Pétonnet, C. Observação Flutuante PDF
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Colette Pétonnet*
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Observação flutuante:
o exemplo de um cemitério parisiense**
*
Antropóloga, fundadora e
membro do LAU (Labo-
ratoire d’Anthropologie
Urbaine), CNRS, até 1995,
quando se aposentou.
**
“L’observation flottante
– l’exemple d’un cimetière
parisien”, publicado em
L’Homme, oct.-déc. 1982,
XXII (4), p. 37-47. Tra-
dução de Soraya Silveira
Simões e revisão de Evelina
Maria Cunha Carneiro da
Silva (ver comentários da
tradutora sobre a autora
na sessão resenha deste
número de Antropolítica).
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A etnologia urbana está ainda por ser feita. Tentar teorizá-la será en-
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preferenciais, de territórios: tal bairro, tal igreja, tal mercado ou clube
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As linhas que vão seguir propõem um ensaio em seus primórdios, em um
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rentando uns 50 anos, por entre as sepulturas. Elas se inclinavam sobre
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uma inscrição, ele dava explicações. Ele indicava com o braço uma estela
bordada de flores frescas em que estava gravado: À FRED. CHOPIN.
“Eis aí Chopin”, disse ele sobriamente. “Ah, sim! Veja só! Alfred Chopin!”,
fez uma das mulheres, e a outra acrescenta para nosso conhecimento:
“Ele é do bairro, ele conhece tudo, ele passa aqui toda a tarde, é o seu
jardim”. Então, era preciso atravessar a porta. Mas a decisão de voltar
para flanar havia sido tomada.
Quem entra no Père-Lachaise é arrebatado pela beleza do velho parque,
habitado por árvores e pássaros, que desposa a colina de Charonne desde
1804, quando foi aberto às sepulturas. O ar ali é vivo, menos poluído
que sobre o boulevard.
Aos pés da capela, à meia altura, se estende um gramado cercado por
bancos, todos ocupados por velhos que conversam, jovens que leem,
mulheres grávidas que tricotam. Em volta da rotunda de Casimir Périer,
de onde as aleias partem em estrela, os bancos também estão tomados.
Uma simples olhadela é suficiente para ver que esse cemitério serve de
jardim público, embora não encontremos vendedores de balões ou gu-
loseimas nem crianças brincando sozinhas. É um espaço não associado
ao consumo – salvo ao de flores, que lhe é específico –, um espaço em
que tudo é marcado e datado mas onde se misturam sincronia e diacro-
nia. Não apenas uma tumba nova ganha um lugar perto de uma estela
invadida por heras, mas um novo defunto entra em uma tumba antiga.
Os anos 1842 e 1979 estão gravados lado a lado. O tempo, aqui, tem
um estranho perfume.
O pesquisador caminhou um bom tempo, em uma tarde ensolarada,
descobrindo Balzac ou Géricault ao sabor das alamedas que se chamam
aqui “avenidas” ou “caminhos”. Ele meditou sobre a arquitetura fune-
rária, decifrou os epitáfios, leu os símbolos maçônicos, entre outros,
apreciou as esculturas, se deixando levar pelo charme do cemitério. Ele
marcou o tempo de parar diante da estátua de Victor Noir assassinado,
muito realista, em bronze e polido pelos toques sobre a face, o nariz, os
lábios e, à direita do sexo, onde o escultor tratou de representar a leve
intumescência. Ele se lembrou que o busto de Allan Kardec era de um
amarelo brilhante.
Depois, ele desceu até a entrada. No mesmo lugar do outro dia, um velho
homem conversa com os marmoristas, e os coveiros o cumprimentam
ao passar. Sobre seus conselhos, duas mulheres sobem a aleia e nos con-
vidam a “ir ver uma artista enterrada na véspera”. As flores suntuosas
juncam quatro metros quadrados. As mulheres se inclinam, admiram,
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leem as cartas dos floristas e as fitas de luto. Sobre uma delas: “Teatro
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senhoras), os 25 mil compartimentos do columbário (o crematório não
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se visita, mas se você der uma nota aos coveiros...). Custa mais caro ser
enterrado à margem da alameda que atrás”. Podemos evidentemente
nos perguntar sobre sua relação com a morte. Mas isto não é nosso pro-
pósito. Ele é parisiense? “E como!” Ele nasceu na rue de Clignancourt. A
mulher de capa chega do alto. Ela maldiz os guardas e conta os disse me
disse que circulam sobre os espíritos. Começa a chover mas ela se senta
sobre o banco, e todos dois ficam conversando sob seus guarda-chuvas,
que se tocam.
