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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS - PPGAC

Andre Luiz Rodrigues Ferreira

PALHAÇO E TRANSGRESSÃO:
percursos, atravessamentos e reflexões

Rio de Janeiro
2013
André Luiz Rodrigues Ferreira

PALHAÇO E TRANSGRESSÃO:
percursos, atravessamentos e reflexões

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas do Centro de Letras
e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (PPGAC/UNIRIO) como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Artes Cênicas.

Orientadora: Profᵃ Dra. Tatiana Motta Lima

Rio de Janeiro
2013
PALHAÇO E TRANSGRESSÃO:
percursos, atravessamentos e reflexões

André Luiz Rodrigues Ferreira

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Artes


Cênicas junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Centro de Letras e Artes
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGAC/UNIRIO).

Banca Examinadora:

Orientadora: _____________________________
Profᵃ Dra. Tatiana Motta Lima
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Membro: _____________________________
Profᵃ Dra. Ana Achcar (Ana Lucia Martins Soares)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Membro: _____________________________
Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Membro: _____________________________
Profᵃ Dra. Nara Keiserman
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Rio de janeiro, ____ de ________________ de 2013.


À Lurimar pelo amor
incondicional.
AGRADECIMENTOS:

À Profᵃ Dra. Tatiana Motta Lima pela delicadeza no processo de orientação, pelo apoio e
incentivos constantes e por me contagiar com o exercício da dúvida desde o primeiro
encontro.

À Profᵃ Dra. Ana Achcar por ter aberto para mim as portas da técnica clownesca, guiando-me
com força e carinho pela difícil arte de perder(-se) e achar(-se) exigida pela palhaçaria. Ainda
um agradecimento especial pela contribuição dedicada e fundamental a esta dissertação
quando de sua qualificação, bem como de sua defesa.

Ao Prof. Dr. Cassiano Quilici, à Profᵃ Dra. Nara Keiserman e à Profᵃ Dra. Juliana Jardim
Barboza pelo interesse e a competência com que honram a leitura deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Walder Virgulino pelas críticas valiosas e necessárias na banca de qualificação.

A Leo Bassi pela generosidade em autorizar o acesso deste pesquisador aos registros do
espetáculo Instintos Ocultos, bem como pela inquietação que só os grandes artistas
possuem.

A Luiz Carlos Vasconcelos e Jango Edwards por constituírem grande fonte de inspiração.

A João Artigos, Shirley Britto e Zuza do Teatro de Anônimo pela ajuda e boa vontade em
disponibilizar registros videográficos de suma importância a esta pesquisa.

A Wilson Mendes pelo companheirismo e apoio de sempre.

Às amigas atrizes e palhaças: Letícia Medella, Luiza Debritz, Anna Terra Saldanha, Mariana
Fausto, Bel Flaksman e Patrícia Ubeda, por dividirem comigo momentos de alegria e angústia
durante o trabalho cotidiano com a palhaçaria, e por me ensinarem sempre.

À turma de 2011 do curso de Mestrado da Unirio pela capacidade de saber que o


conhecimento também se produz com companheirismo e boas risadas.

Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC/UNIRIO) e toda sua equipe de


professores e funcionários por acolherem esta pesquisa.

À Capes pela bolsa concedida para realização da pesquisa.


RESUMO

Este trabalho desenvolve reflexões sobre os fluxos de afetação e contágio entre a


atuação do palhaço e as intensidades transgressivas que a permeiam. Por sua inadequação,
o clown é capaz de operar aberturas possíveis à experiência da diferença, violando a ordem
estabelecida pelos padrões normativos. Todavia, inserido em processos de domesticação e
docilização do riso, assistimos ao esvaziamento das potências clownescas, o que nos faz
deparar com uma constatação: cada vez mais os palhaços incomodam menos. Assim, a
presente dissertação investiga relações possíveis entre o jogo clownesco e os processos de
transgressão, pensando este termo não como uma categoria estanque, mas como lente
multifacetada, espécie de conceito “guarda-chuva” capaz de gerar focos moventes sobre a
técnica clownesca. Além disso, a pesquisa examina como ocorrem as problemáticas de
enfraquecimento do vigor na palhaçaria contemporânea. Este trabalho dialoga com as
práticas de três artistas, Jango Edwards, Leo Bassi e Luiz Carlos Vasconcelos, palhaço Xuxu,
cujas atuações tensionam e problematizam, cada um a sua maneira, as qualidades
transgressivas. A dissertação realiza um percurso de buscas e atravessamentos partindo da
análise de registros videográficos de apresentações dos palhaços supracitados, bem como
do estudo de entrevistas e escritos dos próprios artistas, articulando teoria e prática como
formas complementares e não excludentes da pesquisa em arte, onde a cena pode iluminar
ou, ao contrário, desestabilizar as construções teóricas e vice-versa. Este trabalho se insere
num campo de experiência sobre a linguagem clownesca e os jogos de força que a
constituem, contribuindo para as discussões e ações produtoras de conexões e impulsos
desejantes a partir da técnica do palhaço.

Palavras-chave: Palhaço. Transgressão. Formação do Ator. Técnicas de Criação.


ABSTRACT

The present work develops reflexions on flows of affectation and contagion between the
performance of the clown and his transgressive intensities. For its inadequacy, the clown is
able to operate possible openings to the experience of difference, violating the order
established by regulatory standards. However, embedded in processes of domestication and
docilization on laughter, we see the clown’s powers deflate, what makes us face a fact: more
and more clowns disturb less. Thus, this dissertation investigates the possible relationships
between the clownish game and processes of transgression, thinking this term not as a
watertight category, but as multifaceted lens, sort of umbrella term able to generate moving
focuses on clown’s technique. In addition, the research examines how the weakening effects
occur on the contemporary art of clowning. This work deals to the practices of three artists,
Jango Edwards, Leo Bassi and Luiz Carlos Vasconcelos, clown called Xuxu, whose
performances tense and problematize, each in its own way, the transgressive qualities. The
dissertation completes a course of searches and crossing records starting from clown’s
videographic presentations, as well as the study of writings and interviews of the mentioned
artists, linking theory and practice as complementary and not mutually exclusive forms of
research in art, where the scene can illuminating, or otherwise destabilize the theoretical
constructions and vice versa. This work is part of a field of experience on clowning language
and its power games, contributing to discussions and art actions that can produce
connections and desiring impulses from clown technical.

Keywords: Clown. Transgression. Actor’s training. Creation techniques.


SUMÁRIO

Primeiros passos ....................................................................................................... 10


Cartografando riscos e trajetórias ............................................................................ 13

1 – NORTE: Aproximações entre palhaço e transgressão ......................................... 22

1.1 – Transgressões pela diferença ............................................................................ 22


1.2 – Palhaços dóceis: transgressão como resistência ................................................ 28
1.3 – Transgressão e formação de palhaços .............................................................. 43
1.4 – Processos transgressivos na comicidade clownesca ........................................... 60
1.5 – Transgressão e ética no palhaço ....................................................................... 72

2 – SUL: Jango Edwards e o rebaixamento grotesco ................................................. 78

2.1 – O clown como modos de vida ........................................................................... 78


2.2 – Números cômicos: abertura para a experiência ................................................ 87
2.2.1 - A entrada .............................................................................................. 87
2.2.2 - O bêbado .............................................................................................. 92
2.2.3 - A Igreja do Sorriso Largo ......................................................................... 97
2.2.4 - Os palhaços .......................................................................................... 101
2.2.5 - O Acrobata ........................................................................................... 107

3 – ESTE: Leo Bassi, provocação, racionalidade e choque ........................................ 115

3.1 – Um bufão contemporâneo ............................................................................... 115


3.2 – Instintos Ocultos: transitando por “estéticas do choque” ................................ 133
3.2.1 - Abertura................................................................................................ 134
3.2.2 - Comicidade e medo .............................................................................. 144
3.2.3 - A docilidade do bufão... ....................................................................... 152

4 – OESTE: Xuxu e as práticas transgressoras de si .................................................. 158

4.1 – Uma desgraça colorida .................................................................................... 158


4.2 – Instabilidades transgressivas e o Outro em mim .............................................. 169
4.3 – No fim do percurso: mais caminhada ............................................................... 181

Conclusão: Cruzando caminhos ............................................................................... 191

Referências Bibliográficas ........................................................................................ 200

Anexo ...................................................................................................................... 208


Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.

O rio, João Cabral de Melo Neto (1995, p. 119).

Figura 1 – Palhaço Zeca Vado

Fonte: Acervo pessoal do autor.


10

Primeiros passos

Foi no ano de 2009 que coloquei o nariz vermelho pela primeira vez. Já haviam se
passado seis meses desde que iniciara os estudos sobre o palhaço e seu jogo cômico,
integrando como aluno e bolsista o Programa Interdisciplinar de Formação, Ação e Pesquisa
Enfermaria do Riso1, coordenado pela Professora Ana Achcar na Escola de Teatro da UNIRIO.
Haviam sido seis meses de investigações teórico-práticas fecundas em inquietações, dúvidas
e muitos fracassos. A complexidade da linguagem do palhaço me fascinava na mesma
medida que assustava e, devo ressaltar que até hoje, quatro anos mais tarde, colocar sobre
o rosto a menor máscara do mundo2 ainda me revira as entranhas.
A primeira atividade com a máscara clownesca era aparentemente simples: Dois
atores de pé, um de frente para o outro. O primeiro a realizar a atividade deveria olhar para
seu parceiro como se este fosse um espelho. Diante de seu espelho humano, o intérprete
deveria respirar, preparar-se, colocar o nariz de palhaço e apenas contemplar seu “reflexo”
durante o tempo que julgasse necessário. O segundo intérprete, ao fazer as vezes de
espelho, não realizaria nenhuma ação além de mirar o palhaço que começava a ganhar
contornos à sua frente, para, mais tarde, ao final do exercício, contar ao parceiro o que viu e
sentiu quando o primeiro colocara o nariz de palhaço.
As principais ações do exercício: respirar e olhar. Nada mais a ser feito além de
manter-se em conexão com o parceiro, aprendendo a experimentar a tênue percepção de
ver-se através dos olhos do outro, até o momento em que já não era possível distinguir
quem era espelho e quem era o palhaço refletido. Esta foi minha primeira experiência com a

1
Programa de extensão que leva a experiência do humor através da atuação do palhaço em ambientes
hospitalares. Seu projeto de ensino abrange disciplinas práticas de palhaçaria, seminários teóricos e supervisão
psicológica, formação que tem como objetivo o estágio como palhaço de hospital. Durante minha passagem
pelo Programa, entre os anos de 2009 e 2012, atuei como palhaço nas dependências pediátricas do Hospital
Universitário Gaffrée Guinle (HUGG/UNIRIO), do Hospital da Lagoa (HL) e do Instituto Fernandes Figueira (IFF).
Informações sobre o programa pode ser obtidas no site: <http://www.enfermariadoriso.com.br/>. Acesso em
23 maio 2012.
2
Expressão que corresponde ao nariz de palhaço, utilizada por Jacques Lecoq (1921 – 1999), ator, mímico e
pedagogo francês que intensificou, sobretudo a partir da década de 1960, os vínculos entre os métodos de
formação do ator e as técnicas de palhaçaria, desenvolvendo, em sua École Internationale de Théâtre, um
procedimento metodológico de busca e construção do “clown próprio de cada um” (LECOQ, 2010, p. 214),
processo de investigação que passa pela autodescoberta do aluno em relação a suas idiossincrasias e
fragilidades.
11

máscara do clown3, deixando impressa no meu corpo a lembrança da potência do encontro


com o outro, quando os fluxos de afetos são capazes de participar ativamente dos processos
que constituem e definem os dois indivíduos.
Dando continuidade ao percurso de aprendizagem e exercício da linguagem do
palhaço novos encontros viriam, novos exercícios, muitos erros e no ano de 2010 a tão
esperada entrada no estágio como palhaço de hospital. Era o início de minhas atuações
como enfermeiro-palhaço Zeca Vado. Daquela manhã de quarta-feira até a presente data –
julho de 2013 – já se vão mais de sessenta atuações como palhaço de hospital, atuando em
dupla ou trio com outros palhaços4, no período de agosto de 2010 a novembro de 2012.
Ainda em 2010, realizei, como atividade integrante do curso de formação do
Programa Enfermaria do Riso, a oficina Jogos de Bufonaria: práticas e conversas, ministrada
pela professora Juliana Jardim5. Através de jogos e propostas práticas pude entrar em
contato com alguns dos princípios que giram em torno da máscara do Bufão, entre eles o
grotesco, o exagero e os aspectos animalescos e marginalizados do homem. Esta experiência
mostrou-se muito intensa para mim e, sem dúvida, serviu para alimentar e reforçar questões

3
Roberto Ruiz (1987), citando a interlocução da autora Maria Augusta Fonseca, esclarece que a palavra clown
estaria ligada etimologicamente ao termo inglês clod, remetendo ao universo “camponês” e seu meio rústico; e
a palavra palhaço, por sua vez, seria uma apropriação linguística do termo italiano paglia (palha), material
comumente utilizado no revestimento das roupas acolchoadas deste cômico, indumentárias que se
assemelhavam a um “colchão ambulante”, protegendo-o nos números perigosos e constantes quedas no
picadeiro circense. Luís Otávio Burnier (2001) destaca que ambos os termos, palhaço e clown, são palavras
distintas que designam a mesma coisa. Além dos autores citados, também podemos encontrar mais sobre o
assunto nos pesquisadores Mario Bolognesi (2003) e Kátia Kasper (2004). Esta questão da nomenclatura e as
possíveis diferenças contidas nos dois termos não serão aqui abordadas, pois entendemos que não se mostra
relevante a esta pesquisa. O presente estudo realizará a investigação das potências transgressoras dessa figura
cômica, fator que não acreditamos ser acionado pelo modo como estes artistas são designados. Optamos aqui
por usar os dois termos, clown e palhaço, indistintamente. Ressalte-se que, embora seja um vocábulo da língua
inglesa, não transcreveremos ao longo desta dissertação a palavra clown em itálico, pois entendemos que este
termo já foi assimilado por nossa língua, sobretudo no âmbito do universo circense e da cena teatral.
4
Um dos princípios de trabalho do palhaço de hospital reside no fato de que ele não atua sozinho, formando
dupla com outro palhaço para realizar a intervenção. Atuações em trio ocorrem geralmente quando dois
palhaços mais experientes estão introduzindo um novo palhaço no trabalho. Maiores informações acerca da
atuação dos palhaços de hospital podem ser encontradas na tese de Doutoramento Palhaço de Hospital:
proposta metodológica de formação, defendida no ano de 2007 pela Profᵃ Dra. Ana Achcar junto ao
PPGAC/UNIRIO, bem como a obra da psicóloga Morgana Masetti, Soluções de Palhaço – Transformações na
realidade hospitalar (2007), e as publicações Boca Larga: Caderno dos Doutores da Alegria, particularmente os
números 1 (2005) e 4 (2008).
5
Atriz, professora e pesquisadora, a Profᵃ Dra. Juliana Jardim Barboza desenvolve experiências cênicas e
treinamentos para atores abordando as técnicas da palhaçaria e da bufonaria a partir de sua
complementaridade. É autora da dissertação O Ator Transparente: O treinamento com as máscaras do Palhaço
e do Bufão e a experiência de um espetáculo: MADRUGADA (USP – 2001) e da tese Vestígios do dizer de uma
escuta (repouso e deriva na palavra) (USP – 2009).
12

acerca do potencial transgressor do palhaço e de sua comicidade, reflexões que eu já vinha


formulando a partir do trabalho prático no hospital.
O ambiente hospitalar é o lugar por excelência das delimitações hierárquicas,
expressando em sua organização arquitetônica a definição de regras e normas, a partir de
locais restritos, alas bem divididas e uma infinidade de salas e portas fechadas. Esta
configuração organizacional pode ser também observada nas relações interpessoais, na
distinção necessária entre as equipes de saúde e aqueles que necessitam de atendimento. A
lógica impressa no interior dos muros hospitalares e nas relações que eles encerram acaba
por representar o próprio esforço pelo cuidado e cura dos pacientes.
Adentrando um local onde controle, racionalidade e estruturação são metas a ser
buscadas, o palhaço acaba por contrastar drasticamente sobre essa organização, devido a
sua inevitável inadequação. O palhaço propõe novas lógicas e maneiras surpreendentes de
olhar para a realidade, sendo capaz de construir junto com o outro, de formas instáveis e
efêmeras - como é tantas vezes próprio do evento artístico - pequenas zonas de
desestabilização nas relações estruturadas de poder. O palhaço pode redimensionar espaços
e hierarquias em seus encontros, jogos e relações. E é justamente por esse caráter
transgressor inerente à sua natureza que o clown encontra no ambiente hospitalar um
terreno tão fértil de atuação. Desse modo, o hospital foi um território muito rico ao início
das reflexões sobre o potencial transgressor clownesco.
Os processos transgressivos representavam, desde as primeiras atuações, e ainda
hoje, um grande desafio ao meu trabalho como clown, seja no âmbito do hospital, seja em
outros locais de atuação. Zeca Vado é considerado por muitos que com ele já conviveram –
pessoas das equipes de saúde, outros palhaços e professores – como um palhaço delicado e
amável. Como exercitar essa delicadeza sem recair num lugar previsível ou clichê e sem
perder de vista as qualidades transgressivas é um foco artístico permanente para mim,
desafio que permanece muitas vezes sem resultados satisfatórios.
Ultrapassando a minha formação como enfermeiro-palhaço e as atuações no
espaço hospitalar, o potencial transgressor do clown começou a representar para mim uma
instigante fonte de dúvidas e reflexões. As qualidades transgressivas que permeiam a
linguagem clownesca, ora em maior, ora em menor escala, bem como suas complexidades e
13

problemáticas, passaram a aguçar minha observação, tanto como artista-palhaço, como


espectador e, cada vez mais, como pesquisador.
É, portanto, no âmbito do desejo e da necessidade de adentrar nestas questões que
se situa a presente dissertação ora compartilhada com o leitor, esperando-se que esta
investigação vá além das motivações pessoais e possa contribuir, em alguma medida, com os
estudos e reflexões acerca da palhaçaria contemporânea, encontrando-se e misturando-se -
seja por zonas de contaminação, seja através de choques e atritos - aos desejos e
investigações de outros artistas e pesquisadores.

Cartografando riscos e trajetórias

Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa: representação


de um todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo
tempo que os movimentos de transformação da paisagem.
Suely Rolnik (2011, p. 23).

A tipologia cômica do palhaço acompanha de forma multifacetada e não linear a


própria história da humanidade. Transcendendo as especificidades de cada ordem social, há
na organização dos homens o lugar daquilo ou daquele que é risível. Palhaços, bem como
mendigos, aleijados, bêbados e loucos são seres que, por sua inadequação, transitam num
âmbito marginal das sociedades, sendo, por vezes, alvo de chacotas e zombaria. Figura que
ao longo dos séculos foi protagonista de um processo de permanente reinvenção, o clown já
não nos parece, contudo, tão associado ao território daqueles que estão à margem.
Podemos identificar um processo de docilização e domesticação da palhaçaria, em
detrimento de seu potencial infrator de regras e padrões hierárquicos. Essa visão adocicada
sobre os palhaços, tantas vezes identificados como seres dóceis, prontos para distribuir
sorrisos e gestos afáveis, pode ser observada independentemente do local onde se realize a
atuação clownesca. Seja na rua, no palco, em arenas circenses ou hospitais, o entendimento
de que o palhaço é um ser alegre e amável, incapaz de gestos mais rudes ou extremados,
tem sido ainda mais reforçado pelos meios de comunicação de massa, uma vez que
pensemos naqueles que usam o nariz vermelho em programas de televisão e propagandas
comerciais.
14

Muitos palhaços dão menos enfoque às matrizes transgressivas de seu jogo cômico
em nome de certos ideais poéticos, romantizados ou mesmo infantis que facilmente recaem
sobre suas atuações. Essas escolhas nos parecem incongruentes, porém, se pensarmos em
alguns dos princípios que regem o trabalho clownesco, como o ridículo, o grotesco e a
inadequação.
Ao mesmo tempo, a transgressão na linguagem da palhaçaria não nos aparece
como algo indiscutível e uniforme, mas, pelo contrário, manifesta-se das formas mais
variadas e em gradações também instáveis de acordo com cada palhaço. Alguns clowns
provocam mais a plateia do que outros, alguns são mais agressivos, outros mais grotescos,
características que não se apresentam de maneira linear ou regular. Nesse sentido, podemos
enumerar aqui algumas das inquietações que acompanham e movem esta pesquisa:
 Quais são as relações possíveis entre os processos transgressivos e o jogo do
palhaço?
 De que maneiras podem se presentificar as características transgressoras em
práticas artísticas clownescas?
 O efeito transgressor ocorre apenas em relações de força e provocação entre
palhaço e plateia ou pode se manifestar em dinâmicas mais sutis?
 Como se operam as problemáticas de enfraquecimento e perda de potência
da palhaçaria contemporânea?
Assim, a presente dissertação tem como objetivo investigar a linguagem do palhaço
e seus potenciais transgressores, pensando as matrizes transgressivas não como uma
categoria estanque, mas antes uma lente multifacetada através da qual possamos olhar o
clown e seu jogo cômico. A ideia é trabalhar sobre os processos transgressivos entendidos
como uma espécie de conceito “guarda-chuva”, ou seja, linhas de pensamento que
abarquem direções e significados diversos, numa dinâmica de abertura que se aproxime da
natureza ampla e instável de nosso objeto de estudo. Não desejamos estabelecer definições
rígidas ou definitivas, mas, antes, desenvolver alguns fluxos de pensamento que permitam a
análise das intensidades que perpassam a atuação clownesca.
Nesse percurso de busca e aproximação com as indagações acima descritas, as
quais, devemos precaver ao leitor, não alcançarão respostas exatas e inequívocas,
estabeleceremos áreas de contato e atrito com o que chamamos de processo de docilização
15

do palhaço. Tomaremos o cuidado de não construir uma dicotomia enrijecida entre


transgressão e docilidade, uma vez que estas instâncias aparecem imbricadas no jogo
clownesco, atravessando em maior ou menor grau a atuação dessa figura cômica. Longe de
propor um olhar saudosista ao passado, uma busca por quais meandros da história restara
perdida a capacidade transgressiva do palhaço, esta investigação lançará alguns olhares
possíveis sobre as relações e problemas encontrados entre o jogo clownesco e as formas de
comicidade baseadas num caráter mais transgressor.
Pela própria natureza multifacetada de seu objeto, este estudo partirá de uma
abordagem metodológica interdisciplinar. Do ponto de vista histórico, a pesquisa se
aproximará dos escritos dos pesquisadores Georges Minois e de Verena Alberti, sempre que
se fizer necessário voltar ao passado para iluminar novas perspectivas aos problemas e
questões da atualidade. Entendemos que a visão histórica sobre os processos que envolvem
a comicidade e o riso podem ser de grande valia à construção de um conhecimento crítico
necessário à nossa investigação.
Indispensável à presente pesquisa, a filosofia também nos ajudará a pensar e
problematizar as relações entre o palhaço e seu caráter transgressor, baseando-se em
reflexões desenvolvidas por Friedrich Nietzsche e Michel Foucault acerca dos limites do ato
transgressivo, da degeneração e dos corpos dóceis. Os escritos destes autores mantêm um
relevante diálogo entre si e tangenciam, mesmo que de formas não explícitas, em questões
cujo enfrentamento se mostra fundamental ao nosso campo de estudo.
Evitando a utilização da base teórica filosófica de uma maneira funcional,
esquivando-se de “colar” conceitos ao objeto da pesquisa, será empreendido aqui o esforço
de realizar aproximações com alguns dos pensamentos destes autores, tentando estabelecer
relações e zonas de atrito que venham ora ajudar a esclarecer a investigação, ora
problematizá-la. Não estamos procurando respostas inequívocas às questões evidenciadas
pelo presente estudo, mas desejamos construir embates de forças que operem de forma
dinâmica com a complexidade de nosso objeto.
Objetivando tornar menos abstrato nosso campo de estudo, este trabalho lançará
mão não somente da pesquisa bibliográfica concernente ao tema, mas também realizará
análise de obras artísticas, examinando e discutindo o trabalho de alguns palhaços de nossa
época. A partir da observação de registros videográficos de suas apresentações, bem como
16

do estudo de entrevistas e escritos dos próprios artistas, exercitaremos a articulação entre


teoria e prática como formas complementares e não excludentes da pesquisa em arte, onde
a cena pode ajudar a iluminar ou, ao contrário, desestabilizar as reflexões teóricas e vice-
versa.
Embora, ao longo do texto, vários palhaços sejam citados, elegemos para esta
dissertação o diálogo mais próximo com o trabalho três artistas da palhaçaria
internacionalmente reconhecidos, em cujas atuações acreditamos encontrarem-se
tensionadas de forma latente as qualidades transgressivas. São eles o americano Jango
Edwards, o paraibano Luiz Carlos Vasconcelos – palhaço Xuxu e o bufão italiano Leo Bassi.
A escolha destes três artistas se deu na medida em que neles identificamos
aspectos peculiares e distintos no tocante ao potencial transgressor do palhaço.
Compreendemos que Jango Edwards manifesta suas qualidades transgressivas dando grande
ênfase ao exagero e ao grotesco em suas cenas. Por outro lado, Leo Bassi apresenta jogos
cômicos e relações de provocação sobre os espectadores, a partir de construções mentais
muito elaboradas, apresentando uma grande racionalidade em seu trabalho. E, por fim, Luiz
Carlos Vasconcelos transita por ações transgressoras capazes de criar instabilidades à plateia
e à sua própria atuação, sem perder, contudo, a comicidade e a cumplicidade com a
assistência.
Assim, eleger o trabalho destes três palhaços como foco da investigação, dedicando
um capítulo da dissertação a cada um deles teve como intuito o enriquecimento de nossa
discussão, apresentando o quão variado pode se apresentar o tema das qualidades
transgressoras na linguagem clownesca.
Quanto a sua estrutura, esta dissertação será desenvolvida a partir de quatro partes
ou capítulos, procedendo-se um esforço de aproximação, mesmo que arbitrário, entre o
conteúdo da pesquisa e a sua presentificação através da escrita. Dessa forma, partiremos da
transgressão como inspiração e fonte de contaminação à organização textual. O termo
transgressão possui sua origem etimológica no vocábulo latino transgressìo: “ação de passar
de uma parte a outra, de atravessar; violação, infração”6. A partir dessa configuração
topográfica que a própria palavra transgressão enseja, esta pesquisa foi produzida

6
Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=transgress%E3o&stype=k. >. Acesso em 19 maio 2012.
17

pensando-se na investigação como um percurso, uma trajetória – mesmo que sem um alvo
inequívoco predeterminado.
Neste itinerário, cada capítulo indicará rumos e direções distintas e, portanto, as
quatro partes que compõem esta dissertação estarão identificadas simbolicamente com as
quatro principais direções do espaço, ou seja, os quatro pontos cardeais 7: Norte, Sul, Este e
Oeste. Uma vez que este trajeto será realizado por um autor-palhaço, o leitor deverá se
preparar de antemão para a certeza de que aqui a nossa bússola nem sempre terá seu
ponteiro apontando para o Norte e que nosso deslocamento será realizado de forma
irregular, nem no sentido horário, nem no anti-horário. A ordem de nossos capítulos será a
seguinte:
1-Norte: primeiras considerações e desenvolvimento dos princípios norteadores da
pesquisa.
No primeiro capítulo realizaremos investigações acerca da transgressão e suas
manifestações na linguagem do palhaço, bem como sua relação com a formação de novos
clowns. Trataremos ainda das problemáticas da docilização do jogo clownesco.
2-Sul: oposta ao Norte, a direção sul nos desloca para baixo. Aqui associamos o sul
com o rebaixamento, um dos princípios do grotesco.
Neste segundo capítulo trataremos da análise do trabalho clownesco do americano
Jango Edwards, aproximando nossa leitura sobre sua atuação a princípios relativos ao
grotesco. Partiremos de dados biográficos, entrevistas e da análise do registro videográfico
da apresentação The Bust of Jango, realizada em Cannes no ano de 1993.
3-Este: onde nasce o sol, nascente; a direita de quem olha para o norte.
Identificamos esta direção com a racionalidade, com o uso da razão, pensando-se este
vocábulo a partir de sua origem latina – ratio8 – que tanto pode designar a inteligência,
como a causa que determina um acontecimento, a origem.

7
Segundo Jean Chevalier (1998), numerosas crenças e mitos relativos à origem da vida, a morada dos deuses e
dos mortos e a evolução da humanidade giram em torno dos eixos norte-sul e este-oeste, os quais ao se
cruzarem formam simbolicamente as direções do destino humano, o marco sobre o qual se organiza o mundo
saído do caos.
8
Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=raz%25C3%25A3o >. Acesso em 06 fev. 2013.
18

O terceiro capítulo empreenderá um estudo acerca das ações do franco-italiano Leo


Bassi. Membro destoante de uma família tradicional composta por várias gerações de
palhaços circenses, este artista se autodenomina como bufão 9. Embora não se apresente
atualmente como palhaço, suas atuações polêmicas e altamente provocadoras concentram
grandes doses do que intuímos por comicidade transgressora.
Desenvolvendo seus espetáculos a partir de uma estrutura extremamente racional
aliada a princípios comuns ao trabalho clownesco, como o jogo cômico e a relação direta do
atuador com os espectadores, a presença de Bassi neste estudo mostrou-se como
fundamental no tocante à investigação da radicalidade das relações entre a comicidade e
suas matrizes transgressivas. Neste capítulo serão analisados trechos de entrevistas do
artista, bem como os pensamentos expostos no único livro de sua autoria La Revelación10,
além de algumas cenas do espetáculo Instintos Ocultos11.
4- Oeste: o poente, direção onde o sol se põe e termina o dia; a escuridão e o
desconhecido. Último capítulo da dissertação.
A quarta parte deste trabalho investigará o trabalho de Luiz Carlos Vasconcelos,
palhaço Xuxu, cujos processos transgressivos geram instabilidades não somente na
assistência, mas também no artista que lhe dá vida. Lançando Vasconcelos nos territórios do
desconhecido, em encontros com a alteridade de si mesmo, a palhaçaria mostra-se como
uma técnica capaz de desestabilizar o próprio artista, violando as suas concepções de
mundo. Além de entrevistas e trechos de seu espetáculo Silêncio Total! Vem chegando um
palhaço12, será analisada neste capítulo a experiência do autor desta dissertação em ter
realizado, no ano de 2012, uma oficina de palhaçaria ministrada por Vasconcelos.
Por sua vez, a conclusão deste trabalho, Cruzando caminhos, faz alusão à própria
encruzilhada, lugar onde todas as rotas se encontram e se cruzam e, ao mesmo tempo,
ponto de onde se pode olhar e partir para todas as direções. Ao final da dissertação, o leitor

9
Segundo Barboza (2001, p. 24), há uma grande aproximação entre o universo do bufão e o dos palhaços: “As
máscaras do Palhaço e do Bufão têm a mesma origem. Na bibliografia utilizada, encontramos referência a uma
ou a outra, mas, em geral, os conteúdos das duas estão misturados ou incluídos em um mesmo texto, sob um
único nome. [...] encontramos referência a Bufão, em Patrice Pavis, a Palhaço, em outros dicionários e, em
nenhum, localizamos abordagem separada das máscaras”.
10
Lançado em 2008, na Espanha, onde vive o artista. Obra sem lançamento previsto no Brasil.
11
Espetáculo apresentado na cidade do Rio de Janeiro em 05 de dezembro de 2011 no Encontro Internacional
de Palhaços Anjos do Picadeiro 10.
12
Apresentado em 11 de maio de 2012 no Largo do Machado, Rio de Janeiro.
19

encontrará um DVD com as cenas e números cômicos analisados em nossa trajetória de


pesquisa, inventário dinâmico das paisagens visitadas em nossos percursos.
Advertimos que, não obstante a trajetória de atuação pregressa deste autor, o foco
desta investigação não será o palhaço de hospital, pois entendemos que a força
transgressora da palhaçaria, bem como suas fricções com o processo de docilização aqui
citado, dizem respeito à linguagem clownesca contemporânea de uma forma mais
abrangente, em processos de criação que podem ser verificados independentemente da
topografia de suas manifestações artísticas. Acreditamos que não é o lugar de apresentação
que reforça ou diminui as possibilidades de transgressão, o que poderá ser observado no
trabalho dos artistas escolhidos como objeto deste estudo, os quais possuem experiências
de atuação nos mais diversos locais, no âmbito da cena teatral, da rua e do picadeiro.
Ressaltamos que o objetivo deste trabalho não é esgotar as questões acerca do
caráter transgressor no palhaço, tampouco nos propomos a sistematizar uma metodologia
que permita ao intérprete/palhaço desenvolver uma trajetória artística que privilegie as
instâncias transgressivas. Não estamos na busca de fórmulas ou receitas de como construir
um palhaço transgressor. O esforço aqui caminha no sentido de realizar uma reflexão sobre
a linguagem da palhaçaria, enfrentando seus desafios e problemáticas em constante
tensionamento com o tema das práticas transgressivas, compartilhando em relação à
pesquisa em arte o pensamento do pesquisador e diretor teatral Antônio Araújo (2012, p.
105):

Pesquisar artisticamente, como bem sabemos, é jogar com regras


desconhecidas ou movediças, é dirigir sem GPS, é duelar – mas também
chamar para um café e conversar – com os nossos clichês e ideias pré-
fabricadas. É, sobretudo, criar um campo de experiência. Parece bonito,
mas dá medo.

Tratar de processos transgressores e da problemática da docilização clownesca é


estar diante de um território móvel, sem pontos de referência estáveis. O dinamismo do
tema nos obriga a vislumbrar nossos próprios “lugares comuns” e nossas tentativas de busca
pela estabilidade. Dialogando com nossos medos, que não são poucos, e exercitando sua
confrontação, dividimos aqui nosso processo de escrita com o leitor, indagando-nos a que
possíveis interlocutores se destinariam as páginas deste estudo. Primeiramente, desejamos
que as considerações e reflexões aqui empreendidas venham colaborar com a prática de
20

atores e artistas interessados na linguagem da palhaçaria, visto a grande procura, nas


últimas décadas, de cursos e experiências neste campo, constituindo um verdadeiro
modismo em relação à busca e “descoberta” do próprio clown.
Que este trabalho possa contribuir com aqueles que nutrem a vontade não de lidar
com a técnica da palhaçaria de forma utilitária, ou mesmo como uma arte de fácil
apreensão, mas que pretendam se debruçar sobre as complexidades que envolvem a
linguagem clownesca, mantendo a consciência de que esta técnica inspira precauções e
investigações atentas na mesma medida em que exige do intérprete um salto no
desconhecido.
Ademais, ao abordar os percursos de três artistas cujo trabalho mostra-se
indiscutivelmente complexo, esta pesquisa alimenta, ainda, a vontade de proporcionar ao
público em geral a ampliação do conhecimento acerca dos universos artísticos e cômicos
ensejados por estes criadores, divertindo-se e refletindo junto com eles.
Pensando na experiência artística extramente rica que o palhaço é capaz de
propiciar, iniciamos, assim, nosso percurso, estendendo a mão ao leitor, num convite a que
nos acompanhe em nossas buscas e deslocamentos, numa caminhada que, própria de um
autor-palhaço, e como não poderia deixar de ser, restará cheia de tropeços e dificuldades.
Na estrada, ponho meu corpo a ventos.
Aves me reconhecem pelo andar.

Manoel de Barros (2010, p. 475).

Figura 2 - Palhaço Zeca Vado13

Fonte: Acervo pessoal do autor.


Figura 2.1 - Idem.

Fonte: Acervo pessoal do autor.

13
Saída de palhaço na Praça São Judas Tadeu, bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro. Finalização de oficina
ministrada por Luiz Carlos Vasconcelos, 11 de maio de 2012.
22

1 – NORTE: Aproximações entre palhaço e transgressão

1.1 – Transgressões pela diferença

transgredir v.t. 1. Passar além de; atravessar. 2. Desobedecer a; infringir,


violar.
transgressão sf. Ato ou efeito de transgredir; infração, quebra. (FERREIRA,
2010, p. 1781).

A ideia de práticas de transgressão, em seu sentido mais corriqueiro, evoca a


realização de ações contrárias à determinada regra ou conjunto de regras de um
ordenamento social. Seja por desconhecimento das normas ou pelo ímpeto da violação, a
experiência de transgredir nos coloca diante do campo da moral. Inicialmente utilizado no
âmbito científico da geologia, determinando o processo de subida do nível médio das águas
e consequente avanço do mar sobre a faixa litorânea, o termo transgressão assume uma
dimensão sociológica, quando aquele que transgride ultrapassa determinado código comum
de conduta, destacando-se dos demais por sua inadequação frente à norma.
Seja em relação a preceitos morais, religiosos, ou mesmo pela violação da ordem
jurídica, o psicanalista e professor Joel Birman (2008) destaca que a transgressão implica
numa desobediência por parte do indivíduo. O ato transgressivo produz uma ruptura no
espaço social, cujos contornos são limitados e definidos por regras de imperatividade
comum, aceitas e obedecidas pelos demais sujeitos participantes desse ordenamento.
Através de sua ação, o transgressor acaba por se expor numa condição desviante em relação
àquela totalidade moral e social representada pela comunidade.
Foucault (2009) enfrenta especificamente o tema no ensaio Prefácio à
transgressão14, indagando o que chama de jogo dos limites e da transgressão. Segundo ele,
se por um lado o ato transgressivo pressupõe a transposição de uma linha, esta, por sua vez,
não cessa seu movimento de fechamento logo após a passagem daquilo que a transgride,
numa dinâmica incerta de embaralhamentos e inversões. A transgressão deve sua existência
à presença de zonas limítrofes a transpor, o que nos parece claro, mas o que o filósofo vem

14
Inicialmente publicado em 1963, na revista Critique, e republicado na coleção Ditos & Escritos, volume III.
23

problematizar é se “terá o limite uma existência verdadeira fora do gesto que gloriosamente
o atravessa e o nega?” (FOUCAULT, 2009, p. 32).
Limite e ato transgressivo se relacionam de forma instável, efêmera, quando uma
instância determina e transforma a outra, para, logo em seguida, o ímpeto transgressor se
esgotar e mais uma vez se fechar a linha tênue do interdito. Interessa-nos pensar os
vestígios dessa operação entre limite e transgressão, cruzamento constituído por campos de
força que se atravessam e afetam de maneira transitória.
Retomando uma das concepções mais caras à filosofia de Nietzsche, Foucault
destaca que a morte de Deus15 causa no Ocidente uma ruptura no campo dos valores e da
moral, suprimindo da existência humana o seu limite exterior, lugar outrora ocupado pelas
leis e interditos divinos, o limite do Ilimitado. Com a decadência da lei simbólica divina se
finda o limite absoluto, a fronteira ameaçadora e segura que despontava no horizonte do
transcendental e que servia para regular, oprimir e confortar a existência humana. Se por
um lado ficamos desprotegidos pela lacuna deixada no lugar do sagrado, por outro
ganhamos em força autônoma.
A morte de Deus não deve ser entendida como o fim de Seu reinado histórico 16,
nem como percepção de Sua inexistência, mas como instauração de um vazio que, a partir
de então, acompanharia a experiência humana. Diante dessa lacuna, passa a competir ao
próprio homem a escolha de sua direção, o domínio soberano sobre suas ações no mundo.
Esta liberação é entendida como lançamento de uma nova luminosidade sobre a existência,
indagada e saudada em júbilo pelo próprio Nietzsche, como podemos depreender na
seguinte passagem:

[...] ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como
iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão,
espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece
novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem
novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida

15
Filosofema presente em A Gaia Ciência – §108, §125 e §343 (NIETZSCHE, 2012) e retomado em Assim falou
Zaratustra (Id., 2011).
16
Nietzsche (2012) afirma que, assim como a imagem da sombra de Buda fora mostrada no interior de uma
caverna durante séculos após a sua morte, também muitas ainda seriam as cavernas a exibir a terrível sombra
do Deus morto no Ocidente, cabendo a cada um de nós a luta em relação a essas sombras.
24

toda a ousadia de quem busca o conhecimento [...]. (NIETZSCHE, 2012, p.


208).

Ao abordar a imagem nietzschiana da morte de Deus, Foucault articula essa ruptura


com a instauração de um espaço de experiência não mais dependente de limites exteriores,
mas que é interior e soberano ao ser. É nesse âmbito de experiência interior que
primeiramente se operam os processos constitutivos dos limites e da transgressão. O autor
ressalta que nesse trânsito, o qual é perpétuo em seu jogo de forças e efêmero em sua
presentificação, transgressão e limite não são categorias excludentes, como o proibido
estaria em relação ao permitido, mas ambos se constituem numa espiral de composição e
decomposição.
Na acepção foucaultiana, a transgressão não carrega a potência do negativo, não se
opõe ao limite ou procura abalar sua solidez, apagar suas bordas, mas há um cruzamento
entre os dois campos, quando uma categoria determina a outra em operações de
deslocamentos e contaminação. A fim de melhor elucidar a relação entre as duas instâncias,
Foucault nos traz a imagem do relâmpago que irrompe a obscuridade da noite, iluminando
por dentro a densidade das trevas e, ao mesmo tempo, tem a sua claridade determinada e
reavivada pela negritude que trespassa, para logo em seguida perder-se novamente na
escuridão. Conforme ressalta Peixoto Junior (2008, p. 29):

Tal experiência [da ação transgressora] incita a uma nova forma de pensar,
a uma outra lógica que faz surgir o caráter relativo do valor e só se define
através do interdito que o cria. O interdito, portanto, valoriza aquilo sobre o
que incide, dando-lhe a forma de provocação. [...] o interdito dá força à
transgressão, mas, inversamente, a transgressão atesta a interdição
fazendo a experiência de sua existência. De fato, a transgressão, mesmo
provocando enorme abalo, só faz assegurar a persistência do interdito,
todavia, revelando-o de maneira irrefutável. O “não” da interdição nunca é
definitivo, mas apenas momentâneo, assim como a transgressão só se dá
em um instante. Trata-se de um momento de fuga e súbito acesso ao
heterogêneo.

No momento em que o ato transgressivo atravessa um limite, apresenta à instância


limitante a sua porção rejeitada, quando o interdito reencontra na transgressão aquilo que
lhe era excluído. Todo o universo que as bordas limitadoras encerravam em suas fronteiras
se depara, através da ação transgressora, com a porção que lhe era interditada e nela se
25

funde na brevidade de um átimo, clarão que logo se apagará, contaminado pela vastidão da
noite. Na mesma medida, a transgressão só pode existir quando confrontada com a aresta
limitante, no momento em que ocorre a interseção entre ambas. Este fluxo de afetos não
constitui um embate de forças opostas e excludentes, mas, ao contrário, opera um encontro
permeado por misturas onde a existência se abre ao espaço da diferença.
É nesse sentido que iniciamos nosso estudo trazendo a interlocução dos dois
filósofos supracitados, pois nos interessa pensar o palhaço em relação a sua instância
transgressiva e seus vestígios, estes entendidos como abertura possível para a experiência
da diferença. Luís Otávio Burnier 17 (2001) afirma que o palhaço carrega uma constituição
marginal, uma vez que possui visões de mundo diferenciadas em relação aos demais.
Desenvolvendo lógicas próprias, com maneiras de pensar e agir específicas, essa figura
torna-se cômica não pela vontade de fazer graça, mas pela exposição de uma diferença tão
grande em relação aos padrões que do inusitado de suas ações advém a graça.
Lecoq (2010), por sua vez, ao narrar o início dos estudos sobre o clown em sua
Escola para atores, relembra que as primeiras experiências na busca pela comicidade eram
terríveis e constrangedoras, pois os alunos já adentravam o espaço cênico imbuídos da
vontade de serem engraçados. Quanto mais os aprendizes gesticulavam, falavam e
realizavam ações gratuitas, mais se distanciavam do objetivo de fazer rir. E, no entanto,
quando se rendiam ao fracasso, desconcertados e perdidos, muitas vezes o riso brotava na
assistência, causado pelo ridículo da fraqueza humana exposta. A esse respeito, discorre
Burnier (2001, p. 218):

O processo de descoberta do clown pessoal18 provoca a quebra de couraças


que usamos na vida cotidiana. [...] Mais do que formas estereotipadas, o
que causa o riso são as manifestações autênticas advindas da sensação de
desconforto e insegurança do clown diante do público. O clown toma
consciência de sua estupidez logo após ter sido estúpido; por isso ele é
triste. As risadas do público fazem com que ele se aprofunde na própria
dor.

17
Um dos artistas fundadores, no ano de 1985, do LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da
UNICAMP, grupo que desenvolve no Brasil uma das pesquisas mais atuantes sobre a linguagem do clown.
18
Segundo a metodologia do LUME, o clown pessoal reside na busca e ampliação das características ridículas e
cômicas do ator. Falaremos mais sobre esse processo de formação no subitem 1.3 deste capítulo.
26

Quando tratamos de palhaço, portanto, antes de pensar no riso, devemos ter em


mente que estamos falando de exposição do indivíduo, de inadequação, de ridículo, de
fraqueza, de comportamentos desviantes. E, nesse sentido, num mundo cada vez mais
ligado a padrões como produtividade, funcionalidade e objetividade, podemos perceber que
uma das grandes potências do palhaço é a possibilidade de transitar pelo espaço da
diferença.
O pensamento nietzschiano, mais uma vez, trará importantes contribuições ao
nosso estudo, ajudando-nos a avançar na discussão entre palhaço, diferença e transgressão.
Em Enobrecimento pela degeneração (§224), aforismo que integra Humano, demasiado
humano: um livro para espíritos livres, Nietzsche (2005) nos fala sobre o “embotamento” do
indivíduo, bem como se questiona sobre possíveis instabilidades nesta problemática. Sob a
égide de um título aparentemente contraditório, o autor afirma que, diante do perigo do
embrutecimento do indivíduo, processos de degenerescência podem ser determinantes
como formas de escape. Diferentemente de conduzir à decadência do indivíduo, como
esperaríamos no senso comum, a degeneração poderia levar o homem ao melhoramento,
ao progresso e ao fortalecimento. Em suas palavras:

A história ensina que a estirpe que num povo se conserva melhor é aquela
em que a maioria dos homens tem um vivo senso da comunidade, em
consequência da identidade de seus princípios habituais e indiscutíveis, ou
seja, devido a sua crença comum. Ali se reforçam os costumes bons e
valorosos, ali se aprende a subordinação do indivíduo, e a firmeza de
caráter é primeiro dada e depois cultivada. O perigo dessas comunidades
fortes, baseadas em indivíduos semelhantes e cheios de caráter, é o
embotamento intensificado aos poucos pela hereditariedade, que segue
toda estabilidade como uma sombra. Em tais comunidades, é dos
indivíduos mais independentes, mais inseguros e moralmente fracos que
depende o progresso espiritual19: são aqueles que experimentam o novo e
sobretudo o diverso (NIETZSCHE, 2005, p. 142. Grifos nossos).

19
Nesta obra, Nietzsche desenvolve o conceito de espírito livre, em suas palavras: “aquele que pensa de modo
diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas
opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos a regra [...]” (§ 225. Ibid., p. 143).
Assim, podemos depreender que a expressão progresso espiritual diz respeito ao exercício desta liberdade que
muito carrega de subversão e descolamento das normas e valores aceitos pela generalidade de uma
comunidade. O autor esclarece ainda no aforismo 227 o que entende como espíritos cativos, em contraposição
aos espíritos livres, aqueles cuja crença confere força e duração às instituições sociais, a “Todos os Estados e
ordens da sociedade: as classes, o matrimônio, a educação, o direito [...]” (Ibid., p. 145).
27

De acordo com o pensamento deste filósofo, a identidade de princípios partilhada


pelos indivíduos de uma mesma comunidade, agindo e pensando a partir dos mesmos
cânones e paradigmas, conduz não ao progresso, mas à subordinação e ao embrutecimento.
O desenvolvimento do homem estaria ligado, portanto, não ao seu enquadramento nos
mecanismos que primam pela estabilidade dos ordenamentos sociais, mas, de outra
maneira, à sua inadequação. É na fragilidade do desvio que o indivíduo pode experimentar o
novo, a diferença, transgredindo, portanto, a ordem estabelecida calcada na sujeição e na
padronização de valores e costumes.
Enquanto a dinâmica da sociedade objetiva a sua conservação a partir da
estabilidade e da igualdade de paradigmas e tradições, o autor identifica o indivíduo fraco
como o propiciador de novas experiências. Aquele cujo comportamento carrega em si a sua
porção degenerada, incapaz que é de se adaptar ao modus vivendi considerado como
padrão. É na instabilidade da diversidade, na desordem transgressora atinente à fraqueza
que o indivíduo pode experimentar o exercício do escape ao embotamento. São os
indivíduos fracos que “[...] afrouxam e de quando em quando golpeiam o elemento instável
de uma comunidade. Justamente nesse ponto ferido e enfraquecido é como que inoculado
algo novo no organismo inteiro [...]” (NIETZSCHE, 2005, p. 143).
Dessa forma, tratar de normas e valores vigentes, da construção de um senso de
aparente estabilidade nos grupos sociais, bem como pensar na busca por fissuras nessa
superfície padronizada, na criação de fluxos de instabilidade, remete-nos,
irremediavelmente, à figura clownesca. O palhaço expõe a fraqueza do ser humano,
carregando em si a possibilidade de relativizar a rigidez de normas e padrões, lembrando-
nos a imensa liberdade contida em seu próprio ridículo, exercitando, com sua visão de
mundo muito particular, a criação de pequenas lacunas na sombra do embrutecimento. Leo
Bassi, um dos artistas investigados nesta pesquisa, afirma:

O palhaço é aquele que perdeu. Seu nariz é vermelho, porque com o tempo
se embebedando nas ruas frias, o choro e as quedas, o nariz fica realmente
vermelho. Suas roupas são desproporcionais e seus sapatos são grandes
porque não lhe pertencem. O palhaço é aquele que perdeu a dignidade.
Mas somente quem perde totalmente a dignidade pode atingir uma outra
condição de dignidade, e isso acontece quando ele reconhece e aceita sua
derrota, sem mágoas, sem culpar ninguém pelos seus fracassos, sem
autopiedade. [...] Se o palhaço perdeu, então não tem mais nada a perder.
28

Quando não se tem mais nada a perder pode-se fazer o que quiser. Por
isso é uma entidade libertária, por isso tem o poder de transgredir, o poder
das autoridades. (BASSI apud LIBAR, 2008, p. 174-175. Grifos nossos).

No jogo entre limite e transgressão, o palhaço coloca em evidência a existência


como diferença. Incapaz de seguir as configurações padronizadas do mundo, não por ter
como objetivo necessariamente a rebeldia, mas por sua inadequação, o clown possui lógicas
cômicas que são anteriores aos moldes formais e ao senso comum. Podemos pensar o
palhaço não somente como um transgressor que rompe de forma brusca e violenta as
normas estabelecidas, mas como essa figura inadequada, vulnerável, que produz, de sua
natureza de delicada fragilidade, a força e liberdade necessárias à experimentação da
diferença. O clown é capaz de indicar novas possibilidades de ação, destoando das crenças e
atitudes estáveis, “libertado da tradição, com felicidade ou com um fracasso20.” (NIETZSCHE,
2005, p. 144).

1.2 – Palhaços dóceis: transgressão como resistência

As aproximações conceituais empreendidas até aqui tiveram como objetivo


compartilhar com o leitor o nosso foco em relação às qualidades transgressivas do palhaço,
entendidas como práticas moventes, capazes de instaurar, na efemeridade de seus
processos, a heterogeneidade sobre normas e padrões. Sem perder de vista o caminho
traçado, direcionaremos nossa atenção agora a uma problemática cujo enfrentamento nos
aparece como indispensável ao presente campo de estudo: a questão da docilização do
palhaço.
Figura que faz parte do imaginário coletivo como concernente ao universo lúdico,
por vezes recai sobre o clown o peso da banalização e do enfraquecimento de suas
capacidades transgressoras. A linguagem clownesca, particularmente ao longo do século XX,
foi sendo absorvida por diversas áreas de atuação que, em determinados casos, privilegiam
um esvaziamento de suas intensidades, o que nos coloca diante de uma constatação: cada
vez mais os palhaços incomodam menos.

20 Palavras de Nietzsche ao desenvolver o conceito de espírito livre, e cuja aproximação com a figura do
palhaço nos parece pertinente e enriquecedora.
29

Em vista desse processo que estamos denominando como docilização do palhaço,


vamos nos aproximar da historiografia do riso através da condução do pesquisador francês
Georges Minois. Este autor inicia a obra de referência História do Riso e do Escárnio21 (2003)
destacando a potência do riso, capaz de violar e atravessar normas, cuja força pode ser
observada desde as aventuras atinentes ao panteão divino grego. Citando escritos do
filósofo Próclus, datados do século V a.C., o autor afirma:

O que nos dizem, pois, os mitos gregos? Em primeiro lugar, uma


constatação unânime: os deuses riem. O Olimpo ressoa com seu “riso
inextinguível”, segundo a expressão homérica. Todos, um dia ou outro,
conheceram acessos de hilaridade, e por motivos que não eram sempre
dignos, palavra de Homero! [...] O riso deles é sem entraves: violência,
deformidade, sexualidade desencadeiam crises que não têm nenhuma
consideração de moral ou decoro. Os mitos o associam freqüentemente à
obscenidade e ao retorno da vida. (MINOIS, 2003, p. 22-23).

Podemos depreender do trecho destacado duas características do riso que


perpassam a história da humanidade, e que podemos estender à atuação do palhaço, quais
sejam, a capacidade transgressiva do que é risível sobre as regras de conduta e decoro, bem
como sua potência em relação à vida. Para os gregos arcaicos, o riso estava associado à
realização das festas22, ocasiões de divertimento coletivo em que os momentos de excesso
faziam parte dos processos ritualísticos. Transbordamentos, inversão das hierarquias e
condutas sociais, gritos, zombarias, brincadeiras obscenas e injuriosas estavam presentes
como formas de retorno ao caos original, contato com o mundo divino através do ritual de
experimentação da desordem.
A partir do fim do século V a.C., contudo, inicia-se um processo de
intelectualização e refinamento do risível. Minois (2003) destaca que o riso descontrolado e
violador de outrora passa a ser alvo de inúmeras críticas e repressões. O que antes era
experimentado como afirmação da vida, um contato com a imortalidade dos deuses, agora

21
Minois busca empreender nesta obra uma síntese da historia do riso, este entendido como um fenômeno
universal, afirmando já em sua Introdução que essa tarefa está fadada ao insucesso, dada a amplitude do
campo a ser estudado.
22
O autor cita como exemplos de festas arcaicas: as dionisíacas, as bacanais, as leneanas, as tesmofóricas e as
panatenéias; festas religiosas onde se experimentavam os excessos e as transgressões durante um período de
tempo determinado.
30

será entendido como resquício de uma animalidade primária, indesejável ao homem, traço
inquietante e selvagem que necessita de domesticação.
Nesse movimento de abrandamento das intensidades do riso divino, até mesmo os
mitos gregos passam a ser revisados e reescritos, suavizando-se a face inquietante dos
deuses, transformando em ironia o que outrora fora extravasamento e violência. O riso,
antes direto e transgressor, passa agora a corroborar as convenções sociais, calcado na
sutileza, na sinuosidade irônica e nas normas de decoro, reduzido a mero refinamento para
a distração espiritual.
Minois (2003) ressalta ter sido Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) um dos
principais filósofos gregos a criticar o riso. De acordo com o platonismo, o universo divino
seria imutável e único, não comportando, assim, a emoção “grosseira” do risível, traduzida
na feiura moral e física. O riso traria a perda do controle, carregado de caretas e soluços
espontâneos, emaranhados de ruídos caóticos que explodem em inconveniências e beiram
a obscenidade. Platão percebia a força subversiva da hilaridade, visto que em seu diálogo
Leis, XI, estipula severa punição aos comediógrafos que usassem o riso como forma de
ridicularizar seus semelhantes:

Mas e quanto ao humor dos cômicos, sempre pronto a expor as pessoas ao


ridículo [...]. Um autor de comédia ou de qualquer poesia iâmbiea ou
música lírica será rigorosamente proibido de ridicularizar qualquer cidadão
seja através de palavras, seja através de gestos, com ou sem cólera, e se
alguém incorrer em desobediência os presidentes das competições o
banirão no mesmo dia terminantemente do território do Estado [...].
(PLATÃO, 2010, p. 467).

