Dissertao de Mestrado - Mariana Lima Da Silva PDF
Dissertao de Mestrado - Mariana Lima Da Silva PDF
Dissertao de Mestrado - Mariana Lima Da Silva PDF
Boa Vista, RR
15
2016
Boa Vista, RR
2016
16
MARIANA LIMA DA SILVA
________________________________________
Prof. Dr. Felipe Kern Moreira
Orientador / Membro Interno PPGSOF - FURG
________________________________________
Prof. Dr. Reginaldo Gomes de Oliveira
Membro Externo - UFRR
________________________________________
Prof. Dr. Carlos Alberto Borges da Silva
Membro Interno/PPGSOF - UERR
________________________________________
Prof. Dr. Maxim Repetto
Membro Interno/Suplente - UFRR
17
À minha família
18
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao bom Deus pela vida. À minha mãe, Fátima, pelo amor, apoio
incondicional e por ser a melhor auxiliar de pesquisa. À minha irmã, Nathalie, pelo carinho e
motivação. Ao meu esposo, Arthur, pela paciência, dedicação e participação ativa na elaboração
desta dissertação. Ao amigo Conrad Hall, pelos serviços de tradução.
Aos amigos do PPGSOF pelas trocas de experiências e por fazerem meus dias mais
leves e divertidos. Ao admirado professor e orientador, Felipe Kern, a quem devo o refinamento
desta pesquisa. A todos os professores que contribuíram com minha formação acadêmica. Aos
colegas da Fundação Nacional do Índio - FUNAI que apoiaram, colaboraram e se desdobraram
para cobrir minhas ausências em decorrência do mestrado. Agradeço, em especial, aos
indígenas pelo constante aprendizado de vida fruto da interação, diálogo e atendimento ao longo
dos últimos cinco anos de trabalho na FUNAI.
19
Todo indígena tem direito a uma
nacionalidade.
(Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas)
RESUMO
20
Esta dissertação tem como finalidade comparar as políticas indigenistas brasileiras e
guyanenses voltadas à demarcação de terras, ao autossustento, à educação e à seguridade social.
Tem o intuito de perceber a relação entre nacionalidade e acesso a essas políticas por indígenas
tranfronteiriços, cujos territórios étnicos foram sobrepostos por uma fronteira nacional. Para
tanto, procurou-se compreender as relações dos povos indígenas no contexto histórico de
formação dos Estados nacionais brasileiro e guyanense e a delimitação da fronteira entre estes.
Compreender, também, o contexto socioeconômico contemporâneo desses países no qual se
ambientam as políticas indigenistas e as implicações de nacionalidade para acesso às políticas
nacionais por indígenas transfronteiriços.
Palavras-chave: Políticas Indigenistas. Nacionalidade. Indígenas transfronteiriços. Brasil.
Guyana.
21
ABSTRACT
This dissertation aims to compare the Brazilian and Guyanese indigenous policies focused on
land demarcation, self-sustain, education and social security. It has the intention of perceiving
the relation between nationality and the access to these policies by transboundary indians, which
ethnic territories has been overlapped by a national border. To do so, it was sought to
comprehend the relations among the indigenous peoples in the historical context of Brazilian
and Guyanese national State formation and the contemporary socioeconomic context of these
countries in which take place the indigenous policies and the implications of nationality to
access the national policies by transboundary indians.
Keywords: Indigenous policies. Nationality. Transboundary indians. Brazil. Guyana.
22
LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS
Figura 1: Mapa que indica a localização dos povos nativos na “Ilha das Guianas” e ao que
corresponde à fronteira de Roraima coma Guyana. ................................................................ 16
Figura 2 – Mapa que indica a localização de povos nativos na “Ilha das Guianas” e que
corresponde à fronteira de Roraima com a Guyana..........................................................17
Figura 3 – Mapa que indica a localização das etnias Akawaio, Ingaricó, Macuxi, Patamona e
Wapixana na “Ilha das Guianas” e que corresponde à fronteira de Roraima com a
Guyana...................................................................................................................17
Figura 4: Mapa das etnorregiões indígenas no estado de Roraima. ......................................... 66
Figura 5: Tabela da População costeira e do interior e taxas de crescimento entre os anos de
1980-2012. .............................................................................................................................. 100
Figura 6: Mapa da distribuição populacional por Região da Guyana em 2012. .................... 101
Figura 7: Mapa das Áreas com potencial para mineração e proteção da biodiversidade na
Guyana. ................................................................................................................................... 105
Figura 8: Mapa das Terras Ameríndias Tituladas, Guyana. ................................................... 118
Figura 9: Mapa das Terras Indígenas na fronteira Brasil-Guyana.......................................... 135
23
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Gráfico de Indígenas no Programa Bolsa Família – Brasil – 2015. ........................ 91
Gráfico 2: Gráfico de Indígenas no Programa Bolsa Família, em Roraima e nos municípios de
Bonfim, Normandia e Uiramutã – 2015. .................................................................................. 91
24
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Terras Indígenas no Brasil por fase do processo administrativo em 2015. ............ 62
Quadro 2: Terras Indígenas, população, número de comunidades e etnia por município. ....... 64
Quadro 3: Quadro sintético das políticas indigenistas por órgãos executores, instruções
normativas e ações vigentes. .................................................................................................... 70
Quadro 4: Quadro de Terras Indígenas conforme modalidade. .............................................. 73
Quadro 5: Quadro das principais políticas voltadas ao autossustento. .................................... 76
Quadro 6: Matrícula de indígenas por níveis, etapas e modalidades da educação pública
brasileira em 2014. ................................................................................................................... 79
Quadro 7: Professores indígenas por níveis, etapas e modalidades da educação pública brasileira
em 2014. ................................................................................................................................... 80
Quadro 8: Escolas indígenas por níveis, etapas e modalidades da educação pública brasileira
em 2014. ................................................................................................................................... 81
Quadro 9: Estrutura de Atendimento da Saúde Indígena em 2015. ......................................... 84
Quadro 10: Quadro com informações sobre atendimentos à indígenas oriundos da Guyana. . 86
Quadro 11: Quadro dos tipos de benefício para segurados especiais indígenas. ..................... 89
Quadro 12: Programas e ações vinculados à política de assistência social no Brasil. ............. 92
Quadro 13: Quadro de Assentamentos Ameríndios por fase de reconhecimento, titulação e
demarcação. ............................................................................................................................ 115
Quadro 14: Terras Ameríndias por Regiões da Guyana. ........................................................ 116
Quadro 15: Quadro do número de escolas, matrículas e professores por Região da Guyana em
2012. ....................................................................................................................................... 124
Quadro 16: Quadro com informações sobre as estruturas de atendimento, doenças e outras
informações relevantes relacionadas aos serviços de saúde ofertados nas Regiões 7, 8 e 9 da
Guyana. ................................................................................................................................... 126
Quadro 17: Quadro sinóptico sobre doenças prevalentes e outras informações relevantes
relativas aos serviços de saúde nas Regiões 7, 8 e 9, Guyana ................................................ 127
Quadro 18: Quadro de tratados e convênios internacionais sobre direitos indígenas e humanos.
................................................................................................................................................ 142
Quadro 19: Quadro sobre a nacionalidade e cidadania no Brasil e Guyana........................... 153
25
LISTA DE SIGLAS
26
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OCDE – Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico
ONU – Organização das Nações Unidas
OPIRR – Organização dos Professores Indígenas de Roraima
OTCA – Organização do Tratado de Cooperação Amazônica
REED - Redução de Emissões por Degradação e Desmatamento
SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena
UFRR – Universidade Federal de Roraima
UNPD/PNUD – United Nations Development Programme/Programa de Desenvolvimento das
Nações Unidas
27
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................... 15
Capítulo 1 – Nativos: os primeiros nacionais ...................................................................... 23
1.1 Os índios e a construção nacional do Brasil ................................................................. 23
1.2 Os ameríndios e a construção nacional da Guyana ...................................................... 32
1.3 Os índios em Roraima e a fronteira oriental com a Guyana ......................................... 42
1.4 Os ameríndios na Guyana e a fronteira ocidental com Roraima .................................. 46
Capítulo 2 – Políticas indigenistas no Brasil ....................................................................... 51
2.1 Dados gerais sobre o atual contexto social, econômico e político do Brasil e de
Roraima ................................................................................................................................ 53
2.2 O índio “oficial” no contexto brasileiro e roraimense .................................................. 59
2.3 A atual Política Indigenista brasileira ... ........................................................................ 67
2.3.1 Políticas de Território e Autossustento ....................................................................... 71
2.3.2 Demarcação de Terras Indígenas ................................................................................ 71
2.3.3 Autossustento .............................................................................................................. 75
2.4 Políticas de Educação e Seguridade Social .................................................................... 77
2.4.1 Políticas de Educação ................................................................................................. 78
2.4.2 Políticas de Saúde ....................................................................................................... 82
2.4.3 Política Previdenciária ................................................................................................ 87
2.4.4 Política de Assistência Social ..................................................................................... 90
Capítulo 3 – Políticas indigenistas na Guyana ................................................................... 96
3.1 Dados gerais sobre o atual contexto social, econômico e político da Guyana .............. 96
3.2 O ameríndio e a política indigenista no contexto guyanense....................................... 106
3.3 Políticas de Território e Autossustento ........................................................................ 112
3.3.1 Titulação e demarcação de terras .............................................................................. 113
3.3.2 Política de autossustento ........................................................................................... 119
3.4 Políticas de Educação e Seguridade Social .................................................................. 122
3.4.1 Política de Educação ................................................................................................. 122
3.4.2 Política de Saúde ....................................................................................................... 125
3.4.3 Política de Assistência Social e Previdência Social.................................................. 129
Capítulo 4 - Políticas Indigenistas para nacionais ............................................................. 132
4.1 Comparando cenários e políticas ................................................................................. 133
28
4.2 Índios transfronteiriços: estrangeiros ou transnacionais? ........................................... 148
4.3 Cenário bilateral e regional ......................................................................................... 156
Considerações finais ............................................................................................................. 161
Referências Bibliográficas ................................................................................................... 163
Anexos .................................................................................................................................... 175
29
1 INTRODUÇÃO
1
“[...] medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os
povos indígenas” (LIMA, 1995, p.15).
2
Opta-se pela grafia “Guyana”, considerando que é o nome do país após a independência e, ainda, porque,
conforme Oliveira (2010), “Guiana” é considerada pelos cidadãos do país como uma grafia que remete ao período
da ex-colônia Britânica. (OLIVEIRA, 2010, p. 07-08).
3
Conforme Roberts (2015), o termo transfronteiriço refere-se aos povos indígenas cujos territórios tradicionais
perpassam os limites políticos dos Estados nacionais, nos quais continuam transitando e mantendo relações
socioculturais, comerciais com familiares e membros de seus grupos étnicos e também com os Estados nacionais.
O termo também faz alusão ao que Pereira (2005) considera como trânsito contínuo de pessoas de diferentes etnias
e nacionalidades em espaços fronteiriços.
4
Ver Cunha (2012) e Silva (2009).
30
Nesta dissertação, considera-se indígenas transfronteiriços os pertencentes aos
cinco grupos étnicos (Ingaricó/Akawaio, Patamona, Macuxi, Wapichana, Wai Wai) que estão
localizados e transitam historicamente na fronteira oriental do estado de Roraima com a
Guyana, compreendendo os municípios limítrofes de Uiramutã, Normandia, Bonfim e Caroebe.
Estes, por sua vez, correspondem à fronteira ocidental da Guyana com Roraima e representam
os distritos de Upper Essequibo/Upper Takutu, chamada Região 9; o distrito de Portaro
Siparuni, chamada Região 8; e Cuyun Mazzaruni, Região 7 daquele país.
Parte-se, contudo, da compreensão que a atual fronteira que divide o Brasil e
Guyana está delimitada por territórios de habitação e circulação de povos nativos que
mantinham relações socioculturais entre si, antes da chegada dos europeus, e também com estes
em diferentes períodos da colonização em toda a região das “Guianas” (BARBOSA, 2005, p.
59), também chamada de “Ilha das Guianas” (RIVIÈRE, 2001, p. 22; DREYFUS, 1992, p. 77),
conforme mapas abaixo:
Figura 1 - Mapa que indica a localização das etnias Macuxi, Wapixanas e Akawaio na “Ilha
das Guianas” e que corresponde à fronteira de Roraima com a Guyana
31
Figura 2 – Mapa que indica a localização de povos nativos na “Ilha das Guianas”
e que corresponde à fronteira de Roraima com a Guyana
Fonte: Sources cartographiques: cartes au 1/500 000 000 de l' American Geographical Society (1953) et du Times
Atlas (1957); Atlas Bordas (1962). In: Dreyfus, 1992, 77.
32
Observa-se que os mapas demonstram a localização de povos nativos — como
os Macuxi, Ingaricó/Acauaio, Patamona Wapichana e Wai Wai — na porção ocidental da região
das Guianas (MELATTI, 2011, p. 9), que corresponde aos atuais limites fronteiriços entre os
Estados nacionais contemporâneos do Brasil, ou seja, Guyana e Venezuela (OLIVEIRA, 2011,
83), ex-colônias europeias delimitadas ao longo dos séculos XVII e XX.
A literatura histórica e antropológica5 sobre a região das Guianas, também
chamada de Ilha das Guianas (RIVIÈRE, 2001) e Amazônia Caribenha (OLIVEIRA, 2011),
tem demonstrado que mesmo separados por fronteiras nacionais, esses povos continuam a
manter relações sociais, políticas, familiares, de intercâmbio e de comércio com indígenas e
não indígenas, assim como com os diferentes Estados nacionais, a fim de ter acesso às políticas
públicas chamadas, nesta dissertação, de indigenistas.
Esses povos, subjugados no processo de colonização, cujos territórios
tradicionais foram fragmentados e divididos pelos Estados nacionais, atualmente correspondem
a frações do que eram à época da chegada dos europeus (RIBEIRO, 1995, p. 19). No caso do
Brasil, os povos indígenas correspondem, atualmente, a menos de 1% da população. Já em
Roraima chega a cerca de 10% da população (IBGE, 2010).
A despeito das políticas indigenistas coloniais e nacionais voltadas à assimilação e
integração, ainda resistem, no interior da Nação, cerca de 305 etnias. Em Roraima, a Fundação
Nacional do Índio – Funai (2013) registra doze etnias que estão distribuídas por toda a área
territorial do estado, tanto urbanas quanto rurais e, principalmente, em Terras Indígenas
localizadas ao longo da faixa de fronteira com a Venezuela e Guyana.
Na Guyana, os ameríndios correspondem a cerca de 10% da população nacional,
e estão localizados principalmente nas regiões do interior do País. Segundo o site do Ministry
of Amerindians Affairs (MoAA), há nove etnias (Akawaio, Arecunas, Caribes, Patamona,
Macuxi, Wapichana, Wai Wai e Waraus), das quais cinco, já mencionadas antes, habitam a
fronteira da Guyana com o Brasil, isto é, a Região 9 e Regiões 8 e 7.
A fronteira entre esses dois países foi definida em 1904 por meio diplomático,
após uma disputa territorial entre Brasil e Inglaterra conhecida como a “Questão do Rio Pirara”,
iniciada na segunda década do século XIX. Tanto os argumentos ingleses quanto brasileiros
assentavam-se sobre discursos de que os nativos eram seus súditos/nacionais. Ao fim da
5
Sobre as redes de relações entre povos nativos na Guiana ocidental, anteriores e contemporâneas à colonização
e à constituição dos Estados nacionais brasileiro e guyanense, ver os trabalhos de Peter Rivière (2001), Nádia
Farage (1993), Dominique Gallois e Gabriel Barbosa (2005), Reginaldo Oliveira (2010, 2011, 2012), Lodowijk
Hulsman (2012), Stephan Baines (2006) e Mariana Pereira (2005).
33
disputa, a linha fronteiriça obedeceu ao traçado conhecido como a Linha de Shomburgk6, dando
vitória à Inglaterra (MENCK, 2009).
Este episódio resultou numa maior ocupação dos territórios coloniais/nacionais,
levando à colonização do vale do Rio Branco, no Brasil, e do Rupununi, na Guyana (SILVA,
2005). Sprendel (2005, p. 178), no trabalho intitulado Genealogia de estudos sobre a fronteira
brasileira, observa que o tema sobre as fronteiras nacionais foi encarado oficialmente pelo
Estado ao longo dos séculos, desde o início da colonização até a ditadura militar iniciada em
1964, enfatizando as teorias de geopolítica que nortearam a ocupação dos espaços nacionais
sob a perspectiva de vivificar e desenvolver as faixas de fronteira, bem como protegê-las
militarmente.
A delimitação da fronteira nacional — em que pese seu sentido de fixação de
limites territoriais, definição de povo e soberania (ANDERSON, 2005) —, no caso em
particular de Brasil e Guyana, sobrepôs-se à territórios étnicos que continuam sendo área de
trânsito, intercâmbio e relação entre indivíduos pertencentes a grupos localizados em ambos
lados da fronteira. Conforme observa Cardoso de Oliveira, “[...] onde quer que tenham sido
delineadas as fronteiras nas Américas sempre foram traçadas sobre terras e territórios indígenas
e os índios, por sua vez, sempre se viram forçados a reconhecer seus contornos, bem como a se
posicionar politicamente em seu interior” (2005, p. 9).
O trânsito, nessa fronteira, também tem sido motivado por conjunturas políticas
e socioeconômicas. Os deslocamentos de indígenas em espaços transfronteiriços em busca de
melhores condições de vida, principalmente em áreas urbanas, é descrito nos resultados do
projeto de extensão coordenado por Oliveira (2010), chamado Projeto kuwuai kîrî: a
experiência dos índios urbanos de Boa Vista – Roraima, desenvolvido pela Universidade
Federal de Roraima em conjunto com estudantes e lideranças indígenas em bairros da periferia
de Boa Vista no ano de 2009.
O referido estudo deixa claro que a origem de grande parte dos participantes do
projeto são as Regiões 8 e 9 da Guyana. Os relatos dos participantes do projeto descrevem que
os deslocamentos transfronteiriços são constantes, passando por comunidades do interior de
Roraima e chegando a Boa Vista em busca de melhoria de vida (SOUZA; RAMOS, 2010, p.
53). O meio visualizado por esses indígenas para alcançar essa melhoria é a regularização no
Brasil, ou seja, conseguir documentos civis para estatuir residência, relações de trabalho e
6
Linha traçada para demarcar os limites territoriais da então Guiana Britânica pelo explorador alemão, Robert
Herman Schomburgk, a serviço da Royal Geographical Society da coroa inglesa, nos períodos de 1835-1844.
(FARAGE, 1991, 15).
34
facilitar o acesso aos serviços e benefícios assistenciais previstos pelas políticas brasileiras
(COSTA; RIBEIRO, 2010, p. 35).
Essa situação foi percebida pela mestranda porque esta é servidora da Funai de
Roraima desde o ano de 2010. A demanda frequente de indígenas oriundos da Guyana por
documentos de identidade nacional, ou melhor, pelo Registro Civil de Nascimento brasileiro,
despertou o interesse em aprofundar a compreensão do porquê indígenas nascidos na Guyana,
muitos dos quais com documentos de identificação nacional daquele país, buscavam registrar-
se como brasileiros.
A participação em encontros e reuniões de povos indígenas em fronteiras, à
exemplo do IV Encontro de Indígenas de Fronteira, organizado pela Diocese de Roraima,
ocorrido no período de 28 de fevereiro a 03 de março de 2013, em Boa Vista (RR), permitiu o
conhecimento da prática chamada, por um líder indígena da Guyana, de “Complete Document”,
ou “Documentação Completa”. A expressão significa o porte de documentos de identidade
nacional tanto da Guyana quanto do Brasil, como meio para ter atendimento de saúde e acesso
à aposentadoria; enfim, para acessar às políticas indigenistas e aos bens e serviços que passaram
a ser necessários em suas vidas a partir do contato com a sociedade envolvente.
As dificuldades de subsistência nas áreas indígenas e a dependência por serviços
e bens de consumo são também elementos motivadores do trânsito transfronteiriço de
indígenas. Conforme já mencionado, para além do convívio cultural e familiar, o trânsito na
fronteira tem sido, nos últimos anos, para os indígenas, meio para acessar a serviços básicos
como saúde e educação, bem como a trabalhos remunerados e às políticas de distribuição de
renda que compõem um conjunto de políticas públicas brasileiras, como observado pelo
pesquisador Baines (2004, 2006) em suas pesquisas junto aos Macuxi e Wapichana na fronteira
Brasil-Guyana.
Situação semelhante ocorre entre os povos Guarani nas fronteiras do Sul do País.
Segundo Camandulli (2012), os grupos indígenas Guarani historicamente ocupavam um amplo
território que perpassava o que atualmente estão definidos como territórios do Brasil, Paraguai,
Uruguai e Argentina. Ao longo da história de contato e definição de territórios nacionais,
tiveram seus territórios tradicionais fragmentados, e atualmente enfrentam problemas para
transitar e manter seu modo de vida e práticas culturais em territórios nacionais distintos, com
leis distintas. Paralela a esta situação está a crescente dependência das políticas governamentais,
em vista da fragilização do modo de vida e da interferência dos governos nacionais. No entanto,
conforme a autora, o acesso a essas políticas “[...] está permeado por uma noção de cidadania
35
que não reconhece quem vem de fora como portador de direitos” (CAMANDULLI, 2012, p.
23).
A curiosidade sobre os condicionantes e implicações da prática da
“Documentação Completa” na realidade dos povos indígenas transfronteiriços permitiu o
refinamento do projeto de pesquisa deste mestrado, que propõe uma tentativa de compreender
como as políticas públicas voltadas aos povos indígenas na fronteira Brasil-Guyana estão
relacionadas à nacionalidade.
É pertinente ressaltar que há um número considerável de estudos de etnólogos e
antropólogos que têm conseguido desenhar a formação social e étnica dos povos que habitam
essa fronteira, embora existam poucos estudos cujo objetivo sejam as relações dos povos
indígenas, em contexto de fronteira, com Estados nacionais, em especial com as instituições
desses Estados que implementam políticas indigenistas. Desse modo, esta dissertação pretende
apresentar um panorama das políticas destinadas aos povos indígenas no bojo das construções
oficiais de nacionalidade e cidadania dos dois países estudados. Pretende, ainda, sistematizar
conhecimentos e dados acerca de políticas indigenistas no Brasil e na Guyana, de modo a
contribuir com futuros estudos que envolvem as relações bilaterais e internacionais destes
países com os indígenas transfronteiriços.
Para tanto, realizou-se pesquisa comparativa junto às instituições estatais desses
dois países cujas atividades voltam-se, principalmente (e/ou também) aos povos indígenas, a
fim de reunir dados e informações sobre demarcação de territórios, autossustento, educação e
seguridade social e perceber o que existe de políticas indigenistas nesses países, como estas são
operacionalizadas, quais os critérios de acesso e em que implica a nacionalidade neste processo
Além da revisão bibliográfica referente à história e política indigenistas desses
dois países, os dados, informações e análises apresentados nos capítulos desta dissertação
basearam-se em documentos e sítios oficiais de instituições públicas brasileiras e guyanenses
na internet, bem como nas legislações voltadas aos indígenas nos dois países. Basearam-se
também na reunião de informações atuais sobre as políticas indigenistas por meio da realização
de entrevistas com interlocutores estatais, guiadas por roteiro semiestruturado.
Foram realizadas onze entrevistas com representantes de instituições públicas
brasileiras e guyanenses no período de julho a novembro de 2015. Nem todos os entrevistados
permitiram a gravação de áudio, o que resultou na opção pelo registro das informações por meio
de anotações manuscritas. Foram entrevistados quatro servidores da saúde indígena em
Roraima — sendo três do Dsei-LESTE e um da CASAI-RR; a chefe-adjunta da Embaixada
36
Brasileira e a vice-cônsul em Georgetown; a cônsul-geral da Guyana em Roraima; o prefeito
da Região 9; o chefe-adjunto do Departamento de Saúde da Região 9; o coordenador de Saúde
para Povos e Comunidades Indígenas da Guyana; e o ministro de Assuntos Ameríndios da
Guyana.
Os dados reunidos foram utilizados para permitir a comparação dos cenários
nacionais e locais e das políticas indigenistas para descobrir regularidades e perceber
deslocamentos e transformações, semelhanças e diferenças, explicitando as determinações mais
gerais relativas ao tema (SCHENEIDER; SCHIMIT, 1998). Tomou-se como exemplo os
trabalhos do antropólogo José Pimenta (2012), sobre os Ashaninka na fronteira Acre/Brasil-
Peru, e Thiago Almeida Garcia (2010), sobre a comparação das políticas públicas para povos
na fronteira Brasil-Bolívia com foco na educação escolar.
Esta dissertação conta com quatro capítulos, sendo o primeiro voltado para a
contextualização histórica da relação dos povos indígenas na formação do Brasil e da Guyana
enquanto Estados nacionais e da fronteira que divide esses dois países. Os capítulos 2 e 3
destinam-se à contextualização do cenário socioeconômico contemporâneo desses países em
relação aos povos indígenas e à descrição das políticas indigenistas. O capítulo 4, por sua vez,
volta-se à comparação dos cenários e das políticas, à problematização da nacionalidade como
condicionante de acesso às políticas indigenistas e ao cenário bilateral e regional relativo ao
tema dos povos indígenas transfronteiriços.
37
2 NATIVOS, OS PRIMEIROS NACIONAIS
De acordo com Souza Lima (2005, p. 235), índio foi uma categoria genérica
originada no processo de colonização das Américas para designar diferentes povos nativos.
Essa categoria ainda é muito utilizada no Brasil junto às variantes indígenas e povos indígenas8,
versões mais atenuadas para denominar sociedades que se diferenciam, no todo ou em parte, da
sociedade nacional. Essas categorias são comuns tanto nos meios oficiais (órgãos de governo,
sistemas de ensino e livros didáticos) como no senso comum (imprensa e relações cotidianas).
7
Habitantes das terras que chamamos continente americano à época das navegações e colonizações europeias
(SOUZA LIMA, 2005, p. 237). Contudo, esclarece-se que este trabalho não se limitará a usar um único termo para
designar povos nativos, que ora aparecerão no texto como povos originários, povos indígenas ou povos ameríndios,
considerando a bibliografia consultada. No entanto, receberão maior destaque os termos índio e ameríndio, que
são termos oficiais usados pelos países em questão.
8
Categorias vigentes no Art 3º da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas e nos Art.
1º, 2º e 3º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, das quais o Brasil é signatário.
38
Trata-se, nesta seção, da participação do índio, moldado a partir de uma
historiografia oficial, na formação do Brasil enquanto Nação. O que se tem por base são
parcelas da história contadas a partir de colonizadores e pelos nacionais envolvidos,
principalmente, no projeto de constituição de uma identidade nacional no período de Estado
independente e, a partir das primeiras décadas do século XX, por intelectuais e agentes oficiais
que interagiram com os povos nativos. No caso dos intelectuais, para fins de pesquisa
etnográfica, e no caso dos agentes oficiais, para fins de integração9 desses povos à sociedade
nacional.
A historiografia relata que durante as primeiras décadas após a chegada dos
portugueses à costa brasileira, as relações entre europeus e nativos se baseavam no comércio
entre produtos manufaturados e produtos nativos como o pau-brasil, animais e alimentos. Essa
relação de escambo foi modificada com a instalação do Governo Geral, a partir de 1530, o que
desencadeou relações conflitantes entre colonizadores (colonos, oficias do governo e
missionários), resultado de interesses muitas vezes discordantes quanto ao tratamento
dispensado aos nativos. Aos colonos interessava o emprego do índio como mão de obra escrava
em empreendimentos coloniais. Aos representantes da coroa interessava, além da prosperidade
da Colônia, a arrecadação fiscal e a estratégia de ocupação de diferentes partes do território
colonial, como é o caso da atual fronteira norte do Brasil, que será tratada mais adiante
(FAUSTO, 1995, p. 47-50).
Outro tipo de colonizador com interesse nas relações com os índios e com
posturas conflitantes internas à própria categoria foram os missionários.10 Muitas vezes úteis à
Coroa na formação de aldeamentos e catequização dos índios para fins de integrá-los a
sociedade colonial e assegurar territórios, também foram considerados como problema, tendo
em vista as posturas adotadas na condução dos aldeamentos que, em muitos aspectos, conflitava
com o tratamento violento que os colonos dispensavam aos índios, embora disputassem com os
colonos o uso da mão de obra indígena, a exemplo da Ordem dos Jesuítas, responsável pela
maioria dos aldeamentos criados durante a ocupação da Amazônia entre meados dos séculos
XVII e XVIII (CUNHA, 2012, p. 21-22).
As imagens produzidas sobre os nativos durante o período colonial português
(século XVI a início do século XIX) são resultantes das relações dos colonizadores com
9
Conceito usual nas obras do antropólogo Darcy Ribeiro (1982, 1995) para explicar a postura do Estado
colonial/nacional brasileiro em relação aos índios.
10
Sobre a atuação de missionários junto aos povos indígenas no estado de Roraima, ver os trabalhos de Jaci
Guilherme Vieira (2014).
39
diferentes povos, o que levou à homogeneização de características para definir grupos
socioculturais distintos. Essas imagens refletiram nas legislações colonial, nacional,
republicana, e também na atual, que trata das relações entre o Estado e índios. Os relatos sobre
esses nativos, segundo Oliveira Filho (2012, p. 1058), foram marcados pela descrição
qualitativa, ressaltando os contrastes, baseando-se em comparações e percepções desses povos
a partir da realidade eurocêntrica vigente à época.
Nos relatos de viajantes, missionários e oficiais, os índios ora são descritos como
selvagens, sem alma, bestas a serem amansadas, sem Estado e sem religião, ora como hábeis
navegantes, conhecedores das florestas e de tudo nelas, essenciais à sobrevivência nas terras
“descobertas”. Todas essas imagens, contudo, convergiram para a noção de integração do índio
ao sistema social e econômico colonial não em postos de comando, mas sim de submissão e
adaptação aos processos de civilização impostos, quer pela catequização, quer pelas relações
sociais constituídas com outros grupos coloniais. Nesses processos, a principal intenção era a
anulação das diferenças que pudessem se distanciar do projeto de Colônia, aplicando-se o
extermínio e a escravização de grupos resistentes aos aldeamentos (CUNHA, 2012, p. 59-60;
FARAGE, 1991, p. 158; SOUZA LIMA, 2005, p. 240).
A política indigenista entre os séculos XVI até a penúltima década do século XX
foi constituída em conformidade com legislações que trataram os índios como seres em
transição para o status de civilizados/cidadãos, (SOUZA LIMA, 2010, p. 23). A condução desse
processo de transição ora estava delegada à Igreja Católica, ora aos Oficiais do Estado (colonial,
imperial, republicano), e isso se dava por meios de estratégias diversificadas, empregadas
conforme a reação dos povos à colonização, ou seja, como dito antes, ocorria pela catequização,
escravização ou omissão quanto à relação entre os grupos sociais coloniais/nacionais e os povos
indígenas, cujo objetivo era a exploração da mão de obra, usurpação de territórios (PERRONE-
MOISES, 2009, p. 123-129; RIBEIRO, 1982, p. 134).
No citado período, o dualismo entre extermínio e integração resultou em
diferentes visões sobre o índio, que estavam polarizadas entre a visão de que “que índio bom é
índio morto” (CUNHA, 2009, p. 136) e a visão de transformá-lo em trabalhadores, em especial,
úteis à fixação de povoamentos no interior do País. Sobre eles era, pois, preciso pairar uma
tutela, tendo em conta que não eram capazes de administrar a si mesmos e os seus bens
(CUNHA, 2009, p. 148).
Em relação aos índios, ainda no período colonial, durante o governo do Marquês
de Pombal (1751-1759) foram articuladas iniciativas oficiais diferentes das que existiam até
40
então, tendo em vista a necessidade de ocupar e desenvolver o Estado do Maranhão e Grão-
Pará por meio de três medidas, conforme Farage:
41
À medida que discursos contrários à concepção do índio como brasileiro estavam
presentes no debate político, na contramão continuavam a ganhar força as ideias de que este
comporia a sociedade brasileira conforme deixasse de ser índio. Essa ideia foi amplamente
defendida por José Bonifácio de Andrade e Silva, que propôs que o Estado brasileiro passasse
a desenvolver uma política indigenista baseada exclusivamente em “meios brandos e suasórios”
(OLIVEIRA FILHO, 2012, p. 1061) para lidar com os índios, isto é, abandonando de vez
práticas de escravização e guerras contra os nativos.
Na prática, o objetivo desse novo desenho de atuação governamental era a
mesma do período colonial, ou seja, promover a civilização dos índios e torná-los úteis ao
desenvolvimento nacional, todavia por meios diferentes dos adotados na Colônia. A proposta
de Bonifácio seguia, ainda, o preceito da ordem tutelar, porém enfatizando a necessidade de
proibir a exploração de índios. Com o pretexto de não comprometer o projeto de integrá-los à
Nação, foram constituídos institutos para salvaguardar este poder tutelar, a exemplo da
Diretoria de Civilização dos Índios, vinculada ao Ministério do Interior, além do trabalho
desempenhado por missionários católicos com algum incentivo do governo do Império
(CUNHA, 2012, p. 72-75).
