Livro Linguística III
Livro Linguística III
Livro Linguística III
lingÜÍstica iii
Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-0778-3
lingÜÍstica iii
2.ª edição
2009
lingÜística III
Iara Bemquerer Costa
Conceitos fundamentais
para a Análise da Conversação ............................................ 35
A especificidade da conversação......................................................................................... 35
Os turnos de fala ........................................................................................................................ 36
Tópico conversacional ............................................................................................................. 40
Pares adjacentes ........................................................................................................................ 43
A hesitação .................................................................................................................................. 47
Conclusão..................................................................................................................................... 48
Teoria da informação.............................................................133
Informação X redundância...................................................................................................133
Contribuições da teoria da informação para o estudo das línguas.......................136
A informatividade como fator de textualidade.............................................................138
Fontes de expectativa para a avaliação da informatividade....................................142
Conclusão....................................................................................................................................143
As máximas conversacionais...............................................169
As relações entre a lógica e a conversação segundo J.P. Grice................................169
Princípios organizadores da conversação.......................................................................171
Implicatura conversacional...................................................................................................178
Conclusão....................................................................................................................................179
Referências.................................................................................247
Apresentação
A Lingüística – ciência que tem como objeto o estudo da linguagem – foi criada
e se consolidou a partir da obra genial de Ferdinand de Saussure, especialmente do
seu Curso de Lingüística Geral, publicado em 1916. Alguns pressupostos assumidos
por ele foram fundamentais para a delimitação do objeto de estudo da Lingüística
e do método adotado para a análise das questões incluídas no campo de estudo
circunscrito para a nova ciência. Para o estruturalismo, que caracteriza a Lingüística
da primeira metade do século XX, a língua é concebida como um sistema de signos,
e analisada a partir das relações de semelhança e diferença entre os elementos nos
diversos níveis desse sistema: na fonologia, na morfologia, na sintaxe.
Também, nesse caso, a prática dos chats – ou bate-papos via internet – está
produzindo um conjunto de normas de escrita compartilhadas pelos usuários.
São normas que diferem da ortografia oficial da língua, repletas de abreviações
e outros recursos, que buscam obter maior velocidade na produção escrita e
incorporar novas formas de expressão.
A exigência de que haja pelo menos uma troca de falantes mostra que nem
todos os usos da linguagem oral podem ser considerados conversação. Um
sermão ou uma conferência não são episódios conversacionais, ainda que se di-
rijam a um grupo de interlocutores presentes; já uma compra no balcão da loja,
uma consulta médica, uma entrevista radiofônica são exemplos de conversação.
Essas situações apresentam as cinco características da conversação apontadas
anteriormente.
17
Lingüística III
Seqüência dialogal
A1 B1 A2 etc.
[...] [...]
A: fala e pára;
B: toma a palavra, fala e pára;
A: retoma a palavra, fala e pára;
B: volta a falar e pára;
[...]
Em situações de entrevista transmitida tanto pelo rádio como pela TV, a con-
versação é organizada de forma muito mais rígida. O entrevistador estabelece
19
Lingüística III
Além disso, se observarmos os chats a partir dos cinco critérios usados para
caracterizar a conversação (apresentados no segundo item desta aula), podem-
os perceber que essa forma de comunicação incorpora todas as características
definidoras de uma conversação: apresenta a interação entre pelo menos dois
falantes, com pelo menos uma troca de papéis; os participantes interagem em
uma seqüência de ações coordenadas, em que cada um leva em conta a inter-
venção do outro para direcionar suas intervenções subseqüentes; há uma inte-
ração centrada, ou seja, a manutenção de temas comuns ao longo da interação;
a conexão pela web permite também que a interação se dê em tempo real.
20
Análise da fala e da conversação
O estudo dos chats a partir dos mesmos critérios usados para estudar outras
formas de conversação permite colocar em evidência suas semelhanças e difer-
enças com outras formas de conversação. Observe, por exemplo, que os interloc-
utores não esperam a resposta do outro para fazer novas intervenções. Observe
também que preferem usar frases curtas, com muitas informações implícitas.
Mesmo assim os interlocutores se entendem, não há nenhum indício de mal-
entendidos nesse trecho.
1
A palavra emoticons vem do inglês emotion+icons. São combinações de caracteres do teclado do computador usados pelos participantes dos
chats para fazerem o registro das emoções durante a interação.
21
Lingüística III
Transcrição da fala
O primeiro desafio da Análise da Conversação é definir uma forma de fazer
um registro escrito que permita destacar as informações da oralidade considera-
das essenciais para seu estudo. Quando nos comunicamos oralmente, fazemos
uso de um conjunto de recursos além das palavras: a expressão facial, os gestos,
o tom de voz, a velocidade, a ênfase. Além disso, a conversação está repleta de
hesitações, repetições, retificações, pausas, interrupções dos interlocutores, su-
perposições de fala. Assim, ao registrar a conversação, deparamo-nos com vários
recursos expressivos que não têm correspondentes no sistema gráfico desen-
volvido para a comunicação escrita.
22
Análise da fala e da conversação
Convenções gerais
O sistema de transcrição da conversação utiliza-se da ortografia da língua es-
crita padrão, mas procura reproduzir as frases tal como foram efetivamente pro-
duzidas, com as hesitações, repetições, superposições de fala etc. As pronúncias
não-padrão – como “muié” (mulher), “falô” (falou), “peraí” (espera aí) – não pre-
cisam ser registradas, a menos que o pesquisador esteja investigando variações
fonológicas como essas. Se esse não for o foco do estudo, basta fazer o registro
na ortografia corrente.
Veja um exemplo2:
23
Lingüística III
A.
na casa da sua irmã...
B. sexta-feira?
A. fizeram lá...
cozinharam lá?
B.
P. e ela contou como é que foi... bem aquele jeitinho dela de conversar... ((risos de P.))
24
Análise da fala e da conversação
Comentários do transcritor
Ao fazer a transcrição de eventos de conversação, o pesquisador pode fazer
comentários diversos, com o objetivo de descrever comportamentos dos falan-
tes ou acontecimentos diversos que possam interferir no fluxo da conversação:
os latidos de um cachorro, o choro de uma criança, a queda de objetos, o toque
da campainha ou telefone, o desligamento do gravador, tosse, espirro, riso. Esses
comentários são colocados entre parênteses duplos.
Entonação enfática
Os trechos pronunciados de forma enfática são transcritos com o uso de
maiúsculas.
25
Lingüística III
é... diz que ela dizia... “meu Deus do céu... leve tu::do que você quer...mas só não faça
A. mal pro Laurinho”... o jeito dela né?
Interrogação
As interrogações são reconhecidas pela entonação com que a frase é pronun-
ciada. Para indicá-las na transcrição, é usado o mesmo sinal adotado na escrita.
É... por aqui não tem favela né? nunca vi pelo menos...
V.
( ) onde eu conheço aqui ( )...
26
Análise da fala e da conversação
Conclusão
O estudo da conversação pode revelar muito sobre as normas sociocul-
turais de interação entre os indivíduos na sociedade. Essas normas apresentam
variações segundo o grau de formalidade da situação de interação, o nível de
conhecimento recíproco entre os participantes e as relações hierárquicas entre
eles. Estudar a conversação é ampliar o conhecimento sobre a sociedade, pois
é através da conversação que os laços sociais são estabelecidos, consolidados e
modificados.
Texto complementar
A conversa na sociedade
(MATTOS,1998, p. 15-21)
Para que existe a conversa quotidiana na sociedade? Que objetivos ela tem?
27
Lingüística III
Algumas das questões que nos colocamos: como é que a conversa reco-
lhe seus dados e suas estruturas do social? Como é que a conversa acolhe,
sem que isso seja inadequado, discursos mais confidenciais ocorrendo em
situações de contato passageiro e discursos mais utilitários em situações de
contato mais duradouro entre pessoas?
Função social
Se a conversa quotidiana não se revela como imediatamente utilitária,
onde ela encontra suas “regras” de funcionamento? Se não é o fim que a
define, como ela se estrutura?
3
Estamos aqui usando a tipologia proposta por Eni Orlandi (A Linguagem e seu Funcionamento, p. 9, 22 e 142) que toma como base a relação dos
interlocutores entre si e com o objeto do discurso.
28
Análise da fala e da conversação
[...]
Queremos mostrar com isso que a situação não determina “de fora”, mas
faz parte da conversa, e tem uma dinâmica tal a ponto de se modificar no
interior da própria conversa; nesse processo dinâmico, ela traz modificações
à função social ou melhor, ela inaugurará nova função social à conversa. Há,
assim, uma ligação necessária entre situação e função social: com a institui-
ção de uma situação imaginária, é instituída necessariamente uma função
social da qual dará conta um determinado tipo de conversa.
29
Lingüística III
Estudos lingüísticos
1. Para esta atividade, é necessário um gravador.
O grupo deve gravar uma conversa entre duas ou três pessoas. A gravação pode
ser feita em qualquer lugar: no pólo de estudo, em uma loja, em casa etc.
30
Análise da fala e da conversação
3. Reflita, a seguir, sobre cada uma das situações descritas a partir do conjunto
de propriedades definidoras da conversação. Indique em que casos há uma
conversação.
31
Lingüística III
c) L. ganhou de presente uma roupa que não serviu e deixou passar o prazo
previsto pela loja para efetuar a troca. Quando foi à loja, teve de explicar
primeiramente o caso ao vendedor, que a encaminhou para o gerente, que
a mandou de volta ao vendedor. Este, finalmente, fez a troca do produto.
32
Análise da fala e da conversação
33
Conceitos fundamentais para a Análise
da Conversação
A especificidade da conversação
A propriedade mais evidente da conversação é que os interlocutores
alternam-se nos papéis de falante e ouvinte. Assim, o estudo do texto con-
versacional deve necessariamente contemplar o estudo das formas de al-
ternância dos papéis no diálogo e da atuação conjunta dos interlocutores
para a construção de um texto coerente. Deve levar em conta também que
a conversação, ao contrário de outros textos, é produzida sem um planeja-
mento prévio. Mesmo que um dos interlocutores defina antecipadamente
o que pretende falar, há sempre a necessidade de rever seu planejamento
a cada intervenção dos demais participantes, para que suas intervenções
constituam uma seqüência adequada às falas anteriores.
Koch (2006, p. 46) usa também a metáfora do quadro e do filme para compa-
rar a recepção do texto oral ou escrito:
Para o leitor, o texto se apresenta de forma sinóptica: ele existe, estampado numa página –
por trás dele vê-se um quadro. Já no caso do ouvinte, o texto o atinge de forma dinâmica,
coreográfica: ele acontece, viajando através do ar – por trás dele é como se existisse não um
quadro, mas um filme.
Os turnos de fala
Uma das formas de compreender como a conversação é organizada é ob-
servar como se dá a alternância entre os participantes. Para isso, a Análise da
Conversação incorporou e adaptou o conceito de turno, usado em diversas situ-
ações: num jogo de xadrez, nos plantões de profissionais da saúde, em corridas
de revezamento, enfim, qualquer situação em que o indivíduo disponha de um
tempo, cuja duração pode ser ou não predeterminada para a realização de de-
terminada tarefa.
36
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
1
Dados do projeto Nurc de São Paulo. As entrevistas do projeto foram realizadas na década de 1970.
37
Lingüística III
mas você está pegando uma coisin::nha assim, sabe? um cara que esteja
desempregado também eu posso... usar o mesmo exemplo num num
sentido contrário... o cara que está desempregado porque não con-
L2 segue se empregar né? na verdade não quer ou um outro que:: assim...
Turno 2
muito bem empregado executivo-chefe de empresa e tal mas cheio das
neuroses dele eu não sei qual está melhor...
então você tem que abstrair desse aspecto porque você pode ter am-
L1 bos os ca::sos... você tem que pegar na média esquecendo esse aspecto Turno 3
particular...
38
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
L2 É. Turno 2
É? Por que que uma família é bom pra pessoa? Diga aí o que é que você
L1 acha assim por que que ter família é bom pra pessoa?
Turno 3
L2 É... Turno 4
L2 [silêncio] Turno 6
Não tem importância da forma como você fale, o que você achar você
L1 diz.
Turno 7
L2 [silêncio] Turno 8
Você acha que um garoto como você, uma menina da tua idade, mais
L1 velho, mais novo, pra essas pessoas, pra gente, é importante ter famí- Turno 9
lia?
L2 [gesto] Turno 10
L2 [silêncio] Turno 12
2
Dados de Machado (2003, p. 66-7). A transcrição adotada nesse estudo – e mantida na citação – é diferente da utilizada nos estudos do Nurc.
39
Lingüística III
L2 [silêncio] Turno 14
O que é uma família? É pai, mãe, né isso – você não tem pai que seu pai
L1 morreu, sua mãe tá viva – irmãos, como é que os irmãos, a mãe podem Turno 15
ajudar a gente?
