Injusticas Epistemicas Relatos e Praticas de Resis
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Injusticas Epistemicas Relatos e Praticas de Resis
Revista Latinoamericana de Estudios en Cultura y Sociedad | Revue Latino-américaine d'Études sur la culture et la société | 1
Latin American Journal of Studies in Culture and Society
V. 09, nº 02, jul.-dez., 2023, artigo nº 2340 | claec.org/relacult | e-ISSN: 2525-7870
Antoni Aguiló2
Alexandra Lopes3
Resumo
Partindo de uma abordagem indutiva sustentada na metodologia de histórias de vida inspirada na Escola de
Chicago e no seu uso de métodos antropológicos para estudar populações urbanas, com particular destaque para
Robert Park e Ernest W. Burgess e potenciadas no contexto académico português por Elsa Lechner, este artigo
apresenta uma reflexão crítica sobre injustiças epistêmicas e formas de lutar contra estas no cotidiano das
mulheres afrodescendentes da área metropolitana de Lisboa. Para tanto, o artigo está organizado em três partes
complementares: na primeira, será apresentada uma conceituação introdutória de injustiça epistêmica a partir de
várias perspectivas teóricas feministas e descoloniais. A segunda parte explora três eixos de análise relevantes
para a desvalorização do conhecimento produzido pela diáspora feminina negra. A terceira parte, usando estudos
de caso baseados nas histórias de vida das mulheres afrodescendentes em Portugal, oferece exemplos concretos
de estratégias de resistência epistemológica e política contra os efeitos adversos da injustiça epistêmica,
particularmente no que diz respeito à questão racial e sexual. Em suas observações finais, a pesquisa conclui que
a injustiça epistêmica condiciona a formação de processos de subjetividade. Apesar disso, as vozes de grupos
estruturalmente racializados e discriminados, como o caso das mulheres afrodescendentes, podem ser
potenciadas por meio de práticas de resistência política por elas desenvolvidas. Essas práticas permitem que
essas mulheres se reapropriem de suas vidas e da liberdade de se definir a si mesmas.
1
Esta publicação foi possível graças ao apoio do programa de projetos de investigação liderados por
pesquisadores de pós-doutorado da Universidade das Ilhas Baleares (concurso 2021) financiado pela UIB e pelo
Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (Uma forma de fazer a Europa).
2
Doutor em Humanidade e Ciências Sociais, investigador do Departamento de Filosofia da Universidade das
Ilhas Baleares (Espanha) e membro da linha temática Democracia, justiça e Direitos Humanos do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal): e-mail: [email protected].
3
Doutoranda no Programa de Estudos Avançados em Direitos Humanos na Universidade Carlos III de Madrid
(Espanha); e-mail: [email protected].
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que “a posição social de dominação em posições epistémicas representa uma base primária da
opressão, exclusão, exploração e em geral das várias formas de injustiça”.
Partindo dessa coordenadas, Gayatri Spivak (1988, p. 281) usa o termo “violência
epistêmica”; Sabelo Ndlovu-Gatsheni (2021) denuncia o “império cognitivo” ocidental que
colonizou o universo mental dos africanos; Baptiste Godri e Marie dos Santos (2017, p. 7)
explicam que as desigualdades sociais produzem e se baseiam em “desigualdades
epistêmicas”; o próprio Santos (2009) argumenta que a epistemologia ocidental hegemônica
funciona por meio da imposição permanente de um pensamento abissal que divide o mundo
em dois universos ontologicamente opostos: o mundo norte-cêntrico da sociabilidade
metropolitana, desse lado da linha, e o mundo do outro lado da linha abissal, o lado do
subalterno, do invisível, dos espaços coloniais habitados por seres sub-humanos que são
epistemológica e socialmente produzidos como inexistentes, mas que, ao mesmo tempo,
formam parte de um sul epistêmico diverso que luta, entre outros, contra as injustiças racistas,
sexistas e classistas (SANTOS, 2021).