Platão defendia o riso domesticado a serviço da moral e do conhecimento,


entendida a sua contraface caótica e transgressora como um mal da natureza humana a ser
extirpado. Entendimento este que Minois destaca como uma constante na história da
humanidade, pois se o riso carrega em si a capacidade de transgredir e incomodar, ele
também será alvo de muitos ataques, perseguições e apropriações por interesses os mais
diversos, tendo em vista não mais a subversão de regras, mas o seu fortalecimento.
Pensando nas relações problematizadas por Foucault acerca do cruzamento entre
um interdito e seu ato transgressivo, momento efêmero em que uma instância constitui e
transforma a outra, podemos perceber que, dependendo da maneira como se encare a ação
31

que atravessa os limites, será privilegiado somente o fortalecimento da categoria violada,


esvaziando-se a intensidade violadora.
Como exemplo, podemos lembrar um episódio bastante veiculado pela mídia
nacional quando uma conhecida cantora brasileira, durante a abertura de um evento oficial
na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, é convidada a cantar o Hino Nacional. Em
clara situação de inadequação, ela erra a letra, criando, inclusive, novas melodias ao nosso
Hino. A cantora, confusa, insistia em continuar cantando, enquanto tentava acertar o ritmo,
embaralhando-se nos versos e errando cada vez mais, diante de um auditório lotado de
funcionários públicos constrangidos que não sabiam como proceder diante de tamanha
quebra de protocolo.
Na época em que o registro desse episódio fora divulgado 23, causando grande
repercussão, afirmou-se pela imprensa o absurdo da violação de um dos quatro símbolos
oficiais da República Federativa do Brasil, a importância do ensino do hino nas escolas
públicas e mesmo tratou-se de discutir a problemática do uso indiscriminado de produtos
farmacológicos, visto que a cantora alegara estar sob o efeito de remédios que haviam
prejudicado sua apresentação.
Neste caso, fora ressaltada a importância da instância violada, ou seja, a oficialidade
do Hino Nacional, um dos grandes símbolos do patriotismo, bem como a importância do
cumprimento das regras, sem que o inusitado da cena, contudo, pudesse gerar outros tipos
de discussões. Pouco se comentou, por exemplo, qual é a real importância desse Hino, o que
ele representa de fato aos brasileiros, qual é a noção construída de Pátria que possuímos e
tantas outras relativizações saudáveis que poderiam nascer diante do ridículo advindo do
desvio da norma.
Assim, quando somente a categoria do interdito sai fortalecida, e a ação violadora
vê-se destituída de sua potência, há um enfraquecimento do espaço da diferença e
novamente somos reconduzidos à uniformização obediente de costumes e gestos. Apesar de
o exemplo citado não ser do universo da palhaçaria, podemos perceber nele a inadequação
e o desvio que desestabilizavam as normas daquela cerimônia oficial e como, rapidamente,

23
O registro videográfico do episódio em questão pode ser encontrado no sítio:
<http://www.youtube.com/watch?v=5w_7z_c3RmU>. Acesso em 12 maio 2013.
32

suas intensidades de violação foram transformadas em exemplo negativo a ser afastado e


corrigido, em nome da estabilidade e dos padrões que regem nossa sociedade.
Entendemos que é nesse espaço de fricção entre heterogeneidade e padronização
que se insere a problemática da docilização clownesca. Os processos de domesticação do
risível, que, como vimos, podem ser encontrados há mais de vinte séculos na cultura
ocidental, assumem contornos ainda mais gritantes se pensarmos nas relações entre o
capitalismo e a comicidade. A exemplo da absorção dos movimentos da contracultura pelo
sistema de produção capitalista, bem como das festas carnavalescas, o riso também assume
na cultura midiática a dimensão de mais um produto de consumo. Minois ressalta que, ao
longo do século XX, assistimos na cultura ocidental uma inversão do papel desempenhado
pela comicidade.
Durante séculos o riso esteve associado a seu potencial de violação dos valores
instituídos, suscitando, muitas vezes através da zombaria, críticas ácidas a normas, valores e
ao poder. Vícios, excessos e abusos constituem terreno fértil ao risível desde a Grécia Antiga,
uma vez que nos remetamos, por exemplo, às comédias de Aristófanes24. Não raro na
história da humanidade o riso fora alvo de controle e repressão por parte dos poderes
instituídos25, estes repudiando severamente as manifestações contrárias a seus valores, pois
a hilaridade podia representar um espaço último de liberdade, através do exercício da
derrisão26.
Contudo, a incorporação dos mecanismos derrisórios pelo campo político, por
exemplo, processo acirrado pela manipulação de meios de comunicação de massa, acaba
por enfraquecer o potencial subversivo do risível, ocasionando o efeito inverso, ou seja, a
banalização das práticas que denuncia. O riso vai sendo absorvido e manipulado pelo poder,

24
Comediógrafo considerado como principal representante da chamada Comédia Antiga – século V a.C.
Derivados dos ritos de fertilidade ao Deus Dioniso, seus textos dramatúrgicos eram caracterizados por realizar,
através da comicidade, críticas violentas aos costumes e instituições, muitas vezes utilizando artifícios
exagerados e obscenos.
25
Minois (2003) afirma que o riso já era identificado pelos precursores do cristianismo como um fenômeno
diabólico, símbolo da decadência humana. Remontam ao início do Império cristão diversas interdições,
perseguições e condenações às festas, identificadas como manifestações de riso coletivo. Desde o fim do
século IV, por exemplo, as festas pagãs deixam de ser patrocinadas e, no ano de 389, Teodósio e Valentiniano II
eliminam-nas do calendário oficial. Data ainda dessa época, o mito cristão de que “Jesus nunca riu”. Para
maiores informações ver o capítulo A diabolização do riso na Alta Idade Média (Ibid., p. 111 – 154).
26
Termo derivado da palavra latina derisìo, indica escárnio, zombaria. É identificado pelos estudiosos de
linguística como uma estratégia argumentativa que não se reduz ao riso. Trata-se de uma “associação do
humor e da agressão que a caracteriza e a distingue, em princípio, da pura injúria” (BONNAFOUS, 2002, p. 45).
33

e aquilo que outrora fora instrumento de resistência, agora restará como indicativo de
prestígio.
A democracia moderna aprende a incorporar as práticas de zombaria, nelas
vislumbrando não mais uma ameaça, mas uma grande utilidade. Ser posto na berlinda pelas
críticas cômicas é estar em evidência na imprensa midiática, podendo tirar proveito da
popularidade das paródias 27, oportunidade de demonstrar aos eleitores que a prática
política também é capaz de comungar das virtudes do riso, como na antiga máxima “falem
mal, mas falem de mim”.
Nesse contexto que envolve a banalização do riso e a sua utilização não como ação
crítica, mas como reforço das normatividades instituídas, podemos pensar a incorporação do
palhaço pela cultura de massa como um exemplo patente dessa problemática. Entendido
muitas vezes como mera figura de entretenimento, o clown vai perdendo sua força de
criação e resistência, diante do esvaziamento de suas potencialidades transgressivas. Não é
difícil encontrar a utilização do palhaço para fins comerciais que vão da distribuição de
panfletos à propaganda de redes de lanchonete fast food.
Por outro lado, não há como esquecer a candidatura e posterior eleição de Francisco
Everardo Oliveira Silva, o palhaço cearense Tiririca 28, obtendo a marca de um milhão e
trezentos e cinquenta mil votos válidos, tendo sido o candidato a deputado federal mais
votado na eleição brasileira de 2010. Independentemente da posição política que se adote
neste caso, não há como negar que a campanha eleitoral do palhaço Tiririca era baseada no

27
Patrice Pavis (2005) esclarece como paródia: “ Peça ou fragmento que transforma ironicamente um texto
preexistente, zombando dele por toda espécie de efeito cômico [...]. A paródia compreende simultaneamente
um texto parodiante e um texto parodiado, sendo os dois níveis separados por uma distância crítica marcada
pela ironia [...]. Sendo ao mesmo tempo citação e criação original, mantém com o pré-texto estreitas relações
intertextuais. Mais que imitação grosseira ou travestimento, a paródia exibe o objeto parodiado e, à sua
maneira, presta-lhe homenagem. [...] A paródia diz respeito a um estilo, um tom, uma personagem, um gênero
ou simplesmente a situações dramáticas.” (PAVIS, 2005, p. 278-279).
28
Tiririca iniciou sua carreira aos oito anos, estreando no circo como equilibrista, malabarista e mágico em sua
cidade natal, Itapipoca, Ceará. Ainda criança realizou os primeiros números vestido de palhaço e, ao longo da
carreira, chegou a ser dono de circo. Tornou-se nacionalmente conhecido no ano de 1996, quando a gravadora
Sony Records lançou um disco com a música Florentina, canção tocada exaustivamente nas rádios e programas
televisivos da época. Tiririca iniciou, então, sua carreira na televisão, tendo trabalhado em diversas emissoras
televisivas em programas humorísticos e de auditório. Atualmente é deputado federal pelo Partido da
República – PR/SP. Destacamos que não temos neste estudo o objetivo de discutir o trabalho deste
comediante, mas citamos seu caso como exemplo do cruzamento entre o universo da política e figuras ligadas
à comicidade. Fonte da imagem: <http://www.implicante.org/artigos/o-voto-tiririca-na-extrema-direita-da-
usp/>. Acesso em 14 jan. 2012.
34

esvaziamento de propostas e no investimento em tiradas cômicas que beiravam o absurdo,


apresentando slogans como "Vote Tiririca, pior que tá não fica" e "Você sabe o que faz um
deputado federal? Eu não sei. Mas quando chegar lá eu te conto!". Este parece ser apenas
mais um reflexo do processo descrito por Minois, quando o uso desmedido do riso torna
incipiente sua função subversiva e, ao contrário, reforça os modelos que deveriam ser objeto
de uma reflexão crítica.
O autor supracitado ressalta, ainda, outra problemática que envolve o risível e que
entendemos também contribuir para a banalização da figura do palhaço. Desde a
antiguidade clássica e durante séculos o riso fora associado à festa29, à ruptura das
atividades sociais, ao avesso do cotidiano, regenerando através do caos o mundo e a
humanidade, rituais que tinham um tempo predeterminado. O caráter excepcional da festa
e do riso coletivo permitiam uma descontinuidade, um deslocamento temporário da norma.
Contudo, a sociedade moderna visa fazer com que esse fenômeno, outrora dotado
de excepcionalidade, ganhe um caráter permanente e cotidiano. Entendendo a própria vida
como a busca infindável de uma experiência festiva e prazerosa, sentimentos como o tédio,
o desânimo ou mesmo a melancolia são rechaçados ao plano do banimento a qualquer
preço. E, se a festa é definitiva, se tudo é risível, o riso perde consequentemente sua força.
Segundo Minois (2003, p. 602):

[...] a sociedade de consumo deve ser uma sociedade eufórica. O homem


feliz compra, e o riso é um poderoso argumento de venda. Pela
superprodução e pelo superconsumo, o mundo dos objetos úteis será
elevado à categoria do mundo lúdico; agora, consumir tudo e nada, por
nada, para nada, por consumir, será uma verdadeira festa. [...] A festa
moderna é, portanto, obrigatória. Nada de cara feia, de aparência tristonha,
deprimida, de ar de desânimo. Os recalcitrantes, os que não acham graça
nisso ou que não têm vontade de rir, são vítimas de ostracismo, apontados
com o dedo, porque nada é mais intolerante que um grupo de ridentes. A
tirania do riso é impiedosa.

Assim, um dos símbolos da alegria, da ludicidade, da diversão sem limites, o palhaço


vai sendo cooptado como facilitador das relações de consumo, um dos representantes desse

29
Segundo Minois (2003, p. 601), a festa era “um fenômeno-limite excepcional, ao mesmo tempo instituição
social, legitimada no interior de um espaço e de um tempo, e uma experiência coletiva de negação institucional
em que se dá livre curso aos fantasmas individuais em busca daquilo que transcende a ordem da sociedade
imanente e que se pode chamar, por comodidade provisória, de sagrado”.
35

ideal de sociedade eufórica e ridente. O pesquisador Luiz Gonzaga Godoi Trigo (2008)
destaca como uma das características das últimas décadas do século XX, bem como do início
do século XXI, o fenômeno de absorção dos mais variados setores produtivos às redes de
entretenimento. Artes, esportes, lazer, turismo, show-business vão sendo articulados como
valiosas mercadorias capazes de promover prazer ilimitado e gerar vultosas receitas fiscais.
Se, por um lado, essas novas relações de consumo garantem ao capitalismo liberal grandes
lucros aliados à estabilidade do sistema dominante através da alienação, por outro,
representa para os consumidores novas possibilidades de hedonismo e emoções pré-
fabricadas, ilusões efêmeras de escape de um cotidiano massificado.
Se riso e alegria são elevados à categoria de poderoso argumento de venda, na
busca incessante por bem-estar e diversão, o clown vai sendo arrastado por esses processos
que o transformam em figura domesticada e dócil, de fácil absorção, o que pode ser
observado em campanhas publicitárias, programas de televisão e marcas que exibem a
imagem de risonhos palhaços. Todavia, o processo de docilização clownesca não se restringe
ao âmbito das relações comerciais capitalistas, podendo ser também observado no campo
das artes da cena, em dinâmicas muito mais complexas que a simples demarcação clown
transgressor/clown dócil poderia abarcar.
Ultrapassando os suportes das campanhas publicitárias e chegando até o âmbito
artístico, podemos notar que o enfraquecimento das intensidades não é uma problemática
concernente apenas aos ditos palhaços “destinados ao mero consumo”, havendo uma
contaminação dessa banalização também sobre o território dos palhaços que buscam
desenvolver experiências cênicas.
Seja em apresentações que privilegiam somente os aspectos adocicados do
palhaço, seja na enxurrada de oficinas que proliferam pelas cidades brasileiras, prometendo
aos alunos a tão sonhada “descoberta de seu clown” 30, não é difícil nos depararmos no

30
Em matéria da Revista VEJA SP de 18 de fevereiro de 2011, Paulistanos pagam até 1.000 reais em cursos de
palhaço, podemos observar que, assim como os cursos de teatro são procurados por um grande número de
pessoas com objetivos funcionais que diferem do foco artístico, como a busca da desinibição ou para aprender
a se comunicar melhor em público, também os cursos de palhaço têm sido incorporados a esta lógica. Não nos
cabe nesta pesquisa discutir os prós e contras dessas iniciativas, mas nos chamam a atenção alguns dos termos
associados pelos alunos desses cursos ao palhaço como: brincar, relaxar; presentear os outros (através da
atuação clownesca). Segue, assim, mais uma vez, a associação entre o palhaço e o bem-estar. Na mesma
matéria, contudo, o matador de palhacinhos Hugo Possolo critica o modismo dos cursos de clown, advertindo:
36

âmbito da experiência cênica – no teatro, na rua, ou mesmo no universo circense - com


palhaços cujo potencial transgressor se encontra muito esmaecido ou até mesmo
inexistente. Podemos encontrar em alguns autores e artistas a preocupação com esses
processos de esvaziamento das intensidades clownescas, os quais acabam por acarretar a
simplificação e banalização da palhaçaria.
Pensando nessas relações, não poderíamos deixar de falar do artista paulista Hugo
Possolo (2009), cujo artigo Matador de Palhacinho critica a banalização do palhaço, bem
como a sua utilização para os mais diversos fins, como animação de aniversários ou
divulgação de lojas, em detrimento de seus potenciais artísticos. Possolo leu publicamente o
texto, em tom de manifesto, na terceira edição do Encontro Internacional de Palhaços Anjos
do Picadeiro, realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 2000. Segundo Marcio Libar (2008, p.
180), um dos organizadores do evento, o artista “disparava sua metralhadora giratória
contra aqueles que achavam que bastava usar nariz para se sentirem palhaços. [...] muitas
pessoas ficaram com o matador de palhacinhos atravessado na garganta31”.
A técnica clownesca, como qualquer técnica artística, deve estar disponível ao
indivíduo que tenha desejo e força suficientes para experimenta-la. Contudo, a simplificação
apontada e veementemente criticada por Possolo tem contribuído para o esvaziamento do
jogo de forças passível de presentificação quando estamos diante de um palhaço. Ocupando
o lugar central de um processo de banalização, muitos clowns privilegiam suas
características leves, menos incômodas, restando aos poucos como seres primordialmente
meigos e romantizados.
Traços como a agressividade, a crueldade, a provocação, o desejo que pode beirar a
obscenidade e tantas outras sensações vigorosas, capazes de desestabilizar a experiência
cênica, vão sendo deixadas de lado, exacerbando-se a suavidade desta figura que acaba por
transformar-se não num clown doce, mas num clown dócil 32. Destacamos, ainda, a
enunciação do pesquisador Mario Fernando Bolognesi na parte final de sua obra Palhaços:

“Arte não é divã e serve para provocar”. Disponível em: <http://vejasp.abril.com.br/materia/cursos-de-


palhaco-clown>. Acesso em 17 nov. 2012.
31
Uma versão desse texto está reunida junto com outros escritos de Possolo no livro Palhaço-bomba (2009).
32
Ressalte-se que adotamos aqui o entendimento acerca do adjetivo doce como aquilo que agrada aos sentidos
ou que é feliz e despreocupado, diferentemente do adjetivo dócil atinente àquele que se submete a algo ou
alguém sem oferecer resistência. Conforme Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=d%25C3%25B3cil>. Acesso em 12 jan. 2013.
37

No que diz respeito aos Palhaços, o risco maior é o do esvaziamento do


potencial grotesco. Sob a óptica de uma revivescência simbolista do Clown
(para não dizer romântica), pode ocorrer o predomínio de uma visão etérea
e inatingível, que realça apenas a docilidade do Palhaço [...]. Com isso tem-
se um esvaziamento da dimensão política do Palhaço em nome de um ideal
poético metafísico. (BOLOGNESI, 2003, p. 200).

Patrice Pavis (2005) destaca que o termo grotesco é oriundo da palavra italiana
grottesca, derivação de gruta, vocábulo que se referia às pinturas soterradas encontradas na
época do Renascimento, cujo conteúdo aludia a motivos fantásticos. Segundo este autor, o
grotesco no âmbito teatral opera a comicidade através de efeitos caricaturais, os quais
causam estranheza pela “deformação significativa de uma forma conhecida ou aceita como
norma.” (PAVIS, 2005, p. 188).
Logo, podemos entender que uma das relações possíveis entre o palhaço e suas
matrizes grotescas se funda em sua condição desviante em relação à normatividade.
Bolognesi (2003) ressalta, ainda, que a relação entre o corpo do palhaço e o grotesco explora
a inadequação, o sem sentido, diante de um mundo cada vez mais utilitário, construído a
partir dos valores de uso e de troca. Dessa forma, o palhaço opera uma transgressão dos
processos civilizatórios iniciados, sobretudo, a partir do século XVIII, que buscam cada vez
mais a equiparação do corpo do homem com a eficiência das máquinas.
O potencial clownesco transgressor vai sendo esvaziado pelos processos de
domesticação e docilização, quando as intensidades clownescas se enfraquecem dando lugar
a palhaços que, segundo Bolognesi, privilegiam somente as instâncias sublimes. Victor Hugo,
em seu tratado sobre o grotesco, destaca a importância das relações de fricção daquele com
o sublime, afirmando:

O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se


necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o
grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de
partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca
e mais excitada. (HUGO, 2002, p. 33).

Um palhaço que atue dando ênfase a aspectos elevados e nobres, sem as instâncias
desviantes da inadequação e da violação dos padrões, vai perdendo suas intensidades, sua
instabilidade própria do humano – no sentido nietzschiano de humanidade como espaço da
38

diferença. Assim, o clown vai recaindo no que Bolognesi chama de construção “simbolista”.
A pesquisadora Regina Zilberman (2007) destaca que o movimento simbolista defendia a
busca por um mundo ideal através de conceitos como beleza, pureza e bondade, com
destaque excessivo às perspectivas subjetivas e emocionais do ser humano.
Autores e poetas simbolistas como Cruz e Sousa evocavam a figura do palhaço
numa perspectiva carregada de sentimentos, como podemos observar em Acrobata da Dor:
“Gargalha, ri, num riso de tormenta/ Como um palhaço, que desengonçado,/ Nervoso, ri,
num riso absurdo, inflado,/ De uma ironia e de uma dor violenta. [...]/ Ri! Coração,
tristíssimo palhaço.” (SOUSA, 1993, p. 57). Quando a atuação clownesca torna-se somente
um espelho desse mundo ideal, símbolo da pureza e dos bons sentimentos, vemos
empobrecer a força provocadora de sua comicidade, como também afirma o artista Dario Fo
(2004, p. 304):

Certos atores vestem uma bolinha vermelha no nariz, calçam sapatos


descomunais e guincham com voz de cabeça, e acreditam estar
representando o papel de um autêntico clown. Trata-se de uma patética
ingenuidade. [...] Atualmente, o clown tornou-se um animador de festas de
crianças: é sinônimo de puerilidade simplória, da candura digna de um
convite de aniversário, do sentimentalismo babão. O clown perdeu sua
antiga capacidade de provocação, o seu empenho moral e político. Em
outros tempos, o clown exprimia a sátira à violência, à crueldade, à
condenação da hipocrisia e da injustiça. Faz apenas alguns séculos, era uma
catapulta obscena e diabólica [...].

Ressalte-se que tanto Dario Fo como Bolognesi evocam o potencial político do


palhaço, o qual se encontra cada vez mais enfraquecido pelos processos da docilização.
Entendemos que o clown pode assumir um viés de contestação que é político na medida em
que sua figura pode ser vinculada a ideias como provocação, inadequação e transgressão das
normas e do senso comum, como exercício instável das diferenças. Contudo, nosso objetivo
não é adentrar especificamente a discussão sobre as relações entre arte, política e palhaço,
visto que a complexidade do tema daria ensejo a uma nova investigação cujos
desdobramentos não caberiam nas páginas desta dissertação.
Objetivando um desdobramento ao tema da docilização do palhaço, bem como
suas relações com os processos civilizatórios corporais utilitaristas apontados por Bolognesi,
retornaremos aos escritos de Michel Foucault. Os Corpos Dóceis é o título de um dos
39

capítulos de Vigiar e Punir (2004b), onde Foucault se dedica ao estudo da disciplina em


relação ao corpo, este sendo entendido como objeto e alvo de poder.
O autor destaca que, ao longo da chamada época clássica – século XVIII - o corpo
fora alvo de um duplo enfoque: um anátomo-metafísico, cujo princípio fora realizado por
Descartes e, posteriormente, desenvolvido por médicos e filósofos; e outro viés técnico-
político, composto por normas e regulamentos que abarcavam as mais diversas instituições
disciplinadoras, como o exército, as escolas e os hospitais, tendo em vista o controle ou a
correção das operações do corpo.
Essas duas perspectivas oscilavam ora em relação à explicação e ao funcionamento
do corpo, ora tratando de sua utilização e submissão, girando em torno da noção de
“docilidade” corpórea. Nas palavras do autor francês: “É dócil um corpo que pode ser
submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.” (FOUCAULT,
2004b, p. 118). Nesse contexto, o filósofo destaca que as chamadas disciplinas constituem-
se de metodologias de controle do corpo, operando mecanismos de sujeição constante, de
coerção contínua, de organização e eficácia, erigindo relações de docilidade-utilidade.
Segundo ele:

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte


do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,
nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação
que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil,
e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um
trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de
seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. [...] A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade)
e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em
uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma
"aptidão", uma "capacidade" que ela procura aumentar; e inverte por outro
lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação
de sujeição estrita. (Ibidem, p. 119).

Os processos que envolvem e submetem o corpo, contudo, não se realizam em


grandes escalas, em massa, mas operam no terreno minucioso do “micro”, do sutil. “A
disciplina é uma anatomia política do detalhe” (Ibid., p. 120). Há uma relação entre o corpo
dócil e as relações econômicas e sociais que o encerram, conforme discorre a pesquisadora
40

Ana Márcia Silva (1996), destacando que esse corpo revestido de utilidade e docilidade está
adequado como mercadoria fundamental do ordenamento social, garantia de reprodução e
manutenção dessa ordem.
Investigar um palhaço dócil, portanto, é estar diante de uma figura obediente,
submetida, manipulada e útil às normas e ao reforço do senso comum. O palhaço dócil não
incomoda, não transgride, não atravessa valores nem exercita a experiência da diferença –
voltando nossa argumentação também aos conceitos nietzschianos. Sempre atento a
agradar, a realizar gestos meigos, afáveis, a obedecer às regras do politicamente correto, o
palhaço dócil vai perdendo a sua potência de afetar e ser afetado.
Transgredir normas e valores causa perturbações, problemas, origina
constrangimentos e pode deixar o transgressor em “maus lençóis” diante de seus pares -
lembremos-nos da descrição de Marcio Libar sobre o desconforto causado pelo manifesto
Matador de Palhacinho de Possolo e de como este artista foi visto com desconfiança por
vários colegas de palhaçaria após a leitura pública do texto. Não é a instabilidade, contudo,
que muitos desejam em relação à técnica clownesca, entendendo esta figura cômica de uma
forma cada vez mais útil e apta a não incomodar, mantendo como objetivo trazer ao público
a tentativa da alegria infantilizada, da conquista do espectador através da ternura e dos
aspectos mansos de um ser romantizado.
Ingenuidade, infância, suavidade, delicadeza são conceitos interessantes de serem
trabalhados no jogo do palhaço, mas porque devem ser os principais, ou mesmo os únicos?
É triste perceber como o palhaço dócil vai ficando trivial, adequado ao cotidiano, numa
dinâmica que identifica as técnicas de palhaçaria com uma arte que conforma, que dá força
às normas, que submete a quem faz e a quem a recebe.
Entendemos que a linguagem clownesca é profundamente autoral e relacional,
pois o palhaço está fundamentado no artista que lhe dá vida e, ao mesmo tempo, sua
existência se manifesta a partir das relações que o clown vai construindo com o mundo a
sua volta, transitando pela “descoberta de uma segunda natureza cênica que principia na
pessoa do ator e nas relações estabelecidas, em cena, com outros atores e com a plateia”
(BARBOZA, 2001, p. 17).
O jogo do palhaço passa pela exposição daquele determinado artista posto em
fricção com o ridículo. Fraquezas, fracassos, ilusões entram no cadinho de criação da
41

comicidade. Torna-se, portanto, praticamente inconcebível que nesta figura cômica, com tal
grau de instabilidade, residam somente os aspectos meigos da natureza humana. O palhaço
dócil parece privilegiar o que o pesquisador Cassiano Quilici (2006, p. 2) chama de dimensão
reativa:

Ele [o corpo cotidiano na sua dimensão reativa] se constituiria também a


partir da recusa de experiências que ameaçam as representações ilusórias
de sua própria estabilidade e identidade. Na sua positividade, o
comportamento cotidiano é funcional e adaptativo, “dócil e produtivo” (M.
Foucault), o que torna possível seu claro engajamento nos organismos
sociais. Mas a estabilidade dos hábitos e das representações cotidianas
implicaria também num “recuo em relação a nossa própria obscuridade”
(Blanchot). Aquilo que foge ao domínio das representações, que emerge
nas lacunas e fissuras do simbólico, que flutua numa região de incertezas,
tende a ser ignorado e esquecido.

A tentativa de estabilidade, de adaptação às normas do decoro, da simpatia, da


aceitação por parte do público, enfraquece sobremaneira a experiência artística construída
pela técnica clownesca. O palhaço, ao ter suas intensidades esvaziadas, perde em
complexidade e força, quando ele deveria ser aquela figura cômica que não recua diante da
própria obscuridade, mas a assume em seus aspectos mais ridículos. Expor e assumir erros,
obsessões, ilusões, como exige a linguagem clownesca, é transitar por terrenos instáveis e
sombrios, atinentes ao próprio indivíduo. Nas palavras da artista Silvia Leblon33, também
conhecida como palhaça Spirulina:

É a realidade do ser humano que não é nada, que é perplexo diante da vida,
é a nossa imperfeição, é a nossa burrice, a nossa ignorância, aquilo onde a
gente falha, onde a gente não entende, é exatamente o buraco da gente...
Eu acho que o clown é isso, personifica isso, a condição humana por
excelência, de imperfeito, de paspalho diante da vida. (LEBLON apud
KASPER, 2006, p. 4).

A palhaçaria expõe o artista que exercita esta técnica, experiência compartilhada


com cada espectador. É da intensidade desse encontro que poderá surgir a alegria, e não de
uma figura que busque suavizar e romantizar seus aspectos humanos. O clown constrói seu

33
Entrevistada em maio de 2002 pela pesquisadora Kátia Maria Kasper como parte integrante do artigo
Corporeidades, saberes e vidas fora da norma: trajetórias de atrizes palhaças (2006).
42

jogo na experiência dos encontros, na relação com o outro, transitando por zonas
desconhecidas cujo alcance e limites é impossível prever. Nas palavras de Jacques Lecoq
(2010, p. 217):

[...] o clown tem um contato direto e imediato com o público, só pode viver
com e sob o olhar dos outros. Não se representa um clown diante de um
público, joga-se com ele. Um clown que entra em cena entra em contato
com todas as pessoas que constituem o público, e seu jogo é influenciado
pelas reações desse público. (Grifos do autor).

Acreditamos que é na relação entre palhaço e espectador que a experiência cênica


pode ver brotar suas dimensões sublimes ou grotescas, sem medo da obscuridade ou da
instabilidade, em redes de potência geradas pelos fluxos de afetos. Diante dos processos de
docilização, entendemos o jogo das qualidades transgressivas como um exercício de
resistência necessário ao palhaço, capaz de problematizar suas atuações em relação com o
espectador, colocando-as em atrito com a banalização e o esvaziamento de suas potências.
Porém, destacamos que não é nosso objetivo realizar uma “fetichização” da transgressão,
pois privilegiar somente os aspectos transgressivos do palhaço redundaria também no seu
empobrecimento, constituindo uma espécie de contraface da docilização clownesca, tão
limitadora e prejudicial quanto sua dimensão contrária.
Aqui nos cabe atentar para a ressalva da pesquisadora Cleise Furtado Mendes
(2008) a respeito da transgressão na comicidade, quando ela afirma que entender a ação
cômica como rebeldia generalizada seria uma ingenuidade, de acordo com os complexos
processos de absorção e manipulação do riso. Além disso, nosso campo de estudo inspira
ainda maiores cuidados para que não resvalemos na armadilha, sempre presente, de “[...]
passar facilmente da idéia 34 excitante de uma transgressão do ritual à monotonia de um
ritual de transgressão [...].” (MENDES, 2008, p. 208).
Uma das propriedades mais instigantes do clown reside no fato de que ele constrói
sua atuação por contágio de potências e afetação, os quais vão se compondo e decompondo
a partir das relações que ele estabelece com o mundo a sua volta. Cada jogo, cada gesto
pode ser um convite à violação e à instauração das matrizes transgressivas como, ao
contrário, pode ser mais um exemplo, entre tantos, de esvaziamento de intensidades. Resta

34
Grafia do texto original, anterior à entrada em vigor do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009).
43

ao artista-palhaço, portanto, desenvolver suas atuações sobre essa linha tênue capaz de
tensionar afetos e relações, como se caminhasse numa corda bamba, o que torna seu
trabalho passível de todos os riscos e, justamente por isso, confere-lhe grande beleza.

1.3 - Transgressão e formação de palhaços

Como temos visto, uma das consequências resultantes das dinâmicas de


superficialização e docilização da palhaçaria reside no fato de que a atuação clownesca vai
perdendo suas intensidades e instabilidades, tornando-se um estereótipo adocicado e vazio.
Nesse contexto, destacamos que a cultura midiática contribui para acirrar o esvaziamento
do palhaço através da sua assimilação pelos mecanismos de propaganda e venda, retirando
sua força crítica e identificando sua imagem com a busca da alegria permanente e alienante.
Contudo, a banalização do clown não se restringe ao âmbito comercial, podendo ser
verificada também em práticas artísticas, fato que aumenta ainda mais a necessidade de
discussão e reflexão acerca da problemática.
Dessa forma, nossa investigação vai se dedicar, nas próximas páginas, a pensar a
formação de palhaços, uma vez que entendemos que as relações pedagógicas entre os
alunos que desejam se iniciar nas técnicas da palhaçaria e seus formadores também
constituem espaço ao desenvolvimento das qualidades transgressivas ou, ao contrário, o seu
enfraquecimento.
Alice Viveiros de Castro (2005) destaca os artistas Jacques Lecoq e Philippe Gaulier
como principais responsáveis pela aproximação entre a formação de atores e a linguagem
clownesca. Estes pesquisadores foram entendendo, ao longo de seus percursos, que as
técnicas do palhaço mantinham grandes relações com as artes da cena, integrando esses
focos de estudo às suas metodologias de ensino. A chamada “busca pelo próprio clown” foi
sendo assimilada, em termos didáticos, aos princípios que regem o trabalho da máscara
teatral35, e o nariz de palhaço passou a ser identificado como a menor máscara do mundo.

35
Maiores informações acerca dos princípios da máscara teatral podem ser encontrados na obra de Jacques
Lecoq (2010), bem como na dissertação O papel do Jogo da máscara teatral na formação e no treinamento do
ator contemporâneo, de Ana Achcar (UNIRIO, 1999).
44

A partir dessas linhas de investigação, inúmeros artistas de todo o mundo, inclusive


do Brasil36, entraram em contato com a palhaçaria e passaram, posteriormente, a
compartilhar suas práticas através de novas pesquisas, espetáculos e, sobretudo, no âmbito
de cursos e oficinas, onde podiam transmitir a novos aprendizes sua experiência acumulada
como palhaços. Campo de estudo relativamente novo, se pensarmos na história das artes
cênicas de uma forma mais ampla, a técnica da palhaçaria pode ser alvo de múltiplas
abordagens de acordo com o entendimento que cada artista alimenta em relação à figura do
palhaço.
Inúmeras ações artísticas podem envolver a atuação clownesca, seja no picadeiro,
na rua, em espetáculos teatrais, ambientes hospitalares, prisões, empresas, e todas essas
experiências diversas, com suas especificidades, vão construindo visões pessoais acerca do
clown, as quais poderão ser transmitidas a outros aprendizes. Contudo, apesar da
multiplicidade de focos e abordagens, o que enriquece e ao mesmo tempo dificulta o estudo
dessa linguagem, um dos primeiros e principais mecanismos de investigação e formação do
palhaço consiste na busca pelo encontro daquele indivíduo com o ridículo. No jogo do clown
são as fragilidades do intérprete, suas vaidades, desejos e ilusões que, ampliadas,
evidenciam o ridículo pessoal e apontam para a hilaridade do próprio homem e das ordens
sociais. No tocante à relação entre o fenômeno artístico e a comicidade pelo ridículo,
Gilberto Icle (2006, XXII) esclarece:

O estado ridículo é extremamente dinâmico, pois lida com uma


complexidade de energias vivas e pulsantes. No entanto, o que diferencia
um sujeito qualquer de um ator, pois ambos passam por estados ridículos
no cotidiano, é que o ator é capaz de elevar esse estado a um patamar
extracotidiano, tomando para si esse estado ridículo, generalizando-o em
outras ações e reproduzindo-o, para reapresentá-lo em outro momento,
conseguindo um efeito semelhante ao de quando o estado foi criado.
Portanto, o estado precisa se tornar transformação, e a condição dessa
transformação é a sua apropriação.

Nas artes da cena, o ridículo ganha um status ampliado, extracotidiano, que é


passível de apropriação e repetição. Entretanto, o ridículo no palhaço é anterior ao
36
Bolognesi destaca, no artigo Apropriações do palhaço (2006), as principais linhas de abertura da cena paulista
em relação a essas metodologias de formação do palhaço, nas últimas décadas do século XX. Em relação à
cidade do Rio de Janeiro não encontramos estudo que se dedique à contaminação entre as técnicas da
palhaçaria e o teatro carioca, tema que aguarda a abordagem de futuras pesquisas.
45

fenômeno cênico, uma vez que está presente na própria construção e no exercício da
linguagem clownesca, seja no aprendiz ou no clown experiente, intimamente relacionado ao
próprio estado do palhaço. Ricado Puccetti (2009), ator-pesquisador do LUME37, esclarece
que o estado clownesco vai sendo construído pelo artista na experiência de confrontação
com a plateia, na sensação de “sentir-se exposto, de ‘ser visto’, de ‘revelar’ algo íntimo para
o público.” (PUCCETTI, 2009, p. 120. Aspas do autor). Estado que vai sendo desenvolvido no
jogo entre o palhaço e o espectador, na interação de ambas as partes, relação de onde
poderá nascer a comicidade.
Essas dinâmicas pressupõem um grau de exposição que pode ser difícil, assustador,
quando o intérprete se depara com seus estereótipos, suas ideias pré-concebidas, sua
vontade de acertar e conquistar os espectadores, suas impossibilidades e fracassos, como
podemos depreender, por exemplo, do chamado exercício do picadeiro38. Puccetti (Ibid., p.
121) destaca que esta ação “coloca o aprendiz em situação de desconforto, o que leva a um
‘desmoronamento’ de suas defesas naturais, aqueles estereótipos ou fórmulas já prontas,
às quais sempre nos apegamos nos momentos de aperto”.
Cabe-nos, contudo, uma ressalva sobre o caráter pessoal e autoral vinculado à
técnica clownesca. Apesar de constituir-se, geralmente, num trabalho voltado sobre a
pessoalidade de seu intérprete, acreditamos que a formação do palhaço não deve estar
direcionada para uma perspectiva de funcionalidade e “revelação” de si mesmo. Diversas
oficinas de palhaçaria prometem claramente a seus alunos, ou deixam implícito em sua
proposta metodológica, que o desenvolvimento do palhaço possibilitará uma espécie de
viagem interior do artista em busca do autoconhecimento, o que pode ser observado até
mesmo na expressão tão recorrente “descoberta de seu próprio clown”.

37
Este grupo mantém uma pesquisa continuada sobre o chamado “clown pessoal”, criando suas próprias
metodologias de trabalho - inspiradas especialmente na antropologia teatral de Eugenio Barba e no trabalho
de Jacques Lecoq sobre as máscaras teatrais - objetivando a dilatação das particularidades e do ridículo do
ator, revelando a comicidade de cada indivíduo. Mais informações podem sem encontradas no sítio:
<http://www.lumeteatro.com.br/>.Acesso em 05 mar. 2012.
38
Muito utilizado em cursos de palhaço, consiste na entrada individual do palhaço diante da plateia e do
orientador do processo de formação, este assumindo o papel de Monsieur ou Madame, dono(a) do circo.
Nesse jogo há apenas uma vaga para trabalhar no circo e uma fila de interessados no emprego, então, cada
palhaço deve se colocar diante da assistência e mostrar o que sabe fazer de melhor, quais são as suas aptidões
e qualidades que justificarão que seja contratado ou não. Ao dono do circo, por sua vez, cabe a função de
provocar e instigar o clown, tirando-lhe de suas zonas de conforto. Podemos encontrar descrição deste
exercício em Burnier (2001, p. 217).
46

Esta nos parece uma visão problemática que entende o palhaço como uma parcela
do homem ligada a suas características mais escondidas, escamoteadas pelas máscaras
sociais e que, no decorrer da construção do clown, possibilitará àquele indivíduo conhecer e
trazer a tona sua “verdadeira natureza”, num processo de libertação e autoconhecimento.
Essa é uma perspectiva que vai se infiltrando nas formações artísticas, muitas vezes sem
uma percepção clara por parte dos aprendizes e mesmo dos formadores.
Muitos desejam iniciar suas vivências em relação ao palhaço objetivando a
descoberta desse núcleo interior, num esforço por modos de utilizar o “ridículo em mim”
como trunfo. Pensar a formação clownesca de modo funcional, exercitando maneiras de
como ser mais comunicativo, mais eficiente nas relações sociais, mais útil a si mesmo e aos
outros, constitui-se num processo que enfraquece a experiência da diferença no palhaço e a
reveste de conformação com a norma. No tocante a essa busca por uma individuação
essencial e identitária, trazemos a interlocução do pesquisador Renato Ferracini (2010, p.
48):

O homem deve ser entendido hoje como um grau de potência de afetar e


ser afetado e não como um sujeito cuja suposta “essência humana” –
encontrada em algum lugar profundo dentro de um interno não localizável
– seja maculado pelas relações de um poder social, econômico e cultural.
Nada a ser descoberto por véus que encobrem algo. Nada a ser encontrado
ou reencontrado em um suposto passado perdido. Esse homem – enquanto
grau de potência – enquanto capacidade de afetar e ser afetado – torna-se
hoje, um homem relacional. Ele não é uma essência maculada ou
escondida, mas uma potência construtora presente, uma usina intensiva.
Esse homem que busca potencializar de forma alegre e positiva suas
relações.

Longe de entendermos que o palhaço privilegiará ao artista a descoberta de sua


personalidade escondida ou uma suposta “essência interior”, identificamos que esta figura
cômica traz ao intérprete cênico a possibilidade de transitar por fluxos de afetos e
intensidades experimentadas na multiplicidade das relações. Se neste percurso o intérprete
entrar em contato com composições até então desconhecidas, essa dinâmica será
vivenciada na instabilidade das sensações, sem a perspectiva ou o objetivo de limitar,
catalogar e cristalizar características que possam vir a construir uma identidade definida.
Suely Rolnik (2011) destaca que, independentemente do sentido que se dê à noção
de interioridade, essa concepção está intimamente ligada a um estancar das dinâmicas de
47

fluxos e conexões desejantes, ocasionando o rompimento das possibilidades de composição


e decomposição do desejo. Diante desse corte, o indivíduo constrói o entendimento de ser
caracterizado por uma instância interior, “[...] por um conjunto de representações e
sensações fixas, um ‘dentro’ – a impressão de ter um ‘dentro’ e até de ser esse ‘dentro’. Um
suposto dentro que morre de medo de se perder.” (ROLNIK, 2011, p. 43. Aspas da autora).
Adotar a noção de interioridade pode oferecer certa sensação de segurança, ilusão
que conforta, quando o indivíduo tenta resistir e contestar os processos de instabilidade
criados pelo desejo, apegando-se a um conjunto de características, crenças e
representações que supostamente poderiam dar conta de uma existência. Mesmo diante da
angústia de encontrar traços e defeitos nesse espaço interior, ainda assim, há aqui o
reconfortar propiciado pelo “autoconhecimento”, a possibilidade de o indivíduo estabelecer
para si um ponto fixo a partir do qual poderá iniciar um árduo esforço para modificar suas
qualidades “negativas” recém-reveladas.
É muito comum ouvir aprendizes e artistas da palhaçaria dizerem “meu palhaço é
muito vaidoso, ou muito impulsivo, ou muito violento... porque eu sou assim!”, como se o
clown pudesse revelar o que o indivíduo “realmente é” em seu interior. Ainda no tocante a
essa “busca interior”, Rolnik (Ibid., p. 43) desenvolve: “[...] aquilo que costuma ser
identificado como ‘interioridade’, em qualquer uma das suas versões [...] é uma espécie de
lugar onde tudo o que vibra, vivido como caos, é neutralizado e acaba se apagando.”.
O palhaço atua na potência do caos, uma vez que lembremos que essa figura
cômica só existe em relação com o mundo a sua volta, em dinâmicas de afetar e ser
afetado. Entendemos o processo de investigação do próprio ridículo pela linguagem
clownesca como possibilidade de fricção, como escavação de fissuras em relação ao
massificado e abertura para a instabilidade, não como estabelecimento de características
fixas e delimitáveis. Sob a égide dessas “descobertas de si mesmo” o que ocorre é um
processo de limitação do palhaço, quando se estabelece um conjunto de características
cristalizadas que vai determinar aquele clown, o que pode empobrecer sobremaneira seu
jogo, ocasionando o enfraquecimento de suas intensidades relacionais.
Assistimos à multiplicação de palhaços que parecem mais se esconder atrás do nariz
vermelho do que operar com a fricção de seus fracassos e idiossincrasias diante da plateia.
Atuando sem a densidade dos afetos, muitos contrariam as lógicas da menor máscara do
48

mundo, assim chamada por Lecoq por ser a máscara de menor tamanho, mas que,
inversamente, seria aquela que mais revela o artista que joga com ela. Ressalte-se que esse
desvelar constitui-se, em nosso entender, na abertura para a exposição dos fluxos de
afetação, em redes de contágio em constante mutação, não na exibição de um núcleo
fechado de características interiores bem estratificadas.
Dessa forma, o embate de forças trazido pelas práticas transgressivas, pensadas
como experiência da diferença, bem como o risco de seu esvaziamento, são instâncias que
perpassam a palhaçaria antes mesmo de seu encontro com os espectadores. Atravessando
as relações de formação, bem como os conceitos que determinam o que o intérprete
entende e o que ele busca com essa linguagem, parecem-nos estar em jogo algumas
questões fundamentais, como: que tipo de palhaço desejo ser? Ou, quais são os desejos que
me movem em relação à palhaçaria?
Anterior a esses questionamentos e ainda mais complexa, surge a necessidade de
que o intérprete se depare e indague acerca da sua visão sobre o mundo e sobre si mesmo.
A vida como exercício de busca pelo autoconhecimento e descoberta de um caráter
essencial, ou o salto no desconhecido dos fluxos de afeto, a instabilidade das composições
desejantes. Essas perspectivas, em permanente embate de forças, engendrarão práticas e
entendimentos que vão incidir diretamente sobre a linguagem clownesca naquele
intérprete, dada a pessoalidade dessa técnica.
A contaminação pelos processos de docilização clownesca também se apresenta
como obstáculo inerente à relação entre os processos transgressivos e a formação do
palhaço. A visão romantizada e superficial sobre o clown permeia os meios de comunicação
e ajuda a criar estereótipos que são muitas vezes carregados pelos aprendizes dessa
linguagem, dificultando seu contato com princípios referentes à técnica. Muitos iniciantes já
trazem consigo ideias preconcebidas sobre o palhaço, como nos relata Barboza (2001, p. 33.
Aspas da autora) a respeito das dificuldades do treinamento com a palhaçaria:

O problema inicial diz respeito ao ator em fase de iniciação que, apesar de


exaustivamente orientado em busca de sua inocência e de seus aspectos
risíveis, revela, muitas vezes, características “infantilóides” em lugar de
puras, “débeis” em lugar de ingênuas, artificiais e exageradas em lugar de
ridículas. O coordenador objetiva eliminar esses desvios e influências dos
pálidos recursos humorísticos de que se vale muitas vezes a televisão, por
exemplo, enquanto insiste na busca pela reação mais impulsiva, pura (livre
49

de contaminações e modelos), surgida quando o ator está em situação de


constrangimento [...].

Contudo, lidar com essas questões não são desafios atinentes somente aos
palhaços iniciantes, pois, mesmo em relação a pesquisas reconhecidamente sérias e
passíveis de toda a admiração, nem sempre o estudo do clown está livre de pontos
nebulosos. Ferracini, um dos atores-pesquisadores do LUME, compartilha algumas
definições acerca do palhaço em sua dissertação de mestrado39, como podemos observar no
trecho: ”LUME entende o clown como a dilatação da ingenuidade e da pureza inerente a
cada pessoa. O clown é lírico, inocente, ingênuo, angelical, frágil, e essas energias/emoções
devem estar latentes no corpo do ator.” (FERRACINI, 1998, p. 202. Grifos nossos).
Ressalte-se que não estamos afirmando que o LUME e seus pesquisadores ajudam a
formar palhaços dóceis, mas destacamos que, dado o contexto de esvaziamento no qual o
clown se insere, os termos supramencionados podem facilmente resvalar no universo da
docilização, ajudando a alimentar em artistas e aprendizes uma visão empobrecida sobre o
palhaço. Em relação a esses termos, encontramos nas palavras da pesquisadora Ângela
Ambrosis (2005, p. 22) um esclarecimento que nos parece interessante:

O clown caracteriza-se pelo seu modo ingênuo (estado de curiosidade e


que os acontecimentos parecem ser sempre novos e inusitados), pelo seu
modo frágil (estado de abertura, disponibilidade e vulnerabilidade para
interação com os acontecimentos externos e internos na relação com o
ambiente) e por um estado quase permanente de alegria e prazer. A
ingenuidade, a fragilidade e a alegria são seu modo de estar no mundo.
(Grifos nossos).

Dessa forma, ingenuidade e fragilidade são conceitos que tanto podem servir a uma
perspectiva empobrecedora da linguagem clownesca – quando entendidas como recuo em
relação à obscuridade do artista - como, ao contrário, podem ajudar a potencializar as
intensidades do palhaço, uma vez que nos aproximemos de caminhos como os propostos
pela pesquisadora supra. Analisar essas características sob a ótica da abertura para a
experiência, como contato com fluxos desejantes nos parece muito mais instigante para a
palhaçaria, oportunidade de produção de experiências cênicas complexas.

39
A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator (UNICAMP – 1998).
50

Ao mesmo tempo, devemos atentar mais uma vez para o fato de como os princípios
inerentes a essa arte podem ser reduzidos ao esvaziamento, ao enfraquecimento de suas
potências, o que deve servir para aumentar o rigor e a atenção sobre o tema, seja na
formação, seja na atuação clownesca, num exercício constante e cheio de meandros contra
a sua banalização.
A respeito do vocábulo lirismo, vocábulo que diz respeito à ênfase dos sentimentos,
à subjetividade40, este também nos parece um termo que pode ser facilmente apropriado
pelos discursos de sujeição e docilização do palhaço. Tentando evitar esse tipo de armadilha,
preferimos evocar o lirismo indagado pelo poeta Manuel Bandeira (1990, p. 52-53) em sua
Poética:

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao senhor diretor [...].

Quero antes o lirismo dos loucos


O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Se o palhaço pode ser lírico ele não o será como uma figura sentimentalmente
romantizada, mas por sua inadequação, sua condição desviante que pode criar fissuras nos
padrões de conformação e normatividade. Assim, a linguagem clownesca se constitui numa
técnica artística cheia de complexidades e meandros, friccionada pelo esvaziamento de suas
potências, seja, como vimos, pela docilização da sua figura cômica, seja pelo enquadramento
do clown num processo de exposição da “essência” do artista que lhe dá vida. Nas palavras
de Puccetti (2009, p. 121):

O palhaço não tem rótulos, ele não é necessariamente “puro”, anjo ou


demônio, masculino ou feminino, termos que sempre são relacionados ao
palhaço; não podemos querer enquadrar o palhaço.

40
Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=lirismo>. Acesso em 26 fev.2013.
51

Ele tem a mesma capacidade de ser e transformar que a criança possui,


sem, no entanto, ser infantilóide. [...]
O palhaço é pessoal e único e, portanto, amplo demais para ser fixado em
um tipo ou em uma maneira única de se comportar. (Aspas do autor).

Podemos entender as qualidades transgressivas no palhaço também como um


exercício do artista sobre si mesmo, como tentativa de superação em relação à sedução, em
nosso entendimento ilusória, da busca por um núcleo essencial que apazigua e conforma.
Transgressão como criação, como violação da estabilidade, como abertura para a
experimentação artística sem pontos fixos e determinados, exercício instigante e cheio de
incertezas.
Por fim, cabe-nos discutir uma questão relacionada à aproximação entre as técnicas
de palhaçaria e a formação de atores, abordada por Bolognesi no artigo Apropriações do
palhaço (2006). Retomando a enunciação presente em Palhaços acerca da domesticação
clownesca, já citada no item anterior, o autor identifica como umas das causas dessa
problemática a relação entre a arte teatral e o palhaço, o que teria ocasionado a esta figura
cômica a perda de potência, fenômeno que ele denomina como psicologização da máscara.
O autor destaca que semelhante processo teria ocorrido com as personagens da
Commedia dell’arte, quando de sua incorporação ao teatro francês, e, particularmente, à
dramaturgia do século XVII. Esse movimento teria resultado na descaracterização das
máscaras dell’arte, propiciando a “naturalização” e o “aburguesamento” das características
daquele teatro de matriz popular, enquadrando-as, portanto, nas normas e convenções do
teatro burguês. No tocante a máscara clownesca, Bolognesi (2006) afirma que a encenação e
a dramaturgia contemporâneas constituiriam um espaço de enquadramento do clown,
realizando o mesmo tipo de dinâmica civilizatória supracitada, onde as porções grotescas do
palhaço estariam cada vez mais enfraquecidas em nome de pretensões poéticas e subjetivas.
Podemos enxergar aproximações entre o que Bolognesi chama de psicologização da
máscara e os processos de docilização e de busca pelo autoconhecimento do intérprete
através do palhaço, visto que ambos refletem a perda de intensidades sofrida pelo clown na
contemporaneidade. Contudo, achamos discutível a relação de causalidade que o autor
estabelece entre esse enfraquecimento e a atuação clownesca na cena teatral. Se o
esvaziamento das qualidades transgressoras nesta figura cômica é um fato, parece-nos
52

precipitado assimilar esses processos, de forma inconteste, às relações de aproximação


entre o clown e o teatro.
Como vimos anteriormente, não são novas, na história do riso, as iniciativas
domesticadoras, havendo registro de investidas civilizatórias sobre a comicidade desde a
antiguidade clássica. Parece natural que a possibilidade de violação de normas e valores
desperte movimentos de oposição, tornando o cômico alvo de tentativas de enquadramento
em relação aos padrões. Todavia, não nos parece haver uma relação necessária entre esse
enfraquecimento e a atuação do clown na arte teatral, e nem que haja um lugar – como o
picadeiro de circo, por exemplo – completamente protegido dessa despotencialização.
Bolognesi defende que a psicologização do palhaço decorre da sua “apropriação”
pela cena teatral, a partir do desenvolvimento dos processos formativos de descoberta do
próprio clown de cada ator, dinâmicas que privilegiam a busca pelo ridículo do indivíduo. A
subjetivação e a individualização teriam resultado num abandono das características
grotescas e corporais por parte dos palhaços oriundos do teatro. Este é um primeiro ponto
que gostaríamos de discutir. Encontramos em Lecoq uma das matrizes da pesquisa sobre “o
próprio clown”, por ele assim descrita:

A pesquisa do clown próprio de cada um é, primeiramente, a pesquisa de


seu próprio ridículo. Diferentemente da commedia dell’arte, o ator não tem
de entrar num personagem preestabelecido (Arlequim, Pantalone...). Deve
descobrir nele mesmo a parte clown que o habita. Quanto menos se
defender e tentar representar um personagem, mais o ator se deixará
surpreender por suas próprias fraquezas, mais seu clown aparecerá com
força. (LECOQ, 2010, p. 214).

Conforme analisamos, a formação do palhaço a partir da investigação do ridículo do


indivíduo carrega em si uma armadilha, quando a linguagem clownesca pode ser identificada
por uma busca subjetiva essencial, o que acaba por limitar e empobrecer as potências dessa
técnica. Porém, acreditamos que a pessoalidade dessa figura cômica, de outra maneira,
pode fazer com que o artista entre em contato com fluxos de intensidades e afetos dotados
de vigor, em exercícios de diferença que não conduzirão forçosamente a um clown
esvaziado de potência, como sustenta Bolognesi. Não nos parece tão claro que a busca por
uma natureza cômica calcada nas porções ridículas de cada ator conduza necessariamente a
um enfraquecimento da máscara do palhaço, nem ao abandono da corporeidade nessa
53

linguagem. Podemos encontrar uma preocupação a esse respeito no artigo outrora citado de
Ricardo Puccetti, coordenador da linha de pesquisa em palhaço e um dos formadores de
clowns do LUME:

O palhaço não tem psicologismos, sua lógica é física: ele pensa e sente com
o corpo. O palhaço é um ser que tem suas reações afetivas e emotivas
todas corporificadas em partes precisas de seu corpo, ou seja, sua
afetividade e seu pensamento transbordam pelo corpo. (PUCCETTI, 2009, p.
122).