O plano geral de civilização dos índios seguiu adiante embasado no
Regulamento das Missões de 1845 que devolvia às missões religiosas o trabalho de catequizar
e civilizar os índios, domesticá-los para o trabalho (CUNHA, 1992, p. 138). Nas décadas que
se seguem ao regulamento, os missionários ganham o reforço de destacamentos militares para
controlar o convívio de estranhos entre os índios, mas a função de tutor dos índios segue sendo
exercida, principalmente, por religiosos devido à falta de especialistas para exercer o papel.
(CUNHA, 1992, p. 140; RIBEIRO, 1982, p. 131-132).
Essa postura protecionista adotada nos períodos pós–independência, “[...]
visualizava o índio como um futuro brasileiro, isto é, como alguém que recebia (ou poderia vir
a receber) alguma atenção e assistência do Estado (OLIVEIRA FILHO, 2012, p. 1062). Ainda
no propósito de conformar o projeto de Nação, os índios, sob as categorias ora caboclos, ora
pardos, passaram a ser incluídos nos censos nacionais para fins de figurarem como parte do
povo e dos cidadãos da Nação (OLIVEIRA FILHO, 2012, p. 1062).
O período republicano inaugura um novo formato para a política indigenista
brasileira, delineada em torno de conflitos territoriais cada vez mais frequentes, tendo em vista
a Lei de Terras de 1850. Esta lei transferiu aos estados o controle das terras devolutas (nas quais
habitavam a grande maioria dos índios, seja em antigos aldeamentos, seja pelo interior do país).
42
Projetos de expansão das fronteiras econômicas e ocupação territorial se intensificavam com os
avanços sobre as regiões brasileiras do Norte e Centro-Oeste, ao longo do século XX, (CUNHA,
1992, 140 a 146). Este avanço resultou em contatos com os chamados índios bravos, que
segundo Oliveira Filho (2012, 1065) são grupos que por seus costumes se distinguiam
radicalmente dos brasileiros e, portanto, não obedeciam à autoridade nacional.
Os projetos que orientaram a relação entre Estado e índios, durante os primeiros
anos da República, continuaram a se basear no intuito de integrar a Nação e foram
implementados a partir de tentativas de pacificação de grupos arredios ao contato e no
estabelecimento do poder tutelar para garantir a adesão dos índios aos projetos de
desenvolvimento nacional. Esses projetos oficiais ganham forma e passam a integrar um
conjunto mais organizado de políticas de Estado para os índios com a criação de “[...] uma
estrutura organizacional estatizada desde 1910, sob a forma do Serviço de Proteção aos Índios
e Localização dos Trabalhadores Nacionais - SPILTN” (SOUZA LIMA, 1995, p. 39),
abreviada, em 1918, para Serviço de Proteção aos Índios (SPI), cujo mentor e principal
protagonista foi o engenheiro militar Cândido Mariano da Silva Rondon, que teve por equipe,
em geral, militares e positivistas, chamados de “missionários do Estado”, (SOUZA LIMA,
2010, 27).
O SPI foi um aparelho de Estado separado da Igreja cujo objetivo era gerir a
“[...] relação entre povos indígenas, distintos grupos sociais e demais aparelhos de poder”
(SOUZA LIMA, 1992, p. 155). A política indigenista deste aparelho de Estado consistia em
contatar grupos indígenas espalhados pelo interior do país, fixá-los em um território demarcado,
administrá-los conforme o grau de “civilização” e transformá-los gradativamente em
trabalhadores rurais capazes de se autossustentar (RIBEIRO, 1982, p. 191).
As experiências de contato do SPI com indígenas quando das instalações
telegráficas nacionais no interior de seus territórios inaugurou algumas mudanças na atuação
oficial em relação aos índios. Todavia, a proposta de integração gradativa à sociedade nacional
ficou mantida. A política indigenista do SPI tinha por diretrizes não o extermínio dos indígenas,
mas a promoção de meios para fazê-lo um “índio melhor”, assegurando o mínimo necessário
para sua existência, isto é, territórios onde pudessem viver sossegados para construir seus
costumes e seu modo de viver (RIBEIRO, 1995, p. 147).
Nesse novo contexto, a proteção oficial reforça que a colonização do território
nacional já não devia se assentar na integração desses povos, mas na continuidade do modo de
vida original, até que gradualmente fossem integrados à sociedade nacional. Isso se daria,
43
principalmente, por meio do gozo dos mesmos direitos dos demais cidadãos nacionais, ou seja,
os índios poderiam ser eleitores, trabalhadores assalariados, ter acesso à saúde, educação e
seguridade social, por exemplo. Embora, segundo essas políticas, não fosse um dever do índio
acessar esses direitos, a simples oferta de muitos destes pode ser considerada como grande
elemento motivador da adoção de uma identidade nacional (RIBEIRO, 1995, p. 148), ou seja,
de registrar-se formalmente como brasileiros.
Essa política esteve alinhada à necessidade de ocupar territórios e defender
limites fronteiriços. Neste contexto, o SPI foi estruturado de modo que houvesse contato direto
com os povos indígenas, por meio de instalações, chamadas de Postos Indígenas, que podiam
ter caráter de atração, vigilância e pacificação, e cujo público eram os grupos indígenas
categorizados pelo órgão em estágio de infância social. O objetivo dessas estruturas era permitir
a condução dos índios ao progresso (RIBEIRO, 1982, p. 192). Outra categoria de Posto
Indígena era o de Assistência, Nacionalização e Educação voltado a “[...] tribos pacificadas,
sedentarizadas, com organização social mais evoluída, nas quais deveriam ser instalados ensino
primário, ensino agrícola acompanhados de campos de experiência e demonstração” (SOUZA
LIMA, 1992, p. 166-167).
Existiram ainda, segundo Souza Lima (1992, 167), unidades chamadas de
Núcleos Militares, cuja finalidade era promover a nacionalização das fronteiras ou o
desenvolvimento e policiamento dos sertões habitados pelos índios e os Postos Indígenas de
Fronteira, responsáveis pela atração, para o território brasileiro, de povos indígenas localizados
próximos aos limites internacionais do país. A política de Estado concretizou-se por meio do
SPI, que assumiu o papel de proteção, assistência e defesa de terras habitadas pelos índios, cujo
maior interesse voltava-se a manter os grupos indígenas nas regiões onde se encontravam, isto
é, nos “sertões e fronteiras”, coibindo, portanto, o nomadismo (SOUZA LIMA, 1992, p. 167).
Nesse período, o discurso oficial reforça a visão protecionista/positivista de que
o índio é a origem da nacionalidade brasileira, e que reconhecer-lhes terras próprias é
reconhecer, à própria Nação, o direito ao território que ocupa. “Nacionalizar os índios é
assegurar o controle sobre os rincões mais isolados desses mesmos territórios” (SOUZA LIMA,
1992, p. 167).
No cenário de pós-guerras, da promulgação da Declaração da Organização das
Nações Unidas (ONU) sobre Direitos Humanos, ganha força, por meio de intelectuais
brasileiros como Darcy Ribeiro, a visão de que deveriam ser resguardados aos índios territórios
nos quais lhes fosse assegurada uma “[...] transformação social autogerida e paulatina, em
44
harmonia com o seu modo de relacionamento com a natureza e na direção que julgassem
oportuna” (SOUZA LIMA, 2010, p. 30). Essa visão foi oportuna à criação de modelos de terras
como o Parque do Xingu, em 1961, que seriam garantidoras do modo de vida original dos
índios, ou melhor, da visão romântica de verdadeiros índios, um mundo que seria intocado e
que ficou mundialmente conhecido como “vitrine do indigenismo brasileiro” (SOUZA LIMA,
2010, p. 30).
Na contramão desses discursos despontam as frentes de expansão econômica
pelo interior do país, e, principalmente, durante os governos militares (1964 a 1985), por meio
dos projetos de integração e ocupação do interior, em especial da Amazônia. Neste período se
intensificam conflitos por territórios e por posse sobre recursos naturais. Começam também a
jorrar denúncias contra o SPI, decorrentes da permissão ou omissão quanto à exploração de
mão de obra indígena por grupos regionais e pelo próprio órgão, bem como a dizimação de
muitos grupos indígenas em decorrência de mortes por doenças, como sarampo e coqueluche,
que acompanhavam as frentes de expansão econômica pelo interior do país (FREIRE;
OLIVEIRA FILHO, 2006, p. 123).
O SPI foi extinto após denúncias de corrupção e maus tratos aos índios, dando
lugar, em 1967, à Fundação Nacional do Índio, por meio da Lei nº 5.371, atual órgão indigenista
brasileiro. O órgão foi criado durante o regime militar (CORDEIRO, 1999, p. 65- 66). A visão
de transformação autogerida (RIBEIRO, 1982), bem como pressões internacionais quanto aos
efeitos mortíferos dos projetos desenvolvimentistas sobre índios influenciaram a promulgação
da Lei nº 6001, de 19 de abril de 1973, que trata do Estatuto do Índio, que de acordo com Souza
Lima (2010, p. 32) é “[...] de teor assimilacionista e tutelar [...] pautando-se, pela perspectiva
de emancipar os índios da tutela estatal, sem direitos especiais de nenhuma ordem, quando
considerados plenamente aculturados”. Essa foi a principal legislação nacional voltada
especificamente para o trato com índios nas décadas de 1970, 1980 e início dos anos de 1990.
O contexto internacional voltado aos direitos humanos, no período que
compreende o fim da década de 1970 e início de 1980, propiciou o surgimento de movimentos
sociais indígenas apoiados por instituições civis e religiosas diversas voltadas à proteção
ambiental e à defesa de direitos humanos. Esse cenário de pressões externas e internas
encontrou ambiente propício durante o processo de redemocratização do país e permitiu a
influência dos debates da proposição de uma nova Constituição (SOUZA LIMA, 2010, p. 33).
O Estatuto ainda vigora como lei, todavia, em confronto com dispositivos
previstos na Constituição Federal de 1988 a respeito dos índios, principalmente referente à
45
tutela e aos processos de integração à sociedade nacional. O Art. 231 da CF/88 anula a visão da
tutela e assimilação quando garante aos índios os usos, costumes e tradições, conferindo a
garantia da demarcação e proteção das terras, sendo os índios e suas organizações legítimas
partes para ingressar em juízo em defesa de seus interesses, inclusive para representar contra o
órgão indigenista do Estado brasileiro, tendo por assistente o Ministério Público (CORDEIRO,
1999, p. 70-73).
As últimas décadas do século XX e as primeiras do século XXI inauguraram um
conjunto de normativas nacionais e internacionais11 que garantiram o direito à diferença e a
territórios para que se concretizassem os modos de vida e organização social de cada povo
indígena.
Esse conjunto de normativas também preconizou o direito à autodeterminação
dos povos indígenas, ou seja, o direito de se autodeclararem pertencentes a povos que afirmam
identidades étnicas distintas da identidade nacional. Direito esse que ainda encontra resistências
de aceitação por diversos grupos da sociedade nacional. Segundo Cunha (1992, p. 144-145) e
Souza Lima (2010, p. 36), a imagem reproduzida nos discursos e nas relações cotidianas é a do
índio original tal qual foi reproduzido na literatura e nos livros didáticos quando da chegada
dos portugueses há mais de quinhentos anos atrás. Essa visão genérica dos índios decorre, em
grande parte, da falta de conhecimento sobre o histórico das violências produzidas pela política
de assimilação e integração conduzida nos diferentes períodos do processo de formação do
Brasil a fim de que este se constituísse uma Nação.
Apesar de grandes avanços nas legislações quanto aos direitos indígenas, Souza
Lima (2005, 247) critica a falta de diretrizes para a política indigenista, resultado da ausência
de planejamento do governo e debates em conjunto com os indígenas. Para esse autor, as
políticas de Estado para os índios continuam partindo de planejamento gerais e unilaterais de
governo, que homogeneízam as ações a partir do desconhecimento das “sociodiversidades
indígenas”.
A atual conjuntura é caracterizada por grandes pressões sobre direitos já
garantidos aos povos indígenas no Brasil:
11
A exemplo das Declaração das Nações Unidas, Convenção 169 da OIT.
46
enfrentam. Os povos territorializados, em especial (mas não apenas) são apresentados
como ameaça à soberania do Brasil, sobretudo na região amazônica, configurados
como obstáculos ao ‘desenvolvimento’ e à ‘nacionalização’ dessas partes do território
juridicamente definido como Brasil. Ao contrário dessa opinião vulgar, os povos da
região buscando manter-se diferenciados, desejam melhoria de seu padrão de vida e
muitas das vantagens que o ‘mundo ocidental’ teria a lhes oferecer. Para o senso
comum, mesmo de intelectuais e políticos, ser indígena e buscar os instrumentos
tecnológicos da contemporaneidade são incompatíveis: ou permanecem como
imagens de remotos temos da colonização [...] ou deixam de ser vistos como
indígenas, sendo reduzidos a um simples capítulo já passado da ‘mistura’ singular
brasileira. Apresentadas desta maneira, essas imagens são excludentes. (SOUZA
LIMA, 2010, p. 22-23).
12
Ver também Oliveira (2011 e 2012).
13
Idem.
47
obra escrava de nativos aprisionados por outros grupos nativos, parceiros comerciais dos
holandeses, sendo substituída, a partir do século XVII, pelo escravo africano.
Foi, portanto, durante as primeiras décadas do período colonial holandês que a
diversificação de origem étnica teve início, sendo intensificada após a emancipação dos
escravos, em 1837, com a adoção de políticas de migração pelo governo colonial britânico, o
qual atraiu portugueses, indianos e chineses, que junto com os nativos, chamados ameríndios
desde o período colonial, constituem o mosaico étnico e social que compõe a atual população
guyanense (STAVEHAGEN, 2000, p. 62).14
Como afirma Lima, “os anos entre 1830 e 1860 foram cruciais na história da
imigração na Guiana Britânica. Primeiro, chegaram os portugueses da ilha da Madeira, depois
os indianos e, finalmente, os chineses, todos como trabalhadores contratados” (2011, p. 31).
Do início da colonização holandesa, passando pelo controle da França e, posterior
e definitivamente, da coroa Britânica, a política indigenista colonial alçou-se, segundo a
publicação A Brief Outline of the Progress of Integration in Guyana, do Ministério da
Informação e Cultura da Guyana (1970, p. 4), na aliança entre colonizadores e chefes nativos,
que em troca de honras e presentes capturaram grupos nativos inimigos e negros fugidos das
plantações. Ainda segundo a mesma publicação, o fim da escravidão de africanos resultou no
término do financiamento de presentes e pagamentos a grupos nativos aliados, já que não
haveria mais escravos para capturar.
Com a colonização britânica (início do século XIX até a independência, em
1966), desenvolve-se a política de aldeamento para fins de cristianização dos nativos. Menezes
(1977, p. 70) afirma que durante o século XIX os europeus pregavam que os índios deveriam
ser beneficiados pela civilização, em compensação perderam o controle sobre suas terras, ou
seja, os europeus ofereceriam aos índios o céu em troca de suas terras. Como em outros lugares
na América, os nativos eram vistos como inferiores, representantes vivos da idade primitiva,
incapazes de alcançar sozinhos a “civilização”. Ainda segundo a mesma autora, um dos mais
sérios crimes contra os índios “[…] was to have made them museun pieces to have given a once
proud people feeling of inferiority, to have brought them low, not only in the eyes of others but
in their own” (MENEZES, 1977, p. 71).15
Ao longo da história de colonização e a partir dos interesses econômicos e
políticos, os colonizadores descreviam os nativos, quando numerosos, como beligerantes, e
14
Ver Lima (2011), Ram (2005), Pereira (2005) e Silva (2005).
15
Fazer deles (ameríndios) peças de museu para expor com orgulho sua inferioridade; rebaixá-los não apenas
aos olhos dos outros, mas aos seus próprios (Tradução nossa).
48
como crianças, quando esses nativos, já estavam reduzidos pelas doenças e guerras, “[...]
somewhat sub-human, beings, akin to the flora and fauna of the interior, and thereby banished
the coastal area when the European economy no longer required their services” (FORTE,
1993, p. 3).16
Ao final do século XIX, apesar de “banidos” das regiões costeiras, muitos
ameríndios continuaram a trabalhar para os projetos coloniais. De acordo com Forte (1993),
trabalhavam como marceneiros, balateiros e mineradores de ouro e diamante, bem como no
mapeamento de territórios que foram legalizados como terras pertencentes à Coroa Britânica.
Ainda segundo Forte (1993, p. 3), a partir do censo de 1890 passou a se prever que a “raça”
ameríndia estaria caminhando para a extinção na British Guiana, já que nessa época os maiores
grupos populacionais já eram de africanos e indianos — 115.588 e 105.463, respectivamente.
Segundo o Ministry of Information and Culture, os ameríndios eram cerca de 7.463 ameríndios
em 1891 (1970, p. 5).
No contexto de aparente extermínio populacional, os ameríndios foram
excluídos da estrutura econômica e social da região costeira. De acordo com Griffiths e La Rose
(2014, p. 15), nas primeiras décadas do século XX, a política da Coroa Britânica foi de
abandono dos ameríndios, apesar do discurso de proteção aos povos nativos, inclusive com a
publicação do “Peberdy Report”, de 1948, relatório que fazia recomendações contra a
exploração da mão de obra de indígenas por mineiros. Contraditoriamente, as próprias
recomendações eram ignoradas, segundo Fortes (1993, p. 4), uma vez que, quando surgiam
interesses econômicos de exploração dos recursos naturais encontrados nas regiões habitadas
pelos ameríndios, a Coroa não impunha dificuldades para viabilizar os negócios.
Desde o período colonial holandês, a concentração populacional e comercial
deu-se nas regiões costeiras. Segundo Hulsman (2011, p. 54-55), o interior da Colônia era
controlado pelos ameríndios, passando a receber controle administrativo, como já dito acima,
apenas no governo colonial britânico, por meio da instalação de missões religiosas, o que, de
acordo com Menk (2009, p. 41-59), desencadeou a disputa fronteiriça com o Brasil, para quem
a Inglaterra argumentava direitos sobre as terras a fim de proteger os ameríndios dos
tratamentos desumanos praticados pelos brasileiros. Os argumentos britânicos também se
basearam na alegação de que os nativos preferiam ser súditos da Coroa inglesa. O litígio teve
fim em 1904, estabelecendo os limites nacionais entre Brasil e Guiana Britânica, atual Guyana.
16
Seres considerados sub-humanos, semelhante à flora e à fauna do interior e, assim, banidos da zona costeira
em que a economia europeia não necessitava de seus serviços (Tradução nossa).
49
É ainda sob o governo colonial britânico que é promulgado o Amerindian Act,
ou Lei Ameríndia (tradução nossa), que com algumas alterações vigorou até a edição do atual,
Amerindian Act, de 2006. O Amerindian Act de 1951, de orientação paternalista e tutelar, tinha
como objetivo definir procedimentos voltados ao “bom governo das comunidades ameríndias”
(GUYANA, 1998, p. 6, tradução nossa) e considerava como ameríndio “[...] qualquer índio
cidadão da Guiana e de tribos indígenas da Guiana ou de países vizinhos, assim como qualquer
cidadão que descendesse de um ameríndio” (tradução nossa) (GUYANA, 1998, p. 6).
Era uma lei que dava poderes a oficias do Estado colonial para atuar perante os
ameríndios, decidir sobre assuntos envolvendo ameríndios e não ameríndios, autoridade para
nomear e destituir capitães de aldeia, chamados também de tuxauas, investi-los de autoridade
local, instituir e designar membros para compor os conselhos de aldeia, designar oficiais e
procedimentos para registrar e emitir certificados de ameríndios a todos que residiam em
aldeias, distritos ou áreas ameríndias, assim como disciplinar regulamentos sobre o
comportamento e a ordem em comunidades ameríndias, a exemplo da proibição do consumo
de bebidas alcoólicas.
A lei ainda disciplinava e delegava competências sobre o controle e autorização
de ingresso de não ameríndios em aldeias ameríndias, conferia competência a oficiais sobre a
punição de ameríndios que não cumprissem com os dispositivos do Amerindian Act. Previa,
ainda, que os oficiais poderiam atuar como defensores dos ameríndios em situações em que
estivessem sendo denunciados. Dispunha também sobre regras para a contratação de
ameríndios, as condições em que os acordos de trabalho deveriam ser estabelecidos, bem como
a necessidade dos acordos serem firmados perante um oficial designado pelo Chefe do Interior,
(GUYANA, 1998, p. 20-21).
O aparelho de Estado voltado ao governo dos ameríndios entre a década de 1950
e 1960 foi o Ministry of Home Affairs, e a partir de 1969, o Ministry of Local Government
(GUYANA, 1970, p. 33), por meio do Chefe do Escritório de Desenvolvimento do Interior e
comissários distritais. Esses funcionários eram responsáveis por delegar competências aos
capitães ameríndios, reconhecer-lhes alguma autoridade local como poderem atuar como juízes
de paz e interlocutores entre a aldeia e governo, inclusive imbuídos da responsabilidade de
reportar aos comissários distritais e ao Chefe do Escritório do Interior o número de ameríndios
ainda não formalmente reconhecidos e registrados como tais. O Chefe do Escritório do Interior,
se desejasse, poderia isentar de certificado o ameríndio que não quisesse ser regido pelo Ato,
50
bem como poderia revogar o certificado, desde que com o consentimento do ameríndio
(GUYANA, 1998, p. 24).
A lei estabelecia, ainda, obrigações em relação aos cuidados, à criação e à
educação das crianças ameríndias, por meio da prescrição de condições em que as crianças
ameríndias deveriam ser colocadas como aprendizes e a serviço de pessoas. Os artigos da Part
IX do Amerindian Act de 1951 proibiam a prática de ritos considerados nocivos ao bem-estar
ameríndio, e disciplinava que mulheres ameríndias que se envolvessem em adultério poderiam
ser obrigadas pela Corte a deixar seus maridos ou seus lares, assim como o homem que se
envolvesse com a esposa de um ameríndio seria multado (GUYANA, 1998, p. 23-24). O
Ministério encarregado do governo dos ameríndios poderia, de tempos em tempos, rever a
aplicabilidade do Ato em algumas regiões do país, a exemplo das regras de contratação de
ameríndios (GUYANA, 1998, p. 24).
O disposto na Lei Ameríndia de 1951, em especial os artigos 44, 45 e 46, deixa
claro que a política de todo o período em que a lei vigorou orientou-se por uma visão tutelar do
Estado em relação ao ameríndio, e ainda pela compreensão de que sê-lo é uma condição
transitória. A proteção tutelar aplicava-se aos que permaneciam sob a classificação de
ameríndio, ou seja, àqueles a quem os oficiais do Estado não registrassem como tais ou que não
aceitassem os termos do Ato não seriam formalmente registrados como ameríndios e não
gozariam da proteção tutelar do Estado (GUYANA, 1998, p. 24).
O governo colonial concentrava os rendimentos econômicos na chamada
“oligarquia açucareira”. Este grupo, composto por europeus donos de fazendas e controladores
do comércio do açúcar, unido ao poder administrativo e político local,
[...] restringia a participação econômica das massas por meio de legislações injustas
e inadequadas, causando um sentimento de insatisfação, não só entre a classe menos
aquinhoada, mas também entre os membros da classe média, profissionais liberais e
pequenos negociantes (LIMA, 2011, p. 29).
53
Forte (1993) afirma que o interior da Guyana era desconhecido da maioria dos
guyanenses à época da independência, e que o movimento nacionalista, empenhado no projeto
de Nação e em reação às disputas territoriais com a Venezuela, voltou o olhar para as regiões e
os povos do interior sobre os quais desde o período colonial se reclamava a custódia, ou seja, o
domínio sobre o território se dava sob o argumento de que os ameríndios que habitavam essa
região eram súditos da Coroa Britânica. A autora acrescenta que os anos desde a independência
se caracterizaram pela apropriação nacional das culturas ameríndias, cuja finalidade era
construir uma história original para sustentar a ideia de Nação, sendo necessário, para tanto, a
identificação de um guyanense original, sendo eleito para tal papel o ameríndio.
Forte (1993) ainda acrescenta que o projeto de Nação guyanense tinha como um
mote à culturalização das diferenças, o que na prática significava que se precisava do ameríndio
para delinear as diferenças enquanto um povo diferente, ou seja, para reconhecer-se como
Nação. Esses ameríndios eram ícones moldadores da imagem de Nação, pois representavam o
passado desta Nação. Contudo, o futuro dessa Nação deveria seguir o modelo de vida
encontrado na região costeira do país, encarnado pelos Creoles, que representavam a
modernidade e o comportamento socioeconômico necessário ao progresso da Nação (FORTES,
1993, p. 5-6).
O referido projeto político e econômico se manteve, apesar da situação
econômica do país, que levou, segundo Lima (2011, 55), a um grande movimento emigratório
de mão de obra qualificada, principalmente entre os anos de 1976 e 1981, para países como
Estados Unidos, Canadá e Grã-Bretanha, bem como para os países vizinhos. Dentre os que
emigraram em considerável quantidade para o Brasil e Venezuela, segundo Fortes (1993, p. 6),
estavam os jovens ameríndios do interior do país.
Os demais governos que conduziram o país após Burnham enfrentaram
problemas econômicos, políticos e sociais, bem como desconfortos diplomáticos, tendo em
vista litígios fronteiriços com a Venezuela e Suriname que remontam às disputas coloniais por
território (MOREIRA, 2012, p. 4). De acordo com Silva, a Guyana tornou-se um país
pluriétnico que não “[...] conseguiu plasmar os grupos étnicos numa nacionalidade guianense”
(SILVA, 2005, p. 25), o que gerou rivalidades e animosidades constantes, baseadas nas forças
políticas dos indoguianenses e dos afroguianenses (STAVEHAGEN, 2000, p. 63).
Conforme Silva (2005, p. 218), apesar dos indígenas comporem partidos
políticos desde 1963 e de terem criado a Amerindian Association of Guyana, inclusive tendo
sido majoritários no National Guyana Party, sua força e influência políticas foram
54
inexpressivas frente aos demais partidos que controlavam a cena política e econômica desde a
independência. O mesmo autor observa que foi apenas após a Revolta do Rupununi, que será
tratada em outra seção, que “[...] os chamados ameríndios lograram relativa participação
política, quando para atraí-los, Burnhan firmou com eles um pacto de defesa da soberania do
país” (SILVA, 2005, p. 219).
Para Silva (2005), a estratégia do indígena de ser guardião das fronteiras
nacionais, utilizada durante a colonização para assegurar a defesa territorial, continuou como
discurso agregador após a independência e na conformação do Estado nacional guyanense.
A conjuntura da relação Guyana e ameríndios em muito se assemelha à relação
do Brasil com seus índios, de acordo com Lima, que afirma: “[...] embora Georgetown
mencione a importância do índio para a identidade nacional, sua política indigenista nada tem
de edênica” (2011, p. 88-89). As organizações indígenas daquele país, a exemplo da
Amerindian Peoples’ Association (APA), constantemente acusam o governo de ignorar os
direitos indígenas, de dificultar a demarcação de territórios, de não garantir serviços básicos de
qualidade, bem como de não viabilizar o autossustento desses povos em seus próprios
territórios, ao passo que os governos são continuamente permissivos com atividades
exploratórias e predatórias como a extração de madeira e minérios nas aldeias e comunidades
indígenas ou próximas a essas (GRIFFITH; LA ROSE, 2014, p. 23).
Desde 1992, a política indigenista guyanense é coordenada pelo Ministry of
Amerindians Affairs/MoAA (Ministério de Assuntos Ameríndios, tradução nossa); conforme
publicação do governo intitulada The new Amerindian Act. What will it do for Amerindians?
Answer your questions, do ano de 2005, bem como de informações do sítio do Ministério na
internet, os ameríndios são protegidos-contemplados por lei nacionais antes mesmo da edição
do atual Amerindian Act. A exemplo da Constituição de 1980, reformulada entre os anos de
1996 e 2000, que protege direitos e liberdades fundamentais dos ameríndios, como o direito à
vida, à liberdade, à proteção contra o trabalho escravo e forçado, à proteção contra tratamento
desumano, à proteção contra invasão de propriedade, à liberdade de expressão, de consciência,
de assembleia e associação, de movimento, proteção da cultura; dispõe ainda que são livres para
praticar sua própria cultura, administrar suas próprias escolas e se comunicar nas suas próprias
línguas (GUYANA, 2005, p. 1-2).
Ressalta-se, no entanto, que o país não é signatário da Convenção 169 da OIT
de 2007, e que além de garantias constitucionais, como apresentado acima, possui legislação
própria voltada as temáticas indígenas. O já mencionado Amerindian Act de 2006 traz em seu
55
conteúdo as finalidades de proteger os direitos coletivos, estabelecer o procedimento para
regularizar as terras indígenas, reconhecer o direito ao consentimento prévio e ao veto por parte
dos povos indígenas e fornecer um sistema de autogestão com poderes legais para conservar
suas terras, chamado de Villages Council17 (Conselhos de aldeia, tradução nossa) (FRANCO,
2012, p. 34).
Os temas principais da lei giram em torno dos procedimentos para solicitação e
titulação de terra, dos procedimentos para a realização de pesquisa, da estrutura e
funcionamento dos conselhos e da permissão de atividades de exploração de recursos naturais.
Ao mesmo tempo, incentiva e é precursora na adesão ao programa de desenvolvimento cujo
objetivo é garantir a baixa emissão de gases de efeito estufa.
Apesar dos discursos oficiais ora assentados em legislações paternalistas e
integracionistas, ora voltados ao reconhecimento das diferenças e de uma relativa autonomia
administrativa, sobram críticas quanto à contínua negligência, isolamento e exclusão dos
ameríndios dos programas e planos nacionais propostos pelos diferentes governos nacionais
que já estiveram no comando do país (GRIFFITH; LA ROSE, 2014). Reforçam, além disso, os
discursos oficiais de promoção do desenvolvimento dos povos indígenas, por meio da criação
de oportunidades para os ameríndios serem o que quiserem na sociedade (GUYANA, 2003, p.
24).
Na contramão dos discursos, os ameríndios são considerados como o grupo
étnico mais pobre da Guyana, cuja realidade socioeconômica resulta da crescente dependência
de produtos industrializados, falta de empregos, baixa oferta de serviços de saúde e educação
no interior do país e redução de recursos naturais essenciais à subsistência, em decorrência de
impactos de atividades exploratórias como a mineração (NATIONAL DEVELOPMENT
SRATEGY, 2000, p. 278)
A política indigenista continua voltada ao objetivo de incluir os ameríndios nos
programas nacionais e desenvolver programas especiais onde haja a redução de desigualdades.
O acesso a essas políticas também se orienta pelo registro do ameríndio enquanto um membro
da Nação, da qual é ao mesmo tempo ícone fundador e agente a ser transformado, de modo a
colaborar com o desenvolvimento da Nação.
17
Amerindian Village Conuncil (Conselho de Aldeia), instância prevista no Amerindian Act de 1951 e também no
atual Amerindian Act, tem atribuições de gestão e deliberação sobre assuntos internos e de interesse das
comunidades e aldeias ameríndias na Guyana. Outras informações sobre os conselhos de aldeia serão apresentadas
no capítulo 3.
56
1.3 OS ÍNDIOS EM RORAIMA E A FRONTEIRA ORIENTAL COM A GUYANA
57
formam o Rio Branco. Este forte tinha posição estratégica para defesa dos limites considerados
pelos portugueses como seus, tanto perante possíveis investidas espanholas a partir do rio
Uraricoera quanto de investidas holandesas a partir do rio Tacutu .18
Outra atitude do governo português para garantir o território foi a formação de
aldeamentos ao longo dos rios que formam a bacia do Rio Branco, todavia não obtiveram
sucesso, uma vez que os índios se rebelavam com frequência face às intempéries impostas pelo
aldeamento, bem como fugiam para nunca mais serem encontrados (FARAGE, 1991, p. 121).
O gado também foi introduzido na região do Rio Branco como estratégia para
ocupação territorial. Conforme Santilli (1994), esta foi uma iniciativa oficial iniciada no final
do século XVIII, durante o governo Manuel da Gama Lobo D’Almada, administrador da
Capitania de São José do Rio Negro. O intuito era “[...] integrar a região do rio Branco ao
mercado colonial com o fornecimento de carnes e couros à capitania de São José do Rio Negro
e assim torná-la um polo de atração e fixação de colonos” (SANTILLI, 1994, p. 18), sendo
criadas, para tanto, as fazendas nacionais, que ficaram, ao logo do século XIX, sob a
responsabilidade dos militares do Forte São Joaquim.
