Vitor Guerreiro - Metafísica e Música

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 24

Será que a metafísica da música é

redundante?
Vítor Guerreiro

Há quem ponha em causa a relevância da metafísica da música,


tanto para a experiência que temos dela como para a
compreensão da sua natureza. Quem argumenta que a
metafísica da música é musicalmente irrelevante, se bem
compreendo, defende que os problemas metafísicos sobre
música são musicalmente irrelevantes por não serem
problemas da música e sim da metafísica. Por outras palavras,
a expressão “metafísica da música” seria redundante porque
nada do que possamos afirmar metafisicamente acerca da
música tem estritamente a ver com entidades musicais, não são
problemas que resultem da natureza da música, apenas se
aplicam à música do mesmo modo que se aplicam a outras
realidades. A música estaria metafisicamente em paridade com
as maçãs, pelo que seria redundante falar em metafísica “da
música”. A metafísica, segundo este argumento, é acerca da
música na mesma medida em que é acerca de todas as outras
coisas. Podemos ilustrar um problema metafísico com maçãs:
por exemplo, como podem duas maçãs distintas partilhar as
mesmas propriedades (por exemplo, o ser uma maçã e
a vermelhidão)? A música e as maçãs colocariam exactamente
os mesmos problemas metafísicos.
A refutação desta ideia é praticamente intuitiva: basta pensar
naquilo que podemos afirmar sobre dois tipos de entidades:
Deus e entidades ficcionais (não estou a afirmar que Deus é uma
entidade ficcional, nem estou a afirmar que não é, estou a
chamar a atenção para dois tipos de entidade que colocam
problemas metafísicos e não estão obviamente em paridade
com as maçãs). Primeiro, acerca de Deus. Há uma série de
questões metafísicas sui generisque se coloca a propósito da
existência de Deus. Hoje em dia tratamos essas questões na
filosofia da religião, e não na metafísica geral, embora em
tempos elas tenham pertencido à metafísica geral. Contudo, o
desenvolvimento da filosofia da religião tornou muito mais
razoável que se tratasse essas questões numa área diferente.
As questões metafísicas sobre Deus tornaram-se assim
em metafísica aplicada, no contexto da filosofia da religião. O
que justifica este tratamento separado, além do
desenvolvimento da filosofia da religião em geral (que não trata
apenas de questões metafísicas)? O facto de Deus levantar
questões sui generis, que não se colocam a propósito de outras
entidades. As questões metafísicas sobre Deus não são o
mesmo que as questões metafísicas sobre maçãs. Parece que
Deus é um particular concreto, uma entidade singular, mas por
outro lado, há teorias segundo as quais Deus não tem existência
espácio-temporal, ao contrário de todos os particulares
concretos que conhecemos. O Deus dos teólogos tradicionais é
um ser omnipotente, omnisciente, moralmente perfeito e
autoexistente (não depende de outra coisa para existir). Há
problemas metafísicos levantados pela compatibilidade entre as
diversas propriedades de Deus, tal como há o problema da
compatibilidade entre a existência de Deus e a existência de mal.
É bastante fácil ver que os problemas metafísicos acerca de
Deus não podem pertencer à metafísica geral. São antes
problemas de metafísica aplicada, um ramo especial de
metafísica aplicada. Em parte isto deve-se ao desenvolvimento
sofrido pela filosofia da religião, mas fundamentalmente deve-se
ao facto de as questões metafísicas acerca de Deus serem sui
generis. Que significa isto? Significa que essas questões surgem
por causa do tipo especial de entidade que estamos a investigar,
ou seja, não são questões que se coloquem em geral para toda
uma categoria de entidades à qual aquele objecto por acaso
pertence. Passemos agora às entidades ficcionais: não temos
como ilustrar os problemas acerca de entidades ficcionais
recorrendo a maçãs (pelo menos aquelas que podemos morder;
as maçãs mordidas por Sherlock Holmes são outra história). Por
que razão isto é assim? Porque a natureza das entidades
ficcionais não é algo que seja claro para nós, ao passo que a
natureza das maçãs é razoavelmente clara. As maçãs são
particulares concretos. Mesmo que adoptássemos uma teoria
metafísica que reduza os particulares concretos a outra
categoria mais primitiva (por exemplo, modificações de uma só
substância) ou que eliminasse pura e simplesmente a noção de
objectos individuais, nenhum problema especial resultaria da
categorização das maçãs. Tudo o que podemos afirmar
metafisicamente acerca de maçãs podemos afirmar sobre
garrafas, violinos, rabanetes ou estantes, ou seja, sobre
quaisquer itens que categorizamos como particulares concretos,
mesmo que reduzamos a categoria “particulares concretos” a
outra mais primitiva ou a eliminemos.
