Palhaço e Transgressao PDF
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PALHAÇO E TRANSGRESSÃO:
percursos, atravessamentos e reflexões
Rio de Janeiro
2013
André Luiz Rodrigues Ferreira
PALHAÇO E TRANSGRESSÃO:
percursos, atravessamentos e reflexões
Rio de Janeiro
2013
PALHAÇO E TRANSGRESSÃO:
percursos, atravessamentos e reflexões
Banca Examinadora:
Orientadora: _____________________________
Profᵃ Dra. Tatiana Motta Lima
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Membro: _____________________________
Profᵃ Dra. Ana Achcar (Ana Lucia Martins Soares)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Membro: _____________________________
Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Membro: _____________________________
Profᵃ Dra. Nara Keiserman
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
À Profᵃ Dra. Tatiana Motta Lima pela delicadeza no processo de orientação, pelo apoio e
incentivos constantes e por me contagiar com o exercício da dúvida desde o primeiro
encontro.
À Profᵃ Dra. Ana Achcar por ter aberto para mim as portas da técnica clownesca, guiando-me
com força e carinho pela difícil arte de perder(-se) e achar(-se) exigida pela palhaçaria. Ainda
um agradecimento especial pela contribuição dedicada e fundamental a esta dissertação
quando de sua qualificação, bem como de sua defesa.
Ao Prof. Dr. Cassiano Quilici, à Profᵃ Dra. Nara Keiserman e à Profᵃ Dra. Juliana Jardim
Barboza pelo interesse e a competência com que honram a leitura deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Walder Virgulino pelas críticas valiosas e necessárias na banca de qualificação.
A Leo Bassi pela generosidade em autorizar o acesso deste pesquisador aos registros do
espetáculo Instintos Ocultos, bem como pela inquietação que só os grandes artistas
possuem.
A Luiz Carlos Vasconcelos e Jango Edwards por constituírem grande fonte de inspiração.
A João Artigos, Shirley Britto e Zuza do Teatro de Anônimo pela ajuda e boa vontade em
disponibilizar registros videográficos de suma importância a esta pesquisa.
Às amigas atrizes e palhaças: Letícia Medella, Luiza Debritz, Anna Terra Saldanha, Mariana
Fausto, Bel Flaksman e Patrícia Ubeda, por dividirem comigo momentos de alegria e angústia
durante o trabalho cotidiano com a palhaçaria, e por me ensinarem sempre.
The present work develops reflexions on flows of affectation and contagion between the
performance of the clown and his transgressive intensities. For its inadequacy, the clown is
able to operate possible openings to the experience of difference, violating the order
established by regulatory standards. However, embedded in processes of domestication and
docilization on laughter, we see the clown’s powers deflate, what makes us face a fact: more
and more clowns disturb less. Thus, this dissertation investigates the possible relationships
between the clownish game and processes of transgression, thinking this term not as a
watertight category, but as multifaceted lens, sort of umbrella term able to generate moving
focuses on clown’s technique. In addition, the research examines how the weakening effects
occur on the contemporary art of clowning. This work deals to the practices of three artists,
Jango Edwards, Leo Bassi and Luiz Carlos Vasconcelos, clown called Xuxu, whose
performances tense and problematize, each in its own way, the transgressive qualities. The
dissertation completes a course of searches and crossing records starting from clown’s
videographic presentations, as well as the study of writings and interviews of the mentioned
artists, linking theory and practice as complementary and not mutually exclusive forms of
research in art, where the scene can illuminating, or otherwise destabilize the theoretical
constructions and vice versa. This work is part of a field of experience on clowning language
and its power games, contributing to discussions and art actions that can produce
connections and desiring impulses from clown technical.
Primeiros passos
Foi no ano de 2009 que coloquei o nariz vermelho pela primeira vez. Já haviam se
passado seis meses desde que iniciara os estudos sobre o palhaço e seu jogo cômico,
integrando como aluno e bolsista o Programa Interdisciplinar de Formação, Ação e Pesquisa
Enfermaria do Riso1, coordenado pela Professora Ana Achcar na Escola de Teatro da UNIRIO.
Haviam sido seis meses de investigações teórico-práticas fecundas em inquietações, dúvidas
e muitos fracassos. A complexidade da linguagem do palhaço me fascinava na mesma
medida que assustava e, devo ressaltar que até hoje, quatro anos mais tarde, colocar sobre
o rosto a menor máscara do mundo2 ainda me revira as entranhas.
A primeira atividade com a máscara clownesca era aparentemente simples: Dois
atores de pé, um de frente para o outro. O primeiro a realizar a atividade deveria olhar para
seu parceiro como se este fosse um espelho. Diante de seu espelho humano, o intérprete
deveria respirar, preparar-se, colocar o nariz de palhaço e apenas contemplar seu “reflexo”
durante o tempo que julgasse necessário. O segundo intérprete, ao fazer as vezes de
espelho, não realizaria nenhuma ação além de mirar o palhaço que começava a ganhar
contornos à sua frente, para, mais tarde, ao final do exercício, contar ao parceiro o que viu e
sentiu quando o primeiro colocara o nariz de palhaço.
As principais ações do exercício: respirar e olhar. Nada mais a ser feito além de
manter-se em conexão com o parceiro, aprendendo a experimentar a tênue percepção de
ver-se através dos olhos do outro, até o momento em que já não era possível distinguir
quem era espelho e quem era o palhaço refletido. Esta foi minha primeira experiência com a
1
Programa de extensão que leva a experiência do humor através da atuação do palhaço em ambientes
hospitalares. Seu projeto de ensino abrange disciplinas práticas de palhaçaria, seminários teóricos e supervisão
psicológica, formação que tem como objetivo o estágio como palhaço de hospital. Durante minha passagem
pelo Programa, entre os anos de 2009 e 2012, atuei como palhaço nas dependências pediátricas do Hospital
Universitário Gaffrée Guinle (HUGG/UNIRIO), do Hospital da Lagoa (HL) e do Instituto Fernandes Figueira (IFF).
Informações sobre o programa pode ser obtidas no site: <http://www.enfermariadoriso.com.br/>. Acesso em
23 maio 2012.
2
Expressão que corresponde ao nariz de palhaço, utilizada por Jacques Lecoq (1921 – 1999), ator, mímico e
pedagogo francês que intensificou, sobretudo a partir da década de 1960, os vínculos entre os métodos de
formação do ator e as técnicas de palhaçaria, desenvolvendo, em sua École Internationale de Théâtre, um
procedimento metodológico de busca e construção do “clown próprio de cada um” (LECOQ, 2010, p. 214),
processo de investigação que passa pela autodescoberta do aluno em relação a suas idiossincrasias e
fragilidades.
11
3
Roberto Ruiz (1987), citando a interlocução da autora Maria Augusta Fonseca, esclarece que a palavra clown
estaria ligada etimologicamente ao termo inglês clod, remetendo ao universo “camponês” e seu meio rústico; e
a palavra palhaço, por sua vez, seria uma apropriação linguística do termo italiano paglia (palha), material
comumente utilizado no revestimento das roupas acolchoadas deste cômico, indumentárias que se
assemelhavam a um “colchão ambulante”, protegendo-o nos números perigosos e constantes quedas no
picadeiro circense. Luís Otávio Burnier (2001) destaca que ambos os termos, palhaço e clown, são palavras
distintas que designam a mesma coisa. Além dos autores citados, também podemos encontrar mais sobre o
assunto nos pesquisadores Mario Bolognesi (2003) e Kátia Kasper (2004). Esta questão da nomenclatura e as
possíveis diferenças contidas nos dois termos não serão aqui abordadas, pois entendemos que não se mostra
relevante a esta pesquisa. O presente estudo realizará a investigação das potências transgressoras dessa figura
cômica, fator que não acreditamos ser acionado pelo modo como estes artistas são designados. Optamos aqui
por usar os dois termos, clown e palhaço, indistintamente. Ressalte-se que, embora seja um vocábulo da língua
inglesa, não transcreveremos ao longo desta dissertação a palavra clown em itálico, pois entendemos que este
termo já foi assimilado por nossa língua, sobretudo no âmbito do universo circense e da cena teatral.
4
Um dos princípios de trabalho do palhaço de hospital reside no fato de que ele não atua sozinho, formando
dupla com outro palhaço para realizar a intervenção. Atuações em trio ocorrem geralmente quando dois
palhaços mais experientes estão introduzindo um novo palhaço no trabalho. Maiores informações acerca da
atuação dos palhaços de hospital podem ser encontradas na tese de Doutoramento Palhaço de Hospital:
proposta metodológica de formação, defendida no ano de 2007 pela Profᵃ Dra. Ana Achcar junto ao
PPGAC/UNIRIO, bem como a obra da psicóloga Morgana Masetti, Soluções de Palhaço – Transformações na
realidade hospitalar (2007), e as publicações Boca Larga: Caderno dos Doutores da Alegria, particularmente os
números 1 (2005) e 4 (2008).
5
Atriz, professora e pesquisadora, a Profᵃ Dra. Juliana Jardim Barboza desenvolve experiências cênicas e
treinamentos para atores abordando as técnicas da palhaçaria e da bufonaria a partir de sua
complementaridade. É autora da dissertação O Ator Transparente: O treinamento com as máscaras do Palhaço
e do Bufão e a experiência de um espetáculo: MADRUGADA (USP – 2001) e da tese Vestígios do dizer de uma
escuta (repouso e deriva na palavra) (USP – 2009).
12
Muitos palhaços dão menos enfoque às matrizes transgressivas de seu jogo cômico
em nome de certos ideais poéticos, romantizados ou mesmo infantis que facilmente recaem
sobre suas atuações. Essas escolhas nos parecem incongruentes, porém, se pensarmos em
alguns dos princípios que regem o trabalho clownesco, como o ridículo, o grotesco e a
inadequação.
Ao mesmo tempo, a transgressão na linguagem da palhaçaria não nos aparece
como algo indiscutível e uniforme, mas, pelo contrário, manifesta-se das formas mais
variadas e em gradações também instáveis de acordo com cada palhaço. Alguns clowns
provocam mais a plateia do que outros, alguns são mais agressivos, outros mais grotescos,
características que não se apresentam de maneira linear ou regular. Nesse sentido, podemos
enumerar aqui algumas das inquietações que acompanham e movem esta pesquisa:
Quais são as relações possíveis entre os processos transgressivos e o jogo do
palhaço?
De que maneiras podem se presentificar as características transgressoras em
práticas artísticas clownescas?
O efeito transgressor ocorre apenas em relações de força e provocação entre
palhaço e plateia ou pode se manifestar em dinâmicas mais sutis?
Como se operam as problemáticas de enfraquecimento e perda de potência
da palhaçaria contemporânea?
Assim, a presente dissertação tem como objetivo investigar a linguagem do palhaço
e seus potenciais transgressores, pensando as matrizes transgressivas não como uma
categoria estanque, mas antes uma lente multifacetada através da qual possamos olhar o
clown e seu jogo cômico. A ideia é trabalhar sobre os processos transgressivos entendidos
como uma espécie de conceito “guarda-chuva”, ou seja, linhas de pensamento que
abarquem direções e significados diversos, numa dinâmica de abertura que se aproxime da
natureza ampla e instável de nosso objeto de estudo. Não desejamos estabelecer definições
rígidas ou definitivas, mas, antes, desenvolver alguns fluxos de pensamento que permitam a
análise das intensidades que perpassam a atuação clownesca.
Nesse percurso de busca e aproximação com as indagações acima descritas, as
quais, devemos precaver ao leitor, não alcançarão respostas exatas e inequívocas,
estabeleceremos áreas de contato e atrito com o que chamamos de processo de docilização
15
6
Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=transgress%E3o&stype=k. >. Acesso em 19 maio 2012.
17
pensando-se na investigação como um percurso, uma trajetória – mesmo que sem um alvo
inequívoco predeterminado.
Neste itinerário, cada capítulo indicará rumos e direções distintas e, portanto, as
quatro partes que compõem esta dissertação estarão identificadas simbolicamente com as
quatro principais direções do espaço, ou seja, os quatro pontos cardeais 7: Norte, Sul, Este e
Oeste. Uma vez que este trajeto será realizado por um autor-palhaço, o leitor deverá se
preparar de antemão para a certeza de que aqui a nossa bússola nem sempre terá seu
ponteiro apontando para o Norte e que nosso deslocamento será realizado de forma
irregular, nem no sentido horário, nem no anti-horário. A ordem de nossos capítulos será a
seguinte:
1-Norte: primeiras considerações e desenvolvimento dos princípios norteadores da
pesquisa.
No primeiro capítulo realizaremos investigações acerca da transgressão e suas
manifestações na linguagem do palhaço, bem como sua relação com a formação de novos
clowns. Trataremos ainda das problemáticas da docilização do jogo clownesco.
2-Sul: oposta ao Norte, a direção sul nos desloca para baixo. Aqui associamos o sul
com o rebaixamento, um dos princípios do grotesco.
Neste segundo capítulo trataremos da análise do trabalho clownesco do americano
Jango Edwards, aproximando nossa leitura sobre sua atuação a princípios relativos ao
grotesco. Partiremos de dados biográficos, entrevistas e da análise do registro videográfico
da apresentação The Bust of Jango, realizada em Cannes no ano de 1993.
3-Este: onde nasce o sol, nascente; a direita de quem olha para o norte.
Identificamos esta direção com a racionalidade, com o uso da razão, pensando-se este
vocábulo a partir de sua origem latina – ratio8 – que tanto pode designar a inteligência,
como a causa que determina um acontecimento, a origem.
7
Segundo Jean Chevalier (1998), numerosas crenças e mitos relativos à origem da vida, a morada dos deuses e
dos mortos e a evolução da humanidade giram em torno dos eixos norte-sul e este-oeste, os quais ao se
cruzarem formam simbolicamente as direções do destino humano, o marco sobre o qual se organiza o mundo
saído do caos.
8
Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=raz%25C3%25A3o >. Acesso em 06 fev. 2013.
18
9
Segundo Barboza (2001, p. 24), há uma grande aproximação entre o universo do bufão e o dos palhaços: “As
máscaras do Palhaço e do Bufão têm a mesma origem. Na bibliografia utilizada, encontramos referência a uma
ou a outra, mas, em geral, os conteúdos das duas estão misturados ou incluídos em um mesmo texto, sob um
único nome. [...] encontramos referência a Bufão, em Patrice Pavis, a Palhaço, em outros dicionários e, em
nenhum, localizamos abordagem separada das máscaras”.
10
Lançado em 2008, na Espanha, onde vive o artista. Obra sem lançamento previsto no Brasil.
11
Espetáculo apresentado na cidade do Rio de Janeiro em 05 de dezembro de 2011 no Encontro Internacional
de Palhaços Anjos do Picadeiro 10.
12
Apresentado em 11 de maio de 2012 no Largo do Machado, Rio de Janeiro.
19
13
Saída de palhaço na Praça São Judas Tadeu, bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro. Finalização de oficina
ministrada por Luiz Carlos Vasconcelos, 11 de maio de 2012.
22
14
Inicialmente publicado em 1963, na revista Critique, e republicado na coleção Ditos & Escritos, volume III.
23
problematizar é se “terá o limite uma existência verdadeira fora do gesto que gloriosamente
o atravessa e o nega?” (FOUCAULT, 2009, p. 32).
Limite e ato transgressivo se relacionam de forma instável, efêmera, quando uma
instância determina e transforma a outra, para, logo em seguida, o ímpeto transgressor se
esgotar e mais uma vez se fechar a linha tênue do interdito. Interessa-nos pensar os
vestígios dessa operação entre limite e transgressão, cruzamento constituído por campos de
força que se atravessam e afetam de maneira transitória.
Retomando uma das concepções mais caras à filosofia de Nietzsche, Foucault
destaca que a morte de Deus15 causa no Ocidente uma ruptura no campo dos valores e da
moral, suprimindo da existência humana o seu limite exterior, lugar outrora ocupado pelas
leis e interditos divinos, o limite do Ilimitado. Com a decadência da lei simbólica divina se
finda o limite absoluto, a fronteira ameaçadora e segura que despontava no horizonte do
transcendental e que servia para regular, oprimir e confortar a existência humana. Se por
um lado ficamos desprotegidos pela lacuna deixada no lugar do sagrado, por outro
ganhamos em força autônoma.
A morte de Deus não deve ser entendida como o fim de Seu reinado histórico 16,
nem como percepção de Sua inexistência, mas como instauração de um vazio que, a partir
de então, acompanharia a experiência humana. Diante dessa lacuna, passa a competir ao
próprio homem a escolha de sua direção, o domínio soberano sobre suas ações no mundo.
Esta liberação é entendida como lançamento de uma nova luminosidade sobre a existência,
indagada e saudada em júbilo pelo próprio Nietzsche, como podemos depreender na
seguinte passagem:
[...] ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como
iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão,
espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece
novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem
novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida
15
Filosofema presente em A Gaia Ciência – §108, §125 e §343 (NIETZSCHE, 2012) e retomado em Assim falou
Zaratustra (Id., 2011).
16
Nietzsche (2012) afirma que, assim como a imagem da sombra de Buda fora mostrada no interior de uma
caverna durante séculos após a sua morte, também muitas ainda seriam as cavernas a exibir a terrível sombra
do Deus morto no Ocidente, cabendo a cada um de nós a luta em relação a essas sombras.
24
Tal experiência [da ação transgressora] incita a uma nova forma de pensar,
a uma outra lógica que faz surgir o caráter relativo do valor e só se define
através do interdito que o cria. O interdito, portanto, valoriza aquilo sobre o
que incide, dando-lhe a forma de provocação. [...] o interdito dá força à
transgressão, mas, inversamente, a transgressão atesta a interdição
fazendo a experiência de sua existência. De fato, a transgressão, mesmo
provocando enorme abalo, só faz assegurar a persistência do interdito,
todavia, revelando-o de maneira irrefutável. O “não” da interdição nunca é
definitivo, mas apenas momentâneo, assim como a transgressão só se dá
em um instante. Trata-se de um momento de fuga e súbito acesso ao
heterogêneo.
funde na brevidade de um átimo, clarão que logo se apagará, contaminado pela vastidão da
noite. Na mesma medida, a transgressão só pode existir quando confrontada com a aresta
limitante, no momento em que ocorre a interseção entre ambas. Este fluxo de afetos não
constitui um embate de forças opostas e excludentes, mas, ao contrário, opera um encontro
permeado por misturas onde a existência se abre ao espaço da diferença.
É nesse sentido que iniciamos nosso estudo trazendo a interlocução dos dois
filósofos supracitados, pois nos interessa pensar o palhaço em relação a sua instância
transgressiva e seus vestígios, estes entendidos como abertura possível para a experiência
da diferença. Luís Otávio Burnier 17 (2001) afirma que o palhaço carrega uma constituição
marginal, uma vez que possui visões de mundo diferenciadas em relação aos demais.
Desenvolvendo lógicas próprias, com maneiras de pensar e agir específicas, essa figura
torna-se cômica não pela vontade de fazer graça, mas pela exposição de uma diferença tão
grande em relação aos padrões que do inusitado de suas ações advém a graça.
Lecoq (2010), por sua vez, ao narrar o início dos estudos sobre o clown em sua
Escola para atores, relembra que as primeiras experiências na busca pela comicidade eram
terríveis e constrangedoras, pois os alunos já adentravam o espaço cênico imbuídos da
vontade de serem engraçados. Quanto mais os aprendizes gesticulavam, falavam e
realizavam ações gratuitas, mais se distanciavam do objetivo de fazer rir. E, no entanto,
quando se rendiam ao fracasso, desconcertados e perdidos, muitas vezes o riso brotava na
assistência, causado pelo ridículo da fraqueza humana exposta. A esse respeito, discorre
Burnier (2001, p. 218):
17
Um dos artistas fundadores, no ano de 1985, do LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da
UNICAMP, grupo que desenvolve no Brasil uma das pesquisas mais atuantes sobre a linguagem do clown.
18
Segundo a metodologia do LUME, o clown pessoal reside na busca e ampliação das características ridículas e
cômicas do ator. Falaremos mais sobre esse processo de formação no subitem 1.3 deste capítulo.
26
A história ensina que a estirpe que num povo se conserva melhor é aquela
em que a maioria dos homens tem um vivo senso da comunidade, em
consequência da identidade de seus princípios habituais e indiscutíveis, ou
seja, devido a sua crença comum. Ali se reforçam os costumes bons e
valorosos, ali se aprende a subordinação do indivíduo, e a firmeza de
caráter é primeiro dada e depois cultivada. O perigo dessas comunidades
fortes, baseadas em indivíduos semelhantes e cheios de caráter, é o
embotamento intensificado aos poucos pela hereditariedade, que segue
toda estabilidade como uma sombra. Em tais comunidades, é dos
indivíduos mais independentes, mais inseguros e moralmente fracos que
depende o progresso espiritual19: são aqueles que experimentam o novo e
sobretudo o diverso (NIETZSCHE, 2005, p. 142. Grifos nossos).
19
Nesta obra, Nietzsche desenvolve o conceito de espírito livre, em suas palavras: “aquele que pensa de modo
diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas
opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos a regra [...]” (§ 225. Ibid., p. 143).
Assim, podemos depreender que a expressão progresso espiritual diz respeito ao exercício desta liberdade que
muito carrega de subversão e descolamento das normas e valores aceitos pela generalidade de uma
comunidade. O autor esclarece ainda no aforismo 227 o que entende como espíritos cativos, em contraposição
aos espíritos livres, aqueles cuja crença confere força e duração às instituições sociais, a “Todos os Estados e
ordens da sociedade: as classes, o matrimônio, a educação, o direito [...]” (Ibid., p. 145).
27
O palhaço é aquele que perdeu. Seu nariz é vermelho, porque com o tempo
se embebedando nas ruas frias, o choro e as quedas, o nariz fica realmente
vermelho. Suas roupas são desproporcionais e seus sapatos são grandes
porque não lhe pertencem. O palhaço é aquele que perdeu a dignidade.
Mas somente quem perde totalmente a dignidade pode atingir uma outra
condição de dignidade, e isso acontece quando ele reconhece e aceita sua
derrota, sem mágoas, sem culpar ninguém pelos seus fracassos, sem
autopiedade. [...] Se o palhaço perdeu, então não tem mais nada a perder.
28
Quando não se tem mais nada a perder pode-se fazer o que quiser. Por
isso é uma entidade libertária, por isso tem o poder de transgredir, o poder
das autoridades. (BASSI apud LIBAR, 2008, p. 174-175. Grifos nossos).
20 Palavras de Nietzsche ao desenvolver o conceito de espírito livre, e cuja aproximação com a figura do
palhaço nos parece pertinente e enriquecedora.
29
21
Minois busca empreender nesta obra uma síntese da historia do riso, este entendido como um fenômeno
universal, afirmando já em sua Introdução que essa tarefa está fadada ao insucesso, dada a amplitude do
campo a ser estudado.
22
O autor cita como exemplos de festas arcaicas: as dionisíacas, as bacanais, as leneanas, as tesmofóricas e as
panatenéias; festas religiosas onde se experimentavam os excessos e as transgressões durante um período de
tempo determinado.
30
será entendido como resquício de uma animalidade primária, indesejável ao homem, traço
inquietante e selvagem que necessita de domesticação.
Nesse movimento de abrandamento das intensidades do riso divino, até mesmo os
mitos gregos passam a ser revisados e reescritos, suavizando-se a face inquietante dos
deuses, transformando em ironia o que outrora fora extravasamento e violência. O riso,
antes direto e transgressor, passa agora a corroborar as convenções sociais, calcado na
sutileza, na sinuosidade irônica e nas normas de decoro, reduzido a mero refinamento para
a distração espiritual.
Minois (2003) ressalta ter sido Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) um dos
principais filósofos gregos a criticar o riso. De acordo com o platonismo, o universo divino
seria imutável e único, não comportando, assim, a emoção “grosseira” do risível, traduzida
na feiura moral e física. O riso traria a perda do controle, carregado de caretas e soluços
espontâneos, emaranhados de ruídos caóticos que explodem em inconveniências e beiram
a obscenidade. Platão percebia a força subversiva da hilaridade, visto que em seu diálogo
Leis, XI, estipula severa punição aos comediógrafos que usassem o riso como forma de
ridicularizar seus semelhantes:
23
O registro videográfico do episódio em questão pode ser encontrado no sítio:
<http://www.youtube.com/watch?v=5w_7z_c3RmU>. Acesso em 12 maio 2013.
32
24
Comediógrafo considerado como principal representante da chamada Comédia Antiga – século V a.C.
Derivados dos ritos de fertilidade ao Deus Dioniso, seus textos dramatúrgicos eram caracterizados por realizar,
através da comicidade, críticas violentas aos costumes e instituições, muitas vezes utilizando artifícios
exagerados e obscenos.
25
Minois (2003) afirma que o riso já era identificado pelos precursores do cristianismo como um fenômeno
diabólico, símbolo da decadência humana. Remontam ao início do Império cristão diversas interdições,
perseguições e condenações às festas, identificadas como manifestações de riso coletivo. Desde o fim do
século IV, por exemplo, as festas pagãs deixam de ser patrocinadas e, no ano de 389, Teodósio e Valentiniano II
eliminam-nas do calendário oficial. Data ainda dessa época, o mito cristão de que “Jesus nunca riu”. Para
maiores informações ver o capítulo A diabolização do riso na Alta Idade Média (Ibid., p. 111 – 154).
26
Termo derivado da palavra latina derisìo, indica escárnio, zombaria. É identificado pelos estudiosos de
linguística como uma estratégia argumentativa que não se reduz ao riso. Trata-se de uma “associação do
humor e da agressão que a caracteriza e a distingue, em princípio, da pura injúria” (BONNAFOUS, 2002, p. 45).
33
e aquilo que outrora fora instrumento de resistência, agora restará como indicativo de
prestígio.
A democracia moderna aprende a incorporar as práticas de zombaria, nelas
vislumbrando não mais uma ameaça, mas uma grande utilidade. Ser posto na berlinda pelas
críticas cômicas é estar em evidência na imprensa midiática, podendo tirar proveito da
popularidade das paródias 27, oportunidade de demonstrar aos eleitores que a prática
política também é capaz de comungar das virtudes do riso, como na antiga máxima “falem
mal, mas falem de mim”.
Nesse contexto que envolve a banalização do riso e a sua utilização não como ação
crítica, mas como reforço das normatividades instituídas, podemos pensar a incorporação do
palhaço pela cultura de massa como um exemplo patente dessa problemática. Entendido
muitas vezes como mera figura de entretenimento, o clown vai perdendo sua força de
criação e resistência, diante do esvaziamento de suas potencialidades transgressivas. Não é
difícil encontrar a utilização do palhaço para fins comerciais que vão da distribuição de
panfletos à propaganda de redes de lanchonete fast food.
Por outro lado, não há como esquecer a candidatura e posterior eleição de Francisco
Everardo Oliveira Silva, o palhaço cearense Tiririca 28, obtendo a marca de um milhão e
trezentos e cinquenta mil votos válidos, tendo sido o candidato a deputado federal mais
votado na eleição brasileira de 2010. Independentemente da posição política que se adote
neste caso, não há como negar que a campanha eleitoral do palhaço Tiririca era baseada no
27
Patrice Pavis (2005) esclarece como paródia: “ Peça ou fragmento que transforma ironicamente um texto
preexistente, zombando dele por toda espécie de efeito cômico [...]. A paródia compreende simultaneamente
um texto parodiante e um texto parodiado, sendo os dois níveis separados por uma distância crítica marcada
pela ironia [...]. Sendo ao mesmo tempo citação e criação original, mantém com o pré-texto estreitas relações
intertextuais. Mais que imitação grosseira ou travestimento, a paródia exibe o objeto parodiado e, à sua
maneira, presta-lhe homenagem. [...] A paródia diz respeito a um estilo, um tom, uma personagem, um gênero
ou simplesmente a situações dramáticas.” (PAVIS, 2005, p. 278-279).
28
Tiririca iniciou sua carreira aos oito anos, estreando no circo como equilibrista, malabarista e mágico em sua
cidade natal, Itapipoca, Ceará. Ainda criança realizou os primeiros números vestido de palhaço e, ao longo da
carreira, chegou a ser dono de circo. Tornou-se nacionalmente conhecido no ano de 1996, quando a gravadora
Sony Records lançou um disco com a música Florentina, canção tocada exaustivamente nas rádios e programas
televisivos da época. Tiririca iniciou, então, sua carreira na televisão, tendo trabalhado em diversas emissoras
televisivas em programas humorísticos e de auditório. Atualmente é deputado federal pelo Partido da
República – PR/SP. Destacamos que não temos neste estudo o objetivo de discutir o trabalho deste
comediante, mas citamos seu caso como exemplo do cruzamento entre o universo da política e figuras ligadas
à comicidade. Fonte da imagem: <http://www.implicante.org/artigos/o-voto-tiririca-na-extrema-direita-da-
usp/>. Acesso em 14 jan. 2012.
34
29
Segundo Minois (2003, p. 601), a festa era “um fenômeno-limite excepcional, ao mesmo tempo instituição
social, legitimada no interior de um espaço e de um tempo, e uma experiência coletiva de negação institucional
em que se dá livre curso aos fantasmas individuais em busca daquilo que transcende a ordem da sociedade
imanente e que se pode chamar, por comodidade provisória, de sagrado”.
35
ideal de sociedade eufórica e ridente. O pesquisador Luiz Gonzaga Godoi Trigo (2008)
destaca como uma das características das últimas décadas do século XX, bem como do início
do século XXI, o fenômeno de absorção dos mais variados setores produtivos às redes de
entretenimento. Artes, esportes, lazer, turismo, show-business vão sendo articulados como
valiosas mercadorias capazes de promover prazer ilimitado e gerar vultosas receitas fiscais.
Se, por um lado, essas novas relações de consumo garantem ao capitalismo liberal grandes
lucros aliados à estabilidade do sistema dominante através da alienação, por outro,
representa para os consumidores novas possibilidades de hedonismo e emoções pré-
fabricadas, ilusões efêmeras de escape de um cotidiano massificado.
Se riso e alegria são elevados à categoria de poderoso argumento de venda, na
busca incessante por bem-estar e diversão, o clown vai sendo arrastado por esses processos
que o transformam em figura domesticada e dócil, de fácil absorção, o que pode ser
observado em campanhas publicitárias, programas de televisão e marcas que exibem a
imagem de risonhos palhaços. Todavia, o processo de docilização clownesca não se restringe
ao âmbito das relações comerciais capitalistas, podendo ser também observado no campo
das artes da cena, em dinâmicas muito mais complexas que a simples demarcação clown
transgressor/clown dócil poderia abarcar.
