Práticas Feministas de Transformação Da Economia: Autonomia Das Mulheres e Agroecologia No Vale Do Ribeira

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PRÁTICAS FEMINISTAS

DE TRANSFORMAÇÃO
DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA


NO VALE DO RIBEIRA
Realização: Apoio:
PRÁTICAS
FEMINISTAS DE
TRANSFORMAÇÃO
DA ECONOMIA
AUTONOMIA DAS MULHERES E
AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

São Paulo, 2018


Práticas feministas de transformação da economia
Autonomia das mulheres e agroecologia no Vale do Ribeira
Publicação da SOF Sempreviva Organização Feminista

Coordenação editorial
SOF Sempreviva Organização Feminista
Rua Ministro Costa e Silva, 36
Pinheiros – São Paulo/SP
CEP 05417-080
(11) 38193876
www.sof.org.br
[email protected]

Equipe editorial

Elaboração dos textos: Gláucia Marques, Miriam Nobre, Renata Moreno, Sheyla Saori e Vivian Franco.
Carla Jancz (coletivo Actantes e Maria Lab) e Rosana Miranda (Christian Aid)

Agradecemos à Fabiana Ribeiro, Isabelle Hillenkamp, Giovanna Galeotti, Monika Otterman e Natália Lobo
pelos relatórios de atividades que foram subsídio a esta publicação.

Edição de texto: Aventura da Narração. Alessandra Ceregatti, com a colaboração de Sandra Maria Sebben

Projeto gráfico e diagramação: Caco Bisol

Ilustração da capa, encarte e das páginas 37, 43 e 75: Leila Monsegur

Fotos: Adriano Barbosa, Carla Vitória, Gláucia Marques, Mariana da Matta, Monika Otterman, Rosana Miranda, Sheyla Saori,
Arquivo REDE

Apoio: Fundo Newton do Conselho Britânico

Parceria: Christian Aid

Impressão: Pigma Gráfica e Editora Ltda.

Tiragem: 1.000 exemplares

Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons – Atribuição –
Uso Não Comercial – Partilha nos Mesmos Termos 4.0 Internacional.

SOF Sempreviva Organização Feminista

N754 Práticas feministas de transformação da economia: autonomia das mulheres


e agroecologia no Vale do Ribeira / Carla Jancz, Gláucia Marques, Miriam
Nobre, Renata Moreno, Rosana Miranda, Sheyla Saori, Vivian Franco.
São Paulo: SOF, 2018. 84p.

ISBN 978-85-86548-29-1

1. Feminismo 2. Economia feminista 3. Agroecologia 4. Autonomia


I. Título
SUMÁRIO

4 APRESENTAÇÃO

7 INTRODUÇÃO E CONTEXTO

13 PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM


14 FEMINISMO ANTI-RACISTA E ANTI-CLASSISTA
16 ECONOMIA FEMINISTA: A VIDA NO CENTRO DA ECONOMIA
19 AGROECOLOGIA
22 ECONOMIA SOLIDÁRIA
26 CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS

31 PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS DO TRABALHO DE CAMPO

32 AUTONOMIA DAS MULHERES


32 TEMPO: DINÂMICA DO RELÓGIO
33 ESPAÇO: DESENHO DA UNIDADE DE PRODUÇÃO
34 NOSSO CORPO
41 REDES AUTÔNOMAS DE COMUNICAÇÃO
43 TRABALHANDO A AUTOGESTÃO DO GRUPO: OFICINA DO BALAIO

46 PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS FEMINISTAS


47 TROCAS DE EXPERIÊNCIAS
48 MANEJO ECOLÓGICO DOS SOLOS
51 ENERGIA
52 ÁGUA
56 PLANEJAMENTO DA PRODUÇÃO E DIVERSIDADE
57 SEMENTES E MUDAS: PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
58 ADUBAÇÃO VERDE, CALDAS E HOMEOPATIA
58 ADUBAÇÃO VERDE, O QUE É?
58 CALDAS BIOFERTILIZANTES
59 HOMEOPATIA

61 CADERNETAS AGROECOLÓGICAS

64 COMERCIALIZAÇÃO
64 TECENDO A REDE COM OS GRUPOS DE CONSUMO
67 OUTROS CANAIS: FEIRAS E MERCADOS INSTITUCIONAIS
71 PROCESSOS PARTICIPATIVOS DE CERTIFICAÇÃO

74 UM JOGO PARA ENTENDER A CADEIA DA COMERCIALIZAÇÃO

84 MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO: CONSTRUINDO INDICADORES DE


AUTONOMIA DAS MULHERES

84 BIBLIOGRAFIA
4 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

APRESENTAÇÃO

N o ano de 1998, a Sempreviva Organiza-


ção Feminista (SOF) publicou o Cader-
no “Gênero e agricultura familiar”, relatando
A SOF iniciou sua atuação na região em
2009, buscando construir nos territórios as con-
dições para o acesso efetivo das mulheres às po-
um processo de construção coletiva do co- líticas. Já entre dezembro de 2015 e março de
nhecimento que envolveu mulheres rurais de 2017, trabalhamos com ATER para mulheres
movimentos autônomos de mulheres, do mo- com base agroecológica junto a 240 agricultoras
vimento sindical e de ONGs do campo agroe- familiares, pescadoras artesanais, quilombolas
cológico. Essa semente cresceu e deu muitos e indígenas de 13 municípios. Nesse processo,
frutos. Da reflexão em torno a conceitos des- criamos ou fortalecemos 15 grupos de mulheres.
critivos como “gênero” e “agricultura familiar”, Como é comum em regiões ricas em natu-
fomos caminhando para a afirmação de posi- reza e diversidade cultural e pobres em infraes-
cionamentos políticos alternativos: “feminis- trutura e renda, quando chegamos havia mui-
mo”, “soberania alimentar” e “agroecologia”1. ta desconfiança: “é mais um projeto”. Grande
Essa trajetória tem sido compartilhada com parte das iniciativas de projetos que acontecem
várias companheiras, muitas das quais se articu- no Vale do Ribeira são relacionadas à infraes-
lam no Grupo de Trabalho (GT) de Mulheres da trutura e seguem um padrão único que não es-
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) ou cuta o que as comunidades querem fazer e não
na Rede Economia e Feminismo (REF). Com
as acompanha quando as dificuldades come-
elas participamos de processos de construção
çam a aparecer. Tínhamos o desafio de superar
conjunta de políticas públicas de fortalecimento
esse tipo de atuação.
da autonomia econômica das mulheres rurais.
Aos poucos, fomos construindo com as mu-
É o caso das chamadas públicas para Assistência
lheres uma relação de confiança e de despertar
Técnica e Extensão Rural (ATER) em agroecolo-
para as possibilidades de crescimento. Nossa
gia e para mulheres, realizadas pela Diretoria de
Políticas para as Mulheres Rurais do extinto Mi- atuação se pautou pela auto-organização das mu-
nistério do Desenvolvimento Agrário (DPMR/ lheres em coletivos em suas comunidades, pelo
MDA). E assim nos sentimos interpeladas a res- reconhecimento do trabalho que elas realizam e
ponder à chamada pública de ATER Mulheres dos conhecimentos que elas já detêm, pelo diá-
no Vale do Ribeira, região onde já contribuía- logo de saberes e a reflexão conjunta sobre os
mos para a construção da Marcha Mundial das desafios em diferentes ordens, de infestação de
Mulheres e de políticas de enfrentamento à vio- caramujos até o fechamento das escolas rurais.
lência contra as mulheres. A execução da polí- Respondendo às demandas de cada grupo, fo-
tica de ATER acontecia ao mesmo tempo em mos inventando jeitos de lidar com a produção,
que mantínhamos os princípios de construção a comercialização e a participação política.
conjunta do conhecimento, característica funda- A reflexão sobre nossa prática em conjun-
mental do nosso feminismo e da agroecologia2. to com as agricultoras se aprofundou por meio
de uma pesquisa-ação realizada em conjunto
1. Para um relato desta trajetória ver Nobre 2013.
2. Para uma reflexão sobre construção do conhecimento agroeco- com o Instituto de Pesquisa para o Desenvol-
lógico a partir do debate realizado pela REF ver http://www.sof.org.
br/2018/02/26/sintese-2014 vimento (IRD), da França, e o Instituto de
APRESENTAÇÃO 5

Altos Estudos em Desenvolvimento (IHEID), comunidades e agricultoras e participantes


de Genebra, na Suíça. Essa pesquisa se insere dos grupos de consumo, além de um grande
nos marcos do projeto “Análises feministas da seminário “Economia feminista e solidária re-
economia social e solidária: visões da América desenhando o território” (http://www.sof.org.
Latina e Índia”, que buscou debater como as br/2017/10/24/desafios-alternativas-e-organi-
experiências de economia solidária podem ou zacao-das-mulheres-do-vale-do-ribeira-sao-de-
não ir além da visão tradicional do que é tra- batidos-em-seminario-e-feira/) e um curso de
balho e do que é produção para pensar em ou- formação de quatro dias (http://www.sof.org.
tras formas de organizar a produção da vida. No br/2017/11/27/mulheres-do-vale-do-ribeira-
Vale do Ribeira, a pesquisa nos ajudou a pensar -participam-de-formacao-sobre-economia-fe-
como superar as fragmentações do sujeito (mãe, minista-e-agroecologia/). Participaram de todo
esposa, agricultora), as especializações das orga- este processo 238 mulheres e 29 homens.
nizações (comercialização, direitos territoriais Nesta publicação, compartilhamos nosso
e segurança alimentar) e situar alternativas em percurso formativo, que passa por uma intro-
um território em concreto. As reflexões conti- dução sobre o contexto da região, os princípios
nuam na parceira com pesquisadores e pesqui- que nos guiam e as práticas metodológicas so-
sadoras da Universidade Federal de São Carlos bre as quais nos apoiamos na construção da au-
(UFSCar) nos marcos do projeto “Economia tonomia das mulheres rurais e da agroecologia.
Feminista e Solidária: ações para o fortalecimen- Agradecemos às mulheres agricultoras fa-
to da autonomia econômica das mulheres”, do miliares, quilombolas, indígenas e caiçaras do
qual também participa a Associação Mulheres e Vale do Ribeira por vivenciar esta jornada co-
Economia Solidária (Amesol). nosco. Às companheiras e companheiros dos
A partir de março de 2017, a atuação da grupos de consumo solidário que constroem os
SOF no Vale do Ribeira continuou por meio da caminhos pelos quais compartilhamos alimen-
constituição de um Programa de Capacitação to e autonomia. Às companheiras das institui-
em conjunto com a ONG Christian Aid e com ções de ensino e pesquisa, do GT de Mulheres
o apoio do Fundo Newton do Conselho Britâ- da ANA e da Marcha Mundial das Mulheres
nico. A formação se estruturou em três eixos: au- que, em cada uma de suas áreas de atuação, vão
tonomia pessoal e coletiva das mulheres, práticas liberando territórios, metro quadrado por me-
agroecológicas e construção social de mercados. tro quadrado.
Entre abril e dezembro de 2017, foram rea-
lizadas 63 atividades, juntando duas ou mais As semprevivas
6 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA


7

INTRODUÇÃO
E CONTEXTO

O Vale do Ribeira, situado no extremo sul


do estado de São Paulo, é a maior área de
remanescente contínuo de Mata Atlântica do
Brasil. A presença de inúmeras comunidades
tradicionais tornou possível a conservação destas
áreas. Na região estão presentes 24 aldeias indí-
genas da etnia guarani, 66 comunidades quilom-
bolas1 e 7.037 estabelecimentos da agricultura
familiar que envolvem camponeses tradicionais vam seis municípios, várias comunidades tradi-
(os caipiras), pescadores tradicionais (caiçaras) e
cionais que há tempos já viviam ali, bem como
migrantes oriundos das metrópoles brasileiras,
agricultores migrantes que se estabeleceram na
em geral, filhos de pais agricultores expulsos da
região e ainda fazendeiros criadores de gado.
terra no passado e empurrados para áreas urba-
Pelos critérios de conservação, a atividade agrí-
nas e que agora retornam à atividade rural.
cola não poderia ser feita na área do Parque.
Com uma área de cerca de 18 mil quilôme-
Em 1970, a guerrilha rural de Carlos La-
tros quadrados, o Vale do Ribeira compreende
25 municípios: Apiaí, Barra do Chapéu, Barra do marca, da Vanguarda Popular Revolucionária
Turvo, Cajati, Cananéia, Eldorado, Iguape, Ilha (VPR), se instalou na região e foi fortemente
Comprida, Iporanga, Itaóca, Itapirapuã Paulista, reprimida pelo Estado. Os conflitos fundiários
Itariri, Jacupiranga, Juquiá, Juquitiba, Miracatu, com a incerteza nos limites das áreas, a sobre-
Pariquera-Açu, Pedro de Toledo, Peruíbe, Regis- posição com áreas de parque, a grilagem de
tro, Ribeira, Ribeirão Branco, São Lourenço da terras e a extração ilegal de madeira e palmito
Serra, Sete Barras e Tapiraí. Segundo o Censo juçara se acentuam durante a ditadura militar
Demográfico 2010, sua população é de 443.231 e ainda têm elementos de continuidade, com
habitantes, sendo que quase 26% vivem em área momentos de maior ou menor tensão.
rural. Do total de habitantes, 50,2% são homens Em meados dos anos 1980, o fim da di-
e 49,8% mulheres (IBGE, 2011). tadura militar recoloca na agenda política a
luta pela reforma agrária e o direito à terra. Os
| UM POUCO DE HISTÓRIA conflitos fundiários se acentuam na região com
o assassinato de agricultores por jagunços e a
Em 1969, durante a ditadura militar, um criminalização de práticas tradicionais de roça-
período em que o país era governado de forma do e manejo florestal. Sindicatos, associações e
autoritária, violenta e sem democracia, foi cria- pastorais sociais foram se organizando na região
do na região o Parque Estadual de Jacupiranga, nesse período e aumentando sua combativida-
com 150 mil hectares. Na área do Parque esta- de, o que levou ao estabelecimento de agendas
de negociação com o poder público. A década
1. De acordo com a Associação Brasileira de Antropologia, o termo
quilombo se refere a “toda comunidade negra rural que agrupa descen- de 1980 também foi um período de aumen-
dentes de escravos que vivem da agricultura de subsistência e onde as
manifestações culturais têm laços fortes com o passado”. to da especulação imobiliária na região, com a
8 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

EXEMPLOS DE PROGRAMAS IMPLEMENTADOS


OU FORTALECIDOS ENTRE 2003 E 2016
Obrigatoriedade de compra progressiva da
valorização das terras decorrente das melhorias agricultura familiar no Programa Nacional de
das estradas que cortam a região e o parque, Alimentação Escolar (PNAE)
como a rodovia Regis Bittencourt (BR-116). Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)
Já nos anos 1990, grandes empresas atua- Programa Nacional de Documentação da
ram para implementar barragens na região do Trabalhadora Rural
Vale do Ribeira. É o caso da tentativa de cons- Crédito Especial para Mulheres – Pronaf
trução da usina hidrelétrica de Tijuco Alto, Mulher
proposta derrotada somente em 20182, depois Assistência Técnica Setorial para Mulheres
de quase 30 anos de luta das comunidades Programa de Organização Produtiva para as
da região, coordenadas pelo Movimento dos Mulheres Rurais
Ameaçados por Barragens do Vale do Ribei- Criação da Modalidade Adicional de Crédito
ra (MOAB) e pelo Movimento dos Atingidos para Mulher na Reforma Agrária – Apoio
por Barragens (MAB). Mulher
Em 2008, foi criado o Mosaico de Unida- Titularidade no benefícios sociais Bolsa Família
des de Conservação do Jacupiranga (Mosaico e Minha Casa Minha Vida e de garantia de
renda (Garantia Safra)
do Jacupiranga), área com 234.000 ha, con-
tendo três Parques, cinco Reservas de Desen- Incorporação de metas específicas para
mulheres rurais em diversos planos nacionais,
volvimento Sustentável (RDS), quatro Áreas
como o Plano Brasil Sem Miséria (BSM),
de Proteção Ambiental (APA) e duas Reservas Plano de Segurança Alimentar e Nutricional
Extrativistas (Resex). A criação do Mosaico do (Plansan) e o Plano de Agroecologia e
Jacupiranga e de canais de diálogo com as co- Produção Orgânica (Planapo), além das metas
munidades afetadas diminuiu as tensões, mas pactuadas no Plano Nacional de Políticas
não resolveu todos os problemas. Algumas fa- para Mulheres (PNPM) e no Plano Nacional
mílias que permaneceram dentro das áreas de de Desenvolvimento Rural Sustentável e
parque questionam os limites definidos. Solidário (PNDRSS)
Ao longo dos anos 2000, particularmente
a partir de 2003, com a eleição de um governo
democrático-popular, a região experimentou al- regulamenta o procedimento para identificação,
guns avanços. São implementados diversos pro- reconhecimento, delimitação, demarcação e ti-
gramas e políticas públicas que buscam combater tulação das terras ocupadas por remanescentes
a desigualdade, garantir os direitos à cidadania, das comunidades dos quilombos, a questão con-
fomentar a organização produtiva e a agricultura tinua a ser fruto de tensões com a maioria dos
familiar, promovendo uma perspectiva de desen- quilombos da região, ainda sem a regularização
volvimento sustentável e solidário. definitiva de sua situação fundiária.
Por outro lado, apesar da publicação do de- Também é a partir de 2003 que se criam
creto n. 4887, de 20 de novembro de 2003, que legislações, estruturas governamentais e a pro-
gramas especificamente voltados à promoção
2. https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/justica-declara-extinta-
-concessao-para-usina-no-vale-do-ribeira-sp.ghtml da autonomia econômica das mulheres, como
INTRODUÇÃO E CONTEXTO 9

a chamada pública de ATER para mulheres


com base na agroecologia. Outro aspecto mui-
to importante é a efetivação da dupla titulari-
dade da terra. Essas políticas proporcionaram
às mulheres o direito a serem protagonistas e
beneficiárias diretas de diversos programas e
políticas de inclusão produtiva.

| CENÁRIOS E DESAFIOS APÓS O RESISTÊNCIA CONTRA OS AGROTÓXICOS


São muitos os desafios para a atuação das
GOLPE NO BRASIL mulheres na defesa dos territórios, de seu
trabalho e de sua autonomia. No Vale do
Em maio de 2016, a ruptura da ordem in- Ribeira, as lutas pela terra, por soberania
stitucional brasileira por meio de um golpe par- alimentar e pela produção agroecológica
lamentar definiu uma profunda reorientação de enfrentam a contaminação dos alimentos
e da água pelos agrotóxicos. Também
todas as políticas anteriormente estabelecidas
enfrentam as empresas transnacionais do
que visavam reduzir a desigualdade social. O agronegócio, que dominam a indústria
Ministério do Desenvolvimento Agrário deixou mundial da alimentação, controlam desde
de existir, abruptamente reduzido a uma insti- as sementes até a comercialização dos
tuição menos relevante, recebendo orçamentos alimentos processados. Dois exemplos de
restritos e conduzida por uma equipe muito como isso se expressa no Vale do Ribeira.
menor. As políticas relacionadas aos direitos No município de Eldorado, territórios
das mulheres foram extintas ou encolhidas para indígenas como a aldeia Takuari fazem divisa
níveis de funcionamento mínimos e não foram com Unidades de Conservação e com
latifúndios com monocultivo de bananas.
lançados novos editais de ATER para mulheres.
As mulheres indígenas relatam que todos os
As antigas políticas de economia solidária ad- dias são atingidas pela pulverização aérea de
ministradas pela Secretaria Nacional de Econo- agrotóxicos, contaminando seus territórios,
mia Solidária (Senaes) também foram drastica- suas produções e seus corpos.
mente reduzidas. Soma-se a isso a aprovação em O agronegócio também se aproveita da
nível federal da Emenda Constitucional 55/241, divisão sexual do trabalho. Em monocultivos
de dezembro de 2016, que congelou por 20 anos de banana, também em Eldorado, as
as despesas públicas e teve como consequência empresas contratam mulheres por salários
30% mais baixos com a tarefa de introduzir
imediata extensos cortes nos investimentos em
agrotóxicos na plantação utilizando seringas.
programas sociais. Aproveitando-se do fato de que as mulheres
As mulheres das comunidades agrícolas e são mais habilidosas, essas empresas as
quilombolas do Vale do Ribeira sentiram o im- expõem ao Furadan, veneno utilizado nessa
pacto dessa ruptura institucional. Além da in- cultura e que inclusive na lei já foi extinta em
terrupção do programa de ATER, o programa países da União Europeia e no Canadá.
10 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

nacional de transferências condicionais, Bolsa


Família, sofreu cortes. Já o reconhecimento le-
gal do direito à terra das comunidades quilom-
bolas foi contestado por meio de um processo
legal de inconstitucionalidade conduzido por
um partido de direita, finalmente derrotado no
Supremo Tribunal Federal (STF).
Durante as antigas administrações popu-
EM DEFESA DOS NOSSOS DIREITOS, DA lares, as transferências diretas do Bolsa Família
DEMOCRACIA E DE UMA VIDA SEM VIOLÊNCIA eram vistas como uma renda básica, comple-
A luta das mulheres no Vale do Ribeira mentada por programas de incentivo à in-
também é por uma vida livre de violência clusão produtiva. Agora, assistentes sociais dos
sexista. A violência sexista é aquela que as municípios têm a atribuição de controlar as
mulheres sofrem porque são mulheres. Em atividades das mulheres agricultoras em busca
lugares com muitos conflitos, com tentativas de evidências de renda suficiente para excluí-las
de controle e apropriação privada dos
desse programa, criando tensão e fragmentação
territórios, a violência contra as mulheres é
da identidade na vida das mulheres que são
mais um instrumento de intimidação. São
muitos os relatos de agressão, de violência mães e agricultoras ao mesmo tempo.
doméstica e de feminicídios, assim como Desde 2016, os conflitos agrários e ambi-
de exploração sexual especialmente nas entais no Vale do Ribeira voltaram a aumentar
margens da rodovia. com a recente aprovação de leis que facilitam
O Estado que deveria ter políticas públicas a gestão privatizada dos parques naturais e fo-
de promoção da autonomia das mulheres, mentam mecanismos de financeirização, como
atua apenas para controlá-las. A confiança o Projeto Economia dos Ecossistemas e da Di-
necessária para que as mulheres denunciem versidade (Projeto TEEB). Um desses mecan-
situações de violência e acompanhem
ismos, conhecido como Redução de Emissões
o desenrolar dos processos judiciais está
comprometida no atual contexto. Para que de Desmatamento e Degradação (REDD),
elas se sintam fortalecidas e apresentem suas utiliza áreas no Vale do Ribeira como compen-
demandas ao Estado, a relação de confiança sação ambiental para o gerenciamento de áreas
deve ser construída nas comunidades. Para degradadas no mesmo bioma em outras regiões
que isso aconteça, a luta pela defesa dos do país, conforme estabelecido pelo Código
territórios – terra, água, biodiversidade – e das Florestal Brasileiro, aprovado em 2012 apesar
formas próprias de gestão das comunidades
da forte oposição. Tais mecanismos integram
tradicionais e camponesas também deve
incorporar a consigna por um território livre
o conceito de “economia verde” e buscam esta-
de violência contra as mulheres. belecer controles sobre a natureza por parte de
grandes corporações financeiras e não o benefí-
cio da população que vive na região.
INTRODUÇÃO E CONTEXTO 11

REDD TEEB E PAGAMENTO POR SERVIÇOS


Redd é a abreviação de Redução de AMBIENTAIS
Emissões por Desmatamento e Degradação O TEEB é a sigla para Economia dos
(REDD), um mecanismo de compensação Ecossistemas e da Biodiversidade. Ela se
voltado para as áreas de floresta. Como o baseia na ideia de considerar que a natureza
desmatamento libera gases de efeito estufa, proporciona “serviços”, como, por exemplo,
a ideia de REDD é manter um estoque de a polinização feita por insetos e pássaros,
carbono mantendo a floresta em pé. a beleza das paisagens ou a qualidade de
São três tipos de Redd. O primeiro tem a ver águas. O TEEB coloca um preço nesses
diretamente com a redução das emissões “serviços” prestados pela natureza de uma
do gás de efeito estufa provocado pelo forma controversa. Para isso, é feito um
desmatamento e a degradação. Já o Redd+ cálculo que separa os valores de uso, como
os alimentos ou a madeira, dos valores de
inclui também a conservação e o manejo
“não uso”, como a floresta sem gente ou uma
sustentável das florestas, que se refere
nascente.
principalmente ao reflorestamento. E o
Redd++ envolve também a agricultura desde O fundamento para colocar preço na
uma visão de boas práticas, que incluem, por natureza é a comparação entre os custos
exemplo, o fim das queimadas, o que muitas de preservação com os custos de utilização
vezes significa a criminalização de práticas do meio ambiente. A conta funciona mais
tradicionais quilombolas. ou menos assim: quanto custaria para uma
empresa se continuasse poluindo a água com
Vale lembrar que a maior parte das áreas de
sua atividade mineira, por exemplo, e depois
floresta se concentra nos países tropicais
tratasse essa água? E quanto essa empresa
e em desenvolvimento. Por isso o REDD é
economizaria se preservasse as bacias
uma estratégia que claramente empurra os hidrográficas ao invés de polui-la? Outro
problemas dos países do Norte para os países exemplo é a polinização: se as abelhas não
do Sul, interferindo na soberania destes. fizessem, quanto as empresas gastariam para
Nos territórios, são assinados contratos com fazê-la? Dessa forma, calculam o que dá mais
comunidades e populações que muitas vezes lucro e chegam à conclusão de que preservar
não têm o título daquela terra, o que dificulta é mais lucrativo que destruir. Por fim, cria-se
ainda mais os processos de titulação. um mercado para essa preservação.
Os contratos são de 30 a até 99 anos. O Pagamento por Serviços Ambientais (PSA)
Existem muitas tentativas de cooptação de concretiza essa proposta no Brasil. Os projetos
lideranças e de divisão das comunidades com de PSA são geralmente financiados pelos
promessas de empregos e geração de renda. governos, com envolvimento de instituições
Mas ao aceitar o REDD, o que normalmente privadas, como empresas e ONGs, em geral
acontece é que as comunidades perdem o internacionais, com pagamentos feitos aos
acesso àquela determinada área. Além disso, proprietários das terras ou à população que
os poucos empregos que existem são os de nela habita. São projetos de longo prazo, que
guarda florestal. podem durar de 15 a 40 ou 60 anos.
13
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS
QUE NOS ORIENTAM
14 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