Logo na segunda década do século XIX dá-se início à disputa territorial com a
Inglaterra, conhecida na historiografia como a “Questão do Rio Pirara”.19 Essa disputa, tratada
de forma diplomática, só foi definida em 1904 por meio do laudo arbitral definido pelo rei da
Itália, Vitório Emanuel III, que resultou favorável à Inglaterra. Esta disputa fronteiriça, que
perpassou boa parte do século XIX, se assentou nos argumentos, tanto brasileiros quanto
ingleses, de que as possessões e os limites territoriais entre as duas nações eram resultantes do
controle dos índios e a definição desses como nacionais.
Este episódio de grande relevância para a história local e para a dissertação
desencadeou uma série de ações oficiais para fins de ocupação civil e desenvolvimento
econômico das terras do rio Branco, ações que se impuseram na ocupação de espaços territoriais
indígenas, inaugurando relações sociais entre migrantes regionais e índios assentadas no
compadrio e no trabalho indígena na pecuária (SANTILLI, 1994, p. 55, 2001, p. 39). Ao
mesmo tempo, a delimitação da fronteira leste do atual estado de Roraima sobrepôs-se às áreas
de trânsito e relações socioculturais dos povos indígenas Macuxi, Wapichana, Patamona,
Ingaricó e Wai Wai.
18
Sobre este tema, consultar Farage (1991), Santilli (1994), Oliveira (2011) e Menk (2009).
19
Para informações detalhadas do litígio fronteiriço, consultar José Theodoro Mascarenhas Menk (2009).
58
Durante os séculos XVIII e XIX, o principal incentivo à colonização era o
desenvolvimento da pecuária nos lavrados do Rio Branco. Todavia, o estabelecimento de um
povoamento civil não galgou sucesso dado o isolamento geográfico da região na época. Outros
colonos civis chegaram a ocupar regiões de matas do baixo rio Branco para a extração da balata
e do caucho no final do século XIX e início do século XX (SANTILLI, 1994, p. 20).
As fazendas nacionais não eram produtivas; restando, no início do século XX,
apenas a Fazenda São Marcos. As demais fazendas foram apropriadas por particulares, em sua
maioria descendentes dos militares do Forte São Joaquim, que constituíram famílias com base
no casamento com índias. No caso dos militares mais graduados, a migração deu-se de suas
famílias da região Nordeste para o Rio Branco (SANTOS, 2013, p. 63).
O controle político-administrativo do povoamento, transformado no município
de Boa Vista em 1892, estava vinculado ao governo do Amazonas. A política até então era
comandada pelos governadores de Manaus, que seguiam a orientação nacional de ocupar o
território para garantir a soberania, “civilizar” os índios e torná-los dóceis ao trabalho doméstico
e pecuário. Para tanto, nomeavam superintendentes, que eram como prefeitos, para comandar
o município (SANTOS, 2013, p. 58).
A vinda de militares e migrantes nordestinos, na época da colonização, e a
instalação destes por causa da cultura do gado propiciou a formação de grupos econômicos que
só não tiveram maior expressão na política local porque as indicações partiam de outras esferas
de poder, o que não os impedia de estarem presentes nos espaços de poder local da época
(SANTOS, 2013, p. 65).
Os grupos locais, a partir do século XX, também estavam envolvidos, além da
criação de gado, na atividade de garimpo de pequena escala, que também envolveu indígenas,
uma vez que a lavra se dava próximo às aldeias. Tanto a atividade garimpeira quanto a
agropecuária foram meios para a ocupação de territórios, isto é, formação de vilas cujo fim era
garantir a soberania brasileira e a integração econômica da região ao restante do país
(SANTILLI, 2001, p. 98-99).
A história do município de Boa Vista está atrelada à da formação do estado
roraimense; primeiro formou-se aquele para então se dar a formação deste. Em 1943, sob os
fortes argumentos da necessidade da presença do Estado na Amazônia, por meio da povoação
das fronteiras e expansão da produção agropecuária, são criados os Territórios Federais, entre
eles o Territórios Federal do Rio Branco, durante a ditadura do Estado Novo do presidente
Getúlio Vargas. Segundo Freitas (1997), a criação dos Territórios Federais era a forma do poder
59
público central controlar a administração local, o que o tornava responsável pela implantação
de sua infraestrutura. Em 1962, o Território passa a se chamar Território Federal de Roraima.
O governo local, durante todo o período de Roraima como Território Federal,
era nomeado pelo presidente da República. Na fase de 1945 a 1964, foi influenciado, segundo
Santos (2013, p. 70), pelo senador da República, Vitorino Freire, e no período de 1964 a 1985,
fase correspondente à ditadura militar, pelos comandos da Aeronáutica, ou seja, uma história
marcada pela ausência de eleições para cargos políticos e, consequentemente, pela prática de
indicação política para compor o poder político local.
Segundo Santos (2013, p. 105-106), durante os governos militares (1964-1985),
a política nacional para os Territórios Federais que pertenciam à região Amazônica, era a de
integração daqueles ao restante do país. A intensa campanha de integração e unidade territorial
pretendia atender aos projetos de concretização de uma identidade nacional, de proteção das
fronteiras e da soberania nacional, sob o argumento de combater o fantasma do comunismo e
promover o “progresso” brasileiro.
Nesse período foram iniciadas as construções de rodovias e pontes de acesso às
áreas de fronteiras e ao interior do país, bem como a instalação de destacamentos militares e
incipiente máquina administrativa para efetivar a presença fronteiriça. De acordo com Santos
(2013, p. 115), a abertura de estradas avançou sobre florestas e territórios indígenas e propiciou
um explosivo aumento populacional, com a chegada de migrantes nordestinos para ocupar os
projetos de assentamentos agrícolas conduzidos pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária
(Incra) e Instituto de Terras do Estado de Roraima (ITERAIMA).
Ainda nas décadas de 1970, Pereira (2005, p. 19) ressalta o papel dos projetos
desenvolvimentistas brasileiros, como o Programa Polamazônia (1974- 1977), cuja intenção
era a criação de uma área denominada Arco Norte20, que compreende os estados do Amapá, de
Roraima, de Rondônia, do Amazonas, do Pará e do Mato Grosso, com o objetivo de expandir
o desenvolvimento comercial até o Caribe. Nesse período surgiram acordos bilaterais entre
Brasil e Guyana que visavam ao comércio; para tanto, houve a construção de estruturas como
a conclusão da BR 401, a ponte sobre o rio Tacutu, concretizada em 2009 pelo Brasil, e a
20
O Arco Norte, também conhecido como Arco Indígena, devido ao predomínio de populações indígenas, faz
parte do atual Plano de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira vinculado ao Ministério da Integração Nacional,
subdivide-se em seis regiões, da qual o Estado de Roraima pertence as Sub-regiões II e III. “Uma característica
importante do PDFF, coerente com sua diretriz de desenvolvimento regional, refere-se à abordagem da Faixa de
Fronteira em arcos e espaços sub-regionais, permitindo otimizar e catalisar o aproveitamento de peculiaridades da
organização social, das características produtivas locais: sociais, econômicas, políticas e culturais” (PDFF, 2009,
p. 34-35).
60
pavimentação da estrada que liga Lethem à cidade de Georgetown, que ainda não foi
concluída.21
Os desdobramentos na política local nas décadas seguintes marcaram a ocupação
do território, assim como os modelos produtivos e a composição social do Território Federal e
futuro estado de Roraima. O estado, criado pela Constituição de 1988 e organizado em 1990,
[...] não conseguiu resolver três de seus maiores problemas: a questão fundiária; a
demarcação de terras indígenas, atendendo a mesma Constituição que o criou; e uma
economia que não gera recursos para manter a máquina administrativa, dependente
ainda de 80% de repasses federais para se manter (SANTOS, 2013, 107).
21
Tanto o Acordo entre os países para a construção da ponte internacional sobre o rio Itacutu, quanto o Memorando
de entendimento sobre a interconexão dos sistemas viários brasileiros e guianenses foram assinados no ano de
1982. Outro Acordo importante para a relação fronteiriça e que continua vigente refere-se ao estabelecimento de
regime especial fronteiriço e de transporte para as localidades de Bonfim-Brasil e Lethem – Guiana, assinado em
2009. Tais Atos podem ser encontrados no Sistema de Atos Internacionais. Disponível em: <dai-
mre.serpro.br.gov.br>. Acesso em: 01.01.2016
61
(2010) e Pereira (2005) em trabalhos que tratam das relações socioculturais dos grupos sociais
que vivem nessa fronteira.
Como citado em seções anteriores, a Guyana é um Estado nacional pluriétnico
cujos maiores grupos populacionais são compostos por descendentes de indianos e africanos,
estratificados como indoguianenses e afroguianenses, respectivamente. Os ameríndios
representam cerca de 9,16% da população total do país22, dentre os quais as etnias Arauake,
Arekuna, Caribes e Warao estão concentradas nas regiões Barima-Waini e Pomeroon-
Supennan. As etnias Akawaio, Macuxi, Patamona, Wapichana e Wai Wai ocupam o interior do
país, principalmente as regiões de savana e florestas, localizadas à Oeste, Sudoeste e Sul do
país, chamadas de Cuyuni-Mazaruni, Portaro Sipuruni e Uper Takutu-Upper Essequibo, que
correspondem às regiões 7, 8 e 9, nessa ordem.
As atuais regiões 8 e 9, segundo Silva (2009), equivalem ao antigo Distrito do
Rupununi, que ocupava mais de 25% do território da Guyana. Além dos grupos indígenas,
também viviam nessa região um pequeno número de fazendeiros que controlava boa parte das
terras do Sul do país.
22
Informações disponíveis no Censo de 2002. Disponível em: <www.statistic.gov.gy> e
<www.amerindian.gov.gy>. Acesso em: 31 out. 2015
62
Na contramão das dinâmicas socioculturais do interior da Guyana estavam as
movimentações sociopolíticas ocorridas nas principais cidades, concentradas na costa, que
reivindicavam a independência política da Colônia e a instalação de uma estrutura econômica
no país distinta da existente durante o período colonial. O processo de independência foi
ambientado pelas disputas políticas, que ganharam nuances étnicas por conta das origens de
seus líderes, desagradando os grupos econômicos representados por ingleses, portugueses e
chineses (LIMA, 2011, p. 48-49).
As dinâmicas sociais, políticas e econômicas que ocorriam na região do
Rupununi baseavam-se na arregimentação dos indígenas como mão de obra, no recebimento de
salários, e não na sorte, como era comum nas fazendas do então território de Roraima/Brasil,
pois “[...] além do pagamento em dinheiro pelo trabalho com o gado, os tuxauas eram premiados
com certo número de reses por permitirem o uso de suas terras como pastagens, possibilitando-
lhes a formação de pequeno rebanho” (SILVA, 2005, p. 43). Este processo também favoreceu
o avanço das fazendas sobre as terras indígenas e a inserção do índio como vaqueiro nas
fazendas, assim como ocorreu nos lavrados de Roraima (SILVA, 2005).
Outro mecanismo para a legitimação da presença de fazendeiros em terras indígenas
foi “[...] os laços de parentescos decorrentes de casamentos estratégicos com as mulheres das
aldeias, vinculando os fazendeiros aos índios e facilitando a exploração das terras e mão-de-
obra destes” (SILVA, 2005, p. 44), situação também observada em Roraima, segundo Santilli
(1994, 2001).
Os fazendeiros que dominavam a economia da região do Rupununi, contrários
aos projetos de guianização proposto por Burham e apoiados pela insatisfeita Venezuela quanto
à sua fronteira com a Guyana, influenciaram os ameríndios, pertencentes às redes familiares e
de compadrio vigentes na dinâmica socioeconômica da região desde as primeiras décadas do
século XX. Assim, intentaram uma revolta armada, fracassada logo em seu início e cujas
consequências provocaram mudanças nas configurações sociais políticas e econômicas da
região (PEREIRA, 2005).
As medidas do governo para evitar novos movimentos separatistas resultaram
na militarização da região e em episódios de violência contra os nativos, além da ausência de
ações governamentais que garantissem condições de subsistência para os ameríndios, ainda que
estes, segundo Silva (2005), compusessem partidos políticos, não tinham força nem espaço para
impedir a exploração de recursos minerais e florestais, bem como para sair da condição de mão
de obra.
63
O governo nacional, após a Revolta do Rupununi, adotou um discurso de não às
diferenças para inibir as divisões, ao passo que pregava a integração dos povos e tentava
promover, enquanto ideia aglutinadora da Nação, a de que todos eram guyanenses,
independentemente da origem étnica. Uma das primeiras reações do governo foi convocar uma
Conferência com os ameríndios, cuja finalidade era discutir o programa de integração com
representantes do governo nacional. A Conferência foi realizada com 170 líderes ameríndios
de diversas regiões do país, logo após a revolta do Rupununi, e o primeiro ministro, Forbes
Burham, deixou claro “[...] que esperava lealdade dos líderes indígenas à Nação guyanense”
(GUYANA, 1970, p. 42).
Dentre as resoluções da Conferência, pediu-se demonstrações concretas de que
os líderes ameríndios se reconheciam como parte da Nação guyanense, de modo que foi
assinada uma carta-compromisso contra toda e qualquer intenção de separar-se da Nação
guyanense. Nesta, informavam às nações do mundo que nunca concordarão em destruir ou
dividir o país ou reconhecer a reclamação da Venezuela ou de qualquer outra Nação sobre o
território da Guyana. Segundo o documento final da conferência, os líderes manifestaram
satisfação em serem chamados a participar dos planos do governo, de incluí-los nas benesses
da Nação, bem como reafirmaram a necessidade e o direito sobre os territórios para que
vivessem em paz e harmonia (GUYANA, 1970, p. 42-45).
Pouco foi efetivado em relação aos propósitos de progresso para os povos e
regiões do interior do país. Os desdobramentos da Revolta e a conjuntura econômica e política
que se instalou no país desencadearam contínuos deslocamentos, inclusive a fixação de
ameríndios em comunidades e cidades dos países vizinhos na Venezuela e, principalmente, no
Brasil, movimentos que se seguem desde a década de 1970 (SILVA, 2005). Conforme Pereira
(2005, p. 92-93), os ameríndios que já transitavam pelas regiões do Rupununi e Rio Branco,
por conta de suas relações socioculturais, passaram a se fixar em comunidades e cidades de
Roraima, constituindo redes sociofamiliares cada vez mais sólidas, que se fortaleceram ao longo
dos últimos anos.
As seções deste capítulo nortearam-se pela compreensão de que tanto os Estados
nacionais brasileiro e guyanense quanto à fronteira se constituíram sobre territórios e sociedades
nativas categorizadas de índias ou ameríndias. Em que pese o papel das políticas indigenistas
nesses países em conformá-los como membros de uma única Nação, os povos indígenas
Macuxi, Ingaricó/Akawaio, Patamona, Wapichana e Wai Wai continuam a relacionar-se entre
si e com as instituições desses Estados nacionais, transpondo os limites fronteiriços,
64
considerando seus territórios étnicos, amparados por redes sociais e de parentesco e motivados
por relações familiares, pessoais, comerciais, de trabalho, e, também, para acessar serviços e
bens de consumo que se tornaram necessidades no processo de contato com sociedades colonial
e nacional.
Nos próximos capítulos será apresentada com maiores detalhes a atual
conjuntura social, política e econômica dos povos indígenas no Brasil e na Guyana, enfatizando
o contexto da fronteira que compreende o estado federado de Roraima - Brasil e as Regiões 7,
8 e 9 – Guyana, bem como as políticas indigenistas voltadas para demarcação de territórios,
promoção do autossustento, da educação e seguridade social (saúde, previdência e assistência
social), implementadas nesses países, observando as diretrizes, objetivos e resultados gerais
relacionados à implementação dessas políticas e o acesso a elas por povos indígenas.
65
2 POLÍTICAS INDIGENISTAS NO BRASIL
67
2.1 DADOS GERAIS SOBRE O ATUAL CONTEXTO SOCIAL, ECONÔMICO E
POLÍTICO DO BRASIL E DE RORAIMA
23
Com exceção do cargo de senador, cujo mandato é de oito anos.
24
Total dos bens e serviços produzidos pelas unidades produtoras residentes destinados ao consumo final sendo,
portanto, equivalente à soma dos valores adicionados pelas diversas atividades econômicas acrescida dos impostos,
líquidos de subsídios, sobre produtos (IBGE, 2014).
68
economia brasileira, correspondendo a cerca de 50% do PIB, por meio dos serviços de
telecomunicação, transportes, comércio e outros (IBGE, 2014).
Numa nova perspectiva de aliar desenvolvimento econômico e inclusão social,
os governos, desde a CF/88, têm aumentado os investimentos e expandido as políticas sociais
através de medidas voltadas a duas dimensões: a da proteção social, que se destina a reduzir e
mitigar riscos e vulnerabilidades a que qualquer indivíduo está exposto; e da promoção social,
que diz respeito às ações destinadas a garantir a todos os indivíduos de uma população as
mesmas oportunidades de acesso aos recursos e benefícios conquistados pela sociedade. Em
seu percurso histórico, abrange, portanto, as áreas da educação, cultura, trabalho e
desenvolvimento agrário (IPEA, 2010, p. 77).
De acordo com dados do Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015 do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil tem registrado
melhora no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre os anos de 1990 a 2014. O
crescimento foi de 24,2%, o maior no período entre os países da América do Sul. Em relação à
posição no ranking mundial, de 2009 a 2014 o país avançou três posições, e atualmente possui
o IDH de 0,755.25 O relatório indica que as políticas públicas brasileiras têm responsabilidade
direta sobre esses avanços. Considera que programas de proteção social e de transferência de
renda são importantes para aumentar o desenvolvimento humano (PNUD, 2015).
O Índice de Gini, que é um indicador de desigualdade26, também apresentou,
segundo Relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
avanços do Brasil quanto à redução de desigualdades. O estudo indica que o país conta com um
coeficiente de Gini de 0,56, menor que os 0,60 apresentados na década de 1990. Em
comparação com outros países latino-americanos, o Brasil é mais desigual que Chile,
Argentina, Peru e México. Ainda segundo o relatório, economias emergentes como o Brasil
acertaram ao optar por medidas de reforço da proteção social e de redistribuição de renda para
a redução da pobreza e da desigualdade. A ampliação do acesso à educação e o aumento no
25
Na sua formulação clássica, o IDH é composto por três indicadores, que representam a oportunidade de uma
sociedade formadas por sujeitos que possam ter vidas longas e saudáveis, acesso a conhecimento e comando sobre
os recursos, de forma a garantir um padrão de vida digno. Por meio das duas primeiras dimensões, pretende-se
avaliar a realização o bem-estar mediante a adoção de um estilo de vida resultante de escolhas livres e informadas,
a partir das habilidades e conhecimentos acumulados. Já o comando sobre recursos indica se esse processo se deu
livre de privações das necessidades básicas, como as de água, alimento e moradia. Quanto mais próximo de 1,
maior é o desenvolvimento humano do país (PNUD, 2013, p. 25).
26
Quanto mais próximo de 1, mais desigual é o país; e quanto mais próximo de 0, menos desigual é o país (IBGE,
2003).
69
salário mínimo resultou na diminuição da desigualdade de renda no trabalho. A diferença
salarial entre postos que exigem maior e menor qualificação também diminuiu (OCDE, 2015).
Os avanços nos índices citados também são reflexos da melhoria dos indicadores
da saúde e educação, assim como de um conjunto de políticas sociais ancoradas,
principalmente, no Programa de Transferência de Renda não contributiva, chamado de Bolsa
Família. Reforça-se que o avanço na economia nos últimos vinte anos permitiu maiores
investimentos nas políticas sociais cujos objetivos é a redução da pobreza e o combate à fome
nos diferentes grupos populacionais da sociedade brasileira.
Os números mais recentes da educação no Brasil demostram que, em 2012, a taxa
de analfabetismo da população com 15 anos ou mais era de 8,6% (BRASIL, 2013), e que houve
evoluções significativas entre os anos de 1991 e 2010, como, por exemplo, o aumento da
população adulta com ensino fundamental concluído, de 30,1% para 54,9%, e de crianças entre
5 e 6 anos frequentando a escola, de 37,3% para 91,1% (PNUD, 2013).
Os números relacionados à saúde no país também apresentaram melhoras entre
os anos de 2001 e 2012. Conforme publicação do governo federal, o índice de mortalidade
infantil (crianças de com até um ano de idade) caiu de 24,9% para 14,6%. A mortalidade na
infância (crianças menores de cinco anos de idade) caiu de 28,7% para 16,9%. A mortalidade
materna (a cada 100 mil mulheres) foi reduzida em 23% nesse período. Esses resultados estão
associados à redução da incidência de doenças infectocontagiosa evitáveis por vacina, como a
difteria, meningite, tétano neonatal, sarampo e outras. A expectativa de vida ao nascer
aumentou, passando de 70,3 anos em 2001 para 74,5 anos em 2012 (BRASIL, 2012, p. 28-33).
O governo apresenta, ainda, dados que indicam a melhoria na infraestrutura
urbana e rural do país, do mesmo modo que há maior acesso a serviços e bens de consumo pela
população, decorrentes do aumento da renda das famílias e dos investimentos públicos.
O estado de Roraima, por sua vez, também reúne resultados importantes
relacionados às melhorias nas condições socioeconômicas, apesar de possuir o menor PIB do
país — R$ 9.027.000,00 —, que corresponde a 0,2% do PIB nacional (IBGE, 2013), e de
depender de recursos repassados pelo governo federal. A estimativa da população no estado,
em 2015, era de 505.665 pessoas, (IBGE, 2015), numa área territorial de 224.303,187 km² cuja
densidade demográfica é de 2,1 hab/km². O IDH é de 0,707 (PNUD, 2013), o Índice de Gini de
0,63 (IPEA, 2010) e a incidência de pobreza sobre a população de 26,65% (IPEA, 2010).
Os investimentos do estado em políticas públicas são limitados basicamente aos
repasses da União. A economia baseia-se na produção de monoculturas — soja, arroz,
70
hortifrutigranjeiros, pecuária bovina e extração de madeira — e, principalmente, no setor de
comércio e serviços, sustentado em grande medida pela renda de funcionários públicos federais,
estaduais e municipais (IBGE, 2012).
De acordo com Santos (2013), os discursos de políticos locais são voltados ao
desenvolvimentismo a partir de atividades de exploração do agronegócio, madeira e minérios,
em descompasso com a distribuição territorial do estado, que é dividido entre áreas federais que
correspondem a 60%. Áreas de projeto de assentamento da reforma agrária que chegam a 14%
e 24,2 % estão sob o “domínio estadual” (SEPLAN, 2012, p. 10).
As áreas federais possuem restrições perante leis nacionais para a exploração de
atividades citadas acima, por serem de grande impacto socioambiental, o que historicamente
tem gerado conflitos em torno do uso das terras no estado e dos modelos econômicos intentados
por grupos políticos e econômicos locais, que por sua vez reduzem a responsabilidade pelo
baixo desenvolvimento econômico do estado à insuficiência de terras liberadas à mineração.
As áreas propícias à atividade localizam-se em Terras Indígenas e/ou em Unidades de
Conservação Ambiental. Associa-se, portanto, o “atraso” econômico do estado às instituições
do governo federal, como Funai, IBAMA e ICMBIO (SANTOS, 2013, p. 245-256).
Na capital e municípios do interior, a infraestrutura de serviços de educação,
saúde, saneamento básico, habitação, energia elétrica foram ampliadas nos últimos anos,
conforme as diretrizes federais, apesar de ainda serem insuficientes e de baixa qualidade. A
oferta desses serviços se dá majoritariamente pela rede pública, e a melhor estrutura encontra-
se na capital Boa Vista, que além de concentrar maior parte da população, 320.714 de habitantes
(IBGE, 2015), também possui a maior parte do PIB estadual – R$ 6.106.106.000,00, o melhor
IDH – 0,752 – (PNUD, 2013) e a maior densidade demográfica – 49,99 (IBGE, 2015).
De acordo com dados do Cadastro Único27, em novembro de 2015 o estado tinha
90.856 famílias registradas em seus quinze municípios, das quais 46.024 famílias são
beneficiárias do Bolsa Família, que corresponde a 34,46% da população do estado. Isso indica
que parcelas significativas da população do estado enquadra-se no perfil socioeconômico do
programa, qual seja, brasileiros com renda familiar de até meio salário mínimo per capita,
considerados pobres ou extremamente pobres.
27
O Cadastro Único é o instrumento do governo federal usado para identificar as famílias de baixa renda que têm
interesse em participar de programas sociais como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Tarifa Social de
Energia Elétrica, Telefone Popular e outros programas dos governos estaduais e municipais. No CadÚnico estão
registradas as informações sobre as condições de vida das famílias, características da residência e
identificação de cada pessoa: documentos, escolaridade, situação de trabalho e remuneração. A família deve
atualizar os dados a cada 2 anos, obrigatoriamente (MDS, 2015).
71
É importante ressaltar esses dados considerando que as famílias beneficiárias do
programa precisam assumir compromissos, chamados de condicionalidades, como garantir que
as crianças frequentem a escola, e tenham acompanhamento vacinal, o que reflete na melhoria
de indicadores de redução da pobreza e o aumento de desenvolvimento humano. De acordo
com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em 2015, no estado, 92,50% das crianças
e jovens de 6 a 17 anos cujas famílias são beneficiárias do Bolsa Família tinham registro de
acompanhamento de frequência escolar. Na área da saúde, o acompanhamento chega a 65,54%
das famílias com perfil, ou seja, aquelas com crianças de até 7 anos e/ou com gestantes.
Além de Boa Vista, o estado possui mais quatorze municípios. Dentre eles
interessam, neste trabalho, três: Bonfim, Normandia e Uiramutã, que são municípios
fronteiriços com a Guyana e com significativo trânsito dos povos indígenas das etnias
Ingaricó/Akawaio, Patamona, Macuxi e Wapichana, (BAINES, 2012; OLIVEIRA, 2010;
PEREIRA, 2005; SILVA, 2005).
Esses munícipios têm características comuns, como baixa densidade
demográfica, infraestrutura de serviços públicos deficiente, baixa produção econômica, alta
dependência de recursos federais, como o Fundo de Participação dos Municípios (FPM)28, além
de outras verbas intermediadas pelo governo estadual destinadas à educação, saúde, programas
sociais e de fomento às atividades produtivas. A maior parte da população municipal é indígena.
Bonfim, localiza-se à leste do estado de Roraima, e segundo estimativas do
IBGE, em 2015 tinha população de 11.739 habitantes, numa área de 8.095.421 km² cuja
densidade demográfica é de 1,35 hab/km². O IDH é de 0,626 (PNUD, 2013); o Índice de Gini,
0,72 (IPEA, 2010); e o PIB registrado em 2013 era de R$ 190.180.000,00 (IBGE, 2013). A
estrutura econômica municipal é composta principalmente pelos setores de serviços, comércio
e agropecuária. A taxa de extrema pobreza calculada no Censo demográfico de 2010 incidia
sobre 68,48% da população. De acordo com o CadÚnico, em outubro de 2015, o município
tinha 2.932 famílias registradas, das quais 1.770 famílias são beneficiárias do Programa Bolsa
Família, isto é, 60,52 % da população do município. As condicionantes em relação ao
acompanhamento de educação e saúde informam que 99,30 % das crianças e jovens de 6 a 17
anos atendidos pelo Bolsa Família têm acompanhamento de frequência escolar. Na área da
28
O Fundo de Participação dos Municípios é uma transferência constitucional (CF, Art. 159, I, b), da União para
os estados e o Distrito Federal, composto de 22,5% da arrecadação do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI). A distribuição dos recursos aos municípios é feita de acordo com o número de
habitantes, onde são fixadas faixas populacionais, cabendo a cada uma delas um coeficiente individual (BRASIL,
2015).
72
saúde, o acompanhamento chega a 86,98 % das famílias com perfil, ou seja, aquelas com
crianças de até 7 anos e/ou com gestantes (MDS, 2015).
Normandia também se localiza à leste de Roraima e conta com população de
10.148 habitantes, numa área de 6.966.811km² com densidade demográfica de 1,28 hab/km²
(IBGE, 2015); IDH de 0,594 (PNUD, 2013); Índice de Gini de 0,70 (IPEA, 2010); e o PIB, em
2013, era de R$ 101.133.000,00 (IBGE, 2013). A economia do município baseia-se
principalmente no setor de serviços, comércio e agropecuária. A taxa de extrema pobreza,
calculada no Censo demográfico de 2010, incidia sobre 55,36% da população. De acordo com
o CadÚnico, em outubro de 2015 o município tinha 1.707 famílias registradas, das quais 1.303
são beneficiárias do Programa Bolsa Família, ou seja, 66,43% da população do município. As
condicionantes em relação ao acompanhamento de educação e saúde informam que 85,60 %
das crianças e jovens de 6 a 17 anos do Bolsa Família têm acompanhamento de frequência
escolar. Na área da saúde, o acompanhamento chega a 82,26 % das famílias com perfil, quer
dizer, aquelas com crianças de até 7 anos e/ou com gestantes (MDS, 2015).
Uiramutã, por sua vez, localiza-se no nordeste do estado; é o único município
que faz fronteira com a Guyana e Venezuela, conta com população de 9.48829 habitantes (IBGE,
2015), numa área de 8.065 km² com densidade demográfica de 1,04 hab/km² (IBGE, 2015);
IDH de 0,0453 (PNUD, 2013); Índice de Gini de 0,78 (IPEA, 2010); e o PIB, em 2013, era o
menor do estado: R$ 80.672,00. A economia do município também se baseia, principalmente,
no setor de serviços, comércio e agropecuária. A taxa de extrema pobreza, calculada no Censo
demográfico de 2010, incidia sobre 76,89% da população. Consoante o CadÚnico, em outubro
de 2015 o município tinha 1.427 famílias registradas, das quais 1.152 famílias são beneficiárias
do Programa Bolsa Família, isto é, 70,31% da população do município. As condicionantes em
relação ao acompanhamento de educação e saúde informam que 86,70 % das crianças e jovens
de 6 a 17 anos do Bolsa Família têm acompanhamento de frequência escolar. Na área da saúde,
o acompanhamento chega a 71,83 % das famílias com perfil, ou seja, aquelas com crianças de
até 7 anos e/ou com gestantes (MDS, 2015).
A apresentação deste cenário sintético pretendeu tão somente visualizar o país
de um modo geral e os municípios fronteiriços de modo particular, a fim de perceber como
29
A estimativa apresentada pelo IBGE está muito abaixo da contagem populacional feita pelo DSEI-LESTE, que
em 2015 informa como população indígena “aldeada” em comunidades indígenas do município de Uiramutã o
total de 11.632. Tal discrepância pode ser explicada pela contagem mais próxima, atualizada e frequente que o
DSEI faz da população que atende, mas também pode representar um aumento populacional, em decorrência do
trânsito nas comunidades fronteiriças por ocasião do atendimento de saúde ou, ainda, considerem indígenas que
residam tanto nas comunidades do município quanto na capital Boa Vista e outros municípios em razão de trabalho
e/ou estudos.
73
estão embasadas e focadas as políticas sociais indigenistas desde a última Constituição Federal
de 1988, a partir da qual, segundo Machado (2012), o discurso oficial passa a tratar os povos
indígenas como cidadãos brasileiros, portanto sujeito de direitos, inclusive o de organizarem-
se e viverem segundo suas próprias regras e costumes, bem como de acessar a um conjunto de
direitos, concretizados em bens e serviços viabilizados, principalmente, pelo Estado, através
de documentos de identificação, renda, atendimento de saúde e educação (MACHADO, 2012,
p. 56-90).
Tal ideia de cidadania tem se pautado, sobretudo, no projeto político de redução
da pobreza e da extrema pobreza, que no entendimento oficial é representado pela escassez de
recursos financeiros e materiais e pelos baixos indicadores de saúde e educação, situação em
que, de acordo com Machado (2012), os indígenas são classificados no âmbito das políticas
públicas. A autora pondera que, embora a conceituação seja simplista e equivocada, é notório
que os indicadores sociais relacionados aos povos indígenas — como mortalidade-infantil,
doenças infectocontagiosas e parasitárias, deficiências no saneamento ambiental, baixa
qualidade no ensino entre outros — ainda são piores do que os da população não indígena, “[...]
apesar da incrível recuperação demográfica e dos avanços no campo da saúde e da educação
indígena” (MACHADO, 2012, p. 97).
Neste contexto, apresentar-se-á uma sistematização dos povos indígenas no
Brasil e em Roraima considerando os dados produzidos por instituições governamentais e não
governamentais, esclarecendo que as políticas objeto de recorte deste trabalho serão tratadas
em outra seção. Antes disso, porém, será necessário apresentar a definição oficial e atual de
índio/povos indígenas no Brasil, a fim de melhor compreendermos as diretrizes e os critérios
de inclusão nas políticas.
