A Pena e A Lei - Ariano Suassuna
A Pena e A Lei - Ariano Suassuna
A Pena e A Lei - Ariano Suassuna
de Machado de Assis
Ariel Engel Pesso
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muito anos,
contava eu dezessete, ela trinta.” (ASSIS, 1899, p. 77)1. Assim se inicia um dos
contos mais conhecidos e emblemáticos de Machado de Assis: Missa do galo. No-
gueira, já velho, é o narrador em primeira pessoa que nos conta, de forma um
tanto quanto enigmática, uma passagem de sua juventude, quando foi morar no
Rio de Janeiro, na casa de Meneses, marido de uma prima que falecera, junto
com Conceição, sua mãe e duas escravas – a família pequena é uma constante na
obra machadiana (STEIN, 1984).
O conto segue a “receita” do conto moderno, inaugurado com Edgar
Allan Poe, no qual se destacam a brevidade e “algo” nas entrelinhas. Ape-
sar de não seguir à risca a estrutura o conto clássico, tal qual em Quiroga
ou Tchekhov (uma história revelada em primeiro plano e uma história ve-
lada em segundo) (PIGLIA, 2004), o que nos impressiona nessa narrativa
machadiana é o que acontece, ou melhor, o que não acontece. É como se o
momento da narrativa nos escapasse por entre as mãos e, mesmo após su-
1 Todos os trechos do conto foram retirados da obra original Páginas Recolhidas, de Machado de Assis,
disponível digitalmente no site da Biblioteca Brasiliana. Cf. ASSIS, 1899.
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Análise do conto Missa do galo, de Machado de Assis
2 “O indício de um grande conto está para mim no que poderíamos chamar a sua autarquia, o fato de
que a narrativa se tenha desprendido do autor como uma bolha de sabão do pito de gesso.” (CORTÁ-
ZAR, 1974, p. 229-230).
3 Sobre a aproximação entre este conto e o teatro, ver Carvalho, 1990.
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Análise do conto Missa do galo, de Machado de Assis
gros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também
não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande.
As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu
lugar (ASSIS, 1899, p. 82).
Tanto é assim que ela ocupa oito lugares distintos, tal qual uma coreografia de
balé4. A própria impressão do narrador muda: se antes Conceição era santa,
agora ela é boa, muito boa; se era simpática, agora é linda, lindíssima – veja-
mos que ela não é; ela fica, portanto torna-se. Se, antes, estava ébrio de Dumas,
agora parece estar ébrio de Conceição. É interessante notarmos a passividade
e calma com que, no dia seguinte, ela ouve o relato do jovem sobre a missa da
noite passada – sua caracterização, inclusive, volta a ser “natural, benigna, sem
que nada fizesse lembrar a conversação da véspera” (ASSIS, 1899, p. 88). Ao
descrevê-la como benigna no dia seguinte, o autor (já maduro) nos insinua
que na véspera ela fora maligna (CUNHA, 2006).
Não parece ser por acaso que Conceição é identificada com Cleópa-
tra: “Os quadros falavam do principal negócio deste homem [Meneses].
Um representava ‘Cleópatra; não me recordo o assunto do outro, mas eram
mulheres’” (ASSIS, 1899, p. 85). Ora, o único quadro que permanece na
mente de Nogueira é, justamente, o que reflete a mulher enigmática, e isso
não parece ser uma escolha inocente de Machado. A presença shakespeariana
na obra do autor é um fato notório, sendo Otelo a inspiração e a chave de lei-
tura para Dom Casmurro. Assim, há que se mencionar a obra Antônio e Cleópatra,
que, segundo o crítico Harold Bloom (2001, p. 666), é a “mais complexa e
impressionante” representação feminina de Shakespeare. Sua beleza e sen-
sualidade estão registradas no discurso de Enobarbo: “A idade não consegue
fazê-la murchar, nem o hábito estiola/ a sua variedade infinita: outras mu-
lheres saciam/ os apetites que alimentam, mas ela desperta mais fome/ onde
traz mais satisfação” (II, ii)5.
É de se estranhar que, logo após o único contato físico entre as per-
sonagens, Conceição “estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio”
(ASSIS, 1889, p. 85). É quase como uma assunção de culpa em face de
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Referências
ASSIS, M. Páginas recolhidas. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1899. p.
77-88. Disponível em: <https://goo.gl/jfWWUa>. Acesso em: 1 dez. 2015.
BLOOM, H. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Roberto
O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
BOSI, A. Machado de Assis: o enigma do olhar. 4. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2007.
CARVALHO, L. H. O. V.; WISNIK, J. M. S. (Orient.). Mulher em cena: cenas de
amor e morte na ficção brasileira. 1990. 240 f. Tese (Doutorado em Li-
teratura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.
CORTÁZAR, J. Valise de Cronópio. Tradução de David Arrigucci Jr. e João Alexan-
dre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 227-237.
CUNHA, C. A. Tristezas de uma geração que termina. Teresa: revista de literatura
brasileira, São Paulo, v. 6, n. 7, p. 31-35, 2006.
GOULART, A. T. O jogo da serpente na “Missa do galo”. In: FANTINI, M. Crô-
nicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2008.
PIGLIA, R. Formas breves. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
6 Não concordamos com a interpretação de Audemaro Taranto Goulart, para quem esse episódio é
uma “autêntica manifestação do orgasmo que toma conta de Conceição”, cujas “ nítidas indicações
de um estado de lassidão, de um torpor pós-orgástico” seriam deduzidas dos seguintes trechos: “Não
tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes”; “Conceição parecia esta
devaneando” (Conceição) e “Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono mag-
nético, ou o que quer que era aquilo que me tolhia a língua e os sentidos”; “O rumor único e escasso
era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência” (Nogueira)
(GOULART, 2008, p. 178-179).
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