Chamamos de patriarcado a esse sistema


onde os homens, individual ou coletivamente,
exercem poder e controle sobre o corpo, o tra-
balho e a sexualidade das mulheres. Além de
patriarcal, nossa sociedade é extremamente ra-
cista. O racismo estrutura as relações sociais no
Brasil, que desde os tempos da escravidão su-
| FEMINISMO ANTI-RACISTA perexplora o trabalho da população negra e usa
E ANTI-CLASSISTA a violência como prática de controle. O capita-
lismo é racista e é patriarcal. É um sistema que
O feminismo é o movimento das mulheres incorpora essas dominações e desigualdades e,
para mudar o mundo e suas vidas. Foi sempre sem elas, não consegue se manter.
a partir de muitas lutas que as mulheres conse-
guiram conquistar direitos no Brasil e em todo o MULHERES ORGANIZADAS,
mundo, desde o direito ao trabalho, à educação CAMINHO PARA A AUTONOMIA
e ao voto, mas também o direito à aposentado- O feminismo aposta na auto-organização
ria para as mulheres rurais, ao título da terra e a da mulheres para construir um movimento
políticas públicas para combater a violência con- forte e presente em todas as partes. Auto-or-
tra as mulheres. Nos séculos passados, as mulhe- ganização é quando as mulheres se reúnem em
res negras foram fundamentais na luta pelo fim grupos só de mulheres ou em espaços especí-
da escravidão e, na América Latina as mulheres ficos nos movimentos mistos, isto é, aqueles
também participaram ativamente dos processos compostos por mulheres e homens, como o
de conquista da independência dos seus países. movimento sindical. Esse princípio e prática
Nos dias de hoje, o feminismo no Brasil são fundamentais para a formação das mulhe-
está lutando para defender os direitos que es- res, que se realiza a partir de suas experiências e
tão sendo destruídos com o golpe ocorrido em aprendizados concretos. Questões que no coti-
2016. Lutamos pela aposentadoria, que quere- diano impedem a autonomia sobre nosso tem-
mos ampliar e tornar universal para todas, en- po, nosso trabalho e produção ou sobre nosso
quanto o governo golpista quer restringir e di- corpo, sexualidade e outras decisões sobre a
minuir, acabando com esse direito. Resistimos nossa vida são temas de nossas conversas como
à reforma trabalhista e aos cortes de recursos grupos de mulheres. Assim o feminismo vai
para as políticas de saúde e educação, porque transformando em questões políticas fatos que
sabemos que essas medidas sobrecarregam ain- muitas vivem de forma parecida, mas isoladas.
da mais as mulheres que são responsáveis pelo Nesses espaços de encontro, debate e for-
cuidado. E lutamos pelo fim da violência con- mação, trocar saberes e histórias e compartilhar
tra as mulheres, que é uma realidade desde que práticas e resistências são ingredientes que ge-
somos crianças até a vida adulta. A violência é ram um reconhecimento das mulheres como
um instrumento do patriarcado. mulheres. Essas trocas permitem compreender
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 15

que, apesar de se expressar de formas diferen- é político”. A maioria das mulheres encontra
tes, existem muitas semelhanças na opressão em suas companheiras o incentivo a continuar
que sofremos como mulheres em sociedades participando, a carona, o acolhimento e o re-
patriarcais como a brasileira. forço de que esse espaço já está contribuindo
Na Marcha Mundial das Mulheres, por para mudar suas vidas e conquistar direitos e
exemplo, o reconhecimento da diversidade e políticas. Assim, a solidariedade entre as mu-
até da desigualdade entre nós, mulheres, busca lheres também é uma prática que se fortalece
evitar que nossas lutas e a desigualdade de gê- nos processos de auto-organização.
nero sejam tratadas apenas como uma questão
de identidade. A partir da diversidade das mu- MULHERES EM MOVIMENTO
lheres, buscamos construir ações comuns que O feminismo que construímos como Mar-
possam combater globalmente a ordem atual cha Mundial das Mulheres combina novas prá-
de dominação e opressão e estabelecer um pro- ticas com a construção de um movimento so-
jeto político de mudança. O desafio é envolver cial forte e também com a elaboração de teorias
um grande número de mulheres que chegam e propostas a partir das experiências e das lutas
com suas histórias de vida e militância, dando das mulheres. É a partir de ações coletivas que
conta de promover interação e aprendizagem nós, mulheres, teremos vigor para revolucionar
mútua e, a partir daí, construir novas sínteses e a sociedade e construir novas relações sociais,
novos pontos de partida na busca de uma uto- superando todos os mecanismos de manuten-
pia conjunta, no que queremos vir a ser. ção da opressão.
A auto-organização das mulheres vai além Dois princípios nos orientam nesse proces-
da construção de espaços só das mulheres. so: nossa auto-organização em um movimento
Tem a ver com a construção coletiva das mu- autônomo de mulheres do qual fazem parte co-
lheres como um sujeito político, da definição letivos de mulheres e de movimentos mistos; e
de prioridades de reivindicações e demandas e a construção de alianças com outros movimen-
dos caminhos para alcançá-las. Assim, é nos es- tos sociais envolvidos na luta por mudanças.
paços auto-organizados que são construídas as Queremos construir um projeto comum em
agendas políticas das mulheres, bem como suas que nós aprendamos com outras lutas e amplie-
estratégias e formas de ação. mos nossa agenda, mas que também imprima
Um dos ganhos concretos desses processos o feminismo como parte integrante das lutas
é o fato de que as mulheres passam a ser prota- dos movimentos sociais. Apostamos em um
gonistas não só de suas lutas, mas de suas pró- forte movimento de base popular do campo e
prias vidas. E, por isso, muitas vezes os maridos da cidade para que, a partir da prática feminis-
começam a questionar o sentido da participa- ta, as lutas da esquerda sejam ao mesmo tempo
ção, o fato de que está saindo muito de casa. antipatriarcais, antiracistas e anticapitalistas.
Isso reforça a afirmação que o feminismo vem Esse nosso feminismo tem muitas aspirações
fazendo há muitas décadas de que “o pessoal e ambições: queremos mudar o mundo! E isso
16 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

nos coloca desafios cotidianos. Um dos princi- como cada uma entende o que é ser mulher, sua
pais, e que ao longo de toda essa publicação se relação com o corpo, a sexualidade e o trabalho.
faz presente, é de conseguir conectar as nossas Em movimento, as mulheres rompem com as
resistências e lutas locais com esses processos amarras que o machismo e o racismo impõem
mais gerais que organizam as desigualdades no sobre os comportamentos, a maternidade e as
mundo inteiro. Por exemplo, o que vemos no decisões. E cada vez mais são encorajadas a jun-
Brasil é que as mulheres que lutam em defesa tas ocupar os espaços, falar em público e levar
dos territórios enfrentam ao mesmo tempo: o adiante as reivindicações por direitos.
poder das grandes empresas transnacionais – da A prática de luta nos mostra o que já sabe-
mineração ou do agronegócio; a força do Es- mos pelas nossas histórias de vida: nesse siste-
tado, pela polícia ou pelo poder judiciário que ma capitalista racista e patriarcal nós, mulheres
privilegia as elites e cada vez mais criminaliza as diversas e trabalhadoras, não cabemos e não há
lutas populares e; a violência contra as mulhe- espaço para que todas sejamos livres e iguais.
res, que é usada como parte dos conflitos, para Não queremos igualdade para poucas, quere-
humilhar ou desencorajar as mulheres em luta; mos para todas. Ou seja, precisamos de uma
e muitas vezes os homens, que são convencidos transformação estrutural para acabar com as
por um modelo de desenvolvimento que pro- desigualdades. É por isso que o feminismo se
mete empregos mas só entrega contaminação, coloca como parte das lutas para construir uma
exploração e expulsão das pessoas de suas terras. outra sociedade, organizada pela igualdade,
Ao mesmo tempo, quando enfrentamos a vio- pela justiça e pela liberdade. Por isso, o lema
lência sexista, percebemos que a autonomia eco- que nos faz caminhar é “seguiremos em marcha
nômica e pessoal é fundamental para as mulheres até que todas sejamos livres”.
conseguirem romper com situações de abuso. E
também aprendemos que quando dizemos não | ECONOMIA FEMINISTA: A VIDA
ao modelo de dominações e abusos, também NO CENTRO DA ECONOMIA
vamos abrindo caminhos e possibilidades para
construir a sociedade que nós queremos. Por O cuidado, a limpeza dos ambientes e das
exemplo, frente aos venenos do agronegócio, roupas, a produção de alimentos e o preparo
construímos a agroecologia e formas solidárias das refeições, a atenção com a higiene e com os
de comercialização. sentimentos, a construção de relações e víncu-
Pela experiência desse feminismo que é mi- los: tudo isso e muito mais faz parte da produ-
litante, de todos os dias e a partir de mulheres ção do viver. Ou seja, a vida só é possível por
diversas - rurais, negras, urbanas, agricultoras, meio de muito trabalho realizado de maneira
indígenas, jovens, trabalhadoras em geral - po- contínua, todos os dias.
demos afirmar que estar em luta transforma as O ponto de partida da economia femi-
comunidades e a sociedade, e também trans- nista é que a produção do viver não pode ser
forma a forma como cada uma está no mundo, reduzida a números e fórmulas, como as que
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 17

normalmente são apresentadas por homens


brancos engravatados nos telejornais. O femi-
nismo questiona a forma dominante de pensar
a economia, que considera relevante apenas
uma pequena parte do conjunto das atividades
necessárias para produzir a vida e mover a so-
ciedade. A economia dominante só olha para
as atividades realizadas no mercado, a partir do
trabalho remunerado, da compra e da venda de são diferentes. A produção para o consumo da
produtos e da lógica de obtenção de lucro. Isso família, para a troca e para a doação segue a
exclui um conjunto de atividades, trabalhos e lógica de valorizar a qualidade do que é pro-
relações que não são monetizados, não circu- duzido, relacionado com a qualidade de vida
lam em troca de dinheiro, mas que sem eles e os alimentos saudáveis. Já o dinheiro é ne-
a economia não pode se mover e nem a vida cessário para garantir os custos de vida, como
pode se reproduzir a cada dia. São atividades as despesas de energia, transporte e moradia,
realizadas majoritariamente pelas mulheres, por exemplo, mas também é preciso considerar
nos espaços domésticos e comunitários. que vivemos numa sociedade que cria cada vez
A economia feminista coloca como preo- mais necessidades.
cupação central de suas análises e debates a ca- O acesso aos mercados e à renda é parte ne-
pacidade das sociedades produzirem qualidade cessária para que as mulheres tenham autono-
de vida e, por isso, considera que todas as ativi- mia econômica. Mas a autonomia econômica
dades necessárias para a sustentação da vida são vai além e envolve também o direito garantido
parte da economia. E, a partir dessas análises e aos serviços públicos – como saúde e educa-
debates, a economia feminista também inspira ção – que nesse contexto de golpe e retirada de
propostas e novas formas de organizar a eco- direitos é cada vez mais difícil e implica mais
nomia, colocando em prática os princípios da gastos. A autonomia econômica envolve tam-
igualdade, da redistribuição dos trabalhos, da bém a capacidade de decidir sobre os tempos e
solidariedade e da reciprocidade. os recursos e de colocar em prática essas deci-
sões. Muitas vezes a resistência dos homens da
MUITO ALÉM DO MERCADO comunidade é um obstáculo que as mulheres
Quando olhamos para as práticas econô- enfrentam para colocar em prática suas deci-
micas das mulheres rurais, fica evidente que a sões. As discussões sobre a produção e a busca
economia é muito mais do que é vendido no de equilíbrio individual e coletivo entre o que é
mercado. Para além da produção para o mer- produzido para o autoconsumo e o que é para
cado, ela envolve práticas como doações, trocas ser vendido nos mercados locais, institucionais
e produção para o auto-consumo. Os tempos ou para os grupos de consumo fazem parte des-
e as motivações para cada uma dessas práticas sa construção permanente da autonomia eco-
18 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

nômica e colocam em prática os princípios da demandam mais cuidados e atenção permanen-


economia feminista. te por motivos de idade ou de saúde.
Isso é resultado da divisão sexual do tra-
TRABALHO, BASE DA SUSTENTAÇÃO DA VIDA balho, que separa e hierarquiza os trabalhos
Garantir que uma vida digna seja possível de mulheres e homens, atribuindo a elas a res-
no dia a dia demanda energia, tempo e habi- ponsabilidade com o trabalho doméstico e de
lidade de quem realiza todas as atividades ne- cuidados, ao mesmo tempo em que as mulhe-
cessárias à vida. Por isso a partir da economia res também realizam o trabalho considerado
feminista afirmamos que o conjunto dessas produtivo e que gera renda monetária. Além
atividades precisa ser considerado como traba- de organizar o cotidiano de famílias e comu-
lho. Mas na sociedade capitalista e patriarcal os nidades, essa base das desigualdades de gênero
trabalhos realizados pelas mulheres na horta e reflete na falta de reconhecimento do trabalho
com os pequenos animais são vistos como uma das mulheres por parte do Estado, o que limita
extensão de suas tarefas domésticas, já que essas seu acesso às políticas públicas e à infraestrutu-
atividades, em sua maioria, são para o autocon- ra necessária para garantir melhores condições
sumo e não são remuneradas. Já a auto-organi- para sua produção.
zação das mulheres rurais tem contribuído para As habilidades do trabalho doméstico e de
o reconhecimento dessas atividades como tra- cuidado são aprendidas pelas mulheres, não
balho fundamental para a sustentação da vida. nascemos sabendo fazer tudo isso. Da mesma
Uma das formas que o sistema capitalista e forma, os homens podem aprender a fazer o
patriarcal usa para desvalorizar o trabalho das trabalho doméstico e cuidar das pessoas, para
mulheres é naturalizá-lo, como se todo esse assim redistribuir o trabalho. Ainda é preciso
trabalho fosse feito por amor. Mas nós sabe- avançar muito para que a redistribuição desse
mos que até podemos gostar de cozinhar, mas trabalho torne-se uma realidade, seja com os
é muito difícil encontrar alguém que ame ser a homens, no interior das famílias e comuni-
primeira a acordar e a última a dormir, e pas- dades, seja na sociedade por meio de políticas
sar o dia inteiro limpando, passando, lavando, públicas do Estado. Um exemplo são as polí-
descascando, sem ter tempo nem para ficar ticas de socialização do cuidado de crianças,
com as pessoas que gosta, descansar ou decidir como as creches, que ainda são muito limita-
o que fazer com o tempo livre. das no meio rural.
As mulheres transitam entre os espaços da A economia feminista parte do cotidiano
casa, do quintal ou da feira, ou seja, entre os es- para entender o funcionamento da economia
paços considerados da produção e da reprodu- como um todo. E a partir daí temos mais con-
ção. As mulheres também desenvolvem a capa- dições de questionar as decisões políticas e eco-
cidade de fazer várias tarefas ao mesmo tempo e nômicas que são feitas nos municípios, na re-
ainda têm sempre a preocupação com as pessoas gião, no país inteiro e até internacionalmente.
que delas dependem, sobretudo as pessoas que Reconhecendo as desigualdades que organizam
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 19

os tempos e os trabalhos da população, ques-


tionamos a tentativa de reforma da previdência
no Brasil, que quer fazer com que as mulheres,
as negras e os negros e a classe trabalhadora,
especialmente rural, trabalhem por toda a vida
sem ter o direito garantido à aposentadoria.
Também estamos mobilizadas como mulheres
para lutar contra acordos comerciais que pri-
vilegiam as grandes empresas transnacionais e
acabam com as possibilidades de comercializa-
ção institucional por meio de compras gover-
namentais ou de apoio à produção da agricul-
tura familiar e camponesa.

| AGROECOLOGIA
A agroecologia é a “aplicação dos conceitos
e princípios ecológicos no desenho e manejo
de agroecossistemas” (Gliessman citado por Si- Dessa maneira, por exemplo, a água pode
liprandi, 2015). A palavra agroecológico vem chegar ao limite quando é contaminada ou utili-
do latim e desmembrada significa: zada em quantidades enormes e potencialmente
AGRO = agricultura, crescentes. Da mesma forma, há várias espécies
ECO = lugar/casa/ambiente, de animais e de plantas que são extintas devido à
LÓGICO = estudo exploração desequilibrada da natureza.
O estudo desse lugar, desse ambiente, dessa O problema que se coloca então é como
nossa casa, está interligado com tudo que está fazer uma agricultura que se integre aos ciclos
presente nele. da natureza, que respeite seu ritmo e que, ao
Com base nos princípios ecológicos, apren- mesmo tempo, permita que as pessoas tenham
demos que a natureza é cíclica: cada resíduo de acesso a alimentos nutritivos, saudáveis e de
um processo se transforma em matéria-prima acordo com a sua cultura. A agroeocologia reú-
de outro processo em um ritmo determina- ne alguns aprendizados para responder a esta
do que foi se ajustando por milhares de anos. questão.
Também aprendemos que a natureza tem limi-
tes: há recursos que não são renováveis, como EQUILÍBRIO E SUSTENTABILIDADE
petróleo e outros minerais, e há recursos que A saúde das plantas depende do equilíbrio
são renováveis, porém que são restritos devidos nutricional do solo, que é resultado da presen-
à velocidade de sua regeneração. ça de macronutrientes, como o nitrogênio (N),
20 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

o fósforo (P) e o potássio (K) e de micronu- DIVERSIDADE E AUTOSSUFICIÊNCIA


trientes. Os micronutrientes estão na natureza Um passo para recuperar o equilíbrio de
em uma proporção definida. Se um deles falta, um determinado ecossistema é recompor sua
os demais não são absorvidos. diversidade. Isso pode se dar pela agrofloresta,
As plantas também interagem entre elas: que combina plantas que já estavam presentes
há plantas companheiras, que auxiliam o de- no local com outras introduzidas, aproveitan-
senvolvimento de outras. Mas há plantas que do os estágios de regeneração das clareiras em
produzem toxinas que inibem o crescimento de uma área de mata ou no plantio de uma nova
outras. Esse processo de influência de um orga- mata em uma área de pasto.
nismo sobre o outro é chamado de alelopatia. A autossuficiência progressiva do sítio, do
Os sistemas biológicos evoluem em con- quilombo ou do assentamento também é parte
junto com as comunidades onde vivem e não da transição agroecológica. Autossuficiência é a
há como separa-los. Nós “não teríamos a sub- capacidade de produzir de forma independen-
jetividade que temos se não utilizássemos a te do mercado o necessário para o consumo e
cultura material que utilizamos, não teríamos para a estabilidade da unidade de produção ao
a cultura material que utilizamos se não tivés- longo de gerações.
semos a subjetividade que temos” (Hernando Sementes e mudas selecionadas por crité-
citado por Herrero, 2014). rios próprios, como a rusticidade e o gosto, e
As comunidades tradicionais – como as adaptadas ao local onde são plantadas produ-
camponesas, indígenas, quilombolas ou caiça- zem resultados melhores do que o de sementes
ras - são as que percebem mais profundamente compradas em lojas agrícolas.
esta relação por meio de processos de observa- A fertilidade do solo pode ser reposta por
ção, ensaio, tentativa e erro que são transmiti- meio de um composto feito de resíduos de um
dos em sua cultura entre gerações. Por esta ra- processo – como sobras da colheita, fezes e uri-
zão é que as regiões onde vivem são as que têm na dos animais que se tornam matéria-prima
maior biodiversidade. Sociobiodiversidade é a de novo. Outra alternativa é a adubação verde,
palavra que caracteriza essa relação entre o co- que é a incorporação de plantas que fixam mais
nhecimento fruto das culturas sociais humanas nitrogênio.
e a biodiversidade de espécies animais, vegetais, Mas a autossuficiência não deve dar a falsa
minerais do meio ambiente onde vivem. impressão de que é possível completar a transi-
A agroecologia é um processo de transi- ção agroecológica em uma só unidade de pro-
ção que tem como horizonte alcançar sistemas dução. Esta produção pode ser contaminada
equilibrados e, por isso, sustentáveis. Plantas por agrotóxicos, pela pulverização aérea, pela
que crescem muito rápido sufocando outras e contaminação dos cursos da água e do lençol
formigas ou lesmas em grande quantidade que freático ou pela polinização cruzada com va-
provocam prejuízos são vistas como sintomas riedades transgênicas. Por isso um dos funda-
de um desequilíbrio que é preciso desmontar. mentos da agroecologia é a luta pela terra, que
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 21

inclui a luta pela reforma agrária, pelo reconhe-


cimento dos territórios das populações tradi-
cionais e pela reforma urbana, que contemple
espaços para a agricultura na cidade.

CONSTRUÇÃO COLETIVA DO SABER


Outro pressuposto básico da agroecologia é
que o conhecimento é uma construção coletiva
que se dá por intercâmbios e diálogo de sabe-
res. E nesse processo é importante reconhecer rém, na construção do movimento agroecológi-
o protagonismo das populações tradicionais, co, nem sempre essa igualdade está dada.
especialmente das mulheres, na memória e no Muitas mulheres organizadas em movi-
aprimoramento constante dessas práticas. mentos agroecológicos reivindicam seu prota-
Há uma relação estreita entre a agroeco- gonismo político, que tem consequências nas
logia e a agricultura realizada pelas mulheres. próprias formas de organização do movimen-
Tradicionalmente, são as mulheres que selecio- to. Por exemplo, as estruturas centralizadas de
nam, guardam e trocam as sementes. Os quin- produção de sementes tendem a envolver me-
tais onde combinam horta, pomar, criação de nos mulheres do que aquelas em que a semente
pequenos animais, plantas comestíveis, medi- é guardada e intercambiada nas comunidades.
cinais e decorativas são um espaço privilegiado Muito do conhecimento das agricultoras,
de experimentação e contam com enorme di- extrativistas ou pescadoras artesanais se perde
versidade. Na Zona da Mata de Minas Gerais porque elas não são consideradas como pessoas
o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona com projetos, desejos e vontades próprias. Assim,
da Mata (CTA-ZM) chegou a contabilizar 118 em sua vivência diária, elas questionam o mito
espécies vegetais de 51 famílias botânicas e cin- da família harmônica em que o pai representa o
co espécies animais unicamente no quintal da interesse de todos. As posturas responsáveis das
agricultora Lia Caetano de Acaiaca, que tem mulheres frente à natureza e à humanidade vêm
pouco mais de 2.400 m2. de uma escolha política e não do fato de serem
mães, terem nascido mulheres e supostamente
IGUALDADE DE GÊNERO guardarem uma essência próxima da natureza.
A agroecologia oferece boas bases para cons- As agricultoras agroecológicas lidam com
truir a igualdade de gênero pois permite diferen- conflitos no interior das famílias e das comuni-
tes usos do espaço e do tempo para realizar de dades para conseguir produzir em determina-
forma combinada atividades produtivas e repro- do espaço sem a contaminação por agrotóxicos
dutivas. Dessa maneira, a princípio, rompe-se proveniente de produções vizinhas. Elas bus-
com a divisão sexual de trabalho que separa essas cam de forma permanente equilibrar o traba-
atividades e estabelece hierarquias entre elas. Po- lho e a produção para o autoconsumo e para a
22 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

venda. Entendem que o acesso à renda mone- O modo capitalista de organizar a econo-
tária é essencial para sua autonomia econômica mia tem como base a propriedade privada dos
e apresentam propostas de políticas públicas meios de produção e a apropriação da riqueza
de apoio à comercialização. Sua intenção não criada pelo trabalho humano por poucas pes-
é vender galinha caipira para comprar frango soas. No campo, os meios de produção são a
congelado. Seu objetivo é que elas mesmas e as terra e os equipamentos utilizados nela.
pessoas próximas comam os produtos de quali- Mas existem outras formas de organizar a
dade que produzem. Seu cálculo econômico é economia que são invisibilizadas pelo sistema
extremamente apurado, pois consideram como hegemônico. É o caso da produção para o au-
retorno, não apenas o fator monetário, mas toconsumo e do trabalho doméstico que, as-
também o fato de seus filhos não adoecerem. sim como o Estado, são vistos pelo capitalismo
Elas valorizam os quintais, mas não que- como formas “ineficientes” ou “atrasadas”.
rem se restringir a eles: querem propor outras Em muitas comunidades, a reciprocidade
formas de manejo para o território onde vivem é uma forma de organizar a economia. Uma
pessoa doa produtos ou tempo de trabalho na
e trabalham sua família e sua comunidade. Para
esperança de que receberá de outras pessoas
isso, desenvolvem experiências em grupos cole-
produtos ou tempo equivalente.
tivos de produção no manejo de áreas maiores.
Isto quer dizer que a empresa capitalista –
Às vezes essas áreas são um pouco distantes de
aquela que se movimenta pela busca do lucro
suas casas e impõe para elas a necessidade de
cada vez maior e pela concorrência com as de-
renegociar o trabalho doméstico para que pos-
mais – não é a única forma econômica. Outras
sam se ausentar. O fato de conseguir se ausen- lógicas organizam a economia nos domicílios,
tar de casa é uma conquista que elas valorizam nos serviços públicos, nas associações e comu-
muito e ainda permite maior concentração e nidades. Ainda que nestas outras formas tam-
dedicação ao trabalho produtivo, sem ter que bém existam problemas. Por exemplo, numa
parar todo o tempo para, como elas dizem, família o pai pode impor suas decisões para a
“olhar os meninos”. mulher e os filhos, servidores públicos podem
atuar baseados em preconceitos contra negros
| ECONOMIA SOLIDÁRIA e pobres e há mesmo situações em que um dia
de trabalho de um homem é trocado por dois
A economia solidária é uma outra forma de dias de trabalho de uma mulher.
organizar as relações econômicas na sociedade. Ou seja: outras formas de organizar a eco-
Para entendê-la, é importante antes compreen- nomia tanto podem ser atravessadas por pre-
der como funciona a economia capitalista, que conceitos patriarcais e racistas como podem ser
hoje em dia é hegemônica, ou seja, é o mode- contaminadas pela forma da empresa da eco-
lo que predomina na sociedade e que aparece nomia capitalista. Justamente por ser hegemô-
como natural ou como a única possibilidade de nica ela aparece como se fosse o ideal, o lugar
dar certo. onde todos querem chegar.
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 23

Para que outras formas de organizar a eco-


nomia superem as injustiças de classe, raça e
gênero é preciso que as pessoas envolvidas nelas
estejam decididas a fazê-lo. Esta é a proposta da
economia solidária.

EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA


No Brasil, as iniciativas de economia solidá-
ria são nomeadas de Empreendimentos de Eco-
nomia Solidária (EES). A organização dos EES transparência e a participação democrática de
não é só para envolver pessoas pobres, vulnerá- todas as pessoas envolvidas nas decisões. Im-
veis ou convivendo com alguma limitação e que, plica também que esses mesmos envolvidos te-
portanto, têm dificuldade para se integrar no nham consciência sobre a importância do seu
mercado de trabalho formal. É para envolver es- trabalho e do das demais pessoas e sobre a me-
tas pessoas e muitas mais que estejam dispostas a lhor forma de realiza-lo.
construir outras formas de organizar a economia. O campo da economia solidária envolve
Ou seja, a economia solidária não é com- atividades de produção (como cooperativas da
plementar ou funcional à empresa capitalista. agricultura familiar, fábricas em falência recu-
O agenciador de trabalhadores assalariados na peradas pelos seus trabalhadores ou cooperati-
agricultura em muitos lugares chama-se “gato”. vas de costura), de serviços (como restaurantes
Ele ajuda a usina ou fazenda que o contrata a populares, cooperativas de cuidadoras de ido-
fugir da fiscalização trabalhista e, para isso, sos, de atividades culturais, grupos de consumo
muitas vezes cria cooperativas que escondem a consciente, de reciclagem de resíduos sólidos),
relação de trabalho e assim pagam menos direi- de financiamento (as cooperativas de crédito,
tos. Por isso, cooperativas desse tipo são cha- fundos rotativos, iniciativas de moeda solidá-
madas de “coopergatos”. ria, entre outras) e de comercialização (feiras de
As coopergatos não são economia solidária, economia solidária).
pois esta tem o objetivo de ser contra-hegemô-
nica, de mudar o jeito da economia se orga- MULHERES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
nizar a partir das possibilidades reais, criando As mulheres são a maioria das pessoas que
espaços de liberdade e de experimentação. participam dos EES, mas nem sempre estão
O que caracteriza a economia solidária é a visíveis. No cadastro da Secretaria Nacional
autogestão. de Economia Solidária (Senaes) elas não eram
A autogestão implica a propriedade ou maioria em razão da sua pouca presença nas
posse coletiva dos meios de produção (terras, cooperativas da agricultura familiar, onde mui-
prédio e equipamentos), a definição coletiva tas vezes apenas o homem adulto é sócio ou é
das normas e acordos de funcionamento, a contabilizado como sócio.
24 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

O Sistema Nacional de Informações


da Economia Solidária (SIES), base de
dados da Senaes, foi implantado em
2004 e realizou três rodadas nacionais de As mulheres avaliam sua participação nos
caracterização dos Empreendimentos de ESS não apenas do ponto de vista do retorno
Economia Solidária (EES), identificando financeiro. Elas valorizam nos grupos aspectos
33.518 empreendimentos em todo o país
como o aprendizado, a convivência e a possi-
envolvendo 1.423.631 associados. Os EES são
na maioria rurais (quase 55%), sendo que 55% bilidade de tratar temas como a violência do-
dos participantes são agricultores familiares. méstica ou a saúde reprodutiva. Em geral, as
A maioria dos EES identificados é formalizada participantes dos EES se sentem mais fortes,
(quase 70%), a maior parte em associações.  valorizadas e com autoestima elevada em con-
Dentre o público associado, identificou-se sequência do reconhecimento de seus saberes e
que 43,6% são mulheres e 56,4% são homens. de sua capacidade de inovar a partir de pouco.
(SENAES, 2013). A economia solidária tem a possibilidade
Considerando os dados sistematizados de ser contra-hegemônica quando, em diálo-
em 2005 as mulheres predominavam nos go com a economia feminista, busca superar a
empreendimentos menores onde, elas eram divisão sexual do trabalho e fortalecer a auto-
63% dos participantes nos EES com até 10
nomia das mulheres. Muitas vezes as iniciativas
sócios, enquanto que os homens eram 66%
propostas para as mulheres se referem a ativida-
dos participantes de EES com mais de 50
sócios (SENAES, 2006). A participação das des consideradas femininas (cabelereira, costu-
mulheres em grupos menores, muitas vezes ra, processamento de alimentos) e organizadas
informais e intermitentes levanta a hipótese para que sejam conciliadas com a responsabili-
de que os grupos onde atuam podem ainda dade do cuidado (trabalho realizado em casa,
não ser reconhecidos como EES. com menor dedicação de tempo).
Em um levantamento realizado pela A questão não é a atividade em si, mas o
Sempreviva Organização Feminista (SOF) e horizonte que se coloca:
o Centro Feminista 8 de Março (CF-8 ) junto | As mulheres são desafiadas a entrar em
aos Territórios da Cidadania onde atuaram campos não tradicionais? Por exemplo, a con-
entre 2009 e 2013, foram identificados 972 sertar o secador de cabelos, a máquina de cos-
grupos produtivos de mulheres frente a 267
tura, a batedeira quando estes estragam? Ou a
identificados pelo mapeamento nacional
feito pela Senaes nas mesmas áreas (Butto e
negociar preços com os fornecedores?
outras, 2014). | A atividade remunerada é vista apenas como
complementar e funcional a seu papel de mãe e
esposa, estes, sim, tratados como prioritários?
Os grupos produtivos com maior ou total | Nos empreendimentos mistos as mulheres
participação das mulheres tendem a ser meno- são desafiadas a realizar o conjunto das ativida-
res, informais e intermitentes. Ou seja, é mais des ou se reproduz o padrão da empresa capita-
difícil que eles se mantenham ao longo do tem- lista, que concentra as mulheres em atividades
po devido às tensões que as mulheres sofrem que demandam maior habilidade motora fina,
para conciliar o cuidado da casa e da família agilidade nos dedos, concentração e ainda são
com as atividades remuneradas. pior remuneradas por elas?
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 25

PRINCÍPIOS E VALORES DE UMA GESTÃO


FEMINISTA
Funcionamento não burocrático,
que permite compartilhar o poder de
forma horizontal na equipe de trabalho.
Este funcionamento tem as seguintes
características:
| tomada de decisões por consenso
| divisão do trabalho que valoriza não
a especialização de funções, mas um
reconhecimento igualitário de todas as
funções e certa rotação das tarefas
| mecanismos de integração de novas pessoas A divisão sexual do trabalho na sociedade
| circulação de informações para evitar o atual responsabiliza as mulheres pelo cuidado
desenvolvimento de poder vertical
da casa e da família. Isto ainda se reproduz
| constituição não-hierárquica do espaço nas iniciativas de economia solidária: são pou-
| mecanismos para conciliar a eficácia e o bem- cas as que organizam, por exemplo, atividades
estar das pessoas, o racional e o afetivo (por
extraescolares para as crianças como parte de
exemplo, um ponto na agenda da reunião de
equipe para saber como estamos) seu funcionamento. Também são raros ainda
Preocupação quanto ao lugar e ao papel
os empreendimentos solidários de cuidado de
das integrantes na organização. crianças, doentes e idosos que os envolvam
Isto implica, entre outros exemplos, como pessoas por inteiro e não como clientes
organizar grupos de trabalho como espaços ou objeto de assistência, embora existam expe-
alternativos de poder e favorecer um clima riências como, por exemplo, a de preparo con-
de apoio, ajuda mútua e solidariedade entre junto das refeições.
as integrantes, criando laços baseados na
disponibilidade, escuta, cumplicidade e SOLIDÁRIA E FEMINISTA
respeito mútuo. A autogestão também pode ser fortalecida
Relações de trabalho que se caracterizem no diálogo com o feminismo buscando não
por:
fragmentar as mulheres em subjetividades se-
| controle das trabalhadoras sobre o processo paradas e contraditórias - mães, esposas, traba-
de trabalho
lhadoras - e estabelecendo acordos que as for-
| relações de trabalho que reconheçam a
taleçam como sujeitos por inteiro.
contribuição de cada integrante que tem a
possibilidade de ser ouvida, de ter iniciativa e Isso inclui, por exemplo, o repúdio à vio-
criatividade lência doméstica. Há assentamentos e redes de
| não especialização e igualdade nas condições produtores e consumidores de produtos agrí-
de trabalho, salários e benefícios colas onde já foi possível adotar em seus acor-
Experiência dos Centros de acolhimento a mulheres do dos coletivos ações concretas de rechaço à vio-
Quebec, citado em Nobre, 2017. lência que podem chegar até à suspensão ou à
expulsão de agressores.
26 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

| CONSTRUÇÃO SOCIAL DE Empresas transnacionais são aquelas que


MERCADOS têm sede em um país, em geral, aqueles
mais industrializados como Estados Unidos,
O mercado é o lugar ou a forma em que Japão e países da Europa, e que se instalam
bens e serviços passam das mãos de quem pro- em diferentes países mais pobres da África,
América Latina e Ásia, com o objetivo
duz para quem necessita ou quer consumi-los.
de reduzir seus custos de produção e
É também uma maneira de circular os produ- aumentar ao máximo seu lucro. Para isso,
tos: compra quem tem dinheiro ou quem faz pressionam governos para obter isenções
a melhor oferta. A oferta é baseada em quanto parciais ou totais de tributos. Mesmo
de produto está disponível para um conjunto responsáveis por diversas violações da
de consumidores a determinado preço. Já a legislação ambiental, social e trabalhista,
demanda é a quantidade desse produto que os tais empresas permanecem impunes pela
falta de marcos legais internacionais que
consumidores querem comprar a um determi-
punam sua atuação.
nado preço.
Movimentos sociais e organizações não-
A economia capitalista, que é a dominan- governamentais de todo o mundo resistem
te, diz que no mercado há uma mão invisível ao avanço das transnacionais em duas
que regula a oferta e a demanda, ou seja, que frentes: na denúncia e na resistência em
o mercado é autorregulado. A economia domi- seus territórios e na negociação no âmbito
nante é o conjunto de teorias que se estuda nas da Organização das Nações Unidas (ONU)
universidades, que se comenta na imprensa e de um tratado vinculante que imponha
obrigações jurídicas internacionais em caso
que orienta políticas econômicas do governo,
de violações dos direitos humanos.
como a taxa de juros e o valor do salário mí-
nimo, entre outras. Segundo essa economia,
bastaria não haver interferências que as coisas com mais de 11 mil lojas em 27 países. Em
se ajeitariam em benefício tanto do comprador seu país de origem, onde controla quase 15%
quanto do produtor. do mercado varejista, já sofreu vários processos
Mas é só prestar atenção no mercado va- por discriminação na contratação e promoção
rejista de alimentos para ver que a coisa não de mulheres e por desrespeito aos direitos dos
é bem assim. O que realmente movimenta a trabalhadores. Além disso, ela impõe aos agri-
empresa capitalista é ter lucro sempre maior cultores o preço, o volume de entrega e o ritmo
e não alimentar bem as pessoas. No Brasil, da produção.
mais da metade desse mercado é controlada A concentração do mercado de alimentos
por quatro empresas transnacionais: Casino, em poucas empresas transnacionais também é
Carrefour, Wal Mart, Ceconsud. A empresa uma tendência nos produtos orgânicos, onde
estado unidense Wal Mart é a maior empresa recentemente a Unilever comprou a empresa
do mercado varejista de alimentos no mundo, brasileira Mãe Terra. Essas empresas têm mui-
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 27

to mais poder que os agricultores na hora de


definir os termos de compra. Elas também têm
muito poder frente à população que vive na ci-
dade, onde estabelecem um modelo de venda
de alimentos em grandes hipermercados, prati-
camente acessíveis só por meio de carro e que
demandam do poder público investimentos
em infraestrutura.
Questionar essa realidade e a ideia que co-
loca o mercado como o centro da economia, rização do trabalho embutido na produção e
de forma totalmente desvinculada das relações permita um consumo diversificado e crítico.
sociais onde ele se insere, é o primeiro passo
para pensar a construção social de mercados. O CIRCUITOS CURTOS
mercado não é a única forma de fazer os pro- Os circuitos curtos são aqueles que apro-
dutos circularem e estarem acessíveis para as ximam ao máximo as pessoas que produzem
pessoas. A produção para o autoconsumo, para das pessoas que consomem. Um exemplo ao
trocas ou para doações em relações de recipro- contrário, de circuito longo, acontece com as
cidade são formas econômicas alternativas, frutas produzidas no Nordeste do Brasil e ven-
assim como a redistribuição, que é a ação do didas na Europa. Para que elas cheguem frescas
Estado quando cobra impostos e, por exemplo, ao consumidor, precisam ser enviadas de avião.
presta serviços de educação e saúde para toda a O gasto de combustível é grande e o preço de
população. referência daquela fruta passa a ser o do merca-
Outra ideia a questionar é a de que no do comprador. Com isso, a fruta fica tão cara
mercado todos são iguais. Muito pelo contrá- que a própria trabalhadora assalariada que a
rio, na sociedade existem relações desiguais – colheu e embalou não consegue comê-la. Essa
entre mulheres e homens, negros e brancos, fruta só é acessível na Europa porque os custos
trabalhadores e patrões - que se manifestam ambientais e sociais na produção e na circula-
no mercado e que também são criadas por ele. ção não são contabilizados.
É o caso, por exemplo, do mercado de trabalho No circuito curto, além da proximidade
que remunera de maneira diferente as mulhe- geográfica, outro fator importante é a venda
res e a população negra. direta, isto é, da produtora para a compradora
Ao questionar os mitos da economia do- ou com poucas mediações. Assim, os gastos de
minante é possível pensar em outras formas combustível são menores, os produtos chegam
de fazer com que os bens e serviços circulem, mais frescos e a dieta é mais apropriada porque
atuando inclusive para reduzir as desigualdades os produtos são locais e de época e respondem
existentes. Dessa maneira, é possível construir às necessidades que nosso organismo tem para
um mercado social, que se oriente pela valo- aquele período.
28 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

REDUÇÃO DE DESIGUALDADES
O mercado construído socialmente tam-
bém é fator de aumento da resiliência, ou seja,
da capacidade de superar problemas. Isso vale
tanto para as pessoas que produzem os alimen-
tos e que, em situações como variações climá-
ticas, veem seu preço se reduzir ou diminuir a
qualidade e a quantidade dos produtos, quanto
para as pessoas que os consomem e que podem
em determinados momentos ter perdas mo-
mentâneas de renda pelo desemprego ou em
função de alguma doença.
As compras públicas, por exemplo, são rea-
lizadas com base em um preço de tabela e, no
caso do Programa de Aquisição de Alimentos
RELAÇÕES DE CONFIANÇA (PAA), os alimentos são distribuídos em en-
Nos mercados sociais, é fundamental a tidades de assistência. Muitos grupos de con-
construção de relações de confiança o mais di- sumo também atuam com base em tabelas de
retas possíveis, como acontece nas feiras. Isso preço previamente acordadas entre produtores
resulta em aprendizado para as produtoras e e consumidores ou estabelecem preços diferen-
para as pessoas que compram. As pessoas que tes para seus integrantes para acolher situações
vivem na cidade podem ter se alienado em re- de exceção. Por exemplo, um grupo de consu-
lação ao que comem, ou seja, transferido para mo de Santo André decidiu não cobrar a taxa
outras pessoas dizerem o que é bom ou gostoso. de adesão de trabalhadores terceirizados da
Por isto, muitas vezes elas precisam reaprender universidade onde atuam. Outro caso é o siste-
o que comer: descobrir outras texturas e outros ma de comunidades que sustentam a agricultu-
sabores, como o amargo. ra (CSA), no qual as pessoas se comprometem
Assim como há um padrão de beleza im- a realizar um pagamento mensal fixo, o que
posto para as mulheres, há também um padrão permite às agricultoras organizar sua produção
estrito de beleza para os alimentos, que é as- e suas despesas tanto na produção como nas
sociado à saúde tanto em um caso como no atividades domésticas.
outro, ainda que não corresponda à realidade. Para construir mercados que reduzam as
A aparência visual do produto não é o que mais desigualdades é importante estabelecer pro-
importa. Um produto aparentemente bonito – cessos coletivos. Estes ajudam a resolver des-
com tamanho e brilho uniformes – pode estar de questões logísticas, como o transporte e o
cheio de produtos químicos que certamente armazenamento, que são barateados conforme
nos farão mal a médio prazo. o volume de produtos, como para criar con-
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 29

dições de apoiar aquelas pessoas que estão em


maior vulnerabilidade. Esta construção pode se
dar por iniciativa independente das organiza-
ções e movimentos sociais ou em combinação
com o poder público.

AUTONOMIA ECONÔMICA E AUTOESTIMA


DAS MULHERES
Na experiência de trabalho com as mu- As agricultoras envolvidas no processo va-
lheres rurais do Vale do Ribeira, inseri-las no lorizaram o reconhecimento dos produtos que
mercado como está hoje organizado para ge- produzem, de sua variedade e de terem encon-
rar renda não era a principal motivação, mas trando mercado para produtos que elas nem
sim construir sua autonomia econômica. Um imaginavam que tivessem preço, como o aça-
caminho para isso acontecer é o controle das frão da terra ou o cará-mandioca. A valoriza-
mulheres sobre o acesso aos mercados e seus ção dos produtos expressa a valorização de seu
rendimentos, que se baseia sobre: trabalho e, por fim, delas mesmas.
1. “Organização coletiva para aumentar a Os processos acontecem em ritmos que
capacidade de venda e de poder de nego- respeitam suas possibilidades. Por um lado,
ciação das mulheres. isto lhes dá um conforto em relação a processos
2. Diversificação dos locais de comerciali- mistos, onde participam mulheres e homens,
zação para evitar a dependência em relação que elas não compreendem na totalidade. Por
aos clientes. outro, pode mantê-las em uma zona de con-
3. Melhoria do acesso a informações-cha- forto que restringe o crescimento do grupo e
ve (preços, quantidades, condições de ven- mesmo de cada uma delas.
da), para evitar a dependência em relação
aos intermediários comerciais.”
Os desafios para promover a autonomia
(Hillenkamp e Nobre, 2016)
econômica feminina se sintetizam em
um tripé: produção, comercialização e
A criação de mercados solidários, junto às organização das mulheres. Frente a isso,
agricultoras e quilombolas da Barra do Turvo é fundamental fortalecer estratégias
se deu em particular pela venda direta à loja de comercialização que articulem o
“Quitandoca” e aos grupos de consumo da autoconsumo, a doação, a troca, as feiras e
Grande São Paulo e Registro. Enquanto que os grupos de compra com a ampliação do
em Itaoca e Peruíbe se deu pelo apoio à parti- acesso às políticas de mercado institucional,
para que haja maior possibilidade de as
cipação das agricultoras nas chamadas públicas
mulheres terem controle sobre o próprio
do PAA e do Programa Nacional de Alimenta- trabalho.” (SOF, 2016)
ção Escolar (PNAE).
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: 31

APRENDIZADOS NO TRABALHO
DE CAMPO
32 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

AUTONOMIA
DAS MULHERES

C onstruir autonomia pessoal, política e


econômica passa por refletir sobre nos-
sas próprias vivências e compreender como se
expressam concretamente as desigualdades de
classe, gênero e raça.
As atividades e dinâmicas registradas nesta
parte do livro mostram como trabalhamos na
prática essa construção com os grupos de mu-
lheres do Vale do Ribeira.

| TEMPO: DINÂMICA DO RELÓGIO


Na dinâmica do relógio, pedimos às parti- “Acorda Maria Bonita, levanta a hora que quiser, que o dia já
vem raiando e o marido já fez café”.
cipantes que anotem tanto o que elas realizam
ao longo de 24 horas quanto o que os homens formação adoram cantar a paródia: “Acorda Ma-
de sua família realizam. Esta dinâmica é usada ria Bonita, levanta a hora que quiser, que o dia já
há muitos anos e em diferentes grupos. No re- vem raiando e o marido já fez café”.
sultado, sempre aparece o que as pesquisas for- A reflexão sobre os usos do tempo é central
mais de usos do tempo apontam: as mulheres para a economia feminista. Os tempos e as ló-
têm jornadas mais longas e dedicam mais horas gicas do mercado buscam aumentar o lucro e
ao trabalho doméstico e de cuidados. Elas são as não se importam com os tempos e as lógicas da
primeiras a levantar da cama e as últimas a irem vida. O tempo das mulheres é a variável de ajus-
dormir. Se é preciso aumentar o rendimento das te nesta contradição. Para ilustrar esse fato, a car-
famílias, elas fazem salgado, lavam roupa para tilha da SOF (2015) “Para entender a economia
fora e aumentam suas atividades. feminista. E colocar a lógica da vida em primei-
Esse trabalho permite observar que o tempo ro lugar” atualizou uma imagem tradicional do
das mulheres é regulado pelo cuidado das pessoas Mali: “a mulher de mil braços”. Agricultoras do
dependentes. Quando as crianças estão em idade
Polo da Borborema na Paraíba transformaram o
escolar, o tempo que elas têm para ir a uma reu-
desenho numa imagem usada em teatro de rua
nião ou fazer um curso é definido pelos horários
para falar de como o trabalho doméstico deve
de passagem do ônibus escolar. Se houver pessoas
ser compartilhado entre quem convive.
idosas ou doentes na família, ela se organiza para
Olhar para o relógio e para a atividade
garantir as refeições no horário e estar sempre
intensa e permanente das mulheres nos faz
acessível. E é muito difícil que o companheiro
entender como a divisão sexual do trabalho
saia para trabalhar na roça sem ter tomado o café
que ela preparou e a marmita com o almoço. Por que estrutura diferentes sociedades em todo o
isso as mulheres que participam das atividades de mundo é injusta.
33
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO

PARA REFLETIR SOBRE | ESPAÇO: DESENHO DA UNIDADE DE


OS USOS DO TEMPO CONSIDERAMOS: PRODUÇÃO
Tempo do trabalho de mercado
É o tempo que dedicamos às A forma como as mulheres vivenciam o espaço
atividades de produção de pode partir da comunidade onde vivem e da casa e do
mercadorias ou serviços que sítio onde vivem e trabalham. Para pensar a comuni-
garantem o nosso sustento. dade, as participantes em grupos constroem uma ma-
Geralmente, são atividades quete com massa de modelar ou cartolina e ali situam
remuneradas, mas que podem ser onde elas e seus companheiros estão e os caminhos
feitas também para a própria pessoa,
que percorrem.
como plantar alimentos. Nesse tempo
é preciso contar também o tempo Nesse exercício é possível perceber a falta de in-
que se gasta no transporte para ir ao fraestrutura – como água, luz, escola - e como as prio-
trabalho e voltar. ridades para instalação das mesmas são definidas com
Tempo do trabalho doméstico e de uma marca de gênero (SOF, 2006). A eletricidade,
cuidados por exemplo, leva as mulheres em geral a pensar em
É o tempo que gastamos com itens que diminuem seu trabalho, como a máquina de
atividades de limpeza, cozinha, lavar roupas ou a geladeira, que permite a conservação
administração, abastecimento e de alimentos. Ou então, na iluminação, que lhes traz
organização da casa. É também
o tempo dedicado ao cuidado,
mais segurança. Já os homens podem pensar no mo-
proteção, bem-estar, alimentação, tor de equipamentos que diminuem seu trabalho, mas
educação e saúde das pessoas que também na iluminação do campo de futebol.
vivem nela. A possibilidade de as mulheres se movimentarem
Tempo de necessidades pessoais pelos espaços também é uma questão. Várias mulheres
É o tempo gasto com atividades relatam a oposição dos maridos a que elas estudassem
como dormir, comer e cuidar da por terem que ir todas as noites à cidade. Meninas po-
higiene pessoal. dem não ser bem vistas se estão paradas à noite em um
Tempo de participação cidadã determinado ponto onde há sinal de celular ou de inter-
É o tempo que investimos em net. Isso já não acontece com os meninos.
atividades para o crescimento pessoal,
O Programa de Formação em Feminismo e
como estudo, participação política e
trabalhos voluntários. Agroecologia do Grupo de Trabalho de Mulheres da
Tempo de ócio, tempo livre Articulação Nacional de Agroecologia combinou esta
É o tempo que dedicamos às
dinâmica com o mapa da sociobiodiversidade, utiliza-
atividades que fazemos para nos do por organizações agroecológicas.
divertir e descansar, por vontade Nesse programa, o exercício do Mapa da Sociobio-
própria, ou quando não fazemos nada. diversidade se iniciava com o desenho da unidade de
Fonte: SOF, 2015 produção onde as mulheres vivem, destacando a casa,
34 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

“Hoje se eu desenhar este mapa vai ter


mais coisa”.

| NOSSO CORPO
o quintal, a lavoura e toda a biodiversidade exis- As agricultoras que atuam com a SOF
tente nestes espaços. O Mapa contribuiu para em sua maioria já vivenciaram dinâmicas que
valorizar o espaço rural e o trabalho ali realizado, permitem uma reflexão sobre a construção da
além de aprimorar o olhar das mulheres sobre os identidade de gênero ao longo de sua vida e da
espaços e sua atuação. divisão sexual do trabalho. Assim, no curso de
Economia Feminista e Agroecologia as relações
“Quando eu fui desenhar o mapa de gênero foram debatidas a partir do corpo.
pensei: vou colocar o quê? Não tenho É tanta exigência que muitas de nós acaba-
nada.” mos nos alienando em relação a nosso corpo.
Segundo o dicionário, alienar quer dizer
Em um primeiro momento os desenhos transferir para outra pessoa o domínio ou a pro-
eram mais restritos. Conforme iam sendo in- priedade e tornar-se separado, afastar-se. Ou
centivadas a expressar toda a biodiversidade, as seja, não nos reconhecemos quando nos olha-
mulheres iam acrescentando plantas medicinais, mos no espelho.
plantas alimentícias não convencionais, flores, Há mulheres que ficam tão tristes com seu
animais silvestres, entre outros elementos. corpo que já não percebem se ele está bem ou
O Mapa era retomado numa segunda ati- mal e transferem para o médico a decisão de di-
vidade com a pergunta: onde estão as mulheres zer se estão confortáveis ou não e para o marido
e os homens na propriedade? Quantos homens ou namorado, se estão bonitas.
e quantas mulheres trabalham em cada um dos Para fazer as pazes com nosso corpo, come-
espaços desenhados? O objetivo é o de situar çamos parando para olhar para nós mesmas.
como acontece a divisão sexual do trabalho. Em uma atividade de formação, dependen-
Retomar o Mapa também permitiu às mu- do do tempo, da quantidade de participantes e
lheres comparar o que haviam se lembrado da do espaço disponível, podemos fazer um dese-
primeira vez e o que se lembravam em um mo- nho individual do nosso corpo assinalando o que
mento posterior a um olhar mais analítico so- gostamos e o que não gostamos. O corpo pode
bre sua unidade de produção. Além disso, nas ser também modelado em massinha ou pode ser
atividades de intercâmbio as mulheres levavam feito um desenho coletivo do contorno do corpo
para casa mudas e sementes que aumentaram a de uma de nós onde assinalamos depois o que
diversidade de seus quintais. gostamos e o que não gostamos nele.
35
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO

Quando perguntamos como as mulheres se sentiram fazendo esta


atividade, as participantes responderam: “falar da gente é difícil, falar Um mergulho sobre
nosso próprio corpo
de si mesmo é um pouco complicado”, “eu percebi que eu não me percebo
permite que nos
muito”. As falas podem variar desde certo distanciamento: “não tem o desintoxiquemos
que eu goste ou não, se tem saúde está bom” até uma responsabilização do sistema patriarcal
de cada uma de nós para não ter preguiça, estar em forma. Mas tam- que…
bém começam as indagações: “Eu me perguntei : eu não gosto disso, mas impõe um padrão
por que eu não gosto disso?” de beleza estrito e
inalcançável que
IMPOSIÇÕES DO PADRÃO DE BELEZA mobiliza boa parte
Os descontentamentos com nosso corpo têm a ver com padrões de nossa energia,
tempo e dinheiro
que associam feminilidade-beleza-magreza-eterna juventude. A parte
e nos coloca em
mais comentada em diferentes grupos por causar desconforto é a bar- comparação umas
riga, que termina por ser uma representação do estar acima do peso, com as outras criando
da gordura acumulada. uma divisão entre nós
A obesidade é uma questão complexa. Na América Latina e Ca- define nosso corpo
ribe, os casos de obesidade e sobrepeso vêm aumentando, correspon- em função de agradar
dendo em 2015 a 23% e a 58% da população respectivamente. A o outro e do que
imaginamos que o
razão é uma transição alimentar para comidas ultraprocessadas, com
outro, os homens,
excesso de gorduras, açúcar e sal. A proporção de mulheres com obe- esperam de nós, e
sidade supera os homens e em mais de 20 países a diferença é maior não considerado para
do que 10 pontos percentuais (FAO, 2017). Em nossa voraz socie- e por nós mesmas
dade de consumo, comer e comprar tornam-se atos compulsivos que disciplina e modela
aliviam nossas dores e dilemas. Mas embora seja um sintoma de nosso nosso corpo
modo de vida, a obesidade é vista como um “problema” e um “pro- em função da
maternidade e
blema individual”.
do trabalho que
Ativistas feministas nos fazem pensar em como o peso ideal é delegam para nós
definido como um padrão universal que não dá conta de diferentes seja em casa, na roça,
situações, e como a obsessão pela magreza é uma terrível forma de no comércio ou na
controle sobre as mulheres. Mulheres que se dedicam a pensar sobre o fábrica: mãos rápidas
tema resgatam situações de sofrimento, como mulheres que se sentem e ágeis, capacidade
de aguentar
excluídas, rejeitadas, que deixam de ir à praia, de usar a roupa que
muitas horas de pé,
querem (Novaes, 2010). flexibilidade.
Em nossas formações, as mulheres relacionaram o fato de não
gostarem de partes de seu corpo com episódios de assédio que tiveram
essas partes como alvo. Também compartilharam situações de risco,
36 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

como regimes alimentares baseados em não co- NOSSO CORPO, NOSSA HISTÓRIA
mer, que nos deixam vulneráveis, por exemplo, Hoje boa parte das mulheres que partici-
à bebida ou com menor imunidade. pam dos movimentos gosta muito de ser ne-
As imposições sobre as mulheres também gras e compartilha que a cor da pele, os cabelos
variam se somos negras ou se somos trabalha- e o formato do corpo são a expressão viva da
doras. Quando pensamos sobre como foi mu- sua ancestralidade. Uma companheira guarani
dando nossa relação com nosso corpo, muitas de compartilhou que “estar vivas do jeito que somos
nós contamos que nos incomodava nosso nariz, já é por si só nossa resistência”.
nosso quadril largo, nosso cabelo. A consciência Agricultoras brancas também resgataram
sobre ser mulher negra nos faz olhar no espelho marcas no seu corpo que recordam sua família:
de outra forma. “tenho o formato do rosto igual a minha avó, de
Ainda assim, a indústria da beleza tenta cap- quem eu gostava muito”, ou “ dizem que sou a
turar nossas vivências abrindo variações de um cara do meu pai, mas eu não me vejo assim, tal-
mesmo padrão. As negras belas seriam aquelas vez porque não goste tanto dele”.
que se aproximam das brancas com nariz afilado As cicatrizes também contam nossa his-
e que “domam os cachos”. Soltar os cabelos é um tória. “Minha barriga é cheia de estrias, mas é
ato e tanto para cada mulher negra. Após alguns porque eu gerei quatro filhos”. Outras se inco-
dias, ainda que não falemos sobre o tema, é mui- modam com cicatrizes que as faz rememorar
to bom ver nas atividades de formação as mulhe- alguma situação desagradável. Conversamos
res soltando os cabelos, tomando chuva ou en- então que, em vez de querer apagar esta cica-
trando no mar sem medo de estragar a chapinha. triz, talvez fosse melhor olhar para a situação
Várias mulheres também relatam em nossas vivida de outra forma e assim superá-la.
atividades que não gostam de sua batata da perna O trabalho que realizamos também marca
– a panturrilha - musculosa. Acham interessante nosso corpo. No trabalho na agricultura, assim
que mulheres que fazem exercício em academia como em outras profissões, podemos sofrer aci-
busquem uma panturrilha delineada. Para elas é dentes ou adquirir problemas na coluna. Esse
diferente: perna forte, assim como braço e mão tema traz a conversa sobre como evitar acidentes,
fortes, são fruto do trabalho na roça. E na nossa nossa postura, o sobre-esforço no trabalho e que
sociedade o trabalho braçal é visto como inferior ferramentas podemos utilizar para deixar o traba-
e também masculino. É como se a mulher tra- lho menos penoso e ter mais tempo para cuidar
balhasse na roça porque o marido não dá conta. de nós mesmas.
Isso nos leva a conversar sobre as mãos: as
mãos que usam a enxada, o facão, que acariciam, TABUS E MISTÉRIOS
que lavam roupa e que sustentam mas que, no Quando sentamos para conversar sobre o
padrão de beleza que nos é imposto, deveriam corpo, percebemos que ainda há partes dele
estar imóveis para estar lisas, com unhas longas que são secretas para nós. Mesmo para as jovens
e pintadas. que aprenderam na escola, o aparelho reprodu-
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 37

As mulheres apontam caminhos para deixar


de lado a obsessão pelo emagrecimento:
Experimentar com que peso estamos mais
tivo parece externo a nós, como uma máquina confortáveis em vez de tentar a todo custo ser
de funcionamento preciso. Juntas desenhamos cada vez mais magras.
o aparelho reprodutivo e tentamos entender o Ser mais flexíveis para aceitar as variações de
ciclo da reprodução. peso ao longo do nosso ciclo de vida.
Na reprodução começamos a conversar so- Desenvolver uma melhor compreensão de
bre métodos contraceptivos e como está cada quais são de fato os problemas de saúde
associados ao peso, como por exemplo a
vez mais comum a prescrição de métodos que
diabetes e a pressão arterial elevada.
colocam a responsabilidade apenas sobre as
Fazer exercícios e comer alimentos nutritivos
mulheres e, ao mesmo tempo, lhes tira a au-
para nos sentir saudáveis e deixar que nosso
tonomia de decisão. Isso inclui métodos hor- peso se equilibre naturalmente
monais como injeção e implante, muito usa-
Coletiva del Libro de Salud de las Mujeres de
dos com a desculpa de que não tem o perigo
Boston, 2003
da mulher esquecer (como a pílula) e nem ter
que negociar com o companheiro (como a ca-
misinha). Mas quase nada se fala dos riscos à vida com os homens ainda é, na maioria das
saúde da mulher e muito menos que a camisi- vezes, descrita quase como uma obrigação ou
nha também protege das doenças sexualmente um problema.
transmissíveis como a AIDS. Algumas vezes as A liberdade de viver a sexualidade com
jovens buscam sozinhas informações, lêem na quem se gosta apareceu quando juntas assisti-
internet sobre os muitos efeitos colaterais dos mos ao vídeo “Mulheres rurais em movimen-
métodos hormonais, mas também não conse- to”, do Movimento de Mulheres Trabalhadoras
guem negociar o uso da camisinha e acabam Rurais do Nordeste (MMTR-NE). No vídeo,
caindo numa situação de gravidez indesejada. uma agricultora testemunha como o apoio do
A vagina é mais um mistério e o prazer movimento foi importante para que ela assu-
foi um assunto apenas começado. Quando as misse a relação com outra mulher. O convívio
mulheres falam do assunto, a sexualidade vi- com mulheres lésbicas que compartilham suas
vivências sem constrangimento desmonta pre-
conceitos. “É tão bom ser livre e a gente ser quem
a gente é mesmo. O importante é que cada uma
possa ser feliz”.
Falamos da menstruação e sobre como ain-
da hoje as jovens têm vergonha de dizer que es-
tão menstruadas e sobre como tantas padecem
cólicas e as vivem como um incômodo. Duas
participantes do curso compartilharam histó-
rias positivas que povoaram nossa imaginação.
Uma contou que tinha muita raiva de mens-
38 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

truar e sentia muitas cólicas. Não dava para sa- um campo de monocultura nos provoca tam-
ber o que causava o que: a raiva ou a cólica. Ela bém acontece quando olhamos várias mulheres
passou a participar de conversas com mulheres, capturadas pelo que a moda impõe.
algumas com uma abordagem positiva do ser A agricultura industrial utiliza insumos
mulher, e isto fez com que mudasse sua relação externos como adubos sintéticos e agrotó-
com a menstruação e, com isto, ela parou de xicos para diminuir os ciclos da natureza de
ter cólicas. crescimento, reprodução, regeneração e assim
Outra relatou como sua relação com a aumentar a produtividade de uma área. Esse
menstruação e mesmo com seu corpo mudou processo é similar à negação dos ciclos do cor-
depois que ela passou a usar um coletor mens- po, que oculta a necessidade de descanso para
trual. Ao experimentar ela entendeu como o regeneração do corpo, e impõe que este esteja
canal vaginal funciona, que tem músculos, que sempre jovem e disponível para a produção.
não tem sensibilidade e também que o sangue A ciência e a tecnologia focadas na produ-
que desce é muito menos do que a impressão tividade baseada em insumos químicos querem
que os absorventes nos dá, já que nos absorven- controlar tanto a agricultura quanto nossos
tes o sangue se espalha. corpos. Não é à toa que corporações transna-
Em algumas correntes da agroecologia cionais, que produzem sementes transgêni-
o sangue menstrual diluído em água é usado cas, adubos químicos e agrotóxicos, também
como adubo nas plantas no jardim, já que ele tenham braços farmacêuticos que produzem
tem nitrogênio, fósforo e potássio. Pensar nes- hormônios sintéticos para ser utilizados na me-
tas coisas já nos fez olhar para a menstruação nopausa ou em métodos contraceptivos como
como parte da vida e não como algo sujo, mal injeções e implantes.
cheiroso ou uma sangria inútil.
PRÁTICAS DE AUTOCUIDADO
CORPO, MÁQUINA E AGRICULTURA INDUSTRIAL Nas atividades de formação, realizamos tra-
O padrão de beleza imposto torna as mu- balhos corporais primeiro de maneira individual,
lheres homogêneas – todas com o mesmo ca- como auto-massagem e alongamento, e depois
belo, sobrancelhas e unhas. A singularidade – o em duplas e trios até chegar ao grupo todo. Re-
jeito de ser de cada uma – deixa de ser positivo fletindo sobre esse caminho, várias outras ações
e o que passa a ser valorizado é o ser igual, não de autocuidado surgiram quando fomos com-
importando o quanto é necessário adicionar ou partilhar nossas práticas agroecológicas.
interferir para chegar a este modelo. Na agroecologia, pensamos em práticas que
Esse processo é similar ao da agricultura nos proporcionem autonomia frente aos merca-
industrial, que impõe que as plantas devem ser dos e aos homens. Dessa maneira, não precisa-
homogêneas. Dessa forma, por exemplo, a soja mos comprar todos os insumos que necessita-
deve ter vagens na mesma altura para facilitar a mos porque usamos muito do que tem na nossa
ação da colheitadeira. A mesma desolação que própria roça. E também não dependemos de
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 39

nossos companheiros para implantar e cuidar da


horta ou da criação. Não é que a gente queira
fazer tudo sozinha. É muito bom contar com a
colaboração das pessoas que convivem conosco,
como nossos maridos e filhos. Mas é frustrante
quando eles ficam sempre adiando ou se dispon-
do a ajudar só se for do jeito deles.Mais frustran-
te ainda é não conseguir executar um plano por-
que não nos sentimos capazes.
Quando compartilhamos práticas de auto-
cuidado compartilhamos receitas de cosméti-
cos naturais. E aí seguimos a mesma lógica de
ter autonomia frente aos mercados já que não zes até animá-la de novo a participar. Em outro
precisamos comprar uma série de produtos e grupo as participantes incluíram na sua oferta
podemos usar o que há em nosso quintal. E para os grupos de consumo a pequena produ-
também de ter autonomia frente aos homens, ção de ervas de uma vizinha que acreditava não
pois nosso parâmetro não é o olhar ou a opi- ter nada, não valer nada.
nião dos homens mas sim o que nos faz nos
sentirmos bem, confortável e relaxada. “Agora não voa mais chaleira
lá em casa”.
ENFRENTANDO A VIOLÊNCIA
CONTRA AS MULHERES A participação das agricultoras neste pro-
Os grupos de agricultoras foram se organi- cesso de formação-organização lhes deu mais
zando com o acompanhamento da SOF com confiança em si mesmas, mudando a relação
o propósito de implementar ou compartilhar com os companheiros, deixando de aceitar hu-
práticas agroecológicas e construir canais de milhações e agressões.
venda direta de seus produtos. Mas foi só as A violência contra as mulheres é estrutural
mulheres estarem juntas para que situações de em nossa sociedade: todas nós mulheres muda-
violência vivenciadas por elas aparecessem ou mos nosso comportamento e restringimos nossa
que mulheres vítimas procurassem seu apoio. mobilidade por medo da violência. Ainda assim,
Os grupos se tornaram espaços de acolhi- cada situação é única, e as mulheres em coletivo
mento e fortalecimento. Em um grupo elas conseguem pensar formas de lidar com os ca-
observaram como uma de suas integrantes es- sos concretos. Às vezes basta ter um espaço para
tava deprimida por causa das constantes falas ser ouvida sem julgamentos. A violência se dá
do marido desqualificando seu trabalho e suas quando a mulher é tratada como “coisa”, então
ideias. Quando ela parou de participar, elas não superá-la pressupõe que a mulher recupere a
desistiram: foram visita-la uma, duas, três ve- confiança em si mesma como pessoa.
40 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

ESCALDA PÉS PARA Nas atividades de formação buscamos entender as razões da


RELAXAR violência contra as mulheres e como nos organizar para enfren-
Ingredientes ta-la. A cartilha da SOF “Mulheres em luta por uma vida sem
Folhas de hortelã; água violência” (2017) é um subsídio para entender as causas da vio-
quente, 2 ou 3 rodelas de lência sexista e como ela se manifesta. A dinâmica de apresentar
laranja e lavanda o resultado da discussão em formato de programa de rádio ou
Modo de fazer TV permite que as mulheres compartilhem suas vivências, as
Ferver a água, colocar analisem situando em um contexto mais amplo e expressem for-
em uma bacia, colocar as
mas de lidar com o problema.
plantas e colocar os pés
na bacia. Os pés possuem Para sair de uma situação de violência as agricultoras des-
aproximadamente 70 mil tacaram que é importante que as mulheres percam o medo de
terminações nervosas agir, que muitas vezes está fundado no medo de não ter como
ligadas a cada órgão do sustentar seus filhos sem a presença do marido ou da denúncia
corpo. Isso significa que o
não resultar em prisão e o homem acabar voltando e agredindo
relaxamento dos pés pode
influenciar no bem estar e ainda mais a mulher, ou ameaçando a família.
no tratamento de alguma O medo de perder a condição de agricultora por perder a
dor e/ou lesão, seja qual for terra ou por achar que não dá conta de trabalhar sozinha é mui-
a região que esteja doendo. to forte. Por isto em um dos cursos, de Economia Feminista e
Agroecologia, foi muito valorizado o fato da atividade de inter-
CANTEIRO ELEVADO câmbio ter sido realizada no sítio de uma agricultora que vive
Pode-se fazer este canteiro sozinha com seu filho adolescente. Ela compartilhou os desafios
com toras de bananeira ou
e as alegrias de tocar o sítio, com agrofloresta e criação de abe-
com bambu. Na medida
em que vai colocando os lhas, sem ter que contratar outros trabalhadores. E o mutirão
pedaços de bananeiras, realizado durante a vivência permitiu a ela instalar uma horta
vai também colocando mandala como já havia há muito planejado,
folhagens secas, cinzas de Preocupa a todas as situações de violência contra jovens e
fogão, esterco de gado,
meninas. Muitas mães vivem o dilema de deixar que suas filhas
esterco de galinha e terra,
até dar altura de uma se divirtam, se sintam livres, e o medo de que estes momentos de
lâmina de facão. Quando diversão as coloquem em risco. Nos grupos conversamos como
finalizar, colocar capim, podemos proteger umas às outras, cuidando quando alguma de
folhagens secas e depois nós está numa situação de maior vulnerabilidade, como quando
plantar as mudas. Este
se tem que andar um longo trecho sozinha à noite para chegar
canteiro, além de produzir
bem, facilita seu trabalho e em casa ou quando se bebeu mais do que o de costume.
ajuda a sua coluna pois não Quando conversamos sobre isto nos perguntamos se esta-
precisa agachar e segura mos de novo responsabilizando as mulheres pelo risco de sofre-
umidade. rem violência em vez de impedir a ação dos agressores.

PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 41

Uma participante do curso de Economia Fe- residências das classes D/E conectadas à inter-
minista e Agroeocologia comparou esta situação net são 23%, enquanto aquelas em áreas rurais
à transição agroecológica. Quando começamos chegam a 26%. Esses dados indicam uma dis-
a trabalhar junto com agricultores que utilizam criminação de comunidades periféricas e rurais
o pacote da agricultura industrial (sementes mo- movida por interesses financeiros.
dificadas, adubos, herbicidas, venenos) vamos O que pode mudar esse cenário?
aos poucos, propondo uma área de teste (ou Alguns grupos de tecnologias livres apon-
chamando a atenção para a produção no quintal tam um caminho: trabalhar a ideia de ‘Redes
realizada pelas mulheres e sem veneno). autônomas’ ou ‘redes comunitárias’.
Com essa experiência, o agricultor vai per-
cebendo as coisas de outra maneira e até carpir REDES COMUNITÁRIAS
volta a ter sentido. Da mesma forma nossa au- Uma rede comunitária de comunicação é
to-proteção coletiva pode fazer parte de uma uma infraestrutura alternativa construída cole-
transição, mostrando o que é viver uma vida tivamente pelas pessoas. O objetivo é resolver
livre de violência em uma sociedade ainda he- problemas de comunicação de um determina-
gemonicamente patriarcal. do território, seja trazendo acesso à internet ou
provendo serviços locais úteis para seu fortale-
cimento interno. Com redes autônomas, é pos-
| REDES AUTÔNOMAS DE sível, por exemplo, que pessoas em casas muito
COMUNICAÇÃO* distantes se comuniquem por chamadas de voz
sem a necessidade de uma linha telefônica.
A tecnologia tem o potencial de diminuir Normalmente essa iniciativa acontece por
distâncias e melhorar a qualidade de vida das meio de uma associação, de um grupo de mo-
pessoas. Ao mesmo tempo, está cercada por in- radores ou de um coletivo. Por se tratar de
teresses econômicos e governamentais. Por isso, um modelo de comunicação, não há fórmula
o princípio da neutralidade da rede define que pronta. De maneira geral, há três pontos que
todos os dados que transitam na rede devem fazem de uma infraestrutura uma experiência
ser tratados da mesma maneira, sem importar autônoma:
sua origem, tipo e destino. | Estrutura distribuída: o crescimento é
Mesmo em constante ameaça, esse prin- possível a partir de qualquer ponto e não há
cípio garante uma experiência supostamente um ponto central que controla os outros
livre para quem utiliza a internet. Apesar dis- | Decisões coletivas: o processo deve ser co-
so, ainda há uma explícita desigualdade socioe- letivo e voluntário
conômica no acesso à rede mundial. Somente | Autonomia: a comunidade deve apro-
54% das residências brasileiras estão conecta- priar-se de conhecimento para manter sua rede
das à internet, sendo a maioria em áreas urba- e seus serviços sem o apoio de empresas
nas (59%) e nas classes A (98%) e B (91%). As * Texto elaborado por Carla Jancz, dos coletivos Actantes e Maria Lab.
42 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

No Vale do Ribeira, demos os primeirís- As redes autônomas de comunicação em-


simos passos para buscar essa autonomia de polgam as mulheres não apenas porque impul-
comunicação com a realização de oficinas de sionam a comercialização, mas porque ofere-
informática do projeto “Construindo capaci- cem também a possibilidades de estudo e lazer
dades e compartilhando experiências para uma para toda a população da região.
economia inclusiva”, com apoio do Fundo Entretanto, sua implementação não acon-
Newton do Conselho Britânico. Nessa visita tece do dia para a noite. O primeiro passo é
inicial, uma técnica de redes fez uma primeira identificar pessoas do território interessadas em
análise geral do território e conversou com as tecnologia e dispostas a passar adiante aquele
mulheres sobre a possibilidade de instalar uma conhecimento para seus vizinhos. Trata-se,
rede autônoma para, futuramente, distribuir a portanto, de estabelecer um processo colabora-
internet no local. tivo, comunitário, não externo ao local.
A internet e outros meios de comunicação
empolga todas as participantes porque facilita E COMO FICA A CONEXÃO
o contato entre produtoras e consumidoras, PARA ALÉM DO TERRITÓRIO?
auxiliando no escoamento de produtos agroe- Infelizmente, não existe solução mágica.
cológicos cultivados pelas mulheres da agricul- Sempre que houver o desejo de se conectar à
tura familiar. rede mundial da internet, vai existir a necessida-
Para se ter uma ideia dos benefícios que isso de de firmar um contrato com uma empresa de
representa, sem essa rede de comunicação, para telecomunicação. Nesses casos, a autonomia da
fazer chegar em São Paulo a lista dos produtos comunidade está em mediar a contratação desse
disponíveis, as agricultoras dos quilombos de serviço e escolher como ratear esse custo de forma
Terra Seca e do Cedro precisam caminhar 30 justa. Por exemplo, é possível que a comunidade
km até chegar no centro de Barra do Turvo, escolha contratar uma única internet que estaria
onde há sinal de telefonia. disponível em todo o bairro, aberta para todos ou
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 43

integrantes nas decisões relacionadas às diferen-


tes atividades a realizar, bem como no comparti-
lhamento das tarefas e responsabilidades.
Essa forma de funcionar é marcada por desa-
fios permanentes, como o de conciliar os diferen-
tes tempos em que cada mulher está - algumas
ainda despertando para a organização coletiva,
outras já concentrando muitas responsabilidades
- a desigualdade de escolarização ou de acesso a
A telecomunicação com o mundo
recursos, entre outros.
depende de um conjunto de
infraestrutura como cabos de fibras São diversos os acontecimentos que envol-
ópticas e telefônicas, satélites, antenas vem o cotidiano dos grupos: a preparação para
de larga distância, distribuidoras de o plantio, a colheita e a entrega da produção
sinais. Até a década de 1990, a rede para os grupos de consumo em São Paulo, a
de comunicação que existia no Brasil preocupação com o mal estado das estradas,
pertencia ao Estado, portanto, era a qualidade da água que serve o bairro, bem
pública. Porém nessa época ela foi como com as companheiras que não possuem
privatizada, ou seja, vendida a algumas a DAP (Declaração de Aptidão ao Programa
poucas empresas privadas que hoje
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Fa-
detêm o controle da maior parte dessa
miliar) e/ou a nota de produtora, entre outros.
rede. Nas redes comunitárias é possível
criarmos nossas próprias estruturas de Nesse processo de construção, amadureci-
comunicação interna, que já facilitam mento e organização, os grupos passam por mo-
em muito nosso trabalho. Mas para que mentos de escolhas e dificuldades que acabam
essa estrutura esteja em contato com o se transformando em estados de “melancolia
restante do mundo, é preciso contratar coletiva”, nos quais as ações positivas são menos
um provedor pago de internet percebidas e há uma certa paralisia do grupo.
Em momentos como esses, atividades que
envolvam a reflexão coletiva permitem que o
limitada aos moradores participantes do rateio. grupo olhe para os diferentes problemas que
Dessa forma os custos seriam mais acessíveis. enfrenta e organize uma resposta a eles. No
Vale do Ribeira, com apoio do IRD, fizemos
| TRABALHANDO A AUTOGESTÃO isso por meio da oficina do balaio, que combi-
DO GRUPO: OFICINA DO BALAIO na a metodologia de grupos focais com dinâ-
micas práticas.
A dinâmica de funcionamento dos grupos Nos grupos focais, um roteiro de questões
de mulheres com os quais trabalhamos se rege previamente elaboradas permitiu às mulheres
pelo princípio da autogestão, isto é, pela partici- falarem sobre a história do grupo, perspectivas,
pação igualitária, sem hierarquias, de todas suas desafios e sonhos, bem como tratar de questões
44 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

algumas e poderia ser feito com um material


que estivesse ao alcance delas, como fibras na-
turais, e que aguentasse mais ou menos peso.
Após ficar pronto, pedimos aos grupos que
olhassem para aquele cesto e colocassem den-
tro dele apenas o que gostariam de carregar. O
grupo decidiria as formas de se carregar, o que
carregar e como carregar as informações que
elas revelaram durante a aplicação do roteiro.
Esta atividade permitiu que o grupo resgatasse a
memória dos problemas, o que não foi possível
da organização e de como entediam as formas resolver, as pessoas e os fatos relacionados que
de lidar com o grupo, seja para a comercializa- foram importantes na caminhada do grupo.
ção ou para tratar dos problemas do bairro.
Durante os grupos focais, ao falarem de al- DIVISÃO DE TAREFAS E RESPONSABILIDADES
guns temas específicos, as mulheres perceberam Um assunto colocado em comum para to-
os problemas que têm em comum, não apenas dos os grupos foram as questões que envolvem
aqueles considerados materiais, mas também as a organização dos coletivos. Os grupos visuali-
preocupações com os jovens e a violência que zaram que algumas tarefas eram centralizadas
percebem nos bairros e território. em algumas mulheres, por exemplo, as anota-
ções de vendas dos produtos ou a emissão da
BALAIO: IDENTIFICANDO PROBLEMAS, nota de produtora. Outras se encarregavam
RESPONSABILIDADES E AÇÕES apenas da comunicação com os grupos de con-
A oficina do balaio foi proposta após per- sumo, pois nem todas possuem celular, e é con-
ceber que muitas informações e de diferentes siderado um trabalho que demanda tempo por
assuntos se tornavam uma preocupação cons- conta do sinal do celular que é ruim na região
tante que chegava a tirar o sono de várias mu- ou porque têm que caminhar alguns quilôme-
lheres. tros para avisar as companheiras sobre as infor-
O primeiro passo desta atividade foi iden- mações recebidas.
tificar os problemas que as mulheres acredita- A partir disso, resolveram que deveriam
vam ser importantes tratar naquele determina- providenciar a divisão de tarefas por igual, in-
do momento. cluindo compra de aparelhos celulares, e com-
O segundo passo foi fabricar um balaio, partilhar saberes sobre como organizar as ven-
que poderia ser grande e carregar muitas coi- das ou realizar anotações na nota de produtora.
sas ou ser pequeno, no tamanho ideal para que Outras questões colocada no balaio dos
todas pudessem carregar sem peso. Ele poderia grupos dizem respeito à entrada de novas mu-
ser carregado por muitas mãos ou por apenas lheres e aos impactos negativos da participação
45
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO

de maridos nas reuniões no lugar das mulheres. As participan-


tes apontaram que a presença masculina acaba atrapalhando QUESTÕES IDENTIFICADAS
na maneira de olhar e entender os problemas. Ao colocarem PELOS GRUPOS
as questões da autogestão no balaio, as mulheres se mostraram qualidade da água no
dispostas a acolher outras pessoas dos bairros, principalmente bairro e necessidade de
as mulheres que dizem “não ter tempo para participar de reu- tratamento das águas que
saem das casas para os rios
niões”. Muitas delas disseram ter passado por esta fase ou que
machismo dentro das
se sentiam incapazes de acompanhar algo, seja pelo tempo ou
organizações mistas, nas
pela desqualificação, e que sentiram a diferença em suas vidas quais os homens dizem
quando começaram a se dedicar mais aos seus grupos. que certos assuntos, como
Assim, fazer mais reuniões, tratar das questões que impedem a titulação de terras, não
as mulheres de saírem de suas casas e estabelecer regras que fa- deveriam ser tratado por
cilitem a presença ativa de todas foram algumas das ações que elas
identificaram para superar esses problemas e conquistar uma par- ameaça do término de
ticipação horizontal e igualitária. As participantes de organizações compras institucionais
mistas também manifestaram que farão um esforço de estar in- (PAA)
formadas de todos os temas acompanhados por suas organizações necessidade de terras para
para conseguirem tomar parte das decisões coletivas. plantar
acesso a formas e locais
para comercialização.
OUTROS BALAIOS
Esse esforço de selecionar o que colocar no balaio permi- dificuldades de acesso
ao transporte público e à
tiu às mulheres identificarem novos balaios e seus responsáveis,
saúde
como a prefeitura, que implementa e gerencia o PAA e a infraes-
ausência de Assistência
trutura de saneamento básico. Ou então, a SOF, que poderia Técnica e Extensão Rural
ajudar na formação das mulheres sobre uso de internet por meio (ATER) agroecológica
de smartfones e de planilhas que facilitam a organização dos pro-
dutos, preços e vendas.
SOLUÇÕES E APRENDIZADOS
A oficina do balaio auxiliou o coletivo Rosas do Vale, do
COMPARTILHADOS
bairro Córrego da Onça, a organizar suas demandas por infraes- caminhos para a
trutura: a questão das estradas, os horários dos transportes pú- formalização da
blicos, a distribuição da água, a construção de um espaço de organização
uso comunitário para cursos, lazer das crianças e jovens e os uso de biofossas nos
atendimentos da assistência municipal. Estas demandas foram quintais das casas para
levadas à prefeitura e as mulheres se mostraram satisfeitas com tratamento da água servida
a possibilidade de mudança: “A gente estava com tudo fresqui- para a família
nho na cabeça. Foi muito bom ter colocado os problemas para
o prefeito porque ele nunca veio aqui e agora já sabe de tudo”.
46 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS
FEMINISTAS