Pensar que os problemas metafísicos se aplicam do mesmo
modo a todas as coisas ou que todas as coisas levantam os
mesmos problemas metafísicos leva-nos naturalmente à crença
de que só faria sentido falar numa “metafísica de…” se daí
resultassem consequências interessantes fora da metafísica,
por exemplo, a resposta que damos ao problema do livre-arbítrio
tem consequências para a moralidade: somos responsáveis
pelos nossos actos? Será que não há justificação para punir
crimes? Nada mais distinguiria os problemas metafísicos a não
ser a sua maior ou menor proximidade com a nossa experiência
quotidiana. Como a metafísica da música não parece ter
consequências para o modo como apreciamos a música, deve
ser irrelevante.
Mas isto é uma ilusão.
Em primeiro lugar, as consequências da discussão do livre-
arbítrio não saem do âmbito da metafísica: trata-se de saber se
há ou não agentes morais ou se punir crimes é injusto. Mas se
eu pensar que não há livre-arbítrio, isso não afecta a
fenomenologia das minhas decisões, nem me impõe a decisão
de abdicar de fazer escolhas. Seria inclusive contraditório
pensar tal coisa, pois seria como pensar que há uma decisão
livre apropriada a tomar uma vez descobrindo que nenhuma
decisão é livre. Temos de viver com as nossas decisões,
independentemente de qual a teoria que temos sobre a sua
natureza.
Em segundo lugar, embora num certo sentido compreender
a natureza da música não afecte as nossas experiências
musicais, tal como ter uma teoria nominalista não afecta a
experiência que temos do vermelho numa maçã ou ter uma
teoria eliminativista sobre qualianão faz os feijões perderem
sabor ou ser realista acerca de objectos matemáticos não afecta
o modo como resolvemos equações, há um sentido em que a
metafísica da música afecta a nossa experiência da música.
Ouvir música não é apenas uma experiência agradável. Pode
também ser uma experiência cognitivamente sofisticada. Claro
que há experiências musicais que não são assim. Há
experiências gastronómicas cognitivamente mais sofisticadas do
que algumas experiências musicais. Estas serão meramente
agradáveis, na medida em que assentam apenas na intensidade
da qualidade hedónica. Mas a qualidade hedónica de uma
experiência cognitivamente sofisticada assenta na amplitude
(exploração, descoberta) e não na intensidade apenas. Quanto
mais sofisticação cognitiva introduzimos na nossa compreensão
da música, mais gratificante será a experiência que temos dela
(isto não significa que a metafísica acrescenta propriedades
audíveis à música, ou que é análoga ao treino do ouvido para
distinguir nuances instrumentais). De igual modo, reflectir na
natureza da arte influi na profundidade das experiências que
temos dela, mesmo que não nos sirva de bússola estética, ou
como um daqueles programas que se lê antes dos concertos,
com orientações sobre o que devemos ou não imaginar
enquanto ouvimos a música.
Em terceiro lugar, a música é muito mais semelhante às
entidades ficcionais do que às maçãs, não no sentido de as
sinfonias de Haydn serem como as canções de Orfeu ou de
serem produto da imaginação literária, como os solos de violino
de Sherlock Holmes, mas no sentido de não ser claro qual a
natureza da música, tal como não é clara a natureza dos
objectos ficcionais. Considere-se a seguinte afirmação: “Ladrões
roubaram 10 kg de maçãs na mercearia do Chico”. Nenhum
problema aí, pode até ser mentira mas a afirmação é inteligível.
Vejamos estoutra: “Ladrões roubaram os Jogadores de
Cartas de Cézanne”. Nenhum problema aí. A afirmação é
inteligível — alguém levou um objecto físico, um particular
concreto (neste caso uma pintura), de uma região do espaço
para outra. Mas vejamos agora esta afirmação: “Ladrões
roubaram a Sinfonia n.º 22 de Haydn”. O que significa isto? Por
que razão esta afirmação parece estranha? O que teriam os
ladrões de levar para se poder afirmar inteligivelmente que
roubaram a sinfonia? No entanto, não parece haver problema
em roubar 10 kg de maçãs numa mercearia ou uma pintura de
um museu. Ou pelo menos não parece haver um problema
metafísico em fazê-lo. Isto devia ser assim no caso de a música,
se ela estivesse em paridade com as maçãs e as pinturas nesta
matéria. O facto de a música não estar em paridade metafísica
com as maçãs faz que as questões metafísicas sobre música
pertençam a uma área da metafísica aplicada — metafísica da
arte — e não à metafísica geral (como afirma o argumento da
irrelevância); e o facto de não estar em paridade com as pinturas
(e outro tipo de obras de arte) faz que a metafísica da música
seja uma área de metafísica aplicada por direito próprio,
autónoma dentro da metafísica da arte. Mas vamos examinar
esta ideia um pouco mais cuidadosamente.
