Do Passado Historiográfico Ao Passado Prático
Do Passado Historiográfico Ao Passado Prático
Do Passado Historiográfico Ao Passado Prático
HISTORIOGRÁFICO
AO PASSADO PRÁTICO:
40 ANOS DE
META-HISTÓRIA
ORGANIZADORES
Julio Bentivoglio
Adriana Campos
Verónica Tozzi
Patrícia Merlo
2013
____________________________________________________________________________
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS RELAÇÕES POLÍTICAS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
____________________________________________________________________________
UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES
FACULDAD DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS
PROGRAMA DE POSGRADO EN EPISTEMOLOGÍA E HISTORIA DE LA CIENCIA
UNIVERSIDAD NACIONAL TRES DE FEBRERO
Organizadores
Julio Bentivoglio
Adriana Campos
Verónica Tozzi
Patrícia Merlo
Revisão
Julio Bentivoglio
Julio Bentivoglio, Verónica Tozzi, Adriana Campos, Patrícia Merlo. Do passado historiográfico ao
passado prático: 40 anos de Meta-história.
Vitória: PPGHIS/UFES: Buenos Aires: UBA, 2013, 162p.
ISBN: 978-85-0000-000-0
Programação ................................................................................................................. p. 6
Conferências ................................................................................................................. p. 7
Resumos ....................................................................................................................... p. 19
APRESENTAÇÃO
Entre os dias 8 e 11 de outubro de 2013 realizou-se me Vitória, Espírito Santo, junto à
Universidade Federal do Espírito Santo um evento a respeito dos 40 anos de Meta-história, obra
seminal de Hayden White publicada em 1973. Embora sua fortuna crítica no Brasil não tenha
sido favorável ou extensa, Meta-história tornou-se, desde o lançamento de sua tradução pela
Edusp uma das obras mais polêmicas e comentadas nos meios historiográficos brasileiros. Mas,
devido à sua recepção enviesada e comprometida, para não mencionar em leituras apressadas
incapazes de compreender as virtudes daquele autor, devido a uma avaliação bastante
superficial pautada por uma crítica ideológica que o associava ao pós-modernismo – entendido
naquela altura no Brasil como uma ameaça aos estudos históricos – sua trajetória entre nós
merecia ser repensada com urgência, haja vista o caráter inovador de uma das propostas
contidas na obra, cuja repercussão e interesse no mundo anglo-saxão é inversamente
proporcional aos universo de leitores em língua portuguesa. A isso se destinou a realização
daquele congresso e este livro, que apresenta o conjunto de conferências apresentadas.
A ANPUH-ES (Associação Nacional de História – Seção Regional do Espírito Santo)
e o Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Política tem promovido
conjuntamente vários encontros de história junto à Universidade Federal do Espírito Santo.
Como um dos desdobramentos dos eventos anteriores, idealizou-se a realização deste
congresso internacional que visa celebrar e discutir a importância de Metahistory, livro de
Hayden White publicado em 1973, responsável por criar uma verdadeira inflexão nos estudos de
teoria da história. Trata-se de uma obra que se tornou uma referência obrigatória para todos
estudiosos do campo. Ao colocar no centro das atenções a narrativa, impôs à comunidade
historiográfica a reflexão acerca da dimensão textual da história, problematizando o realismo e a
representação históricos, sedimentando o entendimento de que o trabalho do historiador não se
reduz à crítica das fontes, à aplicação de métodos e à interpretação, pois, a exposição dos
resultados obtidos requer, necessariamente, o recurso à escrita. Com a presença de Hayden
White e de pesquisadores renomados cujas contribuições significativas têm enriquecido o debate
em torno do tema, os organizadores tem a satisfação de apresentar alguns resultados obtidos
neste 40 Anniversary of Metahistory.
Os Organizadores
Leituras de Hayden White1
Prof. Hans Kellner
(North Carolina University)
É surpreendente o fato de que Hayden White tenha publicado a maior parte de seu
trabalho de pesquisa em sete décadas diferentes. Seus trabalhos medievalistas e suas análises
historiográficas dos anos 1950 deram lugar às investigações e publicações dos anos 1960, e a
uma virada em direção ao século XIX como fonte de interesse. Os anos 1960 foram um tempo
de inquietação, e em minha visão, a mudança no que nós chamamos agora de teoria da história
aconteceu em 1966 e 1967, após duas palestras, O fardo da história e What is a Historical
System?, ambas as quais foram publicadas em seguida. Em O fardo da história White apresenta
maneiras de pensar e representar o passado além das estruturas da arte e da ciência do século
XIX e propõe confrontar os desafios da modernidade e do modernismo. Seus exemplos são
externos ao grupo de historiadores e incluíam pensadores controversos como Michel Foucault e
Norman O. Brown. What is A Historical system? foi produzido para uma conferência sobre
sistemas biológicos e deve ser observado nesse contexto particular porque o principal ponto de
White foi basicamente que a ancestralidade biológica é determinada e segue uma linearidade
temporal enquanto a ancestralidade histórica é teoricamente livre e moldável pelas escolhas de
elementos do passado que um grupo deseja se identificar num momento de crise cultural. Um
sistema histórico, em outras palavras, nos permite escolher nossos ancestrais; usando os
próprios termos de White, nós preenchemos o passado selecionando os elementos que
desejamos que nos definam. Entretanto a publicação desse ensaio ficou esquecida, não
agrupada em nenhum dos livros de White até aparecer numa coletânea de ensaios organizada
por Robert Doran (2010) e não era muito conhecida nos anos 1970, quando Meta-história surgiu;
o caminho seguido posteriormente pelo mundo da teoria da história, suas concepções e debates,
portanto já haviam sido antecipados por Hayden White. Assim permaneceu, entretanto com suas
promessas e por extensão, suas controvérsias. [E aqui estamos nós].
O período que sucedeu à publicação de Meta-história: a imaginação histórica do século
XIX foi bem estudado e continua a ser, bem como o trabalho de White se expandiu e modificou
os anteriores. Esse foi um livro diferente do discurso que existia sobre história; era focado na
“imaginação”, com um complicado formato de novas categorias de discussão, diferente do que
os historiadores haviam visto até aquele momento, como podemos dizer, em termos históricos.
Os fundamentos das categorias de White, os quais eu costumo chamar de “tetra-quádruplos”,
saem da novela para a historiografia: enredos, instâncias epistemológicas e tropos. Apenas os
modos ideológicos eram familiares aos historiadores, e ainda assim de maneira suspeita. O
Meta-história poderia ter sido ignorado, como foi por muitos historiadores, ou profundamente
estudado. Estudantes de graduação são aconselhados muitas vezes a não serem vistos com
2 Véase al respecto la excelente introducción de Robert Doran a White 2011: “Aunque a veces White se declara
“estructuralista”, la aplicación de esta nomenclatura a su obra puede conducir a error. El punto de partida de White no se
encuentra en la semiología de Saussure, sino más bien en la retórica de Vico.” (p. 25)
3 Es necesario hacer una aclaración sobre este último punto. Por supuesto que no hay ningún impedimento a la aplicación
de la grilla a una obra individual, sea historiográfica, sea literaria, sea conmemorativa. Pero toda aplicación o toda lectura,
incluso la de carácter metahistórico, se hace desde algún contexto y ese contexto ya ofrece las alternativas, esto es, el
metahistórico en tanto usuario competente de la grilla, cuenta con ejemplares de las diversas alternativas, que contribuirán
a esta interpretación: Jenkins por haber hecho explícito que la enseñanza fundamental de la obra de
White es la no distinción entre historia y metahistoria, Megill por su apreciación de la naturaleza misma
de la deriva, él llama dialéctica retórica a lo que yo llamo pluralismo conversacional. Finalmente,
Harlan, por haber prestado atención a las consecuencias culturales y democráticas de la obra de
White.
Keith Jenkins es uno de los lectores de White que ha sabido apreciar desde muy temprano la
tropología whiteana como una estrategia para capturar la naturaleza refiguradora de las controversias
historiográficas: toda historia es reescritura del pasado y toda reescritura es no sólo refiguración y
apertura sino promoción de otras nuevas e insospechadas refiguraciones. (Véase Jenkins 2003) No
obstante, ha ligado (yo creo inadecuadamente) esta apertura y renovación pluralista que se desprende
de la obra de White a una cierta autoconciencia de fracaso propia del posmodernismo. En “Radical
history and Hayden White” (en Ankersmit, Domanska y Kellner 2009), afirma que
…radical historians thus turn the weaknesses of “proper history” into strengths,
celebrate the facto that historians‟ representations (including their own) are always
failed representations, that historians qua historians always get the past wrong, and
that it is these “facts” which become the basis for a new synthesis which, discarding
the desire for closure, builds uncertainly on uncertainly. (p. 112)
Las consideraciones de Jenkins sobre el rol del historiador radical me provocan dos tipos de
objeciones, contra la asimilación de su posición con la de White y la plausibilidad o fuerza radical de la
propia posición de Jenkins. Los análisis tropológicos que White ha aplicado a la historiografía del siglo
XIX, a la literatura testimonial en torno al Holocausto o al último y sugerente libro de Friedlander,4 se
dirigen justamente al rechazo de los predicados correcto-errado, falso-verdadero en la valoración de
las representaciones históricas. El supuesto deseo de no clausura no remiten a falso o errado, pues
falso o errado implica que hay alguna manera no errada de hacer las cosas pero que se nos escapa o
no está a nuestro alcance. Por otra parte, las apropiaciones whiteanas de la causalidad figural de
Auerbach con el objeto de dilucidar las condiciones de producción de una “representación realista” nos
muestran que lo que hace o hará reconocidamente realista a una interpretación es su uso de los
recursos de figuración compartidos convencionalmente en un contexto específico. No ser definitiva en
el sentido de perdurar en el futuro como “la figuración realista” no significa, o no se debe a su
condición de, “fracaso” en representar realistamente la realidad, pues no se puede fracasar en aquello
que no se pretendió, esto es, alcanzar “la representación definitiva” en lugar de “nuestra
representación realista” según nuestro contexto. Tramar el cambio interpretativo o la historia de la
historiografía en términos de la tropología y del realismo figural desestima la valoración por parte de
White (supuestamente posmoderna según Jenkins) de las diversas interpretaciones y de la relación
entre ellas en términos de fracaso y error, sino, por el contrario, apunta a subrayar su vigencia no por
ser definitivas sino por ser reapropiables en otros contextos, reapropiables en nuevos contextos como
nuestros precursores.
Si bien, coincido con Jenkins en su apreciación de que (siguiendo a White)
a su pericia en la aplicación de la misma en un caso individual, esto es, a su elección de cuál tropo es el que está
funcionando con mayor fuerza en la obra individual.
4 Friedlander 2007, White 2012
Since history, then, deals, only with contingencies (accidental facts, antecedent
possibilities, metonymic extrapolations…) and proceeds by means of enthymemes
(rhetorical induction) that can only provide a lesser standard of proof that “logic”
offers, then history will remain interminably open, always waiting for the next
interlocutor to arrive. … I sign up to most of the detail whereby White establishes the
metahistorical nature of all history productions vis-à-vis the ubiquity of tropes,
emplotments, argumentative governing, and ideological positioning;” (Ankersmit,
Domanska y Kellner 2009, p. 112)
considero que su descripción de la tarea de una historia radical en términos de su reconocido fracaso y
error es impracticable y hasta inconcebible. ¿Desde qué perspectiva y desde qué contexto puedo
sostener el fracaso y fallo de lo que estoy sosteniendo?, toda evaluación de error o fracaso, de éxito o
acierto siempre es contextual. La espera o esperanza de que un nuevo interlocutor arribe no
necesariamente está motivada en que me muestre el error sino para que me enseñe otra manera de
concebir o figurar, otra manera de ver las cosas o que simplemente me recuerde que las cosas
siempre podrían haber sido de otra manera. Ésta es la línea de recepción de la obra de White seguida
por Allan Megill, en “The Rhetorical Dialectic of Hayden White” donde señala que “One is tempted to
reread Mimesis in the light of White‟s comments, for he prompts us to see that book as itself an
instance of rhetorical dialectic.” (en Ankersmit, Domanska y Kellner 2009) Qua dialéctico, White sigue a
sus héroes Hegel y Marx pero, continúa Megill, la dialéctica en su forma más pura, no retórica, busca
resolver las contradicciones a partir de un comienzo científicamente fundamentado y de manera
superadora. Pero la retorica dialéctica de White, según Megill, no busca superación. El dialéctico
retórico es tan crítico como el criticismo pueda ser imaginado pero como retórico rechaza creer que la
crítica pueda ofrecernos normas para la corrección interpretativa, (cf. op. cit., pp. 191 y 192), lo que se
busca es que la audiencia acepte la verdad de la afirmación o pueda ser persuadida de hacerlo. Ahora
bien, ¿dónde entra en juego esta dialéctica retórica? Justamente, señala Megill en la coincidencia
expresada por Jameson y White en su lectura de Auerbach5, esto es, reconocer que la tarea de la
historia literaria es producir el “concepto” de historia literaria, por tanto, agrego yo, no habría
separación o demarcación entre historia y metahistoria, entre historia y filosofía de la historia, entre la
práctica de investigación y la reflexión de carácter normativo sobre cómo debe ser representado el
pasado, entre lenguaje y metalenguaje, entre analítico y sintético. Las grandes obras de los
historiadores del siglo XIX son sugerencias no sólo acerca del pasado sino acerca de la noción misma
de historizar el pasado. Ahora bien, ese concepto propuesto, señala de manera justa Megill, es retórico
y “peculiarmente estético”. Veamos esto con detalle: algo es “peculiarmente estético” en tanto se sigue
que lo que se produce -“la representación realista de la realidad”- está entramado en la causalidad
figural o la lógica de la figura-cumplimiento: toda nueva figuración viene a cumplir lo que había
quedado prometido en alguna figuración anterior y que es reapropiado en calidad de precursora. Pero
esta tarea es retórica, esto quiere decir, que al dialéctico retórico le basta la plausibilidad, comienza
con la exploración de los opuestos y se libera de la presión del fundamento desde el inicio.(cf. ibid.,
193) En definitiva, a diferencia del dialéctico estricto que buscaría resolver la antítesis de Auerbach
5 En “Auerbach‟s Literary Theory. Figural Causation and Modernist Historicism”, White 1999
entre lo literal y lo figural, entre los aspectos figurativos y los literales de toda representación realista,
White reflexiona sobre las complejidades del cumplimiento mismo, “fulfillment”, pero no en el sentido
de engaño o escepticismo o para mostrar la banalidad de cualquier respuesta. Más bien, dice Megill,
primero pone en suspenso la cuestión de la verdad del discurso y luego ofrece una manera de
estructurar la discusión misma. (cf. ibid., p. 193) Megill señala que White sigue el mismo método en
“Freud‟s Tropology of Dreaming” (White 1999) donde yuxtapone la teoría del soñar de Freud y la teoría
de los tropos tal como fue articulada por los retóricos postrenacentistas. En ningún caso se ocupa de la
cuestión de la adecuación de estas teorías. La misma operación puede ser encontrada en ”Formalist
and Contextualist Strategies in Historical Explanation”, y, agrego, en “Narrative, description, and
Tropology in Proust”6, con el objeto de explorar “…that there is no such thing as a specifically historical
approach to the study of history but there is a variety of such approaches”.(White 1999, p. 65)
En relación con esta última observación, resultan dignas de atención las reflexiones de David
Harlan, “‟The Burden of History‟ Forty Years Later” (Ankersmit, Domanska y Kellner 2009), quien nos
invita a conectar, por un lado, el llamado a recuperar la relación íntima entre historia, arte, poesía,
retórica y ética antes de su profesionalización, expresado en “The Burden of History” (1966) con, por el
otro, el reclamo hecho 40 años después en “The Public Relevance of Historical Studies” (2005) de
restablecer la dignidad de los estudios históricos sobre la base de atender a los objetivos y propósitos
de la comunidad intelectual mayor, conexión hecha en el marco de una necesidad urgente y cada vez
mayor de llegar a términos con la historia popular y no académica.
Nothing like that happened in the mid-1960s,of course; indeed, the profession
turned its face in the opposite direction. But things are different this time around: the
new popular history is proliferating far too rapidly, has saturated the surrounding
culture far too thoroughly, and has become far too prominent for academic historians
to continue ignoring it. (p. 180)
Quisiera terminar señalando algunas consecuencias programáticas que estas líneas de lectura
de la obra de White nos permiten aventurar. En primer lugar, la aplicación de la tropología y el realismo
figural para tramar la historia de la historia no sólo da cuenta del pluralismo inherente a la historia
académica, sino que, en segundo lugar, permite revelar y explicar que el objetivo de la disciplina no es
el cierre y la clausura de los debates sobre el pasado (aunque sin la sensación o asunción de fracaso
que pretende Jenkins), sino la promoción de nuevas maneras de pensar el pasado. En tercer lugar,
habilita a visualizar que la disponibilidad, uso y circulación de modalidades de figuración,
reapropiaciones de figuraciones pasadas y refiguraciones no son propiedad exclusiva de ninguna elite
o comunidad disciplinada. La consideración de que el pluralismo promovido por White no se limita a la
historia académica sino a cualquier figuración del pasado hecha por la historia profesional, la memoria
o la literatura queda totalmente evidenciada en su dedicación a aplicar su instrumental metahistórico a
la obra de Primo Levi, Virginia Woolf, al cine de Oliver Stone y al no encasillable libro de Friedlander
citado en el apartado anterior. Esto es, una vez explicitada la grilla metahistórica los recursos o
artificios creativos e integradores (metafóricos y sinecdóquicos) y críticos y deconstructivos
(metonímicos e irónicos) están disponibles a todos aquellos que interaccionan con el pasado, sea en el
espacio público sea en la disciplina.
O eterno retorno da realidade. Não no sentido literal, é claro, mas apenas em termos do
retorno que até mesmo o pensamento cultivado promove a essa ideia, ou intuição, da realidade,
em situações onde menos se espera. Isso basta para levar-nos a ranger os dentes, creio eu, no
tipo de desespero ao qual se refere Nietzsche, mesmo que talvez não seja tão sério quanto o
horror implicado por ele, quando ele disserta sobre a recorrência eterna de tudo, nos mínimos
detalhes. De todo modo, a ideia de mudança traria esperança aqui também, eu diria. Para mim,
a esperança seria de que pudéssemos ter uma discussão de teoria histórica na qual a realidade
não fosse, de certa maneira, essencial ou idealizada. Mas no contexto teórico atual, as coisas
não parecem tão esperançosas. Este é o núcleo dessa conferência.
Assim, a situação aqui por mim perseguida é também um retorno real no sentido
lacaniano, ao menos a meu ver. Bem literalmente. O apelo ao real é em demasia uma erupção
impulsiva naquilo que, de outro modo, aparenta ser uma discussão em certos pontos coerente.
Meu interesse nesta conferência é observar um desenvolvimento do qual falei em termos
de ansiedade, ou desejo, por realidade e por presença entre historiadores, que percebo como
algo que toma gradualmente posse da teoria do giro linguístico ou teoria textualista, a partir do
tipo de construtivismo narrativo, iniciado com Metahistória de Hayden White, o marco divisório da
concentração acerca da escrita histórica em vez da pesquisa, do texto da história em vez do
passado. Tenho uma consternação motivadora atrás disso tudo que também desejo discutir:
sinto-me incomodado com esses argumentos que surgiram recentemente sobre experiência e
acesso ao passado. O mesmo vale para a necessidade de se estabelecer paralelos entre
memória e história, bem como entre experiência e representação. É bem óbvio que muitos estão
fartos – como inclusive já disseram – das problemáticas apresentadas pelo giro linguístico,
desejando superá-lo. Ainda sim, a maneira que parecem tentar essa superação me parece
demasiado larga e grandiosa. Aparenta sempre ser tentativa de se superar, de qualquer jeito, a
distinção entre fato-valor.
Por outro lado, temos certo contingente de filósofos analíticos, os quais querem devolver
toda discussão da filosofia da história ao problema da linguagem de maneira mais ampla. Ainda
sim, a problemática da linguagem como capaz de representar ou se remeter não é a mais
pertinente para uma discussão de teoria da história. Ela pode ser abordada com ferramentas
melhores e mais sofisticadas por outros ângulos, e assim não serão necessárias interferências
de desafios epistemológicos adicionais enfrentados pelo estudo do passado. Isso impediria
algumas das confusões desnecessárias e repetições intermináveis, concernentes ao lado
epistemológico do debate. Desse modo, como vocês podem provavelmente discernir, estou
assinalando que esse delineamento do campo da teoria da história fora bem balizado em
Metahistória e, ainda melhor, creio, nos ajustes mais recentes de White.
I
Nos debates atuais sobre teoria histórica, argumentos ressaltando os exageros dos
efeitos, para a história, da ênfase textualista do giro linguístico e do „relativismo pós-moderno‟
tem sido visíveis. Se pedidos de „moderação‟ e de „senso comum‟ vieram somente daqueles
historiadores e teóricos da história, os quais foram indiferentes ou se opuseram a tais posições
desde o princípio, isso não seria nada de novo. Mas tais argumentos são defendidos atualmente
por pessoas que antes abraçaram ao menos as premissas mais básicas do giro linguístico.
Essas discussões envolvendo história e a construção de memórias coletivas e de
consciência histórica tem cada vez mais sua premissa em ideias de memória ou experiência.
Central para essa inclinação é o desejo de escapar das posições linguísticas e textualistas bem
como da crescente popularidade e impacto dos debates provindos dos estudos de memória.
Isso fora ressaltado por certo número de comentadores. Como Jonas Grethlein, por
exemplo, descreve a situação em 2010:
„anos recentes viram um novo interesse na experiência, e experiência tem
sido usado mais e mais como antídoto contra o solipsismo do „giro
linguístico‟. A iminência da experiência, dos agentes históricos bem como dos
historiadores e de seus leitores, oferece uma possibilidade tentadora de
alcançar algo além de construções narrativas e discursos lingüísticos”
(Grethlein, „Experiencidade e “referência narrativa”, H&T 2010).
Em linhas paralelas, Anton Froeyman interpretara o objetivo dessas tentativas como:
„fazer o passado presente de novo, não como construção ideológica ou tropologica, mas como o
próprio passado‟ (Froeyman, RH 2012).
