Direito e Marxismo
Direito e Marxismo
Direito e Marxismo
DIREITO E
MARXISMO
Tempos de regresso e a contribuição Marxiana para a Teoria Constitucional e Política
www.lumenjuris.com.br
Editor
João Luiz da Silva Almeida
Conselho Editorial
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Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
D598d
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-519-1388-8
Apresentação................................................................................................XIII
Capítulo I – Conferências............................................................................... 1
Cuando digo derechos humanos, también digo procesos de lucha
contra la dictadura del Capital....................................................................... 3
Manuel Eugênio Gandara Carballido
O tempo histórico e “O Capital” de Marx: centralidade do
futuro emancipatório na disputa sobre o presente e o passado.................. 23
Newton de Menezes Albuquerque
Socialismo para os ricos, liberalismo para os pobres”: o Golpe
de 2016 e a mercantilização dos direitos sociais......................................... 43
Rene José Keller
O Sujeito neoliberal, a “ditadura do algoritmo” e o identitarismo:
fragmentação dos movimentos sociais no contexto de um
capitalismo em crise civilizacional .............................................................. 59
Maria Beatriz Oliveira da Silva
Bolivia e Proceso de Cambio: caminhos e impasses para o
socialismo comunitário ................................................................................ 71
Daniel Araújo Valença
O Novo Constitucionalismo Latino-Americano a as suas
aproximações com o Marxismo: análise da forma comunal na Bolívia..........85
Gladstone Leonel Júnior
Capítulo II – Marx e o Direito..................................................................... 93
A crise do Capital e o papel do Direito do Trabalho ................................. 95
Eduardo Albuquerque de Souza
A efetivação da política de saúde e as suas dificuldades atuais ................115
Lucas Moreira Rosado
A estigmatização dos direitos humanos..................................................... 129
Jefferson Lee de Souza Ruiz
Função social do Direito e Marxismo.........................................................149
Dâmaris Lívia Pinheiro Damasceno
Fabiana Nogueira Coelho
Lucas Sampaio Dias Lourenço
Pedro Ângelo Pereira Mesquita
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima
Igualdade jurídica e dominação de classe ..................................................161
Rogério Guimarães Frota Cordeiro
Gabriel Landi Fazzio
O conceito de indivíduo na história do pensamento ocidental:
Kant, Marx e Nietzsche ...............................................................................175
Yago Barreto Bezerra
O direito e a teoria da renda fundiária: o IPTU como
instrumento de recuperação de mais-valias fundiárias no Brasil 189
Érica Milena Carvalho Guimarães Leôncio
André Felipe Bandeira Cavalcante
Sobre o método: Pachukanis como seguidor de Marx.............................. 209
Walber Nogueira da Silva
Capítulo III – Constituição e Marxismo.................................................... 225
A construção do direito sob a égide da filosofia política, da
construção moral e filosófica das classes sociais........................................227
José Raisson A. Holanda Costa
Constituinte de 1988: a promulgação de uma Constituição
democrática? Uma análise sob o pensamento de Lênin
e Rosa Luxemburgo ..............................................................................................239
Viviane Vaz Castro
Nadson Nunes Torres
Giulia Maria Jenelle Cavalcante de Oliveira
Mecanismos de participação popular nas cartas constitucionais:
analise entre a brasileira e boliviana...........................................................261
Carlos Eduardo Mota de Brito
Capítulo IV – História, Direito e Marxismo............................................. 281
Direito ao protesto: da crítica a violência à efetivação dos
direitos humanos......................................................................................... 283
José Augusto S. Neto
Guilherme Augusto Sá Barreto de Miranda
Entre libera e valquírias: a incompreensiva condição humana................ 303
Yago Barreto Bezerra
Francisca Kaline Oliveira da Silva
O exercício laboral como fator imprescindível para o
fornecimento da dignidade da pessoa humana...........................................317
Ingrid Teixeira Aguiar
Júlia Maia de Meneses Coutinho
Capítulo V – América Latina, Crises de Hegemonia e Marxismo.......... 333
A internacionalização da ciência e as possibilidades na relação
Sul-Sul a partir do caso brasileiro ............................................................. 335
Cecília Tavares Guimarães
Carla Luiza Cândido de Carvalho Freire
Jéssica Lorena de Araújo Silva
Joyce Pereira da Costa
Pablo de Sousa Seixas
Ana Ludmila Freire Costa
Anticomunismo: a igreja de mãos dadas com o Golpe de 1964.............. 347
Ronnan Thomas Oliveira da Cunha
O Movimento Indianista e sua influência para a concretização do
Estado Plurinacional da Bolívia................................................................. 363
Vítor Carlos Nunes
Partidarização do Sistema de Justiça no Brasil, fetichismo
ético-punitivo e o fim da crítica .................................................................375
Francisco Cardozo Oliveira
Nancy Mahra de Medeiros Nicolas Oliveira
Teoria Marxista como base teórica e metodológica do
Serviço Social: reflexões acerca da influência do marxismo
na construção do Código de Ética dos (as) Assistentes Sociais .............. 393
Emanuelle Monaliza de Sousa Gomes
Ferdinanda Fernandes Gurgel
Letícia Karoline Brito Medeiros Dantas
Thássila Tamires Batista Alves
Capítulo VI – Marxismo e Movimentos Sociais........................................413
Crise capitalista, o embate hegemônico e os desafios dos
intelectuais das classes subalternas ............................................................415
Eliana Andrade da Silva
Direitos LGBT e capitalismo: entre a organização social e os
processos de apropriação do capital............................................................431
Leonardo Gomes de Miranda
Maria Taynara Ferreira Bezerra
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Thariny Teixeira Lira
Emancipação política e emancipação humana: uma análise
marxista da teoria dos Direitos Humanos ................................................ 441
Laíze Gabriela Benevides Pinheiro
Extensão universitária em educação infantil e popular durante
o encontro dos Sem Terrinha, no assentamento Maísa,
da região de Mossoró/RN............................................................................453
Nardella Gardner Dantas de Oliveira
Vagner de Brito Torres
Romana Alves da Câmara
Juventude e organização política: uma análise do protagonismo
juvenil nas lutas sociais............................................................................... 467
Taisa Iara de Almeida Costa
Seria Marx ecologista?.......................................................483
Walber Nogueira da Silva
Shyene Maranhão Guedes de Freitas
Uma análise marxista acerca dos movimentos sociais e seus
integrantes não pertencentes às classes oprimidas.................................... 495
Giovanna Helena Vieira Ferreira
Gabriel Braga dos Santos
Capítulo VII – Mundo do Trabalho e Reformas Neoliberais.................. 509
A informalidade do trabalho como consequência do crescente
desemprego estrutural no Brasil..................................................................511
Jássira Simões dos Santos
Milena de Sousa Freitas
A PEC 287/2016 e a trabalhadora do campo: a Reforma
da Previdência como obstáculo ao acesso da aposentadoria
rural pelas camponesas................................................................................529
Vágner de Brito Tôrres
A relação entre o direito à educação na forma jurídica e sua
contradição com a efetiva realização deste direito: o caso da
contrarreforma do Ensino Médio............................................................... 549
Tibério Bezerras de Brito Baima - UFPB
José Eudes Baima Bezerra – MAIE/UECE
As condições de labor das trabalhadoras de cana em Japoatã – SE........ 563
Shirley Silveira Andrade
Nataly Mendonça
As modificações constantes do art. 394-a da CLT: reflexos do
avanço neoliberal na flexibilização dos direitos das mães
trabalhadoras sob a ótica da Reforma Trabalhista (LEI 13.467/17)........ 583
Milena de Souza Batista
Cooperativas e expansão da informalidade - formas atuais de
controle do trabalho ................................................................................... 599
Sthephane Dutra dos Santos
Reivan Marinho de Souza
Cooperativas e terceirização – formas de controle do Capital
sobre o trabalho no capitalismo contemporâneo.......................................611
Ana Rute Oliveira Duarte
Reivan Marinho de Souza
Educação e mundo do trabalho: uma análise dos processos
formativos voltados para a classe trabalhadora no âmbito da
educação profissionalizante, com enfoque no sistema S de ensino......... 623
Gabriel Vinicius Jesus Maia Medeiros
Marília Paula Carlos Costa
Entre o constitucionalismo liberal e o social – a defesa dos direitos
sociais do trabalhador em contraposição aos meios que garantam
a celeridade na tramitação dos processos na Justiça do Trabalho........... 639
Bento Herculano Duarte
Hilana Beserra da Silva
Experiência de atuação em CREAS de um município de pequeno
porte no RN: uma análise das dificuldades enfrentadas pelo
advogado enquanto técnico SUAS............................................................. 657
Magna Manuelle Ferreira Alves
Samia Dayana Cardoso Jorge
Fabiana Dantas Soares Alves da Mota
Nada a temer! Precisamos resistir! A contrarreforma trabalhista
e a precarização do trabalho....................................................................... 667
Glênia Rouse da Costa
Izabella Patrícia Brito da Silva
Maria Lucilma Freitas
O atual modo de gestão do capital e a retomada da escravização
na contemporaneidade................................................................................ 681
Alex Moura do Nascimento
Luiz Manoel Andrade Meneses
O Positivismo Jurídico da Periferia do Capital na Justiça
Trabalhista da Paraíba ................................................................................ 703
José Mário da Silva Sousa Filho
Os rebatimentos do neoliberalismo na política de saúde:
uma reflexão teórica.................................................................................... 725
Maciana de Freitas Souza
Débora Rute de Paiva Mota
Rodrigo Jácob Moreira de Freitas
Tamara de Freitas Ferreira
Reforma Trabalhista: a atuação sindical e a proteção ao trabalhador.....743
Bento Herculan Duarte
Hilana Beserra da Silva
Ana Cecília Alves Nôga
Lei Nº 13.467/2017: limites e possibilidades a direitos fundamentais
de mulheres transexuais e travestis brasileiras...........................................767
Dandara da Costa Rocha
Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes
Uma análise sobre a categoria trabalho a partir do filme
“segunda-feira ao sol”.................................................................................. 787
Thiago Henrique Lopes da Costa
Irinéia Raquel Vieira
Capítulo VIII – Direito Penal e Marxismo.................................................811
A construção política, legislativa e ideológica da proibição da
maconha no Brasil....................................................................................... 813
Douglas Diógenes Holanda de Souza
Dayane da Silva Mesquita
Luan Fonseca Araújo
A sociabilidade capitalista e a gênese da pena de prisão:
repercussões no atual grande encarceramento ..........................................831
Gênesis Cavalcanti
Júlio Ivo Celestino
Garantia de direitos na perspectiva dos(as) adolescentes em
cumprimento de medidas socioeducativas do Rio Grande
do Norte, Brasil............................................................................................851
Carmem Plácida Sousa Cavalcante
Joyce Pereira da Costa
Ilana Lemos de Paiva
Herculano Ricardo Campos
O relato mítico e sua linguagem persuasiva e ideológica:
um sintético ensaio acerca do mito da igualdade no direito penal...........871
Rodrigo Nunes da Silva
O trabalho na prisão: uma comparação entre as workhouses do
século XVII e o Projeto de Lei do Senado 580/2015................................ 877
Fernanda Vidal Mesquita
Roberta Calini Gomes Pereira
Os fatores socioeconômicos enquanto determinantes do delito:
a necessária abordagem crítica criminológica do sistema
penal brasileiro............................................................................................. 899
Rodrigo Nunes da Silva
Kátia Cristina Guedes Dias
Patriarcado e guerra às drogas: uma análise feminista marxista
do hiperencarceramento por crime de tráfico............................................919
Dayane da Silva Mesquita
Douglas Diógenes Holanda de Souza
Pornografia da vingança e violência contra a mulher: entre a
tipificação penal e os limites da forma jurídica......................................... 933
Maria Taynara Ferreira Bezerra
Leonardo Gomes de Miranda
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Thariny Teixeira Lira
Sistema Penitenciário e Capitalismo: relações entre a sociedade
que pune e aquela que produz.................................................................... 947
Karízia Gabriela leite Cavalcante
João Batista dos Santos Alves
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Adriana Dias Moreira Pires
Capítulo IX – Marxismo, Gênero e Raça...................................................961
A responsabilização pelo cuidado dos filhos e os impactos na
vida das mulheres........................................................................................ 963
Jakciane Simões dos Santos
Thanúsia Hensel da Cunha Ferreira
As religiões de matriz africana no banco dos réus: o Recurso
extraordinário 494.601 e a tentativa de proibição do abate
religioso de animais no Brasil..................................................................... 983
Afonso Falcão de Almeida Filho
Rayane Cristina de Andrade Gomes
Feminismo e marxismo: abordagens concomitantemente essenciais...... 997
Dacielle da Silva Ingá
Interlocuções entre o transfeminismo e o marxismo: uma análise
a partir da inserção da mulher trans no mundo do trabalho................. 1007
Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes
Dandara da Costa Rocha
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Interseções entre saúde das trabalhadoras rurais, gênero e Marx..........1019
Annie Lívia Torres de Albuquerque Araújo
Lázaro Fabrício de frança Souza
Mérito e interseccionalidade: uma análise sobre gênero raça e
renda com os ingressantes do curso de Direito da UFERSA
a partir do sistema de cotas sociais e raciais.............................................1037
Nayara Katryne Pinheiro Serafim
Mulheres guerreiras e de fé: feminismo, educação popular e
trabalho na comuna Luís Beltrame/MST em Natal/RN.........................1051
Lorena Cordeiro de Oliveira
Rayane Cristina de Andrade Gomes
O que é coisa de mulher?: reflexões acerca do trabalho considerado
feminino e do trabalho feminino não pago...............................................1071
Cínthia Simão
O silenciamento histórico da mulher do campo: violações domésticas
e familiares voltadas para uma perspectiva marxista.............................. 1083
Ingrid Nataly Fernandes de Sales
Júlia Gomes da Mota Barreto
Racismo e deslocamentos de pessoas não-brancas: uma abordagem
materialista e marxista...............................................................................1101
Amália Rosa de Moraes Silva
Sexualidade e direitos humanos: as “minorias sexuais” na
sociabilidade do capital.............................................................................. 1117
Artur Fernandes de Moura
“Somos a soma da diversidade, lutando por igualdade e por
transformação”: as particularidades da divisão sexual do trabalho
para as mulheres camponesas....................................................................1135
Gabriela Holanda Bessa de Lima
Larissa Ellem Alves da Silva
Larissa Souza Pinheiro
Romana Alves da Câmara
Um estudo sobre a condição de negras e negros no curso de
direito da UFERSA.....................................................................................1151
Luan Fonseca Araújo
Nayara Katryne Pinheiro Serafim
Uma análise do “feminismo mainstream” na realidade brasileira
enquanto mecanismo instrumentalizado a serviço da classe
dominante e reprodutora da desigualdade de gêneros e classe...............1169
Ana Letícia de Oliveira Bezerra Fernandes
Júlia Gomes da Mota Barreto
Uma releitura da ocupação da Mesa do Senado por senadoras:
nas perspectivas de gênero e classe........................................................... 1179
Camila Kayssa Targino Dutra
Verônica Palmira Salme de Aragão
Violência contra a mulher e o golpe de 2016...........................................1199
Maria Alice de Lima Lemos
Ana Caroline de Lima Silva Ferreira
Andréia Garcia dos Santos
Juliano Beck Scott
Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira
Apresentação
1 https://www.ucs.br/site/ucs/eventos/I_seminario_internacional_direito_marxismo
2 https://www.ucs.br/site/eventos/ii-congresso-internacional-de-direito-e-marxismo/
3 AUGUSTIN, Sergio. (Org.). Direito e Marxismo: meio ambiente. Vol. 4. Caxias do Sul: EDUCS,
2014. https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/Direito_e_marxismo_Vol4.pdf>. ISBN 9788570617415.
BELLO, Enzo; LIMA, Martônio Mont'Alverne Barreto; AUGUSTIN, Sérgio (Orgs.). Direito e
Marxismo: materialismo histórico, trabalho e educação. Vol. 1. Caxias do Sul: EDUCS, 2014. 384p.
XIX
resumos, artigos e palestras, contribuindo para a divulgação, a atualização e a
discussão da obra marxiana no Brasil contemporâneo.
A obra que ora apresentamos conta com nove capítulos, que trazem tra-
balhos elaborados a partir dos resumos expandidos apresentados nos Grupos
de Trabalho (GTs) “Marx e o Direito”, “Constituição e Marxismo”, “História,
Direito e Marxismo”, “América Latina, Crises de Hegemonia e Marxismo”,
“Marxismo e Movimentos Sociais”, “Mundo do Trabalho e Reformas Neoli-
berais”, “Direito Penal e Marxismo”, “Marxismo, Gênero e Raça”. Ademais,
abrimos o livro com as conferências e palestras que foram sistematizadas em
textos pelos próprios autores e autoras, ao redor dos temas “Reificação: Lei
e Democracia em Marx”, “A tensão entre capitalismo e direitos humanos”,
“Estado de Exceção Constitucional no Capitalismo”, “Cultura, Liberdade
de Manifestação e Democracia”, “Marxismo e questão racial”, “O Capital:
Teoria da História”, “Movimentos Sociais e Limites da Democracia”, “Novo
Constitucionalismo na América Latina”, “Teoria social marxiana e marxis-
ta: aportes para a luta”.
Cada vez mais se mostra necessária a discussão da obra marxiana. A força
da dialética materalista e de uma profunda historicidade crítica do pensamento
de Karl Marx auxilia na compreensão do fenômenos econônicos e políticos dos
dias de hoje. Se é verdade que não se pode cobrar de nenhum pensador
XX
análises sobre peculiaridades e problemas que inexistiam na época de sua pro-
dução intelectual, por outro lado os episódios recentes que comprovam a volta
da xenofobia, da precarização do trabalho, da criminalização da pobreza e dos
movimento sociais ampliados remetem à necessidade de se compreender tais
fenômenos pela ótica do concreto. Desta forma, observar como o Direito se
localiza neste complexo panorama é uma obrigação imposta a todos os juristas,
embora não se possa ser ingênuo a ponto de pensar que logo os juistas irão
analisar criticamente este quadro de realiade, menos ainda lançando mão de
categorais como luta de classes, por exemplo.
As ferramentas com que Karl Marx e os marxistas analisam a realidade
têm a muito dizer sobre os recentes acontecimentos no Brasil. A “legalidade
que nos mata”, como escreveu Engels, fora criada pelos partidos da ordem,
não para ser necessariamente cumprida, mas para ser tolerada até o momen-
to em que não passe de uma “ilusão constitucional”, como advertiu Lênin.
Ter a coragem de assim compreender o golpe contra a incipiente democracia
brasileira de 2016 e seus desdobramentos na América do Sul, é também uma
tarefa de juristas que rejeitam a explicação puramente normativa e ingressam
no território das palavras e ações concretas.
Registramos a relevante contribuição da coletividade reunida em torno do
GEDIC, que construiu esta terceira edição com muita dedicação, carinho e
competência: Adriana Dias Moreira Pires, Adriele Jairla de Morais Luciano,
Afonso Falcão de Almeida Filho, Ana Caroline Melo Carvalho, Ana Flávia
Oliveira Barbosa de Lira, Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes, Carlos
Eduardo Mota de Brito, Dacielle da Silva Ingá, Dayane da Silva Mesquita,
Dandara da Costa Rocha, Evillin Lissandra Cosme Santana, Fabiana Noguei-
ra Coelho, Gabriel Braga dos Santos, Gabriel Vinicius Jesus Maia Medeiros,
Giovanna Helena Vieira Ferreira, Jose Eider Madeiros, Lijohara Julia de Sá
Souza, Luan Fonseca Araújo, Luine Emmile Lima e Silva, Maria Taynara Fer-
reira Bezerra, Marilia Paula Carlos Costa, Nayara Katryne Pinheiro Serafim,
Pedro Ângelo Pereira Mesquita, Raissa Alves da Silva, Rayane Cristina de
Andrade Gomes, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Thais Frota Ferreira Caval-
cante, Vitor Carlos Nunes.
No mesmo sentido, cabe consignar o trabalho da equipe de revisão e
formatação dos textos que compõem este livro, sem a qual esta empreitada
não seria possível: Afonso Falcão de Almeida Filho, Anna Cecília Faro Bonan,
Dacielle da Silva Ingá, Felipe Romão de Paiva, Larissa de Paula Couto, Rayane
XXI
Cristina de Andrade Gomes, Ronaldo Moreira Maia JúniorPor fim, desejamos
que esta obra proporcione contribuições a estudos e debates, fomentando a
renovação do pensamento crítico, no anseio pelo advento do IV Congresso
Internacional Direito e Marxismo.
Fortaleza, Mossoró, Niterói, Caxias do Sul, 30 de abril de 2019.
XXII
Capítulo I
Conferências
1
Cuando digo derechos humanos,
también digo procesos de lucha contra
la dictadura del Capital
Introducción
La abstracción de las condiciones socio-históricos ha permitido a la ideología liberal
fragmentar las distintas dimensiones que conforman la realidad social; así, ha hecho
posible formular un discurso de los derechos atendiendo a aspectos estrictamente
jurídicos sin tener que dar cuenta de las dimensiones política y económica.
Cuando asumimos los derechos humanos más allá de reivindicaciones
específicas y nos preguntamos por las razones estructurales que hacen que
en nuestra sociedad se mantengan y reproduzcan relaciones de dominio,
explotación y exclusión, tenemos que preguntarnos si las formas de organización
socio-económica, si los modelos políticos y los marcos civilizatorios, que definen
determinadas relaciones sociales, contribuyen o no a la satisfacción de tales
condiciones para todos y todas. Asumir críticamente los derechos humanos nos
debe llevar no sólo a ver si un determinado derecho está siendo garantizado,
sino a un análisis de nuestra sociedad, intentando determinar qué causas
estructurales (modelo de civilización, relaciones sociales de producción, sistemas
socio-culturales, formas de organización política) establecen una determinada
configuración que hace imposible la vida digna para todos y todas (incluida la
naturaleza). Este análisis no niega acciones específicas más sectoriales, sobre
derechos concretos, pero exige una comprensión del conjunto capaz de orientar
una práctica realmente transformadora.
3
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
económica, a la vez que logra que se asuman como naturales los imperativos
requeridos por la acumulación privada de capital (Cfr. Gallardo, 2007, p. 3). Tal
y como la describe Herrera Flores (2005b):
2 En relación con el capitalismo como orden que implica además del sistema económico, una estructura
social, un modelo de cultura y una estructura política, puede verse la obra de Roger Garaudy. La
alternativa. Madrid: EDICUSA, 1973, pp. 63-64. Sobre el desarrollo y contenidos del capitalismo,
véanse el texto de Karl Polanyi. La gran transformación. Crítica del liberalismo económico.
Madrid: La Piqueta, 1997; también HINKELAMMERT, F y MORA, H. Hacia una economía para
la Vida. San José: DEI, 2005.
5
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
Pero, más aún, tal y como señalan laval y Dardot en su texto “La nueva
razón del mundo”, el capitalismo neoliberal, antes que una ideología o
una política económica es, de entrada y ante todo, una racionalidad. En
consecuencia, tiende a estructurar y a organizar no solo la acción de los
gobernantes, sino también la conducta de los propios gobernados. (Cfr.
Laval y Dardot, 2013, p. 15).
La racionalidad neoliberal tiene como característica principal la
generalización de la competencia como norma de conducta y de la empresa
como modelo de subjetivación. Así, el neoliberalismo se puede defirnir
como el conjunto de los discursos, de las prácticas, de los dispositivos que
determinan un nuevo modo de gobierno de los hombres según el principio
universal de la competencia (Cfr. Laval y Dardot, 2013, p. 15). Nuestras
sociedades de mercado están conformadas por sujetos aislados, que además
se perciben entre sí como competidores que deben orientarse por el logro del
máximo beneficio personal. En ellas, el consumo (o al menos la expectativa
de consumo, cuando consumir no es posible) se convierte en “lugar estructural
y autónomo de relaciones sociales, una forma nueva de poder, de derecho y de
conocimiento.” (Santos, 2003, p. 315)
En este “horizonte de sentido”, en el marco de este proyecto societal, se
configura el régimen civilizacional que Boaventura De Sousa Santos ha
definido como fascismo social, caracterizado por diversas formas de marginación
(apartheid social, fascismo de la inseguridad, fascismo paraestatal, fascismo
financiero…) de extensas masas de población que quedan excluidas de toda
forma de contrato social: jóvenes de guetos urbanos populares, campesinos,
trabajadores del posfordismo, etc. (Cfr. Santos, 2003, p. 83).
Ante este panorama, los desafíos teóricos y prácticos (siempre entendidos
como dimensiones de la praxis humana, no como momentos separados), son
de inmenso calado. Se necesita desnaturalizar las supuestas evidencias que
el capitalismo ha logrado instalar como forma de pensamiento; se requiere
imaginar alternativas concretas que permitan anudar el lazo social sobre la
base de otra dinámica histórica que no sea la del capital. Tal tarea, para que
sea real y efectiva, solo será posible en el diálogo permanente entre los actores
sociales que habiendo reconocido la necesidad de esta transformación, asumen
el compromiso de hacerla posible (Cfr. Gruner, 2011). Por eso, las reflexiones
que siguen pretenden ofrecer algunos aportes para pensar y actuar una teoría
anticapitalista de los derechos humanos.
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
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del mercado; son contrarios a “la” (su) racionalidad económica y, por tanto, son
descartados. Nuevamente la estrategia pasa por simplificar para generalizar una
alternativa, su alternativa: su racionalidad se presenta como “la” racionalidad.
Frente a ello, un pensamiento crítico debe visibilizar las consecuencias de esta
práctica y desestabilizar los discursos que pretenden legitimarla, haciendo ver que
tal racionalidad, la inherente al modelo capitalista, no se corresponde con un
orden natural y objetivo de las cosas, no es ni universal ni necesaria, no es reflejo de
ningún tipo de relacionamiento original del ser humano; es, sí, una construcción
social que, por tanto, está sometida al discernimiento de los actores sociales en
su quehacer socio-histórico (Cfr. Gallardo, 2008, pp. 22-23). Veamos entonces
algunos aportes que pueden ser útiles para la construcción de ese pensamiento.
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una respuesta, que, sin embargo, no será posible sino desde los derechos
humanos mismos. Por tanto necesitamos una crítica de la formulación de los
derechos humanos de las declaraciones del siglo XVIII. (2003, p. 461)
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
3 De ello da cuenta, por ejemplo, la decisión de la Corte Suprema de Justicia de EE.UU. del 21 de enero
de 2010, emitida en el caso "Citizens United vs. Federal Election Commission" en la que se elimina
el límite de financiación a las campañas electorales por parte de las grandes empresas. Resulta difícil
suponer que esa financiación no implicará luego cuotas de poder y definición de acciones por parte
de los gobiernos en función de los intereses de las empresas.
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
afecten los intereses de las empresas, sin que ocurra lo contrario obligando a las
empresas a resarcir los daños causados a las poblaciones.
En busca de brindarnos instrumentos para llevar adelante los proyectos de
sociedad en los que creemos, convendría, por una parte, afianzar y desarrollar
las herramientas legales con las que ya contamos, tanto en el plano nacional
como en el internacional, y avanzar en el servicio que el Estado debe prestar
supervisando, controlando y sancionando las acciones por parte de las empresas
que afecten la calidad de vida de la gente; pero, al mismo tiempo, podemos
pensar en construir y desarrollar otras herramientas conceptuales, jurídicas,
políticas, que permitan actuar también en los escenarios que la globalización
ha ido definiendo. Se trata de construir y consolidar nuevas formas de control
democrático que permitan atender a las asimetrías creadas (y, porque creadas,
susceptibles de ser transformadas), sometiendo así a actores hasta ahora no
considerados por la doctrina dominante sobre los derechos (Cfr. Pisarello,
2004). Evidentemente, esta construcción implicará un gran esfuerzo creativo,
no exento de riesgos, y una gran osadía política para definir los mecanismos,
instrumentos y sistemas de protección necesarios.
El criterio para orientarnos en este terreno lleno de desafíos debe ser siempre
aquello que más favorezca la construcción de vida digna para todos y todas, pero
empezando por los y las que se encuentran en condiciones más precarias para
formular y desarrollar sus proyectos de vida: personas y colectivos sometidas a
relaciones de explotación, exclusión y subalternización estructural.
Bibliografía
18
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
19
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
______. El sujeto y la ley. El retorno del sujeto reprimido. Heredia: EUNA, 2003.
______. La maldición que pesa sobre la ley. Las raíces del pensamiento
crítico en Paulo de Tarso. San José de Costa Rica: DEI, 2010.
20
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
______. La caída del Angelus Novus: Ensayos para una nueva teoría social.
Colección En Clave de Sur. 1ª ed. Bogotá: ILSA, 2003.
21
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
22
O tempo histórico e “O Capital” de Marx:
centralidade do futuro emancipatório na
disputa sobre o presente e o passado
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3 “Os economistas procedem de um modo curioso . Para eles, há apenas dois tipos de instituições, as
artificiais e as naturais. As instituições do feudalismo seriam artificiais, ao passo que as da burguesia
seriam naturais. Nisso, eles são iguais aos teólogos , que também distinguem entre dois tipos de
religiões. Toda religião que não a deles é uma invenção dos homens, ao passo que sua própria religião
é uma revelação de Deus. Desse modo, houve uma história, mas agora não há mais.” Marx, Karl.
Miséria da Filosofia. p.113.
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4 Pachukanis, Eugeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos 1921 -1929. São Paulo:
Sundaermann, p.94, 2017.
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poder nu. Da observância pura e simples aos comandos aos aparatos privados
e estatais, agora posta-se á serviço do mercado. Dinâmica de poder absorvida,
por sua vez, pelo azeitamento de uma temporalidade instantânea, fundada na
circulação alucinante do dinheiro e da mercadoria em consonância com a mun-
dialização do Capital. A temporalidade na ordem das mercadorias, cada vez mais
afasta-se das pessoas, da mundividência de seus carecimentos, genuflexando-se
aos requerimentos do Capital, do espaço-tempo de sua produção e reprodução
ampliadas, o que, por sua vez, tem dado azo a transição para a constituição de
Estados de Exceção.
Aliás, o positivismo lógico-jurídico mais do que isolar o direito e sua produ-
ção da história, também assim procede em relação ao Estado como marco insti-
tucional de preservação da lógica do sistema. Em relação a este, estabelece uma
“recriação” de seu poder, extirpando tudo que não for normativo, notadamente
aquilo que for histórico, entendendo-se por tal, as possibilidades alternativas
do “tempo instituinte”.Procede-se desta forma, a dogmatização, ao enclausura-
mento do Estado e do Direito em si mesmos, interditando-lhe a crítica sobre a
natureza de suas instituições, aos interesses que o conformam.
Carré de Malberg, em passagem sintética condensa tal orientação positi-
vista com acuidade ao citar Jellinek, outro expoente do positivismo norma-
tivista antihistórico:
5 Malberg, Carré. Teoria General del Estado. México: Fundo de Cultura Economica, p. 43, 2001.
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O tempo utópico do “ainda não existente”, dito por Ernest Bloch, atualiza as
potencialidades encerradas de futuro presentes na liberação do trabalho. A utopia
e a intensidade interior do vivido, rompendo-se com a instrumentalidade aliena-
da do tempo do Capital, projeta-se em variados espaços. Como referiu-se Bloch8:
7 Marcuse, Hebert. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Unesp, p.81, 1998.
8 Bloch, Ernest. O Princípio Esperança, p. 157. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
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Conclusão
O tempo é matéria controversa, suscetível a interpretações múltiplas se
observarmos a história. Há o tempo estáticos dos conservadores, dos morige-
rados costumes de antanho nas sociedades pré-modernas; há o tempo meticu-
loso dos afetos, da vida privada com seus hábitos de província nos séculos an-
teriores; há o tempo veloz, marcado pela instantaneidade do ciberespaço, dos
circuitos comunicacionais, dos deslocamentos vertiginosos da mercadoria em
tempos recentes. Existe ainda outros tempos, quase todos interditados pela
voragem da dinâmica do capitalismo financeiro, homogeneizador, intoleran-
te, autocrático, como o tempo dos profetas, da secularização revolucionária,
dos afetos expectante por um futuro emancipatório. Tempos estes, abertos,
porosos as subjetividades, as variâncias dos espaços, das culturas,das pulsões
jurígenas por novos direitos.