O LUME mantém um reconhecido trabalho de pesquisa sobre a dimensão corpórea


nas artes da cena, investigação que contamina seus processos formativos sobre o clown, os
quais também são baseados na pessoalidade do palhaço. Logo, os estudos teórico-práticos
desse grupo de Campinas são um exemplo de que a pessoalidade e a fisicalidade não
constituem dimensões excludentes na linguagem clownesca, mas ao contrário, são
instâncias capazes de reforçar intensidades. Além disso, quanto à subjetivação no palhaço, o
próprio Bolognesi indica, em diversos trechos de sua obra Palhaços, que o desenvolvimento
do trabalho com o clown passa pela investigação da subjetividade do artista envolvido,
conforme podemos observar abaixo:

O palhaço opera com a síntese de dois universos distintos: de um lado,


nota-se nele uma herança cômica popular, e nesse caso, ele pode ser
tomado como uma espécie de continuador da commedia dell’arte; de
outro, ele manifesta uma espécie de subjetivação, na medida em que os
traços psicológicos e físicos, próprios do ator, são estendidos à personagem
e por ele explorados.
41
A construção da personagem , assim, obedece a um determinado perfil
individual, que se apoia nas características corporais do ator e em sua
subjetividade. Mas, para alcançar o estatuto da personagem, o ator
procura adequar suas matrizes internas às características tipológicas do
palhaço, oriundas da tradição da bufonaria. A síntese desses universos
distintos propicia a expressão de uma subjetividade por meio de um tipo
cômico aparentemente imutável. Isso confere ao palhaço um grau de
universalidade que se manifesta de forma particular. Logo, ele é,
concomitantemente, único e universal. Assim, ele materializa no corpo, na

41
Embora Bolognesi não deixe claro nesta obra qual é seu entendimento acerca do conceito de personagem,
achamos o uso deste termo controverso, visto que adotamos para esta pesquisa a posição defendida por
Jacques Lecoq e também pelo LUME, de que o palhaço não constitui um personagem ou uma exterioridade
do intérprete, pois é desenvolvido e trabalhado a partir da ampliação de características do próprio artista
(LECOQ, 2010, p. 214; BURNIER, 2001, p. 209).
54

indumentária, nos gestos, na maquiagem, na voz os perfis subjetivos e


psicológicos que fundamentam sua personagem. Obviamente, não se trata
daquela psicologia profunda que caracteriza o teatro dramático de cunho
psicológico. (BOLOGNESI, 2003, p. 197-198. Grifos nossos).

Uma vez que o palhaço opera por redes de relações entre o artista e a busca de
naturezas cômicas que lhe são próprias, é inevitável que falemos de processos de
subjetivação. Logo, devemos discutir com maior cuidado qual é o entendimento que
mantemos acerca da subjetivação em relação ao palhaço. Evocando a visão filosófica de
Félix Guattari (2010), podemos pensar a subjetividade enquanto possibilidade de
singularização, ou seja, fenômeno essencialmente social que mantém vínculo direto com as
existências particulares dos indivíduos e que, a partir de um posicionamento crítico, pode
resultar não em relações de alienação, mas em processos de reapropriação, no
desenvolvimento de relações expressivas e criadoras. Abordando essa problemática,
discorre Gilles Deleuze (2005, p. 113):

A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas
formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de
acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada
indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma
vez por todas. A luta pela subjetividade se apresenta, então, como direito à
diferença e direito à variação, à metamorfose.

A subjetividade relacionada ao palhaço indica, em nossos estudos, a produção de


relações moventes, dinâmicas ligadas à heterogeneidade, não como identidades fixas que
remetem aos mecanismos de assujeitamento. Tomando ainda como ponto de referência os
escritos de Foucault, podemos pensar a resistência não apenas como um processo negativo,
mas enquanto fator capaz de engendrar a criação, numa perspectiva onde a ideia de
resistência passa, ao mesmo tempo, por um enfrentamento do si mesmo submetido e pela
reinvenção de si. Para além da reivindicação de uma identidade-essência, Foucault defende
que devemos manter conosco, como possibilidade de escape ao assujeitamento, relações
que “não são relações de identidade; devem ser, antes, relações de diferenciação, de
criação, de inovação.” (FOUCAULT, 2003, p. 71).
Portanto, entender o palhaço à luz dos conceitos filosóficos da subjetivação é
pensar a atuação desta máscara como criação de aberturas possíveis, não como cristalização
55

de características individuais e esvaziamento de intensidades. A linguagem clownesca não


como busca de um “eu-essência”, mas como exercício da potência de afetar e ser afetado.
Contudo, essa problemática em relação à subjetivação do palhaço caminha por
linhas tênues e nem sempre muito claras. Observemos a passagem de Burnier sobre o citado
exercício do picadeiro: “[...] propõe justamente este confronto entre o que é estereótipo (as
máscaras que escondem nossa pessoa) e a essência de nosso ser, nossas fraquezas, nossa
pureza, nosso ridículo tão bem camuflado.” (BURNIER, 2001, p. 218. Grifo nosso).
O entendimento do trabalho com a menor máscara do mundo como investigação
do ridículo de cada ator pode tanto transitar por focos de resistência e reinvenções de si,
como pode seguir num caminho de conformação, de descoberta e fixação de características
tidas como essenciais ao ser, cabendo a cada artista se posicionar e exercitar suas escolhas.
O que desejamos destacar junto ao leitor é a precaução para que evitemos encerrar a
questão ligando inequivocamente a subjetividade no palhaço a processos de alienação, de
docilização ou, no caso do artigo de Bolognesi, ao que ele denomina como psicologização da
máscara. A subjetivação pode levar o artista ao exercício dos afetos, aos fluxos desejantes, a
não conformação com os mecanismos de normatização, podendo ser, em última instância,
um fator possibilitador de resistência e processos transgressivos.
Outro ponto que merece destaque, a partir da argumentação de Bolognesi (2006),
reside no fato de que o autor relaciona a diminuição de potências no palhaço com o seu
enquadramento em dramaturgias teatrais, o que provocaria o enfraquecimento da
improvisação na atuação clownesca. Assim discorre o autor:

O simples apoio a uma dramaturgia sucinta, um simples roteiro de cena, e a


liberdade da interpretação improvisada, características da atuação do
palhaço circense, foram abandonados em nome da dramaturgia fechada e
da encenação minuciosa. Ambas preveem e indicam os rumos da
interpretação. Com isso, abandonou-se o aspecto épico-comunicativo do
circo e adotou-se uma postura dramática, expositora de uma
individualidade exclusiva. O público, de participante, passou a receptor. A
iluminação, geral e aberta, que mostra o público, adotou o foco que
centraliza a personagem e seus dilemas. (BOLOGNESI, 2006, p. 10. Grifo
nosso).

Entendemos a relação entre o jogo clownesco e a abertura para a improvisação


como um dos princípios atinentes à técnica da palhaçaria, independentemente do lugar de
56

atuação do clown. É um equívoco entender que esse caráter improvisacional e sua relação
com a plateia seja encontrado preferencialmente no palhaço circense, ou que esteja ausente
nos palhaços que realizam espetáculos teatrais. Podemos encontrar inúmeros escritos de
autores atuantes nas artes cênicas e que pensam o clown e a sua formação dedicando-se à
investigação sobre a relação palhaço/espectador como uma constante42. Abaixo trouxemos
a interlocução de Renato Ferracini (1998, p. 205) acerca do tema:

O clown improvisa, pois deve estar aberto para a relação. Mesmo as


esquetes e gags43 previamente construídas não são extremamente
codificadas, fechadas; sempre existe espaço para que o clown possa
introduzir pequenas variações, de acordo com a relação com o público. Ele
improvisa com suas ações codificadas, seguindo seu estado orgânico e sua
lógica. Dentro dessa lógica pessoal, o clown pode fazer qualquer coisa,
realizar qualquer ação física e/ou vocal, mesmo as que não estão
codificadas e formalizadas previamente. [...] O ator não improvisa o clown,
mas improvisa com seu clown.

Mesmo em estruturas e roteiros de apresentações cênicas, o palhaço pode e deve


manter a relação de afetar e ser afetado pelo público como um de seus princípios de
trabalho. Essa abertura à alteridade permite que o clown seja confrontado com situações
diversas e reações as mais inesperadas, demandando que a improvisação seja uma das
matrizes propiciadoras de seu jogo. O entendimento desenvolvido por Kasper (2004, p. 8)
pode ajudar a iluminar esta questão:

Podemos pensar o palhaço/clown como uma certa política de relação com


a alteridade, presentificada performaticamente. O palhaço só existe em sua
relação com o outro – este é um de seus traços distintivos. Poderíamos
afirmar a respeito do clown quase que o contrário do que Deleuze afirma a
respeito do mundo perverso: “um mundo sem outrem, logo, um mundo
sem possível”44. Outrem é o que possibilita, diz ele. O mundo do perverso
só conhece a categoria do necessário e não a do possível. O palhaço
ultrapassa o previsível [...]. É um possível que extrapola, que é criado no

42
Entre esses pesquisadores destacamos Jacques Lecoq (2010, p. 214), Luís Otávio Burnier (2001, p. 219),
Renato Ferracini (1998, p. 205-206; 209-210; 214) e Ricardo Puccetti (2006, p. 121-123; 2009, p. 124).
43
Termo de origem inglesa relacionada a uma história engraçada ou diálogo improvisado por um ator. Ao longo
do século XX foi caracterizada no cinema e no teatro “[...] pela resolução incongruente e surpreendente de
uma situação [...]” (AUMONT, 2003, p. 141). Geralmente presente em atuações clownescas, atores como
Buster Keaton e Jerry Lewis ficaram conhecidos no cinema pela utilização deste recurso cômico. Pavis (2005)
destaca que as gags trazem a perturbação da realidade, contradizendo a percepção de normalidade que se tem
dos discursos.
44
Deleuze, Lógica do Sentido, p. 329. Referência da autora.
57

ultrapassamento do previsto. O palhaço opera com a abertura de mundos


possíveis.

Encerrar o clown num espetáculo de dramaturgia fechada, sem espaço para sua
relação com a plateia e para a ação improvisacional é contrariar um dos princípios mais
importantes do jogo com esta máscara. Falar de palhaço, seja no teatro, na rua, no ambiente
hospitalar ou no circo, é jogar com a necessidade do encontro com a alteridade, onde o
espectador não será apenas receptor, mas interlocutor de um processo de comunicação que
envolve composições e decomposições de afeto.
Por fim, gostaríamos de abordar um terceiro e último ponto defendido por
Bolognesi e que consideramos conflituoso, qual seja, o estabelecimento de certo juízo de
valor em relação ao palhaço que atua no espaço circense e o palhaço advindo da cena
teatral, conforme já pode ser depreendido da citação anteriormente descrita deste autor.
Ele defende que “a máscara se distanciou das características grotescas e populares do
palhaço de circo, que é, concomitantemente, universal e particular, para uma acentuada
nuance naturalizadora do clown [de teatro].” (BOLOGNESI, 2006, p. 9).
Bolognesi destaca o palhaço circense como se este estivesse resguardado do
processo de enfraquecimento advindo da psicologização da máscara, mantendo ainda suas
matrizes grotescas e transgressivas. Então, uma questão se faz necessária: será o palhaço de
circo mais predisposto a constituir um foco de resistência em relação ao enquadramento
civilizatório da máscara e sua possível docilização? Nas palavras da pesquisadora Regina
Horta Duarte, na apresentação da obra do autor supracitado Palhaços:

O palhaço aparece como a figura catalisadora da condição fluida do


universo circense entre o sublime e o grotesco, tendo o corpo como
princípio e fator espetacular, com a exploração do impossível a cada
instante de glória do artista. Entre o acrobata, o trapezista, o equilibrista e
o engolidor de fogo, que despertam o espanto e o temor da possibilidade
da morte, seguidos do alívio e admiração, surge o corpo do palhaço,
grotesco e exagerado, intermediando o sério e o risível, o trágico e o
cômico, a morte e o riso, esfacelando os limites entre aparentes oposições
[...]. (DUARTE apud BOLOGNESI, 2003, p.8).

Nesse sentido, os palhaços circenses parecem realmente resguardar muito do que


aqui investigamos como potencial transgressor, atravessando normas, desafiando os
58

“lugares comuns”, e contrariando o que é esperado. Contudo, será que essas considerações
teóricas encontram real equivalência na prática dos espetáculos de picadeiro?
Leo Bassi, cujo trabalho será analisado em nosso terceiro capítulo, discorre sobre o
tema nas linhas a seguir45. Descendente de uma antiga linhagem de comediantes
excêntricos 46 e de palhaços circenses de origem austríaca, italiana, francesa e polonesa,
Bassi, quando jovem, chegou a trabalhar no circo por sete anos, atuando inicialmente como
malabarista e depois como palhaço, fazendo dupla clownesca com seu pai. Aos 23 anos ele
abandonou o trabalho nos picadeiros e passou a se apresentar nas ruas da Europa, iniciando
suas primeiras experimentações em relação a uma comicidade mais provocadora, o que lhe
conferiria, anos mais tarde, reconhecimento internacional. No tocante aos palhaços
circenses, Bassi (2006, p. 106) afirma:

Eu gostava da comicidade em geral. Não gostava dos palhaços, porque os


que eu conhecia eram só forma sem fundo. Eu estava num espetáculo de
seis meses com o Charles Rivel, um grande da história dos palhaços, fui ao
espetáculo como malabarista. Ele sim me encantou. Era muito velho, tinha
80 anos e eu aos 20. Ele tinha força e muito contato, proximidade, mas era
um dos únicos. Os outros eram enfadonhos, palhaços para famílias e para
crianças, só com narizes vermelhos. Eu tinha de meu pai e de meu avô,
referências do passado. Meu pai falava sempre: ai agora os palhaços são
mortos, mas lembro antes era melhor. E contava todas as histórias dos
palhaços, das lendas. Mas os palhaços dos anos 60 e 70, que eu conheci,
dos circos, eram mortos e não queriam fazer isto.

A título de exemplo retiramos da internet o registro videográfico de um número


clownesco apresentado durante o espetáculo do Stankowich, circo brasileiro que tem cerca
de 170 anos de existência 47. Não pretendemos aqui empreender uma análise acerca do
palhaço de circo, o que demandaria uma nova pesquisa devido à complexidade e extensão

45
Entrevista concedida aos artistas e palhaços Sávio Moll e Flávia Reis, publicada em Boca Larga: Caderno dos
Doutores da Alegria, nº 2 (2006).
46
Segundo Jacques Lecoq: “O excêntrico faz as coisas diferentemente dos outros. Põe o centro das coisas em
outro lugar. Ele vai pentear os cabelos... com um ancinho. Um outro, excêntrico virtuose, tocará piano... com
os pés.” (LECOQ, 2010, p. 224).
47
De origem romena, este circo foi criado por Pedro Stankowich quando de sua chegada ao Brasil, em 1856,
trazendo com ele somente seus animais amestrados, pois tinha perdido o circo que naquela época já existia na
Romênia. Juntando-se com artistas circenses de outras famílias que também haviam aportado na América do
Sul em busca de melhores condições de vida do que na Europa, assim começa a história deste circo que é um
dos mais tradicionais do nosso país. Fonte: <http://www.stankowich.com.br/o_circo.html>. Acesso em 10 nov.
2012.
59

do tema. Todavia, observando a atuação do palhaço em questão 48, ele não parece carregar
de forma clara, em seu corpo, as matrizes grotescas que Bolognesi aponta como
concernentes ao palhaço circense. Ao contrário, ele se apresenta de forma bastante
cotidiana, sem grandes exageros ou excentricidades – excetuando-se sua maneira “ríspida” e
certo desleixo ao tratar os três meninos que participam do número.
É justamente nesses pequenos momentos de contradição que o clown provoca o
riso da plateia, quando ele quebra a expectativa do senso comum e contraria aquilo que se
esperaria como a forma de lidar que um adulto e, particularmente, um palhaço, deveria
manter em relação às crianças. Mas não nos parece, contudo, que ele atinja efetivamente
patamares grotescos no exemplo citado.
Ressalte-se que não objetivamos realizar um descrédito do palhaço circense, muito
menos destacar os palhaços que atuam no teatro como representantes das qualidades
transgressivas. O que nos interessa é pensar que o potencial transgressor da palhaçaria e
suas problemáticas constituem um campo de estudo muito mais complexo, que ultrapassa a
realidade física do espaço em que o clown vai se apresentar. Os artistas analisados nesta
dissertação representam exemplos a este respeito, uma vez que Leo Bassi, Jango Edwards e
Luiz Carlos Vasconcelos já realizaram espetáculos e atuações no âmbito do circo, da rua e do
teatro.
É complicado afirmar qual palhaço está mais aberto aos processos transgressivos ou
mais propenso ao enfraquecimento de intensidades, seja, por exemplo, o que atua nas
arenas circenses ou o palhaço da cena teatral. Essa não é uma questão meramente
topográfica, pois importa saber de que palhaço específico estamos falando, em qual
espetáculo, em qual número, em que jogo.
Entendemos que as qualidades transgressoras, bem como os riscos que rondam seu
esvaziamento, constituem um embate de forças a que estão sujeitos todos os clowns, sem
que haja instâncias resguardadas ou livres dessas questões que afetam a palhaçaria
contemporânea. Tensão que pode ser observada desde a formação do aprendiz até às
apresentações de experientes artistas da arte clownesca, e que nunca restará solucionada
de forma definitiva. Cada nova atuação será um convite renovado a esse embate de forças.

48
Disponível no DVD em anexo e também no sítio: <http://www.youtube.com/watch?v=8SIOzFE5-10 >. Acesso
em 10 nov. 2012.
60

1.4 - Processos transgressivos na comicidade clownesca

Como o leitor pode acompanhar, nosso estudo tem empreendido o exercício de


pensar as qualidades transgressivas clownescas não como uma categoria estanque, dada a
priori, mas enquanto um conceito movente, instável. Menos um fim determinado e mais
uma abertura a intensidades que atravessam a linguagem do palhaço.
Entendemos, portanto, que seria inadequada, ao esforço de nossa investigação, a
busca por uma sistematização em relação aos processos de transgressão. O estabelecimento
de paradigmas e fórmulas que pudessem privilegiar atuações clownescas transgressoras nos
parece um trabalho que já nasceria fadado ao desacerto, visto que nosso objeto opera na
instabilidade e os limites de uma estruturação funcional não dariam conta das potências
efêmeras que envolvem as dinâmicas transgressivas49.
Todavia, apesar dessa precaução metodológica, uma questão se mantém de forma
inquietante em nosso campo de pesquisa, qual seja, de que maneiras as qualidades
transgressivas podem se manifestar em relação à comicidade do palhaço? As reflexões
desenvolvidas nas próximas páginas serão movidas por esta indagação.
No tocante ao que é risível, a autora Vilma Arêas (1990) destaca a necessidade da
existência de três fatores concernentes à comunicação cômica: um sujeito que deseja
provocar a comicidade; o objeto cômico do qual se ri, ou o material utilizado para provocar a
comicidade; e a pessoa que ri, ou seja, o espectador. Analisando esses elementos em relação
ao palhaço, podemos identificar a ocorrência de uma fusão entre as duas primeiras
instâncias, uma vez que, no jogo clownesco, aquele que atua provocando o riso é, ao mesmo
tempo, o próprio objeto do qual se ri.
O clown expõe diante do público seu corpo e suas naturezas cômicas que são,
concomitantemente, sujeito provocador do riso e material cômico risível. A atuação
clownesca instaura um espaço de risco onde o palhaço se coloca em relação com aqueles
que lhe assistem, sendo capaz de provocar-lhes o riso não através de artifícios exteriores,

49
Não podemos negar que nos parece instigante a ideia de testar empiricamente algumas das relações entre as
matrizes de comicidade aqui analisadas e as intensidades transgressoras clownescas, objeto que será alvo de
futuras pesquisas.
61

mas partindo de suas próprias práticas e ações postas em atrito com o ridículo. Vejamos
como podemos entender essa manifestação risível na palhaçaria.
O autor russo Vladimir Propp (1992) se dedica ao estudo da comicidade afirmando
que o riso é provocado quando ocorre o desnudamento repentino e inesperado de defeitos
até então ocultos daquele ou daquilo que é risível. Este autor desenvolve seu pensamento a
partir da afirmação de Aristóteles presente no capítulo V de sua Poética: “[...] o cômico
consiste em um defeito ou torpeza que não causa dor nem destruição.” (ARISTÓTELES apud
ALBERTI, 1999, p. 46)50. Segundo Propp, o cômico estaria ligado ao disforme, à
presentificação de particularidades ou estranhezas que vão distinguir o sujeito risível do
meio que o circunda, tornando-o ridículo. Em suas palavras:

Toda coletividade, não só as grandes como o povo no todo, mas também


coletividades menores ou pequenas — os habitantes de uma cidade, de um
lugarejo, de uma aldeia, até mesmo os alunos de uma classe — possuem
algum código não escrito que abarca tanto os ideais morais como os
exteriores e aos quais todos seguem espontaneamente. A transgressão
desse código não escrito é ao mesmo tempo a transgressão de certos ideais
coletivos ou normas de vida, ou seja, é percebida como defeito, e a
descoberta dele, como também nos outros casos, suscita o riso. (PROPP,
1992, p. 60).

O palhaço, como temos visto, é uma figura cômica que carrega em suas lógicas a
condição desviante da falha diante das normas, a inadequação de quem tenta e não
consegue se adaptar ou mesmo de quem desconhece os padrões comuns de conduta.
Atuando a partir de modos singulares de agir, pensar e sentir, construídos no âmbito da
experimentação, o clown é capaz de operar a relativização da norma e das convenções
sociais, transcendendo o campo do previsível, do mediano, do útil, do democrático. Dessa
forma, pensar as qualidades transgressivas do jogo clownesco é analisar a própria
comicidade dessa linguagem, como instâncias que se cruzam e problematizam.
Propp ressalta que, quanto mais a diferença for reforçada, mais provável será a
manifestação cômica. Ademais, essa deformidade risível pode se apresentar tanto em
relação aos desvios de normas e valores de conduta, como no tocante a fisicalidade, pois,

50
Maiores informações a respeito das concepções aristotélicas sobre a comédia podem ser encontradas em
Verena Alberti (1999).
62

segundo ele, o homem carrega em si, mesmo que de forma inconsciente e efêmera, noções
construídas coletivamente acerca de beleza e harmonia estética que variam de acordo com
as especificidades culturais e temporais.
Desproporções físicas também podem ser objeto do riso, desde que não
ultrapassem determinados limites da comicidade - defeitos que causem ofensa ou revolta
nos demais, ou mesmo suscitem compaixão ou piedade não conseguem despertar o riso,
retomando mais uma vez a afirmação aristotélica de que a comédia rechaçaria
características capazes de provocar dor ou destruição – noções que serão problematizadas
pelo bufão Leo Bassi, por exemplo, como poderemos perceber quando da análise de suas
atuações no capítulo terceiro desta dissertação.
Ressalte-se que entendemos aqui o termo defeito no sentido antonímico de virtude,
ou seja, expressão atinente à imperfeição, falha, fraqueza de ordem física ou moral 51, o que
nos aproxima do conceito nietzschiano de degeneração trabalhado no início do capítulo. O
disforme como instabilidade da ordem instituída, experiência da diferença no interior de
uma coletividade.
Destacamos, contudo, que nosso objetivo não é aproximar nosso entendimento
sobre a comicidade das reflexões de Henri Bergson52, cuja definição sobre o cômico aludia a
um fenômeno de ordem negativa ao qual caberia ao riso a sua correção. Este autor constrói
seu pensamento defendendo que a comicidade seria a manifestação de um caráter
mecânico sobre a vida e nesse contexto, o riso assumiria uma função social corretiva em
relação às deformidades e aos comportamentos desviantes, restabelecendo a ordem.
Bergson (1983) afirma que a vida está em constante movimento e mudança,
exigindo do homem uma dinâmica de adaptação. A ausência desse caráter adaptativo
constituiria o mecânico. Como um dos exemplos o autor cita a queda de um homem ao
tropeçar numa pedra, despertando o riso nos outros passantes, pois a mecanicidade de seu
caminhar não teria permitido que seu corpo assumisse a maleabilidade necessária à

51
De acordo com definição do Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=defeito >. Acesso em 19 fev. 2012.
52
Bergson publica em 1900 a obra O riso: ensaio sobre a significação do cômico, reunião de três artigos em que
o autor analisa o riso como um fenômeno social. Seus escritos constituem até hoje um dos estudos mais
citados sobre a comicidade, também tendo sido alvo de inúmeras críticas ao longo do tempo. Podemos
encontrar reflexões importantes sobre a teoria cômica bergsoniana em autoras como Cleise Furtado Mendes
(2008) e Verena Alberti (1999).
63

preservação de seu equilíbrio após esbarrar num obstáculo. Como punição à rigidez
mecânica do indivíduo surgiria o riso corretivo dos que estão a sua volta, objetivando a
restituição da dinâmica vivente. Em suas palavras: “O riso é, antes de tudo, um castigo. Feito
para humilhar, deve causar à vítima dele uma impressão penosa. A sociedade vinga-se
através do riso das liberdades que se tomaram com ela.” (BERGSON, 1983, p. 99-100).
Não compreendemos em nossa pesquisa o riso despertado pelo palhaço como
necessariamente um riso de humilhação ou repressão diante dos defeitos, suposta tentativa
de os espectadores efetuarem a punição dessa figura cômica diante de suas falhas e
inadequações. A comicidade clownesca possui um caráter de compartilhamento, uma
condição desviante que é oferecida à plateia através do jogo cômico e, através dela, cada
espectador pode vislumbrar suas próprias noções do que é padrão, bem como seus desvios
e fraquezas. Contudo, as razões pelas quais esse desvio cômico opera o nascimento do riso
na assistência são da ordem da imprevisibilidade, evento atinente à instabilidade dos
processos de recepção, parecendo-nos limitado o entendimento de que este riso possui um
caráter primordialmente punitivo.
O riso presente na atuação do clown pode relacionar-se, por exemplo, à
identificação entre a assistência e essa figura cômica, em dinâmicas de aproximação e
distância sobre as porções de inadequação que nos constituem; ou pode ser um riso de
surpresa diante do inesperado, de temor quanto a insegurança operada pelo desvio, de
angústia, ou mesmo pode surgir como efetivação da possibilidade bergsoniana de um riso
punitivo ou correcional, fazendo-nos atentar para a multiplicidade de configurações que o
fenômeno do risível pode assumir. Nesse sentido, trazemos o esclarecimento de Alberti
(1999, p. 201-202):

O defeito não faz rir enquanto defeito, e sim porque, enquanto desvio da
ordem, nos revela o “outro lado” do ser. [...] [A comicidade] faz rir porque
passamos de um mundo estável a um mundo escorregadio, reconhecendo
o caráter enganador da estabilidade.

O riso engendrado pela atuação clownesca pode ser um riso de criação, de


instauração de mundos possíveis por meio da diferença, quando, a partir do desvio da
ordem podemos vislumbrar o outro em nós mesmos, em processos de intensidade e
64

instabilidade. Assim, a dinâmica da comicidade tem seus efeitos desencadeados pela ação
transgressiva, conforme entendemos neste estudo, enquanto território do heterogêneo.
Além disso, retomando as reflexões de Propp, este autor destaca a comicidade
como um conceito correlativo, ou seja, que não existe a priori no objeto ou sujeito risível,
nem no sujeito que ri, mas se apresenta a partir da relação recíproca estabelecida entre eles,
quando se instaura o espaço da diferença. De um lado há o sujeito que ri, com suas
concepções de mundo e noções, mesmo que instintivas, de ordem, de conveniência. Do
outro, há o sujeito que provoca o riso, contradizendo os princípios ordenadores, trazendo o
defeito da norma, a falha, o desvio. É na instabilidade da afetação entre as duas instâncias
que pode surgir o cômico.
Este é mais um conceito que pode ser observado a partir do palhaço, cuja atuação
pode estar - e defendemos que esteja - diretamente ligada à sua relação com cada
espectador e à violação de padrões normativos. Na mesma medida, entendemos que essa
interface correlacional se estende às qualidades transgressivas, pois estas se manifestam na
efemeridade da relação palhaço-plateia, não estando contidas ou garantidas a priori.
Analisaremos, a partir de então, as dinâmicas transgressivas clownescas à luz de
alguns dos princípios cômicos investigados pela professora e pesquisadora Elza de
Andrade53. Apesar de não tratar especificamente do universo da palhaçaria, entendemos
que os escritos da autora podem nos ajudar a avançar um pouco mais em nossas reflexões
sobre a ação transgressiva e o jogo cômico, sem perder de vista a instabilidade atinente aos
processos em questão. Entre as “matrizes de comicidade” que Andrade elenca em sua
pesquisa estão: o inesperado, a quebra do padrão, o exagero, a repetição, o corpo mecânico,
o grotesco, o contraste e a triangulação.
Embora entendamos que as qualidades transgressivas possam se manifestar em
quaisquer circunstâncias, devido a seu caráter dinâmico e multifacetado, desejamos
investigar cinco dos princípios supracitados, quais sejam a quebra de padrões, o inesperado,
o exagero, o grotesco, e o contraste. Nossa escolha funda-se no entendimento de que as
categorias selecionadas são capazes de gerar experiências cênicas próximas do perpétuo
jogo dos limites e da transgressão, privilegiando tensões e contaminações entre a

53
Estudo presente na tese de Doutoramento Mecanismos de comicidade na construção do personagem:
procedimentos metodológicos para o trabalho do ator (UNIRIO - 2005).
65

comicidade clownesca e a violação de padrões normativos. A primeira matriz produtora de


comicidade a ser analisada será o inesperado.
Nesse sentido, vamos iniciar nossa investigação pensando em uma das
características mais instigantes da linguagem clownesca, qual seja o fato de que o palhaço
pode transitar pelas mais variadas gradações emocionais, indo de um extremo ao outro em
instantes, rompendo com as regras comportamentais do senso comum. O clown, por
exemplo, pode estar chorando em profundo desespero e no momento seguinte dar uma
gargalhada por que outra coisa chamou sua atenção; pode apresentar-se de forma
extremamente doce e logo em seguida ter sua ira despertada, mostrando sua face ditatorial
ou violenta.
Podemos observar essa dinâmica em um pequeno trecho do espetáculo Joana
D’arc, da palhaça suíça Gardi Hutter54- figura ao lado. Na cena
Figura 3 - Gardi Hutter em questão, a artista entra em seu tanque de lavar roupas –
de tamanho maior que o comum - e se assusta quando
descobre que não consegue mais descer dele. Logo ela se
dedica a brincar com bonequinhas de papel como se testasse
sua saída da situação.
Ao mesmo tempo em que se diverte com as bonecas,
ela também fica apavorada com a queda funesta das mesmas
no abismo, demonstrando para a plateia o estado lastimável
em que as mesmas terminam após o salto mortal. Quatro
Fonte:
http://www.clownlink.com/upload
bonequinhas têm seu fim trágico e, por fim, a palhaça vai
ed_images/Gardi-Fringe-15-
760148.jpg >. Acesso em 16 jan.
descendo a última bonequinha por uma linha, com muita
2013.
satisfação por sua ideia. Porém, contentamento mesmo ela
demonstra quando, sem nenhum traço de pena, corta o fio que dependurava a mesma,
fazendo com que a boneca também despenque no abismo como as demais. E, em seguida, a
palhaça volta a se condoer pelo destino da pequena.
É fascinante como em fragmento tão breve podemos identificar uma gama tão
variada de sensações presentificadas pela palhaça. Ela brinca e se diverte com diversas

54
Número no DVD em anexo.
66

ações, mas é uma brincadeira em que vida e morte estão presentes, alegria e violência.
Gardi transita por diversos estados emocionais, mostrando-se doce, apavorada, curiosa,
cruel, alegre... E assim ela vai surpreendendo o espectador a cada ação e reação, rompendo
com as raias do esperado, do politicamente correto. A partir desses fluxos de sensações, o
clown é capaz de subverter ou transformar valores e paradigmas, trazendo a surpresa e a
quebra das expectativas de quem o assiste. Nas palavras de Michael Chekhov (1986, p. 156-
157) acerca do palhaço:

Suas reações [do palhaço] a uma circunstância em seu meio circundante


são completamente injustificáveis, "absurdas" e inesperadas: ele poderá
mostrar-se apavorado com coisas que não dão a mínima causa para medo;
poderá chorar quando esperávamos que risse ou ignorar profundamente
um perigo que o põe em sério risco. Suas transições de uma emoção para
outra não requerem qualquer justificação psicológica. Tristeza e felicidade,
extrema agitação e completa compostura, riso e lágrimas - tudo isso poderá
desfilar em sucessão espontânea e mudar como um relâmpago sem
qualquer razão.

A ausência de transições psicológicas racionalmente justificáveis no clown nos


remete à instabilidade dos impulsos, à efemeridade dos instintos. Essa dinâmica rompe com
as lógicas racionais de sentido, com a funcionalidade cotidiana, instaurando novas relações
e afetos capazes de violar a estabilidade e a padronização. Assim, acreditamos que esta
pode ser uma perspectiva possível sobre os processos transgressores que não envolve,
necessariamente, princípios de força e provocação explícitas. Podendo ser presentificadas
em experiências cênicas sutis, a delicadeza ou a suavidade aparecem aqui não como
aspectos da docilização ou como maneiras de conformação com as normas, mas, ao
contrário, podem dar ensejo a práticas heterogêneas que colocam em xeque o cruzamento
entre os interditos e seus atravessamentos transgressivos.
Gardi, em sua brincadeira de vida e morte, constrói de forma muito delicada as
relações com as bonecas de papel, dando-nos a antever uma diversão pueril que logo será
rompida por dinâmicas que violam o senso comum, surpreendendo-nos com a nossa
própria crueldade, nosso sadismo, nossa capacidade de diversão também com a violência.
Relacionada, ainda, ao inesperado, outra matriz de comicidade interessante é aquela que
Andrade denomina como quebra de padrões. De acordo com sua explanação:
67

O cômico é um mecanismo de subversão e destruição [...]. O ser humano,


em geral, possui um conjunto de ideias que considera a norma, o padrão.
Essas normas referem-se tanto ao aspecto exterior do homem quanto à via
moral e intelectual. Provocam a comicidade os desvios, as quebras da
norma ou do padrão. (ANDRADE, 2005, p. 51).

Conforme temos investigado, não há uma ligação necessária entre comicidade e


processos transgressivos, visto que o riso e as atuações cômicas também podem ser
utilizados como fatores alienantes ou reforçadores das normas instituídas. Todavia, em
relação ao palhaço, esse movimento de aproximação nos parece deveras pertinente, visto
que o clown é o inadequado, o que erra e assume o ridículo do erro, aquele que transita em
uma condição desviante sobre normas e padrões.
O palhaço vê o mundo por uma ótica muito particular, a partir das chamadas lógicas
clownescas. Utilizamos esta expressão no plural para destacar nosso entendimento de que
as lógicas do palhaço são dinâmicas, moventes e não constituem um reduto único de
características delimitadas e limitantes. Essas lógicas nos parecem não como uma essência
cristalizada daquele clown, mas possíveis aberturas à experiência, capazes de constituir-se
como um convite à quebra de paradigmas, seja pela incapacidade de adequação e
conformidade normativa, seja pelo desejo de subverter e atravessar a ordem. A respeito da
lógica do palhaço, Burnier afirma:

Um avanço importante, no amadurecimento de um clown, é quando o ator


encontra o modo de pensar de seu clown. É o modo de ser e pensar do
clown que determina todas as suas ações e reações, sua dinâmica, seu
ritmo. Não se trata de um pensar puramente racional, mas de um pensar
corpóreo, muscular, físico. É o corpo que age e reage segundo a lógica do
clown. É um pensar também afetivo e emotivo. (BURNIER, 2001, p. 219).

Entendemos que, mesmo que o palhaço possa apresentar características que se


repitam ao longo do tempo, configurando certo “jeito de ser” daquela figura, ainda assim
acreditamos que as lógicas do palhaço se dão e atualizam em suas relações com o mundo a
sua volta. Logo, essas lógicas possuem um caráter predominantemente dinâmico, em
constante mutação de acordo com os afetos e forças que atuem sobre aquele clown.
Objetivando uma maior reflexão sobre o tema, friccionando-o às práticas transgressivas,
68

vamos observar a atuação de mais um palhaço, o argentino Tomate, cuja própria aparência
Figura 4 – Palhaço Tomate já é capaz de nos causar estranheza – como podemos
Tomate perceber na imagem ao lado.
Sua peruca de cachinhos brancos, aliada à face
também branca, contrastam com um sobretudo negro que lhe
cobre o corpo até os joelhos, de onde saem meias listradas
pretas e brancas que desembocam num sapato de palhaço
preto com extremidades exageradamente abauladas.
Completando a extravagância de sua figura, Tomate, que de
vermelho só apresenta o nariz manchado e três grandes
botões em seu casaco, geralmente entra em cena dando gritos
Fonte:
http://blogs.lanacion.com.ar/rio- esganiçados que lembram o som de uma gralha. A cada vez
de-janeiro/tag/tomate-globo/>.
Acesso em 20 fev. 2013. que solta os grunhidos, sempre olhando para a plateia, ele
sacode os braços nas laterais do corpo, para cima e para baixo, como se estes membros
fossem asas e ele quisesse alçar voo.
A excentricidade de sua indumentária, bem como de sua apresentação inicial, já
marcam uma diferença do que se esperaria em relação a um palhaço. Mesmo que a
palhaçaria abarque uma gama inimaginável de combinações em relação a tipos de figurinos
e distintas caracterizações, acreditamos haver um caráter incomum em Tomate. Sua
composição visual singular é ampliada pela imitação esdrúxula de pássaro, gestualidade que
não mantém relação clara com o resto do espetáculo. Antes que ele entre em cena já se
podem ouvir alguns grunhidos, até que ele adentra o espaço cênico fitando os espectadores,
grunhe mais algumas vezes, agitando os braços/asas, para então continuar com a atuação,
sem que haja jogo ou imagem que justifique aquela entrada insólita.
Essa ausência de explicação relega o espectador ao plano instável do “não saber” e
nos parece cenicamente potente na medida em que é capaz de provocar dúvida e incerteza
na assistência. Vemos um ser extravagante que veste longo casaco preto, indicando peso e
masculinidade, o que contrasta com sua ridícula peruca de cachos, que lhe confere ar
angelical, porém de maneira estranha, pois todas as mechas são brancas. Ele grita de forma
intensa, imitando uma ave, como se cada som fosse seu jeito de se apresentar à plateia,
enquanto parece se divertir com a execução daqueles gestos singulares. Quebrando padrões
69

de razoabilidade ou racionalidade, não nos é dado a “decifrar” logo de início qual é o tipo de
jogo que essa figura traz, quais são as suas lógicas, do que ele é capaz.
Ademais, as apresentações de Tomate costumam girar em torno de sua maestria na
manipulação de balões infláveis de tamanhos e formas diversas, o que até poderia nos
remeter à imagem pueril dos palhaços que trabalham animando crianças e festas infantis.
Contudo, este clown logo nos faz perceber que opera com uma construção gestual refinada,
aliada ao tratamento insólito que dá aos balões, oscilando entre imagens ingênuas, como
uma pessoa a se olhar no espelho, até momentos obscenos, irônicos ou mordazes, como
alguém que separa carreiras de cocaína sobre a superfície do mesmo espelho.
Em trecho do espetáculo Tomate por Tomate55, podemos perceber que ele
manipula seus artefatos infláveis criando uma profusão de imagens que presentificam
inúmeras situações e estados os mais distintos, partilhando com os espectadores, ao mesmo
tempo, seu modo ácido de ver o mundo, suas lógicas clownescas sarcásticas. Em curtíssimo
fragmento de cerca de quinze segundos ele consegue criar com um balão longo e delgado
uma apresentação frenética de rock, uma seringa que pica a veia de seu braço, um
guitarrista que toca seu instrumento totalmente tonto, uma pessoa que se enforca e alguém
vomitando em um vaso sanitário, com direito a fechar tampa do vaso após o ato. A
assistência fica sem fôlego com tamanha criação imagética, enquanto ri copiosamente das
ações e gestos mais inusitados. Tomate nos dá a sensação de poder recriar o mundo através
da manipulação dos balões, surpreendendo nossas expectativas a cada nova ação,
colocando-nos diante da variabilidade do inesperado.
Seu modus operandi também contamina a relação que ele estabelece com a
plateia, como podemos ver em momentos em que ele zomba de alguns espectadores, jogo
originado de uma suposta expressão de apatia de alguém da assistência, quando o clown
sugere através de seus gestos que determinada pessoa não está entendendo nada ou está
sob efeito de álcool e drogas; ou mesmo quando ele manipula um pequeno balão-
espermatozóide e o atira sobre uma espectadora, indicando que ela ficaria grávida de um
bebê-pássaro.

55
DVD em anexo ou disponível no sítio: <http://www.youtube.com/watch?v=HnI-_8cshNY >. Acesso em 01
mar. 2013.
70

Irreverência, zombaria e incongruência são termos que nos vêm à mente ao


observar a atuação deste palhaço, seja pelas imagens e estados surpreendentes que cria,
seja através das relações que ele constrói junto à assistência. Não é a toa que ele finaliza a
apresentação portando um manto com o símbolo anárquico, para logo depois exibir uma
bandeira de arco-íris onde se lê a palavra paz. Subvertendo padrões, quebrando
expectativas, gerando instabilidades através de lógicas singulares e extemporâneas, Tomate
reafirma através do risível a potência transgressiva do heterogêneo.
Continuando nossa análise das matrizes de comicidade citadas por Elza de Andrade,
destacamos o exagero e o grotesco – este já citado por Bolognesi quando da enunciação
acerca das intensidades clownescas. Esses dois princípios nos parecem intimamente
relacionados à palhaçaria, matrizes que podem ocasionar a extrapolação da realidade até o
ponto de adentrar as raias do fantástico. Não é difícil percebermos no exemplo supracitado
como Tomate opera com o exagero, seja nos estados pelos quais transita, seja nas imagens
corporais que evoca.
É de impressionar como seu jogo adentra o universo da fantasia, como no trecho
em que ele utiliza um grande balão branco sobre a cabeça, evocando um topete gigante ou
um cogumelo falante ou mesmo brincando com o
Figura 4.1 - Tomate
movimento inusitado que o objeto de borracha faz
reverberar em seu corpo.
Ele brinca de tal forma com a maleabilidade e a
desproporção assumida pela extremidade de sua cabeça
que essas experimentações seguem na linha do exagero até
que seu rosto some e ele vira uma figura humana dotada
de uma enorme cabeça-balão, como um extraterrestre ou
Fonte:
um ovo gigante manipulável – imagem ao lado. Dessa http://www.clicrbs.com.br/rbs/image
/12421281.jpg>. Acesso em 20 fev.
forma, esse palhaço vai metamorfoseando sua aparência e 2013.

gestualidade, transitando pelas ordens do grotesco 56 ao criar deformidades físicas e efeitos


caricaturais, causando estranhezas e desproporções.

56
Retomaremos o tema no segundo capítulo da dissertação ao estudarmos o conceito de realismo grotesco
fundado por Mikhail Bakhtin (2010), quando da análise das atuações do palhaço Jango Edwards.
71

Por fim, o contraste também é uma das matrizes cômicas que destacamos dos
estudos de Andrade. Também chamado de inversão ou jogo de oposições, é por ela assim
descrito:

O contraste é um dos mecanismos mais presentes na comicidade de todos


os tempos da história do ator e do teatro. Existe uma lógica nas oposições
que se pode manifestar de várias formas: na própria linguagem (na fala do
personagem), em seu corpo (diferenças no andar, na dimensão, no gesto),
na pulsação rítmica e temporal, no temperamento e na moral, no figurino e
na caracterização, ou seja, em quase todas as possibilidades de composição
externa e interna dos personagens. (ANDRADE, 2005, p. 55).

Podemos observar como Tomate opera de forma dinâmica com construções


imagéticas muito distintas, apresentando contrastes de ritmos lentos e rápidos, suaves e
fortes. Imagens anárquicas convivem com situações ingênuas ou infantis, criando redes de
oposições onde as instâncias reforçam umas às outras, complexificando seu jogo e
surpreendendo a quem assiste. Em determinado momento, por exemplo, ele parece uma
personagem de desenho animado saltitando e jogando tênis, para logo em seguida
manipular o balão como se fossem seios femininos ou um falo ereto. Categorias
aparentemente opostas de imagens vão sendo friccionadas, causando instabilidades que
reforçam a comicidade pela surpresa da heterogeneidade. A própria composição visual deste
palhaço, conforme já descrevemos, também oferece ao espectador relações de contraste e
oposição, como a coexistência entre o sobretudo preto, que pode indicar sobriedade, e sua
peruca jovial.
Nos próximos capítulos da dissertação voltaremos à investigação das matrizes de
comicidade aqui destacadas, tendo em vista a problematização da análise de números
cômicos 57 e trechos de espetáculos dos artistas objeto de nossa pesquisa. Por hora,
finalizaremos nosso primeiro capítulo, o qual funcionará como uma matriz norteadora aos
57
A pesquisadora Ermínia Silva desenvolve, ao final de sua dissertação de Mestrado, O Circo: sua arte e seus
saberes (Unicamp – 1996), um glossário de termos circenses no qual o vocábulo número aparece como
“qualquer atuação circense que requeira o uso de aparelhos, individuais ou não. Os palhaços, embora nem
sempre usem aparelhos, também executam um número.” (SILVA, 1996, p. 160). Por sua vez, Bolognesi, na obra
Palhaços, denomina como entradas esquetes curtos desenvolvidos pelos palhaços no circo (BOLOGNESI, 2003,
p. 57). Segundo Pavis (2005, p. 143), esquete “é uma cena curta que apresenta uma situação geralmente
cômica [...] insistindo nos momentos engraçados e subversivos.”. Nesta dissertação optamos por utilizar os
termos número, cena e esquete como similares, por aproximação epistemológica, mesmo quando a
apresentação do palhaço se dê no palco teatral e não em arenas circenses.
72

nossos percursos, desenvolvendo algumas reflexões acerca da ética envolvida nos processos
transgressivos clownescos.

1.5 - Transgressão e ética no palhaço

O pesquisador Georges Minois (2003) inicia o segundo capítulo de sua História do


Riso e do Escárnio, destacando que, já na Grécia arcaica, era realizada a distinção entre dois
tipos de riso: gelân, o riso considerado simples; e katagelân, “rir de”, riso agressivo e
zombeteiro. Como temos visto, o riso pode adentrar processos de intensidade e tentativas
instáveis de liberação da submissão ou, ao contrário, estar a serviço da opressão e da
perpetuação de valores instituídos. A comicidade pode destacar a liberdade da diferença ou
reprimi-la enquanto desvio intolerável dos padrões. Esta parece ser uma das grandes
diferenças entre o riso que compartilha, onde se ri com, e o riso que exclui, rir de. Alice
Viveiros de Castro encerra a obra de referência O Elogio da Bobagem dedicando-se ao tema:

O palhaço é um transgressor, um excêntrico; está fora dos eixos, das regras,


da lógica, do bom senso, do bom gosto e das boas maneiras. Ao palhaço
tudo seria permitido? [...] o riso pode ser transgressor ou opressor. O riso
liberta e reprime. Tudo depende do momento e de como e quem o provoca
e para quem, com quem e de quem se ri. (CASTRO, 2005, p. 257).

Este nos parece um terreno complexo, pois se a transgressão implica justamente


um atravessamento de valores e normas, que parâmetros podemos usar para discutir esses
limites? Ao mesmo passo que é impossível negar a existência de tais fronteiras. Cleise
Furtado Mendes destaca que, no tocante à “subversão pelo riso”, há um cruzamento entre a
dimensão ética, estética e catártica 58, afirmando que:

[...] o único “objetivo” que se pode ver na força cômica – enquanto força –
é o de submeter qualquer tipo de alvo aos seus poderes de reversibilidade,
deslocamento, contraste, rebaixamento, desestabilização. O que pode ser
visto como subversivo ou libertário na comédia não é aquilo que se
representa, não é qualquer crítica ou mensagem, não é um veredicto ou
opinião sobre um dado fato ou comportamento, mas sim um certo modo de

58
A autora desenvolve em A Gargalhada de Ulisses (2008) um estudo sobre a catarse na comédia, focando sua
investigação em diversos exemplos da dramaturgia cômica mundial.
73

ação, ou seja, um método. Esse método consiste em duvidar


sistematicamente, ritualisticamente, do real e da verdade. (MENDES, 2008,
p. 208. Grifos da autora).

Cabe à ação cômica e ao palhaço, um de seus grandes representantes, a potência


de colocar valores e padrões sob a ótica da dúvida e da instabilidade. O jogo clownesco
mantendo lógicas e “modos de fazer” próprios é capaz de atuar de maneiras singulares
sobre a realidade, as normas e o senso comum, podendo incitar novas maneiras de ação
calcadas na diferença. E, nesse sentido, os processos cômicos transgressivos podem ser
arriscados.
A autora supracitada invoca a esse respeito o belo exemplo construído por Umberto
Eco. Em O Nome da Rosa, o monge guardião da biblioteca do mosteiro é capaz de matar e
morrer para ocultar o livro II da Poética aristotélica, obra que se supõe dedicada à comédia e
que, em mãos erradas - ou seriam certas? - poderia ser utilizada como fagulha que
incendiaria as paixões contra o medo, a ignorância, a autoridade e o poder, revirando e
desconstruindo dogmas e verdades tidas como absolutas. Este guardião da fé, irônica e
simbolicamente traduzido na figura de um monge cego, entra em seu jogo de vida e morte,
nas palavras de Mendes (Ibid., p. 210), “para livrar o mundo dessa semente de dúvida e
insubordinação” que pode ser a comicidade.
Este nos parece ser um parâmetro interessante para pensar a transgressão no
palhaço e seus limites. Diz-se que o palhaço é aquele que carrega o convite ao riso coletivo,
ao riso compartilhado, ao riso que inclui. Contudo, se esse princípio pode ser considerado,
de forma geral, quase como um padrão entendido e aceito na palhaçaria, até ele também
pode ser risível e passível de dúvida através da ação das qualidades transgressivas.
Não desejamos excluir o rir de na figura do palhaço. Nesse viés, não estamos
defendendo um jogo clownesco que humilhe os espectadores, pronto a apontar o dedo
julgador na direção de suas fraquezas e defeitos. Este seria um riso que diminuiria a potência
dos afetos e não condiziria com a intensidade de afirmação desejante inoculada na menor
máscara do mundo.
Reivindicamos, contudo, um exercício de processos transgressores no palhaço que
transite não só pelo rir com, mas também pelo rir de. Riso que cause dúvida e instabilidade
em normas, padrões e valores entendidos como necessários ao senso comum. Rir do que
74

nos submete, dos encontros que tendem a enfraquecer nossas potências. Rir da própria
tirania do riso capitalista.
Naturalmente, estamos aqui percorrendo caminhos perigosos, instáveis, que
poderão despertar dores e ódios naqueles que sentirem abaladas suas estruturas até então
seguras e notadamente estabelecidas. O riso também pode carregar uma pulsão de morte 59.
Ainda segundo Mendes (Ibid., p. 212): “não é nada reconfortante o modo cômico de agir,
inimigo que é não apenas do medo, mas de todo mecanismo de controle, de garantia de
estabilidade”.
Jango Edwards (1980), o clown que será objeto de estudo em nosso próximo
capítulo, destaca que o palhaço pode representar uma ameaça a determinadas pessoas que
não desejam perceber o mundo que as circunda, preferindo permanecer adormecidas. Ele
indica: “Precisamos rir de nós mesmos para nos entendermos, e se não pudermos fazê-lo,
não há esperança e para muitos não há esperança. A crítica instiga mudança e é um dos mais
importantes princípios de um mundo livre 60.” (EDWARDS, 1980, p. 71. Tradução nossa).
Riso, crítica e mudança, termos que tantas vezes nos parecem distantes da
palhaçaria contemporânea e que, acreditamos, constituem focos necessários à investigação
dessa técnica. Dando considerada importância ao tema em sua filosofia, Nietzsche 61 trata
das potências do riso em sua relação com a afirmação da existência no seguinte aforismo:

59
Minois, referindo-se às festas carnavalescas de províncias espanholas como Cuenca, Córdoba e Áragon,
destaca a presença de mascarados e homens com fantasias de diabos que dançam, provocam o riso com
zombarias e batem nos demais habitantes locais. Citando a interlocução do pesquisador Julio Caro Baroja, o
autor afirma que “o fato de associar o ato de se mascarar à violência, às brincadeiras grosseiras, a atos cômicos
e trágicos, o desejo de mudar de personalidade e de passar do riso às lágrimas, e vice-versa, noções de vida, de
movimento, de lubricidade a noções de morte e de destruição” ressalta, às vezes de forma macabra, a ligação
entre riso, loucura e morte, “um caráter inquietante, mesmo do ponto de vista da psicologia geral.” (BAROJA
apud MINOIS, 2003, p. 606).
60
“We must laugh at ourselves to understand ourselves, and if we cannot do it, there is no hope and for some
there is no hope right now. Criticism instigates change and is one of the most important principles of a free
world.”
61
Historiador e tradutor da obra de Nietzsche, Paulo César de Souza destaca no posfácio de A Gaia Ciência que
“[...] a sua ciência gaia é aquela que alegremente se impõe limites no questionamento do mundo, para
preservar e afirmar a existência.” (NIETZSCHE, 2012, p. 306). O termo gaia vem do vocábulo gaya, termo
utilizado por trovadores italianos da Idade Média para designar sua arte e que teria dado origem ao termo
inglês gay, em seu sentido original de alegre e gaiato – somente a partir da década de 1950 é que este termo
teria passado a identificar os homossexuais. Mais informações sobre as relações entre a filosofia nietzschiana e
o riso podem ser buscadas em Verena Alberti (1999).
75

[...] precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para
poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E justamente por
sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens,
nada nos faz tanto bem como o chapéu do bobo: necessitamos dele diante
de nós mesmos – necessitamos de toda arte exuberante, flutuante,
dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade
de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós. Seria para nós
um retrocesso cair totalmente na moral, justamente com a nossa suscetível
retidão, e, por causa das severas exigências que aí fazemos a nós mesmos,
tornarmo-nos virtuosos monstros e espantalhos. [...] não só ficar de pé,
com a angustiada rigidez de quem receia escorregar e cair a todo instante,
mas também flutuar e brincar acima dela! (NIETZSCHE, 2012, p. 124. Grifos
do autor).

Nietzsche parece nos convidar a um descolamento em relação aos padrões de


normatividade, em relação às representações ilusórias de identidade a que tão fortemente
nos agarramos em busca de estabilidade. Pairar acima das coisas, flutuar acima de nós
mesmos, admitindo a liberdade do ridículo, da inadequação como abertura possível aos
fluxos de heterogeneidade. Nesse sentido, acreditamos que a arte da palhaçaria pode
constituir uma das chaves de acesso à experiência do riso como pulsão desestruturadora da
rigidez de normas e valores.
Não um riso alienante e apaziguador, mas, antes, um rir de que investiga, tensiona,
que desestabiliza e faz pensar. Rir de tudo que diminua nossas intensidades, rir dos
processos de sujeição, do controle, das normas que nos conformam, rir de nós mesmos. O
risível da palhaçaria como busca e exercício da diferença, como fissuras de criação e desvio,
na dinâmica permanente de uma ética que é movente, instável, em tentativas incertas de
fissuras e possibilidades.
Por fim, compartilhamos aqui algumas das indagações trazidas por Ricardo Puccetti
(2009, p. 124) sobre a arte clownesca, as quais achamos pertinentes em sua relação com a
ética: “O que ele [o ator/palhaço] quer causar no público? Que tipo de riso ele quer
provocar? Que riscos ele quer correr enquanto palhaço? Como ele quer que sua arte de
fazer rir atue na sociedade da qual faz parte?”
Caberá, portanto, a cada artista, cada palhaço – a cada um de nós – discutir no
próprio corpo os limites dessa ética transgressora, avaliando com seu próprio julgamento,
inevitavelmente parcial e falho, como agir. É a experiência das relações que determinará até
onde aquele palhaço está disposto a ir na busca por intensidades. Assim, uma das
perspectivas trazidas pela pessoalidade do palhaço e suas dimensões autorais dizem
76

respeito também a uma espécie de chamado à responsabilidade daquele artista,


tensionando as relações entre arte e vida, uma vez que os processos de violação acabam por
envolver e, na mesma medida, constituir as próprias percepções que aquele indivíduo
mantém sobre o mundo.
Podemos pensar as práticas transgressivas no clown em seu sentido ético, no
contexto em que Foucault nos fala sobre o “êthos”: “fazer o êthos, produzir o êthos,
modificar, transformar o êthos, a maneira de ser, o modo de existência de um indivíduo. É
ethopoiós aquilo que tem a qualidade de transformar o modo de ser de um indivíduo”
(FOUCAULT, 2006, p. 290). A ética diferenciando-se da moral, cujas regras coercitivas levam
ao julgamento das ações e intenções a partir de valores referenciais como o “certo” e o
“errado”, o “bem” e o “mal”...
A ética na perspectiva foucaultiana diz respeito a modos de existência, às relações
que o indivíduo estabelece consigo mesmo, operando transformações em sua própria
maneira de ser e viver. Esse chamado à responsabilidade do artista, provocado pelos afetos
transgressores do palhaço carrega sua porção ética no sentido de poder mudar a própria
existência daquele indivíduo, imbricando arte e vida na busca por modos de viver mais
intensos e potentes.
Assim, pensando em artistas da palhaçaria que transitam pelas instâncias
transgressivas, bem como questionam e desestabilizam as dinâmicas entre vida e arte,
capazes de gerar experiências cênicas potentes, vamos nos dedicar à investigação das
atuações de Jango Edwards, Leo Bassi e Luiz Carlos Vasconcelos – palhaço Xuxu. Partindo da
necessidade de cruzamento entre as práticas artísticas e o campo teórico que estamos
construindo, tentaremos identificar em suas atuações como se dão ou não os processos
transgressores levantados por nossas investigações. Através da análise de números cômicos
e ações específicas dos mesmos, bem como os pensando à luz de nossa bibliografia e de
reflexões dos próprios artistas acerca de seu ofício, pretendemos criar relações e atritos que
iluminem e violem nosso percurso.
Vamos em frente!
Todo caminho da gente é resvaloso.
Mas, também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a
gente volta!

