Artaud No Mexico
Artaud No Mexico
Artaud No Mexico
São Paulo
2015
2
(versão corrigida)
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
História Social, do Departamento
de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de
Mestre em História.
São Paulo
2015
3
Resumo
Este trabalho propõe uma análise da viagem do artista francês Antonin Artaud
ao México no ano de 1936. Por meio das correspondências e dos textos de Artaud
produzidos neste país, pretende-se problematizar a sua concepção sobre a Revolução
Mexicana e sobre os seus desdobramentos políticos e culturais durante os anos 1930, as
suas ideias sobre as culturas indígenas e a sua relação com a realidade artística-
intelectual mexicana.
Parte-se da premissa de que o olhar de Artaud para o México foi formado por
um ambiente intelectual e artístico marcado pelo Surrealismo, por um sentimento de
crise da civilização europeia e por uma busca por formas de vida mais integradas entre o
homem, a natureza e a arte.
Artaud chega ao México em fevereiro de 1936 e permanece no país durante oito
meses. Segundo suas próprias palavras, fora em busca do que ele denominaria de
“esoterismo mexicano” – “o único que se apóia ainda sobre o sangue e a magnificência
de uma terra cuja magia só os imitadores fanatizados da Europa podem ignorar”.
Durante a estadia, antes de ir à “terra dos Tarahumaras”, proferiu conferências
na Escola Nacional Preparatória e escreveu artigos em jornais mexicanos a respeito do
teatro europeu, do teatro mexicano, do movimento surrealista francês, das suas
expectativas com relação à cultura indígena mexicana e da sua busca existencial como
artista. No entanto, a sua visita ao México se dá justamente no período pós-
revolucionário, durante o polêmico e marcante governo de Lázaro Cárdenas, no qual há
uma radicalização da querela entre os artistas denominados universalistas e aqueles
conhecidos como nacionalistas. Os primeiros, ao defenderem uma arte moderna e
universal, preconizavam a arte europeia como matriz – aspecto que Artaud repudiava –
e os segundos, ao afirmarem uma arte nacional, pura, utilizavam-se da cultura indígena
como elemento unificador da nação, mas sem o respeito pela magia e pelo esoterismo
indígena que Artaud tanto pregava. Daí as hipóteses para a falta de repercussão sobre o
artista francês durante a sua permanência no país.
4
Artaud também projetou sobre o México percepções que ele nutria a respeito do
teatro. Idealizador do chamado “Teatro da Crueldade”, Artaud reconheceu no ritual do
peyote praticado pelos índios tarahumaras no México uma vivência que se aproximava
do seu projeto teatral.
Abstract
This work proposes an analysis about the Mexico trip realized by the French
artist Antonin Artaud in 1936. With Artaud’s correspondences and texts written in this
country, it intends to discuss his conception about Mexican revolution and its political
and cultural results during the 1930’s years, his ideas about the Indian cultures and his
relation with the Mexican artistic intellectual reality.
We have the premise that Artaud’s look to México was formed by an intellectual
and artistic surrounding marked for the Surrealism, by an European civilization’s crisis
feeling and by a search for life’s forms more integrated between man, nature and arts.
Artaud arrived in México in February of 1936 and stayed in the country during
eight months. With his own words, he was searching for what he called by “Mexican
esoterism” – “the only one that still rest on the blood and the magnificent of a land
whose magic only the fanatics imitators from Europe can ignore”.
During his permanence, before going to “Tarahumara’s land”, Artaud was the
speaker for conferences in the National Preparatory School and wrote articles for the
Mexican newspapers about the European theatre, the Mexican theatre, the French
surrealist movement and his Mexican Indian culture expectation. He also wrote about
his own experience about his existential search as an artist. However, his Mexico visit
had been done in the post-revolutionary period, during the polemic and notorious
Lázaro Cárdena’s government, when there was a radicalization of the debate between
the artists known as universalists and other as nationalists. The first ones, when
defended a modern and universal art, commended the European art as matrix – aspect
repudiated by Artaud – and the second ones, when asseverated a national art, pure, had
5
utilized the Indian culture like nation’s unifier element, but without the respect for the
magic and for the Indian esoterism that Artaud always had been preached. These aspects
could integrate the hypothesis that explains the lack of repercussion about the French
artist during his stay in the country.
Artaud also projected in Mexico the perceptions that he created about the
theatre. The artist was the idealizer of the “Cruelty Theatre”, and he recognized in the
Peyote’s ceremony practiced by the Tarahumara’s Indians in Mexico an environment
close to his theatrical project.
6
Agradecimentos
Sumário
Introdução 08
16
Capítulo 01: Antonin Artaud visita o México
O Surrealismo 81
Bibliografia 170
8
Introdução
Antonin Artaud, nascido em 1896 na França, foi ator, dramaturgo, poeta, pintor e
escritor. Apesar de ter circulado por diversas áreas, esse artista foi, sobretudo, um
homem do teatro. Como ator e escritor, Artaud buscaria uma nova síntese entre o físico
e o espiritual – unidade, essa, que não encontrava na sociedade europeia da
contemporaneidade. Para ele, a cultura do Ocidente havia perdido o sentido místico,
mágico da vida, o que impossibilitava uma ligação com o cosmos, com o divino. Dessa
maneira, o teatro como uma manipulação das forças mágicas seria uma forma de
renascer, de se reencontrar. Teatro e vida não se distinguiam em sua concepção artística.
Nesse sentido, o artista, que fora participante do movimento surrealista francês
durante parte da década de vinte, viajou ao México em 1936 em busca do que ele
denominaria de “esoterismo mexicano” – “o único que se apóia ainda sobre o sangue e a
magnificência de uma terra cuja magia só os imitadores fanatizados da Europa podem
ignorar1”.
Antonin Artaud chega ao porto de Veracruz no dia 7 de fevereiro de 1936,
depois de uma escala de alguns dias em Havana. Nos dias 26, 27 e 29 desse mesmo
mês, proferiu três conferências na Escola Nacional Preparatória, na Cidade do México.
Produziu também durante a sua estadia vinte e três artigos, muitos deles publicados no
periódico El Nacional2. No dia 31 de outubro do mesmo ano, embarcou novamente em
Veracruz a fim de voltar para a Europa. Essa viagem, afirma Luis Cardoza y Aragón,
1 SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin. México y Viaje al país de los tarahumaras.
México: Fondo de Cultura Económica, 1975, p. 122.
2
O periódico El Nacional surgiu no ano de 1929 como órgão de comunicação do Partido Nacional
Revolucionário (PNR). Até 1931, denominava-se El Nacional Revolucionario, e tinha como lema “Diário
Político y de Información”. A partir desse ano, o jornal passou a chamar-se apenas El Nacional e seu
lema começou a ser “Diario Popular”. Até o governo de Manuel Ávila Camacho (1940-1946), o periódico
continuou sendo órgão exclusivo do partido. A partir desse período, ele tornou-se porta-voz do governo.
9
“impressionou Artaud até o fim de sua vida. Doze anos depois de ter escrito suas
primeiras páginas no México, compõe ‘Tutuguri’ (1948), um mês antes de sua morte”.3
Esses artigos e os relatos a respeito da sua visita aos índios tarahumaras, que
serão analisados aqui em seu todo como produtos de uma viagem, se encontram no livro
México y Viaje al país de los tarahumaras4, organizado por Luis Mario Schneider5,
sendo essa a principal fonte de minha pesquisa de mestrado, que pretende refletir a
respeito das ideias de Antonin Artaud no/sobre o México, nelas buscando os seus
objetivos, os seus ideais e os seus propósitos.
Além dos textos contidos nesta coletânea, busquei também outros textos e
correspondências de Antonin Artaud que possuíam relação com o México em suas
Ouevres Complètes6, os quais não constavam na compilação mexicana.
Uma grande desvantagem com relação às fontes estarem compiladas num livro é
o fato de que não poderei analisar o suporte material no qual esses textos foram
publicados na década de 1930 no México. A publicação numa compilação não me
permite fazer uma reflexão que dê conta do grande trabalho que é investigar periódicos.
Essa falta me remete ao texto de Tânia Regina de Luca, “História dos, nos e por meio
dos periódicos”:
3
CARDOZA Y ARAGÓN, Luis. Artaud en México. In: Revista Plural, 19. Abril de 1973, p. 12.
4
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin. México y Viaje al País de los tarahumaras.
México: Fondo de Cultura Económica, 1975.
5
Luis Mario Schneider (1931-1999) foi pesquisador, crítico, poeta, romancista e tradutor. Nascido na
Argentina, mudou-se para o México em 1960. Graduado em humanidades na Universidade de Córdoba,
Argentina (1955), tornou-se bacharel (1962) e Doutor (1969) em Letras pela UNAM, México. Foi
professor universitário em importantes universidades da Argentina, México e EUA e colaborador em
destacadas publicações.
6
ARTAUD, Antonin. Thévenin, Paule (org). Ouevres complètes. Paris: Gallimard. 26 tomos.
7
De LUCA, Tânia Regina. “História dos, nos e por meio dos periódicos”. In: Carla Pinsky (org.). Fontes
históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 132.
10
Dessa forma, não será possível “historicizar” a fonte original dos artigos, já que
não terei contato com os periódicos nos quais eles foram publicados. Em compensação,
tenho consciência da importância destes escritos no México tanto para os mexicanos
como para a obra posterior de Artaud, já que mereceram um livro que trata
especialmente destes textos.
A obra a ser estudada, organizada e publicada em 1984 por Luis Mario
Schneider, como já comentado, está dividida em duas partes: sob o título de México,
constam as conferências e os ensaios escritos por Artaud durante sua estadia no México.
Esse título é uma menção à primeira recompilação de alguns textos de Artaud,
publicados principalmente no jornal El Nacional, realizada por Luis Cardoza y Aragón.8
Com o título de “Documentos complementarios del viaje a México” – adendo à
primeira parte –, estão reunidos textos a respeito do México escritos em fase anterior à
ida de Artaud ao país e cartas cujo assunto está relacionado a essa viagem. Já na
segunda parte, nomeada de Viaje al país de los tarahumaras, estão reunidos os textos
que tratam dessa visita específica aos tarahumaras, nas serras de Chihuahua. Essa
segunda parte do livro já havia sido publicada em 1975 na Colección SePStentas da
Secretaría de Educación Pública.
Abaixo, constam em tabela os textos de Antonin Artaud escritos e apresentados
durante a sua viagem para o México, além daqueles cujo assunto é o México,
produzidos antes e após os oito meses passados no país, com datas e informações sobre
a publicação ou a ausência dela. :
8
Em carta a Paule Thévenin (06/01/1964), responsável pelas obras completas de Artaud na França, Luis
Cardoza y Aragón comenta que “A Universidade Nacional Autónoma do México editou os textos de
Artaud, recompilados por mim em um volume que leva o nome México. O prólogo e as notas são de
minha autoria. Os textos são os publicados por Artaud no México. Encontrei-os em El Nacional, Revista
de la Universidad, e no El Boletín Carta Blanca”. BRADU, Fabienne. Artaud, todavía. México, Fondo de
Cultura Económica, 2008, p. 60.
11
9
Antonin Artaud possuiu, durante a sua vida, diversas passagens por hospitais psiquiátricos e asilos. Já
em 1915, passa pela primeira vez por um sanatório, em La Rougière, perto de Marselha. Entre 1916 e
1918 passa temporadas em sanatórios e estações de cura e, no fim de 1918, vai para o sanatório de Le
Chanet, Suíça. Em dezembro de 1932, vai para um hospital com fins de desintoxicação. No início de
1937, pouco após sua volta do México, passa por outro tratamento de desintoxicação. Em setembro do
mesmo ano, durante estadia em Dublin, é entregue às autoridades francesas sob prisão e em camisa de
força. Inicia-se, então, um longo período de internações em hospícios e asilos franceses, até sua chegada
ao asilo de Rodez, em fevereiro de 1943, onde é colocado sob os cuidados do dr. Gaston Ferdière. Em
março de 1946, é liberado deste asilo e passa a viver no hospital para doentes mentais do Dr. Delmas, em
Ivry, onde é encontrado morto em março de 1948.
14
10
Para informações a respeito de suas influências no teatro contemporâneo, ver, por exemplo, o capítulo
5 – “Das repercussões imediatas à Fecundidade Póstuma” – da seguinte obra: VIRMAUX, Alain. Artaud
e o teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1990.
11
ROSENFELD, Anatol. Texto e Contexto I. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2006.
15
Visto em parte de sua vida como um “alienado”, Antonin Artaud deve ser
tratado como uma figura especial dentro do cenário da arte moderna que será aqui
discutido. Entretanto, dentro das limitações desta pesquisa de mestrado, muitas vezes
isso não foi possível devido ao viés mais histórico do que biográfico aqui almejado.
Artaud é tratado, portanto, mais a partir daquilo que, historicamente, o torna uma figura
proeminente da arte da história contemporânea do que dentro de suas próprias
singularidades biográficas.
12
ARTAUD, Antonin. Van Gogh – o suicida da sociedade. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007, p. 32.
16
momento. No entanto, disse-lhe também que sua morte estava próxima, e que morreria
por causa de um acidente após encontrar o que buscava. Assim, afirmou que a sua
evolução neste mundo já chegava ao fim. Podemos saber destes fatos por estarem
descritos numa carta16, de abril de 1936, a Mademoiselle Marie Dubuc, na qual ele
pergunta à sua correspondente a opinião da mesma com relação a essas previsões.
Retornando aos preparativos de Artaud em período anterior à sua viagem, Luis
Mario Schneider nos informa também que há rascunhos de textos de Artaud cujo
assunto é o México já em 1935. Uma destas anotações é provavelmente aquela
intitulada de “O México e a civilização”17.
Neste texto, Artaud já aponta algumas de suas críticas à Europa contemporânea e
algumas de suas ideias a respeito do México, as quais aparecerão novamente em artigos
e correspondências posteriores. Em primeiro lugar, ele tece uma crítica ao elogio do
progresso, afirmando que, na medida em que o progresso se desenvolve, o céu passa a
escapar das mãos e a expressão torna-se nada mais do que uma imagem sem
consequência para a realidade. Em seguida, ele desenvolve uma crítica à ideia de cultura
adotada pela sociedade de seu tempo: para ele, uma civilização onde só participam da
cultura aqueles chamados de cultivados é uma civilização que rompeu com as fontes
primitivas de inspiração. Isso seria o reconhecimento de uma dualidade da cultura, uma
dualidade da realidade – aspecto repudiado pelo artista francês. Para Artaud, uma
civilização para a qual há os corpos de um lado e o espírito de outro arriscaria
dessamarrar os laços que unem essas duas realidades inseparáveis.
Nesse sentido, os deuses do México, que nunca perderam contato com a força,
pois seriam eles mesmos as forças naturais em atividade, são os fornecedores da
esperança que Artaud nutria na civilização mexicana. O artista francês estava
interessado, portanto, nessa magia unificadora presente no México. Para ele, se a magia
era “uma comunicação constante do interior ao exterior, do ato ao pensamento, da coisa
à palavra, da matéria ao espírito”, seria possível dizer que, tendo perdido essa forma de
“inspiração fulminante, de iluminação nervosa”, era necessário fortacê-la novamente
nas fontes ainda vivas e não alteradas – caso da civilização mexicana.
Em um fragmento da carta destinada ao Ministro de Relações Estrangeiras, de
agosto de 193518, Artaud sugere que pretende liberar todas as formas de cultura
16
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 311, Tomo VIII.
17
Ibidem, p. 127-132, Tomo VIII.
18
Ibidem, p. 291-293, Tomo VIII.
18
primitiva e mágica que essa civilização pode comportar – do totemismo, passando pelas
hierarquias astrológicas, os ritos de água, do fogo, do milho e das serpentes, até a cura
pela música e pelas plantas, as aparições nas florestas etc. Essa seria, provavelmente,
uma justificativa para a sua viagem ao país latino-americano.
Já num fragmento da carta ao Ministro de Educação Nacional, de agosto de
19
1935 – provavelmente a carta que fizera possível que Artaud conseguisse o título de
missão tão almejado, conforme veremos posteriormente – o artista francês justifica de
forma bastante poética o seu interesse no México. Ele argumenta que o segredo da alta
magia mexicana está na força de signos criados por aqueles que na Europa
denominaríamos hoje de artistas, mas que nas civilizações evoluídas, que não perderam
o contato com as fontes naturais, não são mais do que os executantes e os profetas de
uma palavra na qual periodicamente o mundo vem matar a sede. O México ainda tem
que nos ensinar “o segredo de uma palavra e de uma língua onde todas as palavras e
todas as línguas se reúnem em uma só”.
Nesse sentido, Artaud comenta que se a civilização que está em via de nascer no
México não chegar a tomar consciência dessa multitude de expressões aglomeradas em
torno de um centro único, ela não reencontrará mais que um fragmento de sua
verdadeira tradição.
Ele ainda sugere, já se aproximando daquilo que pensava a respeito dos
acontecimentos recentes no México, que seria necessário libertar as civilizações
mexicanas não apenas materialmente, mas culturalmente também. Por fim, Artaud faz
um interessante comentário a respeito de sua opinião sobre as antigas sociedades
mexicanas: ele acredita que os velhos mexicanos não separam a civilização da cultura, e
a cultura de um conhecimento pessoal, repartido pelo organismo inteiro. Seria nos
órgãos e nos sentidos que os mexicanos, como todas as “raças puras”, portam a sua
cultura, e em última instância se encaminham a um refinamento da sensiblidade.
Em carta a Jean Paulhan, escritor, crítico literário e editor francês, de julho de
1935, ou seja, em período anterior à carta comentada acima, Artaud afirma ter feito
investigações sobre o México com Robert Ricard20, que acabara de retornar deste
mesmo país, tendo feito um estágio na École Française de México.
19
Ibidem, p. 293-295, Tomo VIII.
20
Robert Ricard, pesquisador que publicou, em 1933, um trabalho sobre a “conquista espiritual do
México”, fora aluno de Paul Rivet (1876-1958), famoso etnólogo francês, fundador do Museu do Homem
(1937), em Paris. Em 1901, Rivet foi ao Equador em missão científica, onde permaneceu durante mais de
seis anos. Publicou Ethnographie ancienne de l'Équateur (1912-1922), em dois volumes, e Les Origines
de l'homme américain (1943).
19
O professor Rivet para quem Robert Ricard falou sobre mim disse:
“Não há dinheiro, ninguém tem dinheiro”. Então tenho um projeto de
conferências que poderia dar no México e em outras cidades. Faria
estas conferências sobre as relações que o teatro tem com a civilização
e a cultura, que é, me parece, de toda atualidade.
[...]
[...] fui expor meu projeto à Paris Soir e me vi com um dos diretores
que me pareceu maravilhado (não exagero nesse sentido), e que me
disse: “Consiga uma missão mais ou menos oficial e Paris Soir lhe
encarregará de uma grande reportagem sobre o México e lhe dará
antecipadamente uma soma de 5 a 10 mil francos”. Se você puder
fazer isso, e eu sei que pode, obtenha de Jean Marx que lhe confira o
título oficial do qual lhe falo, dizendo-lhe que algo importante, algo
sensacional pode sair de tudo isso. 23
Ele justifica o contato travado com Jean Paulhan ao comentar que fora
informado de que as melhores pessoas a serem procuradas para conseguir um título de
missão seriam Jean Paulhan e Jean Marx. Assim, Artaud pede ajuda ao editor francês
argumentando que essa será talvez a possível forma de encontrar uma função social para
a sua própria vida. Depois dessa carta, Artaud escreve novamente a Jean Paulhan com a
mesma solicitação em agosto de 1935.
Em setembro do mesmo ano, Artaud finalmente consegue o título de missão
fornecido pelo Ministro de Educação Nacional. A partir daí, resta-lhe conseguir capital
21
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 235.
22
Antonin Artaud insistiu em seus textos a respeito de um movimento a favor das civilizações indígenas
antigas presente tanto na juventude europeia como no México. Vide, por exemplo, o texto “Primer
contacto con la revolución mexicana” (Ibidem, p. 138-144). Essa ideia de Artaud será questionada
posteriormente nesta dissertação.
23
Ibidem, p. 235-236.
20
para o seu transporte e estadia. Jaime Torres Bodet, importante intelectual mexicano e,
de 1935 a 1936, primeiro-secretário da embaixada do México na França, oferece a
Artaud um grande auxílio, enviando cartas para escritores mexicanos a fim de que o
recebessem e facilitassem a publicação de seus textos em jornais nacionais e também
para que o artista conseguisse dar suas conferências. Além disso, Torres Bodet fez com
que Artaud não precisasse pagar o visto de entrada para o México. Foi também a este
intelectual mexicano, como representante de seu país na França, que Artaud enviou
exemplares de “O Teatro e a Peste” (publicado em outubro de 1934) e “Encenação e
Metafísica” (fevereiro de 1932). Em carta à senhora Paulhan (Setembro/1935), Artaud
informa:
24
Ibidem, p. 246.
25
Em carta a Jean Paulhan: “[...] obtive igualmente com uma simples carta à Companhia Transat, e
passando por cima de todas as pessoas que se dizem influentes e que não fizeram nada, uma redução de
50%. Isso fez com que minha viagem fosse possível.” (Ibidem, p. 149). Em carta anterior a Jean Ballard
(15/12/1935), Artaud solicitou uma passagem (de graça ou com algum desconto) na Transat para o
México. Não é possível saber se foi esse pedido que obteve resultados positivos. In: THÉVENIN, Paule
(org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 415-416, Tomo VIII.
26
Segundo Fabienne Bradu, “Jean Louis Barrault (1910-1994), ator e diretor de teatro francês. Recebeu
uma profunda influência de Antonin Artaud no que tange à sua concepção do ato teatral como rito.
Antonin Artaud aplaudiu e resenhou o primeiro espetáculo montado e escrito por Jean Louis Barrault
[...]”. (BRADU, Fabienne. op. cit, p. 51).
21
Exteriores, outra para o ministro de Belas Artes e outras mais para os periódicos
mexicanos. Artaud, portanto, planeja com detalhes sua ida ao México.
Florence de Mèredieu informa que, pouco antes de partir para solo mexicano,
Artaud escreve “O Pássaro-Trovão”27, publicado em novembro de 1935 em La Bête
noire. Segundo a autora,
27
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 407-414, Tomo VIII.
28
MÈREDIEU, Florence de, op. cit, p. 530.
22
29
Ver nota de rodapé 09.
30
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 133-136, Tomo VIII.
23
Para Artaud o termo humanismo não significaria nada mais que a abdicação do
próprio homem. Com o surgimento do espírito analítico, o homem passaria a dissecar a
natureza como um cirurgião disseca um órgão. Dessa forma, o homem perde o contato
com a natureza, pois seria por meio do instinto que se tornaria possível penetrar na alma
da Natureza. O artista também afirma que, todas as vezes em que existe a reaparição da
racionalidade, um mundo estaria prestes a desaparecer.
Por fim, ele conclui o artigo afirmando que a luta, naqueles tempos, se
localizava entre o saber ocidental, preciso e morto, e o saber confuso, mas vivo de uma
existência eterna, do monismo oriental.
