Práticas Feministas de Transformação Da Economia: Autonomia Das Mulheres e Agroecologia No Vale Do Ribeira
Práticas Feministas de Transformação Da Economia: Autonomia Das Mulheres e Agroecologia No Vale Do Ribeira
Práticas Feministas de Transformação Da Economia: Autonomia Das Mulheres e Agroecologia No Vale Do Ribeira
DE TRANSFORMAÇÃO
DA ECONOMIA
Coordenação editorial
SOF Sempreviva Organização Feminista
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Elaboração dos textos: Gláucia Marques, Miriam Nobre, Renata Moreno, Sheyla Saori e Vivian Franco.
Carla Jancz (coletivo Actantes e Maria Lab) e Rosana Miranda (Christian Aid)
Agradecemos à Fabiana Ribeiro, Isabelle Hillenkamp, Giovanna Galeotti, Monika Otterman e Natália Lobo
pelos relatórios de atividades que foram subsídio a esta publicação.
Edição de texto: Aventura da Narração. Alessandra Ceregatti, com a colaboração de Sandra Maria Sebben
Fotos: Adriano Barbosa, Carla Vitória, Gláucia Marques, Mariana da Matta, Monika Otterman, Rosana Miranda, Sheyla Saori,
Arquivo REDE
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons – Atribuição –
Uso Não Comercial – Partilha nos Mesmos Termos 4.0 Internacional.
ISBN 978-85-86548-29-1
4 APRESENTAÇÃO
7 INTRODUÇÃO E CONTEXTO
61 CADERNETAS AGROECOLÓGICAS
64 COMERCIALIZAÇÃO
64 TECENDO A REDE COM OS GRUPOS DE CONSUMO
67 OUTROS CANAIS: FEIRAS E MERCADOS INSTITUCIONAIS
71 PROCESSOS PARTICIPATIVOS DE CERTIFICAÇÃO
84 BIBLIOGRAFIA
4 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
E CONTEXTO
que, apesar de se expressar de formas diferen- é político”. A maioria das mulheres encontra
tes, existem muitas semelhanças na opressão em suas companheiras o incentivo a continuar
que sofremos como mulheres em sociedades participando, a carona, o acolhimento e o re-
patriarcais como a brasileira. forço de que esse espaço já está contribuindo
Na Marcha Mundial das Mulheres, por para mudar suas vidas e conquistar direitos e
exemplo, o reconhecimento da diversidade e políticas. Assim, a solidariedade entre as mu-
até da desigualdade entre nós, mulheres, busca lheres também é uma prática que se fortalece
evitar que nossas lutas e a desigualdade de gê- nos processos de auto-organização.
nero sejam tratadas apenas como uma questão
de identidade. A partir da diversidade das mu- MULHERES EM MOVIMENTO
lheres, buscamos construir ações comuns que O feminismo que construímos como Mar-
possam combater globalmente a ordem atual cha Mundial das Mulheres combina novas prá-
de dominação e opressão e estabelecer um pro- ticas com a construção de um movimento so-
jeto político de mudança. O desafio é envolver cial forte e também com a elaboração de teorias
um grande número de mulheres que chegam e propostas a partir das experiências e das lutas
com suas histórias de vida e militância, dando das mulheres. É a partir de ações coletivas que
conta de promover interação e aprendizagem nós, mulheres, teremos vigor para revolucionar
mútua e, a partir daí, construir novas sínteses e a sociedade e construir novas relações sociais,
novos pontos de partida na busca de uma uto- superando todos os mecanismos de manuten-
pia conjunta, no que queremos vir a ser. ção da opressão.
A auto-organização das mulheres vai além Dois princípios nos orientam nesse proces-
da construção de espaços só das mulheres. so: nossa auto-organização em um movimento
Tem a ver com a construção coletiva das mu- autônomo de mulheres do qual fazem parte co-
lheres como um sujeito político, da definição letivos de mulheres e de movimentos mistos; e
de prioridades de reivindicações e demandas e a construção de alianças com outros movimen-
dos caminhos para alcançá-las. Assim, é nos es- tos sociais envolvidos na luta por mudanças.
paços auto-organizados que são construídas as Queremos construir um projeto comum em
agendas políticas das mulheres, bem como suas que nós aprendamos com outras lutas e amplie-
estratégias e formas de ação. mos nossa agenda, mas que também imprima
Um dos ganhos concretos desses processos o feminismo como parte integrante das lutas
é o fato de que as mulheres passam a ser prota- dos movimentos sociais. Apostamos em um
gonistas não só de suas lutas, mas de suas pró- forte movimento de base popular do campo e
prias vidas. E, por isso, muitas vezes os maridos da cidade para que, a partir da prática feminis-
começam a questionar o sentido da participa- ta, as lutas da esquerda sejam ao mesmo tempo
ção, o fato de que está saindo muito de casa. antipatriarcais, antiracistas e anticapitalistas.
Isso reforça a afirmação que o feminismo vem Esse nosso feminismo tem muitas aspirações
fazendo há muitas décadas de que “o pessoal e ambições: queremos mudar o mundo! E isso
16 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
nos coloca desafios cotidianos. Um dos princi- como cada uma entende o que é ser mulher, sua
pais, e que ao longo de toda essa publicação se relação com o corpo, a sexualidade e o trabalho.
faz presente, é de conseguir conectar as nossas Em movimento, as mulheres rompem com as
resistências e lutas locais com esses processos amarras que o machismo e o racismo impõem
mais gerais que organizam as desigualdades no sobre os comportamentos, a maternidade e as
mundo inteiro. Por exemplo, o que vemos no decisões. E cada vez mais são encorajadas a jun-
Brasil é que as mulheres que lutam em defesa tas ocupar os espaços, falar em público e levar
dos territórios enfrentam ao mesmo tempo: o adiante as reivindicações por direitos.
poder das grandes empresas transnacionais – da A prática de luta nos mostra o que já sabe-
mineração ou do agronegócio; a força do Es- mos pelas nossas histórias de vida: nesse siste-
tado, pela polícia ou pelo poder judiciário que ma capitalista racista e patriarcal nós, mulheres
privilegia as elites e cada vez mais criminaliza as diversas e trabalhadoras, não cabemos e não há
lutas populares e; a violência contra as mulhe- espaço para que todas sejamos livres e iguais.
res, que é usada como parte dos conflitos, para Não queremos igualdade para poucas, quere-
humilhar ou desencorajar as mulheres em luta; mos para todas. Ou seja, precisamos de uma
e muitas vezes os homens, que são convencidos transformação estrutural para acabar com as
por um modelo de desenvolvimento que pro- desigualdades. É por isso que o feminismo se
mete empregos mas só entrega contaminação, coloca como parte das lutas para construir uma
exploração e expulsão das pessoas de suas terras. outra sociedade, organizada pela igualdade,
Ao mesmo tempo, quando enfrentamos a vio- pela justiça e pela liberdade. Por isso, o lema
lência sexista, percebemos que a autonomia eco- que nos faz caminhar é “seguiremos em marcha
nômica e pessoal é fundamental para as mulheres até que todas sejamos livres”.
conseguirem romper com situações de abuso. E
também aprendemos que quando dizemos não | ECONOMIA FEMINISTA: A VIDA
ao modelo de dominações e abusos, também NO CENTRO DA ECONOMIA
vamos abrindo caminhos e possibilidades para
construir a sociedade que nós queremos. Por O cuidado, a limpeza dos ambientes e das
exemplo, frente aos venenos do agronegócio, roupas, a produção de alimentos e o preparo
construímos a agroecologia e formas solidárias das refeições, a atenção com a higiene e com os
de comercialização. sentimentos, a construção de relações e víncu-
Pela experiência desse feminismo que é mi- los: tudo isso e muito mais faz parte da produ-
litante, de todos os dias e a partir de mulheres ção do viver. Ou seja, a vida só é possível por
diversas - rurais, negras, urbanas, agricultoras, meio de muito trabalho realizado de maneira
indígenas, jovens, trabalhadoras em geral - po- contínua, todos os dias.
demos afirmar que estar em luta transforma as O ponto de partida da economia femi-
comunidades e a sociedade, e também trans- nista é que a produção do viver não pode ser
forma a forma como cada uma está no mundo, reduzida a números e fórmulas, como as que
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 17
| AGROECOLOGIA
A agroecologia é a “aplicação dos conceitos
e princípios ecológicos no desenho e manejo
de agroecossistemas” (Gliessman citado por Si- Dessa maneira, por exemplo, a água pode
liprandi, 2015). A palavra agroecológico vem chegar ao limite quando é contaminada ou utili-
do latim e desmembrada significa: zada em quantidades enormes e potencialmente
AGRO = agricultura, crescentes. Da mesma forma, há várias espécies
ECO = lugar/casa/ambiente, de animais e de plantas que são extintas devido à
LÓGICO = estudo exploração desequilibrada da natureza.
