Sobre Não Humanos
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PALAVRAS-CHAVE: Animal; Olhar; Literatura; Mia Couto; Clarice Lispector; Jacques Derrida.
INTRODUÇÃO
Partimos da evidência de que os animais habitam a água, a terra e o ar e partilham conosco o
planeta e seus recursos, estabelecendo com os humanos os mais diversos tipos de relações e
despertando em nós o que há de melhor e pior. Além disso, é notória a existência de pessoas
defensoras da causa dos animais, as quais constroem abrigos, cuidam dos abandonados, investem
dinheiro neles, revelam sua solidariedade e respeito com a vida por meio de cuidados e tempo
destinados aos animais. Por outro lado, há os que machucam, maltratam e abandonam os animais,
deixando-os desamparados, chegando até os extremos da tortura de animais por diversão. Por toda
essa relação com o humano, os animais são investigados há bastante tempo pelas diversas áreas do
saber e, assim como as ciências e a religião, a literatura também investiga os animais em suas
distintas representações, seja em prosa ou verso, em uma tentativa de compreendê-los ou de
subjugá-los.
animal que logo sou (2002), afirma ter se surpreendido ao ver seu
Jacques Derrida, na obra O
gato observando-o nu e admitiu sentir vergonha disso. Tomando o texto do pensador francês por
m rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), de Mia
base, selecionamos duas obras, U
Couto, e o conto “O búfalo” presente em L
aços de família (1998) de Clarice Lispector, obras que têm em
comum a troca de olhares entre humanos e animais. A partir da leitura destes textos, levantamos os
seguintes questionamentos: o que essa troca de olhares desperta no ser humano? Como esses textos
retratam o animal? Ele é sujeito ou objeto? O que essas representações despertam em seus leitores?
Objetivando responder a nossos questionamentos, partimos da hipótese de que existem duas
formas de o animal aparecer na literatura: enquanto sujeito e como objeto (duplicidade consoante à
assumida por Maria Esther Maciel, 2011) O animal que é visto, mas não vê, manifesta-se enquanto
objeto; entretanto, aquele que sustenta a troca de olhares ganha o status de sujeito. Desse modo,
pretendemos verificar de qual dessas formas participa o animal nas narrativas selecionadas.
Este trabalho surgiu a partir de nosso estudo da presença de animais na literatura em atividades
do Grupo de Pesquisa em Estudos Literários da UNIR, e uma série de discussões acerca desse outro
1
Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal de Rondônia. Bolsa CNPq/PIBIC-UNIR. E-mail:
[email protected]
2
Docente do Departamento de Línguas Vernáculas e Mestrado em Estudos Literários da Universidade Federal de
Rondônia.
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que nos é tão diferente. A possibilidade deste estudo efetivou-se uma vez que a literatura não tem
uma finalidade prática, não busca descobrir uma verdade universal ou pregar uma forma certa de
viver, mas nos permite pensar, conhecer e vivenciar os mais diversos tipos de experiências. Por meio
da literatura somos convidados a pensar sobre nós mesmos e sobre tudo o que nos rodeia, inclusive
o outro humano e animal, bem como as relações existentes entre eles.
Levando em consideração que “os olhos são as janelas da alma”, pensamos sobre como se dá a
experiência da troca de olhares entre humanos e animais na literatura e o que isso causa em nós. A
partir da leitura literária atenta podemos, ainda, aprender a respeitar esse outro que nos parece tão
enigmático.
1.A LITERATURA, O FILÓSOFO E OS ANIMAIS
1.1 Literatura e outridade
A literatura é “um fenômeno cultural e histórico e, portanto, passível de receber diferentes
definições em diferentes épocas e por diferentes grupos sociais” (ABREU, 2006, p. 41); ela nos permite
pensar e analisar o mundo que nos cerca, refletindo sobre nós mesmos e o outro, conforme afirma
literatura em perigo (2009): “A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão
Todorov, em A
quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres
humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver” (TODOROV,
2009, p. 76).