Para Santos, o pensamento abissal hegemônico representa um instrumento de
dominação que, entre outros efeitos, produz aquilo a que se chama de “epistemicídio”: o
“processo político-cultural pelo qual o conhecimento produzido por grupos sociais
subalternos é morto ou destruído, como forma de manter ou aprofundar essa subordinação
(SANTOS, 1998, p. 208, trad. nossa). Epistemicídio, nesse sentido, implica suprimir, silenciar
ou desqualificar as formas específicas de conhecimento. Como o próprio sociólogo explica, a
violência perpetuada pelo epistemicídio:
Vai desde o uso de habitantes locais como guias e mitos e cerimônias locais como
instrumentos de conversão até a pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a
biodiversidade, ao passo que a violência é exercida mediante a proibição do uso das
línguas próprias em espaços públicos, a adoção forçada de nomes cristãos, a
conversão e a destruição de símbolos e lugares de culto e a prática de todo tipo de
discriminação cultural e racial (SANTOS, 2009, p. 82).
Por sua vez, o feminismo negro há muito reflete sobre como o epistemicídio se reforça
e se cruza com as hierarquias raciais, de classe e de gênero, entre outras. Para Sueli Carneiro
(2005), falar em epistemicídio consiste em descrever um elemento constitutivo do dispositivo
de racialização e biopoder tradicionalmente presente tanto na sociedade brasileira quanto no
resto da diáspora africana. Esse dispositivo, que inclui uma complexa e heterogênea rede de
discursos, leis, instituições e medidas policiais, entre outros aspetos, funciona como um
mecanismo que estabelece papéis hierárquicos como o fim de justificar atitudes
desumanizantes. Nas palavras da filósofa, o epistemicídio é:
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Nessse ponto Dotson se distancia de Fricker, cujo conceito de injustiça hermenêutica parte do pressuposto de
que só existe um conjunto de recursos epistémicos disponíveis para todos os agentes cognoscentes. Dotson
(2012, p. 32) introduz a categoria de “injustiça contributiva” para reconhecer a existência de estruturas
epistêmicas alternativas próprias de grupos marginalizados, que lhes permitem representar o mundo em seus
próprios termos e interesses, mesmo que os membros da comunidade epistêmica dominante não os reconheçam
deliberadamente como significativos.
5
Em abril de 2023, Boaventura de Sousa Santos, um dos principais referentes teóricos deste artigo, foi acusado
de assédio sexual por três ex-pesquisadoras do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra no
capítulo intitulado “The walls spoke when nobody would”, pertencente ao livro Misconduct in Academia:
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antes precisavam desse conceito devido, em parte, ao contexto patriarcal prejudicial que as
impedia de identificá-lo.
Informing an Ethics of Care in the University, publicado pela Routledge. Em seu artigo "Uma reflexão
autocrítica" (SANTOS, 2023), o sociólogo reconhece ter tido comportamentos inadequados em relação às
mulheres em termos gerais, mas nega as acusações de assédio sexual das pesquisadoras. Atualmente (setembro
de 2023), o processo está em fase de investigação sob a supervisão da Comissão Independente designada para
abordar este caso. O CES comunicou que os resultados desta investigação devem ser tornados públicos até o
final do ano. Paralelamente, em agosto, a Routledge decidiu retirar de forma definitiva o capítulo em questão em
virtude de ter recebido várias cartas de queixa, a primeira das quais de um advogado português, e pelo menos
uma carta de cease-and-desist ou aviso de processo judicial. Essa série de eventos tem gerado significativa
atenção e debate na comunidade acadêmica e nas redes sociais, e espera-se que a situação fique mais clara
quando os resultados da investigação forem publicados.
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diáspora negra feminina? Essas são algumas das questões de pesquisa que o referido pretende
responder.
Com base nessas questões, cabe esclarecer, em primeiro lugar, as premissas com base
a partir das quais se estabelece um processo de invisibilidade intersecional das múltiplas
violências e desigualdades sofridas por essas mulheres. Desse este ponto de vista, a
desumanização assume uma dimensão castradora de processos de subjetividade dissidentes
que contradizem as representações definidas pelo paradigma da modernidade ocidental.
Segundo Patricia Hill Collins (2002), essas representações estão saturadas de estereótipos
negativos normalmente associados à selvageria, à natureza e à inferioridade intelectual.
Assim, para desnaturalizar e resistir à desumanização, é necessário que as mulheres negras se
definam e empoderem a partir da sua própria consciência, por médio daquilo a que James
Clifford (2019, p. 314, trad. nossa) chama de “consciência da diáspora” para construir uma
identidade coletiva e uma história compartilhada em torno da negritude.