A pergunta pela relevância da metafísica da música como
investigação autónoma, quer no contexto mais geral da
metafísica quer no contexto da metafísica da arte, faz todo o
sentido. Por exemplo, não há uma disciplina chamada
“metafísica das maçãs” precisamente porque não há problemas
metafísicos colocados por maçãs (por exemplo, partilha de
propriedades, existência ao longo do tempo) que não sejam
colocados por quaisquer outros particulares concretos. É claro
para nós a que categoria ontológica pertencem as maçãs: são
entidades com existência espácio-temporal, que não têm
múltiplas instanciações, que têm propriedades mas não são
propriedade de outras coisas. Em suma, particulares concretos.
Mas os particulares concretos não são a única categoria
ontológica: há metafísica de propriedades; metafísica de
entidades abstractas; metafísica do tempo; metafísica da mente;
metafísica de proposições; metafísica dos objectos
matemáticos; outra divisão da metafísica é a ontologia (que é o
estudo das categorias que formam os diversos “mapas
metafísicos” da realidade, consoante o tipo de teoria que
defendemos: por exemplo, um nominalista terá um mapa da
realidade onde só constam particulares concretos e/ou
acontecimentos.) Cada categoria ontológica levanta problemas
metafísicos próprios: O que são acontecimentos? O que são
estados de coisas? O que são factos? O que são propriedades?
Ora, a razão por que não há uma metafísica das maçãs é porque
a pertença das maçãs à categoria dos particulares concretos não
é controversa. É claro para nós a que categoria pertencem as
maçãs. E mesmo que adoptássemos uma ontologia onde só há
acontecimentos mas não particulares concretos, as maçãs não
colocariam qualquer problema sui generis.
Os objectos abstractos colocam problemas sui generis: se
existem, serão eternos (existem em todos os momentos do
tempo) ou intemporais (não existem em momento algum do
tempo)? Se são causalmente inertes, como podemos ter
conhecimento deles? Se não têm existência temporal, como
podem ter relações temporais com particulares concretos? (Por
exemplo, quando alguém pensa no objecto abstracto x em 1567
e outra pessoa pensa no mesmo objecto em 2010.) Tomando
como exemplo os objectos matemáticos — o teorema de
Pitágoras, digamos — não parece controverso afirmar que são
descobertos e não criados. Parece pacífico afirmar que as
fórmulas matemáticas são descobertas e não inventadas pelos
seus descobridores ou que as proposições necessárias (se as
há) não podem começar a existir num certo momento do tempo.
Estas ideias são discutíveis, evidentemente, mas isso não
significa que sejam obviamente controversas. É argumentável
que as maçãs possam pertencer a outra categoria ontológica
(por redução ou eliminação), mas não é controverso considerá-
las particulares concretos.
O mesmo não acontece com as propriedades, pois não é
claro se são abstractas ou concretas ou particulares ou
universais. Não é claro o que sejam factos, estados de coisas,
proposições, possibilidades, necessidades, entidades
abstractas, partes temporais, objectos matemáticos… O que é
problemático no caso das maçãs não tem a ver propriamente
com as maçãs mas com o problema de saber como dois
particulares concretos (coisas que ocupam uma só região do
espaço em cada momento) podem partilhar as mesmas
propriedades. Se as propriedades são as mesmas nos dois
objectos então têm de estar presentes em mais do que uma
região do espaço ao mesmo tempo, o que é problemático. Se
não estão presentes em mais do que uma região do espaço ao
mesmo tempo então não é claro como podem ser as mesmas
propriedades nem que relação têm com os particulares que as
instanciam. Mas isto não sucede no caso da música. Aquilo que
é metafisicamente problemático nas obras musicais resulta
directamente de se tratar de obras musicais e não de quaisquer
outras entidades. O problema começa desde logo por não ser
claro a que categoria ontológica pertencem as obras musicais —
e não desaparece quando as classificamos como particulares
nem quando as classificamos como universais ou como
qualquer outra coisa. Todas as alternativas têm problemas.