Diante disto, questionamos: se a literatura pode nos aproximar dos outros seres humanos não
teria também o poder de nos aproximar dos animais? Fazer-nos questionar sobre discursos e
opiniões pré-estabelecidos? Qual seria o nível de poder da literatura no tocante a essas questões?
Para refletir sobre essas problemáticas, escolhemos a área de pesquisas denominada Estudos
o que diz respeito, principalmente, às pesquisas sobre a presença animal na literatura,
Literários n
com o intuito de analisar como a questão animal aparece nas obras escolhidas.
Os animais sempre despertaram a curiosidade e o fascínio do ser humano: o que nos aproxima?
O que nos afasta? Segundo Maria Ester Maciel: “Os animais, sob o olhar humano, são signos vivos
daquilo que sempre escapa a nossa compreensão. Radicalmente outros, mas também nossos
semelhantes, distantes e próximos de nós, eles nos fascinam ao mesmo tempo que nos assombram e
desafiam nossa razão (MACIEL, 2011, p. 85).
Os animais não humanos foram inferiorizados pela filosofia ocidental, segundo a qual o humano
possui razão e o animal não, foram demonizados pelo cristianismo na Idade Média, para o qual a
parte animal do homem é perigosa e portadora de todos os males, e na era moderna, por sua vez,
com o triunfo do pensamento cartesiano, são considerados máquinas sem alma (MACIEL, 2011, p.
85-86).
Em resumo, o humano sempre pensou/discutiu a questão animal para mostrar sua superioridade
com relação a ele. Assim como a filosofia, a religião e as ciências, a literatura também sempre buscou
retratar o animal, seja pela prosa ou pelo verso. Nas palavras de Maciel:
No que tange à literatura [...] pode-se afirmar que as tentativas de sondagem da outridade animal
nunca deixaram de instigar a imaginação e a escrita de poetas e escritores de diferentes épocas e
procedências, seja pela investigação das complexas relações entre humano e não humano, entre
humanidade e animalidade (MACIEL, 2011, p. 85).
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É possível observar a presença dos animais em diversas obras de autores brasileiros e
estrangeiros, isso porque os animais sempre despertaram a curiosidade e o fascínio do humano:
escrever sobre o que não se conhece ou não se consegue compreender parece um desafio a diversos
escritores, mesmo que seja para antropomorfizar ou subjugar, o humano escreve sobre o animal
numa tentativa de compreendê-lo.
A questão animal está presente em variados momentos da obra do moçambicano Mia Couto,
sendo possível, em seus contos e romances, observar a presença da animalidade. Dentre os contos da
coletânea O fio das missangas (2009), destacam-se as narrativas “O peixe e o homem” e “O dono do
cão do homem”, os quais apresentam uma relação invertida entre humano e animal. Questões como a
dominação e o estranhamento do animal pelo humano perpassam as narrativas; já na obra Contos
do nascer da terra (2014), a estranha gestação de um tucano por uma mulher é tema da narrativa do
conto “O último voo do tucano”, tema esse que espanta o leitor.
Já em seus romances, Couto sempre destaca a presença de uma personagem animal: por
erusalém, publicado no Brasil com o nome A
exemplo, em J ntes de nascer o mundo (2009) observa-se a
m rio
presença marcante da jumenta Jezibela, única personagem feminina de Jerusalém. Em U
chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), um burro enigmático habita a igreja de
Luar-do-Chão, destacando-se na narrativa e trazendo uma série de reflexões para o leitor da obra.
Essa passagem essa será analisada adiante.
A ficção de Clarice Lispector também é povoada por animais, do início ao fim, conforme pontuam
Evely Vânia Libanori e Maiara Usai Jardim no artigo “Ética animal em Clarice Lispector” (2015):
O conjunto da obra de Clarice mostra que o animal não humano sempre esteve em cena, desde o
erto do coração selvagem, em 1944, até Um sopro de vida, em 1977. Os animais
seu livro de estreia, P
ou bichos, palavra bastante usada nos textos, são considerados em sua própria identidade. As
personagens [humanas] pensam quem são a partir do contato com o animal (LIBANORI & JARDIM,
2015, p. 190).