No entanto, mais concretamente, o desejo de autodeterminação identitária está
associado a dois elementos basilares. De um lado, o estranhamento extemporâneo causado
pela presença dos corpos negros femininos em determinados espaços da cidade. Em outras
palavras, consiste em uma anomalia das representações do espaço urbano a partir das quais se
articulam as formas de opressão (LEFEBVRE, 2013, p. 91). Por outro lado, e em estrita
conexão com a premissa anterior, essa anomalia é o resultado de um segundo fator de
desumanização que se refere à ausência de lugares de fala apropriados para os corpos
dissidentes (AMARAL, 2005; RIBEIRO, 2017).
Assim, partindo da relação entre esses dois elementos, este artigo pretende revitalizar
formas de subjetividade marginais, com ênfase na experiência das mulheres afrodescendentes
da área metropolitana de Lisboa. Segundo Bell Hooks (2021, pp. 37-38), não se trata apenas
da conversão de objetos em sujeitos produtores de conhecimento. As experiências dessas
mulheres devem servir essencialmente para criar uma consciência verdadeiramente
emancipatória, em que a resistência ou ato revolucionário permite encontrar uma consciência
crítica sobre o peso da intersecção das formas de opressão no silenciamento dessas
subjetividades. Dessa forma, será possível encontrar formas de desmontar atos de
discriminação e desumanização por meio de uma estrutura emocional sólida.
Da mesma forma, é com base nessa premissa que se considerou adequado o uso da
metodologia das histórias de vida, uma metodologia indutiva de pesquisa desenvolvida com a
realização de entrevistas semiestruturadas. As entrevistas realizadas online, entre os meses de
setembro e outubro de 2021, se estruturam em torno dos três eixos temáticos de análise:
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fronteira; a subjetividade feminina negra e a relação entre corpo e memória, que nos permitem
resgatar e analisar processos construtivos da subjetividade das mulheres afrodescendentes
portuguesas e, ao mesmo tempo, gerar uma troca enriquecedora de experiências sobre as
ferramentas desenvolvidas por essas mulheres para resistir à intersecção entre capitalismo,
racismo e cisheteropatriarcado em seu cotidiano. Ou seja, as histórias de vida representam
uma oportunidade de resgate do lugar de fala (AMARAL, 2005; RIBEIRO, 2017) a partir da
dialética entre centro e periferia que, portanto, permite materializar uma sociologia das
ausências e das emergências (SANTOS, 2017, pp. 230-235; 2020, pp. 67-71).
trabalho de tradução intercultural é enriquecido pela tradição oral (na forma de testemunhos)
em clara contradição com o abstracionismo da ciência moderna que, nas palavras de Amina
Mama (2000, p. 17. trad. nossa), “chegou a simbolizar a última fronteira entre a selvageria e a
civilização” e levou ao silenciamento das manifestações que se opunham a este princípio.
Embora numa perspectiva microssociológica se refira diretamente à experiência
individual das mulheres afrodescendentes, é importante levar em conta que a fronteira entre o
centro e a periferia é, em geral, intensificada pela indefinição que se gera desse
posicionamento fronteiriço. Consequentemente, o relato proporcionado pelas histórias de vida
é ainda mais premente pelo seu potencial de desafiar representações espaciais hegemônicas e,
dessa forma, reivindicar um lugar de fala para denunciar situações de discriminação estrutural
ou, alternativamente, descobrir propostas de cidadania inclusiva.
Com base nesse propósito, é interessante refletir sobre as fronteiras simbólicas que se
projetam nas sociedades europeias e, em particular, no contexto português. A narrativa em
torno das fronteiras evoluiu ao longo do tempo e, neste momento, assistimos à racialização de
migrantes de áreas inicialmente percebidas como sendo parte do Mediterrâneo. No entanto,
não se pode ignorar que, no caso dos afrodescendentes, esse sentimento de estranheza é
consequência do silenciamento de vozes discordantes provocada por uma dissonância entre
memória individual e memória coletiva moldada por um relato histórico oficial, fator
elementar dos regimes de verdade que refere Michel Foucault (2007, pp. 11-12).
Assim, a proposta subjacente às histórias de vida faz referência à existência de um
conceito de negritude transacional capaz de conciliar a racialização e a generificação dos
corpos femininos com o componente diaspórico.