Portanto, os problemas metafísicos sobre música sãosui
generis. Não são meros casos especiais de problemas sobre
qualquer entidade pertencente a uma ou outra categoria
ontológica. São problemas que surgem por causa da natureza
das obras musicais. No caso das maçãs, o problema não surge
por causa da natureza das maçãs mas por causa da natureza
dos particulares concretos e das propriedades em geral.
Um pressuposto errado do argumento da redundância é
tomar por garantido que a música é uma “coisa” — o que
normalmente quer dizer “particular concreto”. Ou seja, toma-se
por garantido que a pertença da música a uma categoria
ontológica é incontroversa. Mas isto não é verdade. Creio que a
falta de clareza quanto à distinção entre o que seja uma “obra”
musical, uma “interpretação”, uma “execução”, etc. prejudica
imenso a compreensão do que está em causa. Se alguém se
senta ao piano e toca duas vezes a mesma sonata, temos dois
acontecimentos sonoros distintos mas apenas uma obra. Não se
tocou duas sonatas mas apenas uma. Os dois acontecimentos
sonoros distintos são ambos ocorrências da mesma entidade,
que é meramente descrita pela partitura. A partitura (o papel
impresso) obviamente não é a obra, pois trata-se de um
particular concreto, e os particulares concretos não têm
exemplificações múltiplas — são irrepetíveis.
Porém, nem todos os acontecimentos musicais são
necessariamente ocorrências de obras musicais. Pode haver
acontecimentos musicais que sejam puramente “performativos”
no sentido de não instanciarem qualquer universal ou tipo
abstracto, o que nada tem a ver com o seu valor estético. Isto
não é claro em si mesmo: será que uma improvisação
espontânea não exemplifica um universal que o improvisador
cria ao mesmo tempo que improvisa? Talvez. Parece que as
improvisações espontâneas divergem das composições na
elaboração: o improvisador não se interrompe para verificar
diversas possibilidades de desenvolvimento temático. Tão-
pouco a música que conhecemos e que envolve bastante
improvisação é puramente performativa. A questão de saber o
que faz dois acontecimentos sonoros serem instanciações da
mesma peça jazzística não é menos pertinente do que quando
aplicada à música clássica europeia. De resto, a própria música
“clássica” europeia até ao século XIX envolvia normalmente a
improvisação (as chamadas cadenzas nos concertos para
instrumentos solistas) e no renascimento a instrumentação era
variável, ou seja, as peças podiam ser executadas com
quaisquer combinações de instrumentos ou voz, o que veio a
mudar drasticamente. Faz todo o sentido perguntar se uma
execução da Partita em Dó menor num sintetizador electrónico,
ou em qualquer instrumento que não aquele para que foi escrita,
continua a ser uma ocorrência genuína da obra
(independentemente de quão bem ou mal soa).
Seja como for, não há uma maneira pacífica de afirmar que
a música é uma “coisa” no sentido de um particular concreto. As
execuções e interpretações são acontecimentos complexos e
não objectos particulares, como uma partitura, mas são
igualmente irrepetíveis. A execução da Sinfonia nº 22 de Haydn
que ocorreu entre as 21:00 e as 21:20 de ontem não
pode ser a Sinfonia nº 22. De contrário a obra não tinha existido
até ontem e deixou de existir às 21:20 de ontem. Podemos
afirmar algo poeticamente que a sinfonia só existe enquanto é
executada. Mas a noção de existência intermitente não é clara.
Ficamos com o problema de mostrar como algo pode existir
intermitentemente, o que é incompatível com a ideia de que a
metafísica é irrelevante para a música. No máximo, podemos
dizer que a natureza da música não nos interessa, só nos
interessa ouvir os acontecimentos sonoros, mas isto não é
argumento contra a metafísica da música. A confusão categorial
leva também a que se misture os problemas. O problema
metafísico de saber o que faz um acontecimento sonoro contar
como música e não como mero ruído é um problema distinto
quer do problema de saber que tipo de entidade é uma obra
musical, quer do problema de saber o que confere valor estético
ao acontecimento musical (seja ou não instanciação de uma
obra). Os dois primeiros são problemas metafísicos, o último é
um problema de estética musical.
As execuções e interpretações de obras são acontecimentos
sonoros, entidades irrepetíveis, como também o é qualquer
“performance” que não seja de uma determinada obra — isto é
tão claro como saber a que categoria pertencem as maçãs —
mas que tipo de entidades são as obras musicais? O que se
repete em cada ocorrência sonora que a faz ser uma
ocorrência de determinada obra? É problemático qualificar uma
obra musical (e não tem de ser um exemplo da música clássica
europeia, pode ser uma canção ou um exemplo retirado de
culturas musicais de outras latitudes) como um particular
concreto ou como um acontecimento singular.