O estudo desse lugar, desse ambiente, dessa O problema que se coloca então é como
nossa casa, está interligado com tudo que está fazer uma agricultura que se integre aos ciclos
presente nele. da natureza, que respeite seu ritmo e que, ao
Com base nos princípios ecológicos, apren- mesmo tempo, permita que as pessoas tenham
demos que a natureza é cíclica: cada resíduo de acesso a alimentos nutritivos, saudáveis e de
um processo se transforma em matéria-prima acordo com a sua cultura. A agroeocologia reú-
de outro processo em um ritmo determina- ne alguns aprendizados para responder a esta
do que foi se ajustando por milhares de anos. questão.
Também aprendemos que a natureza tem limi-
tes: há recursos que não são renováveis, como EQUILÍBRIO E SUSTENTABILIDADE
petróleo e outros minerais, e há recursos que A saúde das plantas depende do equilíbrio
são renováveis, porém que são restritos devidos nutricional do solo, que é resultado da presen-
à velocidade de sua regeneração. ça de macronutrientes, como o nitrogênio (N),
20 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
venda. Entendem que o acesso à renda mone- O modo capitalista de organizar a econo-
tária é essencial para sua autonomia econômica mia tem como base a propriedade privada dos
e apresentam propostas de políticas públicas meios de produção e a apropriação da riqueza
de apoio à comercialização. Sua intenção não criada pelo trabalho humano por poucas pes-
é vender galinha caipira para comprar frango soas. No campo, os meios de produção são a
congelado. Seu objetivo é que elas mesmas e as terra e os equipamentos utilizados nela.
pessoas próximas comam os produtos de quali- Mas existem outras formas de organizar a
dade que produzem. Seu cálculo econômico é economia que são invisibilizadas pelo sistema
extremamente apurado, pois consideram como hegemônico. É o caso da produção para o au-
retorno, não apenas o fator monetário, mas toconsumo e do trabalho doméstico que, as-
também o fato de seus filhos não adoecerem. sim como o Estado, são vistos pelo capitalismo
Elas valorizam os quintais, mas não que- como formas “ineficientes” ou “atrasadas”.
rem se restringir a eles: querem propor outras Em muitas comunidades, a reciprocidade
formas de manejo para o território onde vivem é uma forma de organizar a economia. Uma
pessoa doa produtos ou tempo de trabalho na
e trabalham sua família e sua comunidade. Para
esperança de que receberá de outras pessoas
isso, desenvolvem experiências em grupos cole-
produtos ou tempo equivalente.
tivos de produção no manejo de áreas maiores.
Isto quer dizer que a empresa capitalista –
Às vezes essas áreas são um pouco distantes de
aquela que se movimenta pela busca do lucro
suas casas e impõe para elas a necessidade de
cada vez maior e pela concorrência com as de-
renegociar o trabalho doméstico para que pos-
mais – não é a única forma econômica. Outras
sam se ausentar. O fato de conseguir se ausen- lógicas organizam a economia nos domicílios,
tar de casa é uma conquista que elas valorizam nos serviços públicos, nas associações e comu-
muito e ainda permite maior concentração e nidades. Ainda que nestas outras formas tam-
dedicação ao trabalho produtivo, sem ter que bém existam problemas. Por exemplo, numa
parar todo o tempo para, como elas dizem, família o pai pode impor suas decisões para a
“olhar os meninos”. mulher e os filhos, servidores públicos podem
atuar baseados em preconceitos contra negros
| ECONOMIA SOLIDÁRIA e pobres e há mesmo situações em que um dia
de trabalho de um homem é trocado por dois
A economia solidária é uma outra forma de dias de trabalho de uma mulher.
organizar as relações econômicas na sociedade. Ou seja: outras formas de organizar a eco-
Para entendê-la, é importante antes compreen- nomia tanto podem ser atravessadas por pre-
der como funciona a economia capitalista, que conceitos patriarcais e racistas como podem ser
hoje em dia é hegemônica, ou seja, é o mode- contaminadas pela forma da empresa da eco-
lo que predomina na sociedade e que aparece nomia capitalista. Justamente por ser hegemô-
como natural ou como a única possibilidade de nica ela aparece como se fosse o ideal, o lugar
dar certo. onde todos querem chegar.
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 23
REDUÇÃO DE DESIGUALDADES
O mercado construído socialmente tam-
bém é fator de aumento da resiliência, ou seja,
da capacidade de superar problemas. Isso vale
tanto para as pessoas que produzem os alimen-
tos e que, em situações como variações climá-
ticas, veem seu preço se reduzir ou diminuir a
qualidade e a quantidade dos produtos, quanto
para as pessoas que os consomem e que podem
em determinados momentos ter perdas mo-
mentâneas de renda pelo desemprego ou em
função de alguma doença.
As compras públicas, por exemplo, são rea-
lizadas com base em um preço de tabela e, no
caso do Programa de Aquisição de Alimentos
RELAÇÕES DE CONFIANÇA (PAA), os alimentos são distribuídos em en-
Nos mercados sociais, é fundamental a tidades de assistência. Muitos grupos de con-
construção de relações de confiança o mais di- sumo também atuam com base em tabelas de
retas possíveis, como acontece nas feiras. Isso preço previamente acordadas entre produtores
resulta em aprendizado para as produtoras e e consumidores ou estabelecem preços diferen-
para as pessoas que compram. As pessoas que tes para seus integrantes para acolher situações
vivem na cidade podem ter se alienado em re- de exceção. Por exemplo, um grupo de consu-
lação ao que comem, ou seja, transferido para mo de Santo André decidiu não cobrar a taxa
outras pessoas dizerem o que é bom ou gostoso. de adesão de trabalhadores terceirizados da
Por isto, muitas vezes elas precisam reaprender universidade onde atuam. Outro caso é o siste-
o que comer: descobrir outras texturas e outros ma de comunidades que sustentam a agricultu-
sabores, como o amargo. ra (CSA), no qual as pessoas se comprometem
Assim como há um padrão de beleza im- a realizar um pagamento mensal fixo, o que
posto para as mulheres, há também um padrão permite às agricultoras organizar sua produção
estrito de beleza para os alimentos, que é as- e suas despesas tanto na produção como nas
sociado à saúde tanto em um caso como no atividades domésticas.
outro, ainda que não corresponda à realidade. Para construir mercados que reduzam as
A aparência visual do produto não é o que mais desigualdades é importante estabelecer pro-
importa. Um produto aparentemente bonito – cessos coletivos. Estes ajudam a resolver des-
com tamanho e brilho uniformes – pode estar de questões logísticas, como o transporte e o
cheio de produtos químicos que certamente armazenamento, que são barateados conforme
nos farão mal a médio prazo. o volume de produtos, como para criar con-
PRINCÍPIOS E CONTEÚDOS QUE NOS ORIENTAM 29
APRENDIZADOS NO TRABALHO
DE CAMPO
32 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
AUTONOMIA
DAS MULHERES
| NOSSO CORPO
o quintal, a lavoura e toda a biodiversidade exis- As agricultoras que atuam com a SOF
tente nestes espaços. O Mapa contribuiu para em sua maioria já vivenciaram dinâmicas que
valorizar o espaço rural e o trabalho ali realizado, permitem uma reflexão sobre a construção da
além de aprimorar o olhar das mulheres sobre os identidade de gênero ao longo de sua vida e da
espaços e sua atuação. divisão sexual do trabalho. Assim, no curso de
Economia Feminista e Agroecologia as relações
“Quando eu fui desenhar o mapa de gênero foram debatidas a partir do corpo.
pensei: vou colocar o quê? Não tenho É tanta exigência que muitas de nós acaba-
nada.” mos nos alienando em relação a nosso corpo.