Entretanto, uma sugestão pode ser “explorar os lugares marginais como os melhores espaços
para nos tornarmos no que queremos ser e, ao mesmo tempo, permaneceremos
comprometidos com a luta emancipatória da liberação negra” (HOOKS, 2021, pp. 43-44,
trad. nossa). Em outras palavras, a importância dos relatos das mulheres afrodescendentes se
centra na necessidade de dissociar a experiência negra dos debates antirracistas
exclusivamente masculinos ou, pelo menos, direcionados à solidariedade entre homens e
mulheres negros, desmontando um posicionamento de oposição entre ambos.
Da mesma forma, esse processo de solidariedade também se aplica em relação à
desconstrução do capitalismo e do heteropatriarcado por mulheres negras e brancas, debate
tão ou mais polêmico do que a discussão sobre a diversidade do conceito de negritude.
6
O memoricídio é uma forma de epistemicídio. O termo foi introzido por Mirko Grmek (2018, p. 157) à raiz da
guerra das Balcãs.
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ser observada na reivindicação de lugares de fala que, para além da questão urbana,
representam em sua essência uma questão política estritamente ligada à necessidade criar
recursos hermenêuticos coletivos para produzir conhecimento.
Neste caso, no entanto, o componente geográfico se justifica pelo facto de a periferia
ser racializada ou, ou seja, grande parte da população negra ser periférica e só se deslocar ao
centro por períodos limitados. Por isso, a racialização da cidade de Lisboa será o mote para o
início de um notável percurso associativo que culminou com a criação de um projeto social
próprio e uma breve passagem na vida política do concelho de Loures.
A escolha dos exemplos que serão apresentados a seguir se referem à ideia de casa
como espaço seguro; fonte de conforto e regeneração. O uso metafórico de casa serve, nesse
caso, para simbolizar o espaço da cidade e, nesse sentido, para demonstrar em que medida as
formas de opressão interferem nos mais diversos aspetos do cotidiano das mulheres
afrodescendentes que são privados de uma vida familiar normal. O esbatimento de fronteiras
entre espaço público e privado significa, portanto, que o retorno a casa não é mais o único
lugar onde elas se podem sentir seguras e reconhecidas na plenitude de suas subjetividades.
Por fim, a capacidade emocional surge em um segundo momento justamente para
superar a falta de recursos coletivos que fundamentam a invisibilidade dessas mulheres. Ao
relatar a experiência de Carla e, nesse sentido, denunciar as precárias condições de trabalho
dessas mulheres, que muitas vezes não conseguem fortalecer as bases emocionais de sua casa
e de sua família, para ir trabalhar de madrugada, pretende-se desmontar práticas reiteradas de
injustiça testemunhal que, por sua vez, vão ajudar futuras gerações a resistir contra a
institucionalização heteropatriarcal e racializada do trabalho precário.
De mesma forma, a capacidade emocional atua como um mecanismo de resistência
que nos ajuda a construir espaços seguros para enfrentar as manifestações cotidianas da
discriminação. Nessa perspectiva, podemos considerar essa premissa parte da ressignificação
da territorialidade inspirada nas lutas quilombolas (embora com evidentes diferenças
contextuais) que, em última análise, representam uma reivindicação de sua cultura, de seu
modo de vida e de sua existência.
Em concreto, a escolha dos casos é oportuna pelo seu potencial de anular o
silenciamento causado por repetidas práticas de injustiça epistêmica. Quando pensamos que a
capacidade emocional dá às mulheres afrodescendentes as ferramentas necessárias para não
serem inibidas de progredir em seus objetivos, existirá oportunidade para seu posicionamento
em espaços predominantes brancos.
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Como já mencionado, um elemento muito interessante e que tem sido muito utilizado
na racionalidade artística descolonial é a casa. A metáfora da casa tem sido usada por artistas
tais como Emily Jacir, cujo conceito de casa é usar para tornar visível a diáspora palestina
formada por aqueles que são forçados ao exílio pois foram expulsos dos territórios ocupados
pelos israelenses.7
Da mesma forma, o conceito de casa pode atuar como uma poderosa ferramenta para
delinear relações sociais com implicações étnico-raciais pois se manifesta como metáfora para
as interseções de formas de opressão. De fato, fazendo a análise de um microespaço é
possível induzir um conjunto de pressupostos sobre o comportamento dessas mulheres e, a
partir daí, fazer inferências sobre como a associação entre família e casa poderá ser
relacionada no cotidiano, consolidando processos de subjetividade no plano individual que,
por sua vez, se estendem à família e, em última análise, à sociedade em geral.