João Guimarães Rosa (2001, p. 328-329).

Figura 5 - Jango Edwards

Fonte: <http://www.milanoclownfestival.it/edizione-2012/artisti-e-
compagnie/jango_edwards>. Acesso em 08 mar. 2013.
78

2 - SUL: Jango Edwards e o rebaixamento grotesco

2.1 - O clown como modos de vida

Jango (Stanley Ted Edwards) nasceu no ano de 1950 em Detroit, estado norte-
americano de Michigan, área conhecida por sua indústria agropecuária e grandes fazendas
que abrangem seu território. Seu pai era um bem-sucedido empresário no ramo de jardins e
paisagismo e sua mãe uma dona-de-casa religiosa. Terceiro filho de uma família de quatro
crianças, viveu sua adolescência nos anos sessenta, sendo influenciado desde cedo pelo
movimento hippie62 e pelas ideias de contestação da época. Já aos treze anos de idade,
Stanley declarou-se ateu e, a partir dos dezesseis anos, saiu de casa e passou a morar
sozinho63.
Aos dezessete anos, montou seu próprio negócio tendo um dos irmãos como sócio,
competindo com a empresa do pai. Interessado por temas como filosofia e psicologia,
Stanley entrou em contato com O Quarto Caminho, do filósofo russo P. D. Ouspensky,
durante uma viagem de negócios à Europa, em 1970, obra que, segundo o próprio artista,
mudaria os rumos de sua vida. Pertencente ao ramo das ciências esotéricas, esse livro é
baseado nos ensinamentos do mestre espiritual George Gurdjieff (1866 – 1949), o qual, de
acordo Ouspensky (1996), propunha um caminho de desenvolvimento do indivíduo através
do despertar da consciência no homem.
Partindo da integração do que ele denominava como “três caminhos” - corpo físico,
emoção e intelectualidade – o quarto caminho seria uma busca pelo autoconhecimento
alcançado na integração e equilíbrio dessas três instâncias. Ouspensky destaca que o
conhecimento do quarto caminho deve se dar empiricamente, no âmbito da experiência, por
meio da observação das relações entre o homem e o mundo que o cerca, bem como através

62
Surgido na década de 1960 o movimento hippie buscava modos de existência fora dos ditames normativos e
capitalista da sociedade vigente, reivindicando, entre vários ideais, a ampliação dos direitos civis de mulheres e
o fim das guerras que aconteciam naquele momento. Fonte:
<http://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/as-lutas-do-movimento-hippie.htm>. Acesso em
09 mar. 2013.
63
As informações biográficas contidas nesta dissertação foram retiradas da obra Jango Edwards (1980) e do
site do artista: < http://jangoedwards.net/workshops/clown-front/>. Último acesso em 21 jul. 2013.
79

da interação entre interior e exterior do indivíduo – aspectos que podemos observar na arte
clownesca de Jango, como veremos ao longo do capítulo.
Inspirado pelos ensinamentos da obra supracitada, ao retornar aos Estados Unidos,
Stanley, então um jovem bem sucedido de vinte anos, resolve vender seus bens, desfazer-se
de sua empresa e retorna à Europa para estudar a arte do clown. Instalando-se inicialmente
em Londres, Jango cria, nesta cidade, sua primeira trupe, The London Mome Company,
realizando apresentações cômicas na rua. Posteriormente, juntando-se a outros artistas
ligados à contracultura, ele funda o The Friends Roadshow.

Figura 6 - Postal promocional do The Friends Roadshow. Em seu verso trazia a descrição: “Um show familiar ao
ar livre para parques, festivais e eventos. Conduzimos a diversão no palco móvel que se desdobra do nosso
ônibus de dois andares. A mostra inclui ‘o meio picadeiro de Michael Spaghetti‘, um melodrama emocionante
de intriga e suspense que se passa na atmosfera colorida de um circo. Também na programação ‘Um conto de
pescador’, o nosso show de marionetes gigantes estrelando Bwana Banana, e os 'Jogos Olímpicos em Roupas
64
de baixo '; jogos e competições para todos, com o sempre popular 'Campeonato de lançamento de ovos '.”
Londres, 1974. Na foto, Jango Edwards aparece calçado de patins, vestindo cartola e macacão vermelhos,
segundo artista da esquerda para a direita.

Fonte: <http://theatrex.net/theatre/mt_pt7/friends_international.htm >. Acesso em 08 mar. 2013.

64
“An open air family show for parks, festivals and any outdoor events. We usually run the merriment from the
mobile stage that folds out from our double-decker bus. The show includes ‘Michael Spaghettis ½ Ring Circus’, a
gripping melodrama of intrigue and suspense set in colorful atmosphere of a circus. Also on the programme is
‘A fishytale’, our giant puppet show starring Bwana Banana, and the ‘Underwear Olympics’; games and
competitions for everyone, featuring the ever popular ‘Egg Tossing Championships’.” Tradução nossa.
80

Grupo itinerante que viajaria por diversos países europeus e por estados norte-
americanos, The Friends Roadshow realizava shows de música e variedades, desenvolvendo
experiências cênicas baseadas na comicidade e na paródia. Mais do que um espetáculo, a
vida desses artistas estava misturada nessas ações e, em 1974, eles chegam a fundar uma
comunidade de vida alternativa em uma fazenda de Michigan, criando uma vertente
chamada Friends Roadshow America.
Em 1976, Jango mudou-se para Amsterdam, Holanda, criando o Festival of Fools,
espaço de intercâmbio ao trabalho e pensamento de palhaços de várias partes do mundo.
Esse encontro internacional de palhaços seria realizado bienalmente até 1984, reunindo os
chamados novos clowns - artistas que, a partir da década de 1970, começam a repensar a
arte clownesca e suas relações com a cena e a vida cotidiana. Os novos clowns se opunham
aos processos de enfraquecimento da figura do palhaço devido a sua incorporação pela
indústria do entretenimento65. Assim, desde os primeiros anos de experimentação com a
palhaçaria, podemos perceber que Jango esteve envolvido em práticas que refletiam sobre
as intensidades do palhaço e as problemáticas de perda de potência dessa figura.
Ao longo de mais de quarenta anos de carreira, Jango não só desenvolveu e
aprimorou sua arte clownesca, mas, empenhou-se no estudo de disciplinas como mímica,
mágica, acrobacia, música e dança, habilidades que ele mescla em seus espetáculos e
números cômicos. Ademais, Jango gravou alguns discos66 com músicas compostas e
cantadas por ele, e publicou dois livros67 onde trata de sua vida, sua carreira como palhaço e
seus entendimentos e reflexões sobre a arte da palhaçaria.
Além de criar e executar seus espetáculos e números solo, Jango também já dirigiu
mais de cinquenta espetáculos de outros palhaços, e ministra oficinas e master classes sobre
a arte do clown. Tendo realizado diversas participações em filmes de comédia e programas

65
Fonte: <http://nouveauclowninstitute.com/nci/yoo_steam_demo_package_wp/?page_id=619>. Acesso em
20 ago. 2012.
66
Podemos encontrar na web o nome de discos do artista como Live at the Melkweg (Milky Way records, LP,
1978), Clown Power (Ariola, LP, 1980), Live in Europe (Polydor, LP, 1980), Holey Moley (Silenz, Cd, 1991), todos
inéditos no Brasil e alguns que nem chegaram a ser produzidos em Cd.
67
Jango Edwards (Editora N. H. Matz, 1980) e I laugh you (Editora Rostrum Haarlem, 1984), ambos esgotados e
não traduzidos para a língua portuguesa. Esta pesquisa conseguiu entrar em contato com a primeira obra
citada, a qual reúne um conjunto de fotos de apresentações de Jango em diversos lugares do mundo, bem
como traz estruturas dramatúrgicas de números cômicos, textos escritos pelo artista e letras de canções
gravadas em seus discos.
81

de televisão, recebeu, ainda, o título de mestre pela Academy of Fools da Universidade de


Moscou.68 A partir de 2004, Jango se estabeleceu em Barcelona, onde vive até hoje,
organizando a The Fools Militia, um grupo de clowns e atores cômicos que se dedica à
criação de performances e mostras de trabalho. Na mesma cidade ele passou a roteirizar,
dirigir e atuar com outros palhaços no Cabaret Cabron, espetáculo que reúne diferentes
números e esquetes cômicos a cada semana, recebendo, ainda, palhaços convidados de
outros países.
Em outubro de 2009, o artista inaugurou na Espanha o Nouveau Clown Institute (N.
C. I.), iniciando um programa de ensino sobre a arte da palhaçaria, tendo como objetivo a
criação de uma universidade para palhaços. E, em outubro de 2013, Jango ministrará o
módulo “Fórmulas Cômicas”, na segunda edição da Escola Internacional da Comicidade.
Realizado primeiramente na cidade espanhola de Santiago de Compostela e agora em Madri,
este projeto busca oferecer ao ator uma formação interdisciplinar baseada em uma
pedagogia teatral que coloca o clown no centro da experiência cômica 69.
Jango Edwards tem dedicado sua vida ao estudo e experimentação da linguagem do
palhaço, esta sendo entendida não apenas como uma técnica ou um campo profissional,
mas, antes, como abertura a modos de existência. Artista cômico com múltiplas habilidades,
ele mantém em relação à arte clownesca um trabalho internacionalmente reconhecido por
suas atuações provocadoras e irreverentes, utilizando-se de recursos que vão da sua própria
nudez a gestos escatológicos. Kasper (2004) cita, em sua tese de Doutoramento, trecho de
entrevista70 do artista onde o jornalista responsável pela matéria descreve a dificuldade em
acompanhar Jango pelas ruas, visto que ele interage com tudo que está ao seu redor,
chegando a se banhar na água de uma fonte pública. Ser clown para Jango é, primeiramente,
um modo de vida. Nas palavras do próprio artista:

68
Escola de palhaços criada pelo clown russo Slava Polunin. Site oficial:
<http://www.academyoffools.com/>. Acesso em 21 jul. 2013.
69
A edição de 2013 terá, ainda, o bufão Leo Bassi como responsável por um dos cursos, o módulo denominado
“Na procura da sua identidade cômica”, o que nos faz pensar que, nos últimos anos, a Espanha tem se tornado
um importante centro de investigação das técnicas clownescas e suas complexidades contemporâneas.
Maiores informações podem ser obtidas no site da Escola:
< http://www.escueladelacomicidad.org/apresentaccedilatildeo.html>. Acesso em 21 jul. 2013.
70
Entrevista publicada pela Revista Untel (Genebra, Suíça), dez./jan. 2002. O nome do jornalista responsável
pela entrevista não foi citado por Kasper.
82

Eu me visto clown. Eu ando clown. Eu vejo clown. Eu como clown. Eu fodo


clown. Muita gente vê os clowns como pessoas tristes em sua vida. Mas
isso não é verdade, os clowns são as pessoas mais positivas que existem. De
fato, eu sou um rebelde. (EDWARDS apud KASPER, 2004, p. 89).

Jango exercita através do palhaço o enfraquecimento entre os limites que separam


arte e vida: “As pessoas me pagam para eu ser eu. Elas se divertem com a liberdade dos
palhaços. [...] O palco é o lugar menos importante para o palhaço. Não há diferença entre
sua vida e sua performance como clown.” (EDWARDS, 2006, p. 17-18). Podemos identificar
nesse artista a intensificação do sentido pessoal do clown, uma vez que ele defende a
palhaçaria como uma maneira possível de entender e atuar sobre o mundo. Esse fato pode
ser observado já em relação a seu nome, uma vez que ele se apresenta em todas as ocasiões
com seu nome artístico, não havendo distinção entre a figura do intérprete e o palhaço que
ele dá vida. Nas palavras da pesquisadora Ana Achcar (2007, p. 30):

O nome do palhaço já é um pouco do palhaço, já traz com ele um pouco do


seu entorno, da cultura em que ele está mergulhado e da qual é também
uma expressão. O nome vem avisando o que nos espera, ou o que ele está
aprontando para nós.

A distinção entre o nome do artista e o do clown pode ser observada em diversos


casos, como no trabalho do ator Luiz Carlos Vasconcelos, cujo palhaço atende pelo nome de
Xuxu, ou o ator e pesquisador do LUME, Ricardo Puccetti, que se apresenta como palhaço
Teotônio, entre tantos outros exemplos. Todavia, entendemos que, ao transitar pelas
diversas instâncias da vida apresentando-se como Jango Edwards, este não faz distinção
entre o homem, o artista e o clown, implodindo os limites entre a experiência cênica e as
relações cotidianas, buscando uma fusão entre vida e arte através do clown.
Nesse contexto, podemos entrever relações entre a arte clownesca de Jango e O
Quarto Caminho, obra que tão fortemente marcou a trajetória do artista. Um dos princípios
descritos por Ouspensky reside na busca pela experiência através da interação entre os
âmbitos interior e exterior ao indivíduo. Essas noções podem ser aproximadas da arte do
clown e de seus processos de pessoalidade, se pensarmos nos fluxos de afeto entre o
palhaço e o mundo que o cerca, em dinâmicas de contaminação que constituem essa figura
cômica.
83

Em Jango Edwards (1980), este artista desenvolve alguns conceitos de sua Teoria
clownesca71, ressaltando o caráter pessoal da palhaçaria. Segundo ele, todos nascemos
palhaços, em seu sentido mais puro, uma vez que o clown é inocente, curioso, ingênuo, além
de carregar a essência da juventude. Na juventude estaríamos cheios de imaginação e
fantasia, características que vão sendo suprimidas pelo mundo a nossa volta, pelas leis
naturais e sociais que nos governam. De acordo com o palhaço sob análise, os jovens se
sentem mais livres e com o passar da idade muitas vezes isso vai se perdendo, pela
adequação do indivíduo às normas. Assim, os estudantes da técnica clownesca deveriam
entender que juventude, fantasia e imaginação devem ser (re)apreendidas, num processo de
observação interior através da qual o palhaço pode potencializar suas naturezas cômicas.
Embora Jango utilize termos como puro (pure) e essência (essence), acreditamos
que ele se refira ao clown mais como singularidades cômicas daquele ator do que como um
conjunto fixo de características. Como poderemos observar na atuação deste palhaço, a
comicidade se constitui para ele como abertura possível de relações e jogos, não como o
estabelecimento de uma identidade-essência, núcleo interior supostamente delimitado e
capturado.
A multiplicidade de estados e de indumentárias presente nas ações cênicas deste
artista poderia deixar a assistência em dúvida se ele é mesmo um palhaço ou um ator
cômico, contudo, ultrapassando a questão da nomenclatura ou de formas preestabelecidas,
Jango se autodenomina clown e ,pelos próprios princípios presentes em seu ofício, ele tem
tido seu trabalho clownesco internacionalmente reconhecido.
Ainda a respeito da pessoalidade no palhaço, Jango (1980) destaca que o aluno
deve aprender sobre suas habilidades mentais e físicas, suas capacidades e falhas, num
processo contínuo que envolve a pessoa do artista, seja no aprendizado de técnicas como
acrobacia ou mímica, seja com relação a eventos passados e presentes da vida daquele ator.
Ele afirma que o artista não tem o direito de presentificar as potências e fraquezas dos seus
semelhantes até que tenha entendido as suas próprias. Indo um pouco mais além, podemos
citar algumas das palavras proferidas no início dos espetáculos do Friends Roadshow:

71
“Clown Theory” (EDWARDS, 1980, p. 69-72). Tradução nossa.
84

O que vocês veem esta noite não é religioso. O que vocês veem esta noite
não é político. O que vocês veem aqui esta noite tem a ver com três letras:
F – U – N , Fun (diversão).
Vocês são Friends Roadshow tanto quanto nós somos. Nós usamos os
narizes vermelhos aqui e quando vocês riem de nós estão rindo de vocês
mesmos.
Vocês têm que se lembrar de tomar um tempo para sorrir. Porque assim
vocês vão muito mais longe do que jamais pensaram que poderiam.
Não sou diferente de vocês – nunca se enganem72. (EDWARDS, 1980, p. 22).

Dessa forma, podemos entender que arte e vida se encontram misturadas na arte
clownesca de Jango, tanto na pessoalidade do palhaço, como no tocante à sua relação com a
assistência, quando, através da atuação do clown, cada espectador pode se deparar com sua
própria natureza humana refletida, suas inadequações, desejos e intensidades.
Por fim, gostaríamos de abordar nesta apresentação inicial uma questão presente
no trabalho desse palhaço e que entendemos estar diretamente relacionada à sua lógica
cômica. Embora no trecho supracitado Figura 7 - Jango e sua máscara.

Jango faça referência ao uso do nariz


clownesco, uma das principais
características fisionômicas das
atuações deste artista reside na
ausência do nariz vermelho que há mais
de um século tornou-se uma das
grandes referências dos palhaços73.
Ao longo de suas
apresentações, ele utiliza diversos Fotógrafo: Michael Campo. Fonte: Jango Edwards (1980).
acessórios e indumentárias exóticas,

72
“What you see tonight is not religious. What you see tonight is not political. What you see here tonight has to
do with three letters: F - U- N, Fun. / You are Friends Roadshow as much as we are. We all wear the red noses
here and when you laugh at us, you're laughing at yourself. / You have to remember to take the time to smile.
Cause then you go a lot further than you ever thought you could. / I am no different than you - don't ever fool
yourself.” Tradução nossa.
73
Bolognesi (2003) afirma que alguns historiadores do circo atribuem ao acrobata e cavaleiro Tom Belling o
início do uso do nariz vermelho em cenas cômicas, na segunda metade do século XIX, quando o artista, após
problemas com o dono do circo, teria adentrado o picadeiro de maneira atrapalhada, tropeçando e caindo com
o rosto no chão, o que teria lhe rendido o nariz avermelhado e os aplausos entusiasmados do público. Outra
versão atribuiria o nariz vermelho ao frio e ao excesso de bebida do artista.
85

como chapéus ridículos, barrigas falsas e diferentes tipos de óculos, mas poucas são as vezes
em que atua com a menor máscara do mundo74. O traço mais marcante do rosto de Jango é
a sua boca, que ele mantém destacada independentemente da caracterização que adote.
Contornada por uma linha preta que aumenta seu tamanho, com os lábios pintados de
branco, a região bucal do artista aparece acentuada – como podemos ver na figura anterior.
Mikhail Bakhtin (2010), em seu importante estudo acerca da comicidade popular na Idade
Média e no Renascimento, afirma que a boca tem o papel mais importante no corpo
grotesco, uma vez que ela devora o mundo, espécie de abismo corpóreo escancarado e
deglutidor. Nas palavras do autor:

[...] a boca é a porta aberta que conduz ao baixo, aos infernos corporais. A
imagem da absorção e da deglutição, imagem ambivalente muito antiga da
morte e da destruição, está ligada à grande boca escancarada [...] uma das
imagens centrais, cruciais, do sistema da festa popular. Não é por acaso que
um grande exagero da boca é um dos meios tradicionais mais empregados
para desenhar uma fisionomia cômica [...]. (BAKHTIN, 2010, p. 284. Grifos
do autor).

Jango Edwards abre mão do uso do nariz vermelho, mas mantém em sua
caracterização a cavidade bucal destacada, ampliada, escancarada, o que lhe confere grande
expressividade cênica. Podemos entender que a sua boca exagerada assume o lugar da
máscara teatral, antecipando a punção de destruição e a configuração grotesca que suas
atuações oferecerão ao espectador, ligadas ao “baixo”.
Bakhtin (2010) desenvolve na obra supracitada o conceito de realismo grotesco, um
sistema imagético ligado à comicidade popular, segundo o qual: “[...] o princípio material e
corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica. [...] Por isso o elemento corporal é
tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo.”
(BAKHTIN, 2010, p. 17. Grifos do autor). O excesso grotesco carrega em si dinâmicas de
afirmação de intensidades, quando a corporeidade75 é capaz de operar com indefinições e
instabilidades.

74
No espetáculo The Bust of Jango, analisado a seguir, o artista realiza 14 (quatorze) números cômicos e/ou
musicais e usa o nariz vermelho em apenas um esquete.
75
Adotamos aqui o entendimento acerca do termo corporeidade investigado pelo grupo LUME, cujo conceito é
esclarecido por Burnier (2001, p. 184-185) como “o uso particular e específico que se faz do corpo, a maneira
como ele age e faz, como intervém no espaço e no tempo, a dinâmica e o ritmo de suas ações físicas e vocais.
86

O grotesco está relacionado ao exagero, presentificado no corpo através do que o


crítico russo denomina como rebaixamento, processo pelo qual se realiza a transferência dos
ideais espirituais e abstratos à materialidade corpórea. O autor supracitado afirma que há
uma relação estreita entre o grotesco e o “baixo”, este em seu sentido topográfico,
representando a terra. Esta ligação com a terra possuiria o caráter concomitante de
absorção (o solo como túmulo, ventre), de nascimento e ressurreição (solo como seio
materno). Assim, o alto seria representado pela extremidade superior de nosso corpo, a
cabeça, e o baixo pelos órgãos genitais. Os pesquisadores Muniz Sodré e Raquel Paiva
dedicam-se ao estudo do grotesco, desenvolvendo que o rebaixamento é:

[...] operado por uma combinação insólita e exasperada de elementos


heterogêneos, com referência frequente a deslocamentos escandalosos de
sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e
dejetos – por isso, tido como fenômeno de desarmonia do gosto [...]
suscitando um mesmo padrão de reações: riso, horror, espanto, repulsa.
(SODRÉ e PAIVA, 2002, p. 17).

Na visão de mundo grotesca, o exagero corpóreo e o rebaixamento possuem um


caráter transgressivo de inversão das normas, como princípios que privilegiam a desordem,
subvertendo as estruturas cotidianas. Logo, a comicidade que acompanha o grotesco
carrega em si um riso dúbio, contaminado pela repugnância, pelo espanto, pela comoção,
podendo causar incerteza e desorientação ao fenômeno cênico. Nas palavras do
pesquisador José Tonezzi (2011, p. 43):

Assim, se perfazem como principais características do grotesco a dubiedade


e a alternância entre o sentido cômico e terrível, risível e fantástico, ridículo
e monstruoso. É da intersecção paradoxal desses universos que se constitui
o espírito e a graça desses fenômenos, manifestado pela presença
marcante de elementos e figuras que se destacam do meio e destituem a
ordem e a estabilidade como referências estruturantes do real. O grotesco
é justamente o pêndulo que oscila entre a harmonia que se quer perene e o
improvável e indesejado caos.

Ela, como vimos, em relação ao indivíduo atuante, antecede a fisicidade. A fisicidade é o aspecto puramente
físico e mecânico da ação física [...] Já a corporeidade, além da fisicidade, é a forma do corpo habitada pela
pessoa. Assim, a corporeidade envolve também as qualidades de vibrações que emanam deste corpo [...]. A
corporeidade é, portanto, a maneira como informações de ordens diversas, referentes à pessoa,
operacionalizam-se e articulam-se por meio do corpo, ou seja, como essas informações se somatizam.”.
87

Não é a toa que identificamos a boca de Jango com as possibilidades grotescas de


sua lógica cômica, pois suas atuações são carregadas nas cores do excesso, exageros que
friccionam instâncias como vitalidade, monstruosidade, escatologia, comicidade e repulsa,
colocando a audiência em estado de risco e atenção, conforme veremos a seguir.
A escolha do estudo das matrizes grotescas em relação a este clown dá-se como
tentativa de busca por possíveis chaves de leitura que nos permitam levantar questões e
complexidades sobre a arte clownesca de Jango. Destacamos, ainda, que nos pareceu
pertinente à referência ao ponto cardeal sul para nomeação do presente capítulo pela
ligação que percebemos entre esse palhaço e o “baixo” atinente ao rebaixamento grotesco,
este representado pela proximidade com a terra e os órgãos genitais.

2.2 - Números cômicos: abertura para a experiência

Nas próximas páginas realizaremos exercícios de análise sobre números cômicos de


Jango Edwards, retirados do espetáculo The Bust of Jango76, mantendo como foco de
investigação as qualidades transgressivas e algumas das reflexões trabalhadas em nosso
capítulo anterior.

2.2.1 - A entrada77

Rubrica: Luz acende em resistência e vemos um palco de tipo italiano. Em cena um


espaço que lembra o interior de uma casa: móveis como poltrona, armário, um fogão velho,
além de uma janela com cortinas ao fundo, à direita, e um piano, à esquerda. Em cena, dois
atores78 que ao longo do espetáculo funcionarão como ajudantes de Jango - seja atuando em

76
Espetáculo registrado no ano de 1993 em Cannes. Apresentação que reúne números cômicos e musicais
desenvolvidos por Jango ao longo de sua carreira. O termo inglês bust pode aludir à farra ou fracasso, termos
que mantém relação com a arte clownesca. Parece haver aqui, ainda, uma brincadeira com a sonoridade da
palavra, visto que o título nos lembra uma satirização da expressão “the best of” – o melhor de. No DVD em
anexo encontra-se uma cópia do espetáculo na íntegra – retirada da WEB - e os números cômicos que serão
objeto de análise deste capítulo.
77
Embora o termo entrada seja comumente utilizado para designar números cômicos de palhaços circenses,
vamos denominar aqui como entrada os minutos iniciais de abertura do espetáculo, quando Jango entra em
contato com a plateia pela primeira vez.
78
Dave Norket e Stan Heywood.
88

alguns números cômicos, seja executando músicas e intervenções sonoras. Eles realizam
apressados os últimos preparativos para a entrada do artista que logo será anunciado ao
microfone.
Jango Edwards entra pela plateia ao som de uma música que lembra as canções
norte-americanas dos anos cinquenta, com sua atmosfera leve, onde se ouvem violinos e
uma orquestra. Vestido com um sobretudo preto, óculos escuros, uma echarpe estampada
com desenhos de pelo de onça e um gorro com estampa de pelo de zebra, ele entra
fumando e segurando uma daquelas velas festivas que soltam faíscas, que logo entrega a um
dos espectadores. Ele masca chicletes e a movimentação de seu corpo parece assumir o
mesmo gingado de sua boca ao mastigar, misto de caminhada e dança.
Imprimindo certa malandragem a sua figura, essa atmosfera se mistura com o que
parece ser a transfiguração parodística de uma entrada glamorosa. Já nos primeiros
instantes ele beija um espectador na face, distribui alguns beijos ao resto da plateia, como
um astro de cinema poderia fazer diante de seu público, e, ao levantar um adolescente de
seu assento, aperta seu pescoço e imediatamente o solta com um gesto de quem se
desculpa por um pequeno deslize incontrolável.
Ao subir no palco Jango retira sua indumentária inicial (sobretudo, óculos, echarpe,
chapéu), ficando de terno preto e gravata borboleta, com destaque para sua lapela
estampada como pelo de zebra, o que quebra a sobriedade da vestimenta. Ele então cospe
seu chiclete na direção do público - não como uma afronta, mas como uma ação natural -
bebe um gole de refrigerante servido por um de seus ajudantes e dá um grande arroto no
microfone, desejando “boa noite” aos presentes.
Já no início da atuação podemos identificar a presentificação de duas das matrizes
de comicidade que relacionamos aos processos transgressivos: o contraste e a quebra de
padrões. O artista caminha por entre os espectadores se relacionando diretamente com eles
e dando a conhecer muito da tônica que permeará o espetáculo, transitando em diversos
momentos por estes dois princípios. Ao mesmo tempo em que sua entrada no espaço
teatral tenta imprimir certa elegância, não sabemos os limites parodísticos dessa atmosfera,
nem quando suas frágeis estruturas serão rompidas por gestos bruscos do palhaço - como
invadir o espaço pessoal de algum espectador ou, ainda, arrotar como forma de
cumprimento.
89

Mesmo que suas ações não provoquem necessariamente o risível, podemos


observar a presença de jogos de oposição e quebra de padrões que vão criando zonas de
instabilidade na relação palhaço-plateia. Desde os primeiros instantes, este palhaço coloca o
espectador num espaço arriscado, investigando as fronteiras dessa relação, limites que
serão ainda mais tensionados no decorrer do espetáculo, uma vez que ninguém sabe
exatamente qual será a próxima atitude daquela figura cheia de excentricidade.
Podemos identificar a intensidade da lógica de contrastes nos gestos desse clown –
como, por exemplo, nos momentos em que ele sobe no palco com uma corporeidade que
imprime leveza ou retira seu sobretudo e demais acessórios de forma elegante, para logo
em seguida cuspir displicentemente seu chiclete na plateia e arrotar. Como também em
relação à variação contrastante de ritmos que ele vai provocando durante sua fala de
abertura.
Já no palco, esse artista tenta conversar de maneira calma e pausada com a
assistência, apresentando no microfone o início de seu espetáculo, mas é interrompido
várias vezes por interferências sonoras que funcionam como marca cênica para que ele
realize uma partitura corpórea que lhe obriga a ir ao chão, levantar, quebrar um copo
descartável na própria testa e dar um berro para então retornar ao ritmo tranquilo da fala.
Jango cria uma comicidade transgressiva na medida em que segue desviando de
qualquer organização de sentido, pois cada vez que seus gestos parecem encontrar a
estabilidade, ele novamente rompe com a ação através do descontrole e da quebra de
expectativas. Diante de tamanha potência, o espectador tenta se equilibrar no
desconhecido, sem saber qual será o próximo movimento do palhaço e mesmo sem
conseguir ler claramente qual é a lógica de sua atuação. A dinâmica instável de suas ações
físicas e vocais, as variações bruscas de ritmos e de ocupação do espaço cênico criam um
terreno escorregadio onde a experiência cênica se dá por choques e atritos, instaurando
atmosferas caóticas surpreendentes.
A estranheza causada por suas ações segue em progressão ascendente quando,
sem qualquer motivo aparente, ele interrompe novamente o discurso verbal para, desta vez,
lançar-se do palco sobre a plateia, saltando em cima de uma espectadora e sacudindo
fortemente sua cadeira. Ao retornar ao microfone ele diz a ela: “Perdoe-me... Você se parece
com a minha esposa... Foi bom pra você?”, aludindo a um contato sexual entre os dois, até
90

que nova interferência sonora faz com que ele repita a partitura física já executada. Quando
encara a plateia ele pergunta de forma irônica: “Confuso?” e segue dizendo “Sabem, quando
vocês sentam aí me olhando estar aqui, eu fico aqui vendo vocês sentados aí. Vejo seus
rostos...” e reproduz ironicamente uma expressão de medo e perplexidade.
Em poucos minutos Jango consegue construir relações com a plateia que friccionam
potências e instabilidades, numa dinâmica comunicacional que é permeada pelas quebras
bruscas de sentido, pela ausência de lógicas palpáveis nas quais possamos nos amparar.
Colocando-se em diálogo permanente com a assistência, cada nova ação deste clown
funciona como ruído que interrompe e embaralha a tentativa de comunicação iniciada pela
ação anterior, numa sucessão de lacunas que vão sendo abertas e nunca se concluem, pois
logo serão rompidas pela eclosão de novo gesto, devir que confunde e inquieta os
espectadores. Elza de Andrade esclarece sobre a quebra dos padrões como mecanismo de
comicidade:

[...] para criar um movimento inesperado é preciso antes estabelecer qual é


a norma, o padrão que será quebrado. Esse padrão precisa ser claro,
preciso e compreensível, pois ele é parte integrante da surpresa. A
comicidade se dá com a interrupção da sequência, mostrando que a quebra
do percurso lógico-racional do gesto-som provoca o riso, pois nosso
pensamento está condicionado a completar as séries (o padrão).
(ANDRADE, 2005, p. 107).

Contudo, podemos perceber que Jango problematiza e tensiona essas noções, pois,
em sua atuação, a interrupção trazida pelo inesperado ocorre antes que tenhamos o
conforto, mesmo que efêmero, do entendimento do padrão a ser rompido. Se, como afirma
Andrade, a mente humana possui o condicionamento de completar os padrões claramente
ordenados, não encontramos, nos gestos deste clown, continuidade a seguir, mas
movimentos de incoerência e desconexão.
Ao observarmos os momentos iniciais do espetáculo, podemos ver que Jango cria
zonas de risco que são constituídas de maneira desordenada, caótica, cheias de interrupções
que contaminam a sequência da fala de apresentação e quase a impossibilitam, como um
raciocínio que não consegue ganhar prosseguimento e logo será perturbado ou rompido.
Ainda que a comicidade venha a ser prejudicada neste processo, há aqui uma tensão cênica
que nos parece potente.
91

Jango não nos permite compreender qual é o percurso lógico-racional que dita suas
ações, pois o que nos é dado a experienciar são os vestígios de sequências que em
curtíssimo espaço de tempo também serão dilaceradas, forçando-nos a transitar pela
ausência de clareza e pela incompreensão. Num emaranhado de ações que se repetem e se
confundem, como uma espiral que não cessa seu movimento de desarticulação, o
espectador vai sendo absorvido para o interior de uma experiência cênica inconstante e
arriscada.
Rapidamente vamos nos dando conta de que tudo é possível no jogo deste palhaço,
pois ele é capaz das ações mais imprevistas e incongruentes. Mesmo o espaço da caixa
cênica logo se mostra ineficiente para estabelecer qualquer separação entre ele e o público,
pois esse clown invade o espaço das pessoas com a mesma facilidade que retorna ao palco.
Este fator aumenta sobremaneira a sensação de ameaça física que paira sobre os
espectadores, criando relações de desconforto que produzem a matéria risível pela
excitação e pelo medo do inesperado.
Como temos visto, a vulnerabilidade faz parte do jogo clownesco, porém, Jango
transporta esse caráter vulnerável para sua assistência, que vai sendo contaminada pela
desorientação. A plateia fica em estado de alerta, tentando administrar entre risos e sustos a
insegurança de estar participando de uma relação cômica que comporta a todo o momento
explosões rítmicas e ações insólitas desse palhaço que é um perturbador da ordem.
Ele coloca o público nesse espaço de indefinição que é permeado pela vertigem,
numa sucessão de gestos infundados, sem lógicas causais inteligíveis, como um arroto no
microfone, brincadeiras infames - como quando interpela repentinamente um espectador,
perguntando se ele estava olhando para a área genital do palhaço - e aproximações físicas
inesperadas. É no âmbito desses fluxos de instabilidade e caos que vemos nascer uma forma
possível de qualidade transgressiva, tirando os espectadores de qualquer zona de conforto
e, ao mesmo tempo, construindo uma cena cheia de intensidade.
92

2.2.2 - O bêbado

Este mimo79 possui duração de cerca de onze minutos e traz, em seu


desenvolvimento, diversos elementos relacionados ao grotesco, sobretudo pela utilização
de vigorosa fisicalidade por parte do artista. O esquete será investigado em duas partes
distintas para facilitar nossa análise: o primeiro trecho abarca a entrada e apresentação do
bêbado e o segundo trata da sua urgência em usar o banheiro
Analisaremos esta cena tentando estabelecer novas conexões com o conceito de
realismo grotesco desenvolvido por Bakhtin (2010). Inicialmente, o artista apresenta à
plateia o tema que será visto a seguir, explicando no microfone, de maneira calma e
informal, que o número é dedicado aos homens que em algumas noites bebem demais, vão
ao banheiro pela última vez e descobrem que este está ocupado. O palhaço mantém, como
em sua entrada, uma dinâmica comunicacional simpática, direta e clara com os
espectadores.
A primeira parte do número começa ao som de uma canção ao piano que
estabelece uma atmosfera repetitiva e irreverente, ainda com a presença de algumas
interferências sonoras que, realizadas pelos dois ajudantes de palco, atravessam a atuação,
estabelecendo novamente interrupções que não possuem sentidos causais compreensíveis,
causando estranheza e alguns risos na assistência. Na penumbra, Jango retira seu hobbie
estampado com desenhos de ovos fritos e pedaços de bacon, vestindo em seguida paletó e
chapéu, uma espécie de boné, ambos de estampa quadriculada. Essa indumentária, aliada à
sua gravata borboleta, ajuda a tornar sua figura ainda mais excêntrica e ridícula. Após se
vestir, o artista vem até o proscênio cambaleando, mostrando que ele será o bêbado do
número cômico em questão.
Nos próximos minutos, Jango realizará diversas ações mantendo sua corporeidade
em desequilíbrio, presentificando no corpo a instabilidade e a idiotização advindas do
estado de embriaguez. Segundo Bakhtin (2010), o grotesco relaciona-se ao exagero

79
Segundo Pavis (2005), o mimo é um meio de expressão narrativo que conta uma história através de gestos,
sem o uso da fala ou esta servindo apenas para a apresentação e encadeamento dos números. O uso do termo
pelo artista parece bem adequado, pois, excetuando-se a apresentação inicial ao microfone, o número consiste
numa sequência de ações sem fala, onde a fisicalidade é a principal responsável pelo desenvolvimento da
narrativa cômica.
93

corporal assim como aos excessos materiais do comer e beber, estabelecendo uma lógica
festiva ligada à fecundidade e à superabundância, onde o “baixo” deglute e procria. A
grande boca grotesca mantém-se aberta e pronta para absorver bebidas e comidas de modo
exagerado, num processo de ridicularização que celebra a vida. Nas palavras do autor
russo:

O comer e o beber são umas das manifestações mais importantes da vida e


do corpo grotesco. As características especiais desse corpo são que ele é
aberto, inacabado, em interação com o mundo. [...] o corpo escapa às suas
fronteiras, ele engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de
si, enriquece-se e cresce às suas custas. [...] O homem degusta o mundo,
sente o gosto do mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si.
(BAKHTIN, 2010, p. 245).

Assim como Jango opera relações de abertura através de lacunas que rompem com
a tessitura da lógica causal, instaurando processos transgressivos que desviam e atravessam
quaisquer padrões, sua corporeidade grotesca também evoca essas instâncias de
inacabamento e inconstância. Este palhaço traz em sua atuação concepções de mundo
distintas do nosso cotidiano de regras que versam sobre o comportamento, a saúde e a
manutenção do corpo.
Minois (2003) destaca que, ainda no século XIX, havia em alguns países europeus,
sobretudo na França, uma cultura cômica baseada na escatologia e na derrisão provocadora
dos ébrios. Essas manifestações culturais eram compostas por textos satíricos e diversas
canções que funcionavam como elogio à bebida e às façanhas dos bêbados,
comportamentos que aludiam à tradição carnavalesca do “mundo ao avesso”. Contudo, já
no século XX, esse tipo de manifestação cômica teria passado por um processo de repressão
moralizante:

A ascensão de uma corrente antialcoólica fez o cômico do bêbado recuar a


partir de 1900. O álcool adquire a dimensão de flagelo público. Se continua
a fazer rir, não é o mesmo riso de outrora. O que ainda faz rir não são mais
as palavras e as canções inspiradas pelo álcool, mas o aspecto exterior do
bêbado, transformado num pobre-diabo derrisório. (MINOIS, 2003, p. 495).

Tratando de uma temática que poderia beirar o drama, uma vez que pensemos na
degradação moral e física dos ébrios, Jango parece transitar por uma ordem diversa, qual
94

seja a lógica grotesca. Aqui a embriaguez assume um caráter alegre e festivo em sua
interação com o mundo, através de atitudes estúpidas e ingênuas, desejosas de conhecer ou
reconhecer o que está a sua volta através de seu orifício deglutidor. A boca do palhaço se
mantém ávida por beber mais ou até mesmo abocanhar o estranho objeto que é o
microfone.

Figura 8 - Jango no número sob análise. Destaque para sua Em seu corpo grotesco,
boca escancarada, espécie de orifício grotesco.
instável e inacabado, o artista
parece querer devorar o mundo e
compartilhá-lo com a plateia, o
que, seguindo a atmosfera
provocadora de seu espetáculo,
ocasionará novos problemas aos
espectadores. Mais uma vez, ele
colocará a assistência em situação
Fonte:
<http://www.last.fm/music/Jango+Edwards+&+Friends+Roadshow>. de risco iminente.
Acesso em 02 mar. 2013.
Em seu permanente
cambalear, Jango quase cai do alto do palco em cima da plateia. Depois, começa a jogar
bebida nos espectadores, controlando a saída dos jatos com o dedo, o que nos remete aos
números clássicos de palhaços circenses em que esguichos de água molham o público.
Contudo, Jango não utiliza água, mas cerveja, líquido que suja, mela, deixa um odor
desagradável ao secar e que poderia, inclusive, acertar os olhos dos membros da
assistência.
No decorrer desse jogo em que molha a plateia, quem acaba encharcado de cerveja
é o próprio artista, que começa a se divertir com o lançamento da bebida, como se esta
fosse perfume. Jango atinge seu próprio rosto com o líquido, derrama-o em suas vestes,
deixa escapar cerveja de sua própria boca, ações que vão agradando cada vez mais a plateia,
pois ele compartilha com os espectadores esse ritual de excessos.
Tudo aqui é exagerado: o corpo cada vez mais desequilibrado, a bebida que não
para de cair, o entendimento do palhaço sobre as coisas mais simples e que parece mais e
mais prejudicado - presente em gestos como prender o dedo no gargalo da garrafa ou
apavorar-se por achar que “perdeu” a própria mão. Ao mesmo tempo, este clown, capaz de
95

causar o riso inseguro dos espectadores ao serem colocados em risco, também oferece o
próprio corpo para ser fustigado em nome do jogo cômico, numa espécie de celebração
coletiva da embriaguez e da estupidez do ser humano.
O consumo excessivo da bebida resultará no palhaço a vontade intempestiva de ir
ao banheiro, trecho que convencionamos como segunda parte deste número cômico,
quando podemos observar uma mudança radical em sua corporeidade. Dada à urgência da
necessidade fisiológica, o corpo do clown assumirá um ritmo mais acelerado, deixando para
trás a fisicalidade desequilibrada de outrora, e passando a atuar através de uma codificação
mais precisa. O artista realiza diversas construções imagéticas com o uso da técnica da
mímica, criando por meio de seu corpo a configuração espacial do banheiro, sua porta,
janela, vaso sanitário e, posteriormente, também simulará a manipulação de um falo de
grandes proporções, em gestos cujos traços cômicos e grotescos serão reforçados pela
sonoplastia.
Neste segundo trecho do número cômico sob análise, podemos verificar a presença
de outros dois princípios atinentes à visão grotesca de mundo, quais sejam a relação com as
excreções corpóreas e a hipérbole corporal. Bakhtin (2010) destaca que os excrementos
relacionam-se à virilidade e à fecundidade, espécie de intermediação entre a terra e o
corpo, num processo renovador. Assim como o corpo morto, os excrementos também
servem para fecundar a terra. A urina, bem como as fezes, faz alusão ao “baixo” corporal, à
zona dos órgãos genitais, participando dos rituais de rebaixamento de diversas festividades
na antiguidade grega e na Idade Média 80.
Excrementos possuem um caráter ambivalente, pois, ao mesmo tempo em que
remetem à degeneração do corpo, também conservam uma relação com o nascimento, com
a vitalidade e a alegre renovação. Segundo o autor, essa natureza dicotômica fora perdida
com a modernidade, restando somente os aspectos negativos e grosseiros relacionados às
excreções. Contudo, estes ainda encontram lugar em alguns campos da comicidade, como
podemos constatar na atuação de Jango. De acordo com Bakhtin:

80
Bakhtin (2010) ressalta que o lançamento de excrementos está presente em dramas satíricos de Ésquilo e
Sófocles, bem como em festas carnavalescas medievais como a “festa dos tolos”, na quais, após os ofícios
religiosos, os padres percorriam as ruas em charretes carregadas de excrementos e os lançavam sobre o povo
que acompanhava as festividades, como forma de bênção e escárnio.
96

As imagens dos excrementos e da urina [...] estão estreitamente ligadas ao


riso. A morte e o nascimento nas imagens da urina e dos excrementos são
apresentados sob o seu aspecto jocundo e cômico. [...] Pode-se afirmar que
a satisfação das necessidades naturais é a matéria e o princípio corporal
cômicos por excelência, a matéria que melhor se presta à encarnação
degradada de tudo que é sublime. É isso que explica o seu papel tão
importante no folclore cômico, no realismo grotesco [...], assim como nas
expressões degradantes correntes na linguagem familiar. (BAKHTIN, 2010,
p. 130-131. Grifos do autor).

Jango presentifica em seu corpo a urgência trazida pela necessidade fisiológica bem
como o prazer natural de sua satisfação, a vitalidade e a renovação presente neste ato,
lembrando-nos que, apesar dos desejos de transcendência, ainda nos resta a todos uma
forte dimensão corpórea, ligada aos instintos naturais, aos ritos ordinários do corpo.
Ademais, diante do desespero causado pela vontade de urinar, o clown em questão cria,
com sua gestualidade, a imagem de um enorme falo, desproporção que identificamos como
mais um dos exageros ligados ao hiperbolismo grotesco, beirando o fantástico. O órgão
genital, relacionado ao “baixo” corporal, assume aqui um caráter impossível e monstruoso,
ligado à concepção grotesca do corpo, onde o “[...] terrível adquire sempre um tom de
bobagem alegre.” (BAKHTIN, 2010, p. 34).
Nas mãos deste palhaço, a genitália masculina imaginária perde seus contornos
definidos em contato com o mundo, permitindo que o artista realize diversas ações como
deixar o falo cair no chão, dançar tango com ele, lançá-lo como objeto de malabarismo e
tocá-lo como uma guitarra. Por fim, o órgão que era gigantesco transforma-se em um
objeto de tamanho ínfimo e, ao som de uma canção dramática, o bêbado se despede
melancolicamente dele e o joga na privada, dando descarga.
Na profusão de imagens criadas por Jango, podemos concluir que suas qualidades
transgressivas estão fortemente relacionadas à lógica grotesca de entender o mundo e
sobre ele atuar. Criando interações instáveis e inacabadas, este clown coloca o espectador
diante dos limites, tantas vezes rompidos, do gosto, do escatológico, do absurdo, criando
uma experiência cênica que pode despertar na assistência não apenas o risível, mas
também o estranhamento e o asco.
97

2.2.3 - A Igreja do Sorriso Largo

Este número cômico possui duração de cerca de treze minutos e consiste numa
espécie de culto religioso ministrado por Jango Edwards. Ao som de uma melodia de órgão,
recriando a atmosfera de algumas Igrejas e templos, o artista adentra o espaço cênico
utilizando um grande crucifixo no pescoço, óculos escuros, folhas verdes no alto da cabeça -
que parecem imitações de folhas de parreira, possível alusão aos rituais do Deus Baco 81 - e
um paletó branco onde se lê em suas costas a inscrição Church of Grin82.
Pedindo as palmas da plateia no ritmo da música e realizando uma dança ridícula,
Jango conclama a participação da assistência, solicitando a resposta dos espectadores ao
gritar e dizer em diversas entonações a palavra Jesus, numa espécie de show que em nada
deixaria a dever às manifestações e eventos de música religiosa que pululam em diversos
países ocidentais como o Brasil.
Após o fim da canção, Jango empunha o que parece ser uma bíblia, livro de capa
vermelha com o símbolo da cruz, iniciando a sua pregação de sons e gestos
incompreensíveis, exceto pelas palavras inúmeras vezes repetidas Povo, Aleluia e Amém.
Estamos diante da paródia de um culto religioso, tema delicado e deveras atual se
pensarmos na radicalidade assumida por tantos indivíduos em nome de suas crenças.
Nesse contexto, trazemos a interlocução do próprio artista, quando Jango Edwards
(1980) defende que o ofício do clown possui duas dimensões: a primeira que seria fazer o
público rir, relaxar e se divertir; e, acompanhando a anterior, haveria uma segunda tarefa
que consiste em apresentar informações e pensamentos sobre o que está acontecendo a
nossa volta. Em suas palavras: “O palhaço tem o poder de instigar a percepção e este poder
é incalculável83.” (EDWARDS, 1980, p. 72).

81
Deus romano do vinho, correspondente ao deus grego Dioniso, aparece em suas representações e mitos com
a cabeça ornada com folhas de parreira. Relacionado à fertilidade, às festas, ao lazer e ao prazer, em sua honra
promoviam-se festas dionisíacas e os ditirambos, que nas origens do teatro grego eram constituídas por uma
espécie de canto coral constituído de uma parte narrativa, recitada pelo cantor principal, e de outra
propriamente coral, executada por personagens vestidos de faunos e sátiros. Maiores informações sobre os
mitos de Baco podem ser encontradas em Bulfinch (2009).
82
Igreja do Sorriso Largo. Tradução nossa.
83
“The clown has the power to instigate perception and this power is invaluable.” Tradução nossa.
98

De acordo com a teoria clownesca desenvolvida por esse artista, o clown pode
refletir em suas atuações as mais diversas situações sociais, fazendo com que os
espectadores possam ter uma melhor compreensão sobre elas, podendo desafiar
comicamente os fatos que precisam ser alterados. O palhaço pode expor criticamente as
normas, refletidas em seu corpo através de diferentes níveis de anormalidade. Essa figura
cômica seria como uma contadora de histórias dos eventos cotidianos, podendo promover,
além do riso, reflexões e mudanças.
Jango defende, portanto, que o clown pode carregar qualidades transgressivas em
relação aos fatos e normas cotidianas, instaurando, através da comicidade, um espaço de
reflexão junto aos espectadores. Dessa forma, o número sob análise pode ser observado a
partir do potencial crítico da linguagem clownesca, presentificando, em sua configuração
parodística, o ridículo de algumas situações religiosas ou a porção risível de certos líderes
que conduzem esses cultos. Ainda sobre a potência da palhaçaria, Jango discorre:

O sorriso é universal, todos o entendem em qualquer lugar, e isso faz o


clown uma personagem universal. Nunca subestime o poder do sorriso. A
vida das pessoas muda através do riso. Eu tenho visto isso acontecer
publicamente e pessoalmente. A crença delas é real e o palhaço pode trazer
sentido à sua vida, ajudando você a entender. Tudo isso parece simples,
mas nos iludimos por muito tempo, fazendo disso uma dificuldade e assim
será até começarmos a entender que amor, justiça e igualdade são simples,
mas requerem total aceitação por todos. Lembre-se destas palavras
religiosas há, há, há, ah! 84 (EDWARDS, 1980, p. 72. Grifos nossos).

O artista defende uma arte clownesca ligada à potência da liberdade, à violação das
normas do senso comum, o que podemos verificar nas atuações analisadas até aqui. Em
seus processos artísticos, comicidade e reflexão crítica encontram-se misturadas através de
altas doses de ironia, irreverência e jogos derrisórios. Além disso, retomando a visão de
mundo grotesca, podemos lembrar que, sobretudo durante na Idade Média, o riso não

84
“The smile is universal, everyone understands it everywhere, and that makes the clown a universal character.
Yet never underestimate the power of the smile. People's lives change through laughter. I have seen them
express it publicly and personally. Their belief is real, and the fool can bring meaning into your life and help you
understand it. It all sounds so simple, but it eludes us so long because we make it so difficult, and it will be
elusive until we begin to understand, that love, justice and equality are simple but require total acceptance by
all. Re-member these religious words ha, ha, ha, ah!” Tradução nossa.
99

estava dissociado dos ritos religiosos, em celebrações como a “festa do asno85” e os risos
pascais (risus paschalis86), festividades religiosas que permitiam o riso e as brincadeiras no
interior dos templos religiosos, bem como a realização de paródias dos cultos e rituais.
Nenhuma instância ou instituição está a salvo das porções violadoras do risível
grotesco, podendo ser alvo dos princípios cômicos degradantes e regeneradores. As
dimensões sublimes ou poderosas de crenças e ritos, assim como de seus interlocutores,
podem ser atravessadas pelas intensidades transgressivas da comicidade, como ressalta
Victor Hugo (2002, p. 33): “Assim César no carro do triunfo terá medo de tombar. Porque os
homens de gênio, por grandes que sejam, têm sempre sua fera que parodia sua inteligência.
[...] ‘Do sublime ao ridículo há apenas um passo’, dizia Napoleão [...]”. Dessa forma, Jango
defende a capacidade ilimitada das intensidades subversivas do palhaço, bem como sua
potência de afirmação da vida e da liberdade. Conforme destacamos na citação supracitada
deste palhaço, não subestimemos o poder do riso!
Voltando ao número em questão, o clown traz ao palco a participação de um
espectador que o ajudará no momento final da cena. Este homem fotografava o espetáculo
e essa escolha contém por si só relações de inversão, visto que a pessoa que capturava
imagens da apresentação agora será o próprio alvo dos olhares da plateia. Ademais,
tratando-se de Jango, não é de espantar que ele coloque o espectador em situações de
risco, mesmo sendo muito simpático com seu novo ajudante.
Mantendo a capacidade de surpreender a todos com seus gestos bruscos e ações
desviantes das normas de decoro e comportamento, o palhaço abraça inesperadamente o
homem e por diversas vezes esbarra propositalmente em sua área genital, chegando a
comentar com a plateia sobre o tamanho do órgão masculino do espectador. O ajudante
mostra-se solícito e ri das piadas do clown, mas o tom jocoso dessa figura cômica vem
sempre acompanhado de uma atmosfera de constrangimento para o espectador, além de

85
Bakhtin (2010) afirma que o asno é um dos grandes símbolos do “baixo” material e corporal, evocando a fuga
de Maria ao conduzir o menino Jesus para o Egito. Na “festa do asno” chegavam a ser celebradas dentro da
Igreja as “missas do asno”, quando os padres realizavam paródias dos próprios ritos religiosos e terminavam
suas bênçãos zurrando três vezes, no que eram respondidos pelos fiéis/foliões não com “amém”, mas também
com zurros e imitações de jumento.
86
Festas medievais populares realizadas na época da Páscoa.
100

ocasionar certa tensão, pois as ações deste palhaço costumam ser imprevisíveis e não
sabemos o que ele pode “aprontar” ao seu novo assistente de palco.
Jango dá ao homem uma taça e a enche com um líquido que ele chama de água
benta87. Tirando um preservativo do bolso, o clown tenta embalar o copo com a camisinha,
após colocar na bebida uma pílula efervescente. O primeiro preservativo parece rasgar no
contato com a taça e vemos o palhaço em apuros, com uma dificuldade real de rasgar a
embalagem da segunda camisinha, obstáculo que ele divide com a plateia através de sua
corporeidade exagerada. Finalmente, ele consegue abrir a embalagem e prender o artefato
de borracha na borda do copo. Ao som de muitas “Aleluias” e “Améns” evocadas pelo clown
vemos aos poucos a finalização do número com o “milagre da ereção”, quando a camisinha
vai sendo inflada pelo ar desprendido do líquido efervescente, até permanecer ereta.
Como no número do bêbado, novamente vemos surgir uma imagem fálica no jogo
clownesco de Jango. O falo liga-se à fertilidade e à potência afirmativa da comicidade em
relação à vida. Além disso, como já vimos, um dos traços marcantes do realismo grotesco é
o rebaixamento, processo que opera a transferência dos ideais espirituais ao âmbito da
materialidade corpórea. Assim, parece coerente que, na Igreja do Sorriso Largo, coexistam e
misturem-se as instâncias do sagrado e do profano, sem que haja uma dicotomização entre
ambas. Ademais, a presença da sexualidade no trabalho artístico deste palhaço mostra-se
como uma constante, seja através de comentários obscenos, em representações fálicas
presentes em seus números ou mesmo em sua teoria clownesca, quando afirma que:

A atuação do bobo88 é semelhante a uma relação sexual, sendo sensível,


frágil, emocionante, e atinge um clímax ou alguma forma de comemoração
no final. Ela conecta a emoção e fisicalidade através do uso da vida ou do
obsceno89. (EDWARDS, 1980, p. 69).

