RPF - A Obra Lexicográfica de Roboredo
RPF - A Obra Lexicográfica de Roboredo
RPF - A Obra Lexicográfica de Roboredo
O Dictionarium de Ambrósio Calepino teve edição "princeps" em Reggio em 1502 e foi sendo
objecto de sucessivas reedições e ampliações ao longo dos sécs. XVI, XVII e XVIII.1 Recebeu a
colaboração dos mais eruditos humanistas, e suscitou uma dispendiosa mobilização tipográfica entre os
prelos mais qualificados da Europa.2 É um dos textos instituidores da lexicografia moderna, juntamente
com as obras de Nebrija (Salamanca 1492 e 1495)3 e de Robert Estienne (Paris 1531) 4 A lexicografia
bilingue e monolingue dos vernáculos europeus desenvolveu-se a partir destes dicionários, aproveitando-
os para o agenciamento e ordenação alfabética das respectivas nomenclaturas, e adoptando os seus
recursos metalexicográficos, desde as soluções técnicas para a disposição tipográfica, até à elaboração
dos artigos, as definições, as citações, etc.
Retomando e alargando as fontes de referência da Cornucopiae siue linguae latinae
commentarii de Nicolau Perotto, (publicada pela primeira vez em Veneza, 1489), o Dictionarium de
Ambrósio Calepino deu origem à lexicografia autorizada, em que se textualiza a informação
lexicográfica, recorrendo às explicações e à citação dos bons autores, nomeadamente Cícero, Tito Lívio,
Horácio, Virgílio, etc.
QUADRO
Neste grande convívio interlinguístico europeu, até ao final do séc. XVI e, mesmo nas edições
mais poliglotas, escasseia o português. Será necessário percorrer todas as distâncias do mar até às
paragens remotas do Japão, para a língua portuguesa poder ser inscrita no grémio de idiomas reunidos no
grande dicionário plurilingue. E no entanto, em Portugal, tanto ou mais do que em qualquer outro país
europeu, o Calepino foi um dos dicionários mais assiduamente utilizados. De maneira muito sucinta,
elaborámos já um quadro da recepção do Calepino em Portugal 1. No conjunto dessa amplíssima
recepção destacaremos três aspectos correspondentes a diferenciados níveis de leitura e de interacção
linguística e lexicográfica.
A repercussão e a influência mais ampla do Calepino, no ambiente linguístico e cultural
português, realizou-se, em primeiro lugar, pela sua difusão entre o público latinizado em geral e muito
especialmente entre os humanistas. São numerosos, a este propósito, os testemunhos da sua utilização,
bastará lembrar as citações emblemáticas de André de Resende,2 de Manuel de faria e Sousa,3 ou a
referência do P. António Vieira no famoso sermão da Sexagesima 4. Acrescentaremos também as alusões
e listas bibliográficas avulsas das bibliotecas dos espólios conventuais ou de humanistas e estudiosos dos
sécs. XVI, XVII e XVIII. Encontram-se também referências abundantes em gramáticas latinas (como a
de Luís António Vernei 5) e outros textos didácticos publicados em Portugal até ao séc. XIX. Vicente
Gomes de Moura recenseia-o em meia página, anotando que se trata de um "Diccionario dos mais usuaes
da Europa", e acrescentando ainda: "He Diccionario universal, e mui proprio para o estudo de Latim,
mais para as pessoas adiantadas, que para os principiantes: de Calepino seu A. conserva pouco mais que
o nome" (p.309).6 Por outro lado, guardam-se ainda hoje, nos depósitos bibliográficos portugueses,
muitas dezenas de exemplares de edições provenientes dos vários centros tipográficos europeus. Pela
minha parte, sem presunção de bibliófilo, tive oportunidade de adquirir, em alfarrabistas portugueses,
exemplares de quatro edições (Lião 1559; Lovaina 1572; Lião 1681, Pádua, 1779).