Essas ideias a respeito do humanismo reaparecerão em seus textos no México,
mas com uma concepção diversa dessa colocada aqui neste artigo, como veremos mais
adiante.
No dia 7 de fevereiro, Artaud desembarca no porto de Veracruz, México. Com
relação aos testemunhos sobre a sua viagem, Luis Cardoza y Aragón, que se encontrava
com Artaud todos os dias no Café Paris, no artigo Artaud en Mexico, relata:
31
CARDOZA Y ARAGÓN, op. cit, p. 12.
32
BRADU, Fabienne, op. cit, 2008, p. 09.
24
pintora María Izquierdo, artista sobre a qual Artaud realizará críticas positivas a respeito
do trabalho, “primitivista”.
No artigo “La pintura de María Izquierdo”, publicado na Revista de las revistas
em agosto de 1936, Artaud afirma que foi ao México com a intenção de observar a arte
verdadeiramente mexicana. No entanto, o que constatou é que abundavam as
manifestações artísticas que copiavam a arte europeia.
Nesse sentido, Artaud aponta que a pintura de María Izquierdo, apesar de conter
em certas obras uma influência da arte moderna europeia, é uma exceção na arte
mexicana, pois contém uma “inspiração verdadeiramente indígena”.33
Artaud comenta que esperava chegar ao México e perceber uma ressurreição
desta arte baseada no espírito índio, mas o que encontrou foi o fim desta.
O autor afirma que dá preferência às obras de María Izquierdo nas quais não
percebe a influência da arte moderna europeia. Ao final, aponta que
O artista francês travara contato também com o pintor Federico Cantu na casa
de Inés Amor, diretora da Galeria de Arte Mexicano, frequentada por Rivera, María
Izquierdo, Siqueiros, Tamayo, Orozco.
No México, ele viveria em muitos lugares, quartos alugados, espaços precários,
tais como um famoso bordel, “a casa da Ruth”. Ele também passaria um tempo em casa
de María Izquierdo.
Em suas cartas no México, mostra-se muito preocupado com o pouco dinheiro
que possui, mas sempre comenta que, em sua opinião, a viagem está predestinada a dar
certo. Muitas de suas cartas durante a viagem possuem comentários a respeito das
dificuldades financeiras de Artaud. Ele chega a pedir dinheiro emprestado nas
correspondências (31/01/1936; 17/06/1936; 10/07/1936) a Jean Louis Barrault, o qual,
33
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 202.
34
Ibidem, p. 205.
25
segundo Luis Cardoza y Aragón, foi “um dos amigos que mais de perto lhe conheceu
nesta época”35:
Peço então, sem mais esperar, faça um esforço para enviar o que
puder. Pode ser o que você consiga reunir entre amigos ou o que me
envie diretamente. Já não tenho vergonha de lhe pedir pois minha
situação atual é grave.36
35
CARDOZA Y ARAGÓN, op. cit, p. 12.
36
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin., op. cit, p. 269.
37
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 308-309, Tomo VIII.
38
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 30.
26
Além disso, informava os trabalhos como ator e diretor produzidos por Artaud
no teatro e no cinema e a sua trajetória como escritor, com textos publicados por
revistas francesas. Logo após essa apresentação, havia um resumo/descrição do que
seria cada uma das conferências a ser apresentada – “Surrealismo y revolución” (26 de
fevereiro), “El hombre contra el destino” (27 de fevereiro) e “El teatro y los dioses” ( 29
de fevereiro).
Esta apresentação de Artaud nos faz questionar sobre a autoria de tal texto. Seria
o próprio artista que teria feito essa introdução a respeito de seu trabalho? Raquel Tibol,
no artigo “Remedios Varo: apuntamientos y testimonios”40 afirma que esses textos de
publicidade das conferências foram escritos pelo próprio autor. A partir disso, é possível
sugerir que o anúncio seria uma tentativa de legitimação do próprio artista. No entanto,
o texto inicial, que insiste em destacar a figura de Artaud na Europa, em valorizar as
suas ações, pode ter sido escrito por terceiros, já que o tom do texto, cheio de
pormenores, não parece ser de autoria de Artaud.
O artista francês passa a sobreviver com o dinheiro conseguido por meio das
conferências e dos artigos publicados em jornais. Contudo, tal como afirma Luis Mario
Schneider, sua intenção não era apenas ganhar dinheiro, mas também, possuía a
pretensão de explicar à juventude mexicana o que era o Surrealismo, o quão danoso era
o marxismo e, sobretudo, o prejuízo cultural que teria o México se sua juventude
assumisse os valores europeus. Segundo Florence de Mèredieu, sua visão a respeito do
Surrealismo, movimento do qual já estava distante há uma década, diferia
completamente daquela que seria apresentada por André Breton dois anos depois no
México, o que provavelmente conferiu um mal-entendido que justificaria o aparente
fracasso das conferências de Artaud no meio universitário.41
Em carta a Jean Paulhan (21/05/1936), ele escreve:
39
Ibidem, p. 31.
40
TIBOL, Raquel. “Remedios Varo: apuntamientos y testimonios”. Disponível em:
http://www.jornada.unam.mx/2013/09/29/opinion/a03a1cul.
41
MÈREDIEU, Florence de, op. cit, p. 539.
27
42
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 264. Em carta posterior a Gaston
Gallimard, de julho de 1936, Artaud informa que participa naquele período dos “principais jornais da
América Latina”: Nacional Revolucionário (México), Gropos e Carteles (Cuba) e Nación (Argentina). In:
THÉVENIN, Paule. ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 207-208, Tomo V.
43
O governo de Lázaro Cárdenas foi marcado por uma ampla reforma agrária: ao final desse período
haviam sido distribuídos quase 20 milhões de hectares de terras a 771 640 famílias camponesas agrupadas
em 11 347 ejidos. Dessa forma, Cárdenas tornou-se o presidente que mais terras distribuiu na história do
México. Além disso, destaca-se nesse período a unificação do movimento operário em torno da
Confederação de Trabalhadores do México (CTM – 1936). Pelo fato de ter sido criado pelo próprio
Estado, este agrupamento não pôde ultrapassar os limites impostos pelo governo. Apesar disso, os
trabalhadores obtiveram direitos que anteriormente não seriam possíveis: os salários, por exemplo,
deveriam ser fixados não mais pelo pêndulo da oferta e da procura, mas, sim, pelas condições que cada
empresa possuía de pagar aos seus funcionários mantendo a margem do lucro. Isso foi um dos motivos
para a nacionalização do petróleo no México: a fim de evitar a grande greve contra toda a indústria
petrolífera, os tribunais do trabalho primeiro e a Suprema Corte declararam que as empresas deveriam
aumentar salários e benefícios, o que foi rejeitado pelas mesmas. Diante do impasse, o governo mexicano
decretou, em março de 1938, a nacionalização da indústria petrolífera. Outras duas grandes greves do
período cardenista – a dos ferroviários e dos sindicatos camponeses locais de La Laguna – também
levaram à expropriação das empresas. Outra marca do governo de Cárdenas foi a valorização de políticas
nacionalistas nas artes e na cultura. Ver, por exemplo: CAMÍN, Héctor Aguilar. MEYER, Lorenzo. À
sombra da Revolução Mexicana: História Mexicana Contemporânea, 1910-1989. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2000; MEDIN, Tzvi. Ideología y praxis política de Lázaro Cárdenas.
México, Siglo XXI, 1980; VAUGHAN, Mary Kay. La política cultural en la Revolución – Maestros,
campesinos y escuelas en México, 1930-1940. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 2000.
28
Ela foi traduzida por José Ferrel, intelectual mexicano responsável por uma tradução de
Saison en Enfer, de Rimbaud, o qual foi elogiado por Artaud em carta para Jean
Paulhan, em maio de 1936. Provavelmente, Ferrel traduziu também outros textos de
Artaud durante sua estadia no México. Outros intelectuais responsáveis por traduzir os
textos do artista francês foram José Gorostiza – na época, secretário particular de Hay,
Secretário de Relações Exteriores, o qual afirma Luis Cardoza y Aragón ser tradutor da
maioria dos textos – Samuel Ramos, Xavier Villaurrutia e Luis Cardoza y Aragón,
poeta guatemalteco e, conforme já assinalado, organizador da compilação México.
Alberto Ruz Lhuillier, arqueólogo e descobridor da tumba de Palenque, também foi
tradutor de Artaud, tornando-se uma das testemunhas do nosso artista no México.
Luis Cardoza y Aragón relata que os textos
44
CARDOZA Y ARAGÓN, Luis, op. cit, p. 13.
45
BRADU, Fabienne. op. cit, p. 20. (Apesar disso, sabemos que as conferências de Artaud foram
enviadas em sua versão em francês para Jean Paulhan a fim de que fossem publicadas também na Europa,
tal como Artaud explicita numa carta já comentada cuja data é de 21/05/1936. THÉVENIN, Paule.
ARTAUD, Antonin, op.cit, p. 204-207, Tomo V).
46
Em carta de Paule Thevénin (22/10/1955), responsável pelas Obras completas de Artaud na França,
para Luis Cardoza y Aragón, ela afirma que “Surrealismo y Revolución”, “El hombre contra el destino” e
“El teatro y los dioses” foram conferências realizadas graças à Alianza Francesa. No entanto, acredito que
a tese de Luis Mario Schneider seja mais correta, já que há um artigo de jornal afirmando serem estas
conferências pronunciadas na Escola Nacional Preparatória. (BRADU, Fabienne. op. cit, p. 54).
29
47
MÈREDIEU, Florence de, op. cit, p. 544-545.
48
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 48.
49
Em carta a Paule Thévenin, Luis Cardoza y Aragón afirma que o texto proferido no Congresso de
Teatro Infantil está em mãos de Roberto Lago. Contudo, o poeta responsável pela obra de Artaud no
México afirma que não havia conseguido uma cópia do texto, o que torna essa conferência desconhecida
para o autor e para o grande público. (BRADU, Fabienne, op. cit, p. 92).
50
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 310, Tomo VIII.
51
VIRMAUX, Alain. Artaud e o teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2009, p. 53-57.
52
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 308-309, Tomo VIII.
30
53
Idem.
54
Em carta, já comentada anteriormente, destinada a René Thomas, de 02 de abril de 1936, Artaud
informa que partirá numa missão pelo interior do país que pode ser perigosa e que, em seguida a isso,
pretende voltar para a França. (Ibidem, p. 310, Tomo VIII). Talvez seja essa a fonte que permite Luis
Mario Schneider tecer a afirmação acima.
55
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 269.
56
Ibidem, p. 133.
31
Ele comenta ainda que o México possui forças que dormem em sua terra, as
quais podem servir aos “Vivos”, sendo os rituais indígenas uma manifestação direta
destas forças.
Artaud também esclarece que estudará as manifestações destas forças não como
um arqueólogo ou um artista, mas, sim, como um sábio, deixando-se penetrar, pela
consciência, por suas virtudes curativas da alma.
Finalmente, ele agradece o Governo do México e os governadores dos estados,
esperando que estes possam lhe auxiliar levando-o a “todos os lugares onde a terra
vermelha do México continua falando na melhor linguagem”.57
Segundo Luis Mario Schneider, Artaud partiu para as terras dos tarahumaras em
meados de agosto, regressando a Chihuahua em torno do dia 04 de outubro. Para tanto,
conseguira como apoio material, além da publicação de seus artigos 58, a concessão de
uma bolsa governamental que lhe permitiria estudar os tarahumaras, por meio do
Departamento de Belas Artes da Secretaria de Educação. Além disso, conseguira um
salvo conduto outorgado por um ministro e mediado pelo embaixador da França para
que pudesse alojar-se nas escolas dos pueblos.
Em sua trajetória a cavalo para as terras indígenas, Artaud busca desintoxicar-se,
jogando fora a heroína que possuía. No dia 16 de setembro, Artaud se encontra em
Norogáchic, distrito de Andrés del Río, Serra Tarahumara. Por meio de estudos
antropológicos, é sabido que essa região possui uma população de “tipo clássico” dos
tarahumaras, já que seguia todas as tradições, evitando a mestiçagem.
Artaud, então, relata que o diretor da escola da região havia proibido a festa do
peyote pelo pueblo, o que seria uma lástima para o artista francês, já que os tarahumaras
haviam permitido que ele participasse do ritual. Dessa forma, Artaud faz uma
intermediação entre o diretor e os tarahumaras, convencendo o primeiro a permitir a
festa. Com esse sucesso, Artaud consegue, além da participação no ritual, ser iniciado
57
Ibidem, p. 135.
58
Artaud conquistara a publicação segura no jornal El Nacional Revolucionario, deixando de ser um
colaborador para tornar-se um correspondente. Em carta a Jean Louis Barrault (17/06/1936), escreve:
“Faz um mês que sou colaborador regular de El Nacional Revolucionario, periódico governamental. Mas
tudo isso não seria interessante se estes artigos não houvessem servido para defender um ponto de vista
único e para disseminar as ideias que vim manifestar aqui”. (Ibidem, p. 266). No entanto, em texto de
Luis Cardoza Aragón, ele rebate que “Se insinua em versão espanhola chamada ‘Los Tarahumaras’que
Artaud, possivelmente, viajou à região como correspondente de El Nacional. Não me recordo assim. Eu
trabalhava no periódico. E com a intenção de fornecer a ele um pouco de dinheiro, lhe traduzia o
destinado ao diário e outras publicações”. (CARDOZA Y ARAGÓN, Luis, op.cit, p. 13).
32
59
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 359.
60
“Em vista de que o interessado [Artaud] só veio a esta República em viagem de estudos etnográficos e
demográficos, os quais levou a cabo sem lucro algum, e com espírito exclusivamente científico, muito
atentamente rogo a Vossa Excelência que se digne a examinar a possibilidade de eximir-lhe do
pagamento da mencionada cota de vinte pesos [...]” (Ibidem, p. 84).
61
CARDOZA Y ARAGÓN, Luis, op. cit, p. 13.
33
62
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 15-41.
63
Ibidem, p. 33.
64
Ibidem, p. 34.
34
65
Ibidem, p. 18.
66
Este assunto – a insatisfação de Artaud com relação à Europa, será pormenorizado ao longo da
dissertação.
67
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 132.
35
teatro”68. Penso que isso é plausível, uma vez que Artaud, conforme veremos, defendia
uma relação estreita entre teatro e vida – o que torna sua viagem a um pueblo indígena
um instrumento de desenvolvimento de sua própria concepção de arte teatral. Artaud
desejava uma revolução no teatro, tornando-o novamente mágico, restituindo-lhe o
vigor que havia sido perdido com o racionalismo ocidental. Nesse sentido, uma
experiência nas terras tarahumaras teria um vínculo com a sua concepção a respeito do
teatro – arte da qual Artaud viveu com todo o seu ser durante a vida.
Em carta a Jean-Louis Barrault, escrita em junho de 1936, Artaud afirma que
tem uma coisa “preciosa a procurar”, sendo que quando a tivesse em mãos ele poderia
“automaticamente realizar o verdadeiro drama”, com o qual ele tinha certeza que
conseguiria êxito. Tal drama romperia com as limitações do teatro ocidental. No
entanto, informa que “não se trata talvez de teatro sobre o palco”69. É possível perceber
nesta correspondência que o artista francês estava sempre pensando na arte do teatro ao
experimentar novas vivências no México.
Podemos também afirmar que Antonin Artaud fora um dos artistas europeus
que, desencantados com a realidade europeia, buscaram uma evasão noutra cultura que
lhes permitisse uma visão diferente sobre o ser humano e a sociedade. Essa reflexão
será melhor desenvolvida em capítulo posterior. Um exemplo disso seria também Paul
Gauguin (1848-1903), pintor que partiu para o Taiti em 1891, abrindo suas perspectivas
como artista moderno a partir do primitivismo construído com base na cultura
encontrada, o que, formalmente, tornou seus traços mais simples e levou ao uso de cores
fortes e vibrantes. Segundo o historiador da arte Mario de Micheli,
68
VIRMAUX, Alain, op. cit, p. 18-19.
69
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 312-313, Tomo VIII.
70
MICHELI, Mario de. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 45.
36
71
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 197.
72
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Do positivismo à desconstrução – ideias francesas na América. São
Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 2004, p. 165.
73
Ibidem, p. 173.
74
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p.113-122.
37
histórico, surgiu uma idolatria que se assemelha àquela presente nas religiões. Segundo
Artaud,
75
Ibidem, p. 115.
38
Nesse sentido, Artaud afirma que parece que a natureza foi preparada de
antemão para os tarahumaras. Esse povo, portanto, é carregado de uma aura especial
para o artista francês, tornando-se ainda mais essencial a descoberta de seus rituais por
ele.
76
Ibidem, p. 301.
77
Ibidem, p. 273-276.
78
Ibidem, p. 274.
79
Ibidem, p 275.
80
Ibidem, p. 273.
39
Artaud também se refere às figuras encontradas nas rochas das terras dos
tarahumaras, as quais se repetem em toda a região. Para ele, essa repetição também não
é simplesmente natural, e ainda menos natural é o fato de as danças e os ritmos desse
povo repetirem também essas formas de seu “país”. “Essas danças não nasceram do
acaso, mas, sim, obedecem à mesma matemática secreta, à mesma intenção do jogo sutil
de números ao qual toda a serra obedece”.81
Artaud se recorda de outras seitas que gravaram sobre as rochas os mesmos
signos que os tarahumaras. E, novamente, traz a possibilidade de que esse simbolismo
comum possa sugerir uma ciência.
Percebe-se que, mais do que narrar as experiências vividas em terras
tarahumaras, Artaud tece uma opinião a respeito da ideia de religião e de ciência
relacionada a essa cultura, a qual é comentada abstratamente, ou seja, sem nenhum fato
concreto relacionado à sua experiência. A única impressão concreta manifestada no
texto é a respeito da natureza observada.
No artigo “El país de los ‘Reyes Magos”, Artaud também tece comentários sobre
a confluência entre a natureza das terras tarahumaras e a excepcionalidade deste povo:
81
Idem.
82
Ibidem, p. 277.
83
Ibidem, p. 278.
40
Para Artaud, portanto, o ideal para uma cultura como a dos tarahumaras era de
que fosse estática e anistórica, pois não haveria para ela nenhuma forma positiva de
progresso. É possível também apreender nessa citação o projeto que o artista achava que
deveria ser adotado pelo Estado pós-revolucionário mexicano: “conservar a forma e a
força dessas tradições”. Isso significa que, para ele, assimilar a cultura indígena à nova
sociedade mexicana moderna seria um desastre, e não uma forma de progresso.
Ele descreve, posteriormente, um ritual tarahumara com o sacrifício de um boi,
cuja celebração por meio de danças durou toda a noite. Segundo Florence de Mèredieu,
essa cerimônia seria a dança dos “matachines”, “dançarinos itinerantes que vão de
84
Ibidem, p. 280.
85
Ibidem, p. 280-285.
86
Ibidem, p. 280-281.
41
É interessante notar aqui que o ritual descrito por Artaud tem suas raízes num
sincretismo cultural entre práticas espanholas e indígenas, aspecto não comentado pelo
nosso artista, uma vez que a sua intenção seria a de entrar em contato com uma cultura
“pura”, ideal, possivelmente inexistente, em realidade, entre os povos indígenas
mexicanos do século XX.
Apesar disso, em carta destinada a Jean Paulhan, de abril de 193689, Artaud
demonstra consciência de que os povos indígenas não eram tão “puros” e perfeitamente
distinguíveis entre si como ele defendia costumamente. Ao desenvolver uma ideia a
respeito da realidade indígena mexicana, ele afirma que todas as raças indígenas das
quais possui conhecimento se juntam sobre elas mesmas, cedem, se misturam e morrem.
Ele conseguia entrever nessa conjuntura a revolta e o abandono, a resignação e a
rebelião. É possível perceber, portanto, que o artista francês possuía uma certa
percepção da transformação das sociedades indígenas, apesar de defender a
imutabilidade dessas como a melhor solução para a sua preservação.
87
MÈREDIEU, Florence de, op. cit, p. 554.
88
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit., p. 285.
89
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 198-203, Tomo V.
42
Retornando à última citação, com a comparação entre esse rito e aquele descrito
por Platão, Artaud sugere novamente uma fonte comum entre todas as culturas cujas
noções mágicas são latentes. Seria necessário uma origem comum para que todas as
similitudes entre essas culturas fossem explicadas. Com isso, pode-se concluir que, para
Artaud, conhecer uma dessas tradições significava muito mais do que ter proximidade
com uma cultura indígena em terras mexicanas: significava remexer nas fontes mágicas
universais do ser humano dentro de um povo específico que, em sua concepção, não
havia se modificado em centenas de anos.
No artigo “Bases Universales de la Cultura”, de maio de 1936, Artaud esclarece
o que, para ele, seria a diferença entre civilização e cultura: segundo o autor, o México
possuía várias civilizações, mas apenas uma cultura, ou seja, uma única ideia de
homem, da natureza, da morte e da vida. Já a Europa moderna, que conseguiu unificar
sua civilização, possuía uma multiplicidade de concepções de cultura, estando, com
relação a esse assunto, em plena anarquia.
Nesse sentido, visitar o povo tarahumara significava conhecer uma cultura
comum a todo o país latino-americano. E, mais do que isso, os tarahumaras tinham
consciência dos mistérios aos quais a humanidade estava submetida e, por isso, seria
possível comparar o seu modo de vida com o de outras civilizações que também
possuíam conhecimentos ligados à fonte dos mistérios humanos.
Enquanto isso, na Europa, acreditava-se que a cultura estaria nos livros, de
forma que cada nação possuiria seus próprios livros, ou seja, sua própria filosofia. Isso
levaria ao surgimento de um grande número de sistemas, fazendo com que não só cada
nação tivesse um, mas, também, com que cada partido político tivesse o seu próprio. E,
ao contrário dos tempos nos quais os filósofos faziam nascer a política, naquele período
seriam os sistemas políticos que fariam surgir os filósofos, os quais tratavam de
justificar sua demagogia.
Em um projeto de carta90 para o Congresso Internacional de Escritores para a
Defesa da Cultura, de junho de 1935, Artaud deixa claro a sua crítica com relação à
concepção de cultura existente na Europa. Ele afirma que a verdadeira cultura não teve
jamais pátria, sendo ela espiritual, e não humana. Dessa forma, para ele não é
indiferente constatar que, nesse congresso reunido pela defesa da cultura, se procura por
meios desvirtuados a justificativa de uma ideia utilitária e baixa da pátria. Ele também
90
Ibidem, p. 278-279, Tomo VIII.
43
afirma que tais debates em favor da cultura lhe parecem, sobretudo, discussões a favor
das comodidades do homem que tem sempre chamado de cultura aquilo que o evita de
pensar. Com isso, é interessante pensar que Artaud vai contra a ideia de cultura pátria
tão cara ao fascismo – aspecto importante a fim de analisar as contradições do artista
francês que, apesar desse posicionamento, defendia, ao mesmo tempo, a existência de
uma cultura indígena pura, sem influências estrangeiras.