Segundo o dicionário, alienar quer dizer
Em um primeiro momento os desenhos transferir para outra pessoa o domínio ou a pro-
eram mais restritos. Conforme iam sendo in- priedade e tornar-se separado, afastar-se. Ou
centivadas a expressar toda a biodiversidade, as seja, não nos reconhecemos quando nos olha-
mulheres iam acrescentando plantas medicinais, mos no espelho.
plantas alimentícias não convencionais, flores, Há mulheres que ficam tão tristes com seu
animais silvestres, entre outros elementos. corpo que já não percebem se ele está bem ou
O Mapa era retomado numa segunda ati- mal e transferem para o médico a decisão de di-
vidade com a pergunta: onde estão as mulheres zer se estão confortáveis ou não e para o marido
e os homens na propriedade? Quantos homens ou namorado, se estão bonitas.
e quantas mulheres trabalham em cada um dos Para fazer as pazes com nosso corpo, come-
espaços desenhados? O objetivo é o de situar çamos parando para olhar para nós mesmas.
como acontece a divisão sexual do trabalho. Em uma atividade de formação, dependen-
Retomar o Mapa também permitiu às mu- do do tempo, da quantidade de participantes e
lheres comparar o que haviam se lembrado da do espaço disponível, podemos fazer um dese-
primeira vez e o que se lembravam em um mo- nho individual do nosso corpo assinalando o que
mento posterior a um olhar mais analítico so- gostamos e o que não gostamos. O corpo pode
bre sua unidade de produção. Além disso, nas ser também modelado em massinha ou pode ser
atividades de intercâmbio as mulheres levavam feito um desenho coletivo do contorno do corpo
para casa mudas e sementes que aumentaram a de uma de nós onde assinalamos depois o que
diversidade de seus quintais. gostamos e o que não gostamos nele.
35
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO
como regimes alimentares baseados em não co- NOSSO CORPO, NOSSA HISTÓRIA
mer, que nos deixam vulneráveis, por exemplo, Hoje boa parte das mulheres que partici-
à bebida ou com menor imunidade. pam dos movimentos gosta muito de ser ne-
As imposições sobre as mulheres também gras e compartilha que a cor da pele, os cabelos
variam se somos negras ou se somos trabalha- e o formato do corpo são a expressão viva da
doras. Quando pensamos sobre como foi mu- sua ancestralidade. Uma companheira guarani
dando nossa relação com nosso corpo, muitas de compartilhou que “estar vivas do jeito que somos
nós contamos que nos incomodava nosso nariz, já é por si só nossa resistência”.
nosso quadril largo, nosso cabelo. A consciência Agricultoras brancas também resgataram
sobre ser mulher negra nos faz olhar no espelho marcas no seu corpo que recordam sua família:
de outra forma. “tenho o formato do rosto igual a minha avó, de
Ainda assim, a indústria da beleza tenta cap- quem eu gostava muito”, ou “ dizem que sou a
turar nossas vivências abrindo variações de um cara do meu pai, mas eu não me vejo assim, tal-
mesmo padrão. As negras belas seriam aquelas vez porque não goste tanto dele”.
que se aproximam das brancas com nariz afilado As cicatrizes também contam nossa his-
e que “domam os cachos”. Soltar os cabelos é um tória. “Minha barriga é cheia de estrias, mas é
ato e tanto para cada mulher negra. Após alguns porque eu gerei quatro filhos”. Outras se inco-
dias, ainda que não falemos sobre o tema, é mui- modam com cicatrizes que as faz rememorar
to bom ver nas atividades de formação as mulhe- alguma situação desagradável. Conversamos
res soltando os cabelos, tomando chuva ou en- então que, em vez de querer apagar esta cica-
trando no mar sem medo de estragar a chapinha. triz, talvez fosse melhor olhar para a situação
Várias mulheres também relatam em nossas vivida de outra forma e assim superá-la.
atividades que não gostam de sua batata da perna O trabalho que realizamos também marca
– a panturrilha - musculosa. Acham interessante nosso corpo. No trabalho na agricultura, assim
que mulheres que fazem exercício em academia como em outras profissões, podemos sofrer aci-
busquem uma panturrilha delineada. Para elas é dentes ou adquirir problemas na coluna. Esse
diferente: perna forte, assim como braço e mão tema traz a conversa sobre como evitar acidentes,
fortes, são fruto do trabalho na roça. E na nossa nossa postura, o sobre-esforço no trabalho e que
sociedade o trabalho braçal é visto como inferior ferramentas podemos utilizar para deixar o traba-
e também masculino. É como se a mulher tra- lho menos penoso e ter mais tempo para cuidar
balhasse na roça porque o marido não dá conta. de nós mesmas.
Isso nos leva a conversar sobre as mãos: as
mãos que usam a enxada, o facão, que acariciam, TABUS E MISTÉRIOS
que lavam roupa e que sustentam mas que, no Quando sentamos para conversar sobre o
padrão de beleza que nos é imposto, deveriam corpo, percebemos que ainda há partes dele
estar imóveis para estar lisas, com unhas longas que são secretas para nós. Mesmo para as jovens
e pintadas. que aprenderam na escola, o aparelho reprodu-
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 37
truar e sentia muitas cólicas. Não dava para sa- um campo de monocultura nos provoca tam-
ber o que causava o que: a raiva ou a cólica. Ela bém acontece quando olhamos várias mulheres
passou a participar de conversas com mulheres, capturadas pelo que a moda impõe.
algumas com uma abordagem positiva do ser A agricultura industrial utiliza insumos
mulher, e isto fez com que mudasse sua relação externos como adubos sintéticos e agrotó-
com a menstruação e, com isto, ela parou de xicos para diminuir os ciclos da natureza de
ter cólicas. crescimento, reprodução, regeneração e assim
Outra relatou como sua relação com a aumentar a produtividade de uma área. Esse
menstruação e mesmo com seu corpo mudou processo é similar à negação dos ciclos do cor-
depois que ela passou a usar um coletor mens- po, que oculta a necessidade de descanso para
trual. Ao experimentar ela entendeu como o regeneração do corpo, e impõe que este esteja
canal vaginal funciona, que tem músculos, que sempre jovem e disponível para a produção.
não tem sensibilidade e também que o sangue A ciência e a tecnologia focadas na produ-
que desce é muito menos do que a impressão tividade baseada em insumos químicos querem
que os absorventes nos dá, já que nos absorven- controlar tanto a agricultura quanto nossos
tes o sangue se espalha. corpos. Não é à toa que corporações transna-
Em algumas correntes da agroecologia cionais, que produzem sementes transgêni-
o sangue menstrual diluído em água é usado cas, adubos químicos e agrotóxicos, também
como adubo nas plantas no jardim, já que ele tenham braços farmacêuticos que produzem
tem nitrogênio, fósforo e potássio. Pensar nes- hormônios sintéticos para ser utilizados na me-
tas coisas já nos fez olhar para a menstruação nopausa ou em métodos contraceptivos como
como parte da vida e não como algo sujo, mal injeções e implantes.
cheiroso ou uma sangria inútil.