(Dessa maneira, não estou solitário no meu diagnóstico geral. Cito Froeyman e Grethlein
especialmente porque, embora eu discorde com ambos em pontos menores, creio que as
maneiras pelas quais eles tentam enfrentar tais desafios são excepcionalmente sensíveis aos
problemas que discutirei aqui).
Parece que os proponentes dessas posições advogando algum tipo de acesso ao
passado tem buscado algum compromisso viável com as conclusões do “fim da história” e
sentem que as encontraram na ideia de “experiência”. De forma que exista, hoje em dia, uma
distância entre aqueles que ainda vêem a representação como “único jogo na cidade” e aqueles
que pensam ter encontrado maneiras de ir além dela (ou, talvez mais apropriadamente, sob ela).
A tensão entre essas respectivas posições é piorada pelo fato dos defensores da
“experiência” amiúde afirmarem que continuam a aceitar os princípios básicos do giro linguístico.
– O que em história obviamente corresponde ao construtivismo narrativista elaborado por
Hayden White.
Ao dizer que aceitam o argumento de que a história é sempre representação e,
simultaneamente, afirmarem que há meios de a história evitar a representação, advogados da
“experiência” findam por reduzir o construtivismo a um simples reconhecimento da situação do
historiador. Levada a séria, esta aliança dupla leva ao que parece ser uma contradição nas suas
reivindicações, ao menos de uma perspectiva construtivista.
Antes de ingressar nos detalhes que vejo como falhas centrais dessas ideias que
pretendem nos distanciar do „textualismo‟, quero dizer que acredito ser um desejo bem
compreensível, dada a ampla recepção da teoria narrativista da história. Ao passo que o
construtivismo whiteano fora amiúde mal-interpretado de modo bem estreito, como se fosse
aceitação do textualismo extremo e da „ficção‟, sua utilidade para historiadores tem sido
severamente limitada. Mesmo o ponto fundamental que a teoria da narrativa versa sobre a
escrita histórica em vez do passado que comumente se perdera. A (não)famosa asserção de
White de que a história é um processo de produção de fatos em ficções tem sido interpretada
como se dissesse que a escrita histórica pode, por meio de uma desrealização mágica, afetar o
passado, não somente nossas considerações acerca dele. O foco sempre retorna ao medo do
anti-realismo. (A impertinência com a qual essas discussões retornam ao debate acerca da
posição epistemológica da história, até mesmo a situação ontológica do passado é
estarrecedora).
Neste momento, em minha leitura, o momento crucial para esse novo debate dentro da
teoria da história foi o aparecimento da Experiência histórica sublime (2005) de Frank Ankersmit.
Nessa obra, Ankersmit lida com a questão, em seu dizer, se “o historiador pode ingressar numa
relação real, autêntica e “experiencial” com o passado – a saber, numa relação que não é
contaminada por tradições historiográficas, pressupostos disciplinares e estruturas linguísticas”
(2005, 4). Ou, como ele também ressalta, seu foco se dá sobre “a experiência histórica, a saber,
a maneira pela qual experimentamos o passado e como essa experiência do passado pode
surgir a partir de um movimento que inclua ao mesmo tempo a descoberta e a recuperação do
passado” (9).
Apesar disso ser implausível, historiadores e teóricos da história bem parecem sugerir
que a realidade e a materialidade que o passado tivera (a realidade e a presença de seus traços)
proporcionam algo a que a história pode se agarrar - algo que poderia resolver as dificuldades
que a história tem no acerto de contas com a representação e todas suas problemáticas. Neste
sentido, existe um desejo definitivo para que o passado seja, de certa maneira, mais “real” e
tangível que o construtivismo narrativista deixara para a história.
Do ponto de vista teórico, entretanto, ou mesmo metodológico, há problemas óbvios com
os argumentos apresentados em defesa dessas mudanças desejadas. A relação entre memória
e história permanece obscura, bem como de fato os sentidos específicos atribuídos ao termo
chave “experiência”. Crucialmente, enquanto essa ideia da experiência é evocada como algo real
e tangível, seu local não fora ainda especificado. Entretanto, localizar a experiência nas
subjetividades concretas é necessário antes de usá-la para propósitos de produção histórica. Em
outras palavras, devemos falar da experiência de alguém. Experiência não exista fora da
experimentação. Assim, há diferenças distintas primordiais nos diferentes tipos de reivindicações
feitas acerca da experiência. Recorrer a elas pode implicar em:
- historiadores tem certo tipo de experiências „diretas‟ do passado (F. R. Ankersmit, como citado);
ou pode significar que:
- historiadores tem algumas maneiras de reconstituir a experiência de agentes passados (marca
collingwoodiana de construtivismo). A saber, que há uma estória real vivida por pessoas que
pode ser reconstruída.
Admitidamente, essas maneiras de se pensar podem ser mais complexas, como estou
aventando aqui. Não obstante, para colocar cruamente, há duas maneiras distintas de se olhar
esse tipo de experiência em relação ao passado:
I) Historiadores podem presumir certo tipo de natureza humana básica pela qual suas leituras
das fontes podem criar expectativas de constituírem reconstruções „reais‟ e „verdadeiras‟, seja
envolvendo reencenação, empatia, etc. ou não.
II) Eles podem se concentrar mais na natureza subjetivamente experiencial de suas leituras
(Esta última opção ainda os deixa espaços de manobra para atribuir certo tipo de hermenêutica
ou dialética ao que eles fazem, em vez de abranger qualquer construtivismo “puro”. As fontes
podem „falar com eles‟, estórias podem existir „lá fora‟ na realidade, assim por diante).
Deve-se ressaltar aqui que a abordagem corriqueiramente mais historicamente orientada
(ou me atreveria a dizer tradicional?) parece, de fato, depender de um desejo pelo contato com o
passado. O que, afinal de contas, é a motivação comum dos historiadores no trato com o
passado? Algum tipo de investimento na ideia de uma realidade e, por (falsa) conseqüência, um
sentido “real” existente a ser recuperado. O que também já conserva alguma atribuição de valor
do real sobre o imaginário. O fato de algo ter realmente acontecido, de certo modo, parece
significar que há também algum tipo de lição profunda para ser apreendida, algum valor a ser
ensinado. Assim, muito raramente – sustento – as fontes históricas, ou as histórias em si, são
lidas sem que se fetichize seu “compromisso” com a realidade passada. Ou ao menos isso
parece ser o caso, considerando-as de modo geral como “histórias” ou até mesmo “ficções
históricas”.
Entretanto, ao seguir um caminho ainda mais subjetivo, concentrar-nos em „experiência‟
poderia também simplesmente significar que aborda-se a escrita da história imaginativamente,
de modo a tornar sua leitura enfaticamente experiencial. Isto me parece ser a grande
contribuição de Hayden White e do narrativismo construtivista. De fato, opções muito mais
subjetivamente cientes concentradas no fato de estarmos quase sempre envolvidos em certo
tipo de „leitura‟, o que nos oferece, até onde posso ver, o único meio responsável de dissertar
sobre experiência no contexto da história, ao menos se quisermos que a experiência ou a
experiencidade tenha algum tipo de consequência teoricamente apoiável.
Embora eles sejam tão claramente distintos, esses diferentes níveis de processos
interpretativos e construtivos parecem se confundir constantemente nos debates atuais. Quando
invoca-se a experiência, apresenta-se ela corriqueiramente como certo tipo de termo geral que
sugere algo real, concreto e mensurável. Como se pessoas no passado tivessem experiências
que estão, de certo modo, disponíveis à visitação dos historiadores – assim como elas (algumas)
tinham casas, algumas das quais ainda podemos visitar. Apontar simplesmente que pessoas no
passado tiveram de fato experiências, memórias, narrativas pessoais, e assim por diante, é
algumas vezes considerada a solução para esse problema. Afirmar a realidade das narrativas e
sua existência „lá fora‟ só porque alguém em um dado momento pensou constituí-las, para
explicar seus predicamentos e experiências – seja para si mesmos ou para uma plateia –
simplesmente não resolve a questão de qualquer maneira. Registrar experiências não nos auxilia
a superar a problemática do sentido e da interpretação, não mais que uma palavra nos coloca
em posse de algo.
Desse modo, que sentido devemos produzir das alegações sobre experiências do
passado?
Perguntas óbvias devem ser feitas: De quem é a experiência que presume-se prover
algum tipo de vantagem pós-giro-linguístico na compreensão dos agentes do passado? Qual é o
valor agregado em se falar de experiência em tão larga escala? E não seria melhor permanecer
com termos mais específicos como sensação (experiências sensoriais), experiência vivida
(histórias pessoais), sensibilidade incrementada (atitude estética) e experiencidade (impacto das
representações), termos esses que nos possibilitam diferenciações teóricas entre os vários
fenômenos em questão?
Como já sugeri, grande parte dessa dificuldade parece derivar de outra confusão, ou ao
menos de uma fronteira nebulosa: a conjugação entre memória e história. Uma conjugação que
muito impede clarear a questão. O que quer dizer que a ideia errônea de que memória e história
estão integralmente conectadas deve ser similarmente pormenorizada. Que mensura há, por
exemplo, na afirmação comumente escutada de que história é para a sociedade o que a
memória é para o indivíduo? Ou na ideia de que „memória é a base existencial da história‟?
Essas conjugações bem populares dependem da mesma confusão entre memórias pessoais ou
crenças coletivas e experiência ou representações, assim obscurecem o papel crucial
desempenhado pelos julgamentos ideológicos e de valores. Se nenhum espaço é percebido
entre essas esferas, visões conservadoras são automaticamente privilegiadas.
Ainda, para além de levar a atitudes conformistas de maneira geral, tal confusão pode
também levar a ideias unilaterais sobre o que está envolvido em historiar. Embora nada disso
seja dizer que não há paralelos úteis a serem considerados, espero que possa mostrar as razões
pelas quais nós devemos ser cuidados ao traçar tais paralelos.
Como eu vejo, a grande falha dos historiadores é que eles deixam sua experiência do
presente – do mundo em geral – determinar sua relação com o passado histórico também.
Deixe-me primeiro explicar o que quero dizer exatamente com isso: Todos nós temos uma
relação com „o/um passado‟ simplesmente porque a esmagadora maioria das „coisas‟ que
constituem nossas vidas, em qualquer (e em todos) momento particular já está finalizado e „foi
embora‟, ou ao menos se prolonga no passado em graus variados – dependendo de nossas
definições que tipo de unidades forma aquelas „coisas‟. Simultaneamente elas também estão
sempre presentes – por fazerem parte do nosso passado – no sentido de determinarem muito do
que somos agora, como reagimos, o que identificamos como e com o que, o que constitui um
evento significativo para nós, e assim por diante. Assim, temos uma experiência fenomenológica
do mundo ao existir ao longo do tempo; não somos limitados por nenhuma distinção estreita ou
divisas entre passado e presente em termos de produção de sentido. Bem o contrário, na
verdade, já que se não fosse dessa maneira as coisas não fariam sentido.
Ainda sim, com relevância, essa orientação fenomenológica generalizada é uma questão
que a teoria histórica tende a comentar bastante, precisamente porque ela é histórica. Em outras
palavras, teoria histórica tende a ignorar a fenomenologia geral porque ela se envolve com o
passado e o presente em níveis nos quais a experiência subjetiva não é de maneira alguma uma
questão determinante. Nesse nível, o presente é colocado como claramente distinguível do
passado, apesar da dificuldade de qualquer clara separação teórica e rígida. O passado pode
estar presente para nós como memória coletiva ou consciência histórica, por exemplo, mas essa
dinâmica não tem efeito no passado como objeto da (grande parte) da história acadêmica – e
vice-versa. Aqui é o local onde a maior parte das teorias atrapalham o esclarecimento ao se
concentrarem quase sempre, de maneira exclusiva, na questão da epistemologia: Enquanto a
problemática passado-presente pode ser enfrentada ao destacarmos a inacessibilidade do
passado em termos epistemológicos, seria melhor em muitos casos enfatizar a indisponibilidade
do passado histórico (leia-se, não subjetivo) em termos de experiência.
Minhas razões ao enfatizar a ruptura entre o presente (experienciado – nossa
experiência particular do mundo, incluindo experiências no nosso passado) e o passado histórico
não são, por isso, primariamente epistemológicas. Ao contrário, o objetivo é relevar a diferença
entre passado-presente da história e passado-presente da experiência. Há várias boas razões
para se fazê-lo, envolvendo as principais – como já dito – a tendência dos historiadores (e de
alguns teóricos com percepções históricas) em permitir que sua experiência do presente
repercuta em suas teorias acerca da interpretação do passado. Isso se relaciona com o que eu
designo por o anseio fenomenológico do historiador, que quer dizer o desejo que os
historiadores demonstram por um passado dotado de sentido, por um passado que seja como o
presente e que o afete, „fale com ele‟, assim por diante.
De modo geral, esse anseio fenomenológico – o desejo por experiência – parece
também desempenhar um papel na história como disciplina. Ao menos nesse aspecto, o sonho
de objetividade e de verdade da história também reflete uma conjugação entre realidade e
experiência. Por o passado ser inquestionavelmente real (outrora) e existente em certo nível do
senso comum, esse mesmo senso comum permite o obscurecimento da diferença entre
passados subjetivos e coletivos/históricos, reforçando o uso da linguagem e das metáforas
pertencentes de um ao outro sem reflexão crítica suficiente.
Para recolocar o caso da maneira mais clara possível: Defensores de argumentos
associados à presença ligada ao passado coletivo e histórico não se convencem dos apelos da
inacessibilidade epistemológica porque, para eles, a distinção entre o passado subjetivo e o
passado histórico não é uma consideração. Eles – e especialmente aqueles que tentam
reivindicar tais afirmações em níveis menos teóricos – „conhecer‟, a partir da experiência, aquele
„passado‟ significa algo para o (seu) presente. Em outras palavras, eles falham em considerar a
distinção entre o subjetivo e o coletivo, bem como os diferentes sentidos que a „experiência‟
adquire em cada um deles.
Todos os questionamentos e debates epistemológicos também atrapalharam outro
ponto: Discussões teóricas tem se dedicado muito a demonstrar que os sentidos são construídos
no presente e que nosso conhecimento acerca do passado não contém obrigações ou coações
morais inerentes. Assim, história (historiografia escrita) tem sido percebida como inevitavelmente
presentista. Nesse processo, entretanto, distinções entre história e nossa relação com o passado
também se obscureciam ainda mais: história é tanto mais conjugada com memória (coletiva ou
cultural), recordação, consciência histórica, e assim por diante.
Esta confusão opera em vários níveis:
Primeiro, a ideia de que devemos „lembrar‟ certos aspectos do passado de modo a fazer
„justiça‟ aos mortos tem tido força especial nesse momento. Ademais, para além de se constituir
em parte importante das identidades culturais e das práticas e rituais coletivos por exemplo,
também tem-se considerado a história acadêmica como detentora dessa tarefa, como parte de
sua justificativa institucional. Assim, há certa confusão entre categorias de conhecimento e de
experiência: „Recordar‟ ao menos sugere algum tipo de relação experiencial com seu objeto.
Claro que a ideia de recordar pode descrever esse compromisso eficazmente, ou ao
menos o lado ético dele. Ainda sim, a segunda conjugação, a conexão entre o conhecimento e a
verdade com a responsabilidade ética ou moral é tão infundada, se pensarmos além daquela
crença particular.
Penso ser bem fácil encontrar evidências dessa maneira de se pensar em livros que
ainda definem o que é feito pelos historiadores. Arthur Marwick, por exemplo, afirma que:
„Assim como um homem sem memória e auto-conhecimento é um homem à
deriva, também a sociedade sem memória (ou mais corretamente, sem
recordação) e auto-conhecimento seria uma sociedade à deriva‟. (Marwick, A
natureza da história, 1970).
Essa última crença é importante de se notar porque ela também tem implicações mais
profundas: A nostalgia pela „presença‟ e pela „experiência histórica‟ aparenta ser fundada na
ideia de que o passado pode nos guiar de certa maneira nas nossas vidas. Se acessarmos „a
verdade das coisas‟, aquelas coisas podem de certa maneira (misticamente) nos revelar algo
sobre nossa relação com o mundo, até mesmo talvez uma maneira de agir „derradeira‟. Mas isso
parece simplesmente envolver uma mistificação sobre a outra: Primeiro o passado ou o presente
se torna de certa maneira diretamente acessível, para então, no momento em que estiver
presente, nós percebemos alguma verdade absoluta sobre nós mesmos e sobre o mundo.
II
Parte da responsabilidade por essa confusão atual pode ser colocada em frente à porta
de White: Ele apresentara algumas ideias bastante inspiradoras cuja má compreensão muitos
fizeram, ou as utilizaram para fins próprios. Refiro-me especificamente ao seu ensaio „O evento
modernista‟, que fora reimpresso no Realismo figural em 1999, porque penso que aquele ensaio
inspirara grande parte desses argumentos por ter se direcionado à realidade. Tentarei explicar o
porquê. Creio que não serei mal compreendido: Não estou dizendo que a apresentação de White
faça esses mesmos erros de categoria, mas eu tentarei mostrar como tem sido recebida de
maneiras nas quais esses erros podem ser assim lidos. As incompreensões não se limitam a
leituras daquele ensaio em particular, entretanto, mas se estendem no passado até Metahistória,
como vocês verão com esse exemplo.
Há um livro brilhante de Peter Icke de 2012, que traça a trajetória da obra de Frank
Ankersmit, concentrando-se no modo que Ankersmit mudara seus interesses „da linguagem para
a experiência‟. O que Icke faz neste livro é olhar como Ankersmit mudara o curso de suas
preocupações linguísticas – da linguagem – para seguir seu desejo por algo mais substancial
como uso do passado. Icke também aponta vários exemplos de leituras errôneas do White.
Como eu já mencionei algumas das reivindicações em Experiência histórica sublime bem como a
problemática envolvida de maneira geral, quero somente mencionar este livro para aproximá-lo
e, em vez disso, ressaltar um artigo de Ankersmit acerca da influência e recepção da obra de
White: „O apelo de Hayden White aos historiadores‟ (de 1998, History and Theory). Já naquele
artigo – e efetivamente em uma entrevista comigo em 1997, Ankersmit fizera afirmações
semelhantes.
Neste artigo em History and Theory – depois de discutir sua própria leitura de
Metahistória, o que era a tropologia de White, assim por diante – Ankersmit termina por dizer
algo que penso ser surpreendente, bem alarmante hoje em dia se olharmos retrospectivamente,
embora naquela época eu simplesmente lera o artigo e não prestara à atenção de fato. A mais
importante afirmação que quero ler daquele artigo é quando Ankersmit afirma:
„Certamente, há uma realidade histórica que é, em princípios, acessível ao
historiador‟ (1998, 187). Ankersmit então desenvolve a discussão sobre como
as estratégias usadas pela literatura modernista, assim como diz White – e
especialmente monólogos interiores – facilitam „um contato conosco que
transcende a dicotomia sujeito/objeto‟ (190). Essencialmente, essas
estratégias não „escondem‟ ou „obscurecem‟ tal dicotomia, mas a abolem.
Como vocês podem ver a partir dessas citações, Ankersmit muito cedo já tentava
reafirmar muito daquilo que questionara em Lógica narrativa – e isso, claramente, é o grande
ponto do livro de Peter Icke, a reviravolta no pensamento de Ankersmit. (Icke apóia-se bastante
nesse mesmo artigo de 1998 em seu capítulo „Ankersmit em transição‟). Penso ser o ponto mais
interessante a afirmativa de Ankersmit em atribuir tais afirmações a White, voltando à
Metahistória – assim, é uma negociação ou mesmo uma tentativa de reverter essa sentença da
ideia de que nem acessamos passado, muito menos poderíamos fazê-lo, em qualquer sentido
significativo. Ou ao menos na ideia de sentido – não há sentido para ser „encontrado‟...
(Novamente, Icke discute a „curiosa‟ leitura ankersmitiana da Metahistória detalhadamente).
É claro que Ankersmit, deve-se falar para defendê-lo, soubera muito bem como essa
afirmativa seria encarada. Era um argumento radical, a partir do qual penso que ele queria
sacudir as coisas, mover a discussão ao direcioná-la para longe daquilo que parecia ser óbvio
naquela época. Assim, nesta entrevista em 1997, por exemplo, ele disse claramente esperar que
as pessoas dissessem que ele ficara louco ao proferir tais argumentos. Desde então, ele
atribuíra essa „loucura‟, essa decisão de não ser brutalmente racional, a uma visão de mundo
romântica que lhe é própria.
A questão importante para mim aqui é, entretanto, que o argumento de Ankersmit em „O
apelo de Hayden White aos historiadores‟ reside (se tenta-se relacioná-lo diretamente a qualquer
coisa dita por White) em sua leitura deste um ensaio, „O evento modernista‟, e da confusão entre
experiência e experiencidade criada pelo texto, que ele encontra na sua leitura do texto. Assim, a
confusão se dá entre experiência vivida e o tipo de sensibilidade esteticamente intensificada (ou
emoção, ou afeto) que um texto literário, especialmente se for modernista, pode nos inspirar.
Parte dessa confusão é sugerida por aquele ensaio por conta do paralelo feito entre os textos
literários dos modernistas, com suas intensificações de nossa sensação de experiencidade e
também o fato de assistirmos transmissões televisivas como a da explosão Challenger, que
White usa como exemplo. Assim sendo, pode-se ler aparentemente esse último como se fosse
sobre uma relação direta com o material (e por uma extensão tênue ao evento), mas penso que
se o lermos com cuidado, a ideia de que esse material foi transmitido, repetido, deixado
largamente emoldurado, assim por diante, é o ponto principal.
A afirmação por mim feita é que White ainda permanece firmemente dentro das divisas
marcadas pela ideia de experiencidade, da experiência estética. O que gostaria de fazer é me
certificar de que falamos da mesma coisa. E sugerir que nós deixemos a experiência, presença e
percepção, assim como outros termos similares, em seu local de origem, na esfera do
fenomenológico.
Minha contenda, então, é que essa mudança da experiência vivida, senso comum e
cotidiana em direção a experiência estética, ou experiencidade, cruza a fronteira entre o que
podemos considerar fatos certamente não-problemáticos, alguém comera no passado, eles
dormiram, eles sentiram dor, assim por diante, e alguém „experimentou‟ algo como bonito, bom
ou valioso, por exemplo.
