MAIA, Eni. Educação Rural
MAIA, Eni. Educação Rural
MAIA, Eni. Educação Rural
O QUE MUDOU EM 60 ANOS? cadas do séc. XIX, animada por temas que despertam os sentimentos
nacionais como a "vergonha" do analfabetismo, tem aí mais um tema
Eni Marisa Maia * mobilizador: a educação para promover a volta ao campo.
RURALISMO PEDAGÓGICO,
A TÔNICA DOS DEBATES OFICIAIS Portanto, não se trata de uma educação qualquer. É interessante obser-
var o papel político que o discurso educacional cada vez com maior
O III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto (1980 - 1985) intensidade passa a desempenhar. Procura-se estabelecer uma relação di-
propõe como uma de suas metas prioritárias o incremento da educação reta entre a Educação e as condições de vida das populações. Se o ho-
no meio rural. A escolarização das populações rurais, todavia, não é mem urbano clama contra o desemprego e a carestia chega-se a questio-
uma questão que apenas recentemente venha merecendo destaque nos nar o valor da alfabetização que poderia estar provocando rejeição às
planos oficiais. ocupações inferiores que, até então, exercia conformado. Se não quer
permanecer na zona rural, o problema também deve ser tratado no ní-
Por volta de 1920, a ameaça que o aumento crescente da migração ru- vel educacional. Trata-se de uma escola inadequada que não sabe valo-
ral-urbana representou para a estabilidade social fez com que se pensas- rizar a vida no campo. Colocam-se, desta forma, num segundo plano ele-
se a Educação como instrumento eficiente para enfrentar a "questão mentos que são os primordiais na questão social: a situação econômi-
social". ca dessas populações e a estrutura que as determina.
O processo de urbanização no Brasil revestiu-se de características que Os debates sobre a educação rural que travam os políticos da década de
contribuíram para manter diferenças significativas na qualidade de vida vinte revelam a grave situação de instabilidade social do país na medida
dos pólos urbanos do interior e do litoral. Os núcleos urbanos, que se em que conseguiu até reunir na mesma campanha grupos de interesses
desenvolveram mais intensamente junto aos portos, atraíram a popula- opostos: o agrário e o industrial.
ção do campo. Os núcleos urbanizados do interior, na verdade, não pas-
savam de uma extensão das áreas rurais, dominados pelo paternalismo Pensava-se num determinado tipo de escola que atendesse as orientações
opressor das oligarquias e alijados do processo político. São, portanto, do "ruralismo pedagógico". Propunha-se uma escola integrada às condi-
evidentes, consideradas as condições de infra-estrutura precária do in- ções locais, regionalista, cujo objetivo maior era promover a "fixação"
terior, as razões que concorreram para que as indústrias se localizassem do homem ao campo. A corrente escolanovista reforçava essa posição
junto aos principais núcleos urbanos. Entre 1880 e 1920, a população "da escola colada à realidade", baseada no princípio de "adequação" e,
que trabalhava nas fábricas cresceu de aproximadamente 18.100 operá- assim, colocava-se ao lado das forças conservadoras. Isto porque a " f i -
rios para mais de 300.000. É este proletariado urbano que passa a rei- xação do homem ao campo", a "exaltação da natureza agrária do brasi-
vindicar através de sucessivas manifestações grevistas seus direitos de leiro" faziam parte do mesmo quadro discursivo com que a oligarquia
cidadão. rural defendia seus interesses. Por outro lado, o grupo industrial tam-
bém ameaçado, pelo "inchaço" das cidades e a impossibilidade de ab-
*Da Fundação Carlos Chagas de São Paulo. sorver a mão-de-obra, engrossava a corrente dos ruralistas.
Porém, admitir o peso que os fatores sócio-econômicos têm na determi- Para superar tais dificuldades, recomenda-se que: — a escola não pode
nação dos padrões de escolaridade na zona rural não significa, em abso- negar o mundo rural, onde o trabalho constitui um valor, e o trabalho
luto, negar a possibilidade de atuação da escola. Então, retomemos a infantil, além de ser uma necessidade, é um valor social; — . . . o ensino
questão inicialmente proposta: ministrado na zona rural tem que ser apropriado a essa realidade; — a
escola da zona rural deve ser uma agência de mudança.