A grosso modo, numa síntese generalizante, diria que vivemos sob a égide
do tempo do Capital, da mercadoria figurado em Deus Dinheiro. A unifi-
cação do mundo fez-se, sob certo sentido, a partir desse império dos deuses
pagãos da indústria, esmagando distinções, identidades multitudinárias, con-
travalores de resistência a grana.
Marx foi um pensador audaz, corajoso, compromissado com o humani9smo
radical, com a cabeça mergulhada nos livros, na apreensão dos sistemas filosó-
ficos, teorias políticas, literatura e a larga acepção da cultura iluminista, mas
também tinha os pés cravados no chão, na imanência das lutas, dos processos
de crítica real, concreta, ao capitalismo e sua dinâmica criativa e destrutiva.
Nadou contra a corrente, insurgiu-se contra o pensamento único, determinista
da ciência, do linearismo histórico, não obstante ser constantemente acusado
do contrário. Por isso, contestou frontalmente a noção homogênea de tempo
forcejada pelo capitalismo. Buscou dá voz aos silenciados, aos operários, às na-
ções subjugadas pelo colonialismo, às dissonâncias ocultadas pelo positivismo,
ou mesmo pelos idealismos morais mistificatórios da realidade em sua época.
Daí a importância de sua obra, pelas potencialidades ainda não totalmente
exploradas em relação as dimensões emancipatórias de um projeto alternativo,
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Referências bibliográficas
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Socialismo para os ricos, liberalismo
para os pobres”: o Golpe de 2016
e a mercantilização dos direitos sociais
Introdução
Uma das discussões políticas mais acaloradas ao longo dos anos de 2015-2016
foi se a queda da ex-presidenta Dilma Rousseff foi resultado de um processo le-
gítimo de impeachment ou se foi um Golpe de Estado2. No contexto regional, já
se tinha observado no Paraguai discussões semelhantes após as deposições do
ex-presidente Fernando Lugo, em 2012, bem como do ex-presidente de Hondu-
ras, Manuel Zelaya, em 2009. Os casos até então isolados não permitiram uma
reflexão mais ampliada de como tem ocorrido o término de alguns governos
de “esquerda”3 na América Latina, sendo que o ocorrido no Brasil pode ser o
indício da formação de um padrão.
Ao contrário dos Golpes de Estado ocorridos na América Latina no século
XX, em que a remoção de governos de “esquerda” era procedida à força, com
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4 No contexto latino-americano, a última tentativa de seguir esse molde “tradicional” de golpe foi
experimentada pelo então presidente Hugo Chávez, da Venezuela, em 2002, quando foi detido
por militares por 47 horas, sendo dissolvida a Assembleia Nacional e o Supremo Tribunal. Após
intensa pressão popular, Chávez retornou ao poder, sendo possível que esse fracasso explique a
mudança de estratégia.
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geral examinar um dos fatores responsáveis pela queda de Dilma Rousseff, que
é o aspecto econômico, i.e., o fundamento material do Golpe.
A primeira parte é dedicada à análise do papel ideológico e concreto
cumprido pela crise econômica no esmorecimento do governo de Dilma,
examinando a tentativa de imposição da racionalidade neoliberal. A se-
gunda, por sua vez, examina como o retorno do neoliberalismo constitui
uma ameaça aos direitos sociais, tendo em vista a sua lógica de oferecimen-
to. Para tanto, propõe-se o estabelecimento de um critério objetivo para o
exame dos projetos político-econômicos brasileiros, a partir da adoção da
teoria do valor, de Karl Marx. O método guiador do estudo é o dialético,
na fundamentação materialista.
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como uma pessoa em carne e osso, que porta os mais diversos sentimentos
humanos. Por vezes, o mercado está nervoso, agitado, em outras ocasiões está
esperançoso, animado, ao reagir às informações provenientes da ação do gover-
no. Isso recorda um fato curioso, quando Lula era ainda presidente do Brasil,
em 2004, e havia o boato de que o presidente do Banco Central, Henrique Mei-
relles, seria demitido. Distribuindo castanhas às pessoas que acompanhavam a
cerimônia de lançamento do Programa Nacional de Florestas, Lula disse: “Está
nervoso o mercado? Eu não estou, estou calmo”. Segundo consta, a frase fez
com que o mercado esquecesse a boataria (LULA apud ÉPOCA, 2004).
Essa mesma calmaria não foi experienciada por Dilma Rousseff, que sucum-
biu formalmente pela abertura de créditos suplementares (“pedaladas fiscais”),
ainda que a denúncia apresentada por crime de responsabilidade tenha ressal-
tado as tantas crises que estava sujeita, inclusive a econômica. Por isso, é impor-
tante lembrar que ao lado do real existe o semblante, como na tradicional divi-
são entre essência e fenômeno aprendida na filosofia marxista (KOSIK, 2011, p.
18), que nada mais é do que a aparência falsa do real. Ainda que o semblante
do impeachment seja o crime de responsabilidade, o real tem seus pés fincados
na exploração dos dados econômicos negativos do governo Dilma.
No exato dia em que o Senado Federal iria votar a admissibilidade do pro-
cesso de impeachment na casa, em 12 de maio de 2016, que coincidiria com a
assunção interina de Michel Temer à presidência, o jornal “O Globo” lança a
seguinte matéria: “Com saída de Dilma, mercado vê chance de retomada da
confiança econômica” (CARNEIRO, 2016). Aqui, encontramo-nos em um ter-
reno perigoso, em que a democracia sucumbiu ao real da economia, diante da
necessidade de prover o crescimento econômico almejado pelo mercado, que a
ex-presidenta Dilma supostamente não teria condições de atender.
Na obra responsável pela sua expulsão do Partido Comunista Francês, Ro-
ger Garaudy (1970, p. 43) bem ilustrou o culto do crescimento econômico na
“religião dos meios”, em que um economista pode gracejar sobre um cidadão
que quando chegar no céu será interrogado por São Pedro, o qual, para decidir
sobre o encaminhamento ao paraíso, purgatório ou inferno, irá perguntar: o
que você fez para aumentar o PIB? Não é preciso mencionar qual o destino de
Dilma Rousseff quando amargou uma queda de 3,8% em 2015, depois de um
crescimento pequeno de 0,5% em 2014, inicialmente anunciado como 0,1%.
O crescimento converteu-se na antonomásia do progresso, não importando
que o critério econômico de aferição do sucesso tenha se concentrado no
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5 “O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe
que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liberdades e capacidades
empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos
direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar
uma estrutura institucional apropriadas a tais práticas” (HARVEY, 2014, p. 12).
6 “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional
ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” (PLANALTO, 1988).
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7 “Art. 171. São consideradas: I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua
sede e administração no País; II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo
esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e
residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo
da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do
poder decisório para gerir suas atividades. § 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira
de capital nacional: I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver
atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento
do País; [...] (Revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)” (PLANALTO, 1988).
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Pela segunda vez, eu vou votar pelo impeachment e, sem dúvida nenhuma,
acompanhando aqueles aposentados, pensionistas e idosos que querem
que eu vote dessa maneira. Pela recuperação da economia brasileira,
pelo combate à recessão e pela garantia de emprego para 10 milhões de
trabalhadores desempregados, meu voto é “sim” (SÁ apud CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 2016).
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Após o apoio maciço dos setores empresariais ao golpe, resta apenas inda-
gar: qual o resultado do Golpe à esfera econômica? A resposta foi antecipada
por Marx (2016, p. 78), ao examinar o Golpe francês de 1851: “O governo da
burguesia nunca foi tão absoluto, nunca ela ostentou com tanta prepotência
as insígnias da dominação”. Colocando em prática um projeto político diverso
do eleito, Michel Temer não tardou para implementar medidas alinhadas ao
liberalismo libertário propugnado pelos setores empresariais, não para eles pró-
prios, que passaram a demandar benefícios do Estado, mas principalmente para
a camada pobre da população.
Grande parte da “esquerda” brasileira foi pega de surpresa com a proposi-
ção, pelo governo de Michel Temer, da Proposta de Emenda Constitucional nº
241/55, aprovada (EC nº 95/2016) para limitar os gastos públicos primários do
governo federal por vinte anos, inclusive os relativos a ensino e saúde. Mesmo
entre os que se posicionavam contrários a medida, não se sabia ao certo de onde
ela teria partido ou com base em que fora pensada.
O que se negligenciou no debate é que se trata da aplicação pura e simples
dos ditames da ortodoxia liberal da Escola de Chicago, preconizada por Milton
Friedman e Rose Friedman, na obra “Livre para Escolher”. Os autores propõem
limites aos gastos públicos federais por meio de Emenda à Constituição, tal qual
adotada no Brasil, a fim de restringir o orçamento do governo: “isso acabaria
com a tendência de um governo cada vez maior, não haveria reversão. [...] Uma
redução gradual de nossa renda que o governo gasta seria uma contribuição
importante para uma sociedade mais livre e mais forte” (FRIEDMAN; FRIE-
DMAN, 2015, p. 429)8.
O congelamento dos gastos públicos em âmbito federal, seguindo a orto-
doxia liberal, tem uma repercussão direta para o modo pelo qual as pessoas
acessam os mais variados direitos sociais, em pormenor a classe trabalhadora.
Ao invés do seu fornecimento ocorrer por meio do Estado, que obtém receita
derivada (tributos) para o custeio, a limitação de gasto com o aumento popu-
lacional fará com que as pessoas passem a “adquirir” os direitos pela via do
mercado, como qualquer outra mercadoria.
8 Na obra consta até mesmo o modelo de Proposta de Emenda Constitucional, sendo que a diferença
entre a que foi aprovada no Brasil e a defendida pelos Friedman é somete o índice de reajuste.
Enquanto a proposta deles para os Estados Unidos da América o orçamento deveria ser corrigido
pelo crescimento do Produto Interno Bruto, no Brasil optou-se pelo índice de inflação oficial.
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Não é à toa que Alain Badiou (2017, p. 27) brinca que estamos assistindo a
peça da “democracia imaginária”, não havendo a representação de outra no es-
tágio atual do capitalismo, lembrando que quando o governo decide dar bilhões
ao patronato, sem contrapartida, ele atua na peça com convicção: “que diabos
poderia fazer senão isso?”. Ou seja, o semblante do golpe – o crime de respon-
sabilidade – era uma encenação do real oculto, i.e., os interesses econômicos de
determinados setores da economia brasileira.
Por falar na divisão filosófica entre semblante e real, que tem acompanhado o
estudo até aqui, Badiou (2017, p. 21) o explicita também a partir de uma anedota,
que foi a morte do dramaturgo francês Molière. Considerado um dos mestres da co-
média satírica, Molière faleceu enquanto encenava a peça “O Doente Imaginário”,
fazendo com que o real tenha frustrado a representação, sendo “o momento em que
o semblante se torna mais real do que o real de que ele é o real”. Em 2017, ocorreu
algo similar com o músico Bruce Hampton, que comemorava o seu 70º aniversário
em um show com seus amigos, quando se atirou no chão e os músicos seguiram
tocando. O que se imaginava ser uma performance, era o seu trágico destino. Entre
nós, o impeachment foi somente o semblante do real econômico, ocorre que, ao
instante que todos focalizavam o processo, que é a sua representação, o real é que
a própria democracia falecia enquanto estava sendo encenada como impeachment.
Considerações finais
Os processos políticos turbulentos, tais quais vivenciados no Brasil ao longo
dos anos de 2015-2016, somente terão a sua leitura sedimentada a partir do dis-
tanciamento promovido pelo decurso do tempo, com a sua consequente incur-
são nos tratados de história. O que se tenciona, por ora, é o duelo de narrativas
e a tentativa de firmar uma das versões como a que mais fidedignamente irá
denotar o período. Ccomo não assumo nenhuma postura de neutralidade ou
imparcialidade científica, o presente artigo constitui uma defesa da existência
de um Golpe de Estado em 2016. A focalização do aspecto econômico ocorreu
porque constitui o fundamento material que corroborou à sua perfectibilização.
Rompendo com estudos eminentemente abstratos, que discutem categorias
teóricas do marxismo sem a correlata base material, o presente estudo teve como
intento maior explicitar a validade analítica da teoria do valor, na formulação de
Karl Marx, para compreender processos históricos concretos. O que se intenta é
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Referências bibliográficas
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blogs/economia-a-vista/dados-economicos-da-era-dilma-de-chorar/. Acesso em
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LEITÃO, Miram (2016). Blog Mirian Leitão. O Globo. Disponível em: http://
blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/crise-economica-e-grande-causa-do-
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SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SILVA, Luiz Inácio Lula da (2004). 'O mercado está nervoso? Eu não estou,
estou calmo', diz Lula. In: Revista Época Online. Disponível em: http://
revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR62596-6009,00.html. Acesso em
4 de out. 2018.
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O Sujeito neoliberal, a “ditadura do
algoritmo” e o identitarismo: fragmentação
dos movimentos sociais no contexto de
um capitalismo em crise civilizacional
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subjetividades, com a exacerbação do individualismo, bem como, em face da
“revolução numérica” com uma “algoritmização” dos sujeitos e da política com
graves consequências para a(s) democracia(s).
Este quadro de crise(s) do capitalismo e de ofensiva neoliberal também traz
consigo o aprofundamento da flexibilização no mundo do trabalho que redun-
da em desregulamentação no mundo do Direito. Gerando enormes retrocessos
com a subtração de direito e garantias conquistados com lutas coletivas, guiadas
pelo princípio da solidariedade, o neoliberalismo acaba forjando um sujeito neo-
liberal (ou neosujeito) norteado pelo princípio da concorrência.
Esta crise (civilizacional) do capitalismo que potencializa a ofensiva neolibe-
ral aprofundando o individualismo gera como consequência uma maior atomi-
zação e fragmentação dos movimentos socais do campo popular e democrático.
Em resumo, a crise do capitalismo contribui para a crise do sujeito, que,
por sua vez, contribui para a crise dos movimentos sociais. Diante desta inter-
conexão de crises muitas questões podem ser extraídas, entre elas: como (re)
organizar e unificar os movimentos e as lutas sociais cuja essência e a própria
sobrevivência encontra-se no princípio da solidariedade (de classe) quando o
princípio norteador do “sujeito neoliberal” é o da concorrência? Como reagir à
“ditadura do algoritmo” e restabelecer o lugar da política? Quem é (ou poderá
vir a ser) neste contexto tão hostil aos que vivem da força do seu trabalho o
“sujeito revolucionário” na concepção marxista do conceito?
Como afirmamos preliminarmente nosso propósito não é dar respostas, mas
dividir inquietações e apresentar alguns cenários e reflexões que, no nosso en-
tendimento, merecem ser levados em consideração na elaboração das respostas
a serem coletivamente construídas.
Iniciaremos nossa exposição com breves considerações sobre a crise do ca-
pitalismo e, posteriormente, para abordar a temática do “sujeito neoliberal” e
da “ditatura do algoritmo” iremos trazer à reflexão algumas ideias contidas em
duas obras de autores franceses tentando entre elas estabelecer algum diálogo.
Uma das obras é intitulada “ A Nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
Neoliberal” (DARDOT; LAVAL, 2016) na qual nos interessa, mais especifi-
camente , o capítulo 9 intitulado “A fábrica do sujeito neoliberal” ; e a outra ,
1 “O Homem nu: a ditadura invisível do numérico”- “numérico” refere-se aos algoritmos e a “revolução
numérica” que é uma das dimensões da 4ª revolução industrial (Revolução 4.0)
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3. O sujeito neoliberal
As reflexões aqui trazidas sobre o sujeito neoliberal resultam da síntese de
algumas ideias desenvolvidas pelos franceses Dardot e Laval na obra anterior-
mente citada (DARDOT; LAVAL, 2016).
Os autores apresentam quatro traços que caracterizam a razão neoliberal: 1.
o mercado se apresenta não como um dado natural, mas como uma realidade
construída.; 2. a essência da ordem do mercado não reside na troca, mas na
concorrência - que passa a valer como norma geral das práticas econômicas; 3.
O estado não é simplesmente vigilante deste quadro visto que ele próprio em
sua ação é submetido à norma da concorrência ; 4. A exigência de uma univer-
salização da norma de concorrência ultrapassa as fronteiras do estado atingindo
diretamente os indivíduos em sua relação consigo mesmo e com os demais.
Este último traço caracterizador da razão neoliberal é que nos interessa
examinar mais de perto para, posteriormente, questionar os reflexos dessa
“subjetividade neoliberal” nos movimentos sociais e reinvindicatórios do
campo popular e progressista.
Para Dardot e Laval a grandeza de Marx foi ter mostrado que o preço da
liberdade subjetiva que emergiu com o advento do capitalismo resultou de uma
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2 Para que possam contratar os indivíduos são tomados, juridicamente, como sujeitos de direito.
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3 Os autores usam termos como sinônimo “revolução numérica”, “revolução do big data”, “ditadura dos
big data” e “ditadura o algoritmo”.
4 Aos que têm interesse em saber sobre o que é o Big Data há inúmero vídeos explicativos na web
além do citado.
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celular- e jamais o homem esteve tão nu, pois a partir dos metadados dos
celulares, do georreferenciamento e da hora e duração da conexão é possível
também estabelecer o perfil psicológico dos utilizadores, seus hábitos, suas
convicções filosóficas religiosas e mesmo sua origem étnica.
O fato é que por trás de doces promessas e atrativos incontestáveis, a re-
volução numérica implementa um processo que coloca “a nu” o indivíduo em
proveito de um punhado de multinacionais (americanas na sua maioria) por
meio dos famosos big data.
É assim que a Apple, Microsoft, Google e Facebook têm hoje 80% das infor-
mações pessoais numéricas da humanidade o que significa dizer que, jamais na
história, um tão pequeno número de indivíduos teve concentrado tanto poder e
tanta riqueza – o mundo digital gestou uma hiperoligarquia.
No que tange ao campo político e democrático é fundamental ressaltar
que para os big data a democracia é obsoleta, bem como, os valores univer-
sais por ela aportados.
Antoinette Rouvroy, pesquisadora de Direito na universidade de Namur,
estima que as empresas visam a uma “governabilidade algorítmica” - um
modo de governo inédito operando, mais precisamente, por uma configura-
ção antecipatória das possibilidades de conduta do que por regulamentação
de condutas. Neste caso, endereçando-se aos indivíduos muito mais pela via
de alertas aos seu reflexos do que às suas capacidades de entendimento e de
vontade.(ROUVROY, [s.d.])
No futuro configurado pelos big data as democracias são sufocadas as-
sim como os seus sistemas de representação. A questão posta pelos autores
em apreciação é: Será que votar todos os quatro ou cinco anos terá ainda
algum significado visto que, em poucos anos, os big data serão capazes de
conhecer, em tempo real, a reação de cada indivíduo e todas as proposições
coletivas de sociedade?
Para responder a esta questão é preciso considerar que os big data hoje são
capazes de obter bilhões de dados e extrair um perfil político-individual e assim,
é possível conhecer o indivíduo e as suas mais profundas convicções e influir
nos resultados – razão que tem levado os mestres dos “megadados” a organiza-
rem as campanhas políticas nos Estados Unidos.
Assim, segundo os autores aqui trabalhados, os mestres dos megadados po-
dem fazer balançar, ou mudar os rumos de uma eleição (podemos testemunhar
que no Brasil isso ficou muito claro!).
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Note-se que o autor acima citado, que aliás é coordenador político de Mo-
vimento Negro, não nega a identidade, mas a diferencia de identitarismo que
seria a identidade “como um fixo e não como um relativo”.
Na mesma trilha, Tomasz Pierscionek faz uma crítica à ideologia identitária acu-
sando-a de ter feito a esquerda ocidental perder a sua identidade coletiva. Segundo
ele, “o fenômeno da ideologia identitária, que se alastra no mundo ocidental, serve
como uma estratégia política de atomização social que obstaculiza a emergência de
uma verdadeira resistência às classes dirigentes”.(PIERSCIONEK, 2018)
Correndo o forte risco de, na síntese, simplificar o bem fundamentado texto
do autor supracitado, pode-se dizer que uma das ideias-chave por ele apresentada
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6 Slogan atribuído a David C. Coates - editor, líder sindical e político socialista - que passou a ser usada
por organizações sindicais e populares.
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Referências bibliográficas
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Bolivia e Proceso de Cambio: caminhos e
impasses para o socialismo comunitário
Bolivia and Proceso de Cambio: ways
and impasses for community socialism
Introdução
A América Latina vivenciou, a princípios deste século, o ascenso de go-
vernos progressistas como resposta às consequências das políticas neoliberais
na década de 1990. Se as condições materiais de depreciação das condições
de reprodução social levaram o continente a um novo ciclo político, cada país
refletiu sua especificidade, formação social e processos próprios de luta política.
Entre os que vivenciaram este intento de superação do neoliberalismo, a Bolívia
aparece com um conjunto de profundas transformações nas esferas econômica,
política, cultural e jurídica, inauguradas com o governo de Evo Morales, deno-
minado de “Proceso de Cambio”.
Se há, no momento, um avanço do capital sobre o trabalho no continente,
materializado, por exemplo, na reforma trabalhista do governo ilegítimo de Te-
mer e na proposta enviada ao parlamento por Macri na Argentina –, na Bolívia
permanece em curso o “Proceso de Cambio”. Este trabalho se volta a analisar
algumas das contradições, potencialidades e conjuntura do mesmo.
Para tanto, parto do materialismo histórico-dialético, com fins de realizar uma
investigação qualitativa, mediante o uso, como instrumentos metodológicos, de
7 Daniel Araújo Valença é professor do Curso de Direito da UFERSA, graduado em Direito pela
UFRN,especialista em Direito Urbanístico pela PUC-Minas, mestre em Arquitetura e Urbanismo
pela UFRN,doutor em Direito pela UFPB e coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico,
Marxismo e América Latina – Gedic.
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9 Marcelo Vega, indianista katarista, aclara o que são os ayllus: “Los ayllus son las familias, los
conjuntos de familias, los markas, los suyos donde cada uno ve sus intereses, pero nadie ve su interés
para sí mismo, tenemos que avanzar y tenemos que ver que no me perjudique o le perjudiquemos
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al otro, si hay que avanzar, entonces avanzamos, no tenemos que ver lo que perjudique y que me
perjudique, ni que lo perjudiquemos al otro, intercambiamos en las reuniones sectoriales y luego ya
se reúne la plenaria y ahí se ponen de acuerdo. Por eso se usan las pausas, ¿no? Es un sistema en el
cual, precisamente, intervienen 3 principios fundamentales: la reciprocidad, la complementariedad y
la solidaridad, entonces bajo esos principios lo que a él le falta, yo le puedo dar, lo que a mí me falta,
él me puede dar, nos colaboramos y ahí vamos hacia el suma qamaña, el ‘vivir bien’, nadie está para
perjudicar a nadie” (Tona-Murisaka & Vega 2014).
10 A mediação política com a correlação de forças real da sociedade boliviana era tal que o Katarismo se
abria para a possibilidade de alianças até com a Igreja Católica e evangélicas progressistas, por mais
que o cristianismo tenha cumprido papel central na exploração colonial: “Los mineros, los fabriles,
los obreros de la construcción, del transporte, las clases medias empobrecidas... son hermanos
nuestros, víctimas bajo otras formas, de la misma explotación, descendientes de la misma raza y
solidarios en los mismos ideales de lucha y liberación. Solamente unidos lograremos la grandeza de
nuestra patria. Pedimos igualmente a la Iglesia Católica (la Iglesia de la gran mayoría campesina)
igualmente a otras Iglesias Evangélicas que nos colaboren en este gran ideal de liberación de nuestro
pueblo aymara y quechua. Queremos vivir íntegramente nuestros valores sin despreciar en lo más
mínimo la riqueza cultural de otros pueblos” (Primer Manifiesto de Tiahuanaco, 1973).
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1 García-Linera (2010) e Moldiz (2009) trabalham a categoria "crise estatal" como o momento em
que a lógica estatal e as idéias-força que guiaram a sociedade por décadas entram em uma crise
insuperável e terminam substituídas por um novo período histórico de reordenamento estatal e
nova configuração de classes. A primeira crise estatal ocorreu com a derrota da Bolívia frente ao
Chile na Guerra do Pacífico e a consequente explosão da guerra civil. A segunda crise estatal se
situa na perda da Guerra do Chaco frente ao Paraguai e o esgotamento do liberalismo, levando
à eclosão da Revolução Nacional do 1952. Depois de décadas liderando a sociedade boliviana,
o nacionalismo revolucionário esgotou-se nos anos 80 e o país, ante sua terceira crise estatal,
entrou no neoliberalismo.
2 Se constituía em uma separação ilusória dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (García-
Linera 2010), pois, enquanto estava em vigor, caso nenhum dos candidatos à presidência atingisse
maioria absoluta nas urnas no 1° turno, a eleição do chefe do executivo ocorria por deliberação do
legislativo, que escolhia um dentre os mais votados. Ao Congresso cabia, também, as indicações
para as cortes superiores do Poder Judiciário, que se davam de acordo com a proporção de cada
agremiação política. Dessa maneira, durante todo o interregno entre a terceira e quarta crise estatais,
o chefe máximo do Executivo foi escolhido de maneira indireta.
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3 Para uma análise mais detalhada do processo constituinte, consultar Schavelzon (2012) e
Valença (2017).
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318 e 355), prevê que os investimentos nacionais serão priorizados frente aos
capitais multinacionais (Art.320), prevê a redistribuição dos excedentes eco-
nômicos para políticas sociais (Art.306) e a proteção e promoção da economia
comunitária de povos e nações indígenas originário-camponesas (Art.306).
Ademais, com a nacionalização dos hidrocarbonetos – ocorrida em 2006 e
elevada à condição de cláusula pétrea na CPE de 2009 – o governo Evo-Linera foi
exitoso em reverter os excedentes produzidos em favor das políticas públicas esta-
tais. Dessa maneira, o Estado, outrora facilitador da acumulação por despossessão
(HARVEY, 2011), passa a operar para a redistribuição das riquezas socialmente
produzidas. O modelo adotado desde então é claramente de intervencionismo e
direção estatal da economia, voltado à redistribuição de excedentes a partir do
extrativismo e com fins de industrialização dos recursos naturais.
Entre as diversas políticas empreendidas, se ressalta o reajuste periódico do
salário mínimo, a determinação de um 14° salário – por parte dos entes públi-
cos e empresas privadas – em exercícios de crescimento do PIB superior a 5%,
políticas de redistribuição de renda – denominadas de bonos –, entre outras com
amparo constitucional. A partir de tais políticas sociais, segundo García-Linera:
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Considerações finais
A América Latina passou por importantes processos políticos neste princípio
de século. À ideia-força do “fim da história” e a estabilidade que lhe acompanhou
ao longo da década de 1990 se seguiram várias sublevações populares e ascensos
de governos progressistas. Esta nova conjuntura tampouco chegou a se consoli-
dar; golpes de Estado e algumas derrotas eleitorais levaram o continente a um mo-
mento de indefinição política. Entre os países que vivenciaram esse conjunto de
transformações, avanços e refluxos das classes subalternas, Bolívia mostra surpre-
ende estabilidade. No presente trabalho, se aponta que tal conjuntura se mostrou
possível devido ao ascenso de um bloco hegemônico camponês-indígena-popular
e às alterações estruturais no âmbito econômico, de lógica estatal e de ideias-for-
ça. Tais transformações, sem embargo, ressignificaram a configuração de classes
no interior da sociedade boliviana e setores médios urbanos que anteriormente
se acercavam a tal bloco atualmente dele se afastam. Se desenvolvem, também,
novas formas de mediação do indivíduo com a sociedade, derivadas do acesso a
novas tecnologias, produtos e direitos, levando a uma perda da centralidade das
organizações sindicais e comunitárias, e a uma crescente individuação de pessoas
advindas das classes subalternas e outrora sob influência do bloco popular.
O debate marxiano, expresso na Crítica ao Programa de Gotha, no tocante ao
“teto” das transformações quando estas se realizam apenas na esfera da circulação,
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Referências bibliográficas
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. (2011). Bolívia: democracia e revolução –
a Comuna de La Paz de 1971. São Paulo: Alameda.
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VALENÇA, Daniel Araújo/ Paiva, Ilana Lemos de. (2018). Álvaro García Linera:
um relato do proceso de cambio e desafios da esquerda marxista latinoamericana:
Entrevista com Álvaro García Linera, Vice Presidente da Bolívia. Revistas
Culturas Jurídicas, v. 4, n. 8, p.355-372. Em <http://www.culturasjuridicas.uff.br/
index.php/rcj/article/view/437/158>. Acesso em: 04 mar. 2018.
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O Novo Constitucionalismo
Latino-Americano a as suas aproximações
com o Marxismo: análise da forma
comunal na Bolívia
Introdução
Ao realizarmos uma regressão histórica podem ser verificadas as di-
versas mudanças políticas na América Latina, alternadas em momentos
de maior abertura democrática e outros períodos de regimes políticos au-
toritários. Geralmente essa instabilidade se faz presente nos períodos de
crise econômica e aprofundamento da exploração do modo de produção
hegemônico, o capitalismo.
No início dos anos 90, as forças políticas da esquerda latino-americana ago-
nizavam. Após a queda do muro de Berlim, tanto a social democracia européia,
quanto a pretensa social democracia na América Latina, aderiram ao programa
do neoliberalismo. Na geopolítica regional, somente Cuba permanecia isolada e
frágil com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Nesse contexto
histórico, o intelectual liberal Francis Fukuyama (1992) decreta, em um de seus
livros, o “fim da história” com o êxito do neoliberalismo.
Embora na década de 90, a América Latina tenha se tornado o laboratório
das medidas neoliberais, no início dos anos 2000, tornou-se o laboratório de
contestação ao neoliberalismo. Os exemplos históricos são variados e atingem
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que vivem nas terras altas dos Andes. Nesses casos, as estruturas civilizacional,
cultural, política e tecnológica são diferentes daquelas praticadas, em geral, pe-
los camponeses e trabalhadores urbanos.
Os comuneros em geral, ao contrário dos camponeses, trabalham em pro-
priedades coletivas, estimula a democracia comunal em acordos, e não têm
como objetivo imediato a mercantilização de sua produção (GARCIA LINE-
RA, 2008, p. 309). O que se observa é que um parte considerável da produção
do ayllus serve para abastecer as comunidades.
No entanto, como já apontado por Zavaleta Mercado, por mais que atue em
um sistema próprio, com dependência diminuta em relação à reprodução do
capital, em tempos de crise geral todos são alcançados, seja na esfera política ou
econômica, revelando o aspecto nacional do Estado.
forma coletiva em território comum, sendo alguns deles, vinculados ao mercado urbano” (LEONEL
JÚNIOR, 2018, p. 23).
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Considerações Finais
Apesar de hegemônico, o capitalismo é algo em constante movimento que se
impõe, mas também sofre resistência e se adapta ao avanço das lutas, podendo
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Referências Bibliográficas
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Capítulo II
Marx e o Direito
A crise do Capital e o papel
do Direito do Trabalho
Introdução
Este artigo tem por objetivo analisar os principais aspectos da crise do capi-
tal na sociedade burguesa, e principalmente como esses se conformam na forma
jurídica desta sociedade. Como é notório, o poder político e o poder econômico
no capitalismo se separam, possibilitam com isso a expansão do capital pelo
planeta e universalizam a forma burguesa de produção e propriedade.
Mas esta forma, não se exime de contradições em sua base estrutural, o
capitalismo como forma de produção social se constitui e se desenvolve a partir
destas crises em sua base de formação, assim, o próprio direito não se isenta do
papel de legitimador e conformador dos descompassos desta sociedade.
No primeiro ponto do trabalho será analisada a questão do desmembra-
mento do poder político e do poder econômico, graças a este desmembramen-
to a questão da exploração do trabalho e do desenvolvimento da propriedade
burguesa se liberta do vínculo nefasto de uma opressão direta. O capitalismo
se desenvolve sem a figura subjetiva de poder centralizador como ocorria no
feudalismo, os imperativos desta sociedade assumem uma forma impessoal e
aparentemente neutra.