Apenas por esta razão, penso que pode-se dizer que Ankersmit, e outros defensores da
experiência e da presença, cometem um erro significante de categoria. Quando Ankersmit afirma
que „se tivermos uma experiência da realidade demasiado complexa, da mesma maneira que
ocorre com uma experiência estética ou com uma experiência histórica, pode ser afirmado – ao
menos em minha opinião – que algo como um acesso direto à realidade é possível‟ (2005), ele
não está, até onde vejo, falando de experiência, mas de uma incrementada sensação de
experiencidade, como todas as qualidades mencionadas – „complexa‟, „estética‟ e „histórica‟ – de
fato sugerem.
(Novamente, uma comparação demasiado vaga entre uma experiência de realidade e a
nebulosa „experiência histórica‟ que Ankersmit busca – e simultaneamente considera como dada,
de fato – serve para tornar seus argumentos suscetíveis à crítica por parte dos filósofos da
linguagem; uma jogada que só complica a discussão sem prometer muito em direção a
soluções).
Apesar dessa confusão, creio que devamos ler essas afirmações mais generosamente
do que alguns críticos: O apelo a uma „verdade‟ ou ideia metafórica que sucede o processo de
decodificar certa quantia de complexidade, inserida em um conjunto relativamente estável de
discursos e de códigos, nos quais estamos embutidos, é uma ideia útil na acepção de produção
de sentido, se não for no nível de um sentido estático „lá fora‟. Esta, para mim, é a principal
mensagem do texto de White „O contexto no texto‟ (de 1982). Há „verdades humanas‟ a serem
descobertas através de uma leitura cuidadosa dos códigos nos quais operamos; nossos
discursos definem o que é possível dentro de um contexto particular – como de fato vários
Annalistes também apontaram -, por isso mapear aquele contexto nos fornece ideias de como
pessoas pensaram certas coisas, como eles muito provavelmente experimentaram algo, como
eles viam as possibilidades e limitações por eles enfrentadas, assim por diante. Assim, não há
dúvida de que os historiadores estejam certos nessa intuição bem básica sobre „compreender‟
outros.
O ponto central que não podemos ler tão generosamente aparece, penso eu, com a
maneira pela qual decidimos ver o status dessa „verdade‟ e desse conhecimento. A dificuldade é
que se nós considerarmos séria a ideia de que o sentido não está „lá fora‟, então temos de fazer
uma distinção bem firme. Não podemos importar ideias sedutoras sem gerar problemas de um
Levinas. O poder da face do outro, por exemplo; como ele nós liberta de nossa subjetividade
auto-centrada para reconhecermos a alteridade do outro e da qual tiramos uma primeira filosofia
e uma ética de respeito pelo outro, assim por diante. Isso pertence à esfera da experiência
fenomenológica. O mesmo vale para ideias intuitivamente sedutoras de presença ou
materialidade, de como a materialidade nos direciona a caminhos específicos, simplesmente por
ser um rastro de algo, evidência de alguém ter feito algo, e somos movidos automaticamente
para esse caminho porque alguém fizera algo particular. Isso retém até mesmo ideias de
memória como provedora de uma „experiência inter-geracional‟, por exemplo.
Mas se há algo desse tipo de realidade que poderia necessariamente nos libertar de
nossas respostas habituais, nossas maneiras habituais de pensar, então deve ser „somente‟ no
nível de sistemas significatórios, no nível do sentido de um texto, do famoso conteúdo da forma,
da direção que o texto nos guia durante os processos de construção de significado. Ora, se só
for um relatório direto, digamos um artigo de jornal, ou uma história objetiva, então grande parte
da significância vem do fato de que as pessoas escolhem atribuir sentido/valor ao fato de que
algo realmente aconteceu. Eles imaginam que, por terem lido sobre algo, estão em contato com
alguém experimentando isso, e eles (pensam que) sentem empatia, o que „ocasiona‟ certo
sentido pra eles, certa avaliação por eles, certo posicionamento moral por eles. Dados esses
pressupostos, que mais poderia ocorrer (que não uma experiência elevada, talvez do tipo
„histórico‟)? Mas isso é um problema distinto e vínculos não são gerados por fatores estéticos,
mas pela presunção de que há valor no fato de algo ser real, em algo „ter acontecido‟. Pensando
assim, operamos num nível completamente diferente. Novamente, a meu ver, isto é parte de
uma confusão contínua ao discutirmos experiência e escrita histórica. O eterno retorno da
realidade, desse modo, quer dizer que o sentido está de certa forma disponível.
No mesmo ensaio („O contexto no texto‟), White também nos esclarece:
„O real histórico, o passado real, é aquele ao qual posso ser remetido
somente por meio de um artefato que é textual em sua natureza. As noções
indiciárias, icônicas e simbólicas da linguagem, portanto dos textos,
obscurecem a natureza dessa capacidade indireta de referência e impede a
possibilidade de (fingir-se) referência direta, criam a ilusão de que há um
passado disponível que é diretamente refletido pelos textos. Mas mesmo se
acreditarmos nisso, o que vemos é o reflexo, não a coisa refletida‟ (White
1987, 209).
A razão para nos apegarmos a essa caracterização tão intensamente é uma bem
simples – ainda que difícil de aceitar – política e eticamente: Se não há vínculo entre fato e valor,
entre o é e o deveria, não há valores implícitos, ou inquestionáveis, em nenhum pensamento
particular ou modo de ser. Ao invés, o valor da visão de mundo ou da ação é somente
discernível em termos de suas consequências. Além de demonstrar o valor do estudo histórico –
o valor de contextualizar nossas compreensões em vez de tentar trabalhar somente nos níveis
das generalizações (pois como poderíamos, de outra maneira, avaliar impacto e consequência?)
– isto deveria ser compreendido como uma mensagem libertadora: Reconhecemos que
construímos sentido, um reconhecimento que impede oportunidades de nos concentrarmos em
estórias positivas e de afirmação da vida. Entretanto, tal reconhecimento só tendera a alertar os
historiadores acerca da teoria construtivista e do relativismo implicado por ela.
Escolhendo nosso futuro7:
constituição do ancestral retroativo e modernidades alter-nativas8
Ewa Domanska
(Adam Mickiewicz University, Polônia)
(trabalho em progresso)
No artigo "O que é sistema histórico?", Hayden White escreve sobre o estabelecimento
de um ancestral ideal que permita às sociedades criar uma identidade coletiva a partir do
lançamento de conexões a um passado desejado, como representado por heróis humanos ou
divinos. Ele chama isso de "um processo de substituição ancestral" ou "constituição ancestral
retroativa". Mesmo se uma das propostas do texto de White fosse a de enfatizar as diferenças
entre sistemas históricos e biológicos, uma certa forma de conectar ambos é possível. No
contexto do recente interesse pelas biohumanidades e da transcendente oposição entre cultura e
natureza, a forma específica de White inventar a tradição talvez esteja, na realidade, relacionado
à evolutiva noção de adaptação a cambiantes contextos sociais, políticos e de meio-ambiente.
Uma escolha consciente (tempos críticos como revoluções ou reformas), pode ser vista como
uma estratégia de adaptação ou um ímpeto de sobrevivência. Assim, a escolha de um ancestral
adequado é estratégico para o futuro da comunidade e este é o motivo pelo qual eu acho esse
tema particularmente importante, não apenas como uma questão da teoria histórica e um motivo
interessante dos trabalhos de White, mas primeiramente como uma ideia estratégica em nosso
tempo, marcado por violência, pobreza e degradação ecológica crescentes. Nesse artigo White
escreve como segue:
O que ocorreu entre os séculos três e oito foi que os homens pararam de
enxergar a si próprios como descendentes de seus antepassados romanos e
passaram a tratar a si mesmos como descendentes de seus predecessores
judaico-cristãos (...) Quando o homem europeu ocidental passou a agir como
se descendesse do segmento cristão do mundo antigo; quando ele passou a
estruturar seu comportamento como se ele fosse geneticamente
descendente de seus predecessores cristãos, quando, em suma, eles
passaram a honrar o passado cristão como o modelo mais desejável de
criação de um futuro unicamente seu, e pararam de honrar o passado
romano como seu passado, o sistema sócio-cultural romano parou de existir
(...) Estou sugerindo que sistemas históricos diferem de sistemas biológicos
por sua capacidade de agir como se pudessem escolher seus próprios
9Hayden White, “What is a Historical System?”, in: his, The Fiction of Narrative (Essays on History, Literature, and
Theory, 1957-2007), ed. by Robert Doran. The Johns Hopkins University Press, 2010, p. 132. O texto foi escrito em
1967 e publicado cinco anos depois como: Hayden White, “What is a historical system?”, in: Biology, history, and
natural philosophy: based on the second international colloquium held at the University of Denver, ed. by Allen D.
Breck and Wolfgang Yourgrau. New York: Plenum Press, 1972: 233-242.
10 Ibidem, p. 133.
11Duran afirma que a realização do modelo de explanação figura e figuralismo é específico para a forma histórica de
pensamento de "causalidade reversa", e que mesmo que não explicitamente formulado, estava presente no
pensamento de White já neste ensaio. Robert Duran, “Editor‟s Introduction: Humanism, Formalism and the
Discourse of History,” in White, The Fiction of Narrative, p. xxix-xxxi and his, Editor‟s Introduction: “Choosing the
Past. Hayden White and the Philosophy of History”, in: Philosophy of History after Hayden White, ed. by Robert
Doran. London, etc.: Bloomsbury, 2013, p. 12 ff. Veja também: Herman Paul, Hayden White. The Historical
Imagination. Polity Press, 2011, p. 141 and Hans Kellner, “A Distinctively Human Life”, in: Re-Figuring Hayden
White, ed. by Frank Ankersmit, Ewa Domanska e Hans Kellner. Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 3-5.
[White comenta: "Estava trabalhando na distinção genealógico-genética neste ensaio, e foi apenas depois que eu vi
a conexão entre o modelo de realização de promessa, que me parecia ser uma forma de falar sobre proposições
não-teleológicas" - mensagem de e-mail - 05.09.2013]
12 Hayden White, “History as Fulfillment”, in: Philosophy of History after Hayden White, p. 35.
13Duran afirma que a realização do modelo de explanação figura e figuralismo é específico para a forma histórica de
pensamento de "causalidade reversa", e que mesmo que não explicitamente formulado, estava presente no
pensamento de White já neste ensaio. Robert Duran, “Editor‟s Introduction: Humanism, Formalism and the
Discourse of History,” in White, The Fiction of Narrative, p. xxix-xxxi and his, Editor‟s Introduction: “Choosing the
Past. Hayden White and the Philosophy of History”, in: Philosophy of History after Hayden White, ed. by Robert
Doran. London, etc.: Bloomsbury, 2013, p. 12 ff. Veja também: Herman Paul, Hayden White. The Historical
Imagination. Polity Press, 2011, p. 141 and Hans Kellner, “A Distinctively Human Life”, in: Re-Figuring Hayden
White, ed. by Frank Ankersmit, Ewa Domanska e Hans Kellner. Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 3-5.
[White comenta: "Estava trabalhando na distinção genealógico-genética neste ensaio, e foi apenas depois que eu vi
perspectiva futurista e especular sobre como o futuro pode ser vislumbrado e como podemos
escolher nosso futuro. Eu concordo com Ilya Prigogine que o “que fazemos hoje depende de
nossa imagem sobre o futuro, mais do que o futuro depende do que fazemos hoje” 14. Estou
interessada em uma “história antecipadora”, significando uma abordagem futurista do passado
que iria permitir-nos vislumbrar um alternativo “horizonte de expectativas” baseado no passado e
um “espaço de experiência” presente que esteja aberto e aberto a formas não-ocidentais de
pensamento e experiência não-humana15. Eu acredito, como estudiosa do passado, que não
deveríamos nos voltar contra um passado e um presente injustos (que foi o caso das
humanidades críticas e emancipadoras), mas para certos ideais. Eu creio que necessitamos de
cenários alternativos para o futuro. Também precisamos de um conhecimento visionário que nos
permita não apenas um melhor conhecimento do mundo que nos cerca, mas antes de tudo que
nos prepare para o futuro por vir que pode ser fundamentalmente diferente – graças à revolução
biotecnológica e o desenvolvimento da neurociência, dentre outras coisas – do presente.
Certamente esse tipo de “história antecipadora” (história orientada pelo futuro), pode ser visto
como contraditório em termos, contudo, tal abordagem pode auxiliar na reconceitualização do
que consideramos como história e gerar um “conhecimento do passado” mais inclusivo,
integrador e holístico.
A meu ver, o processo de substituição ancestral como proposto por Hayden White, no
contexto de um conhecimento do passado inclusivo e orientado para o futuro, é muito
antropocêntrico. Assim, e aqui vem a ideia central, ao invés de buscar por inspiração na filosofia
e história europeias (ocidentais), eu seguirei o trabalho de antropólogos e arqueólogos tais quais
Nurit Bird-David, Philippe Descola, Graham Harvey, Tim Ingold e especialmente Eduardo
Viveiros de Castro, e eu gostaria de falar sobre o novo animismo (que irei definir mais tarde)
como uma plataforma conceitual significando um conjunto de ideias e abordagens ideais para
construir a visão orientada para o futuro da constituição ancestral que também inclui ancestrais
não-humanos. O novo animismo questiona nossas noções antropocêntricas de ancestralidade e
considera a possibilidade de ancestrais em animais, plantas e coisas, assim como aquelas
noções míticas e/ou da ficção científica de metamorfose corpórea, comunicação entre espécies,
e uma sociedade que é constituída por indivíduos, dos quais apenas alguns são
humanos16.Assim, para mim o animismo “não é um recurso para a teoria, mas uma fonte para a
teoria,”17 no caso deste estudo, uma teoria da “constituição ancestral não-humana prospectiva”
(permitam-me parafrasear a ideia de White).
a conexão entre o modelo de realização de promessa, que me parecia ser uma forma de falar sobre proposições
não-teleológicas" - mensagem de e-mail - 05.09.2013]
14 Ilya Prigogine,“Beyond Being and Becoming.” NPQ: New Perspectives Quarterly, vol. 21, 2004, p. 12 [5-12].
15Me refiro aqui a Reinhart Koselleck, em sua ideia de "Espaço de expriência" e "horizonte de expectativas", em
Futures Past. On the Semantics of Historical Time, trans. by Keith Tribe. Cambridge Mass.: MIT Press, 1985.
16Bruno Latour apresenta uma posição similar quando afirma que "a sociedade sempre significou associação e
nunca se limitou aos humanos". Bruno Latour, “Whose Cosmos, Which Cosmopolitics?” Common Knowledge, vol.
10, no. 3, 2004, p. 451 [450-462]
17Benjamin Alberti & Yvonne Marshall, „Animating Archaeology: Local Theories and Conceptually Open-ended
Methodologies.” Cambridge Journal of Archaeology, vol. 9, no. 3, 2009, p. 344 [344-356].
Ao dizer isso, eu proponho que sejam consideradas as seguintes questões meta-
históricas: como a nossa visão sobre a humanidade mudaria se os historiadores levassem o
novo animismo a sério e aplicassem a ideia de constituição de uma ancestralidade não-humana
com o objetivo de explicar como sistemas histórico/naturais-culturais se modificaram no passado
e se modificarão no futuro? Qual tipo de ancestral substitutivo é necessário para o futuro? O que
poderia acontecer se um certo grupo escolhesse ancestrais animais (ou outras entidades não-
humanas como plantas ou coisas) ao invés de modelos humanos? Qual é o potencial radical ou
libertador de tal escolha e qual tipo de futuro poderia suceder a partir dela? Eu irei sustentar que
nos tempos atuais de desafios impostos pela pobreza crescente, por casos de assassinatos em
massa, migrações, assim como destruições ecológicas, mudanças climáticas e o rápido
progresso biotecnológico, a ideia da escolha de um ancestral não-humano pode abrir a
possibilidade de eco-utopias que podem contribuir para um futuro sustentável.
Isso não é uma coincidência, o imaginário animista, como apresentado por antropólogos
críticos, como Eduardo Viveiros de Castro, inspiram no presente uma política radical em sua luta
por – o que Michael Hardt e Antonio Negri denominam altermodernidade.18Para Hardt e Negri a
“altermodernidade provê uma forte noção de novos valores, novos conhecimentos, e novas
práticas; em suma, a altermodernidade constitui um dispositivo de produção de
subjetividade.”19Envolvendo o animismo no processo de construção de tal altermodernidade –
vamos chamá-la de modernidade alternativa (tendo em mente sua pluralidades), - isso não é –
devemos enfatizar – o fato de estarmos testemunhando um tipo de “nativismo‟ ou um retorno ao
“primitivismo”, mas uma séria alegação de que tratar o pensamento nativo como equivalente ao
pensamento ocidental é (potencialmente) uma prática descolonizadora e libertadora.
Conhecimentos indígenas defendem ontologias plurais e várias realidades iguais. Deste modo, o
animismo foi marginalizado, uma vez que não se adequava ao projeto moderno, mas com a
18 Há muitos anos já existe um interesse crescente observado em modernidades alternativas e indígenas que
supõem descentralizar o interesse em uma forma específica de modernidade europeia. Ver: Unbecoming Modern:
Colonialism, Modernity, Colonial Modernities, ed. by Saurabh Dube, Ishita Banerjee-Dube. New Delhi: Social
Science Press, 2006 (ver: Enrique Dussel, “World-System and „Trans‟-Modernity”: 165-186). Veja também:
Alternative Modernities, ed. by Dilip Parmeshwar Gaonkar. Durham: Duke UP, 2001. Uma específica modernidade
"nativa" do leste europeu é discutida no periódico russo “Ab Imperio. Studies of New Imperial History and
Nationalism in the Post-Soviet Space.”
19 Michael Hardt and Antonio Negri, Commonwealth. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2009, p. 115. Para
Hardt e Negri, a altermodernidade "marca uma ruptura mais profunda com a modernidade do que qualquer hiper- ou
pós-modernidade. De fato as duas são removidas da modernidade, por estarem baseadas nas lutas da anti-
modernidade e suas resistências às hierarquias no curso da modernidade; e segundo, quebram com o anti-
modernismo, recusando a oposição dialética e movendo da reistência à prospota de alternativas". Ibidem, p. 114.
Em outro local, Hardt e Negri definem a altermodernidade como segue: "A altermodernidade possui uma relação
diagonal com a modernidade. Ela marca o conflito com as hierarquias da modernidade, assim como o faz a
antimodernidade, mas orienta as forças de resistência de forma mais clara até um terreno autônomo. Deveríamos
notar imediatamente, porém, que o termo altermodernidade pode criar incompreensões. Para alguns o termo pode
implicar em um processo reformista de adaptação da modernidade à nova condição global ao preservar suas
caracteristicas principais. Para outros pode sugerir formas alternativas de modernidade, especialmente ao serem
definidas cultural e geograficamente , isso é, a modernidade chinesa, a modernidade europeia, uma modernidade
iraniana, e assim por diante. Pretendemos com o termo "altermodernidade", em vez de indicar uma ruptura decisiva
com com a modernidade e o poder de relação que a define desde então, a altermodernidade emerge em nossa
concepção das tradições da antimodernidade - mas também parte da antimodernidade já que ela se estende para
além da oposição e da resistência". Ibidem, p. 102-103.
corrente reavaliação alter-moderna ele se torna relevante. Certamente, eu não estou defendendo
um “animismo pop new age” e/ou uma visão de mundo neopaganista. Eu não estou me
“tornando nativa” em meu interesse pelos modos de saber indígenas, e com o animismo não são
ressoadas noções românticas do nobre selvagem ou a ideia de proximidade com a natureza. 20
Eu enfatizo novamente, que a proposta não é imitar cosmologias indígenas, mas utilizá-las como
inspiração para vislumbrar uma visão de mundo diferente, que seja mais adequada para o futuro
e aos desafios que ele impõe. Eu também estou completamente ciente das críticas do uso por
acadêmicos europeus do conhecimento indígena com o objetivo de ressuscitar a autoridade
declinante das ciências ocidentais no processo de construção do conhecimento. Tal abordagem,
portanto, pode ser vista como um outro sinal do contínuo processo de colonização epistêmica do
ocidente imperial.21 Mas eu sou uma acadêmica da Europa Oriental – de uma “província
epistêmica”, que foi (e ainda é) intelectualmente colonizada por teorias e abordagens produzidas
por vários centros (especialmente a Alemanha, a Grã-Bretanha, a França e os EUA). Assim,
usando tradições não-ocidentais eu ajo de forma a “descolonizar a minha mente” (para usar a
famosa expressão de Ngũgĩ wa Thiong‟o) e vislumbrar uma forma diferente de conhecimento
que traria maneiras não-ocidentais de pensamento como complementares ao meu próprio.
“Periferias do mundo, unam-se!” – permitam-se citar o “convite” proclamado por meu colega -
Piotr Piotrowski, um historiador da arte polonês.22
Humanidades ecológicas
Em meados do fim da década de 1990, Frithof Capra percebeu que estamos
testemunhando uma virada paradigmática ocorrendo nas ciências, desde a física até as ciências
da vida, acompanhada por uma mudança no sistema de valores como um ponto de partida para
os pesquisadores, isso é, em um amplo sentido, o pensamento ecológico 23. O novo paradigma,
definido por Capra como um paradigma holístico ou ecológico, é caracterizado, em sua
abordagem, por uma quantidade de giros: da racionalidade à intuição, da auto-confirmação à
integração, da dominação à parceria, da competição à cooperação, da noção de estrutura e suas
partes à noção do todo e processo. Esse paradigma repousa sobre a teoria dos sistemas, com
particular interesse na questão da auto-organização (a autopoiesis de Maturana e Varela)24, e
20De fato, esta abordagem foi fabricada pela filosofia ocidental e posteriormente usada por aqueles interessados na
proteção ambiental (que era realizada pelo interesse dos humanos).
21 De fato, Tim Ingold abertamente anuncia que o interesse corrente no animismo indígena poderia ser útil para a
"reanimação de nossa, assim chamada tradição 'ocidental' de pensamento". Tim Ingold,“Rethinking the animate, re-
animating thought.” Ethnos, 71, no. 1, 2006, p. 19 [9-20].
22 Piotr Piotrowski, “Peripheries of the World Unite!” trabalho apresentado no XLVI AICA International Congress
(Košice – Bratislava, Slovakia, September 24-27, 2013). Piotrowski se interessa em criar atitudes alter-globalistas na
apresentação do sistema mundial, nas periferias da arte e na reescrita das narrativas sobre história da arte. Vejam:
Art and Democracy in Post-Communist Europe. London: Reaktion Books, 2012.
