Charles-Mills IgnoranciaBranca PDF
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IGNORÂNCIA BRANCA 1
Charles W. Mills 2
Tradução: Breno Ricardo Guimarães Santos 3
Universidade de Brasília (UnB)
https://orcid.org/0000-0001-7223-7363
1 Texto original: MILLS, Charles W. ‘White Ignorance’. In: SULLIVAN, S.; TUANA, N. (eds.). Race
and Epistemologies of Ignorance. Albany, NY: SUNY Press, p. 11–38, 2007. Autorização de publicação
de tradução concedida pela SUNY Press, em 15 de dezembro de 2017.
2 Doutor em Filosofia pela University of Toronto. Professor do Graduate Center da City University of
New York (CUNY). É autor de trabalhos como, The Racial Contract (1997); Blackness Visible: Essays
on Philosophy and Race (1998); Black Rights/White Wrongs: The Critique of Racial Liberalism (2017).
E-mail: cmills3@gc.cuny.edu
3 Doutor em Filosofia. Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade de Brasília (UnB). E-mail: breno.ricardo@gmail.com
MILLS, Charles W. Ignorância branca. Tradução de Breno Ricardo Guimarães Santos. Griot : Revista de Filosofia,
Amargosa/Bahia, v.17, n.1, p.413-438, junho/2018. 413
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Ignorância branca…
É um assunto amplo. Quanto tempo você tem?
Não é suficiente.
Ignorância é normalmente pensada como o anverso passivo do conhecimento,
o recuo sombrio antes da propagação do Esclarecimento.
Mas...
Imagine uma ignorância que resiste.
Imagine uma ignorância que revida.
Imagine uma ignorância militante, agressiva, que não deve ser intimidada,
uma ignorância que é ativa, dinâmica, que se recusa a desaparecer tranquilamente –
de modo algum confinada ao iletrado, ao sem educação, mas propagada
nos níveis mais altos da terra, de fato se apresentando despudoradamente
como conhecimento.
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5Veritistic, no original. Não há uma tradução consolidada desse termo em português. ‘Verística’ é
uma versão de ‘verídica’ que caiu em desuso, mas que foi resgatada aqui por conta do seu uso recente
em alguns trabalhos de epistemologia de língua portuguesa, e para evitar o uso de ‘verídica’, que
parece supor que as teses epistemológicas atreladas à teoria são, necessariamente, verdadeiras. N. do
T.
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II
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6 O termo ‘people of color’ (no original) é comum nos EUA, sendo utilizado para fazer referência a
pessoas que não são brancas. Diferentemente do que acontece com sua versão em português, o uso
desse termo em inglês é pouco controverso. Manterei a tradução do termo dessa maneira, por
considerar que ele expressa um tipo de coletividade particular que não tem equivalente linguístico no
Brasil. N. do T.
7 ‘Whiteness’ (no original) faz referência a características sócio-político-culturais que estão associadas
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9Minstrelsy, no original. Essa expressão faz referência à prática comum nos Estados Unidos do século
XIX, na qual pessoas brancas (em sua maioria) atuavam como se fossem pessoas negras, com seus
rostos pintados de preto, de modo a humilhar e rebaixar as pessoas negras através de trejeitos e
práticas estereotipadas. N. do T.
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III
10Ênfase nossa. ‘Sambo’ é um termo racial pejorativo, usado para se referir a homens negros durante
parte da história social norte-americana. Um sambo era um negro que, nesse imaginário social, era
subserviente, mas ao mesmo tempo um malandro em potencial. N. do T.
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existiam naquela época. Certamente pessoas existiram as quais, nos padrões de hoje,
seriam consideradas brancas, mas elas não teriam sido categorizadas assim na época,
por elas ou por outras pessoas, então não teria havido branquitude para
desempenhar o papel causal em seu conhecimento e desconhecimento. Além disso,
mesmo no período moderno, a branquitude não teria sido universalmente,
instantaneamente e homogeneamente instanciada; teria havido (para tomar
emprestada uma imagem de outro campo de estudos) “um desenvolvimento
desigual” no processo de racialização em países diferentes, em tempos diferentes. De
fato, mesmo nos Estados Unidos, em um sentido o estado supremacista branco
paradigmático, Matthew Frye Jacobson (1998) defende uma periodização da
branquitude em diferentes épocas, com alguns grupos étnicos europeus apenas se
tornando completamente brancos em um estágio comparativamente tardio.
