5
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968): poeta, dicção: desde a mais próxima do coloquial (em Alguma
crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.
poesia, José, Brejo das almas), passando por uma linha
Considera-se que Bandeira faça parte da geração de 22 da literatura
mais social (A rosa do povo) e por outra mais hermética
moderna brasileira, sendo seu poema Os sapos o abre-alas da Semana
de Arte Moderna de 1922. Juntamente com escritores como João Cabral (Claro enigma, A vida passada a limpo e Lição de
de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre e José Condé, representa o coisas), sem, no entanto, serem rigidamente separadas,
que há de melhor na produção literária do estado de Pernambuco.
como observaram alguns críticos em seus estudos sobre o
(Nota da IHU On-Line)
6 poeta. Nos livros finais, teria se dividido entre uma
Mário de Andrade (1893-1945): poeta, romancista, crítico de arte,
folclorista, musicólogo e ensaísta brasileiro. Em 1917 foi publicado o autobiografia em verso (com os volumes que constituem
seu primeiro livro de versos: Há uma gota de sangue em cada poema. Boitempo, analisados, no entanto, com bastante argúcia
A sua segunda obra, Paulicéia desvairada, colocou-o entre os
por Antonio Candido e José Guilherme Merquior) e
pioneiros do movimento modernista no Brasil, culminando, em 1922,
poemas quase em forma de crônicas (como os de Corpo e
como uma das figuras mais proeminentes da famosa Semana da Arte
Moderna. Alguns dos seus livros de poesia mais conhecidos são: Losango Amar se aprende amando), que também escreveu,
cáqui, Clã do jabuti, Remate de males, Poesias e Lira paulistana. assim como poemas eróticos (os de O amor natural, livro
(Nota da IHU On-Line)
póstumo). No entanto, obras como As impurezas do
7
João Cabral de Melo Neto (1920-1999): poeta e diplomata
branco e, sobretudo, A paixão medida, mostraram um
brasileiro. Pertencia a uma das mais tradicionais famílias do
Pernambuco, sendo irmão do historiador Evaldo Cabral de Mello e primo Drummond quase octogenário cheio de vigor e
do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre. (Nota da IHU criatividade, trabalhando, com igual desenvoltura, em
On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 4


versos brancos, rimados, livres ou metrificados, além de de Andrade (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002), com
continuar a ser um “mestre da sintaxe”, como apontou organização e notas de Silviano Santiago e Carlos
Davi Arrigucci Jr., em seu estudo Coração partido. Drummond de Andrade.
Muitos de seus poemas ficaram populares, sobretudo
alguns versos: “Quando nasci, um anjo torto ; desses que Quem se interessar por dados biográficos do poeta,
vivem na sombra / disse: Vai Carlos! ser gauche na duas indicações são O dossiê Drummond (São Paulo: Ed.
vida”;“E agora, José?”, “Tinha uma pedra no meio do Globo, 1990), de Geneton Moraes Neto, e Os sapatos de
caminho”, “Oh! Sejamos pornográficos / (docemente Orfeu (2. ed. São Paulo: Ed. Globo, 2006), de José Maria
pornográficos”), entre muitos outros. Mas são poemas e Cançado.
livros seus que mostram a grande força literária de sua
obra, revelando um indivíduo capaz de grande Confira na versão eletrônica desta IHU On-Line,
entendimento da própria subjetividade, de suas disponível no site www.unisinos.br/ihu uma biografia
memórias (familiares, sobretudo), das cidades onde mais completa, com informações sobre as obras de
morou e dos movimentos de massa que ajudam a retratar Drummond.
sua própria melancolia. Sua poesia, ao mesmo tempo,
constantemente traz o choque com a modernidade e uma
alteridade, que se reproduz em poemas amorosos e
metalingüísticos.

Para o leitor, vale a pena conferir dois livros com suas


cartas: Correspondência de Cabral com Bandeira e
Drummond (Org. Flora Süssekind. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001) e Carlos & Mário: correspondência
completa entre Carlos Drummond de Andrade e Mário

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Novas estórias com e sobre Drummond
POR AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA

Na crônica a seguir, enviada especialmente à IHU On-Line por Affonso


Romano de Sant’Anna, ele recorda momentos de sua convivência com o poeta
Carlos Drummond de Andrade, de quem foi amigo pessoal. Sant’Anna escreveu
sua tese de doutorado sobre Drummond, e esta foi publicada como Drummond,
o gauche no tempo (4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992).

Poeta, ensaísta, professor, cronista e jornalista, Sant’Anna teve, nos anos


1960, uma participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia
brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria
linguagem e trajetória. Também data desta época sua participação nos
movimentos políticos e sociais. Como poeta e cronista, foi considerado, pela
revista Imprensa, em 1990, um dos dez jornalistas que mais influenciam a
opinião de seu país. Dirigiu o Departamento de Letras e Artes da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) na década de 1970,
organizou a “Expoesia”, evento que reuniu 600 poetas num balanço da poesia
brasileira e trouxe ao Brasil conferencistas estrangeiros como Michel Foucault.
Como jornalista, trabalhou nos principais jornais e revistas do país: Jornal do
Brasil, Senhor, Veja, Isto É e O Estado de S. Paulo. Foi cronista da Manchete e do
Jornal do Brasil. Está no jornal O Globo desde 1988. Foi considerado pelo crítico
Wilson Martins como o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, no sentido de
desenvolver uma “linhagem poética” que vem de Gonçalves Dias, Bilac,
Bandeira e Drummond. De sua obra, composta por cerca de 30 livros de
ensaios, poesia e crônicas, destacamos Que fazer de Ezra Pound? (São Paulo:
Imago, 2003); Desconstruir Duchamp (Rio de Janeiro: Vieira & Leme, 2003); e A
cegueira e o saber (Rio de Janeiro: Rocco, 2006). Em 24-05-2007, conduziu a
conferência A autonomia do sujeito na arte, dentro da programação do
Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
Sobre o tema, concedeu a entrevista “Pensar que o artista é mais livre que um
engenheiro é uma temeridade” à edição 220 da IHU On-Line, de 21-05-2007. Na
edição 228 da revista, de 16-07-2007, sobre Clarice Lispector, contribuiu com
crônicas inéditas sobre a amizade e o convívio que ele e sua esposa, Marina
Colasanti, mantiveram com a escritora.

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 6


Pensar que faz vinte anos que Drummond se foi. E razões. Sobretudo, porque tinha uma marca no rosto,
pensar que até já comemorarmos o centenário de seu que a constrangia. A conversa continuou, Drummond
nascimento. Embora ele ironicamente dissesse para a pegou o telefone, conversou com Pitanguy10 e Candace
gente que logo que morresse seria esquecido, continua foi operada dali a dias.
vivo, vivíssimo. E sua biografia ainda pode crescer. Estou * Contou-me Geraldo Dolino11, o pintor que era muito
me lembrando que numa entrevista ao Pedro Bial8, o amigo de Maria Julieta e Drummond, que quando o irmão
9
biógrafo de Drummond, José Maria Cançado , disse mais velho do poeta, Altivo, morreu, Drummond sentiu
modestamente que o poeta era imbiografável. De fato a necessidade de fazer algo em homenagem àquele irmão
biografia, mesmo de um morto, está sempre em que tinha um defeito na perna. Na rua, passou por um
movimento, em gestação, crescendo no imaginário mendigo, que lhe pedia esmola. Parou e perguntou-lhe
alheio. Enquanto houver escrita e memória, as coisas que diretamente: “Você quer uma muleta?”. O mendigo,
se foram voltarão sempre. surpreso, respondeu que sim. Mas prontamente deu-se
Estava eu nesses dias lembrando-me de umas estorietas conta de que talvez pudesse tirar mais de seu generoso
com o poeta com quem tive proximidade desde a doador: “Na verdade, eu precisava mesmo era de uma
adolescência e sobre quem já escrevi vastamente. cadeira de rodas”, complementou.
Algumas já narrei na crônica “Perto e longe do poeta” O poeta já estava quase concordando, quando o
(Fizemos bem em resistir. Rio de Janeiro: Rocco, 1994). mendigo adicionou: “Mas de preferência uma daquelas
Estou me referindo agora a outras estórias. Por exemplo, elétricas, o senhor sabe...”.
aquela sucedida no hospital, horas antes de ele morrer. Meio impaciente, Drummond lhe disse: “Olha, é a
Estava Drummond ainda meio lúcido, mas com muleta ou nada”. Ao que o outro imediamente
dificuldade para falar. Sentiu aproximar-se de seu leito concordou, ganhando o presente para ele útil, e para o
um dos netos que, carinhosamente, tentando amenizar a poeta cheio de significado simbólico.
situação, começou a dizer ao avô que aquilo ia passar e
que logo-logo estaria de volta à sua casa na rua A poesia passou lá em casa
Conselheiro Lafaiete. * Um dia estava em minha casa à noitinha, quando da
Ouvindo aquilo e pressentindo que não era isto o que portaria me avisam que o “senhor Drummond” estava lá
ocorreria, Drummond, que morreria horas depois, fez o embaixo e se ele podia subir. Na hora, achei que era uma
último gesto irônico de sua vida. Levantou o braço e deu brincadeira do Yllen Kerr, que às vezes se identificava ao
uma banana para a carinhosa frase do neto. telefone e até pessoalmente com outro nome, de pura
* Contou-me Candace Slater,uma brasilianista que dá galhofa. Então, disse, pensando que era o Yllen, que
aulas em Berckeley, que certa vez fora visitar o poeta. poderia subir e continuamos, Marina [Marina Colasanti12,
No meio da conversa, de repente, ele desferiu a frase:
“Você é bonita”. Ela ficou meio sem jeito, por várias 10
Ivo Hélcio Jardim de Campos Pitanguy (1926): cirurgião plástico
brasileiro de renome internacional. (Nota da IHU On-Line)
8 11
Pedro Bial (1958): jornalista e apresentador brasileiro de televisão, Luiz Geraldo Dolino: pintor brasileiro, amigo de Drummond. (Nota
conhecido por apresentar os programas Fantástico e Big Brother da IHU On-Line)
12
Brasil. (Nota da IHU On-Line) Marina Colasanti: jornalista e cronista, autora de diversos livros
9
José Maria Cançado (1952-2006): escritor, jornalista e crítico para público adulto e infantil. Confira crônicas de sua autoria, sobre
literário brasileiro, autor de Os sapatos de Orfeu (São Paulo: Ed. Clarice Lispector, publicadas na edição número 228 da revista IHU On-
Globo, 2006), biografia de Carlos Drummond. (Nota da IHU On-Line) Line, de 16-07-2007. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 7


escritora e mulher de Affonso] e eu, calmamente da segunda estrofe de ‘Isto é aquilo’, descoberto por
jantando. Eis – senão - quando, ao abrir a porta, nos você (eu nunca havia reparado na mutilação em jornal e
deparamos com Drummond em carne e osso, portando depois em livro), providenciei este enchimento {último
sob os braços, como presente, um livro enorme de verso}: “o boliche e o relincho”.
poemas dele ilustrado pela artista mineira Yara * Ele havia, portanto, lido atentamente a tese.
Tupinambá. Comentando o livro, me dissera: ”Mas você me
Entrou, conversamos mineira e cautelosamente. Ele desaparafusou todo”.
até brincou com Alessandra, a filha menor, ainda * Quando o livro mereceu os quatro prêmios nacionais
menina. Marina até escreveu uma crônica “A poesia de ensaio, Drummond foi o primeiro que me telefonava
passou lá em casa”, registrando o episódio. cumprimentando e às vezes me comunicando, antes que
* Quando, nos anos 1960, estava eu escrevendo a tese eu recebesse oficialmente o resultado.
de doutoramento Drummond, o gauche no tempo (4. Por outro lado, quando o livro foi publicado, como
ed. Rio de Janeiro: Record, 1992), fui várias vezes à casa sucede com os autores, passei por uma livraria no centro
dele. Ali, em seu escritório, oferecia-me um suco de cajú do Rio e resolvi indagar se meu livro estava lá a venda.
ou maracujá, conversávamos e deixou que levasse “Acabou, disse-me o livreiro. O poeta esteve aqui e
emprestadas as centenas de críticas publicadas sobre comprou os 10 últimos exemplares”.
ele. Tinha pastas com tudo. Até com telegramas de * Ao chegar dos Estados Unidos e ir dirigir a pós-
congratulações pela publicação de seu primeiro livro em gradução de Letras na PUC-Rio, fiz com os especialistas
l930. Ele guardava tudo. Surpreendeu-me ver, mais em computação daquela universidade um tratamento
tarde, na Casa Rui Barbosa, onde estão os seus arquivos, estatístico dos dados que havia levantado em minha
que tivesse guardado até uma cartinha adolescente que tese. Eles conseguiram fazer vários gráficos e curvas que
lhe enviei quando morava em Juiz de Fora. comprovavam visualmente os traços metafísicos da
Quando a tese ficou pronta, mandei-a, naturalmente, poesia de Drummond. Na ocasição, mandei para ele
para ele. Percebi, por exemplo, que ele a lera algumas fichas perfuradas (era assim o computador da
atentamente, e que dava muita importância a esse tipo época) em que apareciam seus textos trabalhados.
de trabalho, porque mandou-me cartas dando as fontes Espantado, ele até se divertiu com o fato.
do poema da “Moça fantasma” ou explicando que o * Meticuloso e implacável revisor, certa vez o leitor
poema intitulado “Maud” era uma homenagem à amante Messias Amaral dos Santos deixou com ele a edição da
de Enrico Bianco, que morrera num desastre aéreo. Nova Aguilar para autografar. Não apenas a autografou,
Também, depois da leitura da análise que fiz de “A mas fez-lhe um poema-dedicatória e ainda corrigiu todos
bruxa”, fez uma correção de um “nesse” por “neste” no os erros da edição. Já com a professora Clarice Fukelman
poema. E como eu havia notado que, no poema “Isto é aconteceu de Drummond dar-lhe dezenas de livros para
13
aquilo” , a segunda estrofe só tinha nove versos, um trabalho de leitura que fazia com presos e pobres.
enquanto as demais tinham dez, numa carta de Entre esses livros, estava a edição das poesia de Dante
23.2.1970 explicava e acrescentava: “Para aquele vazio Milano14 - poeta que ele admirava - com uma série de
correções que ele pacientemente fizera.
13
ANDRADE, Carlos Drummond de. Lição de coisas. In: Poesia
14
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.500-502. (Nota da IHU Dante Milano (1899-1991) foi um poeta brasileiro representativo
On-Line) da terceira geração do Modernismo. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 8


foi para ela que ele fez um poema sobre o amor por
Prêmio Nobel telefone.
* Quando eu fazia crítica semanal da Veja (nos anos * Quando a Mangueira resolveu tomar a sua obra e
15
1970), Mino Carta me ligou certa feita para saber como biografia como tema do desfile de 1987 e fui convidado
se poderia ter contato com o poeta, pois notícias vindas para desfilar na Comissão de Frente, ao lado da velha
da Europa diziam que ele era forte candidato ao Nobel. guarda da escola e de sambistas famosos, conversamos
Pedia-me que intercedesse para que o poeta desse uma algumas vezes por telefone. Claro que ele não
entrevista preparatória. Constrangido, liguei para ele, compareceu ao desfile, mas no dia seguinte me ligou
expliquei a situação. Ele ouviu-me reticentemente. E, para comentar e dizer de seu agradecimento pela
fosse para se proteger de alguma maneira ou não se lembrança.
expor, recusou-se a dar a entrevista. E, como se sabe, * No princípio dos anos 90, alguns anos depois de sua
mais uma vez o Nobel não lhe foi dado. Ele bem poderia morte, fui convidado para estar na banca de mais uma
16
dizer ironicamente como Borges nessa ocasião: “Não tese sobre Drummond. Mas não era uma tese qualquer.
conceder-me o Nobel é uma velha tradição nórdica”. Era um trabalho escrito por Maria Lucia Pazzo Ferreira,
* O poeta ficava colado ao seu telefone, como se não sobre o erotismo em Drummond. Mas mais que isto, era
tivesse sido ele o autor daquele verso: “ao telefone uma tese em que o poeta havia sido co-orientador, pois,
perdeste muito tempo de semear”. Como ele se sentia enquanto vivo, era muito amigo da autora e deu-lhe
protegido pelo telefone, mais à vontade, falava mais. A várias sugestões de leitura teórica sobre o assunto,
romancista Ruth Lauss confessou-me que gravava as indicando fontes para enfocar este assunto em sua obra.
conversas que tinha com ele. Nessa ocasião, eu dirigia a Biblioteca Nacional e
Uma de suas namoradas, que conversava sempre com consegui para a instituição a doação das cartas que
ele em torno da meia-noite, por telefone, me disse que foram trocadas entre o poeta e a autora da tese.
* Sensação realmente estranha, estapafúrdia, ambígua
15 e perfeitamente normal, no entanto, tive poucos dias
Demetrio Carta, mais conhecido como Mino Carta (Gênova, 1933),
é jornalista, editor, escritor e pintor ítalo-brasileiro. É considerado um antes da morte do poeta. Ele já estivera internado antes
dos mais importantes e influentes jornalistas no Brasil, estando ligado, da morte de Maria Julieta. E a imprensa, prevendo que
de forma indissociável, à imprensa moderna do país, como atestam
ele poderia morrer a qualquer momento, adiantava o
suas criações: a revista Quatro Rodas, o Jornal da Tarde, o extinto
obituário. É assim que a imprensa trabalha. Essas
Jornal da República e as semanais Veja, IstoÉ e Carta Capital, a qual
dirige atualmente junto com a Agência Carta Capital. (Nota da IHU páginas, todas escritas recentemente sobre o Betinho,
On-Line) por exemplo, estavam escritas bem antes, creiam-me. Os
16
Jorge Luiz Borges (1899-1986): escritor, poeta e ensaísta
jornais guardam obituários dos candidatos à morte. Às
argentino, mundialmente conhecido por seus contos. Sua obra se
vezes, são pegos de surpresa. Mas querm tiver interesse
destaca por abordar temáticas como filosofia (e seus desdobramentos
matemáticos), metafísica, mitologia e teologia, em narrativas e amigos nos jornais deveria até pedir para ler o que vão
fantásticas onde figuram os “delírios do racional” (Bioy Casares), dizer após sua morte.
expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos. Ao mesmo tempo,
Ora, eu havia substituído Drummond como cronista no
Borges também abordou a cultura dos Pampas argentinos, em contos
Jornal do Brasil , e lá o Zuenir Ventura17, que dirigia o
como “O homem da esquina rosada” e “O sul”. Sobre Borges, confira a
edição 193 da IHU On-Line, de 28-08-2006, intitulada Jorge Luiz
17
Borges. A virtude da ironia na sala de espera do mistério. (Nota da Zuenir Carlos Ventura (1931), jornalista e escritor brasileiro, é
IHU On-Line) colunista do jornal O Globo e da revista Época. Ganhou o Prêmio

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 9


Caderno B, pediu-me que fizesse um ensaio sobre o
poeta, porque ele poderia morrer a qualquer hora.
Estranha, estapafúrfia, ambíngua e perfeitamente
normal a situação. Ele vivo no seu apartamento e eu no
meu, escrevendo o texto para após sua morte.
Acontece a morte de Maria Julieta. Encontro-me com
ele no velório. Ele vivo e o jornal já com o texto sobre
ele morto, não se sabia para quando. Pensei, deveria dar
para ele ler. Ia ser engraçado. Ler vivo o que sobre ele se
publicaria depois de morto.
Após sua morte, um dia recebo o telefonema de uma
ex-aluna, dizendo-me que Drummond aparecera numa
sessão espírita e que havia mandado dois recados. Ouvi-
os. Um era para Dona Dolores: que dissesse a ela para
não se preocupar porque ele estava muito bem. E
pronunciava a palavra - GOVENA, pedindo que a
transmitisse à Dolores, que ela saberia o que era aquilo.
Quanto a mim, dizia a amiga espírita, ele mandava
dizer que o que mais gostara fora o título daquele meu
texto estapafúrdio, estranho, ambíguo e normal, que o
jornal publicara: “Vai, Carlos, ser gauche na
eternidade”.
Fiquei muito preocupado. Pois se, do outro lado da
vida, as pessoas têm que continuar a ler jornal, isso é um
mau sinal.

Jabuti, em 1989, na categoria reportagem, pelo livro 1968 - O ano que


não terminou, que serviu de inspiração para a minissérie Anos
rebeldes, produzida pela Rede Globo. (Nota da IHU On-Line)

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Um eu poético retorcido
ENTREVISTA COM ALCIDES VILLAÇA

“A subjetividade dramática, ‘retorcida’, do eu poético de Drummond é resultante


de vários conflitos, que remontam à ordem familiar, às raízes provincianas, passam
pela incorporação dos valores culturais da modernidade e pelos questionamentos
metafísicos”, disse Alcides Villaça, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à
IHU On-Line. E complementa: “São retorcimentos pessoais, mas nada exclusivos de
Drummond: traduzem as graves incompatibilidades de todo indivíduo que aspira a
ser sujeito pleno numa época em que a suposta exaltação do plano individual,
liberal é, na verdade, mascaramento de uma grande massificação”.

Graduado em Letras e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São


Paulo, Villaça escreveu a dissertação Consciência lírica em Drummond. Cursou
doutorado em Literatura Brasileira na USP com a tese Poesia de Ferreira Gullar. É
livre-docente pela USP e leciona nessa instituição, no Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas. Também é autor dos livros O tempo e outros remorsos (São
Paulo: Ática, 1975); Viagem de trem (São Paulo: Duas Cidades, 1988); e Passos de
Drummond (São Paulo: Cosac & Naify, 2006).

IHU On-Line - O indivíduo em Drummond é poeta, no fundo, individualista? Como isso se mostra a
reconhecido como “um eu todo retorcido”. O poeta partir de seus poemas?
também é visto como um dos poetas notoriamente Alcides Villaça - A subjetividade dramática,
públicos do século XX. Em que medida, com relação a “retorcida”, do eu poético de Drummond, é resultante
isso, pode-se ver aquela “subjetividade tirânica” de vários conflitos, que remontam à ordem familiar, às
destacada por Antonio Candido18? Drummond seria um raízes provincianas, passam pela incorporação dos
valores culturais da modernidade e pelos
18
Antonio Candido (1918): Nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu questionamentos metafísicos. Tudo isso ocorre no
desde a primeira infância em Minas Gerais. Entrou em 1939 para a
interior de um sujeito tímido e lúcido, incapaz de
Faculdade de Direito e para a de Filosofia (Seção de Ciências Sociais),
na qual recebeu no começo de 1942 os graus de bacharel e licenciado. renunciar ao empirismo da vida na mesma medida em
De 1958 a 1960 foi professor de literatura brasileira na Faculdade de que é incapaz de renunciar aos mais altos ideais. Esse
Filosofia de Assis. Aposentando-se em 1978, continuou a trabalhar em descompasso resulta em drama, sentimento de
nível de pós-graduação como orientador de teses. Fora da vida
insuficiência, sensação de deslocamento. Mas também
acadêmica, foi crítico da revista Clima e dos jornais Folha da Manhã
(1943-5) e Diário de São Paulo (1945-7). Na vida política, participou de fornece um ângulo muito proveitoso para a criação
1943 a 1945 na luta contra a ditadura do Estado Novo no grupo poética, que é o ângulo do gauche: perspectiva
clandestino Frente de Resistência. Atualmente é vice-presidente da TV libérrima, sem compromisso com a coerência fácil, e
do Trabalhador e membro do Conselho editorial da revista Teoria e
aberta para viver os disparates e as verdades da cabeça e
Prática. (Nota da IHU On-Line)

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do coração. Ou seja: a insuficiência de ação, nascida da perspectivas culturais adotadas pelos modernistas, mas
timidez, sublima-se na bela expressão dos desejos mais não fez delas um programa, pelo contrário: submeteu-as
fundos; o ideal inatingível é, a só um tempo, exaltado e ao controle de seu “retorcimento” pessoal.
temperado pela ironia; a confissão é tão verdadeira Paradoxalmente, soube potenciá-las no território dos
quanto a piada que pretende disfarçá-la. São limites de sua personalidade, Nunca deixou de ouvir as
retorcimentos pessoais, mas nada exclusivos de lições de Mário de Andrade, seu amigo, mas desde logo
Drummond: traduzem as graves incompatibilidades de reconheceu-se como um “Carlos”, e não pôde nem quis
todo indivíduo que aspira a ser sujeito pleno numa época abrir mão de sua personalidade, da qual era, aliás, o
em que a suposta exaltação do plano individual, liberal crítico mais exigente. Além disso, há sempre a ação
é, na verdade, mascaramento de uma grande dessa coisa misteriosa que é o talento artístico,
massificação. inexplicável como fonte, mas verificável como resultado.
De onde vêm os ritmos e as imagens de Drummond, tão
IHU On-Line - Quais são as mudanças efetuadas por soberbamente controlados pela consciência implacável e,
Drummond em relação aos modernistas precursores, ao mesmo tempo, potenciados pela sensibilidade do
19 20
como Oswald e Mário de Andrade e Manuel poeta?
21
Bandeira ?
Alcides Villaça - Drummond esteve, no início, muito IHU On-Line - Alguns críticos observam que há uma
atento às novas técnicas literárias e às novas divisão, na obra de Drummond, entre uma poesia
formalista e uma poesia social? Poderia falar um pouco
19 sobre essa separação que costuma ser feita e se
José Oswald de Sousa Andrade (1890-1954): escritor, ensaísta e
dramaturgo brasileiro. Foi um dos promotores da Semana de Arte concorda com ela? A obra de Drummond atravessou
Moderna de 1922 em São Paulo, tornando-se um dos grandes nomes do fases? Quais seriam elas?
modernismo literário brasileiro. Foi considerado pela crítica como o
Alcides Villaça - Há, de fato, vários Drummonds nesses
elemento mais rebelde do grupo. Algumas de suas obras são Poesia
sessenta anos de produção poética. A personalidade
Pau-Brasil, Serafim Ponte Grande e Memórias sentimentais de João
Miramar. (Nota da IHU On-Line) dramática é dinâmica: atravessa humores, avaliações,
20
Mário de Andrade (1893-1945): poeta, romancista, crítico de arte, situações e linguagens diversas. Prefiro o termo
folclorista, musicólogo e ensaísta brasileiro. Em 1917, foi publicado o
“movimentos” a “fases”. A diversidade desses
seu primeiro livro de versos: Há uma gota de sangue em cada poema.
movimentos nasce de sucessivas alterações de espírito e
A sua segunda obra, Paulicéia desvairada, colocou-o entre os
pioneiros do movimento modernista no Brasil, culminando, em 1922, de posicionamento diante do mundo, que pode ser visto
como uma das figuras mais proeminentes da famosa Semana da Arte como emergência histórica, configuração política,
Moderna. Alguns dos seus livros de poesia mais conhecidos são: Losango
abertura de expectativas, palco dramático, falsa
cáqui, Clã do jabuti, Remate de males, Poesias e Lira paulistana.
totalização, ordem absurda etc. Não vejo tão-somente
(Nota da IHU On-Line)
21
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968): poeta, oposições internas, mas descontinuidades que resultam
crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro. da alteração das convicções do poeta. Não é difícil, eu
Considera-se que Bandeira faça parte da geração de 22 da literatura
sei, opor A rosa do povo a Claro enigma, mas com isso se
moderna brasileira, sendo seu poema Os sapos o abre-alas da Semana
perde o que há de subjetivismo inquietante no primeiro e
de Arte Moderna de 1922. Juntamente com escritores como João Cabral
de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre e José Condé, representa o o que persiste, ainda que no pano de fundo, como
que há de melhor na produção literária do estado de Pernambuco. consciência histórica (desenganada) no segundo.
(Nota da IHU On-Line)