23 Fritjof Capra, The Web of Life. A New Scientific Understanding of Living Systems. New York:
Anchor Books, 1996, pp. 5-13.
24 A teoria dos sistemas, focada nos processos de auto-organização, autonomia, integração, e cooperação, tem
atraído muito interesse. Entre os representantes dos pensadores dos sistemas estão dois pesquisadores chilenos:
Humberto Maturana e Francisco Varela, cuja teoria da autopoiesis descrevendo a auto-organização de sistemas
está ligado à emergência de novas formas de espiritualidade, apoiando a percepção do mundo
nas categorias das “fundamentais interconectividades e interdependência de todos os
fenômenos e enraizamentos no cosmos”25. Eu concordo com o diagnóstico de Capra. Desde o
fim dos anos 1990 eu observo a emergência de um paradigma não-antropocêntrico, pós-
ocidental, e pós-secular que é diversamente denominado como pós-humanidades, humanidades
ecológicas (ou eco-pós-humanidades que é uma tendência no interior das humanidades
ecológicas inspirada pelo pós-humanismo) ou biohumanidades. A pesquisa sobre a condição
das humanidades e das ciências sociais contemporâneas26 nos permite supor que a mudança de
paradigmas, porém, a esta altura, característica apenas de tendências e abordagens avant-
garde, talvez seja o presságio não apenas de novas mudanças, mas de uma reviravolta.
Não estou sozinha em minha hipótese de que estamos no limiar de uma verdadeira
revolução estimulada pelos processos que ocorrem no mundo (conectados com as mudanças
político-culturais, assim como com as mudanças climáticas e a degradação do meio ambiente);
reforçados pelas transformações ocorridas na academia (capitalização da academia, educação
de massas, mudança no perfil étnico e de gênero dos estudantes universitários), e também
inspirados por descobertas nas ciências biológicas, especialmente na biologia molecular, no
cognitivismo e nas neurociências27. Essas mudanças nos levam a considerar as questões
básicas sobre o que é a vida, qual a sua importância, o que é o humano, e a reconsideração das
relações entre o humano e o não-humano, a cultura e a natureza.
O que é de especial importância para a minha consideração aqui é que no contexto do
criticismo tipicamente pós-humanista do antropocentrismo, do eurocentrismo e do imperialismo
cognitivo do tipo de conhecimento ocidental, um crescente interesse nos conhecimentos nativos
é observado (especialmente na Austrália, no Canadá, e em diversos Estados dos EUA).
Contudo, os conhecimentos indígenas são reconhecidos não tanto como o objeto da pesquisa
antropológica, mas como uma plataforma para criar uma compreensão alternativa do sujeito, da
comunidade, do sagrado, do tempo, do espaço e de relações com o não-humano. Obviamente,
existe uma séria questão sobre o nível ao qual as formas indígenas de conhecimento podem ser
moleculares obteve amplo sucesso interdisciplinar. Ela é utilizada na pesquisa social por Niklas Luhmann, dentre
outros. Ver: Humberto Maturana and Francisco Varela, Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living,
Reidl, London, 1980 e dos mesmos autores, The Tree of Knowledge, The Biological Roots of Human Understanding,
Boston, MA: Shambhala Publications, 1998. É importante enfatizar que Varela, em seu projeto
neurofenomenológico, dá importância às tradições asiáticas (por exemplo, o budismo) que introduzem temas
desconhecidos na tradição ocidental no discurso sobre a experiência.
25Fritjof Capra, David Steindl-Rest, Thomas Matus, Belonging to the Universe: Explorations on the Frontiers of
Science and Spirituality. San Francisco: Harper San Francisco, 1991, p. 70 (part III “The Current Shift of
Paradigms”).
26 Vejam meu artigo: “Wiedza o przeszłości – perspektywy na przyszłość” (Conhecimento do passado - prospectos
para o futuro, em polonês) Kwartalnik Historyczny, vol. CXX, no. 2, 2013: 221-274. Nesse texto eu apresento os
resultados mostrando a condição das humanidades e das ciências sociais no dia de hoje baseada em tal questão,
que incluía cerca de 1200 edições de 300 revistas, representando várias disciplinas das humanidades e das
ciências sociais, publicadas entre 2010 e 2012.
27 Doris Bachmann-Medick também chega a essa conclusão ao considerar as mudanças na pesquisa
contemporânea nas humanidades. Ela enxerga sintomas revolucionários na escola das revoluções copernicanas na
virada nerobiológica. Doris Bachmann-Medick, Cultural Turns. Neuorientierungen in den Kulturwissenschaften, 3.
neu bearb. Aufl. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt 2009, pp. 389–401.
compatíveis com a ciência ocidental e sobre “se e de que forma a universidade pode ser um
local para um tipo diferente de saber – distintas epistemologias, distintos conhecimentos”28. Nas
ontologias pós-humanistas e relacionais eles são constantemente tidos como iguais. Artigos são
escritos em coautoria entre cientistas e autóctones. Essas interessantes experiências põem em
destaque as formas de obter conhecimento e seus aspectos deslocados da ciência ocidental que
se referem a uma racionalidade específica. É um elemento significativo dos conhecimentos
nativos que eles se iniciem com a prática e se aloquem na experiência. É possível que tal
conhecimento constitua o necessário modelo de conhecimento sobre o mundo, por ser de
natureza interdisciplinar, inclusiva, conectando o espiritual ao material, se baseando no
parentesco co-substancial, na ancestralidade e herança comuns, e sendo governado pelo
princípio de relação e ética de respeito por todos os seres vivos.
28“Different Knowings and the Indigenous Humanities”. Daniel Coleman in Conversation with Marie Battiste, Sákéj
Henderson, Isobel M. Findlay, and Len Findlay. ECS: English Studies in Canada, vol. 38, no. 1, March 2012, p. 142
[141-159].
29 Martin D. Stringer, “Rethinking Animism: Thoughts from the Infancy of our Discipline.” The
Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 5, no. 4, December 1999, p. 546 [541-555]. Veja também: Graham
Harvey, Animism. Respecting the Living World. New York: Columbia University Press, 2006, p. 5-9.
30 Harry Garuba, Explorations in Animist Materialism: Notes on Reading/Writing African Literature, Culture and
Society.” Public Culture, vol. 15, no. 2, Spring 2003, p. 271 [261-285]. Quando Garuba fala sobre a
"retradionalização da África", afima que esse processo é a manifestação de um "inconsciente animista que opera
através de um processo que envolve o que eu descrevo como um contínuo reencantamento com o mundo” (p. 265).
O animismo celebra uma visão holística e inclusiva das relações entre humanos e outros
seres para além do humano (para usar a expressão de Irving Hallowel adotada por Graham
Harvey) e é afirmativo da vida31. Não diz respeito ao anima compreendido como um espírito ou
uma alma, mas como uma força de vida e um princípio de animação – movimento entendido
como mudanças e transformações causadas por várias forças internas e externas. Estou
interessada aqui em como podemos pensar sobre a vida (eu não limito a vida à condição de
estar vivo, mas a uma condição de estar apto a transformar e a mudar) em uma maneira
diferente.
O assim chamado “giro animista”32, não tem sido tão visível quanto os giros nas
espécies ou animais; contudo, por vinte anos ele tem atraído a atenção de intelectuais na
antropologia, na arqueologia e no campo multidisciplinar dos novos estudos materiais. Alejandro
F. Haber afirma que:
Assim como o “giro animista”, parte de um movimento pós-modernista e anti-
essencialista mais amplo das rígidas oposições binárias, típicas da modernidade, é
provavelmente uma das mais importantes contribuições à antropologia do criticismo da teoria
social (ocidental).33
O animismo é considerado uma ontologia alternativa, uma nova orientação na
arqueologia, um conceito analítico construtivo e descolonizador, como uma teoria de resistência,
um discurso contra-hegemônico que permite repensar o problema da importância, agência e
ontologia que vai além do excepcionalismo humano e abarca o não-humano. Assim, ele se
encaixa como um paradigma não antropocêntrico e pós-ocidental. Em tal visão as "ideias
ocidentais modernas sobre a natureza como um campo essencialmente não-humano e a cultura
como uma criação humana que possui controle progressivo sobre a natureza são tidas como
uma "criação provincial da Europa"34. Deste modo, como afirmado por Graham Harvey: “o
animismo é uma das muitas vitalmente presentes e contemporâneas formas além-modernas de
ser humano”. A modernidade, em vez do animismo ou qualquer forma de indianidade é
Pelo fato das sociedades de terceiro mundo estarem construindo suas próprias modernidades, neste processo o
pensamento mágico não desaparece, mas é assimilado e "o racional e o científico são apropriados e transformados
no místico e no mágico" (p. 267). O animismo é para ele um modo de consciência religiosa onde os objetos são
manifestações materiais de deuses e espíritos (localizados nos objetos). Ele termina seu artigo dizendo que: "uma
compreensão animista do mundo aplicada à prática do cotidiano tem provido avenidas de agência para o
despossuído na África colonial e pós-colonial" (p. 285)
31 Cf. Harvey, Animism, p. xxi. "Em coletividades animistas - como defendido por Philippe Descola - um campo da
natureza não pode ser dissociado do campo da sociedade, de modod a permitir a proteção do último sobre o
primeiro e como um princípio organizador, o que é obtido é um único campo de relações entre a multiplicidade de
vários tipos humanos humanos e não-humanos". Philippe Descola, “Human Natures”. Social
Anthropology/Anthropologie Sociale, vol. 17, no. 2, 2009, p. 152 [145-157]
32 Eu adicionaria: "giro anímico" para acadêmicos interessados na animação. Há uma diferença entre ser um
animista e ser um anímico (animicista?)
33 Alejandro F. Haber, “Animism, Relatedness, Life: Post-Western Perspective.” Cambridge Journal of
Archaeology, vol. 9, no. 3, 2009, p. 418 [418-430].
34 Haber, “Animism, Relatedness, Life”, p. 427..
excepcional entre formas de ser humano no mundo”35. De fato, cerca de 40% da população
mundial pertence a culturas animistas36. Matthew Hall afirma que “para além de uma crença
ilusória de que tudo está vivo, o animismo é uma forma sofisticada tanto de estar quanto de
conhecer o mundo: é uma epistemologia relacional e uma ontologia relacional”37.
Neste texto, seguindo a visão de Hall, eu proponho que entendamos o animismo não
como um tipo de religião (“primitiva”), mas como uma forma específica de abordagem do mundo
que permita estabelecer relações entre o humano e o não-humano. A definição do animismo
ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro como “uma ontologia que postula o caráter social das
relações entre humanos e não-humanos”, também defende tal visão.
Um dos principais defensores do “novo animismo” – Graham Harvey, inicia seu livro
Animism (2006) com o seguinte parágrafo:
Animistas são indivíduos que reconhecem que o mundo é repleto de sujeitos,
dos quais apenas alguns são humanos, e que a vida é sempre vivida em
relação com os outros. O animismo é vivido fora das várias formas que estão
todas relacionadas a agir respeitosamente (com cuidado e construtivamente)
para e entre outras pessoas. Sujeitos são seres, para além de objetos, que
são animados e socialmente voltados para outros (mesmo que estes não
sejam sempre sociáveis). O animismo pode envolver aprender como
reconhecer que é uma pessoa e quem não é – porque nem sempre é óbvio e
nem todos os animistas concordam que tudo o que existe é vivo ou pessoal.
Contudo, o animismo é mais precisamente compreendido como estar
preocupado em aprender a ser um bom sujeito em relações respeitosas com
outros sujeitos.38
O que é importante para ele não é a alma, mas o corpo que constitui a singularidade de
uma pessoa. Assim, sujeitos compartilham a alma (essência espiritual), mas possuem diferentes
formas corpóreas. Mas esses diferentes corpos que animais e plantas agora habitam – de
acordo com os mitos – são efeito de uma mistura entre espécies distintas39. Certamente não são
35 Harvey, Animism, p. xxi. Harvey afirma que o termo animismo é de valor considerável como um termo crítico-
acadêmico, para um estilo de relação religiosa e cultural com o mundo". Harvey, Animism, p. xv. Ou "animismos são
teorias, discursos e práticas de relação, de viver bem, de compreender mais amplamente o que significa ser uma
pessoa, e uma pessoa humana, em companhia de outras pessoas, dentre as quais nem todas são humans, mas
merecedoras de respeito". Ibidem, p. xvii.
36 Anselm Franke, “Introduction”, in: Animism: Conference/Exhibition. Haus der Kulturen der Welt,
2012, p. 7 [http://www.hkw.de/media/en/texte/pdf/2012_1/programm_5/animismus_booklet.pdf –
acessado em 4.08.2013]
37Matthew Hall, Plants as Persons. A Philosophical Botany. Albany, N.Y.: Sunny Press, 2011, p. 105.Harvey claims
that „the term animism is of considerable value as a critical,
38 Harvey, Animism, p. xi
39 Phillipe Descola indica que: "se animais podem, se eles querem, derrubar o envelope corpóreo peculiar a suas
espécies e revelar as dimensões humanas de sua interioridade, sem perder os atributos de seu comportamento, é
porque formas são fixas para cada classe de entidades, mas são variáveis para as entidades em si mesmas. Um
clássico elemento de muitas ontologias animistas é a habilidade de ir além da metamorfose que é reconhecida como
pertencente a seres com uma interioridade idêntica. Um homem pode ser encorpado como um animal ou uma
planta; um animal pode adotar a forma de outro animal; uma planta ou um animal podem derrubar sua vestimenta
todos os sujeitos que possuem a mesma capacidade de metamorfose. O mais popular nas
ontologias animistas é a transformação do homem no animal e vice versa (possível para
shamans, por exemplo). A metamorfose do humano em uma planta e da planta em um humano
é muito menos comum. Ainda assim – como apontado por Viveiros de Castro – o animismo é
antropocêntrico, já que na cosmologia indígena,
A forma humana é, literalmente, a forma em que todas as espécies
emergem: cada uma das espécies é um modo finito de uma humanidade
como substância universal. Isso inclui as espécies humanas (como as
compreendemos), que efetivamente se tornam apenas mais uma espécie.
(...) O perspectivismo é a pressuposição de que cada espécie vivente é
humana em seu próprio departamento, humana por si, ou melhor, que tudo é
humano por si ou antropogênico. Essa ideia se origina nas cosmologias
indígenas, onde a forma primordial de ser é humana.40
O ponto de vista está no corpo – continua Viveiros de Castro, (...) mas há apenas um
ponto de vista, o ponto de vista da humanidade. (...) A diferença entre as espécies não é tanto
um princípio de distinção como é um princípio de relação. Para começar, a diferença entre as
espécies não é anatômica ou fisiológica, mas comportamental e etológica (o que distingue as
espécies é muito mais seu etograma – o que comem, onde vivem, se vivem em um grupo ou
não, etc. – do que sua morfologia).41
Viveiros de Castro não está, obviamente, oferecendo aqui um tipo de especismo e não
está defendendo o excepcionalismo humano, mas uma diferente compreensão do
antropocentrismo. Na cosmologia ameríndia a condição original comum a animais e humanos
não é a animalidade, como no pensamento ocidental, mas a humanidade em si. Animais são
antigos humanos (enquanto no pensamento ocidental os humanos são antigos animais que
ultrapassaram sua animalidade graças ao processo civilizador). Em tal visão, animais, plantas e
espíritos se enxergam como humanos. “Tudo pode ser humano, porque nada é apenas uma
coisa, cada ser é humano por si próprio. Todos os habitantes do cosmos percebem suas
próprias espécies, incluindo nós, humanos “reais” (quero dizer, reais para “nós”) como não-
humanos. (...) habitantes (do mundo mítico) não são nem mais nem menos humanos, pois são
as duas coisas.”42
exterior e revelar sua alma objetiva no corpo de um ser humano. Philippe Descola, Beyond Nature and Culture,
trans. by Janet Lloyd. Chicago: University of Chicago Press, 2013 (chapter:
“Animism Restored”).
40Eduardo Viveiros de Castro, „Some Reflections on the Notion of Species in History and
Anthropology,” trans. by Frederico Santos Soares de Freitas and Zeb Tortorici. BIO/ZOO, vol. 10, no. 1, Winter 2013
[http://hemisphericinstitute.org/hemi/en/e-misferica-101/viveiros-de-castro – acessado em 4.09.2013]
41 Ibidem.
42 Eduardo Viveiros de Castro, „The Untimely, Again,” trans. by Ashley Lebner. Introduction to Pierre Clastres,
Archeology of Violence, trans. by Jeanine Herman. Cambridge, MA: MIT Press, 2010, p. 47-48 [9-51]. Em outro
artigo, Viveiros de Castro escreve: "Não é que os animais sejam sujeitos por serem humanos disfarçados, mas eles
são humanos porque são sujeitos em potencial. Isso é dizer que a cultura é a natureza do sujeito; é a forma na qual
cada sujeito experimenta sua própria natureza. O animismo não é a projeção de qualidades humanas substanciais
projetadas em animais, mas expressa a equivalência lógica das relações reflexivas que humanos e animais
Essa base antropocêntrica, de acordo com Viveiros de Castro, contém um potencial anti-
antropocêntrico, já que “em um mundo onde tudo é humano, a humanidade é algo totalmente
diferente”43. O perspectivismo não sustenta que todos os seres possuem pontos de vista
diferentes, mas que todas as espécies enxergam o mundo da mesma forma, contudo existem
mundos diferentes44. Isso é o que um antropólogo brasileiro define como um multinaturalismo,
(em oposição ao multiculturalismo ocidental)45. Assim, a humanidade é uma condição que pode
ser ocupada por várias espécies46. Em suma, ao estudar a ontologia dos índios amazonenses,
Viveiros de Castro o faz de forma inversa ao modelo ocidental. Sua noção de multinaturalismo
destrói a compreensão tradicional da natureza e transfere o debate para além da obsessão
modernista e pós-modernista com a cultura (culturalismo). Essa mudança, ele enxerga como
desejável em tempos de crise ecológica. Bruno Latour enxerga o perspectivismo “como uma
bomba com o potencial de explodir”. 47
possuem consigo mesmos: salmões verão salmões como tal, como humanos verão humanos, isto é, como
humanos. Se, como observamos, a condição humana comum de humanos e animais é a humanidade, e não a
animalidade, isso é porque "humanidade" é o nome da forma geral retirada do sujeito". Viveiros de Castro,
“Cosmological Deixis”, p. 477.
43Viveiros de Castro, „Some Reflections”.
44"Tal diferença de perspectiva - não uma pluralidade de visões sobre uma única palavra, mas uma única visão
sobre mundos diferentes - não podem derivar da alma, já que a última é a base comum original do ser. Ao contrário,
essa diferença está localizada nas diferenças corporais entre as espécies, pelo corpo e suas afetividades (no
sentido de Spinoza, a capacidade do corpo em afetar e ser afetado por outros corpos) é o local e o instrumento da
diferenciação ontológica e da disjunção referencial. Assim, quando a nossa ontologia moderna, antropológica e
multiculturalista for fundada na implicação mútua da unidade da natureza e a pluralidade das culturas, a concepção
ameríndia deveria supor uma unidade espiritual e uma diversidade corpórea - ou, em outras palavras, uma "cultura",
multiplas "naturezas". Eduardo Viveiros de Castro, “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled
Equivocation.” Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, vol. 2, no. 1, 2004, p. 6
[3-22].
45Bruno Latour comentando sobre o perspectivismo de Viveiros de Castro escreve que: "enquanto cientistas de tipo
duro e macio concordam com a noção de que existe apenas uma natureza, mas muitas culturas, Viveiros quer
impulsionar o pensamento amazônico (que não é, ele insiste, o "pensée sauvage" que Lévi-Strauss implicava, mas
uma filosofia amplamente domesticada e altamente elaborada) para tentar perceber como o mundo inteiro ficaria se
todos os seus habitantes possuíssem a mesma cultura, mas muitas naturezas diferentes. A última coisa que
Viveiros deseja na luta ameríndia contra a filosofia ocidental é torná-la apenas mais uma curiosidade no vasto
gabinete de curiosidades que ele acusa Descola de tentar construir". Bruno Latour, “Perspectivism: „Type‟ or
„bomb‟?” Anthropology Today, vol. 25, no. 2, April 2009, p. p [1-2].
46IdelberAvelar, “Amerindian Perspectivism and Non-Human Rights.” alter/nativas. Latin American Cultural Studies
Journal, vol. 1. Autumn 2013 [http://alternativas.osu.edu/en/issues/autumn-2013/essays/avelar.html – acessado em
5.09.2013]
47Latour, “Perspectivism: „Type” or „Bomb‟,” p. 2.
forma similar a White, Viveiro de Castro é considerado como um crítico e um intelectual radical 48.
Como White, ele também lamenta o declínio da esquerda e a impossibilidade de imaginar um
futuro melhor. Quando White se define como um dos últimos marxistas e é conhecido por seu
criticismo do capitalismo consumista, da política imperialista norte-americana e do sistema legal
que privilegia os ricos, Viveiros de Castro também é conhecido por suas visões críticas sobre o
capitalismo consumista e dos EUA como o modelo de “civilização”.
Eu acho que justifica-se dizer que a maioria dos historiadores (quero dizer historiadores
acadêmicos e não intelectuais representantes de diferentes disciplinas e interessados no estudo
do passado) são críticos, o que é uma propriedade do intelecto, mas eles são raramente
radicais, o que está relacionado à posição política. Contudo, alguns historiadores podem ser
ambos – críticos e radicais. Hayden White (como foi o caso de Michel Foucault, de muitos
historiadores pós-colonialistas e historiadores de gênero e raça) ocupam tal posição e usam o
pensamento crítico para realizar reivindicações políticas (e vice versa).
Vamos citar alguns exemplos para ilustrar suas visões críticas:
Hayden White:
O desafio de investigar o futuro da utopia ou o futuro do pensamento utópico, o esforço
de pensar na possibilidade de mudança radical em nossa condição ou situação, na qual um
Estado patife (Os Estados Unidos no governo de George Bush) mostram o poder de levar o
mundo em direção a uma guerra nuclear, na qual um país buscando os imperativos de um
sistema capitalista se enfurece com o desejo de consumir, criando uma verdadeira “cultura de
impulsão da morte”, na qual o próprio esforço de pensar em mudança deve existir sob o espectro
da morte por aquecimento, esgotamento ambiental, pesadelos do afogamento em resíduos, e de
uma vida no depósito de lixo – tudo isso pode impedir nosso impulso, mesmo de imaginar, ou
muito menos apostar na possibilidade de um mundo melhor para nossos filhos e seus
descendentes.