A s práticas agroecologicas feministas são


aquelas atividades relacionadas à agricul-
tura que garantem que as mulheres tenham
As mulheres estão envolvidas em pratica-
mente todas as atividades que acontecem no
meio rural. Isso inclui o cuidado com animais
maior autonomia. Autonomia se refere à ca- de pequeno e grande porte, o trato para orde-
pacidade de escolha das mulheres em relação nha, a semeadura e colheita de grãos e frutos,
ao uso do seu tempo, às decisões que envol- a garantia da produção dos alimentos para o
vem seu corpo e também às decisões na esfera autoconsumo e a abertura de mercados para a
reprodutiva e de cuidados e na esfera da pro- comercialização da produção.
dução. Ter autonomia também diz respeito à As práticas agroecológicas permitem ven-
possibilidade de participar politicamente, por cer a chamada “divisão sexual do trabalho”,
exemplo, de ter a possibilidade de frequentar que separa o conjunto do trabalho que reali-
reuniões, de poder falar e de ser escutada na zamos ao longo da nossa vida entre atividades
organização. “de mulheres”, teoricamente mais “leves”, ou
Conforme explicado na primeira parte do “de homens”, “mais pesadas” ou “intelectuais”.
livro, a agroecologia compreende a agricultu- Um dos caminhos para superar a divisão se-
ra a partir de uma perspectiva integrada, bus- xual do trabalho é aliar as atividades que são ne-
cando o equilíbrio, a diversidade, o resgate do cessárias realizar na propriedade com as ativida-
saber tradicional coletivo, construído pelas co- des que nos proporcionam prazer, seja no plantar
munidades a partir de suas vivências. ou na execução de outras tarefas do dia a dia.
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 47

CANTEIROS SUSPENSOS
RAZÕES QUE NOS LEVAM A UTILIZÁ-LOS
Quando a repartição ou o rodízio dos Menos dores na coluna
afazeres no cuidado da casa ou da roça são Mais espaço para o enraizamento das
cenouras
repensados a partir da autonomia, trabalhos
Por serem mais profundos, proporcionam
domésticos como o cuidado com os filhos e a mais espaço para a decomposição de
manutenção da alimentação e da limpeza da matéria orgânica e, portanto, mais nutrição
casa passam a ser uma responsabilidade de to- Proporciona mais independência das
das as pessoas da família, não apenas das mu- mulheres em relação aos maridos porque
lheres ou das filhas. Outro resultado é o au- utiliza materiais leves, como o bambu
Reduz o trabalho de capina
mento da qualidade do trabalho na produção
de hortifrutigranjeiros uma vez que as mulhe-
Com o uso de canteiros fixos com bambus
res passam a ter mais tempo disponível para se
ou madeira, elimina-se a necessidade de refa-
envolver em outras tarefas e não somente nos
zê-los a cada plantio, trabalho que é feito ge-
afazeres domésticos.
ralmente com o auxílio do marido no tempo
em que ele se dispõe a auxiliar a mulher nessa
| TROCAS DE EXPERIÊNCIAS atividade. Já com o canteiro elevado, a mulher,
responsável na maior parte das vezes pela horta
Garantir a autonomia significa ter um da propriedade, pode fazer o plantio anual das
olhar novo sobre tudo. Ao passear pelo quin- culturas no mesmo local, apenas sendo neces-
tal ou pela roça com tempo, é possível obser- sário fazer a manutenção quando o material do
var todos os recursos que temos e refletir sobre bambu ou da madeira estiver se decompondo.
desafios ou problemas a resolver. Por exemplo, Assim, a observação prática e o intercâm-
como fazer um canteiro de boa qualidade para bio sobre os saberes tradicionais nos grupos de
produzir do maxixe à cenoura no tempo que mulheres nos levam a desenvolver a técnica mais
temos disponível pra cuidar? adequada para o problema que é preciso resolver.
As experiências das mulheres também nos É possível melhorar também o uso das es-
ajudam a pensar como melhorar nossas prá- truturas da casa, como por exemplo, o local do
ticas concretas. Um exemplo são os canteiros galinheiro. Por que não deixá-lo mais perto da
suspensos. horta? Dessa maneira, é possível eliminar o tra-
balho de carregar o adubo de um lado até o ou-
tro do terreno. Outra alternativa é levar as ga-
“A gente depende dos maridos linhas para ajudar a carpir e adubar o canteiro.
para ficar refazendo os canteiros Práticas como estas resultam no melhor
e eles dizem: ah, posso aproveitamento do tempo e também buscam
ajudar você nisso, a independência do modelo de produção in-
dustrial na agricultura. O “agronegócio” é um
mas agora não”.
modelo impulsionado a partir dos anos 1960
48 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

As práticas agroecológicas promovem essa


reflexão contínua e buscam melhorar a quali-
dade do produto e do trabalho e, sobretudo,
a autonomia pessoal e coletiva das mulheres.

| MANEJO ECOLÓGICO DOS SOLOS


O solo é a casa da agricultura. Cuidar da
casa, como coloca a professora Ana Primavesi
no livro “Manejo Ecológico dos Solos”, é per-
ceber que tudo está relacionado:
com a chamada “Revolução Verde”, que trou-
xe máquinas agrícolas, colheitadeiras mecâni- “Se alguém quiser compreender o ser humano
cas, plantas transgênicas e muitos agrotóxicos não pode analisar somente por um membro ou
para o campo... Com isso, a agricultura fami- órgão. E se alguém quer compreender a terra,
liar ficou refém das lojas agropecuárias e dos não pode analisar somente um fator. Tem que
empréstimos bancários. ver todos em conjunto”. (Primavesi, 2006)
Percebemos isso em casa quando vemos
que, nesse modelo, para a produção de ali- Ao garantir um solo bonito, é possível
mentos acontecer, é preciso comprar sementes, garantir de forma permanente a produção de
adubos e venenos na venda. Estes vêm de um alimentos saudáveis, com qualidade e com a
único pacote produzido pela mesma empresa, preservação dos recursos naturais. Além disso,
que chamamos de corporações transnacionais nas práticas agroecológicas, os princípios da so-
ou multinacionais. lidariedade e a participação da mulher garan-
tem a diversidade, que é sempre constante nos
E quando olhamos bem de perto, vemos
quintais produtivos.
que as indústrias que fabricam esses insumos
Se você perguntasse à terra o que ela mais
e produtos químicos para a produção de ali-
gosta de comer, ela diria que é a madeira. Se
mentos são também as mesmas que fabricam pedisse a ela para te mostrar quando ela está
os remédios necessários para combater os efei- boa para produzir, ela diria: “quando eu estiver
tos do uso de transgênicos e agrotóxicos sobre rica em matéria orgânica!”
nossos corpos, como as alergias e o câncer! Então, como garantir a matéria orgânica
Quem nunca conversou com alguém da do meu solo? O solo entendido como vivo:
comunidade de agricultores que, por exemplo, solo que come, bebe e respira?
produz tomate para os “grandes” mas não con-
some o que planta pois está cheio de veneno? Ou ESTRUTURA DO SOLO
que anda reclamando muito de dores de cabeça? O solo é um organismo vivo composto por
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 49

diversos minerais agregados com porosidades téria orgânica ele terá, ou seja, maior quantida-
diferentes. Ele respira por meio de macropo- de de nutrientes ele vai apresentar.
ros e se hidrata por meio de microporos. Nesse O líquido que sai do caule da bananeira,
processo, são transportados nutrientes mais le- chamado de “nódoa”, pode ser depositado so-
ves ou mais pesados aos vegetais, tanto aque- bre o solo pois é rico em micronutrientes. Ao
les com raízes mais superficiais quanto aqueles se decompor, a terra que fica embaixo fica es-
com raízes mais profundas. cura, brilhosa e com muitos microorganismos
Exemplo: decompositores de matéria orgânica.
MACROPOROS (entrada de ar): trans- A decadência do solo se reflete no apare-
portam nutrientes mais leves, como o N (ni- cimento de pragas e doenças nas plantas, que
trogênio) – P (fósforo) – K (potássio) servem como alerta de que há um problema.
MICROPOROS (entrada de água): trans- Por isso, eliminar apenas as pragas não resolve a
portam nutrientes mais pesados, como Bo questão central, que é a necessidade de observar
(Boro), Zn (Zinco), S (Enxofre), Mn (Manga- a terra e recuperar sua capacidade produtiva.
nês), Mg (Magnésio)
Atividades práticas de observação do solo
E como saber onde estão esses nutrientes realizadas com os grupos de mulheres
na minha roça? Caminhada para levantar plantas indi-
A terra se nutre a partir da decomposição cadoras da qualidade do seu solo a olho nu
de matéria orgânica, que é o conjunto de re- Algumas plantas repetidamente aparecem
síduos vegetais ou animais lançados no am- em solos secos. Outras, em solos mais compacta-
biente. Quanto maior a quantidade de matéria dos, e outras em áreas de monocultivo sem rota-
orgânica no solo, maior é a quantidade de nu- ção de culturas ou sistemas com uso de produtos
trientes disponíveis. Quanto mais escuro, solto químicos em seus tratos culturais. Exemplo de
e brilhante for o solo, maior quantidade de ma- plantas indicadores de deficiência de nutrientes:

NUTRIENTES FONTES
N – Nitrogênio: responsável por trazer proteínas e mais Esterco de vaca fresco, de galinha ou de porco
vitalidade às plantas
P – Fósforo: responsável pelo bom crescimento da planta, Semente de colorau em pó, farinha de osso,
entre outros processos composto de resto de peixe
K – Potássio: auxilia no fluxo dos nutrientes Cinzas do fogão à lenha, caule da bananeira,
B – Boro: auxilia na formação dos frutos Nódoa da bananeira
Mn – Manganês: auxilia no controle de fungos e vírus
Zn – Zinco: auxilia no processo de absorção de nutrientes
50 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

identificando na propriedade os melhores lo-


cais para fazer a curva de nível e evitar que os
nutrientes sejam levados pela água até o curso
mais baixo do local.
Esse levantamento valida os locais de passa-
gem da água para a construção de açudes des-
| Picão tinados à produção de peixes ou mesmo para a
| Trapueraba irrigação das lavouras pela gravidade, bem como
| Barba de bode os locais de potenciais nascentes na propriedade.
| Guanxuma Assim, quanto mais inclinado for o terre-
Além disso, a presença de cupinzeiros e no, maior número de curvas de níveis devem
formigueiros também indicam deficiência nu- ser feitas e com menos espaçamento entre elas
tricional do solo. quando comparadas a áreas mais planas, por
exemplo. Além de economizar com adubos,
isso proporciona a permanência da água sub-
Teste de estrutura de solo
terrânea utilizada pelas plantas do local.
São testes caseiros feitos com o auxílio de
um vidro ou manualmente para verificar qual
Cobertura de solo
tipo de solo está presente no local - mais argilo-
Os canteiros de muitas mulheres são feitos
so, mais arenoso, misto etc. - e a porcentagem
sem a cobertura de solo. Isso abre espaço para a
de argila presente.
chegada de capins como a braquiária e a tiriri-
Eles são úteis não apenas para a agricultu- ca, que gostam de luz. Cobrir o solo previne a
ra, como também para conhecer a qualidade da instalação dessas plantas dominantes, além de
argila nas construções de pau a pique. evitar a evaporação da água pelo sol, garantin-
Como fazer: do a umidade do solo.
No local de plantio, retira-se uma amostra Nas caminhadas, observamos muitas plan-
de solo e coloca-se no vidro com um pouco de tas que geram bastante biomassa e podem ser
água. Se a água decantar rapidamente, o solo é utilizadas para cobrir os canteiros e até mesmo
mais arenoso do que argiloso. Outro exemplo: os caminhos entre os canteiros, que geralmen-
toma-se uma amostra de solo e molha-se com te precisam ser carpidos e limpos e consomem
um pouco de água. Se manualmente for possível muito de nosso tempo.
moldar uma cobrinha sem quebrar, significa que Em nossos intercâmbios, pensamos em
o solo é mais argiloso. Caso quebre, o solo é mais plantas que podem ser incluídas durante os
arenoso e não consegue segurar a água. plantios para cobrir o solo, como o napiê, a
bananeira e o margaridão. Ao fazer isso, redu-
Observação do relevo zimos nosso trabalho, evitando de trazer essa
Nas caminhadas em grupos, observamos cobertura de outros locais, muitas vezes longe.
o relevo e sua interferência no curso da água, Além disso, essas plantas impedem que a bra-
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 51

quiária se instale, consequentemente, reduzin- nossas vidas e os desafios para a produção de


do o trabalho de roçada e eliminando o uso alimentos, além de garantir melhor desempe-
de herbicidas e outros venenos prejudiciais à nho do trabalho em menor tempo. Dessa ma-
saúde e ao meio ambiente. neira, o mutirão é uma prática agroecológica.
Ter ferramentas bem amoladas também
| ENERGIA garante maior agilidade, desempenho do tra-
balho e cuidado com as plantas e, com isso,
Quando falamos de energia, estamos nos menos energia é gasta com o uso de boas ferra-
referindo ao sol, ao fogão à lenha, à compos- mentas. Por isso, as políticas de crédito como
tagem, à cisterna, às curvas de nível, ao tempo o Programa Nacional da Agricultura Familiar
para regar e a tudo aquilo que envolve traba- (Pronaf ), voltadas para a aquisição de ferra-
lho. Ou seja: quanta energia é despendida para mentas adequadas, também dizem respeito à
realizar uma determinada atividade. autonomia e à liberação de tempo, necessário
A energia que gastamos pode também ser não apenas para as atividades produtivas, como
armazenada e reutilizada. Empregar ferramen- também para o prazer e o lazer.
tas que facilitem nosso trabalho no dia a dia Com isso, aproveitar a energia significa:
nos garante mais tempo de descanso, de lazer | Cuidar das ferramentas
e um reaproveitamento das coisas em casa para | Ir aos mutirões
mais de uma função. | Garantir politicas de crédito às mulheres
Por exemplo, a construção de um fogão à | Ter o tempo necessário para si mesma
lenha é feita a partir das necessidades da mulher,
da característica do seu barro, da altura melhor FERRAMENTAS E AUTONOMIA DAS MULHERES
para trabalhar e da disposição do fogão à lenha O uso das ferramentas na agricultura agroe-
em relação ao restante da casa, para que ela possa cológica está diretamente associado aos tempos
trabalhar melhor e gastar menos energia. Por que de realização das capinas, podas, manejo da
não nos organizamos desta maneira em todas as matéria orgânica. Assim, as mulheres na agri-
demais estruturas da casa e na nossa roça? cultura agroecológica podem buscar ou mesmo
Nas práticas agroecológicas feministas, desenvolver ferramentas mais leves, portáteis e
Energia = Trabalho = Tempo, então, garantir este práticas para si e com isso trabalhar o mesmo
recurso com o auxílio dos animais e dos vege- tempo com menos esforço, com melhores pos-
tais pode lhe oferecer melhor uso do tempo. Ao turas e cuidado com o corpo, além de realizar
realizarmos um “balanço energético”, pensamos mais atividades e maiores no mesmo tempo.
em tudo o que utilizamos para realizar as nossas Devido ao peso de algumas ferramentas
atividades, por exemplo, quantos insumos como como, por exemplo, cavadeira, motosserra e
adubo, diesel, ferramentas, são necessários. serrote de poda para tiragem de lenha ou ma-
Quando fazemos mutirões de mulheres, nejo da matéria orgânica e até mesmo a enxada
encontramos tempo para conversarmos sobre para o levantamento de canteiros, muitas vezes
52 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

de aço, mais pesada, por uma de plástico já que


não há corrosão do material. A bomba de plástico
contém a mesma capacidade de 20 litros de ferti-
lizante. O tempo médio que uma mulher jovem
as mulheres aguardam os tempos e a vontade leva para aplicar a calda com a bomba de plástico
dos maridos para fazerem as atividades. é de 1 bomba em 30 minutos, comparado com
O serrote de poda encurvado, flexível e leve 45 minutos com a bomba mais pesada, além de
é feito para realizar a poda com pouco esforço e conseguir realizar 8 bombas por dia com a bomba
é capaz de realizar podas em árvores de até 15 de plástico contra quatro bombas com a de aço.
cm de espessura, sem que serrotes grandes e pe-
sados sejam necessários. Com isso, as mulheres “Eu nem borrifava nada, além de
podem levar lenha para casa quando falta sem nunca gostar de veneno. A primeira
aguardar o retorno dos filhos ou do marido. vez que vocês falaram do biofertilizante
Ele é especialmente útil em sistemas agroflo- pensei, ‘ai, meu marido não vai querer
restais, onde a poda é frequente no cultivo dos aplicar’, agora com essa bomba eu
grãos e de frutas especialmente. mesma aplico o bio que eu mesma faço”.

“Nunca imaginei que eu com 70 anos


conseguiria cortar essa árvore e levar | ÁGUA
lenha pra casa”.
A água, assim como a terra, é um recurso
Para o levantamento de canteiros, além da coletivo, um bem comum da comunidade. A
suspensão dos mesmos com podas de bambus
e madeira permitida com o serrote flexível, Uma forma de manter a água sempre
também o cabo da madeira da enxada deve ser presente no solo é o cultivo em curvas de
escolhido entre os mais leves e a lâmina deve nível.
ser curta e muito bem amolada com uma incli- Quando chove, as curvas impedem que os
nação de quase 45º. os nutrientes sejam “lavados”, ou seja, levados
do solo para os rios.
“Minha enxada não sou eu que amola A construção de açudes e curvas de
porque tem gente que é muito bom pra nível nos permite ter fluxo de água
isso, mas a madeira e a linha dela eu é permanentemente no roçado.
quem escolho. Esta aqui tem 45 anos Também é possível captar a água da chuva
que está comigo”. em um tambor de 200 litros, que funciona
como uma cisterna. Essa água pode ser
utilizada para lavar a louça, tomar banho ou
Com a aplicação de caldas naturais caseiras e irrigar os canteiros.
biofertilizantes, pode-se substituir a bomba costal
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 53

água circula por diferentes espaços, tanto em


50,3% da população têm acesso à coleta de
solos montanhosos quanto em solos rasos. A esgoto.
pressão da água oscila, mas ela está sempre pre-
Mais de 100 milhões de brasileiros não têm
sente, inclusive pelo ar, por meio da chuva.
acesso a este serviço.
É importante fazer um mapa hídrico que Mais de 3,5 milhões de brasileiros, nas 100
mostre todos os pontos de água existentes na maiores cidades do país, despejam esgoto
propriedade. Esse desenho ficará mais comple- irregularmente, mesmo tendo redes coletoras
to se for feito com toda a comunidade, já que disponíveis.
é uma preocupação de todos. Com o mapa hí- 47% das obras de esgoto do PAC,
drico da região, é possível visualizar os locais monitoradas há seis anos, estão em situação
onde existe mais água e os locais onde a água inadequada. Apenas 39% de lá para cá foram
precisa chegar para que mais famílias tenham concluídas e, hoje, 12% se encontram em
acesso a esse bem comum. situação normal.
Também é preciso pensar no processo de Cerca de 450 mil pessoas nos 15 municípios
saneamento básico, que diz respeito a tudo paulistas têm disponíveis os serviços de
que tem a ver com o fornecimento de água coleta dos esgotos, porém não estão ligadas
potável, desde a sua captação em rios, fontes às redes e, portanto, despejam seus esgotos
ou chuva, até seu uso e tratamento de esgo- de forma inadequada no meio ambiente.
Fonte: Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
to para posterior reutilização. É possível ter (SNIS 2015); Estudo Trata Brasil “Ociosidade das Redes de
um modelo de saneamento básico de forma Esgoto – 2015”

caseira, com autonomia, tendo ou não a par-


ceria do poder público. Ele pode ser iniciado
por nós mesmas com a construção de fossas diretamente nos córregos e rios sem nenhum
sépticas ecológicas feitas a partir de pneus ve- tipo de tratamento.
lhos, areia, pedrisco, carvão e outros recursos Conscientes da gravidade da situação, as
de baixo custo encontrados na própria comu- mulheres trouxeram para o grupo a demanda
nidade. Em mutirão, é possível também fazer e o grande desejo de cuidar da condição dos
uma fossa caseira. rios e da água utilizada para o consumo, assim
como de tratar o esgoto.
CONSTRUÇÃO DE FOSSA SÉPTICA: A partir daí, começamos os estudos de pos-
ALTERNATIVA DE SANEAMENTO síveis sistemas de tratamento de efluentes para
Agricultoras da comunidade Bela Vista, amenizar os impactos desses resíduos e levantar
na Barra do Turvo, destacam em suas falas os os custos de implantação. Tomamos como base
problemas decorrentes da falta de saneamen- as experiências que conhecíamos ou sobre as
to básico. Os sistemas precários da região in- quais já tínhamos ouvido falar para avaliar qual
cluem basicamente fossas negras e sumidouros. seria a melhor opção de tratamento de esgoto
É muito comum também o esgoto ser lançado para o bairro.
54 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

Analisamos três diferentes sistemas alterna-


tivos de saneamento.
O primeiro foi a Biofossa de Evapotrans-
piração, experiência que havia sido implanta-
da na região de Cunha, no Vale do Paraíba,
que descartamos em função das dificuldades
técnicas apresentadas para sua implementação
como, por exemplo, a elevação do lençol freá-
tico e a vedação eficaz do sistema.
Um segundo modelo de sistema analisado
foi o de “Fossa Séptica Ecoeficiente”, ideali-
zado pela Cooperafloresta, que é construído
com placas de cimento, duas caixas, uma de
decantação e outra de tratamento biológico,
com tijolo ou bambu. Os custos de implanta-
ção desse modelo eram mais adequados à rea-
lidade - aproximadamente R$ 600 de material
- porém um empecilho era a mão-de-obra para
a construção das placas de cimento.
Descobrimos o terceiro modelo ao parti-
ciparmos de um curso sobre implantação de
A Fossa Séptica Biodigestora é um
sistema desenvolvido com o objetivo de Fossa Séptica Biodigestora do modelo Embra-
promover a captação e o tratamento do pa, que foi bem avaliado pelo grupo. Entre-
esgoto em áreas rurais a um custo barato tanto, o principal limitante dessa alternativa
para o produtor rural. Ela tem como base eram os altos custos de implantação. Fomos
o processo da biodigestão de resíduos então buscar possibilidades de adaptações des-
orgânicos, no qual bactérias decompõem
se modelo.
a matéria orgânica resultando em dois
produtos: o biogás metano e o efluente, Em um intercâmbio realizado pela Arti-
que é um composto sólido, sem odores, culação Nacional de Agroecologia, conhece-
que pode ser utilizado na adubação de mos companheiras da Rede de Intercâmbio de
árvores. Tecnologias Alternativas (REDE) de Agroeco-
Há registros do uso de fossas biodigestoras logia de Minas Gerais que contaram sobre a
já em Mumbai (Bombaim), na Índia, em experiência e nos apresentaram um Boletim
1819. Também na Austrália, desde 1911,
Técnico Agroecológico sobre Fossa Séptica
uma companhia produz e industrializa o
metano oriundo do esgoto. Biodigestora, construido com bombonas a um
custo acessível (REDE, 2016).
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 55