Ultrapassando os suportes das campanhas publicitárias e chegando até o âmbito
artístico, podemos notar que o enfraquecimento das intensidades não é uma problemática
concernente apenas aos ditos palhaços “destinados ao mero consumo”, havendo uma
contaminação dessa banalização também sobre o território dos palhaços que buscam
desenvolver experiências cênicas.
Seja em apresentações que privilegiam somente os aspectos adocicados do
palhaço, seja na enxurrada de oficinas que proliferam pelas cidades brasileiras, prometendo
aos alunos a tão sonhada “descoberta de seu clown” 30, não é difícil nos depararmos no
30
Em matéria da Revista VEJA SP de 18 de fevereiro de 2011, Paulistanos pagam até 1.000 reais em cursos de
palhaço, podemos observar que, assim como os cursos de teatro são procurados por um grande número de
pessoas com objetivos funcionais que diferem do foco artístico, como a busca da desinibição ou para aprender
a se comunicar melhor em público, também os cursos de palhaço têm sido incorporados a esta lógica. Não nos
cabe nesta pesquisa discutir os prós e contras dessas iniciativas, mas nos chamam a atenção alguns dos termos
associados pelos alunos desses cursos ao palhaço como: brincar, relaxar; presentear os outros (através da
atuação clownesca). Segue, assim, mais uma vez, a associação entre o palhaço e o bem-estar. Na mesma
matéria, contudo, o matador de palhacinhos Hugo Possolo critica o modismo dos cursos de clown, advertindo:
36
Patrice Pavis (2005) destaca que o termo grotesco é oriundo da palavra italiana
grottesca, derivação de gruta, vocábulo que se referia às pinturas soterradas encontradas na
época do Renascimento, cujo conteúdo aludia a motivos fantásticos. Segundo este autor, o
grotesco no âmbito teatral opera a comicidade através de efeitos caricaturais, os quais
causam estranheza pela “deformação significativa de uma forma conhecida ou aceita como
norma.” (PAVIS, 2005, p. 188).
Logo, podemos entender que uma das relações possíveis entre o palhaço e suas
matrizes grotescas se funda em sua condição desviante em relação à normatividade.
Bolognesi (2003) ressalta, ainda, que a relação entre o corpo do palhaço e o grotesco explora
a inadequação, o sem sentido, diante de um mundo cada vez mais utilitário, construído a
partir dos valores de uso e de troca. Dessa forma, o palhaço opera uma transgressão dos
processos civilizatórios iniciados, sobretudo, a partir do século XVIII, que buscam cada vez
mais a equiparação do corpo do homem com a eficiência das máquinas.
O potencial clownesco transgressor vai sendo esvaziado pelos processos de
domesticação e docilização, quando as intensidades clownescas se enfraquecem dando lugar
a palhaços que, segundo Bolognesi, privilegiam somente as instâncias sublimes. Victor Hugo,
em seu tratado sobre o grotesco, destaca a importância das relações de fricção daquele com
o sublime, afirmando:
Um palhaço que atue dando ênfase a aspectos elevados e nobres, sem as instâncias
desviantes da inadequação e da violação dos padrões, vai perdendo suas intensidades, sua
instabilidade própria do humano – no sentido nietzschiano de humanidade como espaço da
38
diferença. Assim, o clown vai recaindo no que Bolognesi chama de construção “simbolista”.
A pesquisadora Regina Zilberman (2007) destaca que o movimento simbolista defendia a
busca por um mundo ideal através de conceitos como beleza, pureza e bondade, com
destaque excessivo às perspectivas subjetivas e emocionais do ser humano.
Autores e poetas simbolistas como Cruz e Sousa evocavam a figura do palhaço
numa perspectiva carregada de sentimentos, como podemos observar em Acrobata da Dor:
“Gargalha, ri, num riso de tormenta/ Como um palhaço, que desengonçado,/ Nervoso, ri,
num riso absurdo, inflado,/ De uma ironia e de uma dor violenta. [...]/ Ri! Coração,
tristíssimo palhaço.” (SOUSA, 1993, p. 57). Quando a atuação clownesca torna-se somente
um espelho desse mundo ideal, símbolo da pureza e dos bons sentimentos, vemos
empobrecer a força provocadora de sua comicidade, como também afirma o artista Dario Fo
(2004, p. 304):
Ana Márcia Silva (1996), destacando que esse corpo revestido de utilidade e docilidade está
adequado como mercadoria fundamental do ordenamento social, garantia de reprodução e
manutenção dessa ordem.
Investigar um palhaço dócil, portanto, é estar diante de uma figura obediente,
submetida, manipulada e útil às normas e ao reforço do senso comum. O palhaço dócil não
incomoda, não transgride, não atravessa valores nem exercita a experiência da diferença –
voltando nossa argumentação também aos conceitos nietzschianos. Sempre atento a
agradar, a realizar gestos meigos, afáveis, a obedecer às regras do politicamente correto, o
palhaço dócil vai perdendo a sua potência de afetar e ser afetado.
Transgredir normas e valores causa perturbações, problemas, origina
constrangimentos e pode deixar o transgressor em “maus lençóis” diante de seus pares -
lembremos-nos da descrição de Marcio Libar sobre o desconforto causado pelo manifesto
Matador de Palhacinho de Possolo e de como este artista foi visto com desconfiança por
vários colegas de palhaçaria após a leitura pública do texto. Não é a instabilidade, contudo,
que muitos desejam em relação à técnica clownesca, entendendo esta figura cômica de uma
forma cada vez mais útil e apta a não incomodar, mantendo como objetivo trazer ao público
a tentativa da alegria infantilizada, da conquista do espectador através da ternura e dos
aspectos mansos de um ser romantizado.
Ingenuidade, infância, suavidade, delicadeza são conceitos interessantes de serem
trabalhados no jogo do palhaço, mas porque devem ser os principais, ou mesmo os únicos?
É triste perceber como o palhaço dócil vai ficando trivial, adequado ao cotidiano, numa
dinâmica que identifica as técnicas de palhaçaria com uma arte que conforma, que dá força
às normas, que submete a quem faz e a quem a recebe.
Entendemos que a linguagem clownesca é profundamente autoral e relacional,
pois o palhaço está fundamentado no artista que lhe dá vida e, ao mesmo tempo, sua
existência se manifesta a partir das relações que o clown vai construindo com o mundo a
sua volta, transitando pela “descoberta de uma segunda natureza cênica que principia na
pessoa do ator e nas relações estabelecidas, em cena, com outros atores e com a plateia”
(BARBOZA, 2001, p. 17).
O jogo do palhaço passa pela exposição daquele determinado artista posto em
fricção com o ridículo. Fraquezas, fracassos, ilusões entram no cadinho de criação da
41
comicidade. Torna-se, portanto, praticamente inconcebível que nesta figura cômica, com tal
grau de instabilidade, residam somente os aspectos meigos da natureza humana. O palhaço
dócil parece privilegiar o que o pesquisador Cassiano Quilici (2006, p. 2) chama de dimensão
reativa:
É a realidade do ser humano que não é nada, que é perplexo diante da vida,
é a nossa imperfeição, é a nossa burrice, a nossa ignorância, aquilo onde a
gente falha, onde a gente não entende, é exatamente o buraco da gente...
Eu acho que o clown é isso, personifica isso, a condição humana por
excelência, de imperfeito, de paspalho diante da vida. (LEBLON apud
KASPER, 2006, p. 4).
33
Entrevistada em maio de 2002 pela pesquisadora Kátia Maria Kasper como parte integrante do artigo
Corporeidades, saberes e vidas fora da norma: trajetórias de atrizes palhaças (2006).
42
jogo na experiência dos encontros, na relação com o outro, transitando por zonas
desconhecidas cujo alcance e limites é impossível prever. Nas palavras de Jacques Lecoq
(2010, p. 217):
[...] o clown tem um contato direto e imediato com o público, só pode viver
com e sob o olhar dos outros. Não se representa um clown diante de um
público, joga-se com ele. Um clown que entra em cena entra em contato
com todas as pessoas que constituem o público, e seu jogo é influenciado
pelas reações desse público. (Grifos do autor).
34
Grafia do texto original, anterior à entrada em vigor do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009).
43
ao artista-palhaço, portanto, desenvolver suas atuações sobre essa linha tênue capaz de
tensionar afetos e relações, como se caminhasse numa corda bamba, o que torna seu
trabalho passível de todos os riscos e, justamente por isso, confere-lhe grande beleza.
35
Maiores informações acerca dos princípios da máscara teatral podem ser encontrados na obra de Jacques
Lecoq (2010), bem como na dissertação O papel do Jogo da máscara teatral na formação e no treinamento do
ator contemporâneo, de Ana Achcar (UNIRIO, 1999).
44
fenômeno cênico, uma vez que está presente na própria construção e no exercício da
linguagem clownesca, seja no aprendiz ou no clown experiente, intimamente relacionado ao
próprio estado do palhaço. Ricado Puccetti (2009), ator-pesquisador do LUME37, esclarece
que o estado clownesco vai sendo construído pelo artista na experiência de confrontação
com a plateia, na sensação de “sentir-se exposto, de ‘ser visto’, de ‘revelar’ algo íntimo para
o público.” (PUCCETTI, 2009, p. 120. Aspas do autor). Estado que vai sendo desenvolvido no
jogo entre o palhaço e o espectador, na interação de ambas as partes, relação de onde
poderá nascer a comicidade.
Essas dinâmicas pressupõem um grau de exposição que pode ser difícil, assustador,
quando o intérprete se depara com seus estereótipos, suas ideias pré-concebidas, sua
vontade de acertar e conquistar os espectadores, suas impossibilidades e fracassos, como
podemos depreender, por exemplo, do chamado exercício do picadeiro38. Puccetti (Ibid., p.
121) destaca que esta ação “coloca o aprendiz em situação de desconforto, o que leva a um
‘desmoronamento’ de suas defesas naturais, aqueles estereótipos ou fórmulas já prontas,
às quais sempre nos apegamos nos momentos de aperto”.
Cabe-nos, contudo, uma ressalva sobre o caráter pessoal e autoral vinculado à
técnica clownesca. Apesar de constituir-se, geralmente, num trabalho voltado sobre a
pessoalidade de seu intérprete, acreditamos que a formação do palhaço não deve estar
direcionada para uma perspectiva de funcionalidade e “revelação” de si mesmo. Diversas
oficinas de palhaçaria prometem claramente a seus alunos, ou deixam implícito em sua
proposta metodológica, que o desenvolvimento do palhaço possibilitará uma espécie de
viagem interior do artista em busca do autoconhecimento, o que pode ser observado até
mesmo na expressão tão recorrente “descoberta de seu próprio clown”.
37
Este grupo mantém uma pesquisa continuada sobre o chamado “clown pessoal”, criando suas próprias
metodologias de trabalho - inspiradas especialmente na antropologia teatral de Eugenio Barba e no trabalho
de Jacques Lecoq sobre as máscaras teatrais - objetivando a dilatação das particularidades e do ridículo do
ator, revelando a comicidade de cada indivíduo. Mais informações podem sem encontradas no sítio:
<http://www.lumeteatro.com.br/>.Acesso em 05 mar. 2012.
38
Muito utilizado em cursos de palhaço, consiste na entrada individual do palhaço diante da plateia e do
orientador do processo de formação, este assumindo o papel de Monsieur ou Madame, dono(a) do circo.
Nesse jogo há apenas uma vaga para trabalhar no circo e uma fila de interessados no emprego, então, cada
palhaço deve se colocar diante da assistência e mostrar o que sabe fazer de melhor, quais são as suas aptidões
e qualidades que justificarão que seja contratado ou não. Ao dono do circo, por sua vez, cabe a função de
provocar e instigar o clown, tirando-lhe de suas zonas de conforto. Podemos encontrar descrição deste
exercício em Burnier (2001, p. 217).
46
Esta nos parece uma visão problemática que entende o palhaço como uma parcela
do homem ligada a suas características mais escondidas, escamoteadas pelas máscaras
sociais e que, no decorrer da construção do clown, possibilitará àquele indivíduo conhecer e
trazer a tona sua “verdadeira natureza”, num processo de libertação e autoconhecimento.
Essa é uma perspectiva que vai se infiltrando nas formações artísticas, muitas vezes sem
uma percepção clara por parte dos aprendizes e mesmo dos formadores.
Muitos desejam iniciar suas vivências em relação ao palhaço objetivando a
descoberta desse núcleo interior, num esforço por modos de utilizar o “ridículo em mim”
como trunfo. Pensar a formação clownesca de modo funcional, exercitando maneiras de
como ser mais comunicativo, mais eficiente nas relações sociais, mais útil a si mesmo e aos
outros, constitui-se num processo que enfraquece a experiência da diferença no palhaço e a
reveste de conformação com a norma. No tocante a essa busca por uma individuação
essencial e identitária, trazemos a interlocução do pesquisador Renato Ferracini (2010, p.
48):
mundo, assim chamada por Lecoq por ser a máscara de menor tamanho, mas que,
inversamente, seria aquela que mais revela o artista que joga com ela. Ressalte-se que esse
desvelar constitui-se, em nosso entender, na abertura para a exposição dos fluxos de
afetação, em redes de contágio em constante mutação, não na exibição de um núcleo
fechado de características interiores bem estratificadas.
Dessa forma, o embate de forças trazido pelas práticas transgressivas, pensadas
como experiência da diferença, bem como o risco de seu esvaziamento, são instâncias que
perpassam a palhaçaria antes mesmo de seu encontro com os espectadores. Atravessando
as relações de formação, bem como os conceitos que determinam o que o intérprete
entende e o que ele busca com essa linguagem, parecem-nos estar em jogo algumas
questões fundamentais, como: que tipo de palhaço desejo ser? Ou, quais são os desejos que
me movem em relação à palhaçaria?
Anterior a esses questionamentos e ainda mais complexa, surge a necessidade de
que o intérprete se depare e indague acerca da sua visão sobre o mundo e sobre si mesmo.
A vida como exercício de busca pelo autoconhecimento e descoberta de um caráter
essencial, ou o salto no desconhecido dos fluxos de afeto, a instabilidade das composições
desejantes. Essas perspectivas, em permanente embate de forças, engendrarão práticas e
entendimentos que vão incidir diretamente sobre a linguagem clownesca naquele
intérprete, dada a pessoalidade dessa técnica.
A contaminação pelos processos de docilização clownesca também se apresenta
como obstáculo inerente à relação entre os processos transgressivos e a formação do
palhaço. A visão romantizada e superficial sobre o clown permeia os meios de comunicação
e ajuda a criar estereótipos que são muitas vezes carregados pelos aprendizes dessa
linguagem, dificultando seu contato com princípios referentes à técnica. Muitos iniciantes já
trazem consigo ideias preconcebidas sobre o palhaço, como nos relata Barboza (2001, p. 33.
Aspas da autora) a respeito das dificuldades do treinamento com a palhaçaria:
Contudo, lidar com essas questões não são desafios atinentes somente aos
palhaços iniciantes, pois, mesmo em relação a pesquisas reconhecidamente sérias e
passíveis de toda a admiração, nem sempre o estudo do clown está livre de pontos
nebulosos. Ferracini, um dos atores-pesquisadores do LUME, compartilha algumas
definições acerca do palhaço em sua dissertação de mestrado39, como podemos observar no
trecho: ”LUME entende o clown como a dilatação da ingenuidade e da pureza inerente a
cada pessoa. O clown é lírico, inocente, ingênuo, angelical, frágil, e essas energias/emoções
devem estar latentes no corpo do ator.” (FERRACINI, 1998, p. 202. Grifos nossos).
Ressalte-se que não estamos afirmando que o LUME e seus pesquisadores ajudam a
formar palhaços dóceis, mas destacamos que, dado o contexto de esvaziamento no qual o
clown se insere, os termos supramencionados podem facilmente resvalar no universo da
docilização, ajudando a alimentar em artistas e aprendizes uma visão empobrecida sobre o
palhaço. Em relação a esses termos, encontramos nas palavras da pesquisadora Ângela
Ambrosis (2005, p. 22) um esclarecimento que nos parece interessante:
Dessa forma, ingenuidade e fragilidade são conceitos que tanto podem servir a uma
perspectiva empobrecedora da linguagem clownesca – quando entendidas como recuo em
relação à obscuridade do artista - como, ao contrário, podem ajudar a potencializar as
intensidades do palhaço, uma vez que nos aproximemos de caminhos como os propostos
pela pesquisadora supra. Analisar essas características sob a ótica da abertura para a
experiência, como contato com fluxos desejantes nos parece muito mais instigante para a
palhaçaria, oportunidade de produção de experiências cênicas complexas.
39
A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator (UNICAMP – 1998).
50
Ao mesmo tempo, devemos atentar mais uma vez para o fato de como os princípios
inerentes a essa arte podem ser reduzidos ao esvaziamento, ao enfraquecimento de suas
potências, o que deve servir para aumentar o rigor e a atenção sobre o tema, seja na
formação, seja na atuação clownesca, num exercício constante e cheio de meandros contra
a sua banalização.
A respeito do vocábulo lirismo, vocábulo que diz respeito à ênfase dos sentimentos,
à subjetividade40, este também nos parece um termo que pode ser facilmente apropriado
pelos discursos de sujeição e docilização do palhaço. Tentando evitar esse tipo de armadilha,
preferimos evocar o lirismo indagado pelo poeta Manuel Bandeira (1990, p. 52-53) em sua
Poética:
Se o palhaço pode ser lírico ele não o será como uma figura sentimentalmente
romantizada, mas por sua inadequação, sua condição desviante que pode criar fissuras nos
padrões de conformação e normatividade. Assim, a linguagem clownesca se constitui numa
técnica artística cheia de complexidades e meandros, friccionada pelo esvaziamento de suas
potências, seja, como vimos, pela docilização da sua figura cômica, seja pelo enquadramento
do clown num processo de exposição da “essência” do artista que lhe dá vida. Nas palavras
de Puccetti (2009, p. 121):
40
Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=lirismo>. Acesso em 26 fev.2013.
51
linguagem. Podemos encontrar uma preocupação a esse respeito no artigo outrora citado de
Ricardo Puccetti, coordenador da linha de pesquisa em palhaço e um dos formadores de
clowns do LUME:
O palhaço não tem psicologismos, sua lógica é física: ele pensa e sente com
o corpo. O palhaço é um ser que tem suas reações afetivas e emotivas
todas corporificadas em partes precisas de seu corpo, ou seja, sua
afetividade e seu pensamento transbordam pelo corpo. (PUCCETTI, 2009, p.
122).
41
Embora Bolognesi não deixe claro nesta obra qual é seu entendimento acerca do conceito de personagem,
achamos o uso deste termo controverso, visto que adotamos para esta pesquisa a posição defendida por
Jacques Lecoq e também pelo LUME, de que o palhaço não constitui um personagem ou uma exterioridade
do intérprete, pois é desenvolvido e trabalhado a partir da ampliação de características do próprio artista
(LECOQ, 2010, p. 214; BURNIER, 2001, p. 209).
54
Uma vez que o palhaço opera por redes de relações entre o artista e a busca de
naturezas cômicas que lhe são próprias, é inevitável que falemos de processos de
subjetivação. Logo, devemos discutir com maior cuidado qual é o entendimento que
mantemos acerca da subjetivação em relação ao palhaço. Evocando a visão filosófica de
Félix Guattari (2010), podemos pensar a subjetividade enquanto possibilidade de
singularização, ou seja, fenômeno essencialmente social que mantém vínculo direto com as
existências particulares dos indivíduos e que, a partir de um posicionamento crítico, pode
resultar não em relações de alienação, mas em processos de reapropriação, no
desenvolvimento de relações expressivas e criadoras. Abordando essa problemática,
discorre Gilles Deleuze (2005, p. 113):
A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas
formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de
acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada
indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma
vez por todas. A luta pela subjetividade se apresenta, então, como direito à
diferença e direito à variação, à metamorfose.
atuação do clown. É um equívoco entender que esse caráter improvisacional e sua relação
com a plateia seja encontrado preferencialmente no palhaço circense, ou que esteja ausente
nos palhaços que realizam espetáculos teatrais. Podemos encontrar inúmeros escritos de
autores atuantes nas artes cênicas e que pensam o clown e a sua formação dedicando-se à
investigação sobre a relação palhaço/espectador como uma constante42. Abaixo trouxemos
a interlocução de Renato Ferracini (1998, p. 205) acerca do tema:
42
Entre esses pesquisadores destacamos Jacques Lecoq (2010, p. 214), Luís Otávio Burnier (2001, p. 219),
Renato Ferracini (1998, p. 205-206; 209-210; 214) e Ricardo Puccetti (2006, p. 121-123; 2009, p. 124).
43
Termo de origem inglesa relacionada a uma história engraçada ou diálogo improvisado por um ator. Ao longo
do século XX foi caracterizada no cinema e no teatro “[...] pela resolução incongruente e surpreendente de
uma situação [...]” (AUMONT, 2003, p. 141). Geralmente presente em atuações clownescas, atores como
Buster Keaton e Jerry Lewis ficaram conhecidos no cinema pela utilização deste recurso cômico. Pavis (2005)
destaca que as gags trazem a perturbação da realidade, contradizendo a percepção de normalidade que se tem
dos discursos.
44
Deleuze, Lógica do Sentido, p. 329. Referência da autora.
57
Encerrar o clown num espetáculo de dramaturgia fechada, sem espaço para sua
relação com a plateia e para a ação improvisacional é contrariar um dos princípios mais
importantes do jogo com esta máscara. Falar de palhaço, seja no teatro, na rua, no ambiente
hospitalar ou no circo, é jogar com a necessidade do encontro com a alteridade, onde o
espectador não será apenas receptor, mas interlocutor de um processo de comunicação que
envolve composições e decomposições de afeto.
Por fim, gostaríamos de abordar um terceiro e último ponto defendido por
Bolognesi e que consideramos conflituoso, qual seja, o estabelecimento de certo juízo de
valor em relação ao palhaço que atua no espaço circense e o palhaço advindo da cena
teatral, conforme já pode ser depreendido da citação anteriormente descrita deste autor.
Ele defende que “a máscara se distanciou das características grotescas e populares do
palhaço de circo, que é, concomitantemente, universal e particular, para uma acentuada
nuance naturalizadora do clown [de teatro].” (BOLOGNESI, 2006, p. 9).
Bolognesi destaca o palhaço circense como se este estivesse resguardado do
processo de enfraquecimento advindo da psicologização da máscara, mantendo ainda suas
matrizes grotescas e transgressivas. Então, uma questão se faz necessária: será o palhaço de
circo mais predisposto a constituir um foco de resistência em relação ao enquadramento
civilizatório da máscara e sua possível docilização? Nas palavras da pesquisadora Regina
Horta Duarte, na apresentação da obra do autor supracitado Palhaços:
“lugares comuns”, e contrariando o que é esperado. Contudo, será que essas considerações
teóricas encontram real equivalência na prática dos espetáculos de picadeiro?
Leo Bassi, cujo trabalho será analisado em nosso terceiro capítulo, discorre sobre o
tema nas linhas a seguir45. Descendente de uma antiga linhagem de comediantes
excêntricos 46 e de palhaços circenses de origem austríaca, italiana, francesa e polonesa,
Bassi, quando jovem, chegou a trabalhar no circo por sete anos, atuando inicialmente como
malabarista e depois como palhaço, fazendo dupla clownesca com seu pai. Aos 23 anos ele
abandonou o trabalho nos picadeiros e passou a se apresentar nas ruas da Europa, iniciando
suas primeiras experimentações em relação a uma comicidade mais provocadora, o que lhe
conferiria, anos mais tarde, reconhecimento internacional. No tocante aos palhaços
circenses, Bassi (2006, p. 106) afirma:
45
Entrevista concedida aos artistas e palhaços Sávio Moll e Flávia Reis, publicada em Boca Larga: Caderno dos
Doutores da Alegria, nº 2 (2006).
46
Segundo Jacques Lecoq: “O excêntrico faz as coisas diferentemente dos outros. Põe o centro das coisas em
outro lugar. Ele vai pentear os cabelos... com um ancinho. Um outro, excêntrico virtuose, tocará piano... com
os pés.” (LECOQ, 2010, p. 224).
47
De origem romena, este circo foi criado por Pedro Stankowich quando de sua chegada ao Brasil, em 1856,
trazendo com ele somente seus animais amestrados, pois tinha perdido o circo que naquela época já existia na
Romênia. Juntando-se com artistas circenses de outras famílias que também haviam aportado na América do
Sul em busca de melhores condições de vida do que na Europa, assim começa a história deste circo que é um
dos mais tradicionais do nosso país. Fonte: <http://www.stankowich.com.br/o_circo.html>. Acesso em 10 nov.
2012.
59
do tema. Todavia, observando a atuação do palhaço em questão 48, ele não parece carregar
de forma clara, em seu corpo, as matrizes grotescas que Bolognesi aponta como
concernentes ao palhaço circense. Ao contrário, ele se apresenta de forma bastante
cotidiana, sem grandes exageros ou excentricidades – excetuando-se sua maneira “ríspida” e
certo desleixo ao tratar os três meninos que participam do número.
É justamente nesses pequenos momentos de contradição que o clown provoca o
riso da plateia, quando ele quebra a expectativa do senso comum e contraria aquilo que se
esperaria como a forma de lidar que um adulto e, particularmente, um palhaço, deveria
manter em relação às crianças. Mas não nos parece, contudo, que ele atinja efetivamente
patamares grotescos no exemplo citado.
Ressalte-se que não objetivamos realizar um descrédito do palhaço circense, muito
menos destacar os palhaços que atuam no teatro como representantes das qualidades
transgressivas. O que nos interessa é pensar que o potencial transgressor da palhaçaria e
suas problemáticas constituem um campo de estudo muito mais complexo, que ultrapassa a
realidade física do espaço em que o clown vai se apresentar. Os artistas analisados nesta
dissertação representam exemplos a este respeito, uma vez que Leo Bassi, Jango Edwards e
Luiz Carlos Vasconcelos já realizaram espetáculos e atuações no âmbito do circo, da rua e do
teatro.
É complicado afirmar qual palhaço está mais aberto aos processos transgressivos ou
mais propenso ao enfraquecimento de intensidades, seja, por exemplo, o que atua nas
arenas circenses ou o palhaço da cena teatral. Essa não é uma questão meramente
topográfica, pois importa saber de que palhaço específico estamos falando, em qual
espetáculo, em qual número, em que jogo.
Entendemos que as qualidades transgressoras, bem como os riscos que rondam seu
esvaziamento, constituem um embate de forças a que estão sujeitos todos os clowns, sem
que haja instâncias resguardadas ou livres dessas questões que afetam a palhaçaria
contemporânea. Tensão que pode ser observada desde a formação do aprendiz até às
apresentações de experientes artistas da arte clownesca, e que nunca restará solucionada
de forma definitiva. Cada nova atuação será um convite renovado a esse embate de forças.
48
Disponível no DVD em anexo e também no sítio: <http://www.youtube.com/watch?v=8SIOzFE5-10 >. Acesso
em 10 nov. 2012.
60
49
Não podemos negar que nos parece instigante a ideia de testar empiricamente algumas das relações entre as
matrizes de comicidade aqui analisadas e as intensidades transgressoras clownescas, objeto que será alvo de
futuras pesquisas.
61
mas partindo de suas próprias práticas e ações postas em atrito com o ridículo. Vejamos
como podemos entender essa manifestação risível na palhaçaria.
O autor russo Vladimir Propp (1992) se dedica ao estudo da comicidade afirmando
que o riso é provocado quando ocorre o desnudamento repentino e inesperado de defeitos
até então ocultos daquele ou daquilo que é risível. Este autor desenvolve seu pensamento a
partir da afirmação de Aristóteles presente no capítulo V de sua Poética: “[...] o cômico
consiste em um defeito ou torpeza que não causa dor nem destruição.” (ARISTÓTELES apud
ALBERTI, 1999, p. 46)50. Segundo Propp, o cômico estaria ligado ao disforme, à
presentificação de particularidades ou estranhezas que vão distinguir o sujeito risível do
meio que o circunda, tornando-o ridículo. Em suas palavras:
O palhaço, como temos visto, é uma figura cômica que carrega em suas lógicas a
condição desviante da falha diante das normas, a inadequação de quem tenta e não
consegue se adaptar ou mesmo de quem desconhece os padrões comuns de conduta.
Atuando a partir de modos singulares de agir, pensar e sentir, construídos no âmbito da
experimentação, o clown é capaz de operar a relativização da norma e das convenções
sociais, transcendendo o campo do previsível, do mediano, do útil, do democrático. Dessa
forma, pensar as qualidades transgressivas do jogo clownesco é analisar a própria
comicidade dessa linguagem, como instâncias que se cruzam e problematizam.
Propp ressalta que, quanto mais a diferença for reforçada, mais provável será a
manifestação cômica. Ademais, essa deformidade risível pode se apresentar tanto em
relação aos desvios de normas e valores de conduta, como no tocante a fisicalidade, pois,
50
Maiores informações a respeito das concepções aristotélicas sobre a comédia podem ser encontradas em
Verena Alberti (1999).
62
segundo ele, o homem carrega em si, mesmo que de forma inconsciente e efêmera, noções
construídas coletivamente acerca de beleza e harmonia estética que variam de acordo com
as especificidades culturais e temporais.
Desproporções físicas também podem ser objeto do riso, desde que não
ultrapassem determinados limites da comicidade - defeitos que causem ofensa ou revolta
nos demais, ou mesmo suscitem compaixão ou piedade não conseguem despertar o riso,
retomando mais uma vez a afirmação aristotélica de que a comédia rechaçaria
características capazes de provocar dor ou destruição – noções que serão problematizadas
pelo bufão Leo Bassi, por exemplo, como poderemos perceber quando da análise de suas
atuações no capítulo terceiro desta dissertação.
Ressalte-se que entendemos aqui o termo defeito no sentido antonímico de virtude,
ou seja, expressão atinente à imperfeição, falha, fraqueza de ordem física ou moral 51, o que
nos aproxima do conceito nietzschiano de degeneração trabalhado no início do capítulo. O
disforme como instabilidade da ordem instituída, experiência da diferença no interior de
uma coletividade.
Destacamos, contudo, que nosso objetivo não é aproximar nosso entendimento
sobre a comicidade das reflexões de Henri Bergson52, cuja definição sobre o cômico aludia a
um fenômeno de ordem negativa ao qual caberia ao riso a sua correção. Este autor constrói
seu pensamento defendendo que a comicidade seria a manifestação de um caráter
mecânico sobre a vida e nesse contexto, o riso assumiria uma função social corretiva em
relação às deformidades e aos comportamentos desviantes, restabelecendo a ordem.