No segundo ponto do trabalho será apresentado as principais características
da crise da sociedade burguesa, não pretendendo logicamente esgotar o assunto,
mas sim expor de forma coerente os principais aspectos desta crise. O descom-
passo entre a produção e a circulação, entre a compra e a venda e a queda das
taxas de lucro dos capitalistas e como estas questões afetam o trabalhador.
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2 No feudalismo os camponeses detinham a posse destes meios, ou como proprietários ou como locatários.
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vender a sua força de trabalho”, numa troca que envolve o salário que lhe per-
mite um trabalho para viver. (WOOD, 2014, p. 22).
Logicamente que o capital, e os capitalistas em geral, dependem em última
instância da coerção e da violência do Estado para que sejam mantidos “os seus
poderes econômicos e o domínio da propriedade”, para que seja conservada a
ordem social, bem como, “condições favoráveis à acumulação”. Mas mesmo este
poder de Estado age dentro de limites, conservando certos poderes aos capita-
listas e certos poderes ao Estado. É no capitalismo, portanto, que o “econômico”
se aparta do político. Nas palavras de Wood:
[...] como a vida social é cada vez mais regrada pelas leis da economia,
seus requisitos modelam todos os aspectos da vida, não somente a
produção e a circulação de bens e serviços, mas também a distribuição
de recursos, a disposição do trabalho e a própria organização do
tempo. (2014, p. 22).
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das questões críticas de ordem interna deste modo de produção que já se firmou
universalmente. A produção burguesa será vista de perto, em suas manifesta-
ções gerais, permitindo compreender a essência da contradição deste modo de
produção que atualmente se limita a suspender os efeitos da crise do capital pela
especulação dos capitais financeiros.
3. A crise do econômico
Em 1848, Marx e Engels escrevem um pequeno livro, panfletário, polêmico,
que tinha a intenção de fazer valer um manifesto político dos comunistas con-
tra a ordem burguesa de sua época3. A simplicidade dos argumentos contidos
no Manifesto não retira o valor histórico e a importância e relevância política
do documento. No que concerne ao problema levantado por este ponto, Marx
e Engels apresentam no exemplo do sistema feudal, os pressupostos da crise do
capitalismo de sua época.
Fato já consumado e verificado pela história as incongruências das forças de
produção e os seus limites internos, tendem a explodir suas contradições eco-
nômicas e sociais, provocando convulsões políticas e levantes populares contra
os obstáculos do crescimento destas forças de produção. O sistema feudal é
característico para ilustrar o ponto do Manifesto.
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1 O dinheiro é o facilitador do sujeito. Para que este último possa ser, é preciso portar consigo o
atestado de validade social, isto é, o dinheiro, só assim o indivíduo poderá desfrutar de todas as
maravilhas do convívio social burguês.
2 (D – P – M – D’).
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Esta relação entre sujeitos, livres, iguais, detentores de suas propriedades revela
o sentido jurídico que porta cada sujeito. O trabalhador é dono de sua proprieda-
de, da sua capacidade de trabalhar, de sua força de trabalho, logo ele tem direito
a um salário, ele troca a sua força física, mental, psicológica, sua existência, por
um salário; o outro, o capitalista, o empresário, é o dono da propriedade dos meios
de produção. O primeiro aparece no mercado com seu entusiasmo, com uma
vontade imensa de produzir, de trabalhar; o outro aparece neste mesmo mercado
com uma vontade irresistível de que trabalhem para aumentar o valor de sua pro-
priedade. O direito afirma esta relação como uma relação de vontade, de sujeitos
livres, iguais, que se compatibilizam e se harmonizam no contrato.
O direito não tenta compreender a dinâmica real desta sociedade, o conteúdo
destas relações. Ele trata estes sujeitos como sujeitos de direito, portadores de suas
garantias e donos de suas propriedades. Não existe para o mundo jurídico uma
relação contraditória, um mundo que exista de fora do limite positivo da norma.
Fica extremamente fácil para compreender o desenrolar desta história. As
lutas operárias jamais puderam ultrapassar a questão fundamental e absoluta
do direito, que é a propriedade privada dos meios de produção. Este núcleo
enrijecido da política e do direito não se flexibiliza jamais, a propriedade é uma
garantia jurídica importante para a acumulação capitalista e para a extorsão do
valor da força de trabalho.
O poder do capital transparece nesta relação jurídica que envolve o traba-
lho. Edelman afirma que é um “poder desdobrado”, nas palavras do autor:
O que é, então, o poder jurídico do capital? Nada além disto: a dupla
forma do contrato de trabalho e do direito de propriedade. E, quando
digo “dupla forma”, devemos nos entender, porque seria mais exato dizer
“forma desdobrada” do capital. Do ponto de vista do operário, o capital
toma a forma do contrato de trabalho; do ponto de vista do patrão, ele
toma a forma do direito de propriedade. Mas é exatamente uma forma
desdobrada, pois sua unidade não é nada além do capital sob a forma do
direito de propriedade. (2016, p. 31).
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O direito ainda faz valer outra importante ferramenta ideológica, muito valida
para os fins práticos desta sociedade. Que ferramenta seria? A política, ou melhor,
a despolitização do espaço de trabalho. Se a política entra na fabrica é justamente
para dosar e regular os excessos. A luta política vai sendo sempre orientada pelo
direito. Se existe um conflito político entre classes, é no direito que se harmoniza
o conflito. Limite de jornada, regulamentação do salário mínimo, repouso sema-
nal, segurança e higiene no trabalho, etc., são formas de lutas políticas que se
resumem em reivindicações jurídicas. Mas qual a razão de ser assim?
Para a sociedade burguesa o trabalho é uma espécie de “mola que impulsiona
o desenvolvimento humano; é no trabalho que o homem se produz a si mesmo”.
Graças ao trabalho humano este último se desgrudou “um pouco da natureza e
pôde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais”.
Sem esta relação do trabalho, deste ato que toca e altera a composição dos bens
da natureza, “não existiria a relação sujeito-objeto”. (KONDER, 2007, p. 23).
Sendo o trabalho uma propriedade humana, ele pode ser privativo ao uso
individual de um sujeito. Se um sujeito trabalha solitariamente na criação de
uma mercadoria qualquer ele é o dono desta coisa. A lógica simbólica desta
abstração permanece no cotidiano empresarial contemporâneo. Se o trabalho
é uma essência humana natural, um ato de desenvolvimento humano, uma
propriedade humana, ele é parte de uma natureza egoísta do ser como tal, desta
forma pode ser apropriado individualmente pelo sujeito criador. No capitalismo
o sujeito criador é o dono da propriedade do trabalho, dos frutos do trabalho,
e não o dono da força de trabalho. A empresa como espaço de propriedade do
trabalho é parte de uma essência humana que desenvolve e persegue o progres-
so do gênero humano, logo este espaço não é inteiramente político, é neutro, é
parte de uma essência humana.
Pela leitura a questão da política envolvendo as relações de trabalho é
limitada, mas até onde toca o debate político no âmbito do trabalho? Somen-
te naquilo que envolve as questões profissionais do trabalho enquanto tal.
Edelman analisa a situação da greve, e vislumbra o limite imposto para os
grevistas. A greve, de fato atípico nos primórdios da industrialização teve que
ser institucionalizada pelo Estado e pelo direito burguês, uma greve contida,
contratualizada, e perfeitamente regulada pelos limites do direito. De um fato
não jurídico, a greve se transforma em direito de greve, sendo um direito a
greve possui limites, e se os grevistas ultrapassarem os limites do direito de
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greve, esta se torna um abuso de direito, podendo ser punida pelo ordenamen-
to jurídico. (EDELMAN, 2016).
O direito do grevista se mantém dentro das cercanias seguras e reguladas
pela forma jurídica, se os grevistas derem um pé adiante do limite, ocorre o
abuso, se os grevistas contestarem a propriedade burguesa, ou o prossegui-
mento da produção de mercadorias, tudo é um atentado contra a nature-
za humana, uma natureza individual e voltada a satisfação das necessidades
individuais. (EDELMAN, 2016). Como já dito anteriormente: propriedade
individual, trabalho individual, sucesso individual, gozo e fruição da vida to-
mados a partir da perspectiva individual.
Ao regressar a pergunta do fim do segundo ponto a resposta torna-se dúbia.
Uma conquista ou um direito laboral em grande medida não se volta contra as
estruturas de normalidade de reprodução do capitalismo. A propriedade priva-
da e a reprodução capitalista seguem regradas e reguladas pela forma jurídica.
Os espaços de luta para promover novos e outros direitos, se resguardam no li-
mite muito bem regulado pelo capital. Inexiste supressão da contradição apenas
um alívio temporário ou então uma tensão contínua provocada pela crise. O
capitalismo, através tanto da política como do direito, apenas suspende os efei-
tos e empurra para os cantos os seus problemas e suas contradições insanáveis.
Conclusão
Como se viu nesse pequeno artigo o sistema capitalista se cerca de garantias
políticas e jurídicas para coibir qualquer avanço contrário que desequilibre seu
poder sobre os indivíduos. Em essência esse poder abarca a totalidade da vida
humana em todas as suas contradições. O desmembramento, ou a cisão, entre
o poder econômico e o político permite que a exploração em condições capita-
listas de produção siga um curso habitualmente normal ou natural. Se a esfera
econômica segue um curso normal essa esfera torna-se natural parte da essência
humana, já a política se encarregaria dos assuntos públicos, do bem comum. É
aquilo que Marx denominaria de cisão do homem em cidadão privado egoísta
e cidadão público ou político. Graças a essa cisão o capitalismo persiste, pois o
processo econômico segue um curso natural e independente da vontade cons-
ciente dos sujeitos da sociedade burguesa.
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Referências bibliográficas
BENSAID. Daniel. Marx, manual de instruções. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
KONDER, Leandro. O que é dialética. 28. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007.
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WOOD, Ellen Meiksins. O império do capital. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
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A efetivação da política de saúde
e as suas dificuldades atuais
Introdução
O presente estudo tem como interesse abordar a origem dos Direitos Hu-
manos, e seu reflexo na judicialização da saúde em nosso atual contexto social.
O papel atual do Direito surge no início do Estado burguês, numa ilusão falsa
criada pelas classes dominantes, de que tais escrituras são norteadoras de uma
sociedade justa. Porém, na realidade, escondem em si sua adequação à justifica-
ção e manutenção do capitalismo e do individualismo burguês.
Historicamente os Direitos Humanos surgem, em nossa sociedade moderna,
a partir de lutas entre as mais diversas camadas sociais. Num primeiro momen-
to, no início de seu surgimento, os Direitos pelo qual a sociedade lutava exigia
do Estado a manutenção da propriedade privada, principalmente como uma
forma de garantir a acumulação de capital pela burguesia, e posteriormente,
após a evolução das necessidades humanas, surgiram novos Direitos, estes agora
exigindo uma atitude positiva do Estado, no sentido de se necessitar tomar cer-
tas posturas para que os Direitos pudessem ser devidamente efetivados.
Deste modo, os direitos humanos surgem por meio de ações organizadas por
grupos oprimidos, os quais reivindicam as bases legais da dignidade humana
(SANTOS, 2013). De acordo com este raciocínio desenlaçado acerca dos Di-
reitos Humanos, vemos uma relação complexa não só pela sua origem ser fruto
de lutas e reivindicações das classes sociais, por meio dos movimentos sociais,
mas, também pela sua serventia ao Estado burguês, como instrumento eficaz
para trazer de volta a tranquilidade ao grupo dominante.
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atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica seu
domínio, mas consegue obter consenso ativo do governados” (2002, p. 331).
Deste modo, explica-se o fato de que a burguesia por ter o controle dos meios
de produção e, consequentemente, controlar o trabalho e a exploração da classe
trabalhadora, pôde estender a sua dominação ao Estado, o qual, na sociedade
capitalista, flui em função da manutenção do próprio sistema e refletir os
interesses da burguesia, desta forma, para fazê-lo, necessita manter uma relação
minimamente consensual entre o grupo dominante e o dominado.
Não obstante, Lessa (2011, p. 85) nos dá uma luz acerca de como entender
o Estado ao ditar o seguinte “Em outras palavras, o Estado capitalista afirma a
igualdade formal, política e jurídica, com o objetivo real e velado de manter a
dominação da burguesia sobre os trabalhadores”. Com base em seus ensinamen-
tos torna-se possível entender que o Estado tem a função primordial de manu-
tenção do consenso e da exploração capitalista, seja por meio do reforço da ideia
ilusória da igualdade entre os cidadãos, seja na intervenção nos conflitos de
classe, o Estado sempre buscará manter o consenso e a condição de exploração
da classe trabalhadora.
Com tal ensinamento, Tonet (2002) reforça o raciocínio aqui delineado
ao nos elucidar que poder político nada mais é que a força social apropriada
por determinada classe social e posta a serviço dele para a reprodução de um
entendimento que possuem.
Trindade (2010), não diferente do que já fora abordado, afirma que a declaração
universal dos direitos do homem, põe o homem enquanto membro da sociedade
burguesa, a igualdade prevista na lei é algo fora do alcance em face da sociedade
capitalista, pois só nos fornece o quanto é necessário fornecer para manter o próprio
regime. Nas suas palavras a igualdade perante a lei não passa de uma “Quimera lu-
zente”, em face à desigualdade que de fato existe na sociedade. Ou seja, a lei formal
não nos abraça enquanto indivíduos sociais, mas, tão somente abarca o quanto for
necessário abarcar para que nós não nos voltemos contra a classe dominante.
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que, nas lutas, não sejam esquecidos os pontos que integram a luta pela supera-
ção do capital, de modo que busquemos sempre tal avanço.
Para Tonet (2002) a luta pelos Direitos Humanos só terá seu pleno efeito pro-
gressista se não perdermos de vista o fim último da própria extinção destes direitos.
Neste contexto, fruto deste ambiente de lutas e mobilizações sociais é que
nascem os direitos. Para Santos (2007) o Direito é próprio da sociedade de clas-
ses, e ao analisarmos suas origens e função social pode-se revelar os modos de
dominação existentes na organização social.
Estudar a função dos Direitos na sociedade capitalista significa, também,
determinar a existência de um aspecto contraditório, consequência dessa or-
ganização social. Esse caráter contraditório se expressa no fato que de um lado
temos o ganho da garantia e dever por parte do Estado em minimizar a miséria
e a exploração a que a classe trabalhadora é submetida; e por outro o fato do
sistema capitalista acatar o Direito, porém sob a égide de garantir apenas o
mínimo necessário a acalmar os ânimos da classe trabalhadora, dando conti-
nuidade à exploração da força de trabalho. Não obstante Iasi (2013, p;182) tem
entendimento semelhante, afirmando que “Podemos concluir que a pretensão
da ilusão jurídica em adiantar-se à materialidade impondo algo que um dia se
tornaria real só se iguala a sua pretensão de impedir o movimento do real na
direção que as transformações materiais impõem”.
A conquista de Direitos Fundamentais, tais como a saúde, educação, previ-
dência, dentre outros, incorpora-se na garantia de melhores condições de vida
à classe trabalhadora, estes direitos são em sua essência reivindicações e con-
quistas desta classe.
Neste aspecto, os direitos apresentam-se como ganhos para os trabalhado-
res, e, para seu reconhecimento se faz necessário pressionar o Estado para que
atenda as demandas da classe, deste modo, a garantia dos direitos, na sociedade
capitalista, ocorre pela intervenção do Estado, pois é ele, o representante da
legitimidade conferida aos direitos. Santos (2007, p.27) evidencia que a con-
quista de direitos perpassa por um amplo processo de mediações para que a
classe trabalhadora tenha garantido seu pleito, é o que diz: “a luta por direitos se
estende, então, por várias dimensões da vida, sintetizando um amplo processo
de mediação para explicitação das necessidades humanas em diferentes conjun-
turas sócio-históricas”.
Desta forma, percebemos que no capitalismo, o Estado flui em função da
manutenção do próprio sistema e, para fazê-lo, necessita manter uma relação
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
Desta forma, entende-se que ao permitir que haja essa divisão do indivíduo
entre o homem egoísta e o homem em sociedade, permite que haja uma efetiva
coexistência entre igualdade e desigualdade, o que permite o tratamento dife-
2 Teoria fundamentada na perspectiva de Estado a partir da teoria gramsciana, onde entende que a
política se tornou um ambiente de enfrentamentos plurais, vez que passou a englobar os diversos
indivíduos e classes da sociedade capitalista, e, deste modo acabou incorporando a luta de classes
entre trabalhadores e burgueses. Sendo assim, passou, consequentemente, a incorporar as mais
diversas atribuições de modo que ampliou sua função na sociedade do capital, todas de forma que
pudessem manter a dominação burguesa.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
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Ou seja, a exceção virou regra, nos últimos anos temos visto uma grande
redução do financiamento da saúde no setor público, e o crescimento da entrega
destes serviços ao setor privado, este desrespeito à previsão da complementarie-
dade, regra do SUS, o qual em tese deveria ser um sistema totalmente público e
122
gerido pelo Estado em conjunto com a sociedade tem gerado um problema sem
precedentes, se manifestando como uma das causas da judicialização. Tal asser-
tiva se faz pois enquanto o Estado promove o desmanche do setor público, em
especial o da saúde, a nossa Constituição e demais Leis preveem um tratamento
diferenciado à saúde, em que pese o atendimento completo à sociedade, desta
forma, enquanto o poder executivo por um lado reduz os gastos sociais e au-
menta o índice de privatização, do outro o judiciário impede que o cidadão seja
desassistido, obrigando, na maioria das vezes, o estado a cumprir sua obrigação
de fornecer serviços e medicamentos.
Neste sentido, cabe ressaltar que nossa Constituição Federal de 1988 nos
garantiu Direitos Sociais mínimos à dignidade do cidadão, em especial à po-
pulação integrante da classe trabalhadora. Não obstante destaca-se que ao
final do século XX, com a crise ocorrida no modelo keynesiano3, o Estado
mudou seu foco de atuação, tendendo a reduzir os gastos sociais sob a prer-
rogativa de serem onerosos, alegando que o Estado não possui meios para
custeá-los, ou mesmo custeia de forma ineficaz, sem saber como investir do
melhor modo o orçamento público.
Outrossim, apesar de existirem diversos mecanismos legais para que se ga-
ranta o acesso pleno às políticas públicas por parte da sociedade, vivenciamos
no modelo atual de neoliberalismo adotado no Brasil, nota-se o avanço da pre-
cariedade, o que demarca a tendência hodierna de sucateamento dos órgãos e
serviços que antes deveriam atender a população.
Tais retrocessos não ocorreram apenas no início da implantação do Sistema
Único de Saúde, não obstante à época existirem diversos conflitos de interesse,
onde de um lado os trabalhadores lutavam pela saúde fornecida pelo próprio
Estado, por meio do movimento sanitarista, de outro haviam os empresários do
setor médico, que buscavam a privatização do serviço. Acontece que, mesmo
nos dias atuais, as lutas e conflitos entre os diversos projetos inerentes à saúde
pública continuam em pleno conflito. (BRAVO, 2018). Com tais retrocessos,
3 Também conhecido como Estado de bem-estar social, ou welfare state, é uma teoria criada por
John Maynard Keynes, onde se propunha uma intervenção estatal na economia, cujo objetivo era
conduzir o Estado e a sociedade ao pleno emprego, neste sentido, o Estado era posto numa posição de
organizador da economia, passando a regular os diversos aspectos da vida em sociedade, cabendo ao
Estado promover e garantir o pleno acesso a serviços públicos e Direitos que visassem a proteção da
população, tais como saúde, educação, moradia.
os quais ficaram mais fortes após a ascensão de Temer ao poder, conforme faz
prova os ensinamentos de Bravo (2018, 11):
Considerações finais
Vivemos numa sociedade baseada no capital, o qual são necessários ins-
trumentos mínimos de redução da exploração do trabalhador, os Direitos
Sociais surgem como meio de garantir mínimo acesso à uma vida digna. Os
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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TONET, Ivo. Para além dos direitos humanos. Novos Rumos. v. 17, n. 37. 2002.
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A estigmatização dos direitos humanos
1 Assistente social, mestre e doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Professor na Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]
2 Para uma visão mais abrangente dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, sugerimos a leitura do
ótimo livro 102 minutos (Dwyer & Flynn, 2005). Dentre outras análises – como as tensões e conflitos
entre forças de segurança e socorro –, todas feitas a partir de acontecimentos anteriores e posteriores
ao ataque, os autores demonstram que parte importante das mortes do evento deve ser creditada a
reformas feitas algum tempo antes para ampliar a lucratividade de aluguéis nos edifícios. Uma de suas
consequências foi a redução da área de escape por escadas, o que, na leitura dos jornalistas, contribuiu
para que centenas de pessoas não conseguissem se salvar do desabamento dos prédios.
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livre comércio apontavam algum nível de resultado benigno para quem detém
meios de produção de riqueza.
Alguns fenômenos não deixaram de existir na Guerra Fria, mas se acentuam
na conjuntura do século XXI. É o caso do superencarceramento. Davis (2018)
o caracteriza como complexo industrial-prisional, e lembra que mesmo em se-
tores democráticos a existência de prisões é tão naturalizada quanto o foram
segregação e escravidão em séculos anteriores. Políticas abolicionistas, afirma,
são vistas, no máximo, como ingênuas e cheias de boa intenção. Ainda que se
questione o perfil de classe e raça predominante no encarceramento, não se
questiona sua existência. Ao contrário: corrupção, machismo, racismo, homo-
fobia etc. são expressões para as quais se defende prisão. Há, inclusive, retomada
e intensificação de privação de liberdade em políticas para o envelhecimento
(como instituições de longa permanência de idosos), saúde mental ou supostas
infrações cometidas por adolescentes (RUIZ & PEQUENO, 2015).
Se conservadores ou reacionários estigmatizam direitos humanos como
voltados para “bandidos” (obviamente sem registrar sentidos históricos
conferidos ao termo, como fazem Aslan, 2013, e Hobsbawm, 2015), setores
democráticos ou “à esquerda” no espectro das lutas políticas o fazem em
sentido oposto. Direitos humanos seriam predominantemente servis à lógica
liberal-burguesa. Baseados em uma das leituras de obras de Marx (como
Para a questão judaica – 2009 – em que o autor faz contundente crítica
ao direito burguês), defendem ser necessário o fim do direito (e do Estado,
e dos direitos humanos) em uma sociedade humanamente emancipada.
Para esta leitura, o cidadão/indivíduo burguês, mônada servil à lógica da
produtividade e à apropriação privada da riqueza socialmente produzida
típicas do capitalismo, seria o centro do questionamento de Marx. Não
o individualismo, perspectiva teórico-política construída para a defesa
da sociedade burguesa. Ainda que se reconheça que qualquer plataforma
marxista para o século XXI não pode prescindir da defesa de direitos
humanos (TRINDADE, 2011). Tais perspectivas tendem a acentuar a
indevida dicotomia entre classe e indivíduo. Embora em sentido distinto, se
aproximam de movimentos chamados de “identitários” que, na conjuntura
pós-Guerra Fria, obtêm maior força nas arenas de disputa política e social.
Estes últimos por vezes cometem o equívoco de negar a existência de classes
sociais, quando todos os dados objetivos quanto à produção, distribuição
e apropriação de riquezas no mundo demonstram a persistência da
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
3 Tal apropriação não se restringe ao período analisado por Marx: “A classificação anual das
grandes fortunas realizada pela revista Forbes recenseou 415 bilionários em dólares em 2006.
Menos de mil pessoas possuem 3,5 trilhões de dólares, ou seja, o dobro do produto interno da
França. Entre 1966 e 2001, a renda dos 10% mais ricos aumentou 58%, a renda do 1% mais rico,
121%, a do 0,1% mais rico, 236%, e a do 0,01@ mais, rico, 617%; 2% da população mundial
possui a metade dos bens financeiros, enquanto 50% dos mais pobres dividem entre si 1% desses
bens” (Bensaïd, 2017, p. 49, grifo original).
4 São conhecidos os dados acerca das desigualdades de renda entre homens e mulheres, brancos e
negros, no Brasil. Há inúmeras fontes fidedignas para demonstrar que a violência não atinge
igualmente todos os segmentos sociais. Homens negros, pobres, jovens, moradores das periferias
e subúrbios brasileiros são suas principais vítimas e, ainda assim, os mais punidos pelo sistema
penitenciário. Tais processos têm profunda relação com a possibilidade de hiperexploração do
trabalho. Atingem segmentos para os quais sequer nos atentamos. Spencer (1996) demonstra que em
vários momentos a repressão à homossexualidade estabeleceu dadas relações com a força de trabalho
disponível em cada sociedade. Naquelas em que era necessária maior disponibilidade de jovens para
a produção, houve tendência a entender o ato sexual meramente como procriador. Levada às últimas
consequências, o autor prevê: “Seria lícito pensar que na conferência das Nações Unidas sobre
população, em 1994, no Cairo, a questão da homossexualidade tivesse sido discutida positivamente,
em vez de completamente negligenciada. (...) E, no entanto, no próximo século, a superpopulação
provocará uma grande pressão sobre os recursos do planeta, e os governos poderão ter de encorajar
os homossexuais, subsidiando seu modo de vida à custa dos casais heterossexuais” (Idem, p. 379).
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5 No mesmo sentido, parece-nos instrutiva a reflexão de dois autores aos quais não pode se creditar
a defesa da ilusão no direito: “De um lado, a reivindicação de igualdade foi ampliada, buscando
completar a igualdade jurídica com a igualdade social; de outro lado, concluiu-se das palavras de
Adam Smith – o trabalho é a fonte de toda a riqueza, mas o produto do trabalho dos trabalhadores
deve ser dividido com os proprietários de terra e os capitalistas – que tal divisão não era justa e devia
ser abolida ou modificada em favor dos trabalhadores” (Engels & Kautsky, 2012, pp. 19-20).
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
6 Historicamente prisões já foram instituições “de passagem”. Eram o local em que pessoas que cometiam
o que cada sociedade considerava “crime” aguardavam pela pena (enforcamentos, apedrejamentos,
guilhotina etc.). A respeito, cf. Davis (2018) e Melossi & Pavarini (2006), dentre outros.
7 “Os habitantes da cidade viam certamente com maus olhos os homens do campo, achavam-nos
rudes, grosseiros. A palavra vilão deriva das villas, quer dizer, das casas que, na Roma antiga, ficavam
fora da área urbana. (...) Quando os pobres pediam (pedir, em latim, é rogare), os ricos podiam tolerá-
los; quando, porém, reivindicavam (reivindicar é arrogare), passavam a ser considerados arrogantes”
(Konder, 2009, pp. 165-166, grifos originais). A mesma linha de reflexão pode ser feita quanto à
palavra bandido. Lestai era a palavra grega para bandidos no tempo de Jesus: “Para os romanos a
palavra ‘bandido’ era sinônimo de ‘ladrão’ ou ‘agitador’. Mas estes não eram criminosos comuns. Os
bandidos representavam os primeiros sinais do que viria a tornar-se um movimento de resistência
nacionalista contra a ocupação romana” (Aslan, 2013, p. 44). A pena de crucificação era então
aplicada quase exclusivamente para crimes de sedição (revoltas, “perturbação da ordem pública”).
Jesus era o maior bandido.
8 “Se houver desenvolvimento econômico e for promovida a mobilidade social na África Central
e Ocidental, aumentarão os incentivos e a capacidade para migrar, e a ameaça de “islamização”
da Europa será substituída pela de ‘africanização’. O grau em que essa ameaça se irá concretizar
sofrerá grande influência do grau em que as populações africanas sejam reduzidas pela AIDS e outras
pestes, bem como do grau de atração que a África do Sul exerça sobre imigrantes de outras áreas da
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demonstram não uma rejeição a direitos, mas sua restrição a uma parte da hu-
manidade. É uma concepção reacionária de direitos humanos (RUIZ, 2014, p.
180-206), pré-burguesa, que retorna em uma conjuntura internacionalmente
complexa e nas quais as forças que se articulavam em torno de blocos ao longo
da chamada Guerra Fria não se veem mais constrangidas a ocultar suas reais
interpretações e proposições para a sociedade.
Há, aqui, uma estigmatização dos direitos humanos “à direita”: o impedimento
ao debate é justificado sob argumentos que visam “restaurar a ordem”, “impedir a
ameaça comunista”, “reconhecer como cidadãos apenas pessoas de bem”9.
Mas o que nos preocupa centralmente, e de certa forma surpreende, é a
estigmatização dos direitos humanos “à esquerda” – inclusive em setores mar-
xistas. Neste âmbito parece haver algumas origens para a consideração dos cha-
mados direitos humanos como algo de menor importância.
Uma delas é a correta identificação do papel que o direito (enquanto nor-
matizações existentes na vida, mas fundamentalmente em sua dimensão legal)
cumpre na manutenção da sociedade capitalista. A proposição da igualdade
perante a lei é obra das revoluções burguesas do século XVIII. Nas sociedades
anteriores tal noção não existia sequer no discurso religioso10, salvo raras ex-
ceções. A participação nas decisões11, o acesso à riqueza, o direito ao próprio
corpo12, dentre outros aspectos, eram organizados a partir das classes a que se
África” (Huntington, 1997, p. 256, grifos nossos). O autor demonstra sua preocupação com o risco
de “contaminação” do que denomina “civilização ocidental” (para ele, composta por Estados Unidos,
países europeus centrais, Nova Zelândia e Austrália).
9 Seja lá o que, na verdade, tais frases quiserem afirmar. Afinal, uma das características centrais da
“ordem capitalista” é a convivência contínua e ininterrupta com a (a) desordem de suas próprias
crises; não há, na conjuntura recente, qualquer indício de (b) ameaça comunista mundial no planeta;
(c) pessoas “de bem” são constantemente flagradas em ações que demonstram o quanto desprezam
quaisquer perspectivas que não sejam as de obter vantagens pessoais, custe o que custar.
10 Cf., a respeito, os já citados Aslan (2013) e Ruiz (2014). Acerca da relação entre marxismo e religião
também é enormemente instrutiva a leitura de Löwy (2016).
11 Desde a Grécia Antiga a participação nas ágoras, assembleias populares que deliberavam sobre as
questões centrais da sociedade, era restrita a indivíduos do sexo masculino e que detinham posses.
Mulheres e escravos, dentre outros públicos, eram os infantes (os “sem voz”).
12 “Tratava-se, portanto, de sociedades nas quais inexistia a noção da igualdade formal entre os
indivíduos. Cada grupo social tinha direitos diferentes. Os senhores feudais, membros da nobreza e
do clero tinham privilégios. Em diferentes partes da Europa chegaram a ter o direito a dormir a primeira
noite com a noiva dos seus camponeses. E isso era considerado normal em um sistema baseado em relações
de dependência e subserviência” (Dornelles, 2007, p. 15, grifos nossos).
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
13 Nas lutas sociais articulam-se demandas de classe a outras que, embora presentes entre as massas
subalternizadas, não lhe são exclusivas. Apreender este sentido para as lutas da população negra,
das mulheres, das pessoas com deficiência, por liberdade de orientação e expressão sexual etc.
é absolutamente necessário para superar a falsa dicotomia existente entre classe e indivíduo.
Optamos (Ruiz, 2014) por chamá-las de lutas de classes e/ou de segmentos de classe para registrar
esta relação dialética. Na conjuntura internacional de 2018 evidencia-se quão equivocada e sectária
é certa polarização dicotômica entre lutas classistas e identitárias, que se excluiriam mutuamente.
Há razões concretas, materiais, para que no século XXI tais expressões identitárias se apresentem
com maior força. Dentre elas, o fim da Guerra Fria, período em que, equivocadamente, no âmbito
das lutas societárias populares, se defendia que a solução da desigualdade econômica deveria ser
a “prioridade zero”, com as demais demandas (por vezes vistas como “pequeno-burguesas”, como
as que envolvem controle sobre o próprio corpo) devendo aguardar uma sociedade humanamente
emancipada para se expressarem.