74
por meios diversos, desenvolver ações para integrá-los à comunhão nacional, de modo que
alcançassem a civilização, emancipando-se da condição indígena e da tutela direta do Estado,
passando à condição de “cidadão brasileiro comum” (RIBEIRO, 1982, p. 204), ou seja, não
seriam mais índios à medida que assimilassem as regras, os comportamentos e hábitos da
sociedade nacional.
Essa visão acompanhou a formação e a consolidação do Brasil enquanto Estado
nacional e definiu, a partir do Estatuto do Índio (Lei nº 6001/2013), categorias de classificação
do grau de integração dos índios à comunhão nacional, que serviriam para orientar as ações do
Estado e a relação da sociedade nacional com os índios no Brasil. Os Artigos 3º e 4º do Estatuto
trazem as seguintes definições e categorias:
75
identidade por parte do grupo de origem. Esses critérios, de acordo com a Funai, se baseiam no
Art. 3º do Estatuto do Índio e no Art. 1º da Convenção 169 da OIT, que trata da aplicação da
convenção:
30
Instrumento previsto no Art. 12 do Estatuto do Índio, e até a Constituição Federal de 1988, tido como documento
para acompanhamento dos índios no seu “processo” de integração, dado que conforme as leis, uma vez integrados,
os índios deveriam se submeter ao Registro Civil e quando não integrados registrados administrativamente. Foi
regulamentado pela Portaria Funai nº 003/2002, como um instrumento estatístico e quando necessário, meio
subsidiário de prova para obtenção de Registro Civil de Nascimento [...] Embora os Registros Administrativos
tenham adquirido, na prática social, a finalidade de identificação das pessoas indígenas perante a sociedade
nacional, tal objetivo não consta expresso em nenhuma legislação indigenista específica. O desvio de finalidade
do RANI, como o atestado da condição do ser indígena, é uma das características erroneamente atribuídas a esse
registro administrativo emitido pela Funai (NOTA TÉCNICA Nº 02/COPS/CGPDS/Funai/MJ, 2015).
76
consideração a localização de residência e reprodução socioeconômica e cultural do índio — ou
seja, se “aldeado” ou “urbano”, se dependente de atividade rural (agricultura, pesca,
extrativismo, artesanato) —, bem como pela classificação de renda familiar per capita e as
condições de moradia, a exemplo dos critérios empregados pelo IBGE no Censo de 2010.
No Brasil, conforme dados do último Censo demográfico realizado pelo IBGE,
em 2010, com base no critério de autodeclaração, foram contabilizadas 896.917 mil indígenas,
das quais 517.383 viviam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas e 379.534 viviam fora
de Terras Indígenas. Desses, 80.663 viviam em domicílios rurais e 298.871 em domicílios
urbanos. Esses dados demonstram que maior parte dos indígenas no Brasil ainda reside em
áreas rurais, sobretudo em Terras Indígenas, embora o número destes em área urbana seja
expressivo. Entre os Censos de 1991 e 2000 foi registrado um aumento significativo da
população indígena, de 294 mil para 734 mil. Segundo o IBGE (2010),
Esse aumento expressivo não poderia ser compreendido apenas como um efeito
demográfico (ou seja, devido à mortalidade, natalidade e migração), mas a um
possível crescimento no número de pessoas que se reconheceram como indígenas no
país, principalmente nas áreas urbanas.
77
Encaminhada RI* 36 44.612
Delimitada 28 2.775.364
Declarada 47 1.849.890
Homologada 18 1.025.672
31
Para informações mais detalhadas sobre os resultados do Censo Demográfico de 2010 relacionados aos
indígenas, consultar documento “Características gerais dos indígenas”. Resultados do Universo, IBGE, 2010.
Disponível em: <www.ibge.gov.br/publicações>.
32
Esses dados não incluem indígenas da etnia Waimiri Atroari, uma vez que não são atendidos pelos citados
DSEIs.
78
ao Censo do IBGE sobre população indígena fora de terra indígena. Eis os números: 44.671
indígenas aldeados nas comunidades situadas à Leste de Roraima, (Dsei-LRR, 2015), 14.350
indígenas em aldeias da Terra Indígena Yanomami, localizadas no estado de Roraima (Dsei-
YANOMAMI), e 9.417 indígenas residentes fora de Terras Indígenas (IBGE, 2010). A soma
desses números equivale à população de 68.438 indígenas, apenas no estado de Roraima, que
residem em áreas rurais ou em cidades, mas que estão distribuídos em 543
comunidades/aldeias33 e pertencem a doze etnias principais (Ingaricó, Macuxi, Patamona,
Sapará, Sanumá, Taurepang, Xirixana, Xiriana, Yanomami, Ye’kuana e Wai Wai, Wapichana).
Quanto aos indicadores de saúde e educação da população indígena no estado,
segundo o Censo de 2010, a taxa de analfabetismo entre os indígenas com 10 ou mais anos de
idade era de 34,3% na população domiciliada em Terra Indígena e de 13,3% da população da
mesma faixa de idade domiciliada fora de Terras Indígenas. Já a taxa de mortalidade infantil (0
a 1 ano) no estado tem crescido, principalmente na população da Terra Yanomami, apesar do
ascendente investimento de recursos públicos na saúde indígena. Segundo o jornal El País
(2015) a partir de dados do Ministério da Saúde, nas terras indígenas localizadas a leste do
estado, em 2013, a taxa era de 22,9 óbitos por mil nascidos vivos, enquanto em 2011 era de
15,46. A Terra Indígena Yanomami, que também compreende o estado do Amazonas, tem a
taxa mais elevada de mortalidade infantil, em comparação com as demais regiões do Brasil e
do mundo. Em 2013, foram 149 óbitos por mil nascidos vivos, e a menor taxa registrada nesse
grupo foi em 2004 (69,84), ainda muito acima da média nacional.
Nos municípios de interesse deste trabalho, a distribuição de Terras Indígenas,
comunidades, etnias e população pode ser visualizada no quadro abaixo.
Nº de População
Municípios/RR Terra Indígena Etnias Comunidades Indígena
Bom Jesus, Jabuti, Manoá/Pium,
Bonfim Macuxi, Wapichana 14 5.061
Moskou, Muriru, Jacamim
Ingaricó, Macuxi,
Uiramutã Raposa Serra do Sol 91 11.60734
Patamona e Wapichana
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir do Censo populacional de 2015 produzido pelo Distrito Especial de
Saúde Indígena do Leste de Roraima – Dsei-LESTE/SESAI/MS.
33
Como são chamados os assentamentos indígenas pelos próprios índios, bem como instituições públicas e
sociedade em geral em Roraima.
34
No Censo 2010, a população autodeclarada indígena no município de Uiramutã era de 7.383 habitantes.
79
Em geral, as comunidades nas Terras Indígenas situadas à leste de Roraima são
multiétnicas, compostas por índios Macuxi, Wapichana, Patamona, Ingaricó, Taurepang,
Sapará e Wai Wai. A estrutura político-administrativa das terras e comunidades é chamada
pelos próprios indígenas de etnorregiões35, conforme o mapa abaixo.
A etnorregião congrega um conjunto de terras e ou comunidades indígenas, ou,
ainda, subdivide uma Terra Indígena com grande extensão territorial, como são os casos da
Raposa Serra do Sol e São Marcos. Cada etnorregião possui um coordenador regional que é
responsável pela articulação e coordenação dos líderes indígenas comunitários, chamados de
tuchaua36, e cada comunidade é formada em geral por habitações dispersas compostas por
grupos familiares aparentados ou não, “[...] conformados por fatores sociais, políticos,
econômicos e rituais” (RIVIÈRE, 2001, p. 51).
35
Divisão político-administrativa adotada pelos povos indígenas tendo por referência a distribuição territorial e
étnica no estado de Roraima. (Funai/CR-Roraima, 2015).
36
Líder político escolhido pelos membros da comunidade como intermediário e interlocutor dos assuntos e
demandas de sua comunidade (SANTILLI, 1994; REVIÈRE, 2001).
80
Figura 4 - Mapa das etnorregiões indígenas no estado de Roraima
Fonte: Mapa elaborado pelo Serviço de Gestão Ambiental e territorial da Coordenação Regional da
FUNAI em Roraima. Arquivo digital disponibilizado à autora.
81
Segundo Vieira (2014, p. 166-168), desde a década de 1970, em consonância
com movimentos nacionais, intensifica-se em Roraima a mobilização indígena — com apoio
de setores da igreja Católica — voltada à luta pela demarcação dos territórios originários,
usurpados por não índios desde a expansão da ocupação colonial no século XVIII, e
intensificadas pela expansão agropecuária no século XIX e XX (SANTILLI, 2001 e 1994).
A partir da primeira experiência de Assembleia Indígena em Roraima, em 1977,
tornou-se uma prática nas comunidades à leste de Roraima tratar de assuntos relacionados às
decisões e resoluções de conflitos internos por meio de reuniões e assembleias na própria
comunidade. Isso ocorria também em nível regional e estadual, dependendo da temática. As
instituições do Estado — como Funai, Dseis, Polícia Federal, IBAMA, secretarias de estado,
prefeituras e outros órgãos que atuam em comunidades ou que estejam desempenhando alguma
atividade em comunidades indígenas — são convidadas a participar destes espaços de diálogo,
de levantamento demandas e de construção de críticas aos serviços prestados pelas instituições
do Estado.
Muitas comunidades são representadas externamente, ou seja, perante o Estado,
sociedade nacional e internacional, pelas organizações indígenas, que além da representação
política podem também captar recursos de fontes pública ou não governamentais para
implementar projetos diversos voltados à sustentabilidade econômica e valorização cultural,
por exemplo.37
A finalidade da exposição de dados e considerações gerais voltou-se à
visualização do contexto das populações indígenas no cenário nacional e local. Não é intenção
desta dissertação debruçar-se sobre as inúmeras implicações relacionadas a qualidade,
abrangência e eficiência dos dados oficiais, e se estes têm, de fato, refletido na qualidade das
políticas indigenistas e na atuação do Estado brasileiro juntos aos povos indígenas.
37
Sobre o movimento indígena e organizações indígenas em Roraima, consultar os trabalhos de Maxim Repetto
(2007), Paulo Santilli (2001, 1994), Jaci Guilherme Vieria (2014) e Reginaldo Gomes de Oliveira (2005).
82
implementador e executor da política indigenista. Esta situação é percebida, por exemplo, pela
limitação do reconhecimento do índio à apresentação de um atestado oficial, conhecido como
RANI.
Quanto à principal diretriz do atual projeto de política indigenista, cuja
finalidade é a proteção e a promoção dos direitos indígenas, Machado (2012) pondera:
A CF/88 não inaugura apenas uma nova visão oficial sobre os povos indígenas;
inicia também uma reorientação das diretrizes da política indigenista e uma reorganização
político-administrativa da execução dessas políticas. Resta à Funai o papel de coordenadora e
articuladora das políticas indigenistas do Estado brasileiro, embora este seja desempenhado
com precariedade (SOUZA LIMA, 2010).
Cabe, ainda, enquanto finalidade institucional da Funai, conforme o Art. 2º do
Decreto nº 7.778, de 22/07/2012 e Art. 2º da Portaria nº 1733, de 27/12/210, que dispõem sobre
o Estatuto e o Regimento da Fundação: promover estudos de identificação e delimitação,
demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos
povos indígenas, além de monitorar e fiscalizar as terras indígenas; coordenar e implementar as
políticas de proteção aos povo isolados e recém-contatados; promover políticas voltadas ao
desenvolvimento sustentável das populações indígenas, promovendo ações de
etnodesenvolvimento, conservação e a recuperação do meio ambiente nas terras indígenas e
atuar no controle e mitigação de possíveis impactos ambientais decorrentes de interferências
externas às terras indígenas.
Em 2007, a instituição iniciou um processo de reestruturação organizacional
interna, formalizada em 2009 pelo Decreto nº 7056/09 e substituído pelo Decreto 7.778/2012.
“As mudanças tiveram como objetivo a otimização do funcionamento do órgão, a ruptura com
83
o paradigma assistencialista, e renovação das formas de relação da Funai com as comunidades
indígenas em âmbito local” (BRASIL, 2015).38
Em que pese a efetivação da reestruturação, poucos avanços foram percebidos em
relação à estrutura física das unidades descentralizadas da instituição, comprometendo a
qualidade dos serviços e o próprio projeto de reestruturação proposto (SILVA, 2013).
O Estatuto e o regimento da instituição dispõem como finalidade a proteção e
promoção dos direitos dos povos indígenas. Esta disposição está de acordo com as diretrizes da
política nacional previstas no Plano Plurianual-PPA39 2012-2015 e no PPA 2016-2019.
Segundo o órgão, os conceitos de proteção e promoção não implicam tutela, ou seja,
A ‘proteção’ diz respeito, sim, à garantia contemporânea de que os direitos dos povos
indígenas não sejam violados por uma relação assimétrica de poder, historicamente
observada entre esses povos e a sociedade envolvente, implicando em graves ameaças
à integridade física e cultural dos índios e sobre suas terras tradicionalmente ocupadas.
Já o conceito de promoção, busca romper com a tradição assistencialista e clientelista
das políticas até então implementadas aos povos indígenas. A ‘promoção’ pressupõe
o reconhecimento da diferença como fator positivo e potencializador, e não como fator
de "desigualdade social". O diálogo com os povos indígenas é sempre possível, sendo
positivo quando considera as trocas simétricas, respeitando-se modos e
temporalidades adequadas a cada caso (BRASIL, 2015).40
38
Disponível em: <www.funai.gov.br/indes.php/nossas-acoes/política-indigenista>. Acesso em: mar. 2015 a mar.
2016
39
O Plano Plurianual (PPA) é um instrumento previsto no art. 165 da Constituição Federal destinado a organizar
e viabilizar a ação pública, com vistas a cumprir os fundamentos e os objetivos da República. Por meio dele, é
declarado o conjunto das políticas públicas do governo para um período de quatro anos e os caminhos trilhados
para viabilizar as metas previstas. O Plano apresenta a visão de futuro para o País, macrodesafios e valores que
guiam o comportamento para o conjunto da Administração Pública Federal; permite também que a sociedade tenha
um maior controle sobre as ações concluídas pelo governo Disponível em: <www.planejamento.gov.br>. Acesso
em: 10.01.2016
40
Disponível em: <www.funai.gov.br/indes.php/nossas-acoes/política-indigenista>. Acesso em: 15 out. 2015
41
Disponível em: <www.funai.gov.br/indes.php/nossas-acoes/política-indigenista>. Acesso em: 15 out. 2015
84
pretendia congregar arranjos institucionais necessários à articulação, pactuação e execução de
políticas públicas voltadas aos povos indígenas, com espaços para a participação e o controle
social. A proposta era garantir um instrumento que fosse modelo de gestão compartilhada e
participativa, garantindo a autonomia dos entes federados, ao mesmo tempo em que promovesse
a implementação mais sistêmica e articulada da política indigenista, distribuindo
responsabilidades e competências, uniformizando e sistematizando a atuação dos órgãos e
entes, visibilizando os direitos dos povos indígenas e possibilitando um monitoramento mais
efetivo, adequado e transparente, a partir de metas, objetivos, sistemas de informação e
indicadores de gestão, a exemplo de outros sistemas criados pelo Governo Federal como o
Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
42
Disponível em: <www.funai.gov.br/indes.php/nossas-acoes/política-indigenista>. Acesso em: 15 out. 2015
85
Principais órgãos públicos
Políticas Principais Instrumentos
executores da política Principais Ações
Indigenistas Normativos nacionais
indigenista
CF/88; Lei 6.001/73, Decreto Demarcação de terras;
Territorial Ministério da Justiça – Funai. 1.775/96, Portaria MJ 14/96 e Portaria proteção ambiental e
MJ 2498/2011; Decreto nº 7747/2013 territorial.
Lei nº 8.171/1991; Decreto nº
Ministério de Desenvolvimento 3.108/1999; Decreto 3.991/2001; Lei
Fomento,
Agrário, Ministério da nº 10.711/2003; Decreto nº
financiamento à
Agricultura, Pecuária e 5.153/2004; Lei nº 11.326/2006;
Autossustento projetos e atividades
Abastecimento, Funai, Decreto nº 6.040/2007; Portaria n°.
produtivas e
Secretarias estaduais e 002/MDA/MJ/2015,
autossustento.
municipais. Instrução Normativa nº.
0003/Funai/2015
Lei nº 9394/1996, Lei nº 10172/2001,
Decreto nº 26/91, Portaria
Educação escolar e
Ministério da Educação, Interministerial MJ/MEC nº 559/91,
universitária indígena
Instituições Federais de Ensino Lei 10558/2002, Lei nº 11096/2005,
em todos os níveis,
Educação Superior, Técnico e Decreto nº 7778/2012; Lei nº
etapas e modalidades
Tecnológico, Secretarias 12.711/2012; Decreto nº 7.824/2012;
de ensino; Bolsa
estaduais e municipais. Resolução CEB/CNE nº 05/2012;
Permanência.
Portaria MEC nº 389/2013; Portaria
GM/MEC nº 1.062/2013
Serviços de saúde,
Lei nº 8080/90, Lei nº 9.836/99;
inclusive de
Ministério da Saúde, Secretária Decreto nº 3,156/1999, Portaria nº
abastecimento de água
Especial de Saúde Indígena/ 254/2002, Portaria n 70/GM/2004;
e saneamento básico
Saúde Distritos Especiais Sanitários de Portaria nº 2.405GM/2002; Portaria
em Terras indígenas –
Saúde Indígena, Secretarias MS nº 2.656/2007; Lei 12.314/2010,
em todos os níveis
estaduais e municipais. Decreto nº. 7.336/2010, Decreto nº
(atenção básica, média
7778/2012
e alta complexidade).
Ministério da Previdência Social Benefícios
Previdência Lei nº 8.212/1991; Lei nº 8.213/1991;
- Instituto Nacional do Seguro Previdenciários para
Social Instrução Normativa nº 77/2015
Social. Segurados Especiais.
Lei nº 8.742/1993; Lei nº
Ministério do Desenvolvimento Cadastro Único -
Assistência 10.836/2004; Decreto nº 5.209/2004;
Social, Governos estaduais e Bolsa Família;
Social Portaria nº 78/2004, Portaria MDS nº
prefeituras municipais. Pronatec.
177/2011
Fonte: Quadro elaborado pela autora com base nas informações disponíveis nos sítios oficiais da Funai, MS, MEC,
MDA, MAPA, MPS e MDS, na internet.
86
2.3.2 Demarcação de Terras Indígenas
43
À exemplo do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia – PPTAL, uma
cooperação entre Brasil, governo alemão e o Banco Mundial voltada à demarcação de terras na Amazônia Legal.
(MENDES, 2001, 37-40).
87
a) Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas: são as terras indígenas de que
trata o art. 231 da Constituição Federal de 1988, baseadas no direito originário dos
povos indígenas, cujo processo de demarcação é disciplinado pelo Decreto n. º
1775/96.
b) Reservas Indígenas: são terras doadas por terceiros, adquiridas ou
desapropriadas pela União, que se destinam à posse permanente dos povos
indígenas. São terras que também pertencem ao patrimônio da União, mas não se
confundem com as terras de ocupação tradicional. Existem terras indígenas, no
entanto, que foram reservadas pelos Estados-Membros, principalmente durante a
primeira metade do século XX, que são reconhecidas como de ocupação
tradicional.
c) Terras Dominiais: são as terras de propriedade das comunidades indígenas,
havidas, por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação
civil.
d) Interditadas: são áreas interditadas pela Funai para proteção dos povos e grupos
indígenas isolados, com o estabelecimento de restrição de ingresso e trânsito de
terceiros na área. A interdição da área pode ser realizada concomitantemente ou não
com o processo de demarcação, disciplinado pelo Decreto n. º 1775/96.
88
b) Delimitadas: terras que tiveram os estudos aprovados pela Presidência da Funai,
com a sua conclusão publicada no Diário Oficial da União e do Estado, e que se
encontram na fase do contraditório administrativo ou em análise pelo Ministério da
Justiça para decisão acerca da expedição de Portaria Declaratória da posse
tradicional indígena.
c) Declaradas: terras que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória pelo
Ministro da Justiça e estão autorizadas para serem demarcadas fisicamente, com a
materialização dos marcos e georreferenciamento. Nessa fase é feito o
levantamento fundiário de avaliação de benfeitorias implementadas pelos
ocupantes não índios, a cargo da Funai, realizado em conjunto com o cadastro dos
ocupantes não-índios, a cargo do Incra.
d) Homologadas: terras que possuem os seus limites materializados e
georreferenciados, cuja demarcação administrativa foi homologada por decreto
presidencial. Nessa fase, é feita a retirada de ocupantes não índios, com pagamento
de benfeitorias consideradas de boa-fé, a cargo da Funai, e reassentamento dos
ocupantes não índios que atendem ao perfil da reforma, a cargo do Incra.
e) Regularizadas: terras que, após o decreto de homologação, são registradas em
cartório em nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União.
f) Interditadas: áreas interditadas, com restrições de uso e ingresso de terceiros,
para a proteção de povos indígenas isolados.
89
diferenciada voltada aos povos isolados, pautada pela premissa do não contato, o Estado
brasileiro evita o genocídio, nos termos da legislação nacional e internacional.
Os processos de demarcação se iniciam geralmente com a solicitação por escrito
feita por um povo indígena, representado ou não por organização indígena, encaminhada ao
órgão indigenista ou ainda por provocação do Ministério Público Federal ao órgão indigenista
(FUNAI, 2013).
A atual conjuntura da política de demarcação de terras é de incerteza. Há muitos
processos demarcatórios parados, assim como recorrentes e violentos conflitos entre índios e
não índios, sobretudo nas regiões Centro-oeste, Nordeste e Sul do país.
Em Roraima, o movimento indígena ainda reivindica a demarcação de duas
Terras Indígenas, bem como a ampliação das várias áreas demarcadas “em ilha”, isto é, de modo
descontínuo, haja vista o aumento populacional e a escassez de recursos naturais e áreas para
plantio (FUNAI, 2013).
2.3.3 Autossustento
90
portanto, essas atividades fontes ou alternativas legalizadas para o “sustento” econômico das
comunidades indígenas.
O uso sustentável das terras e dos recursos, é grosso modo, a principal diretriz
das políticas de autossustento. Nesse sentido, foi instituída a Política Nacional de Gestão
Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI, por meio do Decreto nº 7747/13, com
execução pela Funai e MMA em conjunto com comunidades e organizações indígenas. Esta
política prevê a elaboração de Planos de Gestão Territorial e Ambiental – PGTAs para terras as
indígenas em todo o Brasil. A política tem como objetivo:
44
Redução de Emissões por Degradação e Desmatamento (REED) é um mecanismo que oferece incentivo
financeiro a projetos de países em desenvolvimento para compensar as emissões de gases que contribuem para o
aquecimento global. Na prática, em terras indígenas, seria um incentivo para a comunidade manter a floresta
intacta, pois ela auxilia na captura do carbono. Dessa forma, empresas que poluem o meio ambiente podem
financiar essa proteção a fim de compensar os gases poluidores que emitem. O mecanismo de REED ainda não é
uma realidade. (Disponível em www.funai.gov.br).
91
produtos a populações em situação de insegurança alimentar e nutricional, bem como a
unidades de saúde e de assistência social, (Disponível em www.conab.gov.br).
Quadro 5 – Principais políticas voltadas ao autossustento
Instituições Habilitação/critérios
Principais políticas Principais ações
Executoras de inclusão nas ações
Programa de Apoio à Infraestrutura de
Fomento às
Territórios Rurais e Indígenas -
atividades produtivas
PROINF (aquisição de maquinários,
por meio do
MDA, MAPA, transportes, edificações) para Documentos de
financiamento,
Funai, Secretárias municípios com contingente indígena; Identificação Civil,
convênios, aquisições
estaduais e Programa Nacional de Agricultura Declaração de Aptidão
de equipamentos e
municipais. Fortalecimento da Agricultura ao Pronaf.45
insumos para fins de
Familiar -PRONAF; Programa
segurança alimentar e
Nacional de Documentação da
geração de renda.
Trabalhadora Rural.
Projeto Demonstrativo de Povos
Indígenas – PDPI; Projetos
Fomento às Apresentação de
MMA, Funai, Demonstrativos – PDA, o Projeto
atividades produtivas projetos por
Corporações Integrado de Proteção às Populações e
para fins de organizações indígenas
internacionais e Terras Indígenas da Amazônia Legal –
segurança alimentar e com personalidade
Organizações PPTAL, o Programa Carteira
sustentabilidade jurídica, ou seja, com
Indígenas. Indígena, e o Projeto GATI de Gestão
ambiental. CNPJ.
Ambiental e Territorial em Terras;
Selo Indígena.
Documentação Civil e
Declaração de Aptidão
CONAB, MEC - Programa de Aquisição de Alimentos
Aquisição da ao Pronaf para
secretarias estaduais da Agricultura Familiar -PAA;
produção agrícola Indígenas e vínculo com
e municipais de Programa Nacional de Alimentação
familiar. cooperativas ou
educação. Escolar – PNAE.
associações agrícolas e
ou indígenas.
Contratação de Assistência Técnica e
Documentação Civil,
Extensão Rural - ATER, para
Inclusão produtiva, ser cadastrado no
prestação de assessoria técnica aos
geração de renda Cadastro Único e
MDA, MDS e Funai. projetos produtivos; repasse de
entre as famílias mais beneficiário do
recursos extras às famílias indígenas
pobres. Programa Bolsa
para investimento na produção
Família.
familiar.
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir de informação de relatórios e sites oficiais do MDS, MDA, Funai.
45
A DAP - Declaração de Aptidão do PRONAF é utilizada como instrumento de identificação do agricultor
familiar para acessar políticas públicas como, por exemplo, o Programa Nacional de Fortalecimento a
Agricultura Familiar (PRONAF). Para obtê-la, o agricultor familiar e seu cônjuge (se possuir) devem dirigir-se
a um órgão ou entidade credenciado pelo MDA.
92
e à qualificação da educação; à geração de emprego e renda para os mais pobres; à ampliação
e à melhoria dos serviços de saúde; e o combate às desigualdades socioeconômicas e também
provenientes de raça e gênero” (IPEA, 2010, p. 17).
Foi a partir da CF/88 que tais políticas ganharam caráter universal, incluindo
como público-alvo os indígenas, que foram reconhecidos como cidadãos, sendo ressalvado o
tratamento diferenciado na prestação dos serviços e nos desenhos das políticas. Um exemplo é
o da educação escolar, que prevê o ensino na língua materna e com base em processos próprios
de aprendizagem do povo indígena.
As políticas voltadas à assistência social e previdência social foram apenas
estendidas aos indígenas, não tendo sido formuladas ou adequadas para ou com os povos
indígenas. Ressalvadas algumas adaptações, seguem os mesmo princípios e diretrizes voltados
à sociedade em geral (MACHADO, 2012, p. 119-124).
93
gerais sobre matrícula, número de professores indígenas, bem como o número de escolas
indígenas no ano de 2014, no Brasil, segundo o INEP. Os dados são absolutos e não dizem
muito quanto à qualidade do ensino ofertado, bem como não dão conta de responder se as
diretrizes para a política educacional estão sendo observadas e sobre os efeitos das mesmas na
qualidade de vida dos povos indígenas. Servem, contudo para ilustrar o alcance da política
educacional brasileira entre os povos indígenas de Roraima.
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir de dados da Sinopse Estatística da Educação e Superior em 2014,
do INEP. Disponível em: <www.inep.gov.br>.
94
Quadro 7 - Quadro de professores indígenas por níveis, etapas e modalidades da educação
pública brasileira em 2014
Prof.
Prof. Indígenas Total prof. em Total prof.
Professores Indígenas no
em RR RR no Brasil
Brasil
EI Total 102 1.123 1.727 498.785
Educação Infantil (EI) Creche 14 250 352 229.800
Pré-Escola 88 888 1.408 298.277
EF Total 1.011 5.294 9.134 1.412.124
Ensino Fundamental Anos Iniciais (1º
(EF) ao 5º) 243 2.480 4.288 745.650
Anos Finais (6º ao
9º) 801 3.135 5.682 794.004
EM Total 284 1.863 1.567 524.315
Regular - 1.715 - 487.068
Ensino Médio (EM)
Normal/Magistério - 0 - 15.641
Integrado - 227 - 45.888
EP Total 3 111 53 84.174
Educação Profissional Concomitante - 6 - 16.176
(EP) Subsequente - 103 - 55.670
Mista - 15 - 32.894
EE Total - 3.652 - 1.010.140
Classes Especiais
Educação Especial
+ Escolas
(EE)
Especiais 0 0 25 29.369
Classes Comuns - 3.652 - 980.771
EJA Total 151 976 1.653 250.844
Educação de Jovens e Ensino
Adultos (EJA) Fundamental - - - -
Ensino Médio - - - -
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir de dados da Sinopse Estatística da Educação e Superior em 2014, do
INEP. Disponível em: <www.inep.gov.br>.
95
Quadro 8 - Escolas indígenas por níveis, etapas e modalidades da educação pública.
Escolas
Escolas
Escolas Total RR Indígenas Total Brasil
Indígenas RR
RR
EI Total - 346 - 116.068
Educação Infantil (EI) Creche - 89 - 58.616
Pré-Escola - 315 - 106.524
EF Total 306 651 2.976 137.636
Anos Iniciais (1º ao
Ensino Fundamental - 578 - 121.592
5º)
(EF)
Anos Finais (6º ao
- 245 - 62.897
9º)
EM Total 54 138 304 27.743
Regular - - - -
Ensino Médio (EM)
Normal/Magistério - - - -
Integrado - - - -
EP Total - 15 - 5.995
Educação Profissional Concomitante - - - -
(EP) Subsequente - - - -
Mista - - - -
EE Total - 0 - 107.300
Classes Especiais +
Educação Especial (EE) - 0 - 3.827
Escolas Especiais
Classes Comuns - 335 - 103.473
EJA Total - 107 - 35.516
Educação de Jovens e
Ensino Fundamental - 1 - 183
Adultos (EJA)
Ensino Médio - 29 - 470
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir de dados da Sinopse Estatística da Educação e Superior em 2014, do
INEP. Disponível em: <www.inep.gov.br>.
Além do ensino básico, os indígenas, a partir de 2000, estão tendo maior acesso aos
níveis de educação profissional e universitário, por meio de políticas afirmativas, popularmente
chamadas de cotas, seja em cursos voltados especificamente para indígenas, seja por meio de
quantitativos de vagas reservadas à indígenas. Em Roraima, os critérios de acesso à cota
indígena têm se dado, basicamente, por meio da apresentação do RANI e da realização de
vestibular, e a matrícula é condicionada à apresentação daquele, bem como de outros
documentos civis, como carteira de identidade e CPF, (UFRR/Ofício nº 639/2015-GR).
Primeiro a Funai e, desde 2013, exclusivamente o MEC, por meio das
universidades, tem destinado auxílios financeiros para dar suporte aos indígenas que precisam
se deslocar de suas comunidades e se manter na cidade por ocasião do período de estudo.
Segundo a UFRR, em 2015, o total de indígenas que recebiam o chamado Bolsa Permanência
era de 640 estudantes. A habilitação ao programa também pressupõe a apresentação do RANI,
documentos civis e ainda comprovante de residência em comunidade indígena.
96
Segundo a UFRR (Ofício nº 639/2015-GR/UFRR), a instituição, desde 2003, vem
oferecendo vagas exclusivas para indígenas por meio dos cursos de Licenciatura Intercultural,
Gestão Territorial Indígena e Gestão em Saúde Indígena, bem como em cursos de graduação
como medicina, direito, engenharias e outros. Entre 2003 e 2015 ingressaram como indígenas
na instituição 1.194 estudantes; destes, 729 estavam regularmente matriculados em 2015 e 219
já haviam graduado.
Apesar do crescimento da oferta e dos investimentos públicos, a qualidade do
ensino e a precariedade da infraestrutura dos serviços educacionais, em especial os existentes
nas próprias Terras Indígenas têm sido motivo de constantes reclamações e protestos da
população indígena em Roraima, indicando que não há eficiência na gestão dos recursos
públicos e na própria implementação da política pública (OPIRR, 2015).
97
relacionadas à sua própria saúde e naquelas relacionadas aos grupos sociais a que pertencem;
5) promover a utilização da metodologia epidemiológica para o monitoramento do quadro
sanitário da população indígena e subsídio para orientação das ações; 6) organizar a oferta de
serviço por meio da implantação de ações programáticas segundo as necessidades de saúde da
população e perfil epidemiológico das áreas distritais; 7) adotar o “ciclo da assistência
farmacêutica” como modelo organizacional, conforme diretrizes da Política Nacional de
Medicamentos, da Política Nacional de Assistência Farmacêutica. (PELLEGRINI;
MENEGOLLI, et al., 2009, p. 10-11).