Bergson (1983) afirma que a vida está em constante movimento e mudança,
exigindo do homem uma dinâmica de adaptação. A ausência desse caráter adaptativo
constituiria o mecânico. Como um dos exemplos o autor cita a queda de um homem ao
tropeçar numa pedra, despertando o riso nos outros passantes, pois a mecanicidade de seu
caminhar não teria permitido que seu corpo assumisse a maleabilidade necessária à
51
De acordo com definição do Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=defeito >. Acesso em 19 fev. 2012.
52
Bergson publica em 1900 a obra O riso: ensaio sobre a significação do cômico, reunião de três artigos em que
o autor analisa o riso como um fenômeno social. Seus escritos constituem até hoje um dos estudos mais
citados sobre a comicidade, também tendo sido alvo de inúmeras críticas ao longo do tempo. Podemos
encontrar reflexões importantes sobre a teoria cômica bergsoniana em autoras como Cleise Furtado Mendes
(2008) e Verena Alberti (1999).
63
preservação de seu equilíbrio após esbarrar num obstáculo. Como punição à rigidez
mecânica do indivíduo surgiria o riso corretivo dos que estão a sua volta, objetivando a
restituição da dinâmica vivente. Em suas palavras: “O riso é, antes de tudo, um castigo. Feito
para humilhar, deve causar à vítima dele uma impressão penosa. A sociedade vinga-se
através do riso das liberdades que se tomaram com ela.” (BERGSON, 1983, p. 99-100).
Não compreendemos em nossa pesquisa o riso despertado pelo palhaço como
necessariamente um riso de humilhação ou repressão diante dos defeitos, suposta tentativa
de os espectadores efetuarem a punição dessa figura cômica diante de suas falhas e
inadequações. A comicidade clownesca possui um caráter de compartilhamento, uma
condição desviante que é oferecida à plateia através do jogo cômico e, através dela, cada
espectador pode vislumbrar suas próprias noções do que é padrão, bem como seus desvios
e fraquezas. Contudo, as razões pelas quais esse desvio cômico opera o nascimento do riso
na assistência são da ordem da imprevisibilidade, evento atinente à instabilidade dos
processos de recepção, parecendo-nos limitado o entendimento de que este riso possui um
caráter primordialmente punitivo.
O riso presente na atuação do clown pode relacionar-se, por exemplo, à
identificação entre a assistência e essa figura cômica, em dinâmicas de aproximação e
distância sobre as porções de inadequação que nos constituem; ou pode ser um riso de
surpresa diante do inesperado, de temor quanto a insegurança operada pelo desvio, de
angústia, ou mesmo pode surgir como efetivação da possibilidade bergsoniana de um riso
punitivo ou correcional, fazendo-nos atentar para a multiplicidade de configurações que o
fenômeno do risível pode assumir. Nesse sentido, trazemos o esclarecimento de Alberti
(1999, p. 201-202):
O defeito não faz rir enquanto defeito, e sim porque, enquanto desvio da
ordem, nos revela o “outro lado” do ser. [...] [A comicidade] faz rir porque
passamos de um mundo estável a um mundo escorregadio, reconhecendo
o caráter enganador da estabilidade.
instabilidade. Assim, a dinâmica da comicidade tem seus efeitos desencadeados pela ação
transgressiva, conforme entendemos neste estudo, enquanto território do heterogêneo.
Além disso, retomando as reflexões de Propp, este autor destaca a comicidade
como um conceito correlativo, ou seja, que não existe a priori no objeto ou sujeito risível,
nem no sujeito que ri, mas se apresenta a partir da relação recíproca estabelecida entre eles,
quando se instaura o espaço da diferença. De um lado há o sujeito que ri, com suas
concepções de mundo e noções, mesmo que instintivas, de ordem, de conveniência. Do
outro, há o sujeito que provoca o riso, contradizendo os princípios ordenadores, trazendo o
defeito da norma, a falha, o desvio. É na instabilidade da afetação entre as duas instâncias
que pode surgir o cômico.
Este é mais um conceito que pode ser observado a partir do palhaço, cuja atuação
pode estar - e defendemos que esteja - diretamente ligada à sua relação com cada
espectador e à violação de padrões normativos. Na mesma medida, entendemos que essa
interface correlacional se estende às qualidades transgressivas, pois estas se manifestam na
efemeridade da relação palhaço-plateia, não estando contidas ou garantidas a priori.
Analisaremos, a partir de então, as dinâmicas transgressivas clownescas à luz de
alguns dos princípios cômicos investigados pela professora e pesquisadora Elza de
Andrade53. Apesar de não tratar especificamente do universo da palhaçaria, entendemos
que os escritos da autora podem nos ajudar a avançar um pouco mais em nossas reflexões
sobre a ação transgressiva e o jogo cômico, sem perder de vista a instabilidade atinente aos
processos em questão. Entre as “matrizes de comicidade” que Andrade elenca em sua
pesquisa estão: o inesperado, a quebra do padrão, o exagero, a repetição, o corpo mecânico,
o grotesco, o contraste e a triangulação.
Embora entendamos que as qualidades transgressivas possam se manifestar em
quaisquer circunstâncias, devido a seu caráter dinâmico e multifacetado, desejamos
investigar cinco dos princípios supracitados, quais sejam a quebra de padrões, o inesperado,
o exagero, o grotesco, e o contraste. Nossa escolha funda-se no entendimento de que as
categorias selecionadas são capazes de gerar experiências cênicas próximas do perpétuo
jogo dos limites e da transgressão, privilegiando tensões e contaminações entre a
53
Estudo presente na tese de Doutoramento Mecanismos de comicidade na construção do personagem:
procedimentos metodológicos para o trabalho do ator (UNIRIO - 2005).
65
54
Número no DVD em anexo.
66
ações, mas é uma brincadeira em que vida e morte estão presentes, alegria e violência.
Gardi transita por diversos estados emocionais, mostrando-se doce, apavorada, curiosa,
cruel, alegre... E assim ela vai surpreendendo o espectador a cada ação e reação, rompendo
com as raias do esperado, do politicamente correto. A partir desses fluxos de sensações, o
clown é capaz de subverter ou transformar valores e paradigmas, trazendo a surpresa e a
quebra das expectativas de quem o assiste. Nas palavras de Michael Chekhov (1986, p. 156-
157) acerca do palhaço:
vamos observar a atuação de mais um palhaço, o argentino Tomate, cuja própria aparência
Figura 4 – Palhaço Tomate já é capaz de nos causar estranheza – como podemos
Tomate perceber na imagem ao lado.
Sua peruca de cachinhos brancos, aliada à face
também branca, contrastam com um sobretudo negro que lhe
cobre o corpo até os joelhos, de onde saem meias listradas
pretas e brancas que desembocam num sapato de palhaço
preto com extremidades exageradamente abauladas.
Completando a extravagância de sua figura, Tomate, que de
vermelho só apresenta o nariz manchado e três grandes
botões em seu casaco, geralmente entra em cena dando gritos
Fonte:
http://blogs.lanacion.com.ar/rio- esganiçados que lembram o som de uma gralha. A cada vez
de-janeiro/tag/tomate-globo/>.
Acesso em 20 fev. 2013. que solta os grunhidos, sempre olhando para a plateia, ele
sacode os braços nas laterais do corpo, para cima e para baixo, como se estes membros
fossem asas e ele quisesse alçar voo.
A excentricidade de sua indumentária, bem como de sua apresentação inicial, já
marcam uma diferença do que se esperaria em relação a um palhaço. Mesmo que a
palhaçaria abarque uma gama inimaginável de combinações em relação a tipos de figurinos
e distintas caracterizações, acreditamos haver um caráter incomum em Tomate. Sua
composição visual singular é ampliada pela imitação esdrúxula de pássaro, gestualidade que
não mantém relação clara com o resto do espetáculo. Antes que ele entre em cena já se
podem ouvir alguns grunhidos, até que ele adentra o espaço cênico fitando os espectadores,
grunhe mais algumas vezes, agitando os braços/asas, para então continuar com a atuação,
sem que haja jogo ou imagem que justifique aquela entrada insólita.
Essa ausência de explicação relega o espectador ao plano instável do “não saber” e
nos parece cenicamente potente na medida em que é capaz de provocar dúvida e incerteza
na assistência. Vemos um ser extravagante que veste longo casaco preto, indicando peso e
masculinidade, o que contrasta com sua ridícula peruca de cachos, que lhe confere ar
angelical, porém de maneira estranha, pois todas as mechas são brancas. Ele grita de forma
intensa, imitando uma ave, como se cada som fosse seu jeito de se apresentar à plateia,
enquanto parece se divertir com a execução daqueles gestos singulares. Quebrando padrões
69
de razoabilidade ou racionalidade, não nos é dado a “decifrar” logo de início qual é o tipo de
jogo que essa figura traz, quais são as suas lógicas, do que ele é capaz.
Ademais, as apresentações de Tomate costumam girar em torno de sua maestria na
manipulação de balões infláveis de tamanhos e formas diversas, o que até poderia nos
remeter à imagem pueril dos palhaços que trabalham animando crianças e festas infantis.
Contudo, este clown logo nos faz perceber que opera com uma construção gestual refinada,
aliada ao tratamento insólito que dá aos balões, oscilando entre imagens ingênuas, como
uma pessoa a se olhar no espelho, até momentos obscenos, irônicos ou mordazes, como
alguém que separa carreiras de cocaína sobre a superfície do mesmo espelho.
Em trecho do espetáculo Tomate por Tomate55, podemos perceber que ele
manipula seus artefatos infláveis criando uma profusão de imagens que presentificam
inúmeras situações e estados os mais distintos, partilhando com os espectadores, ao mesmo
tempo, seu modo ácido de ver o mundo, suas lógicas clownescas sarcásticas. Em curtíssimo
fragmento de cerca de quinze segundos ele consegue criar com um balão longo e delgado
uma apresentação frenética de rock, uma seringa que pica a veia de seu braço, um
guitarrista que toca seu instrumento totalmente tonto, uma pessoa que se enforca e alguém
vomitando em um vaso sanitário, com direito a fechar tampa do vaso após o ato. A
assistência fica sem fôlego com tamanha criação imagética, enquanto ri copiosamente das
ações e gestos mais inusitados. Tomate nos dá a sensação de poder recriar o mundo através
da manipulação dos balões, surpreendendo nossas expectativas a cada nova ação,
colocando-nos diante da variabilidade do inesperado.
Seu modus operandi também contamina a relação que ele estabelece com a
plateia, como podemos ver em momentos em que ele zomba de alguns espectadores, jogo
originado de uma suposta expressão de apatia de alguém da assistência, quando o clown
sugere através de seus gestos que determinada pessoa não está entendendo nada ou está
sob efeito de álcool e drogas; ou mesmo quando ele manipula um pequeno balão-
espermatozóide e o atira sobre uma espectadora, indicando que ela ficaria grávida de um
bebê-pássaro.
55
DVD em anexo ou disponível no sítio: <http://www.youtube.com/watch?v=HnI-_8cshNY >. Acesso em 01
mar. 2013.
70
56
Retomaremos o tema no segundo capítulo da dissertação ao estudarmos o conceito de realismo grotesco
fundado por Mikhail Bakhtin (2010), quando da análise das atuações do palhaço Jango Edwards.
71
Por fim, o contraste também é uma das matrizes cômicas que destacamos dos
estudos de Andrade. Também chamado de inversão ou jogo de oposições, é por ela assim
descrito:
nossos percursos, desenvolvendo algumas reflexões acerca da ética envolvida nos processos
transgressivos clownescos.
[...] o único “objetivo” que se pode ver na força cômica – enquanto força –
é o de submeter qualquer tipo de alvo aos seus poderes de reversibilidade,
deslocamento, contraste, rebaixamento, desestabilização. O que pode ser
visto como subversivo ou libertário na comédia não é aquilo que se
representa, não é qualquer crítica ou mensagem, não é um veredicto ou
opinião sobre um dado fato ou comportamento, mas sim um certo modo de
58
A autora desenvolve em A Gargalhada de Ulisses (2008) um estudo sobre a catarse na comédia, focando sua
investigação em diversos exemplos da dramaturgia cômica mundial.
73
nos submete, dos encontros que tendem a enfraquecer nossas potências. Rir da própria
tirania do riso capitalista.
Naturalmente, estamos aqui percorrendo caminhos perigosos, instáveis, que
poderão despertar dores e ódios naqueles que sentirem abaladas suas estruturas até então
seguras e notadamente estabelecidas. O riso também pode carregar uma pulsão de morte 59.
Ainda segundo Mendes (Ibid., p. 212): “não é nada reconfortante o modo cômico de agir,
inimigo que é não apenas do medo, mas de todo mecanismo de controle, de garantia de
estabilidade”.
Jango Edwards (1980), o clown que será objeto de estudo em nosso próximo
capítulo, destaca que o palhaço pode representar uma ameaça a determinadas pessoas que
não desejam perceber o mundo que as circunda, preferindo permanecer adormecidas. Ele
indica: “Precisamos rir de nós mesmos para nos entendermos, e se não pudermos fazê-lo,
não há esperança e para muitos não há esperança. A crítica instiga mudança e é um dos mais
importantes princípios de um mundo livre 60.” (EDWARDS, 1980, p. 71. Tradução nossa).
Riso, crítica e mudança, termos que tantas vezes nos parecem distantes da
palhaçaria contemporânea e que, acreditamos, constituem focos necessários à investigação
dessa técnica. Dando considerada importância ao tema em sua filosofia, Nietzsche 61 trata
das potências do riso em sua relação com a afirmação da existência no seguinte aforismo:
59
Minois, referindo-se às festas carnavalescas de províncias espanholas como Cuenca, Córdoba e Áragon,
destaca a presença de mascarados e homens com fantasias de diabos que dançam, provocam o riso com
zombarias e batem nos demais habitantes locais. Citando a interlocução do pesquisador Julio Caro Baroja, o
autor afirma que “o fato de associar o ato de se mascarar à violência, às brincadeiras grosseiras, a atos cômicos
e trágicos, o desejo de mudar de personalidade e de passar do riso às lágrimas, e vice-versa, noções de vida, de
movimento, de lubricidade a noções de morte e de destruição” ressalta, às vezes de forma macabra, a ligação
entre riso, loucura e morte, “um caráter inquietante, mesmo do ponto de vista da psicologia geral.” (BAROJA
apud MINOIS, 2003, p. 606).
60
“We must laugh at ourselves to understand ourselves, and if we cannot do it, there is no hope and for some
there is no hope right now. Criticism instigates change and is one of the most important principles of a free
world.”
61
Historiador e tradutor da obra de Nietzsche, Paulo César de Souza destaca no posfácio de A Gaia Ciência que
“[...] a sua ciência gaia é aquela que alegremente se impõe limites no questionamento do mundo, para
preservar e afirmar a existência.” (NIETZSCHE, 2012, p. 306). O termo gaia vem do vocábulo gaya, termo
utilizado por trovadores italianos da Idade Média para designar sua arte e que teria dado origem ao termo
inglês gay, em seu sentido original de alegre e gaiato – somente a partir da década de 1950 é que este termo
teria passado a identificar os homossexuais. Mais informações sobre as relações entre a filosofia nietzschiana e
o riso podem ser buscadas em Verena Alberti (1999).
75
[...] precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para
poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E justamente por
sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens,
nada nos faz tanto bem como o chapéu do bobo: necessitamos dele diante
de nós mesmos – necessitamos de toda arte exuberante, flutuante,
dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade
de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós. Seria para nós
um retrocesso cair totalmente na moral, justamente com a nossa suscetível
retidão, e, por causa das severas exigências que aí fazemos a nós mesmos,
tornarmo-nos virtuosos monstros e espantalhos. [...] não só ficar de pé,
com a angustiada rigidez de quem receia escorregar e cair a todo instante,
mas também flutuar e brincar acima dela! (NIETZSCHE, 2012, p. 124. Grifos
do autor).
Fonte: <http://www.milanoclownfestival.it/edizione-2012/artisti-e-
compagnie/jango_edwards>. Acesso em 08 mar. 2013.
78
Jango (Stanley Ted Edwards) nasceu no ano de 1950 em Detroit, estado norte-
americano de Michigan, área conhecida por sua indústria agropecuária e grandes fazendas
que abrangem seu território. Seu pai era um bem-sucedido empresário no ramo de jardins e
paisagismo e sua mãe uma dona-de-casa religiosa. Terceiro filho de uma família de quatro
crianças, viveu sua adolescência nos anos sessenta, sendo influenciado desde cedo pelo
movimento hippie62 e pelas ideias de contestação da época. Já aos treze anos de idade,
Stanley declarou-se ateu e, a partir dos dezesseis anos, saiu de casa e passou a morar
sozinho63.
Aos dezessete anos, montou seu próprio negócio tendo um dos irmãos como sócio,
competindo com a empresa do pai. Interessado por temas como filosofia e psicologia,
Stanley entrou em contato com O Quarto Caminho, do filósofo russo P. D. Ouspensky,
durante uma viagem de negócios à Europa, em 1970, obra que, segundo o próprio artista,
mudaria os rumos de sua vida. Pertencente ao ramo das ciências esotéricas, esse livro é
baseado nos ensinamentos do mestre espiritual George Gurdjieff (1866 – 1949), o qual, de
acordo Ouspensky (1996), propunha um caminho de desenvolvimento do indivíduo através
do despertar da consciência no homem.
Partindo da integração do que ele denominava como “três caminhos” - corpo físico,
emoção e intelectualidade – o quarto caminho seria uma busca pelo autoconhecimento
alcançado na integração e equilíbrio dessas três instâncias. Ouspensky destaca que o
conhecimento do quarto caminho deve se dar empiricamente, no âmbito da experiência, por
meio da observação das relações entre o homem e o mundo que o cerca, bem como através
62
Surgido na década de 1960 o movimento hippie buscava modos de existência fora dos ditames normativos e
capitalista da sociedade vigente, reivindicando, entre vários ideais, a ampliação dos direitos civis de mulheres e
o fim das guerras que aconteciam naquele momento. Fonte:
<http://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/as-lutas-do-movimento-hippie.htm>. Acesso em
09 mar. 2013.
63
As informações biográficas contidas nesta dissertação foram retiradas da obra Jango Edwards (1980) e do
site do artista: < http://jangoedwards.net/workshops/clown-front/>. Último acesso em 21 jul. 2013.
79
da interação entre interior e exterior do indivíduo – aspectos que podemos observar na arte
clownesca de Jango, como veremos ao longo do capítulo.
Inspirado pelos ensinamentos da obra supracitada, ao retornar aos Estados Unidos,
Stanley, então um jovem bem sucedido de vinte anos, resolve vender seus bens, desfazer-se
de sua empresa e retorna à Europa para estudar a arte do clown. Instalando-se inicialmente
em Londres, Jango cria, nesta cidade, sua primeira trupe, The London Mome Company,
realizando apresentações cômicas na rua. Posteriormente, juntando-se a outros artistas
ligados à contracultura, ele funda o The Friends Roadshow.
Figura 6 - Postal promocional do The Friends Roadshow. Em seu verso trazia a descrição: “Um show familiar ao
ar livre para parques, festivais e eventos. Conduzimos a diversão no palco móvel que se desdobra do nosso
ônibus de dois andares. A mostra inclui ‘o meio picadeiro de Michael Spaghetti‘, um melodrama emocionante
de intriga e suspense que se passa na atmosfera colorida de um circo. Também na programação ‘Um conto de
pescador’, o nosso show de marionetes gigantes estrelando Bwana Banana, e os 'Jogos Olímpicos em Roupas
64
de baixo '; jogos e competições para todos, com o sempre popular 'Campeonato de lançamento de ovos '.”
Londres, 1974. Na foto, Jango Edwards aparece calçado de patins, vestindo cartola e macacão vermelhos,
segundo artista da esquerda para a direita.
64
“An open air family show for parks, festivals and any outdoor events. We usually run the merriment from the
mobile stage that folds out from our double-decker bus. The show includes ‘Michael Spaghettis ½ Ring Circus’, a
gripping melodrama of intrigue and suspense set in colorful atmosphere of a circus. Also on the programme is
‘A fishytale’, our giant puppet show starring Bwana Banana, and the ‘Underwear Olympics’; games and
competitions for everyone, featuring the ever popular ‘Egg Tossing Championships’.” Tradução nossa.
80
Grupo itinerante que viajaria por diversos países europeus e por estados norte-
americanos, The Friends Roadshow realizava shows de música e variedades, desenvolvendo
experiências cênicas baseadas na comicidade e na paródia. Mais do que um espetáculo, a
vida desses artistas estava misturada nessas ações e, em 1974, eles chegam a fundar uma
comunidade de vida alternativa em uma fazenda de Michigan, criando uma vertente
chamada Friends Roadshow America.
Em 1976, Jango mudou-se para Amsterdam, Holanda, criando o Festival of Fools,
espaço de intercâmbio ao trabalho e pensamento de palhaços de várias partes do mundo.
Esse encontro internacional de palhaços seria realizado bienalmente até 1984, reunindo os
chamados novos clowns - artistas que, a partir da década de 1970, começam a repensar a
arte clownesca e suas relações com a cena e a vida cotidiana. Os novos clowns se opunham
aos processos de enfraquecimento da figura do palhaço devido a sua incorporação pela
indústria do entretenimento65. Assim, desde os primeiros anos de experimentação com a
palhaçaria, podemos perceber que Jango esteve envolvido em práticas que refletiam sobre
as intensidades do palhaço e as problemáticas de perda de potência dessa figura.
Ao longo de mais de quarenta anos de carreira, Jango não só desenvolveu e
aprimorou sua arte clownesca, mas, empenhou-se no estudo de disciplinas como mímica,
mágica, acrobacia, música e dança, habilidades que ele mescla em seus espetáculos e
números cômicos. Ademais, Jango gravou alguns discos66 com músicas compostas e
cantadas por ele, e publicou dois livros67 onde trata de sua vida, sua carreira como palhaço e
seus entendimentos e reflexões sobre a arte da palhaçaria.
Além de criar e executar seus espetáculos e números solo, Jango também já dirigiu
mais de cinquenta espetáculos de outros palhaços, e ministra oficinas e master classes sobre
a arte do clown. Tendo realizado diversas participações em filmes de comédia e programas
65
Fonte: <http://nouveauclowninstitute.com/nci/yoo_steam_demo_package_wp/?page_id=619>. Acesso em
20 ago. 2012.
66
Podemos encontrar na web o nome de discos do artista como Live at the Melkweg (Milky Way records, LP,
1978), Clown Power (Ariola, LP, 1980), Live in Europe (Polydor, LP, 1980), Holey Moley (Silenz, Cd, 1991), todos
inéditos no Brasil e alguns que nem chegaram a ser produzidos em Cd.
67
Jango Edwards (Editora N. H. Matz, 1980) e I laugh you (Editora Rostrum Haarlem, 1984), ambos esgotados e
não traduzidos para a língua portuguesa. Esta pesquisa conseguiu entrar em contato com a primeira obra
citada, a qual reúne um conjunto de fotos de apresentações de Jango em diversos lugares do mundo, bem
como traz estruturas dramatúrgicas de números cômicos, textos escritos pelo artista e letras de canções
gravadas em seus discos.
81
68
Escola de palhaços criada pelo clown russo Slava Polunin. Site oficial:
<http://www.academyoffools.com/>. Acesso em 21 jul. 2013.
69
A edição de 2013 terá, ainda, o bufão Leo Bassi como responsável por um dos cursos, o módulo denominado
“Na procura da sua identidade cômica”, o que nos faz pensar que, nos últimos anos, a Espanha tem se tornado
um importante centro de investigação das técnicas clownescas e suas complexidades contemporâneas.
Maiores informações podem ser obtidas no site da Escola:
< http://www.escueladelacomicidad.org/apresentaccedilatildeo.html>. Acesso em 21 jul. 2013.
70
Entrevista publicada pela Revista Untel (Genebra, Suíça), dez./jan. 2002. O nome do jornalista responsável
pela entrevista não foi citado por Kasper.
82
Em Jango Edwards (1980), este artista desenvolve alguns conceitos de sua Teoria
clownesca71, ressaltando o caráter pessoal da palhaçaria. Segundo ele, todos nascemos
palhaços, em seu sentido mais puro, uma vez que o clown é inocente, curioso, ingênuo, além
de carregar a essência da juventude. Na juventude estaríamos cheios de imaginação e
fantasia, características que vão sendo suprimidas pelo mundo a nossa volta, pelas leis
naturais e sociais que nos governam. De acordo com o palhaço sob análise, os jovens se
sentem mais livres e com o passar da idade muitas vezes isso vai se perdendo, pela
adequação do indivíduo às normas. Assim, os estudantes da técnica clownesca deveriam
entender que juventude, fantasia e imaginação devem ser (re)apreendidas, num processo de
observação interior através da qual o palhaço pode potencializar suas naturezas cômicas.
Embora Jango utilize termos como puro (pure) e essência (essence), acreditamos
que ele se refira ao clown mais como singularidades cômicas daquele ator do que como um
conjunto fixo de características. Como poderemos observar na atuação deste palhaço, a
comicidade se constitui para ele como abertura possível de relações e jogos, não como o
estabelecimento de uma identidade-essência, núcleo interior supostamente delimitado e
capturado.
A multiplicidade de estados e de indumentárias presente nas ações cênicas deste
artista poderia deixar a assistência em dúvida se ele é mesmo um palhaço ou um ator
cômico, contudo, ultrapassando a questão da nomenclatura ou de formas preestabelecidas,
Jango se autodenomina clown e ,pelos próprios princípios presentes em seu ofício, ele tem
tido seu trabalho clownesco internacionalmente reconhecido.
Ainda a respeito da pessoalidade no palhaço, Jango (1980) destaca que o aluno
deve aprender sobre suas habilidades mentais e físicas, suas capacidades e falhas, num
processo contínuo que envolve a pessoa do artista, seja no aprendizado de técnicas como
acrobacia ou mímica, seja com relação a eventos passados e presentes da vida daquele ator.
Ele afirma que o artista não tem o direito de presentificar as potências e fraquezas dos seus
semelhantes até que tenha entendido as suas próprias. Indo um pouco mais além, podemos
citar algumas das palavras proferidas no início dos espetáculos do Friends Roadshow:
71
“Clown Theory” (EDWARDS, 1980, p. 69-72). Tradução nossa.
84
O que vocês veem esta noite não é religioso. O que vocês veem esta noite
não é político. O que vocês veem aqui esta noite tem a ver com três letras:
F – U – N , Fun (diversão).
Vocês são Friends Roadshow tanto quanto nós somos. Nós usamos os
narizes vermelhos aqui e quando vocês riem de nós estão rindo de vocês
mesmos.
Vocês têm que se lembrar de tomar um tempo para sorrir. Porque assim
vocês vão muito mais longe do que jamais pensaram que poderiam.
Não sou diferente de vocês – nunca se enganem72. (EDWARDS, 1980, p. 22).
Dessa forma, podemos entender que arte e vida se encontram misturadas na arte
clownesca de Jango, tanto na pessoalidade do palhaço, como no tocante à sua relação com a
assistência, quando, através da atuação do clown, cada espectador pode se deparar com sua
própria natureza humana refletida, suas inadequações, desejos e intensidades.
Por fim, gostaríamos de abordar nesta apresentação inicial uma questão presente
no trabalho desse palhaço e que entendemos estar diretamente relacionada à sua lógica
cômica. Embora no trecho supracitado Figura 7 - Jango e sua máscara.
72
“What you see tonight is not religious. What you see tonight is not political. What you see here tonight has to
do with three letters: F - U- N, Fun. / You are Friends Roadshow as much as we are. We all wear the red noses
here and when you laugh at us, you're laughing at yourself. / You have to remember to take the time to smile.
Cause then you go a lot further than you ever thought you could. / I am no different than you - don't ever fool
yourself.” Tradução nossa.
73
Bolognesi (2003) afirma que alguns historiadores do circo atribuem ao acrobata e cavaleiro Tom Belling o
início do uso do nariz vermelho em cenas cômicas, na segunda metade do século XIX, quando o artista, após
problemas com o dono do circo, teria adentrado o picadeiro de maneira atrapalhada, tropeçando e caindo com
o rosto no chão, o que teria lhe rendido o nariz avermelhado e os aplausos entusiasmados do público. Outra
versão atribuiria o nariz vermelho ao frio e ao excesso de bebida do artista.
85
como chapéus ridículos, barrigas falsas e diferentes tipos de óculos, mas poucas são as vezes
em que atua com a menor máscara do mundo74. O traço mais marcante do rosto de Jango é
a sua boca, que ele mantém destacada independentemente da caracterização que adote.
Contornada por uma linha preta que aumenta seu tamanho, com os lábios pintados de
branco, a região bucal do artista aparece acentuada – como podemos ver na figura anterior.
Mikhail Bakhtin (2010), em seu importante estudo acerca da comicidade popular na Idade
Média e no Renascimento, afirma que a boca tem o papel mais importante no corpo
grotesco, uma vez que ela devora o mundo, espécie de abismo corpóreo escancarado e
deglutidor. Nas palavras do autor:
[...] a boca é a porta aberta que conduz ao baixo, aos infernos corporais. A
imagem da absorção e da deglutição, imagem ambivalente muito antiga da
morte e da destruição, está ligada à grande boca escancarada [...] uma das
imagens centrais, cruciais, do sistema da festa popular. Não é por acaso que
um grande exagero da boca é um dos meios tradicionais mais empregados
para desenhar uma fisionomia cômica [...]. (BAKHTIN, 2010, p. 284. Grifos
do autor).
Jango Edwards abre mão do uso do nariz vermelho, mas mantém em sua
caracterização a cavidade bucal destacada, ampliada, escancarada, o que lhe confere grande
expressividade cênica. Podemos entender que a sua boca exagerada assume o lugar da
máscara teatral, antecipando a punção de destruição e a configuração grotesca que suas
atuações oferecerão ao espectador, ligadas ao “baixo”.
Bakhtin (2010) desenvolve na obra supracitada o conceito de realismo grotesco, um
sistema imagético ligado à comicidade popular, segundo o qual: “[...] o princípio material e
corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica. [...] Por isso o elemento corporal é
tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo.”
(BAKHTIN, 2010, p. 17. Grifos do autor). O excesso grotesco carrega em si dinâmicas de
afirmação de intensidades, quando a corporeidade75 é capaz de operar com indefinições e
instabilidades.
74
No espetáculo The Bust of Jango, analisado a seguir, o artista realiza 14 (quatorze) números cômicos e/ou
musicais e usa o nariz vermelho em apenas um esquete.