Entendemos que Jango percebe a similaridade entre a atuação clownesca e o ato


sexual por suas capacidades de instaurar fluxos de afetos, dinamizando conexões desejantes

87
“Holy water”. Tradução nossa.
88
Jango utiliza em seus escritos o termo clown e bobo (fool) como sinônimos. É provável que haja aqui uma
referência à irreverência dos bobos da corte, mas o artista não esclarece este ponto na obra em questão.
89
“The fool's performance is similar to a bout of intercourse that is sensitive, tender, thrilling and reaches a
climax or some form of celebration at the end. Its connection is heart and body with the use of the subtle or
the obscene.” Tradução nossa.
101

em interações psicofísicas que potencializam a própria vida. Uma vez que arte e vida são
instâncias que se contaminam na trajetória deste palhaço, parece-nos natural que a
sexualidade também permeie seu trabalho e, seguindo a lógica grotesca do exagero, há um
excesso de referências ao sexo em sua comicidade, seja em suas palavras ou em
construções imagéticas e gestuais.
Assim, trouxemos a imagem ao lado como uma referência à sexualidade de Jango,
onde podemos ver a imagem do palhaço desnudo,
Figura 9 - Pintura à óleo de Jango.
expondo sua nudez para nós, espectadores da obra
pictórica, e também sob os olhares de uma
arquibancada cheia de rostos representada no fundo
da cena. Seu sexo aparece naturalmente exposto,
localizado diante de nós, sem qualquer tentativa de
escondê-lo ou disfarçá-lo. Além disso, há um caráter
de afeto e voluptuosidade representado no quadro
pela interação de seu corpo nu abraçado por uma
mulher também despida. Embora, no espetáculo sob
análise, Jango não se apresente com a nudez frontal, Autoria da pintura: Art Veldhoven, Amsterdam,
1978. Fonte: Jango Edwards (1980).
há diversos registros, ao longo de sua carreira, em
que ele atua totalmente despido, demonstrando que o corpo desnudo, sem vestes e sem
proteção, também pode fazer parte da comicidade clownesca, embora esta não nos pareça
uma temática comumente trabalhada da arte da palhaçaria 90.

2.2.4 - Os palhaços

Este é o único número cômico do espetáculo no qual Jango Edwards se apresenta


utilizando o nariz de palhaço. Podemos analisar este esquete em três partes distintas: a
entrada do palhaço, a realização de uma coreografia ao som da canção “Everybody loves a

90
Não encontramos nenhuma investigação sobre palhaço e sexualidade, temática que se nos apresenta como
interessante campo de estudo a futuras pesquisas.
102

clown”91 e a finalização do número, quando o clown “entrega seu coração” a uma


espectadora.
Estamos denominando como entrada desde o momento em que Jango adentra o
espaço cênico utilizando a menor máscara do mundo até o começo da coreografia, parte
inicial em que o artista já torna claro à assistência qual será a tônica que norteará a
comicidade do número. Além do nariz de palhaço, Jango está vestindo calça preta com
suspensórios, uma camiseta branca com um coração vermelho pregado ao peito e um
chapéu preto e branco em formato de cone, que remonta aos chapéus cônicos de palhaços
em épocas antigas e também lembra chapeuzinhos usados em festas infantis. Investindo em
estados clownescos idiotizados, abobalhados, o palhaço encontra dificuldade em realizar as
ações mais simples, como jogar fora um copo descartável.
Podemos observar breves eclosões de exagero em seu jogo cômico, afinal, ainda
estamos diante de uma atuação de Jango - como o aparecimento em sua mão de um grande
dedo polegar, que adquire um caráter fálico em determinado momento, ou o surgimento de
uma prótese peniana na extremidade da bainha de sua calça, como se o palhaço tivesse um
falo de enorme comprimento que quase alcançasse o chão. Contudo, a impressão que nos
assalta ao observar o número em questão é que, ao utilizar o nariz de palhaço, as
instabilidades friccionadas pela atuação do artista se mantêm aprisionadas em uma forma
exterior que limita e enfraquece suas intensidades.
A música tocada durante o segundo trecho do número, ao som da qual Jango e
seus ajudantes realizam uma coreografia, traz frases como “um palhaço também tem
sentimentos” e “não é fácil amar quando se é um palhaço como eu” 92, como se o clown sob
análise estabelecesse que neste esquete veremos um lado amoroso que ainda não pudemos
constatar nos números anteriores.
Em trecho de apresentação do Friends RoadShow, Jango dizia: “O poder do clown é
o amor e amor é apenas outra denominação para esperança. Quando não há amor, não há
esperança e quando não há esperança não há razão para continuar 93” (EDWARDS, 1980, p.

91
Gravação executada pelo grupo norte-americano Gary Lewis & The Playboys - ano de gravação: 1965.
92
“A clown has feelings, too” e “It's not easy to be in love, you see / When you're a clown like me”. Tradução
nossa.
93
“CLOWNPOWER is love and love is only another label for hope. For when there's no love there's no hope and
when there's no hope there's no reason to go on.” Tradução nossa.
103

22). No número sob análise, esse clown trabalha evocando o sentimento amoroso, seja na
letra da música, seja na parte final quando ele entrega, mesmo que desajeitadamente, seu
coração de plástico a uma espectadora, terminando o esquete com um grande suspiro
melancólico. Contudo, não identificamos aqui a potência do amor destacada por Jango no
trecho supracitado, sentimento capaz de evocar intensidades, afetos e vitalidade.
Embora apresente a corporeidade vigorosa que é uma das constantes de seu
trabalho clownesco, com quebras rítmicas e interrupções de trajetórias que denotam a
insegurança ou confusão mental do palhaço, o tom infantilizado assumido por ele e seus
ajudantes de palco (que também usam narizes de palhaço e o mesmo tipo de chapéu)
parece esvaziar as complexidades verificadas nos números anteriores, seja no tocante aos
excessos da visão de mundo grotesca, seja na relação inconstante e cheia de surpresas
construída entre Jango e sua assistência. Se outros momentos do espetáculo são permeados
pela quebra de padrões, pelos desvios da norma e por fluxos de intensidade que transitam
pelo caos, pela escatologia e pela imprevisibilidade, agora, o artista atua de maneira bem
menos provocativa.
Podemos perceber que Jango realiza uma quebra dos próprios padrões de
comicidade, experienciando a subversão de seus mecanismos transgressivos. Nesse
número, ele praticamente abre mão das qualidades transgressoras que desenvolvera até
então, arriscando investir em estados cênicos mais estáveis. No contexto da estrutura do
espetáculo, construída por números cômicos e musicais carregados de intensidade e
grotesco, este esquete constitui uma espécie de “respiro” similar ao que o palhaço dá ao
finalizar esta atuação, quando ele revela à plateia aspectos mais doces e menos caóticos.
Todavia, paradoxalmente, este nos parece ser o momento do espetáculo que é cenicamente
menos potente.
Se, por um lado, é interessante observar que Jango não se mantém fixado em um
único estilo de comicidade, investigando os limites de sua própria arte clownesca, por outro,
este número nos parece o mais frágil em relação às intensidades da experiência cênica. Se
em outros esquetes o espectador não sabia o que esperar de seu jogo, cuja atuação beirava
o fantástico ou o monstruoso, causando reações que podiam oscilar entre o riso e o asco,
agora, o desenvolvimento do número não nos oferece surpresa nem áreas de insegurança, e
este clown chega a beirar a previsibilidade.
104

Abriremos aqui um parêntese na análise da atuação de Jango para nos


debruçarmos, mais uma vez, sobre a indagação acerca dos efeitos transgressores a partir de
instâncias tênues como a da delicadeza. Esta se nos aparece como uma problemática
importante ao nosso campo de estudo, avessa a regras ou receitas preestabelecidas.
Conforme temos visto, as qualidades transgressivas são moventes, compondo-se e
decompondo-se a cada relação instaurada pelo palhaço. Assim, parece claro que qualquer
tipo de ação pode ser da ordem da instabilidade ou da sujeição, dependendo dos processos
que dinamizem a atuação clownesca. Todavia, resta-nos grande incerteza acerca de como a
delicadeza pode ser transgressora. Com o objetivo de refletirmos sobre o tema, traremos ao
leitor dois exemplos, um do âmbito da palhaçaria e um advindo da literatura, onde
podemos verificar o desencadeamento de processos transgressivos a partir de relações
dotadas de ternura e amabilidade.
Do âmbito da arte clownesca, citaremos o espetáculo Post-Classic94, do palhaço
catalão Tortell Poltrona, realizado na noite de abertura do Encontro Internacional de
Palhaços Anjos do Picadeiro 11. Criador da organização internacional Palhaços sem
Fronteiras95, Tortell se apresenta de uma forma muito inocente e terna, desenvolvendo com
a plateia uma relação amável, simpática e educada. Um jogo recorrente do clown era se
desculpar por seus erros em diversas ocasiões, sempre olhando para a mesma espectadora.
De tempos em tempos, quando cometia alguma falha ou se atrapalhava com algo em cena,
ele dizia com seu sotaque carregado: “Desculpa, senhora! Desculpa.”.
Todavia, mesmo atuando em estados cômicos menos agressivos, em determinado
momento do espetáculo o palhaço aparece com uma caixa de ovos na mão e começa a atirá-
los na plateia, um a um, sem motivo aparente ou qualquer explicação. Esta ação faz com que
o teatro lotado entre em alvoroço, com os espectadores tentando abaixar em suas poltronas
para escapar dos ovos, entre gritos e gargalhadas – como podemos perceber nas figuras a
seguir.

94
Apresentado em 05 de dezembro de 2012 no Teatro Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro.
95
Associação sem fins lucrativos, criada em 1993 na Espanha, reunindo palhaços, artistas circenses e atores
que atuam em campos de refugiados e zonas de conflito e exclusão ao redor do mundo. Maiores informações
podem ser obtidas no site oficial da organização: <http://www.clowns.org/>; bem como no artigo de Marco
Antonio Coelho Bortoleto, Palhaços sem Fronteiras: o circo a serviço da sociedade (2005).
105

Figura 10 e 10.1 – Imagens do espetáculo de Tortell Poltrona no Anjos do Picadeiro 11, e do público
no momento em que o palhaço começa a atirar ovos.

Fotógrafo: McNelo. Fontes das imagens: <http://www.flickr.com/photos/mcnelo/2636429995/> e


<http://www.facebook.com/photo.php?fbid=284029818366993&set=t.100001718831455&type=3&theater
>. Acesso em 26 mar. 2013

Os ovos estavam cheios de água, mas a plateia desconhecia este fato. Este palhaço
consegue, então, operar uma quebra dos padrões, invadindo repentinamente o espaço
confortável dos espectadores e rompendo com a distância propiciada pelo palco italiano. Ele
surpreende sua assistência, tensionando os limites da lógica e do razoável, sem perder,
contudo, sua simpatia e ternura.
Do romance de Fiódor Dostoiévski, O Idiota, trazemos nosso segundo exemplo, cuja
personagem central, que dá origem ao nome da obra, transita pelo espaço da diferença em
relação ao mundo que o cerca, não de uma forma intencionalmente agressiva ou
provocadora, mas através da ingenuidade e da ternura. O príncipe Míchkin, que apesar do
título de nobreza não é possuidor de bens materiais ou prestígio, instala-se na cidade russa
de São Petersburgo, despertando escárnio e incredulidade por onde passa. Sua maneira
distinta de estar no mundo, inquietantemente espontânea, é incapaz de se adequar às
normas de conduta e, ao mesmo tempo, carrega grande amor e compaixão por seus
semelhantes. Segundo prefácio de Paulo Bezerra, o romancista russo produziu sua obra
inspirado em ideais de beleza e amor, construindo a personagem do príncipe como “[...]
capaz de abdicar do “eu para mim” em prol do “eu para os outros”, para a coletividade, isto
é, de realizar o supremo ideal ético do próprio Dostoiévski, que este só considerava possível
em Cristo [...]” (BEZERRA in DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 11).
106

Objetivando esclarecer ao leitor a experiência da diferença vivenciada pela


personagem do príncipe Míchkin, capaz de transgredir valores e normas de decoro social
devido a seus comportamentos desviantes, citamos o episódio da reunião de noivado do
protagonista da história com a mimada Aglaia Ivánovna, filha de uma prima do príncipe,
família pertencente à tradicional sociedade russa. Ocasião que serviria para apresentar
Míchkin aos membros da “alta sociedade”, acontecimento social onde deveriam imperar os
arranjos da conveniência e da aparência, a festividade acaba por ter suas estruturas
convencionais abaladas pela espontaneidade e pela incapacidade de adaptação do príncipe
a esses valores. Em determinado momento da festa, ele causa um grande constrangimento
aos convidados, proferindo um sincero e bem intencionado discurso:

Eu sempre ouvi a seu respeito um excesso de coisas ruins, mais do que


boas, sobre a pequenez e a exclusividade dos seus interesses, o atraso, a
pouca ilustração, os costumes ridículos [...] eu precisava ver com meus
próprios olhos e me convencer pessoalmente: será que essa camada
superior de russos realmente já não servia mais para nada, já estava
superada pelo seu tempo, exaurira a vivacidade antiga e só era capaz de
morrer, mas ainda assim continuava numa luta miúda, invejosa com as
pessoas... do futuro, atrapalhando-as, sem perceber que elas mesmas
estavam morrendo? [...] A minha alegria consiste justamente em que agora
estou convencido de que não há nada desse sem-fim, mas um material
todo vivo! Nada de ficar perturbado também com o fato de que somos
ridículos, não é verdade? Porque é realmente assim, nós somos ridículos,
levianos, cheios de maus hábitos, sentimos tédio, não sabemos olhar, não
sabemos compreender, ora, todos nós somos assim, nós todos, e tanto os
senhores quanto eu, quanto eles! (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 615 - 617).

Míchkin pronuncia sua fala sem ironia ou agressividade, mas com o objetivo de
realizar um elogio às qualidades dos membros daquela sociedade, sem perceber como
estava colocando diante deles um espelho de suas degenerações. E, menos de uma hora
depois do discurso “amável” do príncipe, grande parte dos convidados havia deixado a
celebração se sentindo ofendida. Por outro lado, a situação constrangedora supracitada
torna-se risível ao leitor se pensarmos na grande gafe cometida pelo príncipe em ocasião tão
cheia de formalidades. Sem saber como se comportar socialmente, desconhecendo a
normatividade e o decoro esperados para a situação, a heterogeneidade dessa personagem
produz tamanha indiscrição que a cena se mostra de uma maneira inquietantemente
cômica.
107

Dessa forma, entendemos a partir deste exemplo literário que, mesmo sem tratar
explicitamente da comicidade, nem da arte clownesca, podemos estabelecer um diálogo
entre a obra citada de Dostoiévski e nosso tema, pensando em como a inadequação e a
ausência de percepção sobre as normas que regem determinada situação podem violar
limites, sendo extremamente transgressoras. A diferença, mesmo que cheia de ternura e
suavidade, pode violar e causar feridas no tecido social.
Retomando a análise da cena de Jango Edwards, este nos parece enfraquecer suas
qualidades transgressivas ao aproximar sua atuação de uma comicidade mais terna e doce, o
que nos faz pensar na dificuldade gerada pelo tema, mesmo quando se trata de um clown
experiente e de inegável complexidade artística. Poderíamos pensar se este número não
constitui uma crítica aos palhaços docilizados e esvaziados de suas potências, contudo, não
encontramos indícios claros desse tipo de zombaria na cena em questão. Embora continue
atuando de maneira irreverente, aqui as ações de Jango não nos parecem ácidas ou
parodísticas de maneira tão intensa como em outras ocasiões do espetáculo.
Transgredir a partir do grotesco, da agressividade é um caminho possível e que
mantém suas potências cênicas, como temos visto em relação aos fluxos de instabilidade e
caos no jogo cômico deste palhaço. Contudo, tensionar os processos violadores mantendo
como princípio norteador a afetuosidade também nos aparece como um campo fértil, na
mesma medida em que se constitui numa zona ainda mais instável e nebulosa em nosso
campo de pesquisa.

2.2.5 - O Acrobata

O último número cômico investigado neste capítulo possui aproximadamente nove


minutos e integra a metade final do espetáculo The Bust of Jango. Retomando a relação
bakhtiniana entre a materialidade corporal e a visão de mundo grotesca, o esquete será aqui
dividido, para fins didáticos, em duas partes, separadas pela identificação de duas
corporeidades claramente distintas neste palhaço: no primeiro trecho, o artista se apresenta
para a plateia realizando diversas ações físicas com uma postura corporal arqueada, o que
nos remete aos arquétipos dos “homens das cavernas”; e, na segunda parte do número,
Jango assume uma dinâmica corporal oposta à anterior, ereta e altiva.
108

Usando uma indumentária que imita o pelo de um tigre e calçando tênis com meias
pretas que vão até a altura dos joelhos, Jango entra em cena executando uma trajetória
retilínea que, ao ser ritualmente repetida, cria uma espécie de padrão que é interrompido
pela realização de diversas façanhas “estúpidas” - como dobrar um cabide ao meio, prender
um desentupidor de pia em sua própria barriga, cortar uma banana com a mão (imitando
um mestre oriental) e conversar com o pato que está em sua cabeça e serve-lhe como um
tipo de chapéu, retirando, ao fim da breve comunicação, um ovo que teria sido colocado
pelo animal e que será triturado por Jango em sua boca, jogando os restos do alimento em
um balde.
Podemos observar que a parte inicial descrita acima já estabelece uma rede de
oposições em relação à corporeidade de Jango. Ele se desloca pelo espaço cênico através de
trajetórias bem definidas, retilíneas e repetitivas, em contraposição a sua postura corporal
que assume um tom desengonçado: tronco arqueado para frente e quadris para trás, braços
balançando na frente do corpo, joelhos dobrados - o que aumenta sua relação com o solo,
dando a sensação ao espectador de que ele é mais pesado do que veremos na segunda
parte do número.
Mesmo nos momentos em que o artista para diante da plateia e faz uma espécie de
pose de apresentação, acompanhada de um som, ele realiza este movimento de forma
desajeitada. A corporeidade assumida por Jango no primeiro trecho do número, bem como
as relações que ele estabelece com o espaço e os espectadores, reportam-nos, mais uma
vez, ao potencial grotesco de seus estados cômicos. Utilizando-se da deformação e do
exagero, presentificados em sua atitude postural, sua marcha 96 e seus gestos, ele causa
estranheza e ressalta o ridículo de sua figura.
Além disso, o artista em questão parece trabalhar não somente com uma
deformação física, mas mental, se pensarmos em sua fala “idiotizada” com o próprio chapéu
de pato ou mesmo com a escatologia do arroto que ele dá no microfone - lembrando-nos da
abertura do espetáculo - como se quisesse colocar para fora, diante dos espectadores, sua
natureza rebaixada. Podemos observar como a atitude postural e a movimentação de Jango
direcionam sua corporeidade ao sul do corpo, à terra, com os joelhos dobrados, tronco

96
O antropólogo Marcel Mauss classifica a marcha, em seu texto As técnicas do corpo, como um dos
“movimentos do corpo inteiro [...] habitus do corpo em pé ao andar.” (MAUSS, 2003, p. 416).
109

arqueado para frente, mantendo mais relação com o solo do que com o “alto” – como
vimos, um dos princípios do rebaixamento grotesco.
A marcha do artista torna seu quadril destacado, formando uma figura que lembra
as imagens dos “homens das cavernas” ou mesmo a estrutura física de um símio. Pavis
(2005) também destaca a relação do grotesco com a bestialidade, seja pela transformação
do homem em animal ou vice-versa, deixando em evidência os instintos animalescos e sua
materialidade corporal. Aqui podemos nos remeter ao pensamento de Bolognesi (2003)
citado no capítulo precedente, segundo o qual o grotesco do palhaço rompe com as
perspectivas utilitaristas e funcionais que passam a incidir sobre o corpo através do regime
das disciplinas, sobretudo a partir do século XVIII.
Jango e sua desconformidade em relação aos padrões, beirando a deformidade,
rompem com a possibilidade de um caráter utilitário ao corpo, construindo sua comicidade a
partir de uma configuração corpórea que é vigorosa, na mesma medida em que é
defeituosa, desviante. Conforme também analisamos no capítulo anterior acerca dos
conceitos cômicos de Propp, o ridículo surge da exposição dos defeitos, manifestação da
instabilidade da ordem constituída, o que podemos verificar seja na corporeidade
animalesca de Jango, seja na relação parodística com o corpo virtuoso, como veremos na
segunda metade do número.
Deixando cair o figurino de pele de tigre, Jango se exibe para a plateia usando uma
tanga de onça com “fio dental” na parte traseira, deixando suas nádegas à mostra. Aqui
convencionamos ser o início da segunda parte do número, quando a postura corporal do
artista muda significativamente. O palhaço realizará agora a paródia de um número
acrobático, mergulhando de cabeça, do alto de uma cadeira, num copo descartável cheio de
água. Deformando, ainda através do exagero, o que seria o corpo de um acrobata, o clown
enfatiza o ridículo presente também nas situações sublimes ligadas às técnicas circenses e à
exibição do corpo virtuoso.
A corporeidade de Jango muda neste trecho do número, deixando para trás seu
“homem das cavernas” arqueado, assumindo um caráter altivo, postura ereta, com uma
relação muito mais forte com o “alto” do que com o solo. A dimensão grotesca da primeira
parte dá lugar a gestos soberbos e fortes, os quais, aliados à música em tom
110

exageradamente grandioso e às expressões faciais


Figura 11 - Jango e sua roupa de
exaltadas do artista, configuram o caráter heroico jocoso herói.

de sua apresentação acrobática.


Além de mostrar-se diante da plateia com o corpo
quase nu, excetuando-se a área genital frontal coberta
pela tanga, o palhaço coloca nos braços duas pequenas
asas azuis de fantasia e substitui seu chapéu de pato por
uma touca azul brilhante, no melhor estilo do herói das
histórias em quadrinhos Capitão América – como podemos
ver na figura ao lado.
Após retirar bruscamente a tanga por duas vezes,
fazendo surgir nova tanga a cada vez, o artista termina
usando um tapa-sexo azul enfeitado com uma estrela
prateada, o que nos remete, ainda, à bandeira norte-
americana e sua cultura de heroísmos patriotas, país de
Fonte:
origem deste palhaço. Jango faz algumas poses de <http://jangoedwards.net/workshops/j
ango-bio/>. Acesso em 09 mar. 2013
halterofilismo para a assistência, chegando a contrair os
músculos das nádegas e, já em cima da cadeira da qual ele
pulará, ele coloca as mãos na cabeça e começa a contrair os bíceps no ritmo da música, tal
qual um representante ridículo do culto ao corpo.
Colocando uma lente de aumento em estados como vaidade, exibicionismo e
sensualidade, este clown revela fraquezas e obsessões, surpreendendo os espectadores com
seus defeitos e ações desviantes do senso comum. Ele executará uma façanha acrobática
que está acima das capacidades de realização de grande parte da população, explorando os
limites corpóreos extraordinários, mas, em contrapartida, a paródia da situação expõe suas
faces ridículas, suas falhas e imperfeições. Com o auxílio de uma trilha sonora apoteótica,
Jango ritualiza toda a preparação para o salto, destacando a grandiosidade cômica que a
superação dos limites físicos pode carregar.
Finalmente, ele mergulha sobre o copo, amassando-o com a cabeça e, depois de dar
uma espécie de salto mortal, cai de pé, realizando, assim, o exercício acrobático com
destreza. Após o sucesso do número, Jango incita o público a aplaudi-lo tal qual um astro de
111

rock o faria e, antes de sair de cena, retira pela última vez a tanga, ficando agora com uma
espécie de tapa-sexo que tem o molde de um órgão genital masculino na cor azul-brilhante,
o qual ele balança para a plateia no momento de sua saída do palco. Mais uma vez podemos
ver em sua atuação a presença do falo como afirmação de potências e vitalidade, além de
sua utilização como provocação.
Podemos identificar aqui uma relação entre o número cômico de Jango e a tradição
dos clowns circenses, cujo tema das entradas, muitas vezes, voltava-se para o próprio circo,
através da paródia dos números apresentados pelos diversos artistas como acrobatas,
mágicos e trapezistas. De acordo com Bolognesi (2003), muitas entradas clownescas
retratam o próprio universo circense, conferindo um caráter metalinguístico às atuações dos
palhaços e operando através do riso coletivo uma liberação das tensões provocadas pelo
terror e surpresa advindos dos números de alto risco dos ginastas. Mesmo ironizando todo o
ritual de periculosidade contido na situação, Jango não deixa de realizar o exercício
acrobático, mas, executa-o com habilidade, imprimindo, todavia, seu modo exagerado e
mordaz de atuar.
Além disso, não podemos esquecer que Jango promove, na segunda metade do
número, uma espécie de paródia dos rituais de disciplinarização do corpo. O corpo
animalesco e idiotizado de outrora dá lugar a um corpo virtuoso, um corpo útil, apto a
realizar suas funções com o máximo de produtividade, pleno de suas aptidões. Corpo-
máquina articulado e desarticulado como reduto de sujeição dos mecanismos de poder.
Jango eleva ainda mais essa configuração crítica vestindo sua indumentária de herói, viril e
vaidoso, parodiando os processos de dominação e adequação. Ele exibe um corpo tão
habilidoso e preparado para a ação que, deleitando-se em suas próprias capacidades, esse
ritual de soberba e exibição acaba por revelar o seu avesso, suas porções ridículas e risíveis,
sua condição desviante.
A partir da observação e análise de alguns números de seu espetáculo, pudemos
verificar como Jango Edwards presentifica, através do próprio corpo e suas dimensões
simbólicas, diversos jogos cômicos que primam pela abertura a fluxos de instabilidade, de
risco, de desvio, ocasionando o desencadeamento de processos transgressores e críticos.
Este palhaço instaura redes de oposições e fricções entre precisão e caos, sem perder a
grande parceria que o acompanha durante toda a apresentação, qual seja os espectadores.
112

Ele se mantém todo o tempo em relação com a assistência, ultrapassando a técnica


da triangulação. Andrade (2005) destaca a triangulação como um dos mecanismos de
comicidade atinente à cumplicidade entre o ator e o público, como uma conversa efetiva e
pontual. Espécie de corte ou parada que exige um tempo preciso de olhar para o
espectador, pontuar e voltar à ação que se desenrola em cena. Assim, a triangulação
demanda do intérprete precisão e pontualidade, a fim de que não se torne uma marca
mecânica nem perca sua intensidade.
Contudo, Jango constrói sua atuação em interlocução direta com a plateia, e não de
forma pontual e precisa, como seria próprio da triangulação. Mais do que a realização de
determinadas habilidades ou técnicas clownescas, entendemos que Jango está aberto à
experiência, nos termos que nos esclarece o pesquisador Jorge Larrosa Bondía, segundo o
qual o radical latino da palavra experiência nos remete ao verbo provar, experimentar. Em
suas palavras:

[...] o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem,


algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum
modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns
vestígios, alguns efeitos. [...] o sujeito da experiência se define não por sua
atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua
disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade
anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de
paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade
primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura
essencial.
O sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto.” (BONDÍA, 2002, p. 24).

Jango se expõe diante da assistência de forma generosa e corajosa, sem negar os


lados obscuros do ser humano, mas, ao contrário, assume-os, abrindo-se à experimentação
dos fluxos de composição e decomposição de desejos. Rompendo com o limite do que o
senso comum poderia chamar de agradável, ele cria seu jogo cômico junto com a plateia
oferecendo seu próprio corpo como elemento central que será, ora sujeito fustigado,
ocasionando a satisfação da plateia, ora elemento provocador, colocando a assistência em
situações grotescas de risco e caos.
Transitando por diversas qualidades transgressivas, este palhaço produz uma
experiência cênica vigorosa, permeada de complexidades e zonas instáveis, afirmando-nos
113

como a arte clownesca pode ser potente e instigante quando trabalhada em seus extremos,
na beira do precipício, onde, como no último número analisado, cada jogo pode ser um
convite ao voo ou à queda violenta.
Quando você ri, você se percebe cúmplice de uma destruição daquilo que
você é, você se confunde com esse vento de vida destruidora que conduz
tudo sem compaixão até seu fim.

Georges Bataille (1992, p. 102).

Figura 12 - Leo Bassi

Fonte:
<http://elrincondedonrodrigo.blogspot.com.br/2011_04_01_
archive.html>. Acesso em 11 fev. 2013.
115

3 – ESTE: Leo Bassi, provocação, racionalidade e choque

3.1 – Um bufão contemporâneo

Adentrando o espaço do grupo teatral carioca Teatro de Anônimo vemos um


senhor branco, calvo, de sessenta anos de idade, vestido como um dos inúmeros turistas
que poderíamos encontrar pelas praias do Rio de Janeiro: sandálias, bermuda e uma camisa
de botões estampada com motivos quadriculados verdes e brancos. Sentando-se em uma
cadeira giratória, ele tem a sua frente uma plateia atenta e excitada de cerca de cem
pessoas, das mais variadas idades, mas podemos perceber que é maciça a presença de
jovens que aguardam suas palavras.
Iniciando sua fala de maneira calma, pausada, ele começava a discorrer de maneira
amigável sobre suas experiências artísticas, opiniões e visões sobre o mundo97 - chegando a
se emocionar em alguns momentos de seu discurso, como, por exemplo, ao falar de épocas
em que passara fome junto com a família. Simpático e acessível às perguntas e dúvidas da
plateia, este senhor em nada lembrava a figura ameaçadora que, usando um terno escuro
com gravata vermelha e grandes óculos de armação preta, causara verdadeiro frenesi ao
apresentar, três dias antes, seu espetáculo Instintos Ocultos em um teatro lotado da capital
fluminense98.
Nascido oficialmente nos Estados Unidos a 28 de abril de 1952, Leo Bassi possui
nacionalidade franco-italiana, sendo membro e descendente de uma família de circo
composta por artistas de diversas nacionalidades, como comediantes excêntricos e palhaços
de origem austríaca, francesa, italiana e polonesa, cujos registros de atuações chegam a
remontar ao ano de 185099. Crescendo num ambiente circense que acumulava a experiência
de várias gerações de artistas, já aos sete anos de idade Leo iniciou sua carreira nas
apresentações da família Bassi. Inicialmente aprendendo com o pai técnicas de

97
Aula-espetáculo ministrada por Leo Bassi em 08 de dezembro de 2011, na Fundição Progresso, como
atividade integrante do Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro 10.
98
Espetáculo de abertura do evento supracitado, apresentado no teatro Nelson Rodrigues, no dia 05 de
dezembro de 2011, na cidade do Rio de Janeiro, RJ.
99
Informações biográficas retiradas do site oficial do artista: <http://www.leobassi.com/biografia.html>.
Acesso em 23 jun. 2013.
116

malabarismo, aos dezessete anos Leo Bassi começa a se apresentar como palhaço junto ao
Trio Bassi.
Após alguns anos de apresentações cômicas em picadeiros circenses, em meados
de 1970, ele deixa o circo, inspirado pela agitação política europeia do fim da década de
sessenta. Leo Bassi passa a realizar apresentações solo na rua, desenvolvendo um estilo
muito singular de práticas artísticas onde a comicidade é construída a partir de ações
provocadoras em relação à assistência.
Em entrevista à Kasper (2002), o artista destaca que a rua foi um grande espaço de
aprendizado, pois o obrigava a lidar diretamente com os espectadores e com as dificuldades
em despertar e manter a atenção dessa plateia que é de natureza dinâmica. Se o público
gostasse do que ele fazia, haveria dinheiro no chapéu ao final da apresentação, pois as
contribuições dos passantes eram proporcionais ao interesse gerado por sua atuação, a qual
nem sempre alcançava bons resultados.
Por outro lado, Leo Bassi estava distante da tradição das arenas circenses, o que lhe
conferia a liberação necessária para experimentar suas ideias, permitindo que ele

Figura 13 - Leo Bassi deitado sobre cacos de vidro, em número de desenvolvesse um trabalho mais
rua na cidade muçulmana de Samarcanda, Uzbequistão (1992).
autoral em relação à comicidade.
Marcio Libar (2008), tendo
convivido com Bassi pela primeira
vez em 2000, por ocasião da
terceira edição do Anjos do
Picadeiro, destaca que esse artista,
mesmo tendo rompido com a
tradição de sua família para buscar
Fonte: Facebook do artista:
<http://www.facebook.com/photo.php?fbid=10151607014439073&set=
novas experiências e maneiras
pb.379942014072.-2207520000.1367017308.&type=3&theater >. Acesso
em 26 abr. 2013
outras de estar em contato com o
público, manteve a ligação com um
dos princípios da arte circense, qual seja a busca por uma experiência cênica calcada no
impacto e no espanto. Nas palavras de Bassi (2001, p. 33):

O que tenho certeza da minha família é que faziam circo por um ideal, não
era simplesmente um trabalho normal. Para eles era como buscar a
117

liberdade, buscar os sonhos. [...] Tento manter o mesmo espírito, mas de


outra maneira, utilizando outras técnicas e indo a outros lugares. O mais
importante dessa descendência era continuar o espírito da minha família,
muito mais do que reproduzir as formas. As tradições, para mim, nunca
foram importantes, mas manter o espírito sim.

Buscando desenvolver seu próprio modus operandi, Bassi vai sendo reconhecido
internacionalmente pelo tratamento crítico e provocativo que dá a suas atuações, tendo
recebido diversos prêmios por seus espetáculos 100. Abordando temas polêmicos, como, por
exemplo, o atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 ou os dogmas da Igreja
Católica, Bassi passa a se autointitular, ao longo da carreira, como bufão, tensionando as
capacidades contestadoras e transgressivas da comicidade. Tendo em vista as
problematizações geradas pelo trabalho desse artista, desenvolveremos nas próximas
páginas algumas considerações sobre a bufonaria, objetivando adentrar no universo
artístico de Leo Bassi.
Segundo Pavis (2005), os bufões mantêm conexões com a vertigem da loucura,
quando o estatuto da marginalidade concede-lhe o direito de comentar impunemente os
acontecimentos do mundo à sua volta, em discursos cômicos que carregam uma pulsão
desestruturante em relação às normas e relações de poder. Historicamente, são
encontrados registros pictóricos e literários da presença de bufões desde a Antiguidade, em
ritos greco-romanos, bem como na Pérsia e no Egito. Minois (2003) destaca que havia em
Atenas, por volta do século IV a. C., um clube de bufonaria denominado “os Sessenta” que
realizava sua reunião no santuário consagrado ao deus Héracles.
De acordo com Alice Viveiros de Castro (2005), essas figuras cômicas estavam
relacionadas, inicialmente, às práticas rituais sagradas e mantinham suas funções no
afastamento do mal, através da imitação de deficiências humanas como deformidades
físicas, cegueira e lepra. Ao ridicularizar a doença e o medo da morte, estava rompida a
seriedade do culto, ao mesmo tempo em que este era fortalecido através do riso coletivo. A
autora cita alguns exemplos, como o do Mi-tshe-ring – o velho bufão sábio – presente nos

100
O site do artista traz uma lista de prêmios recebidos por Bassi, como os Prêmios da Crítica em Barcelona,
Munique e Cannes, o Prêmio OBIE Off Broadway Award (Nova Iorque) e o Prêmio Nariz de Ouro (Espanha),
entre outros. Fonte: <http://www.leobassi.com/biografia.html>. Acesso em 23 jun 2013.
118

rituais budistas do Tibet, figura que atrapalhava a solenidade das cerimônias religiosas
devido à sua incapacidade de se controlar e fazer silêncio.
Voltar o olhar ao passado dessas figuras cômicas nos remete, ainda, à figura dos
bobos e bufões medievais, cuja existência era dedicada ao exercício do ridículo e da
subversão dos padrões. Criaturas excêntricas, fisicamente deformadas, que, na mesma
medida em que eram alvo de chacotas e zombarias, por vezes até violentas, também eram
admiradas pela abertura que conquistavam para proferir verdades e críticas ácidas que a
sensatez do homem comum não comportava. Quanto mais sinceros e cruéis fossem em suas
colocações, mais esses seres eram admirados por sua ousadia, levando reis e senhores ao
deleite. Sob a proteção do riso e da loucura, era dado ao bufão o poder de transgredir
normas hierárquicas, sendo o único que podia dizer tudo ao soberano, num jogo de astúcia e
inteligência. Nas palavras de Minois (2003, p. 232):

O riso do bobo tem ainda, na Idade Média, outra função: ritualizar a


oposição representando-a. Verdadeiro anti-rei, soberano invertido, o bobo
assume simbolicamente a subversão, a revolta, a desagregação, a
transgressão. É um parapeito que indica ao rei os limites de seu poder. O
riso razoável do louco é um obstáculo ao desvio despótico. Não é apenas
uma coincidência que a função de bobo de rei tenha desaparecido da
França na aurora do absolutismo, no inicio do reino de Luis XIV: o monarca
que pode, sem rir, comparar-se ao sol é muito sério para ser sensato.

Seja na China, no Egito ou na Europa Medieval, não faltam exemplos desses tipos
cômicos que atuavam em cortes de reis e imperadores, ou nas feiras populares, perpetrando
a visão de mundo dos marginalizados, daqueles cuja vida está erigida sobre os atos de
profanar e transgredir, o que geralmente já podia ser observado em sua corporeidade
carregada de feiura ou deformações. De acordo com o pesquisador Jorge Leite Júnior (2006,
p. 188): “[...] os bufões eram a materialização da vida fora da ordem, do caos do espírito
manifesto na desorganização do corpo, da vileza da alma encarnada na feiura da aparência
[...] expressava o ‘mundo fora dos eixos’.” (Aspas do autor).
Assim, havia uma forte relação entre o corpo em desconformidade com os padrões
e o ridículo que ele provocava, evocando uma comicidade que transitava pelos caminhos da
desordem e pelos mistérios da loucura. Autores como Bakhtin (2010) e Burnier (2001)
associam os bufões ao grotesco, seja por sua ligação às formas de comicidade popular, seja
119

devido aos exageros do rebaixamento corpóreo presentes nesses tipos cômicos. A bufonaria
era composta por portadores de traços físicos excêntricos, como anões, estrábicos, albinos,
corcundas, aleijados nas mais diversas formas, seres que traziam em sua corporeidade uma
natureza desviante, fator que operava um deslocamento sobre os padrões corporais.
Relacionados à sua aparência incomum, o comportamento dos bufões também fugia ao
controle das normas instituídas, criando zonas de instabilidade entre a normatividade, a
excentricidade e a loucura, “[...] graças à sua não exemplaridade e deformidades físicas ou
morais, em verdade características historicamente renegadas da natureza humana.”
(TONEZZI, 2011, p. 16).
Como desenvolve a pesquisadora Beth Lopes (2005), os bufões configuravam uma
espécie de espelho invertido da sociedade, destacando pela derrisão e pela inversão101 os
vícios e defeitos das relações sociais. Ao longo do tempo, sua presença, por vezes incômoda,
vai sendo afastada dos espaços oficiais como reinos e cortes medievais. Segundo a autora,
tendências moralizantes e domesticadoras do riso, como a Contrarreforma da Igreja
Católica, podem ter sido possíveis causas do banimento e até da perseguição dessas figuras
que, através dos excessos do ridículo, eram capazes de realizar críticas ácidas aos poderes e
seus detentores.
Lopes afirma, contudo, que ao longo do século XX, a tradição cômico-popular da
bufonaria seria alvo de grande interesse pelas mais variadas formas teatrais, como as
experimentações cênicas de movimentos de vanguarda como o Futurismo, o Dadaísmo e o
Surrealismo, ou as práticas artísticas de encenadores como Meyerhold, Tadeusz Kantor e
Brecht102. Nesse contexto, o vigor físico bufo e as lógicas corpóreas fora da norma também
passam a ser alvo de investigação de pedagogos que se dedicam ao estudo da máscara
teatral, como Phillipe Gaulier e Jacques Lecoq.
Pesquisado como uma técnica atoral, o jogo da bufonaria estabelece que o corpo
inteiro do intérprete é entendido como uma máscara, o que pode conferir à atuação cênica

101
Considerado por Bakhtin como um dos princípios do realismo grotesco, a inversão trata do mundo “ao
revés” presente nas festas e ritos carnavalescos medievais e “[...] caracteriza-se, principalmente, pela lógica
original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo [...], e pelas
diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões.”
(BAKHTIN, 2010, p. 10).
102
Maiores informações ao tema podem ser encontrados na tese de Doutoramento de Beth Lopes: Ainda é
Tempo de Bufões (USP – 2001), bem como na dissertação de Juliana Jardim Barboza (2001) já citada.
120

intensa expressividade a partir das relações com a corporeidade deformada e suas


singularidades físicas, aliadas aos aspectos animalescos e parodísticos dessas figuras
cômicas.
Voltando ao trabalho cômico desenvolvido por Leo Bassi, cabe-nos ressaltar que,
embora sua aparência física não nos remeta ao jogo de monstruosidade física atinente à
bufonaria, esse artista se autodenomina como bufão, o que merece nossa atenção. Bassi
comumente se apresenta vestindo terno, gravata, sapato social e, em alguns espetáculos,
carrega até uma maleta de executivo103, indumentárias muito distantes do imaginário de
marginalidade trazido pelos bufões e suas deformidades corpóreas. Ele esclarece que a
opção por utilizar um figurino diferente da caracterização extraordinária da bufonaria parte
de uma premissa de potencialização das relações de provocação e surpresa.
Bassi (2002b) destaca que muitos palhaços do início do século XX utilizavam, por
exemplo, uma cartola para compor seu figurino, símbolo da vestimenta dos homens de
outrora que eram detentores de dinheiro e poder. Mesmo que o restante da indumentária
clownesca fosse de mendigo, lá estava a cartola, ironizando tanto o pedantismo dos homens
mais abastados, como o desejo dos pobres em alcançar importância e valor social. Seguindo
a mesma lógica sarcástica, Bassi opta pelo uso do terno em suas atuações, alusão aos
homens que são considerados socialmente importantes nos dias de hoje. Vestido como um
político tradicional ou um banqueiro, ele realiza ações ridículas, operando a relativização e o
ataque ao que chama de “mundo sério”. Nesse sentido, Bassi também esclarece sua escolha
artística em não utilizar a menor máscara do mundo:

Eu não ponho nariz vermelho porque para mim não é divertido; para mim é
muito mais divertido ver a reação do público quando um homem faz
bobagens, as caras do público ficam mais surpresas do que se eu colocasse
um nariz vermelho, por exemplo. Tudo isso é para alargar o campo do jogo
[...]. (BASSI, 2001, p. 34).

Caso entrasse em cena com uma configuração corpórea fora do comum, vestisse
figurinos espalhafatosos ou mesmo utilizasse sobre o rosto o nariz de palhaço, Leo Bassi
concederia à assistência uma ideia inicial, mesmo que vaga e incerta, do que esperar de sua

103
Como ocorre no espetáculo 12 de Setembro, no qual Bassi trata do ataque terrorista sofrido pelos Estados
Unidos em 11 de setembro de 2001.
121

atuação. Contudo, apresentando-se com a indumentária de um homem sério, sem exageros


ou desvios aparentes, Bassi não cria essa abertura para possíveis leituras por parte da
assistência, deixando-nos sem saber o que seu jogo cômico reserva para nós. Assim, ele
amplia seu campo de ação, dinamizando a experiência cênica por meio de sua
caracterização, quando tensiona conceitos como o inesperado, a quebra de padrões e a
criação de jogos de oposições – três dos mecanismos de comicidade estudados, em nosso
capítulo primeiro, a partir das investigações de Andrade (2005).
Bassi adentra o espaço cênico vestido com seu terno escuro, gravata alinhada,
sapatos bem engraxados, criando uma atmosfera formal e sóbria. Em geral, guardamos um
conjunto de noções acerca das regras de conduta em ambientes de formalidade, território
para gestos educados, decoro ao se movimentar... É, portanto, surpreendente para os
espectadores quando, por exemplo, este senhor elegante inicia, repentinamente, uma
dança frenética ao som de uma música de hip-hop104. Movendo-se exaustivamente e
realizando passos de break105, ele rompe com as expectativas e convenções, trazendo o
inesperado para o interior da cena.
Podemos perceber que Bassi presentifica uma rede de oposições através de seu
corpo e sua indumentária. Diferentemente das forças de atrito desencadeadas pelo corpo
disforme dos bufões em relação aos padrões corpóreos, o artista sob análise produz outro
tipo de contraste, quando o ridículo e a surpresa causados por suas ações friccionam a
seriedade instaurada por sua caracterização. Além disso, se ultrapassarmos o foco corporal
da bufonaria – que talvez tenha sido privilegiado, sobretudo, pelo viés das técnicas atorais -
e nos debruçarmos sobre os princípios comportamentais e ideológicos dessa tipologia
cômica, poderemos identificar outras aproximações entre as atuações de Bassi e o jogo do
bufão.
Lecoq (2010) destaca que a bufonaria transita pelo campo ilimitado da zombaria,
em processos de comicidade que podem abordar, geralmente de forma ácida ou agressiva,
temas delicados como religiosidade, conflitos mundiais e dramas humanos, expondo o

104
Exemplo retirado do espetáculo Instintos Ocultos e que será retomado em nosso próximo item.
105
Estilo de dança surgido, ao longo do século XX, nas ruas norte-americanas, geralmente executado com
movimentos bruscos e, por vezes, acrobáticos. Maiores informações podem ser encontradas no site:
<http://www.hip-hopbrasil.com/Break.php>. Acesso em 24 jul. 2013.
122

risível das relações sociais e suas vicissitudes. Por sua vez, Beth Lopes (2005, p. 17) ressalta
que a ambiguidade provocada pelo bufão:

[...] não cessa nas energias que o potencializam, ou no físico que o


caracteriza, mas também forra o fundo de suas convicções acerca do
mundo em que vive. O bufão representa o ser humano em estado bruto –
amoral, complexo, múltiplo – podendo ser comparado, ao mesmo tempo,
ao veneno e à cura.
Seja qual for a imagem relacionada a ele que, certamente, todos temos no
fundo da nossa memória, sua importância vai muito além da construção de
uma personagem histriônica. [...] o bufão é um catalisador de valores e
códigos culturais, com capacidade de produzir processos perceptivos em
termos especificamente teatrais. (Grifos nossos).

Entendemos o bufão como uma abertura às intensidades críticas, espécie de matriz


sensível capaz de absorver e articular acontecimentos, normas e valores atinentes aos
ordenamentos sociais, devolvendo-os ao espectador de maneira cômica e corrosiva. Espécie
de superfície espelhada capaz de mostrar ao homem suas porções invertidas e degradadas.
Operando com essas perspectivas críticas e sarcásticas, Leo Bassi transita pela subversão,
pela desagregação dos padrões e por processos transgressivos, atuando de maneira
fortemente provocativa sobre as percepções dos espectadores, tanto em relação ao mundo
contemporâneo, como em relação à experiência cênica. A fim de tornar menos abstratas
nossas colocações, vamos analisar dois exemplos destacados do percurso artístico de Bassi.
De 2004 a 2008, esse artista organiza o que chama de “turismo político”, através do
Bassibus, um ônibus especialmente preparado para levar o público “ao pior de Madri”, num
passeio ciceroneado pelo artista. Aberrações urbanísticas, desastres ecológicos e escândalos
imobiliários ligados a denúncias de corrupção na capital espanhola faziam parte dos roteiros
do Bassibus, defendido por seu criador como um misto de jornalismo, espetáculo, política e
provocação106. A primeira viagem do Bassibus foi organizada às vésperas da eleição
espanhola de março de 2004, pois, segundo o que Bassi escreve em seu blog: “Percebendo o
estado desencorajado da oposição na Espanha, o Bassibus, em sua humilde proposta,

106
Em seus cinco anos de existência, foram realizadas dez viagens do Bassibus, com cerca de cinquenta
passageiros a cada deslocamento, sendo incluídas cidades como Barcelona e a ilha espanhola de Lanzarote.
Maiores informações sobre o Bassibus podem ser obtidas no site do artista, denominado Bassiblog, um canal
de comunicação entre Leo Bassi, suas práticas artísticas e aqueles interessados em seu trabalho. Disponível em:
<http://www.leobassi.com/bassibus/index.html >. Acesso em 26 abr. 2013.
123

pretende reavivar o espírito rebelde e crítico sem o qual a democracia não pode se
desenvolver”107.
Bassi (2002b) defende que, durante séculos, uma das principais ações de palhaços e
bufões consistia em ironizar o mundo a sua volta, cabendo-lhes, através da comicidade,
realizar importantes comentários políticos. Em épocas em que os meios de comunicação de
massa eram inexistentes, as classes mais populares encontravam nos palhaços um reflexo
mordaz da vida cotidiana, expondo, entre gargalhadas e tiradas cínicas, os acontecimentos
correntes e as relações humanas. O artista afirma:

[...] o palhaço era a alma e o espírito do circo; era ele que podia falar.
Porque os malabaristas não falavam, os acrobatas não diziam nada
tampouco. Porém o palhaço falava diretamente e interpretava as opiniões,
as idéias políticas também, de seu público; público popular, público da rua,
público de classe pobre e o público amava o palhaço, porque interpretava
suas opiniões. Era a voz do pobre, era a alma, o espírito do povo. Eu venho
desta tradição antiga do circo como lugar de informações e o palhaço
como olho irônico e divertido sobre o mundo, com opiniões políticas. É
sempre difícil, hoje, falar disso porque a maioria do público fica com a
imagem do clown com nariz vermelho e sapatos e com as crianças. Hoje em
dia, se você fala da função política do clown, as pessoas te olham um pouco
estranho porque não associam a idéia. (BASSI, 2002b, s/p).

Bassi coloca suas convicções políticas e ideológicas claramente imbricadas em suas


práticas artísticas, reivindicando potências ao palhaço que rompem com os processos de
enfraquecimento que recaem sobre a técnica clownesca, já tão destacados em nossa
pesquisa. Podemos entender essa função política do clown na medida em que suas atuações
podem ser um convite às práticas coletivas, iniciativas de desestabilização dos padrões e do
senso comum, investigando a diferença como força produtora de singularidades.
Ressaltamos que Leo Bassi geralmente trata do palhaço ao falar de seus modos de
criação, o que nos faz pensar que ele mantém seu interesse artístico na problematização e
no aumento das potências da palhaçaria, ao aproximar o clown e o bufão. Mais do que se
apegar a dissociações entre as duas categorias, parece-nos que, para Bassi, a relação entre
essas técnicas se dá através de processos de contágio, postura que privilegia as intensidades

107
“Constatando el estado desanimado de la oposición en España, el BassiBus, en su humilde propuesta,
pretende reavivar el espiritu rebelde y crítico sin el que la democracia no puede desarrollarse.” Tradução
nossa.
124

contestadoras desses tipos cômicos. As relações de proximidade entre a palhaçaria e a


bufonaria são também destacadas por autores como Burnier (2001, p. 208):

O clown também desempenha função semelhante à dos bufões e bobos


medievais, quando brinca com as instituições e valores oficiais. Ele [...]
sugere a falta de compromisso com qualquer estilo de vida, ideal ou
institucional. É um ser ingênuo e ridículo; entretanto, seu
descomprometimento e aparente ingenuidade lhe dão o poder de zombar
de tudo e todos impunemente. O princípio desmistificador do riso, [...]
fundamentado, basicamente, na figura do palhaço.

Assim, palhaços e bufões seriam figuras historicamente distintas, mas que guardam
potentes ligações de proximidade, sobretudo no tocante a sua pulsão desestruturante que
pode expor e violar normas e relações de poder. Bassi opera com essa função
desmistificadora do riso, levando suas práticas provocadoras, muitas vezes, às últimas
consequências, ainda que seus processos de criação venham a despertar a antipatia ou
mesmo a repressão extrema por parte daqueles que se sentem incomodados por suas
provocações, como observaremos no exemplo a seguir.
Em 2006, Leo Bassi estreia La Revelación - ...En El nombre de la razón108, um de seus
trabalhos mais controversos, que seria alvo de inúmeras ações de repúdio, inclusive na
forma de protestos violentos por parte de seus detratores. Abordando o tema da teologia
judaico-cristã, Bassi constrói, a partir da comicidade, uma defesa de suas convicções ateias e
um elogio à cultura laica, desafiando os “partidários do monoteísmo cristão”.
O artista inicia o espetáculo com uma paródia litúrgica, vestido de papa católico,
benzendo e distribuindo preservativos aos espectadores e, ao longo da apresentação, trata
de contradições e dogmas relacionados à Bíblia e ao cristianismo – como, por exemplo, a
postura contrária da Igreja ao uso de preservativos, a defesa da instituição familiar
monogâmica e a ocultação de inúmeros casos de pedofilia cometidos por sacerdotes
católicos. Bassi também satiriza histórias bíblicas, como a de Adão e Eva, a arca de Noé e
questiona, ainda, a veracidade sobre a virgindade de Maria, mãe de Jesus Cristo.

108
No ano de 2007, Leo Bassi lança na Espanha obra literária homônima, onde publica o roteiro do espetáculo
bem como desenvolve reflexões sobre seu ofício e modos de atuar. Obra sem previsão de tradução ou
lançamento no Brasil.
125

A própria cenografia e seus adereços também se utilizavam de elementos cênicos


simbólicos relacionados ao cristianismo, como uma grande cruz cenográfica preenchida por
luzes coloridas e uma máscara com chifres. Bassi (2007) destaca que um de seus objetivos
com o espetáculo era promover um enfrentamento ideológico com os espectadores,
alertando para os riscos das atitudes extremadas no campo da religiosidade contemporânea.
Esse artista não poderia prever, todavia, a radicalidade a que chegariam os protestos e ações
contrárias ao espetáculo.
Realizando temporada no teatro Alfil, na cidade de Madri, La Revelación foi alvo de
diversas ações de oposição, organizadas por grupos de direita católica, como manifestações
na porta do teatro, vigílias e o anúncio de uma ação judicial contra a suposta blasfêmia de
Bassi. Além disso, o teatro e a prefeitura da cidade registraram um envio maciço de cartas e
correios eletrônicos por parte dos cidadãos que reclamavam da “intolerância religiosa”
gerada pelo bufão. A situação tornou-se ainda mais dramática quando, dias após o
lançamento de ovos na fachada do Alfil, um grupo de homens não identificados, portando a
bandeira da Espanha, agrediu verbal e fisicamente os espectadores que aguardavam a
abertura do teatro.
Problemática que chegaria ao seu extremo quando, na noite de 1° de março de
2006, minutos antes do início do espetáculo, um funcionário do teatro encontrou uma
bomba caseira com cerca de um quilo de explosivo conectada a um galão cheio de gasolina,
artefato deixado no espaço que separava o camarim de Bassi de uma plateia com trezentas
pessoas. A bomba já se encontrava acesa, sendo desativada antes que provocasse maiores
danos físicos. Contudo a mensagem aterrorizantemente estava clara: a intimidação
ideológica havia cedido lugar ao terrorismo. Nesse sentido, entendemos pertinente a
colocação de Jean Chevalier (2012, p. 148) sobre os bufões:

Por vezes, o bufo é condenado à morte por crime de lesa-majestade ou


lesa-sociedade, executado, sacrificado; ou então, serve de bode expiatório.
Com efeito, a história mostra-nos o bufão associado à vítima nos ritos
sacrificiais. É o indício de uma fraqueza moral ou de uma involução
espiritual do carrasco. A sociedade, ou a pessoa, não é capaz de assumir-se
totalmente: imola na vítima a parte de si mesma que a incomoda. [...] ao
rejeitar o outro, estamos renegando uma parte de nós mesmos. Pois o
primeiro movimento diante do bufão é sempre um movimento não-
solidário. Mas ele não se elimina pela violência nem por um ridículo
126

aumentado. Tudo que o bufão representa deve ser integrado numa nova
ordem, mais compreensiva, mais humana. (Grifos nossos).