Em todo o Brasil, além dos 34 Dseis, a Sesai dispõe de 354 Polos-Base, que são
unidades que funcionam como apoio administrativo aos Dseis e às Equipes Multidisciplinares
em Saúde (EMSI). Nestes estão localizados 751 postos de saúde em Comunidades Indígenas
que se destinam ao atendimento aos indígenas nas próprias comunidades; e 68 CASAIs (Casa
de Saúde Indígena), que são estabelecimentos de saúde para onde são enviados os casos em que
o indígena precisa de tratamento complementar da atenção básica e de média e alta
complexidade no SUS.46
Em Roraima, atualmente, há dois Dseis, conhecidos como Dsei-Leste de Roraima
e Dsei-Yanomami e uma Casai. O primeiro é responsável pela atenção primária em 311
comunidades localizadas em terras situadas à leste de Roraima, enquanto o Distrito Yanomami
é responsável por atender a aldeias e populações indígenas apenas da Terra Indígena
Yanomami, tanto as aldeias localizadas no estado de Roraima quanto as localizadas no estado
do Amazonas. Neste trabalho, interessam os dados referentes ao Dsei-Leste, uma vez que é este
que atende as comunidades e etnias ao longo da fronteira com a Guyana.
Por meio de entrevistas com servidores do Dsei-Leste e da Casai, foi possível
levantar informações sobre a atual conjuntura da prestação de serviços aos indígenas nas
comunidades situadas à leste de Roraima. Foram realizadas quatro entrevistas no mês de
outubro de 2015, com servidores das áreas de assistência social, saneamento ambiental e
infraestrutura e coordenação de equipes de saúde. As entrevistas tiveram como objetivo
visualizar a atual estrutura de atendimento em saúde prestada aos indígenas nas próprias
comunidades, e a demanda por atendimento de indígenas oriundos da Guyana, e como o Dsei
e a Casai atuavam diante dessa demanda. Nos quadros abaixo, foram sintetizadas as principais
informações obtidas durante as entrevistas
46
Disponível em: <www.saude.gov.br/sesai>. Acesso em: 10 jan. 2016
98
Quadro 9 – Quadro da estrutura de Atendimento da Saúde Indígena em 2015
Infraestrutura Descrição sinóptica
Há profissionais na sede do DSEI que fazem atendimento móvel: 4 dentistas, 1 médico
de sede, 2 farmacêuticos, 4 assistentes sociais, 3 psicólogos, 4 nutricionistas, 11 técnicos
em laboratório, 10 agentes de endemias. Dão suporte às equipes em comunidades, são
responsáveis pelos acompanhamentos dos programas de saúde, capacitações das equipes
e pelas ações de educação junto às comunidades.
PÓLOS BASES - 34 polos básicos, apenas 9 polos têm estrutura em alvenaria (Pedra
Branca, Araçá, Morro, Pium, Malacacheta, Manoá, Jatapuzinho).
POSTOS DE SAÚDE - Há 288 pequenos postos – a maioria com estrutura de taipa e
madeira - destes apenas 63 são de alvenaria.
Saneamento Abastecimento de água - São 269 sistemas de abastecimento de água, dos quais cerca de
ambiental e 105 tem captação de água em fonte, com rede adutora e distribuição para os domicílios.
abastecimento de 170 poços artesianos – captam e distribuem para os domicílios e há ainda sistemas
água mistos.
47
O Cartão Nacional de Saúde – Cartão SUS – regulamentado pela Portaria nº 940/2011, é um instrumento que
possibilita a vinculação dos procedimentos executados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) ao usuário,
ao profissional que os realizou e também à unidade de saúde onde foram realizados. Para tanto, é necessária a
construção de cadastros de usuários, de profissionais de saúde e de unidades de saúde. A partir desses cadastros,
os usuários do SUS e os profissionais de saúde recebem um número nacional de identificação, que permite
identificar em todo o País o usuário que necessita agendar consultas especializadas, exames e internações. É uma
ferramenta de controle de fraudes e gastos, ao passo que rastreia os passos do usuário na rede de serviços,
combatendo todo e qualquer tipo de fraude em pagamento de internações, por exemplo. (Ministério da Saúde,
2012).
99
Há profissionais na sede do DSEI que fazem atendimento móvel e monitoramento da
qualidade da água, do solo, controle de zoonoses, acompanhamento de obras de
edificação de saneamento e abastecimento de água. São 2 engenheiros civis, 1
engenheiro elétrico, 1 arquiteto, 1 geólogo, 1 químico, 1 biólogo, 6 técnicos em
saneamento e 10 supervisores.
Principais doenças e
agravos que
acometem os
Respiratórias, diarreicas, violências, acidente ofídico, acidente automobilístico, diabete,
indígenas nas
cardiopatias, câncer de colo de útero e leucemia.
comunidades da
área Leste de
Roraima
Fonte: Entrevistas realizadas pela autora em outubro de 2015 com servidores do Dsei/LESTE e CASAI-RR
100
Quadro 10 - Informações sobre atendimentos à indígenas oriundos da Guyana
Atendimentos a Números de
Dificuldades no atendimento à
Unidade indígenas oriundos da atendimentos
indígenas oriundos da Guyana
Guyana registrados
Não registram ou
quantificam os
É um problema quando tem que
atendimentos a
Atendem indígenas de referenciar para outras unidades de saúde
indígenas de outras
Polos e outras nacionalidades nas (hospitais, maternidades) do SUS, fora da
nacionalidades e
Postos de próprias comunidades, atenção básica, por causa da falta de
quando encerram o
saúde independente da documentos. Ocorrem óbitos de indígenas
tratamento na cidade
indígena apresentação de de outras nacionalidades. As polícias
devolvem para a
documentos civis. ficam “empurrando o problema”, têm
comunidade brasileira
resistência para registrar a ocorrência.
de onde veio
removido.
Atendem pacientes da
Guyana, que em geral, Não se consegue marcar consultas para
chegam à CASAI indígenas guyanenses na rede de saúde por
removidos como se falta do cartão do SUS, que só é feito nas
fossem moradores de unidades de saúde do estado em situações Entre 2000 e 2015 a
comunidades da área leste, de emergência ou se a pessoa apresentar unidade registrou o
ou seja, de comunidades RG e CPF. Caso tenha apenas o atendimento de
CASAI fronteiriças dos documento nacional de seu país de origem 1.301* indígenas de
municípios de Uiramutã e não é feito o Cartão do SUS, para diferentes idades,
Bonfim, principalmente, providenciá-lo as unidades de saúde etnias e comunidades
que são localidades de pedem a apresentação de documentos indígenas da Guyana.
remoção aérea. Atendem brasileiros, mesmo para indígena que
independente da possuem o documento nacional de seu país
apresentação de de nascimento.
documentos civis.
Registram o número
de atendimento geral
à estrangeiros, não
Atendem casos de urgência e emergência especificam se são
independente da apresentação de indígenas.
Unidades de Hospital Materno-Infantil documentos civis. Já procedimentos como Entre 2014 e o 1º
Referência Hospital Infantil exames, cirurgias, consultas com Semestre de 2015,
do SUS em Hospital Geral e Coronel especialistas e Tratamento Fora Domicílio foram
Boa Vista - Mota só são feitos mediante apresentação do registrados 103**
Cartão SUS e de documentos de atendimentos à
identificação civil. guyanense em
unidades hospitalares
de Boa Vista.
Fonte: Fonte: Entrevistas realizadas pela autora em outubro de 2015 com servidores do Dsei/LESTE e CASAI
*Dados registrados no Serviço de Atendimento Médico – SAME/CASAI.
**Dado disponível em: <http://folhabv.com.br/noticia/Estrangeiros-buscam-atendimento-em-RR/10174#.Vg
PlUadC_8I.email>.
101
Os quadros demonstram uma ampliação do atendimento de saúde nas comunidades,
principalmente no que concerne aos serviços prestados pelas equipes multidisciplinares.
Contudo, a estrutura física das unidades de saúde e de saneamento básico é ainda precária.
Demonstram, além disso, que a atenção primária de saúde à indígenas em trânsito na fronteira
Brasil-Guiana ocorre sem entraves, sobretudo nos atendimentos nas próprias comunidades
fronteiriças ou quando internados na Casai. Situação que não é observada pelos servidores
quando é necessário referenciar o paciente para outras unidades de saúde do SUS, onde os
indígenas esbarram em exigências quanto à documentação nacional, em especial ao critério de
apresentação do Cartão SUS, emitido em unidades hospitalares apenas por meio da
apresentação de documentos nacionais brasileiros, como Certidão de Nascimento, RG e CPF.
102
roça, extrativismo e pesca, por exemplo, estão enquadrados nesta categoria, não sendo exigido
deles contribuição ao sistema previdenciário brasileiro.
Contudo, a Instrução Normativa do INSS nº 77/2015, que disciplina o processo de
reconhecimento de direitos e concessão de benefícios aos segurados especiais indígenas,
vincula o reconhecimento dessa categoria a um duplo atestado que deve ser emitido pela Funai:
um de que o indivíduo é índio e outro de que exerce atividade rural. Diferentemente dos demais
segurados especiais (agricultores familiares e pescadores artesanais) que têm suas próprias
entidades representativas. Os segurados especiais indígenas, embora tenham suas organizações
e associações, são representados pela Funai, ou seja, cadastrados no INSS e certificados
enquanto trabalhadores rurais pelo órgão indigenista brasileiro.
O INSS não desagrega os quantitativos de benefícios concedidos aos segurados
especiais, ou seja, classifica todos os benefícios como rurais, deste modo não há como saber
precisamente quantos indígenas segurados especiais recebem benefícios previdenciários em
Roraima. De acordo com o INSS, neste estado, em 2014, havia um total de 18.547 benefícios
rurais emitidos, isto é, pagos pelo Instituto (BRASIL, 2016).48
Além de segurados especiais, os indígenas, assim como todos cidadãos no Brasil
podem ter acesso à política previdenciária por meio das demais categorias de segurados da
previdência, ou seja, na condição de empregado, trabalhador avulso, contribuinte individual ou
segurado facultativo que são os casos das donas de casa e estudantes. E, caso não se enquadre
na condição de segurado especial ou nas demais categorias de contribuinte e seja idoso com 65
anos ou mais, ou ainda portador de deficiência permanente, independentemente da idade,
poderá receber um Benefício de Prestação Continuada-BPC, previsto pela Lei nº 8.742/1993,
que é um benefício assistencial pago pelo INSS.
O valor dos benefícios previdenciários destinados aos segurados especiais é fixado
em um salário mínimo. Os tipos, principais requisitos e documentos para habilitação do
benefício aos segurados especiais indígenas, estão resumidos no quadro abaixo.
48
Disponível em: <www.mps.gov.br/dados-abertos>. Acesso em: 11 jan. 2016.
103
Quadro 11 - Tipos de benefício para segurados especiais indígenas
Tipo de
Benefício ao Documentos que habilitam a
Requisitos Duração
Segurado concessão
Especial – SE
No mínimo 180 meses ou 15
anos de trabalho rural e 60
Documento de identificação; CPF;
anos (homem) ou 55 anos
Aposentadoria Certidão fornecida pela Funai,
(mulher). O trabalhador deve Até o falecimento
por idade certificando a condição de trabalhador
estar exercendo atividade nesta
rural.
condição no momento da
solicitação do benefício.
Documento de identificação; CPF;
documentos médicos que comprovem a
Comprovar doença que torne o causa do problema de saúde, o
Aposentadoria
cidadão permanentemente tratamento médico indicado e o período Até o falecimento
por invalidez
incapaz de trabalhar. sugerido de afastamento do trabalho;
Certidão da Funai que comprove a
condição de trabalhador rural.
Documento de identificação; CPF;
Certidão de nascimento (vivo ou morto)
Salário- Temporário = 120
10 meses de trabalho rural. do dependente; Certidão fornecida pela
maternidade dias
Funai, certificando a condição de
trabalhador rural.
Documento de identificação com foto e
o número do CPF. No dia da perícia
médica também deverão ser
Quando em decorrência de
apresentados documentos médicos que Temporário =
Auxílio- acidente desenvolve sequela
indiquem as sequelas ou limitações de enquanto durar a
acidente permanente que reduza sua
capacidade laborativa que justifiquem o incapacidade
capacidade laborativa.
pedido e Certidão fornecida pela Funai,
certificando a condição de trabalhador
rural.
Documento de identificação válido e
oficial com foto; CPF; documentos
médicos que comprovem a causa do
Comprovar doença que torne o Temporário =
Auxílio- problema de saúde, o tratamento médico
cidadão temporariamente enquanto durar a
doença indicado e o período sugerido de
incapaz de trabalhar. incapacidade
afastamento do trabalho; certidão
fornecida pela Funai, certificando a
condição de trabalhador rural.
Benefício ao
Documentos que habilitam a
dependente Requisitos Duração
concessão
do SE
Documento de identificação com foto e
Ao Cônjuge – é
Que o falecido possuísse o número do CPF. Para este tipo de
vitalício; filho ou
qualidade de segurado do INSS benefício, é obrigatório a apresentação
menor sob guarda -
Pensão por na data do óbito; ser da certidão de óbito e o documento de
temporário até 21
morte dependente na condição de identificação do falecido; documentos
anos; salvo em caso
cônjuge, filhos ou menor sob dos dependentes; certidão fornecida
de invalidez ou
guarda até 21 anos. pela Funai, certificando a condição do/a
deficiência.
falecido/a como trabalhador rural.
104
Possuir qualidade de segurado
na data da prisão; estar recluso
Declaração expedida pela autoridade
em regime fechado ou O auxílio-reclusão
carcerária, informando a data da prisão
semiaberto (desde que a tem duração
e o regime carcerário do segurado
execução da pena seja em variável conforme a
recluso; documento de identificação do
colônia agrícola, industrial ou idade e o tipo de
requerente. O documento deve ser
similar); para cônjuge ou beneficiário. Além
válido, oficial, legível e com foto.
companheira: comprovar disso, caso o
Auxílio- Documento de identificação do
casamento ou união estável na segurado seja posto
reclusão segurado recluso. O documento deve ser
data em que o segurado foi em liberdade, fuja
válido, oficial, legível e com foto;
preso; para filho, pessoa a ele da prisão ou passe a
Número do CPF do requerente.
equiparada ou irmão (desde cumprir pena em
Documentos dos dependentes; certidão
que comprove a dependência), regime aberto, o
fornecida pela Funai, certificando a
de ambos os sexos: possuir benefício é
condição do/a falecido/a como
menos de 21 anos de idade, encerrado.
trabalhador rural.
salvo se for inválido ou com
deficiência.
Fonte: Quadro elaborado pela autora a parir de dados do Ministério da Previdência Social/Instituto Nacional do
Seguro Social. Disponível em: <www.mps.gov.br>.
Assim como as demais políticas sociais, a assistência social também só foi garantida
a todos os cidadãos, inclusive aos indígenas, com a CF/88, instituída pela Lei 8.742/93. A lei
dispõe que é dever do Estado, por meio de seus entes federados, a prestação da política de
assistência social, que tem como objetivos, conforme o Art 3º: a proteção à família, à
maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; ao amparo à criança e ao adolescente; a
promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação de pessoas
portadoras de deficiência e a promoção de sua integridade à vida comunitária; e a garantia de
um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não
possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
Atualmente, os programas e ações vinculados à política de assistência social estão
congregadas no Cadastro Único, cujo principal critério de inclusão é a faixa de renda, sendo
prioritária ao público em situação de pobreza e extrema pobreza. Por meio do CadÚnico é
possível ter acesso a vários programas sociais, que por sua vez têm regras próprias (BRASIL,
2015).
Nos gráficos abaixo, apresentam-se, conforme dados do CadÚnico, em 2015, o
número de indígenas cadastrados no programa Bolsa família no Brasil e em Roraima, bem como
dos beneficiários do programa no Brasil e em Roraima.
105
Gráfico 1 - Indígenas no Programa Bolsa Família – Brasil – 2015
551.021
457.469
500.000
Fonte: Gráfico elaborado pela autora a partir de dados do DATASOCIS/MDS. Disponível em:
<http://mdspravoce.mds.gov.br/dados-e-estatisticas/data-social/>.
50.000 38.730
33.843
5.0614.4284.116 7.9366.3765.727 7.3827.0956.140
0
Roraima Bonfim Normandia
Uiramutã
Fonte: Gráfico elaborado pela autora a partir de dados populacionais do IBGE e Dsei-LESTE e do
DATASOCIS/MDS. Disponível em: <http://mdspravoce.mds.gov.br/dados-e-estatisticas/data-
social/>.
106
Percebe-se, cruzando esses dados, que a grande maioria dos indígenas é
beneficiária do programa de transferência de renda, ou seja, estão monetarizados por meio do
PBF, que é uma transferência de recursos públicos ao cidadão em situação de pobreza e extrema
pobreza, evidenciando, portanto, que a população indígena no Brasil está majoritariamente
classificada neste perfil. Abaixo segue o quadro que resume os programas e ações da política
de assistência social.
107
semiárido brasileiro.
108
Ministério da Educação, da qual o MDS é
parceiro desde 2013.
Programa que incentiva a ampliação do
Crianças, os adolescentes e os jovens
tempo na escola (com, no mínimo, 7 horas
matriculados no ensino fundamental em
diárias) e a educação integral, incluindo na
escolas das redes públicas de ensino
formação dos estudantes, atividades como
Programa Mais estaduais, municipais e do Distrito Federal. A
música, esporte, cultura, artes, mídia,
Educação – PME parceria do MDS com o Ministério da
ciências aplicadas, direitos humanos, entre
Educação prioriza a oferta da educação
outras, além das disciplinas básicas e do
integral nas escolas que tenham a maioria de
apoio pedagógico. O Programa Bolsa
alunos beneficiários do Bolsa Família.
Família é parceiro do PME desde 2011.
Ações para garantir que o cidadão e a
família não fiquem desamparados se
passarem por situações inesperadas, que
comprometem sua capacidade de acessar
Famílias que estejam enfrentando alguma
direitos. Essas situações podem estar
situação que prejudique sua capacidade de
Serviços relacionadas à idade das pessoas, ou quando
acessar direitos sociais. A Assistência Social
socioassistenciais algum membro da família depende de
também apoia o fortalecimento e a
cuidados especiais, se envolve com drogas,
mobilização da comunidade.
perde o emprego, etc. Os serviços da
assistência social buscam fortalecer as
famílias, apoiando-as para que superem as
dificuldades.
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir de dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome. Disponível em: <www.mds.gov.br>.
Não se pode negar que o conjunto de políticas indigenistas descritas nesta seção
tem sido formulado e implementado à luz dos direitos e garantias fundamentais previstos na
CF/88, principalmente nos Art. 5º e 6º. No entanto, tais políticas ainda são uma adaptação
daquelas formuladas para a sociedade nacional, e não propriamente uma política diferenciada,
que observe os contextos, usos e costumes próprios, dos diferentes grupos étnicos do país,
também garantidos nos Artigos 210, 231 e 232 da CF/88. Ressalva-se aqui as que tratam da
demarcação de territórios, educação e saúde, que têm avançado em desenhos próprios, em
grande medida pela atuação dos próprios indígenas que reivindicam maior participação no
conjunto de formulação, execução e avaliação dessas políticas (PEREIRA, 2002, p. 41).
Observou-se, neste capítulo, que o conjunto das políticas indigenistas se voltam aos
indígenas na condição de cidadão brasileiro, ou seja, reconhecidos formalmente pelo Estado
por meio de documentos de identificação civil e administrativa, a exemplo da certidão de
nascimento civil, CPF e RANI, e que a própria ação de emissão de documentos nacionais aos
indígenas é parte das políticas indigenistas (MACHADO, 2012, p. 108). Os documentos no
Brasil, portanto, “[...] representam uma condição necessária para a cidadania. Essas populações,
por sua história sabem que a cidadania não pode ser resumida aos documentos, mas também
sabem, por experiência, que sem documentos não há cidadania possível” (ALVAREZ, 2009, p.
184).
109
3 POLÍTICAS INDIGENISTAS NA GUYANA
Este capítulo tratará das políticas indigenistas na Guyana sob o mesmo enfoque
e recorte das políticas indigenistas brasileiras descritas no capítulo anterior. Nesse sentido, serão
apresentados dados gerais sobre o contexto social, econômico e político guyanense, de modo a
melhor compreendermos as bases das políticas indigenistas daquele país, ou seja, abordar
aspectos gerais, como princípios e diretrizes, objetivos a que se destinam e a base normativa na
qual as políticas se assentam, bem como a definição do público-alvo das políticas, com foco
nas políticas voltadas à demarcação de terras, autossustento, educação e seguridade social
(saúde, previdência e assistência social). Ressalta-se que é uma abordagem descritiva e
panorâmica sobre essas políticas e os resultados mais atuais, disponibilizados pelo país,
esclarecendo que a exposição de dados da sua efetivação concentrar-se-ão ao nível local da
fronteira, isto é, nas Regiões 7, 8 e 9, que fazem fronteira com o estado federado de Roraima.
49
Disponível em: <http://www.otca.info/portal/admin/upload/países/pdf/Guyana_pt.pdf>. Acesso em: 15.10.2015
98
A organização política do país congrega características do modelo parlamentar
britânico, conhecido como Sistema de Westminster, com uma constituição escrita e o sistema
presidencialista americano, sem uma separação estrita dos poderes. O presidente tem
considerável poder executivo, mas não é membro da Assembleia Nacional. Ele é escolhido em
eleições gerais que coincidem com eleições nacionais e regionais, e pode ter no máximo dois
mandatos de cinco anos. O parlamento é unicameral, com 65 membros eleitos mediante uma
combinação de representação proporcional e eleição regional direta, com base no sistema de
listas partidárias. (RAM, 2005, p. 97).
A condução política da Nação desde o processo de independência esteve
polarizada entre dois partidos, o People’s Progessive Party/Civic e o Peoples’s National
Congress, já apresentados no primeiro capítulo, e que representam respectivamente os grupos
étnicos majoritários no país, os indo-guyanenses e os afro-guyanenses. A atual gestão, que
iniciou seu mandato em maio de 2015, pertence ao PNC, após vinte três anos de gestões de
presidentes do PPP/Civic (1992-2014).
Nos últimos cinquenta anos, o país passou por fortes recessões econômicas, que
refletiram na qualidade de vida, infraestrutura e oferta dos serviços públicos, provocando
contínuos movimentos emigratórios tanto de contingentes populacionais com formação
profissional para países como Estados Unidos e Canadá quanto da população do interior do
país, sobretudo dos jovens sem qualificação profissional, para países vizinhos, como o Brasil
(FORTE, 1993, p. 11; CORBIN, 2012, p. 20).
A partir da década de 1990, com altos índices de pobreza, a economia do país
foi aberta ao mercado internacional, à liberação comercial, à contratação de empréstimos por
meio do FMI e Banco Mundial, bem como à privatização de empresas nacionais e incentivo à
instalação de empresas estrangeiras, principalmente para a exploração mineral. Tais medidas
contribuíram com a melhoria do desempenho econômico. Contudo, a incipiente e insuficiente
infraestrutura do país é considerada obstáculo ao desenvolvimento e a redução da pobreza
(NATIONAL DEVELOPMANT STRATEGY, 2000; GPRSP, 2011).
O país divide-se em dez regiões administrativas, dentre as quais seis estão
localizadas ao longo da região costeira e concentram, historicamente, a maior parte da
população. Em consequência, tem a maior densidade demográfica, de 9,6 (hab/km²), e melhor
infraestrutura de serviços e produção econômica, enquanto as outras quatro localizam-se no
interior do território nacional e possuem baixa densidade demográfica (0,6 hab/km²),
99
isolamento geográfico e incipiente infraestrutura de serviços básicos, como energia elétrica,
abastecimento de água e saneamento básico (BUREAU OF STATISTICS, 2014).
O Censo demográfico realizado em 2012, cujos dados ainda não foram
totalmente divulgados, demonstram o declínio populacional, entre os anos de 1980 e 2012, da
população da região costeira e um crescimento da população das regiões do interior do país.
Tal variação é reflexo da baixa fecundidade e emigração nas regiões costeiras e da alta
fecundidade da população do interior, assim como da imigração interna e externa para as áreas
de exploração mineral, distribuídas pelas regiões do interior do país (BUREAU OF
STATISTICS, 2014; GUYANA NATIONAL LAND USE PLAN, 2013), conforme quadro
abaixo.
100
Figura 6 - Mapa da distribuição populacional por Região da Guyana em 2012
De acordo com dados do PNUD (2013), em 2013, o IDH da Guiana era 0,638,
enquanto na década de 1980 era de 0,516, indicando que houve melhora nos indicadores de
desenvolvimento humano, dentre eles: a taxa de alfabetização, que é de 91,8%; aumento da
expectativa de vida da população, que é de 69,8 anos; queda da mortalidade infantil, que foi de
34,9, a cada 1.000 nascidos vivos em 1995 para 14 em 2008; e mortalidade materna, que caiu
de 320 mortes a cada 100.000 nascidos vivos para 86 mortes em 2008 (PNUD, 2013). Nas
últimas décadas, o Índice de Gini também apresentou redução, indicando que a desigualdade
no país que era de 0,44 em 1992, caindo para 0,36, em 2006 (GUYANA POVERTY
REDUCTION STRATEGY PAPER, 2011).
Já a pobreza e a extrema pobreza, segundo o documento Guyana Poverty
Reduction Strategy Paper 2011-2015 (2011), são medidas conforme a capacidade de consumo
de produtos alimentares e não alimentares. Este consumo, por sua vez, é mensurado pelo custo
médio da cesta básica mensal necessária para alimentar um homem adulto, o que, em termos
quantitativos, significa que pobre é aquele que vive com menos de U$ 1,75, ou G$ 10.494,00
101
dólares guyanenses por mês, que em real, atualmente,50 equivale a R$ 198,00 por mês. Na linha
da extrema pobreza estariam os que vivem com menos de U$ 1,25 ao dia, ou G$ 7.550,00 ao
mês, o que equivale a R$ 142,00.
Ainda segundo o documento citado acima, houve significativas reduções nas
taxas de pobreza e extrema pobreza no país: em 1992, 28% da população era classificada na
linha da extrema pobreza; já em 2006, a taxa era de 19%. A pobreza moderada, que em 1992
era de 42%, em 2006 atingia 36% da população nacional.
Contudo, as regiões costeiras rurais e do interior do país continuavam com altos
índices de pobreza, sobretudo as que concentram maior população de ameríndios, ou seja, as
Regiões 1, 7, 8 e 9, que tinham, em 2006, respectivamente, 80,06%, 61,42%, 74,38% e 94,28%,
de suas populações consideradas pobres. De acordo com o documento, a cada quatro pessoas,
três são consideradas pobres nessas regiões. O documento reconhece, no entanto, que os
indicadores usados para medir pobreza em relação aos ameríndios são equivocados,
considerando o seu estilo de vida, posto que, em grande parte, são produtores de alimento para
o próprio consumo e não estabelecem relações monetizadas (GUYANA POVERTY
REDUCTION STRATEGY PAPER, 2011, p. 8-10).
Diferentes documentos e relatórios já foram produzidos na Guyana por meio de
iniciativas oficiais e ou da sociedade civil em conjunto com organismos internacionais, em
especial o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, acerca das causas da pobreza
que ainda assolam a maioria das regiões do país e dos caminhos para reduzi-la ou erradicá-la,
a exemplo do documento citado acima e do National Development Statregy (NDS, 2000).
Esses documentos, cada qual sobre o seu tempo, ressaltam as riquezas naturais que
o país dispõe, as diferenças e desigualdades entre a costa e o interior, os efeitos da condução
política nas décadas de 1970 e 1980 sobre a economia e sobre o declínio da qualidade dos
serviços, as deficiências estruturais, como a reduzida produção energética, a dependência de
combustíveis fósseis, a parca industrialização, a precariedade das interligações regionais e a
falta de recursos materiais e humanos especializados e próprios para a edificação de estruturas
consideradas necessárias para a integração das regiões do país, bem como para o alcance da
autonomia energética, do desenvolvimento da indústria e, em consequência, para o crescimento
econômico nacional.
50
A taxa de câmbio entre a moeda brasileira e guyanense correspondia em dezembro de 2015 a R$ 1,00 para G$
53,00. Disponível em: <http://brl.pt.fxexchangerate.com/gyd-exchange-rates-history.html>. Acesso em:
15.01.2016
102
Segundo o Banco Mundial (2015), o PIB da Guyana, em 2014, era de U$
3.096.747.287 bilhões de dólares. É baseado no setor primário e consiste na produção de arroz,
açúcar, madeira e minérios como a bauxita, que são os principais itens de exportação.
Em 2009, o país lança oficialmente como política de desenvolvimento
econômico a Low Carbon Development Strategy (LCDS), ou Estratégia de Desenvolvimento
de Baixa Emissão de Carbono, em português, vendendo créditos de carbono a países e empresas
cujo desenvolvimento econômico consiste na emissão de gases poluentes que podem contribuir
para as mudanças climáticas. A estratégia, de acordo com o governo, volta-se à proteção
ambiental do próprio país, haja vista que sua região costeira é localizada abaixo do nível do
mar, portanto susceptível aos efeitos das mudanças climáticas, como inundações e maremotos,
mas também é uma forma de gerar receitas ao país, aproveitando-se de sua realidade florestal
que ainda cobre cerca de 80% do território nacional.51
Além do setor primário e dos investimentos em infraestrutura e a geração de
receitas por meio do LCDS, outra importante fonte de receita do país é a remessa de dinheiro
pelos emigrantes guyanenses aos seus familiares na Guyana (GUYANA POVERTY
REDUCTION STRATEGY PAPER, 2013).
A falta de meios próprios para viabilizar o crescimento econômico e o
desenvolvimento social fizeram com que a Guyana adotasse estratégias de desenvolvimento
antagônicas, uma vez que tem-se na mineração e na extração de madeira algumas das atividades
econômicas que mais geram receitas à Guyana, mas também as que mais impactam o meio
ambiente, sendo conflitivas em muitos aspectos com a política de LCDS, que prevê, como pré-
requisitos, um conjunto de medidas de redução do desmatamento e degradação ambiental para
a celebração de contratos de cooperação que pressupõem investimentos e repasses de recursos
à Guyana (GUYANA POVERTY REDUCTION STRATEGY PAPER, 2013).
Em 2013, a Comissão de Terras da Guyana, em parceria com a União Europeia,
publicou o documento Guyana National Land Use Plan (2013), que teve como objetivo
apresentar como as terras no país estavam distribuídas e sendo usadas, bem como indicar, por
meio de mapas, as características e potencialidades econômicas de cada região do país e as áreas
disponíveis para atividades econômicas diversas, principalmente propícias à mineração. O
documento indica, ainda, as áreas já em uso econômico pela agricultura e mineração, de
proteção ambiental e áreas indígenas. O documento quis deixar claro que a Guyana dispõe de
51
Disponível em: <www.lcds.gov.gy>.
103
recursos naturais abundantes e de terras férteis para uso agrícola, reservas minerais
diversificadas e uma grande extensão de florestas tropicais.
Considerando as estratégias de desenvolvimento econômico adotado pelo país,
que está dividido entre proteger e explorar esses recursos naturais, a Guyana Land Commission
entendeu ser necessário visualizar as áreas nas quais estão dispostos esses recursos a fim de
melhor planejar o uso, tendo em vista que se localizam em áreas sobrepostas, ou seja, tanto
propícias à mineração quanto à conservação ambiental. O documento da comissão tem como
fim último visualizar as áreas de conflito sobre a disposição dos recursos naturais tão essenciais
ao sustento econômico do país, explorados por meios antagônicos, bem como subsidiar o debate
nacional sobre como devem ser usadas as terras em prol do desenvolvimento econômico e social
do país (GNLUP, 2013).
Abaixo, um dos mapas apresentados no GNLUP (2013) onde são indicadas as
Áreas Indígenas, as Áreas Proteção Ambiental e as áreas com potencial para mineração e
proteção da biodiversidade e para uso florestal.
É possível observar, com o auxílio do mapa, que as áreas onde já há exploração
mineral, ou são propícias à atividade, estão sobrepostas ou próximas às áreas de proteção
ambiental, áreas indígenas e às áreas identificadas como de potencial para exploração por meio
de projetos de LCDS, indicando desafios à gestão e uso sustentável dos recursos naturais que
são fundamentais às pretensões de desenvolvimento econômico e social do país.
Figura 7 - Mapa das Áreas com potencial para mineração e proteção da biodiversidade na
Guyana
104
Fonte: Guyana National Land Use Plan, 2013.
105
Do período colonial aos dias atuais, a visão oficial sobre os ameríndios passou
por significativas mudanças. Como apresentado resumidamente no primeiro capítulo deste
trabalho, as relações dos colonizadores europeus com os ameríndios envolveram desde ligações
comerciais com alguns grupos ameríndios e a escravização de outros grupos até a prática de
aldeamento e assimilação dos índios, no caso do período colonial inglês (MENEZES, 1977, p.