PRÁTICAS DE AUTOCUIDADO
CORPO, MÁQUINA E AGRICULTURA INDUSTRIAL Nas atividades de formação, realizamos tra-
O padrão de beleza imposto torna as mu- balhos corporais primeiro de maneira individual,
lheres homogêneas – todas com o mesmo ca- como auto-massagem e alongamento, e depois
belo, sobrancelhas e unhas. A singularidade – o em duplas e trios até chegar ao grupo todo. Re-
jeito de ser de cada uma – deixa de ser positivo fletindo sobre esse caminho, várias outras ações
e o que passa a ser valorizado é o ser igual, não de autocuidado surgiram quando fomos com-
importando o quanto é necessário adicionar ou partilhar nossas práticas agroecológicas.
interferir para chegar a este modelo. Na agroecologia, pensamos em práticas que
Esse processo é similar ao da agricultura nos proporcionem autonomia frente aos merca-
industrial, que impõe que as plantas devem ser dos e aos homens. Dessa maneira, não precisa-
homogêneas. Dessa forma, por exemplo, a soja mos comprar todos os insumos que necessita-
deve ter vagens na mesma altura para facilitar a mos porque usamos muito do que tem na nossa
ação da colheitadeira. A mesma desolação que própria roça. E também não dependemos de
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 39
Uma participante do curso de Economia Fe- residências das classes D/E conectadas à inter-
minista e Agroeocologia comparou esta situação net são 23%, enquanto aquelas em áreas rurais
à transição agroecológica. Quando começamos chegam a 26%. Esses dados indicam uma dis-
a trabalhar junto com agricultores que utilizam criminação de comunidades periféricas e rurais
o pacote da agricultura industrial (sementes mo- movida por interesses financeiros.
dificadas, adubos, herbicidas, venenos) vamos O que pode mudar esse cenário?
aos poucos, propondo uma área de teste (ou Alguns grupos de tecnologias livres apon-
chamando a atenção para a produção no quintal tam um caminho: trabalhar a ideia de ‘Redes
realizada pelas mulheres e sem veneno). autônomas’ ou ‘redes comunitárias’.
Com essa experiência, o agricultor vai per-
cebendo as coisas de outra maneira e até carpir REDES COMUNITÁRIAS
volta a ter sentido. Da mesma forma nossa au- Uma rede comunitária de comunicação é
to-proteção coletiva pode fazer parte de uma uma infraestrutura alternativa construída cole-
transição, mostrando o que é viver uma vida tivamente pelas pessoas. O objetivo é resolver
livre de violência em uma sociedade ainda he- problemas de comunicação de um determina-
gemonicamente patriarcal. do território, seja trazendo acesso à internet ou
provendo serviços locais úteis para seu fortale-
cimento interno. Com redes autônomas, é pos-
| REDES AUTÔNOMAS DE sível, por exemplo, que pessoas em casas muito
COMUNICAÇÃO* distantes se comuniquem por chamadas de voz
sem a necessidade de uma linha telefônica.
A tecnologia tem o potencial de diminuir Normalmente essa iniciativa acontece por
distâncias e melhorar a qualidade de vida das meio de uma associação, de um grupo de mo-
pessoas. Ao mesmo tempo, está cercada por in- radores ou de um coletivo. Por se tratar de
teresses econômicos e governamentais. Por isso, um modelo de comunicação, não há fórmula
o princípio da neutralidade da rede define que pronta. De maneira geral, há três pontos que
todos os dados que transitam na rede devem fazem de uma infraestrutura uma experiência
ser tratados da mesma maneira, sem importar autônoma:
sua origem, tipo e destino. | Estrutura distribuída: o crescimento é
Mesmo em constante ameaça, esse prin- possível a partir de qualquer ponto e não há
cípio garante uma experiência supostamente um ponto central que controla os outros
livre para quem utiliza a internet. Apesar dis- | Decisões coletivas: o processo deve ser co-
so, ainda há uma explícita desigualdade socioe- letivo e voluntário
conômica no acesso à rede mundial. Somente | Autonomia: a comunidade deve apro-
54% das residências brasileiras estão conecta- priar-se de conhecimento para manter sua rede
das à internet, sendo a maioria em áreas urba- e seus serviços sem o apoio de empresas
nas (59%) e nas classes A (98%) e B (91%). As * Texto elaborado por Carla Jancz, dos coletivos Actantes e Maria Lab.
42 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS
FEMINISTAS
CANTEIROS SUSPENSOS
RAZÕES QUE NOS LEVAM A UTILIZÁ-LOS
Quando a repartição ou o rodízio dos Menos dores na coluna
afazeres no cuidado da casa ou da roça são Mais espaço para o enraizamento das
cenouras
repensados a partir da autonomia, trabalhos
Por serem mais profundos, proporcionam
domésticos como o cuidado com os filhos e a mais espaço para a decomposição de
manutenção da alimentação e da limpeza da matéria orgânica e, portanto, mais nutrição
casa passam a ser uma responsabilidade de to- Proporciona mais independência das
das as pessoas da família, não apenas das mu- mulheres em relação aos maridos porque
lheres ou das filhas. Outro resultado é o au- utiliza materiais leves, como o bambu
Reduz o trabalho de capina
mento da qualidade do trabalho na produção
de hortifrutigranjeiros uma vez que as mulhe-
Com o uso de canteiros fixos com bambus
res passam a ter mais tempo disponível para se
ou madeira, elimina-se a necessidade de refa-
envolver em outras tarefas e não somente nos
zê-los a cada plantio, trabalho que é feito ge-
afazeres domésticos.
ralmente com o auxílio do marido no tempo
em que ele se dispõe a auxiliar a mulher nessa
| TROCAS DE EXPERIÊNCIAS atividade. Já com o canteiro elevado, a mulher,
responsável na maior parte das vezes pela horta
Garantir a autonomia significa ter um da propriedade, pode fazer o plantio anual das
olhar novo sobre tudo. Ao passear pelo quin- culturas no mesmo local, apenas sendo neces-
tal ou pela roça com tempo, é possível obser- sário fazer a manutenção quando o material do
var todos os recursos que temos e refletir sobre bambu ou da madeira estiver se decompondo.
desafios ou problemas a resolver. Por exemplo, Assim, a observação prática e o intercâm-
como fazer um canteiro de boa qualidade para bio sobre os saberes tradicionais nos grupos de
produzir do maxixe à cenoura no tempo que mulheres nos levam a desenvolver a técnica mais
temos disponível pra cuidar? adequada para o problema que é preciso resolver.
As experiências das mulheres também nos É possível melhorar também o uso das es-
ajudam a pensar como melhorar nossas prá- truturas da casa, como por exemplo, o local do
ticas concretas. Um exemplo são os canteiros galinheiro. Por que não deixá-lo mais perto da
suspensos. horta? Dessa maneira, é possível eliminar o tra-
balho de carregar o adubo de um lado até o ou-
tro do terreno. Outra alternativa é levar as ga-
“A gente depende dos maridos linhas para ajudar a carpir e adubar o canteiro.
para ficar refazendo os canteiros Práticas como estas resultam no melhor
e eles dizem: ah, posso aproveitamento do tempo e também buscam
ajudar você nisso, a independência do modelo de produção in-
dustrial na agricultura. O “agronegócio” é um
mas agora não”.
modelo impulsionado a partir dos anos 1960
48 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
diversos minerais agregados com porosidades téria orgânica ele terá, ou seja, maior quantida-
diferentes. Ele respira por meio de macropo- de de nutrientes ele vai apresentar.
ros e se hidrata por meio de microporos. Nesse O líquido que sai do caule da bananeira,
processo, são transportados nutrientes mais le- chamado de “nódoa”, pode ser depositado so-
ves ou mais pesados aos vegetais, tanto aque- bre o solo pois é rico em micronutrientes. Ao
les com raízes mais superficiais quanto aqueles se decompor, a terra que fica embaixo fica es-
com raízes mais profundas. cura, brilhosa e com muitos microorganismos
Exemplo: decompositores de matéria orgânica.
MACROPOROS (entrada de ar): trans- A decadência do solo se reflete no apare-
portam nutrientes mais leves, como o N (ni- cimento de pragas e doenças nas plantas, que
trogênio) – P (fósforo) – K (potássio) servem como alerta de que há um problema.