Mãos à obra! | 3 bombonas de 200 litros


A primeira fossa piloto foi possível com a | 3 joelhos de PVC 100 mm
participação de todas e todos, com arrecadação | 3 “T” de PVC 100 mm
de fundos, composta pela renda oriunda da ven- | 1 flange de 40 mm
da de fitopreparados produzidos pelo grupo, de | 1 cano de PVC de 40 mm
ovos comercializados para os grupos de consu- | 1 cano de PVC de 100mm
mo, de recursos pessoais e também do bingo na | 0,5 m³ de brita nº 1
festa junina. Dessa maneira, foi possível pensar
uma forma mais autônoma de construção, sem É importante que as bombonas tenham
depender de recursos de editais, valendo-se de tampa móvel, com rosca, para que seja possível
mão-de-obra em mutirão. realizar monitoramentos se necessário. É im-
O mutirão de implantação da fossa séptica portante também dar preferência a bombonas
biodigestora foi realizado em 01 de outubro de reutilizadas de fontes alimentícias.
2017 e teve o apoio de jovens do Coletivo Hor- Os tubos e conexões são colados com sili-
ta di Gueto, de Taboão da Serra, que atua na cone veda-calha.
aproximação entre a roça e a “quebrada” (pe- A maior parte do resíduo ficará retido na
riferia) também por meio de feiras agroecoló-
primeira bombona por decantação. Na entra-
gicas onde revendem alimentos dos grupos de
da dos efluentes há sempre um joelho que fica
agricultoras da Barra do Turvo.
com 10 cm de cano de 100 mm de sobra para o
Esse projeto piloto estimulou a comunida-
encaixe do cotovelo e na saída um “T”. A cone-
de a se organizar para levantar mais fundos e
xão entre uma bombona e outra deve ser feita
buscar outros caminhos com o objetivo de im-
com declive de 2 cm pelo menos. As bombonas
plementar outros 30 modelos inspirados nesse
devem estar em nível e os furos, a 2 cm abaixo
sistema de fossa.
do furo anterior, são feitos com o auxílio de
Construção do sistema uma serra-copo.
O sistema é dimensionado para recolher Inicialmente, são adicionados à primeira
apenas o que chamamos de água negra, que se- caixa uma mistura de, aproximadamente, 5 li-
ria a água que vem do vaso sanitário. Por isso, tros de esterco de ruminante fresco e 5 litros de
esse sistema não deve estar ligado à rede do en- água. O objetivo desse procedimento é aumen-
canamento do banheiro. tar a atividade microbiana e, conseqüentemen-
A fossa deve ser construída em desnível de te, a eficiência da biodigestão.
pelo menos 40 cm da saída do cano da privada Esse processo deve ser repetido a cada 30
e há 4 metros de distância da casa, longe de dias. O esterco seco também pode ser adicio-
poços ou locais de captação de água. nado no próprio vaso sanitário.
Para famílias de até quatro pessoas, o siste- Para a limpeza do vaso sanitário, é impor-
ma é composto por: tante substituir produtos de limpeza com clo-
56 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

DICAS PARA UM BOM PLANEJAMENTO carvão funciona como filtro, retirando gran-
1º: Faça uma lista de tudo que você produz. de parte das impurezas. As águas cinzas (águas
Exemplo: alimentos que você consome, que não são provenientes do vaso sanitário)
alimentos que têm mais saída para a como as da pia do banheiro, cozinha, chuvei-
comercialização, alimentos que você gostaria ro e roupa) podem ser tratadas e reutilizadas
de plantar. para adubação de pomares ou ainda direcio-
2º: Organize um calendário mensal com o nadas para um círculo de bananeiras ou zona
que deve ser plantado e colhido em cada de raízes, onde utilizamos plantas de folhas
mês e quais os insumos necessários para largas ou que preferem lugares alagados. As
isso. É importante acrescentar o período de raízes também funcionam como filtro, reti-
colheita de cada alimento, a quantidade a ram a água pelas raízes e devolvem para o ar
ser colhida, o dia da colheita e de quanto em e ainda aproveitam os nutrientes presentes na
quanto tempo fazer o replantio. Ao fazer esse água a ser tratada.
acompanhamento durante um ano inteiro,
no ano seguinte você saberá qual é sua
capacidade de produção e suas condições | PLANEJAMENTO DA PRODUÇÃO
para aumentar ou diminuir a produção
de cada tipo de planta, considerando
E DIVERSIDADE
as variações do clima e do mercado
consumidor.. A caderneta agroecológica é uma ferramen-
*Atenção: vale sempre experimentar e adaptar ta que dá visibilidade ao trabalho realizado pe-
uma planta que não seja de sua roça. Assim las mulheres na roça e nos quintais produtivos
como a diversidade é presente nos quintais e e permite a elas ter consciência e autonomia
roças das mulheres, a diversidade também é sobre a renda que geram. Trata-se de um cader-
parte da natureza. no que contém quatro colunas, onde são ano-
tadas informações sobre a produção e o que foi
consumido, doado, trocado ou vendido. Com
ro ou químicos, que afetam a atividade dos essas anotações, a caderneta passa a ser tam-
microorganismos, por sabão neutro ou sabão bém um ótimo instrumento de planejamento
de coco. A água deve ficar retida pelo menos de produção.
um dia dentro de cada bombona para a ação Para produzir de forma a garantir o auto-
das bactérias. consumo e o fornecimento de alimentos para
Atualmente há muitas alternativas para comercialização em diferentes mercados, como
cuidar da água e do solo. Uma simples cai- o PAA, o PNAE ou em feiras, é preciso calcular
xa de gordura na saída da pia da cozinha, do quantidades e também o tempo que leva entre
banheiro, ou da água da máquina de lavar o plantio e a colheita, bem como a quantidade
roupas associada a caixas com brita, areia e de nutrientes necessários.
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 57

Anote quantas variedades de abóbora ou


de bananas você cultiva, assim como as raízes,
os feijões e arroz centenários.
Faça uma tabela com oito colunas e anote
em cada uma delas:
| Nome da planta (espécie)
| Quantidade plantada
| Data (plantio)
| Lua (plantio)*
| Data (colheita) Em oposição a essa mercantilização da na-
| Quantidade colhida (kg) tureza, na agroecologia preservamos e repro-
| R$/Kg duzimos as sementes que plantamos, que são
| R$ Vendido fundamentais para manutenção do patrimônio
*A observação da lua influencia no dia do natural da humanidade. Muitas comunidades
plantio dependendo da parte da planta a ser co- tradicionais guardam e reproduzem suas pró-
lhida: raiz, folha, flor ou fruto. prias sementes para que estejam disponíveis
para as futuras gerações.

| SEMENTES E MUDAS: SUBSTRATOS CASEIROS E MUDAS


PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE Os substratos são adubos feitos para a ger-
minação das sementes. Eles se diferenciam dos
As sementes crioulas são aquelas cultivadas demais adubos por apresentar um material mui-
e mantidas pelos povos e comunidades tradi- to fino, que permite a germinação tanto de se-
cionais ao longo de gerações, perpetuando a mentes de pequeno porte, como as de cenoura,
riqueza natural de nossas terras. Por meio dos quanto as de grande porte, como as do jatobá.
cultivos agroecológicos e das trocas de semen- Utilizamos um conjunto de insumos pro-
tes, elas permanecem vivas. duzidos em casa para não haver gastos exter-
Porém, as sementes, assim como os adu- nos, entre eles, esterco de vaca curtido e seco,
bos, vêm sendo manipulados pelas grandes farinha de osso, cinza, cada um com caracterís-
indústrias do agronegócio para que não se re- ticas nutricionais próprias. Adicionamos areia
produzam mais. Dessa maneira, essas corpora- para manter a drenagem e não compactar a
ções têm o poder de controlar a produção de terra quando irrigar.
alimentos já que as sementes modificadas ge- Exemplo de substrato:
neticamente produzem com vigor uma única Terra arenosa (drenagem) + cinza (potássio)
vez. O objetivo disso é gerar dependência no + um pouco de terra de mata (matéria orgânica)
agricultor porque, a cada plantio, é necessário + casca de ovo (cálcio) + coloral (fósforo) em pó
comprar novas sementes. + compostagem de casca de mandioca (amido).
58 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

| ADUBAÇÃO VERDE, CALDAS E


HOMEOPATIA

As práticas agroecológicas envolvem um


saber amplo a respeito das propriedades das
plantas envolvidas nos ecossistemas, respei-
tando seus princípios ativos e, portanto, com-
preendendo sua função curativa e nutricional.
Ao preparar as “refeições” das plantas, segui-
mos receitas para que elas possam se alimentar
As plantas que utilizamos são colhidas no e se nutrir e, assim, crescer de forma saudável.
próprio meio ambiente
Algumas são reproduzidas por sementes | ADUBAÇÃO VERDE, O QUE É?
Outras são reproduzidas por estacas, enxertos
caseiros e outras técnicas de reprodução. Os adubos verdes incluem aquelas plantas
que têm a capacidade de fornecer nutrientes
para o solo ou aquelas que produzem muita
A irrigação deve ser feita com gotejo bem
massa verde e que, quando plantadas, deixam
fino para evitar que a semente saia do lugar ou
no solo matéria orgânica e cobertura que enri-
caia da bandeja. Os viveiros com as bandejas de-
quecem a vida da terra.
vem estar direcionados para a face norte para ga-
São muitas as plantas que podemos chamar
rantir 100% de luz durante o dia, considerando
de adubos verdes. No quadro ao lado listamos
que o sol nasce no leste e se põem no oeste.
algumas que são ideais para cultivar no período
É importante fazer suas próprias mudas e
das águas (primavera e verão).
guardar suas sementes. Não deixe de desenhar
o local do viveiro de mudas e anotar o ponto da
receita do seu substrato.
| CALDAS BIOFERTILIZANTES
O armazenamento de sementes geralmen-
te é feito em garrafas PET. Para que seja dura- As caldas biofertilizantes são líquidos de
douro, antes de fechar a garrafa, são colocadas consistência mais espessa aplicados nos mi-
cinzas de lenha, o que permite guarda-las por croporos das folhas das plantas que, em com-
mais de 10 anos. As garrafas devem ser manti- paração com o adubo de compostagem, per-
das fechadas e guardadas em local fresco. É im- mitem a absorção mais rápida dos nutrientes
portante anotar em cada vasilhame o dia, mês e necessários.
ano da colheita da semente e a espécie. As caldas são feitas com o uso de adubos e
Este é um patrimônio da humanidade, um chás para insetos e animais indesejáveis, acom-
conhecimento que não se perde, mas se multi- panhados de elementos como, por exemplo,
plica a cada encontro! o calcário, que auxilia a terra a se reestruturar
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 59

perdendo a acidez, responsável pela paralisação há muito tempo, em muitas regiões do mun-
dos nutrientes que as plantas precisam. do todo, talvez não com esse nome. São práti-
A preparação da calda em um grupo de cas do dia a dia e saberes da agricultura familiar
mulheres é como um encontro de troca de sa- que passam de gerações a gerações e que jamais
beres, pois cada uma tem muito conhecimento perdem sua funcionalidade, por isso podem ser
sobre as propriedades dos chás e as funções de constantemente resgatados.
cada planta que mais utiliza em casa. Além de inúmeras caldas possíveis que for-
É importante que a calda contenha todos talecem as plantas contra doenças e predado-
os mesmos micronutrientes que são necessários res, outra forma de prevenção e reforço é o uso
para um solo rico. Ver na página 49, quais são da homeopatia.
eles e onde encontrá-los. Exercícios
As caldas biofertilizantes são feitas por fer- 1. Escreva uma lista de plantas do seu
mentação com entrada de ar, conhecida como quintal que podem ser utilizadas na calda bio-
fermentação aeróbica, a mesma utilizada quan- fertilizante e para que servem.
do se faz pão. O tambor é coberto para evitar 2. Escreva a receita trabalhada na prática
a entrada de moscas varejeiras, mas permitir a com o grupo de mulheres
entrada de ar. O fermento caseiro se faz acres-
centando o açúcar, mel, melado e leite como | HOMEOPATIA
nas receitas domésticas.
As receitas são criadas, trocadas e constan- A homeopatia é uma cultura milenar, que
temente adaptadas ou transformadas, assim teve origem no Oriente, do outro lado do
como as práticas agroecológicas: elas acontecem planeta, e que é utilizada diariamente pelas

Crotalária Essa planta é muito boa para controlar doenças no solo. Plantar entre as bananas ajuda a
diminuir a influência do caramujo em algumas áreas. Sua flor é ótima para a polinização
das abelhas.
Feijão guandú Fixa nitrogênio no solo. A semente é nutritiva em proteína. Pode ser colhida e utilizada em
farofas. As folhas servem de alimento para o gado. Além de ser resistente à seca, este feijão
serve como barreira de vento e estrutura para viveiro.
Mucuna preta Planta muito forte, tem o crescimento indeterminado e com as suas folhas grandes e
fortes deixam uma excelente cobertura no solo, além de conseguir disputar bem com a
braquiária quando é preciso combatê-la.
Feijão de porco Excelente adubador de solo com nitrogênio. Sua semente está cada vez mais rara e, por
isso, é muito bom reproduzi-la.
Girassol Excelente polinizador para abelhas e insetos diversos, além de ter um efeito de atração de
parasitas e lagartas para ele protegendo as plantas dos mesmos.
60 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

Esse pensamento nos permite ir além e ga-


rantir que nosso lar, nossa roça e nosso orga-
nismo estejam sempre saudáveis. Pode ser que
quanto mais remédio eu utilize ou quanto mais
veneno eu aplique, mais difícil será para chegar
à resposta sobre o que de verdade está faltando
para não ter mais doenças em casa ou na roça.
A homeopatia tem como base o princí-
pio similia similibus curantur (semelhante pelo
semelhante se cura). Ou seja, o tratamento se
dá a partir da diluição e dinamização da mesma
substância que produz o sintoma num indiví-
duo saudável.
Por exemplo, é muito eficiente no combate
às formigas um composto feito à base dessas
mesmas formigas, maceradas e diluídas em ál-
cool 70% por 13 vezes no processo de manipu-
lação. Essa calda se constitui em sinal de perigo
para as formigas vivas já que contém, em si, a
memória de outras formigas mortas e diluídas
na elaboração desse produto homeopático.
Assim, a homeopatia reconhece os sin-
tomas como uma reação contra a doença. A
doença seria uma perturbação da energia vital
do seu organismo ou da sua roça e a homeopa-
pessoas que não querem consumir remédios tia provocaria o restabelecimento do equilíbrio.
e venenos. Nas práticas agroecológicas, o co- Dessa maneira, nas práticas agroecológicas
nhecimento da homeopatia pode nos auxiliar a cozinha vai para a roça e a roça também vai
na produção dos próprios medicamentos na- para a cozinha tornando-se uma farmácia viva.
turais de forma eficaz para as nossas plantas e
para nós mesmas. Exercício
Olhar para a doença não se restringe a curar Escreva seu caderno de manipulação ho-
imediatamente o resfriado ou “meter” veneno meopática indicando:
para curar uma “praga”. Olhando de forma mais | Animal/Vegetal
ampla, é preciso entender porque o resfriado e as | Data de manipulação
doenças aparecem. Se elas não aparecem sempre, | Composição
somente de vez em quando, o que falta de vez | Lua
em quando para que não apareçam? | Data de aplicação
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 61

CADERNETAS
AGROECOLÓGICAS

A caderneta agroecológica é um instrumen-


to que dá visibilidade ao trabalho feito pe-
las mulheres nos quintais e roças e ajuda a pro-
ções dos papéis, só ficaram mais claras quando
todas contavam suas experiências: “eu pensei
que lá em casa a gente se ajudava, mas eu per-
mover sua autonomia. Trata-se de um caderno cebi como as mulheres só ficam com as tarefas
simples, com quatro colunas que organizam domésticas e, se a mulher não está em casa, o
as informações sobre o destino da produção: homem não faz por conta própria”.
o que foi vendido, o que foi doado, o que foi Em um segundo momento, socializamos
trocado e o que foi consumido. experiências e percepções sobre o uso das ca-
Acompanhamos a implementação de seu uso dernetas. Muitas relataram que tiveram dúvi-
por parte de um grupo de 27 mulheres do Vale das sobre o que anotar, como precificar e expli-
do Ribeira dentro do projeto “Sistematização da cações do porquê de muitas não terem anotado
produção das mulheres rurais e um olhar para os nada na coluna de “trocas”. Além disso, todas,
quintais produtivos do Brasil”, realizado em par- sem exceção, informaram que passaram por
ceria com o Instituto Federal de Matão, em São momentos de constrangimento e intimidação
Paulo, e com o GT de Mulheres da ANA. quando começaram a sistematização: mui-
Esse trabalho iniciou com o exercício do tas disseram que os filhos e maridos falavam
mapa da sociobiodiversidade: as mulheres de- que era besteira o que elas estavam fazendo. A
senharam seus quintais e mostraram os usos vergonha de mostrar suas anotações era outro
dos espaços. Após o desenho e apresentação tema frequente e muitas pediam para os filhos
do mapa foi solicitado que escrevessem em um ou netos escreverem para elas. Outras situações
papel como eram divididos os trabalhos e ta- embaraçosas e confusas se relacionavam à falta
refas na unidade de produção, entre homens e de referência de preços, pesos e medidas do que
mulheres. era vendido, produzido ou doado. Mesmo as-
Ao compartilharem os resultados entre to- sim, todas relataram que o hábito de organizar
das, pudemos primeiramente observar e dialo- a caderneta agroecológica acabou aproximan-
gar sobre como se dá a divisão sexual do tra- do-as da realidade que vivem.
balho no meio rural: nos desenhos, o homem
aparece carpindo e trabalha no quintal “de | APRENDIZADOS
longe” e a mulher está no quintal do lado da
casa mexendo na horta. Ou ver que as mulhe- Durante o curso “Economia Feminista e
res cuidam mais das hortas e galinhas enquan- Agroecologia”, realizado em Peruibe no mês de
to os homens ficam com as vacas e o curral. novembro de 2017, fizemos um momento para
Algumas agricultoras mostraram também que compartilhar as informações das cadernetas e
os trabalhos se misturam, na forma de ajuda propusemos uma metodologia chamada “gira-
quando há necessidade: “quando eu preciso ele -gira”: as mulheres ficam em círculo, uma de
me ajuda na cozinha e eu ajudo ele na roça”. As frente para a outra, e a mulher que está dentro
definições da divisão do trabalho, das atribui- da roda responde para a companheira da frente
62 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

as perguntas que são colocadas. As que estão na


parte de dentro do círculo falam simultanea-
mente para aquelas que estão apenas ouvindo à
sua frente. As perguntas foram:
1. Quais os aprendizados de anotar na ca-
derneta agroecológica?
2. Quais as dificuldades?
3. Pergunta livre feita pelas mulheres que
estão ouvindo.

“Comecei a ver que tem valor e


que muita gente não planta igual e
comecei a oferecer ou pedir algo em
troca”.
Após compartilharem o que ouviram…
perceberam que produzem mais do que
achavam que produziam Como apenas algumas mulheres dos gru-
puderam visualizar sua produção e estimar pos que a SOF acompanha estão realizando as
o que poderiam vender sem faltar para o anotações das cadernetas, em todos os momen-
autoconsumo tos juntas realizamos a apresentação deste ins-
compreenderam melhor a sazonalidade dos trumento e as agricultoras sempre se mostram
produtos curiosas para iniciar as anotações e entender
perceberam que economizam muito porque, seu funcionamento. Há o caso de uma agri-
ao plantar para o autoconsumo em seus cultora de Apiaí, em São Paulo, que iniciou as
quintais, deixam de gastar no mercado além
anotações na caderneta e depois ensinou suas
de terem uma diversidade de alimentos
filhas a anotarem também. Outras agricultoras
a caderneta foi um documento útil, que
permitiu obter a DAP - Declaração de Aptidão
também decidiram iniciar a comercialização de
ao Pronaf – Programa Nacional da Agricultura alguns produtos em seus próprios bairros.
Familiar Muitas agricultoras relataram a importân-
após mostrar sua caderneta para seu marido, cia de se produzir sem venenos e com mais
uma agricultora conseguiu convencê-lo a qualidade, motivo pelo qual produzem para o
fazer uma cerca que ela precisava há tempos autoconsumo. Essa percepção surgiu quando,
porque ele percebeu que ela também estava ao preencher a caderneta, era fácil colocar o
trabalhando e colocando dinheiro em casa preço do produto para a venda mas era difícil
preencher os valores na coluna de “consumo”
justificando que, para elas, não é possível mo-
netarizar o que se produz para comer em casa
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 63

Nesse mesmo sentido as colunas das “tro-


cas” eram sempre as mais vazias e, ao questionar
a ausência de anotações, as mulheres explica-
ram que são doações e recebimentos e não tro-
cas simultâneas: “hoje eu colhi chuchu e doei
uma sacola para minha vizinha e eu sei que ela
vai me dar alguma coisa quando ele colher”.

| MAIS AUTONOMIA PARA


AS MULHERES

A primeira sistematização realizada pelo


CTA Zona da Mata/MG em 2014 mostrou
a grande biodiversidade de espécies vegetais -se que a economia relacionada à produção do
e animais nos quintais produzidos pelas mu- quintal marca a mudança da agricultora dentro
lheres. Além de qualificar e quantificar como da identidade da família, que ganhou maior vi-
indicadores de segurança alimentar das unida- sibilidade e autonomia. Para além das quatro
des de produção, as cadernetas se apresentaram colunas, sua anotação na caderneta inclui tam-
como um instrumento de garantir a autono- bém todo o dinheiro que é gasto no custeio da
mia das agricultoras em relação ao seu trabalho produção do quintal, o dinheiro que é usado
e ao espaço produtivo. em casa e o dinheiro que é emprestado para os
Uma agricultora mineira diz mostrar a ca- filhos e esposo no dia a dia. Segundo a agricul-
derneta anotada para o marido toda vez que ele tora, estas anotações permitem maior controle
afirma que ela “não faz nada”. Outra relatou sua de gasto, conhecer os usos do dinheiro e mais
difícil experiência com o marido em relação ao clareza na renda que é gerada.
seu trabalho no quintal: começou com impli- A caderneta agroecológica incorpora, além
câncias do marido dizendo que uma horta não das relações monetárias, as contribuições da eco-
daria certo e depois evoluiu para ameaças como nomia feminista, atrelando a dimensão do traba-
destruição dos canteiros. Mas ao perceber que lho doméstico e de reprodução a um conceito de
a horta era rentável, a agricultora propôs ao economia centrado na sustentabilidade da vida
marido dividir o uso do lugar e a gestão econô- e não apenas em relações de mercado (Carrasco
mica. A partir daí, ela passou a fazer a distinção (2012). Isso é percebido nos diferentes relatos
entre a sua própria economia e a economia da e experiências sobre seu uso, que proporcionam
família e, nesse processo, foram constituindo- visibilidade, consciência dos trabalhos que as
-se duas economias desse lar: a parte assalariada mulheres realizam e criação de estratégias para
e a parte de produção do quintal. Entendeu- sua auto-organização produtiva.
64 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

COMERCIALIZAÇÃO

representante do Centro de Envolvimento


Agroflorestal Felipe Moreira e do grupo “Ro-
sas do Vale”, mulheres do Bairro Córrego da
Onça. Também participam das vendas a api-
cultora da Organização de Controle Social
(OCS) Vale Orgânico e Associação da Feira
da Agricultura Familiar de Pariquera-Açu. Há
ainda um potencial de grupos de agricultoras
destes e outros municípios que querem se jun-
tar ao processo.
Em busca de parcerias para viabilizar a co-
mercialização, conseguimos o apoio da Prefeitura

A s mulheres rurais têm uma demanda per-


manente de auferir alguma renda de seus
produtos, ainda mais quando sua produção é
Municipal da Barra do Turvo com quem acorda-
mos a cessão de transporte, caminhonete ou ca-
minhão baú, com motorista, quinzenal ou men-
abundante, como é o caso dos quilombos da salmente, dependendo do volume de entrega.
Barra do Turvo. Foram as mulheres dos qui-
lombos Cedro e Terra Seca quem primeiro nos | TECENDO A REDE COM
desafiaram a criar um mecanismo de venda di- OS GRUPOS DE CONSUMO
reta. Este processo se iniciou em 2016 com a
venda para a loja Quitandoca de São Paulo e Este trabalho comum tem como base o
hoje envolve grupos de consumo de São Paulo, estímulo à relação próxima entre produtores e
Santo André, Diadema e Taboão da Serra (Co- consumidores, com a valorização de alimentos
merAtivamente, CCRU - Coletivo de Con- da agricultura familiar a preço justo, baseada
sumo Rural Urbano, Horta di Gueto, CAUS nos princípios do feminismo, da agroecologia,
- Conexão Agroecológica Urbana Social, SOF da economia solidária e da soberania alimentar.
– Sempreviva Organização Feminista) e o Pro- Isto é, a comercialização se adequa à produção
grama Reviravolta, do Centro Gaspar Garcia diversa das mulheres e busca enfrentar os desa-
que trabalha com catadores de resíduos sólidos. fios para incluir progressivamente a todas, as-
Os grupos de agricultoras também au- sim como obter a maior variedade de produtos.
mentaram. Além das mulheres do Cedro e das Considera a produção das mulheres na agricul-
do Terra Seca, que passaram a se nomear “As tura, a promoção de sua autonomia por meio
Perobas” estão “As Margaridas”, do Bairro In- da apropriação do resultado da comercialização
daiatuba, o grupo “Esperança” de mulheres, e o incentivo à sua auto-organização para que a
do Bairro Bela Vista, mulheres do Viveiro Co- iniciativa continue a existir mesmo após o final
munitário de mudas do Bairro Rio Vermelho, do projeto, independente de recursos externos.
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 65

A confiança entre os grupos de consumo ela passam a valorizar seu trabalho, passam a
e as agricultoras quanto ao produto agroeco- ter mais liberdade para frequentar as reuniões,
lógico vai se construindo nas visitas, no diálo- os maridos passam a ficar com os filhos e se
go entre as agricultoras, por meio do processo responsabilizam por fazer uma refeição, o que
de organização dos grupos, mutirões, rodas de antes era muito mais difícil.
conversa, trocas de experiência e no acompa-
nhamento técnico da SOF, não havendo exi- FORMAÇÃO: MUITO ALÉM
gência de uma certificação formal. DA TEORIA
Algumas agricultoras podem viver situa-
ções de conflito com maridos que utilizam her- Foi na prática que demos conta do tama-
bicidas e outros venenos em áreas de cultivo nho da complexidade que seria lidar com essa
sob sua responsabilidade e tensionam as mu- experiência inovadora de um mecanismo de
lheres para fazer o mesmo. Nossa atuação bus- venda direta. O desafio consistia em organizar
ca fortalecê-las para resistir às agressões e não a produção de, em média, 30 agricultoras de
cinco grupos diferentes, com uma diversidade
exclui-las definitivamente do processo.
de aproximadamente 95 alimentos in natura e
Acordos no núcleo familiar quanto à di-
87 alimentos transformados de maneira artesa-
visão do trabalho com maridos e jovens vão
nal, sem contar as plantas aromáticas e medi-
sendo estabelecidos e é importante que as mu-
cinais. Implicava também organizar os pedidos
lheres estejam envolvidas na produção e nos
de forma a gerar uma renda média equivalente
processos de decisão, que haja valorização do
para cada agricultora, a partir de pedidos rea-
trabalho de todas as partes e distribuição da lizados em quantidades muito variáveis, desde
renda igualmente. 0,2 kg a caixas de 21 kg, a serem retirados num
depósito com espaço limitado.
NO CAMINHO DA AUTONOMIA Certa flutuação de participantes e diferen-
ECONÔMICA tes trajetórias e graus de experiências com a
Quando as mulheres conseguem ter seu comercialização, tanto das agricultoras quanto
próprio dinheiro, percebemos o inicio de mu- dos consumidores, eram elementos adicionais a
danças: elas compram coisas para as crianças, considerar nessa logística. Em nossos encontros,
contribuem nas compras do mercado, com- abordamos também os valores que nos apro-
pram coisas para elas mesmas. Outras juntam ximavam, as realidades de onde vínhamos e as
o que recebem e fazem pequenas reformas na questões práticas das etapas da comercialização.
casa, investem em equipamentos para qualifi- As formações aconteceram juntando as
car o beneficiamento da produção, compram agricultoras e os grupos de consumo, ou em
celular e tanquinho de lavar roupas que facili- espaços só de agricultoras, às vezes em uma
tam seu trabalho e representam ganha de tem- comunidade, às vezes juntando representantes
po. Dentro de casa, na relação com a família, dos grupos. A proposta foi compreender todo o
66 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

trabalho envolvido, desde a organização da pro-


dução dos alimentos, de que forma pensar o que AUTOCONSUMO
compõe o preço dos produtos, a escala da co- O autoconsumo antecede todas
as outras relações de mercado
mercialização para viabilizar o frete, a comuni-
e garante a saúde de quem
cação, a embalagem e transporte dos alimentos está envolvida na produção dos
para que cheguem com qualidade, as exigências alimentos. Portanto, um primeiro
burocráticas, a gestão coletiva, a divisão de tare- acordo comum nos grupos foi
fas dentro do grupo e também o estabelecimen- o de priorizar a produção para
to de acordos coletivos de funcionamento. Uma o autoconsumo. As mulheres
das atividades fundamentais nesse processo foi o sempre enfatizaram o princípio de
“Jogo da Comercialização” (ver encarte central não tirar da mesa para vender, de
não vender um kg de feijão por
desta publicação e página 74).
R$ 4,00 para comprar no mercado
por R$ 5,00.
REGISTRANDO NOSSOS PRINCÍPIOS
O processo de reflexão sobre a comercia-
lização teve como resultado também a elabo-
ração do documento “Princípios e orientações
As agricultoras e quilombolas se apropriam
para nosso trabalho comum”, que sistematiza de todo o processo, que funciona nos tempos
quem são os grupos participantes da iniciativa, que elas demarcam e garantindo que elas
seus princípios e funcionamento, entre outros tenham toda a informação necessária para
aspectos. Alguns pontos enfatizados pelo docu- tomar suas decisões de forma coletiva e
mento são o autoconsumo, a manutenção de entre elas. A proposta é valorizar o trabalho
canais curtos de comercialização e a diversida- e o conhecimento das mulheres e que
de de canais. elas tenham cada vez mais autonomia na
comercialização e na vida.