27). Pautou-se, ainda, na visão de integração, pelos projetos de transformação dos ameríndios
em trabalhadores e colaboradores da Nação guyanense, situação prevalente nos discursos dos
presidentes do país desde a independência, em 1966 (GUYANA, 1970, 2003, 2013). Tais
posturas tiveram amparo em diferentes normativas, que versavam sobre o tratamento que
deveria ser dispensado aos ameríndios pelo governo e pela sociedade, bem como sobre o uso
das terras e dos recursos naturais delas pelos ameríndios e os poderes que as instituições do
Estado teriam para delimitar as terras e para usar os recursos naturais.
Dentre as principais legislações voltadas aos ameríndios na Guyana desde o
período colonial até o presente estão: o Aboriginal Indians Protections de 1902, o Ato
Ameríndio de 1951, a Constituição da República de 1980 e o Ato Ameríndio de 2006. Estas
duas últimas estão vigentes e orientam-se por uma perspectiva distinta das legislações
anteriores, uma vez que reconhecem a diversidade sociocultural dos povos que constituem a
Guyana de forma não discriminatória, ao passo que garantem direitos fundamentais à terra e ao
uso dos recursos. Ademais, em certa medida garante também direito a um sistema de
autogoverno baseado nos costumes e tradições. Ressalta-se, ainda, a atuação de organizações e
lideranças indígenas no redesenho das leis (FRANCO, 2012, p. 153-154).
A Constituição da Guyana de 1980, reformada entre os anos de 1995 e 2002, traz
em seu preâmbulo princípios como o reconhecimento da diversidade social e cultural no intuito
de fortalecer a união da Nação e eliminar toda e qualquer discriminação. Traz também a
valorização dos indígenas: “[…] the special place in our nation of the Indigenous People and
recognise their rights as citizens to land and security and to their promugations of policies in
their comunities” (GUYANA, 2012, p. 30).
A Constituição também garante a proteção de direitos e liberdades individuais e
coletivos dos povos indígenas, conforme o Art. 149 (G)52, além de instituir cinco comissões de
direitos, quais sejam: Direitos Humanos; Mulheres e Igualdade; Direitos da Criança; Povos
Indígenas; e Relações Étnicas.
52
“Indigenous peoples shall have the right to the protection, preservation and promulgation of their languages,
cultural heritage and way of life” (CONSTITUTION OF THE CO-OPERATIVE REPUBLIC OF GUYANA,
ART; 149G).
106
As atribuições da Comissão de Povos Indígenas estão descritas nos artigos 212
(S) e 212 (T), e preveem, em linhas gerais: a promoção de mecanismos para melhorar as
condições de vida dos povos indígenas de modo a responder às suas demandas e necessidades;
a promoção e proteção de direitos; a promoção de ações que aumentem a consciência sobre a
contribuição dos povos indígenas para o país, bem como dos problemas enfrentados por eles;
recomendações de políticas econômicas e educacionais condizentes com os interesses dos
povos indígenas; consulta e a cooperação com os povos indígenas, especialmente no que toca
à participação dos povos nas decisões nacionais e em outras decisões que afetem suas vidas. A
comissão deve ser composta por entidades indígenas aprovadas pela Assembleia Nacional, bem
como por lideranças indígenas, dentre as quais ao menos uma deve ser mulher, indicada pelo
Conselho Nacional de Tuchauas e aprovados pela maioria da Assembleia Nacional (GUYANA,
2012, p. 218-219).
A atual Constituição ambientou a reformulação do Amerindian Act, iniciada em
2002 e concluída em 2006. Segundo a Part I, Art. 2, (a) e (b) da lei de 2006, amerindian significa
qualquer cidadão da Guyana que pertença a qualquer povo nativo ou aborígene da Guyana; ou
um descendente de qualquer ameríndio53. A citada lei, conforme Franco,
A lei ainda define a categoria “resident” como sendo o ameríndio que nasce, vive
ou tem como lugar principal, do qual dependa seu sustento, a aldeia ou a comunidade; distingue
ainda o residente temporário, ou seja, aqueles que estão a trabalho nas aldeias ou comunidades,
seja na saúde, educação, obras; e ainda os indivíduos não ameríndios que sejam reconhecidos
pelos membros da comunidade como residentes.
As aldeias e comunidades indígenas na Guyana, desde o período colonial, possuem
uma estrutura política administrativa chamada de Village Council (Conselhos de Aldeia), que
funcionam como um governo local e também como uma intermediação entre os ameríndios e
as instituições do Estado. A constituição, o funcionamento, as atribuições e os poderes dos
53
“Amerindian means any citizen of Guyana who – a) belongs to any of the native or aboriginal peoples of Guyana;
or b) is a decedant of any person mentioned in paragraph a)” (AMERINDIAN ACT, AT. 2, PART. I).
107
conselhos de aldeia estão expressos na Part III do Ameríndian Act de 2006, assim como a
instituição e o funcionamento do Conselho Nacional dos Tuchauas, disposto na Part IV, e as
regras para realização de eleições dos conselheiros e dos tuxauas, na Part VII do Ato.
Cada aldeia ou comunidade deve constituir seu próprio conselho por meio de
eleições, e todos os atos devem ser feitos de forma coletiva. O conselho é composto pelo tuxaua
e conselheiros, cujo número deve ser calculado conforme a população da aldeia/comunidade ou
distrito, e podem variar entre 6 a 20 conselheiros. O tuxaua pode ser escolhido de modo indireto
ou direto, dependendo de como é feito em cada comunidade. Por exemplo, há comunidades que
elegem o tuxaua em separado dos membros do conselho e há comunidades que elegem os
conselheiros e esses que escolhem o tuxaua, tesoureiro e secretário.
O tuxaua é o presidente do conselho e também é membro do Conselho Nacional de
tuxauas. É responsável pela boa governança, prestação de contas e transparência no conselho
da aldeia, tem a imunidade e autoridade equivalente a um policial, pode exercer a função ex
officio de juiz de paz e deve atuar em todo tempo para promover a paz, prevenir crimes, punir
e deter membros que cometam pequenos delitos ou descumpram as normas comunitárias. Deve
representar os interesses da aldeia, presidir as reuniões do conselho, participar em benefício da
aldeia no Conselho Nacional de Tuxauas, representar a aldeia em todos os atos perante o
Ministério e outras instituições do governo.
A lei de 2006 dispõe, ainda, que o tuxaua será pago pelo Ministério e a aldeia pode
autorizar pagamentos adicionais ao tuxaua com recursos próprios do fundo (conta) da aldeia. A
aldeia também pode autorizar o pagamento dos conselheiros com recursos oriundos do seu
fundo. Nem o tuxaua nem os conselheiros podem aceitar dinheiro por fora de suas atribuições.
Os tuxaua e conselheiros podem ser demitidos caso estejam envolvidos em crimes de violência
e desonestidade.
Cada conselho deve ter sua própria conta bancária e, segundo o Ato, é atribuição
do conselho fazer o planejamento anual das atividades e projetos da aldeia. Cabe ao ministro
providenciar auditoria independente a cada três anos para auditar as contas do conselho.
Ainda estão previstos no Amerindian Act de 2006 que decisões de interesse e
impacto coletivo devem ser apreciadas em assembleias gerais e devem ocorrer a cada quatro
meses. As leis propostas pelo conselho têm que ter a aprovação de 2/3 dos membros da aldeia
e precisam ser aprovadas pelo ministro do MoAA e publicadas na Gazetta – Diário oficial.
Segundo o Art. 36, Part III do Amerindian Act de 2006, o ministro pode estabelecer
conselhos distritais, se houver demanda de pelo menos três conselhos de aldeia, considerando
108
a área geográfica. É garantido, no conselho distrital, que cada aldeia tenha um conselheiro e um
tuxaua, assim como o direito de manter seus conselhos de aldeias.
Já o Conselho Nacional de Tuxauas, também disciplinado na Part IV do Amerindian
Act de 2006, é composto por um tuxaua de cada região administrativa do país, que é eleito por
um comitê executivo nas regiões. Estes podem ter até 10 substitutos. As reuniões do conselho
devem ocorrer a cada dois anos, e o ministro do MoAA é membro ex officio do conselho, mas
não pode votar. O conselho é uma instância de diálogo com o Estado.
Como já mencionado, a atual lei ainda disciplina os processos para solicitação de
terras e de títulos, os trâmites para entrada e acesso às terras e o papel do Ministro de Assuntos
Ameríndios.
O Amerindian Act de 2006, em que pesem as críticas à sua atual forma, feita pelo
movimento indígena da Guyana (GRIFFITHE; LA ROSE, 2014) quanto às distinções que faz
entre aldeias e comunidades indígenas, quanto à exclusão da propriedade sobre os recursos do
subsolo e quanto a não garantia de veto sobre obras e atividades de exploração de minérios em
grande escala quando houver interesse público, trouxe definições e pressupostos que são
necessários à compreensão das políticas indigenistas.
Destaca-se ainda que, ao contrário do Brasil, a Guyana não dispõe de nenhum
documento oficial que ateste a identidade étnica de indivíduos ameríndios, embora já o tenha
feito durante o período colonial inglês, como apresentado no primeiro capítulo desta
dissertação.
No entanto, a lei de 2006, no art. 19, part III, orienta a prática, pelas estruturas
de governo local/conselhos de aldeia, de registrar/cadastrar os ameríndios que nascem, residem
e morrem nas aldeias e comunidades; contudo, tais registros/cadastros não geram certificados
como os previstos no Ameríndian Act de 1951. Os registros devem ser feitos em livros e
guardados nas sedes dos conselhos de aldeias, apesar de não estar explícita a finalidade desses
registros/cadastros. Ainda assim percebe-se que as disposições de como devem ser feitos e
guardados indicam que servem como instrumentos às demandas por territórios, à realização de
eleições e aos processos de consulta e decisões que envolvem membros da comunidade e, ainda,
como informação para a emissão de documentos nacionais (registro de nascimento civil, cartão
de identificação) pelas autoridades do governo guyanense.
Conforme dados do Ministério de Assuntos Ameríndios da Guyana – MoAA,
obtidos por meio de entrevista com o atual ministro, sr. Sidney Allicock, em 21 de outubro de
109
2015, o país tem um total de 204 aldeias e comunidades onde vivem cerca de 72 mil ameríndios
de nove etnias, distribuídas em todas as regiões do país, sobretudo nas Regiões 1, 7, 8 e 9.
O ministro, que é indígena Macuxi e estava há cinco meses no cargo à época da
entrevista, informou que o MoAA tem como papel reconhecer e demarcar as terras ameríndias,
fomentar e apoiar projetos de desenvolvimento, capacitações e dialogar com tuxauas e
conselhos de aldeias sobre a destinação e alocação de recursos para projetos. Informou-me que
a prioridade do ministério é desenvolver políticas para manter os jovens ameríndios no seu
próprio país, ou seja, na sua aldeia de origem, por meio, principalmente, do ecoturismo, e que
pretendem ainda promover, em parceria com Ministério da Educação do país, o acesso de
jovens ameríndios ao ensino superior e profissionalizante e incentivar e implantar redes de
comunicação e tecnologia nas comunidades e aldeias ameríndias.
O ministro ressaltou que há muitos problemas relacionados a ilegalidades nas
aldeias ou próximo a elas, como a mineração ilegal e o tráfico de drogas, e que os jovens, como
não têm oportunidades de trabalho remunerado nas próprias comunidades e aldeias, acabam se
envolvendo com essas atividades ilícitas ou migrando para o Brasil à procura de trabalho.
Informou ainda que não há como os indígenas dependerem apenas das roças, caça e pesca por
causa das mudanças climáticas e socioculturais. Afirmou que tem procurado trabalhar em
projetos que possibilitem o autossustento aliado à proteção florestal, bem como em planos que
tornem a exploração de recursos minerais e florestais localizados nas terras indígenas do país,
cuja exploração pode ser permitida aos ameríndios, mais eficiente do ponto de vista da
sustentabilidade e da rentabilidade para as próprias comunidades e aldeias ameríndias.
Reconhece que a infraestrutura nas comunidades e aldeias ainda é precária, que
a maioria conta com energia solar e que esta só consegue atender às escolas primárias e aos
postos de saúde localizados nas próprias aldeias e comunidades, e que muitas ficam isoladas,
principalmente no inverno. O ministro destacou ainda que o Estado guyanense reconhece e
protege os povos ameríndios, que estes são muito importantes, por exemplo, para o
desenvolvimento cultural do país, e que perante a lei são vistos como iguais aos demais povos
da Guyana.
Com base nas informações reunidas por meio das entrevistas com o ministro e
outros representantes do Estado guyanense, bem como em sítios oficiais de ministérios e em
leis e documentos oficiais do país, percebeu-se que as políticas indigenistas se orientam pelo
reconhecimento dos povos ameríndios como membros constituintes da Nação guyanense, e que,
110
enquanto tal, devem ser incluídos como beneficiários e colaboradores do progresso econômico
e social do país.
Considerando os constantes indicadores de pobreza das regiões em que a maior
parte da população é ameríndia, as políticas indigenistas no país têm-se pautado em ações cujo
objetivo é melhorar os índices sociais entre os ameríndios, de modo a atender ou cumprir com
compromissos firmados perante organismos internacionais ligados às Nações Unidas e a fundos
de investimentos internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cuja
política de fomento financeiro inclui como pré-requisito que o país priorize a redução da
pobreza e dos impactos ambientais, a exemplo dos Objetivos do Milênio54 propostos pela ONU
em 2000 aos países-membro e dos projetos de REED (UNDP, 2015; IDB, 2007).
Segundo informações disponíveis no sítio oficial do Ministério na internet, a
coordenação e implementação de grande parte das políticas indigenistas guyanenses está a
cargo do MoAA, que executa diretamente ou repassa os recursos oriundos de cooperações
internacionais, do próprio governo guyanense e do Fundo de Desenvolvimento Ameríndio55
para serem executados e administrados pelas administrações/prefeituras das Regiões, por
organizações indígenas, pelos próprios líderes e conselhos de comunidades e aldeias e, ainda,
pelos Ministérios da Educação e Saúde, que são responsáveis pela coordenação e execução das
políticas e dos serviços de educação e saúde para os ameríndios.
Ainda segundo o site oficial do MoAA (2015), o Ministério foi criado em 1992
com o objetivo de promover a qualidade de vida para todos os ameríndios por meio da
instalação de infraestrutura necessária para garantir a igualdade de oportunidades aos nativos
do país, com a prestação serviços de assistência técnica, tecnológica e financeira voltada à
demarcação e à titulação das terras ameríndias, à capacitação de lideranças para gestão
administrativa e financeira das terras, ao fomento à infraestrutura e ao acesso a todos os serviços
sociais básicos, além de garantir a defesa das tradições e patrimônios culturais, dos direitos e
do bem-estar ameríndio.
O MoAA informa, ainda, que dispõe de departamentos voltados à formulação,
execução e acompanhamento de programas e projetos focados principalmente no autossustento,
na instalação de infraestrutura de energia e abastecimento de água nas comunidades e aldeias
54
Acordo celebrado por países membros das Nações Unidas para reduzir a pobreza extrema no mundo no prazo
de 15 anos, por meio do compromisso em cumprir oito objetivos conhecidos como os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM), dentre os quais estão a redução da pobreza, a universalização do ensino
básico, a redução da mortalidade infantil, a melhoria da saúde materna, o combate ao HIV, malária e outras doenças
(PNUD, 2015).
55
Fundo administrado pelo MoAA que recebe financiamento público e privado para promoção de projetos de
desenvolvimento socioeconômico das comunidades e aldeias ameríndias da Guyana (MoAA, 2015).
111
ameríndias, assim como em ações de profissionalização de jovens e mulheres indígenas
voltadas à geração de renda e na capacitação dos conselhos de aldeia para governança e gestão
de projetos e recursos gerados por atividades econômicas desenvolvidas nas próprias
comunidades. Conta com departamentos voltados ao estímulo e aos serviços de assistência
social aos ameríndios em trânsito nas cidades da Guyana, sobretudo na capital Georgetown, por
ocasião de estudos, tratamento de saúde, para acesso a documentos nacionais, suporte para
acessar direitos trabalhistas e previdenciários e na investigação de denúncias de tráfico de
pessoas e suporte às pessoas em situação de violência.
Conforme o site, o MoAA é representado nas Regiões por Escritórios de
Desenvolvimento e Gestão Comunitária (Community Development Officers Management –
CDOs), cujo papel é monitorar todas as atividades e projetos desenvolvidos nas aldeias e
comunidades, prestar assistência técnica e capacitação aos conselhos de aldeia e facilitar as
visitas de funcionários do governo, além de fornecer informações logísticas para os
representantes autorizados de organizações governamentais, ONGs e organizações
comunitárias. São os funcionários do CDOs que geralmente representam o MoAA em
atividades da aldeia e podem ser incumbidos de tratar algumas questões dentro da sua jurisdição
e competência.
112
de equipamentos e instrumentos e, ainda, investimentos em edificações (centros de formação e
monitoramento ambiental) e infraestrutura (estradas e geração de energia limpa) (MoAA,
2015).
Nas duas subseções seguintes serão apresentadas a base da política de
reconhecimento dos territórios indígenas na Guyana e a relação das políticas de autossustento
com esses territórios.
114
que, na Guyana, a fixação de marcos geográficos ocorre apenas após a concessão dos títulos
(MOAA, 2015).
Com a adesão oficial do país à política de LCDS, a partir de 2009, a
regularização das terras indígenas voltou à cena das prioridades do governo da Guyana, uma
vez que essas áreas são estratégicas ao LCDS e aos projetos econômicos vinculados a estes,
considerando a relação de uso tradicional que as comunidades têm com seus territórios, que
favorece a conservação ambiental e o uso sustentável dos recursos.
Neste contexto, o PNUD firmou com o governo da Guyana cooperação técnica e
financeira no valor de U$ 10.755,99 dólares, voltados aos andamentos e conclusão de todo os
pedidos de reconhecimento, titulação e demarcação de terras na Guyana. O projeto se chama
Amerindian Title Land e foi firmado em 2013, com previsão de encerramento em 2016. O
projeto prevê ainda que os processos de regularização das terras ocorram obedecendo a
mecanismos de consulta prévia, livre e informada56 junto às aldeias e comunidades ameríndias
(PNUD, 2013).
Apesar da vigência do projeto já estar na reta final, não há ou não estão
disponíveis informações atuais sobre o cumprimento dos objetivos e metas voltados à resolução
de todas as pendências fundiárias relacionadas às Terras Ameríndias no país. Embora o ministro
do MoAA tenha citado na entrevista que há atualmente 204 aldeias e comunidades ameríndias
na Guyana, a pesquisa feita em sítios da internet e documentos oficiais, como GNLUP (2013),
só encontrou registros mais detalhados da situação das terras ameríndias no ano de 2012,
informados pelo próprio Ministério à Comissão de Terras da Guyana, ou seja, só havia
informações sobre um total de 140 assentamentos indígenas em diferentes fases do processo de
reconhecimento, titulação, demarcação e extensão, conforme quadro abaixo.
Titulação Demarcação
Vila com
Concessão de 98 62 25 11 73 6
Título
Pedidos de
12 3 9 3 9
Ampliação
56
Direito previsto nos Art. 6º 7º e 15 da Convenção 169 da OIT, da qual a Guyana não é signatária.
115
Assentamentos 14 9 4
sem Concessão de
Título
Mais 1 assentamento com título não emitido
Total 112
Outros
19 Estabelecidos antes de 2013 e serão elegíveis para receber título no futuro
Assentamentos
Comunidades
9 Comunidades com significativo número de população Ameríndia
Mistas
Fonte: Quadro traduzido pela autora a partir do quadro apresentado no Guyana National Land Use Plan (GNLUP),
2013, p. 85.
116
Na Guyana, conforme a Parte IV do Amerindian Act de 2006, as Terras
Ameríndias são inalienáveis e imprescritíveis; contudo, a aldeia, por meio de seu conselho,
pode fazer concessão de uso, alugar, arrendar até 10% da área total da aldeia por um tempo
máximo de 15 anos, praticando a concessão conforme o valor de mercado, ou acima deste, para
agricultura, turismo, mineração e outras atividades produtivas e sustentáveis, de modo que
resguarde o uso cultural da terra e sempre observe o melhor interesse da comunidade. As
atividades de exploração das áreas, segundo a lei de 2006, devem priorizar a contratação de
indígenas e a compra de produtos e alimentos vendidos pelos indígenas; contudo, ainda
consoante a lei, os ameríndios não são obrigados a trabalhar ou vender às empresas ou terceiros
que estejam arrendando a terra. A lei prevê também que cada pessoa estranha à comunidade
que esteja trabalhando nas áreas de concessão deve ser identificada e deve obedecer às regras
da mesma.
Conforme o Amerindian Act de 2006, o conselho da aldeia deve definir, em
conjunto com a comunidade e com a assistência das agências do governo, o valor do tributo a
ser cobrado pelo uso da terra e como este deverá ser aplicado, dividido em prol da comunidade,
e as agências de governo devem monitorar as atividades de exploração de recursos naturais em
Terras Ameríndias. Como a gestão das Terras Indígenas, principalmente as tituladas, fica a
cargo dos conselhos de aldeias, segundo a lei de 2006, estes não podem dispor das terras sem
observar os dispositivos previstos na lei ameríndia e demais leis nacionais e na orientação da
maioria dos membros da aldeia.
A Part III do Amerindian Act de 2006 dispõem de um conjunto de artigos que
disciplinam a governança dos conselhos da aldeia, a exemplo do poder para distribuir, conceder
as terras que correspondem à área indígena para uso e ocupação pelos membros da aldeia e
também de revogar a concessão caso a terra não esteja sendo usada, ou se estiver sendo usada
de modo não tradicional. Cabe ainda aos conselhos de aldeia arbitrar sobre os conflitos internos
em relação à distribuição, ocupação e uso da terra. No caso de não haver acordo, tais contendas
devem ser levadas à assembleia da comunidade, e, por fim, ao MoAA, se persistirem os
conflitos. É dever dos conselhos a apresentação de plano no qual seja descrito como estão
organizadas e distribuídas as áreas de ocupação e uso das terras da aldeia.
Apesar das disposições legais em torno da titulação e administração das Terras
Ameríndias, o movimento indígena na Guyana critica a atual lei ameríndia, considerando que
não está condizente com leis internacionais pelos seguintes motivos: não garante de fato a
participação dos ameríndios nos processos de reconhecimento, titulação e demarcação das
117
terras; as áreas reconhecidas pelo MoAA têm excluído as de interesse de mineradoras e
madeireiras de áreas reivindicadas pelos ameríndios; e, ainda, por considerarem injusto o poder
do Ministro de vetar o reconhecimento de terras e a consequente não concessão de títulos, assim
como o poder de interferir e rejeitar regras formuladas nos conselhos de aldeias (GRIFFITH;
LA ROSE, 2014, p. 22).
Abaixo, um mapa com a localização das Terras Ameríndias tituladas até o ano
de 2013, conforme dados do GNLUP (2013). Ele possibilita visualizar a distribuição e
localização das terras nas regiões do país, sobretudo as dispostas ao longo da fronteira da
Guyana com Roraima/Brasil.
118
3.3.2 Política de autossustento
A política indigenista guyanense para o autossustento das aldeias e comunidades
está alinhada a estratégias de desenvolvimento econômico adotadas pelo Estado que se
assentam tanto na prática de exploração quanto na proteção dos recursos naturais, como já
mencionado em seções anteriores.
Considerando o histórico dos indicadores de mortalidade, má nutrição e pobreza,
as ações do órgão indigenista guyanense, por meio de recursos próprios ou de cooperações
internacionais, voltam-se, conforme os discursos e dados oficiais, ao fomento à produção
alimentar e geração de renda a partir de uma perspectiva de proteção e sustentabilidade
ambiental.
A mineração, por sua vez, que é uma atividade que gera renda às aldeias e que é
prevista no Amerindian Act de 2006, também pode ser considerada como uma política voltada
ao autossustento, embora desencadeie inúmeros conflitos, considerando os impactos sociais e
ambientais decorrentes da atividade (CORBIN, 2012).
Em entrevista com o Prefeito da Região 9, Sr. Brian Allicock, em 26 de agosto
de 2015, este informou que é a prefeitura a responsável pela alocação de recursos destinados
pelo MoAA e outros ministérios para a implantação e manutenção da infraestrutura de serviços
básicos nas comunidades, bem como para o desenvolvimento de projetos, a exemplo dos
voltados à agricultura familiar (por meio do investimento em equipamentos e ferramentas
agrícolas, e em defensivos e insumos para aumento da produção); à instalação de pequenas
indústrias para a produção de doces, farinha e outros produtos derivados da mandioca; e à
criação de peixes nas comunidades e aldeias da Região. Informou, ainda, que estava previsto
que cada aldeia recebesse cerca de G$ 5 milhões de dólares guyanenses, o que equivale a cerca
de R$ 95.000,00, para desenvolver os projetos, e que são os moradores das comunidades e
aldeias da região que escolhem os projetos e contam com assistência técnica para sua
implantação (informação verbal).57
O prefeito, que é indígena da etnia Macuxi e irmão do ministro do MoAA, havia
sido eleito há poucos meses para o cargo, à época da entrevista, ressaltou que a região carece
de estradas e rede de transportes o que, segundo ele, acarreta problemas para o desenvolvimento
e qualidade de todos os serviços básicos nas comunidades. Informou que os tuxauas recebem
57
Entrevista com Bryan Allicock, prefeito da Região 9. Realizada em 26/agosto/2015, em Lethem, Guyana.
119
assistência financeira do governo, assim como os conselheiros de aldeia também recebem
auxílio financeiro e que, além dos recursos do governo federal, há assistência financeira oriunda
de cooperações internacionais, a exemplo da firmada com a Noruega. Afirmou, além disso, que
os recursos são aplicados nos projetos comunitários e, em troca, as comunidades e aldeias se
comprometem a proteger o meio ambiente de suas terras. Citou como exemplo o projeto de
compra de carbono firmado entre o governo Norueguês e os indígenas Wai Wai, cuja terra
localiza-se no extremo sul da Região 9, fronteira com Brasil e que, segundo o prefeito, há troca
de experiências com indígenas do Acre/Brasil sobre os acordos de REED (informação verbal).58
O administrador regional informou ainda que o turismo é permitido nas Terras
Ameríndias e que é uma fonte de renda para as aldeias, sendo o parque de Iwocrama, que é
sobreposto às Terras Ameríndias na Região 9, o que mais recebe turistas. Esse parque é uma
área de floresta protegida por lei e é um exemplo concreto da política de LCDS adotado no país,
e, conforme Moreira, é uma estratégica fonte econômica para o Estado guyanense, uma vez que
este “[...] coopera com a proteção de florestas nativas por dois motivos: porque [...] cumpre
com o dever Estatal de proteção do meio ambiente segundo standards internacionais e também
porque [...] oferece um benefício econômico real e imediato” (2008, p. 161). Tal cooperação
repercute e envolve os povos indígenas, já que estes são reconhecidos pela comunidade
científica como engajados na conservação das florestas dada a “relação intersubjetiva” que
possuem com a natureza (MOREIRA, 2008, p. 160).
Na perspectiva do autossustento, com base na proteção e conservação ambiental,
as atividades voltadas ao turismo têm recebido considerável investimento, de acordo com as
autoridades guyanenses, além de serem consideradas como uma das estratégias de
desenvolvimento nacional que deve receber atenção prioritária, inclusive com adoção de
precauções em relação à produção de lixo e impactos da atividade sobre o meio ambiente.
Segundo o MoAA (GUYANA, 2003, 2015), além da floresta de Iwocrama, outros projetos de
turismo já são praticados nas aldeias e comunidades das Regiões 9, 6 e 10.
Outra atividade fomentada pelas instituições públicas também com apoio
internacional é a produção de artesanato, como alternativa de inclusão e geração de renda para
mulheres indígenas, essa atividade é compreendida como um reforço para a subsistência
doméstica e visa colaborar com a autonomia econômica das comunidades (GUYANA, 2003,
18).
58
Entrevista com Sidney Allicock. Ministro de Assuntos Ameríndios da Guyana. Realizada em 21/outubro/2015,
em Georgetown, Guyana.
120
Já a mineração, que segundo documentos oficiais é uma importante contribuição
econômica para o país, é reconhecida pelo MoAA com um dos principais motivos de
reclamações das aldeias e comunidades por causa dos impactos ambientais e sociais gerados
pela atividade, seja dentro ou nas adjacências das Terras Indígenas (embora muitos ameríndios
sejam envolvidos na mineração de pequena escala), ou ainda, contratados pelas empresas de
mineração de média e grande escala. Segundo o MoAA (GUYANA 2003, 2015), há
investimento em treinamento de indígenas para o trabalho na mineração e é seguido o processo
de consulta quanto à autorização para atividade em terras indígenas e participação dos
ameríndios no processo de estudo dos impactos ambientais.
Em diversos documentos oficiais, relatórios de organizações indígenas e de
direitos humanos, a mineração é citada como um grande problema para as aldeias e
comunidades indígenas, tendo em vista que as áreas de mineração, além de provocarem a
degradação ambiental, como a poluição de rios, contaminação e escassez de peixes e animais,
também desencadeia uma série de problemáticas sociais relacionadas principalmente ao
alcoolismo, à prostituição e à contaminação por DSTs.
De acordo com o trabalho de Corbin (2012) sobre a migração de brasileiros para
a Guyana, grande parte dos garimpos ilegais de ouro e diamante, que geram todos os problemas
descritos acima, localiza-se nas Regiões 7 e 8 e são praticados, na grande maioria das vezes,
por brasileiros sem autorização legal para o desempenho da atividade de mineração e que
ingressam ou fogem das regiões do interior do país de forma ilegal, através de Terras Indígenas
brasileiras localizadas na fronteira.
Ainda segundo Corbin (2012), além dos garimpos ilegais, os brasileiros também
são um dos principais donos e investidores de empresas mineradoras regularizadas no país,
sobre as quais pesam denúncias de exploração ilegal de trabalho de guyanenses, principalmente
de indígenas daquele país, com quem os brasileiros também fazem acordos ou conquistam a
confiança para descobrir e explorar áreas de ouro e diamante.
Apesar das iniciativas oficiais de incluir os ameríndios nas estratégias de
promoção do desenvolvimento econômico sustentável financiadas por países e instituições
internacionais e, ainda, da previsão legal para a exploração mineral em terras ameríndias, tais
atividades parecem não resultar numa garantia de renda, já que tanto o prefeito quanto o
ministro reconhecem que uma das principais motivações para o trânsito de ameríndios na
fronteira, para além da convivência familiar e cultural, é a procura por atividades remuneradas
no lado brasileiro, uma vez que há poucas oportunidades de trabalhos remunerados nas próprias
121
aldeias e cidades das regiões do interior da Guyana. É uma realidade crescente, entre os povos
ameríndios, o consumo de bens acessíveis apenas por meio do dinheiro, situação já observada
no documento National Development Strategy - NDS (2000).
122
ameríndia reside (NATIONAL DEVELOPMENT STRATEGY, 2000; GUYANA
REDUCTION POVERTY STRATEGY PLAN, 2011).
O investimento público tem se voltado, nas últimas décadas, principalmente ao
ensino primário, que ocorre nas próprias comunidades; contudo, ainda persistem deficiências
na formação de professores e na oferta dos demais níveis de ensino do sistema educacional do
país, que é composto por quatro níveis básicos: pré-escola, primário, secundário e pós-
secundário (NATIONAL DEVELOPMENT STRATEGY, 2000). Na Guyana, a escolarização
obrigatória é de quinze anos, e a idade para ingresso no sistema de ensino é de cinco anos. A
pré-escola não é obrigatória, enquanto o ensino primário é compulsório e dura, em média, seis
anos, e tem como objetivo a alfabetização, e o desenvolvimento de habilidades matemáticas
(NATIONAL DEVELOPMENT STRATEGY, 2000).
De acordo com o site do MoAA (2015), o ensino secundário nas regiões do
interior do país é oferecido em algumas aldeias e comunidades de maior porte, ou ainda nas
sedes administrativas das regiões. Considerando a precariedade de estradas e a falta de
transportes, são construídos dormitórios nas localidades onde há a oferta do ensino secundário.
Segundo o Ministério, é oferecida ajuda de custo para ameríndios que se deslocam de suas
regiões para cursar o ensino secundário em Georgetown, onde há dormitório para receber alunos
do interior. Ademais, os estudantes podem ficar sob os cuidados de tutores, financiados e
chamados pelo MoAA de guardians, enquanto estão cursando o nível de ensino na capital.
Ainda são poucas as iniciativas para alfabetização e educação de adultos.
O acesso de ameríndios aos níveis de educação pós-secundário tem se limitado
à oferta de bolsas de estudos financiadas pelo governo por meio do MoAA, uma vez que a
oferta de ensino profissionalizante e universitário é privado na Guyana, com exceção de alguns
cursos profissionalizantes desenvolvidos em instituições públicas localizadas em cidades das
regiões costeiras, sobretudo na capital Georgetown.