Nesse sentido, no artigo “Lo que vine a hacer a México”, Artaud desenvolve a
ideia de que caberia ao México, justamente, uma reação à superstição europeia de
progresso, e a este papel deveriam ser incumbidos os políticos, e não os artistas, uma
vez que seriam os primeiros que naqueles tempos cuidavam de assuntos do governo. O
México seria responsável por uma atitude grandiosa: “trata-se nada menos do que
romper o espírito de todo mundo, e de substituir uma civilização com outra”.91
Segundo o autor, a Europa encontrava-se numa situação de grande crise, já que
não tinha mais o que oferecer ao mundo a não ser uma pulverização de culturas, das
quais seria necessário extrair de novo uma unidade.
Neste texto, Artaud estabelece algumas de suas ideias sobre o México: para ele,
no fundo, este país não havia mudado desde o período de Montezuma. Da precipitação
de sua multiplicidade de raças, deveria resultar a alma mexicana. Entretanto, para que
surgisse essa alma única seria preciso uma cultura única. O México teria essa cultura
única, mas, com a influência negativa da Europa, deixara de utilizar o conhecimento e o
segredo que conteria tal cultura.
O sensacional afirmado por Artaud seria o de que no México, no período no qual
escrevia este texto, havia surgido um movimento de reconquista deste segredo e,
quando o país o conquistasse, não haveria nenhuma arma que pudesse algo contra ele.
Para o artista francês, “toda transformação cultural importante começa com uma
ideia renovada do homem, coincide com um novo brote de humanismo”. E seria
justamente isso que ele teria ido buscar no México: uma nova ideia de homem. É
possível perceber aqui uma contradição entre a ideia de humanismo defendida no artigo
publicado num periódico de Cuba, L’eternelle trahison des blancs, comentado
anteriormente, e o conceito de humanismo defendido aqui. Enquanto no primeiro texto
tal conceito era maléfico, pois representava a ênfase num humano que separaria a razão
91
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 174.
44
e o espírito, aqui a nova ideia de homem, apesar de ligada a certo humanismo, seria
positiva, pois viria de um pensamento não dualista ligado às antigas tradições indígenas.
A originalidade mexicana consistiria nessa sua cultura e ciência adormecidas sob
seus pés, as quais deveriam ser desenvolvidas. Nesse sentido, haveria no país uma tarefa
enorme a ser cumprida, e Artaud estaria no México justamente por ter sentido essa
grande tarefa. E, neste texto, para o artista, ao contrário do que afirma em outros artigos
analisados neste trabalho, o México moderno já a estaria realizando.
Por fim ele comenta que
92
Ibidem, p. 178.
93
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 198-203, Tomo V.
45
Jarry, que será comentado no segundo capítulo, o artista francês possuía a segurança no
acaso que traria a magia ao teatro. No entanto, com o Teatro da Crueldade, também
explicado no capítulo posterior a esse, Artaud já defendia a precisão em lugar do acaso.
Dessa forma, a ciência substituiu a “magia ocasional”. A magia presente nos sonhos e
inconsciente seria ainda mais eficiente com o uso da ciência.94 Dessa forma, a busca de
Artaud por uma ciência entre os tarahumaras possivelmente poderia ser também uma
afirmação de sua procura por uma fonte eficiente para o Teatro da Crueldade.
No texto “Una raza-princípio”95, que foi o último dos 23 artigos escritos por
Artaud no México, o artista inicia sua explanação por meio de um comentário sobre o
fato de que os tarahumaras se consideram uma raça-princípio.
Em suas representações, esse povo apresenta aquele que seria o seu princípio
transcendente: eles não acreditam num Deus – e essa palavra nem sequer existe em seu
vocabulário – mas, sim, creem que estão ligados às forças originais do varão e da fêmea,
“com as quais trabalha a natureza”.96
O artista também aponta que os tarahumaras não dão tanta atenção ao que tange
os aspectos corporais: eles são muito mais ligados às ideias, e não temem as dores, as
doenças e a morte física.
94
VIRMAUX, Alain, op. cit, p. 72-76.
95
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 285-289.
96
Ibidem, p. 285.
97
Ibidem, p. 288.
46
O ritual do peyote
No artigo intitulado “La Danza del Peyote”98, escrito no início de 1937, já na
Europa, Artaud relata que, depois de vinte e oito dias de espera na terra dos
tarahumaras, ainda não havia entrado dentro de si mesmo ou, melhor, saído de si
mesmo. Ele comenta que havia chegado tão longe e, neste lugar no qual esperava
grandes revelações, sentia-se perdido, desértico, desamparado. Ele afirma que
Este relato retrata com clareza a ideia do artista a respeito da cultura tarahumara:
apesar de conservarem intactas as características ancestrais de uma tradição que une o
universo mágico ao cotidiano do povo, os tarahumaras já não possuíam total
consciência dos atos relacionados a esse transcendentalismo que praticavam. Dessa
forma, é perceptível que Artaud captara uma contradição entre a tradição deste povo
indígena e a modernidade, sinal de que esse povo estava, de certa forma, ligado à noção
de progresso e história, aspecto repudiado pelo artista, que afirmava que o ideal era que
as tradições milenares permanecessem estáticas no tempo.
É possível perceber também a ansiedade de Artaud nos dias que teve que
esperar pelos “feiticeiros” tarahumaras que executariam o rito do peyote. O artista narra
todos os obstáculos para que finalmente visse o ritual que esperava com tanta ansiedade:
Em seguida, passa a narrar com detalhes o rito que, finalmente, pôde assistir
após a longa espera. Artaud afirma, inclusive, que a cerimônia era executada para ele
próprio. Em dado momento da narrativa, o artista relata que ele também tomou o
98
Ibidem, p. 289-301.
99
Ibidem, p. 290.
100
Ibidem, p. 292.
47
peyote. Posteriormente, sentiu muito sono, e foi levado até algumas cruzes que para o
ritual foram expostas para a cura final. É interessante apontar que, individualmente,
Artaud buscava uma cura no ritual dos tarahumaras para as suas inquietações e
problemas físicos e psíquicos, que já o haviam levado a casas de saúde e ao uso
contínuo de drogas como o láudano para aliviar suas dores de cabeça.
No mesmo artigo analisado anteriormente, Artaud também relata que, a fim de
se tornarem feiticeiros, os escolhidos tarahumaras se retiravam num bosque durante três
anos. A partir disso, o artista francês questiona: qual é o aprendizado que recebem?
Dessa forma, Artaud afirma que, apesar de toda a ritualização externa à qual ele
assistiu, parecia que faltava, que se ocultava o Principal.
Essa fonte dos mistérios, que Artaud aponta na maioria dos textos sobre suas
experiências nas terras tarahumaras, ele nunca chegaria a alcançar – e, provavelmente,
não possuía mesmo a ambição de atingi-la, já que se tratava da origem daquilo que não
se pode explicar. Apesar disso, creio que esse era um dos principais objetivos de sua
busca na terra dos tarahumaras: ter contato com uma cultura que não havia cortado os
elos com essa fonte dos mistérios insondáveis, mágicos. Ali, nas raízes primordiais do
México, como ele mesmo diria, seria possível vivenciar a integralidade de um
organismo que unia o espírito e a matéria – coisa que já não era possível experienciar na
“Europa moderna decadente”.
101
Ibidem, p. 300.
48
O teatro, projeto artístico maior de Artaud, deveria passar, como outros aspectos
da vida contemporânea, por uma “revolução da consciência” que traria a cura ao homem
moderno. Porém, não seria contemplado com esses rituais experienciados por Artaud,
os quais só poderiam ser vividos no seu lugar de origem. No entanto, como sugere
Cassiano Sydow Quilici,
102
Ibidem, p. 192.
103
Ibidem, p. 193.
104
Ibidem, p. 194.
105
Idem.
49
Antes de terminar esta pequena reflexão, creio que seria importante uma
discussão a respeito de como foram feitos os relatos de Antonin Artaud sobre a viagem
à terra dos tarahumaras aqui analisados. Segundo Luis Mario Schneider,
106
QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud, teatro e ritual. São Paulo: Annablume, 2004, p. 183.
107
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op.cit, p. 285-288 – Tomo VIII.
108
VIRMAUX, Alain, op. cit, p. 46-49.
50
109
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p.77-78.
110
A respeito do que seria ficção, Luiz Costa Lima afirma: “Ser a mímesis o princípio orientador da
ficção verbal significa que, a partir de uma correspondência de início com um estado do mundo, a
imaginação, para falar com Kant, deixa de estar a serviço do entendimento e se autonomiza. Ora, ser a
imaginação dominante implica que a verdade deixa de ter condições de ser aporia”. (LIMA, Luiz Costa.
História. Ficção. Literatura. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 155).
111
MÈREDIEU, Florence de, op. cit, p. 556.
51
eles foram escritos apenas enriquecem a discussão, já que a possível presença de ficção
nos leva a refletir sobre o motivo de sua existência e os objetivos de Artaud com estes
relatos que, em parte, foram publicados no México e na França.
Finalmente, seria interessante apontar que, a partir destes textos de Artaud aqui
analisados, é possível discutir sobre a posição do artista no período entre-guerras e
sobre o seu papel como figura proeminente da arte moderna. Os seus relatos sobre a
viagem ao “país dos tarahumaras” e os questionamentos a respeito dos fatos descritos
por ele podem ser utilizados como sinais, indícios de seus objetivos, de sua
individualidade e do pensamento moderno do autor. Ou seja, isso significa que os textos
dizem mais a respeito de Antonin Artaud do que do próprio México.
112
FUNES, Patricia. Salvar la nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte
latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo, 2006.
113
Ibidem, p. 12.
52
Para a autora, os anos 1920 possuem características marcantes, tais como seu
caráter de fundador de muitas tradições intelectuais, políticas e culturais do século XX
na América Latina. Tal década foi um período de ruptura para com o século XIX, uma
vez que o progresso, a ciência, a objetividade do conhecimento, tão caros ao século
anterior, passaram a ser questionados. A busca por raízes nacionais, o desejo de um
distanciamento do modelo europeu, a procura de outras referências tornaram-se
presentes a partir do início do século XX, levando a incertezas, aos experimentalismos,
à busca de uma nova visão do sujeito para com o mundo.
Essa geração pós I Guerra Mundial, que viveu um desapontamento com a
Europa, passou a participar das discussões sociais, conclamando operários, massas, o
exército, os indígenas, todos em nome da nação, da revolução ou de ambas.114 Durante a
década de 1920, esses intelectuais privilegiaram o campo da cultura e da sociedade. No
entanto, segundo a autora, em finais da década, foram se deslocando para “a política
convencionalmente considerada, ou seja, o Estado”115.
Para Patricia Funes, nas reflexões dos anos 1920 foram acrescidos temas como a
revolução, o socialismo, o comunismo, o anti-imperialismo, o corporativismo, a
democracia. Além disso, refletia-se a respeito do lugar da América Latina no contexto
moderno. No entanto, o tema frisado pela autora é a nação, tópico que foi colocado no
centro do repertório intelectual dos anos 1920. Nesse período, no México, os abalos que
favoreceram atitudes de ruptura com o século XIX foram particularmente intensos em
virtude da Revolução Mexicana.
O historiador Carlos Altamirano, na introdução geral de sua obra Historia de los
intelectuales en America Latina116, também afirma que houve uma grande mudança na
postura dos intelectuais das duas primeiras décadas do século XX. Segundo o autor,
neste período conformou-se um novo cenário intelectual em concomitância com o
aparecimento de partidos nacionais de base popular, o desenvolvimento de uma cultura
de massas e o surgimento de escritores de origem mais “plebéia” que os intelectuais
tradicionais.117
Em sua obra, Carlos Altamirano inicia a discussão com o século XIX a fim de
desenvolver a genealogia do intelectual na América Latina. Dessa forma, ele reflete a
114
Ibidem, p. 15.
115
Ibidem, p. 16.
116
ALTAMIRANO, Carlos. Historia de los intelectuales en America Latina. Buenos Aires: Katz
Editores, 2008.
117
Ibidem, p. 19.
53
118
CRESPO, Regina. Itinerarios intelectuales: Vasconcelos, Lobato y sus proyectos para la Nación.
México, DF: UNAM, 2004.
119
Ibidem, p. 71.
54
Regina Crespo, com exceção de Vasconcelos e Martín Luís Guzmán, “grande parte dos
ateneístas viam na Revolução a barbárie e o retrocesso e não apoiavam nem Madero e
nem, muito menos, generais como Villa e Zapata” nos primeiros anos de Revolução.120
Portanto, a geração ateneísta pode ser classificada a princípio como “geração
revolucionária” somente no âmbito de contestação do pensamento intelectual
hegemônico porfirista, mas não no âmbito dos projetos políticos liberais maderistas.
Isso porque, de acordo com a perspectiva crítico humanista que possuíam, as
transformações sociais somente ocorreriam com a elevação espiritual do povo por meio
da educação. Um exemplo disso é José Vasconcelos, que, mesmo depois de tornar-se
Secretário de Educação Pública em 1921, ainda acreditava que os intelectuais deveriam
ser independentes ideologicamente dos grupos dominantes que se encontravam no
poder.121
Já com o preceito “missionário” de transformar a população mexicana pela
elevação do espírito – por meio dos cânones ocidentais –, os ateneístas, sob a
presidência de Vasconcelos e o governo maderista, fundaram, em 1912, a Universidad
Popular Mexicana, cujo objetivo era, justamente, o de “oferecer conferências noturnas
aos adultos de recursos escassos” por meio de trabalho intelectual voluntário. Também
com a iniciativa do Ateneo, foi fundada a Facultad de Humanidades, que não teve sua
existência legitimada pelo governo assim como a Universidad Popular.
Dois anos depois, ou seja, em 1914, o Ateneo de la Juventud chegava ao fim –
um fim material, mas não simbólico, já que os seus sessenta e nove integrantes
continuaram sendo conhecidos durante toda a vida como os ateneístas.
Conforme comentado, a geração de Contemporáneos foi profundamente
influenciada por esse humanismo do Ateneo. Nascidos entre 1899 e 1904, os
Contemporáneos, ou o “grupo sem grupo”, assim denominado por Xavier Villaurrutia,
tradutor de Artaud no México, numa conferência em 1924 por causa das amplas
diferenças existentes entre suas obras, teve, de forma simplificada, duas linhas de
pensamento que caracterizaram o trabalho de seus participantes.
Isso porque, segundo Guillermo Sheridan, na obra Los Contemporáneos de
ayer122, uma pequena diferença de idade entre os membros pertencentes a esses dois
subgrupos os separava entre os mais velhos – Jaime Torres Bodet, que auxiliou Artaud
120
Idem.
121
Ibidem, p. 102.
122
SHERIDAN, Guillermo. Los contemporáneos de ayer. México: Fondo de Cultura Económica, 1985.
55
123
Ibidem, p. 259 .
56
124
Ibidem, p. 128.
125
Ibidem, p. 130.
126
CRESPO, Regina, op cit, p. 82.
127
MÈREDIEU, Florence de, op. cit, p. 534.
57
confere uma unicidade ainda maior aos futuros Contemporáneos. Essa identidade
“cosmopolita”, estrangeirizante, acaba sendo, muitas vezes, reafirmada até mesmo pelos
que sabem que os escritores ligados a tal grupo possuem distinções que vão desde as
influências de González Martínez – caso de Torres Bodet – até influências das
vanguardas norte-americanas – caso de Salvador Novo – passando por influências
francesas simbolistas e surrealistas que marcam profundamente a obra de Villaurrutia.
Guillermo Sheridan, por exemplo, afirma que, se os Estridentistas e os futuros
Contemporáneos houvessem dialogado efetivamente, ambos sairiam ganhando.128 Já
Regina Crespo comenta que “sendo a cultura mexicana tão formal e tradicional, sua
aparição [dos Estridentistas] causou um furor que não deixou de ser benéfico”.129 Isso
porque a historiadora acredita que tal geração constituiu, como afirmado anteriormente,
“o único movimento mexicano com as características iconoclastas da vanguarda
europeia”130.
Contudo, afirmar, a partir disso, que a cultura mexicana anterior aos
Estridentistas era formal e tradicional seria negar todas as discussões que o futuro grupo
dos Contemporáneos já começava a causar com o seu ceticismo e a sua ironia. O fato de
que apenas os Estridentistas apresentaram manifestos vanguardistas e o furor futurista
de ruptura agressiva com o “velho” não significa que as outras gerações modernas –
como os muralistas e os futuros Contemporáneos – não possuíssem um projeto tão
inovador como aqueles.
O curioso é que o movimento Estridentista vai perdendo a sua força em 1925
porque Maples Arce parte para Xalapa, capital do estado de Veracruz, a fim de ser
secretário de governo. Após tantas críticas ao “poder cultural” do grupo atacado, ele
também segue um caminho semelhante.
As críticas de Mañach e Maples Arce contra o futuro grupo dos Contemporáneos
passam por adjetivos como “estrangeirizante” e “escapista” porque esses afirmavam que
um verdadeiro romance nacional devia se pronunciar diretamente com relação à
realidade; documentá-la. Essa, sim, seria uma literatura “viril”, diferentemente da
“afeminada” e “afrancesada” que tinha poder nas letras mexicanas. Já Mariano Azuela
escreve um artigo afirmando que a literatura virá do “povo da gleba” – e esta, sim, será
128
SHERIDAN, Guillermo, op. Cit, p. 133.
129
CRESPO, Regina, op. cit, p. 82.
130
Idem.
58
“sangue de nosso sangue e carne de nossa carne”, como os romances de Emilio Zola na
França e os de Tolstói na Rússia.131
Salvador Novo parte para a defesa daqueles que o grupo “nacionalista”
(autodenominação) identificava como um grupo único com características comuns:
Nota-se que a polêmica entre “literatura viril” e “literatura não viril” começa a
ganhar maior relevância quando o governo pós-revolucionário passa a adotar um
discurso corporativista de institucionalização da Revolução, na década de vinte, com a
chegada de Plutarco Elías Calles e Álvaro Obregón ao poder. A partir daí, a polarização
entre os artistas e intelectuais que defendem uma política pós-revolucionária que se
aproxime do socialismo e os que ainda defendem uma ação influenciada pelos
ateneístas, voltada à elevação espiritual do povo a partir dos cânones ocidentais, se
intensifica ainda mais.133
Dentro do campo teatral, uma vertente dos intelectuais cunhados como
“universalistas” é o grupo – formado por membros da geração dos Contemporáneos –
que criou, no ano de 1930, a primeira publicação cujo tema era exclusivamente o teatro
– a revista El Espectador. Editada por artistas como Xavier Villaurrutia, José Gorostiza
– ambos tradutores dos textos de Antonin Artaud durante sua estadia no México –,
Celestino Gorostiza, Salvador Novo, Jorge Cuesta, Gilberto Owen, entre outros, a
revista discutiu em alguns de seus artigos a existência de um novo drama que passava a
introduzir em cena gente “obscura e anônima”, movida não por força individual, mas
131
SHERIDAN, Guillermo, op. cit, p. 258.
132
Ibidem, p. 258.
133
É curioso notar que o debate artístico presente no México neste período não foi, em suas características
mais gerais, exclusivo deste país. Segundo Sílvia Miskulin, havia “uma disputa bastante presente nos anos
1920 e 1930 na América Latina, entre os adeptos da ‘arte pela arte’ e os defensores da ‘arte engajada”. In:
MISKULIN, Sílvia Cezar. Cultura ilhada – imprensa e revolução cubana (1959-1961). São Paulo: Ed.
Xamã, 2003, p. 131.
59
134
CRITILO. “El teatro del futuro”. El Espectador, 19 de junho de 1930, n.22, p. 5-6. O autor utiliza-se
de uma série de artigos de M. Jean Richard Bloch publicados na revista Europa, de Paris, para discutir o
novo drama.
135
CUESTA, Jorge. “El teatro universitário”. El Espectador, 17 de julho de 1930, n. 26, p. 1-2.
136
C. “La universidad y el teatro”. El Espectador, 5 de junho de 1930, n.20, p.1. Não foi possível
identificar o autor deste artigo, já que a abreviatura “C” remete a alguns possíveis nomes, tais como o de
Celestino Gorostiza ou Critilo, pseudônimo de Humberto Rivas.
137
CUESTA, Jorge, op. cit.
60
138
C.G. “En defensa del teatro mexicano”. El Espectador, 5 de junho de 1930, n.20, p. 1-2
139
SHERIDAN, Guillermo, op. cit, p. 244.
61
A polêmica passou a ser mais forte com o advento do Teatro de Ulises, em 1928,
primeiro experimento teatral dos futuros colaboradores de El Espectador. Com o fim do
apoio financeiro à revista Ulises, o grupo decide investir a verba que havia sobrado
numa temporada do Teatro de Ulises no Virgínia Fábregas, em maio de 1928. O teatro
experimental inspirado na vanguarda norte-americana e europeia foi um choque para o
público – o que aumentou ainda mais as críticas que se ouviam a respeito de tais
artistas. A antipatia pelo grupo teve tamanha intensidade que, no Teatro Principal, a
poucas quadras do Fábregas, uma companhia de comédia ligeira estreou uma comédia
chamada El Teatro de Ulises, “na qual os membros do grupo e seus amigos apareciam
confeccionados com a toda a sanha caricaturesca imaginável. [...] O escândalo, então,
começou a levar gente ao Fábregas”141, já que o público, curioso, desejava confirmar as
provocações levantadas contra os artistas de Ulises.
Tal polêmica – que podemos até relacionar com os artigos de El Espectador
comentados anteriormente – intensificou ainda mais o debate entre os que se
denominavam “nacionalistas” e taxavam os “outros” de “cosmopolitas”.
As distinções que se construíam por meio de uma polarização radical entre os
artistas e intelectuais “nacionalistas” e “universalistas” ganham um novo significado em
1932, quando o embate se dá em torno de qual era a autêntica expressão nacional do
México. Guillermo Sheridan acredita que esse debate de 1932 é a chegada da Revolução
ao campo do literário, já que o movimento muralista – tido como essencialmente
“nacionalista” – desejava que o movimento literário se unisse à “tarefa de formar a
consciência nacional do novo Estado mexicano”.142 Os acusados de europeísmo eram,
justamente, os membros de Contemporáneos, tendo como mentor Alfonso Reyes, os
quais disseram que, antes do que imitar a Europa, estavam sendo universalistas, isto é,
140
Ibidem, p. 354.
141
Ibidem, p. 299-300.
142
HOUVENAGHEL, Eugenia. “Alfonso Reyes y la polémica nacionalista de 1932”. (disponível em:
http://www.ingentaconnect.com/content/rodopi/foro/2002/00000022/00000001/art00004). Último acesso
em 12/10/2008).
62
tendiam a uma “unidade espiritual com o resto do mundo, ainda que, no geral, se
limitavam ao diálogo com a cultura do Ocidente”143.
No entanto, a resposta dos intelectuais não foi unívoca: enquanto Xavier
Villaurrutia e Salvador Novo negaram a acusação de europeísmo, Samuel Ramos e José
Gorostiza (mais uma vez, um dos principais tradutores de Artaud no México)
reconheceram que o grupo estava equivocado ao subordinar-se à Europa. A resposta de
Gorostiza, que apresenta o seu ponto de vista quanto ao que o artista deveria buscar em
seu trabalho, merece ser mencionada:
143
Idem.