As partituras são objectos concretos. Isto é, cada partitura
individual, que consiste numa ou mais folhas de papel com
inscrições de pentagramas e notas. Aqui há uma distinção subtil
a fazer: as partituras podem ser tipos ou espécimes. Vejamos,
cada exemplar impresso da partitura das Suites Francesas de
Bach é um espécime do mesmo tipo, a que chamamos na
mesma “partitura” das Suites Francesas, no mesmo sentido em
que dizemos de um muro onde alguém escreveu 20 vezes a
palavra “gato” que tem 20 inscrições da mesma palavra e não
20 palavras. Assim, a partitura-tipo será um objecto abstracto,
enquanto as partituras-espécime são objectos concretos.
Contudo, nenhum nominalista (aquele que defende que só há
particulares concretos) estaria interessado em reduzir obras
musicais a partituras-tipo, pois assim deixaria de ter um objecto
abstracto para ficar com outro igualmente abstracto, e ao
nominalista interessa reduzir as obras musicais a objectos
concretos (como as partituras-espécime) ou eliminar
simplesmente as obras musicais, recorrendo a paráfrases em
que todas as afirmações sobre obras são convertidas em
afirmações sobre execuções ou interpretações. Em todo o caso,
as partituras (tipo ou espécime) não são candidatos viáveis a
serem identificados com as obras musicais. A partitura é
uma representação da obra e não a própria obra, tal como a
palavra “gato” representa um animal mas não é ela própria o
animal que representa. Quando dizemos que a Partita em Dó
menor tem um ré bemol no terceiro compasso do primeiro
andamento não nos referimos à inscrição em cada partitura da
colcheia prolongada e ao sinal de “bemol” que a antecede, nem
sequer ao tipo notacional que cada inscrição exemplifica. A
notação representa uma propriedade que a obra (o tipo) tem e
que cada execução ou interpretação (cada espécime
sonoro) instancia naquele compasso, quando o músico executa
a obra. A partitura não pode instanciar esta propriedade porque
se trata de uma propriedade audível e fontes tipográficas não
são objectos audíveis. Além disso, há obras que não têm
partituras. Já se compunha e reproduzia peças musicais antes
de haver a notação musical moderna (com outros tipos de
notação mais primitiva ou dispositivos mnemónicos ou
simplesmente por tradição oral) — embora seja legítimo
questionar até que ponto se pode falar em obras musicais na
idade média, por exemplo, no mesmo sentido em que falamos
em obras musicais hoje em dia. Outra objecção a identificar as
obras com as partituras é que as obras podem sobreviver à
destruição das partituras. Muitos músicos são treinados para
serem capazes de passar a escrito uma partitura depois de
ouvirem uma execução da peça musical que essa partitura
descreve. Os próprios compositores começam por imaginar os
sons e fazer experiências ao piano ou com outros meios e vão
registando na partitura os “acontecimentos sonoros” que
ocorrem nas suas cabeças. Portanto, as partituras não podem
ser identificadas com as obras.
A existência ou não de uma partitura não resolve o problema
pois pode haver obras sem haver partituras. Basta pensar numa
melodia transmitida oralmente a várias gerações: tem de haver
algo que explique que várias ocorrências de uma só melodia ou
conjunto de melodias sejam ocorrências da mesma entidade.
Será que a melodia é um certo padrão rítmico e harmónico? Mas
isso não pode ser um particular concreto. Não é directamente
relevante que a melodia esteja ou não fixada num sistema de
notação. Os etnomusicólogos fazem recolhas de espécimes de
música popular, gravando-as num suporte analógico ou digital,
passando-as a notação. Mas o problema ontológico de saber
que tipo de coisa são essas entidades não surge só quando
alguém inventa a notação ou a usa para fixar a obra. Tão-pouco
é algo que seja peculiar à música “clássica” europeia (que nem
sequer é a única a usar notação). A notação é apenas um tipo
de memória. Isto não altera o problema. O compositor antes de
escrever a partitura tem a obra ou partes dela na memória. A
partitura é apenas uma extensão dos nossos poderes mentais.
É a possibilidade de se fixar uma obra em notação que
pressupõe a anterioridade do problema ontológico.
O defensor do argumento da irrelevância dirá talvez: “Ah!