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14 A estigmatização dos direitos humanos pelas “esquerdas” vem sendo parte central de nossas
preocupações desde a militância social anterior à graduação em Serviço Social. Iniciada a trajetória
acadêmica, desafiei-me a estudar a relação entre esta profissão e o campo dos direitos humanos
na graduação (Ruiz, 2009). No mestrado concentrei atenções nas distintas concepções de direitos
humanos em disputa na sociedade contemporânea. Dentre as seis identificadas, duas estão no âmbito
marxista (Ruiz, 2014). Uma hipótese central da pesquisa do doutorado ora em curso é que a polêmica
fundamental marxista não está no âmbito dos direitos humanos, mas em torno do que denominamos
direitos. Este artigo e parte importante de minha produção nos últimos nove anos têm abordado
distintas dimensões deste tema.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
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de cidadania seja reconhecida” (MARSHALL, 1967, p. 62). Ou, coerente com
sua leitura, que “A igualdade de status é mais importante do que a igualdade de
renda” (Idem, p. 95). Para Abreu,
Abreu (Idem, pp. 275-313), questiona mesmo se uma análise atenta dos
acontecimentos da própria Inglaterra permite tal interpretação evolutiva.
Voltando aos debates contemporâneos, para argumentar em defesa da
prioridade de “direitos sociais” há quem defenda que, por demandar algum
nível de redistribuição de riquezas (mesmo que tímida e indiretamente,
como o fazem políticas sociais1), aqueles seriam os que guardam algum ní-
vel de relação com a distribuição da mais-valia. Ora, espaços de participação
política; liberdade de deslocamento pelas cidades e de opinião; organização
sindical e partidária... todos estes não estabelecem relações com o processo
de produção e apropriação de riquezas? Ou, ainda que reconheçamos a im-
portância de organizações coletivas do mundo do trabalho (o próprio Mar-
shall cita as lutas sindicais como importantes elementos de conquistas dos
direitos que qualifica como “sociais”), isto significa estabelecer uma ordem
hierárquica de importância sobre movimentos que, embora tivessem como
discurso central a defesa de liberdades “civis” – pensemos nas lutas contra
a escravidão e/ou o racismo –, denunciavam formas de extração de riquezas
nos modos de produção então predominantemente2 existentes?
Ademais, seria importante qualificar o debate explicitando o que se entende
por “social” no termo “direitos sociais”. Dois aspectos nos parecem evidentes a
respeito. (a) Direitos tidos como “civis”, “políticos”, “econômicos”, “ambientais”
e outros são, sempre, disputados em sociedade. Expressam demandas sociais
distintas – como vimos, de classes ou segmentos que a elas pertencem. Nenhum
1 Basta uma análise atenta dos dados dos gastos oficiais dos governos ao longo dos anos, disponíveis no
sítio eletrônico da Auditoria Cidadã da Dívida.
2 Predominantemente existentes. Afinal, trabalho escravo e não pago persiste sendo realidade mundo
afora. Mesmo em instituições legitimadas socialmente por amplos setores, que não conseguem
articular à dimensão de classes proposições como o fim do aprisionamento de pessoas. A respeito, cf.
Davis (2018) e Herivel (2013), dentre outros.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
direito, então, nem mesmo em uma leitura restrita que só reconheça como tal
aqueles previstos em leis, é extrassocial. (b) Com a complexificação da vida
em sociedade tais demandas estão radicalmente interligadas. Dificilmente se
apontará um direito “civil” que não guarde profunda relação com um “político”
ou “social”. E vice-versa.
A conjuntura vem se mostrando regressiva quanto ao acesso a direitos e políticas
públicas. Neste quadro, os debates “à esquerda” começam a conferir importância a
direitos “civis” e “políticos”. Sem liberdade de expressão, organização, participação na
vida social (o que obviamente inclui acesso a bens e riquezas produzidos socialmente)
retrocede-se a momentos que imaginávamos superados na história da humanidade.
Se tal reconhecimento não é meramente tático é algo a se constatar.
A nosso ver, não há por que sustentar, histórica e/ou conjunturalmente, que
alguns direitos devam ter, sempre e inevitavelmente, prevalência sobre outros –
exceto em uma situação: aquela em que se denominam de “direitos” processos
que geram opressão/exploração de outrém3.
Somos simultaneamente seres e indivíduos sociais. As classes são compostas
por pessoas e nossa diversidade não é um obstáculo para a construção de uma
sociabilidade efetivamente justa. Ao contrário, é condição para ela, como nos
indica o próprio Marx.
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4 Bobbio (2004, pp. 73-75), por exemplo, o faz. Afirma partilhar da preocupação dos que pensam
que equiparar direitos e exigências – “na melhor das hipóteses” – de direitos futuros significa “criar
expectativas que podem não ser jamais satisfeitas” – o que tende a esvaziar o papel das lutas. Diz
que o sentido corrente do termo direito é o de “[...] expectativas que podem ser satisfeitas porque são
protegidas”, e completa: são “[...] meras aspirações, ainda que justificadas com argumentos plausíveis,
no sentido de direitos (positivos) futuros”. Evidencia uma reduzida associação entre direito e lei.
5 Por exemplo, necessidades podem ser criadas artificialmente. Parece-nos ser o caso das “necessidades
do consumo”, algo gerado na sociedade capitalista e apresentado como potencial gerador de status,
de reconhecimento, de ter alcançado sucesso na vida etc.
6 Um exemplo concreto deste metabolismo e autometabolismo, com repercussões para algo que
a sociedade já via como direito, é o que envolve a comunicação. Sabemos que o impressionante
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
avanço da ciência e da tecnologia teve neste campo alterações velocíssimas. Para nos limitar a
poucas – mas fundamentais – análises sobre seus impactos, podemos nos referir às alterações nas
lutas sindicais, identificadas por Hobsbawm (1995) no surgimento do rádio. O mesmo autor se alinha
a Harvey (2003) ao chamar atenção para o quanto a revolução nos transportes e nas comunicações
praticamente teria anulado tempo e distância (Harvey denomina este fenômeno de compressão do
espaço-tempo). Sempre importante lembrar que isto não ocorre sem nítidas contradições: a era da
internet viabiliza um processo similar ao de uma escravidão voluntária (Crary, 2014), em que somos
nós quem fornecemos dados pessoais e de nossa inserção política a quaisquer serviços de inteligência
mais equipados. Além de ser viabilizada por aparelhos que são natureza transformada pela espécie
humana (pensemos nos celulares), a comunicação alterou nossas necessidades, nossa forma de agir,
de fazer política – e ainda o vem fazendo; gerou novas exigências de agilidade para a circulação
de informações – não só as midiáticas, mas também as do dia-a-dia, que antes estavam satisfeitas
pelo ditado popular que afirma que “notícia ruim corre rápido”. Mas também alterou o sentido de
debates sobre o direito à comunicação: se em sociedade ditatoriais o centro destas mobilizações era a
recepção de informações sem censura, na era da internet o debate gira em torno da posse de meios de
comunicação que viabilizem o envio, a transmissão de informações por setores muito mais amplos que
os pouquíssimos que possuem, privadamente, os principais e mais massivos veículos de comunicação,
caso inequívoco do Brasil.
7 Uma de suas principais expoentes, Agnes Heller, embora reafirme sua referência em Lukács, diz
abertamente, em entrevista recente, ser antimarxista. Perguntada se a democracia liberal é o
melhor regime possível, sua resposta é: “Sim. Penso que o desenvolvimento da história europeia
atingiu sua última fase com a democracia liberal. Não se pode ir mais longe. Podemos somente
melhorá-la: a liberdade pode ainda ser explorada e desenvolvida em muitas direções” (Heller,
2018). Há que se registrar que a publicação, no Brasil, se deu pelo jornal O Globo, que a nosso
juízo tem evidentes interesses em apontar a democracia de molde liberal como objetivo máximo
e legitimá-la nas reflexões de uma autora internacionalmente reconhecida como discípula de
Lukács. Ressalva feita, os milenares debates sobre o que caracteriza uma real democracia persistem
em curso (Cf. Coutinho, 2009).
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são decorrência do processo que nos fez vingar como a principal espécie viva na
longa história do planeta8.
Isto não elimina férteis diálogos e instrutivas polêmicas, entre interpretações
que não vemos como necessariamente excludentes. Sartori (2010), abordando a
temática do direito em Lukács, demonstra que o autor, dentre outras dimensões
centrais, identifica teleologias secundárias (as das relações entre seres huma-
nos) e mediação jurídica. Na leitura de Flores (1989), da qual já parecemos ter
evidenciado que mais nos aproximamos, o direito está especialmente identifi-
cado com as teleologias primárias (as relações entre ser humano e natureza).
Esta abordagem dialética sobre o que configura o direito e sua relação
com o próprio Estado nos parece ser algo que Marx, embora não a analisasse
centralmente, já constatava. Em 1875, questionando proposições do Partido
Operário Alemão para o Congresso de Gotha (MARX, 2004, p. 119), o
autor afirma que seria necessário ao Programa apresentado àquele evento
dizer “que transformação sofrerá o Estado numa sociedade comunista” (grifo
nosso) e pergunta: que funções sociais análogas às do Estado persistirão em
uma sociedade humanamente emancipada?
Há outros paralelos possíveis para o debate sobre o direito no mesmo texto.
Marx afirma que “o direito igual continua aqui, no seu princípio, a ser o direito
burguês” (Marx, 2004, p. 108)9. Registra que “O direito nunca pode ser mais
elevado que o estado econômico da sociedade e o grau de civilização que lhe
corresponde” (Idem, p. 109). Contudo, à pg. 120 afirma que “só se reclama o
que não se tem”, coerente com outra sua contundente afirmação, a de que
8 Acerca desta especificidade humana podemos acrescer reflexões de autores que não se declaram
marxistas, mas que, em nossa leitura, chegam a conclusões muito semelhantes, como Harari (2015).
9 A epígrafe escolhida para esta seção (De cada um, conforme suas capacidades; a cada um, conforme
suas necessidades) está na mesma obra marxiana. Evidencia-se que a categoria central “classe social”
não elimina, sequer entre nós das classes subalternizadas, características que nos são individuais. As –
se consideradas como naturais e, portanto, insuperáveis – frágeis dicotomias entre classe e indivíduo,
classe e identidade, dentre outras, não encontram lugar nas reflexões feitas por Marx nesta obra, escrita
oito anos antes de seu falecimento. Nos Grundrisse (Marx, 2011) a mesma pista nos parece evidente. O
consumo, que é simultaneamente produção, é caracterizado como o momento singular do processo que,
naquela obra, envolve produção, circulação, troca e consumo da mercadoria. Universal é a produção;
particulares são circulação e troca. O singular é momento que envolve a esfera individual, que combina
elementos sociais com perspectivas e características de cada ser/indivíduo social.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
10 Em artigo publicado logo após a queda do Muro de Berlim, em 1989, Fukuyama defendia que com o fim do
que ele entendia como comunismo – Hobsbawm (1995), prudente e corretamente, prefere qualificar tais
sociedades como aquelas que se reivindicavam socialistas –, a democracia liberal teria demonstrado ser a única
forma possível de governo. Em 2015, relativizando suas opiniões, já afirmava não ter tanta certeza de que
este caminho seria inevitável, ainda que mantenha a posição antidialética de que a história terá um fim:
“Ninguém que viva numa democracia estabelecida pode dar como certa a sua sobrevivência. Mesmo que nos
interroguemos sobre o tempo necessário para que todos acedam a esse estágio, não restam dúvidas quanto ao
modelo de sociedade a que o fim da História conduz” (Fukuyama, 2015).
11 Referimo-nos, aqui, especialmente ao Serviço Social brasileiro. Seu código de ética profissional,
aprovado em 1993 e atualmente em vigor, prevê, entre seus onze princípios fundamentais, a “defesa
intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”. Não o faz em perspectiva
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Referências bibliográficas
liberal burguesa, como pode ser captado da interlocução com os demais princípios. Dentre eles os
da “defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da
riqueza socialmente produzida” e o da “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de
construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero” (CFESS,
1993, pp. 23-24; os grifos são sempre nossos). Analisamos o conteúdo do princípio que anuncia uma
defesa intransigente dos direitos humanos em Ruiz, 2013. Ora, se uma pessoa que procura o Serviço
Social apresenta uma demanda não prevista em lei, nossa perspectiva de direitos precisa se associar
à necessidade objetiva, material, concreta, de sua vida. O que nos exigirá, por vezes, ir além das
próprias determinações institucionais, sempre guiados pela relativa autonomia que o fato de sermos
profissão regulamentada e com uma regulamentação ética própria nos confere. Só assim se justifica
a ideia da intransigência na defesa dos direitos humanos.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
DWYER, Jim & FLYNN, Kevin. 102 minutos. A história inédita da luta pela
vida nas torres gêmeas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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HARVEY, David. Para além de Marx, com Marx. Entrevista a Amélia Luisa
Damiani, publicada em 23/ago/2018. Disponível em <https://blogdaboitempo.
com.br/2018/08/23/para-alem-de-marx-com-marx/>, acesso em 25/ago/2018.
______. A era das revoluções, 1789–1848. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social 1. São Paulo: Boitempo, 2012.
______. Para uma ontologia do ser social 2. São Paulo: Boitempo, 2013.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
NETTO, José Paulo & BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução
crítica. São Paulo: Cortez, 2006.
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Função social do Direito e Marxismo
Introdução
O presente artigo tem como objetivo realizar uma análise crítica da fun-
ção social do direito mediante a perspectiva marxista em contraste ao pro-
posto pela ideologia de um direito burguês. Tal tema possui relevância, uma
vez que a luta de classes ainda se evidencia na realidade, sendo necessário
manter-se sempre atento ao rumo que, neste complexo conjunto de elementos
objetivos da realidade, o Poder Judiciário e as relações econômicas, jurídicas,
políticas e sociais têm tomado. De modo, trata-se de procurar compreender
a origem do funcionamento político da institucionalidade, a fim de oferecer
possíveis explicações sobre regressos quando se envolve com o ordenamento
jurídico e sua aplicação prática.
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axiológica, não produzem uma vinculação obrigatória, uma vez que o homem
usando a razão como instrumento pode questionar e desenvolver esses valores
num sentido oposto o positivado.
Essa noção da subjetividade e instabilidade da Moral decorre daquilo que
Heinrich Henkel busca elencar numa separação das naturezas morais, entre
Moral Natural e Moral Positiva, sendo aquela os princípios gerais da Moral,
os ideais mais nobres, a ideia geral de bem, enquanto a outra se subdivide em
Moral Social, e Moral Autônoma, as quais influenciam o comportamento do
homem mutuamente, ao passo que também sofrem influencias entre si. Quer
dizer, a Moral Social, sendo aqueles comportamentos e princípios inerentes aos
costumes daquela sociedade, é posta à prova e passa por constante reflexão
pela Moral Autônoma, aquela que todo ser humano mantem no seu íntimo
formada pelos valores por ele desenvolvido ao longo da vida. E dessa forma, esta
questiona e atualizada aquela sobre as novas tendências e novos valores que a
sociedade passa a desenvolver.
Nesse sentido, a Moral apresenta-se completamente instável, como dito,
e facilmente mutável, uma vez que determinado grupo que pensa diferen-
te sobre certas condutas podem influenciar os demais ou, até, aqueles que
mantem os meios de comunicação e a indústria cultural podem influenciar
a forma de pensar de grande parte da sociedade, mantendo, então, os pa-
drões de condutas por eles ditados.
Sobre essa discussão e dando ensejo a outro ponto a ser enfrentado acerca
da efetividade da Moral na normatização da conduta humana, Evguiéni B.
Pachukanis afirma:
Por um lado, essa lei [moral] deve ter um caráter social e, como
tal, colocar-se acima da personalidade individual. Por outro lado, o
possuidor de mercadorias, devido à própria natureza, é o portador
da liberdade (da liberdade de apropriação e alienação); portanto,
a regra que determina as relações entre possuidores de mercadoria
deve ser implantada na alma de cada um deles, ser sua lei interna. O
imperativo categórico de Kant reúne essas exigências contraditórias.
Ele é supraindividual, porque não tem nenhuma relação com qualquer
motivação natural, como paixão, simpatia, compaixão, sentimento
de solidariedade etc. Ele, na expressão de Kant, não ameaça, não
convence, não bajula. Está situado, em geral, fora de quaisquer motivos
empíricos, ou seja, puramente humanos. (2017, p. 155 e 156).
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3. Do direito burguês
A dinâmica do Direito Burguês, de fato, possui seu início com a ascensão
e estabilização da classe burguesa e do capitalismo na sociedade, fazendo-se
necessário remeter-nos mais uma vez à Revolução Francesa, de modo que se co-
nheça a Acumulação Primitiva de Capital, ou seja, os fatores históricos que pro-
piciaram a formação e a concentração de riquezas nas mãos de uma burguesia
comercial (PEREIRA, 2015, p. 9). Ademais, tendo em vista que o Direito, nos
dizeres de Marx (2008, p. 47), ao se pôr como uma superestrutura, se origina da
totalidade das relações de produção que constituem a estrutura econômica da
sociedade, poder-se-á compreender o direito burguês.
Tem-se, como principal marco normativo da sociedade francesa no século
XVIII, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, a qual positivou, nos
termos a seguir, os principais direitos reivindicados pela burguesia:
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Ora, é evidente que para que os interesses defendidos pela sociedade bur-
guesa fossem atingidos, era necessária uma comoção geral que envolvessem os
camponeses, de modo que tal declaração também positiva uma isonomia for-
mal. Entretanto, é clarividente que a classe camponesa - uma maioria pobre
- dificilmente desfrutou de direitos como a propriedade e futuramente, durante
a Revolução Industrial, sofreu a opressão.
Marx, visualizando essa questão, em Sobre a Questão Judaica (2010, p. 71),
expõe que de fato a burguesia atinge sua plenitude ao desvencilhar-se de todos
os laços humano-sociais substituí-los por laços egoístas, os quais colocando um
homem contra outro, trouxe hostilização mútua.
Tal previsão, bem demonstrada por Marx, remete a outro autor, Cesare
Beccaria, que já percebia as consequências de tal relação de direito oponí-
vel, cem anos antes dos escritos marxistas, ao discorrer que o roubo é um
delito decorrente do próprio direito de propriedade - que em seus dizeres
é horrível e desnecessário - que deixa ao homem como único bem, a sua
existência (BECCARIA, 2001, p.52).
Portanto, pode-se observar que a dinâmica do Direito Burguês - diferente da-
quilo proposto e escrito por Marx, em uma união das forças humanas (MARX,
2010, p.65) logo em um direito universal, com o outro - traz uma proposta que ao
invés de emancipar o homem ao lhe dar direitos, o aliena e subordina ao lhe pôr
em eterno estado de conflito contra o outro, em razão, de nada mais, que bens.
4. Do direito em Marx
Em sua vasta obra, Karl Marx desenvolve conceitos como o materialismo
histórico, que foi conceituado, apresentado, explicado e analisado no período
mais maduro de seu trabalho, e que, para atingir esse período ele perpassa por
e desenvolve diversos outros conceitos que o auxiliam a construir o raciocínio
que o faz concluir, em último grau, a relevância da filosofia e prática comunista.
No texto Sobre a questão judaica, no qual o jovem Marx discorre sobre a situa-
ção dos judeus na Alemanha no tocante à aquisição de direitos civis e políticos,
averiguando não só os meios para que isso viesse a se realizar, como também,
dissecando a tese da emancipação política e humana.
Outrossim, no citado texto do escritor prussiano, é apresentado diversos
extratos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e de algumas
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17 Art. 5. Every individual has a natural and unalienable right to worship God according to the dictates
of his own conscience, and reason; and no subject shall be hurt, molested, or restrained, in his
person, liberty, or estate, for worshipping God in the manner and season most agreeable to the
dictates of his own conscience; or for his religious profession, sentiments, or persuasion; provided he
doth not disturb the public peace or disturb others in their religious worship.
Art. 6. As morality and piety, rightly grounded on high principles, will give the best and greatest
security to government, and will lay, in the hearts of men, the strongest obligations to due subjection;
and as the knowledge of these is most likely to be propagated through a society, therefore, the several
parishes, bodies, corporate, or religious societies shall at all times have the right of electing their own
teachers, and of contracting with them for their support or maintenance, or both. But no person shall
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ever be compelled to pay towards the support of the schools of any sect or denomination. And every
person, denomination or sect shall be equally under the protection of the law; and no subordination
of any one sect, denomination or persuasion to another shall ever be established.
158
titui o Estado Real, além de ter desmantelado “o conjunto dos estamentos, cor-
porações, guildas, privilégios, que eram outras tantas expressões da separação
entre o povo e seu sistema comunitário.” (MARX, 2010, p. 63). No entanto,
a emancipação não permitiu a fase humana que seria a conjunção do âmbito
público ao privado, da efetiva junção da vida humana à comunitária, vivência
tal que a sociedade burguesa não permite e promove meios para que aconteça
o contrário: a disjunção dos dois âmbitos e a utilização do Estado apenas como
um intermédio para a realização de direitos individuais e a preservação, por
exemplo, da propriedade privada, através de determinado “poder de polícia”.
Desse modo, apresenta-se a falsa ideia do direito burguês como efetivador da
boa convivência social, quando, como explicitado, atua de forma desagregadora
de maneira que sua função social se torna deturpada e não correspondente à
emancipação humana dos cidadãos.
Conclusão
A perspectiva do Direito que se propõe hoje, no ponto de vista marxista,
não se encaixa mais com o modelo clássico do Direito liberal proposto no
século XVIII, onde há uma quase que completa “autonomia da vontade”,
sendo esse pensamento consolidado com a positivação dos direitos civis.
Segundo Marx, o Direito, como fenômeno criado pela política, deve ma-
nifestar as mudanças da sociedade e servir como uma ferramenta concreta
de emancipação e liberdade dos cidadãos como membros da sociedade civil
organizada, o que não seria possível através de normas de natureza moral
devido à sua valoração volátil e não coerção.
Desta forma, o Direito proposto por Marx, deve atuar como uma ferra-
menta concreta e de efetiva mudança social ao garantir direitos ao homem,
de forma a superar um estado de relações egoístas e conflituosas; garan-
tindo assim uma verdadeira emancipação do cidadão, e a sua inserção em
uma sociedade política.
Referências bibliográficas
MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. Tradução
de Nélio Schneider e Wanda Nogueira Caldeira Brant.
160
Igualdade jurídica e dominação de classe
Introdução
O golpe parlamentar contra o governo Dilma põe a nu a legalidade burgue-
sa: toda a fraseologia sobre a soberania do voto popular e o devido processo
legal são atirados à lata do lixo em nome de uma conveniência política. Há,
aqui, duas questões importantes a destacar:
1) Em primeiro lugar, essa reviravolta política é incompreensível fora das
bases materiais do modo de produção capitalista. É comum o esforço de pintar
o impeachment como um fenômeno puramente político ou moral, buscando ex-
plicar as raízes do ódio a Dilma e ao PT. Parece-nos, porém, que o terreno mais
seguro é o da economia. Só assim podemos explicar o programa do golpe: Dilma
foi removida para dar lugar a uma agenda acelerada de contrarreformas, que já
vinham sendo gestadas sob o nome de “Ponte para o futuro” e, depois “Agenda
Brasil”. Tudo isso são fatos políticos notórios.
Só é possível compreender o impeachment no quadro geral da crise capitalis-
ta, deflagrada em 2008 (COSTA, 2018). Essa crise, que nunca foi efetivamente
superada, precipitou inúmeros países, a tempos distintos, em crises políticas.
1 Advogado. Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
2 Advogado. Especialista em Direito do Trabalho.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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1. A legalidade no capitalismo
O Estado de Direito é, no capitalismo, o produto de um equilíbrio relativo
de classes. Se as classes dominadas fossem fortes demais, poriam abaixo todo
o regime e ergueriam um novo. Em reforço, a burguesia precisa guerrear com
todas suas armas, sem se permitir limites. Se, após um longo período de auto-
cracia burguesa, a massa trabalhadora se fortalece e pressiona pela liberdade
política, é possível à burguesia conceder determinadas margens de legalidade e
democracia. Se, porém, tais concessões se tornam estorvos, e se, como se isso
não bastasse, a vivência democrática acomodou e deseducou a massa trabalha-
dora para uma luta revolucionária, então, aproveitando-se essa fragilidade, nada
é mais previsível do que a retirada de tais concessões pela burguesia, o que só
poderá ser evitado se a luta social se reestruturar.
Nesse sentido, é absolutamente preciso verificar, no impeachment, uma
demonstração do caráter burguês da legalidade moderna, e seu conveniente
amoldamento às imperfeições jurídicas dos interesses burgueses dominan-
tes. Em momentos críticos, há ampla margem para se contornar essa legali-
dade, sem sequer romper com seu quadro geral. Em outros casos, naqueles
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O que nos leva à segunda questão: em segundo lugar, se é verdade que há de-
terminada violação da legalidade burguesa no impeachment de Dilma Rousseff,
esta mesma legalidade manteve-se formalmente intacta em seu quadro geral. A
substancial contradição flagrante de nossa época consiste em vivermos ainda
numa mesma República Constitucional, mesmo após um golpe parlamentar – e,
precisamente, porque se tratou de um golpe parlamentar, e não militar. No es-
sencial, foi precisamente a conivência Judicial o meio pelo qual foi possível, sem
estremecer a legalidade toda, a aceitação de tal farsa pontual de imensas reper-
cussões. Com efeito, sem resistência violenta ao golpe, foi possível fazer o golpe
passar sem violação violenta da legalidade. O mesmo ocorre agora, quando o ju-
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
diciário se dobra aos arroubos autoritários do Presidente eleito sem qualquer he-
sitação, permitindo sua campanha à Goebbels (ministro da propaganda nazista)
de notícias que têm sido reputadas como falsas e como propaganda caluniosa.
Em favor disso tudo, muitos juristas (notadamente aqueles que abordam o
tema da Justiça de Transição) já notaram que pesa sobre a tradição política
brasileira a ausência de qualquer enfrentamento radical às reminiscências auto-
ritárias do período militar na própria estrutura estatal brasileira. Gentili (2018,
p. 2) nota que “Brasil salió de la dictadura sin realizar un ajuste de cuentas con
21 años de opresión y violación al estado de derecho democrático. Cuando esto
ocurre, las naciones suelen estar condenadas a repetir el pasado. Pero el pasado
nunca se repite de la misma forma.”
2. Igualdade e dominação
Da leitura de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, de Pachukanis (2017),
obteve-se fundamentação teórica que se aplicou aos fatos trazidos, de modo que
se pôde afirmar a tese aqui pretendida.
Como resultado, aplicou-se, então, o método de Pachukanis a fim de carac-
terizar o direito como instrumento de classe quanto às ocorrências factuais aci-
ma, demonstrando que do texto A Teoria Geral do Direito e o Marxismo subsidia
a interpretação desses fatos.
A concepção materialista dialética da história e dos fenômenos sociais
(o direito entre eles) permite a Marx, Engels, Lenin, Pachukanis e diversos
outros autores compreenderem que o Estado (e sua forma correspondente de
legalidade) não é um aparato estranho à sociedade, que paira acima dela: é
um aparato criado pela própria sociedade, precisamente com a função de se
opor a ela como expressão oficial da coerção social. Engels é quem melhor
desenvolve esse aspecto (em seu A Origem da Família, da Propriedade Priva-
da, e do Estado[1984]): antes da divisão da sociedade em classes, a violência
era compartilhada pela comunidade de caçadores e guerreiros, com meios
coercitivos morais ou diretamente violentos. Essa possibilidade de distri-
buição comum dos meios de coerção desaparece ao mesmo tempo em que
desaparece a propriedade comum dos meios de produção: assim que surge
uma classe possuidora dos meios de trabalho, essa classe organiza para si
um instrumento concentrado de violência, um Estado, que mantém subor-
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Conclusão
É necessário vencer o fosso entre o que somos e o que poderíamos ser, tendo
em vista que, desde a colonização do Brasil, tem havido permanente violação
dos direitos básicos de educação, de saúde, de segurança, de justiça, em suma:
as necessidades mais elementares para assegurar à maioria do povo uma vida
digna. Como mencionado acima, tristemente se constata que “em nenhum mo-
mento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que
esperávamos.” (Furtado, 1999).
Na luta contra o reacionarismo, os setores populares contam com o apoio
dos juristas anticonservadores, que atuam buscando aproveitar a legalidade, a
doutrina e a jurisprudência como arma para contrapor-se ao conservadorismo
do sistema judiciário. Esses setores podem prestar apoio significativo à luta po-
pular, na medida em que juristas progressistas assumam postos e funções em
todas as esferas, incluindo o judiciário, provocando o acirramento dos conflitos
internos dos poderes constituídos – e, com isso, fazendo com que esses poderes
hesitem na repressão ao povo e no apoio às medidas reacionárias.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
O Poder Judiciário sempre foi, no Brasil, uma das instituições mais elitistas
e conservadoras do Estado. Está constantemente a favor da classe dominante,
e na verdade recruta seus quadros especialmente nesta classe. Esse cenário se
agrava no contexto da atual contrarrevolução mundial. Daí a impossibilidade
de quebrar a hegemonia burguesa sobre o poder judiciário, isto é, a curto prazo
não esperamos qualquer mudança fundamental no cenário brasileiro. Espera-
-se, sim, um acirramento dessas contradições e desse acirramento devem brotar
quadros preparados para a transformação para uma sociedade mais justa.
Se as instituições de Estado são incapazes de realizar um ordenamento so-
cial erigido sob uma compreensão mais humanista, distributiva e reparativa
do mundo, então é dever de todo o povo explorado oprimido ser o “freio e
contrapeso” de todo este estado elitista e reacionário. Os juristas progressistas
atuando no interior da burocracia estatal podem ser grandes aliados do Poder
Popular, mas serão absorvidos pela corrente hegemônica, se tentarem atuar iso-
ladamente, sem se ligar à luta popular, ou se essa luta não for forte o suficiente
para exercer fortes pressões sobre as instituições.
Se a sociedade é dividida em classes e determinada classe domina o Estado,
incluído o Judiciário, é imperioso entender que utiliza o Estado para dominar as
demais classes a favor de seus interesses.
As atuais reformas no Brasil não estariam em curso se grande parte da popula-
ção não as apoiasse incluída a classe média (funcionários públicos, arrendatários,
aristocracia sindical, donos de pequenas e médias empresas, professores, profis-
sionais liberais etc.) e a própria classe baixa desprovida de consciência de classe.
A classe intermediária serve de para-choque, de protetor da burguesia dos
golpes mais duros vindos do lado do trabalhador e ao mesmo tempo de condutor
das corruptas influências burguesas naquele meio. (Pachukanis, 2017, p. 255)
Após o dia 28 de outubro de 2018, com a vitória do projeto ultraliberal pelo
candidato Jair Messias Bolsonaro, é certo que haverá retrocessos com maior
potência, pois a vitória com 55% dos votos válidos e a maioria parlamentar
conservadora permitirão realizar mudanças ainda mais radicais.
Percebe-se hoje um esgarçamento dos poderes executivo, legislativo e ju-
diciário, e esse esgarçamento é a demonstração da própria ruína da socieda-
de capitalista, no âmbito da qual as contradições entre as classes sociais estão
absolutamente expostas. Tanto o Estado quanto a iniciativa privada não dão
conta das demandas da sociedade, indicando que o judiciário como arauto da
burguesia não tem dado respostas satisfatórias aos problemas da ampla maioria
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Referências bibliográficas
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O conceito de indivíduo na
história do pensamento ocidental:
Kant, Marx e Nietzsche
Introdução
Sobre quantos mais espetáculos se alicerçará o Estado Liberal? O primeiro
destes: a noção malfeita de individualismo. Alega-se ser o ser humano um
indivíduo fundado em seu livre arbítrio, em sua vontade plena. Por que se trata
de um espetáculo? Ora, porque foi feito com este intuito, de fazer domesticar
os espíritos. Todo espetáculo é como uma dança, que prende os olhos e que
hipnotiza por tempo indeterminado. A noção frouxa de vontade plena, de buscar
tornar o ser humano um império de si, guarda consigo uma franca contradição:
aqui o animal débil, que se afasta dos outros animais presunçosamente, por
possuir certa capacidade de raciocínio e de interpretação, anuncia uma ideia e
a segue, como um tolo; cria uma abstração, algo inexistente, e a torna verdade
para si. Estes seres humanos de modo muito peculiar — e hilário, se tomarmos
a questão por um aspecto inverso — enfrentam o seu próprio vazio afastando
a matéria que os moldou e acreditando em qualquer balbúrdia que lhes sirva.