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“Social”, no sentido forte da palavra, toda a poesia de exemplo, dizem tudo, já pelo título. Pessoalmente, em A
Drummond é: não há poema dele que não possa incluir rosa do povo, tenho preferência pelos poemas em que a
uma multidão de sujeitos. participação se oferece de modo mais conflituoso, como
em “A flor e a náusea”27 ou em “O elefante”28. Quem
IHU On-Line - Como se apresenta a relação que quiser acompanhar os sofridos processos íntimos desse
Drummond estabelece com a cidade grande, visto que poeta “individualista” buscando a dimensão do político,
ele se mudou de Itabira (no interior de Minas Gerais) leia o livro O observador no escritório29, em que
para o Rio de Janeiro? Quais são os poemas que melhor Drummond publicou parte de um seu diário íntimo.
mostram tal relação?
Alcides Villaça - Ele foi de Itabira para Belo Horizonte, IHU On-Line - Como o senhor enxerga o poeta que diz
e da capital mineira para a então capital do País. O “Minha matéria é o nada” (no poema “Nudez”30), é
percurso é clássico: um intelectual busca seus pares, bastante melancólico e parece se fazer tão presente
desgarra-se da província e estaciona num grande centro em relação aos problemas reais do cotidiano brasileiro?
cultural. Drummond incorporou a vida carioca em suas Isso seria um paradoxo em sua obra?
crônicas, mas sua poesia ateve-se aos dramas essenciais Alcides Villaça - Confesso que não vejo “problemas
de um mineiro provinciano que ingressou na modernidade reais do cotidiano brasileiro” em “Nudez”, um poema
histórica e ainda se reservou o direito a um sentimento que desenvolve soberbamente o sentimento de
cósmico do mundo. Para aferir alguns lados desse drama, desengano, de niilismo e de morte. O verso “Minha
leia-se, por exemplo, “Cidadezinha qualquer”22, “A um matéria é o nada”, paradoxal em si mesmo, corresponde
23 24
hotel em demolição” e “A ilusão do migrante” . a uma dolorosa renúncia à qualquer manifestação de
vida: é o poeta entrando na essência negativa do mundo,
IHU On-Line - Há um grande atrativo pelo Drummond na absoluta falta de sentido de tudo, do que resulta essa
público, capaz de ter contatos com políticos e mesmo aspiração à nudez definitiva, identificada no
de incorrer numa linha mais sociológica, durante a despojamento que só a morte propicia. É um dos picos da
época de A rosa do povo. Como o senhor vê a poesia regida pela negatividade drummondiana.
influência de dados históricos nos poemas de
Drummond? Eles são claros? IHU On-Line - Por que Drummond, para o senhor, é
Alcides Villaça - Sobretudo em A rosa do povo, os tão enigmático, e em quais temas ou poemas tal
fatos históricos surgem em plano aberto, deixando claro característica fica mais evidenciada? Vem desse
o posicionamento político (socialista) do poeta. “Com o
russo em Berlim”25 e “Carta a Stalingrado”26, por
26
Idem. A rosa do povo. In: Op. cit., p. 200-202. (Nota da IHU On-
Line)
22 27
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In: Poesia Idem. A rosa do povo. In: Op. cit., p. 118-119. (Nota da IHU On-
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 23. (Nota da IHU On- Line)
28
Line) Idem. A rosa do povo. In: Op. cit., p. 165-168. (Nota da IHU On-
23
Idem. A vida passada a limpo. In: Op. cit., p. 444-451. (Nota da Line)
29
IHU On-Line) Idem. O observador no escritório (Memória). Rio de Janeiro:
24
Idem. Farewell. In: Op. cit., p. 1395-1396. (Nota da IHU On-Line) Record, 1985. (Nota da IHU On-Line)
25 30
Idem. A rosa do povo. In: Op. cit., p. 208-210. (Nota da IHU On- Idem. A vida passada a limpo. In: Op. cit., p. 419-420. (Nota da
Line) IHU On-Line)

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elemento o tamanho da fortuna crítica que hoje possui “corrosão” na obra do poeta; João Alexandre
o poeta? Barbosa36 comentava sobre o seu “conhecimento”;
Alcides Villaça - Como eu também acho que a razão de Haroldo de Campos37 destacou a concretude de alguns
ser do mundo e de nossas vidas é um grande enigma, poemas do poeta mineiro; Affonso Romano de
tendo a ver com naturalidade esse poeta “enigmático”. Sant’Anna38 falava no “gauche”. Em Passos de
Mas, para a poesia, a questão não está nos enigmas em si Drummond (São Paulo: Cosac & Naify, 2006), seu livro,
mesmos, e sim na intensidade dos símbolos que os há algum mote que sintetizaria a obra analisada?
traduzem e os revelam numa forma possível, às vezes Alcides Villaça - Permita-me, então, citar uma
sublime. Quem gosta de poesia, toma-a como uma pequena passagem do meu livrinho, na qual busco
verdade profunda deste nosso mundo inexplicado. Nosso alguma síntese: “O antagonismo entre a necessidade
consolo (Drummond nos ensinou): pode iluminar nossas afetiva de constituição e expressão de um sujeito e a
perguntas com imagens, embalar nossas interrogações no desconfiança crítica de que tal tarefa é mais que
envolvimento dos ritmos, e a beleza assim conquistada se problemática traduz muitos dos paradoxos do nosso
acrescenta aos outros enigmas. Vejam-se poemas como
Drummond, Cabral (2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995); Mimesis e
“Um boi vê os homens”31, “Relógio do Rosário”32, “O
modernidade: formas das sombras (2. ed. São Paulo: Graal, 2003); e
enigma”33 e “A máquina do mundo”34, por exemplo, para
História. Ficção. Literatura (São Paulo: Companhia das Letras, 2006).
se reconhecer a variação de perspectivas que o poeta Confira, nesta edição, uma entrevista especial com Costa Lima,
adotou para tratar das perguntas sem respostas. intitulada O poeta brasileiro do século XX de maior grau de
penetração. (Nota da IHU On-Line)
Certamente, boa parte da fortuna crítica de Drummond
36
João Alexandre Barbosa (1937-2006): crítico brasileiro e ex-
deve-se ao interesse das questões mais vivas, formuladas
professor da USP, é autor de obras como A metáfora crítica (São
com tanta intensidade, que o poeta disseminou em seus Paulo: Perspectiva, 1974); A imitação da forma (São Paulo: Livraria
discursos poéticos. Duas Cidades, 1975); As ilusões da modernidade (São Paulo:
Perspectiva, 1986); Alguma crítica (São Paulo: Ateliê Editorial, 2002);
e Mistérios do dicionário (São Paulo: Ateliê Editorial, 2004). (Nota da
IHU On-Line - Antonio Candido dizia que em
IHU On-Line)
Drummond a “idéia só existe como palavra, porque só 37
Haroldo Eurico Browne de Campos (1929-2003): poeta, crítico
recebe vida, isto é, significado, graças à escolha de literário e tradutor brasileiro, autor de, entre outras obras, Xadrez de
estrelas: poesia 1949-1974 (São Paulo: Perspectiva, 1976); Signância:
uma palavra que a designa e à posição desta na
quase céu (São Paulo: Perspectiva, 1979); Galáxias (2. ed. São Paulo:
estrutura do poema”; Luiz Costa Lima35 falou sobre a
Ed. 34, 2003); e Crisantempo – no espaço curvo nasce um (São Paulo:
Perspectiva, 1998) (Nota da IHU On-Line)
31 38
Idem. Claro enigma. In: Op. cit., p. 252. (Nota da IHU On-Line) Affonso Romano de Sant’Anna (1937): poeta, jornalista brasileiro.
32
Idem. Claro enigma. In: Op. cit., p. 304-305. (Nota da IHU On- De sua obra, composta por cerca de 30 livros de ensaios, poesia e
Line) crônicas, destacamos Que fazer de Ezra Pound? (São Paulo: Imago,
33
Idem. Novos poemas. In: Op. cit., p. 242-243. (Nota da IHU On- 2003); Desconstruir Duchamo (Rio de Janeiro: Vieira & Leme, 2003); e
Line) A cegueira e o saber (Rio de Janeiro: Rocco, 2006). Sant’Anna esteve
34
Idem. Claro enigma. In: Op. cit., p. 301-304. (Nota da IHU On- presente na Unisinos, participando do Simpósio Internacional O Futuro
Line) da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Nesta ocasião, o
35
Luiz Costa Lima: crítico literário brasileiro , graduado em Direito jornalista foi entrevistado pela IHU On-Line, com o título “Pensar que o
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Letras artista é mais livre que um engenheiro é uma temeridade”. A entrevista
pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese Estruturalismo e pode ser conferida na edição 220, de 21-05-2007. Confira, ainda, nesta
teoria literária. Docente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro edição, uma crônica de Sant’Anna sobre Drummond.(Nota da IHU On-
(UERJ), é autor de inúmeros livros, como Lira e Antilira: Mário, Line)

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tempo. O mais ferrenho individualismo, explorado nos de nos surpreendermos atravessados simultaneamente
limites agudos da autoconsciência, é também a por essa inteligência e por essa paixão, num mesmo
consciência possível do mundo torto. O discurso lírico golpe, expressivo, é o selo da contundência dessa
drummondiano nos faz viver a experiência condutora de poesia”.
uma inteligência pujante, mas irônica, como os desvãos
de uma paixão desconsolada, mas irresistível. A sensação

Separar o Drummond social do formalista é um erro trágico


ENTREVISTA COM JOHN GLEDSON

Na opinião de John Gledson, docente no Departamento de Estudos


Hispânicos da Universidade de Liverpool, Inglaterra, não há erro mais trágico
do que separar o Drummond social do formalista. Para o pesquisador
britânico, “boa parte da sua grandeza reside nisso”. E acrescenta:
“Evidentemente há brigas de vez em quando entre a forma e o conteúdo, mas
não pode haver divórcio, senão a poesia perderia seu sentido – social e
formal”. Especialista em Machado de Assis e Drummond e fluente em
português, Gledson concedeu a entrevista a seguir por e-mail à IHU On-Line.

Gledson é graduado em inglês pela Loretto School e mestre em Literatura


Hispânica pela Universidade de St. Andrews, ambas instituições na Escócia.
Cursou, também mestrado e doutorado em Literatura Comparada pela
Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, com a dissertação The origins
of Galician medieval poetry and his historical e a tese The poetry and poetics of
Carlos Drummond de Andrade. É autor de, entre outros, Poesia e poética de
Carlos Drummond de Andrade (São Paulo: Duas Cidades, 1981); Machado de
Assis: ficção e História (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986); Brazil: culture and
identity (Liverpool: Institute of Latin American Studies, 1994); e Influências e
impasses: Drummond e alguns contemporâneos (São Paulo: Companhia das
Letras, 2003).

IHU On-Line - Quais foram as características que o assim como Drummond está para a poesia? Quais são os
atraíram na obra de Drummond para que ele fosse elementos que esses autores teriam em comum?
estudado? Você, que também escreve sobre Machado John Gledson - Acho que (entre outras coisas) foram a
de Assis, julga que ele está para a prosa brasileira rebeldia (“meu anarquismo é o melhor de mim”), junto
com seu oposto, uma consciência de que chega um

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 15


momento em que você tem que saber que a rebeldia tem é uma e outra coisa ao mesmo tempo, e o social vai de
seus limites – coisas já presentes nos artigos que mãos dadas com a atitude perante a linguagem; boa
escreveu nos anos 1920, e que pesquisei em detalhe: o parte da sua grandeza reside nisso. Evidentemente, há
ceticismo perante a religião e os dogmatismos políticos, brigas de vez em quando entre a forma e o conteúdo,
a honestidade, “este orgulho, esta cabeça baixa...”. mas não pode haver divórcio, senão a poesia perderia seu
Acho que desde sempre admirei a maneira de ele encarar sentido – social e formal. A divisão em “fases” é outro
a velhice e o envelhecimento também (já em lugar-comum, que não deixa de fazer sentido, mas que é
“Dentaduras duplas”39), a atitude perante o amor bastante perigoso também, porque Drummond não muda
40
presente em “Campo de flores” por exemplo – são por seguir qualquer moda – embora estivesse consciente
coisas que sempre lhe agradecerei. Não sei se Drummond dessas mudanças exteriores ao longo da vida dele –, mas
e Machado41 são espíritos gêmeos. Certamente, por necessidades internas, que estão aí para quem quiser
Drummond tinha um amor profundo pela obra de ler e entender. Já o disse Antonio Candido, em 1944:
Machado, e um conhecimento detalhado que poucos têm. “Carlos Drummond representa essa coisa invejável que é
Ambos eram, obviamente, céticos, um pouco arredios, o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento
isso num país que valoriza muito o calor humano. que significa riqueza progressiva (...)”.

IHU On-Line - Críticos dizem que há um Drummond IHU On-Line - Em Claro enigma, o poeta apresenta
social, próximo dos problemas da vida real, e um uma epígrafe de Paul Valéry42: “Les événements
Drummond formalista, mais voltado aos experimentos m’ennuient” (Os acontecimentos me entendiam). Há,
da linguagem. O senhor concorda com essa separação, nesse sentido, uma busca de Drummond pela “poesia
que costuma ser feita na obra do autor? Ela teria pura”? Que relação ele estabelece, em seus escritos,
passado pelo que chamamos de “fases” do escritor? com Valéry e Mallarmé43?
John Gledson - Acho que não há erro mais trágico do
que separar um do outro, porque justamente Drummond 42
Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry (1871-1945): filósofo,
escritor e poeta francês da escola simbolista. Seus escritos incluem
39
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. In: Poesia interesses em matemática, filosofia e música. Sua obra poética foi

completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 81-82. (Nota da IHU influenciada por Stéphane Mallarmé e influenciou Jean-Paul Sartre. foi

On-Line) discípulo de Stéphane Mallarmé. No Brasil, traduções de escritos


40
Idem. Claro enigma. In: Op. cit., p. 268-269. (Nota da IHU On- (poemas e reflexões) dele podem ser encontradas em Esboço para

Line) uma serpente (Trad. de Augusto de Campos. São Paulo: Brasiliense,


41
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908): escritor brasileiro, 1984). Também podem ser encontrados estudos dele em Introdução ao

considerado o pai do realismo no Brasil, escreveu obras importantes método de Leonardo da Vinci (São Paulo: Ed. 34), Variedades (São

como Memórias póstumas de Brás Cubas (Rio de Janeiro: Ediouro, Paulo: Iluminuras), Eupalinos ou o arquiteto (São Paulo: Ed. 34) e

1995), Dom Casmurro (Erechim: Edelbra, 1997), Quincas Borba (15. Degas dança desenho (São Paulo: Cosac & Naify). (Nota da IHU On-

ed. São Paulo: Ática, 1998) e vários livros de contos, entre eles a Line)
43
obra-prima O alienista (32. ed. São Paulo: Ática, 1999), que discute a Stéphane Mallarmé (1842-1898): poeta e crítico literário francês.
loucura. Também escreveu poesia e foi um ativo crítico literário, além Mallarmé se utilizava dos símbolos para expressar a verdade através da
de ser um dos criadores da crônica no país. Foi o fundador da Academia sugestão, mais que da narração. Sua poesia e sua prosa se caracterizam
Brasileira de Letras. Confira a entrevista especial realizada pela IHU pela musicalidade, a experimentação gramatical e um pensamento
On-Line com Maílde Trípoli, em 20-04-2007, no site refinado e repleto de alusões que pude resultar em um texto às vezes
www.unisinos.br/ihu, intitulada O negro na obra de Machado de obscuro. Seus poemas mais conhecidos são L’aprés-midi d’un faune
Assis. (Nota da IHU On-Line) (1876), Herodias (1869) e Un coup de dês (1897). Outras obras

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 16


John Gledson - Há um capítulo detalhado sobre isso no experimentos, citações a obras como as de poetas
meu livro Influências e impasses, que é difícil resumir franceses) a qualidade maior de Drummond?
em poucas palavras. Vou tentar. Desde sempre – desde os John Gledson - Concordo que é a mistura, ou melhor,
anos 1920, quando já lera a ambos –, Drummond manteve a tensão entre esses e outros tons de linguagem que é
uma relação de admiração e distância perante esses uma das grandes qualidades da poesia drummondiana.
poetas, e outros que podemos chamar de simbolistas, de Veja que insisto mais uma vez na tensão, e não na
44 45
uma geração anterior à dele – Rilke , Pessoa , por justaposição. Um dos grandes momentos dessa tensão é
exemplo. O Abbé Bremond46, propagandista da poesia justamente o poema onde fala da briga diária que o
pura nos anos 1920, foi bem menos admirado. Drummond poeta tem com a linguagem – o famoso “O lutador”48.
faz parte de uma grande geração, na poesia mundial, Nesse poema, do mesmo livro que o “coloquial” “José”49,
que se afasta desses pressupostos, embora mantendo há uma série de palavras “eruditas”, que o poeta parece
com eles profundas ligações, como não podia deixar de forçado a usar, ou que usa com – palavra-chave – ironia.
ser. Quem quiser entender melhor, pode ler Com a rima é a mesma coisa, como nos mostrou Hélcio
“Extraordinária conversa com uma senhora das minhas Martins, no magistral A rima na poesia de Carlos
47
relações”, de Contos de aprendiz ,uma exposição do Drummond de Andrade50, republicado há pouco com
assunto em diapasão cômico. outros ensaios dele.

IHU On-Line - Drummond ganha destaque popular por IHU On-Line - Na sua visão, como se mistura o poeta,
sua linguagem próxima do coloquial, como aquela que digamos, privado (da família, das memórias pessoais,
vemos em “No meio do caminho” e “José?”. No da cidade antiga) com o poeta público (cronista,
entanto, não residiria exatamente na mescla entre funcionário público)?
esse coloquial e um traço mais erudito (com John Gledson - Bem, desde o começo ele procurava
juntar as duas coisas – “Confidência do itabirano”51 não é
só um lamento para a infância perdida, é uma referência
importantes de Mallarmé são a antología Verso e prosa (1893) e o a uma cidade que, naquele momento, estava no centro
volume de ensaios em prosa Divagações (1897). Mallarmé destacou-se de uma polêmica sobre o uso do minério bruto em prol
por uma literatura,em que se mostra ao mesmo tempo lúcida e
da nação. Na primeira versão do poema há o verso: “esta
obscura. É, por isso, considerado um poeta difícil e hermético. Sobre
pedra de ferro, futuro aço do Brasil” – em algumas
Mallarmé, confira a entrevista A quase-arte de Mallarmé, concedida
por André Dick, doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, e revisor publicações posteriores, ele tirou estas últimas palavras,
da Revista IHU On-Line, que nesta edição contribui de forma especial talvez por não corresponder à situação contemporânea.
na elaboração das questões sobre Drummond. O material pode ser
acessado no site www.unisinos.br/ihu em 27-07-2007.(Nota da IHU On-
48
Line) Idem. José. In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
44
Rainer Maria Rilke (1875-1926): poeta alemão. (Nota da IHU On- 2002, p. 99-101. (Nota da IHU On-Line)
49
Line) Idem. Alguma poesia. In: Op. cit., p. 106-107. (Nota da IHU On-
45
Fernando Pessoa (1888-1935): escritor português, considerado um Line)
50
dos maiores poetas de língua portuguesa. (Nota da IHU On-Line) MARTINS, Hélcio. A rima na poesia de Carlos Drummond de
46
Abbé Bremond (1865-1933): crítico literário francês, filósofo Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. (Nota da IHU On-Line)
51
católico e modernista teológico. (Nota da IHU On-Line) ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentindo do mundo. In: Poesia
47
ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz. 39. ed. Rio completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 68. (Nota da IHU On-
de Janeiro: Record, 1998. (Nota da IHU On-Line) Line)

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Felizmente (na minha opinião) restituiu-as para a Poesia ocasião, que o inglês era “a língua mais encantatória
completa52 definitiva. Os poemas sobre Itabira para mim”, mas não resta dúvida que o francês era a
acompanham, e, no fundo, não desdizem da outra poesia língua estrangeira com se sentia mais à vontade, como
dele. aliás era natural para a sua geração. Para mim, o
fascinante é saber se, no afastamento de uma língua
IHU On-Line - A obra Lição de coisas pode ser vista poética “poética” para outra mais prosaica e terra-a-
como a mais experimental feita por Drummond, em terra, que ele e Bandeira foram os primeiros a operar,
razão de poemas como “Isto é aquilo”,53 “A bomba”54 houve uma influência da “nossa” tradição, que desde os
55
e “Amar-amaro” , ou esta é uma tendência a se ver românticos busca e usa “a selection of the language
como ápice da modernidade e das vanguardas uma really used by men”, nas famosas palavras de
determinada poética concretista? Wordsworth57. Otto Maria Carpeaux58 sugeriu uma
John Gledson - Confesso que sempre fiquei atônito evolução paralela ao grupo de Auden59 – acho instigante a
perante a tentativa dos concretistas de anexar Lição de idéia. Não esqueçamos que um grande amigo, Abgar
coisas, quando é tão óbvio que “Isto é aquilo”, Renault60, traduziu uma volume de Poetas ingleses de
sobretudo, é um reconhecimento e um distanciamento guerra.
dos princípios poéticos deles. As palavras, nesse poema,
têm mil maneiras de se ecoar, se juntar, se afastar, pelo IHU On-Line - O senhor nota a presença de poetas
som, pelo sentido, justamente como em poemas como estrangeiros na poesia de Drummond? De que modo e
“O lutador” ou “Procura da poesia”56. A visão que quais seriam alguns poemas em que ela se mostra?
Drummond tinha da linguagem nunca excluiu – o que é John Gledson - Aqui, devo remeter novamente a
um pouco constrangedor para muitas poéticas modernas – Influências de impasses, onde tratei da influência
a emoção. “A plástica é vã, se não comove”, diz num passageira de muitos poetas, ou de referências a eles, e
poema de Claro enigma, se não me engano. A poesia tratei detalhadamente da aproximação com Valéry, e,
também. muito mais, com o grande poeta franco-uruguaio Jules

57
IHU On-Line - Há um possível diálogo entre poetas de William Wordsworth (1770-1850): poeta inglês, considerado um
dos mais importantes do romantismo. Sua obra Baladas líricas (1798) é
língua inglesa com a obra de Drummond? Se existe, em
uma das mais importantes e influenciou de modo determinante a
quais autores?
paisagem literária do século XIX. (Nota da IHU On-Line)
John Gledson - Recentemente, na revista Entrelivros, 58
Otto Maria Carpeaux (1900-1978): crítico literário, nasceu em
dediquei um pequeno artigo a este assunto, que acho Viena, mas se radicou no Brasil. Autor de, entre outras obras, História
da literatura ocidental (Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959, 8 vol.) e
fascinante, se bem que problemático. Ele disse, em certa
Uma nova história da música (Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1968).
(Nota da IHU On-Line)
52 59
Idem. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. (Nota W. H. Auden (1907-1973): poeta e crítico inglês. Dele, publicou-se
da IHU On-Line) no Brasil Poemas (Trad. de João Moura Jr. e José Paulo Paes. 2. ed.
53
Idem. Lição de coisas. In: Op. cit., p. 500-502. (Nota da IHU On- São Paulo: Companhia das Letras, 2004). (Nota da IHU On-Line)
60
Line) Abgar Renault (1901-1995): professor, educador, político, poeta,
54
Ibidem, p. 495-499. (Nota da IHU On-Line) ensaísta e tradutor brasileiro. Fez parte da Academia Brasileira de
55
Ibidem, 476-477. (Nota da IHU On-Line) Letras. Publicou, entre outros, os livros Pássaro perdido (1947),
56
Idem. A rosa do povo. In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Sonetos antigos (1968), e A lápide sob a lua (1968). (Nota da IHU On-
Aguilar, 2002, p. 117-118. (Nota da IHU On-Line) Line)

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Supervielle. Realmente aconselho a leitura do capítulo pergunta continuam a ter sua validez. E os livros
que escrevi a esse respeito, porque creio que quem vendem, os leitores lêem, que é o que o poeta queria.
nunca desconfiou dessa influência/aproximação ficará
atônito, e mais do que isso, comovido. Se você compara
um poema como “Nuit en moi, nuit au dehors...” com
“Noturno à janela do apartamento”61, você vê, como em
relevo, as qualidades que juntam e separam os dois, e
que revelam suas respectivas grandezas. Devo meu amor
à poesia de Supervielle à revelação de Drummond. E não
é, como se tende a acreditar, nenhum poeta menor –
digam isso a Eliot62 e Rilke, dois dos seus admiradores.

IHU On-Line - O que faz a obra de Drummond, além


de sua evidente qualidade, ser tão moderna ainda
hoje, 105 anos depois de seu nascimento e 20 anos
depois de sua morte? Ele é muito estudado fora do
Brasil?
John Gledson - Só respondo pelos países de língua
inglesa, e posso dizer que ele é pouco mais do que
ignorado; só em departamentos de línguas hispânicas nas
universidades, onde sem dúvida é estudado. Existe uma
única boa antologia de sua poesia, americana, feita por
Thomas Colchie63, e incluindo traduções de Elizabeth
Bishop64. Contém pouco mais de 40 poemas – e é de
1986. Difícil responder à primeira parte da pergunta – as
qualidades que mencionei na resposta à primeira

61
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. In: Poesia
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 88-89. (Nota da IHU
On-Line)
62
Thomas Stearns Eliot (1888-1965): poeta modernista, dramaturgo
e crítico literário britânico-norte-americano. Em 1948, ganhou o Prêmio
Nobel de Literatura. (Nota da IHU On-Line)
63
Thomas Colchie: é um tradutor e um agente literário norte-
americano. (Nota da IHU On-Line)
64
Elizabeth Bishop (1911-1979): Poeta norte-americana, morou
durante um período de sua vida no Brasil. No Brasil, foi publicado de
sua autoria, entre outros livros, O iceberg imaginário e outros
poemas (Trad. de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001). (Nota da IHU On-Line)

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A obra poética de Drummond foi feita de viradas e
experimentação de novas formas
ENTREVISTA COM IUMNA MARIA SIMON

De acordo com Iumna Maria Simon, professora de Teoria Literária e


Literatura Comparada na Universidade de São Paulo (USP), “a modernidade de
Drummond não escamoteou os lados atrasados da sociedade brasileira, soube
tratá-los com imaginação e se relacionar criticamente com eles”. A afirmação
faz parte da entrevista concedida por Simon, por e-mail, à IHU On-Line.

Iumna é graduada em Letras e especialista em Teoria da Literatura pela


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). É doutora em
Literatura Brasileira pela UNESP com a tese A rosa do povo: uma poética do risco
e cursou pós-doutorado na Universidade de Yale, nos EUA. É autora de
Drummond: uma poética do risco (São Paulo: Ática, 1978); Poesia concreta (São
Paulo: Abril Cultural, 1982), com Vinícius Dantas; Território da tradução
(Campinas: IEL/FUNCAMP, 1984) e organizou a edição crítica das Poesias
completas de Alvares de Azevedo (Campinas e São Paulo: Unicamp e Imprensa
Oficial do Estado, 2002).

