PRISTA Revolucao Turismo e Antropologia

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Etnográfica

Revista do Centro em Rede de Investigação em


Antropologia
número especial | 2024
Número Especial - 50 Anos 25 de Abril

Revolução, turismo e antropologia


Marta Prista

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/etnografica/16100
DOI: 10.4000/etnografica.16100
ISSN: 2182-2891

Editora
Centro em Rede de Investigação em Antropologia

Edição impressa
Paginação: 279-288
ISSN: 0873-6561

Refêrencia eletrónica
Marta Prista, «Revolução, turismo e antropologia», Etnográfica [Online], número especial | 2024, posto
online no dia 23 abril 2024, consultado o 25 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/
etnografica/16100 ; DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.16100

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos
importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
etnográfica  número especial 50 anos 25 abril  2024: 279-288

Revolução, turismo e antropologia


Marta Prista
PRISTA, Marta ([email protected]) – CRIA NOVA FCSH / IN2PAST. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-7210-4373.
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Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou.1

AVRIL AU PORTUGAL. PELA MÃO DO COMISSARIADO DE TURISMO,


o Estado Novo promoveu a viagem a Portugal recebendo os estrangeiros no
dia do turista com flores, souvenirs e sorrisos de jovens trajadas à imagem do
país que se queria.2 Em 1974, uns dias depois, as flores são cravos, os trajes
são militares e abril é destino de revolução. Depois do adeus ao regime, Grândola,
o povo sai à rua, o mundo corre o país. É a “nação em movimento” de José
Cardoso Pires (1999: 225).
De fora chegam os revolution junkies, chamou-lhes Joana Craveiro, repór-
teres, fotógrafos e cineastas ávidos por ver, viver e contar a revolução. São
nomes como García Márquez, Phillippe Gavi, Glauber Rocha e Robert Kramer.
Escrevem para a Time, o International Herald Tribune, The Guardian, Le Monde, o
Libération, a Triunfo, a Alternativa e a Visão; filmam Torre Bela (Harlan 1977) e
Viva Portugal (Rauch, July e Schirmbeck 1975), montam Revolução (Hatherly
1975) e participam em As Armas e o Povo (CTAC 1975). “Em que mês foste?”
torna-se outra credencial da imprensa, lembra Ramon Font.3 Juntam-se inte-
lectuais, dirigentes e militantes políticos, de Jean-Paul Sartre a Manuel Caste-
lls, de Rossanna Rossanda a Georges Marchais. Convidados ou por arroubo,
vinham ver o “último teatro leninista”, a revolução ainda era possível na
Europa (Pouchin 1994: 180). Das ditaduras sul-americanas, chegam militares
e militantes “carentes de alecrim”.4 Comunistas e outras esquerdas brasileiras
associam-se às organizações políticas portuguesas, exilados no e refugiados do
Chile juntam-se à “primavera”, alguns dividem Um Lugar ao Sol na Caparica
com os mal-chamados retornados (Pezzonia 2016).
A nação em movimento era também a dos militares e militantes, de quadros
técnicos e jovens profissionais, artistas e estudantes que, percorrendo o país,
fazem a revolução na luta pel’“a paz, o pão, habitação, saúde, educação”.5
A norte e centro, as Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do
MFA mobilizam o setor cultural e intelectual em jornadas pelas aldeias com
vista ao esclarecimento político, descentralização cultural e participação do
povo no projeto revolucionário (Almeida 2009). A sul, a natureza coletiva e
anticapitalista da Reforma Agrária gera novas relações de produção apoiadas

1 Nasci depois de abril, depois do PREC, e assim me cantarolavam entre a provocação e o carinho
quando expressava nostalgia do que não vivi, adaptando O Sonho Acabou (Gilberto Gil 1972).
2 RTP Arquivos, “Dia do Turista em Lisboa”, 20/04/1968.
3 Susana Salvador, “Ramon Font: o homem da Catalunha em Lisboa”, Diário de Notícias, 11/09/2016.
4 Tanto Mar (Chico Buarque 1974).
5 Liberdade (Sérgio Godinho 1974).
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por militares progressistas e estruturas sindicais (Barros 1981), e a Comissão