L2 [silêncio] Turno 18
Tópico conversacional
Imagine uma situação trivial: um grupo de amigos seus está conversando,
você se aproxima e quer participar do bate-papo do grupo. Para conseguir se
integrar rapidamente, sua estratégia é perguntar: “Sobre o que vocês estão
conversando?” A resposta a essa questão será o tópico conversacional, ou seja,
o assunto sobre o qual o grupo fala naquele momento. Mesmo que você não
dirija ao grupo uma pergunta direta, que leve algum dos participantes a explici-
tar o tópico, basta escutar a conversa durante alguns minutos para identificar o
tópico, pois a percepção do tema da conversação é uma condição para que cada
um possa se engajar na conversação e fazer intervenções adequadas.
40
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
Favero (1995, p. 39) afirma que o conceito de tópico conversacional (ou dis-
cursivo) é nuclear para compreensão de como os participantes de um evento
interativo organizam, gerenciam suas intervenções no diálogo:
O tópico é, assim, uma atividade construída cooperativamente, isto é, há uma correspondência
– pelo menos parcial – de objetivos entre os interlocutores.
L2 e a do marido?
L2 ahn ahn
quer dizer somos de famílias GRANdes e::... então ach/ acho que::... dado esse fator
L1 nos acostumamos a:: muita gente
L2 ahn ahn
L1 e::
L2 ()
é e:: mas... depois diante da dificuldade de conseguir quem me ajudasse... nó::s para-
L1 mos no sexto filho
L2 ahn ahn
A: o aniversário de W;
42
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
Mas pode haver entre esses tópicos uma relação de descontinuidade. Pode
acontecer, por exemplo, que um tópico seja anunciado na conversação, mas inter-
rompido por alguma razão. Esse tópico pode retornar depois ou não. Pode ocor-
rer também que um tópico seja interrompido pelo surgimento de outro e depois
os interlocutores o retomem para continuar falando sobre ele até esgotá-lo.
Pares adjacentes
Ficou suficientemente claro, a partir do exposto até aqui, que a conversação
é construída de forma colaborativa. Essa característica do texto conversacional
tem várias conseqüências na sua organização. Uma delas é a presença de se-
qüências de turnos altamente padronizadas quanto à sua estruturação. Todas
as línguas apresentam pares de turnos, que aparecem juntos (um segue imedi-
atamente o outro) e que são fundamentais na organização local da conversação.
A produção do primeiro elemento do par por um dos falantes desencadeia a
produção do segundo elemento por outro falante, como uma regra social de
conversação praticamente obrigatória. Schegloff (1972, p. 346-348) denominou
43
Lingüística III
se um dos falantes fizer uma pergunta, o turno seguinte deve conter uma
resposta;
44
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
B tudo bem!
R bom dia!
V bom dia!
F alô!
J alô!
45
Lingüística III
H até logo!
Y até logo!
O par pergunta/resposta
As seqüências de perguntas e respostas estão entre as formas mais comuns
de fazer progredir uma conversação. A pergunta seleciona o responsável pelo
turno seguinte, marca o final de um turno e define o tema e a forma do turno
seguinte. A pergunta pode ser:
Direta ou indireta
Reconhecemos como perguntas tanto as formulações feitas sob forma inter-
rogativa quanto aquelas que usam uma forma indireta:
Perguntas indiretas: “Não sei se você sabe o nome do livro que o professor
recomendou.”, “Quem sabe você me diz onde guardou a chave.”
Aberta ou fechada
As perguntas abertas em geral solicitam alguma informação, levam o inter-
locutor a falar sobre um tema específico. É comum conterem expressões como:
Quem? Qual? Como? Por quê? Onde? Quando?
46
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
ah essa refeição demora... normalmente leva meia hora mais ou menos... porque eles
L comem bastante coisa realmente... quer dizer que então:: é demorado... depois ainda
tem que escovar dente pra sair...
B Já.
P Gostou muito.
A hesitação
Ao observarmos um evento conversacional, podemos perceber a presença
de várias hesitações, que se distribuem de maneira diferenciada entre os partici-
pantes. Há aqueles que falam pausadamente, com várias hesitações na formula-
ção, e há também os que revelam um grande controle sobre seu ritmo de fala e
apresentam poucas hesitações. A questão que surge inicialmente é: a presença
de hesitações na conversação seria um indício de um problema cognitivo ou
interativo do falante?
47
Lingüística III
tinha o vidro pra... pra... pra... pra... iluminação do... do... do... do recinto... não é? mui-
tas vezes vidros coloridos... que dava um ar assim de... de... de cafonice altamente
A simpática... né? lá... o sol batia ali... tinha um vidro colorido... não é? ((riso)) e essa casa
era assim... no fundo da casa tinha um... um galinheiro...
Tinha o vidro pra iluminação do recinto, muitas vezes vidros coloridos, que dava um
A ar assim de cafonice altamente simpático. O sol batia ali, tinha um vidro colorido e
essa casa era assim. No fundo da casa tinha um galinheiro.
Conclusão
Procuramos mostrar neste capítulo como o uso de alguns conceitos desen-
volvidos especialmente para a Análise da Conversação permite que se perceba
como se dá a construção do texto conversacional. A análise dos turnos e dos
tópicos coloca em evidência o caráter de construção colaborativa típico da con-
versação. Os pares adjacentes revelam a importância das normas sociais que
regem a participação dos falantes na conversação. A hesitação nos dá indícios
importantes sobre o processamento da conversação, sobre a simultaneidade
entre o planejamento e a produção da fala.
48
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
Texto complementar
adjacentes;
3
Trecho inicial do capítulo “O par dialógico pergunta–resposta” (FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 2006).
49
Lingüística III
formados de duas partes; cada primeira parte tem uma segunda es-
pecífica;
(1)4
L1 – mas qual é o tempo que tem que se falar sobre esse ass... assunto? (P)
No exemplo (1), (S) é uma reação dos interlocutores L1 e L2 à R dada pelo Doc.
Já no (2), (S) é uma manifestação de polidez de L1, diante do ato de R de L2.
(2)
L2 – dez (R)
L1 – obrigado (S)
4
A exemplificação, nesse item 1, serve-se ora de exemplos criados, ora de exemplos retirados do corpus do Nurc estabelecido como mínimo para
o Projeto da Gramática do Português Falado, ora de exemplos indicados por Marcuschi (1986, 1991). São criados os exemplos que não apresentam
identificação da fonte.
50
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
Identificação de Ps e Rs
Para que um enunciado possa ser identificado como uma P, o fator de-
terminante é a sua atualização num contexto particular em que as marcas
lexicais, a entonação e a forma sintática, em geral, apresentam-se como car-
acterísticas funcionais.
(3)
– agora eu só queria saber pra que é que elas querem essa conversa besta to-
L1 dinha
L2 – sei lá
(4)
51
Lingüística III
(5)
Doc. – agora uma viagem... assim de um grande navio fi... fizeram alguma vez?
L2 – eu fiz...
– eu fiz uma pequena... certa vez entre Recife e Salvador... no antigo Vera Cruz...
L1 que era aquele navio da... português... mas como viagem assim... mesmo que... re-
almente uma beleza o Vera Cruz
L1 – extraordinário
– eu fiz num navio de mais categoria do que Esse... fui daqui a São Paulo... Santos...
L2 no D. Pedro II ((risos)) que era irmão gêmeo do Almirante Jaceguay... uma beleza
de navio...
Estudos lingüísticos
1. Reflita sobre a interação estabelecida em cada uma das situações descritas
a seguir. Em cada caso, indique se os turnos tendem a ser simétricos ou as-
simétricos.
53
Lingüística III
dos turnos?
54
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação
3. Imagine uma conversa entre um grupo de amigos que falem dos seguintes
tópicos:
55
Estratégias de organização do diálogo
A paráfrase
A paráfrase é um procedimento de reformulação textual que toma
uma afirmação apresentada anteriormente e a reelabora em outras pa-
lavras. Há uma equivalência semântica entre o que é dito antes e depois.
A paráfrase é constituída por duas partes, dois segmentos textuais que
podem ser ligados por expressões que indicam essa equivalência: ou seja,
quer dizer, isto é.
Lingüística III
(1)
1
Os exemplos apresentados aqui foram retirados de entrevistas do projeto Nurc de São Paulo, realizadas na década de 1970.
58
Estratégias de organização do diálogo
Nesse trecho, o falante faz uma afirmação sobre o clínico geral inicialmente
em uma linguagem bem simples – “é o que mais estuda” – depois resolve dizer
a mesma coisa de uma forma mais técnica, e faz uma paráfrase do seu enun-
ciado anterior: “É o que tem a maior especialização”. Os dois enunciados que
constituem a paráfrase encontram-se lado a lado, constituindo uma paráfrase
adjacente.
L2 do curso
O médico hoje em dia ele está... se sujeitando mui::to... a empre::gos tal...a situação do
L1 médico eu acho que está... bastante difícil
Além dos casos em que o próprio falante reformula suas afirmações anteriores
mediante o uso de paráfrases, é comum encontrarmos também na conversação
situações em que um participante apresenta uma paráfrase de enunciados do
seu interlocutor. É o que se observa no exemplo abaixo:
então tem eh:: o paulistano é mais fechado mesmo eu acho que:: uma das influências
L1 seria a natureza e o nosso próprio clima entende?
59
Lingüística III
certo... e que que você acha dessa polui/poluição que tanto falam... que vão controlar
L1 vão fazer isso vão criar a área metropolitana o que que você acha?
A correção
A correção, que é também uma estratégia de reformulação textual, compartil-
ha várias características com a paráfrase. Segundo Barros (1995, p. 137), “os atos
de reformulação textual são aqueles que têm por objetivo levar o interlocutor a
reconhecer a intenção do locutor, ou seja, procuram garantir a intercompreensão
na conversação ou em qualquer outro tipo de texto.”
Nem sempre é fácil diferenciar uma correção de uma paráfrase. Ambas são
compostas por dois enunciados, numa relação tal que o segundo enunciado
deve ser considerado um substituto do primeiro. A diferença está na relação
semântica estabelecida entre as duas partes da reformulação. Enquanto na pará-
frase há a reiteração do que foi dito, na correção há uma retificação. Na paráfrase,
a relação entre os dois elementos seria de igualdade (x, isto é, y; x, ou seja, y);
quando a correção envolve dois enunciados, a relação entre eles é de diferença,
de retificação (não x, mas y). A correção envolve também, com freqüência, ex-
pressões menores do que a paráfrase; são comuns as retificações que abrangem
apenas uma palavra.
60
Estratégias de organização do diálogo
Tal como ocorre na paráfrase, a correção pode ser uma iniciativa do próprio
falante ou do interlocutor. Vejamos um exemplo de correção feita a partir de
uma iniciativa do próprio falante2:
... então como eu ia explicando... no início do século vinte ou melhor no século deze-
A nove... só existiam... a Europa e a... Ásia... bom... formadas... por culturas diferentes...
atravessando situações históricas de feudalismo diferentes...
Nesse trecho de uma aula, o professor apresenta uma informação aos alunos
(no início do século XX), mas percebe imediatamente que essa informação é in-
correta e faz a correção (ou melhor no século dezenove).
L1 ...a irmã dela eu conheço que é jornalista né? é uma moça jornalista...
L2 poetisa
L1 poetisa...
... ao secretário evidentemente... levar: ao presidente... todas aquelas questões que diz
L1 que dizem respeito... aos associados
2
Dado do Projeto Nurc – Rio de Janeiro. Entrevista realizada na década de 1970.
3
Dado do Projeto Nurc – São Paulo. Entrevista realizada na década de 1970.
4
Dado do Projeto Nurc – São Paulo. Entrevista realizada na década de 1970.
61
Lingüística III
A repetição
O volume de repetições na oralidade é uma das características que diferen-
ciam essa modalidade de uso da língua da modalidade escrita. Uma das prin-
cipais operações na elaboração e revisão de textos escritos está relacionada a
evitar e eliminar repetições. Mas, ao contrário do que ocorre nos textos escritos,
na oralidade a repetição não é um problema, é uma característica do texto oral,
decorrente do processo de formulação desse tipo de texto, é uma conseqüência
da simultaneidade entre o planejamento e a produção do texto oral.
Boa parte das repetições observadas na conversação tem a ver com o proces-
so de planejamento textual. Enquanto o falante decide o que vai dizer em segui-
da, ele repete frases, expressões, palavras, como uma estratégia (inconsciente, é
claro) de garantir a continuidade do seu turno conversacional, de não passar a
palavra ao interlocutor enquanto dá forma ao que vai dizer em seguida.
Mas a repetição tem outras funções, não é uma simples estratégia para o fal-
ante ganhar tempo para organizar sua fala. Se alguém responde a um pedido
com uma frase como:
Eu acho que o meu conceito de morar bem é diferente um pouco da maioria das pesso-
as que eu conheço... a maioria das pessoas pensa que morar bem é morar num apar-
tamento de luxo... é morar no centro da cidade... perto de tudo... nos locais onde
L2 tem mais facilidade até de comunicação ou de solidão como vocês quiserem... meu
conceito de morar bem é diferente... eu acho que morar bem é morar fora da cidade... é
morar onde você respire... onde você acorde de manhã como eu acordo...