Em segundo lugar, a influência do Calepino manifestou-se nos dicionários portugueses que o
utilizaram e o citaram como fonte de referência, especialmente nos dois dicionários (de Jerónimo
Cardoso e de Bento Pereira) que serviram de suporte para a escolarização do latim, ao longo dos séculos
XVI, XVII e XVIII. Jerónimo Cardoso 7 utilizou o Calepino como fonte para o seu Dictionarium
Esta pouco conhecida versão trilingue do Calepino integra-se num conjunto bibliográfico,
(destinado ao ensino do latim, e do português e espanhol para os estrangeiros), composto por três obras
diferentes, entre as quais se destaca o título bem significativo de Ianua linguarum ou, em português,
Porta de línguas. Na sua origem, a Ianua linguarum foi compilada pelos Jesuítas irlandeses, sob a
direcção de William Bathe (1564-1614) e publicada em Salamanca em 1611.5 Amaro Reboredo 6
Para a história da lexicografia portuguesa, interessa-nos, por agora, neste conjunto bibliográfico,
o vol. II, publicado em 1621 e especialmente o compêndio do Calepino. Trata-se do segundo dicionário
de latim-português publicado em Portugal e do primeiro dicionário em que se emparceira o português e o
castelhano.
Pode depreender-se do ampliado título do último volume, que o autor, alargando o âmbito da
solicitação pública, procurou corresponder a dois objectivos bem diferenciados.
Viseu. É autor de uma bibliografia considerável, com particular incidência nos domínios da reflexão gramatical e
linguística em geral. O bibliógrafo João Soares de Brito designa-o "Grammaticus non contemnendus" e José Vicente
Gomes de Moura dedica-lhe uma recensão rasgadamente elogiosa a ps.352-354 da Noticia Succinta dos Monumentos
da Lingua Latina, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1823.
1 Na versão trilingue da Ianua Linguarum Roboredo completa o número de sentenças de modo a perfazer as 1200.
O primeiro desses objectivos era o ensino da língua latina, ao qual concorria com uma anunciada
vantagem de eficácia e de brevidade. O ensino do latim era então (e continuou sendo até ao séc. XIX) a
tarefa mais importante, e certamente a mais onerosa, de toda a escolarização média, para esse efeito se
produziam e se publicavam os (quase únicos) manuais escolares, entre os quais podemos incluir as
gramáticas e os textos paragramaticais, as ortografias e ainda os dicionários.
O segundo objectivo — o ensino do português e do espanhol aos estrangeiros — constitui uma
novidade no percurso editorial português. A aprendizagem das línguas modernas europeias manifestou-
se de maneira incipiente, nos Calepinos plurilingues e nos pequenos dicionários coloquiais de bolso, dos
viajantes, como o divulgadíssimo "vade-mecum" de Berlaimont, Colloquia et Dictionariolum [plurium]
linguarum,1 que reuniram uma espécie de vocabulário básico das várias línguas europeias.
Para o ensino do português a estrangeiros, a obra de Reboredo é a primeira publicada em
Portugal.2 Entretanto, haveria talvez mais interesse em facilitar um acesso, fundamentado na
exemplificação escrita, ao castelhano que, durante a monarquia dual, exercida pela Casa de Áustria, entre
1580 e 1640, foi língua de dominação em Portugal e deu lugar a uma produção escrita considerável.
O empreendimento de Amaro Reboredo, a julgar pelo pouco sucesso editorial, não foi
compensado pelos favores do público e não terá correspondido à sua generosa expectativa. Era uma
proposta didáctica inovadora que deveria suscitar resistências por parte de uma tradição escolar
certamente muito ritualizada. Por outro lado, Reboredo era um clérigo secular, e a sua obra aparecia fora
da tutela das mais influentes instituições escolásticas do seu tempo. As Ordens religiosas, escolhiam os
seus manuais escolares ou destacavam alguns do seus membros expressamente para procederem à sua
elaboração. Foi este o caso dos Jesuítas que planearam e promoveram a redacção e publicação de uma
gramática latina (Manuel Álvares, 1572), de uma retórica (Cipriano Soares, 1564) e do mais importante
conjunto dicionarístico da história do ensino português (Bento Pereira, Prosodia 1634 e Tesouro 1647).