144
Idem.
63
145
CUEVA, Alicia Azuela de la. Arte y poder. Zamora, Michoacán: El Colegio de Michoacán – Fondo de
Cultura Econômica, 2005.
64
Neste mesmo artigo, Artaud faz uma dura crítica à arte do México, afirmando
que neste país não existe uma arte propriamente mexicana. O artista comenta que não
encontrara em parte alguma “essa ‘violência’ refulgente, esse broto inconfundível que
distingue as obras de uma raça, que marca o espírito de um continente onde já seria
tempo de que os mexicanos começassem a diferenciar sua personalidade”. Para ele, a
revolução de 1910 trouxera à tona o “inconsciente esquecido da raça”. No entanto,
“quantos mexicanos modernos compreenderam esta liberação necessária de seu
inconsciente?”147
No mesmo texto, Artaud comenta a respeito da obra de um artista mexicano –
um dos poucos que criticou durante a sua estadia no México – Ortiz Monastério.
Ele afirma que na obra do escultor Monastério há certo sentimento da “opressão
intelectual do México”, mas seus trabalhos, no aspecto formal, possuem muito das
características das esculturas de Paris. Os artistas parisienses teriam consciência de que
a arte europeia “branca” já teria chegado a um esgotamento e, por isso, passaram a
buscar influências nas artes “do passado”.
Para Artaud, toda a arte mexicana possui uma estilização de segundo grau, já
que imita a arte europeia que, por sua vez, se utiliza da estilização da arte antiga, como a
dos assírios. Monastério não seria uma exceção a isso.
Apesar da aproximação de alguns dos artistas universalistas ao movimento
surrealista francês, Antonin Artaud não encontrou na maioria deles o apoio público às
suas ideias. Enrique Aguilar, por exemplo, nos relata, em Elías Nandino: una vida
no/velada148, que Xavier Villaurrutia não se deu bem com Artaud quando da sua estadia
146
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit., p. 217.
147
Ibidem, p. 213.
148
AGUILAR, Enrique. Elías Nandino: una vida no/velada. Grijalbo, México, 1986, p. 109-114. Apud:
BRADU, Fabienne, op. cit, p. 18-19.
65
no México149. José Gorostiza, apesar de ter tido um contato muito próximo com o artista
francês, não deixou nenhum relato a respeito de tal convivência. Luis Mario Schneider
afirma que houve poucas repercussões das conferências de Artaud na imprensa
mexicana, dentre elas, um artigo de Bernardo Ortiz de Montellano, “Artaud y el sentido
de la cultura en México”, e um artigo de Rafael Cardona, “El alma mágica en
Francia”150.
O primeiro artigo citado, escrito a partir do texto “Lo que vine a hacer no
México”, publicado em El Nacional em julho de 1936, afirma que Antonin Artaud se
assemelha aos outros surrealistas no que se refere ao objetivo de renovar a cultura
europeia. No entanto, distancia-se por não se ater à escrita automática e “às derivações
psicológicas da repressão da libido”. Artaud, segundo o autor, crê num espiritualismo
total “de ordem mágico panteísta de unidade com a natureza, genuína das culturas
indígenas da América”. Ortiz de Montellano afirma que o artista francês se dedicou ao
“sentido oculto das práticas – ritos e ritmos dos antigos mexicanos, unidos mais pelos
sentidos do que pela Inteligência abstrata aos princípios de sua natureza e da natureza da
paisagem mexicana, abrupta, estéril, grandiosa [...]”. O autor mexicano ainda esclarece
que os seus pares estão estudando os temas trazidos por Artaud, mas é necessário que
venha alguém de fora para que se descubra o próprio México e a sua população, “com
apaixonado lirismo”. Para Ortiz de Montellano, a poesia necessária seria aquela capaz
de revelar “um mundo vivo de força e poder que o homem usa agora sem se dar conta
ou sem dar-lhe importância alguma”. Ele comenta, posteriormente, a diferença
existente entre o povo europeu e o povo mexicano: o primeiro está sempre voltado à
valorização do Eu, enquanto no segundo o social tem mais valor do que o individual.
Por fim, o autor afirma que, como Artaud, crê que o mundo prepara um tipo humano
“vinculado às forças da vida e da natureza para mandar nelas”. No entanto, ele acredita
também, ao contrário de Artaud, que no México ainda é necessário assimilar “certos
aspectos da cultura europeia e da civilização que, como a ciência, são já conquista
definitiva do homem futuro e o elemento base de sua universalidade”151.
Devemos levar em consideração para a pouca repercussão de Artaud que, por
volta da década de trinta, verificou-se uma crescente hegemonia dos “nacionalistas” no
discurso oficial de como deveria ser representado o novo Estado mexicano. Essa
149
“En las ocasiones en que Xavier y yo llegamos a casa y Antonin se aparecia por ahí, Villaurrutia decía:
‘si ese señor se queda a comer, yo no como”. In: Idem.
150
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin. Op. cit, p. 60-61 e p. 39.
151
Ibidem, p. 60-63.
66
hegemonia que vinha se construindo desde a década anterior ganhou especial relevância
justamente no governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940) – período no qual o Estado
mexicano atribuiu a responsabilidade de representação artística do país ao grupo
denominado “nacionalista”. Nessa conjuntura, excluiu-se temporariamente a
participação no governo de muitos artistas e intelectuais chamados de “universalistas”
que, apesar disso, também haviam iniciado o seu trabalho artístico numa realidade
pública pós-revolucionária. Esse fato pode, de alguma forma, sugerir hipóteses também
políticas para essa falta de repercussão a respeito do artista francês na imprensa
mexicana.
Entre o grupo dos denominados “nacionalistas”, Artaud tampouco encontrou
apoio público para suas ideias. Ao que me parece, isso se deve às maneiras divergentes
de se encarar a cultura indígena: enquanto esses artistas mexicanos buscavam, de certa
forma, uma continuidade entre os povos pré-colombianos e o Estado mexicano pós-
revolucionário152, Artaud procurava o sentido místico, mágico e particular, que poderia
ser encontrado nas “entranhas” do solo indígena. Dessa maneira, as influências do
Estado mexicano na cultura indígena eram impurezas que deveriam ser desconsideradas
a fim de que a essência mágica desses povos pudesse ser alcançada.
Essa busca esotérica de Artaud não se adequava à atmosfera política mexicana –
152
Segundo Alicia Azuela, Diego Rivera foi o “pintor oficial” do general Plutarco Elías Calles. Seus
murais na escada central do Palácio Nacional, iniciados em 1929 e finalizados em 1935, são os exemplos
mais significativos da legitimação do Estado nacional revolucionário por meio da pintura histórica.
Rivera dividiu a história mexicana em quatro partes: o período pré-hispânico, o colonial, o
independentista e o revolucionário. Neste processo “fechado e previsível”, o “passado pré-hispânico
glorioso [...] culminaria no futuro estabelecimento de um governo proletário”. (CUEVA, Alicia Azuela de
la, op. cit, p. 168-9). David Alfaro Siqueiros é outro exemplo a ser considerado: seus afrescos (1924-
1925) pintados na escada do pátio menor da Preparatória – dos quais sobram apenas alguns vestígios –
intencionavam fundir os acontecimentos da conquista do México aos eventos da revolução de 1910,
sendo essa última representada como o grande momento libertário do país. (Ibidem, p. 158). Artistas
como Fernando Leal e José Clemente Orozco também se utilizaram de temas pré-hispânicos e coloniais a
fim de legitimar a revolução de 1910 como o grande momento libertador da história mexicana.
153
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 37.
67
Dessa forma, Artaud polemizaria tanto com aqueles que buscavam na arte
europeia o universalismo necessário à cultura mexicana – caso dos “universalistas” –
como com aqueles artistas e intelectuais que buscavam nas raízes indígenas um apoio ao
novo Estado que se construía desde a década de vinte, mas que, no entanto, ainda
tratava as comunidades indígenas como primitivas, de “raça inferior”, como ele mesmo
afirma, – caso dos “nacionalistas”.
Artaud chega ao México num momento singular da experiência política pós-
revolucionária, uma vez que no governo de Lázaro Cárdenas as políticas de integração
nacional ganham mais atenção por parte do governo. Dessa forma, a dualidade entre
uma cultura urbana – moderna – e uma cultura camponesa – indígena – era um
“problema” a ser resolvido pelo governo, e não um valor cultural de inegável
importância, tal como Artaud havia suposto antes de iniciar a sua viagem ao país.
No artigo “Las fuerzas ocultas de México”, publicado no periódico El Nacional
em agosto de 1936, conforme já mencionado, Artaud comenta que, antes de vivenciar a
experiência do que seria a Revolução Mexicana, ele possuía uma ideia completamente
distinta do que seria esse movimento político do México. Ele inicia este texto afirmando
que, na França, se acredita que a Revolução Mexicana é a revolução do homem – ou
seja, possui objetivos ligados à constituição interna do homem, e não somente à
constituição da sociedade. Essa Revolução seria uma revolta contra as ideias do mundo
moderno, “contra a civilização científica de hoje em dia”.154 Crê-se que se trata de uma
revolução indianista, com o objetivo, que seria apoiado pelo governo mexicano, de
voltar às origens da cultura do México pré-hispânico.
No entanto, em seguida, Artaud aponta que essa visão a respeito da Revolução
Mexicana é falsa. “Propriamente falando, não há tal despertar do espírito índio do
México, e a Revolução, tal como se imagina na França, não existe no solo do
México”.155
Ele afirma que o pensamento da juventude francesa é, isso sim, universal, já que
deseja “que se retorne às fontes, está todo impregnado dos sonhos do inconsciente
primitivo e quer converter estes sonhos em realidade. É por isso que olha as tradições
enterradas do México como um meio de salvar a vida”.156
154
Ibidem, p. 196.
155
Idem.
156
Ibidem, p. 197.
68
Dentro deste mesmo assunto, é curioso como, ao mesmo tempo em que, por
meio de suas impressões, critica a Revolução Mexicana e sua proximidade com a obra
de Karl Marx, Artaud é bem recebido pelo governo de Lázaro Cárdenas, chegando,
inclusive, a publicar artigos no jornal do Partido Revolucionário Mexicano, conforme já
comentado anteriormente. Em sua segunda conferência no México, “El hombre contra
el destino”, Artaud tece comentários a respeito do que pensa sobre a revolução
comunista:
Não julgamos a realidade por meio de experiências, pois tudo isso não
nos mostra o homem. A preocupação pelas funções exteriores do
homem aparta de um conhecimento profundo. Existe um mundo no
pensamento. A revolução comunista ignora o mundo interior do
157
Ibidem, p. 198.
158
Ibidem, p. 199.
69
159
Ibidem, p. 119.
160
Ibidem, p. 261-262.
70
161
Marie-Areti Hers. “Manuel Gamio y los estudios sobre arte prehispánico: contradicciones
nacionalistas”. In: Rita Eder (org.) El arte en México: Autores, temas y problemas. México: Conacult,
2003.
162
Ibidem, p. 46-7.
71
políticas e econômicas do país era algo que poderia provir dos próprios pueblos
indígenas e seus habitantes. Segundo a historiadora Gabriela Pellegrino Soares,
163
SOARES, Gabriela Pellegrino. Letramento e mediações culturais em pueblos indígenas do centro sul
do México no século XIX. História Revista (UFG), v. 15, p. 97-118, 2010, p. 98. (Disponível em:
http://www.revistas.ufg.br/index.php/historia/article/view/10821/9081).
72
164
CUEVA, Alicia Azuela de la, op. cit., p. 103.
73
165
Nietzsche afirma, a partir da cultura helênica, a existência de dois poderes artísticos – o poder
apolíneo, ligado à criação por meio da experiência onírica, e o poder dionisíaco, “inebriante”, que procura
destruir e libertar o indivíduo “por meio de um sentimento místico de unidade”. O filósofo acredita que “o
contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma
maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm
periódicas reconciliações” (p. 27). Na tragédia grega, Nietzsche afirma que o artista é simultaneamente
extático e apolíneo. In: NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo.
São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
166
Ibidem, p. 32.
167
MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 215.
168
Ibidem, p. 217.
74
169
Essa concepção do teatro como instrumento de cura será melhor apresentado a partir da análise da obra
de Artaud O Teatro e seu Duplo, no capítulo posterior a esse.
170
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 101-113.
75
***
171
PALACIOS, Guillermo, La pluma y el arado – los intelectuales pedagogos y la construcción
sociocultural del “problema campesino” en México, 1932-1934. México: El Colégio de México, 1999, p.
77-78.
172
LÖWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, p. 34.
76
173
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac&Naify, 2001.
174
Hans-Thies Lehman, em sua obra Teatro pós-dramático, afirma que a tese de Peter Szondi de que o
drama teria se renovado totalmente com a “epicização” é restrita. Isso porque essa é apenas “uma
tendência oposta muito limitada”. Para Lehman, o conceito de drama não é o mesmo daquele defendido
por Peter Szondi, uma vez que o concebe como toda obra teatral que conte uma fábula, que tenha um
enredo. Nesse sentido, o autor afirma que as vanguardas artísticas fizeram uma inovação limitada – não
romperam totalmente com o drama, já que ainda se apegavam a uma necessidade de ficção textual.
Antonin Artaud é considerado por ele como um dos precursores do teatro pós-dramático, uma vez que o
artista defendia uma espécie de teatro energético – conceito, esse, muito próximo ao do teatro pós-
dramático. Além disso, Artaud lutava por um teatro independente do texto dramático. (LEHMANN,
Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007).
78
já visavam uma renovação com relação à tradição, rompendo com o passado. Nesse
sentido, surgem o que denominamos de vanguardas artísticas do século XX.
De acordo com Mario de Micheli, podemos afirmar que grande parte do
pensamento contemporâneo de vanguarda surge com a crise da unidade histórica e
política das forças burguesas e populares – unidade cujo ápice se deu em 1848, o ano
das revoluções. Para o autor, neste período de “combustão revolucionária”, a realidade
tornara-se um problema central, sendo, por isso, o grande tema também das artes
plásticas e literárias. Nesse sentido “a realidade-conteúdo, agindo com o seu prepotente
impulso dentro do artista, determinava também a fisionomia da obra, a sua forma”.175
Ao mesmo tempo, não podemos deixar de levar em conta outros aspectos
históricos do século XIX que impulsionaram a transformação das artes neste período,
como a Revolução Industrial, que trouxe a substituição do tradicional artesanato pela
produção mecânica, despertando questionamentos a respeito do papel do artista neste
novo período que parecia iniciar-se. O impacto da fotografia também foi de essencial
importância para esse novo momento das artes plásticas, já que levava os artistas a uma
exploração de aspectos nos quais a máquina não poderia passar a seus lugares. O
mesmo passou a ocorrer com o teatro em relação ao cinema.
Quando Van Gogh chega a Paris em 1886, estando ao lado desta unidade política
de 1848, relacionada ao realismo, este mundo já se esfacelava, sendo que a derrota da
Comuna de Paris trouxera uma grande e definitiva ruptura com este passado. Os
pensamentos e ideais que uniam as artes ao fervoroso discurso político de 1848 se
desmontavam, e esses artistas antes ligados àquela realidade se afastavam.
Van Gogh percebe, assim, a “crise da unidade espiritual do século XIX”, como
coloca Mario de Micheli. Nesse sentido, de acordo com o mesmo,
175
DE MICHELI, Mario. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 09.
176
Ibidem, p. 23.
79
Dentro deste âmbito da crise do fim do século XIX, podemos afirmar também
que, a partir dos anos 1890, tem início um movimento de renovação cultural,
especialmente na Alemanha e na França, que procurava desmistificar, ponto por ponto,
o positivismo. Autores como Bergson, com sua ênfase nos aspectos mais interiores e
subjetivos dos processos de formação, buscando uma concepção mais dinâmica da vida
espiritual, e Nietzsche, com suas concepções a respeito da relação entre arte e vida,
procuravam uma alternativa ao culto da ciência, ao progresso positivista. Nesse sentido,
o final do século XIX esteve marcado por uma cultura “antiintelectualista, vitalista e
radical, em luta aberta contra o positivismo”.178
Segundo Franco Cambi, entram para a discussão aspectos como o “eu e o
inconsciente, a ação e a vontade, a crítica e a dissensão”.179 Destaca-se também um
processo de fragmentação que passou a caracterizar a modernidade – aspecto presente
na crítica de Artaud, já analisada anteriormente, ao mundo moderno. Assim, de acordo
com Carl Schorske,
177
Ibidem, p. 26.
178
CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Editora Unesp, 1999, p. 503.
179
Idem.
80
180
SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle – política e cultura. São Paulo: Ed. da Unicamp/ Cia. das
Letras, 1988, p. 15.
181
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna – do Iluminismo aos movimentos contemporâneos, São Paulo:
Cia. das Letras, 1992, p. 213.
182
GUINSBURG, J. LEIRNER, Sheila (org). O Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 363.
183
MOISÉS, Leyla Perrone, op. cit, p. 181.
81
O Surrealismo
De acordo com David Batchelor, grande parte da história da arte moderna é a
formação de grupos por artistas que, insatisfeitos ou com objetivos opostos aos da arte
oficial, viam nessa coletivização uma forma de realizar seus interesses. 184 Esses grupos
possuíam muitas vezes objetivos e visões antagônicas, e as revistas e discursos dos
participantes eram, às vezes, maiores até do que a própria arte produzida.
Com relação ao Surrealismo, segundo Maurice Nadeau, “nenhum movimento
artístico antes dele, inclusive o romantismo, teve essa influência e essa audiência
internacionais”185. Isso porque esse movimento, nascido na França, espalhou-se e
influenciou artistas em diversos países: Inglaterra, Bélgica, Espanha, Suíça, Alemanha,
Tchecoslováquia, Iugoslávia. Influenciou também os continentes africano, asiático e a
América.
O Surrealismo possui uma forte relação com o período entre-guerras. Ele foi
precedido pelo Cubismo, pelo Futurismo e pelo Dadaísmo, sendo que, do último
movimento, fizeram parte, até 1922, alguns dos maiores representantes do Surrealismo,
tais como André Breton, Louis Aragon, Paul Eluard e Benjamin Péret.
Ainda segundo Maurice Nadeau,
O Dadaísmo possuía uma luta aberta contra a ordem estabelecida, a qual os seus
membros justificariam pelo perfil destruidor da guerra, cujo caráter era uma prova
184
FER, Briony. BATCHELOR, David. WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo. A arte no
entre-guerras. São Paulo: Cosac&Naify, 1998, p. 18.
185
NADEAU, Maurice. História do Surrealismo. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985, p. 14.
186
Ibidem, p. 15.
82
187
VIRMAUX, Alain. op. cit, p. 138.
188
FER, Briony. BATCHELOR, David. WOOD, Paul, op. cit, p. 47.
83
189
NADEAU, Maurice, op. cit, p. 46.
190
FER, Briony. BATCHELOR, David. WOOD, Paul, op. cit, p. 182.
191
Ibidem, p. 50.
192
Ibidem, p. 176.
84
1926, explicita que um dos objetivos seria a montagem de peças de Jarry. No entanto,
isso nunca foi concretizado.
Segundo Luiz Fernando Ramos, as obras surrealistas não devem ser limitadas
pelo movimento em si, ou seja, pelos marcos históricos do movimento surrealista. Dessa
forma, a peça Ubu-Rei, apesar de ter sido criada antes deste movimento artístico, pode
ser considerada como o primeiro espetáculo surrealista. Também nesse sentido, obras
caracterizadas como pertencentes ao Futurismo italiano e ao Cubo-futurismo russo
também podem, para Ramos, ser consideradas como surrealistas devido à sua
dramaturgia e às suas encenações. Ele afirma que, “nos dois casos, com programas
mais amplos e menos recortados que o dos surrealistas, expandiram-se os limites da
cena naturalista e realizaram-se as projeções de uma nova teatralidade e de uma cena
emancipada da literatura”.193
Por este trabalho ser uma pesquisa historiográfica, pretendo apresentar o
movimento surrealista como um acontecimento histórico e, por isso, as obras
surrealistas a serem tratadas serão aquelas que se encontram dentro dos marcos
históricos do movimento. Uma exceção será aberta à obra de Guillaume Apollinaire
que, apesar de ter escrito seus textos antes dos marcos do movimento surrealista, foi o
inspirador, como veremos, do nome do movimento.
Conforme Maurice Nadeau,
193
GUINSBURG, J. LEIRNER, Sheila (org). O Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 382.
194
NADEAU, Maurice, op. cit., p 14.
85
195
APOLLINAIRE, Guillaume. As mamas de Tirésias. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1985, p. 17.
196
APOLLINAIRE, Guillaume. Poesia moderna. Barcelona: Libros Rio Nuevo, 1981, p. 09.
197
APOLLINAIRE, Guillaume. As mamas de Tirésias, op.cit, p. 18.
86
Alguns anos depois, André Breton utilizaria o termo cunhado por Apollinaire a
fim de nomear o movimento que surgia. O Primeiro Manifesto Surrealista é do ano de
1924, e marca a fundação oficial do movimento que, segundo Maurice Nadeau, estava,
antes disso “no ar”200. De acordo com David Batchelor, esse primeiro manifesto é
frequentemente associado a uma crítica à racionalidade da sociedade burguesa, em prol
do “irracional, do fantástico e dos sonhos”. No entanto, Breton tinha em mente algo
mais específico ao condenar o “racionalismo absoluto que ainda está em voga”, uma vez
que “a expressão ‘chamado à ordem’ na França do pós-guerra foi enfática na sua
invocação da disciplina, da mente clara e da racionalidade do mundo francês.”. Parece
que foi muito mais esse fator que influenciou a crítica de Breton. 201 Esse “chamado à
ordem” na França estava ligado ao grupo dos puristas e da revista L’Esprit Nouveau,
antagônicos aos dadaístas e surrealistas. Apesar de serem grupos que tiveram
desenvolvimentos paralelos contrários no período entre-guerras, ambos foram
influenciados pelas ideias cubistas, principalmente pela obra de Pablo Picasso e
Guillaume Apollinaire. Foi em torno desse material comum que ambos os grupos –
puristas e surrealistas e dadás – se confrontaram e desenvolveram seu pensamento.
198
Ibidem, p. 21.
199
GUINSBURG, J. LEIRNER, Sheila (org), op. cit, p. 383.
200
NADEAU, Maurice, op. cit, p. 52.
201
FER, Briony. BATCHELOR, David. WOOD, Paul, op. cit, p. 50.
87
Para Briony Fer, este período do movimento surrealista foi um dos momentos
nos quais o marxismo e a psicanálise foram relacionados entre si de forma complexa.
No projeto surrealista, havia uma importante “conjunção crítica do psíquico e do
social”.205
Em 1927, grande parte dos surrealistas aderem ao Partido Comunista francês,
sendo que, no fim de 1933, segundo Maurice Nadeau, Breton, Eluard e Crevel são
excluídos do partido por discordarem da política comunista frente às artes. Breton
critica a arte de propaganda e se ergue a favor de uma arte revolucionária por si mesma,
com força inerente.206 Já segundo Briony Fer, Breton se desliga do partido, “desiludido
pela falta de interesse do partido em aceitar a relativa autonomia da posição surrealista e
por sua recusa em admitir a necessidade de experimentação por parte da vanguarda”.