Somos ditos por certos auto-proclamados realistas da esquerda que a queda da União
Soviética definitivamente refutou o comunismo que eles outrora tão devota e heroicamente
defenderam. E do mesmo modo, somos informados por aqueles realistas da direita que
presumem que a vitória do ocidente na Guerra Fria não apenas confirma a validade do
capitalismo como a única forma possível a partir de agora, mas que também invalida qualquer
desejo de um pensamento que fosse além do presente e se atreva a pensar o futuro para além
da orgia do consumo e do desperdício denominada capitalismo avançado ou “economia de livre
mercado”. Aqueles entre nós que acreditam que mudanças fundamentais em nosso sistema
social – e aqui me refiro, claro, ao sistema social capitalista – são não apenas desejáveis, mas
também necessárias para a sobrevivência, são chamados de loucos, se não de criminosos, e
que, em uma palavra, seriam utópicos.49
48Ghassan Hage, “Critical Anthropological Thought and the Radical Political Imaginary Today.”
Critique of Anthropology, vol. 32, no. 3, 2012: 285-308.
49Hayden White, „The Future of Utopia in History.” Historein, vol. 7, 2007, p. 16
Eu enxergo a história, ou melhor, o curso do desenvolvimento sócio-político no ocidente,
de Roma até o presente, em uma perspectiva marxista, e minha crítica à profissão histórica nos
tempos modernos decorre da minha convicção de que ela é parte da superestrutura de uma
base dominada pelo modo de produção capitalista e das relações sociais de produção daí
decorrentes. Os efeitos do capitalismo naquelas partes do mundo que servem como suas fontes
(humanas, naturaise de mercado) têm sido desastrosos, para não falar dos efeitos das modernas
práticas técnico-industriais capitalistas e do bem estar do planeta em si. O capitalismo, ao que
parece, é especialista na produção de resíduos, de fato, incorpora o princípio da entropia como
sua força propulsora dominante. Ele é destrutivo e auto-destrutivo, baseado no princípio do
crescimento infinito do (taxa de) lucro no contexto da existência de recursos finitos.50
Como Hayden White, Viveiros de Castro sente falta daquela “intensa efervescência
intelectual” que
Marcou os anos 1960 e 1970 com uma qualidade única de – talvez
“esperança”. (...) A neutralização dessas mudanças foi precisamente um dos
objetivos principais da consertada “revolução da direita” que assolou o
planeta, impondo sua fisionomia – ao mesmo tempo arrogante e ansiosa,
gananciosa e desencantada – ao longo das décadas seguintes da história
mundial. (...) Vivemos em uma era onde o puritanismo lascivo, a hipocrisia
culpada e a impotência intelectual convergem para encerrar qualquer
possibilidade de imaginar seriamente (ao invés de simplesmente fantasiar)
uma alternativa para o nosso próprio inferno cultural, ou mesmo o reconhecer
como tal.51
Quando perguntado por Júlia Magalhães sobre como mudar a situação no Brasil e a
participação política da população brasileira, Viveiros de Castro respondeu:
Falem, resistam, olhando sobre o imediato – e, claro eduquem. Mas não se
trata de “educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e nós
devêssemos (e pudéssemos) levar o povo a um patamar superior; mas criar
as condições necessárias para o povo se educar e parar de educar a elite,
talvez mesmo se livrar dela. (...) Enquanto nós acreditarmos que melhorar a
vida das pessoas é fornecê-las mais dinheiro para comprar um apartamento,
ao invés de melhorar o saneamento básico, o abastecimento de água, a
educação e saúde básicas, a situação não melhorará. Você ouve o governo
dizer que a solução é consumir mais, mas não vê nenhuma ênfase nesses
aspectos básicos da vida humana, literalmente sob as condições
prevalecentes neste século. (...) Eu acredito que devemos insistir que você
pode ser feliz sem se deixar hipnotizar por esse frenesi de consumo que a
mídia nos impõe. (...) Devemos insistir na ideia de que o Brasil possui – ou,
neste ponto, deveria possuir – as condições geográficas, culturais e
50 Volodymyr Sklokin, “It Is Not So Much a Paradigm Shift as a Total Breakdown… “. A Conversation with Prof.
Hayden White. Historians.in.ua, 2012 [http://historians.in.ua/index.php/intervyu/258-it-is-not-so-much-a-paradigm-
shift-as-a-total- breakdown-a-conversation-with-prof-hayden-white – accessed 5.09.2013]
51Eduardo Viveiros de Castro, „The Untimely, Again.” Introduction to Pierre Clastres, Archeology of Violence, trans.
by Jeanine Herman. Cambridge, MA: MIT Press, 2010, p. 10 and 18 [9-51].
ecológicas de desenvolver um novo estilo de civilização, um que não seja
uma cópia empobrecida dos modelos norte-americano e europeu. Nós
poderíamos começar experimentando, timidamente, algum tipo de alternativa
aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna.52
Alguns acadêmicos denominaram a ideia de Viveiros de Castro sobre a cosmologia
perspectivista – como “bio-cosmopolítica anarquista”53 e, do mesmo modo antropólogos
brasileiros expressaram simpatia semelhante ao anarquismo, como Hayen White que muitas
vezes declara ser um anarquista que articula suspeitas sobre as instituições do Estado. Na longa
introdução ao clássico livro de Pierre Clastres, Arqueology of violence, Viveiros de Castro aponta
que a ideia de Clastres sobre “a sociedade contra o Estado se mantém válida como um conceito
„universal‟ (...) como analista de qualquer experiência da vida coletiva, racional”. 54 Um dos
aspectos do renovado interesse recente nas culturas ameríndias está em sua organização não-
estatal, em sua existência como “exterior imanente do Estado”, que está fora da modernidade e
fora do capitalismo.
Dizendo isso, não seria surpresa que dois filósofos radicais – Michael Hardt e Antonio
Negri, em seu livro Commonwealth (2009) usem o perspectivismo de Viveiros de Castro e sua
ideia de multiculturalismo para desenvolver o projeto de alter-modernidade. Eles apreciam e
compartilham o interesse de Viveiros de Castro no papel que o comum possui na racionalidade
biopolítica. Eles também estão interessados em sua forma de ir além da divisão entre natureza e
cultura, e em seu uso da ontologia ameríndia para criticar a tradição da epistemologia moderna.
Eles também compartilham uma visão de Deleuze (projetada por Viveiros de Castro sobre a
visão indígena do sujeito – ou melhor, pessoa) de que “ o tornar-se é mais importanteque o ser e
onde a relação de alteridade não é apenas um meio de estabelecer a identidade, mas um
processo constante”. Hardt e Negri declaram que:
Nosso objetivo aqui – e também o de Viveiros de Castro – não é o de defender uma
ontologia ameríndia não-moderna, mas usar essa perspectiva para criticar a epistemologia
moderna e suscitar uma racionalidade alter-moderna. Como vimos pela rota que tomamos por
Wittgenstein, aqui também o que é requerido é uma mudança de ênfase do conhecimento ao
fazer, gerando uma multiplicidade de seres constantemente abertos à alteridade e que são
revelados a partir da perspectiva do corpo, que é um conjunto de afetos ou formas de ser, o que
quer dizer, formas de vida – das quais todas repousam em um processo de fabricação do
comum.55
O que é partilhado por White, Viveiros de Castro e também por Hardt e Negri é uma
tentativa de criar uma alternativa à modernidade ocidental que é estigmatizada por uma
52 Júlia Magalhães , “Happiness has many paths.” An interview with Eduardo Vivieros de Castro. 2012
[http://forestrivers.wordpress.com/2012/09/22/happiness-has-many-pathseduardo-viveiros-de-castro/ - acessado em
5.09.2013]
53 Harry Walker, “On anarchist anthropology.” Anthropology of this Century, no. 3, January 2012
[http://aotcpress.com/articles/anarchist-anthropology/ - accessed 5.09.2013]
54 Viveiros de Castro, „The Untimely, Again,” p. 27.
55 Hardt and Negri, Commonwealth, p. 124.
epistemologia específica (pensando oposições tais quais cultura/natureza, humano/animal,
alma/corpo, civilização/selvageria, tipo cartesiano de racionalidade, ideia de sujeito homogêneo,
antropocentrismo, excepcionalismo humano, etc.), assim como pelo eurocentrismo, pelo
capitalismo consumista e pelo imperialismo. Cada um desses intelectuais possui diferentes
ideias sobre como se opor a esse – em sua visão – fenômeno negativo. White é suspeito quanto
a novas formas de pensamento utópico e por isso continua a revelar como o poder funciona,
enquanto Viveiros de Castro está mostrando uma alternativa. Ele mostra que as culturas
ameríndias são ingovernáveis pelo moderno sistema de poder e relações sociais que incluem
várias espécies (das quais todas já foram humanas).
56Para livros clássicos sobre a cultura humana e sua co-evolução com o gene, ver: Robert Boyd, Peter J. Richerson,
Culture and the Evolutionary Process. University of Chicago Press, 1985 and Durham, W. H. Co-evolution: Genes,
Culture and Human Diversity. Stanford: Stanford University Press, 1991.
57 Kevin N. Laland, John Odling-Smee and Sean Myles, “How culture shaped the human genome:
bringing genetics and the human sciences together.” Nature Reviews Genetics, vol. 11. February 2010, p. 138 [137-
148]
58Gilles Deleuze and Félix Guattari, “Becoming Animal,” in: The Animals Reader: The Essential Classical and
Contemporary Writings, ed. by Linda Kalof and Amy Fitzgerald. Oxford, UK: Berg, 2007: 37-50.
indivíduos do “fardo” de sua “humanidade”59. Escolher ancestrais animais implicaria em um
processo de “destornar-se humano” (como entendido nas culturas ocidentais). Significaria que a
figura do animal é usada como um ponto de referência nos processos de passar da forma
humana a outra maneira de ser humano (social e talvez mesmo corporalmente de forma
simbiótica com outras manifestações além-humanas de vida). Não é esse o significado do
perspectivismo?
Abaixo eu irei esquematizar resultados selecionados da aceitação de ancestrais não-
humanos no quadro da ontologia animista. Eu optei por formular tais pontos na forma de
desafios, portanto:
1. Desafiar a natureza humana – escolhendo ancestrais não-humanos (animais) pode justificar a
concepção de “liberdade morfológica”, que é a ideia de que um indivíduo humano possui o direito
civil de livremente modificar seu corpo usando cirurgia, engenharia genética, ou outro tipo de
alteração. Tais casos já são conhecidos. Dennis Avner, conhecido como Stalking Cat ou
“Homem Gato”, um americano nativo, que se submeteu a uma série de cirurgias cosméticas
radicais com o objetivo de se parecer com um tigre – seu animal totem, de acordo com a tradição
Huron. Não é tão difícil imaginar, graças ao progresso biotécnico, um futuro em que viveremos
nesse tipo de “mundo altamente transformável”;60
59Hayden White, „Humanism and Liberation of Humankind.” Design Book Review, vol. 41/42, Winter/Spring 2000, p.
13 [10-13]
60No mundo amazônico, processoss de metamorfose são onipresentes. Ver: Peter Rivière,
“WYSINWYG in Amazonia” quoted by Viveiros de Castro, “Cosmological deixis,” p. 471.
61Me refiro aqui às ideias do novo materialismo e/ou materialismo vital como representado nos trabalhos Jane
Bennett, Vibrant Matter: a Political Ecology of Things. Durham, N.C.: Duke University Press, 2010; New
Materialisms. Ontology, Agency, and Politics, ed. by Diana Coole and Samantha Frost. Durham and London: Duke
University Press, 2010.
3. Desafiar o capitalismo consumista – escolher um ancestral animal pode ser um ato simbólico de
resistência ao capitalismo consumista e uma forma de focar nossa atenção na possibilidade de
construir suas alternativas (alter-modernidades). Isso atrai atenção a focos e espaços (como
localidades, conhecimentos radicais) que objetam qualificações simples e parecem ser
ingovernáveis pelos sistemas presentes de governabilidade e soberania (Hardt e Negri). Nesse
contexto, o novo animismo (e o perspectivismo compreendido como um animismo específico das
crenças ameríndias) se torna uma teoria emancipadora que vislumbra uma transformação social
possível a uma “democracia inclusiva” e/ou a uma democracia ecológica participativa. (Vale a
pena enfatizar mais uma vez que o perspectivismo de Viveiros de Castro é denominado como
uma “bio-cosmopolítica anarquista”);
5. Desafiar o pensamento mecânico e uma abordagem exploradora da natureza – tal escolha deve
ter um impacto em questões ambientais e na crescente consciência ecológica, já que é uma
regra não matar, comer ou molestar uma planta ou animal que é visto como um ancestral
(totemismo). Isso não significa, é claro, que relações entre humanos e animais (e plantas) não
seriam mais violentas. Isso requereria uma ética e conhecimento diferentes, de que não-
humanos são indivíduos, que sua vida possui valor intrínseco (independente das necessidades
humanas) e que eles merecem respeito. (É preciso mencionar aqui que as últimas descobertas
no campo da neurociência confirmam certas ideias indígenas sobre as plantas. Então, por
exemplo, a neurobiologia das plantas permite mudanças na visão tradicional das plantas como
passíveis e insensíveis. Também há discussões sobre a dignidade das plantas);62
62See: Roy Morrison, Ecological Democracy. Boston: South End Press, 1995, and also, Franz J.
Broswimmer, Ecocide. A Short History of the Mass Extinction of Species. London: Pluto Press, 2002,
p. 97ff.
63Bruno Latour, Reassembling the Social. An Introduction to Actor-Network-Theory. Oxford: Oxford University Press,
2005, p. 254, 259, 262; Latour, “Perspectivism: „Type” or „Bomb‟,” p. 2.
Espectros de Frye: Muthos, ideología y anatomía de la crítica
(historiográfica)
Nicolás Lavagnino
(Universidad de Buenos Aires, Argentina)
II- El Frye de White: ideología, tramas y una teoría restringida del muthos.
La intensidad de la recurrencia explícita de White a la obra de Frye encuentra su pico en
la Introducción a Metahistoria, así como también en Tropics of Discourse, donde la presencia de
la teoría literaria de Frye es más visible, sirviendo como puntal para analizar el “momento
absurdista” en la teoría literaria contemporánea, o para seguir las complejas relaciones entre
historia y mito y para indagar en torno a la configuración de las tramas. Luego, ya en la década
del 80 y con posterioridad, las apariciones de Frye se difuminan. En The Content of the Form
aparece citado tres veces, mayormente en diálogo con la figura de Fredric Jameson. Ya en
Figural Realism lo único que sobrevive de Frye es la tipología de tramas en el marco de la crítica
arquetípica. Luego en la década del 90 dos artículos importante dedicados a Frye (“Ideology and
Counterideology in Northrop Frye's Anatomy of Criticism” y “Northrop Frye's place in
Contemporary Cultural Studies”) presentados en 1991 y 1994), recopilados recientemente por
Robert Doran en The fiction of Narrative, completan las referencias mayores al teórico
canadiense.
Estos deslizamientos y difuminaciones se entienden cuando se considera que, de cara a
la pluralidad de teorías críticas recogidas en la Anatomía de Frye, White ha procedido, de
Metahistoria en adelante, de una manera cautelosa, si se quiere restrictiva, considerando
meramente la disponibilidad de la crítica arquetípica (una de las cuatro críticas ofrecidas por Frye
en su Anatomía) como proveedora de un vocabulario útil para caracterizar a las narrativas
históricas en su aspecto estético o poético, en tanto que alegorías (MH; 25n). Tragedia, comedia,
sátira y romance designan tipos de alegorías generadas por medio del uso deliberado, recurrente
y estabilizado del lenguaje, recurrencia que denota aquello que White, siguiendo a Foucault
(White, 2000; 395), entiende por “estilo” o por una “poética” determinada.
Ahora bien, cualquier lector de Frye puede hacerse a la idea de que lo que éste entiende
por trama es bastante más que eso. Se trata de un principio estructural dinámico (muthos) que
genera secuencias específicas de acontecimientos, agentes, que concede un estatuto específico
al símbolo o modelo verbal de la acción representada y sugiere algunas pautas de recepción y
decodificación (volveré sobre esto en la tercera parte de este trabajo).
La importancia de esta información y complejidad inherente del muthos llevó a Frye a
aclarar, en respuesta a aquellos críticos que afirmaban que desconocía la dimensión social de la
crítica literaria, que prácticamente no había hablado sobre otra cosa (Frye, 1971; 14). Resulta así
difícil apartarse del hecho de que una trama es un tipo de artefacto que entra en relación con un
pasado (en la forma de la crítica histórica de Frye) y con el presente y el futuro (a través de la
crítica ética) por medio de una doble caracterización del ámbito de la experiencia compartida en
términos de la inscripción ritual del acto verbal, y de su proyección deseante u onírica.
“Desde este punto de vista, el aspecto narrativo de la literatura es un acto
recurrente de comunicación simbólica: en otras palabras, un rito (…) De
modo similar (…) el contenido significante es el conflicto entre la realidad y el
deseo, que tiene por base la labor del sueño. Rito y sueño, por lo tanto, son
respectivamente, el contenido narrativo y significante de la literatura en su
aspecto arquetípico” (ADC; 142).
En las tramas se arbitran intenciones sociales, cosmovisiones y prefiguraciones del
orden social; constituyen, por así decirlo, el lenguaje ordinario sobre el cual se pueden
ulteriormente montar los refinamientos y elaboraciones más complejas de las diversas visiones
políticas, utópicas o propiamente doctrinarias.
En este sentido, y esto es relevante cuando pensamos en Metahistoria y el interjuego
que presupone entre vocabularios irreductibles u operaciones tropológicas que informan lo
cognitivo, lo ético y lo estético en el marco del discurso de la historia, es evidente que no hay
trama sin implicación ideológica. Más aún el vocabulario de las tramas es un léxico de
relevamiento de las implicancias ideológicas de los relatos. En rigor, no sabríamos para qué nos
serviría una teoría de los géneros literarios, como no fuera para analizar las dimensiones
sociales, políticas e ideológicas de los módulos de comportamiento verbal analizados.
Lo que me interesa mostrar aquí es que en Metahistoria White genera una escisión
artificial entre el vocabulario de la implicación ideológica y el de las tramas lo cual supone, en
realidad, un posicionamiento acerca de éste último en un sentido que restringe buena parte del
potencial y de la utilidad de los espectros críticos de Frye.
Podríamos ahora preguntarnos por la eficacia de esa restricción en la teoría whiteana.
La misma tiene por finalidad legitimar, junto con la consideración del vocabulario de análisis de
los argumentos formales, y el de las tramas provisto por Frye, la apelación a un tercer
vocabulario, el de Mannheim, como piedra de toque del análisis de las implicaciones ideológicas.
Lo que pretende White con este recurso a Mannheim es rastrear distintas actitudes respecto de
la función de las ciencias humanas, diferentes actitudes ante el cambio social, diversas
concepciones de las orientaciones que esos cambios deberían tener y de los medios a emplear,
como resultado de la identificación divergente de las instancias temporales relevantes (MH; 33-
34). Por medio de este rastreo de actitudes
el momento ético de una obra histórica se refleja en el modo de implicación
ideológica por el cual una percepción estética (la trama) y una operación
cognoscitiva (la argumentación) pueden combinarse de manera que derivan
en afirmaciones prescriptivas de lo que podrían parecer afirmaciones
puramente descriptivas o analíticas (MH; 36)
Aquí reside el meollo del problema. Al tiempo que se resalta el inexpugnable carácter
ideológico de los artefactos literarios (historiográficos), la trama es reducida a una percepción
estética, discernible de la operación cognitiva propiamente dicha, configurando así lo que
podríamos llamar una teoría restringida del muthos.
Adicionalmente el lugar de la implicación ideológica resulta ser el de un análisis derivado
de los modos combinatorios posibles de las percepciones estéticas y las operaciones
cognoscitivas (tramas y argumentaciones), respecto de las cuales se procede suponiendo que
hay afinidades, homologías estructurales y tensiones que son las que generan lugar para el
surgimiento de estilos. Afinidades cuya mención no cubre más de un par de páginas en el texto
de White y que se vuelven dependientes de la especificación de las relaciones entre los modos
“de superficie” y la gramática profunda informada tropológicamente.
En mi opinión toda esta estructuración es altamente conflictiva y potencialmente
superflua en sus distinciones analíticas. Nos basta con seguir los espectros de Frye para
apreciar que las tramas mismas son artefactos destinados a rastrear diferentes actitudes ante el
cambio social, diversas concepciones de las orientaciones que esos cambios deberían tener y de
los medios a emplear como resultado de la identificación divergente de las instancias temporales
relevantes. Con esto lo que me interesa mostrar es que es relativamente sencillo expresar las
orientaciones propias de las implicaciones ideológicas en el vocabulario de las tramas, y de
manera no casual, ya que ambos vocabularios se proponen para lo mismo: dar cuenta de la
producción y reproducción de lo social por intermedio del análisis del comportamiento verbal
extendido. Vale decir, el vocabulario de la implicación ideológica no designa nada
específicamente distinto de lo que puede ser rastreado por medio de una teoría ampliada del
muthos como la de Frye.
Naturalmente no supongo que White no comprende a Frye, sino que afirmo que por
motivos deliberados ha decidido adoptar una visión restrictiva de las tramas. Aunque creo que
eso expone a la teoría al riesgo de la superfluidad y la multiplicación innecesaria de
“vocabularios de superficie”, más aún cuando luego postula a la implicación ideológica como
derivativa de la combinación de los otros vocabularios, creo que la restricción de las tramas tiene
una función importante, que es reforzar la distinción entre la base profunda tropológica y las
estrategias de superficie, de las cuales tramas e implicaciones constituyen dos de las
dimensiones relevadas. Esto es, como resultado del compromiso con la idea de una profundidad
informada tropológicamente que puede rastrearse en los vocabularios de superficie obtenemos
una curiosa amputación de la teoría del muthos, con miras a hacer lugar a una distinción artificial
entre tramas e implicaciones ideológicas. Sea esto justificado o no, desde el punto de vista de la
teoría espectral de Frye el enorme potencial de la deriva crítica (histórica, ética, arquetípica,
genérica) se pierde en su mayor parte.