É fácil perceber que o falante neste trecho não usa as repetições simples-
mente como uma estratégia para ganhar tempo enquanto decide o que vai falar
em seguida. Ele constrói toda sua argumentação a partir da oposição entre dois
conceitos de “morar bem”: o seu e o da “maioria das pessoas”. Para evidenciar a
diferença entre as duas concepções, L2 recorre à repetição sistemática de ex-
5
Dado do Nurc – Recife. Entrevista realizada na década de 1970.
62
Estratégias de organização do diálogo
podem ser feitas pelo próprio falante, mas também podem partir do in-
terlocutor;
repetições de expressões;
Os marcadores conversacionais
A conversação apresenta uma série de elementos que não contribuem para o
conteúdo informacional propriamente, mas que têm um papel importante tanto
63
Lingüística III
Veja a seguir o quadro proposto por Marcuschi, que não tem a preocupação
de exaustividade, ou seja, que não pretende ser uma lista completa dos marca-
dores, mas que dá indicações interessantes para o estudo desses elementos de
organização textual.
Quadro 1
Pré-posicionados Pós-posicionados
agora... eu estou achando o do... os estudantes muito mais desinibidos... muito mais
abertos... estão na... naquela deles... então... eu não acho mais esse problema dele
se comunicar com o doente difícil... eu acho que todo estudante se comunica muito
L1 bem com o doente...viu... porque o do... o doente também não está vendo mais o
médico... nem o estudante de Medicina... como o médico... como aquela pessoa que
ele... às vezes... fica até apavorado... amedrontado... não é?
L2 hum hum
então... o estudante já entra na... na escola de calça Lee... com o seu blusão... seu
L1 cabelo grande... levando... arrastando o chinelo né?... a sandália... então...o doente já
olha aquele estudante como se ele fosse uma pessoa mais ou menos...
66
Estratégias de organização do diálogo
Urbano (2006, p. 496) apresenta uma lista dos principais grupos de mar-
cadores conversacionais que desempenham a função interacional no portu-
guês falado:
67
Lingüística III
Com as indicações feitas por esses autores, temos um bom instrumento para
a análise do papel dos marcadores conversacionais usados nos diálogos que
ocorrem nas mais diferentes situações.
Conclusão
Procuramos neste texto trabalhar com algumas estratégias usadas na conver-
sação, com o objetivo de fornecer mais alguns elementos para a compreensão
dos diálogos. Com o estudo da repetição procuramos evidenciar um dos proces-
sos mais importantes de formulação do texto oral, uma estratégia usada pelo
falante inconscientemente para manter a posse da palavra enquanto planeja a
continuidade de sua produção. A correção e a paráfrase mostram processos de
reformulação do que já foi dito, seja pela retificação de algo que já foi dito e que
não corresponde ao pretendido, seja pela reformulação de trechos da fala para
expressar de forma mais adequada o que o falante pretendia dizer.
Texto complementar
Observações finais
(MARCUSCHI, 1986, p. 85-87)
68
Estratégias de organização do diálogo
7
Essa expressão pouco usual empregada por Marcuschi significa: aquilo que comprime demasiadamente, que restringe, fecha muito.
69
Lingüística III
Estudos lingüísticos
1. Esta é uma atividade a ser realizada em grupo. Observem ou gravem duas
ou mais pessoas conversando em qualquer lugar. Anotem quais foram os
marcadores conversacionais que o grupo identificou na conversação.
70
Estratégias de organização do diálogo
71
Lingüística III
72
Estratégias de organização do diálogo
73
A aquisição da linguagem
Aqueles que convivem com crianças até os cinco anos de idade têm
a oportunidade de observar seu rápido desenvolvimento em relação
a uma série de habilidades. As pessoas perguntam com freqüência aos
pais: “Ele(a) já começou a engatinhar?”, “Já aprendeu a caminhar?”, “Ele(a)
já está falando? O que ele(a) já sabe falar?” Essas perguntas mostram que
faz parte do senso comum a percepção de que aquisições como o andar
bípede e a linguagem são adquiridos naturalmente em certa fase do de-
senvolvimento infantil.
Finalmente, vamos fazer alguns comentários sobre uma área que recente-
mente tem sido estudado intensivamente por vários lingüistas no Brasil: a
aquisição da escrita.
O inatismo
No início de sua carreira como lingüista, Noam Chomsky apresenta uma pro-
posta de análise da aquisição da linguagem que rompe radicalmente com o pen-
samento vigente na época. O quadro intelectual em que sua proposta aparece é
descrito por Scarpa (2001, p. 206) nos seguintes termos:
O quadro científico era na época dominado pela corrente behaviorista ou ambientalista,
dominante exatamente nas teorias de aprendizagem. A aprendizagem da linguagem seria
fator de exposição ao meio e decorrente de mecanismos comportamentais como reforço,
estímulo e resposta. Aprender a língua não seria diferente, em essência, da aquisição de outras
76
A aquisição da linguagem
habilidades e comportamentos, como andar de bicicleta, dançar etc., já que se trata, ao longo
do tempo, do acúmulo de comportamentos verbais.
1
A coerência de Chomsky em relação à hipótese inatista de aquisição se mantém nos seus ensaios sobre a linguagem com uma longevidade notável.
Chomsky se mantém ativo como um dos nomes mais significativos dos estudos sobre a sintaxe das línguas naturais há mais de 50 anos.
77
Lingüística III
O cognitivismo construtivista
Os estudos do psicólogo Jean Piaget levantam hipóteses sobre a aquisição da
linguagem que se opõem claramente às explicações formuladas pelos inatistas.
No construtivismo piagetiano, a aquisição da linguagem é uma conseqüência
do desenvolvimento do raciocínio na criança. Segundo Piaget, até aproxima-
damente os 18 meses, o desenvolvimento cognitivo da criança é caracterizado
como período sensório-motor. Esse primeiro período seria marcado pelo ego-
centrismo e pelo fato de a criança não ter consciência da diferenciação entre ela
própria e o mundo que a cerca.
78
A aquisição da linguagem
O interacionismo
A abordagem interacionista da aquisição da linguagem tem como pressupos-
tos o questionamento tanto do inatismo quanto do construtivismo. Considera que
essas duas hipóteses sobre a aquisição da linguagem dão pouca importância à
interação dos adultos com a criança durante o processo de apropriação da lingua-
gem. O inatismo coloca em primeiro plano uma capacidade de linguagem inata e
universal; o construtivismo considera que a aquisição da linguagem é um dos as-
pectos do desenvolvimento do pensamento simbólico, da superação do período
sensório-motor do desenvolvimento infantil.
79
Lingüística III
dos no Ocidente a partir dos anos 1960 e retomados recentemente por autores
como Bronckart e Schneuwly. A segunda vertente resulta de estudos empíricos
de observação sistemática da interação entre crianças e adultos ao longo do
período de aquisição da linguagem.
O interacionismo sociodiscursivo
Os trabalhos de Vygotsky apresentam pontos em comum com o constru-
tivismo piagetiano. A diferença mais significativa entre ambos é que Vygotsky
assume que o desenvolvimento da linguagem e do pensamento tem uma origem
social, e que esse desenvolvimento estaria fundamentado nas trocas comunica-
tivas entre a criança e o adulto. Para Piaget, o desenvolvimento da linguagem e
do pensamento decorre do amadurecimento da criança e de sua relação com o
mundo que a cerca.
80
A aquisição da linguagem
O interacionismo social
A abordagem que Scarpa (2001) chama de interacionismo social se funda-
menta em estudos empíricos realizados por lingüistas em vários pontos do
mundo, tendo como preocupação comum o questionamento da hipótese in-
atista de aquisição da linguagem. Essa abordagem dedica-se ao estudo dos
fatores sociais, comunicativos e culturais no processo de aquisição. Segundo
Scarpa (2001, p. 214-215):
Assim, a interação social e a troca comunicativa entre a criança e seus interlocutores são vistas
como pré-requisito básico no desenvolvimento lingüístico. Segundo essa abordagem, rituais
comunicativos pré-verbais preparam e precedem a construção da linguagem pela criança. As
características da fala do adulto (ou das crianças mais velhas) são estudadas e consideradas
fundamentais para o desenvolvimento da linguagem da criança. Alguns estudos demonstram
como esquemas de ação e atenção partilhadas pela criança e pelo adulto interlocutor-básico
precedem categorias lingüísticas.
81
Lingüística III
a velocidade é reduzida;
Essas observações mostram que a aquisição da linguagem não pode ser vista
de forma simplista como prevê a hipótese inatista. A criança aprende a falar a
partir de uma intensa interlocução com os adultos e não simplesmente pela
82
A aquisição da linguagem
A aquisição da fonologia
Para observar como se dá a aquisição do sistema fonológico do português,
a pesquisadora Elizabeth Reis Teixeira, da Universidade Federal da Bahia, fez um
acompanhamento longitudinal de um grupo de 13 crianças com desenvolvi-
mento normal da linguagem. Como resultado de seu estudo, ela elaborou uma
apresentação dos sons e combinações de sons que a criança tem mais dificul-
dade em aprender. O acompanhamento do grupo de crianças permitiu também
que ela conseguisse identificar a idade e que cada dificuldade é normalmente
superada. Para apresentar os resultados, Teixeira (1988) dividiu o período de
aquisição do sistema fonológico da língua em seis estágios:
83
Lingüística III
Supernasalização
84
A aquisição da linguagem
Assimilação
Oclusivização
Glotalização
Palatalização (fonética)
Redução do /r/
Anteriorização
Ensurdecimento
Redução da semivogal
85
Lingüística III
86
A aquisição da linguagem
Conclusão
Neste capítulo procuramos de forma muito resumida mostrar como a
aquisição da linguagem é estudada no interior dos estudos lingüísticos. Demos
ênfase, inicialmente, às teorias concorrentes desenvolvidas para fornecer expli-
cações sobre a aquisição das línguas naturais.
87
Lingüística III
Texto complementar
ocoelhoviumatrelacadetiachouatrelamuitonitaelevouparasuacasa
(O coelho viu uma estrela cadente, achou a estrela muito bonita e levou para sua casa.)
Introdução
O fato de a escrita alfabética do português fazer uso de critérios mor-
fológicos na definição do lugar dos espaços entre seqüências de letras cria o
que poderia ser considerado, à primeira vista, um problema trivial: a necessi-
dade de saber o que é uma palavra, para que as palavras da língua possam
ser reconhecidas e separadas por espaços em branco.
88
A aquisição da linguagem
89
Lingüística III
90
A aquisição da linguagem
Estudos lingüísticos
1. No vocabulário que os pais utilizam na interação com crianças pequenas, po-
demos observar palavras como: vovô, vovó, mamãe, papai, bibi, caca, au-au,
papa, naná.
a) O inatismo:
92
A aquisição da linguagem
b) O interacionismo:
93
Análise retórica da argumentação
Aristóteles, que viveu entre 384 a.C. a 322 a.C., escreveu um grande número
de obras sobre vários assuntos, inclusive um texto que hoje se conhece pelo
nome de Retórica. A marca registrada e inovadora de Aristóteles foi imprimir ao
estudo da retórica duas características próprias do gênio grego: a observação e
o espírito de sistema.
96
Análise retórica da argumentação
A retórica é, para Aristóteles, uma ferramenta que pode ser útil no mundo
jurídico, na prosa literária, na filosofia e no ensino, mas que, em si mesma, é in-
diferente: pode servir tanto ao bem quanto ao mal. Segundo ele, a retórica é
algo bom, como a força, a saúde ou a riqueza, mas que pode ser usada para
o proveito ou a ruína dos seres humanos. Considera o ensino da retórica im-
portante, por proporcionar ao cidadão que se sinta lesado ou agredido, ou que
deseje expor suas idéias sobre qualquer assunto, um método que lhe permite
argumentar em defesa de seu ponto de vista na presença de qualquer público.
Segundo pensamento aristotélico, a retórica é um instrumento imprescindível
para a formação do homem universal.
Para expor de forma clara e aplicada os conceitos usados pela Nova Retórica
para a análise de textos, vamos começar com a apresentação de um exemplo.
Trata-se de um artigo de opinião publicado na revista Veja. Leia inicialmente o
artigo, pois ele servirá de referência para a discussão dos conceitos de tese, au-
ditório, acordo, para a identificação de algumas técnicas argumentativas e de
alguns tipos de argumentos.
97
Lingüística III
Quando era elixir paregórico da cintura para baixo, aspirina para cima e
extrema-unção quando não dava certo, a promessa da universalidade, gra-
tuidade e integralidade do serviço de saúde era viável, pois era barato. Mas
a tecnologia complicou tudo em um país onde o estado gasta 90 reais por
habitante. Um dia em um bom centro de terapia intensiva custa 1.500 reais
(ou seja, a cota anual de 16 brasileiros). Uma ponte de safena custa 30.000
reais (equivalente ao gasto médio de 300 pessoas), quase o mesmo que um
ano de internamento psiquiátrico de boa qualidade.