Além disso, “o seu comprometimento e de outros surrealistas com uma plataforma
trotskista [...] era irreconciliável com a posição stalinista adotada pelo Partido
Comunista Francês”.207
Em período anterior a esse, em 1930, o grupo desenvolve o Segundo Manifesto
do Surrealismo, cujo conteúdo explora o engajamento dos artistas ao marxismo. André
Breton afirma que “o surrealismo se considera indissoluvelmente ligado [...] à
abordagem do pensamento marxista e somente a ela”.208 Essa atitude dos surrealistas
provocou conflitos dentro do movimento. Antonin Artaud foi “excomungado” do grupo
após essa guinada ao marxismo. Segundo Monique Plaza, em A Escrita e a Loucura,
204
FER, Briony. BATCHELOR, David. WOOD, Paul, op. cit, p. 51.
205
Ibidem, p. 180.
206
Em 1938, André Breton viaja ao México e lá encontra apoio em León Trotski na defesa de que a arte
deve permanecer independente de todas as formas de governo para poder estabelecer o seu poder
revolucionário. É lançado, então, um manifesto: “Por uma arte revolucionária independente”. Esse tema
será pormenorizado no último capítulo desta dissertação.
207
Ibidem, p. 204.
208
LÖWY, Michael, op. cit, p. 32.
89
209
PLAZA, Monique. A escrita e a loucura, p. 35, apud: FARIAS, José Niraldo de. O surrealismo na
poesia de Jorge Lima. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 24.
210
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p.107. Segundo Luiz Fernando Ramos,
“a revisão do surrealismo feita no México deixa claro que a ruptura de Artaud nunca foi com o
surrealismo que ele próprio projetou, mas contra a redução e a racionalização excessiva que a aliança com
o marxismo implicou”. (GUINSBURG, J. LEIRNER, Sheila (org), op. cit, p. 390).
211
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 101.
212
Ibidem, p. 105.
90
213
Ibidem, p. 109.
214
Ibidem, p. 110.
91
O verdadeiro teatro, assim como a cultura, jamais foi escrito, uma vez que a
escrita paralisa o espírito, cristalizando-o em uma forma que, por sua vez, faz nascer a
idolatria.
Analisando os deuses do México nos Códices, Artaud relata que “esses deuses
não nasceram do azar, mas, sim, estão na vida como num teatro e ocupam os quatro
rincões da consciência do homem onde jazem o som, o gesto, a palavra e o sopro que
esculpe a vida”. Os brancos chamam-nos de ídolos, mas os indígenas sabem fazer vibrar
a força desses deuses, assim como o teatro que, “por uma distribuição musical de força,
invoca a potência dos deuses”.218
Saindo da busca por um viés surrealista na própria Europa, Artaud buscaria as
raízes de sua arte num outro país, numa outra cultura. No entanto, é importante ressaltar
215
Ibidem, p. 187.
216
Ibidem, p. 127.
217
Ibidem, p. 128.
218
Ibidem, p. 130.
92
Apesar de sua saída do movimento, André Breton afirmará, nos anos 1950, que
Artaud foi o mais surrealista de todos os artistas que integraram o movimento, já que
“reinventou o teatro para alcançar aquela camada da vida submersa que o surrealismo
tinha ido buscar na realidade e pelo discurso”.220
De acordo com Silvana Garcia, “ao não condescender com uma proposta
essencialmente artística, Breton afastou do Surrealismo a possibilidade de ter um teatro
à altura de sua literatura”, uma vez que as propostas de Artaud, mesmo que à margem,
possuiriam inúmeros pontos de contato com o Surrealismo. Em Artaud, há uma grande
busca do “sentido de arte vivenciada”, além da manifestação do “oculto”, do “universo
do subconsciente”, do “espaço privilegiado oferecido à imaginação, ao acaso, ao
humor”.221
Antonin Artaud222 e Roger Vitrac eram os únicos artistas filiados ao movimento
surrealista cujo foco de trabalho era o teatro. Dois anos após assinarem o Primeiro
Manifesto Surrealista, ambos se desligaram do movimento e, juntamente com Robert
Aron, inauguraram um novo teatro no dia 25 de novembro de 1926, como já comentado
219
ESSLIN, Martin. Artaud. Ed. Cultrix. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1978, p. 30.
220
GUINSBURG, J. LEIRNER, Sheila (org), op. cit, p. 387.
221
GARCIA, Silvana. As Trombetas de Jericó – teatro das vanguardas históricas. São Paulo: Hucitec,
Fapesp, 1997, p. 254.
222
Antonin Artaud, durante o período de 1921 a 1934, participou de dezoito peças teatrais, tais como A
Vida é um Sonho, de Calderón de la Barca e Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi
Pirandello. Ele publicou seu primeiro livro de poemas, Tric-Trac Du Ciel, em 1923 e, a partir de 1924,
participou de vinte filmes, de diversos diretores. No ano de 1935, Artaud estreou a peça Os Cenci,
baseado numa obra do romântico Shelley, com cenário de Balthus e música de Roger Désormière. A peça
ficou apenas duas semanas em cartaz.
93
223
GUINSBURG, J. LEIRNER, Sheila (org), op. cit, p. 386.
224
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 170-171.
94
225
Apud GUINSBURG, J. LEIRNER, Sheila (org), op. cit, p. 371.
226
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense,
1994, p. 21-35.
227
G. DE LA CONCHA, Victor (Ed.). El Surrealismo. Madrid: Taurus Ediciones, 1982, p. 38.
95
interessantes no que tange aos aspectos teatrais do Surrealismo. Sua viagem ao México
na década de 1930 em busca de uma cultura primitiva – com todos os seus aspectos
mágicos, “irracionais” – que trouxesse uma solução para a decadência da sociedade
racionalizada europeia pode ser comparada com a busca dos surrealistas por uma
compreensão dos mecanismos do inconsciente em busca de uma sociedade distinta
daquela estabelecida pelos valores burgueses. Nesse sentido, apesar de repudiar a
Europa moderna, Artaud era eminentemente moderno e europeu. Como esse artista
francês em busca do modo de vida dos tarahumaras, os surrealistas olhavam para dentro
de si mesmos, investigavam os mitos ancestrais, pesquisavam teorias como a psicanálise
a fim de questionar o presente e procurar soluções para essa sociedade presa à
racionalidade, para essa França que, em parte, vivia um “chamado à ordem” no período
entre-guerras. Os surrealistas percebiam o controle social e psíquico como uma forma
de opressão social, e viam na loucura um caminho para a libertação. Artaud foi ele
próprio esse caminho. E, como não poderia deixar de ser, não podemos excluir esse
aspecto da personalidade do artista francês ao analisar sua quase obssessão por
encontrar uma cultura indígena “pura” na realidade mexicana contemporânea mestiça.
228
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 196-197, Tomo V.
96
Para Artaud, o teatro deveria se remeter, em primeiro lugar, aos sentidos, e não
ao espírito, tal como ocorre quando é dada importância imprescindível ao diálogo,
deixando de lado todos os aspectos específicos da arte teatral. Dessa forma, “o teatro é a
encenação, muito mais do que a peça escrita e falada”.231 Nesse sentido, a cena deve ser
vista como um espaço concreto, material, que fale a sua linguagem concreta e que pede
para “ser preenchido”.
Substituindo a poesia da linguagem por uma poesia no espaço, elementos antes
esquecidos, tais como “música, dança, artes plásticas, pantomima, mímica, gesticulação,
entonações, arquitetura, iluminação e cenário”, se destacariam nessa nova forma de
perceber o teatro.
Na conferência “El teatro y los dioses”, realizada no México em fevereiro de
1936, Artaud afirma, como anteriormente comentado a partir da obra O teatro e seu
duplo, que o verdadeiro teatro, assim como a cultura, jamais foi escrito, uma vez que a
229
Em outra carta a Jean Paulhan, de abril de 1936, Artaud reclama da editora Gallimard: “[...] seja o que
pensem em Gallimard um livro como O teatro e seu Duplo pode fazer dinheiro se uma propaganda sabe
enviá-lo para onde faz falta. Muitas centenas de exemplares podiam ser vendidas no México. Que
Gallimard não me pague se quiser, mas que Deus faça aparecer esse livro”. (SCHNEIDER, Luis Mario
(org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 251, 260).
230
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 35.
231
Ibidem, p. 40.
97
escrita paralisa o espírito, cristalizando-o em uma forma que, por sua vez, faz nascer a
idolatria. 232
Por meio da linguagem material e sólida almejada pelo artista, o teatro ocidental
poderia finalmente diferenciar-se da palavra. Isso porque Artaud afirmava que, ao
contrário do teatro oriental, na cena ocidental não há metafísica, mas, sim, tendências
psicológicas que colocam o texto e o diálogo em primeiro plano, deixando os elementos
da encenação reféns da palavra.
A linguagem articulada até poderia ser crucial para o teatro, desde que seu
sentido estivesse próximo do Encantamento, e não da simples utilização do dia-a-dia.
Com isso, Artaud se aproxima de um dos tópicos essenciais de sua maneira de ver o
teatro: para ele, “tudo neste modo poético e ativo de considerar a expressão em cena nos
leva a afastarmos da acepção humana, atual e psicológica do teatro para reencontrar sua
acepção religiosa e mística, cujo sentido nosso teatro perdeu completamente”. 233
Em seu artigo “O teatro e a peste”, Antonin Artaud compara os dois elementos
deste título. Para ele, o teatro e a peste são crises que somente se resolvem por meio da
cura ou da morte. Ou seja, diante da peste e do processo teatral, resta-nos apenas a
morte ou a extrema purificação. A ação teatral, ao fazer os homens
Nesse sentido, podemos afirmar que, para Artaud, o teatro possuía um sentido
redentor235, tendo como uma das suas principais características o poder de cura. Para
ele, o teatro teria a função de vazar um grande abscesso coletivo, moral e social, o que
se aproximaria, como metáfora, das feridas da peste.
232
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 130.
233
ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 47.
234
Ibidem, p. 29.
235
Segundo Artaud, “a questão que se coloca é saber se neste mundo em declínio, que está se suicidando
sem perceber, haverá um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior do teatro, que
devolverá a todos nós o equivalente natural e mágico dos dogmas em que não acreditamos mais”. Ibidem,
p. 29.
98
Para Artaud, a mais alta forma do teatro seria a tragédia. 237, a qual possuía
capacidade de cura por meio da catarse. Como veremos neste capítulo, Artaud buscava,
como no período antigo, uma purificação por meio da encenação. A purgação pela
vivência dos sentimentos de terror e de comiseração causados pela tragédia, assim como
o prazer provindo da percepção de que aquela história contada não pertencia ao
espectador que a vivenciou emocionalmente, seriam efeitos bem-vindos à plateia do
teatro concebido pelo artista.
Artaud chega a escrever, no México, uma crítica de teatro sobre uma montagem
da tragédia Medéia, de Sêneca, pensador que morou em Roma grande parte de sua vida.
Essa foi a única crítica teatral feita no país –, publicada em junho no El Nacional.
Para Artaud, à atriz Margarita Xirgu faltava “fogo”. Ele afirma no artigo que
Nesta tragédia era necessário fazer saltar monstros, fazer ver que se
estava entre monstros, monstros da imaginação primitiva, vistos por
meio do espírito primitivo. Uma pessoa não se aproxima dos monstros
facilmente.238
236
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 188.
237
Ibidem, p. 155.
238
Ibidem, p. 144.
99
239
Idem.
240
Ibidem, p. 147.
241
Idem.
242
SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. São Paulo: L&PM, 1972, p. 16.
243
Ibidem, p. 18.
244
Idem.
100
função social para as artes. Por meio do resgate dos rituais sagrados promovido pela
ação teatral que o artista almejava, o teatro ocidental poderia finalmente reencontrar a
sua essência mágica, espiritual.
No artigo “La anarquia social del arte”, também escrito no México em agosto
de 1936 e publicado no periódico El Nacional, Artaud comenta a respeito de seu ponto
de vista sobre a função social da arte:
Entretanto, há épocas nas quais não é possível perceber a função do artista com
relação ao coletivo, assim como há artistas que não conseguem chegar a essa
identificação entre suas próprias questões e as “cóleras coletivas do homem”.246
Na raiz do mundo moderno está o menosprezo aos valores intelectuais, que se
confunde com a ignorância sobre estes mesmos valores. O liberalismo capitalista
relegou as atividades intelectuais ao último plano e o homem moderno vive como “uma
besta ou como o homem insensato dos primeiros tempos”.247
Já no artigo “O teatro alquímico”, presente na obra O teatro e seu Duplo, o
artista afirma que o teatro não deve ser um Duplo da “realidade cotidiana e direta da
qual ele aos poucos se reduziu a ser apenas uma cópia inerte”, mas, sim, ser o Duplo de
“outra realidade perigosa e típica, em que os Princípios, como golfinhos, assim que
mostram a cabeça, apressam-se a voltar à escuridão das águas”248.
Esse teatro “perigoso”, portanto, se relacionaria com os aspectos mais
inconscientes dos atores e da platéia. E sua forma não deveria ser dependente do texto –
pelo contrário, o teatro deveria buscar sua autonomia como arte.
Ainda segundo Susan Sontag, Artaud buscava uma forma de arte total, uma
espécie de arte mestra que absorveria todas as outras. As formas artísticas que poderiam
conceder isso seriam o teatro e o cinema. Excluindo o cinema, já que, como afirma
245
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 200.
246
Ibidem, p. 201.
247
Ibidem, p. 202.
248
ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 49,50.
101
249
MÈREDIEU, Florence de, op. cit, p. 472.
250
SONTAG, Susan, op. cit, p. 30.
251
ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 75.
252
Ibidem, p. 77.
253
Ibidem, p. 80.
102
254
Ibidem, p. 81.
255
Ibidem, p. 56.
256
Ibidem, p. 63.
257
Ibidem, p. 64.
103
um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de
sentir atuais e que todo o mundo compreenda.258
As obras-primas são pouco conhecidas pela massa não por falta de entendimento
por parte da população, mas, sim, porque já perderam a sua capacidade de comunicação
devido à sua forma antiga. Dessa maneira, elas não respondem às necessidades dos
tempos atuais. Apesar de tal posicionamento, Artaud planejou a montagem de clássicos
mais de uma vez em sua vida.
Para Artaud, seria inútil criticar o mau gosto do povo levando em conta as peças
que eram apresentadas naquele período. Assim, ele até desafia a quem pudesse
apresentar um espetáculo válido para o tempo atual ao dele.
Ele ainda afirma que é por causa de nossa veneração diante do que já foi feito
que não conseguimos encontrar a força vital que está por baixo. Essa veneração ao
passado nos petrifica, nos estabiliza de uma forma negativa. É necessário que possamos
trazer todas as artes para uma necessidade central novamente, pois é com a intensidade
de um vulcão em erupção que o teatro e outras formas de arte deveriam nos tocar. Se
isso não for possível, para Artaud, seria melhor parar de criar artisticamente. O teatro
seria o “único lugar do mundo e o último meio de conjunto que nos resta para alcançar
diretamente o organismo (...)”259. Desse modo, a seu ver, o teatro possuía uma força
revolucionária que poderia tirar as pessoas de uma “baixa sensualidade” na qual
estavam mergulhadas. O teatro poderia ser um meio de sair do marasmo, uma forma de
reavivar forças até então escondidas pelo tédio vivido naquele período.
Artaud, então, propõe
258
Ibidem, p. 83.
259
Ibidem, p. 91.
260
Ibidem, p. 93.
104
261
Ibidem, p. 96.
262
Ibidem, p. 101.
263
Ibidem, p. 103.
264
Ibidem, p. 105.
265
SONTAG, Susan, op. cit, p. 29. (Como comentado anteriormente, a partir de 1926, a sua busca por
uma forma de arte total centrou-se no teatro).
105
266
ARTAUD, Antonin, op cit, p. 112.
267
Ibidem, p. 114.
106
Uma peça em que não houvesse essa vontade, esse apetite de vida
cego, capaz de passar por cima de tudo, visível em cada gesto e em
cada ato, e do lado transcendente da ação, seria uma peça inútil e
fracassada.268
Artaud ainda comenta em outra carta que ele utilizou o termo “crueldade”
[...] como poderia ter dito “vida” ou como teria dito “necessidade”,
porque quero indicar sobretudo que para mim o teatro é ato e
emanação perpétua, que nele nada existe de imóvel, que o identifico
como um ato verdadeiro, portanto vivo, portanto mágico.269
268
Ibidem, p. 119.
269
Ibidem, p. 134.
270
Ibidem, p. 140.
107
em tempo real da encenação. “Criar Mitos” seria a função primordial do teatro que ele
almejava.
Ao propor uma reflexão sobre a escrita e o teatro, Artaud afirma, na sua terceira
conferência no México, “El teatro y los dioses”, que
271
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 129.
272
ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 154.
273
Ibidem, p. 144.
274
Ibidem, p. 148.
108
275
Ibidem, p. 148-149.
276
Ibidem, p. 149.
277
VIRMAUX, Alain, op. cit, p. 59.
109
cadeias psicológicas do teatro ocidental a fim de que esse fosse novamente vinculado à
vida. Nesse sentido, segundo Cassiano Sydow Quilici, Artaud estava vinculado a um
modernismo “que se constrói como vertente crítica, a partir de referências negadas pelo
processo de secularização da cultura ocidental”.278 A partir de rituais milenares, Artaud
pretendia ir contra o teatro que se fazia dependente da literatura. Como um artista
vinculado a certo modernismo, Artaud pretendia inovar a forma de fazer teatro.
Em seu texto a respeito da montagem de A conquista do México279, Artaud
afirma que nesse espetáculo o destaque seria, em primeiro lugar, dado aos
acontecimentos históricos, e apenas posteriormente aos seres humanos e suas
singularidades. A montagem deveria mostrar, tal como comentado anteriormente, o
conflito entre o catolicismo europeu e a sociedade asteca, verdadeiramente
espiritualizada280. Com isso, o resultado poderia ser uma deflagração inédita de imagens
e forças que apareceriam em “diálogos brutais”.281
Na criação cênica do imperador asteca Moctezuma, seria necessário encontrar
duas personagens: em primeiro lugar, aquele que aceita seu destino e a fatalidade vinda
dos “astros”. E, em segundo lugar, aquele que se questiona se não estava equivocado ao
submeter-se. Moctezuma seria, portanto, uma personagem carregada de conflitos
internos, sendo, acima de tudo, alguém altamente espiritualizado – um “mago”, nas
palavras de Antonin Artaud.
Fora de Moctezuma, seria possível encontrar o “espírito do populacho” com suas
opiniões, suas demandas e suas dúvidas sobre os acontecimentos. Artaud afirma que “o
problema teatral consiste em determinar e harmonizar essas linhas de força,
concentrando-as e extraindo delas melodias sugestivas”.282
Nesse sentido, Artaud une as suas expectativas a respeito do Teatro da
Crueldade com a montagem sobre a conquista do México. Isso porque tal criação
deveria ser preenchida por pantomimas, ritos, músicas, etc, tal como ele comentou a
respeito desse novo teatro.
No primeiro ato da peça a ser desenvolvida, seria mostrada ao público uma cena
do México à espera de um acontecimento mágico, com suas cidades, reinos, campos,
278
QUILICI, Cassiano Sydow, op. cit, p. 154.
279
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 221-228.
280
“Luego, frente al desorden de la monarquia europea de la época enclavada em principios materiales
totalmente injustos y groseros, se aclara la jerarquía orgánica de la monarquía azteca establecida sobre
indiscutibles princípios espirituales”. Ibidem, p. 222.
281
Idem.
282
Ibidem, p. 223.
110
283
MONTERO, Paula. “Índios e missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural”. In.
MONTERO, Paula (org). Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo, Globo,
2006, p. 50.
111
de sua ideia é que a peça teria atos grandiosos, com muitos atores nas cenas de batalha,
cenários enormes, máscaras, jogos de espelho para criar algumas ilusões de ótica.
Moctezuma deveria ser criado com grande dramaticidade devido aos seus conflitos
internos. Os grandes atos a serem realizados mostrariam, sobretudo, os acontecimentos
históricos na visão de Artaud.
É curioso perceber que, apesar de querer mostrar a destruição da sociedade pré-
hispânica e de todos os elementos mágicos inerentes a ela – os quais Artaud desejava
reencontrar em sua viagem ao México –, ele não vitimou os povos indígenas em seu
projeto de montagem. No último ato, os espanhóis apareceriam massacrados pelos
nativos, e o caos reinaria no México sem Moctezuma, já morto por Cortez e seus
guerreiros. O final seria, portanto, apoteótico, influenciado pela cinematografia, com
imagens fortes e sem nenhum texto planejado.
No entanto, apesar de suas grandes singularidades em relação ao modo de
perceber a arte teatral de sua época, não podemos afirmar que Artaud era um homem “à
frente de seu tempo”.
Segundo Lucien Febvre, em O problema da incredulidade no século XVI,284
cada civilização possui suas próprias ferramentas mentais, que são compartilhadas pelas
pessoas que viveram numa mesma época. Dessa forma, não é possível pensar em ideias
descoladas de seu tempo. Os autores denominados “gênios” de seu período não
escreveram “à frente de seu tempo”. Eles se utilizaram de ideias de seu momento
histórico para construir uma reflexão inovadora.
Tal como comentado anteriormente, Artaud possuía características de um artista
moderno, que buscava revolucionar a forma de se perceber a arte de seu tempo. A ideia
de unir o físico ao espiritual novamente no Ocidente, conformando um “homem total”,
era um grande objetivo de sua concepção a respeito do teatro moderno. Segundo
Cassiano Sydow Quilici, “na exaltação artaudiana de uma cultura que remexe o ‘humus
profundo’ do homem, ressoa o ideal romântico da identidade entre o homem e a
natureza”.285
Na obra Artaud y el teatro moderno286, León Mirlas tenta desconstruir a imagem
de Artaud como um “visionário” das artes cênicas. Para tanto, ele afirma que todas as
discussões que colocam esse artista como um verdadeiro mito estão equivocadas. Para
284
FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo,
Companhia das Letras, 2009.
285
QUILICI, Cassiano Sydow, op. cit, p. 164.
286
MIRLAS, León. Artaud y el teatro moderno. Buenos Aires, El Ateneo, 1978.
112
287
GARCIA, Silvana, op. cit, p. 18.
288
Ibidem, p. 21.
289
BEHAR, Henry. Sobre el teatro Dadá y Surrealista. Barcelona: Barral Editores, 1970, p. 11.
114
290
CARLSON, Marvin. Teorias do teatro – estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo:
Editora Unesp, 1997, p. 331.
291
Idem.
292
Ibidem, p. 334.
293
Ibidem, p. 335.
115
294
Ibidem, p. 341.
295
Ibidem, p. 345.
296
Ibidem, p. 349.
297
Idem.