Dentre as obras de Lispector, destacamos a presença animal no romance A paixão segundo G.H.
(2009), narrativa que transcorre evidenciando o encontro entre uma mulher e uma barata e o que este
encontro provocam na personagem humana; segundo ela: “fico tão assustada quando percebo que
durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida”
(LISPECTOR, 2009, p.12).
Em diversas outras obras de Lispector é possível verificar a presença do animal não humano.
Para a análise neste texto selecionamos o conto “O búfalo” presente na coletânea Laços de Família
(1998). A narrativa conta a angústia de uma mulher que vai até o jardim zoológico em busca de ódio,
“[...] olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas” (LISPECTOR, 1998, p.
182). A personagem passa pela jaula dos leões e o que encontra é uma cena de afeto, passa pela
girafa e diversos outros animais, mas tudo parece estar exalando amor, ao contrário do que
considerava que precisava: o ódio. Onde encontraria o sentimento que exprimisse tudo o que estava
passando? Ela encontra o que deseja? O que a troca de olhares provoca naquela mulher? Tais
questões serão pontuadas ao longo desse artigo.
animal que logo sou (2002), de
O texto teórico no qual nos baseamos para essa análise é O
Jacques Derrida, no qual o autor revela a experiência que viveu ao ser surpreendido por seu gato
observando-o nu e como se sentiu com relação a isso. O que esse olhar despertou em Derrida? O que
ele despertou nas personagens das obras selecionadas? Quem nunca se surpreendeu ao ser olhado
por um animal? O que sentimos com esse olhar? Questões como essas instigaram o presente estudo.
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desde livros e histórias infantis até poesias, contos e romances sobre o cotidiano mágico de
Moçambique.
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003) é uma obra narrada em primeira pessoa
por seu personagem-protagonista Marianinho, que vivencia a experiência de retornar à terra natal
após anos vivendo na cidade. Segundo Norman Friedman (2002), tal narrador (protagonista) “[...] se
encontra centralmente envolvido na ação. [...] E (a narrativa é) quase que inteiramente limitada a seus
próprios pensamentos, sentimentos e percepções” (FRIEDMAN, 2002, p. 177), o que apresenta
vantagens e desvantagens para a narrativa: por ser em primeira pessoa, o narrador parece mais
próximo do leitor, o que sugere que os fatos narrados sejam mais confiáveis; por outro lado, a
narrativa se torna limitada a um único ponto de vista.
Marianinho é o narrador de um romance e isto nos leva imediatamente para a questão do
gênero textual. Ian Watt, em seu livro A ascensão do romance ( 1990), dedica um dos capítulos à busca
por alguma característica capaz de distinguir essa forma literária das demais e ao mesmo tempo
preservar as particularidades de cada autor, segundo ele: “[O critério] fundamental [do romance é] a
fidelidade à experiência individual – a qual é sempre única e, portanto, nova. Assim, o romance é o
veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à
originalidade, à novidade” (WATT, 1990, p. 15).
Segundo Watt, uma das grandes características do romance, e o que o diferencia de outros
gêneros narrativos, é a fidelidade à experiência individual: no romance o autor não precisava mais
trazer temas e relatos de um povo e nem escrever sobre suas divindades. Na narrativa em análise é
apresentada a experiência individual de Marianinho ao regressar à ilha na qual nascera, tal como
suas sensações e impressões desse retorno.
Esse regresso desperta uma diversidade de sentimentos em Marianinho, que oscila entre a
cidade e a Ilha na qual crescera. Ele regressa à terra natal para realizar as cerimônias fúnebres de
seu avô Dito Mariano, e percebe que muitas coisas haviam mudado naquele lugar. O episódio que
será analisado nesse artigo é o que apresenta um burro que habita a igreja católica do lugar, fato
que assusta o narrador e causa estranhamento no leitor. A experiência desse encontro entre humano
e animal, e o que esse encontro provoca em Marianinho, é o que se destaca na passagem.