Obras citadas:
Borges, Jorge Luis, “Kafka and his Precursors,” in Labyrinths, (New York: New Directions, 1964,)
199-201.
Gross, Ruth V., “Rich Text/Poor Text: A Kafkan Confusion,” PMLA, vol 95, March 1980.
Kellner, Hans. “Hopeful Monsters or, The unfulfilled Figure in Hayden White‟s Conceptual
System,” in Philosophy of History after Hayden White, ed. Robert Doran, (London and New York:
Bloomsbury, 2013), 151-170.
White, Hayden. “Auerbach‟s Literary History: Figural Causation and Modernist Historicism,” in
Literary History and the Challenge of Philology: The Legacy of Erich Auerbach, ed. Seth Lerer
(Stanford: Stanford UP, 1996) 124-139.
White, Hayden. “The Modernist Event,” in Figural Realism: Studies in the Mimesis
Effect.Baltimore & London: Johns Hopkins UP, 1999), 66-86.
Questão narrativa ou o desejo de Hayden White por uma
historiografia progressiva66.
María Inés La Greca
(Universidad de Buenos Aires, Argentina)
O que os últimos tópicos de Hayden White sobre realismo figurado, escritas de meia voz
e passado prático têm em comum? Qual desejo original, expresso em Meta-história, permanece
inalcançado neles? Esses últimos tópicos são todos acerca de se pensar maneiras de uma
comunidade retrospectivamente se apropriar de um passado para seu próprio projeto de se
autorrealizarem. Eles também lidam com a natureza figurada inegável de qualquer tentativa de
interpretação histórica na forma de narrativa. Os três tópicos discutem a poética da história, a
produção de um elo entre passado, presente e futuro como trocas críticas entre discurso e ação.
Assim, este trabalho pretende demonstrar que essas questões são elaborações mais profundas
daquilo que quarenta anos atrás já fora afirmado em Meta-história: o desejo por uma
historiografia progressiva, uma escrita da história que ironicamente aceite a natureza, livre e
condicionada, dos nossos sentidos discursivos culturais, para que possamos nos dar um
passado que busque transcender sua própria ironia em imaginar um futuro que possamos
chamar de nosso. Buscando esse objetivo, direi que uma teoria performática da identidade
(histórica), inspirada pela obra de Judith Butler, possa ser o local onde o desejo de White seja
escutado. Mas também afirmarei que quaisquer tentativas em se pensar e escrever identidade
histórica deve considerar a crítica de White acerca da narrativa e da escrita histórica. Assim, este
trabalho pretende apontar uma afinidade escolhida entre o problema da narratividade da história
em Hayden White e o problema do gênero no feminismo em Judith Butler.
Realismo figural, escritas de meia voz e passado prático: o desejo irrealizado de White
Acredito que os últimos tópicos de White pretendem repensar a escrita histórica, a partir
da percepção sobre a natureza figurada da linguagem, do discurso e da narração. Em outras
palavras, após a conhecida “virada linguística” ou “narrativa”. Estes tópicos representam versões
distintas da mesma proposta de se pensar maneiras de usar a linguagem figurada como recurso
para se escrever história com razões práticas. A razão mais geral para fazê-lo seria
compreender como a poética da história se relaciona com as maneiras pelas quais as
comunidades se apropriam retrospectivamente de um passado para se autorrealizarem.
Mas também, após a virada linguística ou, para dizer em termos whiteanos mais
específicos, a virada “tropológica”, entendemos que se estabelecendo pela narrativização, o elo
poético implica numa troca crítica entre discurso e agência. Quando digo “crítico”, quero dizer em
66
Tradução de Leonardo Grão Velloso.
dois sentidos: irônico, auto-crítico, auto-consciente, nascido da realização da linguagem, e
especificamente narração, para além de um simples meio de se transmitir uma mensagem; mas
também quero dizer “crítico” como difícil, esguio, até mesmo perigoso. Devemos considerar seu
aspecto crítico nas formas positiva e problemática, mas devemos também ressaltar que essas
permutas se dão entre discurso e agência. Hayden White tem sempre falado, no meu entender,
sobre o que podemos fazer com a linguagem, o discurso e a narrativa – como aquele artefato
que une discurso à história, e vice-versa. Destacar a natureza figurada de toda tentativa de
representação do passado tem sido sempre uma busca por possibilidades de se usar a narrativa
para se estabelecer elos entre passado, presente e futuro. E, ao mesmo tempo, essa realização
tem promovido um reconhecimento crítico de nossos limites e amarras ao fazê-lo. Essa agência,
livre e condicionada, em direção à linguagem é central para compreender o grande estalo de
White acerca da relação problemática entre narrativa e história, que eu estou tentando
apresentá-los como uma permuta crítica entre discurso e agência. A maneira pela qual a
natureza figurada da linguagem na escrita história permite, e limita, o que podemos entender e
fazer através da linguagem é, no meu entender, a realização mais significativa que ler a obra de
White nos oferece: é por essa razão que utilizo, no título desta conferência, a expressão
“problema narrativo”. E acredito que essa realização crítica (em ambos os sentidos, novamente)
nos é apresentada claramente em Metahistória, cruza todos seus escritos e ainda permanece
nesses últimos tópicos.
Assim, gostaria de mostrar nesse momento as qualidades diferentes dessa mesma ideia
nesses tópicos e como eles representam a expressão do desejo fundamental de White em
promover o funcionamento daquela realização – problema narrativo como uma permuta crítica
entre discurso e agência.
Gostaria de relembrar que White, do realismo figurado, utiliza o modelo auerbachiano
de figura-realização para explicar a escrita da história como promessa – impossível de se
realizar – de realização de uma representação realista da realidade. Esse modelo auxilia White a
afirmar que, enxergando a si mesma como realização da promessa de um tempo anterior, uma
comunidade retrospectivamente se apropria de um passado para seu próprio projeto de auto-
realização. White considera a causalidade figural como um modo de causalidade
especificamente histórico que não determina, nem aponta, para um fim teleológico. Ele a
considera como uma per-formance, um tipo de ação de que pessoas moralmente responsáveis
são capazes, como no caso de uma promessa. Embora uma promessa seja feita para ser
realizada, podemos retrospectivamente inferir o ato de se prometer a partir de sua realização,
mas não podemos inferir sua realização prospectivamente a partir do ato de se prometer. Assim
ocorre com um evento histórico: “Um dado evento histórico – diz White – pode ser percebido
como a realização de um evento anterior, parecendo completamente desconectado, quando
agentes responsáveis pela ocorrência do evento posterior o ligam “genealogicamente” ao
anterior”. Esta união se estabelece a partir do ponto no tempo em que o presente experimenta o
passado, não a partir do passado ao presente como em relações genéticas. Essa união é do tipo
estético porque, cito: “[ela] posiciona o valor principal do sentido no ato de apropriação
retrospectiva de um evento anterior ao tratá-lo como uma figura do evento posterior. Não é uma
questão de factibilidade; os fatos do evento anterior permanecem os mesmos após a
apropriação. O que mudara é a relação que os agentes no período posterior retrospectivamente
estabelecem com o evento anterior como um elemento de seu próprio passado – um passado no
qual um presente específico se define”. Assim, eventos históricos não são causados por seus
precedentes, nem determinados por eles, muito menos são previsíveis em quaisquer bases
teleológicas de realização de potencialidades anteriores, mas como numa figura retórica, o
posterior realiza o anterior ao repetir seus elementos com certa diferença. Como um evento
“histórico” permanece aberto à apropriação retrospectiva por quaisquer grupos posteriores, que
podem escolhê-lo como protótipo de legitimação e como elemento de sua genealogia.
White também toma emprestado da história literária ocidental de Auerbach a ideia de
que o historicismo ocidental oitocentista fora a descoberta que a vida humana e a sociedade
encontram quaisquer sentidos possam ter não em um além metafísico ou transcendental, mas
na história. Por isso a história da representação realista não pode nunca alcançar um fim ou
encerramento, muito menos encontrar origem absoluta. A promessa de representar a realidade
realisticamente é impossível de se cumprir; o objetivo do realismo revelou-se como um mito e,
simultaneamente, como a eternamente renovável promessa de realização.
Deste modo, o realismo figural lida com a impossibilidade de uma representação
definitivamente realista da realidade e que, ao mesmo tempo, permite-nos pensar os modos que
a história é escrita, partindo do presente da comunidade, de maneira a se pensar como a
realização de um tempo precedente. Mas White ressalta que este olhar para si “como se” fossem
a realização de uma promessa precedente tem a ver com uma decisão por parte dos agentes
responsáveis. Isso quer dizer que escrever uma história como elo entre nosso presente e um
passado escolhido implica em escrever a nós mesmos. Essa auto-realização histórica nos leva à
escrita da voz intermediária.
A ideia da escrita modernista chega à White através de Auerbach, mas quando ele a
compreende como equivalente à escrita de voz intermediária ele se refere à Roland Barthes.
White apresenta essa noção de escrita como escrever algo – em nosso caso, história – que é
também a escrita de si mesmo, quando ele busca maneiras de pensar a escrita da história a
partir da sua virada tropológica. Refiro-me à crítica de White, direcionada às definições
tradicionalmente opostas da história versus ficção, história versus literatura, realismo
contrariando o discurso imaginativo, fatos e figurações, etc. A natureza figurada da escrita
história como narrativização nos mostrara que o referente de certo discurso histórico sofre um
processamento poético ao se tornar objeto histórico, o sujeito de um tipo específico de discurso.
Não é mais possível afirmar, após a obra de White, que o sujeito do discurso histórico é uma
simples cópia de certa entidade extra-discursiva. Se isso tivesse relação com nossos
pressupostos a respeito da relação entre discurso e referente, agora a escrita da voz
intermediária demonstra-nos que não há sujeito algum entendido como entidade psicológica ou
“autor” dado antes da escrita da história. A escrita da voz intermediária barthesiana apresenta a
escritura como uma ação na qual o sujeito, o “eu”, é interior à ação, não exterior à ela; e a ação
sobre um objeto que também afeta o sujeito. Cito White: “A voz intermediária, se for algo, é
duplamente ativa, produzindo imediatamente um efeito sobre um objeto (por exemplo,
linguagem) e constituindo um tipo particular de agente (a saber, o escritor) por meio de uma
ação (especificamente, escrever)”. White compreende a escrita de voz intermediária como
exemplo perfeito de um ato de fala performático que, novamente, promete algo. Ele também
ressalta como usava-se a voz intermediária no grego para “indicar aquelas ações delineadas por
uma consciência moral superior da parte do sujeito que as executa”. Entendemos, aqui, que
escrever história não pode ser externo ao sujeito que a escreve. Isto também é uma afirmação
da Metahistória, tal como White traçara as jogadas epistemológicas, os comprometimentos
éticos e estéticos dos historiadores em sua leitura das obras históricas.
Realismo figural e escrita de voz intermediária nos mostram o elo estreito entre escrita e
agência histórica. Mas isso não é novidade. O elo entre agência e narrativa aparece em toda
obra de White. “O Valor da Narratividade na Representação da Realidade” pode ser entendido
como o mais forte argumento apresentado por White, mostrando como em toda situação em se
produz narrativa existem efeitos moralizantes, porque colocamos em cena o drama do conflito
entre desejo e lei. A representação da realidade como promessa para a auto-realização de certa
comunidade e a natureza performática da escrita de voz intermediária, como tipo de consciência
da ação de agentes moralmente responsáveis apontam para a conexão estreita entre narrativa e
agência. Ou, como White diz: “Narrativização se relaciona com a problemática da ação, se ação
é considerada possível ou impossível, uma coisa boa ou má” (...). Narrativa tem a ver com o
questionamento da agência, exclusivamente por isso, a própria narrativa é positiva: “ela
responde a questão: é possível se perguntar se a ação é possível?”.
Aqui nos viramos para a questão do passado prático. Em “O passado prático”, White
apresenta uma versão condensada de sua história da historiografia ocidental. Não posso
apresentar a história dele aqui, mas importa dizer que ele novamente leva a cabo a tarefa de
mostrar como a historiografia, quando ela fingia ser científica e disciplina profissional, definia-se
contrariamente à retórica, reprimindo seus aspectos literários, figurados e poéticos como práticas
de escritas, os exatos aspectos que Meta-história pretendia que os historiadores reconhecessem
e explorassem. Quarenta anos depois, encontramos um tom pessimista na proposta de White
em se livrar do passado “histórico” e pensar mais no passado “prático”. Ele usa a distinção de
Oakeshott para diferenciar como historiadores profissionais estudam o passado e a maneira pela
qual pessoas comuns e profissionais de outras disciplinas rememoram e tentam utilizar “o
passado” como base para fazer julgamentos e tomar decisões na vida cotidiana. Sob o selo do
“passado histórico”, White remete ao estudo científico do passado como um fim em si mesmo e
para seu próprio bem, um passado que não ensina lições de interesses atuais, um objeto
estritamente impessoal e neutro, construído por historiadores existentes somente nos livros e
nos ensaios acadêmicos. Contra essa ideia, White discorre sobre o “passado prático”, aquelas
noções de passado que todos têm na vida corriqueira, às quais apelamos, voluntariamente ou
não, para obter informação, ideias e estratégias que possam nos ajudar a resolver problemas
práticos, com os quais nos deparamos em qualquer situação em que nos consideremos
presentes – de problemas pessoais a grandes programas políticos. White diz que esse é o
passado da memória, do sonho e do desejo, bem como também é o passado da solução de
problemas, estratégias e táticas úteis para a vida pessoal e coletiva. Ele afirma que não são dois
passados diferentes epistemológica ou ontologicamente, mas dois tipos distintos de intenção que
motivam questões acerca do passado. Na medida em que o “passado histórico” é construção
teórica como um fim em si mesmo, tem pouco ou nenhum valor, segundo White, para
compreender ou agir no presente, ou para prever o futuro. Ao contrário, White julga relevante o
interesse acerca do passado “prático” porque nós recorremos a ele quando precisamos
responder a questão “O que eu (ou nós) devo fazer?”. Nessa necessidade, o passado histórico
não pode nos ajudar. Ele pode somente nos dizer quais outras pessoas fizeram, em outros
períodos, lugares e circunstâncias. Mas essa informação não nos permite inferir o que nós,
situados onde estamos, no nosso tempo e lugar, devemos fazer.
Eu disse que a elaboração de White sobe o passado prático contém um tom pessimista.
Penso que isso se dá porque revela o desejo irrealizado de White, algo que gostaria de comentar
agora.
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A BBC-News do dia três de novembro de 2004 continha a seguinte incrível notícia com o
título de “Incêndio de 130 anos na China é apagado”, se referindo à mina de Liuhuanggou,
próxima a Urumqi na província de Xinjiang:
“Um incêndio iniciado há mais de cem anos em uma região carbonífera
chinesa foi finalmente extinto, segundo notícias. Nos últimos quatro anos, os
bombeiros gastaram doze milhões de dólares em esforços para apagar as
chamas (..) na província de Xinjiang. Quando em chamas, o fogo queimava
cerca de 1,8 milhões de toneladas todos os anos (...). Historiadores locais
disseram que o incêndio se iniciou primeiramente em 1874. (...)”.
67
Tradução Marcelo Durão da Cunha.
A queima do carvão havia emitido cem mil toneladas de gases nocivos e quarenta mil
toneladas de cinzas a cada ano, causando imensa poluição ambiental. Em 2003, quando o fogo
ainda estava ativo, um jornal chinês também havia fornecido detalhes alucinantes sobre esse
incêndio:
“Mesmo se os bombeiros eventualmente tiverem sucesso (...), poderia durar
pelo menos trinta anos até que a superfície do solo esteja fria o suficiente
para permitir que a mineração fosse adiante”.
Eu achei a mensagem de tais notícias fascinantes, por pelo menos três razões.
A primeira razão parece óbvia: um incêndio “normal” não costuma durar cento e trinta
anos, assim como uma festa de aniversário não costuma durar um ano.
A seguna razão para a minha fascinação com essas notícias são os trinta anos que o
processo de esfriamento da mina durará até que esta possa ser novamente adentrada. Isso
significa que a mina não pode ser adentrada antes de 2034! Que incrível quantidade de calor
pode explicar um processo de esfriamento que levará cerca de trinta anos?
A terceira razão para o meu fascínio foi a incrível quantidade de poluição que o incêndio
havia produzido desde o seu início. Milhões e milhões de toneladas de gases e cinzas tóxicas
foram emitidos sobre a terra desde 1874.
Tal incêndio extremo simplesmente estende a nossa ideia normal sobre o que um
incêndio pode ser. Este fogo de carvão não apenas castiga a superfície do solo no oeste da
China, mas também parece queimar o próprio conceito do que é um incêndio. Tal tipo de fogo
está para além de nossa imaginação. Tão distante quanto essa mina de carvão em chamas no
oeste da China.
No meu trabalho eu espero esclarecer que existe uma profunda analogia entre esse
incêndio na mina de carvão na China e o presente, poder-se-ia dizer “quente” estado, de ampla
parte da história desde o fim da Guerra Fria. Por história “quente” eu entendo um passado que
não se “esfria” por conta própria e que se mantém presente. Trata-se de um passado que
permanece tóxico, contestado e divisivo em um sentido político, social, moral e – também
constantemente – legal. Entao a história “quente” é essencialmente, “um passado que não irá
embora” na formulação de Ernst Nolte. Ou poderíamos chamá-lo de história “pós-traumática”,
como AleidaAssmann o faz, ou, história “catastrófica”, como John Torpey a chama. Ou tal tipo de
história poderia ser classificada como história “de caça”, como Henri Rousso e alguns
antropólogos o fazem, porque os fantasmas do passado continuam assombrando os vivos no
presente. Todas essas noções se referem ao “fardo da história”, como na oportuna frase de
White.
Qualquer que seja o rótulo aplicado a essa presente condição “pesada” de partes
importantes do passado – “quente”, “pós-traumática”, “catastrófica”, ou “caçadora” – como White,
eu quero discutir hoje que esses tipos pesados de passado está alargando o conceito “normal”
de história que historiadores profissionais utilizam. Portanto, o conceito de história possui a
necessidade de uma renovada reflexão teórica. Os historiadores pressupõem de forma
equivocada que o presente quente “esfria” e se transforma em um passado frio de forma
autônoma, assim como incêndios normais se extinguem e esfriam por si próprios. White
introduziu o conceito do passado “prático” lado a lado com o de passado “histórico”, com o
objetivo de sinalizar e resolver essa incompreensão “profissional” (pelo menos se eu o entendi
corretamente). Em contraste com White, contudo, eu acredito que justapor os passados
“históricos” e “práticos” não é suficiente, porque esta justaposição está deixando reivindicações
fundamentalmente questionáveis concernentes ao “passado histórico” incontestadas. Esse é,
pelo menos, o argumento que desenvolverei hoje. Agora vamos dar uma olhada nas distinções
feitas por White.
II
A distinção conceitual entre o passado “histórico” e o passado “prático” surgiu
tardiamente na carreira intelectual de White – o conceito surgiu apenas depois de 2000 em sua
discussão com DirkMoses na HistoryandTheoryem 2005, e em dois artigos publicados em 2010
na Historein e na StoriadellaStoriografiaem 2012. No entanto, essa distinção integra vários
importantes elementos do argumento que White desenvolveu desde o lançamento do
Metahistory, como Herman Paul acertadamente observa: “poderíamos mesmo dizer que nessa
noção (do „passado prático‟), White conseguiu integrar um número de ideias chave
desenvolvidas durante sua carreira de cinquenta anos como teórico da história: deliberação
moral, vis-à-vis um passado pesado, a inabilidade da profissão histórica acadêmica em prover
uma orientação ao presente, e a necessidade de alternativas inspiradas no modernismo que nos
auxiliem a lidar com as nossas atitudes, emoções e responsabilidades para com o passado (HP,
p. 144).
Como a maior parte das ideias de White, a distinção conceitual entre o passado
“histórico” e o “prático” é polêmica, direcionada contra a “cientifização” putativa da história. De
acordo com White, o “passado histórico” é na realidade apenas o passado como os historiadores
profissionais o construíram, significando aquelas estranhas criaturas que desde o início do
século dezenove passaram a afirmar que seu único interesse era o “desinteressado” estudo do
passado “por seu próprio bem”. Eles respaldaram suas credenciais “científicas” contrastando a
nova “ciência da história” à retórica e à “literatura” (onde a história primeiramente estava
localizada): “o passado histórico é uma construção teoricamente motivada, existindo apenas em
livros e em artigos publicados por historiadores profissionais; ele é construído como um fim em si
mesmo, possuindo pouco ou nenhum valor de compreensão ou explicação do presente, e não
provê quaisquer linhas de ação no presente para vislumbrar o futuro. Ninguém jamais viveu ou
experimentou o passado histórico [-]”. (TPP, p.8) Na visão de White, o interesse de historiadores
profissionais no passado é muito limitado. Após terem respondido suas questões sobre a
verdade factual eles não possuem mais perguntas e o seu caso se fecha.
Em contraste, o “passado prático” é basicamente o passado como a maioria das
pessoas que não são historiadores profissionais enxerga. Ele se refere “àquelas noções do
passado que todos nós possuímos em nossas vidas diárias e sobre o qual traçamos, querendo
ou não, da melhor forma possível, a busca por informação, ideais, modelos, e estratégias para
resolver os problemas práticos – de assuntos pessoais a grandes programas políticos – dentro
dos quais concebemos o que é nossa situação presente” (TPP, p.8).
Em um sentido negativo ou positivo, o passado prático é repleto de significado para
aquele que o enfrentam com a pergunta “o que deve ser feito?”. Em contraste do que é o caso
com o “passado histórico”, no “passado prático” questões de significado precedem e dominam
questões de verdade. Esse também é o domínio no qual as questões candentes do “passado no
presente” são colocadas, exatamente aquelas questões que historiadores profissionais haviam
abandonado e que haviam deixado para os escritores de romances realistas, poemas e dramas.
(TPP, 10-11). Especialmente os romancistas se tornaram os especialistas no “presente
histórico”, de acordo com White.
Eu seu texto recente “Truth and circumstance: what (if anything) can properly besaid
about the Holocaust?” (2012) White revisita o tópico sobre os passados histórico e prático. Desta
vez ele busca uma justificativa para sua distinção nos termos da teoria do ato de fala de Austin.