Queremos que mais e mais trabalhadoras e


O fortalecimento da busca de autonomia no
trabalhadores que vivem na cidade consumam
processo de comercialização das mulheres
alimentos diversos e de qualidade a um preço
fertiliza a luta por respeito das divisões
acessível.
de trabalho, geração de renda, auxilia na
participação ativa nas organizações locais
Alimentos de produção agroecológica, que (associações e cooperativas), e qualidade de
não só não usa veneno nem adubo químico, vida a partir das relações humanas qualificadas
mas que também é diversa e tem no horizonte e da alimentação com alimentos de qualidade,
utilizar insumos locais (adubo verde, composto, o que proporciona a diminuição da violência
sementes crioulas, caldas) e o equilíbrio do contra a mulher no rural.
agroecossistema.
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 67

ÊNFASE NOS CANAIS CURTOS DE


COMERCIALIZAÇÃO
Em uma das atividades, fizemos um
desenho de todas as etapas envolvidas na
comercialização dos produtos segundo o tipo
de canal: feira local semanal, PAA – Programa
de Aquisição de Alimentos, Quitandoca ou
feiras realizadas em municípios distantes.
A partir da análise dessa ilustração (ver no
encarte central), chegamos à ideia central de
que os canais mais curtos de comercialização
propiciam um preço mais justo aos produtos
e, ao mesmo tempo, um preço mais acessível
ao consumidor final.
Além disso, também ficou claro que a DIVERSIDADE DE CANAIS
quantidade e a qualidade de trabalho Outra ideia que emergiu é a de que não é
envolvido em cada um dos canais é diferente. seguro criar dependência a um único canal
Por exemplo, há mais trabalho na venda de comercialização. Na busca de autonomia,
direta ao consumidor do que na venda via é interessante relacionar-se com mais de
cooperativa ou para o PAA já que, nestes um mercado pois, caso um falhe, existe
casos, existe uma pessoa que realiza alguns outra opção. Um exemplo é o que se vê no
trabalhos intermediários, como, por exemplo, momento atual do Brasil, com a eliminação
o preenchimento dos pedidos, a organização gradativa por parte do governo golpista do
da logística e a emissão de notas. PAA e a ameaça de corte no PNAE - Programa
Nacional de Alimentação Escolar.

| OUTROS CANAIS: FEIRAS E


MERCADOS INSTITUCIONAIS principais maneiras de gerar renda às famílias
da região e a preocupação sobre sua continui-
Além da venda à rede de grupos de consu- dade ou não leva as mulheres a pensarem e in-
mo, as formações sobre comercialização traba- vestirem em outras maneiras de se relacionar
lharam também outros canais como as feiras, com os mercados, como é o caso das feiras so-
tanto as locais quanto as temáticas (de agroe- lidárias e dos grupos de consumo.
cologia, da economia solidária e feminista, da
reforma agrária, entre outras), e os mercados FEIRAS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS
institucionais, que incluem as compras gover- As feiras livres são espaços tradicionais de
namentais por meio de chamadas públicas do comercialização da agricultura familiar. No ter-
PAA e do PNAE. ritório do Vale do Ribeira, elas são comuns em
Em relação a estes mercados, os grupos de cidades maiores, como Curitiba, no Paraná, e
mulheres apontaram que, mesmo com a pre- Registro e Cajati, em São Paulo. No entanto,
cariedade de gestão e condução dos programas a participação das agricultoras encontra várias
institucionais, eles continuam sendo uma das dificuldades.
68 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

A partir dessa realidade, alguns grupos de mulheres aponta-


DESAFIOS
ram caminhos para construir maneiras mais autônomas de aces-
Conseguir um “ponto
sar os mercados. Alguns exemplos são o grupo União de Mu-
fixo” permanente frente
ao baixo número de lheres Agricultoras de Peruíbe e Miracatu (UMA), que iniciou
feiras existentes a organização da produção e, por meio da prefeitura, conse-
Oferecer um preço guiu um ponto fixo na feira municipal, a União de Agricultoras
competitivo frente Agroecológica de Itaoca (UAAI), que se organizou em torno da
ao praticado por criação de uma feira noturna, e o grupo de mulheres do Córrego
produtores com manejo da Onça, que montou uma barraca no bairro para comercializar
convencional e com seus produtos. A auto-organização das mulheres gerou uma sé-
maior área e maior rie de benefícios, expressos no quadro na página ao lado.
produção
Infraestrutura pública de PARTICIPAÇÃO EM FEIRAS FORA DO VALE DO RIBEIRA
estradas ou transporte Na continuidade das experiências, incentivamos as agricul-
público precária ou
toras a participarem em eventos e atividades para além do terri-
ausente, dificultando o
transporte dos produtos tório do Vale do Ribeira, incluindo oito feiras fora da região, en-
tre elas, as feiras de economia feminista e solidária, organizadas
Sobrecarga com
atividades domésticas junto com a Amesol - Associação das Mulheres na Economia
e de cuidados, que Solidária - que reuniram mulheres do campo e artesãs urbanas.
são priorizadas Para as mulheres participantes, essas feiras se mostraram como
pelas mulheres espaço de aprendizado para a comercialização incluindo aspectos
impossibilitando de como a forma de expor os produtos, o nivelamento dos preços e
manter uma constância outras maneiras de apresentá-los e ofertá-los. Os eventos também
e permanência nas feiras influenciaram na auto-organização dos grupos com a divisão dos
ou em outras maneiras
trabalhos, organização das entradas e saídas de dinheiro, reveza-
de comercialização que
exigem sua saída de mento das integrantes e o início de um processo de participação
casa. em espaços de decisão e de gestão da comercialização.
Machismo: mesmo as A Amesol contribui com sua experiência autogestionária de
mulheres participando se fazer feira: as pessoas que compram recebem fichas com os
de todo o processo valores e identificação do empreendimento ou coletivo. Levam
de comercialização, as fichas até o caixa único, pagam e depois pegam seus produtos.
as decisões sobre a Algumas mulheres se revezam na responsabilidade de contabi-
produção e o uso do lizar e devolver os valores vendidos e esta relação se mostra im-
dinheiro continuam no portante pela solidariedade e autogestão entre as mulheres, não
controle dos homens da
apenas pela confiança que é gerada, mas também pela facilidade
família
de vendas e compras com o uso de máquinas de cartão de cré-
dito e débito e ajuda no uso do dinheiro, facilitando as contas e
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 69

BENEFÍCIOS DAS FEIRAS E DA


AUTO-ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES
Maior possibilidade de comercialização já que
as mulheres podem se revezar para manter o
espaço da feira em funcionamento todos os
finais de semana, dividindo os trabalhos e as
tarefas entre as participantes
Aprendizado prático sobre como negociar
preço, oferecer e apresentar seus produtos
aos consumidores
Momento para socialização e para conseguir
outras possibilidades de negócios
Tranquilidade com o cuidado das crianças e
dos filhos já que a “família toda acompanha” a
mulher no trabalho
os trocos. Nestes eventos, também acontecem
Fortalecimento das mulheres, tanto pelo muitas rodas de conversa, onde as mulheres
maior número de encontros, quanto pela agricultoras compartilham suas experiências e
maior divisão dos trabalhos para planejar a
percebem o que há de comum entre elas e as
produção, beneficiar os produtos e ajudar
umas às outras a transportar os produtos mulheres dos empreendimentos urbanos, mas
também o que é próprio das mulheres rurais.
Maior participação política das mulheres pelo
envolvimento em espaços como o conselho
ACESSO AOS MERCADOS INSTITUCIONAIS:
gestor da feira e em reuniões com o poder
público, como a secretaria municipal de PAA, PNAE, COMPRAS PÚBLICAS
agricultura e outras relativas à organização Os mercados institucionais têm como
produtiva do grupo. principal objetivo as compras dos produtos da
Constituição de um espaço comum para agricultura familiar para fornecer alimentos
trabalhar e realizar atividades de lazer e para escolas e entidades da assistência social dos
capacitações. municípios por meio de dois programas prin-
Mostrar que é possível se alimentar cipais: o Programa de Aquisição de Alimentos
bem, sem veneno, e evitar desperdício, (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação
transformando alimentos para não perder Escolar (PNAE).
e ter novos produtos em casa (biscoitos, Esses programas incentivaram o processo
geleias, compotas etc) de organização e formalização de diversas asso-
Visualizar outros mecanismos de ciações e cooperativas da agricultura familiar e
funcionamento da economia, baseados na também tiveram um foco na inclusão da pro-
solidariedade, na doação e na troca
dução feita pelas mulheres em seus quintais e
roças e na colheita e beneficiamento dos ali-
70 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

mentos. A resolução número 44 do grupo ges- públicas. Foi o caso dos grupos do município
tor do PAA de 2011 determina maior pontua- de Itaoca e Peruíbe, em São Paulo. Parte das
ção para as organizações que têm pelo menos mulheres de Peruíbe, com a vontade de comer-
40 % de mulheres associadas. cializar seus pães para a merenda escolar, se or-
Ainda que as estatísticas atestem a grande ganizaram com uma associação da agricultura
participação das mulheres nos programas, os familiar do bairro no qual residem e oferece-
momentos e espaços de decisão sobre sua ges- ram seus produtos à chamada pública. Conse-
tão continuam nos homens das associações e guiram entrar na roda de negociações de preços
cooperativas. Quando questionadas a respeito e oferecer seus pães em um valor justo, que pa-
de algum procedimento das entregas do PAA, garia o trabalho do grupo, argumentando que
as mulheres dificilmente conseguem responder não poderiam concorrer com empresas padro-
ou ficam em dúvida a respeito das informações nizadas e industriais e oferecer os produtos em
que são repassadas a elas. Algumas se queixam um valor que não condiz com a realidade e ca-
da maneira excludente que a gestão das associa- pacidade de produção da agricultura familiar.
ções ou cooperativas é trabalhada. Mesmo as- Já as mulheres do grupo UAAI se utiliza-
sim afirmam que frequentam assembleias e reu- ram das anotações das cadernetas agroecoló-
niões, mas que sentem dificuldades de entender gicas para ofertarem os produtos ao PAA. O
as prestações de contas que as organizações apre- coletivo tomou a iniciativa e realizou uma reu­
sentam durante as reuniões. Entre os relatos de nião com as mulheres interessadas do bairro.
atitudes masculinas que levam ao desencoraja- Juntas planejaram a produção para a entrega
mento das mulheres está a restrição de seu tem- de um ano e dividiram igualmente os valores
po de fala nas reuniões, regra que não é aplicada a receber pelo programa. A SOF auxiliou na
da mesma maneira para os homens, bem como oficina de confecção de projetos e o grupo se
a anulação de seus trabalhos no uso de máqui- revezou para coletar documentos e inseri-los
nas e equipamentos da cooperativa. em um sistema online.
Após o golpe de Estado de maio de 2016, Ao longo de 2017, o governo federal di-
algumas agricultoras relatam o receio de que minuiu o orçamento do PAA em 66% com-
os programas não tenham continuidade. Isso parado ao ano de 2016. Muitas organizações
pode resultar em perda do excedente da pro- que há anos estavam inseridos na gestão de
dução e também em perda da autonomia eco- compras públicas não conseguiram aprovar
nômica das mulheres com o fim de uma fonte seus projetos, o que justifica a preocupação das
de renda que, ainda que demore para chegar, é mulheres quilombolas da Barra do Turvo, ci-
garantida. tada acima, e a não entrada do coletivo UAAI
Entendendo a necessidade de fortalecer os nesta chamada. Apesar dos desmontes destes
coletivos de mulheres para a geração de renda, programas, ambas as experiências fortaleceram
a SOF incentivou a organização de alguns gru- os grupos em seus respectivos locais, seja com
pos para participar das chamadas de compras o poder público ou com a associação na qual
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 71

fazem parte. Os aprendizados com a participa- atua. Os trabalhos que envolvem a OCS são
ção nos mercados institucionais mostram que organizados e planejados pelos seus membros
houve uma maneira diferente de se olhar, fazer priorizando a transparência de produção e as
e mudar uma situação em espaços tradicional- relações solidárias de comércio justo.
mente dominados pelos homens. Essa forma de Controle Social pode ser
adequada à realidade de cada coletivo. Após
| PROCESSOS PARTICIPATIVOS DE realizar o cadastro de seu grupo no Ministério
CERTIFICAÇÃO da Agricultura, as obrigações de um membro
da OCS incluem manter atualizadas informa-
A certificação é o processo que garante que ções da unidade de produção, tais como:
um determinado alimento foi produzido de | estimativa de produção anual
maneira agroecológica, sem o uso de venenos. | cumprimento do plano de manejo orgânico
Quando produtoras e consumidoras se conhe- | cumprimento dos procedimentos de con-
cem, a confiança na qualidade do produto se trole social firmados pelo grupo, que incluem
estabelece pela relação direta. Quando essa re- visitas ou mutirões
lação vai se distanciando, a confiança passa a | registro das atividades e reuniões que são
ser criada em torno a um certificado ou a um realizadas
selo de produto orgânico, de produto da agri-
cultura familiar ou dos quilombos. SISTEMAS PARTICIPATIVOS DE GARANTIA (SPG)
Ao começar a entender o funcionamento da Os Sistemas Participativos de Garantia (SPG)
certificação orgânica, localizamos que a forma têm um nível de operacionalização mais buro-
mais adequada para a realidade dos grupos de crático. Os SPG são voltados a agricultores que
mulheres do Vale do Ribeira era a Organização realizam vendas a terceiros e, por isso, necessitam
de Controle Social para a Venda Direta (OCS). de um selo de certificação. Eles reúnem produ-
O sistema de OCS foi criado justamen- tores e outras pessoas interessadas em constituir
te para agricultores e agricultoras familiares, o sistema, bem como o Organismo Participati-
quilombolas ou indígenas comercializarem vo de Avaliação da Conformidade (OPAC). Os
seus produtos em contato direto com os con- OPACs são uma empresa ou entidade jurídica
sumidores. Essa venda pode ser tanto em fei- que assume a responsabilidade legal pela avalia-
ras, quanto em grupos de consumo, por cestas ção se a produção está seguindo os regulamentos
ou por meio do fornecimento para mercados e normas técnicas da produção orgânica.
institucionais como o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA).
A OCS pode ser formada por um grupo
formal (associação) ou informal, como é o
caso dos grupos de mulheres com quem a SOF
72 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES As questões que envolvem a autonomia da


É muito frequente que grupos mistos que mulher em relação ao seu trabalho também
trabalham com OCS e SPGs não dêem conta passam pelo que é remunerado e não remune-
de envolver as mulheres nos espaços de deci- rado. Os trabalhos que envolvem os cuidados
são ou nas visitas. Quando elas estão presen- domésticos geralmente ocupam a maior parte
tes, muitas vezes é em atividades relacionadas do tempo das agricultoras. Quando elas conse-
ao trabalho doméstico e de cuidados, como a guem obter renda por meio de seus trabalhos
preparação de refeições para os dias das visitas. nos quintais e roças, este espaço imediatamente
Fazer a discussão de como as relações de gê- começa a ser assumido pelo homem da família
nero e a divisão sexual de trabalho excluem as na forma de controle sobre as decisões:
mulheres e geram desigualdades torna-se um
aspecto fundamental para garantir sua partici-
pação nos processos de certificação. “Eu queria plantar os palmitos de
As agricultoras do Vale do Ribeira viven- maneira orgânica, mas meu marido
ciaram dois momentos de intercâmbio com disse que eu não tenho tempo para
outras agricultoras envolvidas em processos de capinar e colocou veneno em tudo”.
certificação: o Encontro Mulheres e SPG, or-
ganizado pela Rede Ecovida e Centro Ecológi- As mulheres têm percebido que os proces-
co, e o intercâmbio organizado pelo Instituto sos de certificação participativa contribuem
Federal do Sul de Minas Gerais. Em ambos as tanto para valorizar ainda mais seus produtos
agricultoras relataram os desafios para acessar (com aumentos de 30% do valor pago por mer-
os mercados e apontaram que o protagonismo cados institucionais como o PNAE e o PAA),
ainda é masculino. como também para garantir seus espaços de
O quadro abaixo mostra as dificuldades en- produção e decisão dentro da unidade familiar.
frentadas pelas mulheres em relação a seu poder de Exemplo disso foi o relato de uma agriculto-
decisão na família, na produção e na organização ra de Apiaí, em São Paulo, explicando o motivo
no trabalho e possíveis caminhos de mudança. que a impulsionou a participar de uma OCS:

Dificuldades Ações necessárias para superação


Gestão da propriedade é masculina Mulheres se fortalecem
O poder de decisão é masculino Maior participação da mulher (no SPG ou em
associação de bairro)
Concentração de conhecimento no homem Busca de saber
Concentração de renda na mão do homem Independência econômica (ter a horta própria)
Coerção física – violência contra a mulher A mulher deixar o fogão para fazer a revolução
Divisão sexual do trabalho Participação masculina nos afazeres domésticos
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 73

alimentos orgânicos quanto para convencionais,


“Eu nem penso em comercializar os com agrotóxicos.
produtos como orgânico, é para casa As mulheres também criticam os valores
mesmo. Mas lá em casa meu marido baixos que são pagos pelos produtos na região,
passa mata-mato em tudo e, quando onde a oferta de produtos convencionais é
eu disser que faço parte de um grupo maior e os preços competitivamente melhores
de produção orgânica, ele não vai mais para os consumidores das feiras.
passar nas coisas que eu planto”.

“Meus consumidores acreditam em


| SEM FEMINISMO, NÃO HÁ mim quando eu vendo e falo que
AGROECOLOGIA
são orgânicos porque já temos uma
Segundo Emma Siliprandi (2015), é sabido relação de muito tempo e pelo gosto
que são as mulheres quem primeiro defendem dos produtos, que é diferente daqueles
a conversão das propriedades para modelos que levam veneno. Nunca fui tão feliz
mais sustentáveis, em função das suas preocu- nas vendas! Ter esse certificado no meu
pações com a saúde e alimentação das pessoas e carro ajuda a ampliar mais ainda as
com a preservação do ambiente. vendas para aqueles que ainda estão
As mulheres sofrem as consequências di- conhecendo os alimentos orgânicos e
retas da degradação ambiental. Por exemplo, mostra que existe mesmo produto sem
elas têm que se deslocar até mais longe para veneno”
buscar água ou lenha para cozinhar e, quan-
do alguém fica doente na família, é sobre elas É a partir das experiências que envolvem
que recai o trabalho dos cuidados. Em muitas as mulheres nos processos agroecológicos de
rodas de conversa, as mulheres relatam proble- produção que elas conseguem visualizar seus
mas de saúde entre as pessoas da família pelo trabalhos e as maneiras de garantir seus espaços
contato direto com o uso de agrotóxicos, como produtivos.
crises alérgicas em crianças, manchas na pele, As OCSs e a transição agroecológica propi-
infecções e dores. Assim, a opção das mulheres ciaram um novo processo de reflexão e de au-
pelo envolvimento com práticas agroecológicas to-organização para os grupos das agricultoras
se dá, primeiramente, por questões de saúde e que a SOF vem trabalhando. Pensar as estraté-
pela busca da alimentação saudável. gias de se inserir no mercado, comparar os pro-
No entanto, a produção de maneira agroe- dutos e manejo da produção orgânica com a
cológica também propicia a ampliação de merca- convencional, pensar as relações solidárias com
dos e isso é um desafio na região. As prefeituras os consumidores, debater qual mercado que-
locais ainda não destinam recursos para os pro- remos são algumas delas. Estas questões nos
dutos orgânicos e, nas compras institucionais, trazem aprendizados para ampliar as possibili-
acabam pagando os mesmos valores tanto para dades de melhorias em nossas vidas.
74 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

UM JOGO PARA ENTENDER


A CADEIA DA COMERCIALIZAÇÃO

A o refletirmos sobre a Construção Social de


Mercados (ver página 26) e em formas co-
letivas de organização para a comercialização,
ficava responsável pelos registros e pagamentos.
Dessa forma, passamos a compreender os cus-
tos do trabalho que as associações e cooperativas
ousamos pensar também em ferramentas que têm para realizar uma comercialização.
nos auxiliassem a colocar em prática esse con- Os detalhes eram tantos que uma das ferra-
ceito. O desafio era construir outra forma de li- mentas foi desenhar, quantas vezes preciso fosse,
dar com a economia, onde todas pudessem ser todo o processo dessa comercialização, em seus
protagonistas e ter conhecimento sobre todas as diferentes momentos (ver ilustração ao lado).
partes do processo. Depois, situamos no desenho em que dia cada
O diálogo com as companheiras do grupo tarefa era executada ou programada: quando re-
foi o caminho para lidar com os desafios que unir para fazer a oferta e comunica-la, quando
apareciam constantemente. Em nossas reuniões analisar o que chegou de pedido, quando rea-
mensais, além de dividir os pedidos de produ-
lizar a colheita e como fazer a organização dos
tos e também os ganhos, realizávamos avalia-
pedidos para a entrega. Em seguida, levantamos
ções que nos ajudaram a identificar pontos que
onde estavam as fragilidades de cada etapa e,
poderíamos melhorar e acertos.
para cada uma, apontamos soluções.
Logo no início das entregas para os grupos
de consumos, desafios principalmente ligados à
logística e à gestão apareceram. Outra questão EXERCÍCIO
que sempre se colocava e ainda nos acompanha 1. Desenhar um esquema de todo o processo
era entender quais os elementos ou custos pre- que envolve a comercialização de alimentos,
desde seu início com a plantação até o seu fim
cisam ser considerados na composição do preço
com o consumo: Por onde passa esse alimento
final do alimento. até chegar ao prato? Quais trabalhos são
As reuniões com representantes dos grupos necessários para que o processo se realize? Quem
de consumo também traziam retornos sobre, normalmente faz esses trabalhos? Quem são os
por exemplo, a qualidade do alimento na dis- sujeitos sociais envolvidos?
tribuição e o tempo de prateleira. Essas observa- 2. Desenhar os diferentes exemplos de cadeias
ções foram compartilhadas com todos os grupos comerciais e os diferentes mercados (mercado
de agricultoras e, com isso, foi possível para elas entendido aqui como lugar teórico onde se
processam a oferta e a procura de determinados
melhorar e ajustar a colheita.
produtos ou serviços) - Compras públicas, feiras,
Identificar as diferentes variedades de bana- cooperativas, grupos de consumo responsável
nas e cítricos, localizar os pedidos, de ambos os (GCRs), quitandas, atravessadores, venda no
lados, consumidores e agricultoras, lidar com bairro – buscando identificar o que muda
tantos números e anotações eram outras dificul- quando acessamos mercados diferentes: Os
dades. Para as agricultoras, ainda havia o desafio sujeitos mudam? A escala muda? O trabalho
de dividir os pedidos igualmente entre todas, muda? As exigências mudam? As relações
realizar os pagamentos para cada uma das par- mudam? O preço praticado se altera?
ticipantes e a sobrecarga de trabalho para quem A logística muda?
UM JOGO PARA ENTENDER A CADEIA DA COMERCIALIZAÇÃO 75
76 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

Pontos a serem abordados


| Gestão interna dos grupos (divisão de ta-
refas, comunicação, notas fiscais)
| Transporte/logística
| Qualidade (ponto de colheita, cuidados
no transporte, embalagens)
| Legislação (vigilância sanitária, local da
associação, certificação)

Componentes do jogo
Tabuleiro: é o desenho do trajeto da co-
mercialização, incluindo estradas, rodovias,
| JOGO “MULHERES NA pontes, rios e pontos de referência
COMERCIALIZAÇÃO, EM BUSCA DE Figuras simbolizando:
AUTONOMIA ECONÔMICA” | o local de produção (a roça) e o ponto
de entrega (casas, feiras, escola, restaurante etc)
Esta ferramenta é aqui apresentada como | meios de transporte (bicicleta, caminhão,
uma experiência e sugestão para promover em mula, ônibus)
grupo a reflexão sobre questões relacionadas às | meios de comunicação (telefone, celular,
diversas formas de comercialização, incluindo computador, internet, ausência de internet, au-
gestão coletiva, logística, qualidade e organização. sência de sinal)
Este jogo cooperativo foi criado a partir e por fim as que simbolizam
do trabalho desenvolvido com as mulheres do | os alimentos produzidos e que serão co-
Vale do Ribeira. Portanto, as peças e imagens mercializados (banana, pupunha, laranja, hor-
se referem à realidade dessa região. taliças etc)
| os instrumentos necessários para a co-
Objetivos do jogo mercialização (caixa agrícola, calculadora, ma-
| Promover reflexões sobre a atuação de teriais para tomar notas – caderno, bloco, ca-
mulheres agricultoras na construção social de neta, cesta de alimentos)
mercados | lupa - para sinalizar as áreas, questões ou
| Levantar diferenças e desafios entre os ti- temas que o grupo não conseguiu resolver ou
pos de mercado que necessitam mais reflexão
| Possibilitar momentos de trocas de expe- Pedras coloridas: para marcar o caminho
riências dentro das diferentes realidades e for-
mas de comercialização que vêm sendo prati- Instruções
cadas entre os grupos de mulheres do Vale do *O jogo traz quatro situações de comercialização:
Ribeira I. Feira local
UM JOGO PARA ENTENDER A CADEIA DA COMERCIALIZAÇÃO 77