MICROPOROS (entrada de água): trans- Por isso, eliminar apenas as pragas não resolve a
portam nutrientes mais pesados, como Bo questão central, que é a necessidade de observar
(Boro), Zn (Zinco), S (Enxofre), Mn (Manga- a terra e recuperar sua capacidade produtiva.
nês), Mg (Magnésio)
Atividades práticas de observação do solo
E como saber onde estão esses nutrientes realizadas com os grupos de mulheres
na minha roça? Caminhada para levantar plantas indi-
A terra se nutre a partir da decomposição cadoras da qualidade do seu solo a olho nu
de matéria orgânica, que é o conjunto de re- Algumas plantas repetidamente aparecem
síduos vegetais ou animais lançados no am- em solos secos. Outras, em solos mais compacta-
biente. Quanto maior a quantidade de matéria dos, e outras em áreas de monocultivo sem rota-
orgânica no solo, maior é a quantidade de nu- ção de culturas ou sistemas com uso de produtos
trientes disponíveis. Quanto mais escuro, solto químicos em seus tratos culturais. Exemplo de
e brilhante for o solo, maior quantidade de ma- plantas indicadores de deficiência de nutrientes:
NUTRIENTES FONTES
N – Nitrogênio: responsável por trazer proteínas e mais Esterco de vaca fresco, de galinha ou de porco
vitalidade às plantas
P – Fósforo: responsável pelo bom crescimento da planta, Semente de colorau em pó, farinha de osso,
entre outros processos composto de resto de peixe
K – Potássio: auxilia no fluxo dos nutrientes Cinzas do fogão à lenha, caule da bananeira,
B – Boro: auxilia na formação dos frutos Nódoa da bananeira
Mn – Manganês: auxilia no controle de fungos e vírus
Zn – Zinco: auxilia no processo de absorção de nutrientes
50 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
DICAS PARA UM BOM PLANEJAMENTO carvão funciona como filtro, retirando gran-
1º: Faça uma lista de tudo que você produz. de parte das impurezas. As águas cinzas (águas
Exemplo: alimentos que você consome, que não são provenientes do vaso sanitário)
alimentos que têm mais saída para a como as da pia do banheiro, cozinha, chuvei-
comercialização, alimentos que você gostaria ro e roupa) podem ser tratadas e reutilizadas
de plantar. para adubação de pomares ou ainda direcio-
2º: Organize um calendário mensal com o nadas para um círculo de bananeiras ou zona
que deve ser plantado e colhido em cada de raízes, onde utilizamos plantas de folhas
mês e quais os insumos necessários para largas ou que preferem lugares alagados. As
isso. É importante acrescentar o período de raízes também funcionam como filtro, reti-
colheita de cada alimento, a quantidade a ram a água pelas raízes e devolvem para o ar
ser colhida, o dia da colheita e de quanto em e ainda aproveitam os nutrientes presentes na
quanto tempo fazer o replantio. Ao fazer esse água a ser tratada.
acompanhamento durante um ano inteiro,
no ano seguinte você saberá qual é sua
capacidade de produção e suas condições | PLANEJAMENTO DA PRODUÇÃO
para aumentar ou diminuir a produção
de cada tipo de planta, considerando
E DIVERSIDADE
as variações do clima e do mercado
consumidor.. A caderneta agroecológica é uma ferramen-
*Atenção: vale sempre experimentar e adaptar ta que dá visibilidade ao trabalho realizado pe-
uma planta que não seja de sua roça. Assim las mulheres na roça e nos quintais produtivos
como a diversidade é presente nos quintais e e permite a elas ter consciência e autonomia
roças das mulheres, a diversidade também é sobre a renda que geram. Trata-se de um cader-
parte da natureza. no que contém quatro colunas, onde são ano-
tadas informações sobre a produção e o que foi
consumido, doado, trocado ou vendido. Com
ro ou químicos, que afetam a atividade dos essas anotações, a caderneta passa a ser tam-
microorganismos, por sabão neutro ou sabão bém um ótimo instrumento de planejamento
de coco. A água deve ficar retida pelo menos de produção.
um dia dentro de cada bombona para a ação Para produzir de forma a garantir o auto-
das bactérias. consumo e o fornecimento de alimentos para
Atualmente há muitas alternativas para comercialização em diferentes mercados, como
cuidar da água e do solo. Uma simples cai- o PAA, o PNAE ou em feiras, é preciso calcular
xa de gordura na saída da pia da cozinha, do quantidades e também o tempo que leva entre
banheiro, ou da água da máquina de lavar o plantio e a colheita, bem como a quantidade
roupas associada a caixas com brita, areia e de nutrientes necessários.
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 57
perdendo a acidez, responsável pela paralisação há muito tempo, em muitas regiões do mun-
dos nutrientes que as plantas precisam. do todo, talvez não com esse nome. São práti-
A preparação da calda em um grupo de cas do dia a dia e saberes da agricultura familiar
mulheres é como um encontro de troca de sa- que passam de gerações a gerações e que jamais
beres, pois cada uma tem muito conhecimento perdem sua funcionalidade, por isso podem ser
sobre as propriedades dos chás e as funções de constantemente resgatados.
cada planta que mais utiliza em casa. Além de inúmeras caldas possíveis que for-
É importante que a calda contenha todos talecem as plantas contra doenças e predado-
os mesmos micronutrientes que são necessários res, outra forma de prevenção e reforço é o uso
para um solo rico. Ver na página 49, quais são da homeopatia.
eles e onde encontrá-los. Exercícios
As caldas biofertilizantes são feitas por fer- 1. Escreva uma lista de plantas do seu
mentação com entrada de ar, conhecida como quintal que podem ser utilizadas na calda bio-
fermentação aeróbica, a mesma utilizada quan- fertilizante e para que servem.
do se faz pão. O tambor é coberto para evitar 2. Escreva a receita trabalhada na prática
a entrada de moscas varejeiras, mas permitir a com o grupo de mulheres
entrada de ar. O fermento caseiro se faz acres-
centando o açúcar, mel, melado e leite como | HOMEOPATIA
nas receitas domésticas.
As receitas são criadas, trocadas e constan- A homeopatia é uma cultura milenar, que
temente adaptadas ou transformadas, assim teve origem no Oriente, do outro lado do
como as práticas agroecológicas: elas acontecem planeta, e que é utilizada diariamente pelas
Crotalária Essa planta é muito boa para controlar doenças no solo. Plantar entre as bananas ajuda a
diminuir a influência do caramujo em algumas áreas. Sua flor é ótima para a polinização
das abelhas.
Feijão guandú Fixa nitrogênio no solo. A semente é nutritiva em proteína. Pode ser colhida e utilizada em
farofas. As folhas servem de alimento para o gado. Além de ser resistente à seca, este feijão
serve como barreira de vento e estrutura para viveiro.
Mucuna preta Planta muito forte, tem o crescimento indeterminado e com as suas folhas grandes e
fortes deixam uma excelente cobertura no solo, além de conseguir disputar bem com a
braquiária quando é preciso combatê-la.
Feijão de porco Excelente adubador de solo com nitrogênio. Sua semente está cada vez mais rara e, por
isso, é muito bom reproduzi-la.
Girassol Excelente polinizador para abelhas e insetos diversos, além de ter um efeito de atração de
parasitas e lagartas para ele protegendo as plantas dos mesmos.