Mas o problema de saber como dois acontecimentos sonoros
distintos podem ser instanciações da mesma melodia é igual ao
problema de saber como quaisquer duas maçãs podem
exemplificar o mesmo universal.” Sim e não. No caso da música
há problemas adicionais que não se verificam a propósito de
maçãs e do universal da vermelhidão. As obras musicais têm
uma estrutura complexa. Têm propriedades rítmicas,
harmónicas, tímbricas, entre outras. Há o problema da
autenticidade, ou seja, de saber quais as propriedades que são
relevantes para que algo conte como uma ocorrência do mesmo
tipo. Será apenas o padrão rítmico e harmónico? E quanto ao
timbre? E o contexto funcional, no caso de peças anteriores à
invenção da sala de concertos? Talvez uma execução
da Sinfonia n.º 22 de Haydn usando um sintetizador electrónico
e um programa de sequenciação seja uma ocorrência genuína
ou não (questão independente do valor artístico de tal
experiência: quem disse que para ser bom tem de ser genuíno?),
mas seja ou não, isso não é claro, como no caso de saber se
algo exemplifica a vermelhidão, a coragem ou outro universal
qualquer. Nem é preciso recorrer ao exemplo mais óbvio do
sintetizador electrónico. Um dos aspectos interessantes
da Sinfonia nº22 de Haydn é o uso em algumas passagens de
dois cornes ingleses em vez do habitual oboé. Será que uma
execução da mesma sinfonia usando outro instrumento de sopro
da época nas mesmas passagens, ou instrumentos mais
modernos, como o saxofone, seria ainda uma execução
autêntica dessa obra (por outras palavras: as
propriedades tímbricas das obras são
propriedades normativas)? Além da identidade e da
autenticidade das obras e das suas ocorrências, há mais
problemas metafísicos sobre música. Por exemplo, a analogia
entre a música e a linguagem é plausível? Se a música não tem
conteúdo representacional isso significa que não é conceptual?
Será a música apenas o “jogo agradável das sensações”, como
a caracterizou Kant?
Voltando à ontologia das obras. Imagine-se que
consideramos que a obra musical é um particular concreto: o que
pode ser? A partitura? Não faz sentido, pois a partitura e a obra
têm propriedades diferentes. A obra é audível e a partitura não.
A obra pode existir sem a partitura (por transmissão oral) mas a
partitura só existe se existir uma obra cujas propriedades
normativas são descritas pela notação. (Claro que haverá
propriedades não normativas que podem ou não estar na
partitura — isso faz parte do problema da autenticidade.) Nelson
Goodman pensou ter descoberto a solução: as obras
são classes ou conjuntos de execuções/interpretações
conformes à partitura, pelo menos nos seus aspectos
normativos (nem todas as propriedades são normativas: no jazz,
nos ragas indianos ou nosmaqam da música árabe, as
execuções das mesmas peças têm duração muito diversa,
variações tímbricas, instrumentais, improvisação, mas
continuam a ser instâncias das mesmas peças. No caso da
música indiana e árabe é ainda mais complicado: um raga não é
necessariamente uma obra no sentido em que a Partita em Dó
menor de Bach é, mas ambos são entidades multiplamente
instanciáveis.) Porém, a solução de Goodman não funciona.
APartita em Dó menor de Bach tem a propriedade de ter sido
concluída em 1726. A classe de todas as execuções da Partita
em Dó menor é temporalmente aberta: há um número
potencialmente infinito de execuções “autênticas” da obra, ou
seja, que conservam as propriedades normativas, mesmo que
tenham outras que não são normativas e que não constam nas
especificações do compositor. Além disso, podemos afirmar que
uma dada execução da Partita em Dó menor foi pouco
expressiva, sem que isto queira dizer que a própria obra é pouco
expressiva. Dizemos que a obra é expressiva e que as
execuções conseguem ou não conseguem realizar essa
expressividade. As execuções e interpretações têm
propriedades que a própria obra não tem de ter. Por exemplo,
um dado intérprete pode fazer uma interpretação mais “rígida”
ou “clássica” enquanto outro faz uma interpretação mais
“romântica”, com mais ornamentação ou fraseado diferente. Mas
isto é incompatível com identificar as obras com classes ou
conjuntos de execuções. Enquanto a identidade do conjunto é
determinada pelos seus membros, a identidade do tipo
(abstracto) não é determinada pelos seus espécimes. Dois
conjuntos de execuções diferentes da Partita em Dó menor são
entidades diferentes, mas enquanto tipo abstracto, a Partita em
Dó menorpodia ter execuções diferentes das que efectivamente
já teve ou terá, ou podia mesmo nunca ter quaisquer execuções
(a partitura podia ter-se perdido, como sucedeu a outras obras
de Bach, e não é claro que deixasse de existir por causa disso.