Revolucionária de Apoio à Reforma Agrária organiza o trabalho voluntário de
estudantes e jovens profissionais. Por todo o país, viajam médicos do Inter-
nato de Policlínica e Serviço Médico à Periferia na democratização do acesso
aos cuidados de saúde; estudantes no Serviço Cívico Estudantil, Campanhas
de Alfabetização e Educação Sanitária ou Movimento Alfa atuam da cultura
à infraestrutura para lá do muro da escola (Oliveira 2004); arquitetos, enge-
nheiros e técnicos do Serviço de Apoio Ambulatório Local apoiam o exercício
do direito à habitação (Baía 2012). Em comum, partem pelo país para tomar
contacto com o povo, suas realidades e suas necessidades, entre o espírito de
missão e outras obrigações, mas também para formar cidadãos da nova nação,
entre os que vão e os que estão.
Nem sempre as suas práticas em viagem os colocam no campo do trabalho,
todavia. Tão-pouco são os únicos atores da nação em movimento. Militantes e
brigadistas vão também na promessa de aprendizagens mútuas e experiências
gratificantes, moral e esteticamente, à mesa e ao sereno. Tavares Rodrigues
fala de ir à praia “lavar o cansaço” e ver a beleza “que os trabalhadores hão de
aprender a visitar e a sentir seus, logo que para tal disponham do mínimo de
lazer, do mínimo de bem-estar, que tornam a vida humana”.6 À margem das
campanhas, outros aventuram-se “ao encontro do povo” (Branco e Oliveira
1993). Jovens batem à porta para saber como ajudar na construção de uma
sociedade mais igualitária (Baía 2012) e profissionais juntam-se ao CRARA e a
movimentos estudantis para conhecer a vida real das pessoas, entre o trabalho
e o lazer, a visão contrapastoral das condições materiais e o romantismo do
idílico pastoral, como modernos que são na “busca da autenticidade” em outro
tempo e espaço (MacCannell 1976). Uns vêm fazer a revolução socialista,
andar em sessões de esclarecimento e empilhar cortiça ou dormir nos montes e
cear com os trabalhadores não diferindo na natureza, pois “na militância todo
o trabalho é igual, intelectual ou manual”; outros vão para os olivais na carroça
e ficam “sem costas e sem mãos” para conhecer no corpo o trabalho e a vida
rural que não era a sua.7
Do estrangeiro, turistas e militantes vêm ver a nova sociedade nascer e
participar na revolução que desejam mundial. Da Europa chegam tours para
visitar os lugares e os atores da revolução portuguesa, com turistas engajados
politicamente e outros em busca do seu “extra-ordinário” (Urry 1990). Sedes
e manifestações políticas, fábricas e cooperativas agrícolas tornam-se visitas
obrigatórias como a PIDE foi para os jornalistas de Abril (Araújo 2019). Com
a Nouvelles Frontières, fundada pelos jovens de Maio de 68 e experiente no
Chile de Allende e no socialismo agrário da Tanzânia, vêm em família e como