III PSEC: A EDUCAÇÃO RURAL
DE NOVO "PRIORITÁRIA" Algumas constatações como a da formação urbana dos professores, da
escassez do material didático sugerem o desconhecimento da situação
Afinal, o que efetivamente mudou na escola rural nos últimos sessenta a omissão proposital dos dados ou uma tentativa de minimizá-los. No
A questão da ineficiência de verbas remete ao problema do autoritaris- A TRÁGICA SITUAÇÃO DOS SALÁRIOS DAS PROFESSORAS
mo na sua distribuição. Na vigência da "política dos governadores"
atribuía-se a aplicação inadequada de verbas à excessiva centralização. Ainda hoje, a contratação e permanência dos professores na maioria
Hoje, o autoritarismo se coloca de forma mais sutil, atribuindo aos mu- desses estados depende de critérios políticos, acarretando, ao final dos
nicípios a responsabilidade de custear a educação mas retirando, através períodos administrativos, demissões e eventuais contratações. Os salá-
de uma política econômica centralizadora, a possibilidade de custeá-la. rios do magistério primário na zona rural mantêm-se irrisórios, varian-
0 repasse, insuficiente, de verbas para o município, depende do Estado do de Cr$ 700,00 a Cr$ 900,00, alcançando, por vezes, um teto de
que, por sua vez, depende da União. Crescem os programas de assistên- Cr$ 2.500,00, através de complementação dos programas especiais para
cia financeira, visando reduzir as desigualdades regionais e que susten- o Nordeste (Prodasec, Pronasec, Pólo Nordeste).
Essa complementação vem causando, por incrível que pareça, transtor- ras. Essa solução, a mesma de sessenta anos atrás, se impõe, segundo os
nos aos professores rurais, face a seus atrasos ou desvios. Uma professo- técnicos regionais, considerando a dispersão da população na zona rural.
ra, recentemente, dirigiu-se a um programa radiofônico, fazendo um
Na opinião de alguns planejadores, a iniciativa mais adequada seria a de
apelo. Dizia ela: — "Eu sou contra esse programa de ajuda no ordenado
promover melhorias na casa da professora para que se adequasse às ne-
do professor. Porque antes era pouco, mas a gente recebia em dia. Ago-
cessidades do ensino. Entretanto, tal opção não é tranqüilamente aceita
ra, passa meses sem se ver dinheiro. . . ". pelos supervisores e pelos próprios professores envolvidos no ensino
rural.
Quanto à formação do professorado, os programas estaduais de Educa-
ção no Ceará, Bahia, Pernambuco e Piauí apontam um índice que varia São observações de supervisores rurais: "Já vi, muitas vezes, as escolas
de 60 a 87% de professores com qualificação a nível de 4a série primá- funcionando na casa das professoras. Ao mesmo tempo que ela dá aula,
ria. Conseqüentemente, o índice de produtividade do ensino primário cuida da cozinha, toma conta de um menino, atende a outro. Aí é uma
na zona rural é baixíssimo. A reprovação a nível da 1a série está em tor- coisa muito séria. O aluno fica muito tempo só. Normalmente, acho que
no dos 67% e no máximo 4% dos matriculados alcança a 4a série. Em atrapalha muito. Teria que haver alguma distância, um pouco, não mui-
alguns estados, como o Ceará, é difícil encontrar alunos na 4a série. to longe, porque ela não iria. Mas acho muito importante separar, divi-
dir."
Entretanto, para melhor compreender o fenômeno da reprovação na zo-
na rural é preciso considerar certos fatores que são inusitados quando se "As professoras fazem o possível; dão casa, dão tudo que tem. Quer di-
analisa o problema da "ótica urbana". A reunião em classes multiseria- zer, os banquinhos da casa dela, a mesa, tudo! E não há nenhuma re-
das confunde a própria professora que se mostra incapaz de identifi- compensa. Se o menino quebrar uma mesa dela, um banco, fica por isto
car a série que estão cursando os alunos. Em geral, a avaliação é feita to- mesmo. A disponibilidade é muito grande, a gente acha que é um tra-
mando como base o "livro adotado". Os alunos da 2a série são aqueles balho bonito, mas em termos de aprendizagem, deixa a desejar."
que estão no segundo livro, o que também não significa que tenham do-
minado seu conteúdo. Inexiste diferença entre os conteúdos básicos en- COMUNIDADE E PARTICIPAÇÃO:
sinados para a 2a ou para a 4a série. Os alunos avançam até onde chega AS NOVAS PALAVRAS DE ORDEM
o "saber" da professora e então, se permanecem na escola, repetem a
série que representa o limite máximo. As professoras, muitas vezes, resistem à escola funcionando na sua casa e
são levadas a assumir o problema, apesar do salário irrisório e das precá-
O depoimento dos técnicos da Secretaria retrata bem essa situação: rias condições de vida. O discurso da participação "comunitária", da
"Uma vez entrevistei uma professora que afirmou ter cursado até a 3a participação com "responsabilidade" (leia-se progresso, mas muita or-
série. Percebemos que não tinha nível de 3a série e perguntamos onde dem) domina a cena educacional na zona urbana e mais ainda, na rural.
estudara. Ela respondeu — 'Eu estudei aqui mesmo e não estudei mais A "comunidade" é a grande descoberta das autoridades. E em nome do
porque aqui não tinha mais saber pra mim'. Ou seja, ela alcançou o ní- fim do paternalismo e do assistencialismo procura-se desviar para pes-
vel de conhecimento de sua antiga professora e, então, o que ela sabe, soas que não detêm qualquer poder de barganha ou apoio político as so-
transmite para os alunos." luções que são de competência da administração pública.