75
Adotamos aqui o entendimento acerca do termo corporeidade investigado pelo grupo LUME, cujo conceito é
esclarecido por Burnier (2001, p. 184-185) como “o uso particular e específico que se faz do corpo, a maneira
como ele age e faz, como intervém no espaço e no tempo, a dinâmica e o ritmo de suas ações físicas e vocais.
86
Ela, como vimos, em relação ao indivíduo atuante, antecede a fisicidade. A fisicidade é o aspecto puramente
físico e mecânico da ação física [...] Já a corporeidade, além da fisicidade, é a forma do corpo habitada pela
pessoa. Assim, a corporeidade envolve também as qualidades de vibrações que emanam deste corpo [...]. A
corporeidade é, portanto, a maneira como informações de ordens diversas, referentes à pessoa,
operacionalizam-se e articulam-se por meio do corpo, ou seja, como essas informações se somatizam.”.
87
2.2.1 - A entrada77
76
Espetáculo registrado no ano de 1993 em Cannes. Apresentação que reúne números cômicos e musicais
desenvolvidos por Jango ao longo de sua carreira. O termo inglês bust pode aludir à farra ou fracasso, termos
que mantém relação com a arte clownesca. Parece haver aqui, ainda, uma brincadeira com a sonoridade da
palavra, visto que o título nos lembra uma satirização da expressão “the best of” – o melhor de. No DVD em
anexo encontra-se uma cópia do espetáculo na íntegra – retirada da WEB - e os números cômicos que serão
objeto de análise deste capítulo.
77
Embora o termo entrada seja comumente utilizado para designar números cômicos de palhaços circenses,
vamos denominar aqui como entrada os minutos iniciais de abertura do espetáculo, quando Jango entra em
contato com a plateia pela primeira vez.
78
Dave Norket e Stan Heywood.
88
alguns números cômicos, seja executando músicas e intervenções sonoras. Eles realizam
apressados os últimos preparativos para a entrada do artista que logo será anunciado ao
microfone.
Jango Edwards entra pela plateia ao som de uma música que lembra as canções
norte-americanas dos anos cinquenta, com sua atmosfera leve, onde se ouvem violinos e
uma orquestra. Vestido com um sobretudo preto, óculos escuros, uma echarpe estampada
com desenhos de pelo de onça e um gorro com estampa de pelo de zebra, ele entra
fumando e segurando uma daquelas velas festivas que soltam faíscas, que logo entrega a um
dos espectadores. Ele masca chicletes e a movimentação de seu corpo parece assumir o
mesmo gingado de sua boca ao mastigar, misto de caminhada e dança.
Imprimindo certa malandragem a sua figura, essa atmosfera se mistura com o que
parece ser a transfiguração parodística de uma entrada glamorosa. Já nos primeiros
instantes ele beija um espectador na face, distribui alguns beijos ao resto da plateia, como
um astro de cinema poderia fazer diante de seu público, e, ao levantar um adolescente de
seu assento, aperta seu pescoço e imediatamente o solta com um gesto de quem se
desculpa por um pequeno deslize incontrolável.
Ao subir no palco Jango retira sua indumentária inicial (sobretudo, óculos, echarpe,
chapéu), ficando de terno preto e gravata borboleta, com destaque para sua lapela
estampada como pelo de zebra, o que quebra a sobriedade da vestimenta. Ele então cospe
seu chiclete na direção do público - não como uma afronta, mas como uma ação natural -
bebe um gole de refrigerante servido por um de seus ajudantes e dá um grande arroto no
microfone, desejando “boa noite” aos presentes.
Já no início da atuação podemos identificar a presentificação de duas das matrizes
de comicidade que relacionamos aos processos transgressivos: o contraste e a quebra de
padrões. O artista caminha por entre os espectadores se relacionando diretamente com eles
e dando a conhecer muito da tônica que permeará o espetáculo, transitando em diversos
momentos por estes dois princípios. Ao mesmo tempo em que sua entrada no espaço
teatral tenta imprimir certa elegância, não sabemos os limites parodísticos dessa atmosfera,
nem quando suas frágeis estruturas serão rompidas por gestos bruscos do palhaço - como
invadir o espaço pessoal de algum espectador ou, ainda, arrotar como forma de
cumprimento.
89
que nova interferência sonora faz com que ele repita a partitura física já executada. Quando
encara a plateia ele pergunta de forma irônica: “Confuso?” e segue dizendo “Sabem, quando
vocês sentam aí me olhando estar aqui, eu fico aqui vendo vocês sentados aí. Vejo seus
rostos...” e reproduz ironicamente uma expressão de medo e perplexidade.
Em poucos minutos Jango consegue construir relações com a plateia que friccionam
potências e instabilidades, numa dinâmica comunicacional que é permeada pelas quebras
bruscas de sentido, pela ausência de lógicas palpáveis nas quais possamos nos amparar.
Colocando-se em diálogo permanente com a assistência, cada nova ação deste clown
funciona como ruído que interrompe e embaralha a tentativa de comunicação iniciada pela
ação anterior, numa sucessão de lacunas que vão sendo abertas e nunca se concluem, pois
logo serão rompidas pela eclosão de novo gesto, devir que confunde e inquieta os
espectadores. Elza de Andrade esclarece sobre a quebra dos padrões como mecanismo de
comicidade:
Contudo, podemos perceber que Jango problematiza e tensiona essas noções, pois,
em sua atuação, a interrupção trazida pelo inesperado ocorre antes que tenhamos o
conforto, mesmo que efêmero, do entendimento do padrão a ser rompido. Se, como afirma
Andrade, a mente humana possui o condicionamento de completar os padrões claramente
ordenados, não encontramos, nos gestos deste clown, continuidade a seguir, mas
movimentos de incoerência e desconexão.
Ao observarmos os momentos iniciais do espetáculo, podemos ver que Jango cria
zonas de risco que são constituídas de maneira desordenada, caótica, cheias de interrupções
que contaminam a sequência da fala de apresentação e quase a impossibilitam, como um
raciocínio que não consegue ganhar prosseguimento e logo será perturbado ou rompido.
Ainda que a comicidade venha a ser prejudicada neste processo, há aqui uma tensão cênica
que nos parece potente.
91
Jango não nos permite compreender qual é o percurso lógico-racional que dita suas
ações, pois o que nos é dado a experienciar são os vestígios de sequências que em
curtíssimo espaço de tempo também serão dilaceradas, forçando-nos a transitar pela
ausência de clareza e pela incompreensão. Num emaranhado de ações que se repetem e se
confundem, como uma espiral que não cessa seu movimento de desarticulação, o
espectador vai sendo absorvido para o interior de uma experiência cênica inconstante e
arriscada.
Rapidamente vamos nos dando conta de que tudo é possível no jogo deste palhaço,
pois ele é capaz das ações mais imprevistas e incongruentes. Mesmo o espaço da caixa
cênica logo se mostra ineficiente para estabelecer qualquer separação entre ele e o público,
pois esse clown invade o espaço das pessoas com a mesma facilidade que retorna ao palco.
Este fator aumenta sobremaneira a sensação de ameaça física que paira sobre os
espectadores, criando relações de desconforto que produzem a matéria risível pela
excitação e pelo medo do inesperado.
Como temos visto, a vulnerabilidade faz parte do jogo clownesco, porém, Jango
transporta esse caráter vulnerável para sua assistência, que vai sendo contaminada pela
desorientação. A plateia fica em estado de alerta, tentando administrar entre risos e sustos a
insegurança de estar participando de uma relação cômica que comporta a todo o momento
explosões rítmicas e ações insólitas desse palhaço que é um perturbador da ordem.
Ele coloca o público nesse espaço de indefinição que é permeado pela vertigem,
numa sucessão de gestos infundados, sem lógicas causais inteligíveis, como um arroto no
microfone, brincadeiras infames - como quando interpela repentinamente um espectador,
perguntando se ele estava olhando para a área genital do palhaço - e aproximações físicas
inesperadas. É no âmbito desses fluxos de instabilidade e caos que vemos nascer uma forma
possível de qualidade transgressiva, tirando os espectadores de qualquer zona de conforto
e, ao mesmo tempo, construindo uma cena cheia de intensidade.
92
2.2.2 - O bêbado
79
Segundo Pavis (2005), o mimo é um meio de expressão narrativo que conta uma história através de gestos,
sem o uso da fala ou esta servindo apenas para a apresentação e encadeamento dos números. O uso do termo
pelo artista parece bem adequado, pois, excetuando-se a apresentação inicial ao microfone, o número consiste
numa sequência de ações sem fala, onde a fisicalidade é a principal responsável pelo desenvolvimento da
narrativa cômica.
93
corporal assim como aos excessos materiais do comer e beber, estabelecendo uma lógica
festiva ligada à fecundidade e à superabundância, onde o “baixo” deglute e procria. A
grande boca grotesca mantém-se aberta e pronta para absorver bebidas e comidas de modo
exagerado, num processo de ridicularização que celebra a vida. Nas palavras do autor
russo:
Assim como Jango opera relações de abertura através de lacunas que rompem com
a tessitura da lógica causal, instaurando processos transgressivos que desviam e atravessam
quaisquer padrões, sua corporeidade grotesca também evoca essas instâncias de
inacabamento e inconstância. Este palhaço traz em sua atuação concepções de mundo
distintas do nosso cotidiano de regras que versam sobre o comportamento, a saúde e a
manutenção do corpo.
Minois (2003) destaca que, ainda no século XIX, havia em alguns países europeus,
sobretudo na França, uma cultura cômica baseada na escatologia e na derrisão provocadora
dos ébrios. Essas manifestações culturais eram compostas por textos satíricos e diversas
canções que funcionavam como elogio à bebida e às façanhas dos bêbados,
comportamentos que aludiam à tradição carnavalesca do “mundo ao avesso”. Contudo, já
no século XX, esse tipo de manifestação cômica teria passado por um processo de repressão
moralizante:
Tratando de uma temática que poderia beirar o drama, uma vez que pensemos na
degradação moral e física dos ébrios, Jango parece transitar por uma ordem diversa, qual
94
seja a lógica grotesca. Aqui a embriaguez assume um caráter alegre e festivo em sua
interação com o mundo, através de atitudes estúpidas e ingênuas, desejosas de conhecer ou
reconhecer o que está a sua volta através de seu orifício deglutidor. A boca do palhaço se
mantém ávida por beber mais ou até mesmo abocanhar o estranho objeto que é o
microfone.
Figura 8 - Jango no número sob análise. Destaque para sua Em seu corpo grotesco,
boca escancarada, espécie de orifício grotesco.
instável e inacabado, o artista
parece querer devorar o mundo e
compartilhá-lo com a plateia, o
que, seguindo a atmosfera
provocadora de seu espetáculo,
ocasionará novos problemas aos
espectadores. Mais uma vez, ele
colocará a assistência em situação
Fonte:
<http://www.last.fm/music/Jango+Edwards+&+Friends+Roadshow>. de risco iminente.
Acesso em 02 mar. 2013.
Em seu permanente
cambalear, Jango quase cai do alto do palco em cima da plateia. Depois, começa a jogar
bebida nos espectadores, controlando a saída dos jatos com o dedo, o que nos remete aos
números clássicos de palhaços circenses em que esguichos de água molham o público.
Contudo, Jango não utiliza água, mas cerveja, líquido que suja, mela, deixa um odor
desagradável ao secar e que poderia, inclusive, acertar os olhos dos membros da
assistência.
No decorrer desse jogo em que molha a plateia, quem acaba encharcado de cerveja
é o próprio artista, que começa a se divertir com o lançamento da bebida, como se esta
fosse perfume. Jango atinge seu próprio rosto com o líquido, derrama-o em suas vestes,
deixa escapar cerveja de sua própria boca, ações que vão agradando cada vez mais a plateia,
pois ele compartilha com os espectadores esse ritual de excessos.
Tudo aqui é exagerado: o corpo cada vez mais desequilibrado, a bebida que não
para de cair, o entendimento do palhaço sobre as coisas mais simples e que parece mais e
mais prejudicado - presente em gestos como prender o dedo no gargalo da garrafa ou
apavorar-se por achar que “perdeu” a própria mão. Ao mesmo tempo, este clown, capaz de
95
causar o riso inseguro dos espectadores ao serem colocados em risco, também oferece o
próprio corpo para ser fustigado em nome do jogo cômico, numa espécie de celebração
coletiva da embriaguez e da estupidez do ser humano.
O consumo excessivo da bebida resultará no palhaço a vontade intempestiva de ir
ao banheiro, trecho que convencionamos como segunda parte deste número cômico,
quando podemos observar uma mudança radical em sua corporeidade. Dada à urgência da
necessidade fisiológica, o corpo do clown assumirá um ritmo mais acelerado, deixando para
trás a fisicalidade desequilibrada de outrora, e passando a atuar através de uma codificação
mais precisa. O artista realiza diversas construções imagéticas com o uso da técnica da
mímica, criando por meio de seu corpo a configuração espacial do banheiro, sua porta,
janela, vaso sanitário e, posteriormente, também simulará a manipulação de um falo de
grandes proporções, em gestos cujos traços cômicos e grotescos serão reforçados pela
sonoplastia.
Neste segundo trecho do número cômico sob análise, podemos verificar a presença
de outros dois princípios atinentes à visão grotesca de mundo, quais sejam a relação com as
excreções corpóreas e a hipérbole corporal. Bakhtin (2010) destaca que os excrementos
relacionam-se à virilidade e à fecundidade, espécie de intermediação entre a terra e o
corpo, num processo renovador. Assim como o corpo morto, os excrementos também
servem para fecundar a terra. A urina, bem como as fezes, faz alusão ao “baixo” corporal, à
zona dos órgãos genitais, participando dos rituais de rebaixamento de diversas festividades
na antiguidade grega e na Idade Média 80.
Excrementos possuem um caráter ambivalente, pois, ao mesmo tempo em que
remetem à degeneração do corpo, também conservam uma relação com o nascimento, com
a vitalidade e a alegre renovação. Segundo o autor, essa natureza dicotômica fora perdida
com a modernidade, restando somente os aspectos negativos e grosseiros relacionados às
excreções. Contudo, estes ainda encontram lugar em alguns campos da comicidade, como
podemos constatar na atuação de Jango. De acordo com Bakhtin:
80
Bakhtin (2010) ressalta que o lançamento de excrementos está presente em dramas satíricos de Ésquilo e
Sófocles, bem como em festas carnavalescas medievais como a “festa dos tolos”, na quais, após os ofícios
religiosos, os padres percorriam as ruas em charretes carregadas de excrementos e os lançavam sobre o povo
que acompanhava as festividades, como forma de bênção e escárnio.
96
Jango presentifica em seu corpo a urgência trazida pela necessidade fisiológica bem
como o prazer natural de sua satisfação, a vitalidade e a renovação presente neste ato,
lembrando-nos que, apesar dos desejos de transcendência, ainda nos resta a todos uma
forte dimensão corpórea, ligada aos instintos naturais, aos ritos ordinários do corpo.
Ademais, diante do desespero causado pela vontade de urinar, o clown em questão cria,
com sua gestualidade, a imagem de um enorme falo, desproporção que identificamos como
mais um dos exageros ligados ao hiperbolismo grotesco, beirando o fantástico. O órgão
genital, relacionado ao “baixo” corporal, assume aqui um caráter impossível e monstruoso,
ligado à concepção grotesca do corpo, onde o “[...] terrível adquire sempre um tom de
bobagem alegre.” (BAKHTIN, 2010, p. 34).
Nas mãos deste palhaço, a genitália masculina imaginária perde seus contornos
definidos em contato com o mundo, permitindo que o artista realize diversas ações como
deixar o falo cair no chão, dançar tango com ele, lançá-lo como objeto de malabarismo e
tocá-lo como uma guitarra. Por fim, o órgão que era gigantesco transforma-se em um
objeto de tamanho ínfimo e, ao som de uma canção dramática, o bêbado se despede
melancolicamente dele e o joga na privada, dando descarga.
Na profusão de imagens criadas por Jango, podemos concluir que suas qualidades
transgressivas estão fortemente relacionadas à lógica grotesca de entender o mundo e
sobre ele atuar. Criando interações instáveis e inacabadas, este clown coloca o espectador
diante dos limites, tantas vezes rompidos, do gosto, do escatológico, do absurdo, criando
uma experiência cênica que pode despertar na assistência não apenas o risível, mas
também o estranhamento e o asco.
97
Este número cômico possui duração de cerca de treze minutos e consiste numa
espécie de culto religioso ministrado por Jango Edwards. Ao som de uma melodia de órgão,
recriando a atmosfera de algumas Igrejas e templos, o artista adentra o espaço cênico
utilizando um grande crucifixo no pescoço, óculos escuros, folhas verdes no alto da cabeça -
que parecem imitações de folhas de parreira, possível alusão aos rituais do Deus Baco 81 - e
um paletó branco onde se lê em suas costas a inscrição Church of Grin82.
Pedindo as palmas da plateia no ritmo da música e realizando uma dança ridícula,
Jango conclama a participação da assistência, solicitando a resposta dos espectadores ao
gritar e dizer em diversas entonações a palavra Jesus, numa espécie de show que em nada
deixaria a dever às manifestações e eventos de música religiosa que pululam em diversos
países ocidentais como o Brasil.
Após o fim da canção, Jango empunha o que parece ser uma bíblia, livro de capa
vermelha com o símbolo da cruz, iniciando a sua pregação de sons e gestos
incompreensíveis, exceto pelas palavras inúmeras vezes repetidas Povo, Aleluia e Amém.
Estamos diante da paródia de um culto religioso, tema delicado e deveras atual se
pensarmos na radicalidade assumida por tantos indivíduos em nome de suas crenças.
Nesse contexto, trazemos a interlocução do próprio artista, quando Jango Edwards
(1980) defende que o ofício do clown possui duas dimensões: a primeira que seria fazer o
público rir, relaxar e se divertir; e, acompanhando a anterior, haveria uma segunda tarefa
que consiste em apresentar informações e pensamentos sobre o que está acontecendo a
nossa volta. Em suas palavras: “O palhaço tem o poder de instigar a percepção e este poder
é incalculável83.” (EDWARDS, 1980, p. 72).
81
Deus romano do vinho, correspondente ao deus grego Dioniso, aparece em suas representações e mitos com
a cabeça ornada com folhas de parreira. Relacionado à fertilidade, às festas, ao lazer e ao prazer, em sua honra
promoviam-se festas dionisíacas e os ditirambos, que nas origens do teatro grego eram constituídas por uma
espécie de canto coral constituído de uma parte narrativa, recitada pelo cantor principal, e de outra
propriamente coral, executada por personagens vestidos de faunos e sátiros. Maiores informações sobre os
mitos de Baco podem ser encontradas em Bulfinch (2009).
82
Igreja do Sorriso Largo. Tradução nossa.
83
“The clown has the power to instigate perception and this power is invaluable.” Tradução nossa.
98
De acordo com a teoria clownesca desenvolvida por esse artista, o clown pode
refletir em suas atuações as mais diversas situações sociais, fazendo com que os
espectadores possam ter uma melhor compreensão sobre elas, podendo desafiar
comicamente os fatos que precisam ser alterados. O palhaço pode expor criticamente as
normas, refletidas em seu corpo através de diferentes níveis de anormalidade. Essa figura
cômica seria como uma contadora de histórias dos eventos cotidianos, podendo promover,
além do riso, reflexões e mudanças.
Jango defende, portanto, que o clown pode carregar qualidades transgressivas em
relação aos fatos e normas cotidianas, instaurando, através da comicidade, um espaço de
reflexão junto aos espectadores. Dessa forma, o número sob análise pode ser observado a
partir do potencial crítico da linguagem clownesca, presentificando, em sua configuração
parodística, o ridículo de algumas situações religiosas ou a porção risível de certos líderes
que conduzem esses cultos. Ainda sobre a potência da palhaçaria, Jango discorre:
O artista defende uma arte clownesca ligada à potência da liberdade, à violação das
normas do senso comum, o que podemos verificar nas atuações analisadas até aqui. Em
seus processos artísticos, comicidade e reflexão crítica encontram-se misturadas através de
altas doses de ironia, irreverência e jogos derrisórios. Além disso, retomando a visão de
mundo grotesca, podemos lembrar que, sobretudo durante na Idade Média, o riso não
84
“The smile is universal, everyone understands it everywhere, and that makes the clown a universal character.
Yet never underestimate the power of the smile. People's lives change through laughter. I have seen them
express it publicly and personally. Their belief is real, and the fool can bring meaning into your life and help you
understand it. It all sounds so simple, but it eludes us so long because we make it so difficult, and it will be
elusive until we begin to understand, that love, justice and equality are simple but require total acceptance by
all. Re-member these religious words ha, ha, ha, ah!” Tradução nossa.
99
estava dissociado dos ritos religiosos, em celebrações como a “festa do asno85” e os risos
pascais (risus paschalis86), festividades religiosas que permitiam o riso e as brincadeiras no
interior dos templos religiosos, bem como a realização de paródias dos cultos e rituais.
Nenhuma instância ou instituição está a salvo das porções violadoras do risível
grotesco, podendo ser alvo dos princípios cômicos degradantes e regeneradores. As
dimensões sublimes ou poderosas de crenças e ritos, assim como de seus interlocutores,
podem ser atravessadas pelas intensidades transgressivas da comicidade, como ressalta
Victor Hugo (2002, p. 33): “Assim César no carro do triunfo terá medo de tombar. Porque os
homens de gênio, por grandes que sejam, têm sempre sua fera que parodia sua inteligência.
[...] ‘Do sublime ao ridículo há apenas um passo’, dizia Napoleão [...]”. Dessa forma, Jango
defende a capacidade ilimitada das intensidades subversivas do palhaço, bem como sua
potência de afirmação da vida e da liberdade. Conforme destacamos na citação supracitada
deste palhaço, não subestimemos o poder do riso!
Voltando ao número em questão, o clown traz ao palco a participação de um
espectador que o ajudará no momento final da cena. Este homem fotografava o espetáculo
e essa escolha contém por si só relações de inversão, visto que a pessoa que capturava
imagens da apresentação agora será o próprio alvo dos olhares da plateia. Ademais,
tratando-se de Jango, não é de espantar que ele coloque o espectador em situações de
risco, mesmo sendo muito simpático com seu novo ajudante.
Mantendo a capacidade de surpreender a todos com seus gestos bruscos e ações
desviantes das normas de decoro e comportamento, o palhaço abraça inesperadamente o
homem e por diversas vezes esbarra propositalmente em sua área genital, chegando a
comentar com a plateia sobre o tamanho do órgão masculino do espectador. O ajudante
mostra-se solícito e ri das piadas do clown, mas o tom jocoso dessa figura cômica vem
sempre acompanhado de uma atmosfera de constrangimento para o espectador, além de
85
Bakhtin (2010) afirma que o asno é um dos grandes símbolos do “baixo” material e corporal, evocando a fuga
de Maria ao conduzir o menino Jesus para o Egito. Na “festa do asno” chegavam a ser celebradas dentro da
Igreja as “missas do asno”, quando os padres realizavam paródias dos próprios ritos religiosos e terminavam
suas bênçãos zurrando três vezes, no que eram respondidos pelos fiéis/foliões não com “amém”, mas também
com zurros e imitações de jumento.
86
Festas medievais populares realizadas na época da Páscoa.
100
ocasionar certa tensão, pois as ações deste palhaço costumam ser imprevisíveis e não
sabemos o que ele pode “aprontar” ao seu novo assistente de palco.
Jango dá ao homem uma taça e a enche com um líquido que ele chama de água
benta87. Tirando um preservativo do bolso, o clown tenta embalar o copo com a camisinha,
após colocar na bebida uma pílula efervescente. O primeiro preservativo parece rasgar no
contato com a taça e vemos o palhaço em apuros, com uma dificuldade real de rasgar a
embalagem da segunda camisinha, obstáculo que ele divide com a plateia através de sua
corporeidade exagerada. Finalmente, ele consegue abrir a embalagem e prender o artefato
de borracha na borda do copo. Ao som de muitas “Aleluias” e “Améns” evocadas pelo clown
vemos aos poucos a finalização do número com o “milagre da ereção”, quando a camisinha
vai sendo inflada pelo ar desprendido do líquido efervescente, até permanecer ereta.
Como no número do bêbado, novamente vemos surgir uma imagem fálica no jogo
clownesco de Jango. O falo liga-se à fertilidade e à potência afirmativa da comicidade em
relação à vida. Além disso, como já vimos, um dos traços marcantes do realismo grotesco é
o rebaixamento, processo que opera a transferência dos ideais espirituais ao âmbito da
materialidade corpórea. Assim, parece coerente que, na Igreja do Sorriso Largo, coexistam e
misturem-se as instâncias do sagrado e do profano, sem que haja uma dicotomização entre
ambas. Ademais, a presença da sexualidade no trabalho artístico deste palhaço mostra-se
como uma constante, seja através de comentários obscenos, em representações fálicas
presentes em seus números ou mesmo em sua teoria clownesca, quando afirma que:
87
“Holy water”. Tradução nossa.
88
Jango utiliza em seus escritos o termo clown e bobo (fool) como sinônimos. É provável que haja aqui uma
referência à irreverência dos bobos da corte, mas o artista não esclarece este ponto na obra em questão.
89
“The fool's performance is similar to a bout of intercourse that is sensitive, tender, thrilling and reaches a
climax or some form of celebration at the end. Its connection is heart and body with the use of the subtle or
the obscene.” Tradução nossa.
101
em interações psicofísicas que potencializam a própria vida. Uma vez que arte e vida são
instâncias que se contaminam na trajetória deste palhaço, parece-nos natural que a
sexualidade também permeie seu trabalho e, seguindo a lógica grotesca do exagero, há um
excesso de referências ao sexo em sua comicidade, seja em suas palavras ou em
construções imagéticas e gestuais.
Assim, trouxemos a imagem ao lado como uma referência à sexualidade de Jango,
onde podemos ver a imagem do palhaço desnudo,
Figura 9 - Pintura à óleo de Jango.
expondo sua nudez para nós, espectadores da obra
pictórica, e também sob os olhares de uma
arquibancada cheia de rostos representada no fundo
da cena. Seu sexo aparece naturalmente exposto,
localizado diante de nós, sem qualquer tentativa de
escondê-lo ou disfarçá-lo. Além disso, há um caráter
de afeto e voluptuosidade representado no quadro
pela interação de seu corpo nu abraçado por uma
mulher também despida. Embora, no espetáculo sob
análise, Jango não se apresente com a nudez frontal, Autoria da pintura: Art Veldhoven, Amsterdam,
1978. Fonte: Jango Edwards (1980).
há diversos registros, ao longo de sua carreira, em
que ele atua totalmente despido, demonstrando que o corpo desnudo, sem vestes e sem
proteção, também pode fazer parte da comicidade clownesca, embora esta não nos pareça
uma temática comumente trabalhada da arte da palhaçaria 90.
2.2.4 - Os palhaços
90
Não encontramos nenhuma investigação sobre palhaço e sexualidade, temática que se nos apresenta como
interessante campo de estudo a futuras pesquisas.
102
91
Gravação executada pelo grupo norte-americano Gary Lewis & The Playboys - ano de gravação: 1965.
92
“A clown has feelings, too” e “It's not easy to be in love, you see / When you're a clown like me”. Tradução
nossa.
93
“CLOWNPOWER is love and love is only another label for hope. For when there's no love there's no hope and
when there's no hope there's no reason to go on.” Tradução nossa.
103
22). No número sob análise, esse clown trabalha evocando o sentimento amoroso, seja na
letra da música, seja na parte final quando ele entrega, mesmo que desajeitadamente, seu
coração de plástico a uma espectadora, terminando o esquete com um grande suspiro
melancólico. Contudo, não identificamos aqui a potência do amor destacada por Jango no
trecho supracitado, sentimento capaz de evocar intensidades, afetos e vitalidade.
Embora apresente a corporeidade vigorosa que é uma das constantes de seu
trabalho clownesco, com quebras rítmicas e interrupções de trajetórias que denotam a
insegurança ou confusão mental do palhaço, o tom infantilizado assumido por ele e seus
ajudantes de palco (que também usam narizes de palhaço e o mesmo tipo de chapéu)
parece esvaziar as complexidades verificadas nos números anteriores, seja no tocante aos
excessos da visão de mundo grotesca, seja na relação inconstante e cheia de surpresas
construída entre Jango e sua assistência. Se outros momentos do espetáculo são permeados
pela quebra de padrões, pelos desvios da norma e por fluxos de intensidade que transitam
pelo caos, pela escatologia e pela imprevisibilidade, agora, o artista atua de maneira bem
menos provocativa.
Podemos perceber que Jango realiza uma quebra dos próprios padrões de
comicidade, experienciando a subversão de seus mecanismos transgressivos. Nesse
número, ele praticamente abre mão das qualidades transgressoras que desenvolvera até
então, arriscando investir em estados cênicos mais estáveis. No contexto da estrutura do
espetáculo, construída por números cômicos e musicais carregados de intensidade e
grotesco, este esquete constitui uma espécie de “respiro” similar ao que o palhaço dá ao
finalizar esta atuação, quando ele revela à plateia aspectos mais doces e menos caóticos.
Todavia, paradoxalmente, este nos parece ser o momento do espetáculo que é cenicamente
menos potente.
Se, por um lado, é interessante observar que Jango não se mantém fixado em um
único estilo de comicidade, investigando os limites de sua própria arte clownesca, por outro,
este número nos parece o mais frágil em relação às intensidades da experiência cênica. Se
em outros esquetes o espectador não sabia o que esperar de seu jogo, cuja atuação beirava
o fantástico ou o monstruoso, causando reações que podiam oscilar entre o riso e o asco,
agora, o desenvolvimento do número não nos oferece surpresa nem áreas de insegurança, e
este clown chega a beirar a previsibilidade.
104
94
Apresentado em 05 de dezembro de 2012 no Teatro Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro.
95
Associação sem fins lucrativos, criada em 1993 na Espanha, reunindo palhaços, artistas circenses e atores
que atuam em campos de refugiados e zonas de conflito e exclusão ao redor do mundo. Maiores informações
podem ser obtidas no site oficial da organização: <http://www.clowns.org/>; bem como no artigo de Marco
Antonio Coelho Bortoleto, Palhaços sem Fronteiras: o circo a serviço da sociedade (2005).
105
Figura 10 e 10.1 – Imagens do espetáculo de Tortell Poltrona no Anjos do Picadeiro 11, e do público
no momento em que o palhaço começa a atirar ovos.