98
Análise retórica da argumentação
Como pela regra constitucional todos têm direito a tudo, capturam a parte
do leão os mais sabidos, os mais poderosos e os mais próximos dos cen-
tros de decisão, bem como os grandes hospitais oferecendo tratamentos
sofisticados. Tratamentos que a Europa não tem recursos para oferecer, o
nosso sistema não pode negar pela Constituição. As cortes de Justiça dão
ganho de causa a quem pedir 120.000 reais para fazer um tratamento quase
inútil nos Estados Unidos. Sobra pouco para os outros. Como se fixam pri-
oridades? É de quem chegar primeiro, ficando os pobres, a saúde pública e
a prevenção de mãos abanando.
Como leitores da revista em que este artigo de opinião foi publicado, certa-
mente fazemos uma leitura sem a preocupação de analisá-lo a partir dos con-
ceitos fornecidos pela retórica. Um leitor comum vai identificar o ponto de vista
do autor, reconhecer os argumentos usados para sustentar esse ponto de vista e
vai assumir uma posição diante do que leu: concordar, discordar, elogiar, criticar
etc. Vejamos como a retórica pode mudar a qualidade dessa leitura.
99
Lingüística III
100
Análise retórica da argumentação
legalização do aborto;
adoção da eutanásia;
etc.
Cada vez que esses temas são discutidos, há grupos que assumem uma
posição favorável e outros que se declaram contrários.
101
Lingüística III
O auditório
A seleção e organização dos argumentos em um texto levam em conta, em
primeiro lugar, os interlocutores, ou, como destacam Perelman e Olbrechts-Tyteca
(1996), o “auditório”, definido como “o conjunto daqueles que o orador pretende
influenciar com sua argumentação” (p. 22). Esses autores destacam também que o
importante, na argumentação, não é saber o que o próprio orador considera ver-
dadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ele se dirige (p. 26).
102
Análise retórica da argumentação
O acordo
Em toda construção argumentativa, o autor pressupõe que seus interlocu-
tores concordam com um conjunto de afirmações implícitas (premissas), que
são admitidas como um “acordo” prévio, sobre o qual toda a argumentação é
construída. Fazem parte desse acordo: fatos, verdades, hierarquias, valores. Na
maioria das vezes esses elementos, que sustentam a argumentação, não são
apresentados explicitamente, mas apenas pressupostos.
103
Lingüística III
Os tipos de argumentos
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) classificam os argumentos usados nos
textos em duas grandes classes: argumentos quase-lógicos e argumentos base-
ados na estrutura do real. Os argumentos quase-lógicos procuram se aproxi-
mar de raciocínios formais, lógicos ou matemáticos. Não se pode dizer que haja
simplesmente uma transposição dos raciocínios formais para a argumentação,
trata-se apenas de semelhança, de uma forma de apresentação que dá aos ar-
gumentos a aparência de uma demonstração. Estão nesse grupo os argumentos
que apelam para relações lógico-matemáticas como a divisão do todo em partes,
a comparação, a transitividade, a probabilidade, os cálculos matemáticos.
104
Análise retórica da argumentação
portanto, nada se produz. Somemos agora esses 126 dias aos trinta dias de
férias que são concedidas, pela legislação, aos trabalhadores. São 156 dias.
Basta agora subtrair esses 156 dias dos 356 dias do ano e teremos 209 dias.
O brasileiro trabalha, portanto, de um total de 365 dias apenas 209 dias em
média, o que quer dizer que, de um ano todo, menos de dois terços dos dias
são dedicados à produção, o que corresponde a um dia de folga para pouco
mais de um dia de trabalho.
[...]
A maioria dos textos que encontramos na mídia faz uso dos argumentos
baseados na estrutura do real.
105
Lingüística III
Esse levantamento mostra que Castro faz uso tanto de argumentos quase-
lógicos quanto de argumentos baseados na estrutura do real. Apela para infor-
mações reais ao se apresentar com economista, ao escolher países como Estados
106
Análise retórica da argumentação
Unidos, Canadá, Cuba e Chile para fazer comparações com a situação brasileira,
ao afirmar que quem se beneficia atualmente dos gastos com a saúde são os
mais sabidos, mais poderosos e os grandes hospitais. Mas apela principalmente
para o raciocínio lógico-matemático.
107
Lingüística III
Conclusão
Na rápida apresentação que fizemos de alguns conceitos nucleares da Nova
Retórica, procuramos deixar claro que a visão corrente de que a retórica é a arte
do discurso vazio e enganador merece ser revista. Somos alvo de discursos per-
suasivos com uma intensidade nunca vista anteriormente: discursos políticos,
religiosos e especialmente publicitários. Em vez de usar a expressão do senso
comum para desqualificar esses discursos, dizendo que “é tudo retórica”, po-
demos tomar a técnica de análise dos discursos persuasivos desenvolvida pela
retórica para avaliar a forma de construção desses discursos, posicionar-nos
diante deles de forma consciente e dispor de instrumentos para refutar a argu-
mentação inconsistente.
Tal como na Grécia Antiga, ainda hoje a retórica pode ser um instrumento
fundamental para a formação das pessoas e para o exercício da cidadania.
108
Análise retórica da argumentação
Texto complementar
Um esboço de análise
da argumentação na oralidade
(COSTA1; GODOY2, 1997, p. 97-110)
Um exemplo
No texto abaixo, é possível observar algumas questões interessantes
em relação à representação do interlocutor (o auditório, na concepção de
Perelman e Olbrechts-Tyteca) e ao acordo pressuposto entre os interlocu-
tores. Trata-se de parte de uma entrevista feita com uma informante de Pato
Branco (PR), que trabalha em programas de recuperação de meninos de rua,
como membro do Conselho Tutelar da Infância e da Adolescência. No texto,
ela faz uma comparação entre as dificuldades encontradas ao atuar junto
aos meninos e às meninas, e expõe sua tese de que o trabalho com meninas
é mais difícil.
Falante: Agora, é bem mais fácil você trabalhar com meninos do que
com meninas.
109
Lingüística III
Falante: Ah, doze, uns treze. Nós temos menina ali com catorze anos que
já tem filho. E elas pegam carona, conhe... Tem meninas aí que conhe-
cem o Brasil inteiro, chegam e contam. E você vai, arruma um emprego
pra ela, arruma matrícula no colégio, tudo. “Mas quem te pediu isso? Eu
estou vivendo a vida que eu quero.” Então, uma das propostas minhas
de permanecer no Conselho ainda é pra ver se a gente consegue com
alguma igreja, alguma coisa, fazer um trabalho com as meninas. Não
querer impor uma coisa de cima pra baixo − né? − mas sim começar a
conquistá-las e a reuni-las, ir discutindo problemas delas até ir... ver o
quê que elas querem, que de repente elas estão só no oba-oba, né? e
amanhã elas...
110
Análise retórica da argumentação
bem, mas e amanhã, como é que vai ser? É uma coisa bem difícil, bem
complexa. (PRPBR12)3
a entrevistada começa pela explicitação de sua tese: “Agora, é bem mais fácil
você trabalhar com meninos do que com meninas.” A seguir, apresenta uma
proposição que resume a argumentação a ser desenvolvida a seguir: “As me-
ninas começam a se prostituir muito cedo. Então para elas a vida na rua é
uma festa.”
a) Comparação:
b) Exemplo real:
“Nós temos menina ali com catorze anos que já tem filho”.
c) Ilustração real:
“De repente esses tempos veio até... veio uma que estava na pros-
tituição... etc.”
3
As referências às entrevistas são feitas conforme a codificação adotada no Banco de Dados Lingüísticos VARSUL, conforme apresentado em
KNIES, Clarice Bohn; COSTA, Iara Bemquerer. Banco de Dados Lingüísticos VARSUL: Manual do Usuário. UFRGS/UFSC/UFPR/PUC-RS, 1996. A seqüência
PRPBR12 significa: Paraná, Pato Branco, entrevista 12.
111
Lingüística III
112
Análise retórica da argumentação
para ter alguma influência sobre esse auditório, seria necessário estabelecer
algum acordo inicial: “... começar a conquistá-las e a reuni-las, ir discutindo os
problemas delas até ir... ver o quê que elas querem...”
Estudos lingüísticos
O texto a seguir foi publicado pela Veja seis meses depois da publicação do
artigo de opinião “O Ano da Saúde e os Desmancha-prazeres”. Os dois textos
são do mesmo autor e foram publicados na mesma seção da revista. Neste
segundo texto, Cláudio de Moura e Castro faz uma discussão a propósito das
cartas que a revista recebeu depois da publicação do primeiro.
O ensaio de hoje é sobre cartas que recebi dos leitores da Veja, algumas
generosas, outras iradas. Não tento rebater críticas, pois minhas farpas atin-
gem também cartas elogiosas. Falo da arte da leitura. É preocupante ver a
liberdade com que alguns leitores interpretam os textos. Muitos se rebelam
com o que eu não disse (jamais defendi o sistema de saúde americano).
Outros comentam opiniões que não expressei e nem tenho (não sou contra
a universidade pública ou a pesquisa). Há os que adivinham as entrelinhas,
113
Lingüística III
ignorando as linhas. Indignam-se com o que acham que eu quis dizer, e não
com o que eu disse. Alguns decretam que o autor é um horrendo neoliberal
e decidem que ele pensa assim ou assado sobre o assunto, mesmo que o
texto diga o contrário.
Curiosamente, grande parte das cartas recebidas passou por cima desse
imperativo lógico. Fui xingado de malvado e desalmado por uns. Outros fu-
zilaram o que inferem ser minha ideologia. Os que gostaram crucificaram as
autoridades por negar aos necessitados acesso à saúde (igualmente equivo-
cados, pois o ensaio critica as regras e não as inevitáveis conseqüências de
sua aplicação).
114
Análise retórica da argumentação
3. Identifique dois argumentos usados por Castro para a sustentação de sua tese.
115
A teoria da argumentação na língua
Para ele, as línguas dispõem de várias palavras que têm sentidos semelhantes
e podem ser usadas em contextos semelhantes, mas que têm valores argumen-
tativos diversos.
118
A teoria da argumentação na língua
(3) Está quase no fim do segundo tempo. O jogo está mesmo perdido.
Exemplos como esse levam Ducrot a reformular sua teoria. O valor argu-
mentativo deixa de ser considerado uma propriedade da expressão lingüística
e passa a ser entendido como o ponto de vista de um enunciador. As diferentes
conclusões mostradas nas frases (3) e (4) são possíveis porque partem de enun-
ciadores que assumem pontos de vista diferentes. O torcedor do time que perde
por 3 x 0 argumenta a partir da seguinte correlação: quanto mais se aproxima o
fim do segundo tempo, menor a chance do time que perde reverter o resultado.
Já o torcedor do time que está empatado raciocina: a possibilidade de reverter o
resultado persiste até o final do jogo.
119
Lingüística III
A pressuposição
A noção de pressuposição é fundamental em toda a obra de Ducrot. Ele dis-
cutiu o estatuto da pressuposição de sua relação com as expressões lingüísticas
em vários momentos de sua obra.
Essa frase contém duas afirmações, ou seja, pode ser desdobrada em um posto
e um pressuposto:
A frase (7) pode ser transformada em uma interrogação ou pode ser apresenta-
da de forma negativa. Em ambos os casos, a pressuposição permanece a mesma:
120
A teoria da argumentação na língua
Essa condição pode ser observada nos vários tipos de construção que contêm
uma pressuposição. A aceitação do pressuposto é uma condição para a continui-
dade do diálogo. Se o interlocutor rejeitar o que lhe é apresentado como pressu-
posto, ele estará rejeitando o diálogo, polemizando com o falante. Suponha que
em vez de responder “sim” ou “não” à pergunta (8), alguém questione o pressu-
posto, dizendo: “Pelo que eu sei, Pedro nunca fumou”. A negação do pressuposto
cria uma situação constrangedora entre os falantes, pois equivale a criar uma
polêmica com o falante, a questionar o que ele supõe ser aceito como informa-
ção pacífica para a continuidade da interlocução, a considerá-lo mentiroso ou
mal informado.
Pressuposições existenciais
O uso de expressões nominais precedidas por artigo definido está relaciona-
do à pressuposição de existência do indivíduo descrito:
Pressuposições verbais
Há um conjunto de verbos que são usados na construção de frases que
contêm pressupostos. Eis alguns deles: continuar, manter, deixar de, saber, igno-
rar, perceber, lamentar.
121
Lingüística III
(15) Depois que Maria se separou do marido, ela já teve vários namora-
dos.
Pressuposição: Maria se separou do marido.
O subentendido
Ducrot aponta a necessidade de se estabelecer uma diferença entre a pressu-
posição e o subentendido. Enquanto a pressuposição está vinculada às expres-
sões lingüísticas utilizadas e à forma de construção do enunciado, o subenten-
dido está relacionado às condições de uso dos enunciados, está ligado a uma
interpretação sobre as razões que levam alguém a fazer uma afirmação.