IHU On-Line - Drummond, em razão, sobretudo, de A possibilidades da linguagem poética até o limite de suas
rosa do povo, foi um poeta político e participante, com forças expressivas. “Consideração do poema”65 e
suas “líricas de guerra”, visando a uma “comunicação “Procura da poesia”66, os dois primeiros poemas, armam
afetiva” e uma “anti-poesia”. Isso, os termos da contradição que movimenta a energia
conseqüentemente, o afastaria de uma “poesia pura” criadora do livro: do compromisso com a matéria do
(na linha adotada por um Valéry)? presente ao compromisso com as palavras; do registro
Iumna Maria Simon – No curso da Segunda Guerra, em objetivo dos fatos ao recolhimento subjetivo; da
que aflora à consciência artística a necessidade de ampliação discursiva do verso à máxima voltagem lírica,
participação nos acontecimentos, Drummond não toma o num jogo extraordinário entre a expansão e a
partido fácil de escolher entre os dois pólos. Pelo condensação do discurso poético, entre a prosa e a
contrário: faz do seu engajamento uma tensão poesia, mas um jogo de contaminação mútua que
permanente entre puro e impuro, poético e antipoético, impregna a formalização interna dos poemas. Quer dizer,
entre centramento lírico e abertura do poema ao mundo.
São tensões que alimentam A rosa do povo, colocando 65
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In: Poesia

sob suspeita a viabilidade de uma ou outra forma de completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 115-116. (Nota da IHU
On-Line)
expressão. Dessa maneira, o poeta experimenta as 66
Ibidem, p. 117-118. (Nota da IHU On-Line)

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os pólos do poético e do antipoético são categorias Andrade ilustra esse aprendizado, tanto que a edição das
dinâmicas que se inter-relacionam de modo tal que um cartas de Mário de Andrade, organizada e anotada pelo
passa a ser condição de existência e validade do outro. próprio Drummond, recebeu o título A lição do amigo. O
Penso que as experiências mais ricas da poesia moderna primeiro modernismo foi a sua deseducação salvadora.
brasileira advêm dessa disposição desassombrada para
pensar o poético a partir da instigação viva do IHU On-Line – Como a família e o amor se mostram na
antipoético. Portanto, falar em “poesia pura” para A obra drummondiana? Tais elementos são sempre vistos
rosa do povo é voltar a um padrão anterior, que por um olhar melancólico, benjaminiano, ou há alegria
justamente havia sido criticado. nas lembranças que ela evoca?
Iumna Maria Simon - A pergunta que podemos fazer ao
IHU On-Line - Quais são as mudanças que se efetuam conjunto da obra é como um dos maiores escritores
do primeiro modernismo (de Mário e Oswald de modernos do século XX, que acompanhou e registrou os
Andrade e Manuel Bandeira) para o segundo (de Murilo acontecimentos nacionais e internacionais mais
Mendes e, sobretudo, Drummond)? Drummond marcantes de seu tempo, soube preservar suas relações
representa quais ganhos nessa passagem? familiares tradicionais e reverenciar, mesmo quando o
Iumna Maria Simon – Alguma poesia (1930), primeiro critica, o mundo tradicional do patriarcalismo brasileiro.
conjunto de poemas publicado por Drummond, tem sido É o passado que ainda vive subjetivamente no presente,
abordado como um livro de estréia marcado pelas invadindo ou embaçando o olhar que se dirige ao mundo,
propostas modernistas dos anos de 1920, graças não só o que tem uma força de revelação inegável para melhor
ao apego ao pitoresco local, ao humor, ao poema-piada, compreendermos o movimento modernista no Brasil. Ou,
como pela prática de um lirismo objetivo, à maneira de revirando a pergunta, como um poeta tão ligado ao seu
Oswald de Andrade. Estes são os procedimentos passado patriarcal pôde assumir posições socialistas
específicos do primeiro tempo do modernismo brasileiro, lúcidas e sempre atentas às disparidades da sociedade
os quais mais tarde o nosso poeta chamaria de brasileira? É o que já notou Antonio Candido, quando
“nativismo neo-realista”, numa crítica evidente às disse: “é sem dúvida curioso que o maior poeta social da
principais armas de choque daquele momento. No nossa literatura contemporânea seja, ao mesmo tempo,
67
famoso “No meio do caminho” , que fez tanto alarde na o grande cantor da família como grupo e tradição”.
época, ele revoluciona a piada injetando nela o foco Noutras palavras, a modernidade de Drummond não
existencial e o subjetivo, que especula sobre a vida e o escamoteou os lados atrasados da sociedade brasileira,
poema, sem perder o ânimo da provocação. Afinal, essa soube tratá-los com imaginação e se relacionar
é a dialética artística que move as renovações genuínas, criticamente com eles.
ou melhor, foi a experiência acumulada no curso dessa Não saberia dizer se Drummond escreveu realmente
vanguarda que possibilitou o aproveitamento e a algum poema de amor. Talvez tenha usado os temas
superação crítica das concepções estéticas iniciais para o amorosos antes para revelar a condição humana em sua
passo adiante dos grandes poetas brasileiros da década finitude e efemeridade. No início, nos anos 1920, o amor
de 1930. A correspondência de Drummond com Mário de é humor e clichê, os poemas que falam dele fazem graça
e piada para rir de seu lado convencional e burguês. A
67
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In: Poesia partir de Claro enigma, salvo engano, as passagens
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 16.

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amorosas se adensam e sofrem uma solene expansão miragens”. Numa notinha introdutória a este último, o
meditativa, surpreendendo a existência de amor em autor explica que nele reuniu crônicas publicadas em
situações menos prováveis: na velhice, na derrota, na vários jornais, crônicas que “transferem para o verso
fraqueza, na desilusão. Curiosamente, quase toda vez em comentários e divagações da prosa”. Como não se
que o amor aparece acentua-se o jogo supremo com as animava a chamá-las de poesia, e prosa deixaram de ser,
formas. “E já não sei se é jogo, ou se poesia” - como ele batizou-as de “versiprosa”. Basta este exemplo para
68
acaba a sua “Elegia” de Fazendeiro do ar . Amor é ilustrar como uma forma de expressão age sobre a outra,
pretexto para a variação de formas, fixas ou não, multiplificando os recursos de composição, intensificando
paráfrases de tópicas clássicas, revisitação do passado a mescla estilística, o cultivo da prosa no interior do
sob a forma de um balanço existencial ao mesmo tempo verso e, no caso de Boitempo, também abrindo a forma
amargo e gracioso. O tema amoroso presta-se como poética ao relato e à narrativa. A crítica a que você se
licença para retomar gêneros antiquados ou maneiras refere vê aí uma perda da tensão formal e do ângulo
69
esquecidas do Simbolismo para trás. Acho seus poemas trágico-problemático da poesia anterior, uma recaída no
eróticos muito fracos. Drummond jamais chegou ao prosaico e no jocoso. Que o tom, a dicção e a energia
70
erotismo de Manuel Bandeira e mesmo ao de João poética mudaram não há dúvida, mas toda a obra poética
Cabral, que escreveu um dos poemas mais eróticos da de Drummond não foi feita de viradas e experimentação
literatura brasileira, “Estudos para uma bailadora de novas formas? É bom lembrar que literatura e
andaluza”. jornalismo sempre foram atividades complementares na
vida de Drummond e formas de expressão indissociáveis
IHU On-Line - Quais são os livros que Drummond na mescla estilística de sua obra, em verso e prosa.
melhor emprega sua poética? Ele teria, com o tempo,
se transformado no que alguns críticos falam: num IHU On-Line – Em seu estudo Drummond: uma poética
“poeta cronista”? de risco, a senhora lembra, baseada em Mukarovsky71,
Iumna Maria Simon – É o que dizem, sobretudo a que o “estudo científico da literatura exige a
respeito dos três Boitempo e de Versiprosa, cujo consideração do meio social onde a obra teve origem
subtítulo é “Crônica da vida cotidiana e de algumas em relação ao qual ela funciona”. No estudo, ainda
lembra-se de considerações de, entre outros,
68 Adorno72. Como a relação entre o histórico e o social
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2002, p. 410-412. se mostraria na obra poética de Drummond?
69
Simbolismo: estilo literário, teatral e de artes plásticas surgido na
França, no final do século XIX, como oposição ao realismo e ao
71
naturalismo. Suas principais características são o subjetivismo, a Jan Mukarovsky (1891-1975): Lingüista tcheco. Analisou as funções

musicalidade e o transcendentalismo. (Nota da IHU On-Line) estéticas de obras de arte que, segundo ele, deveriam ser classificadas
70
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968): poeta, com base nos fenômenos sociais. O ponto central do embasamento

crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro. semiótico da estética de Mukarovsky é a substituição da idéia da beleza

Considera-se que Bandeira faça parte da geração de 22 da literatura pela idéia de função. Fazendo uso de sua dedução, em 1942,

moderna brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana desenvolveu a tipologia das funções, na qual faz menção clara ao

de Arte Moderna de 1922. Juntamente com escritores como João Cabral estruturalismo. (Nota da IHU On-Line)
72
de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre e José Condé, representa o Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): sociólogo, filósofo,
que há de melhor na produção literária do estado de Pernambuco. musicólogo e compositor, definiu o perfil do pensamento alemão das
(Nota da IHU On-Line) últimas décadas. Adorno ficou conhecido no mundo intelectual, em

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Iumna Maria Simon – É fácil tratar da relação entre o aquele verso de Drummond “É preciso ler Baudelaire”?
histórico e o social nos poemas de alto índice O poeta brasileiro tem um diálogo com o francês, na
participante de A rosa do povo. Mas como este não é um descrição dos movimentos urbanos, novas formações
livro de mão única, o que me interessou no passado foi de massas?
verificar a referida relação nos demais poemas do Iumna Maria Simon – Não acredito na aplicação direta
conjunto, sobretudo naqueles centrados na tônica da da análise de Benjamin à poesia moderna do século XX,
expressão individual, da memória, da condensação lírica, porque os problemas já são outros, o capitalismo
da metapoesia. Ao dar esse passo analítico, ainda avançou muito e o consumo se instalou em larga escala,
tateante na época, constatei que esses outros poemas mesmo que as metrópoles novamente tenham se tornado
(que, aliás, são a maioria do conjunto) só podem ser numa arena de violência e pobreza. O diálogo com
compreendidos se confrontados com o contexto Baudelaire interessou ao nosso poeta menos pelo lado
histórico-político em que se inscrevem e, por dos assuntos ou da referência intertextual do que pelo
conseguinte, no diálogo tenso e contraditório que tratamento estético da modernidade, por ser a fonte de
mantêm com os poemas de conteúdo participante. que deriva a intervenção da consciência crítica na poesia
Mesmo “Procura da Poesia”, em geral considerado como moderna. É inegável que Drummond encontrou aí o senso
um manifesto estético estranho ou até oposto ao agudo do presente como força constitutiva da
empenho de participação, ao debater a inutilidade dos experiência artística na modernidade. A escolha de um
temas e assuntos e firmar o compromisso do poeta com tema é devida à sua existência na realidade presente ou,
as palavras, quer testemunhar a passagem da palavra como diz Baudelaire, a atração de um escritor por seu
poética pela história. tema é a atração por uma ação, por um significado
autônomo que existe fora do reino da linguagem, ou
IHU On-Line - Como se poderia relacionar a multidão seja, uma atração pelo que não é arte. Claro que a
73
enfocada por Walter Benjamin na obra de abordagem que Benjamin faz do crescimento urbano-
74
Baudelaire na poesia de Drummond, também industrial e da multidão, da experiência do choque, da
lembrada em seu estudo? É certo, neste sentido, transformação da percepção e dos sentimentos são
importantes, porém decisivas são a perda da aura

todos os países, em especial pelo seu clássico Dialética do Iluminismo,


poética, a consciência da queda, a incorporação do
escrito junto com Max Horkheimer, primeiro diretor do Instituto de baixo, do grotesco, do monstruoso, dos fatos e
Pesquisa Social, que deu origem ao movimento de idéias em filosofia e circunstâncias históricos à linguagem elevada da poesia.
sociologia que conhecemos hoje como Escola de Frankfurt. (Nota da
E mais importante que tudo: o ódio à impotência de
IHU On-Line)
73 classe, a tortura da auto-análise e o reconhecimento da
Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão crítico das técnicas
de reprodução em massa da obra de arte. Foi refugiado judeu alemão e violência disseminada. São princípios ausentes no ideário
diante da perspectiva de ser capturado pelos nazistas, preferiu o político da esquerda da época que a inteligência
suicídio. Um dos principais pensadores da Escola de Frankfurt. (Nota da
drummondiana precisou buscar num escritor esteticista
IHU On-Line)
74
do século XIX. Penso que nesses aspectos resida a chave
Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867): poeta e teórico da arte
da interlocução, considerando-se o quanto Drummond
francês. É considerado um dos precursores do Simbolismo, embora
tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica atualizou Baudelaire e avançou soluções poéticas
também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX. capazes de apreender a contingência histórica da
(Nota da IHU On-Line)

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experiência brasileira noutro momento da modernização, “Procura da poesia”80, ou nos poemas dedicados a
como vemos, por exemplo, em “Nosso tempo”75. poetas, artistas, fotógrafos etc.? Suas crônicas fervilham
de análises, comentários críticos, juízos artísticos e,
76
IHU On-Line - João Alexandre Barbosa falava no particularmente em Confissões de Minas81 e Passeios
conhecimento poético de Drummond, que incluía todas na ilha82,são verdadeiros ensaios sobre poetas brasileiros
as esferas (cultural, social, política). Mas Drummond e estrangeiros, prosadores, questões de técnica e
também ficou conhecido, sobretudo pela famosa composição literária, sobre os impasses de sua própria
declaração de Mário Faustino77, por não se interessar poesia. Sem contar as cartas e as melhores entrevistas,
em discutir poesia. Isso seria verdade? Sua própria em que ele expressa seus pontos de vista sobre literatura
obra já não seria, inclusive, crítica de outras artes? e sobre os rumos da produção poética contemporânea.
Iumna Maria Simon – Drummond nunca foi Portanto, o simplismo juvenil de Faustino não faz
programático, no sentido desejado por Mário Faustino sentido.
78
que, como sabemos, agia como um Ezra Pound mirim.
Drummond praticou a crítica literária e artística e o
ensaísmo à sua maneira. Esses textos podem até hoje ser
lidos com vivo interesse. Além do que, como você notou,
sua obra poética é uma indagação permanente sobre a
poesia, o poema e a linguagem, sempre inserida no
quadro histórico em que o poeta viveu e a escreveu.
Quer melhor e mais avançada discussão desses temas do
que a travada entre “Consideração do poema”79 e

75
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. In: Poesia
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 125-130. (Nota da IHU
On-Line)
76
João Alexandre Barbosa (1937-2006): crítico brasileiro e ex-
professor da USP, é autor de obras como A metáfora crítica (São
Paulo: Perspectiva, 1974); A imitação da forma (São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1975); As ilusões da modernidade (São Paulo:
Perspectiva, 1986); Alguma crítica (São Paulo: Ateliê Editorial, 2002);
e Mistérios do dicionário (São Paulo: Ateliê Editorial, 2004). (Nota da
IHU On-Line)
77
Mário Faustino dos Santos e Silva (1930-1962): jornalista,
tradutor, crítico literário e poeta brasileiro. Sua primeira obra, de
1955, chama-se O homem e sua hora. (Nota da IHU On-Line)
78
Ezra Weston Loomis Pound (1885-1972): poeta, músico e crítico
americano que, junto com T. S. Eliot, foi uma das maiores figuras do
80
movimento modernista da poesia do início do século XX. Ele foi o motor Idem. A rosa do povo. In: Op. cit., p. 117-118. (Nota da IHU On-
de diversos movimentos modernistas, notadamente do Imagismo e do Line)
81
Vorticismo. (Nota da IHU On-Line) Idem. Confissões de Minas. Rio de Janeiro: Americ-Edit, 1944.
79
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. In: Poesia (Nota da IHU On-Line)
82
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 115-116. (Nota da IHU Idem. Passeios na ilha. 2. ed. Rio de Janeiro, 1975. (Nota da IHU
On-Line) On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 24


O poeta das sete faces
ENTREVISTA COM LUIZ COSTA LIMA

“O Drummond de Alguma poesia não é um poeta iniciante. Podemos


acrescentar que o primeiro poema de seu primeiro livro, o ‘Poema das sete
faces’, prenuncia o poeta das sete faces que ele será. Sua inquietação interna o
levará a tematizar outras faces distintas da primeira; elas serão preferidas ou
preteridas por outros tipos de leitor. Se assim será difícil encontrar um crítico
que aprove todo Drummond, sempre se encontrará um leitor que mais agrade
certa face sua, em detrimento dos poetas da ‘face’ correspondente. Isso o fará
o poeta brasileiro do século XX de maior grau de penetração”, afirmou Luiz
Costa Lima em entrevista exclusiva, por e-mail à IHU On-Line.

Costa Lima é graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco


(UFPE) e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese
Estruturalismo e teoria literária. Docente na PUC-Rio, é autor de inúmeros livros,
como Estruturalismo e teoria da literatura (Petrópolis: Vozes, 1973); A aguarrás do
tempo (Rio de Janeiro: Rocco, 1989); Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral (Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995); Terra ignota (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1997); Mímesis – desafio ao pensamento (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000); Mímesis e modernidade: formas das sombras (2. ed.
São Paulo: Graal, 2003); Redemunho do horror (Rio de Janeiro: Planeta, 2003); e
História. Ficção. Literatura (São Paulo: Companhia das Letras, 2006). Costa Lima
participou da edição 221 da revista IHU On-Line, sobre os 40 anos de Cem anos
de solidão, de Gabriel García Márquez, com o texto García Márquez: muito além
de Cem anos de solidão.

IHU On-Line - Drummond foi influência para muitos brasileiros, principalmente em relação aos primeiros
poetas, sobretudo João Cabral de Melo Neto83. Como modernistas (Oswald e Mário de Andrade e Manuel
se deu a relação de sua obra com a de outros poetas Bandeira)? Se ele acrescentou ou modificou caminhos,
quais seriam eles?
83
João Cabral de Melo Neto (1920-1999): poeta e diplomata Luiz Costa Lima - Não vou me deter na questão das
brasileiro. Pertencia a uma das mais tradicionais famílias do
relações de Drummond com os primeiros modernistas
Pernambuco, sendo irmão do historiador Evaldo Cabral de Mello e primo
do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre. É autor de, porque, sendo restrito o tempo para responder às
entre outros livros, Pedra do sono, O engenheiro, Morte e vida questões, não poderia reler a correspondência dos poetas
severina, Serial, Quaderna e Museu de tudo, que podem ser nem tampouco suas obras. Parto então de uma afirmação
encontrados em sua Obra completa (Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
apenas sensata: como Bandeira já tinha uma preparação
1994) (Nota da IHU On-Line)

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poética e uma produção pré-modernista, sua adesão ao Luiz Costa Lima - Euclides85, n’Os sertões, falava do
verso livre foi decisiva para os poetas mais jovens. sertão como “natureza torturada” e “sol escuro”.
Drummond, contudo, se distinguiria mesmo do primeiro Drummond nunca teve como objeto senão sua intimidade
Bandeira modernista pelo tom ácido, irônico, sem e não certa região ou paisagem. No entanto, as
concessões melódicas; digamos por sua poética de ponta expressões de Euclides podem nos servir de caminho para
afiada, despojada e sem concessões “literárias". Por isso, entender-se o que chamava “princípio corrosão” da
o Drummond de Alguma poesia não é um poeta iniciante. poesia drummondiana. A “natureza torturada” nele se
Podemos acrescentar que o primeiro poema de seu convertia em expressão de a vida como processo de
84
primeiro livro, o “Poema das sete faces” , prenuncia o desgaste; desgaste que afeta não só os seres como os
poeta das sete faces que ele será. Sua inquietação próprios retratos (de família). Sim, se eu fosse de novo
interna o levará a tematizar outras faces distintas da escrever sobre o poeta mineiro manteria esse conceito.
primeira; elas serão preferidas ou preteridas por outros Mas não a deriva que dele fazia, entre corrosão-
tipos de leitor. Se assim será difícil encontrar um crítico opacidade e corrosão-transparência. Como já escrevi no
que aprove todo Drummond, sempre se encontrará um prefácio à segunda edição do Lira e antilira (São Paulo:
leitor que mais agrade certa face sua, em detrimento dos Topbooks, 1995), aquela distinção era demasiado
poetas da “face” correspondente. Isso o fará o poeta ideológica, condizente apenas com o crítico iniciante que
brasileiro do século XX de maior grau de penetração. eu era ao escrever o Lira e antilira.

IHU On-Line - O senhor escreve, em Lira & antilira, IHU On-Line - O senhor, em A aguarrás do tempo,
que, em Drummond, “a viagem pela família, com a afirma que há uma passagem de Drummond para o
memória, é viagem pelo tempo, com a corrosão. A sublime em Claro enigma, em contraposição ao que
figura da morte que, por diversas maneiras se prolonga acontece, por exemplo, em A rosa do povo. Poderia
até os românticos, é substituída pela figura menos falar dessa questão do sublime na obra drummondiana,
ostensiva da traça que rói o universo”. O senhor tema incluído, aliás, em seus estudos sobre a mímesis?
poderia explicar melhor esse conceito de “corrosão” Luiz Costa Lima - A relação não é possível porque, em
na poesia de Drummond? Este elemento persiste na A aguarrás, empregava ‘sublime’ no sentido usual do
análise que o senhor faria hoje da poética de termo – temática e linguagem elevadas –, ao passo que,
Drummond? em minha teorização sobre a mímesis trato do sublime no
sentido kantiano – a experiência que põe em xeque a
capacidade sintetizadora da imaginação, isto é, que se
84
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In: Poesia
põe diante de situações perante as quais não se pode
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 5-6. (Nota da IHU On-
Line)
85
Euclides da Cunha (1866-1909): engenheiro, escritor e ensaísta
brasileiro Euclides Rodrigues da Cunha. Entre suas obras, além de Os
Sertões (1902), destaca-se Contrastes e confrontos (1907), Peru
versus Bolívia (1907), À margem da história (1909), a conferência
Castro Alves e seu tempo (1907), proferida no Centro Acadêmico XI de
Agosto (Faculdade de Direito), de São Paulo, e as obras póstumas
Canudos: diário de uma expedição (1939) e Caderneta de campo
(1975). (Nota da IHU On-Line)

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encontrar um sentido. O sublime presente no Claro aqueles limites é o primeiro, aquele que se mantém nos
enigma corresponde ao entendimento usual do termo e dois livros seus seguintes. Progressivamente, Drummond
não à situação-limite do sublime (Erhabene) kantiano. se aproxima da figura do poeta-poeta, que se configura
Talvez essa opção drummondiana resulte de que, entre plenamente em Claro enigma. Devo, contudo,
suas “sete faces”, uma correspondia a uma visão mais acrescentar: haver progressivamente passado à figura do
clássica do humano, não tendo lugar para a visão mais poeta-poeta não o torna menor. O Lição de coisas já
torturada, mais próxima da vida como absurdo, presente está longe daquela fusão com a prosa e é um de seus
no sublime, digamos, de Kafka86 ou de Paul Celan87. grandes livros. Talvez menos inovador, sim, mas, dentro
de seu padrão, de imensa qualidade.
88
IHU On-Line - O crítico Sérgio Buarque de Holanda
afirmava que um dos elementos característicos da IHU On-Line - Poderia falar sobre a separação que
poesia de Drummond é que ela acabava com os limites costuma ser feita em Drummond, aquela que se refere
entre poesia e prosa. É possível concordar com ele? à sua poesia social (A rosa do povo, Sentimento do
Por quê? mundo etc.) e à sua poesia mais hermética (Fazendeiro
Luiz Costa Lima - Antes de ser o historiador do ar, Lição de coisas, Claro enigma?). Você pensa
reconhecido que é, Sérgio Buarque foi dos melhores que este é um caminho produtivo para se analisar a
críticos que tivemos. O Drummond que rompe com obra drummondiana?
Luiz Costa Lima - Em um nível superficial, a distinção
86
Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco, de língua alemã. De suas
é inevitável. Em um nível propriamente analítico, não.
obras, destacamos: A metamorfose (1916), que narra o caso de um
Em Drummond, o poeta engajado, em geral, é bem
homem que acorda transformado num gigantesco inseto, e O processo
(1925), cujo enredo conta a história de um certo Josef K., julgado e menos produtivo que o que se declara hermético. Sei que
condenado por um crime que ele mesmo ignora. (Nota da IHU On-Line) a resposta teria de ser muito mais elaborada. Em sua
87
Paul Celan (1920-1970): poeta nascido em Czernowitz (Bucovina,
impossibilidade, apenas digo que a distinção que eu fazia
na Romênia), filho de pais judeus-alemães, que foram mortos pelos
inicialmente sobre as formas de corrosão deve ser
nazistas. Entre seus livros traduzidos para língua portuguesa, destacam-
se Hermetismo ehermenêutica – Poesia I (Trad. de Flávio R. Kothe. absolutamente deixada de lado. Um poeta não há de ser
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978); Hermetismo e hermenêutica julgado por seus temas, mas pelo grau de elaboração de
e filosofia – Poesia II (Trad. de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo
sua linguagem.
Brasileiro, 1985); Sete rosas mais tarde (Sel., trad. e introd. de João
Barrento e Y. K. Centeno. Lisboa: Edições Cotovia, 1993); e Cristal
(Trad. de Claudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras, 2000). Foi IHU On-Line - Qual é o choque que se dá da cidade de
também tradutor de poesia. Em 1970, acabou por se suicidar, atirando- Itabira, onde viveu sua juventude, para a cidade de Rio
se no Rio Sena, em Paris. (Nota da IHU On-Line)
de Janeiro, onde Drummond trabalhou a vida toda
88
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): historiador brasileiro,
como funcionário público?
também crítico literário e jornalista. Entre outros, escreveu Raízes do
Brasil, de 1936. Obteve notoriedade através do conceito de “homem Luiz Costa Lima - O poeta retraído e tímido que vem
cordial”, examinado nessa obra. A professora Dr.ª Eliane Fleck, do PPG de Itabira permanecerá assim na grande cidade. O Rio
em História da Unisinos, apresentou, no evento IHU Idéias, de 22-08-
poderá ter contribuído para sua visão mais complexa da
2002, o tema “O homem cordial: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
sociedade dos homens. Mas me parece que também teve
Holanda”, e no dia 8-05-2003, a professora apresentou essa mesma
obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, concedendo, nessa um papel negativo: suponho que por necessidade
oportunidade, uma entrevista à IHU On-Line, publicada na edição nº financeira, Drummond foi por muitos anos cronista de
58, de 5-05-2003. (Nota da IHU On-Line)

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jornal. Seu êxito, creio, prejudicou o grau de exigência qualidade poética. Paul Klee92 a tinha em grau extremo,
de sua poesia. Seus últimos livros, com a exceção mas não um Picasso93. Havemos de entender que o
notabílissima de As impurezas do branco (1973), se poeta/o artista pode ter dimensões intelectuais
põem no nível mais leve do leitor de crônicas. Sei que é diferentes. O decisivo, entretanto, não é a extensão
quase um tabu não se criticar nada de Drummond. O tabu dessa dimensão, mas a intensidade de sua produção
é absurdo quanto a seus livros de memórias. São específica. Sem essa distinção primária, haveríamos de
memórias próprias ao cronista, não ao grande poeta, que declarar que Hegel94 era um filósofo da arte medíocre,
ele foi quase sempre. pois os poemas que dele se conhecem são péssimos. Ou
que Friedrich Schlegel95 não foi o primeiro grande crítico
IHU On-Line - Afastado de discussões públicas sobre moderno porque escreveu romances sofríveis e seus
poesia, Drummond foi advertido, certa vez, por Mário poemas não fazem falta.
89
Faustino por não se interessar no desenvolvimento
da poesia no Brasil. Décio Pignatari90, por sua vez, IHU On-Line - Qual é a diferença que o senhor efetua
disse que ele era um intelectual apenas mediano, entre os objetivos da poesia de Drummond e os de
nunca tendo mostrado interesse maior pela discussão, Mallarmé? O poeta teria ficado, ao longo do tempo,
por exemplo, de outras artes. Isso é cabível? menos hermético e mais interessado pelos fatos do
Luiz Costa Lima - Sim e não. Sim, no sentido de que cotidiano, a julgar, por exemplo, pelo que dizia
Drummond, ao contrário de Cabral e de Haroldo de Antonio Candido, de que Boitempo (constituído por
Campos91, nunca desenvolveu uma dimensão crítica. Mas três livros) era uma espécie de autobiografia em verso?
essa dimensão é rara entre os poetas ou entre os artistas, Luiz Costa Lima - Não sou um adepto incondicional de
em geral. Valéry, Mallarmé e Eliot, por exemplo, a Mallarmé, embora reconheça o quanto a poesia
tinham, mas não um Rilke, sem que isso prejudique sua contemporânea de qualidade deve a ele – por sua
produção e suas intuições teóricas. Não creio que o

89 92
Mário Faustino (1930-1962): Poeta, crítico literário e tradutor, é Paul Klee (1879-1940): pintor alemão, nascido na Suíça, de sentido
autor de livros como O homem e sua hora e outros poemas (Org. abstrato. (Nota da IHU On-Line)
93
Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Companhia das Letras, 2002); De Pablo Picasso (1881-1973): pintor e escultor espanhol considerado
Anchieta aos concretos (Org. Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: um dos artistas mais famosos e versáteis do mundo. Criou milhares de
Companhia das Letras, 2003); e Arsenatos de poesia (Org. Maria trabalhos entre pinturas, esculturas e cerâmicas com diversos tipos de
Eugenia Boaventura. São Paulo: Companhia das Letras, 2003). (Nota da materiais. De suas obras, destacamos: Vaso sobre a mesa (1914) e
IHU On-Line) Guernica (1937). (Nota da IHU On-Line)
90 94
Décio Pignatari (1927): Poeta, prosador, ensaísta e tradutor. É um Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão idealista. Como
dos criadores da poesia concreta. Autor de, entre outros livros, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, tentou desenvolver um sistema
Contracomunicação (São Paulo: Perspectiva, 1973) e Poesia pois é filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições de seus
poesia (1950-2000) (São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Ed. principais predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do
Unicamp, 2004). (Nota da IHU On-Line) espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa continental no
91
Haroldo Eurico Browne de Campos (1929-2003): poeta, crítico séc. XX. Sobre Hegel, confira a edição especial nº 217 de 30-04-2007,
literário e tradutor brasileiro, autor de, entre outras obras, Xadrez de intitulada Fenomenologia do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich
estrelas: poesia 1949-1974 (São Paulo: Perspectiva, 1976); Signância: Hegel (1807-2007), em comemoração aos 200 anos de lançamento dessa
quase céu (São Paulo: Perspectiva, 1979); Galáxias (2. ed. São Paulo: obra.(Nota da IHU On-Line)
95
Ed. 34, 2003); e Crisantempo – no espaço curvo nasce um (São Paulo: Friedrich Schlegel (1772-1829): filósofo romântico da escola de
Perspectiva, 1998) (Nota da IHU On-Line) Iena. (Nota da IHU On-Line)

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problema com os últimos livros de Drummond esteja em hermético, nem hermetismo é sinônimo de qualidade.
que ele tenha se tornado mais interessado nos fatos do Talvez essa supervalorização seja uma reação à
cotidiano, mas sim na maneira como os apresenta. Como tendência mais comum de fazer com que a obra (poética,
já disse, adequada ao gosto menos exigente do leitor de crítica ou teórica) atenda ao gosto do mercado. Se
crônicas. Acrescento: parece-me haver, hoje em dia, nos estiver certo, o último Drummond cede a essa tentação.
círculos mais requintados, uma supervalorização do Mas, em resumo, isso pouco importa, dada a qualidade
hermético. Algo de qualidade não necessita ser de suas seis outras faces.