60 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
CADERNETAS
AGROECOLÓGICAS
COMERCIALIZAÇÃO
A confiança entre os grupos de consumo ela passam a valorizar seu trabalho, passam a
e as agricultoras quanto ao produto agroeco- ter mais liberdade para frequentar as reuniões,
lógico vai se construindo nas visitas, no diálo- os maridos passam a ficar com os filhos e se
go entre as agricultoras, por meio do processo responsabilizam por fazer uma refeição, o que
de organização dos grupos, mutirões, rodas de antes era muito mais difícil.
conversa, trocas de experiência e no acompa-
nhamento técnico da SOF, não havendo exi- FORMAÇÃO: MUITO ALÉM
gência de uma certificação formal. DA TEORIA
Algumas agricultoras podem viver situa-
ções de conflito com maridos que utilizam her- Foi na prática que demos conta do tama-
bicidas e outros venenos em áreas de cultivo nho da complexidade que seria lidar com essa
sob sua responsabilidade e tensionam as mu- experiência inovadora de um mecanismo de
lheres para fazer o mesmo. Nossa atuação bus- venda direta. O desafio consistia em organizar
ca fortalecê-las para resistir às agressões e não a produção de, em média, 30 agricultoras de
cinco grupos diferentes, com uma diversidade
exclui-las definitivamente do processo.
de aproximadamente 95 alimentos in natura e
Acordos no núcleo familiar quanto à di-
87 alimentos transformados de maneira artesa-
visão do trabalho com maridos e jovens vão
nal, sem contar as plantas aromáticas e medi-
sendo estabelecidos e é importante que as mu-
cinais. Implicava também organizar os pedidos
lheres estejam envolvidas na produção e nos
de forma a gerar uma renda média equivalente
processos de decisão, que haja valorização do
para cada agricultora, a partir de pedidos rea-
trabalho de todas as partes e distribuição da lizados em quantidades muito variáveis, desde
renda igualmente. 0,2 kg a caixas de 21 kg, a serem retirados num
depósito com espaço limitado.
NO CAMINHO DA AUTONOMIA Certa flutuação de participantes e diferen-
ECONÔMICA tes trajetórias e graus de experiências com a
Quando as mulheres conseguem ter seu comercialização, tanto das agricultoras quanto
próprio dinheiro, percebemos o inicio de mu- dos consumidores, eram elementos adicionais a
danças: elas compram coisas para as crianças, considerar nessa logística. Em nossos encontros,
contribuem nas compras do mercado, com- abordamos também os valores que nos apro-
pram coisas para elas mesmas. Outras juntam ximavam, as realidades de onde vínhamos e as
o que recebem e fazem pequenas reformas na questões práticas das etapas da comercialização.
casa, investem em equipamentos para qualifi- As formações aconteceram juntando as
car o beneficiamento da produção, compram agricultoras e os grupos de consumo, ou em
celular e tanquinho de lavar roupas que facili- espaços só de agricultoras, às vezes em uma
tam seu trabalho e representam ganha de tem- comunidade, às vezes juntando representantes
po. Dentro de casa, na relação com a família, dos grupos. A proposta foi compreender todo o
66 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
mentos. A resolução número 44 do grupo ges- públicas. Foi o caso dos grupos do município
tor do PAA de 2011 determina maior pontua- de Itaoca e Peruíbe, em São Paulo. Parte das
ção para as organizações que têm pelo menos mulheres de Peruíbe, com a vontade de comer-
40 % de mulheres associadas. cializar seus pães para a merenda escolar, se or-
Ainda que as estatísticas atestem a grande ganizaram com uma associação da agricultura
participação das mulheres nos programas, os familiar do bairro no qual residem e oferece-
momentos e espaços de decisão sobre sua ges- ram seus produtos à chamada pública. Conse-
tão continuam nos homens das associações e guiram entrar na roda de negociações de preços
cooperativas. Quando questionadas a respeito e oferecer seus pães em um valor justo, que pa-
de algum procedimento das entregas do PAA, garia o trabalho do grupo, argumentando que
as mulheres dificilmente conseguem responder não poderiam concorrer com empresas padro-
ou ficam em dúvida a respeito das informações nizadas e industriais e oferecer os produtos em
que são repassadas a elas. Algumas se queixam um valor que não condiz com a realidade e ca-
da maneira excludente que a gestão das associa- pacidade de produção da agricultura familiar.
ções ou cooperativas é trabalhada. Mesmo as- Já as mulheres do grupo UAAI se utiliza-
sim afirmam que frequentam assembleias e reu- ram das anotações das cadernetas agroecoló-
niões, mas que sentem dificuldades de entender gicas para ofertarem os produtos ao PAA. O
as prestações de contas que as organizações apre- coletivo tomou a iniciativa e realizou uma reu
sentam durante as reuniões. Entre os relatos de nião com as mulheres interessadas do bairro.
atitudes masculinas que levam ao desencoraja- Juntas planejaram a produção para a entrega
mento das mulheres está a restrição de seu tem- de um ano e dividiram igualmente os valores
po de fala nas reuniões, regra que não é aplicada a receber pelo programa. A SOF auxiliou na
da mesma maneira para os homens, bem como oficina de confecção de projetos e o grupo se
a anulação de seus trabalhos no uso de máqui- revezou para coletar documentos e inseri-los
nas e equipamentos da cooperativa. em um sistema online.
Após o golpe de Estado de maio de 2016, Ao longo de 2017, o governo federal di-
algumas agricultoras relatam o receio de que minuiu o orçamento do PAA em 66% com-
os programas não tenham continuidade. Isso parado ao ano de 2016. Muitas organizações
pode resultar em perda do excedente da pro- que há anos estavam inseridos na gestão de
dução e também em perda da autonomia eco- compras públicas não conseguiram aprovar
nômica das mulheres com o fim de uma fonte seus projetos, o que justifica a preocupação das
de renda que, ainda que demore para chegar, é mulheres quilombolas da Barra do Turvo, ci-
garantida. tada acima, e a não entrada do coletivo UAAI
Entendendo a necessidade de fortalecer os nesta chamada. Apesar dos desmontes destes
coletivos de mulheres para a geração de renda, programas, ambas as experiências fortaleceram
a SOF incentivou a organização de alguns gru- os grupos em seus respectivos locais, seja com
pos para participar das chamadas de compras o poder público ou com a associação na qual
PRÁTICAS METODOLÓGICAS: APRENDIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO 71
fazem parte. Os aprendizados com a participa- atua. Os trabalhos que envolvem a OCS são
ção nos mercados institucionais mostram que organizados e planejados pelos seus membros
houve uma maneira diferente de se olhar, fazer priorizando a transparência de produção e as
e mudar uma situação em espaços tradicional- relações solidárias de comércio justo.
mente dominados pelos homens. Essa forma de Controle Social pode ser
adequada à realidade de cada coletivo. Após
| PROCESSOS PARTICIPATIVOS DE realizar o cadastro de seu grupo no Ministério
CERTIFICAÇÃO da Agricultura, as obrigações de um membro
da OCS incluem manter atualizadas informa-
A certificação é o processo que garante que ções da unidade de produção, tais como:
um determinado alimento foi produzido de | estimativa de produção anual
maneira agroecológica, sem o uso de venenos. | cumprimento do plano de manejo orgânico
Quando produtoras e consumidoras se conhe- | cumprimento dos procedimentos de con-
cem, a confiança na qualidade do produto se trole social firmados pelo grupo, que incluem
estabelece pela relação direta. Quando essa re- visitas ou mutirões
lação vai se distanciando, a confiança passa a | registro das atividades e reuniões que são
ser criada em torno a um certificado ou a um realizadas
selo de produto orgânico, de produto da agri-
cultura familiar ou dos quilombos. SISTEMAS PARTICIPATIVOS DE GARANTIA (SPG)
Ao começar a entender o funcionamento da Os Sistemas Participativos de Garantia (SPG)
certificação orgânica, localizamos que a forma têm um nível de operacionalização mais buro-
mais adequada para a realidade dos grupos de crático. Os SPG são voltados a agricultores que
mulheres do Vale do Ribeira era a Organização realizam vendas a terceiros e, por isso, necessitam
de Controle Social para a Venda Direta (OCS). de um selo de certificação. Eles reúnem produ-
O sistema de OCS foi criado justamen- tores e outras pessoas interessadas em constituir
te para agricultores e agricultoras familiares, o sistema, bem como o Organismo Participati-
quilombolas ou indígenas comercializarem vo de Avaliação da Conformidade (OPAC). Os
seus produtos em contato direto com os con- OPACs são uma empresa ou entidade jurídica
sumidores. Essa venda pode ser tanto em fei- que assume a responsabilidade legal pela avalia-
ras, quanto em grupos de consumo, por cestas ção se a produção está seguindo os regulamentos
ou por meio do fornecimento para mercados e normas técnicas da produção orgânica.
institucionais como o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA).