Os ovos estavam cheios de água, mas a plateia desconhecia este fato. Este palhaço
consegue, então, operar uma quebra dos padrões, invadindo repentinamente o espaço
confortável dos espectadores e rompendo com a distância propiciada pelo palco italiano. Ele
surpreende sua assistência, tensionando os limites da lógica e do razoável, sem perder,
contudo, sua simpatia e ternura.
Do romance de Fiódor Dostoiévski, O Idiota, trazemos nosso segundo exemplo, cuja
personagem central, que dá origem ao nome da obra, transita pelo espaço da diferença em
relação ao mundo que o cerca, não de uma forma intencionalmente agressiva ou
provocadora, mas através da ingenuidade e da ternura. O príncipe Míchkin, que apesar do
título de nobreza não é possuidor de bens materiais ou prestígio, instala-se na cidade russa
de São Petersburgo, despertando escárnio e incredulidade por onde passa. Sua maneira
distinta de estar no mundo, inquietantemente espontânea, é incapaz de se adequar às
normas de conduta e, ao mesmo tempo, carrega grande amor e compaixão por seus
semelhantes. Segundo prefácio de Paulo Bezerra, o romancista russo produziu sua obra
inspirado em ideais de beleza e amor, construindo a personagem do príncipe como “[...]
capaz de abdicar do “eu para mim” em prol do “eu para os outros”, para a coletividade, isto
é, de realizar o supremo ideal ético do próprio Dostoiévski, que este só considerava possível
em Cristo [...]” (BEZERRA in DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 11).
106
Míchkin pronuncia sua fala sem ironia ou agressividade, mas com o objetivo de
realizar um elogio às qualidades dos membros daquela sociedade, sem perceber como
estava colocando diante deles um espelho de suas degenerações. E, menos de uma hora
depois do discurso “amável” do príncipe, grande parte dos convidados havia deixado a
celebração se sentindo ofendida. Por outro lado, a situação constrangedora supracitada
torna-se risível ao leitor se pensarmos na grande gafe cometida pelo príncipe em ocasião tão
cheia de formalidades. Sem saber como se comportar socialmente, desconhecendo a
normatividade e o decoro esperados para a situação, a heterogeneidade dessa personagem
produz tamanha indiscrição que a cena se mostra de uma maneira inquietantemente
cômica.
107
Dessa forma, entendemos a partir deste exemplo literário que, mesmo sem tratar
explicitamente da comicidade, nem da arte clownesca, podemos estabelecer um diálogo
entre a obra citada de Dostoiévski e nosso tema, pensando em como a inadequação e a
ausência de percepção sobre as normas que regem determinada situação podem violar
limites, sendo extremamente transgressoras. A diferença, mesmo que cheia de ternura e
suavidade, pode violar e causar feridas no tecido social.
Retomando a análise da cena de Jango Edwards, este nos parece enfraquecer suas
qualidades transgressivas ao aproximar sua atuação de uma comicidade mais terna e doce, o
que nos faz pensar na dificuldade gerada pelo tema, mesmo quando se trata de um clown
experiente e de inegável complexidade artística. Poderíamos pensar se este número não
constitui uma crítica aos palhaços docilizados e esvaziados de suas potências, contudo, não
encontramos indícios claros desse tipo de zombaria na cena em questão. Embora continue
atuando de maneira irreverente, aqui as ações de Jango não nos parecem ácidas ou
parodísticas de maneira tão intensa como em outras ocasiões do espetáculo.
Transgredir a partir do grotesco, da agressividade é um caminho possível e que
mantém suas potências cênicas, como temos visto em relação aos fluxos de instabilidade e
caos no jogo cômico deste palhaço. Contudo, tensionar os processos violadores mantendo
como princípio norteador a afetuosidade também nos aparece como um campo fértil, na
mesma medida em que se constitui numa zona ainda mais instável e nebulosa em nosso
campo de pesquisa.
2.2.5 - O Acrobata
Usando uma indumentária que imita o pelo de um tigre e calçando tênis com meias
pretas que vão até a altura dos joelhos, Jango entra em cena executando uma trajetória
retilínea que, ao ser ritualmente repetida, cria uma espécie de padrão que é interrompido
pela realização de diversas façanhas “estúpidas” - como dobrar um cabide ao meio, prender
um desentupidor de pia em sua própria barriga, cortar uma banana com a mão (imitando
um mestre oriental) e conversar com o pato que está em sua cabeça e serve-lhe como um
tipo de chapéu, retirando, ao fim da breve comunicação, um ovo que teria sido colocado
pelo animal e que será triturado por Jango em sua boca, jogando os restos do alimento em
um balde.
Podemos observar que a parte inicial descrita acima já estabelece uma rede de
oposições em relação à corporeidade de Jango. Ele se desloca pelo espaço cênico através de
trajetórias bem definidas, retilíneas e repetitivas, em contraposição a sua postura corporal
que assume um tom desengonçado: tronco arqueado para frente e quadris para trás, braços
balançando na frente do corpo, joelhos dobrados - o que aumenta sua relação com o solo,
dando a sensação ao espectador de que ele é mais pesado do que veremos na segunda
parte do número.
Mesmo nos momentos em que o artista para diante da plateia e faz uma espécie de
pose de apresentação, acompanhada de um som, ele realiza este movimento de forma
desajeitada. A corporeidade assumida por Jango no primeiro trecho do número, bem como
as relações que ele estabelece com o espaço e os espectadores, reportam-nos, mais uma
vez, ao potencial grotesco de seus estados cômicos. Utilizando-se da deformação e do
exagero, presentificados em sua atitude postural, sua marcha 96 e seus gestos, ele causa
estranheza e ressalta o ridículo de sua figura.
Além disso, o artista em questão parece trabalhar não somente com uma
deformação física, mas mental, se pensarmos em sua fala “idiotizada” com o próprio chapéu
de pato ou mesmo com a escatologia do arroto que ele dá no microfone - lembrando-nos da
abertura do espetáculo - como se quisesse colocar para fora, diante dos espectadores, sua
natureza rebaixada. Podemos observar como a atitude postural e a movimentação de Jango
direcionam sua corporeidade ao sul do corpo, à terra, com os joelhos dobrados, tronco
96
O antropólogo Marcel Mauss classifica a marcha, em seu texto As técnicas do corpo, como um dos
“movimentos do corpo inteiro [...] habitus do corpo em pé ao andar.” (MAUSS, 2003, p. 416).
109
arqueado para frente, mantendo mais relação com o solo do que com o “alto” – como
vimos, um dos princípios do rebaixamento grotesco.
A marcha do artista torna seu quadril destacado, formando uma figura que lembra
as imagens dos “homens das cavernas” ou mesmo a estrutura física de um símio. Pavis
(2005) também destaca a relação do grotesco com a bestialidade, seja pela transformação
do homem em animal ou vice-versa, deixando em evidência os instintos animalescos e sua
materialidade corporal. Aqui podemos nos remeter ao pensamento de Bolognesi (2003)
citado no capítulo precedente, segundo o qual o grotesco do palhaço rompe com as
perspectivas utilitaristas e funcionais que passam a incidir sobre o corpo através do regime
das disciplinas, sobretudo a partir do século XVIII.
Jango e sua desconformidade em relação aos padrões, beirando a deformidade,
rompem com a possibilidade de um caráter utilitário ao corpo, construindo sua comicidade a
partir de uma configuração corpórea que é vigorosa, na mesma medida em que é
defeituosa, desviante. Conforme também analisamos no capítulo anterior acerca dos
conceitos cômicos de Propp, o ridículo surge da exposição dos defeitos, manifestação da
instabilidade da ordem constituída, o que podemos verificar seja na corporeidade
animalesca de Jango, seja na relação parodística com o corpo virtuoso, como veremos na
segunda metade do número.
Deixando cair o figurino de pele de tigre, Jango se exibe para a plateia usando uma
tanga de onça com “fio dental” na parte traseira, deixando suas nádegas à mostra. Aqui
convencionamos ser o início da segunda parte do número, quando a postura corporal do
artista muda significativamente. O palhaço realizará agora a paródia de um número
acrobático, mergulhando de cabeça, do alto de uma cadeira, num copo descartável cheio de
água. Deformando, ainda através do exagero, o que seria o corpo de um acrobata, o clown
enfatiza o ridículo presente também nas situações sublimes ligadas às técnicas circenses e à
exibição do corpo virtuoso.
A corporeidade de Jango muda neste trecho do número, deixando para trás seu
“homem das cavernas” arqueado, assumindo um caráter altivo, postura ereta, com uma
relação muito mais forte com o “alto” do que com o solo. A dimensão grotesca da primeira
parte dá lugar a gestos soberbos e fortes, os quais, aliados à música em tom
110
rock o faria e, antes de sair de cena, retira pela última vez a tanga, ficando agora com uma
espécie de tapa-sexo que tem o molde de um órgão genital masculino na cor azul-brilhante,
o qual ele balança para a plateia no momento de sua saída do palco. Mais uma vez podemos
ver em sua atuação a presença do falo como afirmação de potências e vitalidade, além de
sua utilização como provocação.
Podemos identificar aqui uma relação entre o número cômico de Jango e a tradição
dos clowns circenses, cujo tema das entradas, muitas vezes, voltava-se para o próprio circo,
através da paródia dos números apresentados pelos diversos artistas como acrobatas,
mágicos e trapezistas. De acordo com Bolognesi (2003), muitas entradas clownescas
retratam o próprio universo circense, conferindo um caráter metalinguístico às atuações dos
palhaços e operando através do riso coletivo uma liberação das tensões provocadas pelo
terror e surpresa advindos dos números de alto risco dos ginastas. Mesmo ironizando todo o
ritual de periculosidade contido na situação, Jango não deixa de realizar o exercício
acrobático, mas, executa-o com habilidade, imprimindo, todavia, seu modo exagerado e
mordaz de atuar.
Além disso, não podemos esquecer que Jango promove, na segunda metade do
número, uma espécie de paródia dos rituais de disciplinarização do corpo. O corpo
animalesco e idiotizado de outrora dá lugar a um corpo virtuoso, um corpo útil, apto a
realizar suas funções com o máximo de produtividade, pleno de suas aptidões. Corpo-
máquina articulado e desarticulado como reduto de sujeição dos mecanismos de poder.
Jango eleva ainda mais essa configuração crítica vestindo sua indumentária de herói, viril e
vaidoso, parodiando os processos de dominação e adequação. Ele exibe um corpo tão
habilidoso e preparado para a ação que, deleitando-se em suas próprias capacidades, esse
ritual de soberba e exibição acaba por revelar o seu avesso, suas porções ridículas e risíveis,
sua condição desviante.
A partir da observação e análise de alguns números de seu espetáculo, pudemos
verificar como Jango Edwards presentifica, através do próprio corpo e suas dimensões
simbólicas, diversos jogos cômicos que primam pela abertura a fluxos de instabilidade, de
risco, de desvio, ocasionando o desencadeamento de processos transgressores e críticos.
Este palhaço instaura redes de oposições e fricções entre precisão e caos, sem perder a
grande parceria que o acompanha durante toda a apresentação, qual seja os espectadores.
112
como a arte clownesca pode ser potente e instigante quando trabalhada em seus extremos,
na beira do precipício, onde, como no último número analisado, cada jogo pode ser um
convite ao voo ou à queda violenta.
Quando você ri, você se percebe cúmplice de uma destruição daquilo que
você é, você se confunde com esse vento de vida destruidora que conduz
tudo sem compaixão até seu fim.
Fonte:
<http://elrincondedonrodrigo.blogspot.com.br/2011_04_01_
archive.html>. Acesso em 11 fev. 2013.
115
97
Aula-espetáculo ministrada por Leo Bassi em 08 de dezembro de 2011, na Fundição Progresso, como
atividade integrante do Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro 10.
98
Espetáculo de abertura do evento supracitado, apresentado no teatro Nelson Rodrigues, no dia 05 de
dezembro de 2011, na cidade do Rio de Janeiro, RJ.
99
Informações biográficas retiradas do site oficial do artista: <http://www.leobassi.com/biografia.html>.
Acesso em 23 jun. 2013.
116
malabarismo, aos dezessete anos Leo Bassi começa a se apresentar como palhaço junto ao
Trio Bassi.
Após alguns anos de apresentações cômicas em picadeiros circenses, em meados
de 1970, ele deixa o circo, inspirado pela agitação política europeia do fim da década de
sessenta. Leo Bassi passa a realizar apresentações solo na rua, desenvolvendo um estilo
muito singular de práticas artísticas onde a comicidade é construída a partir de ações
provocadoras em relação à assistência.
Em entrevista à Kasper (2002), o artista destaca que a rua foi um grande espaço de
aprendizado, pois o obrigava a lidar diretamente com os espectadores e com as dificuldades
em despertar e manter a atenção dessa plateia que é de natureza dinâmica. Se o público
gostasse do que ele fazia, haveria dinheiro no chapéu ao final da apresentação, pois as
contribuições dos passantes eram proporcionais ao interesse gerado por sua atuação, a qual
nem sempre alcançava bons resultados.
Por outro lado, Leo Bassi estava distante da tradição das arenas circenses, o que lhe
conferia a liberação necessária para experimentar suas ideias, permitindo que ele
Figura 13 - Leo Bassi deitado sobre cacos de vidro, em número de desenvolvesse um trabalho mais
rua na cidade muçulmana de Samarcanda, Uzbequistão (1992).
autoral em relação à comicidade.
Marcio Libar (2008), tendo
convivido com Bassi pela primeira
vez em 2000, por ocasião da
terceira edição do Anjos do
Picadeiro, destaca que esse artista,
mesmo tendo rompido com a
tradição de sua família para buscar
Fonte: Facebook do artista:
<http://www.facebook.com/photo.php?fbid=10151607014439073&set=
novas experiências e maneiras
pb.379942014072.-2207520000.1367017308.&type=3&theater >. Acesso
em 26 abr. 2013
outras de estar em contato com o
público, manteve a ligação com um
dos princípios da arte circense, qual seja a busca por uma experiência cênica calcada no
impacto e no espanto. Nas palavras de Bassi (2001, p. 33):
O que tenho certeza da minha família é que faziam circo por um ideal, não
era simplesmente um trabalho normal. Para eles era como buscar a
117
Buscando desenvolver seu próprio modus operandi, Bassi vai sendo reconhecido
internacionalmente pelo tratamento crítico e provocativo que dá a suas atuações, tendo
recebido diversos prêmios por seus espetáculos 100. Abordando temas polêmicos, como, por
exemplo, o atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 ou os dogmas da Igreja
Católica, Bassi passa a se autointitular, ao longo da carreira, como bufão, tensionando as
capacidades contestadoras e transgressivas da comicidade. Tendo em vista as
problematizações geradas pelo trabalho desse artista, desenvolveremos nas próximas
páginas algumas considerações sobre a bufonaria, objetivando adentrar no universo
artístico de Leo Bassi.
Segundo Pavis (2005), os bufões mantêm conexões com a vertigem da loucura,
quando o estatuto da marginalidade concede-lhe o direito de comentar impunemente os
acontecimentos do mundo à sua volta, em discursos cômicos que carregam uma pulsão
desestruturante em relação às normas e relações de poder. Historicamente, são
encontrados registros pictóricos e literários da presença de bufões desde a Antiguidade, em
ritos greco-romanos, bem como na Pérsia e no Egito. Minois (2003) destaca que havia em
Atenas, por volta do século IV a. C., um clube de bufonaria denominado “os Sessenta” que
realizava sua reunião no santuário consagrado ao deus Héracles.
De acordo com Alice Viveiros de Castro (2005), essas figuras cômicas estavam
relacionadas, inicialmente, às práticas rituais sagradas e mantinham suas funções no
afastamento do mal, através da imitação de deficiências humanas como deformidades
físicas, cegueira e lepra. Ao ridicularizar a doença e o medo da morte, estava rompida a
seriedade do culto, ao mesmo tempo em que este era fortalecido através do riso coletivo. A
autora cita alguns exemplos, como o do Mi-tshe-ring – o velho bufão sábio – presente nos
100
O site do artista traz uma lista de prêmios recebidos por Bassi, como os Prêmios da Crítica em Barcelona,
Munique e Cannes, o Prêmio OBIE Off Broadway Award (Nova Iorque) e o Prêmio Nariz de Ouro (Espanha),
entre outros. Fonte: <http://www.leobassi.com/biografia.html>. Acesso em 23 jun 2013.
118
rituais budistas do Tibet, figura que atrapalhava a solenidade das cerimônias religiosas
devido à sua incapacidade de se controlar e fazer silêncio.
Voltar o olhar ao passado dessas figuras cômicas nos remete, ainda, à figura dos
bobos e bufões medievais, cuja existência era dedicada ao exercício do ridículo e da
subversão dos padrões. Criaturas excêntricas, fisicamente deformadas, que, na mesma
medida em que eram alvo de chacotas e zombarias, por vezes até violentas, também eram
admiradas pela abertura que conquistavam para proferir verdades e críticas ácidas que a
sensatez do homem comum não comportava. Quanto mais sinceros e cruéis fossem em suas
colocações, mais esses seres eram admirados por sua ousadia, levando reis e senhores ao
deleite. Sob a proteção do riso e da loucura, era dado ao bufão o poder de transgredir
normas hierárquicas, sendo o único que podia dizer tudo ao soberano, num jogo de astúcia e
inteligência. Nas palavras de Minois (2003, p. 232):
Seja na China, no Egito ou na Europa Medieval, não faltam exemplos desses tipos
cômicos que atuavam em cortes de reis e imperadores, ou nas feiras populares, perpetrando
a visão de mundo dos marginalizados, daqueles cuja vida está erigida sobre os atos de
profanar e transgredir, o que geralmente já podia ser observado em sua corporeidade
carregada de feiura ou deformações. De acordo com o pesquisador Jorge Leite Júnior (2006,
p. 188): “[...] os bufões eram a materialização da vida fora da ordem, do caos do espírito
manifesto na desorganização do corpo, da vileza da alma encarnada na feiura da aparência
[...] expressava o ‘mundo fora dos eixos’.” (Aspas do autor).
Assim, havia uma forte relação entre o corpo em desconformidade com os padrões
e o ridículo que ele provocava, evocando uma comicidade que transitava pelos caminhos da
desordem e pelos mistérios da loucura. Autores como Bakhtin (2010) e Burnier (2001)
associam os bufões ao grotesco, seja por sua ligação às formas de comicidade popular, seja
119
devido aos exageros do rebaixamento corpóreo presentes nesses tipos cômicos. A bufonaria
era composta por portadores de traços físicos excêntricos, como anões, estrábicos, albinos,
corcundas, aleijados nas mais diversas formas, seres que traziam em sua corporeidade uma
natureza desviante, fator que operava um deslocamento sobre os padrões corporais.
Relacionados à sua aparência incomum, o comportamento dos bufões também fugia ao
controle das normas instituídas, criando zonas de instabilidade entre a normatividade, a
excentricidade e a loucura, “[...] graças à sua não exemplaridade e deformidades físicas ou
morais, em verdade características historicamente renegadas da natureza humana.”
(TONEZZI, 2011, p. 16).
Como desenvolve a pesquisadora Beth Lopes (2005), os bufões configuravam uma
espécie de espelho invertido da sociedade, destacando pela derrisão e pela inversão101 os
vícios e defeitos das relações sociais. Ao longo do tempo, sua presença, por vezes incômoda,
vai sendo afastada dos espaços oficiais como reinos e cortes medievais. Segundo a autora,
tendências moralizantes e domesticadoras do riso, como a Contrarreforma da Igreja
Católica, podem ter sido possíveis causas do banimento e até da perseguição dessas figuras
que, através dos excessos do ridículo, eram capazes de realizar críticas ácidas aos poderes e
seus detentores.
Lopes afirma, contudo, que ao longo do século XX, a tradição cômico-popular da
bufonaria seria alvo de grande interesse pelas mais variadas formas teatrais, como as
experimentações cênicas de movimentos de vanguarda como o Futurismo, o Dadaísmo e o
Surrealismo, ou as práticas artísticas de encenadores como Meyerhold, Tadeusz Kantor e
Brecht102. Nesse contexto, o vigor físico bufo e as lógicas corpóreas fora da norma também
passam a ser alvo de investigação de pedagogos que se dedicam ao estudo da máscara
teatral, como Phillipe Gaulier e Jacques Lecoq.
Pesquisado como uma técnica atoral, o jogo da bufonaria estabelece que o corpo
inteiro do intérprete é entendido como uma máscara, o que pode conferir à atuação cênica
101
Considerado por Bakhtin como um dos princípios do realismo grotesco, a inversão trata do mundo “ao
revés” presente nas festas e ritos carnavalescos medievais e “[...] caracteriza-se, principalmente, pela lógica
original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo [...], e pelas
diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões.”
(BAKHTIN, 2010, p. 10).
102
Maiores informações ao tema podem ser encontrados na tese de Doutoramento de Beth Lopes: Ainda é
Tempo de Bufões (USP – 2001), bem como na dissertação de Juliana Jardim Barboza (2001) já citada.
120
Eu não ponho nariz vermelho porque para mim não é divertido; para mim é
muito mais divertido ver a reação do público quando um homem faz
bobagens, as caras do público ficam mais surpresas do que se eu colocasse
um nariz vermelho, por exemplo. Tudo isso é para alargar o campo do jogo
[...]. (BASSI, 2001, p. 34).
Caso entrasse em cena com uma configuração corpórea fora do comum, vestisse
figurinos espalhafatosos ou mesmo utilizasse sobre o rosto o nariz de palhaço, Leo Bassi
concederia à assistência uma ideia inicial, mesmo que vaga e incerta, do que esperar de sua
103
Como ocorre no espetáculo 12 de Setembro, no qual Bassi trata do ataque terrorista sofrido pelos Estados
Unidos em 11 de setembro de 2001.
121
104
Exemplo retirado do espetáculo Instintos Ocultos e que será retomado em nosso próximo item.
105
Estilo de dança surgido, ao longo do século XX, nas ruas norte-americanas, geralmente executado com
movimentos bruscos e, por vezes, acrobáticos. Maiores informações podem ser encontradas no site:
<http://www.hip-hopbrasil.com/Break.php>. Acesso em 24 jul. 2013.
122
risível das relações sociais e suas vicissitudes. Por sua vez, Beth Lopes (2005, p. 17) ressalta
que a ambiguidade provocada pelo bufão:
106
Em seus cinco anos de existência, foram realizadas dez viagens do Bassibus, com cerca de cinquenta
passageiros a cada deslocamento, sendo incluídas cidades como Barcelona e a ilha espanhola de Lanzarote.
Maiores informações sobre o Bassibus podem ser obtidas no site do artista, denominado Bassiblog, um canal
de comunicação entre Leo Bassi, suas práticas artísticas e aqueles interessados em seu trabalho. Disponível em:
<http://www.leobassi.com/bassibus/index.html >. Acesso em 26 abr. 2013.
123
pretende reavivar o espírito rebelde e crítico sem o qual a democracia não pode se
desenvolver”107.
Bassi (2002b) defende que, durante séculos, uma das principais ações de palhaços e
bufões consistia em ironizar o mundo a sua volta, cabendo-lhes, através da comicidade,
realizar importantes comentários políticos. Em épocas em que os meios de comunicação de
massa eram inexistentes, as classes mais populares encontravam nos palhaços um reflexo
mordaz da vida cotidiana, expondo, entre gargalhadas e tiradas cínicas, os acontecimentos
correntes e as relações humanas. O artista afirma:
[...] o palhaço era a alma e o espírito do circo; era ele que podia falar.
Porque os malabaristas não falavam, os acrobatas não diziam nada
tampouco. Porém o palhaço falava diretamente e interpretava as opiniões,
as idéias políticas também, de seu público; público popular, público da rua,
público de classe pobre e o público amava o palhaço, porque interpretava
suas opiniões. Era a voz do pobre, era a alma, o espírito do povo. Eu venho
desta tradição antiga do circo como lugar de informações e o palhaço
como olho irônico e divertido sobre o mundo, com opiniões políticas. É
sempre difícil, hoje, falar disso porque a maioria do público fica com a
imagem do clown com nariz vermelho e sapatos e com as crianças. Hoje em
dia, se você fala da função política do clown, as pessoas te olham um pouco
estranho porque não associam a idéia. (BASSI, 2002b, s/p).
107
“Constatando el estado desanimado de la oposición en España, el BassiBus, en su humilde propuesta,
pretende reavivar el espiritu rebelde y crítico sin el que la democracia no puede desarrollarse.” Tradução
nossa.
124
Assim, palhaços e bufões seriam figuras historicamente distintas, mas que guardam
potentes ligações de proximidade, sobretudo no tocante a sua pulsão desestruturante que
pode expor e violar normas e relações de poder. Bassi opera com essa função
desmistificadora do riso, levando suas práticas provocadoras, muitas vezes, às últimas
consequências, ainda que seus processos de criação venham a despertar a antipatia ou
mesmo a repressão extrema por parte daqueles que se sentem incomodados por suas
provocações, como observaremos no exemplo a seguir.
Em 2006, Leo Bassi estreia La Revelación - ...En El nombre de la razón108, um de seus
trabalhos mais controversos, que seria alvo de inúmeras ações de repúdio, inclusive na
forma de protestos violentos por parte de seus detratores. Abordando o tema da teologia
judaico-cristã, Bassi constrói, a partir da comicidade, uma defesa de suas convicções ateias e
um elogio à cultura laica, desafiando os “partidários do monoteísmo cristão”.
O artista inicia o espetáculo com uma paródia litúrgica, vestido de papa católico,
benzendo e distribuindo preservativos aos espectadores e, ao longo da apresentação, trata
de contradições e dogmas relacionados à Bíblia e ao cristianismo – como, por exemplo, a
postura contrária da Igreja ao uso de preservativos, a defesa da instituição familiar
monogâmica e a ocultação de inúmeros casos de pedofilia cometidos por sacerdotes
católicos. Bassi também satiriza histórias bíblicas, como a de Adão e Eva, a arca de Noé e
questiona, ainda, a veracidade sobre a virgindade de Maria, mãe de Jesus Cristo.
108
No ano de 2007, Leo Bassi lança na Espanha obra literária homônima, onde publica o roteiro do espetáculo
bem como desenvolve reflexões sobre seu ofício e modos de atuar. Obra sem previsão de tradução ou
lançamento no Brasil.
125
aumentado. Tudo que o bufão representa deve ser integrado numa nova
ordem, mais compreensiva, mais humana. (Grifos nossos).
109
Aparecendo pela primeira vez na literatura grega em textos de Eurípides (c. 484 – 407 a. C.), este conceito é
desenvolvido em obras de Michel Foucault como: A hermenêutica do sujeito (2006), O governo de si e dos
outros (2010) e Discurso y verdad em La antigua Grecia (2004a). Aparecendo na primeira obra sob a grafia
127
Termo grego que na tradução francesa indica o franco falar, ou tudo-dizer, refere-
se a um discurso verdadeiro que mantém como objetivo a transformação e a melhoria dos
sujeitos envolvidos na comunicação. Relacionado por Foucault (2006) à liberdade, à
abertura, à franqueza, a parrhesía implica uma atitude de quem fala que envolve tanto uma
dimensão moral e ética, como um procedimento técnico necessário à transmissão do
discurso, fazendo “[...] com que se diga o que se tem a dizer, da maneira como se tem
vontade de dizer e segundo a forma que se crê ser necessário dizer” (FOUCAULT, 2006, p.
450).
Esse autor destaca, como exemplo, a relação de verdade que deve ser buscada
entre médico e paciente ou entre o mestre e seu discípulo, esclarecendo, contudo, que a
meta final da parrhesía não é gerar uma dependência entre as partes, mas, ao contrário, o
desenvolvimento de autonomia e independência naquele a quem se destina a fala. A partir
de um discurso verdadeiro que dita as próprias regras e procedimentos necessários à sua
produção, aquele que fala vai abrindo lacunas, despertando pensamentos que até então se
mostravam inexistentes ou obscuros em seu interlocutor. A fala recebida, por sua vez, vai
sendo por este apropriada, subjetivada, até o ponto de poder dispensar a ação daquele que
discursa.
O autor defende que essa “prática da palavra livre” possibilitaria, incitaria e serviria
de suporte àqueles que a recebem no sentido de produzir novos discursos dotados de
abertura, novos exercícios de liberação. Cabe ressaltar que, se a parrhesía implica uma
relação entre aquele que fala e aquele que recebe o discurso verdadeiro, também existe
uma relação de verdade entre aquele que fala e seu próprio discurso. Os pensamentos
transmitidos nas práticas parrhesísticas:
parrhesía e nas duas últimas como parresía, este trabalho optou pela forma adotada na tradução brasileira da
hermenêutica foucaultiana, parrhesía, realizada por Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail.
128
amo, a elas estou ligado e toda minha vida é por elas comandada.
(FOUCAULT, 2006, p. 490).
Podemos perceber que os trabalhos artísticos de Leo Bassi mantém uma íntima
relação com suas convicções críticas e seus modos de perceber e enfrentar a realidade,
tentando estabelecer a partir da comicidade um jogo de provocações cujo objetivo é fazer o
espectador pensar e refletir acerca dos problemas e vicissitudes do mundo que o cerca. Nas
palavras de Bassi (2002a, s/p.): “A provocação é uma ferramenta que utilizo para incitar o
público. [...] é uma coisa que desperta a consciência, pois o público a enfrenta. Muitos
podem não gostar, e inclusive se assustar, mas todos têm que reagir.”
Os espetáculos e ações públicas desse bufão transitam pela experimentação de
maneiras de afetar a assistência, em tentativas de mobilização da plateia frente às ideias do
artista. O espectador é confrontado por uma experiência cênica desestabilizadora, onde as
referências de entendimento e leitura do que acontece em cena estão em constante fluxo
de mudanças, variando de acordo com as provocações do bufão. Nesse sentido, decidimos
compartilhar com o leitor dois outros exemplos de ações provocativas de Leo Bassi, citados
pela pesquisadora Juliana Dorneles na tese Pelo vigor do palhaço (PUC/SP – 2009).
Apresentando o espetáculo La Vendetta110 durante o V Fórum Social Mundial,
realizado na cidade de Porto Alegre, em 2005, Bassi possuía uma plateia composta por
diversos ativistas político-sociais de vários países. Chamando ao palco a participação de um
espectador que trajava uma blusa da marca transnacional Nike, o bufão convence o rapaz a
deixá-lo cortar, com uma tesoura, o símbolo que identificava a empresa, umas das maiores
corporações industriais norte-americanas do segmento de roupas e calçados.
Enquanto realizava a “operação” na camisa, Dorneles nos conta que outro
espectador deixa o auditório, gritando indignado contra o absurdo daquela situação e que
nada justificaria estragar a roupa do jovem em nome de um espetáculo. Este fato já nos
demonstra como as práticas de Bassi são capazes de chocar e desestabilizar o espectador.