E quantas asneiras não foram tomadas como verdades no decorrer da história?
E qual a necessidade delas? Por que o ser humano engana a si mesmo? Por que
a verdade lhes é tão incômoda, tão desconfortável? O que lhes dói tanto? Será
que simplesmente não se pode aceitar esta condição inicial de ser um “nada”?
Não, evidente que não. É preciso amaneirar a visão, transformar a realidade
em fantasia, ou em hiper-realidade. É preciso se iludir, para que não se morra
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de angústia. Quanta fraqueza para uma só espécie... e tudo isso a partir dos
devaneios da maldita razão, esta ardilosa meretriz!
Olha-se afinal para o espelho e indaga: que és tu, ó ser humano? Que na
verdade, transmite um anseio um tanto mais egoísta: “Que sou eu?” O reflexo
nada lhe diz. É uma visão indefinida, sem anunciar qualquer concretude. Será
que Marx, em algum tempo ou outro, enfrentou o espelho? E que poderia ele
ter constatado de sua observação? Talvez a imagem mais desnudada, mais de-
sencantada, mais crua. Provavelmente não se viu ali; provavelmente não havia
nada além de uma indefinida construção. Um contrassenso para quem busca o
definitivo. Ser construção significa ser fluidez, e ainda, adotá-la como compo-
nente de sua essência — ou de uma não essência, se essência pressupor neces-
sariamente algo absoluto e indivisível. A percepção, o encontro de si através do
reflexo, ou encontro de si por meio de si, na tentativa mais pura de encontrar
alguma verdade, este entender-se como construção, é a primeira constatação do
ser humano que se identifica enquanto um ser social e não um ser racional — ou
seja, sustentado pela própria razão. A crítica de Marx ao indivíduo racional se
encontra muito bem exposta na Ideologia Alemã, onde ele dispõe largamente so-
bre o seu método de análise, o materialismo histórico-dialético, e sobre a cons-
trução do mundo humano. E o que significa dizer que tudo é construção? Ora,
significa compreender que tudo no mundo, e, portanto, também o ser humano,
é resultante de um processo material anterior. “O primeiro pressuposto de toda
a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos.
O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e,
por meio dela, sua relação dada com o restante da natureza.” (MARX e EN-
GELS, 2007, p. 87) E esta matéria, ainda em sua dimensão mais elementar, no
processo de assimilação do real, eventualmente colide e forma algo, o novo real.
E a cada novo encontro — e isto ocorre de forma indefinida e caótica — outras
partículas vão tomando forma e a realidade vai se amoldando em um processo
indeterminável. Dentro deste cenário, surge então, não melhor do que uma
barata ou um rato, o ser humano. Emerge, pois, desde o princípio, diante das
trocas e encontros materiais, latejando, em estado bruto. É ainda uma criatura-
zinha muito desprezível, trêmula e assustada com o que vê. A mente, esta “dádi-
va” maliciosa, que o acorda para o mundo, tornando-o visível, manifesta-se em
algum momento incerto dessa troca material, não antes ou concomitantemente
à nossa condição animal. Ela surge, pois, no meio de algo; surge empoeirada,
condicionada, construída. Diz Marx:
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Há, pois, pelo menos, uma questão que carece de um estudo mais
atento e que não se resolve à primeira vista; vem a ser esta: se haverá
um conhecimento assim, independente da experiência e de todas as
impressões dos sentidos. Denomina-se a priori esse conhecimento
e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na
experiência. (...) designaremos, doravante, por juízos a priori, não aqueles
que não dependem desta ou daquela experiência, mas aqueles em que
se verifica absoluta independência de toda e qualquer experiência. Dos
conhecimentos a priori, são puros aqueles em que nada de empírico se
mistura (KANT, 2001, p. 62).
A questão enfrentada por Kant era estabelecer como se dá este juízo sintético
a priori, ou seja, como poder afirmar algo sobre algo sem que haja a necessidade
da percepção pelos sentidos. Neste enfrentamento, o professor alemão fornece
à ainda incipiente sociedade moderna as chaves para o castelo onde repousa o
indivíduo: como Copérnico para o sistema solar, o sujeito, não mais o objeto,
passa a figurar no centro da problemática do conhecimento. Em palavras mais
esmiuçadas, não seria o sujeito regulado pelo objeto, mas este regulado pelo
sujeito — sujeito enquanto razão — que agora se torna o ser que dá sentido
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O que Kant fez aqui? Ora, o que nem os racionalistas dos séculos anteriores
tiveram a audácia de conceber. Estacou a razão definitivamente no centro de
gravidade do mundo, sem qualquer pudor, numa espécie de convencionalismo
— ou seria boa vontade? — desassombrado. O que o sujeito percebe, por meio
de sua razão, sua construção do mundo, é tudo aquilo que pode ser conhecido;
contudo, não é a coisa em si, admite. A realidade humana diferiria da reali-
dade real, pois esta seria incognoscível, impossível de ser conhecida. Disto, se
a coisa em si não pode ser captada, a coisa elaborada pelo produto racional se
transforma em coisa da realidade humana, única acessível. Daí, agora, os juízos
sintéticos a priori se tornam possíveis, porque derivados do indivíduo, o centro
do conhecimento humano.
Aqui, a mente faz a sua própria teoria, que a legitima; elabora sua pró-
pria emancipação e sua miséria. Diz “sou livre, dentro das liberdades a que
eu mesma me imponho” e se convence disto. Ela cria a verdade, na medida
em que enuncia os pressupostos do que é a verdade. Adentra-se aqui num
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Assim, a teoria kantiana, antes de elucidar uma vontade plena, livre em si,
acaba por solidificar as bases da ideologia que sustentam o indivíduo burguês;
mais ainda, que sustentam, a partir do argumento racional, a noção de indivíduo
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do Estado Liberal; que essa noção fazia-se essencial para domesticar os espíritos
rebeldes e extraviados e que tinham muito mais função do que verdade; era, em
suma, uma verdade que se impunha, por uma pulsão, ou anseio, social e moral.
Não restam dúvidas de que Kant foi um dos maiores defensores deste indi-
víduo fundado na razão. Foi, em verdade, o último a se empenhar com tanto
esmero. A doutrina contratualista, nos dois séculos anteriores, consumou, no
terreno da filosofia política, o ser isolado que, a partir dos desígnios da sua cons-
ciência, convenciona a formação de uma sociedade civil. Assim é, por exemplo,
em Hobbes, onde o ser humano, lobo de si, a fim de preservar a própria vida,
acorda com outros seres humanos pela formulação de um contrato que crie uma
entidade com força suficiente para manter a paz — o Estado, ou o Leviatã. O
pensamento hobbesiano, contudo, carecia de maior contato com a classe à épo-
ca em ascensão, a saber, a dita burguesia, que necessitava de um modelo estatal
que não suprimisse a liberdade dos seus cidadãos. Nesse contexto, surge, como
um encaixe quase perfeito, o contrato político de John Locke, mais “amaneira-
do”, menos severo na sua concepção da função do Estado. Pois se para Hobbes,
o estado natural é estado de guerra generalizada, em Locke, os seres humanos
vivem naturalmente sob o jugo de uma lei natural, percebida e assimilada pela
razão. A sociedade civil apenas emerge para dar maior proteção à propriedade
do indivíduo — propriedade aqui compreendida em sentido amplo de vida, li-
berdade e bens. Tão colossal se torna o indivíduo que a este é dada a faculdade
de resistir a um governo que não cumprisse com tal função basilar do Estado.
Com Kant, o sujeito é inapelavelmente fechado em si; é posto como um impé-
rio, um ser fim de si mesmo, capaz de, com o esforço de seu pensar, criar e dar
sentido ao seu próprio mundo, seja o político, seja o da casa.
Conclui-se a história da Filosofia, e também a história do ser humano, que
prossegue a definhar, agora em seu mausoléu próprio, agora como um “rei”,
num castelo empoeirado e sem luz, onde qualquer rastro de vida parece nunca
ter anunciado passagem. Se devassa e se corrói, sentindo que lhe falta algo,
algo que não sabe expressar em palavras. Há uma imperfeição oculta em algum
canto, talvez sob as teias de aranha, um sabor ainda amargo na boca, um senti-
mento ruim, ah, um sentimento ruim...
Que há de concreto, pois? Nada, não há nada, além do sopro indistinguível
do vazio. O espelho, na sua mais tesa natureza, reflete apenas um abismo; o
expõe, como uma ferida na terra, que o ser humano repudia enxergar. Prefere
ser uma paródia de “rei”. Pois se tudo no mundo é criação resultante de um
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4 Marilena Chauí deixa essa questão deveras esclarecida em seu livro Política em Espinosa (2006).
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5 Refiro-me ao conto Um Relatório para uma Academia, presente no livro Um Médico Rural (1999).
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força, tem a coragem, tem o reconhecimento, tem a satisfação! E então, vê que pode
até esboçar um sorriso, um sorriso bobo, meio sem graça, meio torto, ainda fraco,
tímido, envergonhado, mas ainda sim um sorriso, uma genuína alegria. Quanta
tolice, quantos delírios... Ainda queres olhar para essa figura miserável? Sob um
manto de alucinações, repousa, pois, o indigente e sofrível ser que se diz humano.
Referências bibliográficas
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
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O direito e a teoria da renda fundiária:
o IPTU como instrumento de recuperação
de mais-valias fundiárias no Brasil
Introdução
A terra ao longo dos processos de desenvolvimento do capitalismo foi se
concentrando nas mãos de poucos e sua reprodução não se manifesta da mesma
forma que as demais mercadorias. A propriedade privada em conjunto com o
desenvolvimento capitalista da cidade ganha força e acaba por dominar as rela-
ções sociais fundadas num sistema de desigualdade social.
Marx e Engels destacam que a burguesia “criou cidades enormes, aumentou
num grau elevado o número da população urbana face à rural”, além disso, os
autores ensinam que esse processo de produção das cidades capitalistas “aglo-
merou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a proprie-
dade em poucas mãos” (MARX; ENGELS, 1997, p. 34).
O presente artigo tem como objeto o estudo do IPTU como instrumento
de recuperação de mais-valias fundiárias, previsto na Constituição Federal
189
de 1988, Código Tributário Nacional, no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257
de 2001) e legislações municipais. Entendendo-o não apenas como um
tributo em sua função fiscal, mas como uma ferramenta de auxílio à política
urbana, capaz de recuperar, em benefício da coletividade, os benefícios
auferidos pelos proprietários privados com a valorização de seus imóveis em
razão de ações do poder público, como obras de infraestrutura e alocação
de serviços para população.
No entanto, os municípios brasileiros têm apresentado dificuldades na efe-
tivação de tributos como o IPTU. Além disso, observa-se também que não há
uma clara compreensão da relevância dos instrumentos de política urbana pelos
cidadãos, tampouco uma cobrança para que sejam efetivados, sendo relevante
demonstrar como o IPTU pode auxiliar à política urbana, tanto com a sua ar-
recadação em si, como através da sua função extrafiscal.
A noção de recuperação de mais-valias fundiárias utilizada na nossa pesqui-
sa é a de mobilizar uma parte dos incrementos de valor da terra que tenham
sido decorrentes de ações alheias à dos proprietários de terras como: investi-
mentos públicos em infraestrutura, alterações administrativas nas normas ou
regulamentações de usos do solo (SMOLKA, 2014, p.14).
No que diz respeito à retenção da terra urbana, principalmente, aqueles
servidos por infraestrutura, leva parte da população a ocupar áreas inadequa-
das para moradia ou regiões de proteção ambiental ou terrenos ambiental-
mente frágeis. Surge, então, um processo de exclusão da população mais pobre
do acesso ao solo urbanizado. Dessa forma, existe um custo pela manutenção
de infraestrutura paga pela coletividade, mas que devido à capacidade con-
tributiva acaba comprometendo boa parte da renda das classes mais pobres e
exploradas (MARICATO, 2000).
Diante disso, questiona-se: em que medida a arrecadação do IPTU
possibilita (ou não) a recuperação de mais-valias fundiárias em prol da
coletividade? E partindo dessa problematização tem-se por objetivo geral
verificar se o IPTU tem capacidade de recuperar mais-valias fundiárias em
prol da coletividade
Para se chegar ao objetivo proposto, buscou-se a revisão sistemática de lite-
ratura através do uso de referencial teórico, bem como de teses e dissertações
recentes que analisam o IPTU e o conceito de recuperação de mais-valias fun-
diárias. Adotamos o método materialista histórico com base em autores como
Marx, Gonzalez, Topalov e Harvey para compreender a contradição entre a
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Essa explicação trazida pelo autor deixa claro como a mais-valia fundiária é
produzida e assimilada pelos proprietários privados. Nos ajuda na compreensão
da especulação mediante a retenção de terras e valorização imobiliária através
do incremento no valor por meio de obras públicas de infraestrutura construí-
das próximas aos seus imóveis, tornando-os mais acessíveis, mais bem localiza-
dos, entre outros atributos que contam para a valorização.
Em razão disso, é preciso compreender a necessidade de o Estado intervir
de forma a recuperar em prol da coletividade essa mais-valia que é produzida,
em regra, com recursos públicos, mas que não retorna em benefícios para a
cidade ou sua população, servindo, principalmente, à especulação imobiliária,
ao valorizar terrenos em locais privilegiados e ao enriquecimento dos agentes
do mercado imobiliário.
Tal recuperação de mais-valias somente é possível com uma ação estatal
direta a partir da utilização dos instrumentos previstos no arcabouço legislativo,
que visa justamente diminuir as desigualdades sociais existentes, minimizando
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Para ele, apesar de ter crescido de forma geral o interesse das gestões locais
pelos instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias, a efetiva imple-
mentação continua sendo o desafio principal. Segundo as pesquisas realizadas
pelo Lincoln Institute of Land Policy, ainda é vista como “uma ferramenta para
promover a equidade nas cidades, mais que uma forma de avançar na autono-
mia fiscal municipal e no desenvolvimento urbano em geral” (2014, p. 60).
Para que a recuperação de mais-valias fundiárias ocorra é necessária uma
conversão desses “incrementos do valor da terra” produzidos por ações estatais
em receitas públicas “através da cobrança de impostos, taxas, contribuição de
melhoria e outros meios fiscais, ou mediante a provisão de melhorias locais de
forma a beneficiar a comunidade” (SMOLKA, 2014, p. 9).
No Brasil, o Estatuto da Cidade – Lei Federal 10.257 de 2001 – incor-
pora vários princípios relevantes à recuperação de mais-valias fundiárias,
princípios estes que foram estabelecidos na Constituição Federal de 1988
e regulamentados pela legislação federal, que estabeleceu instrumentos de
efetivação da política urbana, de forma a possibilitar a recuperação de mais-
-valias em prol das comunidades.
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Considerações finais
Atualmente há nas grandes cidades uma forte atuação do Direito Urbanísti-
co sobre a propriedade, com a ordenação da ocupação do espaço urbano a partir
de interesses coletivos e da qualidade de vida dos cidadãos, não se sujeitando à
discricionariedade do proprietário privado (CARDOSO, 2008). Além da fina-
lidade fiscal, o IPTU se difere da maioria dos outros tributos em razão da sua
extrafiscalidade relacionada também diretamente com questões urbanística.
Deste modo, apresenta uma relação direta com o ordenamento territorial e o
desenvolvimento urbano, fazendo-se necessária a compreensão da formação da
propriedade privada e sua relevância na produção e reprodução do espaço capi-
talista, como no caso brasileiro que, apesar de ter uma origem não propriamente
capitalista, devido a forma como se deu a colonização e a ocupação inicial das
terras no país, logo foi modificada pela legislação então vigente, de modo a
expandir-se através de um modelo capitalista que priorizou as camadas mais
abastadas da população, privilegiando os grandes latifúndios de terra e, mais à
frente, uma urbanização das cidades de forma segregada, onde as melhores loca-
lizações foram sendo paulatinamente ocupadas pelas classes de mais alta renda,
enquanto às camadas populares restou ocupar as periferias distantes, sem aces-
so aos serviços públicos e às infraestruturas básicas, bem como, essa ocupação
se deu de forma irregular, pois o Estado somente passou a se preocupar com a
regulamentação dessas áreas recentemente, especialmente com a Constituição
Federal de 1988 e o Estatuto das Cidades em 2001.
A partir daí que se passou a tratar de instrumentos voltados para o uso e
ocupação ordenada do solo urbano, bem como da necessidade de se recuperar
as mais-valias fundiárias existentes nas propriedades privadas.
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Referências bibliográficas
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MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In:
MARICATO, E. et. Al. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros,
2010.
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Sobre o método:
Pachukanis como seguidor de Marx
Introdução
Pachukanis, para chegar às suas teses acerca do Direito, apresentadas em A
Teoria Geral do Direito e o Marxismo, foi fiel ao método usado por Marx na aná-
lise da economia política, em geral, e da sociedade capitalista, em particular2.
Mas o que seria este método? Em que ele consiste?
Marx, na Introdução de 1857, escrita como introdução aos Grundrisse, mas
publicada também no Brasil junto ao texto de Para a Crítica da Economia Políti-
ca, desenvolve um princípio metodológico que tem como pontos fundamentais
ir do abstrato ao concreto e do simples ao complexo. Dessa forma, para realizar sua
análise da economia política, o pensador alemão parte das determinações mais
simples como o preço, o valor e a mercadoria, para reproduzir uma totalidade
concreta enquanto uma unidade rica de inter-relações e determinações. Em
sentido contrário caminhavam os economistas do século XVII, que começaram
pelas noções concretas e complexas de Nação, Estado e População para chegar
às mais simples e abstratas. A crítica marxiana mostrou que em tal método a
representação plena volatiza-se em determinações abstratas.
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Assim, Marx não começa sua pesquisa pensando a economia em geral, mas
por uma análise da mercadoria e do valor (as determinações mais simples). Isto
porque a economia, enquanto esfera de relação entre particulares, somente se
diferencia das outras atividades vitais, com as quais forma uma totalidade orgâ-
nica, com o surgimento da troca.
Na mesma senda, Pachukanis principia sua análise definindo a Teoria Geral
do Direito como sendo o desenvolvimento dos conceitos jurídicos fundamen-
tais, isto é, os mais abstratos. Pertencem a esta categoria conceitos como o de
norma jurídica, relação jurídica e sujeito de direito. Tais conceitos, por sua natu-
reza abstrata, são utilizáveis em qualquer domínio do Direito, bem como sua
significação, lógica e sistemática permanecem ao mesmo domínio, independen-
temente do conteúdo concreto das normas jurídicas, ou seja, eles (os conceitos)
conservam sua significação mesmo que o seu conteúdo material concreto se
modifique de uma maneira ou de outra. Eles são o resultado de um esforço de
elaboração lógica que parte das relações e das normas jurídicas e representam
o produto tardio e superior de uma criação consciente. Mas, tal corpo de con-
ceitos jurídicos abstratos e fundamentais poderia nos dar um conhecimento
científico do direito ou seriam eles apenas meros expedientes técnicos criados
para fins de comodidade? Qual a possibilidade de uma análise das definições
fundamentais da forma jurídica, tal qual existe na economia política uma aná-
lise das definições fundamentais e gerais da forma mercadoria e da forma valor?
Para o jurista russo, a solução destas questões determinará se a Teoria Geral do
Direito pode ser considerada como uma disciplina teórica autônoma.
Ora, Direito é um conceito das (mal) chamadas ciências sociais, portanto,
sujeito a uma história real que se constrói a partir do desenvolvimento das re-
lações humanas. O direito igualmente, em suas determinações gerais, o direito
enquanto forma, não existe apenas no cérebro e nas teorias dos juristas espe-
cializados. Ele possui uma história real, paralela, que não se desenvolve como
um sistema de pensamento, mas como um sistema particular que os homens
realizam não como uma escolha consciente, mas sob pressão das relações de
produção. Assim, a relação jurídica pode ser entendida como resultado do de-
senvolvimento social, não como mero produto de uma elaboração conceitual.
A Teoria Geral do Direito burguesa o vincula aos interesses materiais das
diversas classes sociais, mas não explica a regulamentação jurídica enquanto
tal, ou seja, por que determinado interesse de classe é tutelado justamente pela
forma jurídica e não por outra forma qualquer. Não há dúvida de que a teoria
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1. O método de Marx
A discussão do método na obra marxiana 3 é parca. Podemos recordar
dois momentos de sua obra em que Marx trata do tema de modo mais siste-
mático: no §1 da segunda parte da Miséria da Filosofia, quando, na polêmica
contra Proudhon, analisa o método deste e suas relações com a dialética
hegeliana, e na Introdução aos Grundrisse, os manuscritos econômicos de
1857-1858, onde sintetiza as bases de sua análise da sociedade capitalista
que terá seu ponto alto em O Capital 4.
Não é casual que Marx tenha, numa obra tão extensa como a sua, se de-
dicado tão pouco às questões metodológicas ou mesmo não tenha publicado
uma obra especificamente dedicada ao seu método de pesquisa. É que seu
pensamento tinha uma natureza ontológica e não epistemológica. Como diz
Netto (2011, p. 27): “o seu interesse não incidia sobre um abstrato ‘como co-
nhecer’, mas sobre ‘como conhecer um objeto real e determinado’”. Por isso,
para Marx, não se tratava, como em Hegel, de expor uma ciência da lógica,
“importava-lhe a lógica de um objeto determinado - descobrir esta lógica con-
siste em reproduzir idealmente (teoricamente) a estrutura e a dinâmica deste
objeto” (Netto, 2011, p. 27). Como bem formulou Lênin, “se Marx não deixou
uma ‘Lógica’ (com letra maiúscula), deixou a lógica de O Capital, e isso deve-
ria ser utilizado profundamente nessa questão. Em O Capital aplica-se a uma
ciência a lógica, a dialética, a teoria do conhecimento – não são três palavras:
é uma coisa só – do materialismo, que tomou tudo o que há de valioso em
Hegel e fez esse valioso avançar” (Lênin, 2018, p. 327).
Estabelecido em poucas palavras porque não há uma discussão mais siste-
mática em Marx a respeito de seu método, passemos agora à análise do mesmo.
3 Por “obra marxiana” queremos referir a obra de Karl Marx, diferenciando-a da “obra marxista”, a
obra dos pensadores que se reivindicam da tradição inaugurada por Marx.
4 Como já referido, esta Introdução foi publicada também junto ao texto intitulado Para a Crítica da
Economia Política.
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5 Sobre a categoria teórico-ontológica da totalidade, vale a pena dar voz ao longo, mas imprtante
comentário de Netto (2011, p. 56. Grifos no original): “Para Marx, a sociedade burguesa é uma
totalidade concreta. Não é um ‘todo’ constituído por ‘partes’ funcionalmente integradas. Antes,
é uma totalidade concreta inclusiva e macroscópica, de máxima complexidade, constituída por
totalidades de menor complexidade. Nenhuma dessas totalidades é “simples” – o que as distingue é
o seu grau de complexidade (é a partir desta verificação que, para retomar livremente uma expressão
lukacsiana, a realidade da sociedade burguesa pode ser apreendida como um complexo constituído por
complexos). E se há totalidades mais determinantes que outras (...), elas se distinguem pela legalidade
que as rege: as tendências operantes numa totalidade lhe são peculiares e não podem ser transladadas
diretamente a outras totalidades. Se assim fosse, a totalidade concreta que é a sociedade burguesa
seria uma totalidade amorfa – e o seu estudo nos revela que se trata de uma totalidade estruturada
e articulada. Cabe à análise de cada um dos complexos constitutivos das totalidades esclarecer as
tendências que operam especificamente em cada uma delas”.
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objeto de estudo. Mas, o que seriam estas “determinações”? Neste ponto, é es-
clarecedora a resposta dada por José Paulo Netto (2011, p. 45) à questão:
6 “O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por
isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto
de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida ainda da intuição
e da representação” (Marx, 1974, p. 122).
7 É necessário chamar a atenção para este termo: movimento. De fato, a teoria não é a mera reprodução
ideal (porque no plano do pensamento, da idéia) do real, mas a reprodução ideal do movimento do
real, justamente porque o real não é estático, mas, dialeticamente, movimento.
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Marx pretende, com sua teoria, ou seja, com a reprodução ideal do movi-
mento do real, chegar ao estabelecimento das “categorias que exprimem suas
[da sociedade burguesa] relações, a compreensão de sua própria articulação”
(Marx, 1974, p. 124). Estas categorias são reflexivas (porque estabelecidas pelo
pensamento), mas são também ontológicas (porque pertencem à ordem do ser)
e históricas (porque transitórias). É lapidar como Marx explica o caráter onto-
lógico das categorias:
Este caráter histórico das categorias leva, como a citação aponta, a que a
validade plena destas categorias só se dá no âmbito de uma sociedade especí-
fica. Assim, as categorias próprias da sociedade burguesa, só têm validade nos
marcos desta sociedade. Além disso, as categorias da sociedade burguesa são
as mais desenvolvidas e as mais diferenciadas e complexas, exatamente por ser
esta sociedade a mais desenvolvida. Neste sentido, para Marx, é o mais desen-
volvido, o mais complexo, que explica o menos desenvolvido, o mais simples, e
não o contrário, como querem os positivistas. Logo, o presente explica o passa-
do. Passemos a palavra a ele:
8 Não à toa Lukács afirmou que “(...) as categorias não são elementos de uma arquitetura hierárquica
e sistemática, mas, ao contrário, são na realidade, ‘formas de ser, determinações de existência’,
elementos estruturais de complexos relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas inter-relações
dinâmicas dão lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido tanto extensivo quanto
intensivo” (Lukács, 2012, p. 297).
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Toda exposição que fizemos até aqui foi no sentido de apontar aspectos ge-
rais do método de Marx. Para tanto, como já afirmamos, nos restringimos à
análise da parte 3 da Introdução de 1857. Passemos agora à análise do método
de Pachukanis.
2. O método de Pachukanis
Pachukanis aplica ao estudo do Direito o método (dialético) que Marx apli-
cou ao estudo da Economia ou, mais precisamente, que Marx aplicou na elabo-
ração de sua teoria social. Assim, ele procura apresentar o Direito como totali-
dade concreta para explicitar suas contradições e toda a sua dinâmica interna.
Inicialmente, o jurista russo pretende demonstrar o caráter histórico da
forma jurídica para, desse modo, apontar tanto as condições em que ela
se desenvolve por completo, quanto as condições de seu desaparecimento.
Neste ponto, Pachukanis rompe radicalmente com as teorias burguesas do
9 Marx utiliza aqui, claramente, uma metáfora que remete à teoria darwiniana da Evolução. Com isso,
não se pense que ele vê o processo histórico numa perspectiva evolucionista linear. Para Marx, não há
um caminho pré-estabelecido a ser seguido pela História. Em outras palavras: não há determinismo
em Marx. A própria sociedade burguesa não estava pré-estabelecida no início da História. Ela é
produto do devir histórico, logo, traz em si as marcas desse processo. Daí sua crítica aos economistas
clássicos, para quem as características da sociedade burguesa já estavam dadas nas formas mais
arcaicas de vida social, o que levou estes economistas a eternizarem as relações capitalistas, vendo-as
como a-históricas e naturais.
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10 Dada essa aproximação do direito com a mercadoria, Piotr Stucka, jurista que polemizou com
Pachukanis acerca do caráter do direito na nascente sociedade socialista soviética, definiu a posição
deste com relação à teoria geral do direito como uma “tentativa de aproximar a forma do direito da
forma da mercadoria” (Pachukanis, 2017, p. 60), o que só evidencia a fidelidade de Pachukanis ao
método marxiano.
11 O mesmo se deu com a mercadoria: sua forma plena e acabada só se deu na sociedade capitalista.
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O mesmo pode ser dito sobre o sujeito de direito. A categoria que, na análise do
Direito, cumpre este papel de fundamento e, portanto, ponto de partida é o sujeito
de direito. Pachukanis nos explica: “toda relação jurídica é uma relação entre sujei-
tos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que
não pode mais ser descomposto” (Pachukanis, 2017, p. 117). A concepção teórica do
autor de Teoria Geral do Direito e o Marxismo se organiza, portanto, sobre a noção
de sujeito de direito. Essa concepção implica uma posição antinormativista, ou seja,
de recusa da ideia de que a norma gera a relação jurídica. Na verdade, é a relação
jurídica que permite a conexão dos sujeitos privados através dos contratos.
Há que se destacar que só no modo de produção capitalista os indivíduos se
tornam sujeitos. Isso acontece porque, para que haja uma esfera geral de troca
de mercadorias, é preciso que aqueles que estão trocando os bens sejam proprie-
tários, logo, que sejam livres e iguais (pelo menos formalmente). A liberdade é
fundamental porque a troca implica um ato volitivo, uma expressão do querer
do proprietário. Como diz Marx:
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Conclusões
Pachukanis é o mais importante pensador marxista do direito. Apesar de
inacabada, sua obra Teoria geral do direito e marxismo apresenta teses radicais
onde o autor mostra as contradições de toda a tradição jurídica burguesa que
defende a tese da eternização da forma jurídica. De fato, o Direito é visto como
algo que sempre existiu e para sempre existirá12.
Fundamentado no método marxiano, no qual os elementos mais simples
apontam para a compreensão dos mais complexos, o jurista russo funda a crítica
do Direito sobre uma base materialista. Para ele, a teoria marxiana não tinha
apenas que examinar o conteúdo dos vários ordenamentos jurídicos nas dife-
12 Não custa lembrar o exemplo dado por processualistas para tentarem provar que ubi societas, ibi jus:
na hipotética ilha de Robinson Crusoe, o direito surge apenas com a chegada do nativo Sexta-Feira. Os
processualistas burgueses também cometem “robinsonadas”.
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Referências bibliográficas
______. Para uma ontologia do ser social. Vol. I. São Paulo: Boitempo, 2012.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
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Capítulo III
Constituição e Marxismo
A construção do direito sob a égide da
filosofia política, da construção moral e
filosófica das classes sociais
Introdução
Dentro do processo de fundação da sociedade almejada no capital, os víncu-
los objetivos de convivência e os processos interpessoais das relações são modi-
ficados pelo enraizamento contínuo do status objetificação das relações. Nisto,
cabe a reflexão teórica sobre como foram erigidas as formas de governo e a
tomada de lugar pelos agentes que controlam a sociedade (dentro da concepção
da figura de Estado), assim como os possíveis estamentos sociais que pressu-
põem o modelamento do estatuto de sociedade a ser seguido.
Além do já exposto, a figura da burocracia estatal que seria, primaria-
mente, um agente modelador do processo de socialização das vivências.
Esta, detentora do monopólio do conhecimento, do verbo social e das liga-
ções afetivas de implementação e fundação dos processos culturais, passa a
dividir tal quadro situacional como a burguesia econômica, que participou
e participa historicamente do polo ativo no processo de formação dos qua-
dros opinativos das classes estamentárias inferiores, satisfazendo o ponto de
ligação entre burocracia e burguesia.
Dito isto, friso a pressuposição de que o processo histórico de materialização
dos sentimentos pessoais de justiça, cultura e educação passou a ser intrinseca-
mente subconsciente ao ser social, o qual o próprio ser humano passa a figurar
como máquina, num processo de mecanização relacional e prático de diminui-
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ção crescente da subjetivação e dos potenciais sensíveis do ser; com o ser social
– assim como sua classe – perdendo todo seu sentido de totalidade e corroendo
o sentido de dialética social das classes trabalhadora.
Desta forma, o ser social perde toda a capacidade de relativizar não só o sen-
tido social de si, mas dos relacionamentos interpessoais dele mesmo, desestrutu-
rando não só a ética (ligada ao processo deformação do caráter), como a moral
(ligada ao processo de montagem dos costumes sociais); obstruindo qualquer
sentido de práxis social revolucionária. Numa linha de argumentação precípua
da construção moral/filosófica da classe popular trabalhadora, o processo de
ação sobre a construção do “ser social, moral e ético” a partir de uma classe
dominante que determina métodos de ações de uma sociedade, e que modifica
a sociedade continuamente sob o devir das relações sociais construídas e modi-
ficadas historicamente, torna-se pequeno diante do poderio estatal detentor de
todas as formas de poder.
