A Menina de Futuro Torcido
A Menina de Futuro Torcido
A Menina de Futuro Torcido
Mia Couto
Joseldo Bastante, mecânico da pequena vila, punha nos ouvidos a solução da sua vida.
Viajante que passava, carro que parava, ele aproximava e capturava as conversas. Foi assim
que chegou de ouvir um destino para sua filha mais velha, Filomeninha. Durante toda uma
semana, chegavam da cidade notícias de um jovem que fazia sucesso virando e revirando o
corpo, igual uma cobra. O rapaz tinha sido contratado por um empresário para exibir suas
habilidades, confundir o trás para a frente. Percorria as terras e o povo corria para lhe ver.
Assim, o jovem ganhou dinheiro até encher caixas, malas e panelas. Só devido das dobragens
e enrolamentos da espinha e seus anexos. O contorcionista era citado e recitado pelos
camionistas e cada um aumentava uma volta nas vantagens elásticas do rapaz. Chegaram
mesmo a dizer que, numa exibição, ele se amarrou no próprio corpo como se fosse um cinto.
Foi preciso o empresário ajudar a desatar o nó; não fosse isso, ainda hoje o rapaz estaria
cintado.
Joseldo pensou na sua vida, seus doze filhos. Onde encontraria futuro para lhes distribuir?
Doze futuros, onde? E assim tomou a decisão: Filomeninha havia de ser contorcionista,
apresentada e noticiada pelas estradas de muito longe. Ordenou filha:
- A partir desse momento, vais treinar curvar-te, tevar a cabeça até no chão e vice-versa.
A pequena iniciou as ginásticas. Evoluía lentamente para o gosto do pai. Para acelerar os
preparos, Joseldo Bastante trouxe da oficina um daqueles enormes bidões de gasolina. A noite
amarrava a filha ao bidão para que as costas dela ficassem noivas da curva do recipiente. De
manhã, regava-a com água quente quando ela ainda estava a despertar:
- Essa água é para os seus ossos ficarem moles, daptáveis.
Quando a retiravam das cordas, a menina estava toda torcida para trás, o sangue
articulado, ossos desencontrados. Queixava-se de dores e sofria de tonturas.
- Você não pode querer a riqueza sem os sacrifícios - respondia o pai.
Filomeninha amarrotava a olhos vistos. Parecia um gancho já sem uso, um trapo deixado.
- Pai, estou a sentir muitas dores cá dentro. Deixa-me dormir na esteira.
- Nada, filhinha. Quando você for rica hás-de dormir até de colchão. Aqui em casa todos
vamos deitar bem, cada qual no colchão dele. Vai ver que só acordamos na parte da tarde,
depois dos morcegos despegarem.
1
Conto retirado do livro: Vozes Anoitecidas
Os tempos passaram, Joseldo sempre esperando que o empresário pas-sasse pela vila. Na
garagem os seus ouvidos eram antenas à procura de notícias do contratador. Nos jornais os
olhos farejavam pistas do seu salvador. Em vão. O empresário recolhia riquezas em lugar
desconhecido.
Enquanto isso, Filomena piorava. Quase não andava. Começou a sofrer de vómitos.
Parecia que queria deitar o corpo pela boca. O pai avisou-lhe que deixasse essas fraquezas:
- Se o empresário chegar não pode-lhe encontrar da maneira como assim. Você deve ser
contorcionista e não vomitista.
Decorreram as semanas, destiladas na angústia de Joseldo Bastante. Numa terra tão
pequena só se passa o que passa. O acontecimento nunca é indígena. Chega sempre de fora,
sacode as almas, incendeia o tempo e, depois, retira-se. Vai-se embora tao depressa que nem
deixa cinza para os habitantes reacen-derem aquele fogo, se gostarem. O mundo tem sítios
onde pra e descansa a sua rotação milenar. Aquele era um desses lugares.
O tempo foi-se enchendo de nadas até que, uma tarde, Joseldo escutou de um camionista a
chegada do destino: o empresário estava na cidade preparando um espectáculo.
O mecânico abandonou o serviço e rapidou para sua casa. Disse à mulher:
- Veste Filomeninha com seu vestido novo!
A mulher estranhou:
- Mas essa menina não tem vestido novo.
- Estou a falar o seu próprio vestido. O seu, mulher.
Puseram a menina de pé e meteram-lhe o vestido da mãe. Largo e comprido, via-se que as
medidas não condiziam.
- Tira o leno. Artistas não usam panos na cabeça. Mulher: trança lá o cabelo dela,
enquanto vou arranjar dinheiro da passagem do comboio.
- Vai onde arranjar o tal dinheiro?
- Não é seu assunto.
- Joseldo?
- Não me chateia mulher.