122
A teoria da argumentação na língua
Os operadores argumentativos
Os estudos de Ducrot destacam insistentemente a existência de valores ar-
gumentativos relacionados aos itens lexicais. Ele assume que todas as línguas
123
Lingüística III
Nesse conjunto, o mas é o mais estudado, o mais usado, aquele que seria o
protótipo do operador argumentativo de oposição. Mas coloca em contraponto
duas proposições, uma que pode ser atribuída a grupos de pessoas que assu-
mem posições diferentes do falante e outra que representa o ponto de vista do
autor. O ponto de vista do autor está contido na proposição introduzida pelo
mas e sempre ocupa a segunda posição no enunciado. Observe o uso desse ope-
rador nas frases abaixo:
124
A teoria da argumentação na língua
(22) Embora X seja um político empreendedor, ele já foi alvo de muitas de-
núncias de corrupção. Conclusão: não vote em X.
(25) Pedro é um político ambicioso, ele quer ser pelo menos prefeito.
Nas frases (24) e (25) as proposições que contêm os operadores até e pelo
menos apresentam argumentos para a conclusão Pedro é um político ambicio-
so. Na frase (24), foi apresentado o argumento mais forte: o máximo da ambi-
ção de um político no Brasil seria tornar-se Presidente da República. Na frase
(25) foi escolhido o argumento mais fraco, com a indicação de que poderia
haver outros mais fortes: pelo menos prefeito, mas com a pretensão de outros
cargos mais altos na escala: deputado estadual, deputado federal, senador,
presidente.
125
Lingüística III
(28) Nosso time vai ser campeão novamente. Aliás, isso não é novidade
nenhuma, depois da seqüência de vitórias das últimas semanas.
126
A teoria da argumentação na língua
Conclusão
Mostramos neste capítulo uma das vertentes do uso da argumentação. Os
trabalhos de Oswald Ducrot mostram que há uma série de características do
funcionamento das línguas naturais que permitem aos falantes fazer afirmações
indiretamente. O uso de frases que contenham pressuposições permite que afir-
mações não ditas explicitamente tenham de ser aceitas como verdades pelos in-
terlocutores como condição para a continuidade do diálogo. O uso de frases com
intenções subentendidas permite ao falante se esquivar da responsabilidade de
fazer explicitamente afirmações que lhe possam provocar algum desgaste.
Texto complementar
Para tanto, é preciso que ele se torne apto a apreender a significação pro-
funda dos textos com que se defronta, capacitando-se a reconstruí-los e a
reinventá-los.
127
Lingüística III
128
A teoria da argumentação na língua
O aluno deve ser alertado para o fato de que a maioria dessas marcas está
inserida na própria gramática das várias línguas, isto é, de que a argumen-
tatividade – possibilidade de, através de certos sinais, levar o interlocutor a
determinados tipos de conclusão, com exclusão de outras, é algo inerente à
própria língua, e não algo acrescentado a posteriori, em determinadas situa-
ções específicas de comunicação.
É preciso, pois, mostrar ao educando que as pistas que lhe são oferecidas
no texto tornam possível não só reconstruir o evento da sua enunciação, no
sentido de permitir-lhe apreender a intencionalidade subjacente ao texto,
como também recriá-lo a partir de sua vivência, de seu conhecimento e de
sua visão de mundo.
Importante é o aprendiz notar que cada nova leitura de um texto lhe per-
mitirá desvelar novas significações, não detectadas nas leituras anteriores.
Esse fato poderá, inclusive, servir-lhe de motivação, despertando-lhe maior
gosto pela leitura ao perceber que, pela reconstrução que ele próprio faz do
texto, acaba por recriá-lo, tornando-se, por assim dizer, o seu co-autor.
129
Lingüística III
Estudos lingüísticos
1. Identifique o posto e o pressuposto em cada uma das frases abaixo:
130
A teoria da argumentação na língua
131
Teoria da informação
Informação X redundância
O ponto de partida para a formulação dos conceitos de informação e
redundância é a identificação dos elementos presentes em qualquer situ-
ação comunicativa. A teoria da comunicação representa esses elementos
em um esquema clássico, representado no diagrama abaixo:
(Código)
Mensagem
Lingüística III
Para que a mensagem seja recebida por aqueles a quem se destina, uma pri-
meira condição é que ela seja codificada, quer dizer, que seja representada em
um sistema simbólico conhecido tanto pelo emissor quanto pelo recebedor. As
línguas naturais são, evidentemente, os sistemas simbólicos mais usados para a
comunicação, são “o código” por excelência. Além das línguas naturais, estamos
familiarizados também com vários outros códigos:
sinais de trânsito;
linguagem matemática;
sons musicais.
dirige a palavra ao seu interlocutor sejam ouvidas por ele, sem a necessidade de
nenhum recurso tecnológico. O canal é essa comunicação direta, frente a frente.
Para enviar a mensagem ao recebedor, você precisa codificá-la, representá-la em
um sistema lingüístico ou em algum outro sistema simbólico.
Suponha que você diga: “Olhe aqui, amigo, você deixou seu celular cair!”.
Uma condição para que a comunicação se efetive (que a mensagem codificada
lingüisticamente por você seja decodificada por seu interlocutor) é que vocês
conheçam a mesma língua (o mesmo código). Caso ele não fale português, você
terá de lançar mão de alguma forma alternativa de codificação de sua mensa-
gem: usar mímicas, por exemplo. Você pode mostrar-lhe o celular, apontar para
o local onde o aparelho caiu, fazer gestos representando essa queda.
135
Lingüística III
petidas vezes, para atingir um público que supostamente está com a atenção
dividida entre a telinha e outros apelos do ambiente doméstico.
Brigadeiro da Aeronáutica;
amanhecer o dia;
continuar a permanecer;
conviver junto;
136
Teoria da informação
empréstimo temporário;
escolha opcional;
fato real.
[– posterior] → [– arredondado]
Vogais do português
[+ posterior] → [+ arredondado]
137
Lingüística III
138
Teoria da informação
↑↑↑
Textos totalmente inusitados tendem a ser
Terceira ordem → no plano conceitual, pre- rejeitados pelo leitor, que não consegue
sença de informações inteiramente inusita- processá-los. Para serem interpretados, são
das; no plano formal, construções totalmente necessárias explicações que acrescentem
originais. informações conhecidas e permitam que o
texto passe à segunda ordem de informativi-
dade.
139
Lingüística III
Pare;
É proibido fumar;
Saída;
Acesso restrito;
Mas há também situações em que o leitor espera textos com um grau médio
de informatividade e se vê frustrado diante de produções que apresentam
apenas amontoados de lugares comuns. Isso pode ser observado na seguinte
redação de um vestibulando da UFMG:
Violência social
(VAL, 1991, p. 92)
140
Teoria da informação
Só o amor constrói. Vamos! Plante uma flor e faça germinar em seu cora-
ção, criando verdadeiras, fortes e férteis raízes.
Um texto como o que foi apresentado e comentado acima não apresenta afir-
mação alguma que consiga atrair o leitor, apresentar-lhe alguma dificuldade de in-
terpretação. Textos com grau muito baixo de informatividade tendem a ser rejeita-
dos por serem desinteressantes, por não trazerem novidade alguma para o leitor.
conseguirá fazer isso quando reunir pistas suficientes para perceber que o autor
representa aí o relato de um jogo de golfe do ponto de vista de uma persona-
gem com retardo mental. Para interpretar esse trecho, é necessário que o leitor
consiga elaborar um quadro a partir do qual as informações do parágrafo se in-
tegrem em um todo coerente, ou seja, é necessário que o texto seja rebaixado
para a segunda ordem de informatividade.
Conclusão
Mostramos neste capítulo como os conceitos de informação e redundância,
fundamentados na Teoria da Informação, tornaram-se instrumentos para algu-
mas áreas dos estudos lingüísticos. Observa-se um primeiro uso desses conceitos
na formulação do conceito de traços tanto na fonologia quanto na semântica.
143
Lingüística III
Texto complementar
Redação e textualidade
(VAL, 1991, p. 30-33)
144
Teoria da informação
145
Lingüística III
a ser rejeitado. Mesmo que não chegue a ser tomado como não-texto, é ava-
liado como produção de má qualidade, com a qual não vale a pena perder
tempo. Em suma, mesmo para textos coerentes e coesos, um baixo poder
informativo tem como correlata uma baixa eficiência pragmática.
Estudos lingüísticos
1. Leia o seguinte trecho de uma redação escolar reproduzido no livro Proble-
mas de Redação (PÉCORA, 1983, p. 82):
[...] quanta coisa linda ao nosso redor; quer mais do que a pureza e in-
ocência do sorriso de uma criança? Quer mais do que a simplicidade de uma
flor? Acho que todos os nossos problemas ficam muito pequenos em meio a
tanta paz, a tanta simplicidade, em meio a tanta força.
146
Teoria da informação
147
Lingüística III
148
Teoria da informação
149
Teoria dos atos de fala
152
Teoria dos atos de fala
Tomemos a conhecida frase usada nas cerimônias de casamento: “Eu vos de-
claro marido e mulher.” Esse enunciado tem o poder de transformar o estatuto
153
Lingüística III
Embora esse enunciado tenha a forma de uma pergunta, o falante está fa-
zendo um pedido, tanto que se a resposta for simplesmente “Tenho”, esta será
considerada uma resposta inadequada e não cooperativa.
154
Teoria dos atos de fala
As enunciações performativas
Conforme Austin (1970, p. 40) aponta, é possível reconhecer em qualquer
língua casos em que a enunciação de certas frases corresponde à realização de
ações. Veja alguns exemplos:
(11) Por este instrumento de procuração, nomeio José da Silva meu rep-
resentante junto à Receita Federal.
Mas não é qualquer uso do verbo prometer que constitui o ato ilocucionário de
fazer uma promessa. Para tanto, é necessário que a forma seja usada na primeira
pessoa, no tempo presente e na voz ativa (AUSTIN, 1970, p. 26). Caso contrário, o
enunciado que contêm esse verbo passará a ser um enunciado comum, que faz
a representação de um evento ocorrido no mundo. Compare as frases (8) a (11)
com as correspondentes (8’) a (11’):
155
Lingüística III
(10’) Cláudia deixou para seu irmão a coleção de discos dos Beatles.
Atos locucionários
O reconhecimento de que o falante produz um ato locucionário é o primeiro
estágio da análise dos atos de fala. Trata-se do reconhecimento de que ele se
utiliza de uma seqüência de palavras que constituem frases bem-estruturadas
na língua utilizada.
Com o reconhecimento desse primeiro nível para a análise dos atos de fala,
Austin (1970) e Searle (1981) colocam em evidência que a primeira condição
para que um enunciado possa ser reconhecido como um ato de fala é o fato de
ser produzido segundo as convenções de uma língua natural em todos os seus
níveis: fonologia, sintaxe, semântica. Antes de se atribuir ao enunciado produzi-
156
Teoria dos atos de fala
Atos ilocucionários
Como comentamos acima, os atos ilocucionários correspondem às ações que
os falantes pretendem realizar quando produzem os enunciados. Os atos ilocu-
cionários correspondem à realização de ações como pedir, cumprimentar, prome-
ter, exigir, desculpar-se, censurar etc. Veja alguns exemplos:
(15) Se você tirar boas notas vai ganhar uma bicicleta no Natal. (promessa)
(17) É proibido fumar aqui, você poderia ir para a área de fumantes? (or-
dem)
157
Lingüística III
Esses são alguns dos atos ilocucionários que Searle analisa. É interessante
observar que em todas as análises um dos componentes fundamentais das
condições de felicidade é a sinceridade do falante. Toda a análise dos atos ilocu-
cionários tem a sinceridade como um dos seus pilares. Para que esse modelo de
análise fosse adotado por outras comunidades de fala diferentes dos britânicos,
seria necessário um estudo preliminar para avaliar quais seriam as normas de
interação vigentes para cada grupo. As diferenças culturais podem levar à for-
mulação de condições bem diferentes associadas aos atos ilocucionários.
Atos perlocucionários
Finalmente, um terceiro nível proposto por Searle (1984, p. 37) para a análise
dos atos de fala é o perlocucionário:
158
Teoria dos atos de fala
Para fazer esse estudo, seria necessário em primeiro lugar fazer um levanta-
mento dos atos ilocucionários e das possíveis conseqüências desses atos para os
ouvintes, ou seja, seria necessário elaborar uma tabela de correspondência entre
os dois conjuntos de atos de fala:
Etc... Etc...
Conclusão
Os estudos sobre os atos de fala que sintetizamos neste capítulo têm como
um de seus pressupostos nucleares a concepção dos interlocutores como indi-
159
Lingüística III
Texto complementar
160
Teoria dos atos de fala
Aceito (resposta à pergunta Aceita essa mulher como sua legítima esposa?,
na cerimônia de casamento);
Eu te perdôo.
4
A expressão “condições de felicidade” do performativo não é uma boa denominação em português. Seria melhor dizer “condições de sucesso”. No
entanto, a partir da tradução do texto de Austin, essa expressão começou a ser usada e é encontrada em muitos textos de Pragmática.