Em segundo lugar, precisaríamos distinguir entre o que eu estou chamando de
ignorância branca de padrões gerais de ignorância prevalentes entre pessoas que são
brancas, mas em cujos estados doxásticos a raça não desempenha qualquer papel
determinante. Por exemplo, em todas as épocas (como é agora) haverá muitos fatos
sobre os mundos social e natural sobre os quais pessoas, incluindo pessoas brancas,
não terão qualquer opinião, ou terão uma opinião equivocada, mas onde a raça não é
direta ou indiretamente responsável, por exemplo, o número de planetas 200 anos
atrás, a temperatura exata da crosta da terra a vinte milhas de profundidade agora,
a distribuição de renda precisa nos Estados Unidos, e assim por diante. Mas nós não
iríamos querer chamar isso de ignorância branca, mesmo quando ela é compartilhada
por brancos, porque a raça não foi responsável por esses desconhecimentos, mas sim
outros fatores.
Em terceiro lugar (complicando o exposto acima), é preciso perceber que uma
vez que causação indireta e graus decrescentes de influência são admitidos, será às
vezes muito difícil julgar quando tipos específicos de não-conhecimento são
apropriadamente categorizáveis como ignorância branca ou não. O apelo a
contrafactuais de maior ou menor distância da situação atual pode ser necessário (“o
que eles deveriam saber e saberiam se...”), cuja avaliação talvez seja muito complexa
para ser solucionável. Suponha que, por exemplo, uma generalização científica
verdadeira particular sobre seres humanos, P, seria de fácil descoberta em uma
sociedade se não fosse pelo racismo generalizado, e que com pesquisas adicionais nas
áreas apropriadas, P poderia ser mostrado como tendo implicações adicionais, Q, e
além disso, R. Ou suponha que a aplicação prática de P na medicina teria tido como
subproduto descobertas empíricas p1, p2, p3. Deveriam esses princípios relacionados
e descobertas factuais ser incluídos também como exemplos de ignorância branca?
Quão longe progressivamente na cadeia? E assim por diante. Então será fácil pensar
em todo tipo de casos complicados onde será difícil fazer essa determinação. Mas a
existência de tais casos problemáticos nas fronteiras não mina as consequências dos
casos mais centrais.
Em quarto lugar, a causalidade racializada que eu estou invocando precisa ser
expansiva o suficiente para incluir tanto motivação racista direta quando causação
socioestrutural mais impessoal, que pode estar operativa mesmo se o conhecedor em
questão não é racista. É necessário distinguir entre as duas, não apenas como um
ponto lógico, porque elas são analiticamente separáveis, mas porque na realidade
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IV
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[O] inglês concebeu a forma do selvagem pra servir sua função. A palavra
selvagem assim passou por alterações consideráveis de sentido na medida
em que diferentes colonos perseguiram seus variados fins. Um aspecto do
termo permaneceu constante, entretanto: o selvagem era sempre inferior
aos homens civilizados... A constante da inferioridade indiana implicou na
rejeição da sua humanidade e determinou os limites permitidos para sua
participação na mistura de culturas. O selvagem era presa, gado, animal
de estimação, ou verme – ele nunca era cidadão. Mantenedores do mito
negavam que a tirania selvagem ou a anarquia selvagem poderiam ser
corretamente chamadas de governo, e portanto não poderia haver
justificação para a resistência indiana à invasão europeia. (p. 59)
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13 No entanto, o livro de Hochschild iniciou um debate na Bélgica que agora levou a uma
apresentação no Museu Real da África Central sobre a questão: “Memória do Congo: A Era Colonial”.