Um enigma não revelado


ENTREVISTA COM RONALD POLITO

Para o historiador, poeta, ensaísta e tradutor Ronald Polito, não caberia “arriscar o esboço desse eu
poético em termos, por assim dizer, existenciais. Suas grandes linhas de força, seus paroxismos, suas até
mesmo manias já foram e ainda serão esquadrinhados por diversos autores. Naturalmente, sem que o
enigma possa ser na íntegra revelado”. E completa: “Drummond é um poeta modernista, e é um poeta
moderno, e é um poeta clássico. Ele até disse: ‘agora serei eterno’. Essa idéia não e minha, está
presente na crítica”. A entrevista foi concedida por e-mail à IHU On-Line.

Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Polito é mestre em História
pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com a dissertação A persistência das idéias e das formas: um
estudo sobre a obra de Tomás Antônio Gonzaga. De sua produção bibliográfica sobre história, literatura e
política, citamos A História do Brasil (1980-1989): elementos para uma avaliação historiográfica (Organizado
com Carlos Fico. Ouro Preto: Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, 1992); Visitas pastorais de
Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825) (Belo Horizonte: Centro de Estudos Históricos e Culturais,
1998), com José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima); Navegações: comunicação, cultura e crise, de Aníbal Ford
(Traduzido com Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999); e Um coração maior que o mundo:
Tomás Antônio Gonzaga e o horizonte luso-colonial (São Paulo: Editora Globo, 2003). Preparou as seguintes
edições: A Conceição: o naufrágio do Marialva, de Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo: Edusp, 1995);
Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia, de José de Santa Rita Durão (São Paulo: Martins
Fontes, 2001); Escritos antiaverroístas (1309-1311), de Ramon Llull (conhecido também como Raimundo
Lúlio), traduzido com Brasília Bernardete Rosson e Sérgio Alcides (Porto Alegre: Edipucrs, 2001); O
desertor, de Manuel Inácio da Silva Alvarenga (Campinas: Editora da Unicamp, 2003); e Considerações
sobre a nostalgia, de Joaquim Manuel de Macedo (Campinas: Editora da Unicamp, 2004). Também é poeta,
autor de, entre outros, Solo (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996); De passagem (São Paulo: Nankin
Editorial, 2001); e Terminal (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006). Traduziu poetas como Joan Brossa, Sylvia
Plath e Pierre Reverdy (este com Júlio Castañon Guimarães). No Japão, na Tokyo University of Foreign
Studies, trabalhou no Departamento de Estudos Lusos-Brasileiros. A partir de sua experiência no Japão,
fez o livro de crônicas Cenas japonesas (São Paulo: Globo, 2005). Confira a entrevista.

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 29


IHU On-Line - Por que a obra de Drummond continua poesia de Drummond em poetas das gerações
tão central para se entender a poesia brasileira? posteriores. Portanto, não me parece desinteressante o
Ronald Polito – O problema de uma pergunta como fenômeno de tantos escritores que buscaram e buscam
esta é seu grau de generalidade. Ou então de aposta de tomar Drummond como modelo que merece ser seguido.
que seja possível armar uma equação tão mínima quanto Prefiro ressaltar que sua poética vem sendo capaz de se
de alta potência explicativa, coisa que só um especialista desdobrar criativamente nas gerações seguintes, e por
poderia arriscar. A “centralidade” que ela ocupa, sempre razões que uma pesquisa acurada talvez pudesse apontar
móvel e partilhada com alguns outros nomes que também com precisão. Diferentemente de outras poéticas talvez
podem ser instalados neste lugar, decorre, talvez, de mais próximas da imagem de um beco sem saída, a de
Drummond ter nos legado um conjunto extenso de Drummond é a de uma via de mão dupla. E aqui não
poemas muito bem realizados a partir de algumas das estou fazendo um juízo de valor sobre becos sem saída,
balizas da modernidade literária, horizonte ainda não que também podem interessar.
ultrapassado no âmbito da criação, quanto mais da
recepção. Por outro lado, há particularidades históricas IHU On-Line - É possível observar os acréscimos que
que talvez esclareçam sua presença tão forte. Ele foi de trouxe Drummond para a primeira geração de
tal modo entronizado no âmbito do ensino fundamental, modernistas, constituída por autores como Oswald e
por exemplo, pelo menos para minha geração e ainda a Mário de Andrade, Raul Bopp96 etc.? Drummond seria
seguinte, que passou a se constituir numa espécie de um poeta modernista ou um poeta moderno?
base para a formulação e o próprio entendimento dos Ronald Polito – Creio que sim, que Drummond foi um
sentimentos e experiências do homem contemporâneo, leitor cuidadoso da poesia modernista, talvez
incluindo aí suas mais diferentes circunstâncias: em seu particularmente da de Oswald de Andrade, ainda que
quarto, sua cidade (próxima ou distante), seu país, no fosse mais próximo de Mário. Drummond sabia trabalhar
mundo, no tempo presente etc. Essa espécie de macro e com vários campos de pesquisa poética presentes em
micro personagem, tão bem enredado em seus jogos de Mário e Oswald, mas com grande autonomia de vôo:
decisões literárias, teve um efeito avassalador nas criatividade, desenvoltura, imaginário próprio.
gerações seguintes. É todo um manancial de repente Drummond é um poeta modernista, e é um poeta
libertado, ou seja, são comportas enormes que foram moderno, e é um poeta clássico. Ele até disse: “agora
abertas. De passagem, é importante notar que outras serei eterno”. Essa idéia não e minha, está presente na
poéticas no Brasil do século XX foram ou seriam capazes crítica. E é dessa composição tão rica porque singular
de produzir efeitos similares, e diversas circunstâncias que seus poemas surgem. Portanto, com muitas
explicariam essa variedade de efeitos. No que diz especificações de uso que definem sua unicidade.
respeito a Drummond, acontece algo que eu creio ser Drummond é modernista em certos traços, tal como
curioso. Trata-se de uma matriz muito poderosa, moderno, mas de determinada vertente ou tendência da
multifacetada, riquíssima, que vai do trivial ao erudito, modernidade literária, e suas preferências do repertório
da forma livre às fixas, do cotidiano ao atemporal, e, ao
mesmo tempo, possui uma abertura enorme para o
outro, o leitor, que participa intensamente dos processos 96
Raul Bopp (1898-1984): poeta modernista e diplomata brasileiro.
do eu lírico. Talvez isso esclareça a força da presença da Com Tarsila do Amaral e Oswal de Andrade, amigos pessoais, participou
da Semana de Arte Moderna. (Nota da IHU On-Line)

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clássico também se deixam naturalmente notar ao longo IHU On-Line - Você concorda que a poesia
da obra. drummondiana tenha passado por fases? Quais
elementos, características, que a fazem tão coesa,
IHU On-Line - Que paralelo poderíamos traçar entre a passando do coloquialismo de Alguma poesia e Brejo
poesia de Drummond e a história do Brasil ou do das almas para as formas clássicas de Claro enigma e A
mundo, observando-se, sobretudo, os poemas de A vida passada a limpo?
rosa do povo? Ronald Polito – Já se tentou estabelecer alguns
Ronald Polito – Digamos, como hipótese, e para me padrões de corte para o corpus drummondiano, cada um
apropriar de uma palavra da pergunta, que a linha da deles a seu modo esclarecedor da obra. Grandes e poucos
vida de Drummond apenas tenha ficado realmente períodos cronológicos ou fases mais numerosas. Creio,
paralela à linha da história do Brasil e do mundo nos anos portanto, ser possível trabalhar com a idéia de que há
de A rosa do povo. E novamente, tal como antes, essas variações ou fases ao longo do percurso do autor e de
linhas tenham deixado de ficar exatamente paralelas. que elas podem ser denominadas e caracterizadas. Por
Mas uma análise minuciosa dos poemas do autor, do outro lado, há também essa coesão de que fala o
primeiro ao último, revelaria um sem-número de enunciado, algo que passa por cima de todos os livros
paralelismos entre a realização dos poemas e, digamos, conferindo uma complexa unidade à obra de Drummond.
fatos de âmbitos e esferas as mais diversas. A sintonia da E não vejo problemas em se operar com as duas idéias ao
poética de Drummond com a multiplicidade de mesmo tempo, tomando-se os devidos cuidados. Os
ocorrências temporais e temporalidades é o aspecto que elementos dessa coesão talvez sejam o que antes deixei
valeria a pena ser notado. Fatos, acontecimentos, indicado: um uso particular de traços modernos e
portanto, de vários níveis, se fazem presentes no texto clássicos ou a mistura de ambos. Em todas as estratégias,
poético, por vezes misturados, por vezes não, do está subentendido em eu poético que se organiza por
cotidiano mais comezinho ao bombástico acontecimento acúmulo e desdobramento, mesmo que por ruptura. Mas
mundial. A história pessoal, da rua, do bairro, da cidade, o que sobressai é a condensação. Isto pelo menos até a
do estado, do país, do continente, do mundo, da certa altura de sua produção poética, já que a poesia dos
natureza, tudo isso é mobilizado pelo eu poético, e com últimos anos e a póstuma, para mim, são menos vitais.
maestria. Em A rosa do povo, trata-se de um momento Creio que não caberia aqui arriscar o esboço desse eu
privilegiado em que o poeta encena desde o cotidiano e a poético em termos, por assim dizer, existenciais. Suas
memória “pessoal” até a própria possibilidade da poesia grandes linhas de força, seus paroxismos, suas até
e suas reações e condições de existência em relação aos mesmo manias já foram e ainda serão esquadrinhados
acontecimentos chocantes que todos viviam ou aos por diversos autores. Naturalmente, sem que o enigma
personagens marcantes do período. Mas nunca um “eu” possa ser na íntegra revelado.
reflexivo, talvez sorumbático, que organiza
poderosamente o feixe de referências, é perdido de IHU On-Line - Alguns poemas são bastante destacados
vista. Pelo contrário, o que se busca é amplificá-lo com pela fortuna crítica do poeta, como “A máquina do
sua força de revolta e indignação ética. mundo”, “E agora, José”, “Poema das sete faces”,
“Áporo”. Tem algum poema ou livro em especial que
destaca na obra dele?

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Ronald Polito – Parece-me que a pergunta é muito pessoal. creio mais numa coincidência de percursos em alguns
O livro de que mais gosto é Sentimento do mundo, pelo aspectos.
conjunto completo, pelo “intimismo”, pelo caráter reflexivo
dos poemas. Com relação aos melhores poemas, seriam IHU On-Line - Tendo dado aulas no Departamento de
muitos, alguns dos citados acima e muitos outros que Estudos Lusos-Brasileiro da Tokyo University of Foreign
considero estupendos. Mas vou chamar a atenção para um Studies, poderia afirmar se Drummond é um poeta lido
poema “periférico” porque não se faz presente entre os mesmo no exterior?
geralmente citados ou antologiados. Chama-se “Carta”97 e é Ronald Polito – Posso falar apenas do que percebi no
um soneto. Como há mais de um soneto com este título, Japão. Drummond não é lido. Nenhum autor brasileiro ou
transcrevo aqui o primeiro verso para quem quiser conferir: escritor em língua portuguesa é lido. Porque não é traduzido,
“Há muito tempo, sim, que não te escrevo”. Não apenas o salvo exceções que confirmam a regra. Há um poema ou
poema possui um número bem elevado de recursos dos mais outro de Drummond traduzido há tempos para o japonês e
variados tipos, como tem uma naturalidade e clareza de nada mais. Por acaso, nos últimos anos, tive um aluno
enunciação que o tornam impressionante. E todos esses brilhante, Nobuhiro Fukushima, que defendeu dissertação de
aspectos convivem em agudo contraste com a mensagem mestrado na TUFS sobre Drummond. E traduziu todo o livro
soturna que ele guarda. Sentimento do mundo. Ainda não conseguiu publicá-lo,
mesmo vindo se esforçando desde 2005. Ele se interessou
IHU On-Line - Como vê a relação de Drummond com a tanto por Drummond que, ainda no Japão (pois depois passou
crítica, como a de Mário Faustino? Mesmo introspectivo, o dois anos no Brasil), marcou uma aula especial comigo para
poeta reagiu à Geração de 45 com Claro enigma e às discutirmos só o poema “A máquina do mundo”, que ele
acusações de que não discutia poesia em Lição de coisas? havia lido por indicação minha com muita atenção. Posso
Ronald Polito – Ao que parece, Drummond teria reagido ainda falar alguma coisa sobre as aulas que ministrei para o
negativamente aos comentários de Mário Faustino, o que é último ano da graduação e para os mestrandos da TUFS, com
lamentável, mas compreensível. Lamentável porque os quais li alguns poemas de Drummond. Eu escolhi
Drummond praticamente não se manifestou de forma principalmente os poemas pequenos e “simples” dos
sistemática ao longo de sua vida sobre seus companheiros de primeiros livros. E, não tanto por acaso, trabalhei o poema
geração ou das gerações seguintes. Seria difícil que seu que citei acima, “Carta”, longamente, pois através dele os
silêncio fosse poupado ou não criticável. E também porque, alunos puderam voltar a tratar de muitos aspectos do soneto,
por outro lado, quando elegeu ou elogiou alguns poetas, que já haviam lido em outros autores. Creio que gostaram
parece que o fez movido em grande parte por razões bastante dos poemas de Drummond. Os poemas mais
extraliterárias, tornando ainda mais irregular a sua presença, “modernistas” eles imediatamente identificaram com as
digamos, na cena da crítica. Outra coisa que me parece bem propostas de Oswald, que eu já tinha discutido em aulas
diversa foi sua impressionante capacidade para incorporar ou anteriores. Poemas mais meditativos e complexos, como
dialogar em seus poemas com questões propostas pelas “José”, “Carta” ou “Canção amiga” (que também apresentei
gerações seguintes à sua. Com respeito à geração de 45, musicada por Milton Nascimento), também surtiram um forte
efeito.
97
ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. In: Poesia
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p. 290-291. (Nota da IHU On-
Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 32


“Uma pedra irrevogável no meio da poesia brasileira”
ENTREVISTA COM ANA LÚCIA LIBERATO TETTAMANZY

“Penso em Drummond atual - e moderno – pelo sentimento do mundo:


problematizou os impasses do século XX, assim como as fendas de sua
intimidade numa dinâmica em que dialogam a perspectiva minimalista,
doméstica e íntima e a perspectiva panorâmica, capaz de vôos largos sobre a
humano, ou mesmo sobre uma brasilidade difusa, mas sua – ‘nenhum Brasil
existe’ e ‘acaso existirão os brasileiros’? Nisso, ele teria ido além dos ismos e
do ‘sarampão’ de algumas leituras modernistas para instalar-se como pedra
irrevogável no meio do caminho da poesia brasileira.” A afirmação é de Ana
Lúcia Liberato Tettamanzy, docente do Instituto de Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A entrevista foi concedida por e-mail à
IHU On-Line.

Tettamanzy é graduada, mestre e doutora em Letras pela UFRGS com a tese


Metamorfoses no espelho: uma leitura dos vícios nacionais no conto machadiano. É
autora de inúmeros capítulos de livros e artigos especializados. Organizou a
obra Tantas histórias, tantas perguntas nas Literaturas de expressão portuguesa
(Porto Alegre: Evangraf, 2007).

IHU On-Line - A poesia de Drummond foi incorporada pelo vem. É como se, parafraseando Oswald, a poesia permanecesse
povo, como parecia ser seu objetivo, em obras como um biscoito fino que as massas não puderam ainda conhecer e
Sentimento do mundo e A rosa do povo? Ele continua a ser apreciar.
lido e entendido por meio de versos como “E agora, José”?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy – Sobretudo por sua IHU On-Line - Como se constitui, na poesia brasileira, a
perspectiva de poeta-cronista, Drummond foi capaz de tornar o ligação entre Drummond e João Cabral de Melo Neto, visto
cotidiano, os homens simples matéria de sua poesia – e também que este foi influenciado pelo primeiro?
de sua reflexão. A poesia requer leitores particulares, o que não Ana Lúcia Liberato Tettamanzy – A ligação mais óbvia me
é fácil num país com baixo letramento como o nosso. Ao mesmo parece ser a “lição de coisas”, o mundo dos objetos que falam e
tempo, somos um país de musicalidade, de forte presença da calam em Drummond e que se tornam matéria essencial da
oralidade – como não lembrar dos cantadores, repentistas, poética de João Cabral. Embora eles possam ser apontados
improvisadores que ainda persistem em espaços populares como como exemplos cabais das duas linhagens paralelas da poesia –
feiras e praças brasileiras? Assim, penso que alguns versos e Drummond responderia pela linhagem confessional, e Cabral
imagens de Drummond possam até ter sido incorporados por pela cerebral -, vejo também pontos de contato nos dois
uma faixa mais ampla, mas não diria que tenha se tornado poetas, sobretudo pelo descritivismo do olhar para as gentes e
popular, embora tenha a possibilidade para tanto – e muitos que objetos do mundo.
usam a expressão “E agora, José?” talvez ignorem de onde ela

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 33


IHU On-Line - Muitos afirmam que em Lição de coisas IHU On-Line - Drummond procura a poesia pura, como um
Drummond quis incorporar alguns elementos da poesia Valéry, ou sua poesia é impregnada de coloquialiade?
concreta, o que foi negado pelo próprio poeta. Como podem Ana Lúcia Liberato Tettamanzy – Novamente, tendo a
ser vistas as fases na obra desse poeta? identificar as duas presenças na obra de Drummond – um apelo
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy – Desde o primeiro poema do à comunicabilidade pelo eu lírico que passeia os olhos sobre o
primeiro livro, o poeta mineiro enuncia o enigma das sete faces: cotidiano, mas também uma imersão na lição que as coisas lhe
retoma temas e formas durante sua longa produção. Difícil oferecem – e, neste caso, manifesta-se o “claro enigma” do que
encaixar em estilos ou épocas uma poética que transita da parece permanecer como resíduo, como fissura ou travo na
tradição à modernidade – se enuncia o berço camoniano, dicção melancólica, por vezes metafísica, do poeta.
também aponta para o silêncio do áporo, para o silêncio de um
Mallarmé. Universal e regional, Drummond passeia pelas musas IHU On-Line - Por que Drummond seria um poeta moderno,
da poesia, as faz descer à terra ferrugenta para depois gozar seu independente de ter sido um modernista? E o que ele
corpo. Tudo lhe parece humana e poeticamente passível de acrescentou ao modernismo dos anos 1920?
linguagem. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy – Penso na crítica de José
Guilherme Merquior99, de Luiz Costa Lima e de Antonio Carlos
IHU On-Line - A poesia de Drummond é autobiográfica, ou Secchin100 como instigantes caminhos para a leitura da lírica
apenas em algumas obras, como Boitempo? O que a torna, brasileira, sobretudo na modernidade.
como alguns afirmam, histórica?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy – Notoriamente em IHU On-Line - Por que Drummond seria um poeta moderno,
Boitempo, Drummond revisita o turbulento passado familiar, independente de ter sido um modenista? E o que ele
mas também as raízes senhoriais e violentas do País, sendo-lhe acrescentou ao modernismo dos anos 1920?
difícil apagar as manchas que insistem em pesar sobre as Ana Lúcia Liberato Tettamanzy – Penso em Drummond atual
madeiras, sobre os móveis. Mas há, claro, espaço também para - e moderno – pelo sentimento do mundo: problematizou os
a doçura das compotas, dos pastos, numa singular contradição. impasses do século XX, assim como as fendas de sua intimidade
No entanto, já o segundo poema do livro inicial é chamado de numa dinâmica em que dialogam a perspectiva minimalista,
98
“Infância”, e ali, com precocidade, o poeta enuncia seu doméstica e íntima e a perspectiva panorâmica, capaz de vôos
destino: descobre a aventura da literatura – a sua era maior que largos sobre a humano, ou mesmo sobre uma brasilidade difusa,
a de Robinson Crusoé - em meio a distâncias e afetos familiares. mas sua – “nenhum Brasil existe” e “acaso existirão os
A poesia pode, sim, ser histórica – como diria Adorno em “Lírica brasileiros”? Nisso. ele teria ido além dos ismos e do “sarampão”
e sociedade”, mas o é pelas tensões que encerra em suas de algumas leituras modernistas para instalar-se como pedra
camadas menos visíveis, como uma corrente que força o choque irrevogável no meio do caminho da poesia brasileira.
de imagens e conceitos num estranhamento que é o da arte, da
filosofia – o homem perplexo, imerso na circunstância mas com 99
José Guilherme Merquior (1941-1991): crítico brasileiro, autor de
aspirações de ultrapassá-la. obras como Verso universo em Drummond (Rio de Janeiro: José
Olympio, 1975) e A astúcia da mimese (2. ed. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1996) (Nota da IHU On-Line)
100
Antonio Carlos Secchin (1952): poeta e crítico brasileiro, é
membro da Academia Brasileira de Letras. Autor de, entre outros,
98
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In: Poesia Poesia e desordem (Rio de Janeiro: Topbooks, 1996) (Nota da IHU On-
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 6. Line)

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Teologia Pública
O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng
ENTREVISTA COM MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA

“A intuição básica que Hans Küng101 defende, em vários livros, de que a solução para
os grandes problemas da humanidade implica um consenso ético mínimo é correta. Esta
intuição, aliás, não é só dele. Hoje, por exemplo, Jürgen Habermas102 e Karl-Otto Apel
defendem fortemente esta idéia”, afirma Manfredo de Oliveira. Mas, continua
Manfredo de Oliveira, “vejo um problema fundamental na proposta de Hans Küng”.
“Ele fundamenta sua proposta ética na religião. O problema está todo aqui”.

Hans Küng estará na Unisinos, no dia 22 de outubro, discutindo o Projeto de uma


ética global. Nos dias subseqüentes ele estará em Porto Alegre, Curitiba, Brasília, Rio
de Janeiro e Juiz de Fora. O Projeto de uma Ética Global será debatido nesta quinta-
feira, pelos professores Dr. Vicente de Paulo Barretto e Dr. Alfredo Culleton,
pesquisadores da Unisinos.

Manfredo Araújo de Oliveira, doutor em Filosofia, é professor titular da Universidade


Federal do Ceará, atuando principalmente no campo da Ética. Entre seus livros mais
recentes, citamos O Deus dos filósofos contemporâneos (Petrópolis: Vozes, 2003) e
Dialética hoje: lógica, metafísica e historicidade (São Paulo: Loyola, 2004).

A seguir, a entrevista que ele concedeu para a IHU On-Line, pessoalmente, durante o
Congresso da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião - SOTER,
realizado no mês de julho, em Belo Horizonte.

Confira a entrevista.