161
Lingüística III
Como já foi dito, Austin põe em xeque a ilusão descritiva, quando mostra
que há afirmações que descrevem estados de coisas e que podem ser verda-
deiras ou falsas – as constativas – e afirmações que não descrevem nada, mas
pelas quais se executam atos, que podem ser felizes ou infelizes, ter sucesso
ou fracassar – as performativas. Os constativos são verdadeiros se existe o
estado de coisas que eles descrevem, e falsos em caso contrário. Os perfor-
mativos têm sucesso quando certas condições são cumpridas, e fracassam
quando não o são. Em Eu jogo futebol, o fato de jogar independe de minha
enunciação; em Eu me desculpo pelo que ocorreu, o fato de desculpar-se de-
pende de minha enunciação.
162
Teoria dos atos de fala
Proibido fumar;
163
Lingüística III
Estudos lingüísticos
Leia o trecho a seguir, que é parte de uma crônica em que João Ubaldo Ribeiro
relembra episódios relacionados ao exame vestibular “do seu tempo”, quando
os candidatos eram submetidos a uma prova oral diante de uma platéia.
O verbo “for”
(RIBEIRO, 2000, p. 20)
[...]
Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra
“for” tanto podia ser do verbo “ser” quanto do verbo “ir”. Pronto, pensei. Se ele
distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja
o que Deus quiser.
− Verbo for.
− Verbo o quê?
− Verbo for.
164
Teoria dos atos de fala
− Eu fonho, tu fões, ele fõe − recitou ele, impávido. − Nós fomos, vós
fondes, eles fõem.
[...]
165
Lingüística III
166
Teoria dos atos de fala
167
As máximas conversacionais
Correspondentes
Símbolos lógicos no português
( língua natural)
Negação ¬ não
Conjunção ∧ e
Disjunção ∨ ou
Implicação → se... então...
Lingüística III
170
As máximas conversacionais
171
Lingüística III
Princípio de cooperação
(GRICE, 1982, p. 86)
Máxima da quantidade
A primeira máxima que Grice propõe ao especificar as formas de realização
do princípio da cooperação é a máxima da quantidade, que está relacionada ao
volume de informações fornecidas pelo falante em cada turno. Em cada situação,
há uma quantidade de informação esperada. A máxima da quantidade coloca
em evidência a inadequação aos propósitos da conversação que se observa
quando alguém dá mais informações do que o esperado em cada situação.
Diálogo 1:
– Idade?
– 35 anos.
– Profissão?
– Cabelereira.
172
As máximas conversacionais
– Local de nascimento?
Diálogo 2:
– É Maria das Graças. Minha mãe é muito devota de Nossa Senhora das
Graças e por isso escolheu esse nome. Até hoje ela sempre apela para a Santa
cada vez que tem um problema.
– É Maria das Graças Dias da Silva. Dias da família da minha mãe e da Silva
do meu pai. Da grande família do presidente Lula, não é?
– Sua idade?
– Fiz 35 no mês passado. Que dureza! Daqui a pouco chego aos 40.
– Profissão?
– Trabalho num salão bem grande, que fica bem aqui perto. Faço tintura,
corte, escova...
– Olha, nasci numa cidade que fica no noroeste do Rio Grande do Sul, lá
onde ficam as ruínas de São Miguel, já ouviu falar?
– Não...
173
Lingüística III
Máxima da quantidade
(GRICE, 1982, p. 86-87)
Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requeri-
do (para o propósito corrente da conversação).
Máxima da qualidade
A segunda máxima formulada por Grice estabelece uma relação entre a quali-
dade e a veracidade das informações. Para satisfazer essa máxima, o falante só deve
apresentar informações que ele acredita serem verdadeiras e para as quais possa
apresentar evidências adequadas. Grice divide a formulação dessa máxima em duas
partes, uma supermáxima de caráter geral e duas máximas que a especificam:
Máxima da qualidade
(GRICE, 1982, p. 87)
Supermáxima:
174
As máximas conversacionais
Máximas específicas:
Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência ade-
quada.
Não queremos fazer aqui uma defesa da mentira, mas apontar que a máxima
da qualidade, tal como formulada por Grice, não é aplicável de maneira irrestrita
em qualquer contexto interativo.
É claro que há também muitos casos em que a pessoa mente de forma deli-
berada, para preservar interesses pessoais: um criminoso pode mentir a respei-
to das circunstâncias em que cometeu o crime, caso ele e seu advogado consi-
derarem que a mentira o favorece; um atleta flagrado em um exame antidoping
vai certamente negar o que faça uso de substâncias proibidas para aumentar
seu desempenho. Mas nesses casos é fácil perceber que o princípio de coope-
ração foi violado.
175
Lingüística III
Máxima da relação
A máxima da relação diz respeito à contribuição da participação de cada falan-
te para o tema da conversação, ao grau de relevância de cada intervenção para o
tema em foco. Grice formula a máxima da relação em termos bem simples:
Máxima da relação
Seja relevante.
176
As máximas conversacionais
Máxima do modo
Essa última máxima difere das demais porque não trata do que é dito, mas
de como os falantes organizam aquilo que dizem. A qualidade mais importante
da forma de apresentar qualquer contribuição conversacional é a clareza. Assim,
Grice propõe a clareza como uma supermáxima e especifica os princípios que
contribuem para a clareza em um conjunto de formulações complementares, que
poderia ainda ser ampliado.
Máxima do modo
(GRICE, 1982, p. 87-88)
Supermáxima:
Seja claro.
Máximas específicas:
Evite ambigüidades;
Seja ordenado;
Etc.
177
Lingüística III
[...]
Tudo por quê? Por ter terminado a fase do pensamento em 1935, pas-
sando o mundo por horas horríveis e terríveis, por momentos difíceis, por
desconhecer a fase de recuperação, a fase racional.
Implicatura conversacional
Como já apontamos, a implicatura conversacional corresponde a uma conclu-
são que os participantes de um evento conversacional extraem a partir das infor-
178
As máximas conversacionais
Apesar de Carlos não dizer explicitamente que não sabe o nome da cidade,
Maria pode concluir isso, aplicando o princípio de cooperação às informações
dadas. Supondo que Carlos esteja sendo cooperativo, ela pode concluir que a
resposta para a sua questão contém as melhores informações que ele tem para
oferecer. Se o máximo que ele pode dizer é o nome e alguma localidade próxi-
ma, é lícito deduzir que ele não sabe mais do que isso.
Conclusão
Vimos nesta unidade uma forma particular de estudar a conversação: a aná-
lise feita por Grice há quatro décadas mostra que as interações verbais têm uma
179
Lingüística III
organização diferente da linguagem lógica, mas que são também regidas por
princípios claros e gerais. O princípio de cooperação e as máximas conversacio-
nais são, até hoje, um instrumento interessante para explicar como as pessoas
raciocinam, para extrair conclusões relevantes a partir das informações forneci-
das pelos interlocutores.
Texto complementar
Texto 1
(TRASK, 2004, p. 238-239)
Uma dessas máximas reza: Faça com que sua contribuição seja relevante.
Na década de 1980, a lingüista britânica Deirdre Wilson e o filósofo francês
Dan Sperber defenderam que, recorrendo apenas a essa máxima, seria possí-
vel dar conta de quase tudo aquilo que interessa. Sua Teoria da Relevância
afirma que os enunciados são interpretados de modo tal que eles se com-
180
As máximas conversacionais
Texto 2
(TRASK, 2004, p. 142-144)
Um segundo ponto é que Alice assume que Guilherme está sendo co-
operativo. Se Guilherme soubesse ao certo se Suzana viria ou não viria à
festa, Alice teria esperado que ele o dissesse; ou então ele não teria sido co-
181
Lingüística III
operativo. Além disso, Alice tem todo o direito de assumir que o concerto
em questão tem de ser no sábado; se o concerto tivesse sido na sexta, o
comportamento de Guilherme não só teria sido anti-cooperativo – isto é,
irrelevante –, mas teria sido francamente enganador. Portanto, Alice assume
que Guilherme está cooperando e tira sua conclusão a partir disso.
Uma propriedade notória das ICs é que elas são canceláveis – podem ser
negadas explicitamente sem produzir anomalias. Suponha-se que a resposta
de Guilherme fosse Bom, o Davi quer ir a um concerto, mas a Suzana decidiu
ainda assim vir à festa de Miguel. Aqui, Guilherme está negando expressa-
mente a IC Suzana provavelmente não virá à festa, mas o resultado ainda é
bom. Isso demonstra que as ICs não são logicamente válidas. São, isso sim,
inferências poderosas, e as ICs que não são negadas são assumidas como
verdadeiras pelo ouvinte.
As ICs têm, portanto, uma natureza muito diferente da dos dois outros prin-
cipais tipos de inferência, o acarretamento e a pressuposição; entre outras
coisas, nenhum destes pode ser negado sem produzir uma anomalia.
Estudos lingüísticos
1. Observe o seguinte diálogo:
182
As máximas conversacionais
– Seria muito bom se estivesse tudo bem. Saí atrasado de casa e ainda
fiquei preso uma hora no trânsito. Por azar o carro estava com pouca gaso-
lina e demorei a chegar ao posto. Tive ainda de ficar na fila para abastecer....
Mulher: – O telefone!
Que implicaturas se pode extrair das falas desse casal a partir das máximas
conversacionais?
183
Lingüística III
– Ela é bonita?
184
As máximas conversacionais
185
Conceitos básicos da Análise do Discurso
Nos capítulos que tratam da Análise do Discurso, nossa opção foi discu-
tir apenas da abordagem de origem francesa. Essa decisão não decorre de
uma avaliação das duas vertentes, pois ambas fazem análises interessan-
tes e pertinentes. Nossa decisão foi motivada pela preferência no Brasil de
se reservar a expressão Análise do Discurso para a abordagem francesa e
pelo volume de estudos produzidos no país nos últimos anos a partir dos
pressupostos adotados por ela.
Lingüística III
188
Conceitos básicos da Análise do Discurso
Mussalim (2001, p. 107) destaca ainda o terceiro elemento nuclear para a cons-
tituição inicial da análise do discurso: a Psicanálise lacaniana. O desenvolvimento
da Psicanálise e os trabalhos de Freud levaram a uma revisão do conceito tradi-
cional de sujeito, que via os indivíduos (falantes) como homogêneos e racionais.
Freud mostra que o sujeito é fragmentado entre o consciente e o inconsciente.
Lacan faz a releitura de Freud e recorre à lingüística estrutural para caracterizar
o inconsciente: segundo ele, o inconsciente se estrutura como uma linguagem,
um discurso latente que interfere no discurso efetivamente produzido.
189
Lingüística III
190
Conceitos básicos da Análise do Discurso
são depois colocadas em contato. Nessa última fase, a AD não toma como objeto
de estudo os discursos considerados de forma autônoma, mas o interdiscurso
onde eles estão intrinsecamente relacionados.
A noção de formação discursiva foi elaborada por Pêcheux a partir das propo-
sições de Foucault e tem dois tipos de funcionamento:
191
Lingüística III
Perguntaram a um fulano se ele era racista. Ele disse que não, só não gosta-
va muito de alemão. Mas logo de alemão? Por quê? E ele respondeu: É que eles
poderiam ter acabado com os judeus e fizeram um serviço de preto. (POSSENTI,
1998, p. 38)
O conceito de discurso
Charaudeau e Maingueneau (2006, p. 171-172) mostram que o conceito de
discurso tem múltiplos usos dentro da Lingüística. Os autores apresentam esses
usos a partir de algumas afirmações que destacam propriedades dos discursos.
Algumas delas colocam em evidência características que são importantes para
a Análise do Discurso.
O discurso é contextualizado
Os autores procuram destacar com essa afirmação que não se pode atribuir
sentido a um enunciado fora de contexto. O contexto não funciona como uma
192
Conceitos básicos da Análise do Discurso
moldura, um cenário para o texto; não existe discurso que não seja contextuali-
zado. Além disso, o discurso participa da definição do contexto e pode modificá-
lo ao longo do processo de enunciação.
O discurso é assumido
Todo discurso é produzido por um enunciador e se dirige a interlocutores es-
pecíficos. O locutor é a fonte das referências pessoais, espaciais e temporais (eu/
aqui/agora) e também de atitudes tanto em relação ao tema do discurso quanto
a seus interlocutores. Ou seja, todo discurso apresenta marcas de subjetividade.
O locutor pode, por exemplo, mostrar graus diferenciados de adesão ao que
afirma: “É provável que eu viaje no domingo.” Pode também atribuir a outras pes-
soas a responsabilidade sobre o que afirma: “Segundo o presidente do banco,
o dólar vai se desvalorizar.” Pode fazer uma avaliação sobre o que enuncia: “Fe-
lizmente, o dólar vai se desvalorizar.” Pode ainda revelar seus pressupostos em
relação ao interlocutor: “Como você sabe, o dólar está desvalorizado.”
193
Lingüística III
as referências têm de apresentar as fontes, que por sua vez têm de ser confiáveis
(autor, obra, data, páginas etc.); no texto publicitário as citações são difusas e
em geral sem identificação da fonte (“os outros detergentes...”, “vendemos mais
barato que a concorrência”, “temos o melhor preço”).