UMA SOLUÇÃO DE 60 ANOS ATRÁS:
O documento do Ministério de Educação "Subsídios para o Planeja-
ESCOLA NA CASA DA PROFESSORA
mento da Educação Rural" (1979), coloca em destaque a participação
As escolas rurais funcionam em sua grande maioria na casa das professo- da comunidade (pag. 13), condição para, na sociedade atual, "fomentar
Como se pode observar pelas declarações abaixo, os técnicos com a me- E a escola frustra, tanto o estômago quanto a cabeça. Apesar da indiscu-
lhor das intenções acabam colaborando para reforçar uma situação de tível coragem, o baixo nível de conhecimento do professor e a ausência
injustiça: de qualquer metodologia faz com que o ensino mantenha característi-
cas medievais. O professor diz que faz assim: ensina, ensina, e o aluno
- "Seria muito bom se realmente a professora tivesse um local para en- reage, copiando, copiando, copiando. Entre aluno e professor não há
sinar. Nós temos experiência. Estamos implantando um sistema de su- mediação.
pervisão rural e temos professores solicitando ao prefeito que construa
uma salinha. Elas dão o terreno. E nós temos experiência que o pre- O processo que, evidentemente, privilegia a memorização e dificulta as
feito diz: — Eu não posso deslocar uma verba prá isso, mas comecem aí operações de raciocínio ou relacionamento, produz analfabetos que es-
com a comunidade, que eu ajudo." crevem frases, mas não sabem o que escreveram.
A merenda escolar tão alardeada como uma ajuda efetiva às populações E as verbas como sobreviverão? É imperdoável manipular as comunida-
carentes também não chega com facilidade à zona rural. Os técnicos das des que nada recebem, em nome da sua boa fé, para que assumam pro-
Secretarias de Educação apontam as normas da Campanha Nacional de blemas muito além de suas possibilidades. A questão não pode se resu-
Merenda Escolar como obstáculo à sua distribuição. Uma das regras es- mir em bons sentimentos cristãos.
tabelecidas é de que a merenda chegue às escolas que têm mais de 20 alu-
nos. Funcionando na casa da professora, sem condições físicas ou insta- Referência* Bibliográficas
lações adequadas, muitas vezes é impossível abrigar esse número. Outro
problema é o da faixa etária. A merenda deverá servir aos alunos de 7 a BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Da educação fundamental ao fundamen-
14 anos e na zona rural frequenta-se a escola primária até aos 18, 20 tal da educação. In: CONCEPÇÕES e experiências de educação
anos. Uma outra exigência é a de que haja um depósito para guardar a popular. São Paulo, Cortez, Autores Associados, 1980. (Cadernos
merenda. Em geral, a merenda fica estocada na sede do município e en- do CEDES, 1).
tão cria-se uma situação ainda mais absurda. Quem é o responsável por
fazer a merenda chegar à escola isolada? O prefeito? Ele se exime de tal BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Educação para o meio ru-
responsabilidade, declarando não ter condições de arcar com as des- ral; ensino de 1? grau. Brasília, 1979.
pesas. E então, freqüentemente, é a professora que tira do seu irrisório
salário o dinheiro para pagar o transporte no burro. Assim, garante um Subsídios para o planejamento da educação no meio rural.
reforço alimentar para o grupo com que está envolvida: seus vizinhos, Brasília, DDD, 1979. 53p.
afilhados, filhos, irmãos e acrescenta mais uma atividade não remune-
rada a suas atribulações cotidianas — o preparo da merenda. CALDEIRA, Clovis. Menores no meio rural: trabalho e escolarização.
Rio de Janeiro, INEP, CBPE, 1960.
As professoras se deslocam para buscar água e lenha. Como bem disse
uma supervisora: "Isto, no fim, dá o somatório da fraternidade, que é COSTA, Emília Viotti. Da monarquia à república; momentos decisivos.
uma coisa muito viva no pessoal. A sensibilidade prá repartir. Então, eu São Paulo, Ed. Ciências Humanas, 1979.
acho que isto é ainda o que sustenta a escola isolada."
DEMO, Pedro. A pobre educação pobre; alguns problemas da falta de
Pois bem, passados setenta anos de discussões sobre o ensino rural no recursos. Brasília, MEC, 1980.
país, o que se constata de mudanças concretas é quase nada. Evidente-
mente que não se trata de um problema apenas educacional; a questão PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos:
é muito mais ampla. O que mudou para melhor nas condições de vida contribuição à história da edicação brasileira. São Paulo, Loyola,
do homem pelo interior do Nordeste? 1973.
Todavia, a educação tem suas especificidades que merecem ser analisa- PINHEIRO, Paulo Sérgio. Política e trabalho no Brasil; dos anos 20 a
das. A escola rural sobrevive, alguns professores e alunos também... 1930. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.