Por vezes descobre-se partituras perdidas e não parece
razoável afirmar por isso que as obras têm existência
intermitente). Outra dificuldade de identificar as obras com
conjuntos de execuções é que, intuitivamente, basta ouvir uma
execução da Partita em Dó menor para termos ouvido essa
obra. Mas se identificamos a obra com o conjunto das suas
execuções, só podemos afirmar que a ouvimos ao ouvir a
totalidade da extensão do conjunto.
Porém, considerar as obras musicais como tipos abstractos
tão-pouco é incontroverso. Desde logo, os mesmos problemas
que se levantam para entidades abstractas noutras áreas da
filosofia colocam-se no caso da música com particular gravidade:
parece incontroverso afirmar que uma fórmula matemática é
descoberta e não criada. Mas não é assim que entendemos as
obras musicais. Vemo-las como criações dos compositores,
como algo que começa a existir num dado momento do tempo.
Será que as obras musicais são também descobertas em vez de
criadas?
Os tipos abstractos têm outra particularidade:
são causalmente inertes (ou assim pensamos que são). Mas as
obras musicais não só têm relações temporais como espaciais e
causais: são entidades audíveis. Se ouço agora uma execução
ou ocorrência da Partita em Dó menor, estou numa relação
temporal e espacial com a obra, a execução consiste em
vibrações do ar, que ocupam uma determinada região do
espaço, e a audição da obra tem efeitos causais em mim — a
música pode induzir a estados devocionais ou até provocar
motins, como sucedeu na estreia da Sagração da Primavera de
Stravinsky.
Há outras perguntas intrigantes: pode uma obra musical ser
destruída? Uma vez criada, se destruirmos todas as partituras e
os padrões rítmicos e harmónicos forem completamente
eliminados da memória das pessoas, pode-se ainda afirmar que
a obra existe? A resposta não é clara, mas há uma resposta
verdadeira.
Uma série de outras questões metafísicas sobre música
dizem respeito às propriedades expressivas. Há algo na
natureza da música que dê sentido às atribuições de qualidades
emotivas que por vezes fazemos (“esta música é triste, alegre,
melancólica, etc.”)? Se há, de que propriedades se trata? É
possível haver referência na música (além dos casos
relativamente incontroversos da citação intramusical — quando
um compositor cita obras de outros compositores ou outras
obras suas, por exemplo, na Abertura 1812, de Tchaikowsky,
que cita a Marselhesa, ou na canção “The Hyacinth House”, da
banda rock, The Doors, que cita a Polonesa n.º 2 em Lá maior,
de Chopin)? Serão essas propriedades meramente
disposicionais, do mesmo modo que o pôr-do-sol tem a
tendência a evocar estados de contemplação extasiada? Serão
propriedades formais, no sentido da teoria “do contorno”
defendida por Peter Kivy, segundo a qual há “isomorfismos”
entre certas características formais da música (cadências,
dinamismo, tensão-resolução, etc.) e certas características dos
nossos estados emocionais (um exemplo claro é a semelhança
entre a turbulência de um rio (que não tem de ser referencial,
não é acerca da turbulência) e a turbulência de um estado
emocional tal como se manifesta na dinâmica do discurso e no
comportamento gestual)? Será que não há pura e simplesmente
tais propriedades na música, como afirmava Hanslick? Será que
o contexto histórico de uma obra é relevante para o modo como
temos experiência dessa obra hoje? Será que a categoria das
emoções simplesmente não é relevante para a experiência que
temos da música? Afinal, parece haver imensos casos de fruição
intensa de espécimes musicais belíssimos sem que isso
comporte qualquer tipo de agitação emocional. A polifonia vocal
do renascimento deixou-nos verdadeiros monumentos musicais
de beleza e inteligência e a audição deste tipo de peças não tem
qualquer das qualidades emocionais habitualmente associadas
aos concertos e sinfonias do século XIX ou mesmo a uma
canção de rock.
Os problemas metafísicos da música não se resumem a este
esboço. E as observações que fiz chegam para mostrar que a
música não está em paridade com as maçãs quanto ao carácter
incontroverso da sua classificação como particulares concretos.
Nada é metafisicamente claro acerca da música, e os problemas
que coloca são sui generis ou seja, não se subsumem nos
problemas colocados por outras entidades abstractas ou
concretas, particulares ou universais.