A OCS pode ser formada por um grupo
formal (associação) ou informal, como é o
caso dos grupos de mulheres com quem a SOF
72 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
Componentes do jogo
Tabuleiro: é o desenho do trajeto da co-
mercialização, incluindo estradas, rodovias,
| JOGO “MULHERES NA pontes, rios e pontos de referência
COMERCIALIZAÇÃO, EM BUSCA DE Figuras simbolizando:
AUTONOMIA ECONÔMICA” | o local de produção (a roça) e o ponto
de entrega (casas, feiras, escola, restaurante etc)
Esta ferramenta é aqui apresentada como | meios de transporte (bicicleta, caminhão,
uma experiência e sugestão para promover em mula, ônibus)
grupo a reflexão sobre questões relacionadas às | meios de comunicação (telefone, celular,
diversas formas de comercialização, incluindo computador, internet, ausência de internet, au-
gestão coletiva, logística, qualidade e organização. sência de sinal)
Este jogo cooperativo foi criado a partir e por fim as que simbolizam
do trabalho desenvolvido com as mulheres do | os alimentos produzidos e que serão co-
Vale do Ribeira. Portanto, as peças e imagens mercializados (banana, pupunha, laranja, hor-
se referem à realidade dessa região. taliças etc)
| os instrumentos necessários para a co-
Objetivos do jogo mercialização (caixa agrícola, calculadora, ma-
| Promover reflexões sobre a atuação de teriais para tomar notas – caderno, bloco, ca-
mulheres agricultoras na construção social de neta, cesta de alimentos)
mercados | lupa - para sinalizar as áreas, questões ou
| Levantar diferenças e desafios entre os ti- temas que o grupo não conseguiu resolver ou
pos de mercado que necessitam mais reflexão
| Possibilitar momentos de trocas de expe- Pedras coloridas: para marcar o caminho
riências dentro das diferentes realidades e for-
mas de comercialização que vêm sendo prati- Instruções
cadas entre os grupos de mulheres do Vale do *O jogo traz quatro situações de comercialização:
Ribeira I. Feira local
UM JOGO PARA ENTENDER A CADEIA DA COMERCIALIZAÇÃO 77
Carta inicial: Joana vendia ovos para José a R$ 4,00 Carta inicial: Registro é uma cidade do Vale do Ribeira conhecida
a dúzia. José os revendia depois na cidade de carro a por ter diversas feiras ao longo da semana. Há feiras nos bairros e
R$ 7,00. José ficou doente e parou de revender os ovos. feiras que acontecem mais no Centro da cidade. Essas feiras são
Joana ficou uns dias sem vender, mas estava precisando mais conhecidas como feiras livres, mas há também a feira do
de um dinheirinho e, com todos os ovos na estante, produtor. Há feirantes que vêm de várias cidades, vendem diversos
resolveu pegar a bicicleta e vender os ovos na vizinhança. produtos, desde temperos secos, hortaliças, carnes defumadas,
Joana ficou em dúvida: “Quanto devo cobrar pelos ovos mudas, alimentos produzidos nas roças mais próximas e alimentos
quando eu mesma vou vender?” Ajude a Joana pensar de grandes distribuidores como a Companhia de Entrepostos e
nessa questão. Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP).
Depois de resolver a questão em grupo, avance para a Luiza, Benedita, Antonia e Paula começaram a produzir alimentos em
próxima carta. uma área coletiva no Bairro Refazenda, a 15 km da cidade de Registro.
Há 2 meses fizeram plantio nos 20 canteiros que possuem porém
I. Carta 1 - Joana vendeu quase todos os ovos. Alguns começam a perder a produção pois não há para quem vender.
sobraram. Ela acabou descobrindo que muitas vizinhas Ajude essas agricultoras a pensar como conseguir um ponto de feira,
também criavam galinhas. Nas vendas, Joana conheceu uma barraca e se organizar para comercializar esses produtos na feira.
Marta, uma agricultora que plantava diversas hortaliças,
e Rita, uma agricultora que fazia pães e doces e bordava II. Carta 1 - Depois de se informarem, elas optaram por fazer parte
panos de prato. Conversa vai, conversa vem, ela trocou da Feira do Produtor. Para ter um ponto nessa feira, é preciso fazer
os ovos pelas hortaliças da Marta e uma dúzia por um parte da Associação da Feira do Produtor de Registro. Para isso, terão
pão de Rita. Marta, Rita e Joana pensaram em fazer uma que participar de reuniões mensais e contribuir com uma taxa da
parceria para as trocas e comercializar na cidade a 10 limpeza e iluminação. As feiras acontecem todas as quartas-feiras,
km do bairro delas. Mas Rita cuida da irmã doente e não das 14h às 19h. Luiza, Benedita, Antonia e Paula resolveram fazer uma
poderia sair para vender... Ajude-as a pensar em alguns escala e se dividiram em duplas para participar das reuniões. Ajude a
acordos para essa parceria já começar bem e garantir montar as duplas, sendo que só duas dirigem, todas têm filhos que
bons trabalhos pela frente. estudam à tarde e chegam da escola às 17h30 e precisam jantar e dar
Depois de construir alguns acordos, vá para a próxima janta para a família. Pense em relações de solidariedade para que as
carta. feiras possam acontecer e para que todas tenham a renda, os custos
e o trabalho dividido igualmente.
I. Carta 2 - Joana, Rita e Marta já estão vendendo os Escreva com algumas palavras as ideias mais importantes do grupo e
produtos de porta a porta na cidade. Até dá uma canseira vá para a próxima parada.
nas pernas, mas elas se revezam como podem. Elas já
estão com clientes que compram toda semana. Sente por II. Carta 2 - As feiras estão indo bem. As hortaliças e outros
5 minutos com suas comadres de grupo, pensem juntas produtos estão sendo vendidas. Elas já fizeram amizade com outros
e, se possível, escrevam duas vantagens e dois desafios agricultores e estão trocando a produção de hortaliças por conserva
da venda direta, porta a porta, nesses jeito de vender que de jaca, pão e pupunha. Porém, na última feira choveu muito e
chamamos também de circuito curto. sobraram muitos produtos para vender. Ajude a pensar numa solução
para os alimentos que não foram vendidos e vá para a última carta.
I. Carta 3 – Mesmo em circuitos curtos, há sempre
II. Carta 3 - As mulheres da feira de Registro foram conhecendo
muitos detalhes a se pensar. Todas as sextas-feiras, Marta
um pouco mais o gosto dos clientes. Diversificar a produção foi
e Joana vão para a cidade para comercializar com o
importante, pois na feira quase todas as barracas têm alface e cheiro
ônibus das 6h30. Ajude essas mulheres a organizar a
semana com a produção dos pães e a ajeitar os ovos verde. Comente com suas parceiras do grupo como você planeja
e as hortaliças para chegar com qualidade para os a produção das hortaliças ou como tem pensado na venda de
consumidores. artesanatos.