Historiadores belgas disputam os números e rejeitam a acusação de genocídio. Ver o New York Times
de 09 de fevereiro de 2005, B3.
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15 Entitlement, no original. N. do T.
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e ainda assim morrer ignorantes sobre seu verdadeiro caráter, quase como se eles
nunca tivessem nascido” (KONKLE, 2004, p. 90, 92). Durante a escravidão, aos
negros era geralmente negado o direito de testemunhar contra brancos, porque eles
não eram vistos como testemunhas dignas de crédito, então quando as únicas
testemunhas (voluntárias) de crimes brancos eram negros, esses crimes não eram
publicitados. Em um momento, na África Germânica do Sudoeste, colonos brancos
demandaram “que no tribunal apenas o testemunho de sete testemunhas africanas
poderia superar a evidência apresentada por uma única pessoa branca” (COCKER,
1998, p. 317). Similarmente, narrativas escravas com frequência tiveram que ter
autenticadores brancos, por exemplo, abolicionistas, como a autoridade epistêmica
racialmente sustentada para escrever um prefácio, ou aparecer no palco com o autor,
para confirmar que o que aquele negro digno tinha dito era de fato verdadeiro.
Além do mais, em muitos casos, mesmo se às testemunhas tivesse sido dada
algum tipo de escuta relutante, elas eram aterrorizadas a silenciarem-se, por medo da
retaliação branca. Uma mulher negra relembra o mundo das leis de Jim Crow e dos
perigo de descrevê-lo pelo que ele era: “Meus problemas começaram quando eu
comecei a comentar sobre o que eu vi... Eu insistia em ser acurada. Mas o mundo no
qual eu havia nascido não queria isso. Na verdade, sua própria sobrevivência
dependia do não conhecer, não ver – e certamente não dizer qualquer coisa que seja
sobre como ele realmente era” (citado em LITWACK [1998, p. 34]). Se o testemunho
negro poderia ser aprioristicamente rejeitado porque era provável que fosse falso, ele
poderia também ser rejeitado porque era provável que fosse verdadeiro. O
testemunho sobre as atrocidades brancas – linchamentos, assassinatos de policiais,
ataques raciais – deveriam frequentemente ter sido transmitidos através de canais
informacionais segregados, de negros para negros, explosivo demais para permitirem
ser expostos à cognição branca. A memória do ataque racial de Tulsa em 1921, o
maior ataque racial americano do século XX, com uma mortalidade possível de 300
pessoas, foi mantida por muitos anos na comunidade negra, muito tempo depois dos
brancos a terem apagado do registro oficial. Ed Wheeler, um pesquisador branco
tentando, em 1970, encontrar documentação do ataque, descobriu que os registros
oficiais tinham desaparecido misteriosamente, e ele foi capaz apenas, com muita
dificuldade, de persuadir sobreviventes negros a se apresentarem com suas
fotografias do evento: “Os negros permitiram que Wheeler levasse as fotos apenas se
ele prometesse não revelar seus nomes, e todos eles falaram apenas sob a condição de
anonimato. Embora tenham se passado cinquenta anos, eles ainda temiam retaliação
se eles falassem” (HIRSCH, 2002, p. 201).