Pelos tratamentos sarcásticos e provocadores que os bufões são capazes de infligir


aos temas mais delicados, essas figuras não se intimidam ao profanar e macular valores e
instituições tidas como sagradas ou intocáveis. Política, religião, condutas morais, tabus,
nenhuma instância está resguardada do cadinho derrisório da bufonaria. Como veremos no
espetáculo de Leo Bassi, o bufão não acolhe o espectador de maneira receptiva ou amável,
mas, antes, ele provoca a assistência, a desestabiliza, perturba suas possíveis zonas de
conforto.
Entendemos que essas ações são transgressivas na medida em que promovem um
rasgo, por vezes violento, nos padrões normativos, instaurando o espaço da diferença e
evidenciando nossas porções degeneradas. Porém, há muitos indivíduos que não estão
aptos a tolerar a criação desse espaço de violação e heterogeneidade, rejeitando e
reprimindo, muitas vezes de forma violenta, as ações do bufão, imolando nesta vítima as
vicissitudes da sociedade e de si mesmos que são incapazes de enfrentar.
Assim, em relação a La Revelación, a atuação cômica desestabilizadora de Leo Bassi
havia gerado um incômodo tão intenso em grupos religiosos espanhóis que reações de ódio
e repressão violenta foram-lhe impostas, sem conseguir evitar, contudo, que o artista
continuasse com a bem sucedida temporada do espetáculo. Sucesso não somente em
termos de público, mas, também, no tocante à repercussão negativa das ações de seus
opositores, demonstrando como a abordagem sobre os perigos dos fundamentalismos
religiosos é cada vez mais contundente no mundo contemporâneo.
Além disso, não deixa de ser deveras instigante, na mesma medida em que é
problemática e ameaçadora, uma experiência cênica capaz de gerar tamanha inquietação e
reações contrárias desmedidas que chegam a beirar a violência extremada. Nesse contexto,
vislumbramos uma aproximação entre as práticas artísticas de Bassi e o conceito
denominado como parrhesía, desenvolvido pelo filósofo Michel Foucault a partir de textos
da Grécia clássica109.

109
Aparecendo pela primeira vez na literatura grega em textos de Eurípides (c. 484 – 407 a. C.), este conceito é
desenvolvido em obras de Michel Foucault como: A hermenêutica do sujeito (2006), O governo de si e dos
outros (2010) e Discurso y verdad em La antigua Grecia (2004a). Aparecendo na primeira obra sob a grafia
127

Termo grego que na tradução francesa indica o franco falar, ou tudo-dizer, refere-
se a um discurso verdadeiro que mantém como objetivo a transformação e a melhoria dos
sujeitos envolvidos na comunicação. Relacionado por Foucault (2006) à liberdade, à
abertura, à franqueza, a parrhesía implica uma atitude de quem fala que envolve tanto uma
dimensão moral e ética, como um procedimento técnico necessário à transmissão do
discurso, fazendo “[...] com que se diga o que se tem a dizer, da maneira como se tem
vontade de dizer e segundo a forma que se crê ser necessário dizer” (FOUCAULT, 2006, p.
450).
Esse autor destaca, como exemplo, a relação de verdade que deve ser buscada
entre médico e paciente ou entre o mestre e seu discípulo, esclarecendo, contudo, que a
meta final da parrhesía não é gerar uma dependência entre as partes, mas, ao contrário, o
desenvolvimento de autonomia e independência naquele a quem se destina a fala. A partir
de um discurso verdadeiro que dita as próprias regras e procedimentos necessários à sua
produção, aquele que fala vai abrindo lacunas, despertando pensamentos que até então se
mostravam inexistentes ou obscuros em seu interlocutor. A fala recebida, por sua vez, vai
sendo por este apropriada, subjetivada, até o ponto de poder dispensar a ação daquele que
discursa.
O autor defende que essa “prática da palavra livre” possibilitaria, incitaria e serviria
de suporte àqueles que a recebem no sentido de produzir novos discursos dotados de
abertura, novos exercícios de liberação. Cabe ressaltar que, se a parrhesía implica uma
relação entre aquele que fala e aquele que recebe o discurso verdadeiro, também existe
uma relação de verdade entre aquele que fala e seu próprio discurso. Os pensamentos
transmitidos nas práticas parrhesísticas:

São os pensamentos daquele que os exprime, tratando-se de mostrar que


não apenas é isto a verdade, mas que sou eu, aquele que fala, quem
considera estes pensamentos como sendo efetivamente verdadeiros, sou
aquele para quem eles também são verdadeiros. [...] eu efetivamente
experimento (sentire) como verdadeiras as coisas que digo. [...] e não
apenas eu as experimento, considero-as como verdadeiras, mas ainda as

parrhesía e nas duas últimas como parresía, este trabalho optou pela forma adotada na tradução brasileira da
hermenêutica foucaultiana, parrhesía, realizada por Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail.
128

amo, a elas estou ligado e toda minha vida é por elas comandada.
(FOUCAULT, 2006, p. 490).

Podemos perceber que os trabalhos artísticos de Leo Bassi mantém uma íntima
relação com suas convicções críticas e seus modos de perceber e enfrentar a realidade,
tentando estabelecer a partir da comicidade um jogo de provocações cujo objetivo é fazer o
espectador pensar e refletir acerca dos problemas e vicissitudes do mundo que o cerca. Nas
palavras de Bassi (2002a, s/p.): “A provocação é uma ferramenta que utilizo para incitar o
público. [...] é uma coisa que desperta a consciência, pois o público a enfrenta. Muitos
podem não gostar, e inclusive se assustar, mas todos têm que reagir.”
Os espetáculos e ações públicas desse bufão transitam pela experimentação de
maneiras de afetar a assistência, em tentativas de mobilização da plateia frente às ideias do
artista. O espectador é confrontado por uma experiência cênica desestabilizadora, onde as
referências de entendimento e leitura do que acontece em cena estão em constante fluxo
de mudanças, variando de acordo com as provocações do bufão. Nesse sentido, decidimos
compartilhar com o leitor dois outros exemplos de ações provocativas de Leo Bassi, citados
pela pesquisadora Juliana Dorneles na tese Pelo vigor do palhaço (PUC/SP – 2009).
Apresentando o espetáculo La Vendetta110 durante o V Fórum Social Mundial,
realizado na cidade de Porto Alegre, em 2005, Bassi possuía uma plateia composta por
diversos ativistas político-sociais de vários países. Chamando ao palco a participação de um
espectador que trajava uma blusa da marca transnacional Nike, o bufão convence o rapaz a
deixá-lo cortar, com uma tesoura, o símbolo que identificava a empresa, umas das maiores
corporações industriais norte-americanas do segmento de roupas e calçados.
Enquanto realizava a “operação” na camisa, Dorneles nos conta que outro
espectador deixa o auditório, gritando indignado contra o absurdo daquela situação e que
nada justificaria estragar a roupa do jovem em nome de um espetáculo. Este fato já nos
demonstra como as práticas de Bassi são capazes de chocar e desestabilizar o espectador.
Contudo, ao terminar o corte, arrancando a marca e deixando um buraco na blusa, grande
parte da assistência gritava e aplaudia em polvorosa, aprovando o caráter simbólico da ação
do bufão.

110
Apresentado em 30 de janeiro de 2005, em Porto Alegre/RS.
129

Após a diminuição do tumulto, Bassi começa então a conversar com o rapaz, ainda
em cena, perguntando a ele qual teria sido o valor gasto na compra daquela camisa. E, após
a resposta, ele começa a indagar ao jovem como ele pôde autorizar que o bufão estragasse
a vestimenta, qual seria a razão daquilo tudo e porque ele queria ser o “herói” daquela
gente que ele nem conhecia, desejoso de obter aprovação e aplausos por alguns breves
instantes. Assim, bruscamente Bassi muda as perspectivas sobre a experiência cênica,
indicando que sua ação caminhava em determinada direção para, logo em seguida,
promover uma mudança drástica em suas configurações ideológicas e simbólicas, deixando
estupefatos tanto o espectador, agora de blusa furada, como o resto da assistência que
incitava o desenrolar da cena.
Em outro momento do espetáculo, Bassi realiza com outros dois espectadores um
número de hipnotismo, o qual, segundo a autora, era muito crível, deixando o resto da
assistência impressionada com sua habilidade. Todavia, na cena subsequente, o bufão revela
que a hipnose tinha sido toda combinada de antemão e que a plateia havia acreditado numa
ilusão, lançando a provocação: “Vocês acreditaram e foram enganados por um palhaço.
Hahaha. Imagina o quanto não são enganados por tudo o que acreditam que falam para
vocês seriamente...” (BASSI apud DORNELES, 2009, p. 90-91). Mais uma vez, ele inverte a
lógica do jogo, conduzindo o espectador até determinado ponto estável para, então,
desconstruir subitamente aquela relação, desestabilizando a experiência cênica através de
movimentos inesperados e quebras de padrões.
Assim, como nas práticas parrhesísticas, esse bufão cria no interior da cena teatral
as situações de que necessita para falar francamente à sua plateia, utilizando para tal
maneiras de provocar e instigar a assistência, em processos que demandam do espectador
dinâmicas ativas de reflexão, bem como de reavaliação de suas perspectivas e crenças. É
improvável que, diante dos espetáculos de Bassi, o espectador consiga manter uma condição
de recepção passiva, visto que ele é, a cada cena, convidado de maneira incisiva a reagir às
provocações do bufão.
Porém, aos que eventualmente pensarem que Bassi deseja se tornar uma espécie
de mestre ou guru do “franco falar”, ele também desconstrói qualquer ideia mistificadora
sobre sua figura, pois, segundo Dorneles (2009), em determinado momento de La Vendetta,
o bufão afirma que não realiza essas ações porque deseja mudar o mundo, mas porque elas
130

são divertidas para ele. Assim, ele instaura a insegurança e o inesperado em diversos
âmbitos de uma construção cênica em que ninguém, nem os espectadores mais reticentes,
nem os mais crentes, conseguem sair sem serem tocados pelas provocações de sua
bufonaria.
Destacamos, contudo, que, longe de propor uma aderência inequívoca entre as
atuações de Leo Bassi e o exercício da parrhesía, desejamos identificar ondas de
aproximação entre as práticas desse artista e o conceito grego retomado pelo pensamento
foucaultiano. Bassi constrói uma ligação entre suas “verdades”, estas entendidas como seus
ideais, suas perspectivas e práticas de vida, e a experiência cênica, encontrando nas mais
diversas gamas da comicidade e da provocação as formas necessárias para expor suas
convicções, na busca pela criação de redes de afetos em relação aos espectadores.
A familiaridade entre a ação parrhesística e o ofício desse bufão pode ser ainda
observada em algumas das condições elencadas pelo filósofo francês como atinentes à sua
configuração. Uma das principais circunstâncias da ação do parrhesiastés, ou seja, daquele
que pratica a parrhesía, reside no fato de que sua fala, ao ser proferida, implica-lhe um
risco. Aquele que expõe a verdade coloca-se em condição de periculosidade, podendo
arriscar, inclusive, a própria vida.
Foucault (2004a) afirma que a parrhesía coloca o valor de dizer a verdade frente ao
perigo, ocasionando um risco que pode ser o de provocar a ira de seus semelhantes, ou o
risco da impopularidade por suas opiniões contrárias às da maioria. Em situações extremas,
pode, inclusive, engendrar um perigoso jogo de vida e de morte, em nome da liberdade de
professar publicamente suas crenças. O filósofo francês traz como exemplo a figura de um
pensador que seja contrário à conduta de um rei ou soberano, expondo as mazelas de sua
tirania e sua incompatibilidade com a justiça. Neste caso, o cidadão crê na necessidade de
proferir a verdade, mesmo que para isso tenha de assumir o risco de padecimento sob os
mais terríveis castigos, entre eles o encarceramento, o exílio ou mesmo a execução final.
Tanto em relação ao Bassibus, como em La Revelación, podemos observar que esse
bufão assume diversos riscos, seja no tocante à ira dos políticos afetados por suas
denúncias, seja pela repressão violenta, chegando muito perto do risco de morte, ao
enfrentar a oposição cristã espanhola. Mesmo em relação a La Vendetta, é imprevisível
saber como aquelas provocações estão reverberando sobre cada espectador e quais serão
131

os limites de suas reações. Lembrando, ainda, que, na apresentação citada por Dorneles, a
assistência era composta, em sua maioria, por ativistas políticos, o que, cremos, aumentava
a possibilidade de embates mais acalorados. Tal qual um parrhesiastés, entendemos que
Bassi, a partir de suas crenças a favor da cultura laica e das reflexões acerca das vicissitudes
de nossa contemporaneidade: “[...] corre o risco de morrer por dizer a verdade ao invés de
descansar na seguridade de uma vida em que a verdade permanece silenciada.”
(FOUCAULT, 2004a, 42).
Há ainda, de acordo com esse autor (2004a), duas condições à prática da parrhesía:
a sua função crítica, uma vez que o exercício parrhesístico assume um caráter de jogo onde
aquele que tem a “palavra livre” critica a si mesmo ou a conduta assumida pelos poderes
instituídos ou pela maioria, estando em uma posição de inferioridade sobre aquele que
escuta – o que lhe ocasionará o risco do qual falamos anteriormente; e, por fim, dizer a
verdade constitui-se como um dever ao parrhesiastés, não por uma obrigação, mas porque
ele sente que é seu dever fazê-lo, pondo em xeque sua liberdade e sua ética pessoal.
Em resumo, a parrhesía, mais do que um conceito, configura-se como uma
atividade que dinamiza a verdade através da franqueza. Exercício que pode desencadear
reações de ameaça e perigo sobre aquele que a pratica, mas que não pode ser evitado, pois
envolve uma dimensão ética onde este toma para si a necessidade de dizer a verdade como
um dever para ajudar ou melhorar a vida de sua sociedade, e também a sua própria vida.
Nas palavras de Foucault (2004a, 46):

Na parrhesía, aquele que fala faz uso de sua liberdade e escolhe [...] a
verdade no lugar da falsidade ou do silêncio, o risco de morte no lugar da
vida e da segurança, a crítica no lugar da adulação, e o dever moral no lugar
do próprio interesse e da apatia moral111.

Bassi leva até às últimas consequências suas opções artísticas, estas entendidas
como exercícios de modos de existência, ainda que suas atuações lhe imputem diversos
riscos. Mesmo após as agressões sofridas durante a temporada espanhola de La Revelación,

111
“En la parresía, el hablante hace uso de su libertad y escoge [...] la verdad en lugar de la falsedad o el
silencio, el riesgo de muerte en lugar de la vida y la seguridad, la crítica en lugar de la adulación, y el deber
moral en lugar del propio interés y la apatía moral.” Tradução nossa.
132

Bassi mantém seu estilo provocador e em novembro de 2012 funda a Igreja Patólica ou
Patolicismo.
Segundo ele, esta é uma autêntica religião que sacraliza o humor e o riso como
expressões do mais alto intelecto humano. O culto ao Figura 14 - Cartaz de divulgação da Igreja
Patólica com seu pontífice Leo Bassi.
Deus Pato, divindade simbolizada por um pato de
borracha amarelo, vem reivindicar valores como a
humildade e o caráter lúdico, constituindo-se numa
maneira segura de evitar qualquer idolatria ou
intolerância.
Os principais objetivos desta ação, segundo
o artista, são, além de fomentar o espírito crítico
utilizando a comicidade como método, unir forças
com todas as pessoas que compartilhem uma visão
positiva e alegre da vida para transformar o mundo112
- como podemos ver na figura ao lado. Bassi, através
da criação do Patolicismo faz um elogio aos filósofos
Fonte:
<http://cosasquenosalenenlatele.blogspot.com.
da Ilustração, como Voltaire e Kant, defendendo a
br/2013/03/el-naufragio-del-sufragio-14-
parte.html>. Acesso em 09 mar. 2013.
dúvida contra os obscurantismos, os totalitarismos e
as superstições – mais uma vez aparece em nossa pesquisa a potência da dúvida contra os
padrões normativos e instituições, citada por Mendes (2008), “semente de insubordinação”
capaz de desagregar e gerar instabilidades.
Assim, Leo Bassi segue expressando, através de espetáculos e diversas ações
públicas, seus ideais e verdades, através de processos de comicidade altamente
provocativos, sem recuar diante dos perigos a que venha a ser exposto na sua consecução.
Nas palavras do próprio artista: "Quero devolver ao bufão o seu direito ancestral de dizer
em voz bem alta o que os demais só pensam". (BASSI, 2002a, s/p.). Em tempos em que as
relações de sujeição permeiam nosso cotidiano, a importância das práticas artísticas deste
bufão parece-nos clara, tanto no âmbito da criação de experiências cênicas potentes, como

112
Leo Bassi já utilizava a figura de um pato inflável amarelo de 45 (quarenta e cinco) metros de circunferência
em performances realizadas em países como Brasil (2010), Espanha e Portugal. O santuário do Patolicismo está
localizado no bairro de Lavapiés, o mesmo onde reside o bufão, na cidade de Madri. Maiores informações
sobre a Igreja Patólica podem ser obtidas no site: <http://paticano.com/>. Acesso em 20 jun. 2013.
133

em relação à construção de perspectivas críticas sobre a contemporaneidade, como


veremos no item a seguir.

3.2 - Instintos Ocultos: transitando por “estéticas do choque”

Embora, historicamente, a figura dos bufões esteja fortemente associada aos


princípios grotescos, a observação das dinâmicas cênicas operadas por Leo Bassi nos indica
que esse artista se mantém afastado de características caras ao grotesco, como, por
exemplo, o rebaixamento, a inversão e a apresentação de uma materialidade corpórea
exagerada – princípios que pudemos estudar no capítulo precedente ao analisar a atuação
de Jango Edwards.
Apesar de não constituir um foco de interesse em nossa pesquisa a realização de
comparações entre os artistas analisados, torna-se patente a grande diferença entre os
estados cômicos e jogos presentificados por Jango e Leo Bassi. Embora os dois artistas
construam dinâmicas cênicas que se aproximam de processos cômicos instáveis e
transgressivos, entendemos que Jango baseia sua atuação em diversos cânones grotescos, o
que nos parece longe das propostas do bufão ora sob análise, seja em relação aos seus
meios de criação, seja no âmbito dos resultados cenicamente presentificados.
Assim como Bassi alarga o campo de ação e as noções acerca da bufonaria, também
o faz em relação aos princípios envolvidos em suas apresentações, provocando o
descolamento entre as suas ações como bufão e as características grotescas que geralmente
são evocadas em relação às práticas bufas. Dessa forma, nas páginas que se seguem,
daremos continuidade ao estudo sobre as atuações cênicas de Leo Bassi, centrando nossos
esforços na investigação dos tensionamentos e potências transgressoras propostos por esse
artista, observando os jogos de força que os constituem. Neste sentido, manteremos o
espetáculo Instintos Ocultos113como objeto de análise que guiará nossos estudos.

113
Esta pesquisa obteve acesso, por meio do Teatro de Anônimo, à gravação integral deste espetáculo,
realizado no Rio de Janeiro, em dezembro de 2011. As cenas aqui analisadas constam do DVD em anexo.
134

3.2.1 - Abertura

Sentado em uma poltrona vermelha, erguida no alto de um tablado composto de


três degraus de madeira ao centro do palco, Bassi inicia o espetáculo olhando fixamente
para a plateia. Do alto dessa espécie de trono que indica poder e autoridade, o bufão
mantém uma postura séria, com sua indumentária formal, composta de terno escuro,
gravata e sapato social. A ausência de movimentos bruscos e a pouca luminosidade ajudam
a compor uma atmosfera sombria. Iniciando sua fala de forma calma, com algumas breves
pausas, sempre fitando os espectadores, Bassi começa a contar sobre o dia em que ele
descobriu ser um bufão.
Passando parte da infância na Itália, nos idos anos cinquenta, o artista afirma que a
principal diversão das crianças na época era ir com os pais à praça, nos dias de domingo,
jogar pão aos pombos. Meninos e meninas passavam a semana juntando as migalhas de
alimento para distribuí-los às aves no passeio dominical, quando vestiam suas roupas novas,
ponto alto do divertimento da semana. E o pequeno Leo Bassi, então com sete anos de
idade, já achava todo aquele ritual terrivelmente chato e sem sentido.
Sua primeira tentativa de subverter aquele acontecimento social que envolvia pais e
filhos foi jogar aos pombos, de uma só vez, todo o pão acumulado ao longo da semana. Esta
ação ocasionou grande alvoroço nas aves e lhe causou uma reprimenda de sua mãe, pois os
pedacinhos deveriam ser jogados paulatinamente ao longo do tempo, um de cada vez, para
que durassem por uma tarde inteira de diversão. Bassi destaca que hoje essa atitude pode
parecer banal, mas, nos anos cinquenta, aquilo fora revolucionário, pois nenhuma criança
jamais havia agido daquele jeito, desviando-se da normalidade.
De forma bem humorada, ele nos conta que durante meses estudara o modo de
agir dos pombos e que estes são animais da pior espécie, uma vez que, se alguém joga uma
pequena migalha de pão, o pombo começa a comê-la, mas, se outra pessoa lhe der um
pedaço maior de alimento, ele abandonará o pedaço menor, sem nenhum reconhecimento
pelo seu esforço em ter-lhe alimentado primeiro. Assim, o pequeno Leo buscava uma
maneira de “encontrar uma solução final para todos os pombos”.
Já nos primeiros minutos de espetáculo, a fala de Bassi, descontraída e calma, com
ritmos cômicos precisos e expressões faciais risíveis, havia conquistado a simpatia dos
135

espectadores, que ouviam atentos à narrativa. Contudo, havia certa tensão na assistência,
devido ao tom de suspense que aumentava com a proximidade do desfecho da história, a
qual terminaria com a seguinte imagem: o pequeno bufão colocaria um rojão aceso, dos
maiores que pudera comprar, entre as migalhas de pão e as lançaria aos pombos. Em breve,
ocorreria uma grande explosão, com penas e pedaços destroçados das aves voando pelos
ares, e as tradicionais famílias italianas correndo de um lado para o outro na praça, sem
entender o que havia acontecido ou quem havia instaurado o caos em sua pacífica tarde
dominical.
A mãe de Leo, ao perceber que tinha sido o próprio filho o algoz da situação, foi em
sua direção, estapeando-lhe o rosto por várias vezes. Bassi destaca que, enquanto aplicava o
corretivo, sua mãe olhava para as outras pessoas na praça, demonstrando que sabia que
havia sido seu filho quem fez uma coisa má e que ela tentava fazer voltar o filho à
normalidade. Segundo ele, os pombos que haviam restado inteiros voavam de uma
marquise à outra, tendo demorado quatro dias para tornar a descer na praça.
Ele afirma que, enquanto apanhava, não sentia dor, apesar da força das bofetadas
maternas. Ele se sentia feliz, pois havia conseguido estragar a tarde das outras crianças.
Nesse momento, ele descobria sua alma de bufão, experienciando as potências de “romper
a normalidade, romper o conformismo. Provocar! Encontrar energia, vitalidade, instintos
ocultos no público, em mim...114”. Assim, Bassi destaca a intensidade das ações provocativas
que veremos ao longo do espetáculo, quando o jogo transgressivo de violação das normas é
capaz de afirmar potências e afetos, transitando pelas porções obscuras dos indivíduos.
A fala de Bassi nos remete à explanação de Cassiano Quilici (2006) acerca do corpo
em sua dimensão reativa, citada em nosso primeiro capítulo. Uma vez que o
comportamento cotidiano, guiado pelos padrões normativos, tende a privilegiar as
dimensões estáveis e produtivas, serão evitadas as práticas instáveis que coloquem em risco
as próprias representações ilusórias de nossa identidade. É esse convite à experimentação
da instabilidade que Bassi vem fazer ao espectador, através de uma comicidade provocativa
que estremece as próprias concepções de mundo dos espectadores, instaurando fissuras nas

114
Fala de Leo Bassi durante a referida apresentação.
136

quais a obscuridade do indivíduo, suas porções violentas, suas ingenuidades, suas ilusões são
confrontadas por uma dinâmica cênica desestruturadora.
Após o término da narrativa inicial, Leo Bassi desce de seu palanque, caminha até o
proscênio e decreta: “Agora não preciso de pombos para me divertir...” – diz fitando a
plateia de forma sádica, com um sorriso nos lábios. E logo completa: “Os novos pombos são
vocês, o público”. O bufão então compartilha com a assistência que Instintos Ocultos, um de
seus espetáculos mais antigos115, é um trabalho que ele gosta muito, pois investiga o
significado do medo. Como as pessoas podem ter medo de pequenas coisas, ondas de medo
como sensações instintivas.
Enquanto vai falando, Bassi pega uma lata de refrigerante fechada e começa a
movimentá-la em vários sentidos, o que gera risos inseguros na assistência, a qual já antevia
a possível explosão do refrigerante pela agitação de seu gás. Sacudindo a lata, ele afirma que
também poderá tratar de medos mundiais no espetáculo, medos relacionados à dominação
de empresas multinacionais, por exemplo. Enquanto fala ele empunha veementemente a
lata de coca-cola em sua mão, em atitude claramente irônica, opondo um discurso
apaixonado contra a referida empresa à ação de exibir ostensivamente um de seus maiores
símbolos.
Após um tempo agitando o objeto, ele diz que, se fizesse um furo no meio da lata,
os jatos dela provenientes alcançariam até a sétima ou oitava fileira da plateia. O público ri e
ele afirma que vai fazer o teste. Ele perfura a lata e começa a brincar com os jatos de
refrigerante, molha-se, joga o líquido embaixo dos braços, faz posições corporais de quem
está urinando.
Essa experiência inicial já demonstra à assistência que ele não possui nenhum
receio em se molhar ou fazer sujeira no espaço cênico. Ele começa, então, a entregar sacos
plásticos ao público, explicando que aquela era uma medida de segurança aos espectadores
das primeiras fileiras, pois estes seriam afetados diretamente pelo espetáculo. Pegando uma
garrafinha de água, ele faz alguns testes sobre a atenção da assistência, pois, quando o
bufão atirava jatos de líquido sobre a plateia, seus membros deveriam levantar os plásticos

115
De acordo com o site do artista, as primeiras apresentações de Instintos Ocultos datam de 1993, espetáculo
que realizou temporadas em países como Brasil, Itália, Espanha, Argentina, Noruega, Áustria, Portugal, entre
outros.
137

para se proteger. Por fim, até a garrafinha de plástico é atirada sobre o auditório. Nesse
momento, a assistência já se encontrava em grande estado de excitação e ansiedade pelo
que ainda estava por vir.
Anunciando que o espetáculo começaria agora, o bufão faz a ressalva de que não
tem nada contra os espectadores. Ele afirma que tudo o que faz em seus espetáculos é por
amor ao público, e que não quer que as pessoas tenham uma vida longa e sem interesse,
mas a ele importa viver muito e em curta duração. Ele termina a fala com um sorriso
sarcástico, sádico e repentinamente uma música de batida forte e ritmo frenético invade o
espaço teatral. Ao som dessa espécie de hip-hop, com mudanças bruscas de iluminação,
como numa boate, Leo Bassi dança enlouquecidamente, incluindo, em sua movimentação,
passos da dança norte-americana break.
O público delirava e bradava como se assistisse a um show de rock’n’roll, enquanto
Bassi operava, em nosso entender, com matrizes de comicidade transgressiva, como o
contraste, a quebra de padrões e o inesperado. Assistir à movimentação intensa daquele
senhor de sessenta anos, vestido de maneira formal, fazendo uma coreografia ridícula, abria
em cena uma rede de oposições. Seu figurino austero bem como sua expressão calma e
enigmática havia criado uma tessitura de sobriedade e contenção que agora era
violentamente rasgada diante de nossos olhos, contrastando com o atual descontrole, o
delírio e um clima de frenesi que só aumentaria com as ações subsequentes do bufão.
Com o auxílio de uma furadeira elétrica, Bassi estouraria várias latas de
refrigerante, presas a seu corpo como num colete. Pulando e sacudindo seu corpo, os jatos
iam à direção da plateia. Não satisfeito, ele sai de cena por alguns instantes e volta
empurrando um carrinho de supermercado com várias de latas de coca-cola. Artefato
previamente preparado, o carrinho, ao ser sacudido pelo bufão, faz as latinhas estourarem,
provocando uma explosão de jatos de refrigerante que molha o palco, as primeiras fileiras,
mas, sobretudo, o próprio artista – como podemos ver nas imagens a seguir. Ele chega a
perder seus óculos, por instantes, devido à intensidade da dinâmica.
138

Figura 15 – Leo Bassi em Instintos


Ocultos...

Fotógrafo: Celso Pereira. Fonte:


<https://picasaweb.google.com/113893428128222687765/Anjos102011#56829885516
50127074>. Acesso em 09 fev. 2013.

Encharcado, sem fôlego, o bufão faz um gesto para que cesse a música e
novamente fala aos espectadores. Ele diz que realiza esse mesmo número há dez anos,
surgido como um ato de protesto contra a coca-cola. Dez anos mais tarde, conclui, o mundo
bebe sessenta por cento mais desse refrigerante. “Tenho a sensação de que falhei”, relata
com expressão de pesar. Ele afirma que recebe muitas críticas à sua mentalidade anti-
imperialista, sua luta pessoal contra a coca-cola, como se suas práticas houvessem se
esgotado. E ele sentencia sarcasticamente: “A verdade é que não me importa muito a luta
política... O que mais gosto é jogar coca-cola nas pessoas!116”.
Reinicia-se, então, a música e sua dança frenética, de passos ridículos. Assim, mais
uma vez, o bufão conduz os espectadores a um tipo de atmosfera ou conclusão, para romper
as expectativas ou entendimentos que vinham sendo construídos pela assistência,
quebrando padrões e surpreendendo a plateia. Leo Bassi pega duas maçãs e começa a
mordê-las, cuspindo seus pedaços sobre a plateia. Em seguida, munido de uma grande

116
Falas de Bassi proferidas durante a apresentação sob análise.
139

marreta de madeira, ele passa a explodir as frutas, agora colocadas sobre uma pequena
coluna de madeira.
A cada marretada ocorria uma explosão de alimento que sujava a área ao seu redor,
incluindo o bufão. Por fim, ele traz à cena uma melancia e coloca-a no pedestal onde
estourara as outras frutas. Ele fez toda a preparação, movimentando-se com a marreta, e,
no exato momento em que os espectadores estavam ávidos por ver explodir também este
alimento, o bufão interrompe sua ação, frustrando a plateia e rompendo com o padrão de
destruição que havia criado. Ele termina a ação dizendo: “Não quero fazer... Demasiado
agressivo.”, o que, depois de toda a destruição já causada, parece mais uma fala irônica.
O público sabia que ele era capaz de estourar a fruta, como vinha fazendo com as
anteriores, e a dimensão da sujeira que se produziria, bem como a imagem da melancia se
espatifando, deixaram a plateia em polvorosa, torcendo para que se mantivesse o que
parecia ser a ordem natural daquele ritual devastador. Alguns espectadores chegaram a se
manifestar verbalmente, pedindo que ele continuasse com os gestos de explosão. O artista
soube guiar o público ao ápice dessa ação crescente até o momento de quebrar os elos de
sua sequência, o que foi acompanhado por um corte seco na música que ajudava a conduzir
a atmosfera de radicalidade e violência, abrindo a lacuna do silêncio.
Minutos antes, o artista rompera o clima calmo e, ao mesmo tempo, tenso da
narrativa inicial, instaurando um espaço de explosão e caos, liberando a ele mesmo e à
assistência de toda a contenção da história – como se estivéssemos, talvez, diante de
perturbação semelhante àquela que dilacerara a paz dominical com um massacre de
pombos. Agora, mais uma vez, ele estancava o curso do padrão estabelecido, retomando seu
diálogo meticuloso com a plateia.
Podemos perceber que os jogos criados por Bassi carregam uma qualidade racional,
estudada, estruturada sobre um planejamento. O bufão sabe exatamente quais estratégias
usar para envolver a atenção da assistência, jogando com as intensidades caóticas e zonas
de descontrole. Ele se relaciona com a plateia de maneira direta, ultrapassando, assim como
vimos na atuação de Jango Edwards, a precisão e a pontualidade da técnica da triangulação,
comumente utilizada para gerar comicidade.
Utilizando a interlocução permanente com os espectadores, Bassi mistura sua
grande empatia com um modus operandi sarcástico, mordaz, contaminado, ainda, por doses
140

de sadismo – como pudemos perceber no prazer que ele demonstrava ao narrar a explosão
dos pombos, ou quando lança objetos sobre a plateia de maneira natural. Tal qual um
estrategista, esse artista vai compondo e decompondo um discurso cênico potente, cheio de
expressividade, formando sequências capazes de envolver e afetar a assistência. Acerca de
seus processos de criação, ele discorre:

[...] o humor é um misto de racionalidade pura e “sensorialidade”. Este é o


velho problema de pensar que a racionalidade é fria e abstrata. Quando
você consegue fazer rir, significa que você comunicou uma sensação e algo
sensorial, então esse momento único na cabeça quando uma atividade
puramente cerebral e racional se une, se associa a uma atividade
puramente sensorial, física. Isso é a própria celebração [...] quando a
inteligência e a racionalidade se juntam com o sensorial, este é o ato de
criação como na pintura ou na música. É um ato criativo, é como
matemática e corpo juntos, o ato de fazer rir. (BASSI apud OLIVEIRA, 2008,
p. 132).

As estratégias racionais de Bassi se presentificam no ato teatral, ao encontrar com o


outro, construindo reflexões e jogos sensoriais junto com a alteridade, experiência cênica
que é uma celebração das potências do palhaço como afirmação da vida. Nas atuações desse
bufão, razão e comicidade privilegiam a produção da comunicação teatral, em processos
complexos que demandam do espectador tanto um aguçar da racionalidade, como uma
participação sensorial.
Na mesma medida em que no faz pensar, ele também explode qualquer estrutura
linear ou estável que poderia ser associada à racionalidade. Como o próprio bufão afirma no
início do espetáculo, a violação da normatividade constitui-se como rompimento do
conformismo, partindo de um caráter provocativo na busca por intensidades e vitalidade,
dinâmicas que podem envolver a obscuridade dos indivíduos e seus “instintos ocultos”.
Destacamos que, inspirada pela dinâmica racional das criações cênicas desse bufão,
esta dissertação vislumbrou uma aproximação entre o uso da razão e o ponto cardeal Este. A
origem latina do vocábulo ratio117, tanto pode designar a inteligência, como a causa que
determina um acontecimento, a origem. Pensando na racionalidade que também origina os
processos cênicos de Bassi, nosso percurso identificou o trabalho desse artista com a direção

117
Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=raz%25C3%25A3o >. Acesso em 06 fev. 2013.
141

Este, relacionada ao início, ao nascer do sol. A razão como um dos grandes impulsos que
dinamizam os processos artísticos de Leo Bassi.
Pensando, ainda, nas relações entre a racionalidade e o jogo clownesco, Bassi
(2001) afirma que os palhaços dedicam sua vida à busca pelo irracional utilizando, para tal,
esforços racionais. A linguagem clownesca possibilita que as regras sejam inventadas, regras
que podem colocar em ação o caos, a irracionalidade, criando espaços de abertura ao jogo
cômico. Podemos observar essa lógica nas cenas de abertura sob análise, quando ele cria um
planejamento racional previamente estruturado que possibilitará o embaralhamento da
própria racionalidade, em cenas de explosão e caos. Nesse sentido, ele afirma:

[...] quando estou na cena, eu quero jogar até não poder mais. E não só
fisicamente, mas também filosoficamente, conceitualmente. Buscar um
jogo maior, cada vez maior, ter o público contigo. [...] é um prazer enorme
fazer com que as pessoas te escutem, riam de você; saber que as pessoas
estão contigo é uma sensação de poder, de felicidade. E, nessa mistura,
buscar as consequências mais longe. Esse é o sentido do jogo. (BASSI, 2011,
p. 34).

Esse bufão joga com o poder de afetar os espectadores, gerando processos


comunicacionais através da comicidade, da provocação e da ironia, atraindo a atenção da
assistência através de uma experiência cênica instável, avessa às convenções do que poderia
ser esperado de um espetáculo cômico. Uma vez que o riso e a comicidade são facilmente
associados às instâncias do prazer, da liberação através do divertimento, é desconcertante e
mesmo assustador adentrar no espaço criado por Bassi onde a liberação se dá a partir da
instituição de outro tipo de ordem, erigindo estruturas que abarcam a explosão, a violência,
embates de forças que vão sendo levados num crescente até o momento de terem sua
trama rompida para que novamente o artista nos guie em outras direções.
Nesse contexto, evocamos o conceito de estética do choque118, desenvolvido por
Josette Féral (2012), com o objetivo de nos ajudar a pensar as intensidades da atuação de
Leo Bassi. Essa pesquisadora utiliza os termos “estética do choque” para designar os
processos limítrofes que colocam a experiência do real em cena, em suas mais variadas

118
Conceito inspirado na expressão “estado choque”, cunhada por Paul Ardenne na obra Extrême: Esthétiques
de la Limite Dépassée (2006).
142

formas artísticas – teatro, cinema, artes visuais, performance – problematizando os campos


da representação e do evento apresentado. De acordo com a autora, determinados eventos,
particularmente os que carregam em seu bojo formas de violência, trazem o real para
dentro da cena, abalando as regras de conduta e convenções tacitamente pactuadas entre o
artista e o espectador. Originando uma experiência cênica de extrema performatividade 119,
capaz de lacerar a ficção cênica, geralmente causa perplexidade e choque na assistência. Em
suas palavras:

Ele [o espectador] sai da ficção para entrar no real. O evento que aparece
durante o espetáculo surpreende o espectador. Ele obriga o espectador a
sair de súbito da narração e da ficção. Ele obriga o espectador a sair da
ilusão cênica e a um modo de recepção diverso da cena tradicional com a
qual ele está acostumado. A situação do espectador se desloca e este se
encontra surpreendido, hipnotizado, sempre estupefato, num lugar e num
tempo que ele não previra. Esse tempo e este lugar não são
verdadeiramente os da representação, mas um outro lugar, diante de uma
ação que o incomoda e que se apresenta sem mediação. (FÉRAL, 2012, p.
83).

Embora entendamos que não há ilusão representacional no espetáculo sob análise


de Leo Bassi, este, através da narrativa inicial, conduz o espectador pela sequência de
eventos passados, reminiscências de sua infância, (re)construindo uma história marcante
que mudaria os rumos de sua existência. Através de imagens verbais, expressões faciais,
pausas, respirações, ele constrói uma dinâmica de natureza meticulosa que vai cercando e
atraindo a assistência, para, logo em seguida, fazer em pedaços a fina textura ficcional.
Jogando o espectador de forma brutal no tempo e espaço presentes, suas ações destrutivas
deixam a plateia impactada pela força da ação concreta, por uma corporeidade que irrompe
em movimentos frenéticos, corpo convulsionado que abre a golpes de marreta a experiência
do real.
Aqui, o espectador, mais do que a contemplação passiva, vê-se compelido, sem
convite ou autorização, à coparticipação dos atos realizados pelo bufão. Em gritos de pavor e

119
Josette Féral desenvolve, a partir dos estudos sobre a performance art de Richard Schechner, o conceito de
teatro performativo, pondo em diálogo e atrito ideias como teatralidade – entendida como um sistema de
representação – e performatividade – abarcando o campo da execução de uma ação. Maiores informações
sobre o tema podem ser encontradas em seu artigo Por uma poética da performatividade: o teatro
performativo (2008).
143

protesto, ou através dos brados de incentivo, desejosos de explosões cada vez maiores,
escutamos vozes dissonantes que se juntam numa manifestação coletiva que invade os
limites espaciais do teatro, reagindo prontamente a cada ação de Bassi. Espécie de massa
sonora indecifrável que parece querer vazar as paredes da arquitetura cênica, na iminência
de romper, também com a força de uma explosão, a experiência de uma cena potente e
instável.
Féral (2012), citando a interlocução de Ardenne, destaca que a “estética do choque”
possui cinco aspectos principais: a falta de hábito da recepção em relação às cenas
presentificadas; a recusa inicial do espectador sobre o que é mostrado; o desejo posterior de
ser confrontado com o conteúdo das ações e imagens; a extravagância desse conteúdo; e,
por fim, a exterioridade da assistência sobre o evento, uma vez que o espectador não é
apanhado pelo que ocorre em cena.
Podemos perceber que não há uma assimilação exata entre as práticas de Bassi e os
princípios dessa estética desenvolvida por Féral, pois, embora atue de maneira inusitada e
extravagante e cause no espectador o desejo de ver até onde esse bufão tensionará os
limites de suas ações, é difícil afirmar que a plateia, inicialmente, recusava-se a presenciar o
ritual de destruição executado por esse artista. Como vimos, desde a narrativa que principia
o espetáculo, o bufão já havia realizado um trabalho de conquista do espectador,
mostrando-se como uma figura interessante e fora dos padrões. Ele aguça a curiosidade da
assistência, a qual, mesmo entre inseguranças e medos, acaba desejosa de experienciar
aquele evento que, por vezes, parece fora de controle.
Além disso, Bassi tensiona o princípio que se refere à exterioridade do espectador
em relação ao acontecimento teatral. A plateia do bufão é quase que trazida para dentro da
cena, sofrendo com os resquícios das explosões de alimentos e líquidos que resvalam do
palco em direção às primeiras fileiras, desestabilizando por contaminação qualquer distância
que poderia sugerir conforto ou voyeurismo ao público. Diferentemente da plateia de um
show de rock que vibra e incentiva os feitos dos músicos à sua frente, protegida pela
separação entre os espaços de quem assiste e quem performa, com Leo Bassi a assistência
vê-se exposta à intensidade das atitudes do artista. Sofrendo com a materialidade residual
de cada ação, há um diálogo entre as pulsões destrutivas do bufão e os próprios instintos
dos espectadores, pois, conforme reflete a autora supracitada:
144

[...] o desejo de ver a imagem violenta mantém um comércio com nossa


própria violência interior, mais ou menos aceita. Querer ver a violência é
viver a nossa violência íntima, mergulhar nos cantos escuros de nossa
psique, aceitar nosso potencial inesperado de brutalidade, sadista e
masoquista. (FÉRAL, 2012, p. 91).

Dessa forma, mesmo sem uma aderência inequívoca entre as práticas do bufão e as
dinâmicas da “estética do choque”, achamos importante trazer este conceito como
possibilidade, mesmo que falha, de nos ajudar a pensar a criação desse artista. Bassi
confronta o espectador com o choque do real, da ação viva que carrega em sua latência
nossas porções obscuras, avessas ao controle, ao convencional, numa experimentação
cênica que é perturbadora, limítrofe. Espécie de comunhão bufonesca contra regras e
princípios que chega a nos colocar diante da questão que subitamente ecoa do espaço
teatral, deixando-nos perplexos: quem é realmente o bufão que sente prazer na destruição
dos padrões normativos, ele ou nós?

3.2.2 - Comicidade e medo

Após as cenas de abertura do espetáculo analisadas no subitem anterior, Bassi inicia


uma sequência de números onde colocará em atrito instâncias como comicidade, reflexão e
medo. Investigaremos alguns desses números, adentrando um pouco mais nos modos de
criação deste bufão, nos quais ele opera com as intensidades e os jogos de violação
inerentes aos processos transgressivos.
Enquanto coloca a melancia, intacta, na coxia, Bassi conversa com a plateia,
indagando-se mais uma vez se a função provocadora dos bufões contra o sistema dominante
ainda encontra lugar de reverberação nos dias de hoje. Ele sugere que, talvez, seja
necessário adentrar nesse âmbito com atuações mais poéticas, e diz que também quer fazer
um “momento poético”. Então, nosso bufão pede que se inicie uma “música poética”, e, ao
som de uma canção no estilo new age120, ele começa a saltitar pelo palco, correndo e

120
Gênero musical surgido em meados da década de 1960, relacionado ao movimento hippie, caracterizado
por melodias suaves e sons instrumentais. Muito utilizado para meditações e rituais de relaxamento. Fonte:
<http://www.allmusic.com/genre/new-age-ma0000002745>. Acesso em 25 jul. 2013.
145

fazendo gestos fluidos com os braços, ironizando um tipo de mise-en-scène comum em


apresentações acrobáticas de circos contemporâneos. Enquanto se movimenta de maneira
exageradamente etérea, arrancando risos da assistência pelo ridículo de seu gestual, ele
chega a dizer “Cirque du Soleil121” e continua suas provocações.
Depois de tirar os próprios sapatos e realizar brevemente uma técnica de
manipulação teatral com suas meias - colocando-as para dançar, sarcasticamente, no ritmo
da música e chegando a simular um romance entre elas que acabaria num intercurso sexual -
Bassi finalmente dá início a seu número acrobático.
Conhecido como exímio malabarista, especializado em antepodismo - modalidade
de técnica circense em que o artista controla e manipula objetos utilizando pés e mãos,
geralmente com as costas apoiadas no chão ou em uma pequena banqueta – Bassi gira com
os pés um piano de tamanho natural. Ele roda o grande instrumento com os pés, atingindo
uma velocidade considerável. Assim como nos golpes de marreta era o bufão que recebia
em seu corpo o maior impacto causado pelas explosões de alimentos e líquidos, agora ele se
coloca novamente em risco, desta vez através do perigo real ocasionado por um possível
malogro na realização de seu malabarismo.
Como destaca Bolognesi (2003), a virtuosidade do desempenho circense encontra-
se friccionada com a potencialidade do fracasso, afetando o público de maneira a provocar
suspense e temor diante de um corpo que desafia e luta para superar os limites do cotidiano
e do possível. Nesse contexto, a atuação dos palhaços vem justamente carregar o contraste
para dentro do espetáculo, quando perda e derrota passam a ser admitidas e mesmo
esperadas, invertendo-se a lógica tensa de outrora e propiciando o riso.
Contudo, na atuação de Bassi podemos perceber que ele privilegia as instâncias do
risco e do temor, sem criar muitas aberturas à desconstrução dessa atmosfera. Mesmo
realizando atos ridículos ou irônicos, o cômico e o risível não aparecem como uma liberação
prazerosa, mas são contaminados ou mesmo gerados pelas tensões criadas pelo bufão, o
qual não nos permite perder de vista o pano de fundo arriscado e instável que ele instaura.

121
Leo Bassi deixa clara sua postura crítica acerca do Cirque du Soleil, seja em ações em que ironiza os
espetáculos dessa companhia, seja em entrevistas e palestras, como na aula-espetáculo citada no início deste
capítulo, quando o bufão criticou veementemente a postura empresarial do grupo. Não vamos aprofundar aqui
esta discussão, pois, além da extensão do tema e suas complexidades, nossa dissertação não mantém como
foco de investigação o estudo sobre o universo circense.
146

Enquanto calça seus sapatos, o bufão começa a contar uma história desconexa
sobre não estar se sentindo muito bem, tendo a impressão de estar deprimido, pois o
trabalho de provocação do palhaço hoje não teria mais sentido. Ele chega a afirmar
ironicamente que sua carreira encontra-se em declínio ao ponto de ele ter de se apresentar
novamente na cidade do Rio de Janeiro. Diz, então, que tem pensado em realizar um último
espetáculo e, ao final da apresentação, cometer suicídio diante dos espectadores. Ele
destaca a repercussão que esse acontecimento alcançaria na mídia, manchetes como “Em
festival de palhaços, um palhaço se mata!”, o que geraria uma publicidade enorme aos
outros espetáculos, à palhaçaria. Ressalta, ainda, que, ao saber que vai morrer, o indivíduo
experimenta uma grande sensação de liberdade.
Bassi afirma que, nos últimos instantes de sua vida, deseja realizar de um de seus
instintos mais profundos, alimentado e reprimido durante anos, qual seja matar vinte
pessoas de sua plateia. Se isso acontecesse, o mundo inteiro falaria sobre seus espetáculos,
sobre a arte teatral do Rio de Janeiro, diz ele. E conclui: “Vocês acham que isso é piada...
Mas tenho pensado muito nisso.”. Ele, então, vai até a coxia do teatro, sumindo na escuridão

Figura 16 – Bassi em seu ritual de que agora domina o palco. Os espectadores riem alto,
pirofagia.
tentando descontrair a situação, mas há uma evidente
opressão na atmosfera sombria criada por Bassi. Durante
longos instantes o bufão desaparece, deixando-nos com o
silêncio inquietante do inesperado.
Quando retorna à vista dos espectadores, ele
carrega um bastão utilizado nos números de
prestidigitação em que se cospe fogo e um galão de
plástico. Ele derrama o líquido contido na embalagem
plástica sobre a extremidade do instrumento, e, com o
Fotógrafo: Celso Pereira. Fonte: auxílio de um isqueiro, ele ateia fogo no bastão. O fogo
<https://picasaweb.google.com/113893
428128222687765/Anjos102011#56829 não só forma uma tocha, mas rapidamente se alastra pelo
88561962398578>. Acesso em 10 mar.
2013. chão onde restaram os respingos do líquido. O bufão
apaga as chamas, com certa dificuldade, pisando sobre as
147

labaredas. No meio do burburinho das gargalhadas, ouve-se um grito assustado de uma


espectadora. Uma música sinistra ajudar a compor a atmosfera lúgubre instaurada pelo
artista, e logo percebemos um odor de fumaça e querosene que se espalha pelo teatro.
Segurando a tocha com uma mão e o galão de líquido inflamável com a outra, Bassi
começa a caminhar na penumbra, observando o espaço teatral. Enquanto se desloca de
maneira calma, ele deixa cair o fluido pelo estrado do proscênio e, quando chega à lateral
esquerda do palco, derrama uma grande quantidade do líquido sobre as cortinas do teatro.
Agora as risadas são cada vez mais escassas e podemos ouvir um misto de palavras
incrédulas, gritos assustados dos espectadores e brados de incentivo. Retornando ao centro
do palco, o bufão despeja o suposto querosene sobre seu próprio corpo, e coloca, ainda, um
pouco do líquido na boca, assumindo a postura corporal de quem vai realizar um número de
pirofagia. De maneira lenta e concentrada, o que aumenta ainda mais a tensão da cena, ele
se aproxima ainda mais dos espectadores, prepara-se e finalmente cospe sobre a tocha. Ao
invés de ocasionar uma explosão de labaredas que poderiam desencadear um incêndio no
teatro, a chama se apaga.
Subitamente as luzes se acendem e ele ri ostensivamente, zombando da assistência.
Ele reproduz as expressões faciais de angústia e medo das pessoas sentadas nas primeiras
filas e ironiza: “Mesma expressão que os pombos de antes.”. Os espectadores aplaudem,
gritam e riem aliviados, enquanto o artista olha de forma maliciosa para a plateia, como um
menino-bufão que acabara de “pregar uma peça” num teatro lotado 122. Exercendo seu
poder de confundir as fronteiras entre o que é real e o que é representação, Bassi coloca a
assistência num espaço desprotegido, sem condescendências.
A sensação que nos fica é que a potência das cenas de abertura – compostas pela
narrativa inicial e por todo o ritual de explosão dos alimentos – é de tal intensidade,
instaurando tamanha experiência do real e do choque nos espectadores, que estes passarão
o resto do espetáculo com a intuição de que esse bufão é capaz de executar qualquer tipo
de ato, mesmo o mais controverso ou violento. Em suas palavras: “Muitas crianças têm

122
Marcio Libar (2008) narra um episódio curioso em seu livro autobiográfico, afirmando que, durante a
realização desse número de pirofagia, apresentado por Leo Bassi no ano de 2000 no Anjos do Picadeiro 3, a
crítica carioca Bárbara Heliodora abandonou o espetáculo antes do final, vociferando contra o absurdo
daquelas ações e reclamando do desrespeito que era infligido ao público por aquele bufão.
148

medo dos palhaços, é importante que se tenha medo dos palhaços, inclusive os adultos, pois
nunca sabemos o que ele é capaz de fazer.”(BASSI apud LIBAR, 2008, p. 174-175).
Bassi constrói um campo de experiência e afetos no qual os processos transgressivos
é que parecem guiar suas ações, chocando-se brutalmente contra qualquer tipo de ordem
ou regra, numa lógica instável e surpreendente. Ele joga com a insegurança e a
imprevisibilidade, pois a plateia não consegue distinguir claramente sobre a veracidade de
suas ações e os riscos que as acompanham, restando sempre uma dúvida inquietante.
Trabalhando com os atritos entre representação e realidade, esse bufão cria intensidades
que atuam diretamente sobre as percepções dos espectadores, causando sensações como
angústia e temor, estas sim, muito reais. A esse respeito o artista afirma:

[...] o público quer de mim tensão, adrenalina, surpresa, inclusive


agressividade. [...] Minha teoria é que querem viver algo comigo. Então,
minhas provocações são, de um lado, incentivo natural - gosto de fazê-lo -
mas também uma eleição cultural do que o público quer ver e o que o
teatro pode dar e a televisão não pode exercer: sensualidade, contato,
presença de pessoas, [...] é um lugar onde há mais contato humano. Esta é
a natureza de meu espetáculo. Também uma maneira para criar emoções,
vibrações, excitação no público. [...] Eu não quero que as pessoas saiam
tristes, ou preocupados, ou angustiados, ou agressivos de meu espetáculo.
Porque, finalmente, todas as minhas agressões são um jogo. (BASSI, 2002b,
s/p).

Assim, Bassi defende uma dinâmica cênica capaz de ampliar os fluxos de afeto,
jogando com o medo, a tensão, o inesperado. Esse artista proporciona ao espectador uma
experiência única, cheia de instabilidades, colocando a assistência num espaço
desconfortável, que dificilmente abarcará qualquer possibilidade de comodidade. Embora
possua grande empatia com a plateia, ele não acolhe os espectadores, mas provoca-os,
instiga-os. A comicidade desse bufão, na mesma medida em que atrai a assistência,
equilibra-se em processos transgressivos capazes de produzir um riso nervoso, quase uma
gargalhada histérica diante da imprevisibilidade, exteriorização de como os espectadores se
encontram mobilizados e surpreendidos por sua atuação.
No número sob análise, por exemplo, há um momento em que Bassi, enquanto
molha o espaço teatral com o suposto querosene, ao mesmo tempo, benze a plateia fazendo
o sinal da cruz com a tocha em chamas, como se estivesse aplicando o ritual final da
extrema-unção. Ação irônica que desperta inevitavelmente um riso coletivo, mas que não
149

perde seu caráter tenso diante do medo de um eventual incêndio que rompesse os limites
da representação e pudesse ganhar o aterrorizante campo da realidade. A relação entre riso
e medo já foi enunciada por Nietzsche (2005, p. 119-120) ao desenvolver sua definição
acerca do cômico:

Quando se considera que por centenas de milhares de anos o homem foi


um animal extremamente sujeito ao temor, e que qualquer coisa repentina
ou inesperada o fazia preparar-se para a luta, e talvez para a morte, e que
mesmo depois, nas relações sociais, toda a segurança repousava sobre o
esperado, sobre o tradicional no pensar e no agir, então não deve nos
surpreender que, diante de tudo o que seja repentino e inesperado em
palavras e ação, quando sobrevém sem perigo ou dano, o homem se
desafogue e passe ao oposto do temor: o ser encolhido e trêmulo de medo
se ergue e se expande – o homem ri.