Estas obras preencheram de modo preponderante o universo escolar e cultural português durante cerca de
dois séculos, informaram o discurso, a escrita, toda a produção literaria e o percurso histórico da língua
portuguesa.
Neste processo avulta a componente lexicográfica, na qual se integrou, sem destaque assinalável,
a obra de Reboredo. O mercado escolar português dos sécs. XVI e XVII foi preenchido, com bem pouca
1 Cf. RICCARDO RIZZA, et alii, Colloquia et Dictionariolum Octo Linguarum - Latinae, Gallicae, Belgicae,
Teutonicae, Hispanicae, Italicae, Anglicae, Portugallicae, Viareggio-Lucca, Mauro Baroni editore, 1996. Ed. crítica
feita com base na ed. de Veneza, Tip. Juliana, 1656.
2 Mais tarde, em 1672, Bento Pereira publicaria, em Lyon, a primeira gramática da língua portuguesa para esse
mesmo efeito, e em latim: Ars grammaticae pro lingua lusitana addiscenda.
variedade é certo, pelos dicionários reeditados de Jerónimo Cardoso, e de Bento Pereira e pelas edições
singulares das obras de Agostinho Barbosa e de Reboredo.
O dicionário era a obra mais dispendiosa, no conjunto dos manuais escolares e a sua elaboração
e produção autoral e tipográfica constituíam um acontecimento em que se implicavam e coalesciam
factores pedagógicos, factores linguísticos, sócio-literários e ideológicos e também económicos.1
A obra de Jerónimo Cardoso (c.1510-1569), composta por um conjunto de dicionários de
português-latim (1562) e latim-português (1569), ocupou o espaço escolar em grande parte dos sécs. XVI
e XVII. Foi objecto de mais de uma dezena de reedições que se prolongaram entre 1570 e 1695. Na
oficina do mesmo Pedro Craesbeeck, em Lisboa, foram feitas as reimpressões de 1613, 1619, e 1630.
Agostinho Barbosa (1590-1649) publicou, ainda muito jovem, em 1611, um Dictionarium
Lusitanicolatinum (Braga, Frutuoso Lourenço de Basto) em que a nomenclatura portuguesa se mistura ou
se integra com numerosos sintagmas preposicionais que são alfabetadas como entradas, prejudicando a
função hierarquizadora da ordenação alfabética.
Finalmente a obra de Bento Pereira, que reune a Prosodia (1634) e o Tesouro da Língua
Portuguesa (1647) completa o quadro da lexicografia escolar portuguesa, até aos meados do século
XVIII, se exceptuarmos o Calepino de Amaro Reboredo e o Vocabulário de Bluteau que não pode ser
consederado um texto escolar.2
Para além das obras destes autores (não tomamos aqui em consideração a actividade
lexicográfica dos missionários que se intensificou no confronto com novas línguas, e que se repercutiu
mesmo na lexicografia da língua portuguesa, como terá acontecido com a obra de Manuel Barreto
(c.1561-1620), um Vocabulario Lusitanico Latino, elaborado no Japão, à volta de 1607, e que se guarda
na Academia das Ciências de Lisboa, em 3 vols. manuscritos), devem ter sido muito utilizados em
Portugal os dicionários provenientes do estrangeiro e especialmente o dicionário de Latim-espanhol de
Nebrija e também as várias edições europeias do Calepino.
A obra de Amaro Reboredo não teve certamente um acolhimento significativo nos meios
escolares. Nunca foi reeditada e não temos conhecimento de testemunhos que forneçam indícios de uma
1. À luz desta perspectiva ampla se deverá, por exemplo entender o aparecimento do Vocabulário de Bluteau, que é
um testemunho importante do tempo barroco e da conjuntura próspera de D. João V.