White identificava a história profissional com o “modo declarativo” do (uso da) linguagem – no
qual a questão da verdade proposicional reina suprema. Na assim chamada “história
romanesca”, em contraste, - como, por exemplo, as memórias de Auschwitz de Primo Levi –
modos não-declarativos da (utilização da) linguagem são mais importantes, apesar da história
romanesca também afirmar uma abundância de fatos históricos. Totalmente em linha com o
Metahistory, White argumenta que modos não-declarativos da língua não podem ser reduzidos
ao modo declarativo, pois isso reduziria o uso ficcional da língua para a sua utilização factual:
“Eu sugeri que o modo declarativo simples, favorecido pelos historiadores tradicionais não pode
fazer justiça a uma vasta massa de literatura de relatos de testemunho, na medida em que o
historiador deve perguntar “o que é verdade”? (TC, p. 475).
É interessante observar que White contrasta a literatura de testemunho com a história
profissional porque na visão profissional o passado “esfriando” no tempo é exatamente a
mudança da memória à história. De acordo com historiadores profissionais, é o “progresso” do
tempo que causa o esfriamento das paixões das testemunhas a partir da produção da “distância”
temporal. E é a “distância” temporal que permite a historiadores profissionais desenvolver seus
insights superiores sobre a evidência testemunhal, a partir do uso dos benefícios da
retrospectiva.
Não é de admirar que White tenha desenvolvido argumentos em defesa da prioridade
existencial do “passado prático” em comparação com o “passado histórico”. De acordo com
White, sua importância existencial só aumentou desde a ocorrência de “eventos modernistas”
como o Holocausto. Isso ocorreu, White argumenta, porque os eventos modernistas carecem de
significado e se negam a propiciar a narrativização. Portanto eles desafiam a intepretação
histórica “normal” e podem apenas ser apresentados em fragmentos – como o excepcional
historiador do Holocausto, Saul Friedländer compreendeu e mostrou na prática.
Confrontado com os eventos modernistas os historiadores profissionais, menos
sensíveis do que Friedländer, permanecem, assim, desesperançosos. Eles lembram pessoas
que tentam deitar sob o sol, mas não protegem seus olhos corretamente. Eles não
compreendem que eventos modernistas como o Holocausto estão “suspensos entre” o passado
histórico e o passado prático – e por isso estão suspensos entre a verdade e o significado como
princípios guia – “entre os quais há pouca possibilidade de uma reconciliação cognitivamente
responsável”.
Não admira também que os exemplos de autores que exemplificam uma negociação
bem-sucedida com o passado “prático” de White não sejam historiadores profissionais. Eles são
autores da literatura de testemunho do holocausto, como Primo Levi e ArtSpiegelmane
romancistas históricos modernos como Sebald. Isso significa que White atribui o “passado
histórico” basicamente a historiadores profissionais, enquanto ele alega que o “passado prático”
está associado àqueles que não o são. Eu gostaria de questionar essa divisão pura e eu acredito
que as formulações de White contém algumas ambiguidades que são reveladoras para o meu
objetivo.
A Ambiguidade número 1 diz respeito a sua afirmação de que o “passado histórico”
possui “pouco ou nenhum valor” para explicar o presente e para “prover uma linha guia de ação”.
Se o poder explanatório e guia da história é “pouco”, como ele é possível? Não seria toda a
história profissional “para o seu próprio bem”, afinal?
A ambiguidade número 2 versa sobre a “cientifização” da história profissional desde o
século dezenove. Aqui, White oscila entre a “cientifização” própria por um lado e a cientifização
“putativa” e “para-científica” por outro. O que está implicado nesses qualitativos “putativos” e
“para” (ao lado dos conhecidos argumentos de White a respeito das “ficções da representação
factual”)?
A ambiguidade número 3 se relaciona com a historiografia sobre o Holocausto. No
contexto da discussão sobre o trabalho de Friedländer ele atesta que a historiografia sobre o
Holocausto se encontra “entre o passado histórico e o passado prático” e que há “pouca
possibilidade de uma responsável reconciliação cognitiva” (HD+LD, p. 53). Como pode uma
parte da profissão histórica – neste caso, os historiadores do Holocausto – lidar com tanto o
passado prático quanto o histórico? Isso não indicaria que a distinção entre os passados
histórico e prático devem ser vistas como de certo modo relativas? - talvez em termos de dois
diferentes aspectos de representações do passado – ao invés de vermos essa distinção como se
referindo a dois domínios ontológicos distintos?
Essas ambiguidades me levam à terceira e última parte de minha fala, na qual eu
tentarei clarificar um pouco mais além minhas questões concernentes à concepção de White
sobre o passado “histórico”.
III
Meu problema básico com o conceito do “passado histórico” é que esse conceito – não-
intencionalmente, sem dúvidas – reproduz a auto-imagem “científica” da história profissional.
Essa auto-imagem científica consiste de duas afirmativas inter-relacionadas. A primeira
afirmativa é a de que é possível investigar o passado de uma forma “desinteressada” – como um
objeto distante. A segunda afirmativa é a de que historiadores profissionais estão fazendo
exatamente isso. Meu problema fundamental aqui é que a própria distinção entre o passado
prático e o passado histórico está deixando a pressuposição de que existe algo como o “passado
histórico” que é distinto do presente. Como BerberBevernage eu acredito que essa
pressuposição não é correta pois ela pressupõe que há uma distinção “dada” entre o presente e
o passado. Essa pressuposição está errada. Ela está errada porque os limites (temporais) entre
presente, passado e futuro dependem apenas de como eles são ativamente pintados. Isso
também implica para o passado histórico, onde os historiadores profissionais são os atores que
estabelecem as linhas entre os estratos do tempo. Como BerberBevernage eu sustento que as
distinções entre presente, passado e futuro são basicamente o resultado de atos de fala
performativos, no sentido que John Searle deu a essa noção. Portanto a identificação do
passado histórico com o declarado uso da língua tenta obscurecer os papeis performativos que
os historiadores possuem. Além disso, essa identificação propõe a auto-imagem da profissão
histórica como sendo escrita a partir do “ponto de vista do observador” e não do ponto de vista
do ator.
Então, em suma, o meu problema com a justaposição dos passados histórico e prático é
que ela obscurece a política do tempo que os historiadores buscam ao afirmar que eles
“estudam o passado para o seu próprio bem”. Portanto essa justaposição obscurece os aspectos
políticos relacionados à construção do passado histórico. Em minha visão o “passado histórico”
está sendo ativamente construído por historiadores e certamente não é o “subproduto” de uma
crescente distância temporal entre “o presente” e o “passado”. A temperatura “do passado”
também não é o produto da distância temporal. O estado “quente” ou “frio” da história só
depende das formas em que os historiadores o escrevem.
Então, de todo modo, White estava certamente correto quando afirmava que o “passado
histórico” é uma “construção teórica” dos historiadores. Contudo, ele esqueceu de dizer-nos que
o melhor truque que o demônio da história profissional nos aplicou foi o de mascarar a
construção teórica do “passado histórico” como o produto do próprio tempo. É hora de desfazer
esse truque e analisar a produção prática do “passado histórico” em todas as suas
complexidades.
Aqui eu acredito que seria proveitoso conectar a observação de White de que cada
relato histórico é ao mesmo tempo uma “anti-história”: “é tudo anti-história, sempre escrita tanto
“contra” assim como em nome da “verdade” (TPP, p.4). Eu concordo completamente com ele e
portanto eu penso que analisar a construção da história, a sociologia da ignorância é tão
importante quanto a sociologia do conhecimento.
Falando sobre complexidades, no fim, talvez esse seja o momento de voltar ao assunto
da mina de carvão em chamas na China com o qual comecei. Em 2008 um pesquisador norte-
americano visitou o local e informou o seguinte à revista Time: “eu decidi ver como ele foi
apagado, e as chamas ainda eram visíveis e todo o local ainda queimava... eles disseram que o
haviam apagado, e quem poderia dizer o contrário?”
Metahistória e a questão da ética na historiografia68
Robert Doran
(University of Rochester, Estados Unidos)
I
A emergência da virada linguística nos estudos históricos, por meio do Metahistory,
causou discussões permanentes entre as disciplinas. Teóricos da história receberam bem a
oportunidade de se empenhar em debater concepções sobre o pós-estruturalismo e a função da
referência na escrita da história; críticos literários e narrativistas reconsideraram as diferenças
entre textos ficcionais e não-ficcionais e retornaram a analise da ficção com um novo
entendimento da capacidade única da ficção em mimetizar a consciência humana; historiadores
tinham uma relação de proximidade com seus textos enquanto insistiam que seus livros
mantinham uma relação referencial com o passado real. Dificilmente alguém entenderá a virada
linguística como um aprofundamento das leituras de história contemporânea de um ponto de
vista narrativista.
As razões dessa omissão não estão escondidas nem difíceis de entender. Leituras
fechadas tentaram se fazer parecer linguagens consistentes da escrita da história profissional
como um todo e demonstrar como o significado nascia na comunicação com o passado. Leituras
fechadas exigiam entendimentos das operações semânticas como essas:
No inicio de Agosto de 1941, todos fatores estavam no lugar para acontecer o massacre
de todos os judeus na União Soviética. O exército germânico ocupou os estados balcânicos e a
Bielorússia, e a Ucrânia tinha alcançado a linha Kiev-Kirovograd; as batalhas generalizadas de
Uman e Smolensk/Rowslawl acrescentariam outro meio milhão de prisioneiros de guerra
soviéticos que já estavam esfomeados nos campos de concentração alemães. No meio de Julho,
Haydrich recebeu ordens para fazer a triagem de campos para os prisioneiros de guerra
soviéticos que buscavam a fazer identificação de “todos os judeus”. No fim do mês, Goring
autorizou Haydrich a preparar “a solução final para a questão judaica na esfera de influência
alemã na Europa”.
A primeira vista, a passagem parece ser direcionada a enumeração de eventos
narrativos. Com um olhar mais próximo, entretanto, a passagem parece não ser narrativamente
estruturada desde que não represente mudanças em seu tempo. De fato, a cronologia
intencionalmente foi marginalizada. As frases são lançadas para refletir o fundamental,
primeiramente um argumento analítico não-narrativo: o potencial do genocídio na União
Soviética requer a presença do sucesso militar, gonocídios ideologicamente motivados, práticas
70 Tradução de Leonardo Grão Velloso e Thiago Brito.
de identificação anti-semitas, e política burocrática de autorização. No nível mais microscópico,
passagem que ilustra questões fundamentais sobre a natureza da escrita histórica: Historiadores
narram ou discutem?
II
Em 1988, o narrativista Seymor Chapman publicou um curto e detalhado artigo sobre o
que ele considera sobre os três tipos de narrativa, argumento e descrição. Ele enfatizou que
apenas narrativas “tem uma sequencia temporal” e isso difere de um argumento atemporal
produzido “para persuadir uma audiência sobre a validade de algumas propostas” e similarmente
descrições atemporais que explicam as propriedades das coisas, incluindo coisas abstratas. Mas
Chatman imediatamente adiciona três tipos de textos que constantemente se misturam. A
classificação de um dado texto não depende da relativa presença ou ausência dos componentes
descritivos, narrativos ou argumentativos mas sim sobre as intenções textuais ou a sua função.
Passagens puramente argumentativas e descritivas podem ir em direção a um trajetória narrativa
e segmentos intensamente narrativos podem servir como um argumento primordialmente
descritivo. Alguns narrativistas tem concluído de suas observações que o profissionalismo da
escrita histórica contém intensas narrações sobre o propósito da argumentação e por isso não
pertencem a família de textos narrativos.
Mais provavelmente, a difícil relação entre narração e argumentação podem tornar a
escrita histórica um caso especial, onde a narrativa e a argumentação coexistem, competem e
potencialmente se empurram.
Então historiadores e narrativistas estão absolutamente corretos quando eles enfatizam
a importância d argumentação no trabalho dos historiadores profissionais. O grande acordo
sobre o que historiadores fazem consiste em trabalho analítico com o propósito de criar uma
unidade semântica discreta a qual é cuidadosamente atenta a objetivos especificamente
interpretativos.
Mas historiadores também tentam providenciar profundas historizações, que
simplesmente em sua escala, tem relativamente incertos fundamentos argumentativos:
Ultimamente a segunda grade “crise de modernização” europeia foi carregada com
grande perigo pelos judeus, quase um milênio anterior. Novamente os “socialmente perdedores”
da crise de modernização – elites tradicionais e pequenos produtores em particular – poderiam
achar nos judeus convenientes símbolos para sua angústia.
Produzir essas afirmações é uma importante parte da profissão do historiador, mas
sentenças tem um diferente status epistemológico em pequena escala, desenvolvida de maneira
incrementada na citação acima. Escrever história requer que seus produtores tenham mais de
um jogo linguístico ao mesmo tempo (Lyotard) e combinar o chão seguro da exegese com a
traiçoeira topografia do comentário sócio-político. Ambos dos jogos dependem um do outro –
nenhuma analise propositiva investiga sem um programa narrativa e vice-versa – mas nenhum
segmento de prosa histórica revela suas primeiras ideias de qual jogo será dominante em sua
criação. E mais, dependendo do terreno comunicativo, a percepção do status de qualquer
componente textual pode mudar depois do fato. Com um olhar próximo, como por exemplo em
um contexto novo de recepção, até a mais criteriosa linguagem analítica da primeira citação
pode ser revelada como sendo narrativamente “corrupta” e analiticamente instável.
Hoje, eu não estou interessado em explorar as deficiências epistemológicas na narrativa
profissional da história. Ao invés disso, eu gostaria de focar na questão de como os historiadores
e seus textos manuseiam a distância analítica e a proximidade linguística de seus diferentes
jogos linguísticos. Quais estratégias eles usam para transpor a barreira entre argumentação e
narração, fato e interpretação, evento e história, e crônica e história?
III
Hayden White é o principal teórico dessa divisa. Ele estudara as tentativas dos
historiadores de fundir narrativa e argumentação, analisara os esforços de outros filósofos da
história nos seus esforços em conceitualizar aquele processo, e tentara reduzir o intervalo,
conceitualmente e empiricamente. Além do mais, White sempre enfatizara, ao invocar a tarefa de
ajustar as contas com os crimes nazistas, que meios responsáveis e auto-conscientes de
integrar a análise e a narrativa históricas constituíam desafios éticos sérios. Enfim, ao passo que
as ideias provocantes de White causaram muita consternação entre os historiadores, não
obstante ele influenciou a escrita da história, principalmente em relação ao Holocausto. Para
mim, a auto-reflexiva escrita de Saul Friedlander em Anos de extermínio não seria possível sem
Metahistória e outras obras de White. Traços do giro linguístico e da influência de White também
se fazem presentes no realismo modesto, sensível e perceptível de Christopher Browning. Sinto-
me intrigado acerca de autores como Friedlander e Browning, não só a maneira pela qual eles
percebem esse intervalo, mas também a maneira que o utilizam como canal de comunicação
adicional e auto-reflexivo com seus leitores.
O contexto historiográfico mudara decisivamente através da publicação de um trabalho
sintético da história do Holocausto, que bem organiza as unidades discretas de narrativa
histórica em um padrão dualístico e contraditório. Na primeira observação, os elementos de
estória em Anos de extermínio de Saul Friedlander parecem apoiar a macro-tese explicitamente
anunciada acerca da primazia de fatores ideológicos. Um exame mais próximo revela, no
entanto, que os parâmetros básicos da narrativa histórica – tempo, espaço e causalidade –
foram manipulados de tal maneira que os próprios parâmetros, bem como o enredo que
carregam, se tornam dignos de desconfiança e desestabilizam o senso do leitor sobre o controle
narrativo. Em processo de radicalização estética acumulada, o livro demonstra doses
homeopáticas de intranqüilidade analítica, devido a propósitos explicitamente éticos de captura
de um fraco eco de sentimentos em favor das vítimas da Solução Final. No caso os Anos de
extermínio de Friedlander, o intervalo entre perspectivas narrativas distintas e objetivos analíticos
foram forçados a falar; eles passam uma das mensagens centrais do livro.
A estratégia incomum de Friedlander para salvaguardar a instabilidade semântica
através da compreensão narrativa e atenuação analítica, contrasta com o tipo de história do
Holocausto que sustenta, através do seu formato narrativo, não surgirem divisas sérias entre
narratividade e argumentação e que toda conclusão narrativamente apresentada fluíra de um
trabalho previamente analítico-argumentativo.
V
Bem no início, no prefácio de As origens da Solução Final, leitores são informados que
eles estão entrando num conjunto comunicativo bastante complicado. As Origens da Solução
Final não é uma monografia convencional porque a estória do processo de decisão é contada
por dois narradores. Eles imediatamente admitem que discordam sobre interpretações „em
alguns poucos pontos‟ e, portanto, abandonam aspirações de „uniformidade interpretativa‟. Além
do mais, o livro é parte de uma coleção sobre a história do Holocausto. Assim, os narradores
anunciam que se concentrarão nas decisões dos perpetradores e não considerarão a
perspectiva das vítimas, cujas experiências são o assunto de outras publicações da série. Pela
mesma razão, eles se aterão ao domínio da responsabilidade cronológica, cobrindo a política
nazista acerca dos judeus de Setembro 1939 e Março 1942.
Depois dessas duas prolepses, o leitor se surpreende. A narrativa não começa nos anos
1930, ou no século XX, mas sim com uma discussão da política da religião “40 ou 60 anos
depois da morte de Jesus”. Os narradores claramente acolhem certa ambição narrativa e,
imediatamente rompendo suas próprias regras, desenvolvem um panorama impressionante de
onze páginas, desde a antiguidade até o ataque nazista à Polônia. Eles explicam uma dialética
do esclarecimento de três estágios, que contém cristãos e judeus, „iletrados, empobrecidos e
aglomerados em vilarejos isolados‟ e sob ataque de vikings, vivendo uma vida de coexistência
miserável no Medievo europeu. A miséria dividida é destruída pela „primeira grande crise de
modernização europeia‟ quando mudanças demográficas, econômicas, culturais e políticas
significantes fomentaram as sociedades europeias a abraçar anti-semitismo e „perdedores
sociais‟ na forma de „gangues de cavaleiros‟ atacando violentamente a minoria judaica.
O terceiro estágio da tragédia dialética enfoca a „segunda grande crise de modernização
da Europa‟, dos séculos XIX e XX, que afeta a Alemanha em particular, fazendo-a carenar seu
próprio caminho destinado à modernidade. Os narradores, então, aumentam a perspectiva do
assunto primário acerca da história do Holocausto ao conferir relevância à maneira pela qual a
Alemanha em crise, especialmente os „perdedores sociais‟ sob o auspício das elites tradicionais,
adotara e institucionalizara formas virulentas de anti-semitismo e assim ajudara a fomentar a
catástrofe nazista, mesmo que o ódio extremado dos nazistas para com os judeus se provara
inicialmente não muito popular entre os eleitores.
Tendo resumido 2000 anos de história europeia, os narradores apresentam uma
narrativa guia, cuidadosamente calibrada, que controla um pensamento sem limites: A dialética
da modernização, com sua extensa rede de elos causais (de curto termo e longo termo)
apresenta noções de descontinuidade cronológicas, espaciais e causais, implausíveis e
irrazoáveis – como se pode esperar de um livro que se concentra exclusivamente na pré-história
de um evento, o qual não faz parte do universo narrativo da obra.
Não é necessária muita acuidade crítica para reconhecer que a introdução, enquanto
projeto narrativo, postula o que o texto é incapaz de demonstrar, a saber, que os eventos do
último milênio, alguns dos quais podem ser conclusivamente determinados como fatos, são de
fato parte de uma trajetória narrativa-causal geral, que pode ser confirmada com um grau similar
de certeza epistemológica.
VI
Aqui há dois especialistas no assunto, os quais se respeitam e decidiram escrever um
livro juntos. Mas os dois colaboradores intelectuais, os quais provavelmente mantiveram
horizontes abertos e linhas de comunicação através do projeto, também concordaram em
discordar „em vários pequenos detalhes‟. Num espírito cheio de abertura, eles informaram os
leitores de suas discordâncias e contaram a estória das origens da Solução Final de dois pontos
de vista distintos, com ajuda de dois narradores distintos. A discordância levanta algumas
questões interessantes. Se dois acadêmicos, trabalhando a partir do mesmo conjunto de fontes,
equipados com o mesmo alto nível de especialização, e dividindo pontos de vistas similares, não
podem concordar na sua interpretação, baseados no estudo detalhado das fontes, como
podemos confiar nas fontes como forma de resolver diferenças de opinião, especialmente
diferenças de opinião entre acadêmicos que consideram de cada um de perspectivas mais
críticas? Quais são as origens das diferenças, como elas se manifestam nos textos, como elas
poderiam ser resolvidas – ou deveriam somente não ser resolvidas? Inadvertidamente, um
buraco suficiente é aberto na superfície de As origens da solução final, convidando o leitor a
olhar de perto os trabalhos internos do ofício do historiador.
Os dois narradores concordam acerca dos parâmetros da historiografia do Holocausto e
sugerem linhas semelhantes de interpretação. Ambos os narradores rejeitam explicações mono-
causais do Holocausto. Em vez disso, eles favorecem um modelo de explicação dialético que
cuidadosamente relaciona e integra decisões alcançadas pelos líderes nazistas em Berlin, com
ações iniciadas por oficiais alemães, locais e regionais, numa multidão de conjuntos e agências
na Europa Oriental ocupada por eles. Na essência, os dois narradores relatam como eles
interpretaram as poucas fontes remanescentes, num esforço por reconstruir os padrões de
comunicação entre o centro e as periferias nazistas, esperando que pudessem estar aptos a
identificar os fatores primordiais que iniciaram a radicalização as políticas nazistas anti-judeus,
no verão e no outono de 1941.
Sob essas concordâncias, esperar-se-ia que os dois narradores fornecessem
explicações compatíveis e, de fato, somente discordassem um com o outro em „pequenos
detalhes‟. E em muitos casos é isso que se dá. Conceitualmente eles estão na mesma página
centro-periferia, identificam semelhantemente os mesmos fatores causais e usam palavras
semelhantes quando eles explicitamente discutem questões de causalidade em termos gerais.