Para receber o certificado de conclusão do ensino secundário e para ser habilitado
a ingressar em instituições de ensino profissionalizante e universitário, seja pública ou privada,
o estudante precisa fazer exames de proficiência equivalentes a um vestibular, a exemplo dos
Secondary School Entrance Examination, Caribbean Secondary Education Certificate
(MOAA, 2015; GUYANA, 2003, 2013).
De acordo com o MoAA (2015), o programa de concessão de bolsas de estudos
para estudantes de regiões do interior do país existe desde 1962. A princípio, voltava-se apenas
ao ingresso no ensino secundário, uma vez que só era ofertado na capital. Com o passar dos
123
anos, bolsas também foram concedidas para alunos mais velhos para cursarem ensino
profissionalizante em instituições do governo como a Escola Superior de Agricultura. Segundo
o MoAA (2015), em 2012, estavam ativas 362 bolsas de estudos para estudantes ameríndios de
diferentes regiões do país, cursando os níveis de ensino secundário e profissionalizante em
escolas secundárias das regiões do interior e em escolas secundárias e profissionalizantes de
Georgetown. O MoAA divulga, ainda, que apoia o investimento em materiais escolares,
uniformes e o fornecimento de merenda escolar para as escolas primárias.
Apesar dos investimentos do MoAA, a política educacional e o funcionamento
do sistema escolar são de responsabilidade do Ministério da Educação. A execução se dá por
meio dos departamentos regionais vinculados às Administrações Regionais. No quadro abaixo,
é possível visualizar o número de matrículas, escolas e professores nas Regiões 7, 8 e 9. O
Ministério da Educação não desagrega informações relacionadas aos ameríndios,
possivelmente porque muitas escolas são multiétnicas, considerando a diversidade étnica do
país.
124
à demanda crescente da população do interior, assim como às poucas oportunidades de acesso
aos cursos de educação profissionalizante e superior no país.
125
com capacidade para realização de cirurgias complexas e tratamentos de doenças como câncer
e reabilitação de crianças. Esse tipo de hospital só existe em Georgetown, e há também centros
especializados em psiquiatria e oftalmologia em New Amsterdã, localizada na Região
(informação verbal).59
59
Entrevista realizada com Michel Gouveia. Coordenador de Saúde para Comunidades e Povos Indígenas do
Ministério da Saúde – Guyana. Realizada em 22/outubro/2015, em Georgetown, Guyana.
60
As informações sobre os profissionais de Saúde da Região 7 estão incompletas, haja vista não terem sido
citadas pelo Coordenador de Saúde para comunidades e Povos Indígenas, bem como não estarem disponíveis no
site do Ministério da Saúde da Guyana.
126
pelo coordenador Michael Gouveia e pelo diretor do Departamento Regional de Saúde da
Região 9, Sr. Rolland Chaui, entrevistados no dia 26 de agosto de 2015 (informação verbal).61
61
Entrevista realizada com Rolland Chaui. Chefe substituto do Departamento Regional de Saúde da Região 9.
Realizada em 26/agosto/2015, em Lethem, Guyana
127
De acordo com site oficial do MoAA (2015), a instituição mantém em
Georgetown uma unidade de apoio aos ameríndios que estejam em tratamento de saúde no
hospital da capital, chamado Amerindian Hostel. Além de ponto de apoio dos ameríndios em
tratamento de saúde e seus acompanhantes, serve também como unidade de apoio aos
estudantes ameríndios em formação na área de saúde. Funciona ainda como uma unidade
assistencial, uma vez que recebe vítimas de violência doméstica, tráfico de pessoas, entre outras
situações de vulnerabilidade social.
Segundo o Ministério, o Amerindian Hostel foi criado em 1976 e dispõe de 113
leitos para pacientes, sendo 40 na seção feminina, 47 homens na seção masculina, 5 camas
numa enfermaria e dois quartos autônomos, uma para homens e outro para mulheres, que são
utilizados dependendo da natureza da doença. Há ainda 21 camas numa área reservada para
maternidade, onde ficam mães grávidas e bebês. A unidade conta com 22 camas para hóspedes
que estejam na capital para tratar de assuntos relacionados às suas aldeias junto ao MoAA e
outras instituições; funcionários regionais do MoAA; e ameríndios que estejam tratando de
situações relacionadas a benefícios previdenciários ou que estejam apenas viajando. Para os
hóspedes é cobrada uma taxa de G$ 500,00 por noite, cerca de R$ 10,00.
Apenas pessoas em tratamento de saúde ou em situação de vulnerabilidade social
recebem refeições durante a estada na unidade, bem como auxílio financeiro para retornar para
suas localidades de origem após a alta médica. Na unidade, além dos serviços administrativos
(limpeza e cozinha), funciona ainda um setor de assistência social e enfermagem.
Os dados oficiais demonstram que o país tem buscado ampliar os investimentos
na oferta e no suporte de serviços de saúde voltados aos ameríndios. Contudo, a fala do diretor
do departamento regional de saúde da Região 9 demonstra que ainda há muita precariedade nas
estruturas de atendimento de saúde nas aldeias das do interior, uma vez que muitas localidades
são de difícil acesso e a interligação com a capital é distante por meio terrestre e onerosa por
meio aéreo, além de ser dependente de ajuda humanitária, o que exige a busca pelos serviços
de saúde do lado brasileiro, principalmente em situações graves ou que demandem atendimento
de urgência ou emergência.
Tanto o representante do Ministério da Saúde quanto o representante do
departamento de saúde da Região 9 ressaltam que existe colaboração entre os países no que
concerne ao atendimento dos pacientes guyanenses em geral; contudo, não souberam afirmar
se havia acordos formais entre os países voltados ao tema de promoção e vigilância em saúde,
128
tendo conhecimento, apenas, de acordos bilaterais acerca do monitoramento de pragas como a
mosca da carambola e a febre aftosa (informação verbal).62
62
Entrevista realizada com Michel Gouveia. Coordenador de Saúde para Comunidades e Povos Indígenas do
Ministério da Saúde – Guyana. Realizada em 22/outubro/2015, em Georgetown, Guyana.
63
Disponível em: <www.nis.org.gy>. Acesso em: 10 jan. 2016
64
Disponível em: <www.nis.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2016
129
Estes são responsáveis por receber as solicitações de assistência pública, investigar o pedido e
decidir quem e o quanto devem receber. O benefício é temporário e pode ser pago por seis
meses, com possibilidade de renovação conforme autorização dos conselhos. De acordo com o
ministério, o valor do benefício é de cerca de G$ 6.600,00 , o equivalente a R$ 124,00.65
Aos idosos com 65 anos ou mais de idade que não tenham contribuído com o
regime de seguro social e não possuam fonte de renda; que sejam guyanenses, ou estrangeiros
residentes legais no país por pelo menos dez anos, é concedida uma pensão chamada de Old
Pension no valor de G$ 12.500,00, o que equivale a cerca de R$ 253,00. É paga mensalmente
por meio de caderneta que deve ser apresentada junto com documentos pessoais ao
departamento de assistência social dos distritos ou regiões mais próximas do local de residência
do idoso. O pensionista recebe, além disso, redução ou isenção de pagamento de taxa de água.
O benefício é encerrado quando do falecimento do idoso. O idoso pensionista, dependendo de
sua situação social e de saúde, pode receber também o benefício da assistência pública citado
anteriormente (MINISTRY OF LABOUR, HUMAN SERVICES AND SOCIAL SECURITY,
2015).
Os ameríndios, enquanto cidadãos guyanenses, se preencherem os requisitos
socioeconômicos de tais programas, também são elegíveis como beneficiários, conforme a
Cônsul-Geral da Guyana em Roraima, Sra. Marissa Carmichael, entrevistada em 24 de julho de
2015 (informação verbal).66 Não há ou não estão disponíveis dados sobre o número de
beneficiários por região, o que prejudica a percepção sobre o alcance destes programas sobre
os ameríndios do país.
Além dos benefícios monetários, outras ações de assistência social também são
estendidas aos ameríndios por meio do MoAA e das Administrações Regionais, e voltam-se
basicamente à capacitação e treinamentos para trabalhadores com objetivo de gerar renda.
Outras iniciativas, como o fornecimento de merenda e uniformes, são consideradas medidas de
assistência social. O conjunto das medidas apresentadas nesta seção tem colaborado para a
criação de empregos, a melhoria das condições de vida e a redução da pobreza no país, de
acordo com o GRPSP (2011, p. 39).
Observou-se, neste capítulo, que a Constituição de 1980, o Amerindian Act de
2006 e, portanto, as políticas indigenistas do país, têm refletido os discursos ambientados no
contexto das estratégias de desenvolvimento econômico e social do país, que consistem
65
Disponível em: <www.mlhsss.gov.gy>. Acesso em: 11 jan. 2016
66
Cônsul-Geral da Guyana em Roraima, Sra. Marissa Carmichael, entrevistada em 24 de julho de 2015.
130
basicamente no uso dos recursos naturais, pela exploração ou conservação destes, com a
finalidade de promover o crescimento econômico e possibilitar a redução dos indicadores de
pobreza no país. Percebeu-se, ainda, que a relação do Estado guyanense com os ameríndios
baseia-se em discursos e projetos que visam à integração e à unificação dos territórios e dos
próprios ameríndios à Nação guyanense, e isso fica evidente nos mecanismos de elegibilidade
e acesso ao conjunto de políticas voltadas aos ameríndios enquanto cidadãos da Guyana. Este
capítulo, portanto, pretendeu visualizar como a Guyana, através de suas instituições e leis e
conforme seu contexto econômico e social, tem formulado e implementado as políticas
indigenistas e como os ameríndios as têm acessado. Não é propósito deste trabalho a análise
sobre adequabilidade e eficiência dessas políticas.
131
4 POLÍTICAS INDIGENISTAS PARA NACIONAIS
67
Expressão utilizada por indígena da Guyana durante o IV Encontro de Indígenas de Fronteira, organizado pela
Diocese de Roraima, ocorrido no período de 28 de fevereiro a 03 de março de 2013 em Boa Vista (RR). O
“Complete Document”, expressão em inglês, significa possuir documentos de identificação/nacionalidade
guyanense e documento de identificação/nacionalidade brasileira para continuar transitando, sem maiores
entraves, nas fronteiras nacionais, assim como para acessar as políticas indigenistas e os meios que os bens e
serviços que passaram a ser necessários em suas vidas a partir do contato com a sociedade envolvente.
68
Que não possuem documentos de identificação/nacionalidade nem do país onde nasceu nem do país onde
estejam transitando ou residindo, ou, ainda, que possuam documentos de identificação/nacionalidade de seu país
de nascimento, contudo não possuam documentos de regularização da condição de estrangeiro no país onde
estejam transitando ou residindo.
133
estado de Roraima, que é uma unidade federativa brasileira. A Guyana possui uma pequena
população que está distribuída desproporcionalmente entre dez Regiões Administrativas que
equivalem a municípios. Já o Brasil possui uma imensa população também distribuída
assimetricamente em 27 estados federados.
Como observado nos capítulos anteriores, embora os indígenas no Brasil
representem menos de 1% da população, no contexto do estado de Roraima e da Guyana
representam aproximadamente 10% da população. A fronteira entre esses dois países possui
baixa densidade demográfica, sendo os indígenas a maioria da população tanto nas regiões do
interior da Guyana, que fazem fronteira com Roraima, como nos municípios fronteiriços de
Roraima. Pertencem a grupos étnicos comuns que estão presentes historicamente em territórios,
também étnicos, divididos por uma fronteira nacional. Como observa Garcia (2010) em
pesquisa sobre o povo Chiquitano na fronteira Brasil-Bolívia, povos indígenas transfronteiriços
possuem traços culturais comuns, como a língua, relações de parentesco, compadrio, amizades
que transcendem a nacionalidade e os limites dos Estados nacionais, e que o fluxo e as relações
históricas de povos indicam que as fronteiras são dinâmicas, e não estáticas, como pensadas e
operacionalizadas pelos Estados (GARCIA, 2010, p. 67).
Os territórios tradicionais dos Macuxi, Ingaricó, Patamona, Wai Wai e
Wapichana têm sido reconhecidos pelos Estados nacionais em ambos os lados da fronteira,
conforme as Figuras 04 e 08, cuja distribuição em faixa de fronteira também pode ser
visualizada no mapa abaixo. Embora a figura não consiga demonstrar exatamente as dimensões
das terras indígenas na Guyana, ilustra como estão distribuídos, ao longo da atual fronteira, os
territórios indígenas nos atuais Estados nacionais.
134
Figura 9 - Mapa das Terras Indígenas na fronteira Brasil-Guyana
Fonte: Elaborado por Genisvan André, a pedido da autora, a partir de informações cartográficas disponíveis em
mapas do IBGE, Funai, SESAI, no Brasil e do GNPUL, na Guyana.
135
Conforme apresentado no capítulo 1, Brasil e Guyana são compostos por
variadas populações de origens étnicas e nacionalidades distintas, amalgamadas pelo signo de
nacionais como meios de legitimar a ideia de Nação, mas com diferenças étnico-raciais.
Enquanto no Brasil os discursos voltados à identidade nacional se fundamentam no mito da
democracia racial, da mistura de raças e da convivência harmoniosa entre estas (SCHWACZ,
1999), a sociedade guyanenses, desde o período colonial, tem se constituído pela forte divisão
e conflito étnico, que tem marcado o cenário político econômico (MENKE, 2004).
A imagem de Nação na Guyana, que ainda está em construção e é trabalhada em
documentos oficiais, tem se fundamentado em discursos de pertença a um território comum, e
não a uma cultura comum, embora práticas nacionalistas como a imposição do inglês como
língua oficial, a edição de leis e a criação de símbolos sejam implementadas e reforçadas desde
a independência para consolidar o projeto de Nação (STAVENHAGEN, 2000).
Nação, nesta dissertação, é entendida como sendo uma “[...] comunidade política
imaginada como limitada e soberana” (ANDERSON, 2005, p. 26), limitada por fronteiras
finitas, isto é, por espaços territoriais delimitados sobre os quais há soberania, ou seja, o
exercício do poder, controle e o arbítrio sobre quem são seus membros legítimos (HERMANN,
2011, p. 121-123).
Nos capítulos anteriores, lançou-se mão de recursos que ajudam a ilustrar como
os projetos de Nação dos países em questão envolveram, e ainda envolvem, três instrumentos
de poder - censo, mapa e museu -, tidos por Anderson (2005, p. 222) como essenciais à
formação dos Estados nacionais e ao exercício da soberania. Segundo o autor, tais instrumentos
são fundamentais para conhecer a natureza dos seres humanos que os Estados governam, a
geografia de seus territórios e a legitimidade de sua ancestralidade. No caso da Guyana e do
Brasil, a originalidade enquanto Nação esteve associada à figura do índio como o nacional
original, ícone da história, mas não do futuro (FORTE, 1993, p. 4; LIMA, 1992, p. 167).
A política colonial, em regra, baseou-se na subjugação desses povos, o que
resultou na dominação de seus territórios pelos governos coloniais, na redução populacional,
no confinamento territorial, na imposição de dinâmicas socioculturais alheias às relações
nativas, como, por exemplo, a exploração do trabalho em atividades econômicas em plantações,
extrativismo, pecuária e mineração. Consistiu-se, ainda, na determinação da língua do
colonizador, na formulação de leis destinadas ao governo, na tutela e na regulação das relações
de grupos coloniais com os índios, bem como na restrição de hábitos culturais considerados
136
imorais, tendo em vista a influência e a participação de ordens religiosas nos processos de
colonização (CUNHA, 1992; MENEZES, 1970).
A emancipação nacional e a constituição desses Estados nacionais, primeiro do
Brasil e mais recentemente da Guyana, se plasmou sobre a construção romantizada da figura
do índio como o indivíduo originário da Nação (CUNHA, 1992; FORTE, 1993), transformado
em membro oportuno para a defesa de limites territoriais. Conforme Farage (1991, p. 42), os
índios foram considerados “Muralhas dos sertões”, ou, segundo Souza Lima (1992, p. 165),
“guardiões das fronteiras”, primeiro colonial e por fim nacional, numa perspectiva de serem
amalgamados em uma única sociedade nacional por meio de políticas que visaram à integração
e à assimilação de populações socioculturais distintas a uma Nação.
Em ambos os países e na conjuntura do sistema capitalista de produção, o índio
esteve associado à imagem de atraso e empecilho ao progresso econômico, dado o modo de
vida nativo, em geral não acumulativo (CUNHA, 1992; FORTE, 1993). Como justificativa e
efeito da dominação dos territórios, dos recursos naturais e da exploração da mão de obra
indígena, a relação do Estado colonial e, posteriormente, nacional se assentou no discurso e na
prática da tutela dos índios por aparelhos ou instituições outorgada pelos Estados, sob a
justificativa de que aqueles eram como crianças, incapazes de alcançar sozinhos a “civilização”
e o progresso, além de serem considerados vulneráveis à exploração por outros grupos nacionais
(RIBEIRO, 1982; CUNHA, 1992; FORTE, 1993).
A ocupação colonial dos territórios hoje chamados Roraima e Guyana, em
especial da faixa fronteiriça, também guarda similaridades no tocante ao episódio de disputa
territorial, conhecida como a “Questão do Pirara” (MENCK, 2009). As nações envolvidas
utilizaram-se de argumentos oficiais de que as posses coloniais-nacionais se justificavam pela
presença de nativos já conquistados e considerados, geoestrategicamente, como
súditos/nacionais do Brasil e da Inglaterra. O argumento calhou a esta última, e a linha
imaginária e divisória das nações foi definida em 1904.69
O protecionismo colonial e nacionalista do território, a exemplo dessa fronteira,
refletiu nos discursos de defesa da nacionalização do índio para exercer o controle sobre as
áreas isoladas do território (LIMA, 2012, p. 167) neste sentido foram reconhecidos aos índios
suas próprias terras para “[...] reconhecer à própria Nação (Estado) o direito ao território que
ocupa”.
69
Laudo Arbitral do Rei da Itália, Vitório Emanuel, de 14/07/1904 (MENCK, 2009, p. 284).
137
Essa disputa, iniciada ainda no século XIX, refletiu-se nos projetos de ocupação
da região, que consistiram no incentivo à instalação de povoamentos, catequização dos índios
e exploração econômica das savanas, campos e serras à leste de onde atualmente situa-se
Roraima e à oeste da Guyana. Principalmente pelo incentivo à bovinocultura e à exploração
mineral, tais atividades intensificaram o contato com os índios da região, o que implicou na
exploração da mão de obra indígena, em casamentos entre colonos e índias, na ocupação de
territórios indígenas por colonos e em relações de compadrio (SILVA, 2005, p. 43; SANTILLI,
1994, p. 22).
Em que pese os projetos de ocupação das terras de Roraima terem sido muito
mais intensos em comparação com a ocupação guyanense, refletindo-se de diferentes maneiras
nas relações dos índios dessa região com grupos coloniais/nacionais, as políticas indigenistas
nos dois países, e principalmente após o processo de independência na Guyana, voltaram-se aos
projetos de integração gradual dos indígenas à “comunhão” nacional. Isso se deu por meio da
concessão de parcelas do território nacional ao uso e ocupação pelos índios, de modo que
fossem transformados em trabalhadores nacionais, colaboradores da Nação, conforme
apresentado no capítulo 1 desta dissertação.
Essa visão esteve presente nas leis indígenas dos países em questão, isto é, no
Estatuto do Índio de 1973, no Brasil, e no Amerindian Act de 1951, na Guyana, que,
resguardadas as devidas particularidades, versaram, em geral, sobre: i) o governo dos nativos;
ii) o arbitramento do Estado sobre quem é índio; iii) sobre a concessão de territórios à
reprodução sociocultural desses povos; iv) sobre a intermediação de conflitos internos ao grupo
nativo, ou externo com outros grupos nacionais; e v) sobre a intervenção e/ou autorização de
projetos e ou acordos relacionados à contratação de mão de obra, à exploração de recursos
naturais dispostos em territórios indígenas.
Existem diferenças marcantes no que tange à efetivação e operacionalização da
política indigenista em Roraima e na Guyana. Enquanto em Roraima havia a ação direta de
agências indigenistas (Igreja Católica, SPI/Funai) sobre os índios, que atuavam como
interlocutoras e mediadoras das relações destes com a sociedade e com o próprio Estado
(SANTILLI, 1994, p. 40-60). Na Guyana, embora houvesse, desde o período colonial inglês,
conforme o Amerindian Act de 1991, a figura do “Chief”, encarregado do governo e do controle
sobre os ameríndios, a presença e efetivação das políticas de Estado nas regiões do interior
majoritariamente ocupadas por ameríndios foram incipientes, ainda que houvesse a relação,
138
desde o período colonial, de eleição e financiamento de capitães indígenas como
representes/autoridades do Estado dentro das próprias aldeias (FORTES, 1993).
Dentre as razões que podem ter resultado na baixa presença do Estado guyanense
nessas regiões estão o isolamento geográfico, a exploração econômica e a concentração
populacional voltada às regiões costeiras, somadas ao quadro econômico do país, reflexo da
condução política dos conflitos étnicos (SILVA, 2005, p. 28).
No Brasil e na Guyana, a tentativa do poder colonial e, posteriormente, do poder
republicano de regular as relações entre índios e não índios a partir de legislações e aparatos
estatais foram constituídas, no cenário regional, por meio de alianças e relações clientelistas
com lideranças indígenas, chamadas de tuxauas ou capitães (SANTILLI, 1994; MENEZES,
1970; FORTES, 1993).
Na Guyana, desde o período colonial até hoje essa relação foi, e continua sendo,
intermediada pela remuneração desses líderes, feita atualmente pelo MoAA, como se estes
fossem funcionários ou administradores locais, representantes do governo. No Brasil, em
particular em Roraima, apesar da relação do SPI/Funai com tuxauas, a mediação das relações
entre índios e Estado, bem como a vigilância dos territórios, se dava pela instalação de um
aparelho de Estado chamado de Postos Indígenas, para os quais os índios podiam ser ou não
contratados para atuarem como agentes do Estado em intervenções e mediações (LIMA, 1995;
SATILLI, 1994; VIEIRA, 2014).
O papel político dos indígenas influenciou o redesenho das Constituições e
legislações indigenistas desses países. Tais modificações foram propiciadas por pressões e por
um cenário internacional de promulgação de dispositivos voltados aos direitos humanos e às
temáticas de proteção ambiental (CORDEIRO, 1999, p. 137). Conforme Franco (2012), “[...]
ambientalistas veem nos povos indígenas grupos de peso relevante, não só pela capacidade de
articulação e presença regional e projeção global, mas também por habitarem e,
tradicionalmente, usarem, de maneira ambientalmente sustentável, os biomas amazônicos”
(FRANCO, 2012, p. 165). A partir da segunda metade do século XX as temáticas indígenas
ganharam destaque em foros internacionais, amparadas na realidade de discriminação e
exclusão dos povos indígenas em diferentes contextos nacionais. Isso propiciou a promoção e
proteção dos direitos humanos e indígenas, que influenciaram sobremaneira as legislações
constitucionais e infraconstitucionais do Brasil e da Guyana (FRANCO, 2012, p. 21-23).
Como apresentado nos capítulos 2 e 3, as Constituições nacionais são
consideradas multiculturais e possuem artigos que resguardam direitos específicos aos
139
indígenas. A da Guyana prevê, ainda, uma comissão constitucional voltada aos povos
indígenas. Ambas possuem artigos voltados à garantia de direitos individuais e coletivos destes,
numa perspectiva de reconhecimento de direitos que resguardam especificidades socioculturais
e também todos os demais direitos de cidadania previstos aos nacionais e estrangeiros
residentes/regularizados no país, dando aos indígenas o status de cidadãos.
As legislações infraconstitucionais (Estatuto do Índio/1973 – Brasil, Ato
Ameríndio/2006 – Guyana) trazem definições do que esses Estados definem como índio e
comunidade indígena/aldeia. Ressalvadas particularidades expostas nos capítulos anteriores, a
definição segue critérios comuns como: a origem e descendência de povos preexistentes à
colonização, a autoidentificação e a heteroidentificação como membro de uma coletividade,
cujos traços culturais (língua, organização social, etc) o diferencie da sociedade nacional (Art.
3º do Estatuto do Índio e Art. 2 do Amerindian Act de 2006).
No Brasil existe a prática de emitir um certificado administrativo de nascimento,
no qual constam informações relativas à etnia do indivíduo indígena, o RANI, e que é exigido
como prova de indianidade e solicitado como requisito para acessar políticas indigenistas
brasileiras, como é o caso das cotas para ingresso no ensino universitário, processo seletivo
para a contratação de profissionais indígenas e ainda para acesso ao Registro Civil de
Nascimento Tardio.70 No caso guyanense, não há nenhum documento emitido por instituição
do Estado que formalize a identidade étnica do indivíduo indígena, embora as ações e a relação
das instituições públicas voltadas aos ameríndios se deem tendo como referência a vinculação
do indivíduo a uma comunidade/aldeia ameríndia (FRANCO, 2012, p. 36).
As definições disciplinadas por ambos os Estados nacionais servem, junto de
outros critérios difusos (como nacionalidade e condições socioeconômicas) para orientar e
operacionalizar as políticas indigenistas. Na prática, são mecanismos de reconhecimento/não
reconhecimento dos indivíduos e coletividades como indígenas, e, portanto, sujeitos de direitos
previstos nos aparatos normativos, assim como para inclusão/exclusão desses indivíduos e
coletividades indígenas enquanto público das políticas (GARCIA, 2010, p. 11).
Embora se reconheça os avanços das legislações infraconstitucionais, estas
diferem no que diz respeito à consonância com os textos constitucionais, ou seja, enquanto a
lei guyanense reflete e regulamenta direitos garantidos na Constituição da Guyana, o Estatuto
70
Trata-se do Registro de Nascimento do cidadão feito fora do prazo considerado ideal, ou seja, após 1 ano e três
meses do nascimento. Dito de outra forma, trata-se do registro de nascimento para o indivíduo em idade adulta.
No Brasil, a emissão deste documento, que é considerado como o primeiro e principal documento que identifica o
cidadão brasileiro, está regulamentada pela Resolução Conjunta nº 03/2012 e Provimento nº 28/2013 do Conselho
Nacional de Justiça.
140
do Índio é anterior e, em certa medida, conflitivo com a Constituição Federal vigente no Brasil.
Além das legislações indigenistas específicas, os dois países dispõem de outras leis que
disciplinam direitos e políticas extensivas aos indígenas.
O maior problema observado em relação às legislações nos dois países é a sua
pouca efetividade, considerando os indicadores socioeconômicos, a precariedade dos serviços
públicos, as tensões e conflitos referente às questões fundiárias e ao uso de recursos naturais,
principalmente considerando que as políticas indigenistas têm se estendido sob a condição de
os índios serem nacionais, ignorando que as identidades étnicas são anteriores e resilientes às
fronteiras.
Os dois países dispõem de órgãos indigenistas cujas atribuições institucionais
têm variado no tempo e no espaço territorial, conforme as mudanças normativas no cenário
internacional e nacional e a entrada de outros agentes ligados ao movimento indígena e de
organizações não governamentais indigenistas. Os órgãos e autoridades indigenistas deixam de
exercer o papel de tutor dos índios, interlocutores e intermediadores exclusivos de direitos, e
passam a ser protetores e promotores de direitos que podem ser implementados por meio de
instituições públicas ou não governamentais (FRANCO, 2012, p. 100).
No Brasil, a Funai deixou de concentrar a exclusividade sobre a formulação e
implementação das políticas indigenistas. A partir da CF/88, tais políticas passaram a ser
atribuídas a um conjunto de órgãos e entes, como estados e municípios, cabendo à instituição a
coordenação e articulação da política. Cabe ainda à Funai a execução direta das demarcações
de terra e de algumas ações voltadas ao autossustento, como descrito no capítulo 2, por meio,
principalmente, de recursos públicos, embora conte ainda com cooperações internacionais que
podem ser executadas por instituições públicas e ONGs indígenas e indigenistas.
Na Guyana, o MoAA concentra, ainda, as atribuições de formulação,
implementação e o financiamento, por meio de recursos do Fundo Ameríndio (composto de
recursos públicos e oriundos de cooperações internacionais), das políticas indigenistas
relacionadas à demarcação de terras e ao autossustento, além de articular e financiar as políticas
sociais de educação e seguridade social.
As últimas décadas ambientam o surgimento e fortalecimento de organizações
não governamentais indigenistas e indígenas que também desenvolvem atribuições de
interlocutoras e executoras de ações de Estado. São instâncias de pressão e controle social sobre
a ação ou omissão dos Estados nacionais. A atuação é reforçada por um arcabouço de tratados,
convenções, pactos e agendas internacionais que influenciaram as legislações e políticas
141
indigenistas nacionais. Segue um quadro com os principais instrumentos internacionais
relacionados ao tema dos direitos humanos e direitos indígenas, e a ratificação deles pelos
países em questão.
142
Nas últimas décadas, as agendas internacionais de proteção do meio ambiente e
redução da pobreza têm incidência e influência direta sobre as políticas indigenistas nos dois
países. Isso considerando que os povos indígenas estão entre os segmentos sociais
historicamente pobres e excluídos, bem como são tidos como potenciais protetores do meio
ambiente, dada a relação íntima que mantêm com os territórios ancestrais.
As políticas indigenistas nesses países têm se orientado, para além do que é
disposto em normativas internacionais e nacionais, sob uma perspectiva econômica, seja como
meio de receber recursos financeiros por meio de empréstimos ou acordos internacionais
voltados ao investimento em infraestrutura de serviços e produção econômica, seja para
demarcar áreas indígenas como potenciais reservas ambientais que sirvam para mitigar
impactos ambientais ou, ainda, para inserir as populações indígenas nos mercados
consumidores nacionais e internacionais.
Inferimos que a suposta ruptura que o novo projeto político estatal representa em
relação aos projetos anteriores ainda tem um grande teor de formalidade, e pouco se
reflete na prática, além de estar amparada na implantação de uma Agenda Social Para
os Povos Indígenas que tem o objetivo de viabilizar o acesso desses indivíduos a
direitos sociais traduzidos em políticas sociais universais, ações e programas que os
colocam em contato com mercados locais na qualidade de consumidores
(MACHADO, 2012, p. 40).
71
Segundo Queiroz (2016, p. 38), os dois principais projetos de lei que se voltam à regulamentação da mineração
em Terras Indígenas são o Projeto de Lei nº 2.057/91 – Novo Estatuto das Sociedades Indígenas, no qual há artigos
voltados para a regulamentação da mineração em Terras Indígenas, e o Projeto de Lei nº 1.610/96, que trata da
exploração e aproveitamento de recursos minerais em Terras Indígenas. Estes se diferenciam em relação aos
resultados da lavra, à administração dos recursos provenientes da mineração e ainda ao processo de consulta aos
povos indígenas, cujas terras são objeto de interesse da mineração.
143
em busca da anuência que, em geral, ocorrem para formalizar o consentimento do grupo
indígena com o projeto, ação do próprio Estado, a exemplo de audiências e reuniões que
acontecem quando os projetos e planos já foram formulados, restando apenas a formalidade de
obter a permissão do grupo/s indígenas (PINTO, 2009, p. 189-207).
Na Guyana, há tanto as Amerindians Communities, que são terras do Estado,
quanto as Amerindians Villages, que são tituladas aos índios. Os recursos do subsolo são do
Estado, e a atual lei ameríndia regulamenta a exploração econômica de recursos naturais e
minerais, conforme apresentado no capítulo 3.
Uma diferença marcante entre a política brasileira e guyananse se dá em relação ao
princípio de reconhecimento das terras. Enquanto no Brasil se reconhece o direito originário
sobre os territórios, ainda que não estejam efetivamente ocupados por um povo indígena, na
Guyana, somente são reconhecidas as terras que estejam efetivamente ocupadas e sendo usadas
por uma coletividade indígena. No Brasil, as Terras Indígenas podem compreender diferentes
números de comunidades, enquanto na Guyana, principalmente o título comunal, é concedido
às aldeias isoladamente. Comum à conjuntura de demarcação de terras nos dois países são os
conflitos entre interesses públicos, grupos regionais ou econômicos e movimentos indígenas
em torno do direito sobre a terra e os interesses de exploração econômica dos recursos, o que
tem arrastado, por anos, processos de demarcação de terras (FRANCO, 2012, p. 36-40).
Conforme apresentado nos capítulos 2 e 3, as políticas voltadas ao autossustento
nesses países guardam similaridades no que tange a promoção da segurança alimentar, geração
de renda às populações indígenas e sustentabilidade ambiental às terras indígenas. Em ambos
os países, além de serem previstos investimentos públicos, há também aporte financeiro oriundo
de doações e cooperações internacionais, que podem ser implementadas por ONGs indígenas e
indigenistas, em parceria ou não com instituições públicas.