Em Adorno, a cultura das massas e a indústria cultural formam o polo
binário do mecanismo de dominação, sob o processo de semiformação dos
agentes sociais, fomentadas em ações concretas que nunca serão concretiza-
das, em possibilidades de contradições que não se efetivam, e num contexto
de não problematização das ações formativas que compõem o âmbito social.
Assim, não só classes sociais passam a mover a sociedade, mas de todo um
aparato da psicologia de massas que passa por um processo de semiformação
social do sujeito social, que paira sob os mecanismos de dominação no pro-
cesso de produção de ideias e da gênese das condutas, não deliberando sobre
liberdades básicas do cidadão, assim como perdendo o tato sobre como conci-
liar a vivência com a igualdade democrática.
Tendo demonstração de como o Direito, dizendo-se como um braço das
relações políticas e sociais de uma sociedade, tornou-se uma prática de aplica-
bilidade da dominância da vontade do Estado sobre uma sociedade que a aceita,
além de enraizar e naturalizar proposições de vontades advindas e estruturadas
socialmente por pequenos grupos de classes que atuam no processo mercado-
lógico do capital mundial; modificando as relações ao ponto de tornarem-se
negócios. Assim, todas as relações interpessoais e intersociais perdem sua abs-
tração e se materializam sob a determinação de um capital do desejo. O Direito
configura-se dentro deste universo de vontades e princípios que regem e repre-
senta as vontades desta determinada sociedade.
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2. Semiformação e reficação
A indústria cultural atua como idealizadora do processo de produção ma-
terial no contexto da reificação como mediação social invertida. Nos mo-
mentos objetivos da subjetivação toda uma classe é observada como um ser
único, com opiniões massificadas. Não há consciência neste processo. Não há
consciência onde não há ser consciente. Assim, a formação social fica anco-
rada no processo de reificação, que domina as liberdades e põe a autonomia
do ser social num processo de adaptação ao modo materialista do mercado.
Num processo em que a cultura se tornou mercadoria, findada numa ótica
mercantilista, como na citação a seguir.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Nisto, o sujeito passa a ser apenas o prolongamento do que ele observa nos
meios culturais de representação da realidade e os reproduz automaticamente,
moldado no processo de dominação consistente e gradativo até toda a interio-
ridade do sujeito social seja tomada. Neste conceito de semiformação, o sujeito
que compõe a massa perde seu papel do contraditório e passa a ser massa de
movimentação e de reprodução dos meios.
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Poulantzas também afirma que uma nova subclasse surge com o sentido de
reprodução dos ideais da burguesia. A burocracia servidora que reproduz, num
sentido convectivo, os interesses da classe dominante. “O Estado capitalista
“só pode servir verdadeiramente à classe dominante até o ponto em que seja
relativamente autônomo em relação às várias frações dessa classe, com vista
justamente a tornar-se capaz de organizar a hegemonia do conjunto da classe”
(Poulantzas, 1975, p. 22).
Ao ponto de que se torna quase imperceptível distinguir diferença entre
sociedade civil – montada a partir de classes - e Estado; quando a socie-
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Conclusão
Dentro da criticidade dos objetos, a formulação dos ideais de classe é a mes-
ma para a reformulação de um Estado onde a cidadania deixou de ser a melhor
forma de representatividade de um povo e da sua constituição básica. Assim, a
perspectiva do indivíduo, mesmo que ele se sinta representado por um processo
legislativo – também positivado – perde a validade com o passar dos aconteci-
mentos históricos moduladores das sociedades
Atestando assim, o fato de o sujeito ser um participante da base dessa
sociedade de classes individualizadas em processos de poder, o torna prati-
camente objeto de representação da vontade das classes detentoras de poder.
Poder este que não se configura apenas nas estruturas estatais, mas já tomou
forma e força em todas as estruturas socias, educacionais e culturais. Pensan-
do no sujeito como nova forma de empoderamento do capitalismo contempo-
râneo A indústria da cultura
Atualmente nos encontramos num dos auges da nova revolução industrial,
onde os processos culturais são moldados por processos midiáticos e tecnológi-
cos, de um excesso de informação que padronizou o sujeito ao ponto de tornar
suas opiniões ocultas aos processos moldadores da sociedade, fugindo da iden-
tidade do ser social.
Assim, a indústria cultural e midiática que Adorno abre crítica, comple-
menta o sentido do ideal de Poulantzas de representatividade e enraizamento
das foças formuladoras das classes estatais; promovendo o binário que move os
ciclos objetivos e constitucionais da sociedade.
Assim, a necessidade da revolução política e cultural assume um papel cen-
tral na transição do modo de como uma sociedade deve observar e absorver os
seus sentidos e imagens nos sistemas reprodutivos para o processo de emanci-
pação social e do sujeito que irá fomentá-la. A conscientização de classes seria
um elo essencial para a estruturação deum Estado onde o social, o cultural e o
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Referências bibliográficas
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______. Poder Político e Classes Sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
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Constituinte de 1988: a promulgação de uma
Constituição democrática? Uma análise sob o
pensamento de Lênin e Rosa Luxemburgo
Introdução
“Ser farol e ser alerta,
silêncio e paciência,
quando falta consciência
cabe a ti dizer:- Desperta!”
Pedro Munhoz
2 Mestranda em Serviço Social e Direitos Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Componente do GEF (Grupo de Estudos Feministas).
3 Bacharel em Direito pela UFERSA (Universidade Federal Rural do Semi-Árido).
4 Mestranda em Serviço Social e Direitos Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Componente do GEDIC (Grupo de Estudos em Direito Crítico e Marxismo na América
Latina pela UFERSA.
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1) criar as condições gerais de produção que não podem ser assegura-
das pelas atividades privadas dos membros da classe dominante;
2) reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou de frações parti-
culares das classes dominantes ao modo de produção corrente atra-
vés do Exército, da polícia, do sistema judiciário e penitenciário;
3) integrar as classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade
continue sendo a da classe dominante e, em consequência, que as
classes exploradas aceitem sua própria exploração sem o exercício di-
reto da repressão contra elas (porque acreditam que isso é inevitável,
ou que é “dos males o menor”, ou a “vontade suprema”, ou porque
nem percebem a exploração) (MANDEL, 1982, p. 333-334).
O primeiro ponto destacado pelo autor diz respeito ao caráter de classe
do Estado, como instrumento de manutenção do poder da classe dominante.
Marx já dizia no Manifesto do Partido Comunista que “O poder do Estado
moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da
classe burguesa como um todo” (MARX, 2008, p. 12), bem como, na obra
O 18 de Brumário de Luis Bonaparte (2011), que o Estado é expressão política
de dominação de uma classe. Mandel sintetiza esse primeiro fundamento ar-
gumentando que o “Estado é produto da divisão social do trabalho” (MAN-
DEL, 1982, p. 333) e que sua origem “coincide com a origem da propriedade
privada” (MANDEL, 1982, p. 334). Isso justifica uma das funções do Estado
burguês ser a garantia das condições de reprodução do capital. Istvan Mésza-
ros (2015) destaca o Estado como um dos três elementos que compõe o tripé
consubstancial do sistema do capital, sendo os outros dois o trabalho e o pró-
prio capital. Assim, para o referido autor,
Nesse sentido, também afirma Marx, ao nos trazer o Estado como “comu-
nidade ilusória”:
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[...] dada sua [do Estado] função crucial de reprodução social global,
o tipo de defesa legitimadora do Estado próprio do metabolismo social
estabelecido não pode assumir qualquer outra forma senão a sobreposição
a todo custo. Isso envolve a política/militar global e as formas mais
violentas (MESZAROS, 2015, p.18).
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uma vez que estes são a expressão de uma sociedade articulada sobre a
existência da desigualdade real e da igualdade formal; e por outro lado,
são direitos exatamente porque não podem ser efetivamente realizados
(TONET, 2004, p.132).
5 Entendemos democracia substantiva, àquela que está ligada à conquista da cidadania plena,
afirmada por Nelson Coutinho, ligada à concepção de emancipação humana trazida por Marx em
Para a Questão Judaica, ou seja, o fim das desigualdades sociais, das opressões e discriminações, uma
democracia como “O” caminho para a chegada do socialismo.
6 Democracia participativa como sendo àquela que defende a necessidade de uma participação mais
efetiva dos sujeitos sociais nas diferentes instâncias políticas de discussão dos assuntos públicos, onde
o centro seria a influência que os sujeitos coletivos podem exercer, tanto no que tange ao controle das
instituições, quanto a influência por meio de demandas (DURIGUETTO, 2011).
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Nos fica claro que a democracia que temos é a formal, mas a que queremos é a
substantiva. Rosa nos mostra assim, a importância da superação dessa democracia
formal, das liberdades apenas formais, para alcançarmos a democracia substanti-
va, com liberdades democráticas substantivas e a construção de um novo mundo.
7 “O Estado como espírito vivo, só é como um todo organizado, distinto em atividades particulares,
que, procedendo do conceito único (embora não sabido como conceito) da vontade racional,
produzem continuamente esse todo como seu resultado. A Constituição é essa articulação da
potência do Estado. Contém as determinações da maneira como a vontade racional, enquanto
nos indivíduos é somente em si a vontade universal, pode, por uma lado, chegar à consciência e à
inteligência de si mesma, e ser encontrada, e por um lado, chegar à consciência e à inteligência de
si mesma (MARX, 2013, p.24).
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8 Aqui tomamos o conceito de “revolução passiva” forjado por Gramsci, sendo o processo pelo qual,
muda-se a forma de dominação, mas, mantém-se sua substância, ou seja, é um “movimento de
cooptação dos dominados pelos dominadores” (GRAMSCI, 2009, p. 8).
9 A “democracia de cooptação” está associada à corrupção no sistema de poder e a compra de alianças
e lealdades (Ver FERNANDES, 1981).
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É dizer, de outra forma, que a Constituição Federal de 1988, foi concebida para
resguardar, prioritariamente, os interesses políticos, sociais e econômicos pauta-
dos nos ideais liberais de liberdade, igualdade formal, da proteção da propriedade
privada, da livre iniciativa, enfim, com pautas eminentemente burguesas, mesmo
com alguns pontuais avanços nos direitos para a classe trabalhadora.
Apesar do desequilíbrio na correlação de forças como citado alhures e pro-
mulgação detentoras de mitigada característica de democracia real, foi a consti-
tuinte de 88, a mais democrática desde então. Configurando-se uma democra-
cia constitucional, acolheu milhares de sugestões populares e reuniu um con-
junto de conquistas de direitos. Porém, apesar da ampliação de muitos direitos
sociais, econômicos e políticos dos trabalhadores, restrições democráticas ainda
permaneceram, o que impossibilita até os dias atuais a plenitude dos mesmos,
como por exemplo, a reforma agrária, o reconhecimento de greve de servidores
públicos, o imposto sobre grandes fortunas, dentre outros.
Essa conquista de direitos, pela qual fez o Brasil avançar democraticamente,
provocou reação da oposição conservadora. Embates entre os setores populares
e os neoliberais, herdeiros da oligarquia, foram travados e a luta de classes, mais
uma vez, fez-se presente em nosso processo de transição democrática tardia.
Hoje, do mesmo modo que outrora, os direitos que ainda anseiam por regu-
lamentação, enfrentam uma batalha. A batalha entre os setores conservadores
e progressistas. Direitos formais são amplamente previstos na constituinte, mas
o desafio que se impõe é mais amplo ainda, é avançar para sua eficácia plena e
impedir o retrocesso dos já regulamentados.
Lênin mostra, corroborando com o dito anteriormente, como essa
democracia constitucional, liberal, representativa, é constituída de limitações,
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cia, afinal, não “se pode libertar os homens enquanto estes não estiverem em
condições de adquirir comida e bebida, habitação e vestuário na qualidade e na
quantidade perfeitas. A “libertação” é um ato histórico, não um ato de pensa-
mento [...]” (MARX e ENGEL, 2009, p. 36-37).
Com base nessa análise, uma pergunta precede a qualquer discussão para se
pensar a concretização universal de direitos e, por conseguinte, da democracia:
estando a sociedade dividida em classes, a democracia não pode ser alcançada?
Carlos Nelson Coutinho nos elucida:
Nesse sentido, faz-se necessário uma sociedade sem classes para a “plena cida-
dania” e, por conseguinte, para a plena democracia. Falar em democracia é, então,
falar em socialismo (COUTINHO, 1997). São assim caminhos interligados que vi-
sam a superação do individualismo para construção de uma sociedade emancipada.
Conclusão
Percebemos limites e contradições inerentes à democracia constitucional
representativa no capitalismo que sacrificam a classe trabalhadora em favor da
manutenção dos privilégios de uma minoria. Uma “democracia” que concentra
muito nas mãos de poucos e, nas mãos de muitos, muito pouco.
É notório, ao longo da construção democrática no país, que os setores domi-
nantes - as classes dominantes e possuidoras - procuram por todos os meios “le-
gais” ou mesmo ilegais impedir a consolidação de uma democracia da maioria,
destruindo e minando os avanços e fechando a cortina para qualquer pequeno
raio de luz que possa nos levar a uma democracia substantiva.
É fato que no regime democrático-burguês os elementos democráticos se
mostram como majoritários, porém, podem e contém ainda elementos ditato-
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riais, como diz Demier e Gonçalves, elementos esses que podem se mostrar
como “residuais ou em fermentação” (DEMIER; GONÇALVES, 2017).
Reconhecer que possuímos uma democracia com a Constituição “Cidadã”
de 88 não pode nos vendar e nos calar face a esses elementos. Uma Consti-
tuição que prega a igualdade civil é a mesma que sustenta uma “democracia”
onde a desigualdade social persiste. É inegável que essa Constituição traz di-
versos direitos individuais e coletivos, mas que substancialmente não se efeti-
vam como se propõe.
Mesmo após 30 anos da promulgação da Constituição Federal de 88 e com
quase 14 destes sob governos de um partido com origem popular de esquerda -
Partido dos Trabalhadores - em que se observou, momentaneamente, aspectos
de ascensão social e econômica da classe trabalhadora, não houve qualquer
alteração na estrutura de classes, o que nos leva a concluir, que na democracia
capitalista "de tempos em tempos, os operários triunfam, mas é um triunfo efê-
mero" (MARX e ENGELS, 1998, p.48).
É notório que não há como mudar a natureza do capitalismo através de polí-
ticas conciliatórias como desejam os reformistas e os sociais-democratas, pois a
essência da democracia capitalista é servir aos interesses do capital.
Além disso, como bem nos afirma Trotsky “o proletariado não pode con-
quistar o poder por meio de leis promulgadas pela burguesia" (TROSTKY, 1998,
p. 162) e a Constituição, em seu sentido amplo, nada mais é, na sua essência,
que uma lei promulgada pela classe burguesa. Por isso mesmo, não devemos
relevar o seu caráter instrumental, com funções bem definidas: organizar, san-
cionar e legitimar a “distribuição de riqueza e do poder da sociedade capitalista,
não "igualmente" para todo povo, porém desigualmente, seguindo o modelo de
desigualdade econômica, cultural e de dominação de classe imperante na socie-
dade civil" (FERNANDES, 2014, p 108).
Podemos enquadrar o Brasil, assim como nos traz Demier, como uma “de-
mocracia blindada” (DEMIER, 2017). As democracias blindadas são forjadas
a partir de 1980, dotadas de um caráter hegemônico, que mantém de forma
equilibrada coerção e consenso, apresentando “estruturas de funcionamento
hermeneuticamente fechadas às pressões populares, preservando seus núcle-
os institucionais decisórios como espaços exclusivos dos interesses da classe
dominante” (DEMIER, 2017, p. 2372). Impendem assim, que as demandas
populares reformistas possam adentrar a política, sendo assim, portanto, es-
sencialmente contra-reformistas.
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Referências bibliográficas
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MARX, Karl. Para a questão judaica. Expressão Popular. São Paulo, 2009.
______. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 3ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
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Mecanismos de participação popular nas
cartas constitucionais: analise entre a
brasileira e boliviana
Introdução
Desde o início da organização do homem em sociedade, as reflexões sobre
como a vida comunal deve ser gerida existiram, mas, especificamente o pensar
sobre a democracia, pode ser rastreado desde século V antes de Cristo no livro
Histórias do historiador grego Heródoto. Já na modernidade, com as revoluções
liberais do século XIX a burguesia chega ao poder criando os primeiros Estados
liberais democráticos, onde nesses Estados burgueses, o pressuposto da sobera-
nia popular era - e continua - sendo a base do regime. Porém, paradoxalmente,
como dito por Marx, o Estado eleva interesses particulares à condição de uni-
versais (MARX, 2010, n.p.). Desta maneira, cabe a pergunta se a democracia li-
beral burguesa se ampara realmente na soberania popular ou representa apenas
a melhor maneira de exercício do domínio de classe burguês.
Trazendo para a realidade Latino Americana, onde os Estados Nacionais
foram fundados para garantir a expansão do capitalismo mercantil, toda a
lógica que justificou a criação estatal e jurídica europeia - no tocante do
controle do poder pátrio e garantias de direitos fundamentais - é perdida,
tendo em vista que desde o início do processo democrático latino americano
diversos grupos foram excluídos.
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103). Outro ponto interessante foi art. 187 em que se firmava o compromisso de
um plebiscito nacional para votar a Carta, no entanto a não convocação desse
plebiscito acarretou na tese de alguns juristas – até o responsável pela redação
da mesma – que a carta não tinha validade.
Mesmo com a tese a da não juridicidade dessa carta, suas principais caracte-
rísticas, como comentam Souza Neto e Sarmento (2012, p. 103): foram a disso-
lução do poder legislativo, concentrando na figura do presidente várias funções,
entre elas a prorrogativa de nomear interventores para os Estados, e o declarar
do estado de emergência que suspendeu inúmeras garantias constitucionais.
No panorama mundial o fim da Segunda Guerra Mundial e o fim da di-
tadura varguista no Brasil, houve uma onda constitucional no mundo que
atingiu o território brasileiro de forma a influenciar a Constituição de 1946.
Com um grande apelo ao respeito aos direitos fundamentais pós os horrores
de regimes como o Nazismo, a carta constitucional brasileira tentou conci-
liar um caráter liberal com as prerrogativas de um Estado social. (SOUZA
NETO; SARMENTO, 2012, p. 110).
Com o início da ditadura militar no brasil em 1964, foi perceptível a cria-
ção de dois principais grupos entre os militares. Um grupo mais moderado
que se propunha a devolver o poder político aos civis depois de livrar-se dos
componentes mais perigosos da vida política e que também não concorda-
vam com os excessos cometidos pela outra ala militar. O segundo grupo
composto por militares linha dura apoiavam a radicalização do regime com
a intensificação de perseguições a opositores entre outras ações (SOUZA
NETO; SARMENTO, 2012, p. 117-8).
A disputa de poder entre esses dois grupos foi a responsável tanto pelas ca-
racterísticas da constituição de 1967, como a de 1969.
Possuindo uma fachada liberal a Constituição de 1967, refletia os interesses
do grupo mais moderado, onde mantinha-se o federalismo dual, com eleições
indiretas e um capítulo destinado – paradoxalmente – aos direitos e garantias
fundamentais. Já no ano de 1969 foi editada uma emenda à Constituição de
1967 que serviu como uma tentativa de viés legitimador a nova Carta que re-
produzia em grandes partes a anterior, mas autorizava que o presidente suspen-
desse diversas liberdades como a de associação, além da suspensão de habeas
corpus para crimes políticos etc.
Em decorrência do desgaste do regime militar e o aumento dos protestos
contra o mesmo, diversas entidades civis começaram a pedir a criação de uma
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Mecanismos de
Bolívia
participação
Cortes Superiores do Judiciário eleitas por sufrágio direto (Artigos 182,
183, 188, 194 e 197).
Mecanismos de
Possibilidade de eleger parlamentares indígenas e autoridades dos
representação
territórios autônomos por meio de usos e costumes (Artigo 11).
ampliada
Quota indígena na Câmara (Artigo 146) - Regulamentado por Lei
Eleitoral Transitória de 2009.
Revogação
Todos os cargos eletivos são revogáveis menos o judiciário (Artigo 240).
de mandatos
Revogação/
Qualquer emenda à Constituição precisa de referendo (Artigo 411).
ratificação de leis
Cidadãos podem convocar referendo para aprovar tratados e convênios
internacionais (Artigo 259).
Política Externa Tratados sobre questões limítrofes, integração monetária, integração
econômica estrutural e cessão de competência a órgãos supranacionais
referendo é obrigatório (Artigo 257).
Cidadãos podem propor legislação, modificações constitucionais e
Iniciativa de lei
convocar uma assembleia constituinte (Artigos 162 e 411).
Territórios indígenas autônomos são instâncias sub-nacionais de governo,
nos quais se aplicam justiça indígena e usos e costumes para seleção de
Autonomia
governantes (Artigos 289 a 296).
indígena
Leis que afetem territórios indígenas e recursos naturais dos mesmos
precisam passar por referendo no território em questão (Artigo 30).
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Considerações finais
No presente trabalho foram expostos os mecanismos de participação po-
pular na Constituição Federal brasileira de 1988 e na Constitución Política del
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Referências bibliográficas
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Capítulo IV
História, Direito e Marxismo
Direito ao protesto: da crítica a violência
à efetivação dos direitos humanos
Introdução
Os direitos humanos, mais do que direitos ‘propriamente ditos’, são proces-
sos, ou seja, “o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam
em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida”, já observou o professor
Joaquín Herrera Flores (2009, p. 28), de saudosa memória.
Em uma sociedade dividida em classes, o direito existe para regular as re-
lações entre frações de classe e classes sociais, de forma tendente a garantir o
consenso social. É conveniente observar que direito se distingue da justiça. As
leis não são justas porque se estabelecem como leis e a elas se guarda obediência
não por serem justas, mas porque têm autoridade:
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
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nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça,
nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação
preexistente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou
invalidar (DERRIDA, 2007, p. 24).
3 Publicada em 1921 na revista fundada em 1888 por Edgar Jaffé, Werner Sombart e Max Weber
Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik.
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Norberto Bobbio (2006, p. 20 e ss.) considera que a mais célebre distinção en-
tre direito natural e direito positivo no pensamento moderno é devida a Grócio:
E Acrescenta: “os atos relativamente aos quais existe um tal ditame da justa
razão são obrigatórios ou ilícitos por si mesmos” (grifos no original).
Na metodologia desenvolvida por Norberto Bobbio (1994, p. 13 e ss.), quando
se fala em “doutrina” ou “escola” do direito natural, sem outra qualificação, a
ideia é referir-se ao desenvolvimento do direito natural durante a idade moderna,
entre o início do século XVII e o fim do século XVIII, delimitação que interes-
sa ao presente trabalho. Os jusnaturalistas, em que pese as divergências que os
separam4, são ligados por um método próprio – o método racional - que busca a
redução do direito e da moral a uma ciência demonstrativa. “Se há um fio vermelho
que mantém unidos os jusnaturalistas (...) é precisamente a ideia de que é possível uma
“verdadeira” ciência da moral, entendendo-se por ciências verdadeiras as que haviam
começado a aplicar com sucesso o método matemático” (BOBBIO, 1994, p. 18).
No desenvolvimento dessa concepção racionalista que veio a dominar o
Estado moderno, é conveniente observar que a sociedade medieval era uma
sociedade pluralista, constituída por agrupamentos sociais e cada um dispondo
de um ordenamento jurídico próprio, de forma que o direito se constituía en-
quanto fenômeno social, produzido não pelo Estado, mas pela sociedade civil.
Com a formação do Estado moderno, a sociedade assume uma estrutura mo-
nista, no sentido de que o Estado concentra em si todos os poderes, entre eles o
de criar o direito: “não se contenta em concorrer para esta criação, mas quer ser o
único a estabelecer o direito, ou diretamente através da lei, ou indiretamente através
do reconhecimento e controle das normas de formação consuetudinária” (BOBBIO,
2006, p. 27). Surge, nesse contexto, o processo de monopolização da produção
jurídica por parte do Estado.
4 Observa Norberto Bobbio que sob a etiqueta de “escola do direito natural” estão autores de correntes
diversas: filósofos como Hobbes, Leibniz, Locke, Kant; juristas-filósofos como Pufendorf, Thomasius
e Wolff, professores universitários, como Rousseau (1994, p.14).
287
Observa Walter Benjamin (1986, p. 160-161), que em conformidade com a
teoria política do direito natural, se “todas as pessoas abrem mão do seu poder em
prol do Estado, isso se faz, porque se pressupõe (...) que, no fundo, o indivíduo – antes
de firmar esse contrato deitado pela razão – exerce também de jure qualquer tipo de
poder que, na realidade, exerce de fato”.
Nesse contexto, para compreender as ideias de Benjamin, é interessante
analisar a formação do Estado moderno e, seu pressuposto, o contrato social,
elemento necessário à monopolização da violência pelo Estado.
Para Bobbio (1994), a primeira grande obra política que assinala o início
do jusnaturalismo político e do tratamento racional do problema do Estado
é o De cive1. Hobbes afasta os pressupostos teóricos até então utilizados: a
Política, de Aristóteles e o direito romano e, no problema crucial do fun-
damento e da natureza do Estado, constrói-se um modelo baseado em dois
elementos fundamentais: o estado (ou sociedade) de natureza e o estado
(ou sociedade) civil. Trata-se de um modelo dicotômico no sentido de que
o homem ou vive no estado de natureza ou vive no estado civil (não pode
viver ao mesmo tempo em um e outro).
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Hobbes, por seu turno, propõe o pactum unionis, com base no qual cada
um dos indivíduos que compõem uma multidão cede o direito de autogover-
nar-se, que possui no estado de natureza, a um terceiro (seja uma pessoa ou
uma assembleia), contando que todos os outros façam o mesmo. Tal pacto
é ao mesmo tempo um pacto de sociedade e um pacto de submissão, já que
os contratantes são os indivíduos singulares entre si e não o populus, por um
lado, e o futuro princeps, por outro, um pacto de submissão na medida em
que aquilo que os indivíduos acordam entre si é a instituição de um poder
comum ao qual decidem se submeter.
Questões relacionadas às modalidades e ao conteúdo do contrato social
apresentaram divergências que podem ser agrupadas em torno dos seguintes
problemas: a) se o poder soberano é absoluto ou limitado; se é indivisível ou
divisível; se se pode restituir a ele ou não. Há uma contraposição clássica entre
Hobbes (para quem o poder era absoluto, indivisível e irresistível) e Locke (po-
der limitado, divisível e resistível).
Na realidade, os pensadores não defendem o caráter absoluto do poder, por-
quanto poder absoluto é somente o de Deus. O fato de que o soberano ser livre
das leis, significa que ele é livre das leis civis, quais sejam, aquelas que ele mes-
mo tem o poder de criar, conforme lição de Rousseau, citado por Norberto Bob-
bio: “assim como a natureza dá a todos os homens um poder absoluto sobre todos os
seus próprios membros, do mesmo modo o pacto social dá ao corpo político um poder
absoluto sobre todos os seus próprios membros; e é esse mesmo poder que, dirigido
pela vontade geral toma (...) o nome de soberania”. O fato de que o poder soberano
esteja acima das leis civis não quer dizer que seja um poder sem limites, mas
que os limites do seu poder são limites não jurídicos (de direito positivo), mas
derivados daquele direito incoercível que é o direito natural.
Observa Norberto Bobbio (1994, p. 78 e ss) que em relação à divisibilidade
do poder soberano, embora a doutrina aponte aqueles que defendem sua indi-
visibilidade, como Hobbes e Rousseau e os defensores da divisão de poderes,
como Locke, Montesquieu e Kant como representantes de duas teorias diver-
sas, essa contraposição não é não evidente como se aparece: quando Hobbes,
por exemplo, afirma que o poder soberano deve ser indivisível e condena
como teoria sediciosa a tese contrária, o que ele rechaça é a teoria do governo
misto, ou seja, a teoria que afirma como governo ótimo aquele em que o poder
soberano está distribuído entre órgãos diversos em colaboração entre si, repre-
sentados cada um por três diversos princípios de qualquer regime (o monarca,
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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Ora, na medida em que a ordem social é assegurada de cima para baixo, sua
estabilidade só é possível quando houver o reconhecimento dos de baixo e isso
é feito por meio de uma necessidade moral. A suprema obrigação do Estado é
oferecer proteção e isso só pode ser feito se todos os homens transferirem seus
direitos ao soberano, conforme visto acima. Mais adiante, na época em que
Walter Benjamin escreveu seu clássico, isso pode ser a origem de uma crise de
legitimidade nos detentores do poder. Para Benjamin, o poder historicamente
reconhecido, distingue-se o poder sancionado e o não sancionado e questiona
qual o sentido desta distinção e a defende: “se o critério estabelecido pelo direito
positivo para a legitimidade do poder só pode ser analisado segundo o seu sentido, a
esfera do seu uso tem de ser criticada segundo o seu valor” (1986, p. 161).
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empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. Por isso, “por questões
de segurança”, a polícia intervém em inúmeros casos, em que não
existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia
acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência
a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal, ao longo de uma vida
regulamentada por decretos (1986, p. 166).
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2 https://anistia.org.br/noticias/massacre-de-eldorado-dos-carajas-20-anos-de-impunidade-e-
violencia-campo/
3 http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=08d24d640ddb54ad
4 http://www.encontroabcp2016.cienciapolitica.org.br/resources/anais/5/1468352175_ARQUIVO_
GiseleHeloiseBarbosaABCP.pdf
5 http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/11/politica/1462919412_910217.html
6 http://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/29/politica/1430337175_476628.html
7 http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/24/politica/1477327658_698523.html
8 http://protestos.artigo19.org/
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Pois bem.
Não se pode desconsiderar que os protestos e mobilizações populares foram
essenciais para garantir um padrão civilizatório mínimo no Estado capitalista.
9 No original: “es preocupante que un sistema democrático conviva con situaciones de miseria, pero es
catastrófico que tales situaciones no puedan traducirse en demandasdirectas sobre el poder público”.
10 No original:” La Relatoría recomienda a los Estados miembros de la OEA que desarrollen mecanismos efectivos
para el pleno ejercicio de la libertad de expresión. La libertad de expresión no requiere, simplemente, que el Estado
“quite sus manos”, por ejemplo, de la esfera de la comunicación pública – es decir, que no imponga censuras. La
libertad de expresión requiere mucho más: requiere, por ejemplo, que el Estado se involucre en el mantenimiento
de lugares públicos abiertos, y en la garantía a todos de un “derecho de acceso a los foros públicos”.
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poder tende a ter sobre aqueles mesmos direitos que então estavam
(extra) protegidos (...) reformistas legais dedicaram a maior parte de
seu trabalho para criar novos direitos, deixando a organização dos
poderes basicamente intocada.
Referências bibliográficas
CHUEIRI, Vera Karam e GODOY, Miguel Gualano de. (Direito ao) protesto:
promessa e compromisso com o primeiro direito. Disponível em http://
constitucionalismoedemocracia.blogspot.com.br/2013/06/direito-ao-protesto-
promessa-e.html . Acesso em 15/07/2018.
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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Entre libera e valquírias:
a incompreensiva condição humana
Introdução
Ei-lo! O espírito avulso que aspira por um pai; o espírito tísico que de pernas
tão bambas, rasteja. Primeiro nos concentremos neste homem, meu caro leitor,
neste homem transformado em porco e que implora a Ulisses para permanecer
em seu chiqueiro. É homem, não pode ser mulher, pois tal covardia não tem
a ver com o feminino. Que esperar deste ser, amedrontado, lânguido, frágil?
Seus olhos são chocos, encostados em si, só têm dois caminhos, para baixo e
para cima, jamais para os lados ou para as diagonais; há um certo brilho, muito
pouco nítido, recôndito na íris, e difuso diante de um olhar desfocado e incerto.