Discurso e interdiscurso
Para formular o conceito de interdiscurso, Maingueneau (1989, p. 116-117)
toma como ponto de partida um conjunto de distinções:
194
Conceitos básicos da Análise do Discurso
– Tenho que dar-lhes uma notícia boa e outra ruim. A boa é que Deus
existe, tal como supúnhamos. A ruim é que o mundo vai acabar.
– Tenho que dar-lhes duas boas notícias: Deus existe... e todos os problemas
do Brasil vão se resolver em poucos dias. (POSSENTI, 1998, p. 113)
Essa piada já ficou velha, pois circulou em 1997, quando Bill Clinton, Boris
Ieltsin e Fernando Henrique Cardoso eram, respectivamente, presidentes dos
Estados Unidos, Rússia e Brasil. O mote da piada, como mostra Possenti (1998,
p. 112), é explorar uma representação dos políticos como se nunca contassem
a verdade, como se distorcessem as informações de forma a preservar seus
interesses.
Mas o que nos interessa agora em relação a esse discurso é mostrar como ele
é construído a partir dos sentidos que as afirmações “Deus existe” e “o mundo
vai acabar” assumem nos campos discursivos da religião e da política a partir de
formações discursivas diferentes.
195
Lingüística III
o Brasil, país com problemas sociais e econômicos graves, para o qual o fim do
mundo também é uma notícia ruim. Mas entra em jogo a imagem do político
brasileiro, que apresenta a previsão do fim do mundo como se fosse uma boa
notícia. Não se pode dizer que o presidente estivesse mentindo, porque se o
mundo acabasse, todos os problemas do país terminariam também, mas o que
ele diz está longe da verdade. A piada explora a atitude de dissimulação dos po-
líticos brasileiros, que mascaram os fatos conforme seus interesses.
Conclusão
Procuramos apresentar neste capítulo alguns conceitos que têm um papel
importante na construção do corpo teórico da Análise do Discurso francesa. Foi
uma apresentação ainda bastante preliminar, mas que pode ajudar os interessa-
dos na área a se situar em relação à imensa produção de trabalhos nessa linha
que se observa entre os lingüistas atualmente.
Texto complementar
Interincompreensão ou má fé?
(POSSENTI, 2000, p. 84-60)
196
Conceitos básicos da Análise do Discurso
197
Lingüística III
Alguém mais grosseiro poderia dizer que Dines não sabe ler. Mas o que
fez se explica pela tese de Maingueneau. Ele deve pensar que é um jorna-
lista objetivo. Comanda um programa de TV cujo bordão é: “assistindo ao
Observatório da Imprensa, você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”. O
exemplo aqui analisado mostra que, de duas, uma: ou se trata de má fé, ou
então os que acham que a ideologia cega as pessoas e distorce a realidade
têm total razão. Em qualquer dos casos, foi-se a suposta objetividade.
Estudos lingüísticos
1. Leia a piada abaixo:
– Mas, Primeiro Ministro, pense bem. Não acha que é muito dinheiro
por três dias?
198
Conceitos básicos da Análise do Discurso
O valor da vida, cá e lá
(ROSSI, 2006)
199
Lingüística III
200
Conceitos básicos da Análise do Discurso
201
O sujeito na Análise do Discurso
1
O autor refere-se a: JAKOBSON, Roman. Essais de Linguistique Générale. Paris: Minuit, 1963.
Lingüística III
O destinador envia uma mensagem ao destinatário. Para ser operante, a mensagem requer
antes um contexto ao qual ela remete (é isto que chamamos também, em uma terminologia
um pouco ambígua, o “referente”), contexto apreensível pelo destinatário e que é verbal ou
suscetível de ser verbalizado; em seguida a mensagem requer um código, comum, ou ao
menos em parte, ao destinador e ao destinatário (ou, em outros termos, ao codificador e ao
decodificador da mensagem). A mensagem requer, enfim, um contato, um canal físico ou uma
conexão psicológica entre o destinador e o destinatário, contato que permite estabelecer e
manter a comunicação. (Jakobson apud Pêcheux, 1993, p. 81)
(£)
D
A B
R
B: o “destinatário” (interlocutor);
204
O sujeito na Análise do Discurso
205
Lingüística III
Para uma reflexão sobre o conceito de jogo de imagens na análise das con-
dições de produção do discurso, vamos fazer a leitura da carta através da qual o
então presidente da República Jânio Quadros renunciou ao seu cargo em 25 de
agosto de 1961.
Fui vencido pela reação e, assim, deixo o governo. Nestes seis meses
cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavel-
mente, sem prevenções nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços
para conduzir esta nação pelo caminho da sua verdadeira libertação política
e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social,
a que tem direito o seu generoso povo. Desejei um Brasil para os brasileiros,
afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam
os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, in-
clusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se
contra mim e me intrigam ou infamam, até com desculpa da colaboração.
Não pretendemos aqui fazer uma análise do contexto histórico em que a car-
ta-renúncia de Jânio Quadros foi produzida. Queremos apenas apontar alguns
elementos que mostram a construção do conjunto de imagens nessa carta. Ob-
servemos, inicialmente, as indicações no discurso da imagem que Jânio tem do
lugar a partir do qual enuncia. Ao escrever o discurso através do qual deixa de
ocupar o lugar de presidente da República, ele usa uma série de expressões que
revelam a imagem que tem do papel social esperado para o ocupante desse
lugar: “cumpri o meu dever”, “meus esforços para conduzir esta nação pelo cami-
nho de sua verdadeira libertação”, “exercício de minha autoridade”, “esta página
da minha vida e da vida nacional”.
Essas expressões mostram que aquilo que o presidente diz é limitado pelo
que ele pode dizer a partir do lugar de onde fala e do momento histórico em que
produz seu discurso: mostra ter consciência de que sua carta teria como efeito
produzir uma mudança na vida nacional (talvez não tenha percebido o alcance
dessa mudança) e mostra a imagem do presidente da República como alguém
que tem a responsabilidade sobre a direção que o país vai tomar e necessita de
autoridade para assumir esse papel.
No final da carta, Jânio Quadros aponta que passará a falar de outros lugares,
como advogado e professor, e revela, mais uma vez, a imagem que associa a
esses outros lugares: de quem trabalha para “servir a pátria”.
208
O sujeito na Análise do Discurso
algo que se manifesta de forma dispersa, o sujeito também tem essa mesma ca-
racterística. Ou seja, um mesmo indivíduo que fala como deputado na conven-
ção do seu partido, pode falar também em outros contextos como advogado,
como pai, como católico, como torcedor de um time de futebol. O sujeito passa
a ser entendido como alguém que desempenha diferentes papéis, conforme as
posições que ocupa no espaço do interdiscurso, ou seja, no espaço dos discursos
que estão em relação numa conjuntura determinada.
Com relação, portanto, às concepções de sujeito da AD-1 e da AD-22, pode-se dizer que, apesar
de diferentes, elas são influenciadas por uma teoria da ideologia que coloca o sujeito no
quadro de uma formação ideológica e discursiva (BRANDÃO, 1994). Nesse sentido é que para
a AD não existe o sujeito individual, mas apenas o sujeito ideológico: a ideologia se manifesta
(é falada) através dele.
209
Lingüística III
Aquilo que um sujeito pode dizer é limitado pela formação discursiva a partir
da qual enuncia. Mussalim explicita essa afirmação:
O que é e o que não é possível de ser enunciado por um sujeito já está demarcado pela própria
formação discursiva na qual está inserido. Os sentidos possíveis de um discurso, portanto, são
sentidos demarcados, preestabelecidos pela própria identidade de cada uma das formações
discursivas colocadas em relação no espaço discursivo. (MUSSALIM, 2001, p. 131-132)
(b) A universidade não é para todos, é para os mais qualificados. Não se admite
a adoção de mecanismos que permitam o ingresso de qualquer um e pro-
voquem a queda da qualidade de ensino.
210
O sujeito na Análise do Discurso
Conclusão
Neste capítulo apresentamos mais um conjunto de formulações construídas
pela Análise do Discurso francesa. Com isso, esperamos ter fornecido instrumen-
tos não só para a compreensão de estudos discursivos feitos por especialistas, mas
também para uma leitura crítica dos discursos com que convivemos diariamente.
Texto complementar
A negação da velhice:
uma discursividade ancorada na memória
(SILVA SOBRINHO, 2005, p. 241-246)
Introdução
A negação da velhice nos pôs diante da possibilidade de refletir sobre o
funcionamento desse processo discursivo e sua necessária ancoragem na
211
Lingüística III
[...]
4
Entendemos por FD o espaço heterogêneo de reformulação-paráfrase, que determina o dizer com suas permissões e proibições em acordo com
a formação ideológica que está a representar em uma conjuntura sócio-histórica. Pêcheux (1997); Courtine (1982).
212
O sujeito na Análise do Discurso
Todo discurso tem relação com a memória que acaba constituindo a sua
base de sustentação devido à existência de sentidos que estão sedimenta-
dos e que circulam nas práticas sociais como “evidências” confirmadas como
naturais, simulando a sua ahistoricidade. Entre os vários dizeres sobre a ve-
lhice encontramos, circulando no meio social, processos discursivos clara-
mente marcados pela negação em que se destacam os sujeitos históricos
posicionados discursivamente para recusar tal denominação quando fazem
referência a si próprios. Para desenvolver essa reflexão tomamos algumas
falas de idosos que participam do grupo de terceira idade do Sesc/Alagoas
(os recortes fazem parte do corpus da pesquisa que desenvolvemos no dou-
torado em Lingüística – UFAL). Na verdade, foi a materialidade discursiva que
nos instigou a pensar a relação entre negação e memória, uma vez que en-
contramos inúmeras seqüências que claramente se mostravam negadoras
da velhice. Vejamos:
(1). A velhice... eu não sei, essa palavra pra mim pelo menos eu acho que não existe pra
mim. Porque eu não me sinto velha, eu me sinto uma pessoa assim... por dentro jovem...
agora... por fora... você sabe... que a idade né! a idade da gente demonstra. Mas mesmo
assim eu não me sinto velha, eu me sinto jovem, jovem mesmo. Gosto de brincar, gosto de
viajar, gosto de tudo. (A.P.C. 67 anos, grupo de terceira idade do Sesc-AL)
Notamos que o idoso, se por um lado, nega-se ser velho, a velhice não
existe pra mim, por outro, não nega os sentidos dominantes de velhice, ao
contrário, os sustenta, pois se diz jovem porque gosta de coisas que são tidas
como sendo especificamente de jovens. O efeito ideológico imaginário ali
atua, gostar de brincar, viajar, tudo, não se enquadra no que se espera de
uma pessoa velha e isso é reproduzido no discurso do idoso. Por conseqü-
ência ela se diz não-velha. O efeito do interdiscurso enquanto pré-constru-
213
Lingüística III
ído pressiona de maneira decisiva, pois todos “sabem” o que é e como é ser
jovem e o que caracteriza o velho em nossa sociedade. O discurso expressa
as contradições subjacentes ao jogo de imagens, pois esse idoso não se en-
quadra em tal perfil, não se ajusta à imagem sedimentada de velhice.
[...]
214
O sujeito na Análise do Discurso
(2). Me chamou de velho me maltrata, eu não sou velho! Eu só tenho 73, mas se um dia eu
envelhecer eu vou vê como velho vive. Que até agora eu sou jovem. Eu sou adolescente...
da meia idade. (N. 73 anos, grupo da terceira idade do Sesc-AL)
[...]
Estudos lingüísticos
O texto a seguir e as informações que descrevem as condições em que foi
produzido foram usados no vestibular 2008 da Universidade Federal do
Paraná.
215
Lingüística III
[...] No Brasil, morre por subnutrição uma criança a cada dois minutos,
mais ou menos. A população de nosso planeta já ultrapassou seis bilhões de
pessoas e um terço deste contingente passa fome, diariamente. A miséria se
alastra, os problemas sociais são gigantescos e causam a criminalidade e a
violência generalizada. Vivemos em um mundo de exclusão, no qual a bru-
talidade supera com larga margem os valores humanos. O Poder Judiciário é
incapaz de proporcionar um mínimo de Justiça Social e de paz à sociedade.
Sob meu ponto de vista, quem consente com a futilidade a ela está sub-
metida. Ora, no momento em que uma pessoa aceita participar destes tipos
de bailes, aliás, nos quais as indumentárias, muitas vezes, se confundem com
fantasias carnavalescas, não pode, após, insurgir-se contra as regras sociais
deles emanadas. Se frívolo é o ambiente, frívolos são todos os seus atos. Na
216
O sujeito na Análise do Discurso
Para finalizar, após analisar as fotografias juntadas aos autos [...] não posso
deixar de registrar uma certa indignação de ver uma jovem tão bonita ser
submetida, pela sociedade como um todo, incluindo-se sua família e o pró-
prio requerido, a fatos tão frívolos, de uma vulgaridade social sem tamanho.