116
pensamento de Antonin Artaud: a questão de se a função do ator deveria ser vista como
autônoma ou apenas como um instrumento para a apresentação do trabalho do
dramaturgo. Jacques Copeau e seus partidários da França se posicionaram da seguinte
forma: pensavam que o texto deveria ter um papel primordial, mas, ao mesmo tempo,
deveria dar espaço à teatralização. Seu amigo dramaturgo Henri Ghéon ofereceu uma
resposta mais aprofundada: considerava o papel primacial do drama, no entanto, o
dramaturgo deveria criar uma obra que incentivasse uma encenação, uma
exteriorização. As palavras deveriam estimular a ação, a imagem, o gesto, deixando
espaço também para a imaginação do ator.
Louis Jouvet, sucessor de Copeau, rejeitava o realismo, afirmando que o teatro
deveria apelar para o espírito, mostrando mais do que os olhos e os ouvidos podem ver e
escutar. Para ele, o teatro futuramente deveria “elevar os direitos do espiritual sobre os
do material, o mundo sobre a ação, o texto sobre o espetáculo”.298
Jouvet, juntamente com Charles Dullin, Georges Pitoeff e Gaston Baty fundou,
em 1927, uma associação que dominou o teatro francês na década de 1930. Assim como
Copeau, defendiam a centralidade do texto e a busca por uma forma espiritual e não
naturalista nas artes cênicas.
Apenas Gaston Baty não se aproximou dessa concepção teórica de Copeau. Para
ele, o texto possuía um papel fundamental, no entanto, para além disso havia a
experiência que se encontrava distante do universo racional. Nesse sentido, “se o teatro
quiser apresentar uma ‘visão integral do mundo’, deverá usar a expressão plástica, a cor,
a luz, a música, o gesto e assim por diante, para evocar o mundo para além da palavra e
do texto”.299 Segundo Baty, o lado espiritual deveria ser enfatizado no teatro, e seriam
os elementos não textuais os responsáveis por isso. Além disso, na encenação todos os
elementos deveriam ganhar igual importância – cenário e iluminação deveriam ser tão
significativos quanto a interpretação.
Para Antonin Artaud, a partir do artigo “El teatro francés busca um mito”300,
publicado em junho de 1936 em El Nacional, a busca do teatro francês não era
relacionada aos textos, mas, sim, a uma linguagem teatral, a qual não estava nos coros,
mas no espaço. Percebe-se, dessa forma, o posicionamento do artista com relação ao
debate apresentado acima. Para ele, esta nova “língua” estava sendo inventada por
298
Ibidem, p. 358.
299
Ibidem, p. 359.
300
SCHNEIDER, Luis Mario (org.), op. cit, p. 154-156.
117
301
Ibidem, p. 154.
302
Ibidem, p. 156.
303
Ibidem, p. 156-173.
304
Os nomes apontados são: Lugné-Poe, Sylvain, Charles Dullin, Jacques Copeau, Louis Jouvet, George
e Ludmilla Pitoeff, Suzanne Despres, Gaston Baty, Valentine Tessier, Genica Athanssiú, Roger Karl,
Falconetti. (Ibidem, p. 157).
305
Ibidem, p. 158.
118
atriz Marguerite Jamois, Georges Pitoeff e Ludmilla Pitoeff, Louis Jouvet, Salzmann e
sua elogiada iluminação para teatro. Muitos desses, conforme vimos anteriormente,
estavam engajados no debate a respeito da encenação versus dramaturgia, discussão à
qual Artaud também se fazia presente. Tece também comentários sobre o teatro Alfred
Jarry e sobre o teatro balinês, que vira em 1931 na Exposição Colonial. Compara ambos
e conclui que “um e outro se diria que se alimentam nas próprias fontes mágicas de um
mesmo primitivo inconsciente”. Artaud afirma que
306
Ibidem, p. 171.
307
Ibidem, p. 172.
119
308
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 133.
309
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999, p. 229.
310
Idem.
121
Pôr a coisa diante dos olhos, que seja, mas precisamente pondo uma
outra coisa: essa é a originalidade da narrativa de viagem. Como
figura desse tipo de narrativa, o paralelo é portanto uma ficção que faz
com que o destinatário veja como se estivesse lá, mas dando a ver uma
outra coisa.312
311
Ibidem, p. 240.
312
Ibidem, p. 242.
122
Todorov atribui uma enorme importância aos relatos de viagem. Seria nas
relações de alteridade que poderíamos nos conhecer. Neste livro, ele tece, portanto,
uma análise a respeito do outro, encontrado nos participantes da conquista da América,
para comparar consigo mesmo e com a sua percepção da realidade histórica
contemporânea que divide com seus leitores. Durán, Colombo, Cortez, Las Casas,
Sahagún – personagens outras que são colocadas em paralelo com o si mesmo de
Todorov e de sua época.
Poderíamos afirmar que, na verdade, esse seria, no geral, o resultado de qualquer
trabalho historiográfico: estamos a todo tempo refletindo sobre o momento
contemporâneo e suas indagações ao analisarmos temas do passado. Um trabalho
historiográfico é sempre um trabalho sobre o presente do historiador, assim como os
produtos de uma viagem são sempre narrativas que dizem respeito às perspectivas do
viajante, tanto individuais como históricas.
313
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
314
Ibidem, p. 17.
123
Dentre os textos escritos por Antonin Artaud durante a sua passagem pelo
México, há um, que foi possivelmente apresentado numa conferência315, que se
denomina “Primer contacto con la Revolución Mexicana”316, e que foi publicado no
jornal El Nacional no dia 3 de junho de 1936. Neste artigo, Artaud primeiramente
elogia a Revolução Mexicana: ao contrário da juventude francesa, que beira o desespero
devido à crise na qual o país se encontra – período entre-guerras, questionamento sobre
a racionalidade –, a juventude mexicana não está a ponto de se desesperar, já que
participa da revolução e fortalece os projetos que pretendem socializar o México.
No entanto, ele acredita que a juventude francesa sofre as angústias de uma
verdadeira iluminação. “Sua ideia [da França] de cultura é revolucionária, e o que vim
buscar na terra do México é, justamente, um eco ou melhor uma fonte, uma fonte física
verdadeira desta força revolucionária”317.
Dessa forma, ele afirma:
315
Segundo Florence de Méredieu, “Primer contacto con la Revolución Mexicana”, conforme já
comentado, foi a última conferência de Artaud, apresentada na Liga de Escritores e Artistas
Revolucionários (L.E.A.R). Essa liga, fundada em 1933, era composta por artistas e intelectuais
engajados na luta anti-fascista. Nesta conferência, Artaud mostra que sua concepção da revolução
mexicana não se assemelhava à Revolução que ocorrera no país. In: MÈREDIEU, Florence de, op. cit, p.
545. Já Luis Mario Schneider afirma que essa conferência na L.E.A.R. jamais ocorreu. In:
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 48.
316
SCHNEIDER, Luis Mario (org.). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 138-144.
317
Ibidem, p. 141.
318
Ibidem, p. 142.
124
Isso significa que, ao mesmo tempo em que se observava a paisagem local e seus
traços típicos, esperados conforme as expectativas do viajante, era necessário não ver a
paisagem. Isso porque as suas características já estavam pré-dadas de acordo com as
ideias que o narrador possuía do local.
319
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui – o narrador, a viagem. São Paulo: Cia. das Letras,
1990.
320
Ibidem, p. 25.
125
Diante do exposto, questiona-se: até que ponto um viajante pode observar com
seus próprios olhos a realidade do lugar no qual se encontra? Qual é o limite entre suas
expectativas e ideias pré-concebidas a respeito do local por onde viaja e o que ele
realmente encontra em sua viagem? Os produtos de uma viagem são em grande parte
uma narrativa de si próprio, tal como se tem constatado desde o início desta pesquisa de
mestrado.
Além disso, não podemos nos esquecer do impacto, das formas de apropriação
que o relato de viagem causa no próprio local que descreve: qual é a importância da
narrativa para o lugar descrito? Isso porque o narrador apresenta uma forma de se
observar, de organizar a paisagem que é o objeto de seu relato, definindo formas de
descrevê-la, de comenta-la.
Antonin Artaud chegara ao México, conforme constatamos nos capítulos
anteriores, com ideias pré-concebidas sobre a Revolução Mexicana e as culturas
indígenas. Por isso, a esta pesquisa coube também refletir, a partir de seus relatos e
impressões, ao longo dos capítulos anteriores, o quanto a vivência neste país americano
alterou as suas pré-concepções sobre esses assuntos.
No caso dos produtos de uma viagem, não podemos nos fixar nem na ideia de
que o narrador está afirmando somente conceitos pré-concebidos socialmente nem na
ideia de que a narrativa é fruto exclusivo de suas próprias experiências e de sua
individualidade. É necessária uma conexão entre ambas as partes, tendo consciência,
novamente, de que o falar a respeito do outro é sempre falar também a respeito de si
mesmo, seja no particular (biografia) e/ou no todo (social).
Diante de tudo isso, podemos buscar no artigo analisado de Artaud pontos de
tensão entre o individual e o social: ele afirma em seu texto que há, na Europa, uma
espécie de “alucinação coletiva” a respeito da revolução no México. Acredita-se na
existência de um movimento anti-europeu bem definido, e também na ideia de que há
um desejo do povo mexicano de voltar às raízes pré-cortesianas.321 “Numa palavra, crê-
se que a Revolução do México é uma revolução da alma indígena, uma revolução para
conquistar a alma indígena tal como existia antes de Cortés”.322
321
Segundo Florence de Mèredieu, Artaud teve grandes influências dos meios ocultistas que frequentou.
Dois exemplos são o orientalista e espiritualista René Guénon e o filósofo católico Jacques Maritain.
Ambos declaram-se “antimodernos” e “preconizam de fato um retorno à civilização medieval”. Artaud,
de certa forma, alimentou-se por essas ideias em seus textos escritos no México. In: MÈREDIEU,
Florence, op. cit, p. 603.
322
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 142.
126
A partir disso, questiona-se: até que ponto podemos confirmar que essa ideia
sobre a Revolução Mexicana na França é coletiva e até que ponto Artaud utiliza-se deste
argumento como forma de fortalecer a sua pré-concepção a respeito dos acontecimentos
no México? Essa tensão entre o particular e o todo possivelmente ocorre a todo
momento em impressões de viagens: mistura-se a base cultural coletiva do narrador com
as suas expectativas pessoais, biográficas. É a partir dessa perspectiva que, mais adiante,
compararemos as projeções de Antonin Artaud sobre o México com aquelas
encontradas em outros artistas que também criaram expectativas sobre o mesmo país e
viajaram para lá em período mais ou menos contemporâneo.
Por enquanto, o que podemos confirmar é que aquela seria, portanto, a ideia de
Revolução que Artaud possuía antes de sua viagem ao México – uma Revolução
próxima das tradições indígenas que o artista pretendia encontrar e conhecer. Com isso,
Artaud comenta como deveria ser esse acontecimento histórico a seu ver, e não deixa de
explicitar sua decepção ao perceber que a juventude revolucionária mexicana não
cuidava muito da “alma indígena”.
Antonin Artaud, ao chegar ao México, também teve que se deparar com si
próprio: ao vivenciar o que era a revolução no México, frustrou-se, pois se viu sozinho
com a sua idealização do que seria a revolução neste país tão longínquo.
Para ele, era uma grande decepção saber que os jovens revolucionários eram
marxistas e que não se importavam com a cultura indígena:
Assim, a ideia de revolução, para Artaud, passava também pelo projeto de que a
nova civilização a ser conquistada dependeria da inexistência de uma consciência
individual: “não se sentir vivendo como indivíduo equivale a escapar dessa forma
323
Ibidem, p. 143.
127
324
Idem.
325
HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2004.
326
Ibidem, p. 15.
128
327
Ibidem, p. 184.
328
Ver, por exemplo: GRUZINSKI, Serge. Las cuatro partes del mundo: historia de una mundialización.
México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2010.
129
329
THÉVENIN, Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 198-203, Tomo V.
130
que não queriam nem uma coisa nem outra, mas desejavam a Liberdade. Artaud afirma
que muitas vezes essa recusa era incentivada pelos sacerdotes católicos. Mas, também
por fanatismo “pagão”, os povos indígenas se insurgiam contra os enviados do governo
a fim de defender suas crenças. Do lado governamental, também haveria certo
fanatismo ligado às ideias marxistas. Para Artaud, havia maestros rurais que tratavam
Karl Marx como um deus.
Não é possível, nessa pesquisa, averiguar se as ideias de Artaud a respeito da
influência religiosa nos conflitos ligados ao Estado estão factualmente corretas, mas é
interessante perceber que tal artista demonstra aqui que se apercebera da complexidade
presente nas disputas entre os povos indígenas – os quais eram, ao mesmo tempo,
camponeses, como o próprio Artaud enfatiza – e os enviados do governo. Isso pode
significar que Artaud desejava interferir na realidade, ou seja, que sua projeção sobre o
governo mexicano e os povos indígenas representava também um projeto do artista.
Em carta a Gaston Gallimard, de novembro de 1936330, também é possível notar
que Artaud possuía uma percepção da realidade mexicana com a qual convivera durante
oito meses. Isso porque ele se oferece para informar a seu correspondente sobre o atual
estado de espírito dos intelectuais revolucionários do México a fim de que fossem
difundidos certos livros das Edições da Nouvelle Revue Française no país latino-
americano. O seu interesse em tal assunto era o desejo de que seu livro – O Teatro e seu
Duplo – fosse levado para Cuba e para o México.
É interessante notar também que Artaud agia, na maioria das vezes, como um
artista que ia de encontro a todas as ideias que se encontravam no ambiente no qual
estava presente. Como um caleidoscópio, Artaud possuía diferentes pontos de vista e
criava diferentes “paisagens” de acordo com o lugar no qual se encontrava – daí
também muitas aparentes contradições em seus textos e correspondências sobre o
México.
Talvez por sua formação moderna, Artaud buscava chocar os seus ouvintes e
leitores, indo contra as ideias mais difundidas sobre o tema do qual tratava. Por meio
dessas polêmicas que sempre tratava de criar, é possível afirmar que o artista francês, de
certa forma, percebia o outro e suas concepções sobre a realidade mexicana. Se estava
num Congresso de Teatro Infantil, procurava falar de manequins e de uma forma que
chocasse aqueles que o ouviam; se estava preparando um texto referente ao governo
330
Ibidem, p. 210, Tomo V.
131
mexicano, buscava fortalecer a sua própria ideia a respeito do que deveria ser a
Revolução Mexicana. Nesse sentido, apesar de Artaud sempre estar se remetendo ao
próprio, ele conseguia perceber, como contraposição, de alguma forma, o outro. Daí
que o seu purismo indígena pode ser entendido, também, como uma reação às políticas
indigenistas percebidas pelo artista na conjuntura mexicana. Artaud, contraditoriamente,
percebia e não percebia a realidade que tratava de negar a todo momento.
Essa afirmação vai contra a opinião de Todorov sobre a viagem de Artaud ao
México. Isso porque o autor afirma, em trecho da obra Nosotros y los otros, reflexión
sobre la diversidad humana331, que o artista francês já tinha consciência de tudo o que
iria saber sobre a realidade mexicana antes mesmo de ir para o país. Dessa forma,
Artaud já saberia o que encontraria: um lugar oposto à Europa – “a negação da
civilização europeia”.332 Nesse sentido, enxergou apenas a si próprio durante sua
viagem de oito meses. Todorov afirma que Artaud era um “alegorista”, uma vez que
fazia dos outros
Todorov também afirma que Artaud era um primitivista que fora buscar no
México aparatos para sua própria tese. Para esse autor, o artista francês era “romântico,
anti-humanitário e antidemocrático”, uma vez que se opunha à noção de universalidade
humana por crer na diferença das raças, indo de encontro a todas as ideias que iam no
sentido de uma unificação.
Creio que essa última afirmação de Todorov poderia demonstrar justamente que
Artaud de certa forma percebia o outro, ou seja, a realidade política mexicana, ao
discutir a sua concepção de que era contra as políticas indigenistas de homogeneização
da sociedade do México. Isso porque, ao comentar tal fato em suas correspondências e
textos, estava demonstrando que percebia os debates sobre os povos indígenas no
México. Assim, apesar de sempre reafirmar a sua busca ideal por uma cultura indígena
331
TODOROV, Tzvetan. Nosotros y los otros. Reflexión sobre la diversidad humana. México: Siglo XXI
Ed., 1991.
332
Ibidem, p. 385.
333
Idem.
132
não estamos nem sós, nem numa comunidade já formada, mas que
nosso modo de ser no mundo envolve ambas as possibilidades, e que
tanto a solidão quanto a vida em comum estão de algum modo
presentes, imbricadas uma na outra, nos primórdios da existência, num
momento em que a reflexão ainda não elaborou a dicotomia entre ser-
em-si e ser-com-os-outros.334
334
SILVA, Franklin Leopoldo e. O outro. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2012, p. 37-38.
335
LORIGA, Sabina. O pequeno x – da biografia à história. BH: Autêntica Editora, 2011.
336
Ibidem, p. 14.
133
337
Idem.
338
Seria interessante comentar que o próprio Artaud possuía consciência de que suas ideias a respeito do
teatro não eram exclusivas a ele. Em carta a Jean Paulhan, de outubro de 1936, o artista se queixa pelo
fato de que seu livro ainda não havia sido publicado. Ele aponta que, se a obra tivesse aparecido em
fevereiro, tal como acordado, ele teria feito figura de precursor. Já naquele momento, em novembro,
poderia ocorrer, “como de costume”, que ele fizesse o papel de seguidor e imitador. In: THÉVENIN,
Paule (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 209, Tomo V.
134
339
BRETON, André. “Situation du surréalisme entre les deux guerres (Discours aux étudiants français de
l’Université Yale, 10 décembre 1942. In: BRETON, André. La Clé des Champs. (1953). Paris: Pauvert,
1979, p. 71. Apud: PONGE, Robert (org). Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1999, p. 43.
340
PONGE, Robert (org), op. cit, p. 64.
135
Benjamin Péret, que morou no México entre os anos de 1941 até o final de 1947,
é um exemplo contundente desse vivo interesse nas culturas ditas “primitivas”. Péret,
juntamente com a artista surrealista Remedios Varo, chegou ao México por motivos
relacionados à II Guerra Mundial, assim como o pintor Wolfgang Paalen e a artista
Leonora Carrington, que foi para o mesmo país posteriormente. Péret foi para o México
como a única oportunidade de exílio de um antifranquista, já que os Estados Unidos e o
Brasil, no qual o artista havia passado o período de 1929 a 1931, estavam fechados para
ele. Já em terras mexicanas, Péret trabalha como tradutor e leciona a língua francesa na
Escuela Nacional de Pintura y Escultura da Secretaría de Educación Pública e em
outros lugares. O pintor Esteban Francés também fica instalado no México por alguns
meses nesse mesmo período. Residiu também aí, durante dez anos, o poeta peruano
César Moro. Nesse mesmo momento, também chegam a terras mexicanas o pintor
inglês Gordon Onslow Ford, sua esposa Jacqueline Johnson e, anos mais tarde, Edward
James e Luis Buñuel. Esses artistas, embora não tenham feito um grupo tal como o que
existia em Paris ou em Nova York em torno da figura de André Breton, que também se
encontrava exilado em terras americanas, exerceram parte de seu trabalho no país
latino-americano.
O México seria, nesse momento histórico, uma grande fonte de inspiração e de
fundamentação dos ideais surrealistas, já que representava a esperança de recuperação
dos mitos e da magia que o movimento artístico europeu buscava incansavelmente.
Péret sempre procurou estar envolvido com a cultura local, em conhecê-la com
profundidade. Ele desgostava da forma como os turistas conheciam os lugares.341 Daí
talvez a sua minúcia, conforme veremos, nos textos cujo assunto eram as culturas pré-
hispânicas.
Para Lourdes Andrade, no texto “De amores e desamores: relações do México
com o surrealismo”, tal fenômeno visto em terras mexicanas estava relacionado a uma
tendência surgida no século XVIII: a
341
Ibidem, p. 149.
136
Apesar de pensar que essa busca pela cultura “primitiva” deveria ser
diferenciada por meio das singularidades de cada artista que possuía esse afã, creio que
esse comentário geral é válido a fim de que possamos refletir sobre a modernidade e o
primitivismo – aspecto abordado desde o princípio deste trabalho. Dessa forma, muitos
artistas foram ao México em busca de uma cultura arcaica, mas cada um desses possuía
uma ideia diferente do que seria esse universo no qual não existiriam os dualismos tão
criticados, conforme veremos, em parte, posteriormente.
Os artistas modernos europeus já possuíam alguma noção da arte pré-hispânica
muito antes do surgimento do movimento surrealista, uma vez que, nas exposições
internacionais de Paris dos anos de 1889 e de 1900, encontravam-se objetos de tal arte
que poderiam ser vistos pelos visitantes. Também poderiam ver e se familiarizar com tal
cultura por meio das exposições do Musée Du Trocadéro e, posteriormente, do Musée
de l’Homme. Isso revela que os artistas que foram ao México em meados das décadas
de 1930 e de 1940 já possuíam ideias a respeito do que encontrariam em se tratando de
cultura pré-hispânica.
O governo de Lázaro Cárdenas – muito criticado por Antonin Artaud conforme
visto nos capítulos anteriores – foi muito bem visto por diversos artistas
contemporâneos a ele, uma vez que era um oásis em meio aos prenúncios de guerra e à
política fascista que se fortalecia na Europa. Talvez por esse viés seja possível
compreender os textos de Artaud nos quais ele comenta que a revolução presente no
México era uma esperança para os seus conterrâneos. Apesar de essa esperança possuir
justificativas distintas para Artaud – que observava o México a partir de seu ponto de
vista absolutamente pessoal, relacionado à crença de que ainda era possível existir uma
cultura indígena livre das influências europeias, conforme analisamos desde o início
deste trabalho – e os outros surrealistas que foram ao México – os quais se apegavam
não apenas ao primitivismo, mas também à esperança trazida pelo governo pós-
revolucionário –, todos eles observavam o país como aquele que poderia trazer uma
solução ao crítico período vivido na Europa.
Segundo Lourdes Andrade,
342
Ibidem, p. 232.
137
343
Ibidem, p. 236.
344
NONAKA, Masayo. Remedios Varo: los años en México. México: Ed. RM, 2012, p. 18.
138
Entretanto, nos ateremos não à pintora Remedios Varo, mas, sim, ao seu
companheiro de exílio que permaneceu no México até o ano de 1947, Benjamin Péret,
autor de alguns textos sobre a cultura pré-hispânica e o México, os quais serão aqui
analisados e comparados com o ponto de vista de Artaud sobre os mesmos assuntos.
Segundo Lourdes Andrade, Péret volta a Paris no ano de 1947 “talvez devido ao relativo
isolamento em que se encontrava”345. Contudo, nunca deixa de estudar o México, assim
como Artaud nunca se esqueceu de suas vivências nas mesmas terras.