Sua aparência é feia, porque ele mesmo diz que é feia, sua postura é curva, suas
pernas não aguentam o corpo. Então se cobre de joias que diz que são belas,
põe umas costuras de pano a que chama de roupa, dá nome à pedra, à árvore e
ao ar. É preciso sufocar o olhar, o olhar o consome, entrega pensamentos sem
resposta, ideias vagas a serem esquecidas. O coração bate aflito, adoentado, não
se acha a suportar a leveza da liberdade. Ele não pode conceber-se num mundo
em que tenha responsabilidade, em que seja Deus — pois que condição miserá-
vel a de Deus —, em que pese a sua palavra. É preciso suprimir a suspeita, pois
que ela há de revelar? Ora, há de descortinar esta peça de grilos e expor a esta
criatura o que tanto quer ocultar, esta ferida perene, doída, que abre para o in-
certo, o irreconhecível, o indistinguível. Em termos mais curtos, que abre para
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Ele vagueia cruel, com avidez insaciada; o que ele captura, tem de pagar
a perigosa tensão do seu orgulho; ele dilacera o que o atrai. Com riso
maldoso ele revolve o que encontra encoberto, poupado por algum
pudor: experimenta como se mostram as coisas, quando são reviradas.
Há capricho e prazer no capricho, se ele dirige seu favor ao que até
agora teve má reputação — se ele ronda, curioso e tentador, tudo o
que é mais proibido. Por trás do seu agir e vagar — pois ele é inquieto,
e anda sem fim como num deserto — se acha a interrogação de uma
curiosidade crescentemente perigosa. "Não é possível revirar todos os
valores? e o Bem não seria Mal? e Deus apenas uma invenção e finura
do Demônio? Seria tudo falso, afinal? E se todos somos enganados, por
isso mesmo não somos também enganadores? não temos de ser também
enganadores?" — tais pensamentos o conduzem e seduzem, sempre mais
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Mas estes espíritos existem, Nietzsche!4 Existem? Não em sua inteireza, pos-
sivelmente, mas como um suspiro. Existem como crítica, não tomaram ainda o
mundo com as mãos. O humano ainda pertence ao homem, mas é um conceito
em disputa. É disputa consigo e com os outros, interna e externa, individual e
comunitária, que se reproduz em suas tensões, em suas fragilidades, em suas
mutações. Mas recordemos dos homens, destes que necessitam de um pai, vez
que são quem hoje caminham sobre a terra e que existem, não enquanto suspi-
ro, mas enquanto grito desesperado.
Para Kierkegaard, Deus nasce da necessidade de fugir da falta de significado
da existência, que nos põe em posição de responsáveis conjuntamente pelo des-
tino5. É dado um salto em direção ao irracional; o racional é humano, é aquilo
que pode ser compreendido. O irracional é Deus, o incompreensível. Deus é
aquilo que não se compreende e, portanto, ele existe em tudo o que é incompre-
ensível; ele está além do humano. É famosa a citação de Pascal na qual ele diz:
Que nos gritam, pois, essa avidez e essa impotência, senão que houve,
outrora, no homem, uma verdadeira felicidade, da qual só lhe restam,
agora, a marca e o traço todo vazio, que ele tenta inutilmente encher
de tudo o que o rodeia, procurando das coisas ausentes o socorro que
não obtém das presentes, mas que são todas incapazes disso, porque esse
abismo infinito só pode ficar cheio de um objeto infinito e imutável, isto
é, o próprio Deus. (PASCAL, p. 268 - 269. 2002)
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
do próprio pai, que este homem inventa e tão fortemente anseia, não por querê-
-lo em si — não, o divino é uma maldição —, e sim por ele traduzir esta resposta
patética, esta fuga do olhar. “Porque, quando meu pai e minha mãe me desam-
pararem, o Senhor me recolherá.”6 A religião, portanto, é a representação dessa
alienação do espírito, dessa incapacidade de se governar e de encarar solitária e
lucidamente os desígnios da fortuna. Somente Deus pode guia-lo, “o caminho
de Deus é perfeito; a palavra do Senhor é provada; é um escudo para todos os
que nele confiam.”7 A religião marca a vida e o pensamento deste homem, se
tornando sua própria essência, letárgica e fantasiosa. É por isto que Marx diz
que “a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica” (MARX, p. 145,
2010), porque ela se converte no elemento fundante do homem quando este
homem, ao fundá-la, inverte a ordem da criação; e ainda, porque essa patologia
se espalha por todas as camadas e tripas e impregna o mundo humano com o
cheiro do animal domesticado. Pois que é o Estado se não um novo pai? Que é
o político se não o novo profeta?8
Ora, o espírito humano está à venda, para quem quiser incorrer na contradi-
ta tarefa de tê-lo para si. Não parece, contudo, grande prêmio a ser conquistado,
este homem que se dá tão facilmente, de rosto tão inseguro, que não aparenta
fazer nada além de rastejar. Que poderia se fazer com algo desse tipo? Qualquer
humano lúcido abdicaria dessa função e logo retornaria a atenção para si. Mas
não estamos diante da história da lucidez, a razão é um devaneio deveras recen-
te, a história do homem é a história da loucura, ou a história de como os loucos
perseguem a própria sombra. Vê, ali está, latejando, essa paixão incompreensí-
vel, essa pulsão divina inalcançável, lá está outra vez expondo o que é proibido
ver, o homem precisa conquistar o outro, e conquistar a natureza, precisa cami-
nhar nos passos de sua imitação — não esqueçamos da peça e dos altares, não
esqueçamos das flores e das missas —, precisa viver a fingir, necessita, trêmulo,
incauto, fazer da história a sua única arte. Tela pintada de sangue e de carne e
de ossos e de gordura; a marca do pincel é uma violação, toda a história é uma
violação, a fortuna é violentada, a cornucópia desesperadamente arrancada dos
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Leviatã por medo das capacidades dos demais que compõem o corpo social
ou se o fazemos pelo medo de nossas próprias potências, por nosso medo de
nos conhecermos, de sermos livres.
William Blake, poeta inglês do século XVIII, traz em seu escrito O casamen-
to do céu e do Inferno a seguinte assertiva:
Blake via o jogo dialético que existe no seio das relações humanas, percebia
que sem o conflito não existia revolução, compreendia a necessidade da Energia
e da Razão na construção do ser. Perceber que no humano encontra-se também
o escatológico, o kitsch, é compreender que o uso desse passivo disposto pela
Razão torna o homem imóvel e incapaz de uma revolução, de se livrar da pedra
que o derruba montanha abaixo. Observar apenas um ângulo do ser não o liber-
ta, opostamente, o prende, o coloca na posição daquele que conhece em parte e,
meus transeuntes desconhecidos, ser meio desconhecido é ser ainda menos livre
do que ser totalmente desconhecido. Saber parcialmente da sua prisão e não sa-
ber nada dela são posições diferentes, contudo, estar na posição de parcialmente
aponta ainda mais a tamanha covardia e preferência pelo subsolo. Mostra, mais
do que nunca, a sua negação à Zaratustra.
Colocar a consciência dominada pelo passivo do Bem sobre a consciência
ativa, enérgica, é, mais uma vez, recair na moral do escravo tão rebatida por
Nietzsche em Genealogia da Moral. Bom e Ruim, Bem e Mal, Mau e Bom, ter-
mos que separam os seres humanos em categorias de deuses e demônios, dos sal-
vos e dos não salvos, daqueles que são guiados por Deus e dos que se perderam
em meio a lama de seus pecados, de seus espíritos sujos e sujeitos à liberdade
mundana. Ser livre ou não ser livre? eis a questão!
São cento e seis usos do termo “marxismo” no Mein Kampf, no decorrer
de trezentas e sessenta e quatro páginas. Numa delas, o impetuoso Führer
alemão assim nos diz:
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
(...) um povo de raça pura, consciente de seu sangue, nunca poderá ser
subjugado pelo judeu. Este só poderá ser dominador de bastardos. É
assim que, sistematicamente, ele tenta fazer baixar o nível racial por um
ininterrupto envenenamento dos indivíduos. Em matéria política, começa
ele a substituir o ideal democrático pelo da Ditadura do Proletariado. Na
multidão organizada do marxismo é que ele foi encontrar a arma que a
Democracia não lhe dá e que lhe permite a subjugação e o governo dos
povos pela força bruta, ditatorialmente. Seu programa visa à revolução
em um duplo sentido: econômico e político. (...) No terreno político,
recusam eles ao Estado os meios para sua subsistência, destroem as bases
de toda e qualquer defesa nacional, aniquilam a crença em uma chefia,
desprezam a história e o passado, e enlameiam tudo que é expoente de
grandeza real. (HITLER, 1983, p. 178).
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A crítica da religião desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure
a sua realidade como um homem desenganado, que chegou à razão, a fim de
que ele gire em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. A religião
é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não gira em
torno de si mesmo. (MARX, 2010, p. 146).
Referências bibliográficas
ASSIS DE, Machado. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
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MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.
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O exercício laboral como fator
imprescindível para o fornecimento
da dignidade da pessoa humana
1. Introdução
O significado de trabalho, na sociedade contemporânea, refere-se à integra-
ção de atividades que se interligam, ou seja, a variedade de comportamentos
com fins laborais existentes no mundo denota um conjunto de esforços huma-
nos em que um indivíduo, mesmo que exerça de forma autônoma, desempenha
laços mútuos com outras pessoas para a realização de trocas de compra e venda,
afinal, o capital é o resultado almejado que conecta os homens para o funciona-
mento de atividades econômicas em todas as escalas.
É fato que nem sempre o conceito foi claro e, portanto, compreendido pelas
pessoas de determinadas épocas, como os gregos, os quais “[...] não percebiam
as atividades produtivas ligadas umas às outras, ou seja, não havia noção de
trabalho como a entendemos hoje, em que todas as atividades produtivas estão
integradas [...]” (SILVA; SILVA, 2009, p. 401).
Todavia, as atividades laborais existem desde a Pré-história e sua “[...] cultu-
ra da caça e da pesca para a cultura agrária baseada na criação de animais e no
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3 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.
4 A Economia Política Clássica era uma disciplina recém-criada na Inglaterra do século XIX. Adam
Smith e David Ricardo eram os responsáveis por empenharem-se em compreender as categorias
que serviam de consolidação para o Capitalismo, como entender o fundamento do trabalho, definir
o valor de um salário e quanto o trabalhador deve ganhar pela sua atividade laboral. Dessa forma,
Marx apropria-se de algumas categorias – valor, trabalho, lucro e salário – e suas lógicas com o fito
de construir sua grande tese, na qual desenvolve uma de suas maiores obras: O Capital. Para os
economistas Smith e Ricardo, o salário deveria ser calculado a partir da quantidade de horas de
trabalho. Em contrapartida, Marx afirmava que, se assim fosse, não haveria pessoas em condições de
extrema vulnerabilidade.
5 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro 1: o processo de produção do capital.
Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=JSv2AAAAQBAJ&pg=PT790&dq=o+ca
pital+livro+1&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwi4zqexg6zfAhXDiJAKHaZQC3oQ6AEIPTAE#
v=snippet&q=tradu%C3%A7%C3%A3o&f=false>. Acesso em: 19 dez. 2018.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
8 A existência se identifica com a liberdade e precede a essência, por isso somos lançados no mundo
sem referência a valores (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006). Nessa linha de orientação, verifica-se
quão difícil seria a missão de reverter a alienação do trabalhador, já que é um estado em que a pessoa
não mais se pertence e passa a ser considerada como coisa por perder seus direitos fundamentais.
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Regina Casé, observa que as etapas de desenvolvimento que ela curtiu foi a da
vida do filho da sua patroa e não da sua própria filha. É possível refletir neste
momento acerca da seguinte indagação: até que ponto vale a pena? Isso um dia
será reconhecido pela sua patroa?
A superação humana de suas próprias crenças é uma característica da mo-
ralidade/ética apontada por Nietzsche (2016), mas a empregada doméstica en-
frenta inúmeros medos antes de promover uma reviravolta no filme contra a
alienação, exatamente como quando a multidão se reúne ao redor do acrobata
que está com a sua apresentação na corda bamba prestes a começar, pois o show
da vida de cada pessoa deve ser exemplo de superação sem esquecer que a hu-
manidade, a moralidade e Deus são elementos indissociáveis da ação humana,
já que a empregada reflete sobre os danos que a saída do emprego causaria na
vida daquela família coadunado com a sua moralidade e a sua religião.
Nesse momento é chegada a hora da “revaloração de todos os valores”, já que
“O mundo gira em torno dos inventores de valores novos; gira invisivelmente;
mas em torno do mundo giram o povo e a glória: assim anda o mundo”. (NIET-
ZSCHE, 2016, p. 41). Isso emana uma tentativa de questionar todas as maneiras
habituais de pensar sobre a ética e sobre os sentidos e objetivos da vida.
Chega o momento da empregada doméstica refletir sobre a sua própria alie-
nação e escravização, pois inúmeras coisas que pensamos ser boas se tratam
apenas de uma maneira de limitar ou afastar pessoas da vida. Um exemplo disso
é que podemos ficar em empregos tediosos, não porque precisamos, mas porque
julgamos nosso dever aturá-los, como foi o caso tanto da empregada doméstica
como do pai do Chris.
Para Nietzsche (2016) esse é o momento que eles aprendem que é possível
se ver de maneira diferente, é a hora de perceber que “o homem é uma cor-
da estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo”.
(NIETZSCHE, 2016, p. 47). E complementa dizendo que “[...] é uma perigosa
jornada, um perigoso olhar para trás, um perigoso temer e parar”. Nos termos
de Buckingham et al, (2011, p. 220), “o super-homem é alguém de enorme força
e independência, na mente e no corpo. Nietzsche negou que qualquer um tenha
existido, mas mencionou Napoleão, Shakespeare e Sócrates como modelos”.
Para as autoras deste ensaio, não se faz necessário ter a bravura de Napoleão,
a sensibilidade de Shakespeare e nem a inteligência maiêutica de Sócrates para
promover novos olhares sobre si mesmo e revalorar o que realmente importa.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
9 A Escola de Chicago, no tocante a Sociologia, tentou estudar com profundidade os centros urbanos,
combinando pesquisas teóricas e de campo.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Conclusão
O passar dos séculos não apaga os ensinos perpetuados dos grandes filósofos Marx
e Weber. É exequível observar seus pensamentos nos acontecimentos diários, confor-
me foi possível analisar nos dois recursos fílmicos. De fato, são verdadeiros clássicos
atemporais passíveis de serem compreendidos, independente do passar dos anos.
Mudanças significativas sob efeitos da Revolução Industrial reverberaram na
sociedade alemã. Com efeito, os estudos acerca do homem inserido no contexto
capitalista revelam adversidades encaradas pelo sujeito no que diz respeito à sua
posição enquanto trabalhador e à sua relação pessoal com a sociedade, na qual
está inserida sob a administração das instituições comandadas pelo Estado.
A transição dos séculos XIX-XX traz semelhanças para a atualidade. Con-
tinua tornando-se evidentes as relações de desigualdade entre classes e o poder
estatal sobre as pessoas.
Muitas atividades laborais permitem que o trabalhador brasileiro se iluda
com o fato de estar empregado. Para Nietzsche, o embate entre aparência e
essência gravita a órbita do real sentido de que estar empregado implica em pro-
porção de dignidade, mas, na verdade, o indivíduo tem dificuldade de externar
seu valor e sua essência perante a sociedade.
Seguindo esse raciocínio, o homem encontra-se em estado de sucumbên-
cia para o exercício pleno de sua liberdade devido às ordens burocráticas, as
quais tendem a impor o modo de organização da vida social. Nesse contexto,
os ensinos de Strauss complementam a visão weberiana ao fato dos persona-
gens analisados – empregada doméstica e pai do Chris – apresentarem relações
individuais do EU com o ME, ou seja, da máscara com o espelho, as quais in-
fluenciam na organização social e nas ações desenvolvidas entre o indivíduo e
a coletividade para aquilo que melhor o convém.
Dessa forma, analisa-se, ainda, as ações sobre as estruturas, ou seja, a reu-
nião da consciência prática – reflete ação em conjunto do EU com o NÓS –
com a consciência discursiva que potencializam as instituições sociais.
Por fim, as teorias formuladas por Marx e Weber, desenvolvidas com o fito
de responder as questões observadas por estes pensadores em suas devidas épo-
cas, servem de conscientização ao homem. O indivíduo, antes de tudo, é dotado
de subjetividade, é ser capaz de fazer escolhas e de posicionar-se perante a socie-
dade a partir de seus princípios ideológicos, afinal, todo ser humano é dotado
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de liberdade, a qual constitui uma sociedade mais justa, conforme o artigo 3º,
inciso 1º da Constituição Federal.
É fato que o trabalho é um fator imprescindível para conceder dignidade
ao indivíduo, entretanto, esta afirmativa torna-se inválida se o sujeito não
tomar consciência de autonomia, liberdade de escolhas, direitos e posicionar
sua relevância no meio social, assim como no meio laboral, pois, tomando
como ponto de partida o artigo 5º, caput, todos devem ter a oportunidade
de autonomia, independente de classe social, para almejar ascensão no meio
onde exercem atividades que devem servir para a promoção da dignidade
humana e não de ilusão e descrença.
Tal pensamento faz parte de um sistema capitalista que induz o trabalhador
a imposição de um padrão classicista a ser seguido, entretanto, o que cabe é o
não julgamento e o respeito ao próximo e seus anseios, bem como sua valoriza-
ção pessoal por ser membro de uma sociedade com ações mútuas entre a relação
indivíduo-sociedade em constante funcionamento.
Referências bibliográficas
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: 1789-1848. Nacional: Paz e Terra, 2015.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
QUE HORAS ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Fabiano Gullane,
Caio Gullane, Debora Ivanov, Gabriel Lacerda. São Paulo: Gullane, África
Filmes, Globo Filmes, Pandora Filmes, 2015. 1 DVD (112min), son., color.
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332
Capítulo V
América Latina, Crises de
Hegemonia e Marxismo
A internacionalização da ciência e as
possibilidades na relação Sul-Sul
a partir do caso brasileiro
Introdução
A internacionalização como forma de cooperação científica entre países tem
sido reconhecida como um indicador de qualidade dos programas de pós-gra-
duação (lócus da pesquisa científica brasileira), bem como uma possibilidade de
inserção do Brasil no cenário da ciência mundial (INDJAIAN, 2017). Levando
isso em consideração, o processo de internacionalização da ciência revela-se
um tema atual no contexto do ensino superior, mobilizando ações e programas
governamentais no Brasil, a exemplo do Ciência sem Fronteiras (CsF) e do Pro-
grama Institucional de Internacionalização (PrInt).
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7 O CsF foi criado em dezembro de 2011 e esteve ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI) e ao Ministério da Educação (MEC). Como principais objetivos, propunha-se a
investir na formação de pessoal altamente qualificado nas competências e habilidades necessárias
para o avanço da sociedade do conhecimento, bem como aumentar a presença de pesquisadores e
estudantes de vários níveis em instituições de excelência no exterior. Seus principais beneficiários
eram os estudantes de graduação e pós-graduação. Em 2017, o programa foi extinto, sob alegação de
necessidade de aperfeiçoamento (Caldeira, 2017).
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8 A cada período, a CAPES realiza uma ampla avaliação dos programas de pós-graduação existentes
no país. Neste processo, os programas recebem conceitos que vão de um a sete, sendo o conceito três
o mínimo exigido. Os programas com conceito seis e sete são aqueles que se destacam por possuírem
funcionalmente similar as instituições reconhecidas internacionalmente.
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Referências bibliográficas
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com.br/noticia/o-fim-do-ciencia-sem-fronteiras-depois-de-r-13-bilhoes-
investidos-em-bolsas-no-exterior>.
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Anticomunismo: a igreja de mãos
dadas com o Golpe de 1964
Introdução
Desde pouco antes das eleições presidenciais do ano de 2014 a população bra-
sileira vem participando ativamente de discussões políticas bem acaloradas. Den-
tro dessas discussões nós vemos várias acusações e apontamentos contra as opini-
ões políticas e ideológicas das pessoas. Situação na qual às pessoas atacam quem
compartilham de ideias políticas de esquerda, ou seja, de ideias compatíveis com
os preceitos marxistas como o socialismo e o comunismo são bem recorrentes.
A partir daí observamos que parte da sociedade tinha um certo preconceito
contra essas ideias, não sabendo bem ao certo o que ela pregava ou ainda tendo
uma má interpretação e/ou um conhecimento distorcido da realidade científica
dessa ideologia elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels. Isso foi um dos
motivos geradores para iniciarmos nossa pesquisa. Porém o estopim para tal in-
teresse foi saber que nos dias de hoje a Igreja Católica não aceita em seus grupos
religiosos pessoas adeptas dessa “Filosofia”.
Ao iniciarmos a investigação, chegamos a conhecer uma grande repulsa do comu-
nismo pela igreja católica e a orientação que essa fez e faz na sua doutrinação para a
sociedade cristã. Essa atitude religiosa fora analisada na primeira metade da década
de 1960 e nos fez verificar que essa aversão desembocou no auxílio à derrubada do
governo do presidente João Goulart em 31 de março de 1964, após ele ser veemente
acusado de comunista devido as suas atitudes e pronunciamentos políticos.
1 Graduado em licenciatura plena do Curso de História pela Universidade Estácio de Sá – UNESA, Pós-
graduado Lato sensu em Sociologia e Pós-graduando em Ciência Política pela mesma Universidade.
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Desde 1917 até aos nossos dias, o anticomunismo nunca deixou de existir,
ora mais intenso, ora mais brando, quase esquecido, mas nunca inexistente. Isso
se explica devido a sua necessidade de contrapor ao “perigo vermelho”. Em mo-
mentos em que o comunismo ganhava mais força, os anticomunistas, mais viam
a necessidade de intensificarem sua luta contra eles. Assim nós temos desde o
seu nascedouro em 1917, quando pessoas alinhadas ao pensamento comunista,
que pregavam o ar de igualdade, viam na Revolução Russa uma chance de que
sim, poderiam eles mudar o sistema vigente capitalista, e com isso o cresci-
mento e nascimento de partidos políticos de cunho comunista ou de esquerda,
passando por aí pela Segunda Guerra Mundial e pela Guerra Fria, onde esta
última veio acirrar de forma intensa a rivalidade entre o modelo capitalista e o
modelo comunista de ideias e de sistemas econômico.
No bojo de todo esse alvoroço mundial, podemos afirmar que foi nos Estados
Unidos da América e no contexto da guerra fria que o anticomunismo mais se
desenvolveu, inclusive de forma organizada em instituições tradicionais como
veremos no excerto a seguir: “A ofensiva políto-ideológica dos norte-americanos
tendeu a concentrar-se então, nos setores mais receptivos e tradicionalmente
comprometidos com o anticomunismo, como as forças armadas e policiais, os
religiosos e os políticos conservadores.” (SÁ MOTTA, 2002, p.19)
No Brasil também teve momentos de maior e menor pico de batalha contra
“os vermelhos”, tendo, não por acaso, se iniciado também em 1917, após a Re-
volução. Dessa forma podemos cravar que nesse ano teve início o movimento
anticomunista brasileiro como forma de reação não só a Revolução russa, mas
também a outras revoluções de cunho socialistas estouradas pelo mundo.
Para que essas ideias anticomunistas fossem propagadas e aceitas pela so-
ciedade brasileira, um grupo até então não organizado, teve que impulsioná-
-lo. Esse grupo foi à elite brasileira, pois ela já tinha o hábito de importar, não
somente artigos de consumo, mas também ideias estrangeiras, ideias essa que
em sua maioria, advinham de países que dominavam a economia mundial e
se mostravam como exemplo de modo de vida perfeito. A imprensa brasileira
também teve papel destacado nesse processo, pois era através dela que era
passado para o povo os acontecimentos revolucionários ocorrentes na Rússia.
A imprensa fazia várias criticas aquela revolução, e isso deixava o povo brasi-
leiro amedrontado, pois faziam com que eles vissem nos comunistas o mal do
mundo, naquela época.
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Outra instituição que também contribuiu com isso foi a igreja católica, onde
podemos dizer que “os valores católicos se constituíram na base principal da
mobilização anticomunista, relegando outras motivações a posição secundária.”
(SÁ MOTTA, 2002, p.17-18).
A má caracterização do comunismo por esses agentes, como a igreja católica
e a imprensa, serviu como uma forma de conversão dos cidadãos brasileiros as
ideias anticomunistas, pois o comunismo soviético era caracterizado como uma
coisa do mal, perversa, demoníaca, onde esses comunistas viriam a dominar o
país e impor suas ideias destruidoras. Esse era o argumento central que facilitava
a expansão e aceitação da sociedade brasileira das ideias antirrevolucionárias.
No Brasil o anticomunismo teve várias intensificações como na década de
1920, após a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), mais precisamen-
te no ano de 1922, o que trouxe uma preocupação para os políticos brasileiros,
onde viram a necessidade de lutarem contra o eminente “perigo vermelho”. Já
na década de 1930, podemos dizer que foi uma das maiores intensificações, pois
foi nessa década que ocorreu a intentona comunista em novembro de 1935.
A intentona foi um movimento de rebelião, liderado pela Aliança Nacional
Libertadora (ANL), que tinha ideias comunistas, contra o governo do então
presidente Getúlio Vargas, o que foi prontamente sufocado por este. “O levante
foi representado como exemplo de concretização das características maléficas
atribuídas aos comunistas” (SÁ MOTTA, 2002, p.105) e fez aumentar a inten-
sificações dos contrários ao comunismo, inclusive com perseguições aos adeptos
deste. Outra época em que o anticomunismo foi muito forte ocorreu em 1947
e é justamente nesse período que se inicia a chamada guerra fria, o embate
ideológico entre o capitalismo, na representação dos EUA e o socialismo, tendo
como força maior a URSS, trazendo como exemplo sua experiência comunista.
Porém antes mesmo que os EUA rompessem por definitivos seus laços diplo-
máticos com a União Soviética, aqui no Brasil, o presidente da época, o Mare-
chal Eurico Gaspar Dutra iniciou o processo de cassação do registro eleitoral
do Partido Comunista do Brasil. Após uma fraca mobilização anticomunista
durante a década de 1950, motivo pelo qual o comunismo não representava
grande ameaça, na década seguinte, vem emergir com força total as mobili-
zações contrárias à ideologia de esquerda. Essa massificação vem a acontecer
diretamente a subida de João Goulart a presidência da República do Brasil, ou
até antes disso, quando Jânio Quadros, presidente antecessor, fora acusado de
aproximação com países e personalidades comunistas e de esquerda em seus
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
sete meses de governo a frente do Brasil, onde de forma ainda curiosa e pouco
esclarecida renunciou ao cargo presidencial em agosto de 1961, deixando vago
para o seu Vice-presidente João Goulart assumi-lo. A elite conservadora não via
com bons olhos o nome de Jango a presidência da República, sobre isso nos diz
o Rodrigo Patto Sá Motta (2002, p.289):
Isso nos mostra o quanto nessa época o anticomunismo estava aflorado en-
tre a sociedade e principalmente entra a elite. Porém ao analisar esse movimen-
to desde seu surgimento até o ano de 1964, mas precisamente até o aconteci-
mento do Golpe civil-militar deste mesmo ano, vemos que existem matrizes que
norteiam tal movimento. Podemos julgar como matrizes do anticomunismo no
Brasil o Catolicismo, o Nacionalismo e o Liberalismo. Nesse trabalho nos atere-
mos a matriz do catolicismo, discorrendo e aprofundando sobre ela.
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marxista não é compatível com a religião, pois sendo ela a religião, é uma cria-
ção humana. Essas ideias foram gestadas no século XIX, porém vai ser a partir
do início do século XX que a igreja católica vai de forma mais intensa fazer
duras críticas ao comunismo. Isso se deu devido a essas ideias saírem do papel,
com a Revolução Russa de 1917, pois a relação feita pela igreja era a seguinte:
o comunismo se origina do marxismo, esse por sua vez é materialista, e “sendo
materialista é essencialmente ateísta” (ROSSI, 1974, p.94), o que faz o comunis-
mo ser contrário à igreja, e esta a ser perseguida na URSS.
Essa contrariedade entre comunismo e religião na União Soviética de Lenin,
fora trazida também para o Brasil, onde a igreja católica desenvolveu seu anti-
comunismo intenso. Se para a igreja católica, na URSS, o inimigo número um
dos comunistas era a religião, para os comunistas brasileiros, os católicos faziam
esse papel de carrasco, seguindo as ordens papais, que ditavam através de suas
cartas encíclicas, como a Quod Apostolici Muneris e Rerum Novarum do papa
Leão XIII. A primeira apontava os erros da proposta revolucionária e a segunda
ratificava a restauração dos costumes cristãos, constatando que “o comunismo
representa uma ameaça séria para a religião” (SÁ MOTTA, 2002, p.37), porém
o papado não parou apenas nessas duas encíclicas e desenvolveu outras, como a
mais forte delas, a Divinis Redemptoris, do papa Pio XI lançada em 1937. Daí os
bispos e padres tinham a orientação para passar para os seus fies o mal que tal
doutrina trazia para a sociedade. Essas orientações eram transmitidas aos fies
através das Cartas Pastorais, que ensejava a luta contra o comunismo.
A História do anticomunismo religioso no Brasil foi de maior intensidade
já na década de 1930, porém nos propomos a analisar o período de 1961-1964,
devido à singularidade prática em que a igreja desenvolveu esse anticomunis-
mo e a forma que pregava, que o comunismo não era apenas contra a religião
católica, mas contra todas as religiões, fazendo com isso, com que outras reli-
giões também aderissem ao combate a essa ideologia revolucionária. Rodrigo
Patto Sá Motta (2002, p.303-304) em seu livro “Em guarda contra o perigo
vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964)” nos mostra de forma obje-
tiva e resumida esse fato:
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essa entidade teve forte atuação durante o nosso recorte temporal, mas preci-
samente em 1962. Podemos citar também outras organizações anticomunistas
como o Movimento por um Mundo Cristão (MMC) a Liga da Defesa Nacional
(LDN), a Cruzada Brasileira Anticomunista e a Sociedade Brasileira de Defesa
da Tradição, Família e Propriedade. Outros tiveram um vinculo mais profundo
com a igreja, é o caso dos Voluntários da Pátria para a Defesa do Brasil Cristão
e a Liga Cristã contra o Comunismo. Foi nesse período que também surgiram
algumas mobilizações sociais. Nesse trabalho destacaremos dois desses movi-
mentos, julgando como as maiores, as principais e como as que culminaram no
Golpe Civil-militar de 1964, a saber: o “Movimento do Rosário em Família”,
capitaneada pelo Padre irlandês erradicado nos Estados Unidos, Patrick Peyton
e a “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, Principalmente as ocorridas
nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.
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ordenado padre em 1941 e desde então passou a enviar carta para outros bispos
com a intenção de promover a reza do rosário em família. A partir daí começou
a ganhar notoriedade nos EUA e artistas o apoiaram a criar a Family Teather
Productions, uma produtora que lançava filmes e documentários católicos em
1947. No ano seguinte começa a realizar suas “Cruzadas do Rosário”. Para ca-
racterizar de forma sucinta citaremos o excerto a seguir:
Lembremos que nessa época a guerra fria estava a “topo vapor”, e que mui-
tos dos apoiadores do Padre, viam em sua missão uma ótima ferramenta para a
disseminação do anticomunismo.
O projeto das cruzadas do rosário do Padre Patrick Peyton chega ao Brasil
no ano de 1962 e logo ele vê a necessidade de recrutar pessoas para reforçar a
sua equipe. No Brasil ele deu prioridade às mulheres de classe média, pois es-
sas estavam convencidas de que “a segurança de sua família estava ameaçada”
(ARNOUD, 1983, p.192 apud GUISOLPHI, 2011, p.10).
Sobre a cruzada na cidade de São Paulo, Anderson José Guisolphi assim
caracteriza:
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Conclusão
Foi preocupação recorrente, desde o início deste trabalho a contextualização e
conceituação de pontos essenciais para o bom entendimento da ideologia do co-
munismo, assim como para o entendimento do que foi o anticomunismo. Fazendo
um longo retorno histórico podemos analisar da antiguidade até contemporanei-
dade, onde vimos o surgimento do socialismo utópico e do socialismo científi-
co. Prendendo-nos um pouco mais nos seus verdadeiros criadores, Karl Marx e
Friedrich Engels, onde podemos constatar e conhecer o comunismo. Toda essa
contextualização culminou no esclarecimento do anticomunismo, no seu nasce-
douro e como esse chegou ao Brasil, desdobrando assim, em momentos de maior
e menor intensidade, o que levou a aprofundarmos e conhecermos um pouco
mais desses períodos mais intensos do anticomunismo. Também nos propomos a
analisarmos a matriz religiosa do anticomunismo, frente a liberal e a nacionalista.