Na Guyana, os arrendamentos a terceiros para a exploração econômica de até
10% de territórios indígenas podem ser permitidos pelos conselhos de aldeia nos limites e
restrições da lei ameríndia e outras leis nacionais relativas à mineração e exploração florestal.
São considerados pelo governo como fontes de renda para a comunidade e para o país. Percebe-
se que a política brasileira se centra num modelo de financiamento de atividades produtivas e
de geração de renda voltado à própria subsistência dos grupos indígenas, enquanto a política
guyanense considera que tanto os indígenas quanto seus territórios devem ser utilizados como
meios de obter receitas para o país (GUYANA, 2003, p. 14).
144
As políticas de educação e seguridade social, também chamadas de políticas
sociais, por compreenderem as dimensões de promoção e proteção social, estão presentes nas
Constituições nacionais dos países em estudo e também são estendidas aos índios enquanto
cidadãos. Tais políticas são semelhantes em seus fundamentos no que diz respeito à finalidade
de promover a inclusão dos povos indígenas como sujeitos de direitos, no sentido de melhorar
os indicadores socioeconômicos dessas populações nos contextos nacionais.
Nas políticas de educação e saúde, nos dois países, são previstas algumas
especificidades relacionadas à prestação de serviços, principalmente em âmbito comunitário,
representada, no caso da educação, pela contratação de profissionais indígenas para o ensino
bilíngue e para a adaptação de currículos e materiais escolares aos saberes e aos conhecimentos
tradicionais. No caso da saúde, para a contratação de profissionais indígenas para atuarem nas
próprias comunidades ou nas unidades de suporte aos pacientes em trânsito nas capitais, no
caso de Georgetown e Boa Vista (RR).
No entanto, existem disparidades no que se refere à estrutura, à oferta e à
abrangência dos serviços, ou seja, com base nos dados apresentados nos capítulos 2 e 3,
percebe-se que a amplitude das políticas de educação e saúde é maior em Roraima,
configurando-se como uma motivação para o trânsito dos povos indígenas, principalmente das
três regiões fronteiriças da Guyana para o Brasil. Esse trânsito se dá, sobretudo, para acessar os
serviços de saúde, seja no âmbito da comunidade indígena, seja nas unidades hospitalares dos
municípios fronteiriços, e, principalmente, ter acesso aos serviços de saúde de média e alta
complexidade, concentrados na capital Boa Vista, geograficamente mais próxima das
comunidades e aldeias ameríndias da Guyana que a capital Georgetown. Pereira (2005), em
pesquisa sobre o trânsito na fronteira Brasil-Guyana, observa que os indígenas oriundos de
comunidades da Guyana buscam por melhor atendimento médico-hospitalar e educação como
meio de conseguir oportunidade de empregabilidade. As redes de relações sociais e familiares
com indígenas em comunidades de Roraima auxilia no acesso a esses serviços, inclusive para
obtenção de documentos brasileiros (PEREIRA, 2005, p. 138-142).
As políticas de assistência e previdência social são previstas nas Constituições
dos dois países e também se destinam aos índios enquanto cidadãos nacionais. Os benefícios
da previdência social na Guyana são restritos ao cidadão que tenha contribuído com o regime
de seguridade social do país. Não cobre, portanto, todos os indivíduos que não tenham
contribuído com o regime; dentre esses estão os ameríndios, que em sua maioria não possui
renda. Um dos motivos, considerando os dados de relatórios e entrevistas com autoridades da
145
Guyana apresentados no capítulo 3, é a falta de trabalhos remunerados nas próprias
comunidades/aldeias e em outras localidades do interior do país.
A procura por trabalho remunerado nas cidades e áreas rurais de Roraima tem
sido motivadora do trânsito e fixação de indígenas oriundos da Guyana desde o processo de
independência do país, em especial após o episódio conhecido como a Revolta do Rupununi
(SILVA, 2005, p. 136; PEREIRA, 2005, p. 132). Aliado a esta situação está o fato que, no lado
brasileiro da fronteira, conforme os dados apresentados no capítulo 2, há uma maior
abrangência e oferta de benefícios e serviços de assistência social, e ainda a elegibilidade
diferenciada aos benefícios previdenciários estendida aos indígenas brasileiros que exerçam
atividade rural e que, neste caso, independe de contribuição com o sistema previdenciário do
país, por serem categorizados como segurados especiais.
Tal conjuntura evidencia que, apesar de a Guyana dispor de benefícios
assistenciais voltados às pessoas em vulnerabilidade econômica extrema, portadores de
necessidades físicas e uma pensão para idosos com 65 anos ou mais de idade (que não
corresponde à aposentadoria, e sim a um benefício assistencial), estes possuem duração limitada
e, principalmente, valores menores em comparação aos previstos no Brasil.
As noções de pobreza e extrema pobreza usadas como referências por esses
países para incluir os indígenas como público prioritário de políticas sociais, em especial de
benefícios assistências de transferência de renda, como o Bolsa Família no Brasil e o Public
Assistance na Guyana, têm como base parâmetros monetários, mesmo que se tenha
conhecimento que a subsistência de muitos não seja monetizada (BANCO MUNDIAL, 2015).
Contudo, a fonte de monetização, sobretudo no Brasil, tem se dado principalmente pelo
governo, o que indica uma maior dependência econômica desses povos em relação ao Estado.
Conforme pondera Machado (2012), “[...] a cidadania assistida pauta-se no direito à assistência
e ameniza, nesse sentido, o impacto da pobreza na sociedade, mas, em contraposição, pode
gerar alguma dependência dos indivíduos em relação aos benefícios estatais (MACHADO,
2012, p. 92).
Os dados e considerações apresentadas até aqui reforçam que as políticas
brasileiras voltadas ou estendidas aos índios, sozinhas ou no conjunto das práticas
socioculturais históricas, têm motivado o trânsito transfronteiriço e a fixação de indígenas
oriundos sobretudo da Guyana em terras indígenas, cidades e áreas rurais de Roraima. Na
perspectiva de se tornarem beneficiários dessas políticas, os índios transfronteiriços demandam
documentos de identificação nacional brasileiro para assumir a condição formal de cidadão
146
nacional. Contudo, tal realidade não se justifica pelo julgamento antecipado de que o Estado
guyanense é omisso e discriminatório em relação aos povos ameríndios, de modo a concluir
que não haja políticas desse Estado voltadas aos seus cidadãos ameríndios. A pesquisa indicou
que em vez de não ter interesse ou políticas nacionais estendidas e específicas aos indígenas, a
Guyana não dispõe de situação econômica que garanta maior efetividade, infraestrutura e
abrangência para suas políticas.
Assim como as políticas públicas brasileiras, as guyanenses estão ancoradas nos
paradigmas de redução da pobreza e na proteção do meio ambiente, e são definidas, formuladas
e implementadas em conjunturas de contradição e pouca efetividade de normas legais. Mesmo
com projetos políticos semelhantes, embora existam muitas particularidades na condução e
implementação dessas políticas, asseguradas pela maior estrutura e maior capacidade
econômica do Brasil, os indicadores socioeconômicos relacionados aos índios em ambos os
lados da fronteira continuem sendo os piores em relação aos contextos nacionais, como foi
demonstrado nos dados das seções 2.2, e 3.1 desta dissertação.
No relatório América Latina Indígena no século XXI, produzido pelo Banco
Mundial (2015), sobre as condições socioeconômicas dos povos indígenas na região latino-
americana e caribenha, a instituição avalia que
[...] embora muitos países tenham aprovado leis e estatutos para garantir a participação
dos povos indígenas no governo e na tomada de decisões, ecoando o conteúdo dos
acordos internacionais, pouquíssimos estabeleceram medidas eficazes para executá-las
e assegurar que sua implementação produza resultados reais em termos de inclusão e
desenvolvimento com identidade [...] Por outro lado, mesmo que ideias como a de
desenvolvimento com identidade, desenvolvimento indígena e etnodesenvolvimento
tenham recebido um impulso na última década, o desafio para os indígenas, ONGs,
governos e agencias de desenvolvimento está em implementar programas de
desenvolvimento que sejam sustentáveis e eficazes na redução da exclusão social
(BANCO MUNDIAL, 2015, p. 91).
148
às categorias genéricas de índio e ameríndio, subjugadas a uma nacionalidade pressuposta sobre
noções fixas e rígidas de território, povo e leis (ANDERSON, 2005, p. 33).
Não é objetivo desta dissertação discutir questões relativas ao pertencimento às
identidades nacionais, uma vez que se trabalha com a ideia que nas regiões de sobreposição de
fronteiras nacionais sobre territórios étnicos, o que prevalece é a identidade étnica do indivíduo
indígena, sendo a nacionalidade instrumento para relacionar-se com o Estado e suas
instituições. Como observa Cardoso de Oliveira,
Já quanto à nacionalidade, como uma segunda identidade, é claro que ela será
instrumentalizada de conformidade com situações concretas em que os indivíduos ou
os grupos estiverem inseridos, como a de procurarem assistência à saúde, à educação
dos filhos ou uma eventual proteção junto a forças militares de fronteira: seriam casos
típicos de manipulação de identidade junto a representantes dos respectivos Estados
nacionais. (2000, p. 17).
Essa forma de olhar tais dinâmicas não significa não considerar que o processo
de aquisição de nacionalidade e o exercício dessa nacionalidade instrumental não reflitam sobre
as identidades étnicas. Ao contrário, diferentes pesquisas antropológicas já trataram da temática
das relações entre identidade nacional e étnica em espaços de fronteira, e observam que os
projetos de Nação, implementados de diferentes formas e intensidades sobre esses povos,
refletem não apenas o abandono de práticas socioculturais, mas a reafirmação de identidades
étnicas com base em identidades nacionais, a exemplo da pesquisa de Montenegro Filho (2016)
sobre a construção e manifestação da alteridade entre os Wapichana “brasileiros” e
“guianenses”.
72
A definição de subregistro inclui todos aqueles que não têm a certidão de nascimento até o terceiro mês do ano
seguinte ao nascimento. A falta do registro civil de nascimento, necessário inclusive para atestar a morte, impede
a pessoa de ter acesso aos serviços de saúde, escolas, benefícios trabalhistas, sociais, além de não poder votar
(THOMÉ; SOUZA; CALHEIROS, 2014, p. 5).
150
A ausência dos aparelhos de Estado; a desorganização; os procedimentos
manuais atomizados e desarticulados de emissão de Registro Civil de Nascimento; o despreparo
e a falta de informação tanto de agentes do Estado quanto dos indígenas atendidos; os
procedimentos burocráticos; e a falta de acordos e ações conjuntos entre os países fronteiriços
têm resultado nas duas situações já citadas acima, isto é: numa dupla/múltipla documentação
nacional (documentação completa) ou na falta de documentação (indocumentados) (LA
TORRE, 2015, p. 67). Essas duas situações representam preocupação no que diz respeito aos
indígenas transfronteiriços, considerando que, se forem tratadas com o rigor das legislações
nacionais, podem resultar na responsabilização criminal do indígena, sobretudo no caso da
“documentação completa”, porque podem conter elementos de falsidade ideológica. 73 A
completa invisibilidade perante os Estados, no caso da falta de documentos, pode ser agravada
pelo fato de o indígena indocumentado ser considerado ilegal por não ter a autorização
formal/visto do Estado para residir e trabalhar no país que não é seu de origem.
A nacionalidade é exigida pelos Estados nacionais como instrumento de acesso
às políticas indigenistas, e, por razão dessa exigência, passa a ser demandada por indígenas.
Nesse contexto, a nacionalidade é um instrumento de acesso a essas políticas, nos países em
estudo. Embora os indígenas transfronteiriços descendam e mantenham relações socioculturais
anteriores às fronteiras e aos próprios Estados nacionais, não são considerados
automaticamente, pelas normativas dos países em questão, como nacionais desses países. Na
lógica constitucional, são considerados, a priori, como nacionais de seu país de
origem/nascimento e estrangeiros em relação ao país vizinho.
A dupla nacionalidade (possuir documentos nacionais de mais de um país)
praticada pelos indígenas acontece às margens de dispositivos legais, principalmente por não
seguir processos e exigências legais. Consiste, em geral, na mudança do nome próprio e a
prestação de informações de nascimento no país onde, na realidade, transita ou reside
(LEONARDOS, 2013). A condição de estrangeiro, por sua vez, não é impeditiva de acesso às
políticas de um Estado nacional, contudo é restritiva e vinculada ao cumprimento de uma série
73
Falsidade ideológica, ou falsidade intelectual, é um tipo de crime que consiste na adulteração de documento,
público ou particular, com o objetivo de obter vantagem ou para prejudicar terceiro. O crime de falsidade
ideológica é tipificado no artigo 299 do Código Penal Brasileiro: Omitir, em documento público ou particular,
declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser
escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.
Para que o delito se configure, é necessário que a forma do documento seja verdadeira. A lei prevê duas penas
distintas: 1. Reclusão de um a cinco anos, e multa - quando o documento objeto da fraude é público; 2. Reclusão
de um a três anos, e multa - se o documento for particular.
151
de exigências burocráticas para que um Estado autorize e regularize a sua residência, o exercício
de atividade econômica e acesso a um conjunto de políticas públicas (RAMOS, 2015, p. 21).
Ambos os países preveem, em aparatos normativos e administrativos, definições de quem são
seus cidadãos natos, naturalizados, e ainda ritos para autorizar e regularizar a entrada,
permanência e trabalho de um estrangeiro em seu território nacional. Esses diferentes status de
cidadão relacionam-se, na prática, com os direitos que cada um desses pode demandar perante
o Estado (ROBERTS, 2015). As burocracias para a obtenção desses status seguem ritos
distintos entre si e serão sistematizados resumidamente no quadro abaixo, que foi construído
com base nas disposições normativas, em documentos oficiais e também a partir de informações
de autoridades públicas e consulares da Guyana em Roraima e de autoridades consulares do
Brasil em Georgetown, reunidas por meio de entrevistas.
152
Quadro 19 - Nacionalidade e cidadania no Brasil e Guyana
153
Guiana Cap. IV, Art. Cap. IV, Art. 42, 45 da Ser registrado como Não há atos normativos, e
41 e 43, 44 da Constituição de 1980 nascido na Guyana sim orientações do
Constituição considera o casamento de por oficial do Ministry of Home Affairs
de 1980 define estrangeiro com cidadão Estado ou em (Ministério de Assuntos
como cidadão guyanense como meio consulado Internos) do País que
nato o que para obter a cidadania guyanense no disciplinam procedimentos
nasce ou que guyanense; ou ainda exterior, caso seja para requerimento de
seja filho/a de comprovar que reside há filho de guyanense naturalização ou obtenção
pai ou mãe pelo menos sete anos e nascido no exterior. de vistos e pressupõem,
guyanense. que tenha entrado e em suma, a apresentação
residido legalmente no Cap 44:01 das leis de passaporte,
país; da Guyana preenchimento de
(Registrations of requerimentos,
Estrangeiro é todo aquele births and deaths). declarações, apresentação
não nascido ou filho de de comprovar que tem
pai ou mãe guyanense que como sustentar-se ou tem
não cumpra com oferta de trabalho, entre
requisitos de outras exigências
naturalização, ou não a orientadas no site do
deseje, mas cumpra Ministério
exigências legais para (www.moha.gov.gy).
obter vistos para residir
ou trabalhar no país.
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir de informações de normativas, entrevistas e sites oficiais
154
ou por medo de que os filhos percam o direito à dupla nacionalidade coloca os
declarantes em vulnerabilidade perante a lei. Outra dificuldade é a impossibilidade de
registrar filhos de imigrantes estrangeiros dos países fronteiriços nascidos e residentes
no Brasil devido ao fato de os pais não apresentarem documentação civil
(LEONARDOS, 2013)
74
Amparado na Lei nº 11.961/2009, o Registro Nacional de Estrangeiros (RNE) é concedido, no Brasil, ao
estrangeiro admitido na condição de temporário, permanente, asilado ou refugiado, que é obrigado a se registrar e
a se identificar no Ministério da Justiça, com a Polícia Federal. A carteira de identidade para estrangeiros (RNE)
é o principal documento do estrangeiro residente no Brasil, e identifica sua condição de residência (temporária ou
permanente) e o prazo de estada. O RNE é concedido ao candidato e a todos os seus familiares dependentes,
independentemente da idade. Com o RNE, que possui característica análoga ao RG, o estrangeiro residente no país
pode dar entrada na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e contribuir para a Previdência Social,
estando, assim, amparado pela política nacional de seguridade social. Com o RNE, o estrangeiro pode matricular-
se em escolas e receber atendimento de saúde, sendo, portanto, documento base para acesso a direitos no país.
155
A situação dos indígenas “indocumentados”, por serem “invisíveis” perante os
Estados, gera diferentes problemáticas, como o subemprego. Sem documentos como a Carteira
de Trabalho, por exemplo, o indígena fica excluído de direitos trabalhistas e previdenciários
(PEREIRA, 2005, p. 148) e submete-se a condições degradantes de trabalho, como a observada
entre os catadores de materiais recicláveis do Aterro Sanitário de Boa Vista (RR), conforme
levantamento realizado pela Cartografia da diversidade e promoção dos direitos das
populações vulneráveis, realizado no ano de 2014. Também fica privado de acessar, ou o faz
com dificuldades, os direitos básicos à saúde e educação, principalmente para tratamentos de
saúde fora do domicílio.
Outro problema é quanto ao recebimento de remédios, realização de exames e
consultas com especialistas, que são controlados por meio de documentos como o Cartão do
SUS, como observado na fala dos profissionais da saúde indígena de Roraima. Além disso,
existe a questão do acesso aos níveis de educação profissional e universitária, uma vez que
também é necessário apresentar documentos de identidade civil para inscrição, realização de
provas e matrícula no referido nível de ensino (OLIVEIRA, 2010, p. 15).
Este cenário, não esgotado nesta dissertação, reflete o descumprimento de
recomendações internacionais de direitos humanos recepcionados pelos países em questão. Isso
demonstra que, concretamente, existem poucas iniciativas dos Estados nacionais, por meio de
suas instituições, e dos movimentos indigenistas, apesar de as autoridades públicas nos dois
países conhecerem o trânsito transfronteiriço. Este trânsito alcança, muitas vezes, municípios e
regiões fora da área considerada como faixa de fronteira, e ainda que reconheçam, ao menos no
discurso, que esses povos têm o direito de transitar e que a fronteira nacional está posta sobre
territórios étnicos, faltam medidas práticas e conjuntas que simplifiquem o acesso às políticas
indigenistas. Neste sentido, considera-se pertinente apresentar no encerramento deste capítulo,
de modo sucinto, como o tema de indígenas transfronteiriços tem aparecido na agenda bilateral
e regional entre Brasil e Guyana.
[...] a Guiana conta com a possibilidade de formar com o Brasil o eixo caribenho, isto
é, a ligação do Mercosul com a CARICOM. Anseia por investimentos em agricultura,
energia, tecnologia e não apenas por uma rodovia ou ferrovia que a transforme em
corredor de exportações brasileiras (LIMA, 2012, p. 114).
157
indígenas. Dentre suas atribuições está “[...] contribuir com iniciativas para o incremento da
participação nativa e efetiva dos povos indígenas nas ações, atividades e nos processos de
desenvolvimento regional da Amazônia que os afetam ou os incluam” (ORGANIZAÇÃO DO
TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICO, 2015). A Agenda tem como base as
experiências recolhidas nas reuniões que foram realizadas com autoridades governamentais e
organizações regionais e nacionais, a exemplo da I Oficina Regional da OTCA sobre proteção
e promoção de direitos dos Povos Indígenas em Região Fronteiriças na Amazônia, ocorrida em
Brasília em agosto de 2014, que contou com a participação de representantes dos Estados-
membros da organização, quais sejam: Brasil, Guyana, Suriname, Venezuela, Bolívia,
Colômbia, Equador e Peru.
O evento teve como objetivo apresentar aos países-membros as instituições
específicas que lidam com a questão indígena em cada Estado, bem como sua política
indigenista oficial, de modo a compartilhar experiências, desafios e oportunidades de
cooperação internacional. Um dos temas mais debatidos foi o Registro Civil de indígenas e o
acesso aos direitos sociais por povos indígenas em região de fronteira na Amazônia. O evento
teve como encaminhamentos a sugestão de criação de um banco de dados com informações
sobre etnias e comunidades em áreas de fronteira e seus territórios; avaliação da situação do
registro civil; aprimoramento, intercâmbio e divulgação de normativas nacionais; oficinas e
seminários sobre temas técnicos específicos. Quanto às ideias de enfrentamento à questão do
subregistro civil de indígenas, sobressaiu-se a sugestão de buscar soluções mais objetivas, como
o estabelecimento de um status diferenciado aos indígenas, de povos divididos por fronteiras
políticas, que lhes assegure o acesso à documentação civil e o pleno gozo de direitos em todos
os países (ROBERT, 2015, p. 64).
Outro fórum de diálogo regional que envolveu autoridades públicas e lideranças
indígenas foi realizado no âmbito do Mercosul, em maio de 2015, também em Brasília, o
“Seminário Registro Civil de Nascimento de Indígenas nas Fronteiras”, que teve como objetivo
promover o debate e a reflexão acerca do tema do registro civil de nascimento de indígenas em
situação de fronteira no Brasil e nos países vizinhos. O intuito foi subsidiar a definição de
soluções e consensos para o enfrentamento dos desafios relacionados à cooperação com os
Estados Partes e os Estados Associados do Mercosul. Os esforços voltaram-se para a construção
de consensos que pudessem contribuir com acordos de cooperação “além-fronteiras” entre
governos, com base na Convenção 169 da OIT (BRASÍLIA, 2015, p. 5).
158
Entre os encaminhamentos produzidos neste evento, com o objetivo de serem
apresentados ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil enquanto propostas iniciais sobre
o tema na Reunião de Autoridades para Povos Indígenas do Mercosul (RAPIM), que ocorreria
ainda no ano de 2015, estão: 1) esclarecimento e aperfeiçoamento do marco legal, que consiste
em eliminar as lacunas do ordenamento jurídico em relação ao tema de Registro Civil por meio
do aprimoramento dos instrumentos legais existentes; 2) recenseamento georreferenciado dos
povos indígenas nas fronteiras, realizando levantamento das aldeias indígenas com seus
respectivos nomes e coordenadas geográficas; 3) esforço coordenado de Registro Civil de
indígenas nas fronteiras, que consiste em iniciar, em ambos os lados, ações de curto prazo,
como mutirões de Registro Civil e oficinas de fluxo de Registro Civil, independentemente da
finalização do recenseamento, com a participação do Poder Executivo Federal, Estadual e
Municipal, Poder Judiciário, Ministério Público, cartórios, consulados, lideranças indígenas e
ONGs; e 4) acordo sobre Residência de Indígenas do Mercosul e Estados Associados, que
consistiria em definir requisitos simplificados de documentação, condizentes com as
particularidades dos indígenas e isenção de cobrança de taxas (BRASILIA, 2015, p. 51-52).
Outra recomendação feita durante o Seminário, embora não tenha sido acordada
entre os presentes, diz respeito à “Múltipla Cidadania de Indígenas Fronteiriços”. Essa
recomendação tomou como argumento a indicação que os indígenas fronteiriços
frequentemente têm direitos de cidadania em dois ou mais países, em decorrência do local de
nascimento (jus soli) e de laços familiares (jus sanguinis), ou, simplesmente por pertencerem a
povos indígenas que mantêm laços indenitários, familiares e de amizade além das fronteiras
nacionais (BRASILÍA, 2015, p. 52).
Percebeu-se, nesta pesquisa, que a fronteira entre Roraima e Guyana é uma
região de intenso fluxo populacional, mas suas instituições não atendem às demandas dessa
realidade. Há negligência e omissão no registro de informações sobre esse público, o que os
torna invisíveis interna e externamente, onde só serão considerados se portarem documentos
nacionais. Tal contexto, aliado às expectativas de acesso aos serviços, bens e direitos cujo
objetivo é melhorar as condições materiais de vida, explica a prática da “documentação
completa” e também resulta numa população de indocumentados não dimensionada.
A situação é ainda mais evidente ao se observar a sistematização das ementas
dos acordos/memorandos (vide Anexo desta dissertação), na qual a falta de acordos voltados à
circulação de pessoas para fins de trabalho, estudo, residência e à simplificação do acesso aos
vistos, naturalização ou nacionalização é um assunto a ser resolvido diplomaticamente.
159
Inexistem também acordos para o compartilhamento de informações necessárias à elaboração,
implementação, monitoramento e avaliação de políticas conjuntas, e, principalmente, de
acordos que viabilizem o acesso a serviços básicos como saúde e educação em todos os níveis,
sem que a falta de documentos nacionais seja um empecilho ao atendimento.
Observa-se, ainda, a falta de acordos que instruam e orientem as instituições
públicas dos países em questão a atender e registrar o atendimento independentemente da
apresentação de documento nacional. Tal ação se faz necessária para que, por meio de tais
informações, não apenas indígenas, mas todas as pessoas que transitam nessa fronteira, não
continuem “invisíveis” para o seu país de origem e para o país em que está residindo ou
trabalhando. É preciso que existam ações do Estado voltadas para a melhoria dos serviços e a
concretização de direitos previstos nos textos constitucionais e em tratados. Ademais, é
necessário que se construam ações conjuntas voltadas ao público indígena, haja vista que a
fronteira entre esses países é território histórico de habitação e trânsito dos grupos étnicos,
divididos pelas fronteiras nacionais. Estas incluem os índios enquanto cidadãos desde que
formalmente registrados como nacionais, mas excluem os que não estiverem documentados,
pelas diferentes razões apresentadas neste capítulo. Os excluídos, portanto, não são
considerados como cidadãos do Estado nacional onde não nasceram, ou que ao menos um dos
pais tenha nascido e cujo nascimento não tenha sido registrado ou, ainda, que não tenha
cumprido as exigências para naturalização ou obtenção de visto, mesmo que o território
fronteiriço seja de trânsito, sobrevivência e habitação secular desses grupos étnicos.
160
CONSIDERAÇÕES FINAIS
161
exigência impõe dificuldades à realidade transfronteiriça de povos como os Macuxi,
Ingaricó/Akawaio, Patamona, Wapichana e Wai Wai, cujo trânsito e relações socioculturais e
comerciais são históricas, ao passo que são intensificados pela demanda por serviços básicos,
trabalhos remunerados e benefícios monetizados. A dificuldade observada refere-se à
apresentação de documentos que identifiquem o indígena como nacional, portanto sujeito de
direitos, na visão dos Estados nacionais. Isso se dá porque os indígenas transfronteiriços não
são considerados automaticamente nacionais de ambos países apenas por pertencerem a grupos
étnicos comuns aos dois lados da fronteira.
A pesquisa evidenciou que o trânsito transfronteiriço de povos indígenas é uma
realidade conhecida por autoridades dos Estados nacionais. Contudo, a falta de políticas, ações
e entendimentos conjuntos indicam que esses Estados, por meio de suas instituições, têm se
omitido na adoção de medidas práticas que simplifiquem a relação desses povos entre si com a
sociedade envolvente e com o próprio Estado, por meio das políticas indigenistas.
Observou-se, também, que a omissão e ausência desses Estados nas regiões de
fronteira, a falta de diálogo bilateral ou multilateral voltado às realidades dos povos indígenas
transfronteiriços e, ainda, a conjuntura da exigência da apresentação de documentos nacionais
para acessar às políticas indigenistas têm resultado em duas situações: na prática da
“documentação completa”, que imputa responsabilizações legais aos indígenas
transfronteiriços. No caso dos indocumentados, que são indígenas invisíveis do ponto de vista
legal e para os Estados Nacionais, uma vez que não possuem documentos nacionais de nenhum
dos países pelos quais transitam, estando, portanto, à margem da cidadania nesses Estados.
Enfim, percebeu-se que embora estejam ocorrendo diálogos multilaterais, ainda
não existem práticas conjuntas. Os povos indígenas continuam a manter as dinâmicas
transfronteiriças considerando sua identidade étnica, territorialidade e também necessidades de
existência material. Esse trânsito se concretiza apoiado pela rede de relações sociofamiliares,
mas em algum momento resultará na busca pela nacionalidade, haja vista que esta é um
instrumento para o acesso aos direitos concedidos pelos Estados nacionais.
162
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174
ANEXOS
175
ANEXO A – Processo de titulação de Terras Ameríndias
177
Instrumento bilateral entre Brasil e Guyana Objetivos Data de assinatura
Promover o intercâmbio cultural, no seu mais amplo sentido, entre cidadãos do Brasil e da Guiana,
Convênio Cultural apoiando as instituições consagradas ao estudo, à pesquisa e à difusão das letras e das artes do outro 28/08/1968
país.
Promover a cooperação científica e tecnológica entre ambos os países, com vistas para contribuir a
Acordo Básico de Cooperação Científica e Tecnológica melhor avaliação e aproveitamento dos recursos naturais e o aperfeiçoamento dos recursos humanos 29/01/1982
respectivos.
Acordo para a Construção de uma Ponte Internacional Construir uma ponte internacional sobre o Rio Tacutu, bem como construir os postos de fronteira
29/01/1982
sobre o Rio Tacutu necessários à sua operação.
Colaboração nas áreas da Agricultura e Agroindústria; livre trânsito de materiais que visem
Memorando de entendimento sobre cooperação nas
estimular a colaboração; intercâmbio de informação técnico-científica e apoiar o desenvolvimento 05/10/1982
áreas da Agricultura e da Agroindústria
de Agroindústrias.
Criar um programa de cooperação entre os dois países que facilite o significativo avanço de suas
Tratado de Amizade e Cooperação entre Brasil e Guiana relações nos campos político, econômico, comercial, de comunicações, cultural e científico e 05/10/1982
técnico.
Ajuste Complementar ao Acordo Básico de Cooperação Desenvolver e ampliar a cooperação do CNPq e IAST no campo da pesquisa científica e
06/09/1988
Científica e Tecnológica entre o CNPq e o IAST tecnológica, no Âmbito de suas respectivas competências.
178
Protocolo de Intenções relativo à Cooperação Bilateral
Viabilizar a construção, por empresas brasileiras, da rodovia entre Mabura Hill e Lethen, a fim de
para completar a interconexão dos sistemas viários do 04/10/1989
completar a conexão rodoviária entre Georgetown e o território brasileiro.
Brasil e da Guiana
Recebimento, por parte do Ministério de Saúde do Brasil, até 24 pacientes guianenses para
Protocolo de Intenções na Área da Saúde 04/10/1989
tratamento médico em hospitais brasileiros.
Acordo de Transporte Rodoviário Internacional de Contar com um instrumento legal que regularize o transporte rodoviário de passageiros e cargas
07/02/2003
Passageiros e Cargas entre os dois países.
Nacionais titulares de passaportes comuns válidos poderão entrar, transitar, permanecer e sair do
Acordo sobre Isenção Parcial de Vistos território do estado da outra Parte, para fins de turismo, férias ou visita a parentes, sem necessidade 30/07/2003
de visto, desde que não exceda 180 dias.
Ajuste Complementar na Área de Saúde Implementar a Comissão Binacional Assessora de Saúde na Fronteira Brasil-Guiana. 15/02/2005
179
Estimular a cooperação na área da educação por meio do intercâmbio de informações, especialistas e
Programa Executivo da Área da Educação profissionais entre os dois países; Solicitação de inscrições em cursos de Pós-Graduação e 15/02/2005
Cooperação no campo de novas tecnologias.
180
Ajuste Complementar ao Acordo Básico de Cooperação
Implementar o Projeto "Fortalecimento da Capacidade de Monitoramento da Comissão Florestal da
Técnica para a Implementação do Projeto
Guiana", cuja finalidade é prestar treinamento na utilização de Sistemas de Informação Geográfica / 07/10/2008
"Fortalecimento da Capacidade de Monitoramento da
Sensoreamento Remoto para promovero manejo florestal sustentável.
Comissão Florestal da Guiana"
Nacionais titulares de passaportes comuns válidos poderão entrar, transitar, permanecer e sair do
Acordo sobre Isenção Parcial de Vistos território do estado da outra Parte, para fins de negócio, sem necessidade de visto, desde que não 14/09/2009
exceda 180 dias.
181
Ajuste Complementar ao Acordo Básico de Cooperação
Tem a finalidade de fortalecer a capacidade de pesquisadores guianenses para implementar um
Técnica para a Implementação do Projeto "Manejo 14/09/2009
sistema de controle da mosca da fruta.
Integrado da Mosca da Fruta na Guiana"
Criar Grupos de Trabalho para analisar formas de estimular: Construção de Usinas Hidrelétricas;
Memorando de Entendimento sobre Projetos de
Construção de Linhas de Transmissão; Construção de Porto de Águas Profundas e Melhoria da 05/12/2012
Infraestrutura na Guiana
Estrada Brasil-Guiana.
Fonte: Atos bilaterais. Disponível em: <http://dai-mre.serpro.gov.br/pesquisa_ato_bil>. Acesso em: out. e dez. 2015
182