UM JOGO PARA ENTENDER A CADEIA DA COMERCIALIZAÇÃO 79
III. Carta 2 – A lista de ofertas foi mandada para São Paulo. Pela internet, IV. Carta 3 – Aprovada a chamada pública, elas já estão realizando
os consumidores fizeram os pedidos. Esses pedidos foram enviados para as entregas e se preparam para inscrever-se novamente na chamada
esse grupo de mulheres por email. Ajude a dividir os pedidos entre as pública do próximo semestre. Elas se animaram com a possibilidade de
mulheres para que todas vendam e recebam igualmente. Para as entregas aumentar o valor em 30% vendendo seus produtos agroecológicos.
ocorrerem bem, elas precisam separar o pedido de cada grupo, além de Para isso, estão curiosas em conhecer a Organização de Controle Social
identificar caixas, organizar os alimentos bem para não estragar na viagem, (OCS), em que o grupo, de maneira auto-organizada e participativa
colher no momento certo, preencher a nota da produtora e organizar a certifica sua produção orgânica. Há algumas etapas para que isso se
contabilidade para realizar os pagamentos. Pense também na divisão das realize. A primeira é preencher uma ficha de cadastro do grupo com
tarefas. Como o trabalho pode ser dividido pelas integrantes do grupo? o nome das integrantes e da organização. Elas terão também que
apresentar a maneira como elas trabalharão, incluindo a quantidade de
III. Carta 3 – Faz parte da construção da confiança entre as agricultoras e visitas/mutirões entre elas, preencher um plano de manejo orgânico
os consumidores o retorno sobre como os produtos chegam. As entregas dizendo como elas cuidam da roça, ter registros da produção e das
estão acontecendo a cada 15 dias. Alguns comentam que as bananas não visitas realizadas e uma estimativa de produção anual.
estão amadurecendo bem algumas berinjelas chegaram muito amassadas Ajude o grupo a pensar nessa organização e quais as maneiras que elas
e a couve veio amarelada. Esses produtos não puderam ser vendidos na buscarão para ter o controle social e a construção da confiança entre
quitanda de alimentos agroecológicos. Como lidar com as perdas? Como elas para a certificação orgânica: fotos, registros de notas, relatórios,
superar os desafios da qualidade? entre outros instrumentos.
80 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO
CONSTRUINDO INDICADORES
DE AUTONOMIA DAS MULHERES*
O QUE É RESILIÊNCIA
A Christian Aid define resiliência como
um processo de desenvolvimento de
habilidades para aumentar a capacidade
dos indivíduos e das comunidades para jeto e fora dele, ferramentas participativas de
‘antecipar as mudanças, organizando- M&A, considerando os aprendizados de um
se e adaptando-se’ para responder com processo de formação feminista. Processos de
sucesso a situações de desastres, riscos ou avaliação que tenham como foco as desigualda-
oportunidades. A resiliência é entendida des de gênero que levam à injustiça social, que
tanto como um processo (passos dados questionem as dinâmicas existentes de investiga-
para chegar a um fim) quanto como uma
ção, que examinem questões de gênero, e que,
consequência (resultado final).
no limite, provoquem processos de mudança.
Nesse contexto, é essencial que os processos de
leviana, sugerindo relações causais que não se monitoramento e avaliação considerem as assi-
sustentam apenas para satisfazer exigências dos metrias de poder relacionadas à construção do(s)
doadores? Há uma necessidade de refinamento conhecimento(s) para garantir que as narrativas
de técnicas de monitoramento e avaliação que e as experiências das mulheres nas avaliações se-
deem conta das dimensões não-materiais e sub- jam valorizadas.
jetivas de projetos de desenvolvimento. Há alguns elementos que podem ser explo-
No caso específico do trabalho com as agri- rados para monitorar os processos de formação
cultoras do Vale do Ribeira, outros desafios se dentro de uma abordagem participativa.
colocam para a realização do monitoramento e
avaliação. Um avanço importante foi a realiza- CONSTRUIR UM PLANO DE M&A SISTEMÁTICO
ção das oficinas de levantamento de informações E REALISTA
nas comunidades, onde as mulheres puderam Independente da abordagem a ser adotada
apontar demandas e obstáculos. Na ausência de pelo monitoramento e avaliação, a construção
uma linha de base para o projeto, as informações de um plano, ainda que simples, quando do pla-
sistematizadas nesses encontros puderam indicar nejamento do projeto garante coerência entre
alguns direcionamentos para o M&A. Há obs- as diferentes partes da intervenção, além de ri-
táculos ainda no que se refere às distâncias e di- gor e transparência do próprio monitoramento.
ficuldade de acesso entre as comunidades envol- Um plano que defina uma linha de base para ao
vidas (assim como lacunas na infraestrutura de menos alguns indicadores centrais e estabeleça,
comunicação), ao tempo de vida relativamente dentro das atividades planejadas, momentos para
curto do projeto, à sobreposição das tarefas entre coleta de dados, pode integrar o M&A na execu-
as técnicas envolvidas na realização de atividades ção do projeto de forma mais orgânica, e reduzir
e à necessidade de reforçar ferramentas e capa- a carga de trabalho nos períodos de relatoria.
cidades de monitoramento disponíveis para a
equipe técnica. “NENHUM NÚMERO SEM HISTÓRIA, NENHUMA
HISTÓRIA SEM NÚMERO”
FERRAMENTAS PARTICIPATIVAS Desafiar a hierarquia dos dados significa
A experiência com as mulheres no Vale re- propor igualdade no tratamento da sua rele-
força a necessidade de reforçar, dentro do pro- vância, sem sobrevalorizar dados quantitativos
82 PRÁTICAS FEMINISTAS DE TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA
em detrimento dos qualitativos. Há diferentes ter um papel na descrição dos processos envol-
formas de produzir e expressar conhecimento vidos, na análise dos resultados e no julgamen-
e reconhecer as assimetrias no reconhecimen- to quanto ao resultado das atividades.
to dessas formas é um passo importante para
desenvolver ferramentas que captem evidências PROPOSTA DE INDICADORES
de forma mais ampla. Considerando os objetivos e resultados es-
perados do projeto “Construindo capacidades e
ASSEGURAR DIVERSIDADE NA COLETA DE DADOS compartilhando experiências para uma economia
Utilizar uma variedade de metodologias inclusiva’, propusemos alguns indicadores preli-
qualitativas, quantitativas e participativas per- minares que poderiam revelar os impactos dos ei-
mite revelar dinâmicas e mudanças de forma xos de formação feminista, de assistência técnica
mais abrangente e valoriza a diversidade de com base na agroecologia e de comercialização. A
perspectivas. Isso inclui valorizar métodos me- tabela abaixo inclui alguns destes indicadores su-
nos tradicionais de coleta de dados: por vezes geridos, de forma a dar seguimento à discussão so-
um vídeo sobre um evento ou registros de um bre o monitoramento do projeto. Tais indicadores
grupo de whatsapp são negligenciados como buscam jogar luz sobre tópicos como aumento na
meios de verificação, mas podem trazer infor- renda e na diversidade da produção das mulheres,
mações importantes sobre o desenvolvimento e incremento desta mesma produção (para venda e
impacto de atividades. Ainda que não possibi- auto-consumo), maior autonomia com relação a
litem análise estatística, representam excelentes insumos externos e ao trabalho dos maridos, au-
oportunidades para coleta qualitativa. Em tais mento da participação da juventude, capacidade
circunstâncias, é essencial estabelecer previa- de articulação e formação de redes e sistematização
mente com as participantes processos de con- de conhecimentos tradicionais.
sentimento sobre divulgação de informações. Esses aspectos não constituem de forma alguma
uma lista exaustiva, podendo ser revisados e acres-
PARA ALÉM DO MAPEAMENTO cidos de outros, mas podem, com uma quantidade
Considerando que a desigualdade baseada suficiente de dados, ilustrar dimensões importante
em gênero é sistêmica e estrutural, uma con- da trajetória de autonomia destas mulheres. Primei-
tribuição de um M&A participativo e de base ras rodadas de coleta de dados poderiam inclusive
feminista pode ser ir além de documentar as formar uma linha de base para comparações no
posições relativas das mulheres nos contextos futuro, caso a intervenção continue. Um plano de
onde vivem e sim fazer perguntas sobre as ra- monitoramento que contemple esse e outros indi-
zões que as colocam nessas posições. Esse en- cadores considerados importantes, com dados cole-
foque em dinâmicas de poder, particularmente tados continuamente e com participação ativa das
de gênero, deve pautar todo o processo de mo- mulheres dos grupos, certamente gerará insumos
nitoramento, em linha com o entendimento de adicionais e mais sistemáticos para reforçar a impor-
que o M&A é uma atividade política. Significa tância dessa experiência única de construção de uma
também que as participantes do projeto devem economia inclusiva.
MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO 83
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PRÁTICAS FEMINISTAS
DE TRANSFORMAÇÃO
DA ECONOMIA