Diversos acontecimentos surpreendem o leitor na obra, mas o encontro entre o narrador e um
burro dentro da igreja católica da ilha é especialmente inquietante. Tudo começa com uma visita à
igreja católica da Ilha. Dulcineusa, avó de Marianinho e viúva de Dito Mariano, deseja que o padre
faça uma segunda unção do corpo do falecido para que ele pudesse atravessar a fronteira da vida
para a morte em paz, Marianinho a acompanha e, em determinado momento, ele observa algo
estranho. Segue o trecho:
Um cheiro estranho me invade o peito.
Um eflúvio de bicho, tenho quase receio em reconhecer.
- Não vos cheira a animal? 3
A Avó não permite a resposta (COUTO, 2003, p. 88-89).
Dulcineusa e o padre continuam a conversar normalmente, o que sugere que aquele cheiro já
não causa nenhum estranhamento naquelas personagens, mas Marianinho não consegue se
conformar com aquela situação. Em seguida, transcorre o encontro:
Nos retiramos quando, de supetão, dou de caras com um burro. Salto, de susto, ante o inesperado
da visão. O que fazia uma alimária no recinto sagrado das almas? Estava explicada a origem do
cheiro que ainda há pouco senti. O padre desafia-me:
3
Em seus contos e romances, Mia Couto grafa sempre os diálogos com uma fonte destacada, não só para distingui-los no corpo do texto, mas também para dar
relevo à palavra falada – afinal, é no mundo da oralidade que Mia Couto recolhe as tradições africanas que deseja ver preservadas (SILVA, 2008, p. 315).
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- Dou-lhe um prémio se o conseguir tirara daqui (COUTO, 2003, p. 89, grifo nosso).
O que fazia um animal naquele lugar? Essa é uma questão que passa pela cabeça do narrador
ao observar que “o burro me contempla com seus olhos de água empoçada. Havia tal quietude
naquele olhar que fiquei em dúvida se a igreja seria, afinal, sua natural moradia” (COUTO, 2003, p. 89).
O animal apresentava tamanha quietude e calma que Marianinho supôs ser aquela sua moradia
natural.
Segundo Mircea Eliade, “para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço
apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras” (ELIADE,
1992, p. 25). Logo, para o homem religioso “há um espaço sagrado, e por consequência “forte”,
significativo, e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência,
em suma, amorfos” (ELIADE, 1992, p.25).
No romance em análise encontra-se esse homem religioso e essa divisão de espaços: a igreja é
um espaço sagrado e o resto do mundo não, mas o que faz um burro nesse espaço sagrado? Como
ele se instalara ali? Como a maioria das personagens consegue ver aquilo como algo natural?
Marianinho não consegue se conformar com aquela situação. Mas, afinal, por que a presença de
um animal dentro da igreja causa tanto estranhamento no narrador e até mesmo no próprio leitor da
obra? Segundo Benedito Nunes
Com o animal, as relações são, sobretudo, transversais, ou seja, o animal é considerado o oposto do
homem, mas ao mesmo tempo uma espécie de simbolização do próprio homem. Na acepção comum,
simboliza o que o homem teria de mais baixo, de mais instintivo, de mais rústico ou rude em sua
existência (NUNES, 2011, p. 13).
De acordo com tal acepção, seria possível constatar que, na visão do humano, o animal não é
digno de estar em um espaço sagrado. Entretanto, aquele animal estava ali e apenas Marianinho se
espantava com aquilo, Dulcineusa e o próprio padre da igreja não demonstravam o menor espanto
diante daquela situação.