Gostaria de esclarecer que serão utilizados para a análise textos também escritos
após o seu retorno para a Europa. Foram selecionados aqueles cujos temas podem lançar
luz, quando comparados aos textos de Artaud, nas singularidades e nos aspectos comuns
de suas ideias a respeito do México, as quais já foram apresentadas nos capítulos
anteriores. O mesmo será feito posteriormente com os textos de André Breton, artista
que foi ao mesmo país no ano de 1938.
É importante salientar também que não procuro, de forma alguma, esgotar o
assunto “México” nas obras dos autores que serão aqui escolhidos. Tampouco pretendo
me ater a detalhes de suas passagens pelo país, tal como foi feito com relação a Artaud
nos dois primeiros capítulos deste trabalho. O conteúdo das conferências de Breton no
México, por exemplo, não será aqui analisado. Como já mencionado, Benjamin Péret e
André Breton servirão sobretudo como contraponto às ideias de Artaud, e não como
foco.
O que se pretende aqui é recorrer aos principais textos nos quais se encontram
ideias relativas ao México desses autores a fim de conseguir uma amostra de suas
convicções para comparar às definições particulares de Artaud. Com isso, esclareço a
brevidade dada às análises das obras nas quais mencionam suas ideias sobre o México e
à trajetória de cada um deles no mesmo país.
345
PONGE, Robert (org)., op. cit, p. 244.
139
são os ancestrais sempre prontos” a intervir na vida do povo.346 Essa relação estreita
entre a natureza e os homens que vivem nela foi também mencionada por Antonin
Artaud nos textos sobre a sua viagem para as terras tarahumaras. Com mais exagero,
esse autor afirmou que a natureza parecia feita de antemão para os tarahumaras. Nesse
sentido, Artaud não conclui que a relação com a natureza é mais próxima entre esses
homens devido à sua cultura ainda “primitiva” (como diria Péret), mas, sim, cria a
hipótese de um determinismo de que naquelas terras esse povo deveria surgir,
fortalecendo o aspecto mágico e providencial que acreditava possuir a natureza da serra
tarahumara.
É interessante notar, inicialmente, que Artaud quase não utiliza o termo
“primitivo” em seus textos. O artista se utiliza mais de termos como “antigas culturas”,
“tradições”, “cultura original”, chegando até a empregar o termo “cultura eterna”, o qual
seria provavelmente uma avaliação atemporal.
É possível que isso se dê porque a palavra “primitivismo” pressupõe uma
evolução até o presente “civilizado”, relação considerada falsa para Artaud. Isso porque,
para ele, não havia uma evolução, mas, sim, um retrocesso, pois a racionalidade
europeia estava sustentada pelo fim das culturas que realmente importavam. Segundo
nosso artista, “o que se chama de arte primitiva é sempre a manifestação sobrenatural de
uma ciência”.347
Para Artaud, como já foi comentado, seria necessário um resgate integral das
culturas antigas a fim de salvar a Europa moderna de sua decadência. O artista,
influenciado pela relação arte-vida, geralmente não reconhecia o tempo como elemento
transformador das culturas em seus textos. Daí que, o que seriam “culturas primitivas”
para Benjamin Péret eram, para ele, culturas que possuíam a magia ligada às antigas
ciências como aspecto fundamental. Essas culturas poderiam ser analisadas, como já foi
mencionado, atemporalmente, já que não importava para Artaud as suas mudanças
históricas, sendo importante apenas a sua essência, que ainda se encontrava latente no
México. Esse seu aspecto essencialista pode, por sua vez, justificar a adoção do termo
“espírito primitivo”, o qual poderia ser visualizado ignorando-se a noção temporal.
Apesar dessa reflexão a respeito da raridade do termo “primitivismo” nos textos
de Artaud, será utilizado aqui o mesmo a fim de identificar um tema desenvolvido tanto
346
PÉRET, Benjamin. Ouevres Complètes. Paris: Association des amis de Benjamin Péret/ Librarie José
Corti, 1992, Tomo VI, p. 16.
347
SCHNEIDER, Luis Mario (org). ARTAUD, Antonin, op. cit, p. 150.
140
por esse artista quanto por Benjamin Péret, o qual, ao contrário do primeiro, se utiliza
do termo frequentemente.
Conforme mencionado anteriormente, havia uma diferença entre como Péret via
a relação entre natureza e povos primitivos e como Artaud a enxergava. Apesar disso,
ambos tinham a mesma convicção de que essas sociedades possuíam um vigor e frescor
da imaginação. Dessa maneira, Péret afirma que o homem dos tempos mais antigos
pensava de modo mais poético e conseguia penetrar intuitivamente com maior
profundidade em si mesmo e na natureza:
Esse aspecto tão vangloriado com relação aos povos não europeus era, conforme
já comentado, muito comum entre os artistas ligados de alguma forma ao Surrealismo.
Contudo, enquanto Artaud renegava e condenava veementemente o pensamento
racionalista, Péret argumenta que não se trata de desprezar tal pensamento, mas, sim, de
perceber que esse também nasceu a partir do inconsciente. Para ele, seria necessário
acabar com o dualismo entre pensamento racional e irracional, sendo que as gerações
futuras restabeleceriam a harmonia entre a ciência e a poesia, mostrando a sua origem
comum. Esse tipo de comparação entre ciência e aspectos ligados ao inconsciente, como
a poesia, também é feito por Artaud ao mencionar a relação estreita entre magia,
misticismo e ciência. Para ele, conforme já analisado, a magia pressupunha uma ciência,
e a religião prejudicaria essa relação observada nos primórdios das culturas primitivas.
Para Péret, a magia seria o “denominador comum do feiticeiro, do poeta e do
louco”. Ela seria o “sangue e a carne da poesia”. Assim, “na época em que a magia
resumia toda a ciência humana, a poesia ainda não se diferenciava”. O artista ainda
afirma que os mitos primitivos são em grande parte “resíduos de iluminações, de
intuições e de presságios”. Em seguida, tal como a crítica de Artaud a respeito das
348
PÉRET, Benjamin, op. cit, p. 18. (“De fait, l’homme des anciens âges ne sait penser que sur le mode
poétique et, malgré son ignorance, pénètre peut-être intuitivement plus loin en lui-même et dans la nature
dont Il est à peine différencié que le penseur rationaliste en la disséquant à partir d’une connaissance toute
livresque”).
141
religiões, Péret comenta que “nos primeiros mitos e lendas fermentam os deuses que
vão colocar à poesia uma camisa de força dos dogmas religiosos, pois, se a poesia crê
sobre o rico terreno da magia, os miasmas pestilentos da religião se elevam sobre o
mesmo terreno”, o enfraquecendo.349 Para reencontrar o vigor da magia, seria necessário
endireitá-la e retirá-la do poder nocivo da religião. Nesse aspecto, percebemos a crítica
à religião e a relação entre a magia e a ciência, as quais também aparecem no
pensamento de Artaud.
Péret também diferencia as sociedades ocidentais daquelas primitivas a partir
dos preceitos morais. Enquanto as últimas criam os seus mitos com uma poesia
“exuberante” e com “pobres preceitos morais”, as primeiras, “mais evoluídas” segundo
o autor, perdem de sua poesia para “multiplicar as restrições morais”. Para o artista, essa
moral é inimiga da poesia e da vida mesma.350 Ainda segundo o autor, podemos ver a
criação de mitos sem nenhuma poesia destinados a “canalizar e alimentar um fanatismo
religioso latentes na massa que, tendo perdido o contato com a divindade, conserva
contudo uma necessidade de consolação religiosa”.351
Entretanto, apesar de Péret parecer possuir o mesmo desejo de Artaud de fazer
reviver as antigas culturas oprimidas e aparentemente destruídas pelo pensamento
racional ocidental tal como elas existiam anteriormente, ele reflete de maneira distinta.
Para Péret, “o homem primitivo não se conhece ainda, ele se procura”. Já o “homem
atual” está perdido. Caberá ao homem de amanhã “se reencontrar, se reconhecer”, ter
consciência de si mesmo. Assim, se o homem primitivo, apesar de não se conhecer,
pôde fazer mitos “maravilhosos”, o que se dirá do homem de amanhã, com mais
consciência de sua natureza e com maior domínio sobre o mundo?
Para Benjamin Péret, existiria quase uma crença providencial de que no futuro o
homem poderia ser muito melhor do que os próprios primitivos. Para isso, seria preciso
ser um “maldito”. Tal termo lançado pela sociedade já indicaria uma posição
revolucionária. E, quando essa reconhecesse a origem comum da poesia e da ciência, o
poeta, com ajuda de todos, poderia criar mitos exaltantes e maravilhosos:
[...] Atualmente ele só pode ser o maldito. Essa maldição que lhe lança
a sociedade atual já indica sua posição revolucionária; mas ele sairá de
349
PÉRET, Benjamin, op. cit, p. 25.
350
Ibidem, p. 26.
351
Ibidem, p. 27.
142
352
Ibidem, p. 30. (“Il ne peut être aujourd’hui que le maudit. Cette malédiction que lui lance la société
actuelle indique déjà sa position révolutionnaire; mais il sortira de sa réserve obligée pour se voir placé à
la tête de la société lorsque, bouleversée de fond en comble, elle aura reconnu la commune origine de la
poésie et de la science et que le poete, avec la collaboration active et passive de tous, créera les mythes
exaltants et merveilleux qui enverront le monde entier à l’assaut de l’inconnu”).
353
PONGE, Robert. (org). op. cit, p. 151.
354
PÉRET, Benjamin. op. cit, p. 165-179.
143
Para o escritor, a cultura maia foi a que possuiu o “grau mais elevado de
desenvolvimento” entre as culturas do México. Ele ainda afirma que esse povo
continuava “supersticioso ao extremo. Suas crenças atuais representam, numa boa parte,
os resíduos da religião de seus ancestrais”. A partir disso, podemos afirmar que Péret
admitia a dominação espanhola sobre os índios, mas não explicitava o desejo de que
essa cultura retornasse, até porque ele posssuía consciência da miscigenação. O escritor
leva em conta os acontecimentos históricos e as transformações da cultura maia.
Posteriormente, no mesmo texto, apresenta com minúcia uma visita ao sítio
arqueológico de Chichén Itzá, descrevendo um modo de viver que já não existia – o
jogo de pelota, os sacrifícios. Com isso, percebemos também que ele tinha um
conhecimento mais pormenorizado a respeito das antigas culturas, não fazendo
generalizações como Artaud costumava fazer em seus textos nos quais mencionava as
culturas pré-colombianas.
No texto “Les sacrifices humains dans l’ancien Mexique”, de 1950, Péret faz
também uma descrição minuciosa, dessa vez a respeito dos vários tipos de cerimônias
de sacrifício dos astecas. Apesar de o autor não reverenciar os sacrifícios, ele comenta
que, com a chegada de Cortez, o cristianismo foi imposto, acabando com a cultura
asteca. Os deuses já não recebiam os sacrifícios de coração, mas os indígenas
continuaram sendo sacrificados, agora nas fogueiras da Inquisição, para “um novo deus
355
Ibidem, p. 165-166. (“Avec le temps et la désintégration des croyances et coutumes mayas sous
l’influence espagnole, les differences ne pouvaient manquer de s’accentuer entre les copies nouvelles,
tandis que se multipliaient les interpolations d’inspiration européenne. Entre-temps, chacun y avait déjà
ajouté du sien: un formulaire de médecine indigène, un traité d’astrologie, une chronique locale, des
formules symboliques d’initiation religieuse etc. Enfin, le christianisme s’infiltrait également entre toutes
les lignes, adulterant de plus en plus le document original”).
144
que, pela voz dos padres”, permaneceram afirmando que “os fins justificavam os
meios”.
Nesse sentido, Péret critica igualmente os sacrifícios dos astecas e o
cristianismo. Há uma crítica geral às religiões, que levam à materialização do princípio
maquiavélico de que os fins justificam os meios.356
Assim, tal como Antonin Artaud, Péret criticava duramente a religião. Os
dogmas levavam a um engessamento e a uma perda da verdadeira magia a qual se
encontrava mais próxima da ciência.
Também como Artaud, Péret acreditava na universalidade dos mitos,
concluindo que eles eram semelhantes e comparáveis em todas as culturas primordiais.
No texto “Notes sur l´art pré-colombien”, ele comenta que num mesmo momento os
mesmos mitos chegaram a toda a humanidade. O mito da virgem mãe, por exemplo, já
era presente, antes dos espanhóis chegarem, com as mães imaculadas Coatlicue e
Chimalma. Para ele, há poucos personagens na mitologia grego-latina que não tem
comparação com o Olimpo mexicano ou maia:
356
Ibidem, p. 181-185.
357
Ibidem, p. 187. (“La lute de l’aigle et du serpent, qui se trouve sur les armoiries du Mexique
contemporain, se retrouve dans les inscriptions sumériennes vieilles de milliers d’années avant notre ére.
Le myhte de la vierge mère que les conquérants espagnols ont apporté en Amérique avec tous les fléaux
de l’Europe prospérait déjà dans Le monde religieux de l’ancien Mexique sous Le nom de Coatlicue et de
Chimalma, mères imaculées [...]; et il y a peu de personnages de la mythologie gréco-latine dont on ne
puísse retrouver l ‘equivalent dans l’Olympe mexicain ou maya”).
145
É interessante notar que algumas das ideias do psicanalista Carl Gustav Jung
(1875-1961) se aproximam também dessa concepção que relaciona misticismo e
ciência. Ele afirma que o denominado “inconsciente coletivo” constitui “um substrato
psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo”. Os
conteúdos desse inconsciente coletivo são chamados de arquétipos. Os arquétipos, por
sua vez, são “tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens universais que
existiram desde os tempos mais remotos”. A partir disso,
Essa preocupação com mitos originários foi algo que se manifestou também
entre esses artistas que são analisados nessa dissertação.
Para Péret, seria impressionante o “fato banal” de que “em todos os lugares do
mundo” o homem “atravessou as mesmas etapas e se muniu das mesmas forças naturais
de um poder divino”, antes que idolatrasse sua “submissão a essas mesmas forças”.359
Para esse autor, a imaginação surgida do inconsciente profundo comum a todos
os homens e os primitivos hoje em dia não nos permite apenas a percepção do que
fomos antigamente, mas mostra que não somos muito mais conscientes de nossa própria
natureza do que éramos anteriormente.360 Nesse sentido, Péret também compartilha da
ideia de Artaud de que o homem moderno não é consciente de si mesmo como ambos
os escritores desejavam que fosse. Seria interessante notar também outro ponto em
comum entre ambos no que diz respeito à arte: para Péret, assim como que para Artaud,
a arte nasceu de um desejo de “dar formas às divindades” que o homem inventou
inconscientemente. Daí a importância dada à magia, aos ritos, às culturas primitivas.
Enquanto um escultor grego, por exemplo, atendia à razão com sua arte, os índios do
México pré-colombiano falavam à imaginação “na sua própria linguagem”.
358
JUNG, C.G. Obra completa – Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.
12-13.
359
PÉRET, Benjamin. op. cit, p. 187.
360
Ibidem, p. 187-188.
146
Daí uma grande diferença entre ambos os artistas: enquanto Péret tinha
consciência dos pormenores de várias culturas pré-colombianas, Artaud era dado mais a
generalizações que tratava de forma anistórica.
Para Benjamin Péret, no texto “Souvenir du futur”, publicado em 1952, a poesia
é o “modo natural de pensamento de toda a humanidade”. Ele afirma que “a arte,
expressão plástica dessa poesia”, requer um certo domínio do mundo material, e, por
isso, “demanda tempo para evoluir”.363 Provavelmente é por meio desse sentido que
361
Ibidem, p. 195.
362
Ibidem, p. 197. (“Si la legende exprime des aspirations communes à tous les hommes, l’aspect
particulier qu’elle revêt ici ou là n’en révèle pás moins avec précision les conditions d’existence des
peuples qui l’ont créee et les singularités historiques de ces peuples. A leur tour, celles-ci sont données
par la nature du pays considéré, sa geographie, sa topographie même, ainsi que sa faune et sa flore. C’est
là l’élément permanent qui constitue la base matérielle soumise à l’interprétation du poete moderne aussi
bien que des anciens créateurs de mythes”).
363
Ibidem, p. 199.
147
364
Ibidem, p. 201.
365
Ibidem, p. 202.
148
Benjamin Péret já assume o fato de que seria improvável encontrar uma arte
nacional em meio a um período no qual a fusão entre as culturas era evidente. No
entanto, ele não deixa de entrever na arte popular aquela que seria a verdadeiramente
mexicana, com claras influências pré-colombianas.
O seu desejo de encontrar uma arte realmente mexicana me parece, em parte,
muito semelhante ao desejo de Artaud, fazendo com que ambos excluíssem a arte
moderna do México como possível exemplo dessa arte nacional. Os dois criticam Diego
Rivera, mostrando que, para esses artistas, as influências europeias de Rivera eram
condenáveis. Entretanto, Péret encontrara algo que o interessaria como arte nacional
mexicana – a arte popular feita em período contemporâneo, enquanto Artaud foi buscar
em meio aos índios tarahumaras aquelas manifestações primordiais que o comoveriam e
que o inspirariam tanto em sua vida pessoal como em sua vida artística.
Por meio do texto “Les trésors Du Musée National de México: la sculpture
aztèque”, é possível perceber mais claramente a noção de progresso que possuía
Benjamin Péret. Para ele, o grau de desenvolvimento não se media apenas pelo
progresso material, mas, sim, também pela arte. Nesse sentido, ele sugere que os astecas
tiveram um “grau de desenvolvimento que apenas os maias ultrapassaram”. Por meio
desse raciocínio, Péret compara, por nível de desenvolvimento, a arte maia com a arte
grega e a arte asteca com a arte egípcia.366 A arte asteca, tal como a dos egípcios, tira
sua substância “da magia e dos mitos que a alimentaram e sacralizaram”.
Por meio dessa comparação baseada na evolução de cada povo, podemos
perceber que Péret, ao explicar para os seus leitores de que consistia uma cultura nunca
antes vista por eles, utiliza estratégias comentadas por François Hartog já mencionadas
anteriormente neste capítulo. Ele compara o seu objeto com algo já conhecido do
público a fim de que esse possa compreender sobre o que se está explicando. Antonin
Artaud também se utilizou desse expediente para explicar sua vivência junto dos
tarahumaras. Desse modo, é possível concluir que a comparação sugere tanto uma
origem semelhante para todos os mitos e cerimônias primordiais quanto uma forma de
auxiliar a compreensão do público leitor que desconhece as culturas pré-colombianas e,
no caso de Artaud, a cultura tarahumara.
Para Péret, no texto “L’exposition d’art mexicain”, de 1952, o México seria
aquele que possuía a tradição artística mais rica de toda a América. Entretanto, essa
366
Ibidem, p. 306.
149
tradição não seria uma linha reta, uma vez que o México antigo era um “campo de
batalhas quase incessante”. Tal sociedade, com toda a sua complexidade, foi derrotada
pelos espanhóis. Com isso, “se a arte propriamente indígena” se debilitou muito rápido
sob a “pressão dos invasores”, os quais impuseram a sua cultura e a sua religião,
desaparecendo rapidamente, a necessidade que fez tal arte aparecer permanece ainda
“viva no coração desse povo trágico”.367
Péret também comenta que a arte após a chegada de Cortez representa uma
ruptura profunda, já que passa a pertencer à Igreja. Ela continua tendo uma existência
clandestina, como na Rússia stalinista, nas camadas “profundas da população”. Assim,
no México, ainda em seu período atual, todo homem, por mais humilde que fosse sua
condição, portaria “em si mesmo uma acepção artística que espera somente as
condições favoráveis para se desenvolver”.368
Portanto, a verdadeira arte mexicana de seu tempo seria a arte popular no pleno
sentido do termo. Tudo o que o “artesão desse país fabrica torna-se uma obra de arte em
suas mãos”. Péret ainda afirma que os artistas profissionais estão na maior parte do
tempo muito longe de alcançar a “pureza e a ingenuidade dos artesãos mexicanos”.369
Para Péret, à arte popular mexicana não faltam traços em comum com a arte pré-
colombiana. Ela seria o “prolongamento e a metamorfose” dessa. No entanto, enquanto
a arte pré-colombiana é “carregada de sacralidade”, a arte popular é geralmente
liberada.370
O autor ainda comenta que os Estados Unidos, ao massacrarem os povos
indígenas, acabaram com toda a possibilidade de criar uma arte popular baseada na
cultura indígena e capaz de fazer surgir uma arte que seja própria do país. Desse modo,
percebemos que, para Péret, a cultura indígena e a arte popular eram estreitamente
vinculadas.
Por fim, o escritor tece um elogio a Rufino Tamayo que, para ele, era o artista
mais mexicano da exposição analisada. Isso porque, enquanto os outros artistas
descreviam a vida mexicana de uma forma “quase didática”, Tamayo produzia uma
“visão lírica”.
Tal como Artaud, Péret estava decepcionado com a arte profissional mexicana.
Para ambos, ela não refletia o espírito do México. Talvez isso provenha da expectativa
367
Ibidem, p. 325.
368
Ibidem, p. 328.
369
Ibidem, p. 329.
370
Idem.
150
371
Benjamin Péret alimenta essa atmosfera mágica ligada ao México em seu poema “Air Mexicain”, de
1952, demonstrando o quanto ficou atraído pela “atmosfera mexicana”. (PÉRET, Benjamin, op. cit, Tomo
II, p. 213-232). Segundo Claude Courtot, Péret, neste poema, “não dá a palavra à cultura nahua, ele é a
palavra viva, o poeta do povo nahua. Existe um valioso estudo que mostra como as imagens utilizadas
neste poema são a tradução de imagens e expressões da língua falada pelos astecas. Esse poema é um
soberbo grito de revolta: é a revanche poética de um povo condenado pela História”. In: PONGE, Robert
(org.). op. cit, p. 154.
151
372
BRETON, André. Por uma arte revolucionária independente. São Paulo: Paz e Terra: CEMAP, 1985,
p. 51-65.
152
extravagante que quer brincar de dar lições”373. Apesar disso, Breton conseguiu realizar
cinco conferências na Cidade do México.
Essas calúnias e acusações feitas contra o grande representante do movimento
surrealista foram o resultado de uma rivalidade política entre mexicanos a favor do
catolicismo ou do Partido Comunista Mexicano e o posicionamento de Breton, que
havia rompido definitivamente com o stalinismo. Em período anterior à sua viagem,
segundo Gérard Roche, o artista
373
PONGE, Robert (org), op. cit, p. 217.
374
Idem.
153
escreveu textos que buscavam polemizar com o que ele entendia da política mexicana.
Assim, não é possível afirmar que Artaud ignorava totalmente as disputas e os debates
do país.
No dia 13 de maio, Breton apresenta a sua primeira conferência na Universidad
Nacional Autónoma de México (UNAM). No entanto, devido à sua proximidade com
Leon Trotski, o artista passa a ser vítima da hostilidade de pessoas relacionadas ao
Partido Comunista Mexicano, fazendo com que suas demais apresentações fossem
adiadas. Este problema levou a um Apelo à opinião pública, o qual foi erguido em sua
maioria por pessoas independentes de organizações de esquerda e por conhecidos de
Diego Rivera e Leon Trotski. Tal resposta levou à demissão do reitor da Universidade,
que, se não participava diretamente do problema, tampouco fez alguma coisa para
acabar com a sabotagem a Breton.375
Esse fato mostra-se completamente diferente daquele ligado às conferências de
Artaud. Enquanto a atmosfera intelectual e artística se moveu e se transformou com a
presença de Breton, levando todos a se manifestarem a favor ou contra as apresentações
do artista na Universidade, as conferências de Artaud obtiveram dois artigos já
comentados como resposta e uma pequena audiência, a qual foi diminuindo conforme as
conferências eram apresentadas.