2 Foram publicados outros textos de tipo lexicográfico de menor interesse linguístico e de reduzido âmbito
pedagógico. Entre eles salientaremos os dicionários de nomes próprios de STOCKAMMER (editado em conjunto
com a obra de Jerónimo Cardoso) e o Diccionario Lusitanico-Latino de Nomes Proprios de Frey Pedro de
POYARES (Lisboa, João da Costa, 1667) e ainda dois pequenos dicionários escolares, o Index totius artis,
acrescentado a algumas edições da Gramática latina de Manuel Álvares, e o Indiculo universal, de Pomey, publicado
pelos Jesuítas, sob a direcção do P. António Franco, a partir de 1716.
repercutida recepção. A estudada e original adequação pedagógica não terá sido suficientemente
recomendada e patrocinada para poder concorrer com os manuais tradicionalmente adoptados, e as
próprias escolas, os Jesuítas e outras instituições, terão naturalmente resistido à introdução de um modelo
didáctico que se afastava da sua prática habitual de ensino, que era certamente muito normalizada. A já
referida Arte de gramática latina de Manuel Álvares (1526-1583) usufria de um justificado prestígio,
desde a primeira edição em 1572, e continuaria, em sucessivas reedições (anotadas, explicadas e
acrescentadas com um locupletíssimo índice-glossário1), a enquadrar a formação gramatical e
metalinguística em geral, até à segunda metade do século XVIII.
A componente lexicográfica da obra de Reboredo sofria também de graves limitações na sua
funcionalidade, oferecia uma informação muito implicada no conjunto do manual, especialmente nos
exemplos das sentenças, para as quais remetia por um sistema de numeração, e deixava muitas entradas
latinas sem a tradução equivalente em português. Além disso, como era um dicionário servido apenas
pela alfabetação latina (latim-português, castelhano), ficava em desvantagem em relação à obra de
Jerónimo Cardoso que oferecia num mesmo volume o latim-português e o português-latim.
Quanto ao acesso à língua castelhana não temos elementos informativos suficientes para avaliar
do interesse que terá despertado. O convívio interlinguístico foi assíduo e muito produtivo, como já
notámos, mas nada sabemos sobre a sua eventual escolarização. Os portugueses poderiam enriquecer e
aperfeiçoar o seu castelhano nos dicionários espanhóis que circulavam normalmente em Portugal,
sobretudo os de António de Nebrija. O acesso do português ao castelhano, quando houvesse necessidade
de recorrer à intermediação lexicográfica, poderia fazer-se pelo latim. Nesta situação linguística, o
dicionário mais necessário, o de primeira urgência, parece-nos que seria o de português-castelhano e é
certamente por essa razão que Reboredo, no seu Calepino, e depois Bento Pereira, na Prosodia (nas
edições do séc. XVII, até 1697), acrescentam agumas equivalências castelhanas - ambas as obras podiam
dizer-se trilingues (latim-port.-espanhol), mas, em boa verdade, as indicações lexicais castelhanas eram
raras e muito sumárias. Curiosamente, esta prioridade do português-castelhano não preocupa já Bluteau,
quando em pleno séc. XVIII, publica um Dicionário castelhano e português (encadernado juntamente
com o tomo VIII, do seu Vocabulário português e latino, Lisboa, Pascoal da Silva, 1721) destinado
sobretudo aos espanhóis que quisessem aprender o portuguûes, em todo o caso, não deixa de acescentar
"una Tabla de palabras Portuguezas mas remotas del idioma Castelhano", em que se reunem algumas
1. António Velez (c,1545-1609) foi o colaborador de Manuel Álvares que se encarregou da adequação didáctica de
algumas reedições da Arte e que lhe acrescentou o Index totius artis, pelo menos na sua primeira versão. A fortuna
editorial, longa e copiosa, dos "Três Livros da Instituição de Gramática" (Emmanuelis Alvari è Societate Iesu de
Institutione Grammatica Libri Tres) pode ver-se na Bibliografia Geral Portuguesa, século XVI, vol.III, Lisboa,
Academia das Ciências de Lisboa, INCM, 1983, p. 206-376)
centenas de formas portuguesas que divergem das castelhanas e dificultam a passagem interlinguística.