Contudo, ao terminar o corte, arrancando a marca e deixando um buraco na blusa, grande
parte da assistência gritava e aplaudia em polvorosa, aprovando o caráter simbólico da ação
do bufão.
110
Apresentado em 30 de janeiro de 2005, em Porto Alegre/RS.
129
Após a diminuição do tumulto, Bassi começa então a conversar com o rapaz, ainda
em cena, perguntando a ele qual teria sido o valor gasto na compra daquela camisa. E, após
a resposta, ele começa a indagar ao jovem como ele pôde autorizar que o bufão estragasse
a vestimenta, qual seria a razão daquilo tudo e porque ele queria ser o “herói” daquela
gente que ele nem conhecia, desejoso de obter aprovação e aplausos por alguns breves
instantes. Assim, bruscamente Bassi muda as perspectivas sobre a experiência cênica,
indicando que sua ação caminhava em determinada direção para, logo em seguida,
promover uma mudança drástica em suas configurações ideológicas e simbólicas, deixando
estupefatos tanto o espectador, agora de blusa furada, como o resto da assistência que
incitava o desenrolar da cena.
Em outro momento do espetáculo, Bassi realiza com outros dois espectadores um
número de hipnotismo, o qual, segundo a autora, era muito crível, deixando o resto da
assistência impressionada com sua habilidade. Todavia, na cena subsequente, o bufão revela
que a hipnose tinha sido toda combinada de antemão e que a plateia havia acreditado numa
ilusão, lançando a provocação: “Vocês acreditaram e foram enganados por um palhaço.
Hahaha. Imagina o quanto não são enganados por tudo o que acreditam que falam para
vocês seriamente...” (BASSI apud DORNELES, 2009, p. 90-91). Mais uma vez, ele inverte a
lógica do jogo, conduzindo o espectador até determinado ponto estável para, então,
desconstruir subitamente aquela relação, desestabilizando a experiência cênica através de
movimentos inesperados e quebras de padrões.
Assim, como nas práticas parrhesísticas, esse bufão cria no interior da cena teatral
as situações de que necessita para falar francamente à sua plateia, utilizando para tal
maneiras de provocar e instigar a assistência, em processos que demandam do espectador
dinâmicas ativas de reflexão, bem como de reavaliação de suas perspectivas e crenças. É
improvável que, diante dos espetáculos de Bassi, o espectador consiga manter uma condição
de recepção passiva, visto que ele é, a cada cena, convidado de maneira incisiva a reagir às
provocações do bufão.
Porém, aos que eventualmente pensarem que Bassi deseja se tornar uma espécie
de mestre ou guru do “franco falar”, ele também desconstrói qualquer ideia mistificadora
sobre sua figura, pois, segundo Dorneles (2009), em determinado momento de La Vendetta,
o bufão afirma que não realiza essas ações porque deseja mudar o mundo, mas porque elas
130
são divertidas para ele. Assim, ele instaura a insegurança e o inesperado em diversos
âmbitos de uma construção cênica em que ninguém, nem os espectadores mais reticentes,
nem os mais crentes, conseguem sair sem serem tocados pelas provocações de sua
bufonaria.
Destacamos, contudo, que, longe de propor uma aderência inequívoca entre as
atuações de Leo Bassi e o exercício da parrhesía, desejamos identificar ondas de
aproximação entre as práticas desse artista e o conceito grego retomado pelo pensamento
foucaultiano. Bassi constrói uma ligação entre suas “verdades”, estas entendidas como seus
ideais, suas perspectivas e práticas de vida, e a experiência cênica, encontrando nas mais
diversas gamas da comicidade e da provocação as formas necessárias para expor suas
convicções, na busca pela criação de redes de afetos em relação aos espectadores.
A familiaridade entre a ação parrhesística e o ofício desse bufão pode ser ainda
observada em algumas das condições elencadas pelo filósofo francês como atinentes à sua
configuração. Uma das principais circunstâncias da ação do parrhesiastés, ou seja, daquele
que pratica a parrhesía, reside no fato de que sua fala, ao ser proferida, implica-lhe um
risco. Aquele que expõe a verdade coloca-se em condição de periculosidade, podendo
arriscar, inclusive, a própria vida.
Foucault (2004a) afirma que a parrhesía coloca o valor de dizer a verdade frente ao
perigo, ocasionando um risco que pode ser o de provocar a ira de seus semelhantes, ou o
risco da impopularidade por suas opiniões contrárias às da maioria. Em situações extremas,
pode, inclusive, engendrar um perigoso jogo de vida e de morte, em nome da liberdade de
professar publicamente suas crenças. O filósofo francês traz como exemplo a figura de um
pensador que seja contrário à conduta de um rei ou soberano, expondo as mazelas de sua
tirania e sua incompatibilidade com a justiça. Neste caso, o cidadão crê na necessidade de
proferir a verdade, mesmo que para isso tenha de assumir o risco de padecimento sob os
mais terríveis castigos, entre eles o encarceramento, o exílio ou mesmo a execução final.
Tanto em relação ao Bassibus, como em La Revelación, podemos observar que esse
bufão assume diversos riscos, seja no tocante à ira dos políticos afetados por suas
denúncias, seja pela repressão violenta, chegando muito perto do risco de morte, ao
enfrentar a oposição cristã espanhola. Mesmo em relação a La Vendetta, é imprevisível
saber como aquelas provocações estão reverberando sobre cada espectador e quais serão
131
os limites de suas reações. Lembrando, ainda, que, na apresentação citada por Dorneles, a
assistência era composta, em sua maioria, por ativistas políticos, o que, cremos, aumentava
a possibilidade de embates mais acalorados. Tal qual um parrhesiastés, entendemos que
Bassi, a partir de suas crenças a favor da cultura laica e das reflexões acerca das vicissitudes
de nossa contemporaneidade: “[...] corre o risco de morrer por dizer a verdade ao invés de
descansar na seguridade de uma vida em que a verdade permanece silenciada.”
(FOUCAULT, 2004a, 42).
Há ainda, de acordo com esse autor (2004a), duas condições à prática da parrhesía:
a sua função crítica, uma vez que o exercício parrhesístico assume um caráter de jogo onde
aquele que tem a “palavra livre” critica a si mesmo ou a conduta assumida pelos poderes
instituídos ou pela maioria, estando em uma posição de inferioridade sobre aquele que
escuta – o que lhe ocasionará o risco do qual falamos anteriormente; e, por fim, dizer a
verdade constitui-se como um dever ao parrhesiastés, não por uma obrigação, mas porque
ele sente que é seu dever fazê-lo, pondo em xeque sua liberdade e sua ética pessoal.
Em resumo, a parrhesía, mais do que um conceito, configura-se como uma
atividade que dinamiza a verdade através da franqueza. Exercício que pode desencadear
reações de ameaça e perigo sobre aquele que a pratica, mas que não pode ser evitado, pois
envolve uma dimensão ética onde este toma para si a necessidade de dizer a verdade como
um dever para ajudar ou melhorar a vida de sua sociedade, e também a sua própria vida.
Nas palavras de Foucault (2004a, 46):
Na parrhesía, aquele que fala faz uso de sua liberdade e escolhe [...] a
verdade no lugar da falsidade ou do silêncio, o risco de morte no lugar da
vida e da segurança, a crítica no lugar da adulação, e o dever moral no lugar
do próprio interesse e da apatia moral111.
Bassi leva até às últimas consequências suas opções artísticas, estas entendidas
como exercícios de modos de existência, ainda que suas atuações lhe imputem diversos
riscos. Mesmo após as agressões sofridas durante a temporada espanhola de La Revelación,
111
“En la parresía, el hablante hace uso de su libertad y escoge [...] la verdad en lugar de la falsedad o el
silencio, el riesgo de muerte en lugar de la vida y la seguridad, la crítica en lugar de la adulación, y el deber
moral en lugar del propio interés y la apatía moral.” Tradução nossa.
132
Bassi mantém seu estilo provocador e em novembro de 2012 funda a Igreja Patólica ou
Patolicismo.
Segundo ele, esta é uma autêntica religião que sacraliza o humor e o riso como
expressões do mais alto intelecto humano. O culto ao Figura 14 - Cartaz de divulgação da Igreja
Patólica com seu pontífice Leo Bassi.
Deus Pato, divindade simbolizada por um pato de
borracha amarelo, vem reivindicar valores como a
humildade e o caráter lúdico, constituindo-se numa
maneira segura de evitar qualquer idolatria ou
intolerância.
Os principais objetivos desta ação, segundo
o artista, são, além de fomentar o espírito crítico
utilizando a comicidade como método, unir forças
com todas as pessoas que compartilhem uma visão
positiva e alegre da vida para transformar o mundo112
- como podemos ver na figura ao lado. Bassi, através
da criação do Patolicismo faz um elogio aos filósofos
Fonte:
<http://cosasquenosalenenlatele.blogspot.com.
da Ilustração, como Voltaire e Kant, defendendo a
br/2013/03/el-naufragio-del-sufragio-14-
parte.html>. Acesso em 09 mar. 2013.
dúvida contra os obscurantismos, os totalitarismos e
as superstições – mais uma vez aparece em nossa pesquisa a potência da dúvida contra os
padrões normativos e instituições, citada por Mendes (2008), “semente de insubordinação”
capaz de desagregar e gerar instabilidades.
Assim, Leo Bassi segue expressando, através de espetáculos e diversas ações
públicas, seus ideais e verdades, através de processos de comicidade altamente
provocativos, sem recuar diante dos perigos a que venha a ser exposto na sua consecução.
Nas palavras do próprio artista: "Quero devolver ao bufão o seu direito ancestral de dizer
em voz bem alta o que os demais só pensam". (BASSI, 2002a, s/p.). Em tempos em que as
relações de sujeição permeiam nosso cotidiano, a importância das práticas artísticas deste
bufão parece-nos clara, tanto no âmbito da criação de experiências cênicas potentes, como
112
Leo Bassi já utilizava a figura de um pato inflável amarelo de 45 (quarenta e cinco) metros de circunferência
em performances realizadas em países como Brasil (2010), Espanha e Portugal. O santuário do Patolicismo está
localizado no bairro de Lavapiés, o mesmo onde reside o bufão, na cidade de Madri. Maiores informações
sobre a Igreja Patólica podem ser obtidas no site: <http://paticano.com/>. Acesso em 20 jun. 2013.
133
113
Esta pesquisa obteve acesso, por meio do Teatro de Anônimo, à gravação integral deste espetáculo,
realizado no Rio de Janeiro, em dezembro de 2011. As cenas aqui analisadas constam do DVD em anexo.
134
3.2.1 - Abertura
espectadores, que ouviam atentos à narrativa. Contudo, havia certa tensão na assistência,
devido ao tom de suspense que aumentava com a proximidade do desfecho da história, a
qual terminaria com a seguinte imagem: o pequeno bufão colocaria um rojão aceso, dos
maiores que pudera comprar, entre as migalhas de pão e as lançaria aos pombos. Em breve,
ocorreria uma grande explosão, com penas e pedaços destroçados das aves voando pelos
ares, e as tradicionais famílias italianas correndo de um lado para o outro na praça, sem
entender o que havia acontecido ou quem havia instaurado o caos em sua pacífica tarde
dominical.
A mãe de Leo, ao perceber que tinha sido o próprio filho o algoz da situação, foi em
sua direção, estapeando-lhe o rosto por várias vezes. Bassi destaca que, enquanto aplicava o
corretivo, sua mãe olhava para as outras pessoas na praça, demonstrando que sabia que
havia sido seu filho quem fez uma coisa má e que ela tentava fazer voltar o filho à
normalidade. Segundo ele, os pombos que haviam restado inteiros voavam de uma
marquise à outra, tendo demorado quatro dias para tornar a descer na praça.
Ele afirma que, enquanto apanhava, não sentia dor, apesar da força das bofetadas
maternas. Ele se sentia feliz, pois havia conseguido estragar a tarde das outras crianças.
Nesse momento, ele descobria sua alma de bufão, experienciando as potências de “romper
a normalidade, romper o conformismo. Provocar! Encontrar energia, vitalidade, instintos
ocultos no público, em mim...114”. Assim, Bassi destaca a intensidade das ações provocativas
que veremos ao longo do espetáculo, quando o jogo transgressivo de violação das normas é
capaz de afirmar potências e afetos, transitando pelas porções obscuras dos indivíduos.
A fala de Bassi nos remete à explanação de Cassiano Quilici (2006) acerca do corpo
em sua dimensão reativa, citada em nosso primeiro capítulo. Uma vez que o
comportamento cotidiano, guiado pelos padrões normativos, tende a privilegiar as
dimensões estáveis e produtivas, serão evitadas as práticas instáveis que coloquem em risco
as próprias representações ilusórias de nossa identidade. É esse convite à experimentação
da instabilidade que Bassi vem fazer ao espectador, através de uma comicidade provocativa
que estremece as próprias concepções de mundo dos espectadores, instaurando fissuras nas
114
Fala de Leo Bassi durante a referida apresentação.
136
quais a obscuridade do indivíduo, suas porções violentas, suas ingenuidades, suas ilusões são
confrontadas por uma dinâmica cênica desestruturadora.
Após o término da narrativa inicial, Leo Bassi desce de seu palanque, caminha até o
proscênio e decreta: “Agora não preciso de pombos para me divertir...” – diz fitando a
plateia de forma sádica, com um sorriso nos lábios. E logo completa: “Os novos pombos são
vocês, o público”. O bufão então compartilha com a assistência que Instintos Ocultos, um de
seus espetáculos mais antigos115, é um trabalho que ele gosta muito, pois investiga o
significado do medo. Como as pessoas podem ter medo de pequenas coisas, ondas de medo
como sensações instintivas.
Enquanto vai falando, Bassi pega uma lata de refrigerante fechada e começa a
movimentá-la em vários sentidos, o que gera risos inseguros na assistência, a qual já antevia
a possível explosão do refrigerante pela agitação de seu gás. Sacudindo a lata, ele afirma que
também poderá tratar de medos mundiais no espetáculo, medos relacionados à dominação
de empresas multinacionais, por exemplo. Enquanto fala ele empunha veementemente a
lata de coca-cola em sua mão, em atitude claramente irônica, opondo um discurso
apaixonado contra a referida empresa à ação de exibir ostensivamente um de seus maiores
símbolos.
Após um tempo agitando o objeto, ele diz que, se fizesse um furo no meio da lata,
os jatos dela provenientes alcançariam até a sétima ou oitava fileira da plateia. O público ri e
ele afirma que vai fazer o teste. Ele perfura a lata e começa a brincar com os jatos de
refrigerante, molha-se, joga o líquido embaixo dos braços, faz posições corporais de quem
está urinando.
Essa experiência inicial já demonstra à assistência que ele não possui nenhum
receio em se molhar ou fazer sujeira no espaço cênico. Ele começa, então, a entregar sacos
plásticos ao público, explicando que aquela era uma medida de segurança aos espectadores
das primeiras fileiras, pois estes seriam afetados diretamente pelo espetáculo. Pegando uma
garrafinha de água, ele faz alguns testes sobre a atenção da assistência, pois, quando o
bufão atirava jatos de líquido sobre a plateia, seus membros deveriam levantar os plásticos
115
De acordo com o site do artista, as primeiras apresentações de Instintos Ocultos datam de 1993, espetáculo
que realizou temporadas em países como Brasil, Itália, Espanha, Argentina, Noruega, Áustria, Portugal, entre
outros.
137
para se proteger. Por fim, até a garrafinha de plástico é atirada sobre o auditório. Nesse
momento, a assistência já se encontrava em grande estado de excitação e ansiedade pelo
que ainda estava por vir.
Anunciando que o espetáculo começaria agora, o bufão faz a ressalva de que não
tem nada contra os espectadores. Ele afirma que tudo o que faz em seus espetáculos é por
amor ao público, e que não quer que as pessoas tenham uma vida longa e sem interesse,
mas a ele importa viver muito e em curta duração. Ele termina a fala com um sorriso
sarcástico, sádico e repentinamente uma música de batida forte e ritmo frenético invade o
espaço teatral. Ao som dessa espécie de hip-hop, com mudanças bruscas de iluminação,
como numa boate, Leo Bassi dança enlouquecidamente, incluindo, em sua movimentação,
passos da dança norte-americana break.
O público delirava e bradava como se assistisse a um show de rock’n’roll, enquanto
Bassi operava, em nosso entender, com matrizes de comicidade transgressiva, como o
contraste, a quebra de padrões e o inesperado. Assistir à movimentação intensa daquele
senhor de sessenta anos, vestido de maneira formal, fazendo uma coreografia ridícula, abria
em cena uma rede de oposições. Seu figurino austero bem como sua expressão calma e
enigmática havia criado uma tessitura de sobriedade e contenção que agora era
violentamente rasgada diante de nossos olhos, contrastando com o atual descontrole, o
delírio e um clima de frenesi que só aumentaria com as ações subsequentes do bufão.
Com o auxílio de uma furadeira elétrica, Bassi estouraria várias latas de
refrigerante, presas a seu corpo como num colete. Pulando e sacudindo seu corpo, os jatos
iam à direção da plateia. Não satisfeito, ele sai de cena por alguns instantes e volta
empurrando um carrinho de supermercado com várias de latas de coca-cola. Artefato
previamente preparado, o carrinho, ao ser sacudido pelo bufão, faz as latinhas estourarem,
provocando uma explosão de jatos de refrigerante que molha o palco, as primeiras fileiras,
mas, sobretudo, o próprio artista – como podemos ver nas imagens a seguir. Ele chega a
perder seus óculos, por instantes, devido à intensidade da dinâmica.
138
Encharcado, sem fôlego, o bufão faz um gesto para que cesse a música e
novamente fala aos espectadores. Ele diz que realiza esse mesmo número há dez anos,
surgido como um ato de protesto contra a coca-cola. Dez anos mais tarde, conclui, o mundo
bebe sessenta por cento mais desse refrigerante. “Tenho a sensação de que falhei”, relata
com expressão de pesar. Ele afirma que recebe muitas críticas à sua mentalidade anti-
imperialista, sua luta pessoal contra a coca-cola, como se suas práticas houvessem se
esgotado. E ele sentencia sarcasticamente: “A verdade é que não me importa muito a luta
política... O que mais gosto é jogar coca-cola nas pessoas!116”.
Reinicia-se, então, a música e sua dança frenética, de passos ridículos. Assim, mais
uma vez, o bufão conduz os espectadores a um tipo de atmosfera ou conclusão, para romper
as expectativas ou entendimentos que vinham sendo construídos pela assistência,
quebrando padrões e surpreendendo a plateia. Leo Bassi pega duas maçãs e começa a
mordê-las, cuspindo seus pedaços sobre a plateia. Em seguida, munido de uma grande
116
Falas de Bassi proferidas durante a apresentação sob análise.
139
marreta de madeira, ele passa a explodir as frutas, agora colocadas sobre uma pequena
coluna de madeira.
A cada marretada ocorria uma explosão de alimento que sujava a área ao seu redor,
incluindo o bufão. Por fim, ele traz à cena uma melancia e coloca-a no pedestal onde
estourara as outras frutas. Ele fez toda a preparação, movimentando-se com a marreta, e,
no exato momento em que os espectadores estavam ávidos por ver explodir também este
alimento, o bufão interrompe sua ação, frustrando a plateia e rompendo com o padrão de
destruição que havia criado. Ele termina a ação dizendo: “Não quero fazer... Demasiado
agressivo.”, o que, depois de toda a destruição já causada, parece mais uma fala irônica.
O público sabia que ele era capaz de estourar a fruta, como vinha fazendo com as
anteriores, e a dimensão da sujeira que se produziria, bem como a imagem da melancia se
espatifando, deixaram a plateia em polvorosa, torcendo para que se mantivesse o que
parecia ser a ordem natural daquele ritual devastador. Alguns espectadores chegaram a se
manifestar verbalmente, pedindo que ele continuasse com os gestos de explosão. O artista
soube guiar o público ao ápice dessa ação crescente até o momento de quebrar os elos de
sua sequência, o que foi acompanhado por um corte seco na música que ajudava a conduzir
a atmosfera de radicalidade e violência, abrindo a lacuna do silêncio.
Minutos antes, o artista rompera o clima calmo e, ao mesmo tempo, tenso da
narrativa inicial, instaurando um espaço de explosão e caos, liberando a ele mesmo e à
assistência de toda a contenção da história – como se estivéssemos, talvez, diante de
perturbação semelhante àquela que dilacerara a paz dominical com um massacre de
pombos. Agora, mais uma vez, ele estancava o curso do padrão estabelecido, retomando seu
diálogo meticuloso com a plateia.
Podemos perceber que os jogos criados por Bassi carregam uma qualidade racional,
estudada, estruturada sobre um planejamento. O bufão sabe exatamente quais estratégias
usar para envolver a atenção da assistência, jogando com as intensidades caóticas e zonas
de descontrole. Ele se relaciona com a plateia de maneira direta, ultrapassando, assim como
vimos na atuação de Jango Edwards, a precisão e a pontualidade da técnica da triangulação,
comumente utilizada para gerar comicidade.
Utilizando a interlocução permanente com os espectadores, Bassi mistura sua
grande empatia com um modus operandi sarcástico, mordaz, contaminado, ainda, por doses
140
de sadismo – como pudemos perceber no prazer que ele demonstrava ao narrar a explosão
dos pombos, ou quando lança objetos sobre a plateia de maneira natural. Tal qual um
estrategista, esse artista vai compondo e decompondo um discurso cênico potente, cheio de
expressividade, formando sequências capazes de envolver e afetar a assistência. Acerca de
seus processos de criação, ele discorre:
117
Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=raz%25C3%25A3o >. Acesso em 06 fev. 2013.
141
Este, relacionada ao início, ao nascer do sol. A razão como um dos grandes impulsos que
dinamizam os processos artísticos de Leo Bassi.
Pensando, ainda, nas relações entre a racionalidade e o jogo clownesco, Bassi
(2001) afirma que os palhaços dedicam sua vida à busca pelo irracional utilizando, para tal,
esforços racionais. A linguagem clownesca possibilita que as regras sejam inventadas, regras
que podem colocar em ação o caos, a irracionalidade, criando espaços de abertura ao jogo
cômico. Podemos observar essa lógica nas cenas de abertura sob análise, quando ele cria um
planejamento racional previamente estruturado que possibilitará o embaralhamento da
própria racionalidade, em cenas de explosão e caos. Nesse sentido, ele afirma:
[...] quando estou na cena, eu quero jogar até não poder mais. E não só
fisicamente, mas também filosoficamente, conceitualmente. Buscar um
jogo maior, cada vez maior, ter o público contigo. [...] é um prazer enorme
fazer com que as pessoas te escutem, riam de você; saber que as pessoas
estão contigo é uma sensação de poder, de felicidade. E, nessa mistura,
buscar as consequências mais longe. Esse é o sentido do jogo. (BASSI, 2011,
p. 34).
118
Conceito inspirado na expressão “estado choque”, cunhada por Paul Ardenne na obra Extrême: Esthétiques
de la Limite Dépassée (2006).
142
Ele [o espectador] sai da ficção para entrar no real. O evento que aparece
durante o espetáculo surpreende o espectador. Ele obriga o espectador a
sair de súbito da narração e da ficção. Ele obriga o espectador a sair da
ilusão cênica e a um modo de recepção diverso da cena tradicional com a
qual ele está acostumado. A situação do espectador se desloca e este se
encontra surpreendido, hipnotizado, sempre estupefato, num lugar e num
tempo que ele não previra. Esse tempo e este lugar não são
verdadeiramente os da representação, mas um outro lugar, diante de uma
ação que o incomoda e que se apresenta sem mediação. (FÉRAL, 2012, p.
83).
119
Josette Féral desenvolve, a partir dos estudos sobre a performance art de Richard Schechner, o conceito de
teatro performativo, pondo em diálogo e atrito ideias como teatralidade – entendida como um sistema de
representação – e performatividade – abarcando o campo da execução de uma ação. Maiores informações
sobre o tema podem ser encontradas em seu artigo Por uma poética da performatividade: o teatro
performativo (2008).
143
protesto, ou através dos brados de incentivo, desejosos de explosões cada vez maiores,
escutamos vozes dissonantes que se juntam numa manifestação coletiva que invade os
limites espaciais do teatro, reagindo prontamente a cada ação de Bassi. Espécie de massa
sonora indecifrável que parece querer vazar as paredes da arquitetura cênica, na iminência
de romper, também com a força de uma explosão, a experiência de uma cena potente e
instável.
Féral (2012), citando a interlocução de Ardenne, destaca que a “estética do choque”
possui cinco aspectos principais: a falta de hábito da recepção em relação às cenas
presentificadas; a recusa inicial do espectador sobre o que é mostrado; o desejo posterior de
ser confrontado com o conteúdo das ações e imagens; a extravagância desse conteúdo; e,
por fim, a exterioridade da assistência sobre o evento, uma vez que o espectador não é
apanhado pelo que ocorre em cena.
Podemos perceber que não há uma assimilação exata entre as práticas de Bassi e os
princípios dessa estética desenvolvida por Féral, pois, embora atue de maneira inusitada e
extravagante e cause no espectador o desejo de ver até onde esse bufão tensionará os
limites de suas ações, é difícil afirmar que a plateia, inicialmente, recusava-se a presenciar o
ritual de destruição executado por esse artista. Como vimos, desde a narrativa que principia
o espetáculo, o bufão já havia realizado um trabalho de conquista do espectador,
mostrando-se como uma figura interessante e fora dos padrões. Ele aguça a curiosidade da
assistência, a qual, mesmo entre inseguranças e medos, acaba desejosa de experienciar
aquele evento que, por vezes, parece fora de controle.
Além disso, Bassi tensiona o princípio que se refere à exterioridade do espectador
em relação ao acontecimento teatral. A plateia do bufão é quase que trazida para dentro da
cena, sofrendo com os resquícios das explosões de alimentos e líquidos que resvalam do
palco em direção às primeiras fileiras, desestabilizando por contaminação qualquer distância
que poderia sugerir conforto ou voyeurismo ao público. Diferentemente da plateia de um
show de rock que vibra e incentiva os feitos dos músicos à sua frente, protegida pela
separação entre os espaços de quem assiste e quem performa, com Leo Bassi a assistência
vê-se exposta à intensidade das atitudes do artista. Sofrendo com a materialidade residual
de cada ação, há um diálogo entre as pulsões destrutivas do bufão e os próprios instintos
dos espectadores, pois, conforme reflete a autora supracitada:
144
Dessa forma, mesmo sem uma aderência inequívoca entre as práticas do bufão e as
dinâmicas da “estética do choque”, achamos importante trazer este conceito como
possibilidade, mesmo que falha, de nos ajudar a pensar a criação desse artista. Bassi
confronta o espectador com o choque do real, da ação viva que carrega em sua latência
nossas porções obscuras, avessas ao controle, ao convencional, numa experimentação
cênica que é perturbadora, limítrofe. Espécie de comunhão bufonesca contra regras e
princípios que chega a nos colocar diante da questão que subitamente ecoa do espaço
teatral, deixando-nos perplexos: quem é realmente o bufão que sente prazer na destruição
dos padrões normativos, ele ou nós?
120
Gênero musical surgido em meados da década de 1960, relacionado ao movimento hippie, caracterizado
por melodias suaves e sons instrumentais. Muito utilizado para meditações e rituais de relaxamento. Fonte:
<http://www.allmusic.com/genre/new-age-ma0000002745>. Acesso em 25 jul. 2013.
145
121
Leo Bassi deixa clara sua postura crítica acerca do Cirque du Soleil, seja em ações em que ironiza os
espetáculos dessa companhia, seja em entrevistas e palestras, como na aula-espetáculo citada no início deste
capítulo, quando o bufão criticou veementemente a postura empresarial do grupo. Não vamos aprofundar aqui
esta discussão, pois, além da extensão do tema e suas complexidades, nossa dissertação não mantém como
foco de investigação o estudo sobre o universo circense.
146
Enquanto calça seus sapatos, o bufão começa a contar uma história desconexa
sobre não estar se sentindo muito bem, tendo a impressão de estar deprimido, pois o
trabalho de provocação do palhaço hoje não teria mais sentido. Ele chega a afirmar
ironicamente que sua carreira encontra-se em declínio ao ponto de ele ter de se apresentar
novamente na cidade do Rio de Janeiro. Diz, então, que tem pensado em realizar um último
espetáculo e, ao final da apresentação, cometer suicídio diante dos espectadores. Ele
destaca a repercussão que esse acontecimento alcançaria na mídia, manchetes como “Em
festival de palhaços, um palhaço se mata!”, o que geraria uma publicidade enorme aos
outros espetáculos, à palhaçaria. Ressalta, ainda, que, ao saber que vai morrer, o indivíduo
experimenta uma grande sensação de liberdade.
Bassi afirma que, nos últimos instantes de sua vida, deseja realizar de um de seus
instintos mais profundos, alimentado e reprimido durante anos, qual seja matar vinte
pessoas de sua plateia. Se isso acontecesse, o mundo inteiro falaria sobre seus espetáculos,
sobre a arte teatral do Rio de Janeiro, diz ele. E conclui: “Vocês acham que isso é piada...
Mas tenho pensado muito nisso.”. Ele, então, vai até a coxia do teatro, sumindo na escuridão
Figura 16 – Bassi em seu ritual de que agora domina o palco. Os espectadores riem alto,
pirofagia.
tentando descontrair a situação, mas há uma evidente
opressão na atmosfera sombria criada por Bassi. Durante
longos instantes o bufão desaparece, deixando-nos com o
silêncio inquietante do inesperado.
Quando retorna à vista dos espectadores, ele
carrega um bastão utilizado nos números de
prestidigitação em que se cospe fogo e um galão de
plástico. Ele derrama o líquido contido na embalagem
plástica sobre a extremidade do instrumento, e, com o
Fotógrafo: Celso Pereira. Fonte: auxílio de um isqueiro, ele ateia fogo no bastão. O fogo
<https://picasaweb.google.com/113893
428128222687765/Anjos102011#56829 não só forma uma tocha, mas rapidamente se alastra pelo
88561962398578>. Acesso em 10 mar.
2013. chão onde restaram os respingos do líquido. O bufão
apaga as chamas, com certa dificuldade, pisando sobre as
147
122
Marcio Libar (2008) narra um episódio curioso em seu livro autobiográfico, afirmando que, durante a
realização desse número de pirofagia, apresentado por Leo Bassi no ano de 2000 no Anjos do Picadeiro 3, a
crítica carioca Bárbara Heliodora abandonou o espetáculo antes do final, vociferando contra o absurdo
daquelas ações e reclamando do desrespeito que era infligido ao público por aquele bufão.