Nietzsche nos fala de processos de liberação potencializados pelo medo, quando a


instabilidade do inesperado, restando sem um dano efetivo, é capaz de afetar o indivíduo de
tal modo que faz nascer o riso. A comicidade como dinâmica quase instintiva diante da
insegurança. É no âmbito da potência desses fluxos de percepção que entendemos as
práticas de Bassi, capazes de instigar e desorganizar a sensorialidade da assistência.
Depois de revelar que tudo não passara de um truque, o bufão destaca que, ao
mesmo tempo em que as pessoas sentadas nas primeiras fileiras demonstravam temor com
a possibilidade de um incêndio, os espectadores localizados no balcão do teatro e os que
estavam ao fundo, próximos às portas de saída, pareciam muito felizes. Bassi diz que as
pessoas que estavam afastadas do risco iminente chegavam a ansiar para que tudo fosse
verdade e que houvesse a intensidade de uma cena real, com fogo, feridos, mortos... Ele
afirma que esta é umas perspectivas do espetáculo, causar medo, assim como instintos
sádicos.
A fala do bufão nos remete ainda ao trecho de Ferál (2012) supracitado, acerca do
diálogo existente entre a violência presentificada em cena e a violência interior dos
espectadores. A atração exercida pelas ações e imagens de Bassi, coloca-nos em contato
com as nossas próprias obscuridades, fazendo-nos mergulhar tanto em nossas porções
desprotegidas, quanto em nossas projeções de brutalidade e sadismo.
Continuando com seu percurso de risco e reflexão, Bassi pega um prato de plástico
e uma embalagem de espuma de barbear, fazendo diante da plateia uma torta branca, como
150

aquelas utilizadas em números cômicos e clownescos. Segurando a torta, ele dança e faz
expressões ridículas ao som da música The End do grupo de rock norte-americano The
Doors123. Olhando para a assistência, o bufão sentencia: “No teatro, 350 pessoas. Em poucos
instantes, ficarão 349 muito felizes. E um, menos. Porque eu quero, em poucos instantes,
jogar isto na cara de uma pessoa do público.”.
Pedindo luz na plateia, ele desce do palco para caminhar entre os espectadores e
selecionar pessoalmente quem seria aquele contemplado com a tortada. Contudo, antes de
descer, Bassi dá um conselho final, afirmando que, aquele que não gostaria de ser o alvo da
ação agressiva, deveria agir como se nada fora do normal estivesse acontecendo quando da
proximidade do bufão, pois a menor reação ou sinal de medo despertaria nele a vontade de
jogar a torta de espuma no rosto da pessoa. Segundo suas palavras: “Gosto muito de
descobrir medo no público. E quando descubro a pessoa que tem muito medo... Eu me
excito.124”. E assim, o bufão segue jogando com seus próprios instintos e sensorialidades,
bem como com os da plateia.
Tendo descido do palco, ele caminha calmamente próximo aos espectadores, o que
aumenta ainda mais a ansiedade da plateia. O silêncio tenso mais uma vez parece congelar
a atmosfera do espaço teatral, sendo rompido apenas por alguns risos nervosos que ecoam
em determinados pontos da assistência. Como o teatro estava com a lotação esgotada, havia
muita gente sentada no balcão, localizado no segundo andar. Então, quando o bufão sai do
campo de visão dessas pessoas, chegando a uma parte da plateia em que não podia ser visto
pelo andar de cima, incita rapidamente que as fileiras do primeiro andar começassem a
gritar, como se a tortada fora dada. Ele faz essa dinâmica por duas vezes, gerando risos,
palmas e gritos da assistência do andar de baixo.
Ao retornar à área próxima ao palco, ele diz à plateia do andar de cima que algo
terrível acontecera. Ele esclarece que tudo não passou de uma brincadeira, mas ressalva que
pedira à assistência apenas que esta risse. Mas, como os espectadores são iguais em todas
as partes do mundo e não prestam, todos gritaram intensamente, na esperança de que

123
Banda musical conhecida pelas letras controversas e ações provocadoras de seus membros, que
ocasionariam diversas passagens pela polícia, até a morte prematura de seu vocalista Jim Morrison em 1971.
Maiores informações no site oficial do grupo: <https://thedoors.com/ >. Acesso em 25 jul. 2013.
124
Fala de Leo Bassi durante o número.
151

algum espectador do segundo andar se debruçasse sobre a mureta de proteção, tentando


ver o que acontecia embaixo, e acabasse por cair.
A atuação sarcástica de Bassi nos leva a pensar sobre nossas tendências
comportamentais, seja diante de um espetáculo, seja, pensando de forma mais abrangente,
no decorrer da vida cotidiana. Instaurando redes de afeto em sua assistência, Leo Bassi cria
aberturas à reflexão que acompanham as intensidades que ele presentifica em cena, as
quais, quem sabe, possam atingir o objetivo parrhesístico da melhoria dos sujeitos
envolvidos na comunicação. Rementendo-nos à prática da parrhesía anteriormente citada,
podemos pensar que este bufão constrói discursos cênicos que se utilizam de imagens,
palavras e ações provocativas mantendo como um de seus focos a exposição de
determinadas franquezas acerca da maneira de se comportar dos espectadores, mesmo que
para isso deva se arriscar a assumir posição contrária à da maioria.
Podemos encontrar mais um exemplo desse tipo de construção cênica do artista
sob análise na descrição de Marcio Libar (2008) acerca da apresentação de Instintos Ocultos
no ano de 2000. Nesta ocasião, Leo Bassi apresentara uma cena na qual realizava um
discurso extremado sobre suas práticas artísticas e que terminava com uma chuva de papel
picado sobre o palco, o que arrancou aplausos emocionados de grande parte da plateia –
cena não realizada na apresentação do espetáculo em 2011, versão que estamos
investigando.
Ao findar suas palavras inflamadas, o bufão começou a zombar da reação de seus
espectadores, destacando, segundo Libar, o quanto somos manipuláveis diante de um
discurso apaixonado, auxiliado por uma trilha sonora impactante e algum efeito especial
barato, o mais anódino que seja, como papéis que caem do céu... O silêncio e os poucos
risos que se seguiram às palavras do artista denotavam uma plateia atônita e, mais uma vez,
perdida diante da postura provocantemente crítica do bufão.
É difícil ao espectador permanecer nas zonas de incerteza instauradas por este
bufão, o que faz com que tentemos nos agarrar aos menores indícios de estabilidade, como
um suposto discurso apaixonado, por exemplo. O modo sarcástico, às vezes sádico, que
Bassi nos dá a conhecer, faz com que a assistência confunda o que é real e o que é
construção, em territórios de desequilíbrio onde não possuímos referenciais para nos apoiar.
152

Bassi produz determinada construção cênica para, em seguida, mostrar a


artificialidade daquela cena, como se revelasse o seu avesso, denunciando os pressupostos
de manipulação nela contidos, bem como apontando para as vicissitudes comportamentais
dos espectadores. Podemos lembrar, aqui, do número de hipnose citado por Dorneles
(2009), quando o bufão criou as condições necessárias para despertar a credibilidade de sua
ação junto à plateia, e, depois, demonstrar como somos desejosos de acreditar em ilusões,
mesmo que as mais excêntricas e incoerentes.
Há nas práticas de Bassi uma espécie de chamado à lucidez do espectador. Na
medida em que esse bufão engendra sua criação através da racionalidade, parece-nos que
ele também reivindica da plateia esforços na direção da reflexão, em percursos que agucem
a própria razão de cada espectador. Esse artista, como já constatamos, não promove o
acolhimento da plateia através de atitudes condescendentes, mas, ao contrário, através das
potências e afetos gerados pelo medo, o choque, o inesperado, Bassi conclama a
responsabilidade do espectador.
O que você acha risível? Porque você ri? Quem são seus pares nessa empreitada? –
estas são algumas, entre tantas questões complexas e necessárias ao enfrentamento pessoal
que este bufão nos aponta. Processos que podem violar a normatividade, gerando
singularidades e afirmação da vida. Como no exercício da parrhesía, o jogo de reflexão e
desagregação das cenas de Bassi parece querer conduzir o espectador à autonomia e à
independência por meio do uso da razão, abrindo passagem à produção de novos discursos
de abertura e liberdade.

3.2.3 - A docilidade do bufão...

Por fim, gostaríamos de tratar da última cena do espetáculo Instintos Ocultos, a


qual o bufão inicia falando da tradição secular de sua família em realizar espetáculos
circenses e de como esse legado trouxe a ele a consciência de transitar às margens da
sociedade, na luta contra o conformismo. Contudo, o bufão destaca que as pessoas o
questionam, indagando que em suas práticas faltaria uma dimensão poética, faltaria
doçura... E ele decreta: “Quero mostrar a meu querido público a doçura dos bufões”.
153

Bassi começa a se despir, enquanto uma trilha sonora grandiosa vai invadindo o
espaço do teatro. Ele tira toda a roupa com gestos graciosos e uma expressão facial
sarcástica, até permanecer de cueca samba-canção preta. Pega, então, uma espécie de
garrafa que lembra um grande tubo de ensaio, com quatro quilos de mel e despeja
lentamente o conteúdo em sua boca.
O mel vai transbordando de seus lábios até escorrer por seu tronco, seus genitais e
pernas. Ele derrama o mel também em sua cabeça calva, para depois acariciar o corpo
esfregando o líquido pegajoso por sua barriga, suas pernas, costas, como se estivesse se
ensaboando, utilizando, inclusive, o mel que formara uma poça no chão aos seus pés. Na
mesma poça ele desliza os pés, realizando passos de dança e, em seguida, cospe certa
quantidade de mel que ainda estava em sua boca, assumindo uma postura corporal que nos
remete às figuras angelicais de um chafariz – como podemos ver nas figuras abaixo.

Figura 17 – A doçura do bufão...

Fotógrafo: Celso Pereira. Fonte:


<https://picasaweb.google.com/113893428128222687765/Anjos102011#568
2988614009083634>. Acesso em 10 mar. 2013.

Seguindo seu ritual de escatológica zombaria, Bassi sobe até o último degrau do
tablado localizado ao centro do palco, e lá em cima fica a girar com os braços abertos. Do
alto de uma escada de serviço localizada ao fundo do espaço cênico, um homem joga penas
e mais penas brancas sobre o bufão. Um foco de luz ilumina o artista enquanto ele gira sobre
o próprio eixo, observando de maneira docemente irônica o efeito que as penas fazem ao
154

esvoaçar pelo espaço, grudando-se ao mel que lambuza seu corpo para criar uma figura
esdrúxula e risível.
Durante o espetáculo, Bassi concentra em sua figura o poder de provocar e
desestabilizar a assistência, assumindo posturas de autoridade sobre a plateia e a
experiência cênica. É, portanto, surpreendentemente instigante ver o bufão despido de sua
imperatividade, entregando sua corporeidade ao ato final derrisório. Aqui, ele rompe pela
última vez com o padrão de autoridade criado ao longo da apresentação, jogando o
espectador novamente nas zonas do inesperado.
Rementendo-nos a um dos princípios do realismo grotesco, Bassi opera o
rebaixamento de sua própria autoridade. Outrora detentor das potências cômicas e
racionais, capaz de conduzir a assistência e sacudi-la pelos meandros da provocação, ele
agora realiza a inversão desses processos, dando-se ao exercício derradeiro do ridículo,
transformando seu corpo em alvo de zombaria. Como um dos pombos sacrificados na
narrativa do início do espetáculo, o artista oferece o próprio corpo como território
provocativo, em nome da bufonaria, da reflexão e de seu jogo de risco e choque. Girando e
balançando os braços como um pássaro que bate as asas em pleno voo, ele parece zombar
de si mesmo e, ao mesmo tempo, da tão falada “doçura” dos palhaços.
A atuação de Leo Bassi nos coloca face
Figura 18 - Nosso bufão ao fim do espetáculo Instintos
a face com o ridículo das instituições, dos Ocultos.
costumes, do nosso comportamento como
espectadores e/ou artistas. Perspicaz e crítico,
ele termina o espetáculo num ritual de
escárnio sobre os riscos da docilização que
pairam sobre nós, palhaços contemporâneos.
Lembrando que a referida
apresentação de Instintos Ocultos fora
realizada na noite de abertura de um festival
internacional de palhaços, o ato final de Bassi Fonte: < http://www.joinmagazine.com/artes-escenicas-sin-
fronteras-2013/>. Acesso em 10 mar. 2013.
mostra-se como crítica contundente aos
155

processos de esvaziamento das intensidades clownescas, zombando dos usos deliberados do


palhaço como meio de conformação com a normatividade, quando a palhaçaria assume
perspectiva dócil e funcional, útil aos mecanismos de utilidade e sujeição.
Como vimos em Foucault (2004b), os mecanismos que submetem e conformam
estão atrelados à escala do micro, em relações cotidianas de assujeitamento. Logo, faz-se
necessário que o exercício de intensidades na palhaçaria mantenha-se como um esforço
continuado, mesmo que o corpo reste fustigado e exausto, como ocorre nesse momento
com Bassi.
Este bufão defende a arte da palhaçaria como dinamizadora de potências que
afirmam a vitalidade, a sensorialidade aliada à racionalidade, o encontro instigante e
inesperado com a alteridade. Através de práticas radicais, ele busca romper com os padrões
da chamada normalidade, com o conformismo, em processos capazes de desestabilizar e
“desafinar o coro dos contentes” – apropriando-nos das palavras do compositor Torquato
Neto125.
Perigo, força, liberação, fragilidade são termos que nos parecem coerentes com os
fluxos de afeto e instabilidade gerados por esse bufão, em processos transgressivos capazes
de mobilizar e intensificar a relação entre a experiência cênica e seus espectadores,
indicando, quem sabe, novas possibilidades de ação surgidas de fraturas na tessitura do
assujeitamento. Nas palavras do artista:

[...] quero transmitir que existe um bem maior do que o material, que é o
bem do contato humano, de poder surpreender outras pessoas, criar
mistérios. Quero viver mais momentos assim. Se entre 150 presentes, 100
pessoas só dão risadas, outras 49 deixam o circo pensativas e apenas uma
pessoa tenha sido tocada - em sua cabeça durante muitos anos ficará a
recordação de um homem de 50 anos com gravata, que fazia coisas raras e
falava outro idioma - a mim me basta. Não necessito mais. (BASSI, 2002c,
s/p.).

Um senhor de sessenta anos sem roupa, com o corpo lambuzado e todo coberto de
penas... Bassi abre mão da dignidade e de sua autoridade para escavar lacunas ao
atravessamento dos processos transgressivos. A imprevisibilidade de suas ações caminha

125
Verso da canção Let’s Play That de Jards Macalé e Torquato Neto (1944 – 1972).
156

junto com a criticidade, gerando uma cena intensa e única, produzida por fluxos de contágio
e afetação. Colocando padrões normativos sob a ótica da dúvida e da desagregação, ele
propõe a cada espectador efêmeros exercícios de liberação contra o conformismo, na
perspectiva heterogênea de quem assume os riscos e fracassos de sua prática artística.
Pelos caminhos vou, como o burrinho de São Fernando, um pouquinho a pé
e outro pouquinho andando.
Às vezes me reconheço nos demais. Me reconheço nos que ficarão, nos
amigos abrigos, loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza e
demais vadios e mal cuidados que andam por aí e que por aí continuarão,
como continuarão as estrelas da noite e as ondas do mar. Então, quando
me reconheço neles, eu sou ar aprendendo a saber-me continuado no
vento. [...]
Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.

Eduardo Galeano (2009, p. 269).

Figura 19 - Palhaço Xuxu

Fotógrafa: Laís Costa. Fonte: <http://www.flickr.com/photos/laisdscosta/5744755850/>.


Acesso em 10 jul. 2013.
158

4 – OESTE: Xuxu e as práticas transgressoras de si

4.1 - Uma desgraça colorida

Fim de uma tarde de sábado. O céu começa a escurecer. Um poste antigo, com seu
abajur de metal já meio amassado pelo tempo, ilumina fracamente um palhaço solitário.
Parado, ele observa a rua vazia de uma comunidade carente, sem o movimento habitual de
pessoas caminhando, vozes de crianças, cachorros perambulando apressados ou idosos a
conversar nos portões de casa. Àquela hora do dia, o silêncio havia se instaurado pelas vielas
de terra e poeira, acompanhadas do vento da noite que se pronunciava. Observando a
luminosidade que escapava de uma porta, o palhaço podia identificar uma mulher
debruçada sobre um balcão de madeira, servindo com bebida o copo de um velho senhor
que estava sentado de costas para a rua.
Ao perceber a figura inusitada, de roupas espalhafatosas e nariz vermelho sobre o
rosto, a mulher fizera tamanha cara de espanto que, ao ver sua reação, o homem resolveu
também olhar o que havia chamado sua atenção. Nos segundos que levaram até que o
senhor se virasse completamente, demonstrando estar bêbado, o coração do palhaço
acelerou de tal forma que ele teve de se apoiar na bengala que carregava, disfarçando seu
nervosismo numa caprichada pose de apresentação.
Ao sentir que o casal o olhava fixamente do interior da mercearia, o clown solta um
sonoro e impostado “Boa noite!”, como se sua voz quisesse alcançar de uma só vez os
recantos perdidos daquelas ruas, anunciando ao mundo todo que ali chegara um palhaço.
Fitando aquela figura esdrúxula que acabara de lhe cumprimentar, o homem, do alto de sua
bebedeira, apertou os olhos e fuzilou: “Tu é muito é veado!”.
Ocorrido nos idos de 1978, este episódio126 narra um fato acontecido na primeira
atuação do palhaço Xuxu, contada em diversas ocasiões pelo artista que lhe dá vida, o ator e

126
Podemos encontrar a descrição desse evento em entrevista concedida pelo artista às pesquisadoras Beti
Rabetti, Fátima Saadi e Ângela Leite Lopes, publicada na revista Folhetim, nº 4 (1999); bem como na transcrição
da mesa Do Riso Cotidiano ao Riso da Terra, realizada em julho de 2003 no projeto O Caldo do Humor,
promovido pelo grupo teatral paulista Parlapatões.
159

diretor Luiz Carlos Vasconcelos 127. Durante três meses, o artista nos conta que se arrumava,
maquiando-se e vestindo sua indumentária clownesca – inspirada inicialmente nas vestes do
palhaço Piolin128, do qual Vasconcelos guardava fotos retiradas de uma revista antiga – para,
logo em seguida, perder a coragem de sair, desistindo da empreitada.
Contudo, naquela tarde em que ocorrera o evento supracitado, uma amiga de
Vasconcelos lhe oferecera uma carona de fusca até a entrada da favela do Roger (Paraíba),
local que ele havia escolhido para iniciar suas experiências com o ofício do palhaço. A ajuda
com o deslocamento acabara por tornar sem retorno sua primeira atuação, uma vez que não
havia mais desculpas para adiar a ação. E, depois de vários meses de expectativa, sem
nenhuma formação prévia ou experiência com a linguagem clownesca, ser recebido de
supetão por aquela reação espantada e arisca causara um choque tão grande entre o
palhaço e o casal no interior da mercearia que Vasconcelos quase perdeu as forças.
Diante da intensidade do encontro com a alteridade, esse palhaço se depara com a
imprevisibilidade da experiência cênica, capaz de desestabilizar e romper com qualquer
expectativa ou ideia preconcebida. Nascido em Umbuzeiro, no ano de 1954, interior do
estado da Paraíba, Vasconcelos crescera assistindo ao trabalho de palhaços que se
apresentavam em pequenos circos que circulavam pelos confins nordestinos, em
espetáculos que mesclavam números circenses, comicidade e apresentações de
melodramas.
As sensações de encantamento e medo provocadas pela arte clownesca são
evocadas por Vasconcelos (2005) em imagens que ele assistia ainda menino, junto de sua
mãe, como a lembrança de um número em que um palhaço acertava a cabeça do outro com
uma marreta de proporções enormes, rachando a careca do clown atingido e criando uma
fenda de onde saía fumaça. Mesmo com parcos recursos, aquelas figuras cômicas rompiam

127
Atuando, ao longo de sua carreira, como palhaço, ator e diretor, Vasconcelos recebeu diversos prêmios pela
direção do espetáculo Vau da Sarapalha, adaptação teatral de um conto de Guimarães Rosa. Já realizou
inúmeros trabalhos como ator de televisão, bem como interpretou diversos papéis no cinema, em filmes como
Baile perfumado (1996) e Abril Despedaçado (2001). Esta dissertação abordará somente o trabalho clownesco
desenvolvido por este artista.
128
Nascido na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, a 27 de março de 1897, data que serviria de inspiração à
instituição do Dia Nacional do Circo, Abelardo Pinto (1897- 1973), o Palhaço Piolin é considerado uma das
maiores figuras cômicas da história de nossos picadeiros, tendo sido ovacionado pelos artistas da Semana de
Arte Moderna de 1922. Maiores informações sobre este palhaço podem ser encontradas em Alice Viveiros de
Castro (2005) e Roberto Ruiz (1987).
160

com as escalas da realidade, instaurando mundos fantásticos, surpreendentes e


apavorantes.
A potência daquelas ações atraía e assustava Vasconcelos, marcando suas
impressões e memórias acerca da capacidade clownesca de gerar intensidades. Contudo,
mais de duas décadas depois, ao iniciar seu trabalho como palhaço, ele experienciava agora
um novo aspecto dessa arte, talvez ainda mais aterrador. O artista se deparava com a força
de ser afetado, de receber no próprio corpo o inesperado trazido pela alteridade, em fluxos
capazes de desestabilizar. Ao tratar da provocação sofrida por ele em sua primeira atuação
como palhaço, Vasconcelos discorre:

Você sabe quando você sofre uma decepção muito grande que sua perna
perde a força? Me destruiu, me destruiu, a pose fez assim, Uóoohooo...
Nessa hora eu só tinha duas opções: ou eu corria em direção àquela favela,
ou eu corria chorando para trás, que eu sou mais propenso a voltar
chorando correndo. Mas aí eu disse nessa hora deve existir um deus dos
palhaços, porque eu tenho certeza que esse me deu um pontapé na bunda
em direção à favela: “Vai frouxo!”. (VASCONCELOS, 2003, s/p.).

Talvez evocando a violência inconsequente dos palhaços que povoavam a sua


memória, e também como resposta à provocação que o homem lhe infligira, num átimo de
reação Vasconcelos sai gritando pelas ruas da favela, brandindo ameaçadoramente sua
bengala. Esta ação serviria para chamar a atenção dos moradores no interior de suas casas,
causando-lhes um grande susto. Aos poucos, numa atmosfera de mistério, temor e
curiosidade, as pessoas foram se aproximando para observar aquele ser extraordinário que
ali se presentificava, dando início à instável relação entre um clown e o mundo que o cerca.
É curioso observar que a afronta do homem ébrio desafiava Vasconcelos no tocante
ao gênero, associando o espaço da diferença, trazido pela presença excêntrica do palhaço,
com as instabilidades existentes entre o conceito de masculino e feminino. Um homem
maquiado, vestido de forma espalhafatosa e, ainda, fora de qualquer ambiente teatral ou
circense, era estranho demais aos padrões da chamada ‘normalidade’. A existência daquele
161

clown ali, por si só, já era capaz de operar violações nos padrões normativos, escavando e
revolvendo valores, costumes e visões de mundo 129.
Figura estranha ao meio em que começava a se inserir, aquele palhaço, pelo
inusitado de sua diferença, operava, ainda que não o soubesse, redes de desagregação.
Instaurando mundos e abrindo lacunas na tessitura aparentemente estável da vida
cotidiana, o clown rompe com a perspectiva útil e funcional dos acontecimentos anódinos.
Vasconcelos (2003) nos conta que os moradores locais achavam, inicialmente, que aquele
palhaço estava ali para fazer propaganda de alguma loja da cidade. Contudo, a singularidade
de sua presença ia sendo ampliada junto às pessoas na mesma medida em que elas
percebiam que aquela ação nas ruas da comunidade não possuía função objetiva ou
utilidades delimitáveis.
No primeiro capítulo desta dissertação, vimos uma perspectiva possível sobre as
qualidades transgressoras clownescas em suas ações sutis, as quais não se dão
necessariamente em relações explícitas de força ou provocação. Ao tratarmos da mudança
de estados do clown sem justificativa psicológica, acreditamos que essa dinâmica pode criar
fissuras nas lógicas de sentido, causando estranheza e violação dos padrões. Pensando na
experiência inicial de Xuxu, podemos vislumbrar outra dimensão a esse questionamento,
quando a própria presença do palhaço pode gerar deslocamentos e desequilíbrios.
Figura geralmente associada às artes da cena, seja no teatro ou nas arenas
circenses, a transposição da atuação clownesca para espaços públicos parece-nos propiciar
uma abertura específica à criação de zonas de instabilidade. Mesmo sem qualquer ação mais
drástica além de seu tão ensaiado “boa noite”, o encontro entre a figura de Xuxu e o
ambiente daquela comunidade já era capaz de produzir intensidades desestabilizadoras.
O clown que atua em lugares públicos, como ruas, praças, hospitais, pode produzir
relações de contágio entre as instâncias da vida e da experiência artística, gerando fluxos de
afetação e atrito entre o palhaço e as regras do espaço em que ele está atuando. Não
podemos esquecer, contudo, que os locais públicos são zonas de experiência coletiva que
não oferecem àquele artista a mediação dos aparatos cênicos, o que, por um lado, é capaz

129
Resguardando-se as devidas distâncias, a atuação do palhaço em ambientes hospitalares também opera
com essa lógica, quando a presença extraordinária do palhaço é capaz de gerar atritos e experiências potentes,
em relações de aproximação e fricção com as regras disciplinadoras e padrões hierárquicos do hospital.
162

de intensificar a sua relação com a alteridade, e, por outro, pode criar fragilidades nesses
movimentos de troca.
Nos espaços públicos, os espectadores/transeuntes são de natureza dinâmica, pois
eles não se deslocaram até o edifício teatral com o objetivo de participar daquele evento
artístico, por exemplo, mas foram surpreendidos pelo inusitado da intervenção clownesca.
Logo, os vínculos do ritual cênico nesses casos são ainda mais tênues, atinentes à
efemeridade do jogo, em microrrelações estabelecidas ou não com cada
espectador/jogador. Portanto, aumentam as dificuldades e demandas em relação à atenção
e porosidade do artista.
Entendemos o espaço público a partir do conceito desenvolvido por Michel de
Certeau (1998) sobre a Cidade, a qual seria constituída não por aglomerações de pessoas ou
instituição dos poderes públicos, mas, por conjuntos de operações e adensamento de trocas
intersubjetivas. O espaço público não como território estanque, mas multiplicidade de
fluxos. Dentre essas dinâmicas, o autor afirma que alguns feixes de trocas se destacariam
como fluxos identitários daquela respectiva coletividade, construindo as noções de tradição
de uma cidade, com valores e padrões comuns a seus sujeitos. Assim, é sobre esses fluxos
“tradicionais e identitários” do lugar público que a ação clownesca pode gerar operações de
aproximação e atrito, em práticas transgressivas que desestabilizariam a normatividade
dominante.
Produzidos em diálogo com o espectador, como é próprio do palhaço, esses
processos instáveis e delicados podem desorganizar as percepções comuns – da assistência e
do próprio artista - sobre a realidade. A contaminação e as fricções geradas entre as ações
extraordinárias do clown e os fluxos identitários de determinado espaço são capazes de
operar rasgos nos limites da utilidade, nas linhas da racionalidade funcional e das lógicas de
sentido determinado.
Pensando, por exemplo, no palhaço Tomate, analisado em nosso primeiro capítulo,
este clown chama a atenção pela estranheza de sua indumentária, por suas naturezas
cômicas sarcásticas e subversivas. Como vimos, ele atua operando com o exagero, chegando
a transitar pelo campo do fantástico. Contudo, a impressão que temos é que, separado da
plateia pelo palco de tipo italiano, ele constrói sua atuação num lugar que já é dado à criação
da fantasia e do sonho, que é o edifício teatral. Mesmo operando de maneira potente com a
163

estranheza e a falta de lógicas claras imaginamos que, se ele atuasse, por exemplo, nas ruas
do Roger, ou numa praça pública, a bizarria de sua apresentação poderia ser ainda mais
ampliada, entrando em forte atrito com a ilusão de estabilidade do cotidiano.
Em relação a Jango Edwards e Leo Bassi, estes também desenvolvem ações em
espaços públicos, como é o caso dos festivais de artes de rua promovidos por Jango em
Amsterdam ou do Bassibus que prometia um passeio junto com o bufão “pelo pior de
Madri”. Pela escassez de registros das práticas desses artistas em locais públicos, nossa
dissertação optou pela análise de dois espetáculos realizados em palco italiano, os quais,
como pudemos observar, operam por si só grandes aproximações entre a comicidade e as
instâncias transgressoras. Todavia, podemos imaginar que, pelas configurações instáveis e
provocadoras produzidas por esses dois artistas, é provável que suas dinâmicas ganhem um
caráter específico e também potente ao serem realizadas fora dos edifícios teatrais.
Ressaltamos, ainda, que não objetivamos entender as atuações clownescas em
locais públicos como instâncias resguardadas das problemáticas de empobrecimento das
intensidades do clown. Conforme temos visto ao longo de nossa pesquisa, os processos de
esvaziamento das potências clownescas podem se dar no âmbito de qualquer palhaço ou
lugar em que este desenvolva suas práticas. Vasconcelos toca nessa problemática ao falar
sobre as atuações na rua: “Esse é o grande perigo: todo mundo na frente do palhaço
dizendo: Olha, me faz rir. E te infantilizam. É muito difícil lidar com isso, se manter íntegro,
cidadão.” (VASCONCELOS apud KASPER, 2004, p. 220).
Quando o espectador – ou o próprio artista – associam o clown à comicidade e ao
risível, como premissas necessárias e principais, há aqui, de certa maneira, um
enquadramento daquela figura nas zonas do “conhecido”, neutralizando as intensidades
clownescas capazes de surpreender e desestabilizar o fenômeno cênico. Nesta perspectiva
enfraquecedora, o palhaço tende a ser rapidamente entendido, interpretado e
compartimentado em noções ocas e cristalizadas que jamais poderiam dar conta da
experiência viva da atuação cênica.
As práticas transgressivas entendidas como resistência ao esvaziamento das
potências do palhaço vêm tratar também dessas perspectivas, da quebra de automatismos
em relação ao clown, quando essa figura pode ser analisada como possibilidade de abertura,
não como fechamento ou ordenação.
164

Além disso, esses embates de forças que, como dissemos, são da ordem do micro,
são capazes de operar a desestabilização das duas instâncias que comungam da experiência
cênica, ou seja, o espectador e o palhaço que atua. A ação transgressiva pode ser provocada
pelo palhaço, mas as ondas de reverberação a partir de seu gesto vão atingir tanto o
espectador como o clown.
Retomando nosso exemplo inicial, o choque ocasionado pela reação do senhor
bêbado ao provocar Vasconcelos, palhaço Xuxu em devir, destaca como a relação
palhaço/espectador cria uma área instável aos envolvidos nesse processo comunicacional.
Conforme relata esse artista (2003), com “um banho de água fria” que a agressividade do
homem causara, Vasconcelos se viu empurrado ao universo da experiência, sendo afetado e
reagindo de maneira quase irracional, contaminado pelos fluxos caóticos no quais se viu
envolvido.
O episódio nos remete às palavras de Orestes Barbosa sobre os palhaços, evocadas
por Ruiz (1987), pois, nessa primeira atuação de Vasconcelos com a linguagem clownesca,
mesmo que de forma ainda incipiente pela ausência de experiências prévias, não resta
dúvida de que, diante daquela velha mercearia, já se encontrava “Um palhaço, que é quase
sempre uma desgraça colorida.” (BARBOSA apud RUIZ, 1987, p. 92).
Infortúnio risível evocado pela frase supracitada que tanto pode ser entendido à luz
das dificuldades atinentes a essa técnica, quando o clown experimenta, na própria carne, a
dor e o desafio de trabalhar artisticamente com o erro, a inadequação, a abertura para a
diferença. Como pode também ser estendido ao âmbito dos espectadores, quando o
palhaço lhes traz a percepção de que seus entendimentos e visões de mundo foram
desarticulados, fazendo surgir o riso, mas também o incômodo, como nos parece ser o caso
do homem que tentou ofender Vasconcelos, renegando aquela possibilidade do
heterogêneo.
Experienciando em seu corpo os desafios e as dificuldades que permeiam os
processos de afetação da técnica clownesca, Vasconcelos realizou durante quatro anos suas
saídas pelo bairro do Roger, favela de João Pessoa, capital paraibana. Atuando
semanalmente nos dias de sábado, de três da tarde até às dez da noite, ele foi
estabelecendo, entre alegrias e desacertos, um aprendizado de ordem empírica acerca da
palhaçaria. Conhecendo, com o seu fazer, os meandros da linguagem clownesca,
165

Vasconcelos tornou-se um dos artistas cênicos pioneiros no Brasil em relação ao


desenvolvimento do palhaço fora da tradição familiar circense.
Analisar o trabalho deste palhaço é, portanto, adentrar em um universo artístico
cheio de particularidades, exemplo de como a palhaçaria pode criar redes de aproximação e
tensionamento entre arte e vida, violando fronteiras, conforme podemos observar ao
adentrarmos pela biografia do artista em questão130.
Mudando-se de Umbuzeiro para a cidade de João Pessoa, aos treze anos de idade,
Vasconcelos iniciou sua carreira artística no teatro amador e, em 1977, seu grupo teatral
ganhou um prêmio em dinheiro no Festival Nacional de Teatro, na Bahia. Com essa quantia,
eles abriram uma sede para suas atividades, ocupando clandestinamente as instalações de
um antigo convento desativado localizado na comunidade do Roger. Ali, Vasconcelos e seus
parceiros criaram a Escola Piollin 131, onde o artista em questão ministrava aulas de teatro
para as crianças que moravam naquela localidade.
Funcionando como um espaço cultural não institucionalizado, sem auxílio estatal, a
Escola Piollin passou a movimentar a vida artística de João Pessoa, com ações recorrentes
não somente na área de artes cênicas, mas também atraindo o trabalho de artistas plásticos,
músicos, bailarinos. Prosseguindo com as atividades teatrais dentro da Piollin, Vasconcelos e
seu grupo montam o espetáculo A viagem de um barquinho, de Sylvia Orthof, e, para atrair a
atenção dos moradores do Roger, chamando-os para as apresentações, o artista passa a sair
vestido de palhaço junto com seu parceiro Nanego.
Vasconcelos e Nanego criaram, então, a dupla Xuxu e Dengoso, nomes comuns aos
palhaços de circo que, na época, circulavam pelas cidades do Nordeste. Assim como os
clowns circenses andavam pelas ruas da cidade para divulgar os espetáculos da noite, a
dupla de palhaços da Piollin também ia buscar os espectadores da comunidade, atraindo a
plateia. Os dois artistas, após convocarem a população, voltavam rapidamente para trocar

130
As informações biográficas contidas neste capítulo foram retiradas de entrevistas concedidas por
Vasconcelos, elencadas em nossas Referências bibliográficas.
131
Referência ao palhaço que serviria de inspiração ao ofício clownesco de Vasconcelos, a Escola Piollin é
transferida, a partir de 1980, ao terreno de um antigo engenho de cana-de-açúcar, vizinho ao Parque
Zoobotânico da capital paraibana, ainda no Bairro do Roger, funcionando até a presente data como Centro
Cultural Piollin. Maiores informações podem ser obtidas no site do grupo: <http://www.piollin.org.br/>. Acesso
em 13 fev. 2013.
166

de roupa e entrar em cena, o que desapontava muitos da assistência que esperavam ver
aquelas figuras cômicas também durante o espetáculo.
Dessa experiência surge a ideia de Vasconcelos (2005) de iniciar suas saídas de rua
como palhaço, partindo de um desafio concreto que se apresentava aos artistas da Escola
Piollin: como potencializar a relação com aquela comunidade carente onde a sede do grupo
estava localizada? Segundo o artista, apesar do sucesso das apresentações, quando os
atores retiravam suas indumentárias e vinham cumprimentar os moradores, estes se
retraíam, olhando-os como diferentes, havendo dificuldades na comunicação de ambos os
lados.
Diante da necessidade de estabelecer redes de afetos com a população do Roger,
Vasconcelos põe em prática o projeto de sair pelas ruas da comunidade vestido de palhaço,
nos dias de sábado, sem objetivo ou função além de criar relações e fluxos de interação com
aquelas pessoas. Em entrevista à Kasper, ele afirma:

[...] ia para a rua apenas com energia de ator, de se colocar a cantar e


andar, tudo muito grande... O violento surgia em situações de maior tensão
– eu tinha que me impor de alguma forma! - mas a relação era toda muito
afetiva, você via, as portinhas iam se abrindo e as mulheres, mães,
aparecerem todas com um sorriso e mandar entrar e a te receber como
uma visita, o Xuxu, isso era muito estafante fisicamente, mas tinha um
prazer... (VASCONCELOS apud KASPER, 2004, p. 216-217).

Vasconcelos se lançava ao exercício da alteridade, buscando construir jogos e


relações que tensionavam empiricamente noções como a coragem de se permitir o encontro
com o outro, a cumplicidade gradualmente conquistada junto a seus interlocutores, o prazer
do jogo. Como destaca Puccetti (2000, p. 92): “Quando o clown está inteiro na relação com
ele mesmo, conectado com seus impulsos e sensações, e também pleno na relação com o
público, neste momento, os dois lados estão em transformação, ninguém é mais o mesmo”.
A inteireza de que nos fala o pesquisador supracitado nos aparece como uma
constituição porosa, flutuante e vazada, permitindo, no caso de Vasconcelos, a produção de
atravessamentos sobre a vida daquela população. Adentrando no cotidiano daquelas
pessoas e por elas também sendo atravessado, o artista foi aprendendo, na prática, a lidar
com essa dimensão que é inteira e, ao mesmo tempo, incompleta, passando a exercitar, por
167

meio da linguagem clownesca, as dinâmicas de conexão consigo mesmo e com o outro.


Ainda nas palavras de Vasconcelos (apud KASPER, 2004, p. 219):

[...] é um exercício de sobrevivência, ou de manutenção dessa energia do


palhaço [...] eu não conseguia avaliar, na época, o que se passava
realmente, que aventura louca era essa e que grande exercício de criação,
vivo, porque não era uma coisa ensaiada para ser feita, eu nunca me vestia
de Xuxu que não fosse para atuar. E é natural que isso vá se transformar
num projeto de vida.

Abrindo-se ao desconhecido, sem ensaios, nem amparado por roteiros de ações ou


“cenas”, Vasconcelos vai trabalhando com o palhaço na criação de afetos, em composições e
decomposições que, no sentido ético de Foucault (2006), vão constituindo os próprios
modos de existência do artista. Acompanhando e misturando-se à vida de Vasconcelos, o
palhaço Xuxu embaralha por contaminação as instâncias da arte e da existência, em relações
de constante intensidade e desafio.
Já morando no Rio de Janeiro, a partir de 1984, onde residiria por dez anos,
Vasconcelos realizou estudos na
Figura 20 - Xuxu, palhaço cidadão.
Escola Nacional de Circo,
aprendendo o uso do monociclo,
bem como técnicas de equilíbrio
e malabarismo, além de
desenvolver seu aprendizado
musical a partir do fole de oito
baixos. Práticas e aptidões que
foram sendo incorporadas às
Fotógrafo: Fábio Ribeiro Corrêa.
atuações de Xuxu.
Fonte:<http://fabio85mm.blogspot.com.br/2012/05/palhacada.html>.
Ademais, as dinâmicas Acesso em 11 jul. 2013.

de contágio também aparecem impressas em Xuxu quando Vasconcelos começa a


desenvolver o que chama de palhaço cidadão. Produzindo diversos materiais que misturam
e friccionam ainda mais as lógicas clownescas extraordinárias e a vida corrente, ele passa a
carregar uma mala cheia de apetrechos, entre eles, um documento de identidade próprio do
palhaço – como podemos ver na figura acima, o qual é carregado junto com os documentos
168

civis de Vasconcelos, para o caso de alguma “emergência real”, segundo o artista - além de
objetos como grandes agulhas de tricô que o clown utilizava para costurar de verdade
enquanto viajava de ônibus pela cidade do Rio de Janeiro.
Mantendo o ritual que criara nas atuações do bairro do Roger, ele saía do ponto de
partida, sua casa no bairro de Laranjeiras, já pronto como Xuxu, andando pelas ruas,
interagindo com os passantes, e utilizando o transporte público até chegar a seu destino
final. “Xuxu sai domingo para trabalhar”, dizia a meninada que esperava na janela para vê-lo
passar. E ele ganhava presentes, recebia correspondências endereçadas ao palhaço, cartas
escritas não só pelas crianças, mas também pelos adultos, vizinhos. Amigos e relações que
Vasconcelos (2003) ressalta, faziam parte do universo específico de Xuxu, nem sempre do
ator.
Ele lembra emocionado da figura de Seu Pereira, avô de um menino que estudava
na Escola Piollin e que nunca dirigiu a palavra ao artista nos eventos que eram realizados na
escola, mas que, todos os sábados, durante a atuação clownesca, abraçava-se a Xuxu e
chorava em seu ombro. Mesmo sabendo que Vasconcelos e Xuxu eram o mesmo ser - ainda
que em movimentos de aproximação e distância - era com o palhaço que o velho senhor se
permitia a relação de afetação.
Assim, entendemos que Vasconcelos e seu palhaço movimentam relações ligadas
ao que Cassiano Quilici (2010) chama de “arte da existência”, técnicas e práticas que
articulam o fazer artístico para além do campo estético, mas, numa perspectiva ontológica,
investigam a própria natureza do fazer e agir humanos, desvelando potencialidades.
Conforme o pesquisador nos esclarece:

A relação arte-vida não é pensada aqui apenas como aproximação entre o


produto artístico e o cotidiano [...]. É o próprio cotidiano que ganharia
outros caminhos de ser percebido e experienciado. A arte como modo de
criar e cuidar das nossas formas de relação com o mundo e conosco
mesmos. [...] Um agir renovado que começa na mudança de qualidade da
própria percepção. (QUILICI, 2010, p. 6).

A presença do palhaço Xuxu, desde as primeiras atuações no Roger, e,


posteriormente, no trabalho clownesco continuado no Rio de Janeiro, realizava um
atravessamento sobre os hábitos cristalizados, sobre as percepções funcionais e
169

decodificadas do cotidiano daqueles que estavam a sua volta. Práticas de violação que eram
capazes de movimentar as formas de relação que aquelas pessoas e o próprio artista
mantinham com seus modos de existir.
Dessa forma, pelas complexidades que opera, Vasconcelos/Xuxu foram se tornando
referência para a linguagem clownesca nacional em mais de trinta anos de atuações e
espetáculos. Do potente aprendizado das práticas e saídas de rua vem grande parte do
repertório de números apresentados pelo artista em Silêncio Total! Vem chegando um
palhaço, a ser analisado a seguir. Investigaremos, nas próximas páginas, alguns dos afetos e
intensidades que entendemos presentes no trabalho clownesco de Vasconcelos, desejando
pensar como se dão as especificidades que este palhaço apresenta em relação às práticas
transgressivas.

4.2 - Instabilidades transgressivas e o Outro em mim

Os números cômicos que compõem Silêncio Total! Vem chegando um palhaço 132
são permeados pela realização de técnicas circenses, como o monociclo e o equilíbrio de
objetos, bem como por apresentações musicais, quando ele toca seu fole de oito baixos.
Contudo, uma das grandes particularidades do espetáculo refere-se à participação de
crianças da plateia como necessárias à execução dos números cômicos, relações que criam
riscos e espaços de instabilidade ao próprio Xuxu, como veremos a seguir.
Já nos primeiros momentos da obra, quando o clown surge no meio da praça,
conversando com os espectadores, ele se apresenta de uma forma muito peculiar, sendo
galante com as mulheres e rude com os homens. O palhaço arruma seu cabelo (uma peruca
utilizada pelo artista), pergunta se está bonito, e conversa com algumas mulheres da
assistência como se as estivesse cortejando133.

132
Este capítulo se referirá à apresentação realizada no dia 11 de maio de 2012, no Largo do Machado, Rio de
Janeiro. Esta dissertação não obteve acesso ao registro videográfico do espetáculo. No DVD em anexo constam
três vídeos de trechos de atuações de Xuxu retiradas da WEB. Não nos foi possível reunir todas as cenas citadas
neste capítulo.
133
É curioso lembrar a agressão sofrida por Vasconcelos questionando seu gênero em sua primeira atuação,
ainda na década de 1970, e observar como, no decorrer dos anos, ele se tornara um palhaço que mantém uma
relação muito particular com relação ao sexo feminino. A força daquela experiência inicial parece ter
170

Às vezes, ele também provoca alguma espectadora que esteja acompanhada,


indagando como “uma moça tão simpática pode estar satisfeita com isso”, referindo-se ao
parceiro da mulher. Em diversos momentos este clown interrompe sua ação para comentar
da feiura de determinado espectador do sexo masculino e, vira e mexe, ao longo da
apresentação, pergunta se determinado homem da assistência “nasceu daquele jeito
mesmo”.
Todavia, essa espécie de rudeza provocadora não se limita ao trato com os adultos,
pois, também em relação às crianças, as quais compõem boa parte da plateia, Xuxu mantém
um tipo de atitude menos afetuosa e doce, surpreendendo o que se esperaria de um
palhaço que atua com espectadores infantis. Por ter iniciado o espetáculo cumprimentando
alguns espectadores, um grande número de crianças começa a chamar pelo clown, num
alvoroço crescente, também desejando que ele cumprimente ou aperte a mão de cada uma,
o que seria inviável à continuidade do espetáculo.
Nessas horas entra em ação o bordão pelo qual Xuxu é conhecido e que dá nome ao
espetáculo. Todavia, mesmo exigindo por diversas vezes que se fizesse “Silêncio Total!”, é
difícil para o palhaço lidar com a instabilidade dos protestos infantis e, para seguir com os
números, ele acaba por não dar atenção às crianças mais teimosas que insistem em repetir
seu nome obstinadamente em vários momentos da peça.
Entendemos que aqui há uma perspectiva objetiva assumida por esse palhaço, pois,
se Xuxu fosse parar o curso de sua atuação para se relacionar especificamente com cada
menino ou menina, o espetáculo restaria impossibilitado. Contudo, não estamos afirmando
que esse palhaço se feche às relações com o público infantil, mas há em sua apresentação
uma espécie de negociação, quando o artista acaba por selecionar com quais crianças
estabelecer um contato mais denso.
Essas seleções são fluidas, operadas em ação, na dinâmica do jogo, o qual, como
lembra Caillois (1967), implica cálculos e escolhas que transitam entre a prudência e a
audácia, opções moventes que determinarão “[...] em que medida o jogador se dispõe a
apostar mais no que lhe escapa do que naquilo que controla.” (CAILLOIS, 1967, p. 11).

influenciado sobremaneira o modus operandi desse clown, reverberando até os dias de hoje, como se o
“afeminado” tivesse respondido àquela provocação tornando-se um galanteador das mulheres.
171

O trabalho clownesco de Vasconcelos é dotado de muitas complexidades, pois, por


um lado, Xuxu se impõe com autoridade junto à plateia, pedindo silêncio por diversas vezes,
dando-nos a conhecer as regras do seu jogo. Todavia, num outro viés, esse palhaço
estabelece relações muito próximas com os espectadores, cumprimenta-os, conversa com
vários deles, criando uma porosidade cênica capaz de abrir espaços aos descontrole e à
incerteza. Assim, Xuxu transita por jogos onde as tentativas de organização e abertura ao
que lhe escapa estão em trânsito contínuo. E, em certas ocasiões, aquilo que lhe foge ao
controle se impõe de maneira imperiosa, como veremos no exemplo a seguir.
Em determinado momento do espetáculo, uma menina de cerca de três anos de
idade se desprende dos braços da mãe e invade a cena, indo até o clown que se preparava
para iniciar um número musical com seu fole. Numa tirada quase instintiva Xuxu pergunta de
forma calma, mas objetiva “Quem te chamou aqui?”. A criança automaticamente dá meia
volta e retorna correndo para a plateia, chorando convulsivamente. Os espectadores riem da
situação, mas o palhaço fica desconcertado com a reação da garotinha. Ele vai até a menina
e tenta remediar a situação, dizendo que “era só uma pergunta” e que “não é pra ficar desse
jeito”, mas o estrago já estava feito e vemos o artista num lugar desconfortável, sem saber
exatamente como proceder diante daquela problemática.
Este foi, para mim, enquanto pesquisador e palhaço, um dos momentos mais
instigantes da apresentação, pois este clown carrega uma agressividade que eventualmente
eclode no encontro com o espectador, mas, ao mesmo tempo, percebe-se aqui como essas
redes de força são instáveis e inacabadas ao próprio Vasconcelos. A rudeza de Xuxu
possibilita a criação de relações outras do que aquelas mais afetuosas que costumam ser
ligadas à figura clownesca, surpreendendo a plateia e o próprio artista.
Aqui, por exemplo, o público ri e aceita a postura do palhaço, aceita sua diferença
em relação ao tratamento de acolhimento geralmente dado às crianças em nossa sociedade.
Mas, é Vasconcelos que se sente incomodado com a situação, necessitando, de certa
maneira, desculpar-se com a criança. Parece-nos que, ao falar novamente com a menina, ele
tenta restabelecer o vínculo que a pequena fora buscar ao adentrar o espaço cênico e que
Xuxu havia interrompido. Era nítido como não havia fórmulas prontas que pudessem dar
conta dessa complexidade de afetos, não só para a assistência, mas, sobretudo para o
artista.
172

Voltando ao evento ocorrido na primeira atuação clownesca de Xuxu, Vasconcelos


ressalta que, diante da provocação do bêbado, sua reação instintiva fora a de enfrentar o
medo e a frustração “no grito”, brandindo ameaçadoramente a bengala enquanto corria
pelas vielas da favela, numa experiência nova tanto para ele, como para os moradores do
Roger, situação inusitada “[...] muito violenta, muito agressiva, um homem de cara pintada,
vestido de palhaço – ‘Oi que cheguei eu!’ - e levantando o pau e tudo grande: ‘Ninguém me
vence!’. Tentando marcar presença pela força mesmo.” (VASCONCELOS apud KASPER, 2004,
p. 218).
O artista destaca que o próprio fazer foi lhe ensinando, no decorrer dos anos, a
percepção de como dosar suas ações e reações, na busca por medidas mais justas ao jogo
clownesco. Contudo, podemos perceber que a agressividade ainda é capaz de atravessar as
ações de Xuxu, abrindo ao artista o campo do inesperado. Aparecendo em momentos de
grande espontaneidade, como no exemplo supracitado da menina que sai chorando devido
às palavras do clown, as qualidades ásperas e rudes desse palhaço desconcertam não só a
plateia, mas o próprio Vasconcelos. Segundo ele, a consciência acerca da agressão em seu
trabalho e como ela estava relacionada à pessoalidade do clown somente se fez presente ao
longo de sua trajetória, processo de formação que, como temos visto, manifestou-se de
forma empírica, calcado em fluxos de experimentação:

Foi muitos anos depois de já estar fazendo o palhaço que eu, um dia, numa
sessão de terapia, disse: “Não! Mas sou eu!” quer dizer, tudo aquilo é meu.
Eu sempre achei que era do personagem, aquela vaidade toda, aquela
violência, aquela agressão com as pessoas, e levei muitos anos para
entender que não, aquilo sou eu na minha essência. Toda aquela
estupidez... E talvez seja essa a resposta... Talvez Xuxu funcionasse por isso,
porque era verdade, eu não estava inventando nada. (VASCONCELOS, 2003,
s/p.).

É curioso notar que as palavras supracitadas foram proferidas pelo artista numa
mesa redonda realizada no ano de 2003 e, nove anos mais tarde, ao apresentar o espetáculo
que estamos analisando, as questões relativas à agressividade de Xuxu ainda são capazes de
surpreender e perturbar Vasconcelos. No exemplo investigado, a menina invade a cena e
corre para junto do palhaço, e este reage ao evento, não a acolhendo, mas recuperando seu
espaço de atuação. Ao indagar à garota quem havia lhe chamado até ali, sua ação não foi
173

exagerada, ou excessivamente rude, mas representou uma recusa que foi suficiente para
causar o choro na criança. A assistência não se ressentiu ou desestabilizou com o
acontecimento, mas o artista sim.
Os fluxos de afeto entre Vasconcelos e seu palhaço são de tal dinamismo que as
lógicas clownescas de Xuxu acabam por desestabilizar ao próprio artista, violando, talvez, as
suas concepções de mundo. Embora utilize o termo “essência” ao tratar de características
como violência, vaidade e agressividade, podemos entender que esses movimentos internos
não constituem para Vasconcelos um núcleo interior delimitado e limitante, mas, ao
contrário, constituem intensidades que irrompem com a potência desnaturalizadora do
“Outro que há em mim”.
Frédéric Gros discorre sobre as principais perspectivas abordadas por Michel
Foucault em seu curso no Collège de France, no ano de 1982, e que daria origem à obra A
Hermenêutica do Sujeito (2006). Um dos pontos levantados por Gros diz respeito à noção de
daímon, evocada também em outras obras do filósofo 134 como uma espécie de divindade
interior à qual deveríamos respeitar. Este conceito traz a imagem de um sujeito dentro do
sujeito, estando em nós como um outro, corte do eu para consigo. Assim, haveria uma
alteridade dentro de nós mesmos, constituída como o Outro que habita em mim, e que é
capaz de desarticular e criar instabilidades em relação as nossas representações identitárias.
A própria trajetória de Vasconcelos com a palhaçaria nos dá pistas de que Xuxu
transita por aberturas à alteridade, porém, o que nos aparece no exemplo analisado é que o
artista se sente desestabilizado ao se deparar com a própria alteridade de si mesmo. Em
micro situações como essa, em que, por exemplo, a rudeza espontânea do palhaço eclode
sem pedir licença, Xuxu parece dar corpo a esses outros de si, lançando Vasconcelos em
territórios desconfortáveis de incertezas e desorganização.
Parece-nos que as práticas transgressivas ocorrem aqui numa configuração diversa
das que investigamos até agora em nossa dissertação, quando o jogo de limites e violações
ocorre por choques e reverberações do desconhecido no interior do próprio palhaço.
Pensando no trabalho dos outros artistas investigados, Jango Edwards e Leo Bassi, estes se
mantém em constante relação com a plateia, tensionando as instabilidades dessa ligação,

134
Foucault cita o conceito de daímon em A Hermenêutica do sujeito (2006), bem como em O Governo de si e
dos outros (2010).
174

quando exercitam a autoridade em cena, guiando e influenciando o comportamento da


assistência para criar as situações necessárias à presentificação das intensidades cênicas.
Todavia, nos dois espetáculos analisados, tanto Jango como Bassi criam eventos que causam
insegurança no espectador, tirando-o de áreas confortáveis, mas, não chegamos a perceber
momentos de abertura em que essa dinâmica possa ser invertida. Não é dado à plateia o
poder de desestabilizar o jogo destes dois artistas.
Ressalte-se que não desejamos realizar nenhum tipo de juízo de valor ou
comparação qualitativa sobre as práticas artísticas de Jango, Bassi e Vasconcelos. Nosso
objetivo é observar junto com o leitor como as práticas transgressivas na linguagem
clownesca envolvem dinâmicas complexas e multifacetadas, pensando suas especificidades
em relação ao ofício de cada um dos artistas analisados.
Em Xuxu, por sua vez, a atuação se opera por meio de lacunas e contaminação
entre o palhaço e a assistência. Este clown se mostra capaz de produzir zonas de
instabilidade não somente à plateia, mas também a Vasconcelos, quando, diante do
inesperado de sua própria alteridade, ele parece transitar por sensações como o espanto, a
insegurança e o incômodo. As fissuras geradas por esses ecos e reverberações da
(des)conexão palhaço/artista nos remetem às palavras de Alípio de Sousa Filho ao tratar das
experiências que, no processo do conhecimento, propiciam um “deixar escapar” sobre o
conhecido:

Extraviar-se, perder-se de si, perder seus conceitos anteriores, pensar seu


próprio pensamento, suspender suas próprias crenças, relativizar o que se
sabe, relativização de si mesmo, das formas, das verdades aceitas, das
hegemonias do mundo - êxtase de uma descoberta[...]. (SOUSA FILHO,
2008, p. 22).