Trata-se de uma tentativa de identificação do léxico contrastivo entre o português e o castelhano.
Não obstante o aparente insucesso do conjunto da obra de Reboredo, no seu tempo, não
podemos hoje deixar de lhe fazer justiça, reconhecendo-lhe indiscutíveis méritos, reitegrando-o na
memória linguisticográfica portuguesa e promovendo a sua releitura como património histórico da língua
e da cultura. O compendio do Calepino, que é a parte que por agora especialmente nos interessa, é um
texto documental que merece não ser ignorado, entre as fontes pouco estudadas da lexicografia e da
história da língua portuguesa.
O título que inicia o dicionário, a páginas 35 do vol. II, esclarece alguns aspectos essenciais do
seu perfil lexicográfico:
Compendium Calepini, vel potius Thesauri Linguae Latinae cum interpretatione Lusitanica, &
Hispanica omissis vocabulis quae rarius in usum vocantur.1
1. Este título vem antecipado com versão portuguesa e algumas indicações complementares na página de rosto do volume: Raizes
da Lingua Latina Mostradas em hum tratado e diccionario: Isto he, hum compendio do Calepino com a composição e derivação
das palavras, com a ortografia, quantidade e frase dellas. Vem igualmente repetido no rosto do vol. da Porta de Linguas de
1623: ...raizes da {lingua} Latina mostradas em hum compendio do Calepino, ou por melhor do Tesouro, para os que a querem
aprender, e ensinar brevemente, e para os estrangeiros que desejaõ a Portuguesa e Espanhola.
Reboredo.1 Na primeira página do Calepino, na sequência do título, além das informações sobre alguns
aspectos da descrição lexicográfica que nele se oferece, dá-se indicação sobre as remissões numéricas:
Voces in Sententiis Ianuae Linguarum collocatae suis numeris, ipsarum vocum, & ab illis
colligibilium quantitas, & phrasis illustrior cum lima: simplicium compositio: primitivarum derivatio;
necnon Nominum genera, Verborum praeterita, atque regimina breviter indicantur.
As 1200 sentenças da Ianua Linguarum, distribuídas em 12 centúrias temáticas (sobre as
virtudes e os vícios, sobre o comportamento humano, sobre os artifícios ou as artes mecânicas, sobre
assuntos vários ou indistinctos, e até sobre a crítica "in zoylum"2) estão todas numeradas e sempre que
uma entrada do dicionário está contextuada numa sentença, traz indicação do respectivo número
remissivo. Por exemplo, a entrada —Mulier - remete para a sentença nº. 206, consultando este número na
Ianua Linguarum, encontramos o contexto seguinte:
Mulierem ornat taciturnitas,
com a tradução portuguesa e espanhola equivalentes:
O calár orna a mulhér
El siléncio adórna a la mujér (p.67-68)).
Além deste sistema remissivo, o dicionário fornece abundante informação gramatical: os
enunciados flexionais das declinações e da conjugação verbal, a notícia do género, a indicação dos
prefixos e sufixos; e, entre outros dados, marca a distribuição prosódica, recorrendo aos sinais diacríticos
que se vulgarizaram na lexicografia moderna para anotar a quantidade breve e longa.
O trabalho lexicográfico de Amaro Reboredo não tomou o Calepino como fonte exclusiva,
mesmo no que respeita ao léxico latino. Em certos artigos acrescenta frases modelos, sequências e
alianças lexicais mais frequentes, séries de epítetos e abundantes acumulações sinonímicas e para-
sinonímicas. Pode servir-nos de exemplo o artigo dedicado a Epistola:
"EPISTOLA,ae.f.624. Carta missiva. Hisp. Carta mensagera. Latini vocant literas, vel codicillos.