Esta adolescente poderia estar sendo encaminhada nos caminhos da cultura,
da literatura, das artes, da boa música. Poderia estar sendo incentivada a lutar
por espaços de lazer, de saber e de conhecimento. Mas não. Ao que parece,
seus valores estão sendo construídos pela inutilidade de conceitos e práticas
de exclusão. Cada cidadão e cidadã é livre para escolher seu próprio cami-
nho. Mas quem trilha as veredas das galas de rigor e das altas sociedades,
data venia, que aceite seus tempos e contratempos, e deixe o Poder Judiciário
cuidar dos conflitos realmente importantes para a comunidade em geral. [...]
217
Lingüística III
218
O sujeito na Análise do Discurso
2. A sentença do juiz L.R.A. exemplifica uma das teses da terceira fase da Análi-
se do Discurso: seu discurso é construído a partir da disputa entre duas for-
mas diversas de interpretar o mesmo fato, ou seja, da disputa entre duas
formações discursivas diferentes. Mostre como essa relação interdiscursiva
se manifesta na sentença do juiz.
219
Exemplos de Análises do Discurso
O segundo estudo tem como autora Érica Karine Ramos Queiroz e dis-
cute “O Mito de Informatividade, Imparcialidade e Objetividade em Fun-
cionamento nos Comentários Telejornalísticos”. Trata-se de um artigo pu-
blicado na revista Estudos Lingüísticos (XXXIV, 2005).
Algumas das palavras citadas por Possenti como não claramente discrimina-
tórias fazem referência à mula (mulato), ao negro (denegrir), ao judeu (judiar) de
forma pejorativa; outras podem ser interpretadas como formas de destacar a
superioridade masculina: anchorman, history.
222
Exemplos de Análises do Discurso
de que o candidato deveria saber que a palavra “mulato” tem origem pejorativa
e que certos movimentos negros lutam contra sua utilização.
O autor escolhe um caso para estudo que mostra com clareza a existência
de grupos organizados em torno do sentido das palavras, e que lutam para que
alguns sentidos sejam vitoriosos e outros eliminados. Segundo ele, são “exem-
plos vivos de que a significação só pode ser explicada através de uma história,
concebida como luta de classes, luta que se dá tanto em torno de bens materiais
quanto em torno de bens simbólicos”.
223
Lingüística III
Possenti destaca que essa carta relaciona claramente algumas palavras aos
discursos a que pertencem: “homossexual” pertenceria a um discurso médico
e um discurso ascético, portanto seu uso seria politicamente correto. A carta
mostra também uma diferença na avaliação dos efeitos de sentido decorrentes
do uso da palavra “gay”: enquanto a Folha de S. Paulo julga esse uso preconcei-
tuoso, os homossexuais consideram que esta é a palavra mais adequada para
identificá-los. Luiz Mott lança mão de informações etmológicas para justificar
sua posição.
224
Exemplos de Análises do Discurso
importância de Galileu Galilei na história, há um trecho onde lê-se “um dos períodos mais negro
(sic!) da história”. Devido a essa frase, venho expor meu repúdio e questionamento. No momento
em que isso é referido, não há afirmação de que negro é sinônimo de desgraça histórica? (Robson
Carlos Almeida, Salvador- BA)
ISTOÉ explica: No sentido em que a palavra negro foi usada, ela é tão ofensiva quanto dizer que
houve um golpe branco em um determinado país, por exemplo.”
Este exemplo mostra que a palavra “negro”, no enunciado em que foi usada,
tem efeitos de sentido diferentes para a revista e para o autor da carta. Mas a
questão não é simples. A revista usa a expressão “revolução branca” para desig-
nar uma revolução sem derramamento de sangue, o que pode ser considerado
positivo. A questão é: que expressão se opõe a “revolução branca”? Se for a “pe-
ríodo negro”, a resposta da revista confirmaria a interpretação do autor da carta,
ou seja, haveria a possibilidade de se associar esse uso a uma postura racista.
Possenti conclui:
Mas a questão ficaria certamente diferente se mostrasse que a ocorrência de “negro” na
expressão “período negro da história”, é retomada de um domínio no qual se encontra
também, por exemplo, a expressão “nuvens negras no horizonte”, na medida em que esta
expressão refere-se a determinadas condições meteorológicas ou atmosféricas. Mesmo que
esta expressão seja aplicada, por exemplo, ao clima político ou econômico de determinado
país, imaginar que veicule racismo provavelmente é exagero. Como a cor escura das nuvens
costuma efetivamente ser prenúncio de tempestades, a conotação racista negativa não se
produz, já que tal discurso se funda em discursos sobre fatores climáticos, e não em discursos
sobre raças e etnias. A associação possível (e histórica) é de negrume com noite, e de noite com
obscurantismo intelectual. Esta associação também leva a concluir que “período negro” pode
não conotar discurso racista. Na reportagem da revista que a carta critica, a palavra “negro”
foi interpretada como se veiculasse sentido pejorativo relativamente à raça negra. (POSSENTI,
2002, p. 49)
225
Lingüística III
Para encerrar sua análise, Possenti lembra que o humor vive em grande parte
dos preconceitos. Se o movimento em defesa do comportamento politicamente
correto fosse vitorioso, o humor poderia desaparecer. Mas o que se observa atu-
almente é que o movimento tem sido alvo dos humoristas. Possenti reproduz ao
final exemplos de diálogos usados por Luis Fernando Verissimo em um conjunto
de tirinhas para fazer humor brincando com a linguagem politicamente correta:
226
Exemplos de Análises do Discurso
(Rede Globo), Jornal da TV (Rede Cultura), Jornal da Band (Rede Band) e Jornal
do SBT (Rede SBT). O critério inicial para a escolha das notícias foi a semelhan-
ça temática, ou seja, o mesmo conjunto de acontecimentos. A autora justifica
nos seguintes termos a seleção de cinco telejornais:
Cabe assinalarmos que uma notícia nunca é a mesma visto que se constrói, se significa
diferentemente de um jornal para outro em função da determinação ideológica, da posição
de onde é noticiada, das diferentes interpretações possíveis para um mesmo fato produzindo
deslocamentos, sentidos outros. (QUEIROZ, 2005, p. 976)
227
Lingüística III
palmente a partir de duas escolhas lexicais para se referir ao mesmo fato: “de-
sapropriar” e “retomar”. “Desapropriar” tem o efeito de sentido de legalidade. O
comentarista escolhe esta expressão ao citar a fala do diretor da associação das
estradas do Paraná. Já o verbo “retomar” produz o efeito de ilegalidade, de trans-
gressão e é usado ao citar a fala do governador do estado.
Queiroz conclui:
Assim, se considerarmos que o sentido é construído historicamente e que a escolha lexical não
é aleatória, torna-se pertinente notarmos que a inscrição-identificação desse sujeito discursivo
está na fronteira móbil das formações discursivas. Melhor dizendo, compreendemos que
mais de uma formação discursiva está funcionando na construção discursiva desta notícia,
sendo dominante a formação discursiva contrária ao movimento do MST e à reforma agrária.
(QUEIROZ, 2005, p. 977)
Comentarista Fernando Mitre: É, mas no caso da reforma agrária é um movimento legítimo, que
historicamente já devia ter sido resolvido, não tenho dúvida nenhuma sobre isso. Agora, há um
desafio, é preciso que se resolva esse problema dentro da lei, e aí começa de fato o conflito
básico entre o que o governo deve ser e o que o MST é.
Comentário do apresentador Roberto Cabrini: Até porque se não for cumprida a lei, não é
nenhum país. (Jornal da Band, 24/06/2003) (QUEIROZ, 2005, p. 978)
228
Exemplos de Análises do Discurso
Conclusão
Os dois estudos que apresentamos de forma resumida aqui dão uma pequena
amostra do tipo de reflexão que a Análise do Discurso permite fazer sobre os dis-
cursos que refletem as disputas entre grupos na sociedade. O estudo de Possenti
apresenta fatos que mostram disputas declaradas entre grupos historicamente
discriminados e grupos que – também historicamente – se consideram superio-
res e ocupam posições hierarquicamente superiores, seja por qual critério for.
229
Lingüística III
Texto complementar
Introdução
Desde algumas décadas atrás, as mulheres têm demonstrado um inte-
resse em buscar o reconhecimento da posição ativa que assumem dentro
da sociedade. A busca pelo papel de sujeito é evidenciada por uma gama
de estudos que procuram mostrar e questionar a maneira como a imagem
da mulher é construída em meios de cultura de massa. As revistas femininas,
por exemplo, constituem uma instância discursiva que exerce forte influên-
cia na vida da mulher. Ao mesmo tempo que essas revistas retratam o papel
que a mulher desempenha na sociedade, elas ajudam a moldar esse papel,
transmitindo ideologias e contribuindo para a manutenção de certas rela-
ções hegemônicas.
230
Exemplos de Análises do Discurso
Mas eu acredito que viver juntos muitas vezes limita as suas possibilidades de casar e de
conhecer o homem certo. Além de compartilhar os prazeres da cama, ele vai usufruir de
todas as pequenas vantagens da vida doméstica sem nenhuma motivação para assumir
um compromisso definitivo.
231
Lingüística III
Nesse último exemplo, vemos que a revista não propõe um tipo de relação
nova entre homens e mulheres, em que, por exemplo, o casal busque uma
relação de parceria, não-hierárquica. Ser esposa é lavar pratos... Thompson (In:
PATEMAN, 1993) sugere que a mudança do casamento só existirá se houver,
além de mudanças econômicas e políticas, uma mudança do significado do
que é ser homem e mulher. Os exemplos seguintes mostram qual é a concep-
ção da revista quanto ao que é ser feminino e masculino.
Quando ainda era solteira, os amigos diziam que minha forma de me aproximar e de me
relacionar com o sexo oposto era semelhante à de um homem. Talvez eles se referissem ao
fato de que eu sabia sempre o que queria (diversão e sexo), não gastando minhas emoções
a cada encontro romântico e não entrando em parafuso se o companheiro ideal não se
materializasse. Também tinha meu jeito de controlar os homens: ser gentil, mas firme.
232
Exemplos de Análises do Discurso
[...]
Estudos lingüísticos
1. Procure algum exemplo de situação em que se observe o cuidado com o uso
da linguagem politicamente correta. Você pode observar jornais, revistas ou
relatar algum acontecimento.
233
Lingüística III
234
Exemplos de Análises do Discurso
235
Gabarito
238
Gabarito
2.
A aquisição da linguagem
1. Essas palavras criadas especialmente para a interação com crianças pequenas
mostram que os adultos procuram facilitar a tarefa dos aprendizes mediante
o uso de seqüências silábicas mais fáceis. O uso de palavras com reduplica-
ção silábica facilita a interação adulto-criança nas fases iniciais de aquisição
da linguagem. A criança terá mais facilidade em produzir essas palavras do
que palavras equivalentes como “cachorro” (au-au), “sujeira” (caca), “comida”
(papa). Há um esforço do adulto para facilitar a interação, o que ajuda no
desenvolvimento da criança.
239
Lingüística III
2.
2. Para identificar o auditório temos que procurar marcas no texto que indi-
quem quem o autor pretende influenciar com sua argumentação. No texto
ele dirige explicitamente aos leitores da revista Veja. A pretensão de Castro
é formar a opinião dos leitores. Para conseguir seu propósito, é necessário
que a leitura seja adequada, ou seja, que os leitores tenham um bom nível de
240
Gabarito
2. O leitor sabe que o Everest é o pico mais alto do mundo. A revista Veja, além
de comparar a localização da reserva de petróleo com o Everest, usa um ope-
rador argumentativo orientado para a afirmação plena, ou seja, para a total
equivalência entre a profundidade da reserva e a altura do pico mais alto do
241
Lingüística III
Teoria da informação
1. Este trecho de redação escolar assemelha-se ao analisado por Val (1991):
“Violência social”. O estudante não apresenta nenhuma informação nova, o
que contraria a expectativa do leitor/professor. O texto é construído a partir
de um conjunto de chavões, de lugares-comuns que o tornam repetitivo e
desinteressante. Quem lê esse texto tem a impressão de estar relendo algo
repetido milhares de vezes.
2.
242
Gabarito
Searle.
As máximas conversacionais
1. O segundo interlocutor violou a máxima da quantidade. O primeiro partici-
pante usou a expressão “Tudo Bem?” como uma expressão fática, um cum-
primento simplesmente. A resposta adequada seria uma expressão fática de
cumprimento, não um relato.
243
Lingüística III
a) O autor da sentença, o Juiz L. R. A., fala a partir da posição que ocupa dentro
do Poder Judiciário: a posição de juiz no seu papel institucional de julgar
uma ação. Na sentença, ele discute exatamente qual é a atribuição de al-
guém no papel de juiz: julgar futilidades, como o uso de um vestido em um
baile ou os conflitos realmente importantes para a comunidade em geral.
244
Gabarito
245
Referências
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Lingüística III
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JUBRAN, Clélia Cândida Abreu Spinardi. Tópico discursivo. In: JUBRAN, C.C. A. S. ;
KOCH, I. G. V. Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Volume 1. Con-
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Referências
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PRETTI, Dino (Org.). Análise de Textos Orais. 2. ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1995.
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253
Anotações
lingÜÍstica iii
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Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-0778-3
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