É ele o verdadeiro guardião, sempre ali, sabendo tudo e velando o lugar
sagrado.
8 de março – Um pequeno grupo se formou em volta de duas mulhe-
res que colocam comida nas vasilhas que elas dissimulam nas covas
abandonadas e nas cavidades das árvores. Um visitante lhes assinala
um cachorro errante. Elas vituperam contra aqueles que derrubam
propositadamente as vasilhas e explicam seu papel: evitam que os gatos
se contaminem, levam antibióticos, tem por vezes o socorro de um ve-
terinário (precisam, então, capturar os bichos doentes). Ninguém lhes
dá subsídios. Elas são consentidas. Uma senhora se detém e pergunta
por Chopin. Uma outra nos arrasta em seu passeio: depois da rotunda
uma escada desemboca sobre um caminho circular rodeado de bosques,
entre dois níveis de sepulturas. “É terra, a gente pode se pensar num
verdadeiro parque, vendo a primavera chegar.” O caminho estende-se
ao longo de mausoléus barrocos, mulheres de pedra desoladas. Madame
M. lê seus nomes, comenta o túmulo da baronesa Strogonoff e conta sua
vida enquanto caminha. Ela era dançarina, um mal a abateu há trinta
anos, arruinando a sua musculatura e lhe deixando com problemas de
equilíbrio: “Eu engano, este guarda-chuvas é uma bengala, sem ele eu
cairia.” A linha do seu discurso, entrecortado por episódios de sua vida
e de reflexões sobre as tumbas, é impossível reconstituir. Mas chegando
no “canto dos Marechais”, ela diz: “Ah! Há com o que se instruir aqui,
você sabe! Podemos revisar a história!”, e ela conta uma segunda vez a
origem dos crepes Suzette assim batizados pelo Príncipe de Galles com o
nome de sua amante. Mas não se trata apenas de anedotas. Assim que
lê os nomes, ela busca incansavelmente reunir os casais, reencontrar as
alianças e as filiações. “A família deste aqui não se acabou, veja só: 1976.”
Em seguida, surgem dois gatos. Ela os chama, tira uma lata de sua bolsa,
lhes dá um pouco de alimento com a ajuda de um pequeno ramo que
catou, o que não a impede de continuar dando suas opiniões: “Eu não
sou a favor de Napoleão. Ele deixou a França debilitada, e todos esses
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presentes, princesa de Nápoles, rei de Roma, eu os desprezo!”. O passado
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é estimado no presente.
Há também tumbas em que seus passos a conduzem com frequência: “Eu
o farei conhecer meus namorados, um casal que se amou por toda a vida,
é bonito, não é? Eu tenho também uma pequena, linda, tem uma foto.
Morrer aos 18 anos de uma bala perdida na Liberação não é aceitável,
então eu vou vê-la, eu a imagino e tenho a impressão de que isso é bom”.
Assim o povo vem se instruir – a palavra volta obstinadamente – neste livro
aberto do saber e do imaginário em que cada um pode se servir à sua ma-
neira, vibrar ao seu modo. Ninguém foge ao contato efêmero diante dos
túmulos cuja celebridade os tornou públicos. E todos se maravilham com
esta fidelidade fervorosa da qual participam: “Chopin sempre tem flores
frescas, eu tenho certeza, eu as toquei; é normal depois de tudo o que ele
nos deixou”. O que aqui está sendo abordado pertence às culturas popu-
lares, que se tornaram uma de nossas preocupações e das quais mostramos
anteriormente que não dissocia o afetivo do saber.
A visita seguinte destinou-se a investigar sobre esta “instrução pública”
difundida no Père-Lachaise. Um casal se detém diante do epitáfio de Desjar-
dins, atingido em Moskowa: “Que nós o honramos ainda/os vencedores
de tantas batalhas”. Ela: “Está marcado isso no teu livro sobre Napoleão?”
Ele: “Não creio. Será preciso que eu o reveja”.
O que mais podemos aprender além das guerras e do parentesco desses
personagens históricos? Podemos revisar seus departamentos7 (nascido em
Bard, Cote-d’Or); nos iniciarmos na filosofia: “Agir como se não houvesse no
mundo nada além de sua consciência e de Deus”, ou na língua antiga que,
em 1827, não colocava ainda o “t” na palavra enfans e dizia: “Aqui repousa
Dame Achille”; reler os poetas, alguns versos de Baudelaire gravados aqui
e acolá; progredir nas ciências e na literatura com os inventores e as obras
citadas, conhecer ainda mais as instituições, os títulos do defunto figurando
por extenso, e formar seu julgamento estético. As esculturas são numerosas,
e Madame M. diz: “Podemos saber, quando é mais ou menos a mesma data,
se trata-se do mesmo escultor, apenas olhando as faces das mulheres. Elas
se parecem porque o escultor representa sempre a mulher que ele ama,
mesmo não o fazendo voluntariamente”. Não há nada além da religião que
esteja, de modo paradoxal, simbolicamente representado pela cruz ou pela
estrela de David, com algumas injunções à prece. Os prelados parecem
raros. Podemos nos constituir, em suma, em boas figuras na sociedade ou
ganhar “jogos do milhão”. O Père-Lachaise é uma enciclopédia.
