Dicionário Do Diabo - Ambrose Bierce
Dicionário Do Diabo - Ambrose Bierce
Dicionário Do Diabo - Ambrose Bierce
ambrose bierce
DICIONÁRIO
DO
DIABO
Selecção e tradução de Rui Lopes
Prefácio de Pedro Mexia
Ilustrações de
RALPH STEADMAN
L I S B O A :
tinta-da- china
mmvi
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O A DVO GA D O D O D I A B O
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Bierce é levado do Diabo, e tem todo o interesse em asso- sentidos distorcidos. Quando o amargo colunista diz que o
ciar a maldição ao seu texto. O título é como que um jogada realismo é a representação da natureza do ponto de vista de
de promoção. Este Dicionário anuncia logo no seu nome um sapo, não está apenas a satirizar uma determinada esté-
que não se pretende informativo, como os dicionários tica. Está a contestar toda a ideia de uma visão naturalista da
comuns. Nem sequer instrutivo e empenhado, como a Enci- sociedade. Os seus aforismos divertidos e às vezes surrealis-
clopédia iluminista. O que interessa a Bierce não é descrever tas deformam e transformam o mundo do ponto de vista de
o mundo tal como é. O mundo tal como é não passa de uma um individualista. O que se compreende quando uma entra-
ilusão de óptica, de um engodo social. O mundo não deve da do dicionário sugere que liberdade e imaginação são a
ser analisado com frieza científica ou ideológica, deve ser mesma coisa.
confrontado com os seus vícios numa linguagem viciosa. Se situarmos Bierce no contexto oitocentista, surgem
Bierce joga contra o mundo mas no terreno do mundo: ele alguns paralelos com Mark Twain, que escrevia vinhetas
não denuncia nem lamenta, apenas usa os artifícios da civi- irónicas e sátiras delirantes, e depois com o polemista
lização contra essa mesma civilização. Se vivemos protegi- H.L. Mencken. Acontece que Mencken era bastante mais
dos e enganados por conceitos, convenções, conveniências, conservador e talvez mais agressivo. E Twain cultivava um
então o que importa é aceitar isso como se fosse um jogo. registo sentimental e uma certa bonomia, enquanto Bierce é
E depois viciar o jogo por dentro. Ao definir as coisas do quase gélido. O Dictionaire des Idées Reçues de Gustave Flau-
mundo, Bierce usa as estratégias mundanas: ele mente para bert tem evidentes afinidades com The Devil’s Dictionary, na
chegar à sua verdade. Se a hipocrisia existe como homena- sua impaciência com o cliché. No entanto, Flaubert era um
gem do vício à virtude (segundo Wilde), então a virtude que misantropo e um elitista, ao passo que Bierce, americano dis-
se faz vício é a mais genial das retóricas. sidente mas ainda assim americano, é essencialmente um
O que critica Bierce? Os fundamentos da sociedade do populista. A mesquinhez e a mediocridade divertem Gustave
seu tempo: o patriotismo, o colonialismo, o militarismo, o e Ambrose, mas o autor de Bouvard e Pécuchet não esconde
clericalismo, a demagogia democrática. E os vícios humanos um certo nojo, ao passo que o colunista californiano denun-
de todos os tempos: o oportunismo, a hipocrisia, a estupi- cia um assinalável gozo. Bierce não se fica pelo cinismo:
dez, a cupidez e a vigarice. No entanto, o seu principal alvo inventa uma espécie de cinismo do cinismo.
é a manipulação e o abastardamento das palavras e dos sen- Diversas entradas do Dicionário são modelarmente cíni-
tidos. A retórica das definições deste Dicionário consiste cas: é assim quando define o comércio como «saque», o cate-
em apresentar todos os nossos mecanismos de inveja, arro- cismo como «adivinhas teológicas» ou o amor como «uma
gância, desculpabilização e demonização do outro. Bierce demência temporária que se cura com o casamento». Ou
distorce o sentido das palavras porque as palavras adquiriram quando define «inocência», «Ocidente», «funeral», «justiça»
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ou «fidelidade». A sua definição de cínico é particularmente Bierce define «clube» como «uma associação de homens que
interessante: «um malandro cuja visão deficiente lhe apre- tem por objectivos a embriaguez, a gula, o riso alarve, o homi-
senta as coisas como elas são, não como deviam ser». De cídio, o sacrilégio e a difamação de mães, esposas e irmãs»
muitas destas tiradas percebemos que Bierce é mais um acrescenta que obteve essa informação através das esposas
anarquista que um progressista. Ele é tão contra o optimis- desses homens. Ou seja: Bierce não está a assumir o discurso
mo que a entrada «pessimismo» critica o optimismo em vez da virtude, mas a caricaturar a mentalidade dos obcecados
de satirizar o pessimismo. Bierce sabe que o radicalismo de com a decência. Um mundo decente seria enfadonho. É a
hoje é o conservadorismo de amanhã: segundo ele, um con- imperfeição do mundo que anima o Diabo.
servador «gosta das coisas más que já existem, por oposição Escritos na imprensa da época, estes textos tinham um
ao liberal, que as quer substituir por outras». E não hesita significado determinado. A sua junção em volume implica a
em apresentar a revolução como a troca de um mal por transformação da sua natureza, uma vez que os textos se
outro mal. No fundo, é da História que ele mais desconfia: a desligam dos acontecimentos concretos e se tornam uma
História é «um relato geralmente falso de acontecimentos colecção de epigramas. Bierce é eminentemente citável, e
geralmente fúteis, contado por governos geralmente velha- provavelmente muitas destas definições diabólicas circulam
cos e soldados geralmente tolos». Não há aqui espaço para isoladamente, em epígrafes, conversas ou dicionários de
mitologias de nenhuma espécie. citações, pelo que cada uma adquire um valor individual e
É verdade que no Dicionário encontramos indignação. provavelmente novos sentidos. Se a citação é «o acto de
Mas esta indignação não tem ilusões sobre os seus efeitos e repetir erradamente as palavras de outra pessoa», então essa
cultiva o humor negro. O cínico reconhece subtilmente que inevitabilidade torna-se num trunfo. E num triunfo.
o mundo é cínico. Bierce parece às vezes um moralista O Dicionário do Diabo é um manual de guerrilha contra o
porque joga com os dois conceitos essenciais do moralista: conformismo. Uma guerrilha moderadamente convicta dos
a verdade e o aforismo. Se algumas coisas são falsas e repug- seus poderes mas ainda assim apostada na inconveniência e
nantemente falsas, é porque existe uma possibilidade de na crítica sem tréguas. Um crítico, escreve Ambrose Bierce,
serem verdadeiras. Bierce supõe que existe uma verdade e é «uma pessoa que se diz difícil de agradar porque ninguém
essa verdade é parcialmente desvendada pelo aforismo. tenta agradar-lhe».
A frase concisa e definitiva, dotada de um grau de certeza e Que este Dicionário vos desagrade.
de um grau de ambiguidade, permite que se extraia um con-
ceito moral de todas as matérias. Acontece que esse moralismo Pedro Mexia
fracassa porque Bierce gosta demasiado do seu jogo. Ele
combate o fogo com o fogo e pelo fogo se apaixona. Quando
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