O padre ignora a curiosidade de Marianinho e apenas afirma “– a tua avó te explica depois, os
motivos da presença desse burro” (COUTO, 2003, p. 90) e se despede do narrador e Dulcineusa. Avó e
neto vão para casa e, após uma curta conversa, se recolhem cada qual para seu quarto, mas a
presença do burro na igreja intriga tanto o narrador a ponto dele sonhar com o animal. Nas palavras
do narrador:
[...] De noite, o bicho tinha espreitado o meu sonho. Não fora um pesadelo. Olhar de burro está
sempre acolchoado de um veludo afectuoso. Mas aqueles olhos eram mais do que isso. Possuíam
humaníssima expressão e me convidavam para travessias que me inquietavam, bem para além da
última curva do rio (COUTO, 2003, p. 95).
Aquele animal despertava muita curiosidade e até certa inquietude no narrador: ele revela que o
olhar do animal o havia causado estranhamento, pois os mesmos possuíam “humaníssima expressão”.
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à sua maneira, formas inventivas de capturar a outridade animal (MACIEL, 2016, p. 82), segundo Maciel:
“Todos eles [...] souberam criar animais-personagens de grande densidade e autonomia enquanto
sujeitos sensíveis e complexos, tendo abordado a relação humana com os animais como também um
exercício de aprendizagem” (MACIEL, 2016, p. 83).
aços de família ( 1998), de Clarice Lispector, apresenta diversas narrativas
A coletânea de contos L
nas quais o animal se destaca; o conto “Uma galinha”, por exemplo, relata a tentativa de fuga de uma
ave que estava destinada a terminar na panela de um almoço de domingo. No momento da narrativa,
portanto, ela estava “[...] ainda viva porque não passava de nove horas da manhã” (LISPECTOR, 1998, p.
41); diante do inevitável, a ave levanta voo e pousa no terraço do vizinho onde o dono da casa
pretende pegá-la. Inusitadamente, diante da angústia que vivia, a galinha bota um ovo, segundo a
narradora: “sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada” (LISPECTOR,
1998, p. 42, grifos nossos).
É possível observar que, no conto, aquela ave tem sentimentos, está sozinha, sem pai nem mãe;
entretanto, a maioria das pessoas quando vê uma galinha só pensa no almoço ou jantar. Logo, as
narrativas de Lispector abrem os olhos do leitor para pensar questões incomuns, como: uma galinha
sente medo? Solidão? Ela pressente e foge da morte? Segundo Libanori e Jardim (2015):
As narrativas de Clarice Lispector pensam a condição do animal não humano em nossa cultura. As
personagens fazem do animal o tema de suas reflexões, no sentido de que se importam
verdadeiramente com ele. Elas questionam se é certo matar animais para comer (LIBANORI &
JARDIM, 2015, p. 197).
Após a ave botar um ovo, a filha do dono da casa e sua esposa pedem para que o homem não
mate o animal e ela passa a ser tratada muito bem naquela casa. Entretanto, a galinha sempre
pensava naquele momento de fuga e cogitava a possibilidade de alçar voo novamente, o que não
acontece. Ao contrário, a narrativa tem um desfecho um tanto surpreendente: “até que um dia
mataram-na, comeram-na e passaram-se anos” (LISPECTOR, 1998, p.45). O que nos faz perceber que o
momento de respeito ao animal não humano dura pouco tempo e logo tudo volta ao normal, almoço
de domingo com a galinha em seu devido lugar: a panela. Tal narrativa nos chamou a atenção por
relatar com grande sensibilidade a vida de uma ave que o humano já estabeleceu como alimento.
O conto “O búfalo”, por sua vez, apresenta outras nuances acerca da questão. A mulher do
casaco marrom, personagem principal do conto, encontrava-se desesperada e, de modo intrigante,
no jardim zoológico, busca entre os animais um olhar que lhe ajudasse a adoecer. Nessa busca
incessante pelo ódio que sentia por um homem cujo único erro era não amá-la, ela encontra diversos
animais: um leão e uma leoa que haviam se amado, uma girafa, um hipopótamo e alguns macacos;
esses últimos animais despertam diferentes sensações naquela mulher:
Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em
levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com
olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas:
os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. (LISPECTOR, 1998, p. 183, grifos nossos)
Qual o tamanho do ódio que aquela mulher sentia? Seria tão grande ao ponto de matar aqueles
macacos simplesmente por estarem ali? É possível observar que seu ódio sai de dentro para fora e os
animais ao seu redor se tornam alvo desse sentimento, Benedito Nunes ao retomar as reflexões de
Peter Singer sobre a maldade do ser humano, afirma “os humanos matam outros animais por esporte,
para satisfazer a sua curiosidade, para embelezar o corpo e para agradar o paladar” (SINGER I n
NUNES, 2011, p. 17). Outro animal não mata por esses motivos, apenas o humano possui isso dentro de
si, logo, por que os classificam como selvagens?