101
Hans Küng (1928): teólogo suíço, padre católico desde 1954. Foi professor na Universidade de Tübingen, onde também dirigiu o Instituto de
Pesquisa Ecumênica. Foi consultor teológico do Concílio Vaticano II. Destacou-se por ter questionado as doutrinas tradicionais e a infabilidade do Papa. O
Vaticano proibiu-o de atuar como teólogo em 1979. Nessa época, foi nomeado para a cadeira de Teologia Ecumênica. Atualmente, mantém boas relações
com a Igreja e é presidente da Fundação de Ética Global em Tübingen. Dedica-se ao estudo das grandes religiões, sendo autor de obras, como A Igreja
Católica, publicada pela editora Objetiva, e Religiões do mundo: em busca dos pontos comuns, pela editora Verus. Para conhecer sua trajetória
conferir Libertad conquistada. Memórias (Madrid: Trotta, 2004). De 21 a 26 de outubro de 2007 acontece o Ciclo de Conferências com Hans Küng -
Ciência e fé – por uma ética mundial, com a presença de Hans Küng, a ser realizado no campus da Unisinos e da UFPR, bem como no Goethe-Institut
Porto Alegre, na Universidade Católica de Brasília, na Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro e na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFMG.
Um dos objetivos do evento é difundir no Brasil a proposta e atuais resultados do “Projeto de ética mundial”. No dia 22 de outubro, às 20h, acontece a 1ª
Grande Conferência, intitulada “As religiões e a ética mundial”. (Nota da IHU On-Line)
102
No sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu) podem ser encontrados artigos que fazem referência ao debate de Jürgen Habermas com Bento XVI.
Habermas fala de uma nova aliança entre fé e razão, a qual é diferente da posição sugerida por Joseph Ratzinger. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 35


IHU On-Line - Qual é a sua apreciação, como filósofo, direitos, que envolve a questão da realização da ética.
do projeto de ética mundial de Hans Küng? Hans Küng deixa na penumbra este aspecto político, que
Manfredo de Oliveira - Em primeiro lugar, acho que é parece ser importantíssimo.
uma intuição fundamental que as questões que nos Porém, eu vejo um problema fundamental na proposta
desafiam hoje implicam questões éticas. Isto é uma de Hans Küng. Do ponto de vista da motivação, é claro
grande coisa, porque, vivendo num mundo em que a que a referência às religiões é importante, porque elas
racionalidade científica é hegemônica, as pessoas são ajudam os indivíduos não só com princípios, normativos,
levadas a pensar que todas as questões que marcam a abstratos, mas com comunidades religiosas que procuram
vida, em última instância, são questões técnicas e, realizar um estilo de vida. Mas, se a questão é política,
portanto, podem ser resolvidas a partir do saber não adianta só um estilo de vida baseado em indivíduos.
científico. Ele fundamenta sua proposta ética na religião. Ele diz
A intuição básica que Hans Küng defende em vários que só a religião é capaz de fundamentar o caráter
livros de que a solução para os grandes problemas da incondicional das normas éticas, uma vez que elas se
humanidade implica um consenso ético mínimo é referem ao incondicionado, ou seja, Deus. Portanto, fora
correta. Esta intuição, aliás, não é só dele. Hoje, por da religião, não há possibilidade de fundamentação do
exemplo, na Alemanha, Habermas e Apel defendem caráter incondicional dos princípios normativos.
fortemente esta idéia, inclusive dizendo que, por O problema está todo aqui. Deus não é demonstrável
exemplo, as éticas tradicionais são construídas a partir racionalmente, mas é fruto de uma opção livre nas
dos medos, tendo como referência as relações privadas e diversas comunidades religiosas. Portanto, Deus é puro
a modernidade, no máximo, os estados nacionais. objeto de crença. Se é um objeto de crença que
Quando o mundo se globalizou e a civilização tecnológica fundamenta o caráter incondicional da ética, quer dizer
se tornou planetária, todas estas éticas se tornaram que todas estas éticas são, no fundo, crenças. Ora, como
insuficientes. De modo que hoje nós precisaríamos, como é que, na base de puras crenças, vamos fundamentar
diz Apel, uma macroética de solidariedade. Isto é, as aquilo que deve enfrentar os grandes desafios do mundo
questões são globais. contemporâneo? Todo o problema, repito, está aqui.
Uma coisa importante, no caso de Apel, que não está Hans Küng é um não-cognitivista. Ele vê como algo
muito clara em Hans Küng, é que a ética em questão é definitivo o questionamento das provas da existência de
necessariamente política, no sentido grego de política. Deus no pensamento de Kant. Ele considera isto como
Ou seja, não diz respeito apenas e nem em primeiro resolvido, não colocando mais esta questão.
lugar a ações individuais, mas a princípios normativos Ora, se Deus é um puro objeto de crença, então ele
para instituições políticas de outra ordem, a nível global. jamais pode ser apresentado como algo que diz respeito
Ele sabe muito bem que os gregos diziam que a questão a todos os seres humanos, uma vez que as diversas
normativa tem sempre duas dimensões: a dimensão do crenças são relativas aos seus membros e são fruto
individuo, que eles mesmos chamavam de ética, e a estrito de uma opção inteiramente livre e que diz
dimensão política, que é aquela que tem princípios respeito àquele grupo. Tanto assim é que, no Brasil, por
normativos para as instituições. Dado que se compreende exemplo, quando questões éticas fundamentais estão em
que a vida humana é fundamental para as instituições e jogo, se diz que não haverá qualquer participação das
essas fecham ou abrem espaço para a realização de religiões, pois o estado é laico. Isso tem a ver com a

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 36


totalidade da população e não com um grupo específico. concretização do ser humano e compete à razão
Portanto, um grupo específico não pode pretender que descobrir o que é comum.
suas convicções sejam válidas para todos os demais. De fato, Hans Küng trata de buscar elementos que, de
certa forma, são compatíveis com diversas tradições
IHU On-Line - Isto significa que há um problema com religiosas. Mas, no fundo, ele quer dizer que as grandes
o conceito de religião adotado por Hans Küng? religiões, em última instância, conhecem princípios
Manfredo de Oliveira - Há um problema não só com o universalistas que são iguais para todas. Mas aí é que se
conceito de religião. O problema é também, e encontra o problema: de novo se passa para o nível
principalmente, com o conceito de ética. Esta termina filosófico, dos grandes princípios universais. Na medida
sendo, em última instância, algo estritamente ligado às em que os princípios são religiosos, eles não são mais
religiões, uma vez que o caráter incondicional dos apenas isto: eles têm, como você disse muito bem, uma
princípios normativos só pode ser demonstrado através interpretação a partir da experiência religiosa específica,
de uma referência a Deus. Como Deus não é um objeto e então já se perde de novo o princípio da
de uma demonstração racional, sendo fruto de uma pura universalidade. O problema é a indecisão entre um
crença, em última instância, todas as éticas são fruto de desafio universalista e uma proposta particularista, dado
uma pura crença. Não existiria uma ética propriamente que a fundamentação da ética deve ter um caráter
reacional. Toda ética seria religiosa. E, como a religião é incondicionado. Do contrário, se teria uma ética apenas
algo inteiramente livre, algo não válido universalmente, hipotética. Ora, uma ética apenas hipotética não vai
surge um conflito. Os problemas são universais e nós resolver os problemas, que são universais. E, como ele
precisamos uma ética mínima universalista. As religiões mesmo diz que para resolver todos os desafios atuais,
são todas, por natureza, particulares, mesmo que elas que hoje são universais, os principais desafios da
proponham uma salvação de caráter universal, como é o humanidade, que são a fome, a miséria, a destruição da
caso da religião cristã. Esta proposição é particular, de natureza, nós precisamos de princípios que não sejam
um grupo determinado, que acolheu esta proposta, que particularistas. Então, há uma contraposição entre o
vive uma determinada experiência religiosa e tira um desafio e a proposta. E a razão desta contraposição é
conteúdo ético desta experiência. porque ele não admite uma demonstração universal,
racional, de Deus. Deus é puramente objeto de crença e
IHU On-Line - Aqui há um problema de fundo: a é ele que garante o caráter incondicional da ética. As
particularidade das experiências religiosas. Dada esta duas coisas juntas resultam nisso.
particularidade, até que ponto é possível avançar
nesta questão? Em que medida, é possível falar de algo IHU On-Line - Pode-se dizer, então, que universais
comum entre as religiões? mesmo são os problemas, e isto ainda depende do
Manfredo de Oliveira - Não dá para avançar, porque contexto em que se manifestam e de como são
pressupõe, de fato, uma opção livre, não algo racional, percebidos em cada contexto?
portanto, de validade universal. A razão tem ligação com Manfredo de Oliveira - É claro. Eu estive, por
o que é comum. Os seres humanos são muito diferentes. exemplo, em certa ocasião num Congresso na Alemanha
Todas as culturas são formas específicas de que tratava da globalização e o grupo da África insistia o
tempo todo que isto não era problema deles, a tal ponto

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 37


que alguns participantes reagiram achando que era sistema econômico. Todas as grandes questões têm estas
burrice dos africanos. Mas não é problema de burrice, e implicações.
sim da forma como as coisas são sentidas. Eles diziam
que globalização é mais uma face do imperialismo dos IHU On-Line - E como filósofo, estudioso de ética,
países ricos, não queriam saber disso e seus problemas que caminhos o senhor vislumbra para a ética hoje?
eram outros: 30% da população marcada com a AIDS, Manfredo de Oliveira - Eu acho que estamos diante de
guerras tribais e outros problemas. Não estavam um problema muito difícil. Uma saída que eu considero
interessados em saber de globalização do mesmo modo relativamente fácil é fazer como Apel e Habermas
que os demais participantes do evento. Era uma espécie fazem. Eles dizem que nós temos que buscar estes
de desabafo, uma leitura de um fenômeno que era princípios, mas numa perspectiva puramente formal, sem
universal, mas feita a partir da própria situação cultural, conteúdos, porque esses vêm das situações históricas
específica. concretas. Então, nós não teríamos propriamente uma
ética que me diga o que é que eu devo fazer, mas apenas
IHU On-Line - Diante destas percepções contextuais, um procedimento de como eu devo discutir as questões
ou de perspectivas diferentes de problemas universais, éticas.
a busca de saída terá que passar pelo caminho do Mas isto não resolve o problema. Porque, a partir daí,
diálogo? nós só chegaremos a princípios abstratíssimos, que não
Manfredo de Oliveira - Não é possível mais fugir disso, ajudam nada na solução dos problemas concretos. Todo o
uma vez que, tendo se internacionalizado o sistema princípio ético precisa ser universal. Mas quais são estes
econômico e a civilização tecnológica, todos os princípios?
problemas dizem respeito a todos os povos. Não é Eu acho que é impossível minimamente demonstrar
possível mais buscar soluções parciais, como ainda se princípios que possam enfrentar as questões concretas
pensava no passado. Isto significa que esta é a questão sem enfrentar uma teoria do mundo, sem saber o que é o
universal. Claro que a ética sempre pretendeu ser mundo. Por exemplo, como vou respeitar a natureza se
universal, mas ela nunca teve antes esta universalidade sou incapaz de dizer o que é a natureza e em que sentido
quase que empírica. Agora, pela primeira vez, se pode a natureza pode ter direitos? Não é por um sentido
falar no sentido estrito da palavra, de uma história puramente formal que eu vou chegar a admitir, por
mundial, uma vez que, com a ligação entre todos os exemplo, que a natureza é portadora de direitos e que
povos, os acontecimentos se tornaram inclusive “on- não pode ser destruída sem mais.
line”. Nós sabemos das coisas que acontecem no mundo A meu ver, o problema se encontra, sobretudo, no
inteiro em questão de minutos ou até segundos. As pensamento europeu, ainda por uma resistência que vem
transações e ligações entre todas as coisas acontecem a desde Kant, com uma enorme barreira a qualquer
todo o momento, porque o sistema capitalista hoje ontologia. Quer dizer, não se faz mais uma teoria do
atingiu todo o planeta, já não havendo “grotões” que mundo. A filosofia virou apenas uma teoria do nosso
estão fora do sistema. O capitalismo toca a todos, conhecimento do mundo. Enquanto não superarmos a
embora diferenciadamente, dependendo dos contextos dicotomia entre ser humano e mundo, entre sujeito e
diferenciados, das culturas, dos continentes. E, se toca a objeto, entre teoria e realidade, que é a herança
todos, diz respeito a todos e isto não acontece apenas no deixada pela modernidade, ainda hegemônica no

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 38


pensamento atual, nós não teremos saídas. Teremos devem vir daí, da constituição das coisas.
saídas, no máximo, abstratíssimas, que não são capazes
de me dizer o que devo fazer frente às questões que IHU On-Line - Trata-se então de uma fidelidade ao
cada um deve enfrentar. A questão fundamental da real, mais do que teorias filosóficas?
filosofia hoje é voltar a ser uma teoria da realidade, é Manfredo de Oliveira - Exatamente. O real me
voltar a falar do real. A partir dos valores, em primeiro questiona. Enquanto a filosofia se perder numa teoria
lugar, ontológicos, eu posso me perguntar o que a incapaz de compreender e dizer o que é o mundo, ela
realidade pode me dizer enquanto exigência ética. Ou não vai saber dizer quais são os desafios que desta
seja, como aquilo que o Hans Jonas gostava tanto de constituição do mundo provêm para a nossa ação.
dizer, o mundo e a realidade são, para mim, uma
interpelação a respeitá-los. Enquanto não se chegar a Para saber mais sobre Hans Küng, confira no site do
compreender isto, não há saída. IHU (www.unisinos.br/ihu) as matérias com os seguintes
títulos:
IHU On-Line - Quando o senhor fala em “teoria do - Hans Küng: “Ética para uma atitude responsável”
mundo”, qual é o seu conceito de mundo? O senhor se - Jesus Cristo: A alegre e agradável mensagem de uma
refere ao mundo com seus problemas concretos, o nova liberdade. Entrevista especial com Hans Küng
mundo enquanto experimentado por nós? - Hans Küng: "Sem valores éticos, as democracias estão
Manfredo de Oliveira - É o mundo com seus problemas perdidas. Veja os EUA"
concretos, o mundo não só humano, mas o mundo - "Não haverá paz entre as nações, sem uma paz entre
natural. Eu devo ser capaz de fazer com que a filosofia as religiões". Uma entrevista com Hans Küng
não seja apenas uma teoria das condições de - "Fanáticos há em todas as religiões". Uma entrevista
possibilidade de conhecer o mundo, mas uma teoria do com Hans Küng
mundo, da natureza e da história humana. Sem isto eu
não teria critérios para uma ética. Critérios racionais

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 39


Memória
Ingmar Bergman: relações entre o real e o imaginário
Carlos D. Perez reexamina a obra de Bergman e a articula com seu texto
autobiográfico Lanterna mágica (1987), em busca de chaves para a complexa relação
entre a criação artística e a experiência pessoal do criador. O cineasta sueco Ingmar
Bergman, morreu no dia 30 de julho passado, aos 89 anos. Entre seus filmes estão
Fanny e Alexander, O sétimo selo e Gritos e sussurros, recentemente exibido e debatido
no Ciclo Saúde Coletiva e Cinema, promovido pelo IHU. Ele foi uma das personalidades
mais eminentes do panorama cinematográfico. Segue a íntegra do artigo do
psicanalista Carlos D. Perez, publicado no Página/12, 13-8-2007. A tradução é do Cepat.

“Como todos os diretores, ele também representava o cinema que lhe presentearam quando tinha dez anos,
papel de diretor”, opinou certa vez Ingmar Bergman a escreveu: “Esta maquininha mal cuidada foi meu
propósito de um de seus mestres, Alf Sjöberg: a primeiro equipamento de mágico. E ainda hoje digo, com
afirmação o incumbe. O diretor é concernido pela pesada pueril emoção, que sou realmente um mago, pois o
duplicidade de ser ao mesmo tempo aquele que cinematógrafo se baseia sobre o engano do olho humano.
estabelece uma cena e também um protagonista que Cheguei à conclusão de que, quando vejo um filme de
desempenha seu papel. A constante preocupação de uma hora de duração, durante vinte minutos estou
Bergman com esta cisão lhe possibilitou inflexões acerca sentado na mais completa escuridão: o vazio entre cada
do criador e da obra, principalmente em seu livro de tomada”.
memória Lanterna mágica (1987), testemunho de uma Quando em Quatro obras, referiu seu modo de fazer
vida de sucessos e fracassos, cuja referência privilegiada películas, afirmou: “Omitindo minhas próprias crenças e
é o diretor máximo da cena: Deus. dúvidas, que carecem de importância neste sentido,
Não é aplicável também a Deus a afirmação do começo opino que a arte perdeu seu impulso criador básico no
deste artigo?: “Como todos os diretores, ele também instante em que foi separada do culto religioso. Cortou-
representava o papel de diretor”. Por mais esquivo que se o cordão umbilical e agora vive sua própria vida
resulte, Deus leva a marca do representante obrigado estéril, procriando e prostituindo-se. Em tempos
pela cisão, que para ser tal expulsou de si o Demônio e passados, o artista permanecia na sombra, desconhecido,
teve que se desdobrar na tríade do catecismo para e sua obra era para a glória de Deus. Vivia e morria sem
constituir a família. “Obra para a glória de Deus”, disse ser mais ou menos importante que outros artesãos;
Bergman; a glória de Deus é essa obra, humana por “valores eternos”, “imortalidade” e “obra-prima” eram
excelência, que retorna ameaçadora ou apaziguante ao termos que não se aplicavam ao seu caso. A habilidade
sujeito para ocupar o lugar vazio do seu imaginário, para criar era um dom. Num mundo semelhante
como as sombras que se iluminam ao se projetar uma floresciam a segurança invulnerável e a humildade
película. Bergman sabia disso; recordando o projetor de natural.

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 40


Não obstante, a vida se emaranhava; em Lanterna horas. Os sinos da igreja de Hedvig Eleonora (a igreja
mágica, as cisões seguem rumos diversos. Às vezes onde oficiava o pai, pastor) tocavam a missa maior, a luz
resultam ostensíveis, outras não é possível diferenciar, vagava pela casa, ouvia-se música em alguma parte. Não
pois os planos se misturam; o ilusionista nos confunde, creio que sentisse dor, tampouco que pensasse, nem
confundem o ilusionista, sobretudo porque – não poderia sequer creio que me tenha acompanhado sem piedade
ser de outro modo – faz a obra tematizando o próprio toda a vida e que tantas vezes tenha roubado ou cindido
padecer. Planos que, ao se organizarem em torno do minhas mais profundas vivências”. É lamentável para ele
diretor e do protagonista da cena, produzem a cisão de que assim tenha acontecido, mas de valor inapreciável
profundas vivências. para a sua condição de artista, já que o impulsionou a
Num dos primeiros momentos significativos da gerar uma obra magna da cinematografia.
seqüência que Bergman dispõe no livro, relata o que Em O rosto, quatro viajantes, de carro – a trupe de
presenciou ao receber o anúncio da morte da sua mãe. Vogler e um mago ilusionista –, encontram em um bosque
Foi à casa dela, encontrou o corpo desfalecido e passou fechado um ator moribundo. Levam-no. Estendido no
um longo tempo sentado ao seu lado. Impressiona o carro, dialoga com eles acerca da verdade, da mentira,
despojo com que a descreve; mais do que um filho, há ali da ilusão, até que sua morte parece próxima. Vogler se
um diretor que organiza uma tomada; “Jazia em sua inclina sobre o ator, que, mantendo-se impassível (logo
cama, vestida com uma camisola de flanela branca e se saberá que sua agonia era fingida) disse: “Se deseja
103
uma mañanita azul. Tinha a cabeça ligeiramente registrar o momento exato, olhe com atenção, senhor.
voltada para um lado e os lábios entreabertos. Estava Terei meu rosto aberto à sua curiosidade. O que sinto?
pálida, com olheiras, e o cabelo, ainda escuro, bem Medo e bem-estar. Agora a morte chegou às minhas
penteado – não, seu cabelo já não era mais preto, mas mãos, meus braços, meus pés, minhas entranhas. Sobe,
grisalho, e nos últimos anos sempre o mantinha curto, entra. Observe-me detidamente. Agora se detém o
mas a imagem da lembrança me diz que seu cabelo era coração, agora se apaga a minha consciência. Não vejo
preto, talvez com alguns fios de cabelo branco. As mãos nem Deus nem anjos. Agora já não consigo ver vocês.
descansavam em seu peito. No dedo indicador da mão Estou morto. Vocês se perguntam. Eu vou dizê-lo. A
esquerda trazia um curativo adesivo”. Só a vacilação morte é...”.
entre o cabelo preto e o grisalho torna visível a sua Quando, na metade da película, este ator reaparece,
inquietude; todo o resto permanece estático, não na dirá de si: “Me tornei convincente. Nunca o fui como
rigidez do morto, mas com a quietude de um latido ator”. Enquanto Vogler, ao dispor os elementos para a
preso. sua próxima atuação, manipula uma lanterna mágica (um
A vacilação é inquietude diante de algo que escapa à projetor), o ator estende uma mão e intercepta o feixe
precisão do dado; o negro, o preto, e o grisalho de luz; ao se projetar a silhueta na tela, diz: “A sombra
produzem em claro-escuro o contraste de vida e morte. de uma sombra”. Se Deus é um diretor, há nele um
O resto são minúcias para o diretor. Expressa-o mediante ilusionista que pretende fazer entrar a morte no claro-
a negação de uma certeza: “Passei sentado ali várias escuro de uma cena. Bergman explicita esta metáfora em
O sétimo selo.
103
Mañanita: traduzido para o português, mañanita significa lenço ou Não entrarei na discussão, tão gratuita quanto de mau
xale. É um acessório feminino, que as mulheres usam para se aquecer. gosto, sobre se Bergman teria sido Bergman se não
(Nota da IHU On-Line)

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sofresse “essa deformação profissional que me emotivo com seus pais. Mas quando o autor se expressa,
acompanhou sem piedade toda a vida e que tantas vezes há uma transformação. Leiamos o final do roteiro de
roubou ou cindiu minhas vivências mais profundas”. Mas Quando o dia foge: “Um pouco mais distante na beira se
é possível reparar que, ao enunciá-lo deste modo, o havia sentado a minha mãe. Luzia um chamativo vestido
próprio Bergman fica desdobrado na pessoa – estranha de verão e um chapéu de asas enormes que fazia sombra
para os espectadores de sua obra – e o criador. Devemos ao seu rosto. Estava lendo um livro. Sara deixou cair
distinguir ao menos uma tríade: por um lado, o autor, em minha mão e assinalou para meus pais. Logo
relação com a obra, e por outro, a pessoa, cuja vida está desapareceu. Olhei demoradamente para um casal que
assinalada por certo padecimento. O sétimo selo, para estava do outro lado da água. Tratei de gritar-lhes algo,
mencionar uma das obras mais importantes, não é o mas nenhuma palavra saiu da minha boca. Então, meu
sintoma de um neurótico, mas a obra de um gênio. Que o pai ergueu a cabeça e me viu. Levantou a mão e me
senhor Bergman tenha sofrido isto ou aquilo não quer saudou, rindo. Minha mãe levantou os olhos do livro e ela
dizer que aconteça o mesmo com a obra, ainda que o também riu e saudou com a cabeça.
padecer a empape. Se o criador o fosse só por seu Nesse momento vi o velho iate com sua vela vermelha.
104
transtorno, os labirintos borgeanos seriam produções Deslizava suavemente movido pela leve brisa. Na proa
obsessivas, Os irmãos Karamazov seria devido à estava, de pé, o tio Aron, cantando alguma canção
105
epilepsia de Dostoiévski e Édipo Rei teria resultado da sentimental e vi meus irmãos e irmãs e a minha tia Sara,
excitação de Sófocles pela mãe e da rivalidade com o que levantou nos braços o filhinho de Sigbritt. Gritei-
pai. E não porque os criadores careçam de tais lhes, mas não me ouviram.
sofrimentos, pelo contrário; a questão radica em Sonhei que estava junto à água e gritava para a baía,
reconhecer aquilo que rotulamos de obsessivo, epiléptico mas a brisa quente de verão levava meus gritos sem
ou edípico, lançando mão de uma nosografia de bolso, deixá-los chegar ao destino. No entanto, não estava
como algo inerente à condição humana. afligido por isto; me senti, ao contrário, bastante
Já que começamos com a descrição que Bergman faz contente”.
da mãe, transcreverei um fragmento em que ela aparece Contrastemos isso com o livro de memórias, no qual
em uma de suas películas. É conhecido o conflito de menciona sua inclinação infantil pela mentira: “Creio
Bergman com seu pai, um clérigo severo, autoritário, de que fui (entre os irmãos) quem se deu melhor graças a
quem tanto deriva sua reverência como sua rebelião que me converti num mentiroso. Criei um personagem
frente a Deus. Se teve algo impedido na sua infância – que, exteriormente, tinha muito pouco a ver com o meu
para dizê-lo de modo mais simples –, foi o contato verdadeiro eu. Como não soube manter a separação
entre a minha pessoa real e a minha criação, os males
104 resultantes tiveram conseqüências na minha vida, até
Sobre Borges, confira a edição 193 da IHU On-Line, de 28-08-2006,
intitulada Jorge Luiz Borges. A virtude da ironia na sala de espera do bem avançado na idade adulta, e na minha criatividade.
mistério. (Nota da IHU On-Line) Em certas ocasiões tive que me consolar, dizendo-me
105
Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881): um dos maiores
que aquele que viveu no engano ama a verdade”. Viver o
escritores russos e tido como um dos fundadores do existencialismo. De
engano, amar a verdade: novo modo de formular a cisão;
sua vasta obra, destacamos Crime e castigo, O idiota, Os demônios e
Os irmãos Karamázov. A esse autor a IHU On-Line edição 195, de 11- vida como engano, vivência alienada, verdade na obra,
9-2006 dedicou a matéria de capa, intitulada Dostoiévski. Pelos fruto do amor.
subterrâneos do ser humano. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 42


“Criei um personagem que, exteriormente, tinha muito outra realidade. Não sei, agora me encontro
pouco a ver com meu verdadeiro eu”: mas, o eu mente profundamente submergido num vazio imóvel, sem dor e
por definição; o problema é instrumentar a cisão de sem sensações. Fecho os olhos, creio que fecho os olhos,
modo que o eu creia, ilusoriamente, saltar o abismo para intuo que há alguém na casa, abro os olhos: na
situar-se no outro lado, deixando um lugar vazio – que implacável luz, a pouco metros de mim, estou eu mesmo
acreditamos ser o eu do sujeito – para que ali nos contemplando-me. A vivência é concreta e incontestável.
precipitemos. Isto se chama mentira, segundo Bergman, Estou ali no tapete amarelo, contemplando-me a mim
uma estratégia às costas de que o sujeito roube de si “as que estou sentado na cadeira. Estou sentado na cadeira,
mais profundas vivências”. contemplando-me a mim que estou de pé no tapete
amarelo. O eu que está sentado na cadeira é o que agora
O mentiroso domina as reações. É o ponto final, não há regresso.
Bergman pagaria caro pela mentira, pois ele mesmo Ouço lamentar-me em voz alta e queixosa”.
caiu na sua armadilha. Em 1976, o fisco descobriu que O desdobramento espanta, apesar de presentificar a
havia evadido o pagamento de impostos: mais ainda, que mesma cisão que havia aparecido antes; o protagonista e
havia fraudado suas declarações. Num lamentável o observador dispõem a cena mas, atravessando seu
equívoco, prenderam-no. No tocante ao manejo limite, ambos caem desta vez dentro dela. Ocorre o
econômico, ele assinava o que seus advogados colocavam sinistro, no meio de um absoluto silêncio e luz
em suas mãos. Mas a acusação havia tocado um ponto intensíssima. A duplicação sem espelho tem a força, e
sensível: sem que estivesse consciente do que acontecia com ela o espanto, do real. Mudou o registro: do plano
em sua intimidade, Bergman desmoronou. O Estado imaginário, onde a imagem pressupõe o espelho, passou-
sueco havia descoberto seu segredo: era um mentiroso. A se ao concreto de uma presença não mediatizada. O
crise desencadeada colocou de relevo a eficácia espelho desaparece, mas o outro continua ali.
inconsciente da acusação. Sem sabê-lo, os fiscais do A luz que cega tem um lugar preponderante junto ao
Estado encarnaram a severa imago paterna e a técnica silêncio, produzindo a virada para uma claridade que, de
do desdobramento se voltou contra ele. Leiamos o que tão acentuada, também extravia. Retomarei agora a
disse a respeito: “Na segunda-feira pela manhã, citação de quando Bergman se encontrou diante do corpo
produziu-se o colapso. Estou no salão do andar superior jacente da mãe, pois ali aparece algo similar. Depois de
lendo um livro e escutando música. Ingrid foi ver o se ocupar minuciosamente com a posição e as roupas,
advogado. Não sinto nada, estou sereno ainda que algo vacilando só no claro-escuro de seu cabelo, acrescenta:
apagado pelos soníferos, que nunca utilizo na vida “Subitamente, uma intensa luz de primavera encheu a
normal. casa. O pequeno despertador fazia tic-tac
A música cessa e a fita pára com um pequeno ruído. apressadamente na mesa-de-cabeceira”. O impacto
Calma total. Os telhados do outro lado da rua estão estético da frase está no jogo de contrastes, onde se
brancos e a neve cai lentamente. Deixo de ler, de todas estende aquela vacilação entre o cabelo escuro-cano da
as maneiras me é difícil entender o que estou lendo. A mãe; agora é a luz intensa – mesa-de-cabeceira [aqui o
luz na sala não tem sombras e é intensa. Um relógio dá autor joga com as palavras, pois mesa-de-cabeceira, em
alguma hora. Talvez durma, talvez só tenha dado um espanhol é mesilla de noche], interrupção do tempo e
curto passo da realidade reconhecida pelos sentidos à tic-tac apressado, a morte, a primavera. Em definitiva: a