7
Unidade administrativa do território francês (N. do T.)
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Mas o pesquisador é perturbado por duas “mulheres dos gatos” já an-
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16 de março – O tempo está bom mas o lazer de tomar notas não
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inventores. Sobre Apollinaire ele pergunta: “Você sabia que ele devia
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casar com Marie Laurencin? Mas foi Jacqueline quem o cuidou, então
ele enamorou-se dela. É humano.” E diante de Modigliani: “A mulher
com quem ele vivia, veja só, é a mesma data, ela se jogou pela janela
quando ele morreu”.
Por vezes um detalhe no túmulo incita a algum julgamento de ordem
afetiva: “Crozatier, você acredita que ele era marceneiro?” Por causa
dos móveis? “Ele era bronzista, o melhor.” E diante do mausoléu do
estatuário em cima de seu busto em bronze, ao lado daquele em pedra,
decapitado, de sua mulher, ele estima: “Ele poderia até ter feito um
bronze para sua mulher. Eu não acho bom de sua parte, um bronzista
com tal talento!” É preciso notar que um membro da família de Leon
Daudet está separado da cova: “Deve ter se passado alguma coisa, uma
disputa entre eles”.
Mas se, como as mulheres, ele dá vida às famílias e aos seres, mais do
que elas, ele se interessa pelas técnicas e pela história política, deixan-
do discretamente filtrar suas opiniões. “E Juliette Dodu? É preciso
conhecê-la, ela foi morta em 1970. Eu vou mostrá-la a você.” Seu périplo
se estende pelo Muro dos Federados, sempre florido de cravos, passa
diante da filha de Karl Marx. Lugares estão sendo reservados próximo
a Marcel Cachin: “É para não deixar os burgueses chegarem perto”. De
Victor Noir, ele confessa, pudico, que “dizem que as mulheres estéreis
deitam-se sobre ele”, mas, não as tendo visto, ele prefere contar sobre
o assassinato do jovem por Pierre Bonaparte.
Como ele constituiu o seu saber? Ele tem 80 anos. Desde os 16, vem
três vezes por semana. Anota os nomes em uma lista, depois efetua as
pesquisas em bibliotecas. “Na Pompidou tem muitos livros.” Antes ele
se contentava com as bibliotecas de bairro. “Somos cerca de uma dezena
de pessoas que sabem tudo do cemitério e nós nos passamos algumas
dicas.” Mas ele se lamenta pelas depredações sistemáticas – quebra de
cruzes e roubos de bronzes – das quais o Père-Lachaise tem sido alvo há
quatro anos. Do pequeno padre nós não sabemos nada, a não ser que
ele nasceu na rue Ordener mas, percebendo um frontão ornamentado
com instrumentos esculpidos, ele nota: “Com o paquímetro e tudo,
certamente um grande empreendedor!” E certamente ele é um velho
operário parisiense.
Diante das inscrições apagadas pelo uso, ele ensina o que foi gravado:
“São os pais de Fulano; é Mademoiselle Lenormand. – Como você
sabe? – Antes, a estela não estava quebrada”, ou ainda: “Há 16 anos
nós ainda podíamos ler”.
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Já são uma dezena a guardar o tesouro, depositários da memória coletiva,
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ele que transmitir oralmente os segredos dos antigos em vez de torná-
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Abstract
Many aspects of urban life resist the application of orthodox research
techniques. Notably, the urban phenomenon of anonymous encounters
(“rencontres” in French) has yet to reveal its secrets. The anthropologist is
perhaps particularly well prepared to meet this challenge. the “floating obser-
vation” method consists in keeping one’s responsiveness, not focussing one’s
attention upon any specific object. Several days’ trails in the Père-Lachaise
cemetery of Paris bring to light a heretofore unsuspected use of this space
and the existence of genuine memory collectors. The latter, however, reveal
their knowledge only through chance encounters.
Keywords: urban anthropology; ethnographic method; floating observa-
tion; direct observation.
Referência
BAUDRILLARD, J. L’Échange symbolique et la mort, Paris, Gallimard, 1976.