6 Urbano Tavares Rodrigues, “A Rocha de São Torpes”, Diário de Lisboa, 01/07/1974, p. 3.


7 Conversas informais com participantes em ações do CRARA, MES e UEC (dezembro 2023).
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família, Patrick Weil até guia uma excursão em autogestão no governo do alo-
jamento e itinerário.8 Voluntários juntam-se a movimentos organizados, como
os Companheiros Construtores, de inspiração católica, para trabalhar e conhe-
cer o país através das famílias que os hospedam e com quem convivem (Baía
2012). Na Cidade Universitária, instala-se um campo de juventude interna-
cional para fazer “política prática” na troca cultural entre revolucionários de
diferentes nacionalidades.9 E os estudantes lançam o turismo estudantil para
trazer jovens da província à cidade em atividades educativas, para levar jovens
à província a estabelecer “contacto profundo” com realidade e gente do país.10
De outros turistas no exterior do aparato que lhes dá rastro sabe-se pouco.
Da Europa chegam atraídos pelo sol e pela festa, pelo baixo custo de vida e
pela ausência de turistas. A esquerda francesa viaja para Portugal como des-
tino revolucionário quase exótico no atraso que promete a experiência de si e
do outro (Pereira 2010). De Espanha, vêm também em busca de “souvenirs de
liberdade”, práticas que proibidas em casa tornam Portugal em experiência de
emancipação e consumo cultural (Luís 2019). Nas estradas, veem-se mochilei-
ros alemães a caminho do Algarve para beber cerveja na praia e falar com os
pescadores na lota.11 Depois da FNAT, o INATEL conduz o direito ao repouso,
lazer, cultura e desporto na oferta de turismo social e animação cultural. Como
o exercem operários e pescadores, camponeses do norte e trabalhadores do sul
é questão que fica. Mas, organizados e não, não são “hordas de turistas” que
compensem a perda da “clientela habitual” afugentada pela “imprensa alar-
mista” (Colombani 1976: 139).
Diz a história, “para a luta política em curso, o turismo é irrelevante” (Brito
2003: 835), um hiato entre a década de ouro de 1960 e a política de desenvol-
vimento regional de 1980. Talvez. Mas Abril tornou-se sinónimo de liberdade
– liberdade de movimento e de associação, de expressão política e ético-
-moral, de experiências e sociabilidades, lazer e consumo, liberdades que fazem
o sortido de práticas que fazem o país em movimento. Desenhado na viagem
e no encontro com o outro, o turismo é expressão desta liberdade, e da disci-
plinação das suas possibilidades. Claro que a recessão económica internacional
se reflete no setor, nacionalizações e intento contra o sistema produtivo oli-
gárquico geram quebras de produtividade e inflação, a descolonização encerra
o mercado colonial e traz milhares de cidadãos sem habitação nem trabalho,
enquanto novas condições laborais e correções salariais combatem a explora-
ção e retraem o investimento privado. De atividade em ascensão, o turismo
quebra em metade. A revolução tem de o pensar.

8 Isabel Lopes, “Turismo na revolução”, Única, 24/04/2004, pp. 62-68.


9 Marvine Howe, “Political tourists flock to see Portugal’s revolution”, The New York Times,
07/09/1975.
10 RTP Arquivos, “Turismo Estudantil”, 06/11/1974.
11 Conversas informais com participantes em ações do CRARA, MES e UEC (dezembro 2023).
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Logo no I Governo Provisório, Pereira de Moura defende o turismo de mas-


sas contra o que seria a prostituição do povo e Manuel Rocha retruca que o
turismo não é setor social, é expediente para equilíbrio das contas (Colombani
1976). À frente da DGT, Cristiano de Freitas é apoiado por José Carrasco,
sucessor de si mesmo nos novos Serviços de Promoção. Com o III Governo
Provisório, institucionalizam-se o turismo social e a promoção internacional.
O direito ao descanso e férias das classes trabalhadoras coloca o turismo no
campo da democratização, chegam até notícias de campistas nos golfes do
Algarve (Colombani 1976). Mas como indústria de produção e exportação,
o turismo é desenvolvimento, está com o Comércio Externo na orgânica dos
governos e nos anúncios de “Portugal, feel free” nos autocarros londrinos.12 Não
significa que arrede o social, tão-pouco o socialismo, inclusive foi recurso na
resposta imediata aos efeitos sociodemográficos da descolonização e estendeu
os órgãos oficiais à Europa de Leste. Mas cedo o VI Governo Provisório reage
às preocupações da indústria e declara o turismo como “atividade privada e
prioritária” (Pina 1988).
Talvez o turismo tenha caído fora do aparelho ideológico do Estado durante
o PREC, não sendo, como em países socialistas da Ásia e América Central,
agente de projetos oficiais de socialização política de cidadãos (cf. Zuo, Huang
e Liu 2015). Mas a Revolução dos Cravos foi atração e experiência turística de
diferentes atores e forças de transformação social. É possível que, como insti-
tuição e exercício da ideologia dominante, tenha sido expressão do poder frag-
mentado do Estado, com visões e interesses plurais, conflituais e antagónicos;
o seu “arquivo” frustrado pela desarticulação institucional, desordem social
que a recém-adquirida liberdade animou, falta de controlo de fronteiras por
uma polícia retraída (Pereira 2010). É provável que, como “campo laborato-
rial” da antropologia (Silva 2004), o turismo na revolução tenha sofrido da sua
genérica desqualificação como tema sério das ciências sociais numa conceção
hedonista e economicista; o seu “repertório” desconsiderado por uma antropo-
logia então indiferente ao processo de transição democrática (Almeida 2007).
São afinal conhecidas as críticas ao turismo como pseudoevento, mercadoriza-
ção da cultura e forma de imperialismo. Abel Manta retratou-as em Algarve e
Noites Algarvias, no turista que olha “uma casa portuguesa com certeza”, sem
“paredes caiadas”, e “na fachada escrito em cima que é” Vila Allende.13 Inte-
gram, porém, a ambiguidade intrínseca do turismo como indústria e práticas,
económicas e culturais, políticas e sociais.
Pensando-o como modo de produção integrado nas pastas ministeriais da
economia e comércio externos durante o PREC, a evasão do turismo à nacio-
nalização e a persistência de consumos de classe parecem indiferentes ao seu