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luz intensa (vida)-escuridão fechada (morte), elementos vacilado entre o preto e o branco. Luz e sombras, vida e
que vimos reaparecer no momento da queda: música que morte, razão e loucura. Pouco depois conseguirá
pára, calma total, brancura dos telhados, luz intensa e organizar-se graças à cisão, desta vez dividindo o tempo,
sem sombras, vazio imóvel, apaziguamento que anuncia o que lhe tornará possível entretecer vida e cena: “Me
o acontecimento, desencadeado no meio de uma luz lanço ao ataque contra os demônios com um método que
implacável. Tão implacável quanto a acusação do fisco? funcionou bem em crise anteriores: divido o dia e a noite
Tanto quanto o pai? De tão intensa, cega, os olhos se em unidades de tempo determinadas e encho cada uma
fecham, se abrem e chega o ponto final, sem volta. delas com uma atividade ou um momento de descanso
Como o da mãe ao morrer? Perguntas que deixarei em estabelecidos de antemão. Só cumprindo
suspenso para captar a certeza do instante fatal. A cena implacavelmente meu programa, dia e noite, posso
imaginária se fecha, se apaga, e emerge, ofuscante, a defender meu cérebro de dores tão violentas que chegam
luz sobrenatural. a ser interessantes. Em poucas palavras, recobro o
Internaram-no em um sanatório psiquiátrico e pouco a costume de planificar minuciosamente minha vida e
pouco foi se restabelecendo, ainda que a duplicação se colocá-la em cena”. Esta divisão tem por objeto
mantivesse: “Um dia de final de fevereiro me encontro combater os demônios, os deuses caídos da mão de Deus.
numa casa cômoda e silenciosa do hospital de Sophia. A Lembra a fórmula de Borges: “A eternidade, cuja
janela dá ao jardim. Posso ver a casa reitoral amarela, a despedaçada cópia é o tempo”, devedora de outra, de
casa da minha infância, ali no alto da colina. Cada manhã Platão, para quem o tempo é “a imagem móvel da
passeio uma hora pelo parque. Ao meu lado vai a sombra eternidade”. A cena é um recorte do imutável.
de um menino de oito anos; é ao mesmo tempo Tudo isto realça, de modo tão dramático quanto
estimulante e arrepiante”. eloqüente, o desdobramento entre o olhar carregado de
O contraste se acentua: numa luz intensíssima se vê a luz, que põe à luz a miséria humana, e o protagonista da
si mesmo e alucina, numa sombra o acompanha a visão cena onde transcorre a trama. Importa o método pelo
de um menino, e oscila entre a fascinação e o horror. qual essa clarividência se torna lugar ocupado pelo
Permanece o amarelo, e agora constatamos sua diretor da cena, cindindo o autor. Tenhamos em conta
procedência: o amarelo da casa da infância se havia que lemos o relato entregue pelo diretor, que não vimos
transformado, naquele terrível momento, na cor do a sua loucura mas a sua obra, que, por mais
tapete, testemunho mudo situado no meio dos dois autobiográfica que possa parecer, é um livro escrito pelo
Bergman. Antes, aludindo ao cabelo da mãe morta, havia autor Ingmar Bergman.

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Filme da Semana
NESTA SEMANA APRESENTAMOS O FILME: A FOST SAU N-A FOST?, DE CORNELIU PORUMBOIU.
OS FILMES COMENTADOS NESSA EDIÇÃO FORAM VISTOS POR ALGUM/A COLEGA DO IHU.

A leste de Bucareste, de Corneliu Porumboiu


Ficha técnica
Nome: A leste de Bucareste
Nome original: A fost sau n-a fost?/12:08 East of Bucharest
Cor filmagem: Colorida
Origem: Romênia
Ano produção: 2006
Gênero: Comédia
Duração: 89 min
Classificação: livre
Direção: Corneliu Porumboiu
Elenco: Ion Sapdaru, Teo Corban, Mircea Andreescu
Sinopse: Dezesseis anos após a queda do ditador Nicolau Ceausescu, na Romênia, um apresentador de TV resolve fazer
um debate em seu programa. Afinal, houve ou não houve uma revolução para derrubar Ceausescu? Seus convidados dão o
cano e ele improvisa, chamando para debater um professor de História alcoólatra e um velhinho aposentado. No meio do
programa, a conversa toma um rumo inesperado.

Reproduzimos a seguir, o comentário de Neusa Barbosa, publicado na página www.cineweb.com.br, 22/03/2007:

Esta comédia romena venceu o prêmio Caméra D’Or, um velhinho aposentado, Piscoci (Mircea Andreescu),
destinado ao melhor primeiro filme do Festival de cuja maior preocupação é vestir-se de Papai Noel a cada
Cannes, em sua edição de 2006. Usando a auto-ironia Natal. O apresentador prepara um programa sobre o
como pedra de toque, o jovem diretor e roteirista citado aniversário e convida algumas pessoas para o
Corneliu Porumboiu desenvolve seu enredo a partir de debate. Na hora H, ninguém pode vir e ele improvisa com
um fato histórico fundamental na história de seu país: o o professor e o aposentado como convidados.
16º. aniversário da queda do dirigente comunista Nicolau O programa caberia muito bem como um episódio do
Ceausescu, ocorrida em 22 de dezembro de 1989. nosso “Casseta & Planeta”, a começar pela total
Desarmando qualquer solenidade, o cineasta delineia incapacidade do câmera de manter os convidados e o
três personagens principais: um apresentador de TV apresentador em foco – o que se torna uma piada à parte
vaidoso e mulherengo, Jderescu (Ion Sapdaru), um dentro do filme, que tem como subtema a situação de
professor de História alcoólatra, Manescu (Teo Corban), e penúria, abandono e incompetência da Romênia

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capitalista. Por ali, ao que parece, a queda do “Mais uma invenção de festivais e de críticos que
comunismo não rendeu o progresso esperado, o que é adoram obscuridades!”, podem exclamar alguns. O fato é
visível na aparência desolada das ruas e conjuntos que, depois de orientais, iranianos e argentinos, o
habitacionais em que moram os personagens e na cinema romeno tornou-se a mais recente coqueluche em
maneira precária com que se tocam todos os aspectos da festivais e revistas especializadas. Em parte, pode-se
vida cotidiana. creditar tanta atenção à entrada recente do país na
No debate, porém, o grande assunto é o heroísmo – ou União Européia.” O comentário é de Cássio Starling
a falta dele. Jderescu tenta saber de seus entrevistados, Carlos e publicado no jornal Folha de S. Paulo, 23-03-
afinal, se houve ou não houve uma revolução em 1989. O 2007.
povo foi às ruas em manifestações de protesto, causando Segundo ele, “a chegada ao circuito comercial
a queda do ditador, ou só saiu de casa para comemorar brasileiro de A leste de Bucareste permite, contudo,
depois de saber que ele tinha fugido do palácio em seu outra aproximação de uma produção que, apesar de
helicóptero? O professor, particularmente, tenta limitada em quantidade, parece se pautar por ideais de
defender a tese revolucionária, colocando a si mesmo provocação e de ruptura com códigos dominantes. Um
entre os que foram às ruas exigir a mudança do regime. tom de crônica e uma estética do improviso, um humor
Não demora muito, um telespectador telefona, niilista e uma mirada constante no espelho em busca de
desmontando a versão de Manescu e causando um respostas à questão "quem somos?" reaparecem neste
tremendo desconforto. O velhinho, que não tem muito a primeiro longa de Corneliu Porumboiu”.
comentar sobre nada, fica entediado com a conversa e O filme de Porumboiu alcança – escreve o crítico de
resolve construir barquinhos de papel diante da câmera cinema -, além da dimensão histórico-política da atuação
vacilante. dos romenos, o status da verdade. Diante de imagens
A memória é uma coisa capciosa e o mesmo acontece como as gravadas pela TV, a pergunta que se impõe é
com a visão que um povo tem de si mesmo. Sem querer “existem fatos ou apenas versões?”. “Aconteceu ou
montar uma tese, A leste de Bucareste põe o dedo na não?”, questiona o título do filme no original (“A fost sau
que deve ser uma ferida séria na auto-imagem dos n-a fost?”).
romenos – mas de maneira leve e irônica. O resultado é Conduzido por um humor corrosivo que bebe
nada menos do que brilhante, apoiado num sólido roteiro diretamente na fonte do absurdo de Eugene Ionesco, A
e no desempenho de três atores realmente afinados”. leste de Bucareste reconduz o cinema a uma salutar
margem, de onde se pode se enxergar com clareza como
Humor corrosivo domina filme romeno se destroem e constroem mitos.

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Destaques On-Line
DESTAQUES DAS NOTÍCIAS DO DIA DO SÍTIO DO IHU

Essa editoria veicula notícias e entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

ENTREVISTAS ESPECIAIS FEITAS PELA IHU ON-LINE DISPONÍVEIS NAS NOTÍCIAS DO DIA DO SÍTIO DO IHU (WWW.UNISINOS.BR/IHU) DE 13-
08-2007 A 18-08-2007

A Vale do Rio Doce e o neoliberalismo no Brasil A prática do estágio no Brasil


Ivo Lesbaupin Manuela D'Ávila
Confira nas Notícias do Dia 13-08-2007 Confira nas Notícias do Dia 16-08-2007
O sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio A deputada federal, Manuela D’Ávila acredita que o
de Janeiro (UFRJ) Ivo Lesbaupin critica o neoliberalismo, projeto que visa regulamentar os estágios no Brasil, em
a privatização da Vale do Rio Doce e apóia o plebiscito dois meses, deverá estar valendo como lei. Ela afirma
pela reestatização da empresa. que é necessário aprofundar o vínculo entre a
universidade e o setor produtivo do País.
Pensando o lesbianismo feminista
Rosa Inés Curiel Pichardo (Ochy) O ser humano e a Terra. Uma relação insustentável
Confira nas Notícias do Dia 14-08-2007 José Marengo
Na opinião da ativista feminista Ochy Curiel, o Confira nas Notícias do Dia 17-08-2007,
lebianismo é muito mais que uma prática sexual ou uma Para o professor e pesquisador do Inpe José Marengo,
identidade, é uma posição política. Ela afirma que a os furacões, a seca e os incêndios florestais são prova de
heterossexualidade como norma obrigatória diminui a que as temperaturas irão subir. Para ele, a forma como
autonomia das mulheres, isto é, age como um sistema se tem tratado o planeta, é insustentável.
político que implica na exploração das mulheres.
A revolta dos posseiros. 50 anos depois
Betinho: do homem solidário ao homem contraditório Iria Zanoni Gomes
Carla Rodrigues Confira nas Notícias do Dia 18-08-2007
Confira nas Notícias do Dia 15-08-2007 A socióloga e professora Iria Zanoni Gomes conheceu
Para Carla Rodrigues, jornalista e autora da biografia de perto a Revolta dos Posseiros, que ocorreu no Paraná,
Betinho – sertanejo, mineiro, brasileiro (Ed. Planeta, onde ela viveu. Iria conta que o movimento dos Posseiros
2007), Betinho foi um ser humano contraditório e lutava contra as companhias de terra que se instalaram
marcado por uma “profunda necessidade de dar sentido à na região na década de 1950. Ela ressalta que este não
própria vida”. foi um movimento armado, já que os integrantes não
utilizavam armas, e sim enxadas, foice, instrumentos de
trabalho.

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ENTREVISTAS E ARTIGOS QUE FORAM PUBLICADOS NAS NOTÍCIAS DO DIA DO SÍTIO DO IHU (WWW.UNISINOS.BR/IHU)

'A cristandade medieval dá lugar aos Estados Confira nas Notícias do Dia 14-08-2007
confessionais' Autor do projeto de lei 534/07, que obrigava os
Olivier Christin comerciantes paulistas a substituir as sacolas plásticas
Confira nas Notícias do Dia 13-08-2007 por sacolas plásticas oxibiodegradáveis, o deputado
De acordo com o professor e diretor de estudos na Sebastião Almeida (PT-SP) afirma que o composto
EPHE Olivier Christin, a cristandade, como princípio da oxibiodegradável poderá acelerar a decomposição do
organização política está dando lugar aos Estados. plástico em até cem vezes.
Segundo ele, as guerras e as “pazes” de religiões são
responsáveis por condenar a idéia de cristandade. A A ‘biopolítica’ e os corpos na sociedade
entrevista foi concedida ao Le Monde, em 3-08-2007. contemporânea
Mario Goldenberg
'O valor do amanhã'. Giannetti na Terra Prometida Confira nas Notícias do Dia 14-08-2007
Marcos Nobre O psicanalista da Escola de Orientação Lacaniana e
Confira nas Notícias do Dia 14-08-2007 professor da Universidade de Buenos Aires Mario
O professor de filosofia política da Unicamp e professor Goldenberg afirma que a segurança, atualmente, tem
do Cebrap Marcos Nobre comenta o programa “O valor do algumas características da biopolítica. Segundo ele, ao
amanhã”, de Eduardo Giannetti da Fonseca. Segundo ele, preservar a segurança, se faz, em muitos casos, uso da
o programa transmite uma impressão enganosa. O artigo violência sobre os corpos. O artigo foi publicado no
foi publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 14-08- Página/12, em 28-07-2007.
2007.
A bomba e o banheiro
Que se vai fazer com os sacos plásticos? José Luís Fiori
Washington Novaes Confira nas Notícias do Dia 15-08-2007
Confira nas Notícias do Dia 14-08-2007 Em artigo publicado no jornal Valor, no dia 18-08-
O jornalista Washington Novaes, em artigo publicado 2007, o professor do Instituto de Economia da UFRJ, José
no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 10-08-2007, Luís Fiori diz que os governos e economistas devem
comenta o impasse sobre a utilização de plásticos, no prestar atenção nos desdobramentos geopolíticos da
Brasil. Ele comenta a possível utilização de sacolas conjuntura atual.
plásticas oxibiodegradáveis, que aceleram a
decomposição, e a troca de sacolas plásticas por sacolas A CUT em Brasília. Uma pauta tímida, conservadora e
de pano, atitude que ocorre em algumas regiões dos corporativista
Estados Unidos, e recentemente, implantado em Cesar Sanson
Lajeado, RS. Confira nas Notícias do Dia 15-08-2007
Na opinião do pesquisador do Centro de Pesquisa e
Em defesa do plástico oxibiodegradável Apoio aos Trabalhadores (CEPAT) e doutorando em
Sebastião Almeida

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Sociologia do Trabalho Cesar Sanson, a pauta da CUT
referente à Emenda 3, apresentada em Brasília, foi Um dia na semana para não fazer nada
tímida, conservadora e corporativista. Hélio Zylberstajn
Confira nas Notícias do Dia 17-08-2007
'Ter mais informação faz bem à fantasia' Há, hoje, uma degradação dos recursos humanos
Domenico de Masi provocada pelo excesso de trabalho, afirma o professor
Confira nas Notícias do Dia 16-08-2007 da FEA/USP e presidente do Ibret, Hélio Zylberstajn, em
Domenico de Masi critica a opinião de Elton John, que artigo publicado no jornal Valor, no dia 17-08-2007. O
propõe o fechamento da internet por cinco anos. A professor propõe um dia sem trabalho e reitera que essa
entrevista foi concedida ao jornal Repubblica, em 2-08- medida seria bastante importante, pois nos lembraria
2007. que as “as relações afetivas devem ser vividas e não
esquecidas”.
Trezentos mil se matam anualmente com pesticidas
no campo asiático O direito à preguiça resiste na era da super-atividade
Paul Benkimoun Massimiliano Panarari
Confira nas Notícias do Dia 17-08-2007 Confira nas Notícias do Dia 17-08-2007
A ingestão voluntária de pesticidas tem matado cerca Vista como uma pausa para aliviar o pensamento, a
de 300 mil pessoas nos campos da Ásia. A proibição à sesta, segundo Massimiliano Panarari, tornou-se
comercialização desses produtos, segundo pesquisadores, resistente e equiparável a super-eficiência e ao hiper-
enfrenta dificuldades, pois esbarra na hostilidade das trabalho da globalização. O artigo foi publicado no jornal
indústrias químicas. O artigo foi publicado no jornal Le La Repubblica, em 3-08-2007.
Monde, em 16-08-2007.

Frases da Semana
SÍNTESE DAS FRASES PUBLICADAS DIARIAMENTE NAS NOTÍCIAS DO DIA NO SÍTIO DO IHU.

Ambições “As nossas ambições se tornaram mais medíocres. Disso


“O Brasil perdeu importância e está tentando encontrar não tenho dúvida” – João Moreira Salles, diretor de
uma maneira de voltar a ter alguma, mas não sei se cinema – Folha de S. Paulo, 13-08-2007.
encontrou. Sem dúvida, o país tem menos rumo hoje do
que tinha na década de 50. A promessa do Brasil era FMI
maior. A gente podia imaginar que o país seria melhor na “Antigamente, a esta altura, o ministro da Fazenda já
virada da década de 50 do que pode imaginar hoje o que teria ligado para o FMI para garantir a benevolência em
será o país daqui a dez anos” – João Moreira Salles, caso de necessidade. Quem poderia imaginar que um
diretor de cinema – Folha de S. Paulo, 13-08-2007. ministro da Fazenda [brasileiro] falaria em crescimento
sustentável enquanto os bancos centrais da União
Européia e dos EUA estão injetando liquidez nos

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 49


mercados?” – Guido Mantega, ministro da Fazenda – O soube encontrá-la” – Fernando Henrique Cardoso, ex-
Estado de S. Paulo, 14-08-2007. presidente da República – revista Piauí de agosto.

Fracassou Ruptura epistemológica


“Quais são as instituições que dão coesão à sociedade? “O que houve não foi uma ruptura epistemológica no
Família, religião, partido, escola. No Brasil, tudo isso meu projeto intelectual, mas uma ruptura ontológica do
fracassou” – Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente mundo... No final da década de 80, não estávamos mais
da República – revista Piauí de agosto. enfrentando teorias, mas a realidade. Olhamos o que
existia e estava tudo em pedaços. Estávamos falidos.
“No meu governo universalizamos o acesso à escola, Fomos forçados a privatizar, não havia outro jeito” –
mas para quê? O que se ensina ali é um desastre” – Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República – revista Piauí de agosto.
República – revista Piauí de agosto.
Lula e o PT
“A única coisa que organiza o Brasil hoje é o mercado, “Os petistas passaram 25 anos da vida se dedicando a
e isso é dramático. O neoliberalismo venceu. Ao um só objetivo, fazê-lo (Lula) subir a rampa do Palácio.
contrário do que pensam, contra a minha vontade” - Agora não pode esnobar o PT” - um expoente do PT na
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da Câmara, afirmando que Lula e não só o partido que deve
República – revista Piauí de agosto. mudar – Valor, 15-08-2007.

Palhaçada “Não se pode criticar o PT e ao mesmo tempo incensar


“A parada de 7 de setembro é uma palhaçada. Parada adversários do PT. Lula não pode ser rigoroso com um e
militar no Brasil é pobre pra burro. Brasileiro não sabe generoso com outros” - um dirigente do PT – Valor, 15-
marchar. Eles sambam ... A cada bandeira de regimento 08-2007.
a gente tinha que levantar, era um senta levanta
infindável. Em setembro venta muito em Brasília e o “Ele (Lula) tem que aproveitar o Congresso (do PT)
cabelo fica ao contrário” – Fernando Henrique Cardoso, para reafirmar que é petista, que gosta do PT e quer o
ex-presidente da República – revista Piauí de agosto. PT ao seu lado” - um dirigente do PT, falando do próximo
Congresso – Valor, 15-08-2007.
“Os americanos têm os founding fathers ... A França
tem os ideais da Revolução. Eu disse para os homens de “Quando o PT era pequeno, a gente mandava, tinha
imaginação, para o Nizan Guanaes: olha, a imaginação do controle, eu e o Zé Dirceu” – Luiz Inácio Lula da Silva,
povo é igual à estrutura do mito do Lévi-Strauss, ou seja, presidente da República – O Estado de S. Paulo, 16-08-
é binária: existem o bem e o mal. Eu fui eleito 2007.
Presidente da República porque fiz o bem – no caso, o
real. O real já está aí, eu disse. Chega uma hora em que “Em Campinas, por exemplo, não quero nem saber o
a força dele acaba. O que vamos oferecer no lugar ? nome do candidato a prefeito do PT. Lá, eu vou apoiar o
Ninguém soube me dar essa resposta. Eu também não Dr. Hélio” – Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da

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República, referindo-se ao prefeito do PDT e candidato à FHC
reeleição – O Estado de S. Paulo, 16-08-2007. O Fernando Henrique não era o meu candidato. Meu
primeiro candidato era o Antônio Brito (ex-governador do
Coqueiro Linhas Aéreas Rio Grande do Sul). Minhas pesquisas indicavam, naquele
“Agora eu sei por que eles só servem barra de cereal e instante, o FHC em terceiro lugar. Abaixo do Brito e do
sanduíche. Pra comer na vertical. Se abrir os braços o Lula" - Itamar Franco, ex-presidente da República -
cotovelo bate no olho do vizinho! Coqueiro Linhas IstoÉ, desta semana.
Aéreas. Viaje como sardinha em lata!” - José Simão,
jornalista – Folha de S. Paulo, 15-08-2007. "Muitos me disseram: ‘Não cometa a tolice de indicar o
FHC para presidente. Ele vai te trair e não vai ser bom
2010 para a Nação.” Mas não tive outra opção’ - Itamar
“Garanto que os partidos aliados do governo Franco, ex-presidente da República - IstoÉ, desta
disputarão a eleição de 2010 com um único candidato” – semana.
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República – O
Estado de S. Paulo, 16-08-2007. “São Paulo é um resumo do Brasil, mas tem uma elite
política na atual conjuntura que é dramaticamente
"Acho que em 2010 será a hora de Minas" - Itamar provinciana. Não tem percepção de Brasil. O príncipe
Franco, ex-presidente da República - IstoÉ, desta disso é Fernando Henrique, que fez de tudo para destruir
semana. a política do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Ele
sabe o que representou a coalizão desses dois Estados na
"Para 2010, o cenário que eu trabalho hoje é que Minas Revolução de 30” – Ciro Gomes, deputado federal PSB-CE
não pode ter dois candidatos a presidente da República. – Zero Hora, 18-08-2007.
Se não mudar, o candidato é o governador Aécio Neves.
Há muito sereno e muito sol até 2010. Quem não é Inventou
candidato é bom se guardar do sol e do sereno" - Itamar “O Lula acha que inventou o Brasil” - Itamar Franco,
Franco, ex-presidente da República - IstoÉ, desta ex-presidente da República - IstoÉ, desta semana.
semana.
Juízo Final
"Podem ir aproveitando para debater, estudar, mas “A noite estava clara e vi a Lua tremendo de um jeito
preparem-se para arregaçar as mangas daqui a três anos: tão forte que parecia que ela ia explodir. Os postes da
vai todo mundo voltar para Brasília" – Aécio Neves, avenida balançavam como se quisessem dançar um
governador de Minas Gerais pelo PSDB, num debate sobre samba brasileiro, a luz acabou de repente e, do lado do
os rumos da economia brasileira na Casa das Garças, oceano, relâmpagos faziam a noite virar dia. Nas ruas,
centro de estudos no Rio de Janeiro ligado ao PSDB, que todos gritavam e rezavam acreditando que o dia do Juízo
reúne, entre outros, Armínio Fraga, Pedro Malan, Edmar Final finalmente havia chegado” - Ricardo Becerra, 30
Bacha, Dionisio Carneiro, Edward Amadeo – Veja, desta anos, segurança de um posto de gasolina de Miraflores,
semana. distrito de classe média alta de Lima, descrevendo os
momentos mais agudos do terremoto de 8 graus na escala

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 51


Richter que abalou o Peru na quarta-feira - O Estado de Milton Santos
S. Paulo, 19-08-2007. “Somos pessimistas quanto à realidade que está aí, mas
otimistas quanto ao que pode chegar” – Milton Santos,
Raquítico geógrafo no documentário “Encontro com Milton Santos
“O país tem um Estado raquítico. Apenas 8% da mão ou a globalização vista do lado de cá” de Sílvio Tendler –
de obra ocupada pertence ao Estado. Nos Estados Unidos, O Globo, 18-08-2007.
são 18%. Na Europa, 25%. Na Escandinávia, 40%. Espanha
e Portugal tem cerca de 20%” – Marcio Pochmann, “Nunca houve humanidade. Agora é que está havendo.
presidente do Ipea – Agência Carta Maior, 15-08-2007. A gente vem fazendo ensaios do que será a humanidade.
Acho que é a primeira vez na História em que convivemos
TAM com um futuro possível. Acho que essa é a grande
“O seguro obrigatório, se os parentes não correm atrás, novidade da nossa geração. A capacidade de conviver
não recebem. As indenizações, queremos ver a apólice, com o futuro possível” – Milton Santos, geógrafo no
ter certeza de que a TAM não vai lucrar em cima dos documentário “Encontro com Milton Santos ou a
cadáveres. Eles querem pagar de acordo com o tipo de globalização vista do lado de cá” de Sílvio Tendler – O
vítima. Meu irmão vale mais que uma senhora de 80 anos Globo, 18-08-2007.
e menos que um bebê? Isso é muito cruel” - Roberto
Lopes Correa Gomes, irmão do empresário Márcio Lopes Cansada
Correa Gomes, morto no acidente da TAM, que esperou "Ô Hebe "Maluf" Camargo! Fez campanha pra ladrão a
22 dias para enterrá-lo – Folha de S. Paulo, 18-08-2007. vida toda e agora está cansada!" - José Carlos Caldeira
Braga, 70 anos, engenheiro, gritando na direção da
Briga apresentadora, ontem no “Cansei” na Praça da Sé –
“PT e PSDB em São Paulo são a mesma coisa e se Folha de S. Paulo, 18-08-2007.
alternam no poder. Sonham para o Brasil o
bipartidarismo que fizeram lá. São a mesma gente, têm
os mesmos valores e concepções e apenas brigam pelo
poder” - Ciro Gomes, deputado federal PSB-CE – Zero
Hora, 18-08-2007.