Embora parte desses pressupostos se baseie em uma base etnográfica, o ponto de
interesse com relevância para esta pesquisa, se centra principalmente no potencial da casa
para desconstruir práticas estruturais de injustiça epistêmica a partir da ideia de que a casa é,
por excelência, um espaço de regeneração, mas, também, reflexo de relações sociais, daí “a
indissociabilidade da casa e da configuração de casas, entendidas como processo, leva a
investigar como outros domínios, tais como a política, a religião, as relações raciais e
7
Em 2001, Jacir apresentou uma obra comemorativa intitulada “Memorial a 418 aldeias palestinianas que foram
destruídas, despovoadas e ocupadas por Israel em 1948”, consistindo em uma grande tenda de abrigo com os
nomes bordados das 418 aldeias palestinianas arrasadas por Israel. A obra faz parte do catálogo do Museu
Nacional de Arte Contemporânea de Atenas (JACIR, 2004).
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reserva. Desse ponto de vista, o silenciamento das mulheres negras atua por meio da
desarticulação do lar ou, ou seja, a desconstrução do carácter emancipatório da casa como
porto seguro onde as mulheres têm tempo para curar marcas geradas pela opressão do
cotidiano e, a partir daí, estimular a capacidade emocional de seus filhos para resistir à
discriminação cotidiana.
A ideia que defendemos é, portanto, realizada na intenção de desqualificar as mulheres
negras e as futuras gerações afrodescendentes. Pela ilusão racista de que não têm capacidade
para um trabalho digno, as aspirações a uma vida melhor são anuladas pela frustração de um
emprego que permite sobreviver, mas não viver condenando da mesma forma gerações
futuras que, por falta de meios econômicos, são forçadas ao mesmo ciclo de vida.
De fato, o sector doméstico é até hoje profundamente atravessado por classe, raça e
gênero. A racialização e a generificação desse tipo de trabalhos continua a ser amplamente
fomentada pela crença errônea de que existem certos trabalhos que são para certas pessoas.
Não por acaso com facilidade são encontradas muitas mulheres afrodescendentes portuguesas,
as quais, embora com graduação formação superior, não conseguem entrar no mercado de
trabalho e optam pela “estabilidade financeira” de um trabalho na limpeza.
Assim, é fundamental compreender os processos detrás da construção da
desumanização cognitiva. Quando os opressores encontram estratégias para remover o caráter
emancipatório do lar (HOOKS, 2021, pp. 73-74) estamos simplesmente diante da dor gerada
pela violência interseccional, despida de qualquer quadro de resistência. O papel que Carla
desempenhou na mitigação dessa dor metafórica, se traduz, por isso, em um ato de empatia
por todas aquelas mulheres que todos os dias se levantam de madrugada e vão para o centro
da cidade para limpar os grandes escritórios, hospitais e outros lugares. Nesse sentido, Carla
refere:
Nós tínhamos uma realidade com a comunidade migrante que as pessoas não têm
noção (…), mas estas mães (...) normalmente são aquelas mulheres que trabalham de
madrugada para os escritórios estarem limpos (...) para estarem operacionais e abertos
ao público. Agora imagina (...) estas senhoras com crianças e com filhos às 4 da
manhã (...) onde é que elas metem as crianças? (...) Era um facto que nós assistíamos
todos os dias...e nós a sabermos que a mãe saía às 4 da manhã, deixava a criança a
dormir...sozinha em casa...saía para ir limpar e voltava...porque normalmente elas
trabalham em 3-4 sítios, fazem 2 horas num lado, 2 horas no outro (...) e vão
preenchendo assim o dia (...) fora o tempo que elas gastam (...) a energia nas
deslocações e na mobilidade que têm de fazer. E nós começámos a olhar para
isso...bem, nós temos de resolver isto (...) e então começámos a organizar melhor a
associação (entrevista pessoal realizada a 25 de setembro de 2021).
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Nós criámos rotas turísticas, fizemos uma parceria com a universidade de arquitetura
e de geografia de Coimbra e de Lisboa (...) E, nós estudámos um pouco a história
também da estrada militar...trazer outras pessoas para dentro da comunidade (...)
quando tu vais ao bairro do Talude foram os miúdos que criaram a rota deles (...)
quem vem ao Talude o que é que deve conhecer...qual é a nossa história, o que é que
é importante para tu conheceres e saberes? (entrevista pessoal realizada a 25 de
setembro de 2021).