Mas quando eles começam a contar suas estórias detalhadamente, a situação muda de maneira
decisiva. Através do ato de narrativa histórica, as discrepâncias conceituais menores entre as
perspectivas de ambos os narradores são exacerbadas ao ponto de incompatibilidade narrativa.
Como a prosa histórica profissional e convencional ressalta a coerência, um estágio inicial de
coexistência harmoniosa conceitual faz emergir uma tensão narrativa considerável. As
diferenças narrativamente destacadas entre os mundos históricos de Matthaus e Browning são
mais bem ilustradas por seus conflituosos usos de personagens. Os personagens tem os
mesmos nomes – Hitler, Himmler, Heydrich e Back-Zelewski, entre outros – mas eles não
parecem falar, sentir ou agir da mesma maneira. Eles certamente não fazem jus às nossas
expectativas sobre desenvolvimento dos personagens numa obra integrada e monográfica de
escrita histórica. De fato, ter dois mundos e dois conjuntos de personagens lado a lado cria um
diálogo intrigante e conflituoso entre os dois narradores em competição.
VII
No mundo narrativo do relato minoritário (Matthaus), a figura de Hitler é largamente
ausente da cena, preferindo „o papel de observador mais que o de tomador de decisão‟.
Ademais, ele „é menos interessado na questão judaica que em outros problemas mais amplos‟,
contemplando, por exemplo, o „Jardim do Eden‟ que ele está para criar no Oriente. Hitler
ocasionalmente profere algumas palavras gerais de encorajamento e pode emular um
pronunciamento geral e não-prático („não-alemães nunca deveriam portar armas‟), que seus
subordinados ignoram por suas declarações não condizerem com as demandas práticas do
império em construção, na Europa Oriental ocupada. De acordo com a lógica narrativa desse
relato, o qual temporariamente adota a perspectia de líderes nazistas regionais e locais, Hitler
avança na sua visão grandiosa de império bem efetivamente ao confiar em seus homens para
tomarem as melhores decisões e preferindo não serem incomodados.
O narrador desse relato também ilustra um quadro interessante das figuras históricas de
Himmler e Heydrich. Nessa estrutura narrativa, Heydrich e Himmler pairam obsessivamente
sobre suas tropas, visitando-os repetidamente no campo, para oferecer apoio moral e palavras
gerais de encorajamento. Entretanto, apesar das viagens freqüentes ao fronte, as quais eles
faziam como oportunidade de sancionar os crimes depois do fato, e menos frequentemente,
imperando acessos excessivamente violentos, especialmente de perpetradores não-alemães, os
dois tem somente uma compreensão insuficiente do que está acontecendo e falham em
providenciar o tipo de apoio que seus subordinados teriam mais apreciado, a saber, orientações
claras acerca de suas tarefas de assassinato. Repetidamente, Heydrich e Himmler proferem
diretrizes vagas, falhando em organizar a questão central de como tratar as mulheres e crianças
judias. Como resultado de tal „ambiguidade‟, as várias ações nazistas tiveram „problemas de
comunicação‟ consideráveis e adotam „uma sequência de medidas incoerente, variada local e
regionalmente‟. Dois dos principais personagens da estória são variavelmente descritos como
mal informados, medrosos e indecisos, bem como deslealmente espertos.
O vácuo administrativo é preenchido por outro conjunto de atores, que são
particularmente interessantes ao narrador. Em seu enredo, a rápida ascensão da violência nos
territórios ocupados, entre Julho e Agosto de 1941, é primariamente realizada por oficiais locais
e regionais, os quais desenvolveram „sua própria interpretação do que precisa ser feito‟ e, assim,
implementaram os objetivos de longo prazo, apesar da falta de orientação de seus superiores
em Berlim. Quando pedidos repetidos por esclarecimento permaneciam sem resposta, eles
„tomavam a iniciatiiiva‟ e embarcavam numa farra mortífera, seguindo seu próprio ritmo com
„fervor e adaptabilidade‟ num contexto no qual „elementos tradicionais de hierarquia perdera sua
importância‟. Nem „ordens específicas de Berlin‟, muito menos a presença de superiores era
necessária para a violência alcançar seu nível genocida, muito embora o fato de que uma
política uniforme não se desenvolvia por muitos meses. Em Novembro de 1941, algumas
unidades ainda não conseguiam assassinar indiscriminadamente mulheres e crianças. Por todas
essas razões o narrador alcança a importante conclusão de que o ataque à União Soviética
causou considerável mudança no „equilíbrio de poder do centro para a periferia‟.
O narrador sugere que „pequenos Himmlers‟ cometiam seus crimes, primeiramente, por
razões ideológicas, mas ele afirma que seus motivos precisos eram difíceis de aventar, dada a
natureza fragmentária e evasiva das fontes existentes.
VIII
O narrador da maior parte do relato (Browning) nos conta uma estória bem diferente
sobre a ascensão da violência nos territórios ocupados da União Soviética. Nesse universo
narrativo, encontramos outro Hitler que „inaugurara o processo de tomada de decisão‟ e não fora
o único „diretamente envolvido‟, mas de fato „controlara o ritmo dos eventos‟. Por vezes ele
limitava suas ênfases e, por vezes, ele refreava o „ardor de seus seguidores‟. De qualquer
maneira, grandes „decisões ... só poderiam ser tomadas por ele. O narrador identifica um distinto
padrão subjacente na ação de Hitler. Quando os militares alemães avançavam rapidamente
sobre o fronte oriental, ele acelerava o assassínio em massa de judeus soviéticos e europeus, e
só recuava quando o exército alcançava bloqueios no caminho para Moscou. A Solução Final,
como o narrador enfatiza repetidamente, nascera da „satisfação e da euforia pela vitória‟. A tese
é elegantemente capturada numa metáfora sucinta. O narrador compara o processo de tomada
de decisão com um conjunto de círculos concêntricos em expansão, irradiando-se para fora,
enquanto Hitler estava no centro dos eventos, e Himmler e Heydrich representando seu grupo
primordial de especialistas, implementando suas decisões.
Como Hitler, Himmler e Heydrich eram perpetradores bastante envolvidos, os quais
agiam imediatamente para cumprir os desígnios do Fuhrer. Em resposta à euforia de Hitler, eles
rapidamente estabeleciam postos para as tropas SS no Oriente e pessoalmente relatavam a
mudança da política – com resultados devastadores. Logo após as visitas de Himmler, as
unidades respectivas começaram os assassínios de mulheres e crianças, aumentando o número
de vítimas. Como resultado dessa comunicação efetiva, „em meados de Agosto os resultados
eram virtualmente os mesmos por toda parte‟ e não havia „divisão entre o que acontecia no
campo de batalha e o que se sabia, ou se desejava, no topo da liderança do regime nazista‟.
IX
Os capítulos 7 e 8 de As origens da Solução Final oferecem um olhar honesto incomum
acerca das regras inerentes à narração história profissional. As discrepâncias importantes entre
dois mundos narrativos são ligadas a tradições conceituais de longa data, no que concerne à
historiografia do Holocausto. Na sua afirmativa programática e na sua escolha de terminologia,
ambos os narradores sinalizam uma abordagem inclusiva e ecumênica sobre a antiga divisão
interpretativa entre estruturalistas e intencionalistas. Nesse veio, o narrador 2, por exemplo,
ressalta repetidamente „a natureza policrática do regime nazista‟. Mas em um ponto chave, os
dois enredos distintos sobre a liderança nazista ainda sim se alinha perfeitamente a divisões
convencionais entre ambos os campos. O enredo do capítulo 8, do qual um Hitler muito cônscio
dos eventos participa, definindo pontos de virada decisivos e resguardando um poder de veto
sobre decisões importantes reflete um pensamento intencionalista sobre esse personagem
histórico. Esse enredo é particularmente compatível com o tipo de intencionalismo „reformado‟,
representado por Friedlander, entre outros. O Hitler do capítulo 7, afastado, inconstante, por
vezes enganado e desinteressado, ecoa uma narrativa estruturalista, inventada por Mommsen e
Broszat como esforço de redirecionar atenção analítica de um Hitler, e seu entorno, a muitos
perpetradores e contextos sociais desconhecidos, dentro dos quais operavam.
Hoje, os dois conceitos são mais plásticos nos limites, ao menos do que eram nas
últimas décadas, mas ainda sim é difícil imaginar mundos narrativos nos quais eles são
realmente integrados numa unidade. Talvez com tal reconhecimento em vista, a integração
ininterrupta é conscientemente evitada em As origens da Solução Final. Com a ajuda de
Browning e Mathaus podemos hoje avaliar melhor o quão pequeno é o controle dos fatos sobre
seu enredo. Considere, por exemplo, o encontro entre os líderes nazistas em 16 de Julho, 1941.
Do lado de Browning, há uma imagem de Hitler colocando tudo em movimento, ao unir seus
conselheiros mais próximos e, por uma maneira de falar cujo tenor era „inconfundível‟, informava-
os sobre seu objetivo longo prazo e sobre as medidas curto prazo necessárias para realizá-los.
Do lado de Matthaus, há certa imagem de um Hitler que, naquela mesma ocasião, celebrava
utopias racistas inventadas, expunha orientações completamente irreais (sem armas) e não
ligava para as decisões-chave acerca da política anti-judaica. Essas decisões interpretativas não
podem ser conceitualmente e narrativamente reconciliadas. Neste caso, como em muitos outros,
os eventos estabelecidos não tem chance de escapar do alcance dos comprometimentos
narrativos profundamente presentes, os quais, nesse exemplo concreto, postulam a primazia da
ação central contra a primazia da ação periférica.
Desse modo, a performance dialógica de enredos alternativos afina nossa percepção
sobre a linha de demarcação que separa fato de interpretação e aumenta nossa consciência do
preço a ser pago pela homogeneidade narrativa-analítica.
X
Na minha perspectiva, o diálogo central do livro levanta questões primordiais sobre a
disciplina: Dadas a complexidade não-linear dos registros de arquivo e as estratégias
sofisticadas não-lineares em analisar esses registros complexos, será que queremos realmente
continuar criando mundos narrativos lineares e unidimensionais? E será que queremos continuar
produzindo esses mundos em contextos sócio-culturais nos quais a linearidade desaparece
rapidamente? As origens da Solução Final, bem como os Anos de extermínio, demonstram que
integrando elementos dialógicos verdadeiros, ao se escrever sobre assuntos muito sensíveis não
subentende a discussão acerca das fundações empíricas e da integridade ética dos estudos
históricos. De fato, formas de representação dialógicas e multi-direcionadas parecem um meio
mais honesto de registrar nossos encontros com o passado, e de encarar nossas dúvidas e
diferenças de maneira mais transparente.
A leitura detida de As origens da Solução Final nos confere uma ideia melhor da
instabilidade inerente da escrita histórica profissional, que poderia ser explorada por estratégias
não-lineares de representação. Narrativas históricas convencionais seguem padrões diacrônicos
de não-contradição. De acordo com esses padrões, historiadores buscam construir mundos
narrativos consistentemente estruturados, habitados por criaturas que ou se comportam da
mesma maneira em diferentes pontos do tempo, ou às quais seu comportamento alterado pode
ser atribuído a fatores causais explicitamente conscientes. Simultaneamente, historiadores
rotineiramente resguardam métodos analíticos de crítica textual que foram delineados,
primeiramente, para o propósito de obtenção de padrões sincrônicos de não-contradição. Esses
métodos auxiliam os historiadores a triangularem fontes de modo a estabelecerem o que Hitler
fez em 16 de Julho, 1941. Ambos os padrões não contém os mesmos tipos de resultado.
Na maior parte da escrita história profissional, não-contradição diacrônica esbarra em
não-contradição analítica. Consequentemente, a diversidade inerente nos resultados de análise
sincrônica tende a ser reduzida no processo de implementação de um programa narrativo dado.
Historiadores são muito adeptos da cobertura de seus rastros mas, quando nos detemos ao
analisá-los, seus textos ainda revelam as cicatrizes da batalha pela coerência e supremacia
interpretativas. A leitura detida revela todo um novo arranjo de personagens. De um lado, há
planos narrativos mais ou menos complicados, conflitando-se para impor continuidade sobre
diversidade analítica sincrônica. Por outro lado, aqui reside a „opressão‟ do rigor analítico, que
força em resposta a essa pressão, testando os limites da representação narrativa realista, e
ocasionalmente causando inconsistências narrativas (lembremos, por exemplo, o plano de
Heydrich de manipular suas tropas através da ausência de ordens explícitas).
A competição entre ambos os padrões de não-contradição acontece em um ambiente
dinâmico e competitivo. Quando constelações específicas de dados (batalhão de polícia 101,
encontrando-se em 16 de Julho, 1941, a batalha de Smolensk) se tornam o campo de batalha
entre interpretações competindo entre si, as constelações perdem seu status de fatos integrados,
unificados e não-problemáticos, emergindo como comboios narrativos de eventos
ultradeterminados. Eles mantém sua integridade razoavelmente analítica (o encontro ocorreu
com a presença de Hitler), embora percam sua direção narrativa (se torna obscuro se Hitler
estava distante ou engajado, e qual papel a reunião tivera no processo total de implementação).
A desintegração semântica ocorre porque regras, analíticas e sincrônicas, de não-contradição
não podem provar a existência de uma trajetória narrativa uma vez que se questiona
rigorosamente se ela é factível ou não. Mas as mesmas regras podem produzir diversidade
fatual suficiente para abrir buracos em qualquer programa narrativo realista – se um
crítico/competidor estiver inclinado a empreender o trabalho analítico requerido.
As obras de Friedlander e Browning indicam que temos um tempo bem interessante
adiante. O campo metodologicamente conservador dos estudos sobre o Holocausto parece
preparado para reverter a hierarquia historiográfica tradicional, com a analítica não-contraditória
sendo incrementada, tomando o lugar da narrativa não-contraditória. O campo parece estar
disposto a imaginar o passado como um mundo não-linear e a desenvolver modos de narração
histórica não-lineares. As obras de Christopher Browning são particularmente destacáveis nesse
sentido. De um lado, os clássicos de Browning, de Homens ordinários e As origens da Solução
Final ao mais recente Relembrando a sobrevivência, seguem padrões convencionais de
elaboração de enredo realista. Do outro lado, todos os três livros expõem uma sensibilidade
extraordinária de diversidade analítica, ao integrar meticulosamente relatórios minoritários em
seu projeto geral. Com essa decisão, Browning transfere grande parte de sua agência
interpretativa dos narradores para os leitores de seus textos, esperando, de maneira
perfeitamente razoável para mim, que os leitores reais possam lidar com tanta liberdade de
interpretação.
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Como eu não escrevi Metahistória
Hayden White
(Stanford University, Estados Unidos)
Caio Prado Júnior é o autor que melhor se encaixa na tipologia de Meta-história. Ele
estrutura sua narrativa sob a égide do modelo trágico, organizando sua argumentação de
maneira mecanicista, assumindo uma postura radical. Seu estilo é o mais limpo e o mais direto
de todos os outros. Observa-se maior heterogeneidade no estilo de Gilberto Freyre e de Sérgio
Buarque de Holanda cujas obras possuem uma narrativa e uma urdidura textual mais híbrida e
de maior densidade argumentativa. O que não significa que Prado Júnior não tenha qualidades
literárias ou interpretativas, pelo contrário, apenas possui um estilo mais direto e reconhecível.
Segundo Antonio Candido
se manifestava um autor [em Caio Prado] que não disfarçava o labor da
composição nem se preocupava com a beleza ou expressividade do estilo.
Trazendo para a linha de frente os informantes coloniais de mentalidade
econômica mais sólida e prática, dava o primeiro grande exemplo de
interpretação do passado em função das realidades básicas da produção, da
distribuição e do consumo. Nenhum romantismo, nenhuma disposição de
aceitar categorias banhadas em certa aura qualitativa (...) como linha
interpretativa o materialismo histórico, que vinha sendo em nosso meio uma
extraordinária alavanca de renovação intelectual e política (CANDIDO, 1995,
p.11).
Embora a discussão aqui ensejada não se ocupe de Oliveira Viana, ele provavelmente
constitui um bom contraponto para os autores canônicos de então, complementando o quadro
analítico meta-histórico daquela geração, afinal ela não somente traz novidades como mantém
tradições. Celebrizado pela obra Populações do Brasil meridional, de 1920, o famoso historiador
carioca publicou O ocaso do Império cinco anos depois, obra representativa naquele contexto, e
também clássica na historiografia brasileira. Em sua nostalgia monárquica, ela apresenta
claramente a adoção de um estilo romanesco, elaborado a partir de um enredo formista, tendo
como coloração política um pretenso anarquismo que, mascarava uma implicação ideológica
profundamente conservadora. Seu estilo, portanto, consubstanciava não apenas uma
ambigüidade natural, mas, uma faceta absolutamente irônica diante da realidade nacional.
Em relação aos autores, talvez Freyre seja o mais conservador dos três recusando
relações de causalidade e fugindo das categorias de identidade que marcam o pensamento de
Prado, Holanda ou Viana. Caio Prado Junior, por sua vez, fundiu as estratégias sinedóticas do
pensamento de Marx, com os recursos metonímicos da sociologia positivista de Durkheim,
criando uma representação da história dialética e materialista que, a seu modo, é histórica e
mecanicista, esforçando-se por conferir à história um caráter científico e uma ordenação lógica.
Realizou um estudo coeso relacionando a consciência histórica de seu tempo com o passado
histórico investigado. Mais do que Freyre ou Holanda, Prado Júnior tinha clareza das implicações
ideológicas da escrita da história. Crítico dos historiadores que o antecederam, como Rocha
Pombo, por exemplo, por menosprezarem as lutas sociais ao dizerem que não passavam “de
fatos sem maior significação social e que exprimem apenas a explosão de „bestiais‟ sentimentos
e paixões das massas” (PRADO JÚNIOR, 1994, p.8). Sua concepção de história pode ser tudo,
menos irônica. De qualquer modo “com forte influência das idéias e sugestões de Joaquim
Nabuco e Euclides da Cunha” todos “deram continuidade aos velhos temas que vinham da
colônia e do Império – temas para cuja superação contribuíram” (WEFFORT, 2006, p.9). A
exceção de Viana, naturalmente.
Referências Bibliográficas
O que significa uma bomba? Evento modernista, passado prático e a controvérsia sobre o
Enola Gay nos Estados Unidos (1993-1995)
Arthur Ávila (UFRGS)
Mr. White chega aos trópicos: a tradução e a recepção crítica de Hayden White no Brasil
(1992-2012)
Fabio Franzini (UNIFESP)
iGabrielle M. Spiegel, “Above, About and Beyond the Writing of History: A Retrospective View of
Hayden White's Metahistory on the 40th Anniversary of its Publication,” Rethinking History 17, No. 4
(2013): http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13642529.2013.825088#.UkbmJ4aTjKB
iiUma versão prévia desde ensaio foi originalmente apresentada no Colóquio em Honra a Hayden
xO termo “modernista”, deve-se destacar, é derivado do Latim “modus”, “modo” (dativo) = “now”, “agora”,
“addesso”, “jetzt”, “maintenant” ou simplesmente “neste momento.” De “modo” vem “modernus”,
“modernitas” e “moderno”, “modernidade” e “modernismo.” No século quarto depois de Cristo,
“modernitas” significava “Anno Domini” ou qualquer coisa que tivesse acontecido desde a Encarnação,
dado o fato de que as expectativas da redenção da humanidade haviam mudado radicalmente para todos
desde a Paixão de Cristo. O “moderno” marca uma cesura no tempo humano, uma mudança qualitativa.
E é esse sentido de uma mudança qualitativa na experiência humana de tempo que é capturado no
moderno e secular conceito de “modernidade”, bem como no conceito de “modernismo.”
xiVáriasculturas constroem a relação entre o que nós chamamos de passado e presente espacialmente,
ao invés de fazê-lo temporalmente; sendo o que chamamos de “passado” concebido como amontoados
de “lugares”, ao invés de “tempos”. Assim, pode-se ver o passado como um lugar que se visita, ao invés
de um tempo-período composto por coisas e eventos uma vez presentes, mas agora não apenas mortos
como também ausentes, não mais observáveis ou diretamente experienciáveis, mas removidos para uma
posição metafísica distinta.
xiiE,
é claro, a História da Escrita Histórica, de James Westfall Thompson, a qual eu assimilei amplamente
através do pensamento de seu aluno e meu professor, William J. Bossenbrook (falecido em 1984),
carismático mestre que fez da “história” um drama de preocupação existencial atual e a única substituta
para os grandes sistemas de sentidos uma vez produzidos por mito, religião e metafísica.
xiiiTermo de Collingwood.
xivEssa,é claro, é o tipo de sentença que faz vários dos meus colegas subirem pelas paredes, mas eu
preciso dela para expressar o sentimento que eu tinha (ou penso hoje que eu tive) de que o que “nós”
queremos dizer por “história” hoje em dia é tão diferente de suas encarnações anteriores – dos Gregos às
Escolas Históricas – que a possibilidade de que o que experienciamos como sendo história ter se
desenvolvido a partir do que eras anteriores e diferentes culturas experienciaram como história é
virtualmente impensável – exceto, é claro, para aqueles genealogistas da cultura que dispensam seu
tempo procurando por maneiras de explicar como, seja lá qual for o cenário atual, em cultura, política,
economia, leis, filosofia, e por aí vai, se trata do resultado natural e predestinado do que veio antes.
xvNo que me diz respeito, a atribuição de “verdade” a coisas outras que não proposições ou afirmações é
um erro de categoria. No pensamento histórico, é ainda pior do que isso; é dogmatismo. A ideia de que o
que foi validamente postulado como verdade sobre alguns aspectos dos regimes, crenças ou práticas da
Roma antiga permanece absolutamente e irrestritamente “verdadeiro”, ao longo de um período de mais
de dois mil anos, é profundamente não ou a-histórica. Não é o caso de que a coisa sobre a qual foi feita
uma afirmação verdadeira em, digamos, 1876, tenha mudado. Em vez disso, o critério utilizado para
mensurar a veracidade de afirmações – especialmente afirmações sobre coisas do passado – deve
mudar na medida em que mudam nossas concepções de verdade científica, para não mencionar que as
concepções de ciência, elas mesmas, mudaram.
xviDeontologia, ou, a ciência dos fardos, físicos e morais, depositados sobre o indivíduo simplesmente em
virtude de ter nascido na sociedade e sujeito a um período excepcionalmente longo de dependência física
de outros para sobrevivência (neotenia).