Mesmo quando tais medos não são um fator, e negros se sentem livres para
falar, a presunção epistêmica contra sua credibilidade permanece de um modo
diferente do que para as testemunhas brancas. Contratestemunho negro contra a
mitologia branca sempre existiu, mas teria sido originalmente dificultado pela falta
de capital material e cultural disponível para sua produção – testemunho oral de
escravos analfabetos, panfletos efêmeros de pequena circulação, e trabalhos
autopublicados como aqueles do autodidata J. A. Rogers (1985), documentando
laboriosamente as realizações dos homens e mulheres de cor para se contrapor à
mentira branca da inferioridade negra. Mas mesmo quando propagados em veículos
mais respeitados – por exemplo, as revistas acadêmicas negras fundadas no começo
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ignorar ou minimizar tais fatores. Por outro lado, na tradição de esquerda, essa foi
precisamente a tese clássica: dominação e exploração (de classe) foram as fundações
da ordem social, e como tais elas produziram não diferenças meramente materiais de
riqueza na esfera econômica, mas também consequências cognitivas deletérias na
esfera ideacional. A análise particular marxista da exploração, se apoiando na teoria
do valor-trabalho, provou ser fatalmente vulnerável. Mas obviamente isso não nega
o valor do próprio conceito, adequadamente renovado16, nem corta a plausibilidade
prima facie da alegação de que se relações socioeconômicas são de fato fundacionais
para a ordem social, então isso provavelmente terá um efeito moldante fundamental
na ideação social. Em outras palavras, podemos separar do pano de fundo de classe
uma alegação “materialista” marxista sobre a interação entre exploração, interesse
de grupo, e cognição social, e aplicá-la com muito mais plausibilidade dentro de um
pano de fundo de raça. Eu defendi em outros trabalhos que a exploração racial (como
determinada por padrões liberais convencionais) tem sido normalmente bastante
clara e inequívoca (pense na expropriação nativo-americana, na escravidão africana,
nas leis de Jim Crow), não exigindo – diferentemente da exploração no sentido
técnico marxista – qualquer aparato teórico elaborado para discernir, e que pode ser
facilmente mostrada como central na história dos EUA (MILLS, 2004). Desse modo,
o interesse investido do grupo branco no status quo racial – os “benefícios da
branquitude”, na adaptação de David Roediger (1999) da famosa frase de Du Bois
em Black Reconstructtion (1998) – precisa ser reconhecido como um fator importante
no encorajamento das distorções cognitivas brancas de vários tipos.
Tal “irracionalidade motivada” também não está confinada ao período de
racismo escancarado e da segregação legal. Uma pesquisa atitudinal recente, feita
por Donald Kinder e Lynn Sanders, sobre questões de políticas públicas conectadas à
raça, revela “uma divisão racial profunda e que talvez esteja se alargando, [que] faz
com que a descoberta de um ponto de vista comum e de uma concordância entre raça
sejam perspectivas remotas”, e que para moldar a opinião branca, no fim das contas,
sua percepção sobre os interesses do grupo é essencial: “as ameaças que os negros
parecem impor ao bem estar coletivo dos brancos, não ao seu bem estar pessoal”
(KINDER e SANDERS, 1996, p. 33, 85). Raça é a principal divisão social nos
Estados Unidos, esses dois cientistas políticos concluíram, e brancos em geral veem
os interesses dos negros como opostos aos seus próprios. Inevitavelmente, então, isso
irá afetar a cognição social branca – os conceitos favorecidos (e.g.: o “daltonismo”
atual), a recusa em perceber discriminação sistemática, a amnésia conveniente sobre
o passado e seu legado no presente, a hostilidade ao testemunho negro sobre o
privilégio branco continuado e a necessidade de eliminá-la para alcançar a justiça
racial. Como enfatizado no começo, então, esses componentes cognitivos
analiticamente distinguíveis estão na verdade todos interligados e estão
determinando reciprocamente uns aos outros, contribuindo conjuntamente para a
cegueira do olho branco.
Em seu maravilhosamente batizado States of Denial, Stanley Cohen (2001)
argumenta que “[s]ociedades completas podem cair em modos coletivos de negação”:
16 Ver Ruth J. Sample (2003) para uma atualização kantiana recente do conceito e uma defesa de
trazer o conceito de volta para o centro de nossas preocupações.
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A ignorância branca tem sido capaz de florescer todos esses anos porque uma
epistemologia da ignorância branca a protegeu contra os perigos de uma negritude e
uma vermelhidão17 iluminada, protegendo aqueles que, por razões “raciais”
precisaram não saber. Apenas ao começarmos a quebrar essas regras e meta-regras é
que podemos começar o longo processo que irá levar à eventual superação dessa
escuridão branca e à realização de um esclarecimento que é genuinamente
multirracial.
17Redness, no original. Mills usa o termo para aparentemente contrapor à branquitude sua alternativa
nativo-americana. N. do T.
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