1. Este sistema de remissões numéricas será retomado, dentro de uma lógica lexicográfica muito semelhente, na obra
publicada sob o nome de de ARTUR BIVAR, Dicionário geral e analógico, Porto, edições Ouro, 3 vols. 1948-1958.
2. As doze centúrias de Sentenças moraes têm os seguintes títulos:
1. De virtute et vitio in communi / Da virtude e do vício em comum; 2. De prudentia et imprudentia / Da prudência e
imprudência; 3. De temperantia et intemperantia / Da temperança e destemperança; 4. De justitia et injustitia / De
justiça e injustiça; 5. De fortitudine et imbecillitate / Da fortaleza e fraqueza; 6. De actionibus humanis / Das acções
humanas; 7. De turbulentis et tranquilis / Das cousas que se fazem com ímpeto e com sossego; 8. De animatis et
inanimatis / Dos viventes e dos não viventes; 9. De artificialibus / De cousas artificiais; 10. De indistinctis / De
cousas indiferentes; 11. De indistinctis / De cousas indiferentes; 12. Sequitur discursus, ex verbis post sententias
relictis compositus, in quo neque ullum verbum bis repetitur, neque est ullum vocabulum quod in mille et centum
praecedentibus sententiis reperitur. In Zoylum / Segue-se um discurso composto das palavras deixadas despois das
sentenças, no qual nem ainda hüa palavra se repete duas vezes, nem há algüa dicção que nas mil e cem sentenças
precedentes se ache. Contra Zoilo, ou o invejoso.
Epistola familiaris, subtilis, insignis, intempestiva, longa, verbosa, brevis, pusilla, inanis, re aliqua utili,
& suavi, recens, vetus:
epistolae quotidianae:
epistolarum crebritas, frequentia, fasciculus.
Illam scribere, inscribere, exarare, elucubrare, texere, efficere, elicere, alicui dare, committere, mittere,
afferre, reddere, expectare, requirere, venire, accipere, complicare, obsignare, resignare, solvere, aperire,
comprimere, conscindere, dilatare, emanare, exire:
epistolae respondere, rescribere, persolvere:
illâ lacessere, obtundere."
(Sentença) "624. Concerpsit epistolam signaturâ iam obsignatam." - "Rompêo em pedâços a carta ja
sellâda com o sello" / "Rompió la carta ia sellada". (p.153-154)
Uma das suas fontes alternativas, entre outras, terão sido os dicionários de Ravisius Textor
(1430-1524), especialmente Epithetorum opus que foi repetidamente editado desde o primeiro quartel do
séc. XVI. Mas, fonte preponderante, além do Calepino, foi certamente o Thesaurus de Robert Estienne.
A referência vem insinuada no próprio título:
Compendium Calepini, vel potius Thesauri Linguae Latinae .
Robert Estienne era um autor "damnatus", pela sua adesão ao calvinismo, e a sua difusão foi
certamente condicionada. Em todo o caso, temos notícia de que o Thesaurus circulou com muito
desimpedimento e foi usado e citado pelos estudiosos em Portugal, ao longo dos sécs. XVI, XVII e
XVIII. Encontram-se, nas bibliotecas portuguesas, vários exemplares, ainda que alguns se encontrem
riscados e mutilados, pelo mau uso dos leitores ou pelas injúrias censórias. Amaro Reboredo deve ter
recolhido no Thesaurus as séries de locuções, de listas coocorrentes e de grupos de significantes
sinonímicos ou analógicos que alargam inesperadamente um bom número de artigos.
1.JOÃO DE BARROS, Dialogo de preceitos moráes cõ prática delles, em módo de jogo. Lisboa, Luís Rodrigues,
1540, fólios 15v.,16 e 16v..