8
Programa governamental nacional que promove a inclusão social de jovens por meio de troca de experiências
que permitem esbater fronteiras entre centro e periferia ao estimular atividades turísticas organizadas pelos
habitantes do bairro e complementadas com atividades recreativas e culturais para os jovens.
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concreta que se aliena de teorias abstratas cujas ambições totalizantes acabam por impedir
formas alternativas de conhecimento. A reconstrução de espaços de representação por meio de
uma estratégia orientada para a subversão de modos de produção epistemológicos
hegemônicos se concebe, assim, em conjunto com a desconstrução de espaços
predominantemente brancos proporcionada pelo exemplo seguinte.
O ser possível não é dizer que todas as pessoas aceitaram o corpo negro. Eu é que me
preparei e consegui com que eu tivesse este espaço. Tive de o conquistar. (...) Alguém
vai ter de abrir caminho. Se nós hoje votamos, foi porque outras mulheres no passado
lutaram para nós hoje podermos votar. (...) O caminho de acesso a plenos direitos foi
conquistado. E então é isto. Nós temos de ocupar e conseguir conquistar esse espaço
enquanto mulheres negras. (...) Isso faz-se com muita capacitação
emocional…muita...isto ninguém fala, mas é trabalhar as emoções (...) porque (...)
qualquer situação com que eu lido que me provoque desconforto. É humano (...) eu
9
O coaching é uma técnica de desenvolvimento pessoal em que o coach orienta a pessoa a atingir um
determinado objetivo. Representa, portanto, uma forma de potenciar a performance de uma pessoa com base em
um objetivo específico, por exemplo, a nível profissional e não só.
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retraio-me (...) eu quero recuar (...) eu quero voltar para a minha bolha (...) para o meu
cantinho (...) onde realmente eu não sinto essa discriminação (...) essa ostracização.
Mas quanto menos eu estiver nos lugares mais tóxicos, mais difícil vai ser essa
ocupação e essa apropriação desse espaço. Isto é como um músculo (...) se eu não
treino o músculo, o músculo vai ficar atrofiado (entrevista pessoal realizada a 2 de
outubro de 2021).
4. Considerações finais
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Referências
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Segundo Adolfo Albán (2012, p. 3, trad. nossa): "A reexistência implica viver em "outras" condições, ou seja,
em processos de adaptação a um ambiente hostil em vários sentidos e a um poder colonial que tentou a todo o
custo reduzi-las e mantê-las na sua condição de "coisas" e/ou mercadorias. É na construção das subjetividades
negras que construo a categoria de reexistência, ou seja, a reelaboração da vida em condições adversas, tentando
superar essas condições para ocupar um lugar de dignidade na sociedade, que coloca a reexistência também no
presente das nossas sociedades racializadas e discriminatórias".
Histórico do artigo:
Submetido em: 14/12/2022 – Aceito em: 19/09/2023
RELACult – Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade
Revista Latinoamericana de Estudios en Cultura y Sociedad | Revue Latino-américaine d'Études sur la culture et la société | 20
Latin American Journal of Studies in Culture and Society
V. 09, nº 02, jul.-dez., 2023, artigo nº 2340 | claec.org/relacult | e-ISSN: 2525-7870
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Histórico do artigo:
Submetido em: 14/12/2022 – Aceito em: 19/09/2023
RELACult – Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade
Revista Latinoamericana de Estudios en Cultura y Sociedad | Revue Latino-américaine d'Études sur la culture et la société | 23
Latin American Journal of Studies in Culture and Society
V. 09, nº 02, jul.-dez., 2023, artigo nº 2340 | claec.org/relacult | e-ISSN: 2525-7870
Partiendo de un enfoque inductivo fundado en la metodología de historias de vida, influenciado por la Escuela de
Chicago y sus métodos antropológicos para investigar comunidades urbanas, con particular énfasis en las
contribuciones de Robert Park y Ernest W. Burgess, y fortalecido en el contexto académico portugués gracias al
trabajo de Elsa Lechner, este artículo se adentra en una reflexión crítica sobre injusticias epistémicas y maneras
de enfrentarse a ellas que cotidianamente experimentan las mujeres afrodescendientes del área metropolitana de
Lisboa. Con este propósito, el artículo se organiza en tres partes complementarias: en la primera, se presenta una
conceptualización introductoria de la injusticia epistémica sobre la base de diversas perspectivas teóricas
feministas y descoloniales. En la segunda, se exploran tres ejes de análisis relevantes en la desvalorización del
conocimiento producido desde la diáspora femenina negra. La tercera parte, a la luz de estudios de caso basados
en historias de vida de mujeres afrodescendientes en Portugal, visibiliza ejemplos concretos de estrategias de
resistencia epistemológica y política contra los efectos adversos de la injusticia epistémica, particularmente con
relación a la cuestión racial y sexual. En las consideraciones finales, el trabajo concluye que la injusticia
epistémica condiciona la formación de procesos de subjetividad. A pesar de ello, las voces de los grupos
estructuralmente racializados y discriminados, como las mujeres afrodescendientes, pueden potenciarse a través
de sus propias prácticas de resistencia política. Estas prácticas permiten a estas mujeres recuperar sus vidas y la
libertad de definirse a sí mismas.