Artaud, ao se pronunciar a respeito do Surrealismo, deixara clara a sua opinião
em relação ao marxismo, além de apresentar o seu sonho, quase um delírio, a respeito
do que deveria ser a Revolução Mexicana em sua opinião. Ele se encontrava, portanto,
desgarrado em relação aos debates culturais e políticos presentes no meio no qual
circulava e se pronunciava. Já Breton se encontrava no “olho do furacão”, uma vez que
suas opiniões e suas companhias durante a sua viagem estavam completamente
integradas aos debates mais atuais a respeito da política e da cultura no México e na
Europa.
Breton não buscava contrapor a realidade mexicana àquela encontrada na
Europa, sonhando uma insurreição contra os valores ocidentais e a favor das sociedades
pré-colombianas, que deveriam reflorescer conforme eram em seu estado primitivo, tal
como devaneava Artaud. Breton pretendia, conforme veremos por meio de seus textos,
incluir o México no debate artístico e político mais atual da Europa, buscando em
Rivera e em Trotski – figuras cujas opiniões eram levadas em conta internacionalmente
375
Ibidem, p. 218.
154
– o apoio para esse projeto ao mesmo tempo mexicano e mundial. Além disso, Breton
fora ao México também para encontrar-se com uma das personagens de maior destaque
mundial do momento – Leon Trotski –, daí que o seu objetivo principal não era, como o
de Artaud, o de se aproximar de uma cultura indígena que tornava o México
absolutamente original e singular. Breton enxergava o México dentro dos debates
europeus – artísticos e políticos – mais modernos, criando, conforme veremos,
juntamente com Trotski e Rivera, o manifesto “Por uma arte revolucionária
independente”.
De acordo com Gérard Roche,
esclarecem também que a arte oficial da época stalinista mostrava os “esforços irrisórios
desses homens para enganar e mascarar seu verdadeiro papel mercenário” 381. A
oposição artística seria uma forma de ajudar a romper com os regimes políticos que
negavam a necessidade de um levante da classe explorada em busca de um mundo
melhor.
Para que essa oposição fosse criada seria necessário dar toda a liberdade aos
artistas, sendo esse um direito inalienável. “Toda licença em arte”382, os autores
argumentavam. Para tanto, seria necessário que a criação intelectual fosse “um regime
anarquista de liberdade individual”, ao contrário do regime socialista de plano
centralizado que deveria ser erigido a fim de que se desenvolvessem as forças
produtivas materiais.383
Assim, a ideia suprema da arte na época contemporânea ao manifesto deveria ser
Por fim, eles esclarecem o seu objetivo: “encontrar um terreno para reunir todos
os defensores revolucionários da arte, para servir a revolução pelos métodos da arte e
defender a própria liberdade da arte contra os usurpadores da revolução”. 385 Para tanto,
sugeriam a criação da Federação Internacional de Arte Revolucionária (FIARI) a fim de
lutar a favor de seus desejos: “a independência da arte – para a revolução. A revolução –
para a libertação definitiva da arte”.386
Breton retorna à Europa com a incumbência de criar a FIARI. Trotski também
fica responsável por formá-la no México. No entanto, os resultados estiveram longe do
que fora idealizado por eles, mostrando-se até decepcionantes. Nos Estados Unidos,
devido a debates acerca do manifesto, uma organização aliada foi criada tardiamente.
381
BRETON, André. Por uma arte revolucionária independente, op. cit, p. 38.
382
Ibidem, p. 42.
383
Ibidem, p. 42-43.
384
Ibidem, p. 43.
385
Ibidem, p. 45.
386
Ibidem, p. 46.
157
Porém, já no ano de 1939, um conflito entre Rivera e Trotski rompe as suas relações, o
que se reflete também na organização da FIARI. Com a guerra, os contatos são ainda
mais prejudicados, fazendo com que cada um passasse a seguir a sua vida
individualmente.
Apesar de Breton ter sido um artista em dia com os debates políticos de sua
época, alguns textos de sua autoria a respeito do México trazem marcas do primitivismo
presente nas ideias sobre o país naquele período. Para esse artista, o México é um país
surrealista e revolucionário por natureza.387 É possível perceber isso na maneira como
Breton descreve a atmosfera da natureza e do povo mexicano nos textos “Souvenir du
Mexique” e “Frida Kahlo de Rivera”, que serão analisados posteriormente.
Para Nathaniel Hooper Zingg, apesar de seus trabalhos sobre o México serem
geralmente separados entre poéticos e políticos, “Souvenir du Mexique”, considerado
como poético, pode ser analisado também como político pelo fato de representar a luta
contra o realismo soviético em seus aspectos formais. Para esse autor, tal trabalho alude
diretamente a uma agenda política que é anárquica e libertária naturalmente.388
Esse texto de Breton, apresentado na publicação Minotaure, em 1939, repleto de
imagens, já se inicia com uma descrição do México que pode ser relacionada às
características de um país especial, mágico, aspectos também presentes nas descrições
de Artaud a respeito do país. No primeiro parágrafo do trabalho, Breton menciona um
lugar de terra vermelha, terra na qual a vida do homem não tem preço. Esse lugar onde
os ventos libertadores não acabaram como em outros lugares é o México, país no qual o
espírito de 1810 e de 1910 – datas da Independência e da Revolução Mexicanas – ainda
continua vivo, pronto a aparecer novamente. O artista descreve uma imagem romântica
de um cacto tendo por trás um homem com um fuzil. Para ele, a força latente dessa
imagem pode se elevar subitamente da inconsciência e da desgraça:
387
ZINGG, Nathaniel Hooper. André Breton in Mexico: Surrealist Visions of an “Independent
Revolutionary” Landscape. The University of Texas at Austin, 2012, p. 04. Disponível em:
http://repositories.lib.utexas.edu/bitstream/handle/2152/ETD-UT-2012-05-5829/ZINGG-MASTERS-
REPORT.pdf?sequence=1
388
Idem.
158
Assim, o México arde com todas as esperanças que foram depositadas em outros
países, tais como a URSS, a Alemanha, a China e a Espanha, e que se viram
“dramaticamente frustradas”. No entanto, para Breton, existe a consciência de que elas
vencerão aqueles que as destruíram, pois são inseparáveis do que existe de “mais vivo,
de mais misterioso” no homem, sendo que está em sua natureza o voltar sempre a
“florescer”.390 O México era, portanto, o país no qual os europeus, desiludidos com os
rumos que o seu continente estava tomando, poderiam renovar as suas forças e colocar
suas esperanças. Havia ainda no mundo um lugar onde as artes e a política poderiam se
desenvolver, apesar de todos os empecilhos que impediam os artistas e intelectuais de
acreditarem num mundo novo, revolucionário, olhando somente para a Europa.
Nesse sentido, é possível afirmar que Breton não se distanciou muito dos
comentários vivazes feitos por Artaud sobre o mesmo país. Artaud, assim como Breton,
fora ao México em busca de um lugar onde, segundo eles, ainda havia esperança para as
transformações sociais que estavam fora da perspectiva deles naquele momento
389
BRETON, André. La clé des champs. Paris: Societé nouvelle des éditions pauvert, 1979, p. 35.
(“Terre rouge, terre vierge tout imprégnée du plus généreux sang, terre où la vie de l’homme est san prix,
toujours prête comme l’agave à perte de vue qui l’exprime à se consumer dans une fleur de désir et de
danger! Du moins reste-t-il au monde um pays où le vent de la libération n’est pás tombé. Ce vent en
1810, en 1910 irrésistiblement a grondé de la voix de toutes les orgues vertes qui s’élancent là-bas
sous le ciel d’orage: un des premiers fantasmes du Mexique est fait d’un de ces cactus géants du type
candélabre de derrière lequel surgit, les yeux en feu, un homme tenant un fusil. Il n’y a pas à discuter
cette image romantique: des siècles d’oppression et de folle misère lui ont conferé à deux reprises une
éclatante réalité et, cette réalité, rien ne peut faire qu’elle ne demeure latente, que ne persiste à la couver
l’apparent sommeil des étendues désertiques. L’homme armé est toujours là, dans ses loques splendides,
comme il peut seul se relever soudainement de l’inconscience et du malheur”).
390
Ibidem, p. 36.
159
391
BRETON, André. Por uma arte revolucionária independente, op. cit, p. 61.
392
BRETON, André. La clé des champs, op. cit, p. 37.
160
393
Idem.
161
do México, uma vez que ele é algo sempre presente, não sendo limitado dentro de um
momento histórico específico.
Na segunda parte do texto “Souvenir du Mexique”, Breton descreve um episódio
ocorrido quando estava em companhia de Diego Rivera. Os dois tiveram a oportunidade
de conhecer uma casa na qual parecia que várias temporalidades se apresentavam
simultaneamente. O passado do lugar visitado e seus habitantes se encontravam com a
condição atual do mesmo e os seus novos habitantes:
394
Ibidem, p. 39-40. (“Comme je l’appris par la suite, la pièce où elle conduisait fut privée de toute issue
si tôt qu’on y eut procédé à l’embaumement de l’ancienne maîtresse de céans, la mère des actuels
occupants en titre, qui avait exprimé la volonté d’y reposer pour toujours. Tout le trouble de la maison
tend naturellement à se justifier par la présence invisible et d’autant plus abusive de cette grande dame. À
la galerie supérieure ce matin’là, um homme, d’allure élégante, chantait à tue-tête. [...] Les angles de la
cour, mi-clos et abrités par des moyens de fortune, servaient de refuge à des familles entières de miséreux
qui vaquaient, sans plus de gêne qu’autour d’une roulotte, à leurs occupations et à leurs jeux. [...] Le
Mexique tout entier était là, dans son ascension abrupte que le voisinage d’un pays économiquement très
évolué oblige à s’accomplir sans transition, par une suite de rétablissements vertigineux comme au
trapeze”).
162
Essa ideia de um país mágico, capaz de unir a vida e a morte, também está
presente no texto “Frida Kahlo de Rivera”, o único artigo a respeito de uma artista
publicado no livro de autoria de Breton, Le Surréalism et la peinture395.
Ele inicia o texto reverenciando o seu ponto de vista sobre a atmosfera
mexicana:
É possível perceber, por meio dos textos aqui analisados, que Breton, apesar de
estar muito presente nos debates políticos de sua época, não ignorava a imagem do
México como um país essencialmente mágico, dono de um primitivismo adorado pelos
artistas europeus que eram seus contemporâneos. Ao mesmo tempo, podemos afirmar
que os artistas provindos da Europa para o México também ajudavam a construir esse
mexicanismo do qual se alimentavam antes da viagem e o qual desenvolviam ainda
mais para seus pares com a publicação de impressões a respeito do mesmo país. O
mexicanismo do início do século XX é, portanto, construído antes e depois das viagens
responsáveis por essa atração pelo México. Antonin Artaud, Benjamin Péret, André
Breton – artistas ao mesmo tempo reverenciadores das ideias sobre o México e
responsáveis também por essa imagem que foi ao longo do tempo sendo construída a
respeito do país.
No texto sobre Frida Kahlo, Breton também tece um comentário sobre Diego
Rivera, com quem Frida era casada. Para o autor, Rivera encarnava, “aos olhos de todo
um continente”, a luta contra “todos os poderes de escravização”. Com isso, Breton unia
mais uma vez os seus comentários relacionados à política e à poesia, os quais deveriam
estar imbricados em sua concepção de arte, que teria que ser ao mesmo tempo subjetiva
e social. Já para Artaud, a arte deveria estar sempre próxima do reconhecimento de
sociedades que ainda viviam em seu cotidiano práticas ligadas a antigas ciências tão
almejadas pelo artista. A arte deveria caminhar sempre com os mistérios ligados à
magia ainda presente, por exemplo, nos rituais tarahumaras. O inconsciente deveria ter
395
BRETON, André. Le Surréalisme et la peinture. Paris: Gallimard, 1979.
396
Ibidem, p. 141. Apud: FER, Briony. BATCHELOR, David. Wood, Paul, op. cit, p. 240.
163
destaque nos processos de criação, uma vez que ali se encontravam as imagens dessas
práticas mágicas antigas.
Aquele ideal de Breton de uma arte ao mesmo tempo individual e coletiva foi
encontrado por ele no trabalho de Frida Kahlo, o qual estava, segundo o artista, situado
no “ponto de intersecção da linha política (filosófica) e da linha artística” – unificação
desejada para que se formasse uma “mesma consciência revolucionária” . Para o autor,
Frida, sem conhecer o grupo de Breton, florescia em pleno Surrealismo. Nesse sentido,
para Breton, a política e o âmbito subjetivo deveriam, nesse movimento artístico, andar
juntos para criar algo revolucionário, enquanto que, para Artaud, já naquele período,
somente o inconsciente e os rituais tradicionais realmente interessavam para a sua forma
ideal de teatro.
Para Breton, à arte de Frida Kahlo não faltava nem sequer a “crueldade e o
humor único capaz de unir os raros poderes afetivos que entram em composição para
formar o filtro do qual o México possui o segredo”.397 O México, mais uma vez, visto
como aquele capaz de unir antagonismos – experiência, essa, tão cara ao movimento
surrealista representado por Breton.
Por fim, Breton também apresenta, neste texto, a ideia que possuía sobre a arte
mexicana: para ele, essa era, desde o século XIX, a que melhor se defendeu “de toda
influência estrangeira”, a “mais profundamente apaixonada por seus recursos
próprios”.398
Essa percepção vai de encontro com o olhar de Artaud para a arte da mesma
nação, já que, para o último, não havia uma arte realmente mexicana, pois os artistas
deste país se apoiavam nas concepções artísticas modernas europeias – o que seria, para
Artaud, um equívoco, uma vez que o ideal seria que eles recorressem somente ao seu
inconsciente indígena a fim de produzir uma arte genuinamente mexicana. Essa ideia de
Breton também se contrapõe com a percepção de Benjamin Péret, que acreditava no
poder e na força genuína da arte popular.
Na mesma obra de Breton podemos encontrar também uma crítica, de 1950, a
outro artista mexicano: Rufino Tamayo. Neste texto, Breton afirma que, a partir de
1920, no México, a vontade de subordinar a pintura à ação social passou a se
manifestar, e a lembrança de 1910 provocou um avivamento do sentimento nacional. A
intervenção de Rufino Tamayo se produziu nessas difíceis circunstâncias. Segundo esse
397
BRETON, André. Le Surréalisme et la peinture, op. cit p. 144.
398
Idem.
164
artista mexicano, essa preocupação dos pintores de fazer menos arte do que arte
mexicana levou-os a “negligenciar os problemas plásticos”. Diante disso, Tamayo
afirma que a pintura deveria ser “mexicana em essência”. Assim, para Breton, o
itinerário de Tamayo se inspirava em duas necessidades vitais: “reabrir a via de grande
comunicação que a pintura” pode praticar por meio da técnica, que seria a única forma
de unificação, e extrair “o que pode ter de acidental em seus aspectos ou de episódico
em suas lutas para verter o cadinho da alma humana, o México eterno”. Portanto, para
Breton o trabalho deste artista mexicano, elogiado em sua crítica, seria baseado na vida
de todos os dias, no cotidiano.399
Já em período anterior a este, 1939, em Paris, André Breton encontrou-se ligado
a uma exposição sobre o México na galeria Renou e Colle, cujo título era Mexique. Os
textos do catálogo, escrito pelo surrealista, mais uma vez dão mostras das ideias que o
autor possuía sobre o país visitado.
Já no prefácio, Breton comenta que o relevo, o clima, a flora, o espírito do
México rompem com todas as leis às quais os europeus estavam submetidos em seu
próprio continente.400 Novamente, o México é colocado numa categoria especial,
revolucionária.
O artista também explica no prefácio que a exposição apresentada abarcaria
desde as origens do México até os tempos atuais. Isso significa que, implicitamente,
estava ali presente uma linha de continuidade dos povos indígenas até o período da
Revolução Mexicana, tal como os muralistas, dotados de um nacionalismo já
comentado no primeiro capítulo, deixavam entrever em suas obras públicas.
Breton comenta, em seguida, sobre os objetos populares encontrados na
exposição. Para o artista, esses devem ser considerados por eles mesmos, “isto é,
independentemente do enfadonho ponto de vista pedagógico que se vincula ao folclore”.
Era necessário que se guardasse ao menor objeto que fosse seu “acento individual,
artístico”. Tais objetos atestariam sua “necessidade imperiosa, após longo tempo
reprimidos pela economia dos países ‘avançados”.401 Breton dá importância para esses
objetos tal como Benjamin Péret, mas de uma forma mais branda, já que o segundo deu
a esses o papel principal dentre as formas artísticas genuínas no México.
399
Ibidem, p. 230-234.
400
BRETON, André. Ouevres Complètes. Paris: Gallimard, 1992, Tomo II, p. 1233.
401
Ibidem, p. 1235, 1236.
165
***
André Breton e Benjamin Péret podem nos apontar para diversos aspectos
subjetivos e sociais presentes nos textos de Artaud. Conforme já analisado em capítulo
anterior, esse último artista acreditava que havia apenas uma cultura primordial no
México, e ele estava à procura dessa, a qual possuía diferentes elementos de acordo com
o povo que a manifestava. Essa ideia de cultura única permitia a Artaud acreditar num
renascimento do México pré-cortesiano – talvez uma das maiores diferenças entre as
suas ideias e aquelas de Breton e Péret. Assim, é possível afirmar que o sonho de
Artaud de reencontrar e vivenciar o México como era antes da chegada de Cortez
corresponde a uma ideia subjetiva, que pode ser relacionada, de certa forma, com a
experiência vivenciada por meio da ação teatral, tão cara ao artista.
Nesse sentido, esse devaneio, esse desejo de uma cultura renascida, parece ser
bastante único do pensamento de Artaud em sua linha tênue entre a lucidez e a loucura.
Por outro lado, faz-se também presente em Breton e Péret os comentários a respeito de
um México mágico, no qual as características primitivistas ainda presentes no tempo
contemporâneo dariam uma efetiva particularidade ao país, tornando-o especial.
Contudo, Breton e Péret estavam conscientes da hibridização da cultura mexicana,
dando aos povos pré-hispânicos o seu peso histórico dentro da trajetória do México até
os tempos atuais.
Péret ainda possui outro ponto em comum com Artaud: ele acreditava também
na universalidade das manifestações inconscientes do ser humano, dando aos rituais
402
Ibidem, p. 1236.
166
mágicos anteriores às religiões dos diversos povos uma origem semelhante, que
chegava a corresponder a uma ciência.
No que diz respeito aos aspectos contemporâneos do México, Breton e Péret
possuíam mais conhecimento do que Artaud, até porque eles estavam engajados nos
debates políticos mais recentes da Europa e das Américas, sendo Péret, assim como
Breton, um trotskista convicto.
Enquanto Artaud manifestava a sua decepção para com a Revolução Mexicana,
a qual não fora, como ele esperava, um movimento de retorno às civilizações pré-
hispânicas, Breton viajou ao México com a perspectiva de encontrar um lugar
esperançoso devido ao governo de Lázaro Cárdenas, o que o fez elogiar a política
mexicana, aspecto repudiado por Artaud devido às suas críticas ao marxismo e aos
programas de integração dos povos indígenas à nação.
Apesar de as ideias de Artaud sobre o México terem sido comparadas com
apenas dois dentre os vários artistas que foram ao mesmo país em período semelhante,
acredito que tal análise pode ser válida devido ao fato de que os dois escolhidos – André
Breton e Benjamin Péret – foram muito próximos de Artaud por estarem ambos no
movimento surrealista, do qual Artaud também fez parte. Dessa maneira, tendo a
formação e o trajeto dos três se destacado numa mesma atmosfera artística, as opiniões
desses artistas apresentam aspectos comuns. Por fim, essas semelhanças encontradas em
suas concepções fazem também com que as manifestações particulares de cada um
tenham destaque dentro desse discurso construído por eles. E, para os objetivos deste
capítulo, as suas aproximações contaram tanto quanto suas divergências para que o
discurso de Artaud fosse analisado em seus aspectos históricos e subjetivos.
167
Considerações Finais
nenhum artista que o satisfizesse plenamente, uma vez que, segundo ele, em todos os
trabalhos que observava estavam presentes conceitos da arte moderna europeia. O seu
purismo indígena, portanto, uma idealização que beirava a obsessão, o distanciava do
círculo artístico-intelectual do México, o qual debatia se as artes deveriam ser
desinteressadas ou não, e se deveriam possuir elementos locais ou cosmopolitas – os
nacionalistas versus os universalistas. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais
Artaud não obteve um grande reconhecimento por parte dos artistas mexicanos,
diferentemente de André Breton, que foi ao México dois anos depois.
Conforme vimos, Artaud esperava uma ressurreição do espírito indígena no
México, o que o fazia possuidor de uma concepção purista e anistórica a respeito dos
povos pré-colombianos. No entanto, ao mesmo tempo, mostrava-se consciente da
miscigenação entre os povos indígenas – aspecto que reforçaria o seu caráter temporal.
Apesar de parecer uma contradição, é interessante observar que o conceito de
cultura indígena mexicana para Artaud seria a de que ela era única e eterna, e possuiria
diferentes manifestações de acordo com as diferenças entre os povos. Dessa forma, o
pensamento de Artaud leva a crer que a cultura indígena seria atemporal, contudo, ele
percebia que os povos indígenas haviam sofrido transformações ao longo de sua
história, já que os povos pré-colombianos teriam se miscigenado durante os séculos
antes da chegada dos espanhóis. E, diante disso, o que importaria para o nosso artista
numa revolução seria o renascimento dessa cultura eterna, ainda latente no solo
indígena, a qual traria para o país o fim dos dualismos tão criticados por Artaud e por
seus contemporâneos surrealistas.
Como um artista moderno, Artaud buscava constantemente o choque, a
polêmica, elemento que não ficou ausente durante os oito meses passados no México.
Assim, ao criticar a política pós-revolucionária e tratar de assuntos polêmicos em suas
conferências, Artaud mostrou que, embora tivesse uma obsessão para com a ideia de um
renascimento indígena, de forma purista, ele observava o que estava se passando na
atmosfera artístico-intelectual do México. Dessa maneira, podemos afirmar que ele
soube, de certa forma, perceber o outro mexicano.
A sua viagem à terra dos tarahumaras, em meados de agosto até outubro, deixa
transparecer o seu objetivo de participar dos rituais indígenas como uma experiência ao
mesmo tempo artística e de cura, já que a sua vivência nesta forma de misticismo o
deixava com esperanças de melhorar dos seus problemas psíquicos, que incluíam o
vício em medicamentos que amenizavam o seu sofrimento. Nessa experiência, ele
169
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