II. Mercado institucional do Programa Na-


cional de Alimentação Escolar (PNAE)
III. Grupos de consumo/ Cestas de alimentos
IV. Vendas porta-a-porta/ Grupo de agricul-
toras
*Cada grupo participante vai lidar com um
tipo de situação e, para cada situação, há uma carta
inicial e outras três cartas com propostas para pensar
em grupo. Os grupos podem ter de 3 a 8 pessoas.
*Além disso, cada grupo recebe um número
determinado de figuras de alimentos e instrumen-
tos, definido pela facilitadora do jogo, pensando em
lançar desafios ou problemas a resolver. Por exem-
plo: um grupo recebe mais produtos que outro, um
grupo recebe transporte e outro não.
*A facilitadora do jogo prepara o tabuleiro an-
tes do início do jogo, distribuindo ao longo do ca-
minho as pedras coloridas e as cartas que marcam
cada situação
ponto de entrega ou de comercialização dos ali-
Início do jogo mentos – após a resolução de todas as questões.
1) A facilitadora entrega para cada grupo Observações:
uma carta inicial, uma cor de pedra diferente da a) Apesar de ser estipulado um tempo de 10
dos demais, um conjunto de figuras e uma lupa. minutos na resolução da questão, o facilitador
Os grupos resolverão as questões em aproximada- tem a flexibilidade para decidir se vai dar mais
mente 10 minutos cada um. Eles podem dialogar tempo ao grupo ou não. Assim, os grupos não
e trocar figuras entre si para poder solucionar os necessariamente chegam ao mesmo tempo a seu
problemas apresentados. destino final.
2) Quando a questão for resolvida, o grupo b) Se houver uma situação que demandou
leva sua pedra ao próximo ponto, onde já have- mais tempo ou não foi resolvida, o grupo colo-
rá outra carta. As figuras que foram utilizadas ca a lupa sobre a carta para sinalizar que aquela
para a solução de cada questão são colocadas questão demanda mais tempo de discussão para
sobre o tabuleiro junto à pedra. E caminham ser resolvida.
a cada ponto ou parada até a chegada dos ali- c) No final do jogo, todos os grupos terão
mentos ao destino final. alguns minutos para contar a experiência do seu
3) O grupo resolve a próxima questão e dá percurso. Sugere-se que em roda os grupos com-
continuidade ao jogo. partilhem suas impressões a partir da experiência
4) Cada grupo chegará a seu destino final – o prática, das dificuldades, das afinidades etc.
78 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

SITUAÇÃO I - VENDAS PORTA A PORTA SITUAÇÃO II - FEIRA LOCAL

Carta inicial: Joana vendia ovos para José a R$ 4,00 Carta inicial: Registro é uma cidade do Vale do Ribeira conhecida
a dúzia. José os revendia depois na cidade de carro a por ter diversas feiras ao longo da semana. Há feiras nos bairros e
R$ 7,00. José ficou doente e parou de revender os ovos. feiras que acontecem mais no Centro da cidade. Essas feiras são
Joana ficou uns dias sem vender, mas estava precisando mais conhecidas como feiras livres, mas há também a feira do
de um dinheirinho e, com todos os ovos na estante, produtor. Há feirantes que vêm de várias cidades, vendem diversos
resolveu pegar a bicicleta e vender os ovos na vizinhança. produtos, desde temperos secos, hortaliças, carnes defumadas,
Joana ficou em dúvida: “Quanto devo cobrar pelos ovos mudas, alimentos produzidos nas roças mais próximas e alimentos
quando eu mesma vou vender?” Ajude a Joana pensar de grandes distribuidores como a Companhia de Entrepostos e
nessa questão. Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP).
Depois de resolver a questão em grupo, avance para a Luiza, Benedita, Antonia e Paula começaram a produzir alimentos em
próxima carta. uma área coletiva no Bairro Refazenda, a 15 km da cidade de Registro.
Há 2 meses fizeram plantio nos 20 canteiros que possuem porém
I. Carta 1 - Joana vendeu quase todos os ovos. Alguns começam a perder a produção pois não há para quem vender.
sobraram. Ela acabou descobrindo que muitas vizinhas Ajude essas agricultoras a pensar como conseguir um ponto de feira,
também criavam galinhas. Nas vendas, Joana conheceu uma barraca e se organizar para comercializar esses produtos na feira.
Marta, uma agricultora que plantava diversas hortaliças,
e Rita, uma agricultora que fazia pães e doces e bordava II. Carta 1 - Depois de se informarem, elas optaram por fazer parte
panos de prato. Conversa vai, conversa vem, ela trocou da Feira do Produtor. Para ter um ponto nessa feira, é preciso fazer
os ovos pelas hortaliças da Marta e uma dúzia por um parte da Associação da Feira do Produtor de Registro. Para isso, terão
pão de Rita. Marta, Rita e Joana pensaram em fazer uma que participar de reuniões mensais e contribuir com uma taxa da
parceria para as trocas e comercializar na cidade a 10 limpeza e iluminação. As feiras acontecem todas as quartas-feiras,
km do bairro delas. Mas Rita cuida da irmã doente e não das 14h às 19h. Luiza, Benedita, Antonia e Paula resolveram fazer uma
poderia sair para vender... Ajude-as a pensar em alguns escala e se dividiram em duplas para participar das reuniões. Ajude a
acordos para essa parceria já começar bem e garantir montar as duplas, sendo que só duas dirigem, todas têm filhos que
bons trabalhos pela frente. estudam à tarde e chegam da escola às 17h30 e precisam jantar e dar
Depois de construir alguns acordos, vá para a próxima janta para a família. Pense em relações de solidariedade para que as
carta. feiras possam acontecer e para que todas tenham a renda, os custos
e o trabalho dividido igualmente.
I. Carta 2 - Joana, Rita e Marta já estão vendendo os Escreva com algumas palavras as ideias mais importantes do grupo e
produtos de porta a porta na cidade. Até dá uma canseira vá para a próxima parada.
nas pernas, mas elas se revezam como podem. Elas já
estão com clientes que compram toda semana. Sente por II. Carta 2 - As feiras estão indo bem. As hortaliças e outros
5 minutos com suas comadres de grupo, pensem juntas produtos estão sendo vendidas. Elas já fizeram amizade com outros
e, se possível, escrevam duas vantagens e dois desafios agricultores e estão trocando a produção de hortaliças por conserva
da venda direta, porta a porta, nesses jeito de vender que de jaca, pão e pupunha. Porém, na última feira choveu muito e
chamamos também de circuito curto. sobraram muitos produtos para vender. Ajude a pensar numa solução
para os alimentos que não foram vendidos e vá para a última carta.
I. Carta 3 – Mesmo em circuitos curtos, há sempre
II. Carta 3 - As mulheres da feira de Registro foram conhecendo
muitos detalhes a se pensar. Todas as sextas-feiras, Marta
um pouco mais o gosto dos clientes. Diversificar a produção foi
e Joana vão para a cidade para comercializar com o
importante, pois na feira quase todas as barracas têm alface e cheiro
ônibus das 6h30. Ajude essas mulheres a organizar a
semana com a produção dos pães e a ajeitar os ovos verde. Comente com suas parceiras do grupo como você planeja
e as hortaliças para chegar com qualidade para os a produção das hortaliças ou como tem pensado na venda de
consumidores. artesanatos.
UM JOGO PARA ENTENDER A CADEIA DA COMERCIALIZAÇÃO 79

SITUAÇÃO III - ENTREGAS DE CESTAS E GRUPOS DE SITUAÇÃO IV - MERCADO INSTITUCIONAL


CONSUMO Carta inicial: No final do ano, a prefeitura da cidade de Jacupiranga
Carta inicial: Em Iguape há um grupo de agricultoras tradicionais que abriu a chamada pública do Programa Nacional de Alimentação
toda a vida plantaram sem veneno. Elas produzem uma diversidade grande Escolar (PNAE) para a agricultura familiar realizar entregas para as
de alimentos e fazem também doce de banana, geléias e conservas. Noemi, escolas do município. Para iniciar a chamada, a nutricionista montou
Tereza e Conceição também começaram a fazer a transformação dos um cardápio que contém os seguintes produtos: alface, repolho,
alimentos, pois o deslocamento até a cidade é muito difícil e, dessa maneira, couve, beterraba, cenoura e cebolinha.
elas conservam e valorizam os produtos da roça, que poderiam ser perdidos Cida, Estela, Maria, Terezinha, Sueli e Paula se animaram e resolveram
por falta de formas de comercialização. tentar entrar juntas nesta chamada do PNAE. Elas são agricultoras,
Elas moram num bairro chamado Ribeirão, que fica a 20 km de estrada de produzem de maneira agroecológica e sabem que poderiam
terra do município de Pedro de Toledo e, para o Centro de Iguape, são mais receber até 30% a mais pelo produto caso tivessem um certificado
60 km. Além delas, também há Helena, que com muito custo tentava levar de produção orgânica. Na cidade de Jacupiranga existem algumas
os produtos para a feira em Iguape porém gastava, a cada 15 dias, R$250,00 associações de produtores e da agricultura familiar que cobram uma
de custo do táxi para transportar os alimentos até lá. taxa administrativa de cada agricultora/agricultor que se associa:
Certa tarde, quando se reuniram num curso de artesanato, as quatro 20% da produção comercializada. Elas não fazem parte de nenhuma
mulheres conversaram sobre os produtos que estavam perdendo e organização e precisarão se organizar para entrar na chamada pública
Helena contou do aumento da procura por alimentos agroecológicos na e começar a entregar os produtos.
cidade de Iguape. Foi então que pensaram em montar cestas de produtos Ajude este grupo a pensar sobre sua organização, se elas entram
agroecológicos para entregar na cidade. na associação para representa-las na chamada do PNAE ou como
Ajude esse grupo de mulheres a pensar como elas podem comercializar se organizam com as negociações, responsabilidades das partes
suas cestas. Não esqueça de considerar o trabalho envolvido, os custos do envolvidas, questão do transporte dos produtos e outras situações
transporte e como elas podem definir os preços dos produtos nesse tipo de possíveis de serem resolvidas.
venda direta.
IV. Carta 1 – Resolvida a questão da associação, para se inscrever
III. Carta 1 - Conceição conversou com alguns parentes de São Paulo na chamada pública é necessário ainda que elas tenham a
e ficou sabendo da existência de grupos de consumidores que estavam
DAP – Declaração de Aptidão ao Pronaf – Programa Nacional de
interessados em se alimentar bem, com alimentos sem veneno, comprando
Fortalecimento da Agricultura Familiar. Todas querem participar mas
direto de agricultores/as. Os grupos de consumo são também uma forma
apenas Cida, Estella e Maria possuem a DAP. O que fazer?
de venda direta parecida com as cestas já que há uma venda pré-definida
e a agricultora só colhe o que foi encomendado. Elas fizeram contato com
uma dessas pessoas, que contou que existiam três grupos de consumo que IV. Carta 2 - Com base nas quantidades de entrega semanais, elas
compravam juntos para fechar uma compra maior e garantir que o frete precisam programar os plantios. As entregas para o PNAE não podem
fosse viável. Ajude-as a montar uma lista de ofertas: falhar. Ajude-as a pensar quanto cada agricultora precisa plantar para
Alimentos l Quantidade disponível l Preço garantir as entregas utilizando a tabela de planejamento da produção
(fique livre para criar sua lista com base nas figuras) (ver itens na p. 57).

III. Carta 2 – A lista de ofertas foi mandada para São Paulo. Pela internet, IV. Carta 3 – Aprovada a chamada pública, elas já estão realizando
os consumidores fizeram os pedidos. Esses pedidos foram enviados para as entregas e se preparam para inscrever-se novamente na chamada
esse grupo de mulheres por email. Ajude a dividir os pedidos entre as pública do próximo semestre. Elas se animaram com a possibilidade de
mulheres para que todas vendam e recebam igualmente. Para as entregas aumentar o valor em 30% vendendo seus produtos agroecológicos.
ocorrerem bem, elas precisam separar o pedido de cada grupo, além de Para isso, estão curiosas em conhecer a Organização de Controle Social
identificar caixas, organizar os alimentos bem para não estragar na viagem, (OCS), em que o grupo, de maneira auto-organizada e participativa
colher no momento certo, preencher a nota da produtora e organizar a certifica sua produção orgânica. Há algumas etapas para que isso se
contabilidade para realizar os pagamentos. Pense também na divisão das realize. A primeira é preencher uma ficha de cadastro do grupo com
tarefas. Como o trabalho pode ser dividido pelas integrantes do grupo? o nome das integrantes e da organização. Elas terão também que
apresentar a maneira como elas trabalharão, incluindo a quantidade de
III. Carta 3 – Faz parte da construção da confiança entre as agricultoras e visitas/mutirões entre elas, preencher um plano de manejo orgânico
os consumidores o retorno sobre como os produtos chegam. As entregas dizendo como elas cuidam da roça, ter registros da produção e das
estão acontecendo a cada 15 dias. Alguns comentam que as bananas não visitas realizadas e uma estimativa de produção anual.
estão amadurecendo bem algumas berinjelas chegaram muito amassadas Ajude o grupo a pensar nessa organização e quais as maneiras que elas
e a couve veio amarelada. Esses produtos não puderam ser vendidos na buscarão para ter o controle social e a construção da confiança entre
quitanda de alimentos agroecológicos. Como lidar com as perdas? Como elas para a certificação orgânica: fotos, registros de notas, relatórios,
superar os desafios da qualidade? entre outros instrumentos.
80 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO
CONSTRUINDO INDICADORES
DE AUTONOMIA DAS MULHERES*

P ara a Christian Aid, o monitoramento e


avaliação (M&A) é parte integral do proces-
so de gestão de projetos, assegurando transpa-
rência do trabalho realizado, oportunidades de
evidenciar impactos e mais importante, estimu-
lando processos de aprendizagem. Além disso,
os resultados de um monitoramento constituem
uma ferramenta importante de adaptação de
certas intervenções e subsídio para tomada de
decisões dentro de um determinado projeto. da estabilidade dos sistemas de produção”, embora
Como parte da parceria estabelecida para claramente central como mudança pretendida,
o trabalho com as mulheres do Vale do Ribei- necessitaria de um espaço de tempo muito mais
ra apoiado pelo Fundo Newton, e para refor- amplo para ser devidamente verificado.
çar o intercâmbio entre as duas organizações, E para além da vida do projeto, em um mo-
a Christian Aid disponibilizou parte de sua ex- mento de intensas disputas políticas, marcado
periência com processos de avaliação para ela- pelo crescente conservadorismo, a criminaliza-
borar conjuntamente com a SOF um plano de ção dos movimentos sociais e a recusa à política
monitoramento específico para o projeto. Para como motor de mudança, cresce a necessidade
isso, foram realizadas uma oficina sobre o tema estratégica de evidenciar e apontar indícios do
ainda na fase de planejamento e duas visitas de impacto de metodologias de formação de base
acompanhamento e apoio no estabelecimento popular e feminista e da economia solidária e
de indicadores potenciais para um exercício de agroecológica. É especialmente crucial eviden-
monitoramento. A partir desta experiência, pro- ciar o papel da agroecologia na construção da
pomos aqui algumas reflexões para evidenciar o autonomia econômica e social. Muitas das abor-
acúmulo do projeto no tema e apoiar a conti- dagens de resiliência baseadas nela, embora ten-
nuidade de processos de monitoramento. do os mais promissores resultados de adaptação,
No geral, o estabelecimento de indicadores ainda são relativamente pouco pesquisadas – um
no estágio de elaboração de atividades nos obriga desafio em um ambiente de financiamento onde
a olhar de forma cuidadosa para os objetivos da “só o que pode ser medido é feito”.
intervenção, e perceber melhor sua relevância. Há, no entanto, muitos desafios para levar
Objetivos inadequados, pouco realistas ou de- adiante o monitoramento de processos de for-
masiados vagos não podem ser medidos ou não mação como o proposto pela SOF no Vale do
produzem resultados capazes de serem visuali- Ribeira. Em suma, como monitorar a construção
zados dentro do escopo proposto de um proje- da autonomia das mulheres? Como desembru-
to. No caso específico do Fundo Newton por lhar processos complexos, de múltiplas causas e
exemplo, um dos resultados esperados “aumento construídos historicamente em um exercício de
verificação com escopo, tempo e recursos limita-
* Texto elaborado por Rosana Miranda, assessora do Programa Brasil da
Christian Aid) dos? Como não tratar esses processos de forma
MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO 81

O QUE É RESILIÊNCIA
A Christian Aid define resiliência como
um processo de desenvolvimento de
habilidades para aumentar a capacidade
dos indivíduos e das comunidades para jeto e fora dele, ferramentas participativas de
‘antecipar as mudanças, organizando- M&A, considerando os aprendizados de um
se e adaptando-se’ para responder com processo de formação feminista. Processos de
sucesso a situações de desastres, riscos ou avaliação que tenham como foco as desigualda-
oportunidades. A resiliência é entendida des de gênero que levam à injustiça social, que
tanto como um processo (passos dados questionem as dinâmicas existentes de investiga-
para chegar a um fim) quanto como uma
ção, que examinem questões de gênero, e que,
consequência (resultado final).
no limite, provoquem processos de mudança.
Nesse contexto, é essencial que os processos de
leviana, sugerindo relações causais que não se monitoramento e avaliação considerem as assi-
sustentam apenas para satisfazer exigências dos metrias de poder relacionadas à construção do(s)
doadores? Há uma necessidade de refinamento conhecimento(s) para garantir que as narrativas
de técnicas de monitoramento e avaliação que e as experiências das mulheres nas avaliações se-
deem conta das dimensões não-materiais e sub- jam valorizadas.
jetivas de projetos de desenvolvimento. Há alguns elementos que podem ser explo-
No caso específico do trabalho com as agri- rados para monitorar os processos de formação
cultoras do Vale do Ribeira, outros desafios se dentro de uma abordagem participativa.
colocam para a realização do monitoramento e
avaliação. Um avanço importante foi a realiza- CONSTRUIR UM PLANO DE M&A SISTEMÁTICO
ção das oficinas de levantamento de informações E REALISTA
nas comunidades, onde as mulheres puderam Independente da abordagem a ser adotada
apontar demandas e obstáculos. Na ausência de pelo monitoramento e avaliação, a construção
uma linha de base para o projeto, as informações de um plano, ainda que simples, quando do pla-
sistematizadas nesses encontros puderam indicar nejamento do projeto garante coerência entre
alguns direcionamentos para o M&A. Há obs- as diferentes partes da intervenção, além de ri-
táculos ainda no que se refere às distâncias e di- gor e transparência do próprio monitoramento.
ficuldade de acesso entre as comunidades envol- Um plano que defina uma linha de base para ao
vidas (assim como lacunas na infraestrutura de menos alguns indicadores centrais e estabeleça,
comunicação), ao tempo de vida relativamente dentro das atividades planejadas, momentos para
curto do projeto, à sobreposição das tarefas entre coleta de dados, pode integrar o M&A na execu-
as técnicas envolvidas na realização de atividades ção do projeto de forma mais orgânica, e reduzir
e à necessidade de reforçar ferramentas e capa- a carga de trabalho nos períodos de relatoria.
cidades de monitoramento disponíveis para a
equipe técnica. “NENHUM NÚMERO SEM HISTÓRIA, NENHUMA
HISTÓRIA SEM NÚMERO”
FERRAMENTAS PARTICIPATIVAS Desafiar a hierarquia dos dados significa
A experiência com as mulheres no Vale re- propor igualdade no tratamento da sua rele-
força a necessidade de reforçar, dentro do pro- vância, sem sobrevalorizar dados quantitativos
82 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

em detrimento dos qualitativos. Há diferentes ter um papel na descrição dos processos envol-
formas de produzir e expressar conhecimento vidos, na análise dos resultados e no julgamen-
e reconhecer as assimetrias no reconhecimen- to quanto ao resultado das atividades.
to dessas formas é um passo importante para
desenvolver ferramentas que captem evidências PROPOSTA DE INDICADORES
de forma mais ampla. Considerando os objetivos e resultados es-
perados do projeto “Construindo capacidades e
ASSEGURAR DIVERSIDADE NA COLETA DE DADOS compartilhando experiências para uma economia
Utilizar uma variedade de metodologias inclusiva’, propusemos alguns indicadores preli-
qualitativas, quantitativas e participativas per- minares que poderiam revelar os impactos dos ei-
mite revelar dinâmicas e mudanças de forma xos de formação feminista, de assistência técnica
mais abrangente e valoriza a diversidade de com base na agroecologia e de comercialização. A
perspectivas. Isso inclui valorizar métodos me- tabela abaixo inclui alguns destes indicadores su-
nos tradicionais de coleta de dados: por vezes geridos, de forma a dar seguimento à discussão so-
um vídeo sobre um evento ou registros de um bre o monitoramento do projeto. Tais indicadores
grupo de whatsapp são negligenciados como buscam jogar luz sobre tópicos como aumento na
meios de verificação, mas podem trazer infor- renda e na diversidade da produção das mulheres,
mações importantes sobre o desenvolvimento e incremento desta mesma produção (para venda e
impacto de atividades. Ainda que não possibi- auto-consumo), maior autonomia com relação a
litem análise estatística, representam excelentes insumos externos e ao trabalho dos maridos, au-
oportunidades para coleta qualitativa. Em tais mento da participação da juventude, capacidade
circunstâncias, é essencial estabelecer previa- de articulação e formação de redes e sistematização
mente com as participantes processos de con- de conhecimentos tradicionais.
sentimento sobre divulgação de informações. Esses aspectos não constituem de forma alguma
uma lista exaustiva, podendo ser revisados e acres-
PARA ALÉM DO MAPEAMENTO cidos de outros, mas podem, com uma quantidade
Considerando que a desigualdade baseada suficiente de dados, ilustrar dimensões importante
em gênero é sistêmica e estrutural, uma con- da trajetória de autonomia destas mulheres. Primei-
tribuição de um M&A participativo e de base ras rodadas de coleta de dados poderiam inclusive
feminista pode ser ir além de documentar as formar uma linha de base para comparações no
posições relativas das mulheres nos contextos futuro, caso a intervenção continue. Um plano de
onde vivem e sim fazer perguntas sobre as ra- monitoramento que contemple esse e outros indi-
zões que as colocam nessas posições. Esse en- cadores considerados importantes, com dados cole-
foque em dinâmicas de poder, particularmente tados continuamente e com participação ativa das
de gênero, deve pautar todo o processo de mo- mulheres dos grupos, certamente gerará insumos
nitoramento, em linha com o entendimento de adicionais e mais sistemáticos para reforçar a impor-
que o M&A é uma atividade política. Significa tância dessa experiência única de construção de uma
também que as participantes do projeto devem economia inclusiva.
MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO 83

Objetivo Resultado Indicadores potenciais Formas de verificação


OBJETIVO 1: Aumento da produção Maior diversidade nas cestas Registros na caderneta
Capacitar mulheres de alimentos por meio de agroecológica / Relatos das
agricultoras e de práticas sustentáveis mulheres sobre auto-consumo
comunidades / Tabelas de oferta para os
tradicionais no grupos de consumo
desenvolvimento
Conhecimentos tradicionais Incremento na produção e distribuição Registros na caderneta
de práticas
das mulheres sistematizados de fitoterápicos / Quantidade de agroecológica / Tabelas
agroecológicas
materiais que guardem relação com de oferta para os grupos
e criação de
conhecimentos tradicionais (livros de consumo/ Materiais
mercados locais
de receitas, etc) / Intercâmbio de produzidos pelo projeto
conhecimentos entre as mulheres

Insumos para produção Produção de mudas / caldas / Relatórios de atividades de


agroecológica produzidos atividades sobre produção de insumos produção de insumos / Relatos
localmente e a baixo custo das mulheres sobre acesso a
insumos
OBJETIVO 2: Ampliação da distribuição Quantidade de pessoas envolvidas Registros da SOF e grupos
Realizar e acesso de alimentos nos grupos de consumo e compras de consumo / contratos com
capacitações que saudáveis coletivas / Contratos estabelecidos mercados institucionais
relacionem o com PAA e PNAE
empoderamento
Aumento da capacidade de Aumento na renda verificado / Balanços dos resultados do
pessoal das
agência das mulheres rurais Utilização da renda / Instâncias de processo de comercialização
mulheres ao
organização das mulheres criadas/ / Relatos das mulheres sobre
desenvolvimento
reforçadas / Formação de redes entre aumento e utilização da renda
socioeconômico
as mulheres / Número de mutirões / Relatórios de atividades
das comunidades
realizados
Ampliação do envolvimento Quantidade de jovens (15-29) que Relatórios das atividades do
das jovens com o meio rural participam das atividades de formação projeto / Registros dos grupos
e a atividade econômica da / Quantidade de jovens envolvidas nos de comercialização
agricultura grupos de consumo
Mecanismos de Aumento na demanda por parte das  Relatos de Seminários e
enfrentamento à participantes para discussão do tema outras atividades / Relatos
discriminação e à / Número de vezes que o tema é das mulheres sobre tema /
violência doméstica e discutido nos grupos / Participação de Registros de campanhas da
sexual desenvolvidos nas mulheres dos grupos em campanhas SOF (audiovisual)
comunidades da SOF / Ferramentas de apoio
desenvolvidas pelos grupos
Programa de capacitação que Quantidade de atividades de Relatório parcial de atividades
combina a autonomia pessoa sistematização de conhecimentos / / Feedback de organizações
e econômica sistematizado pessoas envolvidas na sistematização parceiras
em diálogo com as de conhecimentos / ferramentas
organizações parceiras desenvolvidas (publicações, guias, etc)
OBJETIVO 3: Proposta de novas Número de atividades com parceiros  Relatórios de atividades /
Sistematizar abordagens na resposta regionais / internacionais / Materiais Materiais de comunicação /
a experiência a problemas relativos à de sistematização produzidos / Publicações do projeto
desenvolvida em promoção de uma economia Intercâmbios com outros parceiros e
diálogo com o inclusiva que considere organizações
trabalho realizado o enfrentamento às
pela Christian desigualdades de gênero e as
Aid em acesso necessidades imediatas das
a mercados comunidades contribuindo
inclusivos e justiça para o enfrentamento de
de gênero na problemas similares em
América do Sul outras regiões
84 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA NO VALE DO RIBEIRA

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PRÁTICAS FEMINISTAS
DE TRANSFORMAÇÃO
DA ECONOMIA

AUTONOMIA DAS MULHERES E AGROECOLOGIA


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