A afirmação de que a metafísica da música é irrelevante para
a música porque não afecta a experiência que temos dela tem
ainda outra consequência problemática. A metafísica dos
objectos matemáticos também não tem influência no modo como
fazemos cálculos ou resolvemos equações. A filosofia da arte
(que não da música) não interfere na fenomenologia da arte. O
objectivo é compreender a natureza da experiência que temos
da arte e não afectar essa experiência (teorias com esse
objectivo têm mais a ver com as divagações de Adorno sobre o
carácter revolucionário do dodecafonismo, que são propaganda
política e não filosofia da música) pelo menos do mesmo modo
que os comentários da crítica musical a afectam.
Num certo sentido é verdade que a metafísica da música não
afecta a música. Mas há um sentido em que isto é falso. A
metafísica da música afecta a nossa compreensão da natureza
da música e isto é relevante para o tipo de relação que
estabelecemos com os objectos musicais. Por que gostamos de
música? Porque nos comove, porque alarga o âmbito da nossa
experiência (como a literatura, mas de outro modo), porque nos
emociona, porque nos deleita, porque empenha a nossa
inteligência e a nossa imaginação… Será assim tão razoável
afirmar que compreender a natureza última de algo que tem este
efeito em nós não é relevante ou interessante? Que a nossa
curiosidade intelectual pela música não sofre qualquer efeito
com este tipo de investigação? Claro que pode não interessar
amim, mas isso é como afirmar que não me interessa aprender
a ler música ou a analisar uma partitura… E depois? A diferença
é que os problemas metafísicos sobre música não são
estritamente técnicos e apelam naturalmente à nossa
curiosidade, como o fazem todos os problemas metafísicos. A
tal ponto que mesmo quem nega a relevância da ontologia da
música tem de facto uma perspectiva ontológica sobre a música
(tem uma ideia sobre que tipo de entidades se trata). A diferença
é que não tem uma perspectiva pensada e sistemática. E
nenhum mal há nisso. Afinal, não preciso de saber ler música
para ouvir música, mas isso nada tem a ver com o valor ou
interesse de saber ler música.
Podemos modificar a formulação original do argumento da
irrelevância de modo a este fazer uma afirmação mais modesta:
que os problemas metafísicos sobre música são apenas
aplicações particulares da metafísica em geral e não problemas
da música. Mas isto é óbvio.Todos os problemas metafísicos
de todas as áreas da filosofia são aplicações particulares da
metafísica em geral. Todos os problemas da filosofia são ou
metafísicos ou epistemológicos (alguns deles, mas não todos,
de carácter lógico, outros de carácter valorativo); enquanto a
metafísica e a epistemologia tratam os problemas mais gerais,
as outras áreas da filosofia colocam problemas específicos
sobre um aspecto em particular da realidade: propriedades,
relações, abstracta, mentes, números, proposições, arte,
valores… e música. O argumento da irrelevância musical da
metafísica da música, portanto, leva à consequência absurda de
eliminar todas as áreas da filosofia excepto a metafísica e a
epistemologia. A metafísica de qualquer coisa é uma aplicação
especial da metafísica, ou seja, é metafísica aplicada.
Relembremos as questões sobre Deus. Antigamente, tais
questões faziam parte da metafísica geral, mas hoje faz mais
sentido tratá-las em filosofia da religião, porque aí se trata outras
questões acerca de Deus que não pertencem à metafísica geral.
O mesmo acontece com a metafísica da música. As questões
metafísicas sobre música são sui generis(como este artigo
pretendeu mostrar) pelo que faz muito mais sentido tratá-las na
área de estética e filosofia da música, onde se trata outras
questões sobre música que não pertencem à metafísica geral.
Além disso, é falso que a metafísica da música seja
musicalmente irrelevante. A única razão por que fazemos
metafísica de alguma coisa é para compreender a natureza
dessa coisa. Compreender a natureza da música é
musicalmente relevante. O que acontece é que a metafísica da
música não é o mesmo que a estética da música (que também
faz parte da filosofia da música), embora não se possa sempre
separá-los. Por exemplo, o problema de saber se o contexto
histórico das obras musicais é esteticamente relevante para a
apreciação é simultaneamente um problema metafísico e
estético — é o problema de a música ter ou não propriedades
estéticas que são dependentes do contexto histórico. O
problema de saber o que é a beleza musical é simultaneamente
metafísico e estético. Tanto a metafísica como a estética da
música são importantes. A última observação mostra outra
ilusão no argumento da irrelevância: a ilusão de que podemos
discutir problemas estéticos sem fazer qualquer discussão
metafísica.

Vítor Guerreiro

Você também pode gostar