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 52


Eventos
Agenda da Semana
A PROGRAMAÇÃO COMPLETA DOS EVENTOS PODE SER CONFERIDA NO SÍTIO DO IHU – WWW.UNISINOS.BR/IHU

Dia 22-8-2007
III Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Século XXI: o admirável e o desafiador mundo
das nanotecnologias
Nanotecnologia: aplicações recentes e crescimento de monocristais
Prof. Dr. Carmo Heinemann e Prof. Dr. Wictor Carlos Magno - Unisinos
Sala 1G119, das 17h30 às 19h

III Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia


O pensamento econômico de Celso Furtado
Prof. Dr. Pedro Cézar Dutra da Fonseca – UFRGS
Sala 1G119, das 19h30 às 22h
Dia 23-8-2007
IHU Idéias
Ética Mundial e Direito: um debate sobre o pensamento de Hans Küng
Prof. Dr. Vicente de Paulo Barretto / PPG em Direito – Unisinos e Prof. Dr. Alfredo Culleton –
Unisinos
Sala 1G119, das 17h30 às 19h

Formação Étnica do Rio Grande do Sul na História e na Literatura


Formação étnica do Rio Grande do Sul na História e na Literatura: notas para um debate
Profa. Dra. Eloisa Capovilla
Sala 1G119, das 19h30 às 22h
Dia 25-8-2007
Ciclo de Cinema e Debate em Economia - O Capitalismo Visto pelo Cinema
O capitalismo financeirizado - Filme: A fraude
Prof. MS Francisco Antonio M. Zanini – Unisinos
Sala 1G119, das 08h45 às 11h45
Dia 27-8-2007
Encontros de Ética
Cultura da memória no Brasil - o passado retorna pela mídia
Profa. Dra. Christa Liselote Berger Ramos Kuschick – Unisinos
Sala 1G119, das 17h30 às 19h

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 53


Para Celso Furtado a política econômica não pode ter a
estabilização como um fim em si mesmo
ENTREVISTA COM PEDRO CEZAR DUTRA DA FONSECA

Para Celso Furtado, “a política econômica não pode ter a estabilização como um fim
em si mesmo, sendo o fim último a melhoria do bem-estar, o que se consegue com mais
renda e emprego”. A afirmação é do professor e vice-reitor da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) Pedro Cezar Dutra da Fonseca. Para o professor, a
importância da obra de Celso Furtado está em “fazer uma reflexão sobre o
subdesenvolvimento da América Latina”. Ele ressalta que “Furtado é possivelmente o
mais keynesiano dos cepalinos”. Fonseca deu estas e outras declarações na entrevista
a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line. No próximo dia 22-08-2007, Fonseca
irá falar sobre o pensamento econômico de Celso Furtado, no III Ciclo de Estudos
Repensando os Clássicos da Economia. O evento ocorre das 19h30 às 22h, na Sala
1G119.

Fonseca possui graduação e mestrado em Economia pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul e doutorado em Economia pela Universidade de São Paulo. É autor de
BRDE: da hegemonia à crise do desenvolvimento (Porto Alegre: Editora Gráfica
Metrópole S.A., 1988). Confira uma entrevista concedida pelo professor Pedro Cezar
Dutra da Fonseca à revista IHU On-Line número 183, de 05-06-2006. O professor já
esteve presente na Universidade, participando de outros eventos promovidos pelo
Instituto Humanitas Unisinos – IHU. No II Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da
Economia, em 07 de junho de 2006, Fonseca apresentou o tema Joan Robinson (1903-
1983).

IHU On-Line - Qual é a principal contribuição do Pedro Cezar Dutra da Fonseca - Celso Furtado1 foi o
pensamento econômico de Celso Furtado para as mais importante economista brasileiro de sua geração. É
reflexões econômicas e políticas nacionais e para o
1
desenvolvimento econômico brasileiro? Onde entra a Celso Furtado (1920-2004): economista brasileiro, foi membro do
corpo permanente de economistas da ONU e diretor do Banco Nacional
importância de Formação Econômica do Brasil?
de Desenvolvimento Econômico e da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste e membro da Academia Brasileira de
Letras. Algumas de suas obras são A economia brasileira (1954) e
Formação econômica do Brasil (1959). A IHU On-Line repercutiu na
155ª edição a criação do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas
para o Desenvolvimento, na Finlândia, com entrevistas a diversos
especialistas. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 54


o nome mais conceituado dos intelectuais nem decorre de causas naturais, mas é construída pelos
desenvolvimentistas da CEPAL1, talvez só superado em homens.
influência intelectual e política pelo argentino Raul
Prebisch2, que foi o primeiro presidente dessa IHU On-Line - A "sombra" e a herança de Celso
instituição. A importância de sua obra está em fazer uma Furtado podem ser percebidas na forma de conduzir e
reflexão sobre o subdesenvolvimento da América Latina. pensar a economia no Brasil hoje?
Desde as primeiras obras, sua preocupação central era Pedro Cezar Dutra da Fonseca - O processo de
indagar as razões do atraso da América Latina, porque a substituição de importações é um modelo que não tem
miséria persistia ao longo do tempo, assim como as retorno. Hoje, o mundo é outro e a economia brasileira
desigualdades regionais. Antes dele, eram comuns as já é industrializada, não fazendo mais sentido a crença
teses que atribuíam os baixos indicadores sociais e de que a industrialização venceria a barreira do
econômicos a fatores naturais – geográficos, físicos e subdesenvolvimento. Mas a idéia de desenvolvimento
biológicos -, como o clima tropical e as raças. Com Celso como tema central continua na ordem do dia. A tese
Furtado, o “atraso” transformou-se em mais cara de Furtado, que acompanha toda sua obra, é a
“subdesenvolvimento” e sua contribuição foi decisiva de que a reversão da miséria e da desigualdade poderia
para elucidar suas razões históricas e sociais. O ser feita através de políticas de crescimento econômico,
subdesenvolvimento não se tratava de mera etapa, como com geração de produção e emprego. Há algo mais atual
se a América Latina estivesse em uma fase atrás dos do que isso? E, ao contrário dos marxistas, acreditava
países europeus e que um dia chegaria lá, por uma linha que isso poderia ocorrer dentro do sistema capitalista,
evolutiva; se nada se fizesse, o subdesenvolvimento como outros países haviam feito. Ao longo de sua obra,
tenderia a se perpetuar, pois – e esta era outra tese sua - evidencia-se que nunca acreditou na tese de que o
mostrava uma tendência à reprodução. Com isso, a teoria imperialismo impediria o crescimento dos países
de Furtado incitava à ação, ao planejamento, à práxis, periféricos, nem que era necessário “explorar” outros
ou seja, a uma atitude consciente a ser tomada pelos países para crescer, como se a economia internacional
governos para reverter uma situação histórica. E aqui se fosse um jogo de soma zero. Países como Finlândia,
nota seu humanismo: a História não é uma fatalidade, Noruega e Dinamarca possuem ótimos indicadores sociais
e nunca foram potências nem “imperialistas”.
1
Cepal: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, órgão
das Nações Unidas, com sede em Santiago do Chile. Sobre o tema, a
IHU On-Line - Quando se fala na necessidade de um
IHU On-Line entrevistou Fernando Henrique Lemos Rodrigues. A
projeto de desenvolvimento nacional para o Brasil um
entrevista intitulada A trajetória e a influência do Cepal nos
governos latino-americanos, foi publicada em 18-12-2006 e pode ser dos primeiros nomes que vêm à tona, como inspiração,
conferida no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu). (Nota da IHU On- é Celso Furtado. O que faz dele um nome a ser
Line).
lembrado na hora de traçar um projeto, rumos para o
2
Raul Prebisch (1901-1986): considerado um dos maiores
País?
intelectuais latino-americanos da segunda metade do século XX. Foi um
dos fundadores, ao lado de Celso Furtado, da escola estruturalista da Pedro Cezar Dutra da Fonseca - O nome dele sempre
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). A obra será lembrado porque não somente foi o pioneiro, mas o
de Prebisch e o pensamento da CEPAL será tema de debate no Instituto
mais consistente batalhador pela causa do
Humanitas Unisinos – IHU, ministrado pelo Prof. Dr. Ricardo
Bielschowsky – UFRJ e CEPAL. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 55


desenvolvimento. Junto com Mario Henrique Simonsen1, período em que estudou em Cambridge, na Inglaterra, ao
Furtado é o economista brasileiro mais conhecido no final da década de 1950.
exterior e sua obra é traduzida para inúmeras línguas. A
área de “Economia do Desenvolvimento”, ou IHU On-Line - Considerando que o cenário brasileiro
“Desenvolvimento Econômico”, praticamente não existia atual é bem diferente do cenário vivido por Furtado, o
antes da obra de Furtado e de outros economistas pensamento desenvolvimentista da Cepal teria ainda
cepalinos. Nos cursos de Economia, lecionava-se apenas lugar na sociedade brasileira hoje?
Macroeconomia e Microeconomia; geralmente o estoque Pedro Cezar Dutra da Fonseca - Há lugar para ele,
de capital era considerado dado na maior parte dos uma vez que o debate entre desenvolvimentismo versus
modelos. A partir desses estudos, o crescimento do ortodoxia está na ordem no dia. Quando se pensa que
estoque do capital passou a ser a variável por excelência, está superado, reatualiza-se. Isto não é questão de
indo ao encontro do trabalho de outros economistas do opinião; é um fato. Todavia, é um mito imaginar que o
2 3 4
primeiro mundo, como Kaldor , Myrdal , e Solow . pensamento desenvolvimentista brasileiro, como o de
Algumas medidas propostas por ele não fazem mais Furtado, negasse a importância da estabilidade. A maior
sentido, mas o objetivo maior, como já mencionei, prova é o Plano Trienal5, do Governo Goulart6, elaborado
continua em pé: a política econômica não pode ter a por ele, como ministro do Planejamento, e que entendia
estabilização como um fim em si mesmo, sendo o fim que com inflação crescente, déficit público fora de
último a melhoria do bem-estar, o que se consegue com controle e balanço de pagamento estrangulado não
mais renda e emprego. Furtado é possivelmente o mais poderia haver crescimento. Ele foi muito criticado à
keynesiano dos cepalinos e isto se deve, em parte, a um época por isso, mas sua posição era cristalina: a
estabilidade era importante, mas não poderia ser o
1
Mário Henrique Simonsen (1935-1997) economista e Ministro da epicentro da política econômica nem um fim em si
Fazenda do Brasil durante todo o governo Ernesto Geisel. Engenheiro
mesma. Esta era sua diferença com a ortodoxia.
civil formado pela antiga Escola Nacional de Engenharia da
Universidade do Brasil, destacou-se, porém, ao longo de sua carreira,
como professor de economia da Escola de Pós Graduação em Economia IHU On-Line - Com que olhos o senhor acha que
(EPGE) da Fundação Getúlio Vargas, escola que ajudou a fundar. Atuou Furtado veria a atual política de juros e a política
também como sócio-consultor do banco de investimentos Bozano-
cambial de Lula?
Simonsen e prestou consultoria para diversas empresas do setor
financeiro nacional e internacional. (Nota da IHU On-Line)
5
2
Nicholas Kaldor (1908-1986): economista húngaro, um dos mais Plano Trienal: Proposto pelo Ministro do Planejamento, Celso

famosos de Cambridge no período pós-guerra. Desenvolveu o famoso Furtado, no governo de João Goulart, o Plano Trienal era uma resposta

conceito de compensação. (Nota da IHU On-Line) política para a disparada da inflação, que se encontrava, em 1963, na
3
Gunnar Myrdal (1898-1987) economista sueco. Recebeu o Prêmio taxa de 78,4%, e a deterioração do comércio externo. (Nota da IHU On-

de Ciências Econômicas em 1974 por seu trabalho pioneiro na teoria da Line)


6
moeda e flutuações econômicas e pela análise penetrante da João Belchior Marques Goulart (1918-1976): presidente do Brasil

interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais de 1961 a 1964. Seu mandato foi marcado pelo confronto entre

(dividido com Friedrich August von Hayek). (Nota da IHU On-Line) diferentes políticas econômicas para o Brasil, conflitos sociais e greves
4
Robert Merton Solow (1924): economista norte-americano urbanas e rurais. Seu governo é usualmente dividido em duas fases:

particularmente conhecido por seu trabalho na teoria de crescimento Fase Parlamentarista (da posse em 1961 a janeiro de 1963) e a Fase

econômico. Foi premiado com a Medalha John Bates Clark, em 1961, e Presidencialista (de janeiro de 1963 ao Golpe em 1964). (Nota da IHU

o Prêmio do Banco da Suécia de Ciências Econômicas, em 1987. (Nota On-Line)

da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 56


Pedro Cezar Dutra da Fonseca - Nos últimos anos de em maior consumo no curto prazo, aumentando a
vida, a partir de meados da década de 1980, Furtado foi propensão a importar. A inflação já é segurada pela
se tornando cada vez mais pessimista. O fenômeno da política fiscal (o superávit primário) e pela política
globalização e a hegemonia do capital financeiro monetária (taxa de juros); precisaria ainda do
internacional dificultavam a realização de muitos instrumento cambial? Há uma “overdose” anti-
aspectos de seu projeto intelectual, que era, ao mesmo crescimento que se justificava no governo de Fernando
tempo, um projeto de vida. O retorno à ordem do dia do Henrique, quando se precisava reverter a inflação e as
pensamento liberal – agora sob o rótulo de “neoliberal” – expectativas inflacionárias, mas hoje não faz o menor
surpreendia e trazia à tona idéias que pareciam sentido. Verifica-se o que alguns colegas economistas
enterradas desde a década de 1930. O debate parece que chamam de “novo populismo”: um populismo cambial,
retrocedera no tempo. Parte dos aliados abandonou as que sustenta o consumo de curto prazo, barateia as
hostes desenvolvimentistas e passou gradualmente a importações, mas joga seu custo para o futuro. A
defender estas idéias, como se viu no governo de formação bruta de capital é baixíssima, o que prejudica
Fernando Henrique e depois no de Lula. A política sobremaneira o crescimento. Neste aspecto, o Brasil vai
cambial do governo Lula é apenas um exemplo. Do ponto no caminho contrário ao da China. Pergunte aos chineses
de vista do crescimento, nada justifica uma valorização por que eles não valorizam sua moeda... A China tem um
1
tão grande do real; setores como o calçadista e projeto nacional, algo que hoje no Brasil é considerado
vestuário estão passando por inúmeras dificuldades. Esta coisa do passado. Aqui se confunde, propositalmente ou
valorização apenas causa um efeito-renda, que se traduz por ignorância, projeto nacional com o retorno ao
processo de substituição de importações. Colocado
1
Sobre a crise do setor calçadista na região do Vale dos Sinos, a IHU nestes termos, o desenvolvimentismo torna-se,
On-Line produziu uma edição especial, em 25-06-2007. A edição 225,
equivocadamente, coisa do passado, um sebastianismo.
intitulada Vale do Sinos em crise. Diagnósticos e perspectivas e
outras reportagens que repercutem a crise, estão disponíveis no sítio do
IHU (www.unisinos.br/ihu). (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 57


Ética mundial e Direito: uma contribuição de Hans Küng
ENTREVISTA COM ALFREDO CULLETON E VICENTE BARRETTO

Discutir a importância do projeto de ética mundial de Hans Küng e a sua contribuição


para a área do Direito será o objetivo dos professores da Unisinos Alfredo Culleton e
Vicente Barretto, no próximo dia 23-08-2007, no evento IHU Idéias, das 17h30min às
19h, na Sala 1G119. E é sobre esse tema que eles concederam a entrevista que segue,
por e-mail, à IHU On-Line.

Culleton é graduado em Filosofia pela Universidade Regional no Noroeste do Estado


do Rio Grande do Sul (Unijuí), mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente leciona nos cursos de Graduação e Mestrado em
Filosofia na Unisinos. Confira uma entrevista concedida pelo filósofo à IHU On-Line na
edição número 160, de 17-10-2005, junto com o historiador Nilton Mullet Pereira,
intitulada Em nome de Deus: um retrato de época, comentando aspectos do filme
apresentado no Ciclo de Estudos Idade Média e Cinema, promovido pelo IHU; e outra
entrevista na 198ª edição, de 02-10-2006, sobre a Idade Média.

Por sua vez, Vicente de Paulo Barretto é professor no PPG em Direito da Unisinos.
Livre docente pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), possui
graduação em Direito pela Universidade do Estado da Guanabara. Sua atividade
acadêmica desenvolve-se na área do Direito, com ênfase em Filosofia do Direito.
Barretto foi o idealizador e coordenador científico do primeiro Dicionário de Filosofia do
Direito, em língua portuguesa, lançado pela Editora Unisinos, e sobre o qual concedeu
uma entrevista para as Notícias do Dia do site do IHU de 09-05-2006.

Culetton e Barretto assinam o número 83 dos Cadernos IHU Idéias, intitulado Dimensões
normativas da Bioética.

A palestra da próxima quinta-feira prepara a vinda do teólogo Hans Küng ao Brasil,


de 22 a 26 de outubro de 2007. O Ciclo de Conferências com Hans Küng - Ciência e fé – Por
uma ética mundial será realizado no campus da Unisinos. Em preparação a este evento,
foi criado um Fórum On-line sobre o Projeto de Ética Global de Hans Küng. Para mais
informações sobre o ciclo e sobre o fórum, acesse www.unisinos.br/ihu. Hans Küng
também proferirá a palestra no campi da UFPR, no Goethe-Institut Porto Alegre, na
Universidade Católica de Brasília, na Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro e
na Universidade Federal de Juiz de Fora - UFMG.

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 58


IHU On-Line - Em que sentido o projeto de ética
mundial de Hans Küng pode contribuir para a área do IHU On-Line – Quais são os valores que devem
Direito? entrar em jogo ao pensarmos neste ethos mundial
Alfredo Culleton e Vicente Barretto - Há tempo, o que propõe Hans Küng? Onde entram aí as religiões?
Direito vem passando por uma crise decorrente da sua Qual o papel das religiões quando falamos de valores
filiação a um modelo positivista de ver não só o direito, relacionados à proposta de ética mundial?
mas a sociedade e o mundo em geral. Trata-se de uma Alfredo Culleton e Vicente Barretto - Podemos
visão dogmática e fechada sobre si mesma que o foi destacar dois valores ou bens básicos que devem ser
empobrecendo e isolando da sociedade para a qual está conjugados nesta proposta, que sejam a razoabilidade
a serviço. Daí que alguns grupos dentro deste universo prática que toda ação humana exige de si mesma, isto
venham buscando referências para dialogar e revisar as é, um mínimo de ordem e justificação para as ações, e
suas bases conceituais, filosóficas, hermenêuticas e a religião, no sentido de que toda sociedade humana
políticas, em vistas da sua própria identidade de reconhece uma ordem que o precedeu no tempo e que
juristas. tem um valor transcendental, ao qual se deve certa
gratidão individual e coletiva. O valor da religião está
IHU On-Line - É possível pensarmos num único também no fato de que, por mais dogmática que seja,
ethos global hoje para toda a humanidade, com todas ela exige justificação, busca as suas razões e nessa
as suas disparidades? Como isso funciona no caso do busca se justifica para o outro, se revisa e se abre para
Direito? É viável pensarmos num conjunto mínimo de o outro, para a história.
valores morais, normas e atitudes básicas humanas
comuns para todos os homens e mulheres do IHU On-Line - Qual é a contribuição do projeto de
planeta? ética mundial para a política e a democracia?
Alfredo Culleton e Vicente Barretto - Entendemos Alfredo Culleton e Vicente Barretto - Uma grande
que seríamos capazes de formular algumas poucas e contribuição é o de trazer a proposta para o debate de
mínimas formas básicas de bem humanos; não maneira séria e sistemática. Nisto se diferencia de
necessariamente valores morais ou normas comuns a outras propostas, como a do Dalai Lama1, por exemplo,
todos os homens, mas sim o reconhecimento de formas
1
básicas de bem para todas as sociedades, de todos os O Dalai Lama ao longo do tempo se tornou o líder político do
Tibete, onde política e religião se fundiram em um Estado teocrático.
tempos; isto denotaria uma valorização da vida
Dessa maneira, é comum encontrar-se em literaturas menos
humana; ou a proibição do incesto, ou que toda
especializadas a informação de que o Dalai Lama é um líder temporal e
sociedade humana formulou algum tipo de restrição ao político. Na verdade, ele é um monge e lama, reconhecido por todas as
uso da sua sexualidade, ou que o nascimento de uma escolas do Budismo tibetano. O atual e 14º Dalai Lama é Tenzin Gyatso.
Ele nasceu em 1935 e morava no Palácio de Potala durante o inverno e
criança, salvo em casos excepcionais de catástrofes,
na residência de Norbulingka durante o verão, em Lhasa, capital do
sempre é considerado um acontecimento bom, digno
Tibete. Em 1959, quando a China invadiu o Tibete, o Dalai Lama fugiu
de celebração. O reconhecimento deste mínimo nos para a Índia, onde mora até hoje, em Dharamsala. Dalai significa
daria condições de discutir políticas, propor “Oceano” em mongoliano e “Lama” é a palavra tibetana para mestre,
guru, e várias vezes referido por “Oceano de Sabedoria”. (Nota da IHU
universalizações históricas etc.
On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 59


carregada de boas intenções, mas solta. Também há o Alfredo Culleton e Vicente Barretto - O problema
fato de trazer para o diálogo temas antigos que, no acontece quando essa tensão desaparece e pode
geral, estão sendo abandonados mesmo pela sociedade acontecer de duas maneiras terríveis: quando ética e
civil e os partidos políticos. Nem as universidades, nem política se confundem e aí vêm os fundamentalismos, ou
as igrejas, nem os jornais, parecem interessados em quando se privatiza a política como puro gerenciamento
discutir de maneira séria, e não simplesmente administrativo e a ética como guardiã do agir privado.
reivindicacionista e queixosa, a questão do futuro da Hans Küng estimula essa tensão no melhor sentido do
humanidade em sentido político. Há uma grande termo. Ele defende essa sadia tensão entre a arte de
preocupação com o futuro ambiental e de governar a favor dos homens, sabendo que se está
autopreservação do planeta e uma desvalorização do lidando com disputas de poder e isso é um valor, e a
político. ética como esse referencial de valores com pretensão de
universalidade que busca nortear o agir humano.
IHU On-Line - Como o pensamento de Hans Küng
contribui para a tensão entre a política e a ética?

Filme A Fraude para compreender o capitalismo


financeirizado
ENTREVISTA COM FRANCISCO ZANINI

O professor Francisco Antônio Mesquita Zanini, da Unisinos, conduzirá a próxima


edição do Ciclo de Cinema e Debate em Economia - O Capitalismo Visto pelo Cinema, no
sábado, dia 25-08-2007, das 08h45 às 11h45, na Sala 1G119, quando será exibido o
filme A fraude, que motivará um debate sobre o capitalismo financeirizado. E, para
adiantar o assunto aos leitores e leitoras da IHU On-Line, o professor Zanini concedeu a
entrevista que segue, por e-mail.

Graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Maria, Francisco


Zanini possui especialização em Administração Financeira pela Universidade de Caxias
do Sul (UCS) e mestrado em Administração de Empresas pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É doutorando em Contabilidade pela Universidad
Autónoma de Madrid. Tem experiência na área de Administração, tendo trabalhado no
sistema financeiro por quinze anos. Confira a entrevista:

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 60


Ficha Técnica
Título Original: Rogue Treader
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 101 minutos
Ano de Lançamento (Inglaterra): 1998
Direção: James Dearden
Roteiro: James Dearden, baseado em livro de Nicholas Leeso e Edward Whitley
Produção: Janette Day, James Dearden e Paul Raphael
Música: Richard Hartley
Fotografia: Jean-François Robin
Direção de Arte: Paul Ghirardani e Christina Moore
Edição: Catherine Creed
Sinopse: Um ambicioso escriturário que trabalha em um banco recebe a oportunidade de cuidar de negócios na
Singapura. Lá ele apresenta resultados excelentes no aspecto financeiro, escondendo as perdas em uma conta aberta
para este fim.