12 Disponível em < https://eshtoris.hypotheses.org/3704 > (última consulta em abril de 2024).


13 Cf. Uma Casa Portuguesa (Amália Rodrigues 1953) e Gente Humilde (Chico Buarque 1970).
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papel na configuração de sociedades capitalistas, mais do que prenúncio da


revolução dos seus meios e relações de produção. O casamento difícil entre
socialismo e turismo é conhecido nas tensões geradas entre visões de cidadania
e justiça social e efeitos da inscrição numa economia política internacional
(Sanchez e Adams 2008). Mas a relação entre turismo e política é intrínseca,
um e outra constroem lugares e imaginários negociados entre intervenções
mais e menos explícitas da sua produção, e a experiência e representação de
atores sociais plurais. Neste recorte, o que faz o turismo quando a revolução é
motivação? Diz um turista político, “do estrangeiro, parece que a revolução já
aconteceu em Portugal, mas aqui vês que está só a começar”.14
A revolução é mais do que a rutura com a ordem vigente ou quebra de
paradigma político. Está na experiência e memória incorporadas, mas tam-
bém na imaginação e vontade das forças revolucionárias e forças sociais que
transformam regimes de governança e do social de modo contingente, plural
e concorrente, na organização de novas realidades sociais. Também o turismo
é mais do que indústria económica e instituição social, enquanto prática cul-
tural e encontro moral, modo de ordenar o mundo. Dean MacCannell consi-
derou-o modelo para pensar o homem moderno e John Urry o pós-moderno,
Adrian Franklin viu-o como construção do self e Freya Higgins-Desbiolles força
social e empreendimento moral. No presente da revolução, o turismo pode
assim ser visto como campo de performance revolucionária onde a antropologia
pode inquirir a insubmissão da revolução a uma qualquer coerência ou encer-
ramento; o turista de Abril revelando imaginários da sociedade que vive e que
quer, em continuidade ou em rutura com o Avril au Portugal, reescrevendo
geografias do país, culturais e recreativas e revolucionárias. Como então a revo-
lução faz o turismo, como o turismo faz revolução? Como ou se.
Turismo político e turistas revolucionários, turismo de revolução e turis-
tas de solidariedade são algumas das expressões usadas para designar relações
entre a revolução socialista e a prática turística em Cuba, na Nicarágua, ex-re-
públicas soviéticas e RDA, China e sudeste asiático.15 Como categorias têm
limites analíticos, escapam a porosidades e divergências, encontram resistência
entre atores sociais que mantêm viva a divisão moderna trabalho-lazer. Não
deixam de convocar formas de ver e fazer a revolução na experiência turís-
tica promovida como forma de socialização ideológica, vivida como solidarie-
dade cosmopolita ou consumida como atração extraordinária. No confronto
e convergência, circulação e interação, tensão e negociação, entre seus discur-
sos e imagens, práticas individuais e coletivas, relações estruturais e condições
materiais, tornam-se, porém, tangíveis os “imaginários turísticos” (Salazar e