148
medo dos palhaços, é importante que se tenha medo dos palhaços, inclusive os adultos, pois
nunca sabemos o que ele é capaz de fazer.”(BASSI apud LIBAR, 2008, p. 174-175).
Bassi constrói um campo de experiência e afetos no qual os processos transgressivos
é que parecem guiar suas ações, chocando-se brutalmente contra qualquer tipo de ordem
ou regra, numa lógica instável e surpreendente. Ele joga com a insegurança e a
imprevisibilidade, pois a plateia não consegue distinguir claramente sobre a veracidade de
suas ações e os riscos que as acompanham, restando sempre uma dúvida inquietante.
Trabalhando com os atritos entre representação e realidade, esse bufão cria intensidades
que atuam diretamente sobre as percepções dos espectadores, causando sensações como
angústia e temor, estas sim, muito reais. A esse respeito o artista afirma:
Assim, Bassi defende uma dinâmica cênica capaz de ampliar os fluxos de afeto,
jogando com o medo, a tensão, o inesperado. Esse artista proporciona ao espectador uma
experiência única, cheia de instabilidades, colocando a assistência num espaço
desconfortável, que dificilmente abarcará qualquer possibilidade de comodidade. Embora
possua grande empatia com a plateia, ele não acolhe os espectadores, mas provoca-os,
instiga-os. A comicidade desse bufão, na mesma medida em que atrai a assistência,
equilibra-se em processos transgressivos capazes de produzir um riso nervoso, quase uma
gargalhada histérica diante da imprevisibilidade, exteriorização de como os espectadores se
encontram mobilizados e surpreendidos por sua atuação.
No número sob análise, por exemplo, há um momento em que Bassi, enquanto
molha o espaço teatral com o suposto querosene, ao mesmo tempo, benze a plateia fazendo
o sinal da cruz com a tocha em chamas, como se estivesse aplicando o ritual final da
extrema-unção. Ação irônica que desperta inevitavelmente um riso coletivo, mas que não
149
perde seu caráter tenso diante do medo de um eventual incêndio que rompesse os limites
da representação e pudesse ganhar o aterrorizante campo da realidade. A relação entre riso
e medo já foi enunciada por Nietzsche (2005, p. 119-120) ao desenvolver sua definição
acerca do cômico:
aquelas utilizadas em números cômicos e clownescos. Segurando a torta, ele dança e faz
expressões ridículas ao som da música The End do grupo de rock norte-americano The
Doors123. Olhando para a assistência, o bufão sentencia: “No teatro, 350 pessoas. Em poucos
instantes, ficarão 349 muito felizes. E um, menos. Porque eu quero, em poucos instantes,
jogar isto na cara de uma pessoa do público.”.
Pedindo luz na plateia, ele desce do palco para caminhar entre os espectadores e
selecionar pessoalmente quem seria aquele contemplado com a tortada. Contudo, antes de
descer, Bassi dá um conselho final, afirmando que, aquele que não gostaria de ser o alvo da
ação agressiva, deveria agir como se nada fora do normal estivesse acontecendo quando da
proximidade do bufão, pois a menor reação ou sinal de medo despertaria nele a vontade de
jogar a torta de espuma no rosto da pessoa. Segundo suas palavras: “Gosto muito de
descobrir medo no público. E quando descubro a pessoa que tem muito medo... Eu me
excito.124”. E assim, o bufão segue jogando com seus próprios instintos e sensorialidades,
bem como com os da plateia.
Tendo descido do palco, ele caminha calmamente próximo aos espectadores, o que
aumenta ainda mais a ansiedade da plateia. O silêncio tenso mais uma vez parece congelar
a atmosfera do espaço teatral, sendo rompido apenas por alguns risos nervosos que ecoam
em determinados pontos da assistência. Como o teatro estava com a lotação esgotada, havia
muita gente sentada no balcão, localizado no segundo andar. Então, quando o bufão sai do
campo de visão dessas pessoas, chegando a uma parte da plateia em que não podia ser visto
pelo andar de cima, incita rapidamente que as fileiras do primeiro andar começassem a
gritar, como se a tortada fora dada. Ele faz essa dinâmica por duas vezes, gerando risos,
palmas e gritos da assistência do andar de baixo.
Ao retornar à área próxima ao palco, ele diz à plateia do andar de cima que algo
terrível acontecera. Ele esclarece que tudo não passou de uma brincadeira, mas ressalva que
pedira à assistência apenas que esta risse. Mas, como os espectadores são iguais em todas
as partes do mundo e não prestam, todos gritaram intensamente, na esperança de que
123
Banda musical conhecida pelas letras controversas e ações provocadoras de seus membros, que
ocasionariam diversas passagens pela polícia, até a morte prematura de seu vocalista Jim Morrison em 1971.
Maiores informações no site oficial do grupo: <https://thedoors.com/ >. Acesso em 25 jul. 2013.
124
Fala de Leo Bassi durante o número.
151
Bassi começa a se despir, enquanto uma trilha sonora grandiosa vai invadindo o
espaço do teatro. Ele tira toda a roupa com gestos graciosos e uma expressão facial
sarcástica, até permanecer de cueca samba-canção preta. Pega, então, uma espécie de
garrafa que lembra um grande tubo de ensaio, com quatro quilos de mel e despeja
lentamente o conteúdo em sua boca.
O mel vai transbordando de seus lábios até escorrer por seu tronco, seus genitais e
pernas. Ele derrama o mel também em sua cabeça calva, para depois acariciar o corpo
esfregando o líquido pegajoso por sua barriga, suas pernas, costas, como se estivesse se
ensaboando, utilizando, inclusive, o mel que formara uma poça no chão aos seus pés. Na
mesma poça ele desliza os pés, realizando passos de dança e, em seguida, cospe certa
quantidade de mel que ainda estava em sua boca, assumindo uma postura corporal que nos
remete às figuras angelicais de um chafariz – como podemos ver nas figuras abaixo.
Seguindo seu ritual de escatológica zombaria, Bassi sobe até o último degrau do
tablado localizado ao centro do palco, e lá em cima fica a girar com os braços abertos. Do
alto de uma escada de serviço localizada ao fundo do espaço cênico, um homem joga penas
e mais penas brancas sobre o bufão. Um foco de luz ilumina o artista enquanto ele gira sobre
o próprio eixo, observando de maneira docemente irônica o efeito que as penas fazem ao
154
esvoaçar pelo espaço, grudando-se ao mel que lambuza seu corpo para criar uma figura
esdrúxula e risível.
Durante o espetáculo, Bassi concentra em sua figura o poder de provocar e
desestabilizar a assistência, assumindo posturas de autoridade sobre a plateia e a
experiência cênica. É, portanto, surpreendentemente instigante ver o bufão despido de sua
imperatividade, entregando sua corporeidade ao ato final derrisório. Aqui, ele rompe pela
última vez com o padrão de autoridade criado ao longo da apresentação, jogando o
espectador novamente nas zonas do inesperado.
Rementendo-nos a um dos princípios do realismo grotesco, Bassi opera o
rebaixamento de sua própria autoridade. Outrora detentor das potências cômicas e
racionais, capaz de conduzir a assistência e sacudi-la pelos meandros da provocação, ele
agora realiza a inversão desses processos, dando-se ao exercício derradeiro do ridículo,
transformando seu corpo em alvo de zombaria. Como um dos pombos sacrificados na
narrativa do início do espetáculo, o artista oferece o próprio corpo como território
provocativo, em nome da bufonaria, da reflexão e de seu jogo de risco e choque. Girando e
balançando os braços como um pássaro que bate as asas em pleno voo, ele parece zombar
de si mesmo e, ao mesmo tempo, da tão falada “doçura” dos palhaços.
A atuação de Leo Bassi nos coloca face
Figura 18 - Nosso bufão ao fim do espetáculo Instintos
a face com o ridículo das instituições, dos Ocultos.
costumes, do nosso comportamento como
espectadores e/ou artistas. Perspicaz e crítico,
ele termina o espetáculo num ritual de
escárnio sobre os riscos da docilização que
pairam sobre nós, palhaços contemporâneos.
Lembrando que a referida
apresentação de Instintos Ocultos fora
realizada na noite de abertura de um festival
internacional de palhaços, o ato final de Bassi Fonte: < http://www.joinmagazine.com/artes-escenicas-sin-
fronteras-2013/>. Acesso em 10 mar. 2013.
mostra-se como crítica contundente aos
155
[...] quero transmitir que existe um bem maior do que o material, que é o
bem do contato humano, de poder surpreender outras pessoas, criar
mistérios. Quero viver mais momentos assim. Se entre 150 presentes, 100
pessoas só dão risadas, outras 49 deixam o circo pensativas e apenas uma
pessoa tenha sido tocada - em sua cabeça durante muitos anos ficará a
recordação de um homem de 50 anos com gravata, que fazia coisas raras e
falava outro idioma - a mim me basta. Não necessito mais. (BASSI, 2002c,
s/p.).
Um senhor de sessenta anos sem roupa, com o corpo lambuzado e todo coberto de
penas... Bassi abre mão da dignidade e de sua autoridade para escavar lacunas ao
atravessamento dos processos transgressivos. A imprevisibilidade de suas ações caminha
125
Verso da canção Let’s Play That de Jards Macalé e Torquato Neto (1944 – 1972).
156
junto com a criticidade, gerando uma cena intensa e única, produzida por fluxos de contágio
e afetação. Colocando padrões normativos sob a ótica da dúvida e da desagregação, ele
propõe a cada espectador efêmeros exercícios de liberação contra o conformismo, na
perspectiva heterogênea de quem assume os riscos e fracassos de sua prática artística.
Pelos caminhos vou, como o burrinho de São Fernando, um pouquinho a pé
e outro pouquinho andando.
Às vezes me reconheço nos demais. Me reconheço nos que ficarão, nos
amigos abrigos, loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza e
demais vadios e mal cuidados que andam por aí e que por aí continuarão,
como continuarão as estrelas da noite e as ondas do mar. Então, quando
me reconheço neles, eu sou ar aprendendo a saber-me continuado no
vento. [...]
Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.
Fim de uma tarde de sábado. O céu começa a escurecer. Um poste antigo, com seu
abajur de metal já meio amassado pelo tempo, ilumina fracamente um palhaço solitário.
Parado, ele observa a rua vazia de uma comunidade carente, sem o movimento habitual de
pessoas caminhando, vozes de crianças, cachorros perambulando apressados ou idosos a
conversar nos portões de casa. Àquela hora do dia, o silêncio havia se instaurado pelas vielas
de terra e poeira, acompanhadas do vento da noite que se pronunciava. Observando a
luminosidade que escapava de uma porta, o palhaço podia identificar uma mulher
debruçada sobre um balcão de madeira, servindo com bebida o copo de um velho senhor
que estava sentado de costas para a rua.
Ao perceber a figura inusitada, de roupas espalhafatosas e nariz vermelho sobre o
rosto, a mulher fizera tamanha cara de espanto que, ao ver sua reação, o homem resolveu
também olhar o que havia chamado sua atenção. Nos segundos que levaram até que o
senhor se virasse completamente, demonstrando estar bêbado, o coração do palhaço
acelerou de tal forma que ele teve de se apoiar na bengala que carregava, disfarçando seu
nervosismo numa caprichada pose de apresentação.
Ao sentir que o casal o olhava fixamente do interior da mercearia, o clown solta um
sonoro e impostado “Boa noite!”, como se sua voz quisesse alcançar de uma só vez os
recantos perdidos daquelas ruas, anunciando ao mundo todo que ali chegara um palhaço.
Fitando aquela figura esdrúxula que acabara de lhe cumprimentar, o homem, do alto de sua
bebedeira, apertou os olhos e fuzilou: “Tu é muito é veado!”.
Ocorrido nos idos de 1978, este episódio126 narra um fato acontecido na primeira
atuação do palhaço Xuxu, contada em diversas ocasiões pelo artista que lhe dá vida, o ator e
126
Podemos encontrar a descrição desse evento em entrevista concedida pelo artista às pesquisadoras Beti
Rabetti, Fátima Saadi e Ângela Leite Lopes, publicada na revista Folhetim, nº 4 (1999); bem como na transcrição
da mesa Do Riso Cotidiano ao Riso da Terra, realizada em julho de 2003 no projeto O Caldo do Humor,
promovido pelo grupo teatral paulista Parlapatões.
159
diretor Luiz Carlos Vasconcelos 127. Durante três meses, o artista nos conta que se arrumava,
maquiando-se e vestindo sua indumentária clownesca – inspirada inicialmente nas vestes do
palhaço Piolin128, do qual Vasconcelos guardava fotos retiradas de uma revista antiga – para,
logo em seguida, perder a coragem de sair, desistindo da empreitada.
Contudo, naquela tarde em que ocorrera o evento supracitado, uma amiga de
Vasconcelos lhe oferecera uma carona de fusca até a entrada da favela do Roger (Paraíba),
local que ele havia escolhido para iniciar suas experiências com o ofício do palhaço. A ajuda
com o deslocamento acabara por tornar sem retorno sua primeira atuação, uma vez que não
havia mais desculpas para adiar a ação. E, depois de vários meses de expectativa, sem
nenhuma formação prévia ou experiência com a linguagem clownesca, ser recebido de
supetão por aquela reação espantada e arisca causara um choque tão grande entre o
palhaço e o casal no interior da mercearia que Vasconcelos quase perdeu as forças.
Diante da intensidade do encontro com a alteridade, esse palhaço se depara com a
imprevisibilidade da experiência cênica, capaz de desestabilizar e romper com qualquer
expectativa ou ideia preconcebida. Nascido em Umbuzeiro, no ano de 1954, interior do
estado da Paraíba, Vasconcelos crescera assistindo ao trabalho de palhaços que se
apresentavam em pequenos circos que circulavam pelos confins nordestinos, em
espetáculos que mesclavam números circenses, comicidade e apresentações de
melodramas.
As sensações de encantamento e medo provocadas pela arte clownesca são
evocadas por Vasconcelos (2005) em imagens que ele assistia ainda menino, junto de sua
mãe, como a lembrança de um número em que um palhaço acertava a cabeça do outro com
uma marreta de proporções enormes, rachando a careca do clown atingido e criando uma
fenda de onde saía fumaça. Mesmo com parcos recursos, aquelas figuras cômicas rompiam
127
Atuando, ao longo de sua carreira, como palhaço, ator e diretor, Vasconcelos recebeu diversos prêmios pela
direção do espetáculo Vau da Sarapalha, adaptação teatral de um conto de Guimarães Rosa. Já realizou
inúmeros trabalhos como ator de televisão, bem como interpretou diversos papéis no cinema, em filmes como
Baile perfumado (1996) e Abril Despedaçado (2001). Esta dissertação abordará somente o trabalho clownesco
desenvolvido por este artista.
128
Nascido na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, a 27 de março de 1897, data que serviria de inspiração à
instituição do Dia Nacional do Circo, Abelardo Pinto (1897- 1973), o Palhaço Piolin é considerado uma das
maiores figuras cômicas da história de nossos picadeiros, tendo sido ovacionado pelos artistas da Semana de
Arte Moderna de 1922. Maiores informações sobre este palhaço podem ser encontradas em Alice Viveiros de
Castro (2005) e Roberto Ruiz (1987).
160
Você sabe quando você sofre uma decepção muito grande que sua perna
perde a força? Me destruiu, me destruiu, a pose fez assim, Uóoohooo...
Nessa hora eu só tinha duas opções: ou eu corria em direção àquela favela,
ou eu corria chorando para trás, que eu sou mais propenso a voltar
chorando correndo. Mas aí eu disse nessa hora deve existir um deus dos
palhaços, porque eu tenho certeza que esse me deu um pontapé na bunda
em direção à favela: “Vai frouxo!”. (VASCONCELOS, 2003, s/p.).
clown ali, por si só, já era capaz de operar violações nos padrões normativos, escavando e
revolvendo valores, costumes e visões de mundo 129.
Figura estranha ao meio em que começava a se inserir, aquele palhaço, pelo
inusitado de sua diferença, operava, ainda que não o soubesse, redes de desagregação.
Instaurando mundos e abrindo lacunas na tessitura aparentemente estável da vida
cotidiana, o clown rompe com a perspectiva útil e funcional dos acontecimentos anódinos.
Vasconcelos (2003) nos conta que os moradores locais achavam, inicialmente, que aquele
palhaço estava ali para fazer propaganda de alguma loja da cidade. Contudo, a singularidade
de sua presença ia sendo ampliada junto às pessoas na mesma medida em que elas
percebiam que aquela ação nas ruas da comunidade não possuía função objetiva ou
utilidades delimitáveis.
No primeiro capítulo desta dissertação, vimos uma perspectiva possível sobre as
qualidades transgressoras clownescas em suas ações sutis, as quais não se dão
necessariamente em relações explícitas de força ou provocação. Ao tratarmos da mudança
de estados do clown sem justificativa psicológica, acreditamos que essa dinâmica pode criar
fissuras nas lógicas de sentido, causando estranheza e violação dos padrões. Pensando na
experiência inicial de Xuxu, podemos vislumbrar outra dimensão a esse questionamento,
quando a própria presença do palhaço pode gerar deslocamentos e desequilíbrios.
Figura geralmente associada às artes da cena, seja no teatro ou nas arenas
circenses, a transposição da atuação clownesca para espaços públicos parece-nos propiciar
uma abertura específica à criação de zonas de instabilidade. Mesmo sem qualquer ação mais
drástica além de seu tão ensaiado “boa noite”, o encontro entre a figura de Xuxu e o
ambiente daquela comunidade já era capaz de produzir intensidades desestabilizadoras.
O clown que atua em lugares públicos, como ruas, praças, hospitais, pode produzir
relações de contágio entre as instâncias da vida e da experiência artística, gerando fluxos de
afetação e atrito entre o palhaço e as regras do espaço em que ele está atuando. Não
podemos esquecer, contudo, que os locais públicos são zonas de experiência coletiva que
não oferecem àquele artista a mediação dos aparatos cênicos, o que, por um lado, é capaz
129
Resguardando-se as devidas distâncias, a atuação do palhaço em ambientes hospitalares também opera
com essa lógica, quando a presença extraordinária do palhaço é capaz de gerar atritos e experiências potentes,
em relações de aproximação e fricção com as regras disciplinadoras e padrões hierárquicos do hospital.
162
de intensificar a sua relação com a alteridade, e, por outro, pode criar fragilidades nesses
movimentos de troca.
Nos espaços públicos, os espectadores/transeuntes são de natureza dinâmica, pois
eles não se deslocaram até o edifício teatral com o objetivo de participar daquele evento
artístico, por exemplo, mas foram surpreendidos pelo inusitado da intervenção clownesca.
Logo, os vínculos do ritual cênico nesses casos são ainda mais tênues, atinentes à
efemeridade do jogo, em microrrelações estabelecidas ou não com cada
espectador/jogador. Portanto, aumentam as dificuldades e demandas em relação à atenção
e porosidade do artista.
Entendemos o espaço público a partir do conceito desenvolvido por Michel de
Certeau (1998) sobre a Cidade, a qual seria constituída não por aglomerações de pessoas ou
instituição dos poderes públicos, mas, por conjuntos de operações e adensamento de trocas
intersubjetivas. O espaço público não como território estanque, mas multiplicidade de
fluxos. Dentre essas dinâmicas, o autor afirma que alguns feixes de trocas se destacariam
como fluxos identitários daquela respectiva coletividade, construindo as noções de tradição
de uma cidade, com valores e padrões comuns a seus sujeitos. Assim, é sobre esses fluxos
“tradicionais e identitários” do lugar público que a ação clownesca pode gerar operações de
aproximação e atrito, em práticas transgressivas que desestabilizariam a normatividade
dominante.
Produzidos em diálogo com o espectador, como é próprio do palhaço, esses
processos instáveis e delicados podem desorganizar as percepções comuns – da assistência e
do próprio artista - sobre a realidade. A contaminação e as fricções geradas entre as ações
extraordinárias do clown e os fluxos identitários de determinado espaço são capazes de
operar rasgos nos limites da utilidade, nas linhas da racionalidade funcional e das lógicas de
sentido determinado.
Pensando, por exemplo, no palhaço Tomate, analisado em nosso primeiro capítulo,
este clown chama a atenção pela estranheza de sua indumentária, por suas naturezas
cômicas sarcásticas e subversivas. Como vimos, ele atua operando com o exagero, chegando
a transitar pelo campo do fantástico. Contudo, a impressão que temos é que, separado da
plateia pelo palco de tipo italiano, ele constrói sua atuação num lugar que já é dado à criação
da fantasia e do sonho, que é o edifício teatral. Mesmo operando de maneira potente com a
163
estranheza e a falta de lógicas claras imaginamos que, se ele atuasse, por exemplo, nas ruas
do Roger, ou numa praça pública, a bizarria de sua apresentação poderia ser ainda mais
ampliada, entrando em forte atrito com a ilusão de estabilidade do cotidiano.
Em relação a Jango Edwards e Leo Bassi, estes também desenvolvem ações em
espaços públicos, como é o caso dos festivais de artes de rua promovidos por Jango em
Amsterdam ou do Bassibus que prometia um passeio junto com o bufão “pelo pior de
Madri”. Pela escassez de registros das práticas desses artistas em locais públicos, nossa
dissertação optou pela análise de dois espetáculos realizados em palco italiano, os quais,
como pudemos observar, operam por si só grandes aproximações entre a comicidade e as
instâncias transgressoras. Todavia, podemos imaginar que, pelas configurações instáveis e
provocadoras produzidas por esses dois artistas, é provável que suas dinâmicas ganhem um
caráter específico e também potente ao serem realizadas fora dos edifícios teatrais.
Ressaltamos, ainda, que não objetivamos entender as atuações clownescas em
locais públicos como instâncias resguardadas das problemáticas de empobrecimento das
intensidades do clown. Conforme temos visto ao longo de nossa pesquisa, os processos de
esvaziamento das potências clownescas podem se dar no âmbito de qualquer palhaço ou
lugar em que este desenvolva suas práticas. Vasconcelos toca nessa problemática ao falar
sobre as atuações na rua: “Esse é o grande perigo: todo mundo na frente do palhaço
dizendo: Olha, me faz rir. E te infantilizam. É muito difícil lidar com isso, se manter íntegro,
cidadão.” (VASCONCELOS apud KASPER, 2004, p. 220).
Quando o espectador – ou o próprio artista – associam o clown à comicidade e ao
risível, como premissas necessárias e principais, há aqui, de certa maneira, um
enquadramento daquela figura nas zonas do “conhecido”, neutralizando as intensidades
clownescas capazes de surpreender e desestabilizar o fenômeno cênico. Nesta perspectiva
enfraquecedora, o palhaço tende a ser rapidamente entendido, interpretado e
compartimentado em noções ocas e cristalizadas que jamais poderiam dar conta da
experiência viva da atuação cênica.
As práticas transgressivas entendidas como resistência ao esvaziamento das
potências do palhaço vêm tratar também dessas perspectivas, da quebra de automatismos
em relação ao clown, quando essa figura pode ser analisada como possibilidade de abertura,
não como fechamento ou ordenação.
164
Além disso, esses embates de forças que, como dissemos, são da ordem do micro,
são capazes de operar a desestabilização das duas instâncias que comungam da experiência
cênica, ou seja, o espectador e o palhaço que atua. A ação transgressiva pode ser provocada
pelo palhaço, mas as ondas de reverberação a partir de seu gesto vão atingir tanto o
espectador como o clown.
Retomando nosso exemplo inicial, o choque ocasionado pela reação do senhor
bêbado ao provocar Vasconcelos, palhaço Xuxu em devir, destaca como a relação
palhaço/espectador cria uma área instável aos envolvidos nesse processo comunicacional.
Conforme relata esse artista (2003), com “um banho de água fria” que a agressividade do
homem causara, Vasconcelos se viu empurrado ao universo da experiência, sendo afetado e
reagindo de maneira quase irracional, contaminado pelos fluxos caóticos no quais se viu
envolvido.
O episódio nos remete às palavras de Orestes Barbosa sobre os palhaços, evocadas
por Ruiz (1987), pois, nessa primeira atuação de Vasconcelos com a linguagem clownesca,
mesmo que de forma ainda incipiente pela ausência de experiências prévias, não resta
dúvida de que, diante daquela velha mercearia, já se encontrava “Um palhaço, que é quase
sempre uma desgraça colorida.” (BARBOSA apud RUIZ, 1987, p. 92).
Infortúnio risível evocado pela frase supracitada que tanto pode ser entendido à luz
das dificuldades atinentes a essa técnica, quando o clown experimenta, na própria carne, a
dor e o desafio de trabalhar artisticamente com o erro, a inadequação, a abertura para a
diferença. Como pode também ser estendido ao âmbito dos espectadores, quando o
palhaço lhes traz a percepção de que seus entendimentos e visões de mundo foram
desarticulados, fazendo surgir o riso, mas também o incômodo, como nos parece ser o caso
do homem que tentou ofender Vasconcelos, renegando aquela possibilidade do
heterogêneo.
Experienciando em seu corpo os desafios e as dificuldades que permeiam os
processos de afetação da técnica clownesca, Vasconcelos realizou durante quatro anos suas
saídas pelo bairro do Roger, favela de João Pessoa, capital paraibana. Atuando
semanalmente nos dias de sábado, de três da tarde até às dez da noite, ele foi
estabelecendo, entre alegrias e desacertos, um aprendizado de ordem empírica acerca da
palhaçaria. Conhecendo, com o seu fazer, os meandros da linguagem clownesca,
165
130
As informações biográficas contidas neste capítulo foram retiradas de entrevistas concedidas por
Vasconcelos, elencadas em nossas Referências bibliográficas.
131
Referência ao palhaço que serviria de inspiração ao ofício clownesco de Vasconcelos, a Escola Piollin é
transferida, a partir de 1980, ao terreno de um antigo engenho de cana-de-açúcar, vizinho ao Parque
Zoobotânico da capital paraibana, ainda no Bairro do Roger, funcionando até a presente data como Centro
Cultural Piollin. Maiores informações podem ser obtidas no site do grupo: <http://www.piollin.org.br/>. Acesso
em 13 fev. 2013.
166
de roupa e entrar em cena, o que desapontava muitos da assistência que esperavam ver
aquelas figuras cômicas também durante o espetáculo.
Dessa experiência surge a ideia de Vasconcelos (2005) de iniciar suas saídas de rua
como palhaço, partindo de um desafio concreto que se apresentava aos artistas da Escola
Piollin: como potencializar a relação com aquela comunidade carente onde a sede do grupo
estava localizada? Segundo o artista, apesar do sucesso das apresentações, quando os
atores retiravam suas indumentárias e vinham cumprimentar os moradores, estes se
retraíam, olhando-os como diferentes, havendo dificuldades na comunicação de ambos os
lados.
Diante da necessidade de estabelecer redes de afetos com a população do Roger,
Vasconcelos põe em prática o projeto de sair pelas ruas da comunidade vestido de palhaço,
nos dias de sábado, sem objetivo ou função além de criar relações e fluxos de interação com
aquelas pessoas. Em entrevista à Kasper, ele afirma:
civis de Vasconcelos, para o caso de alguma “emergência real”, segundo o artista - além de
objetos como grandes agulhas de tricô que o clown utilizava para costurar de verdade
enquanto viajava de ônibus pela cidade do Rio de Janeiro.
Mantendo o ritual que criara nas atuações do bairro do Roger, ele saía do ponto de
partida, sua casa no bairro de Laranjeiras, já pronto como Xuxu, andando pelas ruas,
interagindo com os passantes, e utilizando o transporte público até chegar a seu destino
final. “Xuxu sai domingo para trabalhar”, dizia a meninada que esperava na janela para vê-lo
passar. E ele ganhava presentes, recebia correspondências endereçadas ao palhaço, cartas
escritas não só pelas crianças, mas também pelos adultos, vizinhos. Amigos e relações que
Vasconcelos (2003) ressalta, faziam parte do universo específico de Xuxu, nem sempre do
ator.
Ele lembra emocionado da figura de Seu Pereira, avô de um menino que estudava
na Escola Piollin e que nunca dirigiu a palavra ao artista nos eventos que eram realizados na
escola, mas que, todos os sábados, durante a atuação clownesca, abraçava-se a Xuxu e
chorava em seu ombro. Mesmo sabendo que Vasconcelos e Xuxu eram o mesmo ser - ainda
que em movimentos de aproximação e distância - era com o palhaço que o velho senhor se
permitia a relação de afetação.
Assim, entendemos que Vasconcelos e seu palhaço movimentam relações ligadas
ao que Cassiano Quilici (2010) chama de “arte da existência”, técnicas e práticas que
articulam o fazer artístico para além do campo estético, mas, numa perspectiva ontológica,
investigam a própria natureza do fazer e agir humanos, desvelando potencialidades.
Conforme o pesquisador nos esclarece:
decodificadas do cotidiano daqueles que estavam a sua volta. Práticas de violação que eram
capazes de movimentar as formas de relação que aquelas pessoas e o próprio artista
mantinham com seus modos de existir.
Dessa forma, pelas complexidades que opera, Vasconcelos/Xuxu foram se tornando
referência para a linguagem clownesca nacional em mais de trinta anos de atuações e
espetáculos. Do potente aprendizado das práticas e saídas de rua vem grande parte do
repertório de números apresentados pelo artista em Silêncio Total! Vem chegando um
palhaço, a ser analisado a seguir. Investigaremos, nas próximas páginas, alguns dos afetos e
intensidades que entendemos presentes no trabalho clownesco de Vasconcelos, desejando
pensar como se dão as especificidades que este palhaço apresenta em relação às práticas
transgressivas.
Os números cômicos que compõem Silêncio Total! Vem chegando um palhaço 132
são permeados pela realização de técnicas circenses, como o monociclo e o equilíbrio de
objetos, bem como por apresentações musicais, quando ele toca seu fole de oito baixos.
Contudo, uma das grandes particularidades do espetáculo refere-se à participação de
crianças da plateia como necessárias à execução dos números cômicos, relações que criam
riscos e espaços de instabilidade ao próprio Xuxu, como veremos a seguir.
Já nos primeiros momentos da obra, quando o clown surge no meio da praça,
conversando com os espectadores, ele se apresenta de uma forma muito peculiar, sendo
galante com as mulheres e rude com os homens. O palhaço arruma seu cabelo (uma peruca
utilizada pelo artista), pergunta se está bonito, e conversa com algumas mulheres da
assistência como se as estivesse cortejando133.