IHU On-Line - Em que sentido o filme A fraude IHU On-Line - Como podemos definir/caracterizar o
ajuda a entender a lógica do capitalismo capitalismo financeirizado? Onde entra, nele, marca
financeirizado? do neoliberalismo?
Francisco Zanini - Penso que o filme ajuda muito no Francisco Zanini - Começando pelo fim: sim, entra,
entendimento do capitalismo. Ele mostra as diversas sem nenhuma dúvida, a marca do neoliberalismo. O
interconexões e a interdependência das finanças em neoliberalismo prega a maior liberdade possível aos
nível global. Um funcionário de um banco inglês, opera mercados, e o estado mínimo. É um pouco difícil
a partir de Cingapura, com derivativos tendo como definir capitalismo financeirizado, mas penso que ele
ativo-base o índice da Bolsa japonesa, o índice Nikkei1. deva ser entendido como um sistema que permite, a
partir de ativos reais, a criação e a propagação de
diversos mecanismos financeiros, negociados em escala
1
O Índice NIKKEI-225 foi implantado na Bolsa de Valores de Tókio em global, situação facilitada pelo extraordinário avanço
16-05-1946 e foi substituído pelo índice TOPIX em 1969. Em 1975, o
das comunicações, hoje praticamente instantânea, e
jornal Nikon Keizai Shimbun adquiriu os direitos para o cálculo e
também gerada a partir do crescimento do intercâmbio
divulgação do NIKKEY-DOW Jones Average que foi mais tarde rebatizado
de Nikkei Stock Average. A metodologia do índice NIKKEI é semelhante comercial entre os países. Esse processo de
ao DJIA, ou seja, reflete a média aritmética das variações de preços comunicação quase instantânea, de avanço dos
das ações que compõem sua carteira. Essa média acaba por ponderar as
transportes e do comércio mundial, de uma certa
ações pelos preços, o que não encontra nenhuma justificativa lógica.
forma ‘encolheu’ o mundo. É a tal ‘Aldeia Global’2.
De qualquer forma, o índice NIKKEI tem a seu favor sua composição
mais variada (225 ações), incomparavelmente maior que seu congênere
2
americano, o DJIA (com apenas 30 ações em sua carteira). (Nota da IHU Aldeia global: conceito criado pelo sociólogo canadense Marshall
On-Line) McLuhan, que ficou mundialmente famoso ao publicar o livro O meio é
a mensagem (Rio de Janeiro: Record, 1969). Aldeia global quer dizer
simplesmente que o progresso tecnológico estava reduzindo todo o

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 61


desatado, vai mostrar a todos as interconexões deste
IHU On-Line - Em que medida as atitudes do nó com os demais. Então, o filme e o debate são muito
personagem Nick Leeson mostram a relação entre o oportunos, especialmente nestes dias em que o
ser humano e a louca corrida pelo dinheiro proposta mercado financeiro global passa por outro período de
pelo capitalismo? turbulência. Note que a turbulência atual foi gerada a
Francisco Zanini - Em toda medida. Nick Leeson foi partir do desatamento de um destes nós, o mercado de
um aluno pobre em matemática, mas era ambicioso. hipotecas de alto risco nos Estados Unidos. Alguns
Além disto, era jovem, portanto, com pouca fundos que têm estes títulos em sua composição na
experiência, mas tinha nas mãos, por absoluta falta de prática estão quebrados. E veja que o problema está
controle do próprio banco onde trabalhava, e também não num eventual prejuízo que um ou outro investidor
dos órgãos reguladores do sistema financeiro, um poder individual tenha, mas que muitos dos detentores destes
muito maior do que a pouca experiência lhe títulos são bancos, que necessitam cobrir sua posição
autorizava. Ele, praticamente sozinho, quebrou um com a captação de recursos. No entanto, os outros
banco com quase 250 anos de história. Veja, ele fazia agentes do mercado, que normalmente emprestariam
operações para o Banco, não para si próprio. Mas para estes bancos, têm medo, e a corrente se quebra,
operações lucrativas para o banco significariam, além necessitando do apoio das autoridades monetárias de
do salário, polpudas gratificações, além de prestígio. diversos países (bancos centrais). Isto tudo mostra que
Em resumo: dinheiro, prestígio e poder. o mercado, sozinho, não dá conta de resolver todos os
problemas. Aliás, sim, daria conta, mas com um custo
IHU On-Line - O filme e o debate do evento no dia política e socialmente inaceitáveis, daí a ação dos
25 podem ajudar a entender a influência do mercado Bancos Centrais para oferecer liquidez a estes agentes.
de ações e da bolsa de valores para o mercado
financeiro mundial? Em que sentido? IHU On-Line – Quais são as conseqüências da adoção
Francisco Zanini - Sim, o filme pode ajudar do capitalismo financeirizado por um governo com o
bastante, pois mostra a interconexão entre os Brasil? Há alguma alternativa?
mercados. Veja que no mercado financeiro uma coisa Francisco Zanini - Eu entendo que os últimos
fundamental é a fidúcia (muitos já devem ter ouvido governos brasileiros têm adotado apenas algumas das
falar que tal banco “é o agente fiduciário de tal posições defendidas pelo neoliberalismo. Em muitas
título”). Bem, fidúcia é confiança. Com a interligação áreas, o neoliberalismo ainda não chegou, mas é mister
entre os mercados, a falta de confiança em um ponto que chegue. Em outras áreas, entendo que não é
desta cadeia desata um nó, que, só depois de necessário chegar. Para exemplificar: o nível de
impostos no Brasil é muito elevado. Uma diminuição da
planeta à mesma situação que ocorre em uma aldeia, ou seja, a carga tributária elevaria o nível de crescimento
possibilidade de se intercomunicar diretamente com qualquer pessoa
econômico, beneficiando toda a população. E isto é
que nela vive. Como paradigma da aldeia global, ele elegeu a televisão,
possível, porque o governo arrecada muito e gasta mal.
um meio de comunicação de massa em nível internacional, que
começava a ser integrado via satélite. Esqueceu, no entanto, que as Se gastar bem, muito menor volume de impostos dá
formas de comunicação da aldeia são essencialmente bidirecionais e conta do recado, com melhores serviços e benefícios
entre dois indivíduos. Somente com o celular e a internet é que o
para a população.
conceito começou a se concretizar. (Nota da IHU On-Line)

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De outro lado, a reforma trabalhista é mesmo Se todos os países melhoram a condição do trabalho,
necessária? Em certo nível penso que sim, mas não se tornando-o social e humanamente mais justo, este não
pode tirar muitos direitos dos trabalhadores, pois eles será um ponto que diferencie a competitividade; serão
são a ponta mais fraca numa negociação. Muita gente outros pontos.
defende o aumento da competitividade do país com Você perguntava se há alternativa. Bem, eu, como
uma diminuição dos custos trabalhistas, pois em muitos visto, não defendo a adoção de um modelo neoliberal
países este custo é muito menor. Mas eu perguntaria: em termos absolutos, mas entendo que não há saída
será que o sistema mais justo para a relação fora do capitalismo para o atual estágio de
capital/trabalho é aquele, por exemplo, dos tigres desenvolvimento do ser humano. Um sistema socialista
asiáticos, em que o trabalhador não tem nenhuma não funcionou em nenhum lugar. Por que é
proteção? Será que nós devemos mudar para ficarmos conceitualmente condenável? Não, porque o homem
mais parecidos com eles e mais competitivos, ou eles é não está preparado para ele. Talvez daqui a muitas e
que devem mudar, melhorando a proteção ao muitas gerações.
trabalhador, como a que existe na maior parte dos
países europeus?

A contribuição da mídia para a formulação de uma política


de memória
ENTREVISTA COM CHRISTA BERGER

A jornalista e professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Unisinos


Christa Berger concedeu a entrevista que segue, por e-mail, à IHU On-Line, falando
sobre o tema Cultura da memória no Brasil - o passado retorna pela mídia, que ela
conduzirá na próxima edição do evento Encontros de Ética, promovido pelo IHU no dia
27 de agosto, das 17h30min às 19h na Sala 1G119. Pós-doutora pela Universidade
Autônoma de Barcelona (UAB), Espanha, e doutora em Ciências da Comunicação pela
USP, com a tese Campos em confronto: jornalismo e movimentos sociais – As relações
entre o Movimento Sem Terra e a Zero Hora, Christa é mestre em Ciência Política, pela
Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). É também autora de Campos em
confronto: a terra e o texto (Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 1998) e uma
das organizadoras do livro O jornalismo no Cinema (Porto Alegre: Editora da
Universidade - UFRGS, 2001). Confira as entrevistas concedidas por Christa Berger na
172ª edição da revista IHU On-Line, de 20 de março de 2006, sob o tema Há vida fora da
Terra? As contribuições da exobiologia e na 202ª edição, de 30 de outubro de 2006,
intitulada Mídia e Política.

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IHU On-Line - Como se caracteriza a cultura da
memória no Brasil? A ascensão da memória, como manifestação cultural,
Christa Berger - Penso que a questão de fundo da política e midiática, carrega uma ambigüidade. É
memória não tem especificidades nacionais. Ela se compromisso histórico, mas é, também, uma
engancha nos indivíduos como necessidade humana, se manifestação cultural com potencial mercadológico. E
articula entre a necessidade de lembrar e de esquecer, é estes sentidos são muito disputados – lembrar porque não
1
estruturante da nossa subjetividade. Cito Alfredo Bosi , nos é permitido esquecer (compromisso da rememoração
que enfatiza o lugar da linguagem para pensar a para aprender com o passado) ou lembrar para esquecer
memória. “A memória articula-se formalmente e – “a amnésia feliz” como afirma Felinto2, identificando-a
duradouramente na vida social mediante a linguagem. com o discurso programático da pós-modernidade.
Pela memória, as pessoas que se ausentaram fazem-se
presentes. Com o passar das gerações e das estações, IHU On-Line – Qual é a importância da mídia e do
esse processo cai no inconsciente lingüístico, reaflorando jornalismo para a memória dos fatos que envolvem um
sempre que se faz uso da palavra que evoca e invoca. É a país?
linguagem que permite conservar e reavivar a imagem Christa Berger - É muito importante, porque retorna
que cada geração tem das anteriores. Memória e palavra, aos traumas através dos testemunhos, dá forma às
no fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do lembranças e contribui com a formulação de uma política
tempo reversível. Eu me lembro do que não vi porque me de memória, que todo país deve ter. O trabalho de
contaram. Ao lembrar, reatualizo o passado, vejo, memória, diz Todorov3, evocando uma imagem
historio o que outros viram e me testemunharam... O renascentista, se submete a duas exigências: fidelidade
diálogo com o passado torna-o presente. O pretérito para com o passado e utilidade no presente. E é por este
passa a existir, de novo.” ângulo que ele examina exemplos da literatura de
testemunho das duas experiências de totalitarismo que
Mas sua pergunta é sobre a cultura da memória. Esta marcaram o século XX: o nazismo e o stalinismo.
sim tem a cara do País: lembrar dos traumas históricos Para o autor, há três estágios de relação entre passado
para culpar, punir, regenerar, reparar, anistiar. O e presente, mediados por um narrador: no primeiro a
retorno do passado enquadrado na cultura de massa é um relação é de testemunho, o sujeito conta o que viveu; no
fenômeno contemporâneo e percorre os diferentes países segundo, os narradores são os historiadores que contam o
- com mais intensidade naqueles que têm traumas para que aconteceu; no terceiro, são os comemoradores, que
elaborar, - adquirindo características locais. No Brasil, propõem a celebração do passado. Os dois primeiros são
onde a cultura tem se manifestado de forma midiática, clássicos e já bastante compreendidos, o terceiro é
portanto, espetacular e mercadológica, o nosso passado fenômeno da cultura de massa e pode ser observado na
traumático – a ditadura militar com suas conseqüências monumentalização, espetacularização e museologização
políticas - retorna marcado pelo seu potencial de
2
consumo. Felinto, Érick. Obliscência: por uma teoria pós-moderna da
memória e do esquecimento. In: Revista Contracampo, IACS/UFF,

1
num. 5, 2002. (Nota da entrevistada)
BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: Novaes, A. (org.) Tempo e 3
Tzvetan Todorov: filósofo e historiador búlgaro, é também crítico
História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (Nota da
da linguagem de renome internacional. (Nota da IHU On-Line)
entrevistada)

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do passado. Acrescento um quarto estágio, que se IHU On-Line - O que caracteriza a forma como a
confunde com o terceiro, pois também pertence à lógica mídia transporta e transmite a memória pública?
da cultura de massa, mas dele deve ser distinguido que Christa Berger - O jornalismo não transporta a
corresponde à narrativa dos atualizadores do passado que memória pública, histórica ou coletiva de maneira
são os jornalistas e que encontram na imprensa seu lugar inocente, mas, no enlace com um novo acontecimento, a
de existência. condiciona e acomoda na sua própria estrutura e forma.
A cultura da memória destaca o indivíduo que lembra, Portanto, o passado, ao retornar ao presente da
que pode testemunhar aquilo que viveu. O cinema e o imprensa, é trabalho de memória, e algumas perguntas
museu exemplificam a tendência à rememoração na são: que memória é ativada; a que interpretação
cultura visual e o jornalismo acompanha a cultura visual, histórica corresponde; qual sua utilidade no presente; o
divulgando e comentando o filme e a exposição e que revelam os fatos acontecidos no passado e qual o
trazendo o testemunho (dos sobreviventes) como fonte sentido que eles adquirem quando atualizados pelo
da informação. Neste sentido, a cultura da memória se jornalismo?
vincula ao passado através de relatos orais e ao presente Trago um exemplo da rede de sentidos que constituem
pelas narrativas que se apresentam em diferentes o trabalho de memória e como estão em disputa a
gêneros e suportes técnicos provenientes de diversas contribuição que a mídia dá para o não esquecimento e a
matrizes. versão conveniente que ela apresenta.
O texto promocional do DVD Anos Rebeldes, a série
Cultura de massa e memória exibida em 1992 que contava a história de jovens que
É na cultura de massa que o trabalho de memória lutaram contra a ditadura militar, é exemplar da versão
acrescenta novas questões e interrogações sobre a conveniente da Rede Globo. 1992 foi também o ano do
função do passado. O método da produção jornalística impeachment de Collor, e muitos associaram na ocasião
garante fidelidade ao passado? Qual pode ser a utilidade o engajamento dos jovens com a exibição da série.
da memória quando enunciada pela Indústria Cultural? A Globo Vídeo traz o seguinte texto no lançamento em
Será ela comercial, política, pedagógica, ilustrada? Ou 2003, da versão compacta da minissérie:
virá para ajudar a historicizar tudo, e, assim, diluí-la na “E se o golpe militar não tivesse acontecido? E se a
vala comum das lembranças. Seguramente, estas funções revolução sexual não estourasse? E se não existisse o
1
se confundem e se mesclam. Zygmunt Bauman observa Cinema Novo, a era dos Festivais e o teatro Opinião? E se
que os filmes produzidos pela indústria do Holocausto não houvesse um mundo dividido entre direita e
tiraram o tema das salas de arte e os trouxeram para os esquerda? E se rótulos como alienado, engajado,
shoppings centers e, agora, os espectadores podem revolucionário e reacionário jamais tivessem tido peso? E
assistir estórias deste tema sob “uma forma saneada, se os hippies não começassem a usar calça jeans? E se a
esterilizada e assim, em última análise, desmobilizante e individualista Maria Lúcia jamais se apaixonasse pelo
consoladora”, sem prejudicar o lanche de pipoca e idealista João? E se a doce burguesa Heloísa não partisse
refrigerante. para a luta armada? E se uma certa minissérie não fosse
exibida em 1992, no momento em que os estudantes
pintavam a cara para pedir pelo impeachment do
1
Bauman, Zigmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: presidente Fernando Collor?”.
Zahar, 1998. (Nota da entrevistada)

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Diz Bucci1 que duas associações merecem reparos: o outro, a associação direta de influência entre a série e o
lado que a Globo se coloca neste texto promocional não movimento dos jovens contra Collor não é tão decisivo
é o mesmo lado que estiveram seus telejornais; por como o texto insinua. Ou seja, narrar o passado tem
implicações que só o estudo regular dá conta de observar
1
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: e entender.
Boitempo, 2004. (Nota da entrevistada)

Perfil Popular
Andréa Moscarelli Mota
Há 14 anos, Andréa Moscarelli Mota se dedica à profissão de
professora. No entanto, o foco do seu trabalho não é apenas a
educação. Com o exercício do magistério na Escola Municipal de
Ensino Fundamental João Goulart, na Vila Braz, periferia de São
Leopoldo, Andréa transmite conhecimento e também aprende com
os seus alunos de 6ª e 8ª séries, os quais ela tem como filhos.
Incansável, apaixonada pela profissão e otimista: esta é a clara
definição para a professora que, diariamente, ensina muito mais
Andréa e seus alunos
que a Língua Portuguesa para os seus alunos. Ela os faz ter
esperança e perspectiva de um futuro melhor. Foi durante a aula,
em uma das suas turmas de 8ª série, que Andréa contou a sua
trajetória, com exclusividade, à revista IHU On-Line.

Infância - Dar a uma criança a oportunidade de Família - Andréa teve uma base familiar bastante
aproveitar a infância é essencial para Andréa Moscarelli consistente. E, mesmo longe de casa, mantém o vínculo
Mota, de 40 anos. Ela lembra que este período de sua afetivo com a mãe e o irmão, sete anos mais novo. “Eles
vida, em Pelotas, sua cidade natal, foi maravilhoso, o ainda moram em Pelotas. Nossa relação é muito boa. Às
que contribuiu para a sua formação pessoal. “É vezes, minha mãe vem me visitar, mas eu queria mesmo
importante ter o direito de brincar, uma boa é que ela viesse morar comigo, em Novo Hamburgo.”
alimentação, moradia e estrutura familiar.” Foi ainda Pelo menos por enquanto, este desejo de Andréa será
criança que ela percebeu a vocação para o magistério. adiado, pois o restrito ciclo de amizades de sua mãe no
“Sempre gostei muito de escola. Fazia declamações, Vale do Sinos faz com que ela não se adapte a morar
teatro, estava sempre presente nas horas cívicas. Com o junto da filha.
tempo, fui gostando mais da idéia de trabalhar com
educação.”

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Perda - Aos 15 anos de idade, Andréa perdeu o pai, foi chamada para assumir as sextas-séries na Escola João
vítima de um ataque cardíaco. Com o trabalho como Goulart. “Trabalhava também pelo Estado em outras três
autônomo, revendendo automóveis, era ele que em escolas, o que me cansava muito. Por um ano lecionei
sustentava a família. Emocionada, Andréa lembra das em quatro colégios, depois resolvi ficar só aqui, na Vila
dificuldades que enfrentaram com a morte do pai. “O Braz, onde estou há três anos e dois meses, e sou muito
padrão de vida da nossa família ficou mais baixo. feliz.” Foi a receptividade e o carinho dos alunos, além
Tivemos que nos adaptar a uma vida simples, com mais da disposição dos colegas em ajudar, que fizeram Andréa
regras e limites. Não podíamos cometer os excessos que, se apaixonar pela Instituição. “Percebi o quanto era
anteriormente, cometíamos.” Com esta triste importante estar aqui com estes alunos maravilhosos,
experiência, Andréa passou a valorizar mais a sua família que também são grandes amigos.”
e revela ter se tornado uma pessoa melhor.
A rotina de trabalho - As manhãs e as tardes de Andréa
Carreira - A profissão de professora surgiu de maneira são preenchidas com aulas para as quintas e oitavas
bastante inusitada na vida de Andréa. Logo que concluiu séries. “Com os alunos menores, da sexta série, é preciso
o Ensino Médio, passou no vestibular para o curso de uma doação maior. Acabamos sendo psicólogos, mães,
Jornalismo, na Universidade Católica de Pelotas, sua amigos e recreacionistas, além de professores. Com as
cidade de origem. Tudo estava se encaminhando de oitavas séries, a interação é maior, em função do tempo
acordo com as suas expectativas, até que ela perdeu o que já estamos juntos.” Resgatar valores, através do
prazo de matrícula, o que a fez mudar de área. “Sempre exercício da cidadania, é uma das grandes preocupações
gostei muito de português, e no semestre seguinte, dos profissionais da Escola João Goulart. “Estamos
prestei vestibular para este curso.” Desde então, sua formando cidadãos e, para isso, temos que enaltecer
relação com a carreira ficou mais intensa e bonita. “É valores como respeito, lealdade e honestidade. Sempre
isso, é o que eu gosto de fazer. Já são 14 anos dedicados digo aos alunos que temos que aprender a ter
à profissão.” responsabilidades, e que ter disciplina é muito
importante na vida.” Andréa sabe que seu trabalho
Saída da terra natal - Depois de formada Andréa contribui muito para o crescimento da Escola e
resolveu que iria embora de Pelotas. “Tinha vontade de reconhece, também, que a evolução vem da humildade.
conhecer outras pessoas, de ter uma vida nova. Então, “Eu não trabalho aqui sozinha, sou apenas uma peça de
resolvi vir para a região do Vale do Sinos.” A mudança de uma engrenagem. Só trabalhando juntas é que
cidade também está relacionada a uma realização conseguimos bons resultados. Mesmo que os professores
pessoal. “Em Pelotas, minha mãe conhece muitas não lecionem o mesmo conteúdo, temos o mesmo
pessoas, e disse que poderia me conseguir um trabalho. objetivo.”
Eu não aceitei, porque queria vencer por mim.”
Metodologia de ensino - “Para chegar a um grupo e ter
O ingresso na Escola João Goulart - Quando chegou a os resultados de aprendizagem desejados, é preciso tocar
Novo Hamburgo, em 2000, três meses depois de formada, as pessoas de alguma forma.” Como a Língua Portuguesa
Andréa prestou concurso para a Prefeitura de São é composta de gramática, produção textual e ortografia,
Leopoldo. Passados quatro anos, quando menos esperava, a professora quis sair do convencional e fazer com que a

SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 232 67


disciplina se tornasse gostosa de aprender. “Costumo
utilizar música, teatro, passeios dirigidos para museus e Sonhos - As vitórias de Andréa não representam um
cinema.” Testes de soletração, para fixar as classes limite. Continuar adquirindo conhecimento é um grande
gramaticais, e debates também fazem parte do sonho da professora. “Tenho Pós-Graduação em
aprendizado. Estruturas da Língua Portuguesa e quero Mestrado em
Educação. Mais tarde, pretendo fazer Doutorado e Pós-
Educação - A professora reconhece que há muitas Doutorado.” Uma realização pessoal é a aquisição do seu
dificuldades no sistema de ensino. No entanto, ela faz apartamento em São Leopoldo, o que facilitará o acesso
dos obstáculos um incentivo a mais para chegar às ao trabalho. Sobre construir sua própria família, Andréa
conquistas. “Ainda é possível conseguir bons resultados. afirma que já tem muitos filhos, os seus alunos.
Para isso, é preciso que as pessoas parem de pensar nas
coisas materiais e pensem a educação em termos de Fé - Além da paixão pela profissão, o otimismo de
valor. Na Escola João Goulart, não há retroprojetor nem Andréa com relação ao futuro vem da fé. “Temos que ter
aparelho de DVD, mas, mesmo com poucos recursos, dá esperança em alguma coisa, do contrário, não se
para trabalhar.” A garantia do aprendizado vem com o consegue nada. Se eu não tivesse fé não estaria aqui.”
interesse dos alunos, a dedicação dos professores e o Ter fé também faz com que Andréa supere a
incentivo aos projetos. “Existe aprendizagem quando desvalorização do trabalho do educador. “O professor
todos trabalham com harmonia, o que há entre os não pode desistir nunca de ser professor. Dinheiro não é
estudantes e educadores. O bom aqui na escola é que tudo, precisamos dele para sobreviver, mas não devemos
todas as nossas iniciativas são apoiadas. A educação trabalhar só pelo salário. Todos nós temos que estar
consegue se fazer melhor, quando temos liberdade para unidos pelo bem maior, pelo crescimento, pelo
trabalhar.” Embora a formação de Andréa tenha origem progresso, pela vida boa, pela qualidade de vida e pela
em rede privada, ela não esconde o prazer maior em amizade.”
exercer a profissão em um colégio público. “É onde
temos o direito de sonhar, criar projetos e experimentar.
Isso é o que me motiva a permanecer aqui.”

Errata
Pedimos desculpas aos leitores e leitoras da revista IHU Movimiento de Izquierda Revolucionário, chileno,
On-Line por um erro na nota de rodapé número 26 da fundado em 15 de agosto de 1965.
última edição de nossa publicação, de número 231. Na Na mesma entrevista, retificamos a nota de rodapé
entrevista com o professor Luiz Alberto Gómez de Souza, número 29, onde citamos o padre Lebret como
na página 21, quando ele cita o MIR, trata-se do domênico. A denominação correta é dominicano.

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IHU REPÓRTER
Marcos Knewitz
A relação de Marcos Knewitz com a Unisinos começou quando ele tinha
16 anos. Marcos deixou o interior do Estado com o sonho de ingressar em
um curso superior, mas ainda estava indeciso quanto à profissão.
Biologia, Física e Filosofia foram algumas das opções. Sem falar que,
quando era criança, queria ser cientista ou piloto de avião. Hoje, aos 38
anos, ele é professor de Informática na Unisinos e trabalha no setor de
Gestão de Serviços da Informação da universidade. Confira, a seguir, a
entrevista concedida com exclusividade à revista IHU On-Line, na qual
Marcos se revelou um grande aventureiro e um pai zeloso.

Origens - Sou natural de Santo Ângelo. Meus pais são Depois, vieram outros estudantes morar conosco; era
de lá. Somos em quatro irmãos: o Márcio, médico, de 36 uma espécie de república estudantil. Depois de me
anos; o Mauro, policial federal, de 26 anos; e a Anna formar em Informática, comecei o curso de Biologia,
Paula, publicitária, de 24 anos. Eu sou o mais velho de também na Unisinos. Interrompi os estudos para fazer
todos: tenho 38 anos. Meu pai é economista e contador, mestrado em Computação Aplicada. No curso, trabalhei
e minha mãe foi diretora de escola. Hoje, ambos estão com a simulação de câncer em computadores. O
aposentados. mestrado misturou Informática, que era uma área que eu
conhecia, com Biologia, que era um ramo do qual eu
Infância - Queria ser cientista ou piloto da aviação gostava.
militar. Gostava de desenhar e de plastimodelismo:
costumava inventar e construir meus próprios Trabalho - Enquanto estudava, participei de um
brinquedos. Eu também praticava bastante esporte e programa na área de informática dentro da Unisinos,
integrava praticamente todas as equipes do colégio. quando comecei a trabalhar, aos 19 anos. Permaneci no
emprego por três anos, e o término do contrato coincidiu
Vida acadêmica - Quando saí do 2º Grau, fiz o com a minha formatura. Fui morar em São Paulo, onde
vestibular na UFRGS, mas o estudo no interior não me trabalhei no Banco Econômico, na área de TI, voltada
deu a preparação necessária para que passasse. Ao para capacitação e treinamento. Também trabalhei na
prestar vestibular, estava em dúvida se fazia os cursos de área de Informática da Azaléia. Mais tarde, voltei a
Biologia, Engenharia Mecânica, Física ou de Filosofia. trabalhar na Unisinos, na Gestão de Sistemas de
Acabei fazendo Computação. Aos 16 anos, comecei a Informação, onde trabalho até hoje. Sou professor na
estudar na Unisinos, onde fiz muitos amigos. Vim morar Universidade, das disciplinas de Engenharia de Software
em São Leopoldo com um colega de Santo Ângelo, que
também viria estudar aqui. Eu não conhecia nada da
cidade, mas não tive dificuldades com adaptação.

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e Desenvolvimento de Software I. momento pelo qual passei, foi Sociedade dos poetas
mortos.
Família - Sou casado há oito anos e tenho dois filhos:
Ingrid com 5 anos e Henrique com 3. Valorizo muito a Livros - Gosto de ler de tudo um pouco, dentro da área
minha família. Gosto muito de brincar com os meus técnica, como artigos científicos e livros de Física,
filhos. Primeiramente, dedico meu tempo para eles; se Biologia e Matemática. Minha esposa é jornalista e, às
sobrar algum, é para a minha esposa. Raramente, sobra vezes, me faz algumas indicações. O livro mais recente
tempo para mim. É a forma que achei para poder que li foi Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas.
conciliar vida particular com a vida profissional que, no
momento, está me demandando muito. Sei que é um Sonhos - Quero chegar a um momento de
momento e que não posso seguir assim por muito tempo. independência financeira, onde eu possa viajar com a
minha família e desfrutar da vida com mais intensidade e
Hobby - Enquanto estudante, eu era adepto à prática tranqüilidade. Também quero investir em um hobby,
de esportes radicais, junto com os meus amigos. como, por exemplo, produzir peças em madeira, que era
Praticávamos mountain bike, mas não tínhamos a atividade do meu avô, ou me dedicar ao
bicicletas apropriadas. Gostávamos de mergulhar em aeromodelismo. Também pretendo exercer algum tipo de
Florianópolis e também escalávamos o Pico da Canastra, trabalho assistencial voluntário.
em Canela; o Morro Morungava, em Porto Alegre, e em
alguns pontos de Bagé e Caçapava. Atualmente, corro de Viagens - Gosto de fazer viagens de aventura. Passei 30
kart uma vez por mês e jogo futsal, no Centro Esportivo dias na Patagônia, em uma viagem de jipe com dois
da Unisinos, com os colegas de trabalho. amigos. Já fui de mochila nas costas até o Estado de
Alagoas, pelo interior do Brasil, e voltei pelo litoral, com
Acidente - Uma vez me acidentei escalando. Foi uma um colega.
experiência dolorosa, mas que me ensinou muito.
Aprendi a contar com os amigos, pois foram eles que Instituto Humanitas - Conheço pouco. Sei de suas
fizeram o resgate. Estávamos escalando o Pico da publicações e algumas notícias que veiculam no site da
Canastra, a cerca de 80 metros de altura, e me segurei Unisinos. Fiquei surpreso quando li sobre o Instituto e vi
em uma pedra, que se desprendeu da rocha e caiu sobre o tamanho que tem.
o meu rosto. Quebrei alguns dentes e o maxilar. O
acidente aconteceu às 15h, e só cheguei ao hospital às Política - Uma questão sempre em voga é a da
21h. A partir de então, tive uma outra visão do que é o corrupção. Para mim, o seu combate é um processo de
perigo, do que é preciso temer ou não e do que transformação, de mudança cultural de toda a nação.
realmente importa. Não vejo uma perspectiva de solução em curto prazo,
porque a corrupção não acontece somente em Brasília.
Filmes - Não assisto muito a filmes, o que não quer Participei de Grêmio Estudantil e via as pessoas
dizer que eu não goste. Por falta de tempo, acabei me falsificarem carteirinhas. Quando integrei um Diretório
afastando deste hábito. Um filme marcante, talvez pelo de Estudantes, vi pessoas falsificando listas de assinatura
para participação de congressos da União Nacional dos

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Estudantes. Em empresas, há quem falsifique licitações. possibilidade de corrupção.
Quanto maior a esfera de administração, maior é a

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