Latim João de Barros J. Cardoso A. Reboredo
Adulatio adulaçam lisongearia Lisongeiro (Adulator) [lisongearia]
Affabilitas affabilidade boa fala, cortesia Affavel, cortês, bem fallado, brando na falla
(Affabilis)
Ambitio ambiçam louuaminha, desejo Ambicioso, cubiçoso de honras (Ambitiosus)
de honrra [ambição]
Arrogantia arrogancia soberba, presunçam, Soberbo, que se attribue o que naõ tem, nem
fantesia merece (Arrogans) [fantesia]
Auaritia auareza auareza, Avarento, cubiçoso (Auarus)
mezquindade
Audatia ousadia atreuimento, Ousadia, atrevimento
afouteza, ousadia.
Comitas graziosidade cortesia Cortesania, humanidade, facilidade
Contentio contençam profia, requesta, Entesar, enderençar, caminhar, ir, andar,
briga contender, perfiar, pedir com instancia,
pertender, procurar (Contendo) [perfia, briga]
Crudelitas crueldade crueldade Cruel, duro, aspero, inhumano (Crudelis)
[crueldade]
Dissimulatio dissimulaçam dessimulação Dissimular, encobrir (Dissimulo)
[dissimulações]
Fortitudo fortaleza fortaleza Forte, valente, esforçado, robusto e por fermoso,
e rico usou Plauto (Fortis) [fortaleza]
Honoris vacuitas sem honrra — Honra, dinidade, fermosura, observancia,
louvor, gloria, ornamento, magistrado, premio
(Honor)
Inflatio presunçam asopro, Inchar, assoprar (Inflo)
empandeiramento
Insensibilitas insensibilidade ho não sentir *Insensibilitas ("Sensibilis: rarissimum est apud
antiquos. Insensibilis. A Gell.")
Intemperantia intemperança destemperança. (vide infra: Temperantia) [destemperança]
Ira ira ira, sanha. Ira, agastamento, colera para tomar vingança
[sanha]
Irae vacuitas sem ira — —
Iustitia iustiça justiça Justiça (-Iustitia) ["Iustus, a,um. Justo, santo,
igual; toma-se por assaz grande, mediocre,
verdadeiro"]
Liberalitas liberalidade liberalidade Liberal, franco, nobre (Liberalis), [Hisp. Liberal
en el gasto, franco, magnifico, hidalgo]
[liberalidade]
Magnanimitas mananimidade grandeza do animo, De grande animo, animoso (Magnanimus)
animosidade
Magnificentia manificencia grandeza. Magnifico, grandioso, liberal (Magnificus)
Malicia malicia malicia Malino, malicioso (Malignus) ["Malitia,ae: fraus
versuta, calliditas."] [malicia]
Mansuetudo mansidam mansidão Manso (Mansuetus)
Modestia modestia vmildade Modesto, temperado (Modestus) ["Modus,
i.m.487. Modo, maneira, razaõ, temperança,
mediania, quantidade, medida."]
Mollicies brandura luxuria, brandura, ["Mollities .... langor, inertia, ignavia"] [luxuria]
molura.
Prodigalitas prodigalidade ho muyto gastar Prodigo, gastador (*Prodigus) ["Prodigitas.
Lucil. Prodigentia,ae: idem. Tac. Prodigalitas,
pro eodem, non legi."]
Prudentia Prudencia prudencia, Prudente, sabio (Prudens) [da prudencia e
sabedoria, discriçam imprudencia]
Pusillanimitas pusillanimidade pouquidade do cousa de pouco animo (Pusillanimus)
coração [pusilanime]
Pusillitas pouquidade — Pequeno de corpo (*Pusillus) ["Perpusillus" -
não regista "pusillitas"].
Ruditas rudeza rudeza Tosco, não lavrado, rustico, duro: toma-se por
naõ ensinado, rude. (*Rudis), ["Ruditas, tis: pro
ingenij infirmitas, & stupor, tempore Gothico
natum est."].
Rusticitas bruteza rustiquidade Rustico, aldeaõ do campo. (Rusticus)
/rusticidade, vilania.
Scurrilitas chocarraria chocarrice, Chocarreiro, lascivo.(Scurra, ae.m.679.)
chacorrice.