132
Este capítulo se referirá à apresentação realizada no dia 11 de maio de 2012, no Largo do Machado, Rio de
Janeiro. Esta dissertação não obteve acesso ao registro videográfico do espetáculo. No DVD em anexo constam
três vídeos de trechos de atuações de Xuxu retiradas da WEB. Não nos foi possível reunir todas as cenas citadas
neste capítulo.
133
É curioso lembrar a agressão sofrida por Vasconcelos questionando seu gênero em sua primeira atuação,
ainda na década de 1970, e observar como, no decorrer dos anos, ele se tornara um palhaço que mantém uma
relação muito particular com relação ao sexo feminino. A força daquela experiência inicial parece ter
170
influenciado sobremaneira o modus operandi desse clown, reverberando até os dias de hoje, como se o
“afeminado” tivesse respondido àquela provocação tornando-se um galanteador das mulheres.
171
Foi muitos anos depois de já estar fazendo o palhaço que eu, um dia, numa
sessão de terapia, disse: “Não! Mas sou eu!” quer dizer, tudo aquilo é meu.
Eu sempre achei que era do personagem, aquela vaidade toda, aquela
violência, aquela agressão com as pessoas, e levei muitos anos para
entender que não, aquilo sou eu na minha essência. Toda aquela
estupidez... E talvez seja essa a resposta... Talvez Xuxu funcionasse por isso,
porque era verdade, eu não estava inventando nada. (VASCONCELOS, 2003,
s/p.).
É curioso notar que as palavras supracitadas foram proferidas pelo artista numa
mesa redonda realizada no ano de 2003 e, nove anos mais tarde, ao apresentar o espetáculo
que estamos analisando, as questões relativas à agressividade de Xuxu ainda são capazes de
surpreender e perturbar Vasconcelos. No exemplo investigado, a menina invade a cena e
corre para junto do palhaço, e este reage ao evento, não a acolhendo, mas recuperando seu
espaço de atuação. Ao indagar à garota quem havia lhe chamado até ali, sua ação não foi
173
exagerada, ou excessivamente rude, mas representou uma recusa que foi suficiente para
causar o choro na criança. A assistência não se ressentiu ou desestabilizou com o
acontecimento, mas o artista sim.
Os fluxos de afeto entre Vasconcelos e seu palhaço são de tal dinamismo que as
lógicas clownescas de Xuxu acabam por desestabilizar ao próprio artista, violando, talvez, as
suas concepções de mundo. Embora utilize o termo “essência” ao tratar de características
como violência, vaidade e agressividade, podemos entender que esses movimentos internos
não constituem para Vasconcelos um núcleo interior delimitado e limitante, mas, ao
contrário, constituem intensidades que irrompem com a potência desnaturalizadora do
“Outro que há em mim”.
Frédéric Gros discorre sobre as principais perspectivas abordadas por Michel
Foucault em seu curso no Collège de France, no ano de 1982, e que daria origem à obra A
Hermenêutica do Sujeito (2006). Um dos pontos levantados por Gros diz respeito à noção de
daímon, evocada também em outras obras do filósofo 134 como uma espécie de divindade
interior à qual deveríamos respeitar. Este conceito traz a imagem de um sujeito dentro do
sujeito, estando em nós como um outro, corte do eu para consigo. Assim, haveria uma
alteridade dentro de nós mesmos, constituída como o Outro que habita em mim, e que é
capaz de desarticular e criar instabilidades em relação as nossas representações identitárias.
A própria trajetória de Vasconcelos com a palhaçaria nos dá pistas de que Xuxu
transita por aberturas à alteridade, porém, o que nos aparece no exemplo analisado é que o
artista se sente desestabilizado ao se deparar com a própria alteridade de si mesmo. Em
micro situações como essa, em que, por exemplo, a rudeza espontânea do palhaço eclode
sem pedir licença, Xuxu parece dar corpo a esses outros de si, lançando Vasconcelos em
territórios desconfortáveis de incertezas e desorganização.
Parece-nos que as práticas transgressivas ocorrem aqui numa configuração diversa
das que investigamos até agora em nossa dissertação, quando o jogo de limites e violações
ocorre por choques e reverberações do desconhecido no interior do próprio palhaço.
Pensando no trabalho dos outros artistas investigados, Jango Edwards e Leo Bassi, estes se
mantém em constante relação com a plateia, tensionando as instabilidades dessa ligação,
134
Foucault cita o conceito de daímon em A Hermenêutica do sujeito (2006), bem como em O Governo de si e
dos outros (2010).
174
Parece que sem um ‘espaço’, sem uma certa ‘distância’, não há como
acolher ou aproximar-se da alteridade, mesmo do que podemos
experimentar como nossa própria alteridade, ou seja, aquilo que é
desconhecido em nós. Sem essa distância, o corpo do ator transforma-se no
que venho experimentando chamar de um ‘corpo-imã’ e todos os eventos e
acontecimentos são lidos a partir da sua personalidade já conhecida, são
rapidamente anexados a sua ‘pessoalidade’. O ator acredita-se único
produtor e beneficiário preferencial dos acontecimentos [...] (MOTTA LIMA,
2009, p. 32).
Podemos notar que essa busca por aderência parece ser um dos objetivos dos
processos que utilizam o clown como “descoberta de si”, em tentativas de justaposição
entre palhaço e intérprete, como se uma instância constituísse reflexo inequívoco da outra,
o clown como meio de expor ao mundo meu ‘eu-essência’. Esses processos de construção da
interioridade como representação identitária essencial, em nossa visão equivocados,
acabam por esvaziar a potência vibrátil dessa técnica.
Uma das grandes complexidades e belezas da arte clownesca reside nas práticas de
proximidade e distância entre o artista e os “outros de si” que o clown pode tornar
subitamente visível, como Vasconcelos nos permite perceber. Continuum de sensações que
atravessam o intérprete e violam seus trajetos internos, suas percepções comuns,
permitindo que as intensidades transgressivas criem lacunas, porosidades que não serão
interrompidas ou tomadas para si como pontos de apoio, mas vivenciadas na passagem dos
176
135
Carregando traços de pureza romântica e sentimental, o Pierrô ou Pierrot é uma personagem da Commedia
dell’arte, variação francesa do Pedrolino italiano, criado apaixonado pela jovem Colombina. Pelo amor não
correspondido, esta personagem é identificada com ideias líricas e romantizadas e geralmente se apresentava
com a face pintada de branco.
Fonte: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=pierr%25C3%25B4>. Acesso em 11 jul. 2013.
177
Devemos atentar, porém, para a ressalva de Castro (2005) ao destacar que esse
esquema da dupla de palhaços não deve servir para simplificar de maneira dicotômica uma
relação que, ao longo dos séculos, mostra-se complexa e fluida, repetindo e transformando
de maneira criativa piadas, gags, números cômicos e mesmo as indumentárias que
compõem a palhaçaria. Esta dissertação entende branco e augusto não como tipos fixos,
mas como duas qualidades de jogo e atuação que são moventes e podem se alternar na
figura de um mesmo palhaço. Essa ambiguidade está presente no próprio Xuxu, não estando
solucionada de maneira inequívoca, pois, segundo as palavras de Vasconcelos (2007, s/p.):
Assim, o palhaço Xuxu transita pelas duas qualidades de jogo cômico, seja como
branco, quando tenta organizar e submeter à assistência, chegando a exigir por inúmeras
vezes que os espectadores façam “silêncio total”; seja como augusto, quando, por exemplo,
apresenta imensa dificuldade e desequilíbrio até conseguir subir no monociclo utilizado em
um dos números. Contudo, achamos curioso que Vasconcelos identifique seu jogo
clownesco primeiramente com o estado do augusto e que o branco apareça, em sua opinião,
como contraponto cômico – conforme podemos ver nas partes grifadas da fala supracitada.
Analisando as ações de Xuxu, a maneira como ele se dirige à plateia, a vaidade com
que se apresenta, perguntando diversas vezes se está bonito, bem como a aptidão com que
toca seu fole de oito baixos, e, sobretudo, a forma agressiva como controla e manda em seus
136
Bolognesi (2003) esclarece que o Toni é um palhaço que, durante os espetáculos circenses, fica a postos
para entrar em cena e improvisar, a qualquer momento, para ocupar algum intervalo de tempo ocasionado por
atraso entre uma atração e outra ou qualquer outra falha. Mas, segundo as palavras de Vasconcelos, podemos
perceber que este artista entende o termo Toni como uma designação similar a augusto.
178
auxiliares de palco, geralmente crianças, entendemos aqui que suas qualidades de ação são
eminentemente as de um clown branco. Colocando, assim, seus espectadores na situação de
augustos, ocupando a função de sua dupla.
De acordo com a constituição movente das duas categorias, parece-nos que este
palhaço também transita pelo augusto, mas, é quando tenta dominar o barulho de uma
plateia em polvorosa ou controlar uma criança atarantada na função de ser sua assistente
que Xuxu expõe uma das grandes contradições cômicas do clown branco.
O branco tenta exaustivamente organizar e estabilizar, conforme a sua vontade, o
fluxo da vida que é por si só cheio de instabilidade e movimento, o que restará fatalmente
em fracasso. E nada mais enlouquecedor e risivelmente ridículo do que um palhaço
exercitando a qualidade de branco diante de uma imensa plateia de risonhos augustos,
solícitos em ajudá-lo da forma mais atrapalhada, como ocorre com Xuxu ao longo do
espetáculo.
Dessa forma, em grande parte da apresentação, podemos ver que o espectador,
mais do que assistir, acaba fazendo as vezes de dupla a este palhaço, o que acarreta a
surpresa e a incerteza de trazer o outro para o interior da experiência cênica. Apesar de o
espetáculo possuir uma estrutura predeterminada, com cenas previamente ensaiadas pelo
artista, essa abertura à participação da plateia nos remete à instabilidade e ao caráter
improvisacional que as saídas de rua de Xuxu assumiam, criando lacunas e conexões de
afeto.
Num de seus números mais conhecidos137, este palhaço chama à cena a
participação de uma criança, a qual deve possuir “cinco anos. Nem mais, nem menos!”. Após
a escolha do ajudante, Xuxu lhe dá um microfone e pede que o pequeno segure o objeto,
acompanhando, de perto, os movimentos do fole, a fim de que todos possam ouvir a
melodia executada pelo clown. Este começa a tocar o instrumento com o menino a segui-lo,
até que o palhaço passa a demonstrar grande empolgação pela música. Xuxu chega a subir
na cadeira enquanto toca o fole, o que causará problemas a seu auxiliar infantil, devido à sua
baixa estatura - conforme vemos na imagem abaixo - despertando o riso da assistência.
137
No DVD em anexo há um registro videográfico deste número, realizado não na rua, mas num teatro. Não
encontramos informações sobre a apresentação ou a data da filmagem. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=EI_vmQVJyoU>. Acesso em 04 jun. 2013.
179
Solicitando a participação de dois meninos da plateia, desta vez com idade de cerca
de dez anos, Xuxu já inicia o número mostrando a um deles duas capas de chuva, uma
amarela e a outra azul, perguntando-lhe qual cor ele prefere. O garoto diz que quer a capa
azul e o palhaço lhe entrega a amarela, dizendo: “Toma a amarela pra você aprender que na
vida nem tudo é como a gente quer!”. O clown deu a capa azul para o outro menino e pediu
que eles vestissem, pois aquela seria uma proteção necessária à cena.
Ele pega então seu monociclo e pede a ajuda dos dois assistentes de palco para
conseguir subir e sentar no selim. Ele vai escalando o aparelho circense, tentando se
equilibrar desajeitadamente, segurando no topo da cabeça dos garotos, sem nenhuma
cerimônia ou delicadeza. Por vezes parece que o palhaço e seus ajudantes estão prestes a
cair, mas, por fim, Xuxu consegue manter-se no alto do monociclo. Ele pede uma garrafa de
água e um copo que estavam na lona que lhe serve de palco e inicia um jogo em que cada
vez que se vira para a esquerda para dirigir a palavra a um dos meninos, molha o outro que
está a sua direita, e vice-versa.
Mesmo usando as capas de chuva, logo os dois garotos ficarão encharcados de
água. Sem saber o que fazer, eles olham para suas mães, que estão na plateia, e tentam se
esquivar dos jatos, mas a cada vez chega um novo golpe do líquido, atingindo seus rostos,
seus cabelos, braços, troncos, ensopando suas roupas, para o desconforto dos meninos e o
riso da plateia. Mais uma vez a comicidade vem das dificuldades enfrentadas pelas crianças
em contraponto ao jeito ríspido e impositivo de Xuxu, que tenta manter a ordem em meio
àquela situação caótica.
Chama-nos a atenção a escolha de Vasconcelos sobre a participação de crianças
como ajudantes de palco. Aproximando-se da lógica física clownesca, através da qual,
segundo Puccetti (2009), o palhaço sente, pensa e se comunica por meio de sua
corporeidade, as crianças dos dois exemplos supracitados deixavam impressas em seus
corpos as dificuldades e sensações de desconforto ocasionadas pelas ações de Xuxu. Assim,
palhaço e criança interagiam como se fizessem parte do mesmo mundo, “realidade”
permeada por desequilíbrios e surpresas.
Ademais, num primeiro momento, a postura de autoridade desse palhaço parece
ser suficiente para lidar com seus ajudantes infantis, colocando-os nas funções necessárias à
realização da ação pretendida. Todavia, não podemos esquecer que o espectador infantil
181
Por fim, vamos tratar da experiência pedagógica vivenciada pelo autor desta
dissertação, em maio de 2012, ao realizar uma oficina de palhaçaria ministrada por
Vasconcelos. Atividade da Eslipa138, o workshop teve duração de quatro dias, sendo
encerrado com uma saída 139 de palhaços, realizada no bairro do Cosme Velho, Rio de
Janeiro. Nas próximas páginas abordaremos alguns pontos que entendemos como atinentes
à nossa investigação, focando nossas reflexões no evento que marcaria o final da vivência
pedagógica guiada pelo artista.
Como temos visto, a rua foi e tem sido um grande espaço de experimentação à
técnica clownesca de Vasconcelos, território onde ele pode experienciar a intensidade da
138
Eslipa – Escola Livre de Palhaços, projeto coordenado pelo Grupo Off-Sina, companhia teatral sediada no Rio
de Janeiro e que se dedica à pesquisa do circo-teatro.
139
Segundo Burnier (2001), uma saída clownesca constitui-se numa intervenção pública do clown em lugares
como ruas, praças, feiras, terminais de ônibus... Geralmente improvisada, ou com a apresentação de alguns
números já preparados, a saída tem como objetivo principal trabalhar a relação entre o palhaço e os
transeuntes, o ambiente e os diversos estímulos presentes no cotidiano daquele espaço.
182
Vou contar só esse episódio aqui para ilustrar como o palhaço pode ser
tonto, estúpido mesmo, por não respeitar um rito de se deixar conhecer.
Como é que ele joga? E aí quando se estabelece, quando entendem a
natureza dessa criatura que entrou aqui, o jogo está permitido. Mas
enquanto isso não acontecer, você não pode fazer isso assim de cara sem
que a pessoa entenda como você vê o mundo. [...] depois que fizemos o
espetáculo, saímos para uma passeata pela rua [...] saindo do CCBB141,
eufórico, o povo atrás, eu encontro um meninote de uns nove anos, assim,
pela frente, e, instintivamente, pego minha bata 142 e bato na cabeça do
menino, que se assusta e... eu bato em mim mesmo, tentando reverter o
processo e saio dali. Não dou dez passos, levo um “telequete” assim, nas
costas. E eu saio ciscando, quase quebrado pela coluna, assim. Que eu me
viro, quem? Quem? Quem? O moleque que eu dei a batada na cabeça. Foi a
140
A narrativa deste acontecimento está presente na transcrição da mesa Do Riso Cotidiano ao Riso da Terra
(2003) e também foi mencionado por Luiz Carlos Vasconcelos durante a oficina em questão.
141
Centro Cultural Banco do Brasil.
142
Segundo explicação do próprio Vasconcelos (2003), bata é um instrumento muito utilizado pelos palhaços
de circo, composto por duas tábuas de madeira juntas, no formato de um porrete. A batida deste objeto na
cabeça de alguém, por exemplo, faz ressoar um grande estalo ocasionado pelo tilintar das madeiras, dando a
ilusão de que o impacto foi forte ao ponto de ter ferido verdadeiramente a vítima. No DVD em anexo há uma
cena em que Xuxu canta uma melodia junto com a plateia, utilizando sua bata na cabeça de alguns
espectadores. Esta cena não foi realizada pelo palhaço na apresentação de 11 de maio de 2012 a que este
pesquisador assistiu, mas decidimos incluí-la como exemplo da utilização pelo palhaço do elemento cênico
citado.
184
143
Nome do palhaço do autor desta dissertação.
144
Chulas são músicas de perguntas e respostas cantadas pelos palhaços nos circos brasileiros. Castro (2005)
transcreve algumas chulas na obra citada nesta pesquisa.
186
voltar, afinal, ainda havia tanto a descobrir! Mas, subitamente, o pavor de se perceber
sozinho na praça, no meio de toda aquela imensidão, fez com que ele apressasse o passo,
seguindo os sons da cantoria que já estavam longínquos.
Chegando à esquina da rua em que deveria entrar, lá estava a vendedora de cangas,
junto a outros ambulantes que percebiam o atrapalhamento de Zeca e indicavam: “Eles
foram pra lá! Por ali!”. Assentando com a cabeça em agradecimento, o palhaço olhou pela
ultima vez para eles e seguiu seu trajeto final, mas ainda teve tempo de ouvir a mulher
perguntando a um dos rapazes que estava ao seu lado: “Será que ele vai conseguir chegar?”.
Não temos a pretensão de afirmar que essa foi a descrição de uma experiência
transgressiva, sobretudo porque, ao chegar às últimas páginas de nossa pesquisa ainda nos
restam muito mais especulações e incertezas do que caminhos definidos. Contudo, na
opinião deste autor-palhaço, esse foi o momento mais importante de toda a rica experiência
daquela saída clownesca.
Retomando as palavras de Leo Bassi sobre a potência da técnica da palhaçaria na
criação de mistérios, entendemos que, na relação entre o palhaço e a vendedora, houve
espaço para a instauração do mistério. De onde veio aquele ser excêntrico? Para onde iria?
Será que conseguiria realmente chegar? Chegar aonde? Incertezas sem respostas claras que
instigavam o olhar daquela mulher, sem que ela pudesse enquadrar aquela figura excêntrica
em instâncias conhecidas, contrariando a organização cotidiana funcional.
Acreditamos que o encontro com o desconhecido, esse território do não saber
também é capaz de desestabilizar a ordem, de criar fissuras na tessitura aparentemente
lógica e funcional da vida cotidiana, produzindo outras realidades, outros mundos
destoantes daquele que nos é familiar. A ausência de função clara sobre a presença do
palhaço naquele espaço, as zonas de indefinição e instabilidade, quem sabe tenham sido
capazes de abrir, na efemeridade da prática artística, espaços para o heterogêneo, para a
relativização e atravessamento de normas e padrões. Nas palavras do escritor e filósofo Luiz
Fuganti145 acerca da criação propiciada pelo clown:
145
Fuganti também integrou a mesa Do Riso Cotidiano ao Riso da Terra, promovida em 2003 pelo grupo
Parlapatões, compartilhando com Luiz Carlos Vasconcelos, seu companheiro de debate, reflexões sobre o riso e
a arte clownesca.
188
[...] você está ali sem nenhuma proteção. Você está aberto ao acaso. Você
está aberto às misturas. E a coragem, ela vem de onde? Ela vem
exatamente de sinalizações da própria relação. Existe algo que te diz. Existe
algo que te atravessa. E esse algo, ele tem consistência, ele tem espessura,
ele tem realidade, mesmo que você não veja. Mesmo que ele seja
inexistente. Ele é real sem existir. Ele é uma presença. Ele é o virtual. É
exatamente essa a potência do artista. (FUGANTI, 2003, s/p.).
Cultivemos o riso contra as armas que destroem a vida. O riso que resiste
ao ódio, à fome e às injustiças do mundo. Cultivemos o riso. Mas não um
riso que discrimine o outro pela sua cor, religião, etnia, gostos e costumes.
Cultivemos o riso para celebrar as nossas diferenças. Um riso que seja como
a própria vida: múltiplo, diverso, generoso.
146
Carta redigida por diversos palhaços durante o evento O Riso da Terra. No DVD em anexo há um vídeo de
Xuxu recitando o texto em questão.
Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir
mais que um andarilho sobre a Terra – e não um viajante que se dirige a
uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos
para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o
coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de
errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. Sem dúvida esse
homem conhecerá noites ruins...
147
Podemos encontrar em Chevalier (2012), a descrição de práticas e perspectivas simbólicas envolvendo a
encruzilhada em várias culturas distintas.
192
reduzindo suas potências de afirmação da própria vida. Assim, vemos empobrecer a força
provocadora de sua comicidade. As obscuridades do indivíduo, como a agressividade, a
provocação e a crueldade, características capazes de instaurar uma experiência cênica
desestabilizada e incerta, vão sendo deixadas de lado, dando lugar a palhaços incapazes de
mobilizar ou gerar fluxos de afetos e estranhezas no jogo com o espectador.
Os palhaços que recaem na docilização tornam-se figuras obedientes, submetidas,
úteis às normas e aos padrões do “politicamente correto”. Nesse contexto, a experiência da
diferença vai sendo perdida na palhaçaria, que vai se tornando cada vez mais apreendida e
conformada, ligada aos mecanismos de sujeição e às ilusões de representação identitária.
Dessa forma, pudemos verificar que nenhuma instância da arte clownesca está
resguardada do enfraquecimento proveniente da docilização, esta podendo ocorrer
independentemente dos locais onde se dê a atuação do palhaço, seja no circo, no teatro ou
na rua. As complexidades dessa diminuição de intensidades afetam, inclusive, as práticas
pedagógicas relacionadas à palhaçaria.
O clown possui um caráter pessoal e autoral, vinculado às fragilidades do
intérprete, à ampliação dos seus defeitos e inadequações, na investigação de naturezas
cômicas que apontam para a hilaridade do próprio homem e das ordens sociais. Contudo,
em nome dessa pessoalidade, por vezes os processos de formação no âmbito da técnica
clownesca acabam por ser direcionados a perspectivas funcionais, na busca por um ‘eu-
essência interior’ que será revelado como a expressão da porção mais autêntica daquele
indivíduo, sua suposta “verdadeira” natureza. O indivíduo objetiva, então, uma aderência a
esse “dentro” através das práticas com o palhaço, neutralizando as potências da
instabilidade.
Esse esforço de descoberta de uma interioridade ocasiona um processo de
limitação dessa figura cômica, enfraquecendo suas intensidades relacionais pela
determinação de características fixas e identitárias – “o meu palhaço é tímido ou agressivo
ou arrogante, pois, na verdade, eu sou...”. Portanto, as investigações e o exercício sobre as
práticas transgressivas na arte clownesca assumem um potencial de resistência necessário à
problematização dos processos de banalização e esvaziamento que incidem sobre esta
técnica.
193
Pudemos identificar que esta figura cômica abre ao intérprete cênico fissuras
capazes de gerar fluxos de afetos e intensidades. Entrando em contato com dinâmicas de
composição e decomposição, o palhaço vive no (e do) encontro com a alteridade,
experimentado através de instabilidades. Dessa forma, os potenciais transgressivos
clownescos assumem um caráter de criação artística, de abertura à experiência, de exercício
de violação das identidades que assujeitam e conformam o próprio palhaço e também seu
público.
Devemos lembrar, ainda, que o tensionamento entre as qualidades transgressoras,
bem como os perigos que rondam seu esvaziamento constituem um jogo de forças que é
inerente à arte da palhaçaria, e que nunca estará definitivamente resolvido, o que aumenta
ainda mais a necessidade de estudos e reflexões sobre o tema.
Ademais, uma das configurações mais interessantes que encontramos a respeito
das dinâmicas transgressivas diz respeito à relação entre a palhaçaria e a dúvida. O risível do
palhaço como mecanismo criador de incertezas questionadoras, pulsão desestruturadora da
rigidez de normas e valores. A investigação desses processos de violação e seus limites se
dará no corpo de cada artista, processo que é gerado e, ao mesmo tempo, cria a própria
maneira como aquele indivíduo entende e vê o mundo. Logo, a pessoalidade do palhaço e a
dimensão autoral desta técnica carregam um chamamento à responsabilidade daquele
artista, em vínculos éticos - no sentido foucaultiano – de criação de modos de existência e
potencialização de singularidades.
Pensando nas intensidades que perpassam a arte clownesca, adentramos no
universo dos artistas Jango Edwards, Leo Bassi e Luiz Carlos Vasconcelos, objetivando
analisar, a partir de registros de suas atuações, como ocorrem maneiras possíveis de dar
corpo à passagem das dinâmicas transgressoras na efemeridade da prática cênica.
Pudemos observar no palhaço norte-americano Jango Edwards que ele amplia o
campo de ação da palhaçaria, esta sendo compreendida não somente como uma técnica,
mas como modus vivendi. Evidenciando o caráter pessoal do palhaço, Jango defende que
não há diferença entre o clown e o indivíduo que lhe dá vida, o que ocorre é a ampliação
daquelas naturezas cômicas já existentes – e não de uma essência identitária - tendo em
vista a comunicação entre essa figura e os espectadores.
194
Processo comunicacional que, segundo ele, envolve duas dimensões, quais sejam
fazer rir e aguçar as percepções críticas da assistência, expondo, através da atuação
clownesca, normas e eventos cotidianos capazes de instaurar um espaço de reflexão junto à
plateia. Segundo esse artista, o palhaço possui a capacidade de desafiar comicamente
instituições e fatos que precisam ser repensados e, talvez, alterados.
Analisamos as potências transgressivas de Jango Edwards à luz das matrizes
grotescas, como a materialidade corpórea desviante, os jogos de exagero e a inversão dos
padrões. Operando temas como a escatologia, a celebração festiva da comicidade e a
repulsa, esse artista envolve a audiência numa experiência cênica que gera riscos e
instabilidades. Utilizando-se de recursos como à quebra de organizações de sentido e lógica,
invasões repentinas do espaço do espectador, e paródias de rituais religiosos e de
mecanismos de disciplinarização do corpo, ele consegue tirar a assistência de zonas de
conforto, provocando uma cena inconstante e arriscada.
Leo Bassi, por sua vez, também privilegia práticas cênicas desestabilizadoras,
criando suas provocações a partir de jogos que evocam o medo e a razão da plateia. Este
bufão franco-italiano se apresenta de maneira não convencional, geralmente de terno e
gravata, objetivando exacerbar o contraste entre sua aparência formal e suas ações ridículas
e provocativas. Ele não perde, contudo, os traços comportamentais e ideológicos que
caracterizam a bufonaria, como a comicidade ácida e agressiva, capaz de expor vicissitudes e
zombar das porções degradadas do homem e das instituições.
Os processos transgressivos gerados por Bassi identificam na palhaçaria um
potencial político que pode olhar de maneira tanto mordaz quanto derrisória para a vida
cotidiana. São ações cuja intensidade crítica nos remeteu à parrhesía, noção desenvolvida
por Foucault, uma prática que envolve o “franco falar” e traz riscos àquele que fala,
objetivando a melhoria dos sujeitos envolvidos na comunicação. Assim, seriam criadas, por
meio do uso da razão, aberturas a novos discursos dotados de autonomia e dirigidos à
liberdade.
Como vimos, uma das estratégias utilizadas por Bassi para criar instabilidades
transgressoras reside na condução da assistência a determinado tipo de atmosfera ou
situação, para logo romper as expectativas e entendimentos que vinham sendo construídos
pela plateia. Revelando os mecanismos que estavam por trás do evento, ele nos faz reavaliar
195
intérprete como do espectador, numa perspectiva ética ligada ao próprio êthos, como
qualidade de transformar o modo de ser de um indivíduo.
Assim, longe de encerrar as investigações acerca de nosso tema e seus meandros, a
presente dissertação buscou a criação de aberturas e aproximações em relação ao palhaço e
suas intensidades transgressivas. Terreno de investigação que se mostra fundamental às
artes da cena, e que, por sua complexidade e amplitude, merece ser contemplado por novos
estudos.
Observando criticamente nosso processo de escrita, identificamos que o próprio
tema desta pesquisa parece ser, ao mesmo tempo, a maior força e a maior dificuldade da
nossa dissertação. O vigor dessa empreitada reside, entre tantas perspectivas possíveis, na
atualidade e importância da temática das práticas transgressoras clownescas frente aos
processos de esvaziamento a que a palhaçaria contemporânea tem sido exposta, bem como
na capacidade que as intensidades transgressivas possuem de gerar fluxos desagregadores e
instáveis no próprio fenômeno cênico.
Por outro lado, este campo de pesquisa também se mostrou como um fator que
dificultou a nossa escrita. A problematização filosófica do tema, indispensável a estas
reflexões, abriu espaço para inumeráveis perspectivas e diversos autores, e, assim, a opção
por nossos interlocutores representou um intrincado jogo de escolha e de renúncia. A cada
filósofo eleito tivemos de abrir mão de toda uma gama de outros pensadores que também
traziam visões interessantíssimas que poderiam ser friccionadas com nossa temática – o que
reforça a grande abertura do tema e demanda novas investigações.
Por admiração artístico-intelectual, afinidade de ideias e por acreditarmos que para
falar de transgressão e subjetivação não poderíamos deixá-los de lado, escolhemos nos
aproximar de alguns pontos abordados por Friedrich Nietzsche e Michel Foucault. E esse
avizinhamento, por mais ínfimo que tenha sido em comparação ao universo de criação dos
referidos autores, já foi capaz de abrir mundos em nosso percurso, por vezes gerando atritos
de difícil apreensão.
Além disso, o caráter movente e variável das composições desejantes que
constituem as práticas transgressivas clownescas também se configurou como fator de
dificuldade em nossa trajetória, muito mais pautadas pela dúvida do que pela total clareza
de caminhos. Contudo, diante dessa condição errante encontramos uma das perspectivas
198
particularidades e potências geradas por esse bufão nos parece um fértil e complexo campo
de investigação.
Dessa forma, entendemos que esta conclusão-encruzilhada se constitui não como
um fim, mas, antes, como um chamado para irmos mais além. Assim, desejamos finalizar
nossa escrita evocando a imagem que Chevalier (2012) nos traz, ao destacar que, em muitos
contos que ressaltam a força simbólica do encontro dos caminhos, a própria configuração da
encruzilhada desaparece após a passagem do andarilho, com a certeza de que, logo adiante,
novos cruzamentos se formarão. Caminhemos!
200
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