A fluidez de afetos gerada pelas práticas transgressivas de Xuxu engendram jogos


de força entre Vasconcelos e o que lhe escapa, entre descobertas e extravios do artista e
seus “outros de si”. Autotransgressão que nos parece longe de constituir uma busca pela
fixação e catalogação de interioridades, suposto ‘dentro’ que morre de medo de se perder,
como diria Rolnik (2011). Mantendo suas porções de inesperado e desconforto, o próprio
intérprete transita por uma cena desestabilizadora, para ele e sua assistência.
175

Embora Vasconcelos, na fala supracitada, discorra sobre a surpresa de perceber que


aquelas características que o desestabilizam em Xuxu fazem parte dele mesmo e não de uma
criação exterior, entendemos que não há uma aderência inconteste entre artista e palhaço
em seu trabalho, configurações que permitem, justamente, a eclosão das relações de
instabilidade.
A palhaçaria trabalha com o exercício e ampliação das naturezas cômicas e ridículas
daquele intérprete, mas, essas naturezas fluidas não estão coladas ao artista. Muito menos a
linguagem clownesca deve se constituir num esforço para encurtar ou neutralizar essa
separação. Apesar de não se referir especificamente à palhaçaria, a pesquisadora Tatiana
Motta Lima trata desse jogo de aproximação e afastamento em relação às técnicas atoriais,
em passagem que nos parece coerente com a construção de nosso entendimento:

Parece que sem um ‘espaço’, sem uma certa ‘distância’, não há como
acolher ou aproximar-se da alteridade, mesmo do que podemos
experimentar como nossa própria alteridade, ou seja, aquilo que é
desconhecido em nós. Sem essa distância, o corpo do ator transforma-se no
que venho experimentando chamar de um ‘corpo-imã’ e todos os eventos e
acontecimentos são lidos a partir da sua personalidade já conhecida, são
rapidamente anexados a sua ‘pessoalidade’. O ator acredita-se único
produtor e beneficiário preferencial dos acontecimentos [...] (MOTTA LIMA,
2009, p. 32).

Podemos notar que essa busca por aderência parece ser um dos objetivos dos
processos que utilizam o clown como “descoberta de si”, em tentativas de justaposição
entre palhaço e intérprete, como se uma instância constituísse reflexo inequívoco da outra,
o clown como meio de expor ao mundo meu ‘eu-essência’. Esses processos de construção da
interioridade como representação identitária essencial, em nossa visão equivocados,
acabam por esvaziar a potência vibrátil dessa técnica.
Uma das grandes complexidades e belezas da arte clownesca reside nas práticas de
proximidade e distância entre o artista e os “outros de si” que o clown pode tornar
subitamente visível, como Vasconcelos nos permite perceber. Continuum de sensações que
atravessam o intérprete e violam seus trajetos internos, suas percepções comuns,
permitindo que as intensidades transgressivas criem lacunas, porosidades que não serão
interrompidas ou tomadas para si como pontos de apoio, mas vivenciadas na passagem dos
176

afetos. O próprio modus operandi de Xuxu, ao longo do espetáculo, parece privilegiar as


incertezas de sua experiência cênica.
Apesar de ser o único palhaço em cena, podemos perceber que Xuxu constrói suas
ações mantendo relações constantemente realimentadas com a alteridade, seja o outro-
espectador, ou os outros-de-si. Vasconcelos fala deste aspecto de sua obra, ao afirmar sobre
clowns que atuam de maneira solo: “Na verdade não é que ele trabalhe só, ele passa a ter na
plateia o seu parceiro. Ele contracena com a plateia. Ele leva alguém da plateia ou ele vai
ate a plateia e se relaciona”. (VASCONCELOS, 2007, s/p.).
Nesse contexto, cabe-nos tratar, mesmo que brevemente, sobre um dos princípios
de grande importância à palhaçaria, qual seja a dupla cômica. Bolognesi (2003) afirma que,
ao longo do século XIX, a arte clownesca presente nos espetáculos circenses vai solidificando
uma configuração de comicidade calcada na oposição entre dois tipos básicos, um
dominante, o clown branco, e um dominado, o Augusto. O branco teria como características
a educação, a elegância de sua indumentária e a fineza de gestos e movimentos, trazendo
geralmente o rosto coberto de maquiagem branca, o que pode remeter, segundo o
pesquisador, às influências plásticas da figura do Pierrô 135.
Por sua vez, o augusto traz o contraponto cômico à dupla de palhaços, sendo
geralmente desajeitado, estúpido e inadequado, colocando em evidência seus
comportamentos desviantes diante das normas. Identificado pelo nariz vermelho, fruto
talvez de uma queda ou do excesso de bebida, sua denominação advém do termo alemão
August, o qual designaria pessoas que estão em situação ridícula. O augusto se configura
como um: “Prodígio de ineficiência que naturalmente suscita o riso em um universo
ultrarracional voltado à eficácia”. (AUGUET apud BOLOGNESI, 2003, p. 77). Nas relações
entre os dois polos cômicos, vemos o embate de forças entre a ordem e a dominação
representadas pelo branco e a submissão e a inaptidão do augusto, como elucida Ana Achcar
(2007, p. 50):

135
Carregando traços de pureza romântica e sentimental, o Pierrô ou Pierrot é uma personagem da Commedia
dell’arte, variação francesa do Pedrolino italiano, criado apaixonado pela jovem Colombina. Pelo amor não
correspondido, esta personagem é identificada com ideias líricas e romantizadas e geralmente se apresentava
com a face pintada de branco.
Fonte: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=pierr%25C3%25B4>. Acesso em 11 jul. 2013.
177

[...] a base da atuação do palhaço do espetáculo será sempre um conflito


entre dois personagens: um representando o poder, o conhecimento, a
ordem, a inteligência; o outro sinalizando o caos, a fragilidade, o instinto, a
estupidez, a tolice. Um é o clown branco, o outro o augusto. Um não existe
sem o outro. É o augusto que torna possível o riso no branco. É a desordem
proposta pelo augusto que torna risível a tirania do branco.

Devemos atentar, porém, para a ressalva de Castro (2005) ao destacar que esse
esquema da dupla de palhaços não deve servir para simplificar de maneira dicotômica uma
relação que, ao longo dos séculos, mostra-se complexa e fluida, repetindo e transformando
de maneira criativa piadas, gags, números cômicos e mesmo as indumentárias que
compõem a palhaçaria. Esta dissertação entende branco e augusto não como tipos fixos,
mas como duas qualidades de jogo e atuação que são moventes e podem se alternar na
figura de um mesmo palhaço. Essa ambiguidade está presente no próprio Xuxu, não estando
solucionada de maneira inequívoca, pois, segundo as palavras de Vasconcelos (2007, s/p.):

Eu tenho a cara branca e sou um augusto. E sou claramente um Toni136, um


augusto, um velho palhaço de rua e circo. O tonto, o ingênuo, o poético. E
mesclo o branco também, porque eu bato, eu xingo. Então essa
conceituação pode estar inclusa num só ser (Grifos nossos).

Assim, o palhaço Xuxu transita pelas duas qualidades de jogo cômico, seja como
branco, quando tenta organizar e submeter à assistência, chegando a exigir por inúmeras
vezes que os espectadores façam “silêncio total”; seja como augusto, quando, por exemplo,
apresenta imensa dificuldade e desequilíbrio até conseguir subir no monociclo utilizado em
um dos números. Contudo, achamos curioso que Vasconcelos identifique seu jogo
clownesco primeiramente com o estado do augusto e que o branco apareça, em sua opinião,
como contraponto cômico – conforme podemos ver nas partes grifadas da fala supracitada.
Analisando as ações de Xuxu, a maneira como ele se dirige à plateia, a vaidade com
que se apresenta, perguntando diversas vezes se está bonito, bem como a aptidão com que
toca seu fole de oito baixos, e, sobretudo, a forma agressiva como controla e manda em seus

136
Bolognesi (2003) esclarece que o Toni é um palhaço que, durante os espetáculos circenses, fica a postos
para entrar em cena e improvisar, a qualquer momento, para ocupar algum intervalo de tempo ocasionado por
atraso entre uma atração e outra ou qualquer outra falha. Mas, segundo as palavras de Vasconcelos, podemos
perceber que este artista entende o termo Toni como uma designação similar a augusto.
178

auxiliares de palco, geralmente crianças, entendemos aqui que suas qualidades de ação são
eminentemente as de um clown branco. Colocando, assim, seus espectadores na situação de
augustos, ocupando a função de sua dupla.
De acordo com a constituição movente das duas categorias, parece-nos que este
palhaço também transita pelo augusto, mas, é quando tenta dominar o barulho de uma
plateia em polvorosa ou controlar uma criança atarantada na função de ser sua assistente
que Xuxu expõe uma das grandes contradições cômicas do clown branco.
O branco tenta exaustivamente organizar e estabilizar, conforme a sua vontade, o
fluxo da vida que é por si só cheio de instabilidade e movimento, o que restará fatalmente
em fracasso. E nada mais enlouquecedor e risivelmente ridículo do que um palhaço
exercitando a qualidade de branco diante de uma imensa plateia de risonhos augustos,
solícitos em ajudá-lo da forma mais atrapalhada, como ocorre com Xuxu ao longo do
espetáculo.
Dessa forma, em grande parte da apresentação, podemos ver que o espectador,
mais do que assistir, acaba fazendo as vezes de dupla a este palhaço, o que acarreta a
surpresa e a incerteza de trazer o outro para o interior da experiência cênica. Apesar de o
espetáculo possuir uma estrutura predeterminada, com cenas previamente ensaiadas pelo
artista, essa abertura à participação da plateia nos remete à instabilidade e ao caráter
improvisacional que as saídas de rua de Xuxu assumiam, criando lacunas e conexões de
afeto.
Num de seus números mais conhecidos137, este palhaço chama à cena a
participação de uma criança, a qual deve possuir “cinco anos. Nem mais, nem menos!”. Após
a escolha do ajudante, Xuxu lhe dá um microfone e pede que o pequeno segure o objeto,
acompanhando, de perto, os movimentos do fole, a fim de que todos possam ouvir a
melodia executada pelo clown. Este começa a tocar o instrumento com o menino a segui-lo,
até que o palhaço passa a demonstrar grande empolgação pela música. Xuxu chega a subir
na cadeira enquanto toca o fole, o que causará problemas a seu auxiliar infantil, devido à sua
baixa estatura - conforme vemos na imagem abaixo - despertando o riso da assistência.

137
No DVD em anexo há um registro videográfico deste número, realizado não na rua, mas num teatro. Não
encontramos informações sobre a apresentação ou a data da filmagem. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=EI_vmQVJyoU>. Acesso em 04 jun. 2013.
179

Assim, o ridículo do número advém da colocação da


Figura 21 – Xuxu e seu
ajudante. criança em dificuldade, em contraponto com sua extrema vontade
de acertar, dinâmica que é ampliada pela pouca importância e
atenção que Xuxu demonstra em relação a seu assistente de
palco. Sabemos que ali palhaço e criança dependem um do outro
e é desta relação que surge a comicidade, contudo, podemos
identificar naquele clown uma superioridade sobre o ajudante,
própria da qualidade de clown branco.
Seja no tocante a ação principal – é ele quem domina a
técnica do instrumento e, portanto, é ele que pode se permitir
tamanha empolgação sobre a própria performance ao ponto
Fonte:
esquecer de todo o resto – seja na própria altura de um adulto em
<http://www.gentedeopiniao.c
om.br/hotsite/conteudo.php?n
comparação com um menino de cinco anos, o palhaço deixa a
ews=79990>. Acesso em 11 jul.
2013
criança em situação de desvantagem. Xuxu não “poupa” o
pequeno assistente de palco da dificuldade, não o acolhe com graça ou carinhos, e essa
maneira de fazer quebra as expectativas da plateia sobre o modus operandi de um palhaço
que atua com crianças. Transgredindo o lugar comum de um palhaço que lida com o público
infantil, Xuxu nos surpreende e causa o riso, o que pode ser observado ainda em outro
número muito conhecido de seu repertório e que também integra o espetáculo em questão.
Vasconcelos (2003) destaca que o jogo que será narrado a seguir surgiu de suas
saídas como Xuxu pelas ruas do Roger, quando já cansado, após horas de atuação, o clown
sentava à porta de alguma casa e solicitava um pouco de líquido para abrandar a sede. Neste
jogo, o palhaço utiliza uma garrafa cheia de água: “[...] quando eu percebi que a garrafa dava
um jogo, cada virada minha podia estar molhando alguém, eu começo a evoluir com isso e
hoje talvez seja o momento mais precioso no meu espetáculo.” (VASCONCELOS, 2003, s/p.).
Dessa forma, podemos perceber como a relação entre arte e vida no ofício desse
artista, bem como a empiria desse processo, estão presentes não somente na formação de
Xuxu, mas também na criação de um repertório de ações que seria experimentado e
aprimorado cenicamente ao longo de décadas em sua pesquisa prática com a linguagem
clownesca. Vamos à análise do número em questão.
180

Solicitando a participação de dois meninos da plateia, desta vez com idade de cerca
de dez anos, Xuxu já inicia o número mostrando a um deles duas capas de chuva, uma
amarela e a outra azul, perguntando-lhe qual cor ele prefere. O garoto diz que quer a capa
azul e o palhaço lhe entrega a amarela, dizendo: “Toma a amarela pra você aprender que na
vida nem tudo é como a gente quer!”. O clown deu a capa azul para o outro menino e pediu
que eles vestissem, pois aquela seria uma proteção necessária à cena.
Ele pega então seu monociclo e pede a ajuda dos dois assistentes de palco para
conseguir subir e sentar no selim. Ele vai escalando o aparelho circense, tentando se
equilibrar desajeitadamente, segurando no topo da cabeça dos garotos, sem nenhuma
cerimônia ou delicadeza. Por vezes parece que o palhaço e seus ajudantes estão prestes a
cair, mas, por fim, Xuxu consegue manter-se no alto do monociclo. Ele pede uma garrafa de
água e um copo que estavam na lona que lhe serve de palco e inicia um jogo em que cada
vez que se vira para a esquerda para dirigir a palavra a um dos meninos, molha o outro que
está a sua direita, e vice-versa.
Mesmo usando as capas de chuva, logo os dois garotos ficarão encharcados de
água. Sem saber o que fazer, eles olham para suas mães, que estão na plateia, e tentam se
esquivar dos jatos, mas a cada vez chega um novo golpe do líquido, atingindo seus rostos,
seus cabelos, braços, troncos, ensopando suas roupas, para o desconforto dos meninos e o
riso da plateia. Mais uma vez a comicidade vem das dificuldades enfrentadas pelas crianças
em contraponto ao jeito ríspido e impositivo de Xuxu, que tenta manter a ordem em meio
àquela situação caótica.
Chama-nos a atenção a escolha de Vasconcelos sobre a participação de crianças
como ajudantes de palco. Aproximando-se da lógica física clownesca, através da qual,
segundo Puccetti (2009), o palhaço sente, pensa e se comunica por meio de sua
corporeidade, as crianças dos dois exemplos supracitados deixavam impressas em seus
corpos as dificuldades e sensações de desconforto ocasionadas pelas ações de Xuxu. Assim,
palhaço e criança interagiam como se fizessem parte do mesmo mundo, “realidade”
permeada por desequilíbrios e surpresas.
Ademais, num primeiro momento, a postura de autoridade desse palhaço parece
ser suficiente para lidar com seus ajudantes infantis, colocando-os nas funções necessárias à
realização da ação pretendida. Todavia, não podemos esquecer que o espectador infantil
181

geralmente desconhece, no todo ou em parte, as convenções que regem os rituais de um


espetáculo, podendo agir de forma espontânea e inesperada – basta que nos lembremos do
episódio outrora citado em que a menina invadiu o espaço da cena, ou das crianças que não
paravam de gritar o nome do clown, tornando caóticos os momentos iniciais da
apresentação.
Assim, a iniciativa de trazer crianças ao interior da experiência cênica, estas sendo
necessárias à realização dos números cômicos, remete-nos à produção de zonas de
instabilidade que podem tirar o papel de controle de Vasconcelos em relação à cena. Se o
espectador pode representar a instância cotidiana diante dos modos de operar
extraordinários do palhaço, Xuxu promove o encontro das duas dimensões, em misturas e
afetos capazes de desestabilizar tanto o clown como a assistência, promovendo uma espécie
de “[...] abertura que sustenta o momento de espanto e admiração diante daquilo que
surge, que passa, que desaparece [...] não evita a impermanência dos fenômenos e
possibilita a apreensão poética dos acontecimentos.” (QUILICI, 2010, p. 6).

4.3 - No fim do percurso: mais caminhada

Por fim, vamos tratar da experiência pedagógica vivenciada pelo autor desta
dissertação, em maio de 2012, ao realizar uma oficina de palhaçaria ministrada por
Vasconcelos. Atividade da Eslipa138, o workshop teve duração de quatro dias, sendo
encerrado com uma saída 139 de palhaços, realizada no bairro do Cosme Velho, Rio de
Janeiro. Nas próximas páginas abordaremos alguns pontos que entendemos como atinentes
à nossa investigação, focando nossas reflexões no evento que marcaria o final da vivência
pedagógica guiada pelo artista.
Como temos visto, a rua foi e tem sido um grande espaço de experimentação à
técnica clownesca de Vasconcelos, território onde ele pode experienciar a intensidade da

138
Eslipa – Escola Livre de Palhaços, projeto coordenado pelo Grupo Off-Sina, companhia teatral sediada no Rio
de Janeiro e que se dedica à pesquisa do circo-teatro.
139
Segundo Burnier (2001), uma saída clownesca constitui-se numa intervenção pública do clown em lugares
como ruas, praças, feiras, terminais de ônibus... Geralmente improvisada, ou com a apresentação de alguns
números já preparados, a saída tem como objetivo principal trabalhar a relação entre o palhaço e os
transeuntes, o ambiente e os diversos estímulos presentes no cotidiano daquele espaço.
182

criação junto com o outro, tensionando os limites dessas relações e se colocando


artisticamente em risco. Assim, dada a importância do vínculo de aprendizado e produção
artística entre Vasconcelos e o espaço público, pareceu-nos coerente que a sua oficina fosse
encerrada com a aventura de uma saída clownesca.
Na manhã do dia 11 de maio, os cerca de quinze palhaços que integravam a turma
de alunos da Eslipa reuniram-se na sede do Grupo Off-Sina, no Cosme Velho, para se
arrumar, realizar um breve aquecimento e iniciar os trabalhos do dia. Ainda sem colocar o
nariz de palhaço, vestimos nossas
Figura 22 - Início da saída clownesca.
indumentárias clownescas e, já
maquiados, ocupamos a ladeira
arborizada onde estava localizado
nosso ponto de partida,
encostando-nos a alguma parede
daquela rua quase sem
movimentação de carros ou
transeuntes – como podemos ver
na figura ao lado. Fonte: Acervo pessoal do autor.

As instruções de Vasconcelos eram simples, os palhaços deveriam permanecer de


olhos fechados e ouvir os sons do ambiente. Cada aluno, a seu tempo, colocaria a menor
máscara do mundo e abriria os olhos, dando início à aventura de descoberta do mundo. O
trajeto da saída estava definido, consistindo na descida de duas ruas até chegar à Praça São
Judas Tadeu, local de grande movimento de turistas e vendedores, onde fica a estação dos
bondes que partem para o Cristo Redentor.
A principal orientação de Vasconcelos remetia a um dos princípios destacados no
decorrer da oficina, segundo o qual deveríamos fazer o exercício de não forçar jogos ou
situações com os transeuntes. Aqui, entendemos que o objetivo do artista era nos fazer
atentar para os riscos da velha e geralmente malfadada tentação de impor ou forçar
situações para “tentar fazer rir”, bem como para as armadilhas de querer entrar em
conexão, prematuramente, com os elementos do mundo, ao invés de nos deixarmos afetar
por eles, dando passagem aos fluxos. Segundo Kasper (2008, p. 105):
183

A construção clownesca torna-se uma experiência de aprender a afetar e


ser afetado, envolvendo uma atitude de escuta do mundo com o corpo
todo, um estado de alerta e ao mesmo tempo de grande entrega e
disponibilidade. Trata-se das ressonâncias dos encontros, de algo que
ocorre entre o clown e o outro – seja uma laranja, uma pessoa, um vento,
uma borboleta que passa. Reinvenções vitais, formas singulares de
subjetivação, envolvendo verbos como improvisar, transformar, arriscar,
transgredir, criar.

As orientações pedagógicas da saída apontavam para a tentativa de experienciar a


entrada em contato com todo um universo de descobertas, pondo em prática estados de
abertura e disponibilidade. Podemos realizar, assim, uma aproximação entre a proposta
inicial daquela vivência e os processos transgressivos abordados ao longo de nossa pesquisa.
Uma das falas reiteradas por Vasconcelos ao longo da oficina era: “não invada um espaço
que você não conquistou”. Anterior a qualquer brincadeira ou provocação, o artista
destacava a necessidade de o palhaço empreender a criação de zonas de relação junto
àquela pessoa com quem está jogando, abrindo-se aos fluxos de afetação. Em um dos dias
de trabalho pedagógico, ele deu o seguinte exemplo 140:

Vou contar só esse episódio aqui para ilustrar como o palhaço pode ser
tonto, estúpido mesmo, por não respeitar um rito de se deixar conhecer.
Como é que ele joga? E aí quando se estabelece, quando entendem a
natureza dessa criatura que entrou aqui, o jogo está permitido. Mas
enquanto isso não acontecer, você não pode fazer isso assim de cara sem
que a pessoa entenda como você vê o mundo. [...] depois que fizemos o
espetáculo, saímos para uma passeata pela rua [...] saindo do CCBB141,
eufórico, o povo atrás, eu encontro um meninote de uns nove anos, assim,
pela frente, e, instintivamente, pego minha bata 142 e bato na cabeça do
menino, que se assusta e... eu bato em mim mesmo, tentando reverter o
processo e saio dali. Não dou dez passos, levo um “telequete” assim, nas
costas. E eu saio ciscando, quase quebrado pela coluna, assim. Que eu me
viro, quem? Quem? Quem? O moleque que eu dei a batada na cabeça. Foi a

140
A narrativa deste acontecimento está presente na transcrição da mesa Do Riso Cotidiano ao Riso da Terra
(2003) e também foi mencionado por Luiz Carlos Vasconcelos durante a oficina em questão.
141
Centro Cultural Banco do Brasil.
142
Segundo explicação do próprio Vasconcelos (2003), bata é um instrumento muito utilizado pelos palhaços
de circo, composto por duas tábuas de madeira juntas, no formato de um porrete. A batida deste objeto na
cabeça de alguém, por exemplo, faz ressoar um grande estalo ocasionado pelo tilintar das madeiras, dando a
ilusão de que o impacto foi forte ao ponto de ter ferido verdadeiramente a vítima. No DVD em anexo há uma
cena em que Xuxu canta uma melodia junto com a plateia, utilizando sua bata na cabeça de alguns
espectadores. Esta cena não foi realizada pelo palhaço na apresentação de 11 de maio de 2012 a que este
pesquisador assistiu, mas decidimos incluí-la como exemplo da utilização pelo palhaço do elemento cênico
citado.
184

maior... Não precisei de nenhum grande mestre para me ensinar... Eu


aprendi com um sopapo nas costas. (VASCONCELOS, 2003, s/p.).

Vasconcelos ressaltava com a narrativa, e a dor de sua experiência, como o palhaço


e suas ações extraordinárias são capazes dos atos mais tresloucados e extremos, desde que
aquela figura cômica tenha conquistado o direito de invadir o espaço do outro, numa
espécie de acordo tácito inerente e construído a partir do próprio jogo. Caso contrário, uma
vez que o clown rompa essa zona de afetos sem estar em efetiva relação com a alteridade,
graves consequências podem ocorrer, até mesmo uma reação agressiva daquele que se
sentiu acuado ou ofendido, como no exemplo supracitado.
Devemos lembrar, ainda, que a atuação de Xuxu ao longo dessas mais de três
décadas de trabalho têm sido predominantemente em espaços públicos, territórios que,
como vimos, aumentam ainda mais os riscos do inesperado, pelo dinamismo das forças que
contém. É interessante pensarmos novamente no exemplo da primeira atuação de Xuxu,
quando ele ganha seu espaço “à força” pelas ruas do bairro Roger, “no grito”, nas palavras
do próprio artista. Contudo, anos depois, ele se depara com a conclusão de que nem sempre
é pela via da agressividade que o palhaço conquistará seu lugar junto ao outro.
Cruzando os ensinamentos de Vasconcelos com o estudo das práticas
transgressivas, podemos entender que uma importante pista a nós, palhaços e aprendizes
que desejamos adentrar de forma mais intensa no jogo dos limites e da transgressão, diz
respeito ao rito de “deixar-se conhecer” pelo outro com quem você joga.
Quando o espectador entende, minimamente, como é o jogo daquele clown, quais
são as qualidades de ação que ele evoca, instaura-se uma abertura que pode propiciar o
atravessamento das potências transgressoras. Ao conquistar essa conexão que, como temos
visto, é de natureza fluida e delicada, o clown terá a percepção, sempre subjetiva e propensa
a falhas, da existência ou não de lacunas e porosidades que suportarão a intensidade de
qualidades transgressivas. É no diálogo com o outro que a ação transgressora clownesca se
tornará possível, numa dinâmica de afetos cheia de mobilidade e fluidez.
Ao se deparar com um clown, o espectador busca um rápido entendimento sobre o
que aquela figura propõe, tentando decifrá-la, interpretá-la e classificá-la nas zonas do
conhecido. Acreditamos que, após esse ritual de efêmero reconhecimento - o qual pode
durar pela intensidade de um olhar ou levar minutos - o palhaço terá criado territórios
185

comuns entre ele e a assistência, os quais possibilitarão a desestabilização dessas zonas de


afeto, sendo capaz de surpreender e desconstruir as visões antecipadas que o espectador
criara.
Nos três espetáculos analisados em nossa pesquisa, podemos observar a
importância dos momentos iniciais, quando os artistas entram no campo de relações do
espectador, deixando-se conhecer. Jango adentra o espaço do teatro de maneira festiva e
intensa, Bassi abre o espetáculo com a narrativa sobre a explosão dos pombos e Xuxu
começa a apresentação conversando com os transeuntes da praça pública,
cumprimentando-os. Seus gestos, a maneira como o palhaço se dirige à plateia, suas
palavras, o ritmo de sua fala, sua corporeidade, todas essas informações vão construindo
uma leitura que dará ao espectador algumas noções sobre aquele clown, permitindo que
essa figura cômica possa jogar também com essas imagens possíveis, criando instabilidades
à experiência cênica.
Voltando à experiência da saída de palhaços que finalizou a oficina de Vasconcelos,
embora não seja de interesse ao nosso estudo a descrição pormenorizada da vivência,
desejamos destacar uma relação que marcou a chegada e a saída de Zeca Vado 143 ao espaço
da praça. Durante a descrição a seguir faremos referência à pessoa deste pesquisador como
palhaço Zeca Vado, pois foi em exercício com a menor máscara do mundo que o fato
ocorreu.
Na tentativa de exercitar os estados de calma e disponibilidade propostos por
Vasconcelos, cada clown estava livre para experienciar seu percurso e, além da trajetória
definida, o único combinado era que, ao sinal do artista e pedagogo, o bando de clowns se
reuniria, cantaria uma música na praça – a tradicional chula144 “Ô raia o sol, suspende a lua /
Olha o palhaço no meio da rua” – e voltaria cantando e tocando para a sede do Off-Sina.
Carregando uma pesada mala de instrumentos que lhe dificultava o andar e, por
vez, fazia-o desequilibrar, Zeca Vado realizou longo e demorado trajeto para descer as duas
ruas até a praça. Ao tentar trabalhar com o máximo de rigor no registro da percepção
ampliada, crescia no palhaço a impressão corpórea de que seus sentidos físicos não davam

143
Nome do palhaço do autor desta dissertação.
144
Chulas são músicas de perguntas e respostas cantadas pelos palhaços nos circos brasileiros. Castro (2005)
transcreve algumas chulas na obra citada nesta pesquisa.
186

conta da imensidão de estímulos presentes a cada pequeno trecho do caminho. Não só o


espaço, mas também o tempo entrava em territórios extraordinários, desviantes dos
padrões cotidianos. Ressalte-se que não era parte da proposta atentar para princípios
importantes à mascara teatral, como a urgência e a necessidade, pois este era um exercício
ainda anterior, que trabalhava no palhaço estados de abertura e o relacionar-se sem
artifícios.
Finalmente, ao chegar à Praça São Judas Tadeu, uma das primeiras pessoas com
quem Zeca Vado estabeleceu contato visual foi uma vendedora ambulante de cangas de
praia, com cerca de quarenta anos de idade, magra, cabelos e olhos negros e pele morena
muito queimada pelo sol. Ela estava surpresa e assustada com a presença do palhaço,
chegando a recuar fisicamente para junto da grade da estação de bondes.
Contrariando talvez a expectativa de que o clown se aproximasse dela, invadindo
seu espaço pessoal ou mesmo tentando fazer algum gracejo, Zeca Vado permaneceu no
mesmo lugar, olhando para seus grandes olhos negros, que estavam ainda mais arregalados
pelo susto. Ambos permaneceram alguns instantes se reconhecendo mutuamente, e era
nítida na expressão da mulher uma incompreensão sobre o que aquela figura de nariz
vermelho e roupa extravagante fazia ali parada.
Enquanto o palhaço observava estupefato toda a intensidade daquele espaço aliada
à força contida no rosto da ambulante, ele entrava em contato com a dinâmica excitada de
turistas, outros vendedores, passantes, o movimento e barulho dos carros, as vozes dos
transeuntes que se misturavam, as cores da praça que eram realçadas pela luz do sol. Tudo
era grande, potente e Zeca Vado, sentindo-se como um nervo repentinamente exposto, mal
conseguia sair do lugar.
Aos poucos o palhaço seguiu seu trajeto, encontrando imensa dificuldade em
atravessar a rua, ao ponto de que um senhor tivesse de ajuda-lo a cruzar de uma calçada à
outra. Mas, durante um bom tempo, o clown ainda podia perceber que a vendedora o
espiava, já com o rosto um pouco mais risonho, mas ainda demonstrando sua falta de
compreensão acerca da estranheza daquelas figuras excêntricas.
A saída teve quase três horas de duração e, ao final, conforme havia sido
previamente combinado, os palhaços cantaram sua música e foram voltando ao ponto de
origem, formando um bando que marchava em algazarra. Zeca Vado não tinha vontade de
187

voltar, afinal, ainda havia tanto a descobrir! Mas, subitamente, o pavor de se perceber
sozinho na praça, no meio de toda aquela imensidão, fez com que ele apressasse o passo,
seguindo os sons da cantoria que já estavam longínquos.
Chegando à esquina da rua em que deveria entrar, lá estava a vendedora de cangas,
junto a outros ambulantes que percebiam o atrapalhamento de Zeca e indicavam: “Eles
foram pra lá! Por ali!”. Assentando com a cabeça em agradecimento, o palhaço olhou pela
ultima vez para eles e seguiu seu trajeto final, mas ainda teve tempo de ouvir a mulher
perguntando a um dos rapazes que estava ao seu lado: “Será que ele vai conseguir chegar?”.
Não temos a pretensão de afirmar que essa foi a descrição de uma experiência
transgressiva, sobretudo porque, ao chegar às últimas páginas de nossa pesquisa ainda nos
restam muito mais especulações e incertezas do que caminhos definidos. Contudo, na
opinião deste autor-palhaço, esse foi o momento mais importante de toda a rica experiência
daquela saída clownesca.
Retomando as palavras de Leo Bassi sobre a potência da técnica da palhaçaria na
criação de mistérios, entendemos que, na relação entre o palhaço e a vendedora, houve
espaço para a instauração do mistério. De onde veio aquele ser excêntrico? Para onde iria?
Será que conseguiria realmente chegar? Chegar aonde? Incertezas sem respostas claras que
instigavam o olhar daquela mulher, sem que ela pudesse enquadrar aquela figura excêntrica
em instâncias conhecidas, contrariando a organização cotidiana funcional.
Acreditamos que o encontro com o desconhecido, esse território do não saber
também é capaz de desestabilizar a ordem, de criar fissuras na tessitura aparentemente
lógica e funcional da vida cotidiana, produzindo outras realidades, outros mundos
destoantes daquele que nos é familiar. A ausência de função clara sobre a presença do
palhaço naquele espaço, as zonas de indefinição e instabilidade, quem sabe tenham sido
capazes de abrir, na efemeridade da prática artística, espaços para o heterogêneo, para a
relativização e atravessamento de normas e padrões. Nas palavras do escritor e filósofo Luiz
Fuganti145 acerca da criação propiciada pelo clown:

145
Fuganti também integrou a mesa Do Riso Cotidiano ao Riso da Terra, promovida em 2003 pelo grupo
Parlapatões, compartilhando com Luiz Carlos Vasconcelos, seu companheiro de debate, reflexões sobre o riso e
a arte clownesca.
188

[...] você está ali sem nenhuma proteção. Você está aberto ao acaso. Você
está aberto às misturas. E a coragem, ela vem de onde? Ela vem
exatamente de sinalizações da própria relação. Existe algo que te diz. Existe
algo que te atravessa. E esse algo, ele tem consistência, ele tem espessura,
ele tem realidade, mesmo que você não veja. Mesmo que ele seja
inexistente. Ele é real sem existir. Ele é uma presença. Ele é o virtual. É
exatamente essa a potência do artista. (FUGANTI, 2003, s/p.).

É por meio da mistura entre a linguagem clownesca e a própria vida, em territórios


contaminados pelo risco, pela insegurança e ausência de fixidez que as práticas
transgressivas podem afetar ao outro e, sobretudo, ao intérprete cênico. Atravessar limites a
partir da palhaçaria é também abrir lacunas em si mesmo, entregando-se também ao
atravessamento. Expondo-se o clown opera encontros com a alteridade, na celebração da
diferença, da imprecisão, da beleza instigante do desajuste. Nesse contexto, achamos por
bem finalizar o último capítulo de nosso percurso com as palavras do manifesto produzido
no encontro de palhaços O Riso da Terra, organizado e coordenado por Vasconcelos em
2001, na cidade de João Pessoa, Paraíba. Segundo esclarece o artista:

Eu sempre achei isso, que se a gente reunisse todos os palhaços do mundo


em um só lugar [...] a gente alteraria a ordem das coisas. Se de tanta
energia dos fazedores do riso reunidos, isso tinha que desestabilizar a
ordem das coisas, da violência ou de tudo que está no mundo.
(VASCONCELOS, 2003, s/p.).

Embora entendamos que a potência transgressiva do clown seja operada muito


mais no nível do micro, das pequenas e instáveis relações com a alteridade, do que no
contexto de grandes realizações, é sempre louvável a proposta de um encontro de palhaços
criado a partir do desejo de que a arte clownesca seja capaz de gerar afetos e intensidades, e
ainda possa alterar ou desestabilizar a ordem das coisas. Assim, ficamos com as inspiradoras
palavras do manifesto, desejando que as potências transgressoras da palhaçaria continuem
a instigar e propiciar a multiplicidade celebradora dos encontros e da diferença.
189

Declaração do Riso da Terra - Carta da Paraíba146

Quando os Deuses se encontraram e riram pela primeira vez eles criaram os


planetas, as águas, o dia e a noite. Quando riram pela segunda vez, criaram
as plantas, os bichos e os homens. Quando gargalharam pela última vez,
eles criaram a alma, de um papiro egípcio...

Vivemos um momento em que a estupidez humana é nossa maior ameaça.


Palhaços não transformam o mundo, quiçá a si mesmos. E nós, palhaços,
tontos, bobos, bufões, que levamos a vida a mostrar toda essa estupidez,
cansamos.

O palhaço é a expressão da alegria. Palhaço é a expressão da vida no que


ela tem de instigante, sensível, humana. A alegria que o palhaço realiza a
cada momento de sua ação, contribuindo para estancar, por um momento
que seja, a dor no planeta Terra.

O palhaço é a única criatura do mundo que ri de sua própria derrota. E ao


agir assim estanca o curso da violência.

Os palhaços ampliam o riso da Terra. Por esse motivo, nós, palhaços do


mundo, não podemos deixar de dizer aos homens e mulheres do nosso
tempo, de qualquer credo, de qualquer país: cultivemos o riso.

Cultivemos o riso contra as armas que destroem a vida. O riso que resiste
ao ódio, à fome e às injustiças do mundo. Cultivemos o riso. Mas não um
riso que discrimine o outro pela sua cor, religião, etnia, gostos e costumes.

Cultivemos o riso para celebrar as nossas diferenças. Um riso que seja como
a própria vida: múltiplo, diverso, generoso.

Enquanto rirmos estaremos em paz.

João Pessoa, 2 de dezembro de 2001.

146
Carta redigida por diversos palhaços durante o evento O Riso da Terra. No DVD em anexo há um vídeo de
Xuxu recitando o texto em questão.
Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir
mais que um andarilho sobre a Terra – e não um viajante que se dirige a
uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos
para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o
coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de
errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. Sem dúvida esse
homem conhecerá noites ruins...

Friedrich Nietzsche (2005, p. 271).

Figura 23 - Palhaço Zeca Vado

Fotógrafa: Diana Herzog.


Fonte: Acervo pessoal do autor.
191

Conclusão: Cruzando caminhos

Nas tradições de diversos povos e culturas, a encruzilhada é entendida como


encontro de intensidades, território de passagens desejantes e, ao mesmo tempo, convite à
pausa e reflexão147. Cruzamento de caminhos, lugar onde as rotas se contaminam,
misturando-se. Ponto do qual outros rumos podem ser avistados, possibilitando a partida
para quaisquer direções, na esperança renovada de novas vias que se abrem.
Assim, chegamos à finalização de nosso percurso, deparando-nos com as trajetórias
trilhadas por um caminhar de passos incertos e, ao mesmo tempo, movido pela necessidade
do atravessamento do nosso campo de pesquisa.
No jogo dos limites e da transgressão, o palhaço transita por terrenos ligados ao
ridículo, à fraqueza, aos comportamentos desviantes. Carregando uma constituição marginal
por sua inadequação, o clown torna-se risível por sua heterogeneidade em relação aos
padrões normativos e do inesperado de suas ações advém a graça.
Logo, pensar o palhaço a partir de suas instâncias transgressivas nos coloca em
contato com aberturas possíveis à experiência da diferença. É na fragilidade que a arte
clownesca possibilita ao indivíduo experimentar o novo, o heterogêneo, violando a ordem
estabelecida calcada nos padrões normativos.
Todavia, inserido em processos de domesticação do riso, assistimos, em relação ao
clown, ao esvaziamento de suas capacidades de violação. A utilização da arte clownesca não
como uma ação crítica, mas como um reforço das normatividades instituídas, tem sido
acirrada, como pudemos observar, por sua incorporação pela cultura de massa.
Num panorama que privilegia a busca pela festa permanente, quando a indústria do
entretenimento assimila as intensidades artísticas com as relações de consumo de uma
sociedade eufórica e ridente, o palhaço vai sendo absorvido e transmutado em figura
domesticada e dócil, em processos de esvaziamento que acabam por contaminar, também,
o âmbito das artes da cena.
A simplificação e banalização da figura do palhaço faz com que ele perca a
intensidade das instâncias desviantes que residiam na inadequação e na violação dos limites,

147
Podemos encontrar em Chevalier (2012), a descrição de práticas e perspectivas simbólicas envolvendo a
encruzilhada em várias culturas distintas.
192

reduzindo suas potências de afirmação da própria vida. Assim, vemos empobrecer a força
provocadora de sua comicidade. As obscuridades do indivíduo, como a agressividade, a
provocação e a crueldade, características capazes de instaurar uma experiência cênica
desestabilizada e incerta, vão sendo deixadas de lado, dando lugar a palhaços incapazes de
mobilizar ou gerar fluxos de afetos e estranhezas no jogo com o espectador.
Os palhaços que recaem na docilização tornam-se figuras obedientes, submetidas,
úteis às normas e aos padrões do “politicamente correto”. Nesse contexto, a experiência da
diferença vai sendo perdida na palhaçaria, que vai se tornando cada vez mais apreendida e
conformada, ligada aos mecanismos de sujeição e às ilusões de representação identitária.
Dessa forma, pudemos verificar que nenhuma instância da arte clownesca está
resguardada do enfraquecimento proveniente da docilização, esta podendo ocorrer
independentemente dos locais onde se dê a atuação do palhaço, seja no circo, no teatro ou
na rua. As complexidades dessa diminuição de intensidades afetam, inclusive, as práticas
pedagógicas relacionadas à palhaçaria.
O clown possui um caráter pessoal e autoral, vinculado às fragilidades do
intérprete, à ampliação dos seus defeitos e inadequações, na investigação de naturezas
cômicas que apontam para a hilaridade do próprio homem e das ordens sociais. Contudo,
em nome dessa pessoalidade, por vezes os processos de formação no âmbito da técnica
clownesca acabam por ser direcionados a perspectivas funcionais, na busca por um ‘eu-
essência interior’ que será revelado como a expressão da porção mais autêntica daquele
indivíduo, sua suposta “verdadeira” natureza. O indivíduo objetiva, então, uma aderência a
esse “dentro” através das práticas com o palhaço, neutralizando as potências da
instabilidade.
Esse esforço de descoberta de uma interioridade ocasiona um processo de
limitação dessa figura cômica, enfraquecendo suas intensidades relacionais pela
determinação de características fixas e identitárias – “o meu palhaço é tímido ou agressivo
ou arrogante, pois, na verdade, eu sou...”. Portanto, as investigações e o exercício sobre as
práticas transgressivas na arte clownesca assumem um potencial de resistência necessário à
problematização dos processos de banalização e esvaziamento que incidem sobre esta
técnica.
193

Pudemos identificar que esta figura cômica abre ao intérprete cênico fissuras
capazes de gerar fluxos de afetos e intensidades. Entrando em contato com dinâmicas de
composição e decomposição, o palhaço vive no (e do) encontro com a alteridade,
experimentado através de instabilidades. Dessa forma, os potenciais transgressivos
clownescos assumem um caráter de criação artística, de abertura à experiência, de exercício
de violação das identidades que assujeitam e conformam o próprio palhaço e também seu
público.
Devemos lembrar, ainda, que o tensionamento entre as qualidades transgressoras,
bem como os perigos que rondam seu esvaziamento constituem um jogo de forças que é
inerente à arte da palhaçaria, e que nunca estará definitivamente resolvido, o que aumenta
ainda mais a necessidade de estudos e reflexões sobre o tema.
Ademais, uma das configurações mais interessantes que encontramos a respeito
das dinâmicas transgressivas diz respeito à relação entre a palhaçaria e a dúvida. O risível do
palhaço como mecanismo criador de incertezas questionadoras, pulsão desestruturadora da
rigidez de normas e valores. A investigação desses processos de violação e seus limites se
dará no corpo de cada artista, processo que é gerado e, ao mesmo tempo, cria a própria
maneira como aquele indivíduo entende e vê o mundo. Logo, a pessoalidade do palhaço e a
dimensão autoral desta técnica carregam um chamamento à responsabilidade daquele
artista, em vínculos éticos - no sentido foucaultiano – de criação de modos de existência e
potencialização de singularidades.
Pensando nas intensidades que perpassam a arte clownesca, adentramos no
universo dos artistas Jango Edwards, Leo Bassi e Luiz Carlos Vasconcelos, objetivando
analisar, a partir de registros de suas atuações, como ocorrem maneiras possíveis de dar
corpo à passagem das dinâmicas transgressoras na efemeridade da prática cênica.
Pudemos observar no palhaço norte-americano Jango Edwards que ele amplia o
campo de ação da palhaçaria, esta sendo compreendida não somente como uma técnica,
mas como modus vivendi. Evidenciando o caráter pessoal do palhaço, Jango defende que
não há diferença entre o clown e o indivíduo que lhe dá vida, o que ocorre é a ampliação
daquelas naturezas cômicas já existentes – e não de uma essência identitária - tendo em
vista a comunicação entre essa figura e os espectadores.
194

Processo comunicacional que, segundo ele, envolve duas dimensões, quais sejam
fazer rir e aguçar as percepções críticas da assistência, expondo, através da atuação
clownesca, normas e eventos cotidianos capazes de instaurar um espaço de reflexão junto à
plateia. Segundo esse artista, o palhaço possui a capacidade de desafiar comicamente
instituições e fatos que precisam ser repensados e, talvez, alterados.
Analisamos as potências transgressivas de Jango Edwards à luz das matrizes
grotescas, como a materialidade corpórea desviante, os jogos de exagero e a inversão dos
padrões. Operando temas como a escatologia, a celebração festiva da comicidade e a
repulsa, esse artista envolve a audiência numa experiência cênica que gera riscos e
instabilidades. Utilizando-se de recursos como à quebra de organizações de sentido e lógica,
invasões repentinas do espaço do espectador, e paródias de rituais religiosos e de
mecanismos de disciplinarização do corpo, ele consegue tirar a assistência de zonas de
conforto, provocando uma cena inconstante e arriscada.
Leo Bassi, por sua vez, também privilegia práticas cênicas desestabilizadoras,
criando suas provocações a partir de jogos que evocam o medo e a razão da plateia. Este
bufão franco-italiano se apresenta de maneira não convencional, geralmente de terno e
gravata, objetivando exacerbar o contraste entre sua aparência formal e suas ações ridículas
e provocativas. Ele não perde, contudo, os traços comportamentais e ideológicos que
caracterizam a bufonaria, como a comicidade ácida e agressiva, capaz de expor vicissitudes e
zombar das porções degradadas do homem e das instituições.
Os processos transgressivos gerados por Bassi identificam na palhaçaria um
potencial político que pode olhar de maneira tanto mordaz quanto derrisória para a vida
cotidiana. São ações cuja intensidade crítica nos remeteu à parrhesía, noção desenvolvida
por Foucault, uma prática que envolve o “franco falar” e traz riscos àquele que fala,
objetivando a melhoria dos sujeitos envolvidos na comunicação. Assim, seriam criadas, por
meio do uso da razão, aberturas a novos discursos dotados de autonomia e dirigidos à
liberdade.
Como vimos, uma das estratégias utilizadas por Bassi para criar instabilidades
transgressoras reside na condução da assistência a determinado tipo de atmosfera ou
situação, para logo romper as expectativas e entendimentos que vinham sendo construídos
pela plateia. Revelando os mecanismos que estavam por trás do evento, ele nos faz reavaliar
195

nossas crenças, ilusões e comportamentos. O espectador é convocado a sair da recepção


passiva e a enfrentar as demandas operadas pelas provocações do artista, em cenas
desestabilizadoras que mantém como foco o rompimento do conformismo do pensar e do
sentir.
Jogando com o medo, a violência e a insegurança da plateia, Bassi planeja
racionalmente suas ações cômicas, em criações que presentificam reflexões e dinâmicas
sensoriais. Ele cria uma experiência cênica intensa, celebração das potências do palhaço
como afirmação da vida, na liberdade de romper padrões.
Por fim, o trabalho desenvolvido por Luiz Carlos Vasconcelos, palhaço Xuxu, nos
demonstra como a linguagem clownesca é capaz de gerar instabilidades não somente na
assistência, mas também no artista que exercita essa técnica. Lançando Vasconcelos no
campo do inesperado, em encontros com a alteridade de si mesmo, a palhaçaria pode
desestabilizar o próprio artista, violando as suas concepções de mundo. Nesse tipo de
práticas transgressivas, as quais atravessam tanto o intérprete como a plateia, não há uma
aderência plena entre artista e palhaço, mas lacunas e distâncias que possibilitam a eclosão
do extravio e do espanto.
Outra particularidade deste palhaço diz respeito ao tensionamento criado por ele
entre arte e vida, desenvolvendo o que chama de palhaço cidadão. Em processos de
contágio que potencializam as percepções sobre o cotidiano e as relações que ele encerra,
tanto dos espectadores como do próprio Vasconcelos.
As atuações deste palhaço, desenvolvidas predominantemente em espaços públicos
como a rua, nos remetem à potência que o clown possui de criar redes de desarticulação e
abrir lacunas nos fluxos identitários desses espaços coletivos. O palhaço produz rasgos e
fissuras na dimensão de funcionalidade e utilidade dos eventos cotidianos, friccionando as
relações de assujeitamento que os permeiam.
Pudemos observar que os processos transgressivos não envolvem somente
princípios de força e provocações acintosas, podendo ser presentificados em experiências
cênicas mais sutis, que podem ser facilitadas - em escalas difíceis de serem medidas por
serem da ordem da efemeridade - pelo deslocamento da atuação do palhaço aos locais
públicos. A presença dessa figura em espaços públicos pode ser capaz de propiciar o
196

surgimento de fluxos de afetação e contaminação entre o palhaço e as regras do ambiente


em que ele está atuando.
Todavia, também ressaltamos que as atuações clownescas em espaços públicos não
estão resguardadas das problemáticas da docilização e da perda de intensidades. Os
processos de esvaziamento das potências do clown podem ser dar no âmbito de qualquer
lugar ou artista ou mesmo momento, uma vez que a palhaçaria está sujeita, como muitas de
nossas ações, ao enquadramento, à classificação e ao ordenamento de suas ações no campo
do “conhecido”, do inteligível, do confortável, perspectiva que esteriliza a vitalidade fluida
da experiência cênica.
Logo, as práticas transgressivas podem ser entendidas também à luz da quebra de
automatismos em relação ao clown, quando essa figura pode ser analisada como
possibilidade de abertura, de identidade múltipla e multifacetada, de constituição vazada e
flutuante que engendra a produção de novos atravessamentos na vida do espectador.
Ao longo desta dissertação, pudemos perceber que as relações entre a palhaçaria e
as dinâmicas transgressivas dizem respeito a processos incertos, em embates de forças
capazes de operar a desestabilização daqueles que comungam da experiência cênica, ou
seja, o espectador e o palhaço que atua.
Apesar de apresentarem práticas artísticas deveras distintas, podemos perceber
que os três artistas supracitados possuem características afins, em movimentos de
aproximação, como a postura crítica em relação ao esvaziamento das potências da arte
clownesca; a relação construída diretamente entre eles e a assistência, em processos de
afetação; a criação de cenas instáveis, retirando o espectador de suas possíveis zonas de
conforto; o contágio entre arte e vida, havendo uma ampliação da pessoalidade na
palhaçaria, não como “descoberta de um eu-essência”, mas no sentido de que as
intensidades dessa técnica acabam por determinar os modos e percepções que esses artistas
mantêm em relação ao mundo.
E, finalmente, uma das perspectivas mais importantes que pudemos identificar
como presentes nas atuações dos três artistas em questão, diz respeito à força da arte
clownesca em propiciar fluxos de afirmação da vida. Produzindo encontros capazes de gerar
conexões e impulsos desejantes, a palhaçaria pode potencializar a existência tanto do
197

intérprete como do espectador, numa perspectiva ética ligada ao próprio êthos, como
qualidade de transformar o modo de ser de um indivíduo.
Assim, longe de encerrar as investigações acerca de nosso tema e seus meandros, a
presente dissertação buscou a criação de aberturas e aproximações em relação ao palhaço e
suas intensidades transgressivas. Terreno de investigação que se mostra fundamental às
artes da cena, e que, por sua complexidade e amplitude, merece ser contemplado por novos
estudos.
Observando criticamente nosso processo de escrita, identificamos que o próprio
tema desta pesquisa parece ser, ao mesmo tempo, a maior força e a maior dificuldade da
nossa dissertação. O vigor dessa empreitada reside, entre tantas perspectivas possíveis, na
atualidade e importância da temática das práticas transgressoras clownescas frente aos
processos de esvaziamento a que a palhaçaria contemporânea tem sido exposta, bem como
na capacidade que as intensidades transgressivas possuem de gerar fluxos desagregadores e
instáveis no próprio fenômeno cênico.
Por outro lado, este campo de pesquisa também se mostrou como um fator que
dificultou a nossa escrita. A problematização filosófica do tema, indispensável a estas
reflexões, abriu espaço para inumeráveis perspectivas e diversos autores, e, assim, a opção
por nossos interlocutores representou um intrincado jogo de escolha e de renúncia. A cada
filósofo eleito tivemos de abrir mão de toda uma gama de outros pensadores que também
traziam visões interessantíssimas que poderiam ser friccionadas com nossa temática – o que
reforça a grande abertura do tema e demanda novas investigações.
Por admiração artístico-intelectual, afinidade de ideias e por acreditarmos que para
falar de transgressão e subjetivação não poderíamos deixá-los de lado, escolhemos nos
aproximar de alguns pontos abordados por Friedrich Nietzsche e Michel Foucault. E esse
avizinhamento, por mais ínfimo que tenha sido em comparação ao universo de criação dos
referidos autores, já foi capaz de abrir mundos em nosso percurso, por vezes gerando atritos
de difícil apreensão.
Além disso, o caráter movente e variável das composições desejantes que
constituem as práticas transgressivas clownescas também se configurou como fator de
dificuldade em nossa trajetória, muito mais pautadas pela dúvida do que pela total clareza
de caminhos. Contudo, diante dessa condição errante encontramos uma das perspectivas
198

mais interessantes ao nosso aprendizado: Colocar sob a ótica da dúvida os padrões, as


normas, os saberes (que se acreditam) constituídos, questionar as representações
identitárias... Esta parece ser uma das mais valiosas lições que o intercruzamento entre a
linguagem do palhaço e os potenciais transgressores vem nos trazer. O ensinamento, já
quando compreensível intelectualmente, é árduo no momento em que tentamos lhe dar
corpo.
Assim, longe de constituir uma metodologia bem delimitada que possa ser acionada
pelo clown e aplicada em relação à assistência, as matrizes transgressivas são
presentificadas na incerteza dos fluxos de afetos, em ações que envolvem trocas, atritos e
choques. Nesses exercícios em devir, palhaço e espectador se encontram e se relacionam
como instâncias que se tangenciam, promovendo contágios e porosidades capazes de alterar
percepções e modos de olhar o mundo.
Para este autor-palhaço (Figura 26), a realização da presente pesquisa alterou
olhares, alargou os horizontes que se deslocam no interior de suas pupilas. Para onde
direcionar o olhar-bússola nesse fim/início de percurso, ainda não sabemos. Mas, sem
dúvida, quem olha agora não é o mesmo de outrora. O pensamento encontrou nesta
dissertação um espaço para se pensar a si mesmo, para se estranhar a si mesmo, para se
alargar.
O encontro com a alteridade de cada artista, suas palavras, reflexões, a lida com as
cenas estudadas, bem como as direções apontadas pela investigação do trabalho de Jango
Edwards, Leo Bassi e Luz Carlos Vasconcelos, no decorrer de nossos capítulos, abrem lacunas
e dão passagem a ventos que renovam e alimentam desejos. Transposições, interseções,
deslocamentos, perambulações, convergências, afastamentos, fracassos... Esta dissertação é
uma tentativa de contemplar, mesmo que de maneira falha, esses movimentos.
Instaurando jogos de violação e limites, os processos transgressivos da palhaçaria
criam estímulos ininterruptos à experimentação, entre os quais nos inquietam,
particularmente, os modos como a produção desta dissertação reverberará nas experiências
cênicas deste autor-palhaço.
Além disso, aparece-nos como desafio instigante a investigação dos modos de
articulação e atritos entre as instâncias do palhaço, da política, da pesquisa nas artes da
cena, instaurados e tensionados por Leo Bassi. A continuidade da pesquisa sobre as
199

particularidades e potências geradas por esse bufão nos parece um fértil e complexo campo
de investigação.
Dessa forma, entendemos que esta conclusão-encruzilhada se constitui não como
um fim, mas, antes, como um chamado para irmos mais além. Assim, desejamos finalizar
nossa escrita evocando a imagem que Chevalier (2012) nos traz, ao destacar que, em muitos
contos que ressaltam a força simbólica do encontro dos caminhos, a própria configuração da
encruzilhada desaparece após a passagem do andarilho, com a certeza de que, logo adiante,
novos cruzamentos se formarão. Caminhemos!
200

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Anexos

Paisagens visitadas em nossa caminhada.

No DVD a seguir você encontrará os registros videográficos das cenas e números


cômicos analisados em nossa pesquisa. Inventário dinâmico dos territórios artísticos
visitados em nossa trajetória e que ajudaram a guiar este pesquisador, ora iluminando seu
itinerário, ora problematizando direções e impulsos desejantes. Indicamos que o leitor lance
mão desses registros não somente nos pontos do caminho em que eles forem citados, mas,
outrossim, sempre que revisitá-los possa gerar as fagulhas necessárias à produção do
conhecimento. Esta dissertação e suas reflexões já nascem predestinadas à violação, em
aberturas possíveis que apontem para rumos outros, dando passagem a novos ventos e a
percursos que venham a atravessar as ideias aqui propostas. Que as intensidades e o
inesperado dos encontros permeiem nosso campo de pesquisa.

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