Simplicitas simplicidade simpreza simple, singello, sem dobrez, sem composiçaõ:
toma-se por verdadeiro e puro. (Simplex)
Temiditas fraqueza couardia (timiditas) Temeroso, covarde, medroso (Timidus)
Temperantia temperança temperança temperançacujas partes saõ continencia,
clemencia, modestia.
Veritas verdade verdade, certeza. verdade
Entre outros aspectos poderão notar-se:
— A sensibilidade à pureza lexical do latim e a recusa do barbarismo (ver asterisco).
— Transferindo para o português a mesma perspectiva teórica, Reboredo, no respeitante às
equivalências portuguesas, parece valorizar as formas da tradição vernácula.
— Um aspecto interessante para o reconhecimento do léxico português recolhe-se da cultivada
acumulação sinonímica e do alargamento do âmbito de correspondências semânticas, como se pode
também observar pelos exemplos seguintes:
— Author, oris. m. 457. Autor que dâ autoridade a algüa cousa, conselheiro, inventor, capitaõ, principe,
ajudador, mestre, escrittor, Hisp. Autor, &c. Aliqui scribunt, Auctor, ab Augeo; aliqui, Autor. Authorem
sequi, esse alicui, alicujus rei, habere idoneum rei faciendae.
— Authoritas,tis. Aquella eminencia alcançada per bondade, sciencia, idade, merecimentos, poder, e a
consideraçaõ, vigor, fé, opiniaõ, juizo.
A dicronia lexical encontra atestação abundante na obra de Reboredo. Citaremos um exemplo que nos
parece esclarecedor. Trata-se do subsistema lexical das estações do ano, que sofreu em português uma
alteração entre os sécs. XVI e XVII.1 O dicionário regista a forma "primavera" que é uma importação
poética do séc. XVI, a partir do italiano. O termo aparece todavia em sobreposição com "verão". Por sua
vez a designação "estio", que vai apagar-se entre a nomenclatura das estações do ano, surge ainda a
1. Este tema foi abordado pelo Prof. Paul Teyssier nos seminários (inesquecíveis) de pós-graduação leccionados na
Sorbonne (Paris IV) nos primeiros anos da década de 80.
traduzir o latim "aestas", mas vem acompanhada por "verão", sugerindo uma equivalência significativa e
uma duplicação nomenclatural que vai facilitar o processo de reformulação do sistema.
Em textos do séc. XV, desconhece-se o termo "primavera" e os quatro "tempos do ano" são
enumerados, sem qualquer hesitação, com a seguinte nomenclatura: o verão, o estio, o outono e o
inverno". 2 Ainda na segunda metade do séc. XVI, no Catecismo de Frei Bartolomeu dos Mártires se lê:
"O anno repartese em quatro tempos. s. Inuerno, veram, estio & outono, & cada hum destes tempos tem
tres meses." 3
Para além da pouca notícia, da ausência de reedições, e da quase certa ausência de aceitação nas
instâncias escolares, a obra lexicográfica de Amaro Reboredo não terá, em todo caso, passado em vão
pela história do ensino do latim e do português, e também não pode ser ignorada a sua presença e
influência na tradição dicionarística portuguesa. Precedeu e sem dúvida nenhuma influenciou a Prosodia
de Bento Pereira publicada cerca de dez anos mais tarde. Por outro lado, trouxe ao espaço lexicográfico
português aspectos interessantes da informação lexical e linguística em geral de obras essenciais da
produção linguisticográfica europeia. Os textos de Reboredo constituem uma espécie de lugar de
encontro e de síntese de uma instruída tradição lexicográfica em que se distinguem os nomes de
Ambrósio Calepino (e dos seus muitos e eruditos continuadores), de Ravisius Textor, de Robert Estienne,
de William Bathe e certamente de outros autores cujas obras eram já conhecidas e utilizadas em Portugal,
mas em âmbitos de circulação muito reduzidos, e sem a adaptação funcional que o nosso pedagogo lhes
propiciou.