Palabras claves: Injusticia epistémica; Mujeres afrodescendientes; Historias de vida; Epistemologías del Sur.
Au moyen d'une approche inductive basée sur la méthodologie des récits de vie, influencée par l'école de
Chicago et ses méthodes anthropologiques de recherche sur les communautés urbaines, en particulier les
contributions de Robert Park et d'Ernest W. Burgess, ainsi que par les travaux d'Elsa Lechner dans le contexte
universitaire portugais, cet article propose une réflexion critique sur les injustices épistémiques et les moyens d'y
faire face, vécues au quotidien par les femmes d'ascendance africaine dans la région métropolitaine de Lisbonne.
À cette fin, l'article est structuré en trois parties complémentaires : dans la première partie, une conceptualisation
introductive de l'injustice épistémique est présentée sur la base de diverses perspectives théoriques féministes et
décoloniales. La deuxième partie explore trois axes d'analyse pertinents dans la dévaluation des connaissances
produites par la diaspora féminine noire. La troisième partie, qui examine des études de cas basées sur les récits
de vie de femmes d'ascendance africaine au Portugal, offre des exemples concrets de certaines stratégies contre-
hégémoniques de résistance épistémique et politique face aux effets négatifs générés par l'injustice
épistémologique, en particulier en ce qui concerne les questions raciales et sexuelles. Dans ses observations
finales, la recherche conclut que l'injustice épistémique conditionne la configuration des processus de
subjectivité. Néanmoins, les voix des groupes structurellement racialisés et discriminés, tels que les femmes
afro-descendantes, peuvent être renforcées par leurs propres pratiques de résistance politique. Ces pratiques
permettent à ces femmes de se réapproprier leur vie et la liberté de se définir elles-mêmes.
Mots-clés: Injustice épistémique; Femmes d'ascendance africaine; Histoires de vie; Épistémologies du Sud.
Abstract
Through an inductive approach based on the methodology of life stories, influenced by the Chicago School and
its anthropological methods for researching urban communities, with a particular emphasis on the contributions
of Robert Park and Ernest W. Burgess, and reinforced in the Portuguese academic context by the work of Elsa
Lechner, this article delves into a critical reflection on epistemic injustices and ways of coping with them that are
experienced on a daily basis by women of African descent in the Lisbon metropolitan area. To this end, the
article is organised into three complementary parts: in the first part, an introductory conceptualisation of
epistemic injustice is presented based on various feminist and decolonial theoretical perspectives. The second
part explores three relevant axes of analysis in the devaluation of knowledge produced by the black female
diaspora. The third part, considering case studies based on the life stories of women of African descent in
Portugal, offers concrete examples of some of the counterhegemonic strategies of epistemic and political
resistance against the adverse effects generated by epistemological injustice, particularly in relation to racial and
sexual questions. In its final remarks, the research concludes that epistemic injustice conditions the configuration
of subjectivity processes. Despite this, the voices of structurally racialised and discriminated groups, such as
Afro-descendant women, can be empowered through their own practices of political resistance. These practices
allow these women to reclaim their lives and the freedom to define themselves.
Keywords: Epistemic injustice; Women of African descent; Life stories; Epistemologies of the South.
Histórico do artigo:
Submetido em: 14/12/2022 – Aceito em: 19/09/2023