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Há um fator que chama a atenção daquela mulher para os macacos, e esse fator é a nudez: “a
nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um
macaco também a olhou segurando as grades, os braços descarnados abertos em crucifixo, o peito
pelado exposto sem orgulho.” (LISPECTOR, 1998, p. 183). O que nos remete ao texto de Derrida (2002): os
ão e, conforme a personagem, o mundo não via perigo em ser nu,
stão nus, eles o s
animais não e
apenas o humano assim vê. A personagem expõe seus sentimentos até que algo parece mudar o
curso de tudo aquilo:
Mas não era no peito que ela mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre
aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os olhos do
macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença, era um
macaco velho — a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não
viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços
abertos: ele continuava a olhar para a frente. "Oh não, não isso", pensou (LISPECTOR, 1998, p. 183-4,
grifos nossos).
Que sentimento aquele macaco doente despertara nela? Seria ternura, pena, medo? Seja o que
for, ela foge, já que não era o ódio que buscava. Sua busca é incessante, anda pelo jardim zoológico,
encontra mães e crianças, um elefante, um camelo e essas personagens exalam paciência e amor,
nada do que buscava naquele lugar. Ela caminha e encontra um quati enjaulado e, segundo ela, este
parecia uma criança curiosa a observando; a mulher desvia daquele olhar, pois parecia que era ela
que estava enjaulada e não aquele pequeno animal.
A personagem segue desesperada e se pergunta: “mas onde, onde encontrar o animal que lhe
ensinasse a ler o próprio ódio? O ódio que lhe pertencia por direito, mas que em dor ela não
alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem?” (LISPECTOR, 1998, p. 189).
Após tantas tentativas frustradas, ela parece encontrar o que buscava:
E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca, sob os cascos secos. De longe, no seu
calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu
apenas o duro músculo do corpo. Talvez não a tivesse olhado. Não podia saber, porque das trevas
da cabeça ela só distinguia os contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou sentido
(LISPECTOR, 1998, p. 192).
Diversas vezes o búfalo parece notar a presença da mulher e o contato entre eles acontece,
primeiramente, através do olhar, ao que ela recua, mas o animal novamente nota sua presença, e
esse encontro parece proporcionar aquilo que a mulher tanto procurava; nas palavras da narradora:
“uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como
uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos” (LISPECTOR, 1998, p. 193). Ela o provoca, mas o búfalo
permanece imóvel, ela novamente o provoca e com isso “[...] de dentro dela escorria enfim um primeiro
fio de sangue negro.” (LISPECTOR, 1998, p. 194). Sua busca estava se findando:
O primeiro instante foi de dor. Como se para que escorresse este sangue se tivesse contraído o
mundo. Ficou parada, ouvindo pingar como numa grota aquele primeiro óleo amargo, a fêmea
desprezada. [...]
Então o búfalo voltou-se para ela.
O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e à distância encarou-a. Eu te amo, disse ela então com ódio para o
homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao
búfalo.
(LISPECTOR, 1998, p. 195).
A personagem transporta para aquele animal seus sentimentos, do amor que sentia pelo homem
que não a amava até o ódio que precisava sentir por ele, para assim não morrer de amor. Em
seguida, o búfalo novamente se move: “devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até
que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou a
cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos.” (LISPECTOR, 1998, p. 195). Aquele olhar a
surpreende, ela, que buscava adoecer e aprender a odiar, agora estava ali olhando os olhos do
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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