14 Marvine Howe, “Political tourists flock to see Portugal’s revolution”, The New York Times, 07/09/1975.
15 Destaca-se o trabalho de Maureen Moynagh, Paul Hollander, Florence Babb, Bing Zuo, John
Hutnyk.
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Graburn 2014) do país e do povo, de sociedade e de classe, da revolução, que


colocaram a “nação em movimento”. Olhar para a sua coreografia e para a
reconstrução contínua da “praxis e do espaço” (Edensor 2001) na regulação e
no improviso de práticas de viagem, de encontros e de experiências turísticas,
é pensar na sua performance como conhecimento corporizado que informa ima-
ginários políticos e sociais, racional e emocionalmente, fazendo revolução na
abstração e no particular.
A paisagem da revolução pode ter sido mercadorizada pelo turismo, como
marketing da nação para sossegar ansiedades com uma Cuba na Europa ou
expressão da polifonia ideológica que projetou em Portugal diferentes ima-
ginários e aspirações revolucionários. Não deixou por isso de responder a
sensibilidades socialistas ou internacionalistas de quem, na luta política por
outra sociedade, encetou “viagens sagradas” (Graburn 1978) na performance
de dramas que aqui são tão individuais como coletivos. Os campos, as obras
ou a dinamização cultural foram loci de ideias e de práticas socioprodutivas, a
questão é se criaram novas relações de produção e governação, se fizeram revo-
lução. Outras pessoas saíram em busca da autenticidade do país na experiên-
cia de outro modo de vida como performance de uma nova cidadania e ordem
social. Diluindo a distância entre trabalho e lazer, participar tornou o trabalho
objeto de curiosidade turística tanto quando conhecimento corporizado de
outra realidade material. Ao povo como “co-agente do processo revolucioná-
rio” (Almeida 2009: 339), juntam-se então jovens estudantes e profissionais,
principalmente urbanos. E nesta construção de outra sociedade pela colabora-
ção e fraternização talvez se ensaiem novas relações e estruturas sociais, mas
também se desafiem as vontades de desdiferenciação na intelectualização de
práticas assentes em discursos sobre o outro e a sua autenticidade.
Talvez a questão se coloque no campo da agência e da relacionalidade gerada
no encontro turístico e revolucionário. Todo o gaze é mútuo, e a intimidade do
encontro, turístico e revolucionário, é mobilizada na contestação e renegocia-
ção de imaginários de país e revolução, de fronteiras sociais e construção do
self e do outro, entre práticas militantes, de solidariedade e de consumo ético,
mas também do quotidiano. Enfim, afinal, que fez a presença de trabalhado-
res-turistas nos campos para quem os vivia sem escolha? Pensar o turismo da
revolução na sua dimensão imaginativa enquanto prática cultural e projeto
social não pode descuidar outros olhares, afastar representação e performance de
relações de poder e trabalho, de desigualdades estruturais e da economia polí-
tica, da disrupção no modo de vida local. Que a atenção ao mural não distraia
do facto de o muro ter sido vendido, advertiu Naomi Klein.
Em 1975 “murcharam a festa”,16 em 1976 “o sonho acabou”. A crise da
legitimidade revolucionária dá lugar à legitimidade democrática, a construção

16 Tanto Mar (Chico Buarque 1978).


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do Estado socialista ao Estado europeu neoliberal, em processo a recomposi-


ção do sistema capitalista (Santos 1984). A Constituição consagra o direito
ao repouso e lazer, o direito à cultura e ao desporto. O Estado tem o dever de
acautelar a sua infraestruturação, mas o turismo é considerado “não naciona-
lizado nem nacionalizável”, setor económico de iniciativa privada a promover
com vista à atenuação do déficit da balança de pagamentos, valorização do
património nacional, criação de emprego e qualificação da vida das popula-
ções. Em 1977, o turismo é o único saldo positivo na balança de pagamentos,
“passada a perturbação local, é o business as usual” (Brito 2003: 829), mas
“amanhã pode ser outro dia”.17

17 Cf. Apesar de Você (Chico Buarque 1978).


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