Ao nos atermos ao recorte temporal em meados do golpe de 1964 e a matriz
religiosa do anticomunismo no Brasil, podemos verificar que embora a igreja cató-
lica tenha fortes motivos religiosos que explicam essa divergência com a ideologia
comunista, sabemos que ela também fora muito influenciada por instituições in-
ternas e externas, não somente de cunho religioso para que essa repulsa viesse a
acontecer fortemente, mas também de cunho político e financeiro. Isso é explica-
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Referências bibliográficas
LESSA, Sérgio; TONET, Ivo. Introdução à filosofia de Marx. 2. ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2011. 128 p.
360
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. 1848. Edição
Ridendo Castigat Moraes. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/
adobeebook/manifestocomunista.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2017.
1. Introdução
Na maior parte da história boliviana, os povos originários ficaram à margem
da sociedade, sem reconhecimento de suas diferenças e não fez parte do gover-
no estatal. Contudo, com a nova CPE de 2009, a Bolívia passou a ser um Estado
Plurinacional, o quê acarretou a legitimidade do pluralismo jurídico, maior en-
foque a direitos coletivos, reconhecimento à ancestralidade, rompimento com
o caráter liberal e individualista das constituições burguesas, e uma democracia
deliberativa; dentre tantas outras consequências.
Muitas das análises em relação à nova constituição boliviana descon-
sideram o processo político de acirramento entre classes e o papel que as
classes historicamente exploradas tiveram para a concretização do Estado
Plurinacional. Tais visões são muito limitadas pois evidencia, na prática,
que os direitos assegurados pela CPE dados de bom grado, e não resultado
de lutas históricas de sujeitos revolucionários que sempre foram afastados da
vida política pelas elites dominantes.
Desse modo, este trabalho analisará o movimento indianista, levando
em conta o contexto de seu surgimento, suas diversas vertentes e suas mu-
danças ao longo da história; visando entender de que forma ele contribuiu
1 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membro do Grupo
de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC), Extensionista do Centro de
Referência em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Semiárido) e Monitor da disciplina de
Ciência Política. Contato: [email protected].
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Este período, marcado pelo aumento em massa das cidades e saída do cam-
po, passa a sofrer crises quando valores coloniais voltam a ser utilizados pela
elite dominante e o discurso étnico volta a ser, na década de 70, uma forma de
exploração. Nessa perspectiva, o indianismo surge em um momento marcado
pelo avanço do preconceito étnico que oprime a maioria absoluta da população
boliviana. Nos últimos 34 anos, o indianismo transitou por vários períodos: o
período formativo, o período da cooptação estatal e o período de sua conversão
em estratégia de poder3 (GARCÍA LINERA, 2010, p.321).
Apesar da distinção feita por Álvaro García Linera, este artigo não irá
fazer uma análise aprofundada dos períodos supracitados, visto que o ob-
jetivo deste artigo não é se debruçar de maneira aprofundada sobre toda a
2 A Revolução de 1952 foi um momento de insurgência popular que levou o governo revolucionário a
democratizar setores da sociedade boliviana, além de fazer a reforma agrária. Ela teve um forte caráter
nacionalista, não se atentando para a construção étnico-cultural plural da sociedade boliviana. Ela
perde sua essência com um golpe em 1964. (LEONEL JUNIOR, 2014, p.68)
3 A Revolução de 1952 foi um momento de insurgência popular que levou o governo revolucionário a
democratizar setores da sociedade boliviana, além de fazer a reforma agrária. Ela teve um forte caráter
nacionalista, não se atentando para a construção étnico-cultural plural da sociedade boliviana. Ela
perde sua essência com um golpe em 1964. (LEONEL JUNIOR, 2014, p.68)
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Desde o seu início, o indianismo já era marcado pela sua diversidade. Ainda na
fase inicial do movimento, por exemplo, foi criada a Confederação Sindical Única
de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), já outras vertentes focaram
nos partidos políticos, ou em um foco no academicismo. Vale destacar, também,
que na década de 80, vertentes culturalistas e despolitizadas ganharam espaço, bem
como as integracionistas. Em relação a estas, é importante destacar que
4 O termo katarismo refere-se à Tupac Katari, liderança aymara que lutou contra as autoridades coloniais
espanholas no período que precedeu a independência da Bolívia. (LEONEL JÚNIOR, 2014, p.87)
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5 A Guerra da Água é uma delas e ocorre de janeiro a abril do ano 2000, movida pela intenção em
privatizar o sistema de abastecimento de água na cidade de Cochabamba. A outra ficou conhecida
como Guerra do Gás, ocorrida no ano de 2003, em decorrência da tentativa de venda do gás natural
boliviano aos Estados Unidos através dos portos chilenos. (LEONEL JÚNIOR, 2014, p.91)
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estalinistas, por exemplo, consideravam que a Bolívia deveria passar pelo ca-
pitalismo, devido ao quadro de atraso que o país vivenciava até então. De
modo ainda mais majoritário dentro do marxismo, o indígena camponês ain-
da não era considerado sujeito revolucionário.
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Conclusão
O movimento indianista foi, portanto, de extrema importância para que a
questão dos povos originários passasse a ser pautas de discussões, devido a sua
característica de colocar o índio enquanto protagonista do seu próprio processo
emancipatório. A diversidade do movimento e suas constantes mudanças frente
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Referências bibliográficas
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VALENÇA, Daniel Araújo; PAIVA, Ilana Lemos de. Álvaro García Linera: um
relato do proceso de cambio e desafios da esquerda marxista latinoamericana:
Entrevista com Álvaro García Linera, Vice Presidente da Bolívia. Revistas
Culturas Jurídicas, [s.l.], v. 4, n. 8, p.355-372, maio 2017. Disponível em: <http://
www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/article/view/437/158>. Acesso em: 26
ago. 2018.
373
Partidarização do Sistema de
Justiça no Brasil, fetichismo
ético-punitivo e o fim da crítica
Introdução
A análise articula três eixos para elaborar uma visão crítica da atuação do
sistema de justiça, na atual configuração social e econômica brasileira. Inicia-se
pela avaliação da configuração de uma partidarização do sistema de justiça no
Brasil, como forma de construção de hegemonia, operada de modo a bloquear a
defesa de interesses e direitos de trabalhadores e excluídos, ao mesmo tempo em
que, pelo menos de forma implícita, promove interesses financeiros. Na sequên-
cia, investiga-se o modo como o sistema de justiça atua para colonizar o sistema
político. Procura-se mostrar como o fetichismo ético-punitivo de combate à
corrupção constitui o fundamento normativo para a atuação partidarizada do
sistema de justiça, e sua interferência na atuação dos governos identificados
com a defesa de interesses dos trabalhadores e excluídos. Por fim, a investigação
analisa os fundamentos jurídicos próprios à colonização do sistema político pelo
sistema de justiça, questionando os limites e as possibilidades da teoria crítica e
de um pensamento crítico no direito, na atualidade.
Coloca-se como problema a seguinte questão: configurou-se no Brasil uma
partidarização do sistema de justiça, apoiada por um fetichismo ético-punitivo,
cuja construção hegemônica instrumentalizou a crítica?
1 Pós-doutor pela UFSC, Doutor em direito pela UFPR, Professor do mestrado e da graduação em
direito no UNICURITIBA, Juiz de Direito no Paraná.
2 Mestre em direito pela PUCPR, Especialista em direito pela UFPR, Diretora da EMATRA IX.
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dos trabalhadores com o trabalho como uma relação social entre objetos;
desse modo, diz ele, o trabalho se torna mercadoria (2006, p. 71). Em Marx
o fetichismo da forma-mercadoria reproduziria a falta de reconhecimento, na
medida em que o trabalhador não se reconhece no produto do seu trabalho e,
ao mesmo tempo, a mercadoria adquire objetividade mensurável pela abstração
do valor de troca e sua capacidade idealizada de produzir equivalentes.
Em Freud a ideia de fetichismo adquire vários significados; talvez o que
mais diga respeito ao problema de definição de um fetichismo ético-punitivo
no Brasil é o que situa o fetichismo como uma dinâmica psicanalítica do ato
reprimido e recalcado, que retorna por meio de uma idealização ou fantasia
(1927); na ideia de fetichismo pensado por Freud opera-se um jogo de troca
de objetos e de fantasia.
Tanto em Marx como em Freud a ideia de fetichismo não chega a obliterar
toda a possibilidade de verdade; a pessoa sabe discernir o que é verdadeiro, mas
age como se não soubesse fazê-lo.
O fetichismo não apela para a irracionalidade; ainda é a razão que opera;
mas uma razão embebida pelo cinismo; ou seja, como diz Peter Sloterdijk, a
consciência infeliz da modernidade sobre a qual o Esclarecimento agiu ao mes-
mo tempo com sucesso e perda; de forma sintética, ele a define como a falsa
consciência esclarecida (2012, p. 34). Em torno dessa mesma questão Vladmir
Safatle sustenta que, do ponto de vista antropológico, o fetichismo é forma de
colonização do outro reduzido à condição de suporte de uma imagem fantasmá-
tica; uma fantasia que projeta a imagem de in-diferença absoluta e de ausência
de alteridade (2010, p. 134). Mas o fetichismo também nutre uma razão cínica
que Vladimir Safatle exemplifica com a música de Stravinski que, segundo ele,
constitui o paradoxo da falsa consciência esclarecida; forma de uma consciência
cínica que representa os gestos musicais de uma consciência reificada, mas que
demonstra, a todo momento, dela tomar distância ( 2008, p. 194-200); o caráter
paradoxal da razão cínica já não provoca estranhamento.
Tomada a realidade brasileira, a estetização da violência e da submissão ope-
ra sob uma forma de fetichismo, mediante projeção de fantasias e de instrumen-
talização do outro, e de uma razão cínica, que atualiza ideias mortas instrumen-
talizando fundamentos do direito para salvaguardar interesses do mercado, em
detrimento dos interesses da cidadania. É nesse sentido que pode ser afirmada
a configuração de um fetichismo ético-punitivo no Brasil, na esteira da ação
moralizante de combate à corrupção.
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Ocorre que no Brasil, conforme lembra José Reinaldo de Lima Lopes, na es-
teira da cultura do naturalismo jurídico, não chegou a configurar-se uma virada
linguística, pelo menos em face da premissa de Miguel Reale de um momento
bilateral na conduta admitido como experiência social (2014, p.238); os contras-
tes decorrentes das assimetrias sociais e seus conflitos acabaram contornados
no pensamento jurídico brasileiro, por meio de uma fuga idealista e de refúgio
na abstração dos conceitos, manejadas na via de um positivismo mitigado pela
prática jurisprudencial. Nesse contexto, o caráter normativo dos princípios, ao
invés de abrir oportunidade para uma perspectiva de intersubjetividade e de
compreensão material da normatividade, reforçou a cultura idealista do jogo
entre conceitos e legalismo estrito. Ganhou relevo o caráter argumentativo do
direito, na esteira da proposta de Dworkin de uma prática interpretativa vol-
tada para enfrentar desacordos, em face da impossibilidade de consenso sobre
o alcance da normatividade e em meio às diferenças de cultura e de valores.
A crítica de Ronaldo Porto Macedo Junior de uma compreensão restrita do
caráter interpretativista do direito no Brasil, nesse sentido sujeita ao jogo argu-
mentativo, evidencia os limites da reflexão que ela elabora, porque não leva em
conta os desdobramentos materiais da normatividade, que somente poderiam
ser compreendidos à luz das formas de vida em sociedade. Para o propósito de
compreensão da dialética implicada na normatividade dos princípios, de forma
paradoxal, o pensamento de Hart se revela mais rico.
No rescaldo da assimilação na cultura jurídica brasileira da normatividade
dos princípios, concebida de forma abstrata e idealista, a partidarização do sis-
tema de justiça operou uma torção: utilizou o arsenal do pensamento crítico e
antiformalista, que ganhou força com a Constituição de 1988, para sustentar o
discurso ético-punitivo de combate à corrupção. Tratou-se, de um lado, da ação
mediada por uma razão cínica, que serviu ao propósito imediato de dar suporte
ao movimento político de substituição de governo, sem eleição; e, de outro, com
implicações no campo da produção do saber no campo jurídico, de apontar para
os limites da própria crítica.
A atuação partidarizada do sistema de justiça também colocou em questão
a crítica da imparcialidade do juiz, que sustentava na linha da análise de Fa-
brício Dreyer de Ávila Pozzebon a ausência de neutralidade de valores e dos
sentidos da realidade social na elaboração da decisão judicial, embora devesse
observar equidistância em relação aos interesses em jogo na demanda (2007,
p. 166-182); a crítica parece ter viabilizado a decisão judicial orientada pelas
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Conclusão
A investigação buscou identificar os elementos determinantes de uma
forma de partidarização do sistema de justiça, com a consequente coloni-
zação do sistema político pelo sistema jurídico. Nesse sentido, a análise
indica que a partidarização do sistema de justiça no Brasil apoiou-se em
três eixos complementares:
a) desde uma perspectiva político-ideológica, o primeiro eixo indica a sujei-
ção da política à forma judiciária, no modelo do contraditório e do procedimen-
to do inquérito, em face da redução das possibilidades de consensos limitadas a
obter legitimidade nas forças econômicas de mercado;
b) o segundo eixo, de cunho jusfilosófico, aponta para a ação moralizante
no combate a corrupção, em que o sistema de justiça, apoiado em uma espécie
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Referências bibliográficas
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FISS, Owen. El derecho como razón pública. Madrid, Marcial Pons, 2007.
FOSTER, Hal. Belleza compulsiva. 1.ª ed. Buenos Aires: Adriana Hidalgo
editora, 2008.
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NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
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Teoria Marxista como base teórica
e metodológica do Serviço Social:
reflexões acerca da influência do
marxismo na construção do Código
de Ética dos (as) Assistentes Sociais
Introdução
O Serviço Social perpassa até hoje por processos de construção e recons-
trução para se consolidar como uma profissão sócio-técnica, atuando em defesa
e legitimação da classe trabalhadora. Ao longo de sua história sofreu transfor-
mações teóricas, operativas e políticas, ao passo que o capital se reinventa, o
Serviço Social se transforma.
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Metodologia
Este trabalho foi elaborado a partir de revisão bibliográfica de autoras (es) que
abordam o tema escolhido para estudo, tais como Marilda Iamamoto e Raul de Car-
valho (2014); Carlos Montaño e Maria Lucia Duriguetto (2011); Manuel M Castro
(1987); José Paulo Netto (1991; 1995; 2011); Maria Andrade (2008); Claúdia Santos
(2006); Balbina Vieira (1978); ABEPSS (1996); Maria Barroco e Sylvia Terra (2012);
Mirla Cisne (2015); Antônio Aquiar (1995); Marx e Engels (2008); Código de ética
do/a assistente social de 1993; Lei nº 8.662/93 de regulamentação da profissão. Assim
baseado nas obras foi analisado os registros que retratam a trajetória do Serviço Social,
especialmente, o momento na qual sua atuação aproxima-se as bases marxistas.
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6 O termo Questão Social pela tradição marxista, segundo Montaño e Duriguetto (Glossário. 2011, p.
364) “é empregado como expressão dos fundamentos da sociedade capitalista, como a contradição
capital e trabalho, desdobrando-se e manifestando-se de diversas formas (desemprego, violência,
pobreza etc.) e representando conflitos e lutas em torno do antagonismo de interesses”.
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8 III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado na cidade de São Paulo, no ano de 1979,
marco histórico e emblemático da profissão.
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12 Rio de Janeiro 09 de maio de 1986. Publicado no Diário Oficial da União nº 101, do 02/06/86, Seção
I, páginas 7951 e 7952.
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gênero” (CEFSS, 1993, p. 24). Como Marx e Engels expressam nos seus escritos
do Manifesto do Partido Comunista em 1848, o regime burguês só será extinto
sem a exploração do homem pelo homem, sem a divisão das classes sociais e com
um novo modelo de sociedade que busque a emancipação dos sujeitos. Pensar esse
momento histórico, é pensar a superação do capitalismo e as desigualdades que
nele estão postas, assim o CE “articulou duas dimensões da profissão: a do exercício
profissional institucional á da ação política coletiva vinculada aos processos de luta
contra hegemônicos da sociedade brasileira” (BARROCO E TERRA, 2012, p. 59).
E por fim, o último ponto como reflexão a ser destacado é o: “IX. Articulação
com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios
deste Código e com a luta geral dos/as trabalhadores/as” (CEFSS, 1993, p. 24). Esse
é o princípio primordial das leituras comentadas, onde entende-se que para a supe-
ração da exploração e desigualdade social, o proletariado precisa unificar suas forças,
atingindo o processo de consciência de classe em si e classe para si13.
Esse processo de consciência tem dupla dimensão “que em condições históricas
determinadas pode coexistir num mesmo momento, em outras caracteriza uma pas-
sagem, levando-nos ás seguintes determinações da classe: a ‘consciência’ e as ‘lutas’ de
classes” (MONTAÑO E DURIGUETTO, 2017, p. 98). Isto é, o CE tem como pres-
suposto uma luta que perpassa as instituições categóricas do Serviço Social e soma-se
a uma frente ampla, uma luta coletiva, pensando a dimensão macro das lutas sociais.
A união e adesão da classe trabalhadora em sua forma mais abrangente,
na perspectiva anticapitalista, só será possível através da consciência de clas-
se14, sendo inseparável da luta revolucionária, estando para além das reivin-
dicações pontuais, constitui-se como elemento crucial para a derrubada da
burguesia nessa sociabilidade.
“Que as classes dominantes tremam a ideia de uma revolução comunis-
ta! Os proletários não têm nada a perder nelas, a não ser suas cadeias. Tem
13 A “classe em si” é constituída pela população cuja condição social corresponde com determinado lugar e
papel no processo produtivo, e que, independentemente de sua consciência e/ou organização para a luta na
defesa de seus interesses, caracterize uma unidade de interesses comuns em oposição aos de outras [...]. A
“classe para si “caracteriza outra dimensão possível da constituição e da análise de classe. Conforma uma
classe para si aquela que, consciente de seus interesses e inimigos, se organiza para a luta na defesa destes
[...] a classe trabalhadora se torna sujeito autônomo, consciente de seus interesses e do seu antagonismo
ao capital, e organizado para a luta de classes (MONTAÑO E DURIGUETTO, 2017, p. 97).
14 O desenvolvimento da “consciência de classe”, representa o máximo de consciência possível,
entendida como o conhecimento cientifico da realidade e dos fundamentos da vida social em uma
dada época (MONTAÑO E DURIGUETTO, 2017, pag. 110).
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Considerações finais
Foi com a ruptura do tradicionalismo ao modernismo, e a partir das
influências marxistas, que as/os assistentes sociais têm novos olhares às de-
mandas que chegam, trabalham assim, gerenciando, administrando e execu-
tando políticas públicas, de responsabilidade do Estado. Seu histórico entre
o assistencialismo e filantropização são destruídos e as necessidades sociais
são politizadas pelos movimentos da classe trabalhadora que se formam e se
organizam em torno de sua defesa. Direito ao trabalho, à autonomia de or-
ganização sindical, à seguridade social, aos direitos sociais, políticos e civis
e aqueles relacionados à diversidade humana - como liberdade de expressão,
direito à identidade e igualdade de gênero, étnico-racial e à liberdade de
orientação sexual - emergem como demandas concretas e mobilizam os su-
jeitos individuais e coletivos para a luta.
É importante refirmar que, os princípios destacados acima, são ban-
deiras de lutas e valores, que estão vinculados dentro do PEP, mas que
não nos limitamos a estes. A materialização desse projeto se configura na
perspectiva de um fazer profissional político e ético. As intervenções dos/
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Referências bibliográficas
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BARROCO, Maria Lucia Silva. TERRA, Sylvia Helena. Código de Ética do/a
Assistente Social comentado. Conselho Federal de Serviço Social – CFESS,
(organizador) – São Paulo: Cortez, 2012.
CISNE, Mirla. Gênero divisão sexual do trabalho e serviço social. 1ª ed. São
Paulo: Outras Expressões, 2015.
NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2015.
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Capítulo VI
Marxismo e Movimentos Sociais
Crise capitalista, o embate
hegemônico e os desafios dos
intelectuais das classes subalternas
Introdução
O mundo experimenta hoje uma grave crise. Trata-se de uma particular
crise do capital a qual podemos considerar como uma crise estrutural. É ne-
cessário salientar que as crises não são uma novidade para a sociabilidade
burguesa. Ao contrario, são parte constituinte do sistema d’ocapital e fazem
parte de seu desenvolvimento.
Pelo seu carater estrutural e global a crise atinge amplos setores gerando
impactos no Estado e na sociedade civil. Assim, a crise estrutural e rastejante se
constitui como um movimento contraditório de ajustes recíprocos que apenas
se conclui ao final de uma dolorosa reetruturação radical (Mezaros, 2002). Nes-
ta linha analitica assistimos no Brasil a um contexto no qual o Estado encontra-
-se capturado pelo capital implementando medidas de ajuste fiscal constituidas
como necessidade orgânica deste diante da crise que se complexifica. Para a
classe subalterna os impactos da crise são devastadores, pois é submetida um
processo no qual tem sido refém de um modelo economico que se baseia na
precarização de suas condições vida e trabalho (Braga, 2014).
Em tal contexto buscamos entender os impactos que a atual crise estrutural
do capital, de caráter global, tem gerado para os intelectuais das classes subalter-
nas. Isto porque partimos do pressuposto que a referida crise tem se constituido
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2 Utilizaremos, a partir deste momento, os termos mediação e mediadores aspeados, tendo em vista o
diálogo crítico que realizamos com tais noções.
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sembléia Nacional. De forma geral, a entrada dos anos de 1990, demarca uma
ampliação visível da adoção e institucionalização da prática de “mediação” na
Europa em países como Portugal, Itália, Holanda Bélgica e ainda no Canadá.
Na América Latina, também a apartir de 1990 países como Argentina,
Chile e Brasil dão os primeiros passos para adotar a “mediação”. A Argentina
é precussor neste movimento, a partir de 1992, quando o Poder Executivo
declara, por meio de decreto, o desenvolvimento da “mediação” como método
de solução de controvérsias (TOMMASO, 2004).
No Brasil, tendo à frente uma direção de cariz liberal, a Confederação das
Associações Comerciais do Brasil iniciou um movimento que resulta na Lei
Marco Maciel -Lei nº 9.307/96- que regulamenta a arbitragem, tendo a conci-
liação e a “mediação” como modalidades de resolução de conflitos (Vezzuella,
2001). Em 1997 e foi criado o Conselho Nacional de Mediação e Arbitragem
(Conima) cujo objetivo é difundir uma cultura de procedimentos não adver-
sariais e extra-judiciais para a resolução de conflitos. Várias iniciativas tem
sido criadas nesta direção: câmaras e Centros de Mediação e Arbitragem;
juizados especiais; câmaras e centros de Mediação e Arbitragem Trabalhista;
conselhos de conciliação prévia trabalhista, e ainda processos judiciais na
área de conflitos de família.
O histórico da “mediação” permite ainda apresentar as formas e as confi-
gurações que esta assumiu ao longo dos anos. Ou seja, “Mediação” intercultural,
“Mediação” comunitária e “Mediação” social. Em países da Europa, é comum a
utilização da “mediação” intercultural voltada para intervenção em contextos
multiculturais, principalmente, em problemas relativos a integração de imigran-
tes ao contexto cultural e social dos países nos quais passam a residir. Já em paí-
ses como Argentina, Brasil e Chile, as modalidades de “mediação” Comunitária
e Social são mais facilmente encontradas, sendo utilizadas como técnica e ferra-
menta destinadas a resolução de conflitos. Nesse sentido, atesta Olivera (2005)
[…] ya que la mediación comunitaria tiene por sobre todas las cosas
una función educativa, es un modo de gestión de la vida social y solo
un procedimiento de resolución de conflictos, se propone como una
transformación cultura; se trata de que las personas puedan internalizar
mediante su practica los principios que propone, aprendiendo de la
participación, la asunción y el compromiso que requiere la convivencia
dentro de la comunidad ( p.22).
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3 No âmbito do serviço Social brasileiro, esta perspectiva tem se expressado, principalmente, na área
da justiça, espaço no qual alguns assistentes sociais se auto-intitulam como “mediadores”, ao atuarem
na resolução de conflitos judiciários. Neste contexto, seria também o assistente social o “terceiro
neutral”, faciliatador da negociação. Conforme seus adeptos, a “Mediação Familiar”, no âmbito da
justiça e do direito de família, seria uma das formas atuais de inserção do assistente social nos espaços
ocupacionais na esfera do judiciário. Diante destes elementos, consideramos que, no Serviço Social,
a perspectiva da “mediação” tende a ampliar-se, como o que ocorre a exemplo de outros países da
América Latina, como Argentina e Chile . a este respeito conferir também Pontes (2002).
4 OLIVEIRA; GALEGO (2005) definem esta categoria como “movimento intencional dinâmico,
centrado na comunidade local, envolvendo respeito mútuo, reflexão crítica, participação e
preocupação do grupo em partes iguais na valorização dos recursos, acesso e controlo sobre os
mesmos” (2005, p.28)
5 Em Vezzuella (2001) o autor apresenta a mediação no Brasil principalmente através de sua atuação
na introdução da mediação em países como Argentina, Paraguai, Brasil e Portugal.
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7 Autores europeus como Boaventura de Souza Santos, Pierre Bourdieu, Mafesoli têm influenciado
amplamente o pensamento social brasileiro, especialmente na pós-graduação. Em visita realizada
ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), coordenado pelo professor
Boaventura Santos, foi possivel constatar um número significativo de estudantes brasileiros que têm
seus estudos de mestrado e doutorado orientados pelo referido professor. Este, na última década,
tornou-se uma das maiores referências teóricas e políticas nos países do Cone Sul especialmente
no Brasil. Além disto, sua articulação com os movimentos sociais e sua participação na realização
do Fórum Social Mundial tem tornado-o uma forte influência teórica para movimentos sociais em
diversas partes do mundo.
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8 Ao longo do século XX, pensadores de distintas vertentes teóricas tematizaram a questão dos
intelectuais e sua função na sociedade. O debate esteve balizado essencialmente por, Marx, Gramsci,
Stuart Mills, Norberto Bobbio, Karl Mannheim, jean Paul Sartre, Noam Chomsky, Michael Lowy
entre outros. Malgradas as diferenças teórico-políticas entre estes pensadores, é elemento consensual
a legitimidade política alcançada pelos intelectuais na sociedade moderna.
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Referências bibliográficas
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Direitos LGBT e capitalismo: entre a
organização social e os processos de
apropriação do capital
Introdução
O Presente trabalho tem como objetivo analisar a relações entre Direitos
LGBT e o modo de produção capitalista, com ênfase nos processos de apropria-
ção das pautas e demandas por reconhecimento deste segmento, considerando
a conexão entre movimento LGBT, mercado e Direito.
1 Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Especialização
em Direito Constitucional pela Rede Futura de Ensino/FAVENI (em andamento). Membro do Projeto
Universidade Operária - GEDIC/UFERSA. Email: [email protected]. Tel: (84) 99915-5905
2 Bacharela em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialização em
Direito Constitucional pela Rede Futura de Ensino/FAVENI (em andamento). Membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: taynarafbezerra@gmail.
com. Tel: (84) 99952-4443.
3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialista em
Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Mestrando em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: ronaldomaia4@
gmail.com Tel: (84) 99616-6842.
4 Bacharela em Direito pela UFERSA, Especialista em Direitos Humanos pela UERN, advogada,
membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – GEDIC. Email:
[email protected]. Tel.: (84) 9600-8698.
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
Desde sua formação até hoje, o movimento LGBT passou por diversas mu-
danças em sua forma de lutar por direitos bem como por várias fragmentações
e divisões internas, sendo que, atualmente, de forma hegemônica, sua principal
esfera de atuação está ancorada na busca pelo reconhecimento de direitos e de
maior visibilidade, voltando-se com mais ênfase para o debate de pautas liberais.
Tal momento vivido pelo Movimento LGBT no Brasil é sintoma não apenas
de uma abordagem voltada para os direitos de Liberdade (em uma interpretação
geracional, de primeira geração), mas de um processo histórico que relaciona as
pautas de reconhecimento com o modo de produção capitalista, fato que tem
gerado diversos processos de apropriação e mercantilização das pautas do refe-
rido segmento social, objeto do presente estudo.
A presente pesquisa se caracteriza por ser qualitativa, a partir do método de
análise materialista-histórico-dialético. Inicialmente será realizada a revisão de
literatura e em seguida, pesquisa documental, com levantamento dos direitos,
garantias e instrumentos legais, princípios, interpretações jurídicas e políticas,
utilizados nos processos de luta do Movimento LGBT no Brasil, seja pelo acesso
a documentos institucionais, relatórios, planos e programas estruturantes im-
plementados pelo Estado, seja por documentos produzidos pelas organizações
da sociedade civil vinculadas à pauta LGBT.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
sociedade fechada para sua expressão, o que acaba por invisibilizá-las, relegan-
do-as à marginalidade bem como ressaltando e incentivando a opressão violen-
ta contra as mesmas.
Nesse contexto, os sujeitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
travestis e transgêneros) veem-se constantemente como vítimas seja da ação
violenta da sociedade machista e homolesbobitransfóbica ou da omissão esta-
tal. E é nesse mesmo cenário que se dão os primeiros passos na organização de
um movimento que busca conquistar direitos e discutir de forma cada vez mais
aberta a pauta da sexualidade: o movimento LGBT.
De acordo com Simões e Facchini (2009, p. 40), os primórdios das lutas de
um ativismo homossexual retroagem à Europa do final do século XIX, quando
despontou uma campanha pela descriminalização do comportamento homos-
sexual entre homens na Alemanha. Tal movimento foi crescendo até alcançar
um rápido ápice nas décadas de 1910 e 1920 em várias partes do continente
como, por exemplo, na Rússia, em 1917, com a abolição das leis anti-homosse-
xuais pelo governo bolchevique, e com o surgimento de locais de sociabilidade
lésbica em Paris e Berlim.
A partir da década de 1940, despontam movimentos similares nos Esta-
dos Unidos, com a criação de vários grupos de sociabilidade gay e lésbica.
Embora, num primeiro momento, a perspectiva desse movimento se voltasse
mais para a definição de uma identidade bem como na busca por uma maior
respeitabilidade, posteriormente, influenciado pelos movimentos de contra-
cultura hippie que surgiram no contexto histórico da Guerra do Vietnã, o
movimento tomou uma feição mais política. Como marco dessa mudança,
temos o dia 28 de junho de 1969, quando no bar Stonewall Inn deu-se o
confronto entre a polícia e frequentadores da área (em sua maioria homos-
sexuais). Essa data passou a ser conhecida como o Dia do Orgulho LGBT
(SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 43-45).
Contudo, vale salientar que a tendência menos radical do movimento foi a
que permaneceu e se sobressaiu (SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 47), sendo
formados vários locais de sociabilidade gay e lésbica (guetos) ao redor do mun-
do, o que contribuiu, de forma ainda inicial, para a apropriação do mercado
sobre a pauta do movimento.
A partir da década de 1970, o movimento passou a cultuar um modelo ex-
tremo e idealizado de masculinidade, estigmatizando aqueles sujeitos que não
se encaixavam nesse padrão bem como incorporando o modelo hierárquico das
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Se a Bíblia, que é o livro que norteia a vida do povo cristão, não só dos
evangélicos, mas de todos os cristãos, se a Bíblia, que norteia a vida,
a orientação espiritual da maioria do povo brasileiro; se esta Bíblia
que é a palavra de Deus, condena a prática do homossexualismo, não
poderemos nós, representantes do povo cristão do Brasil, ser defensores
dessa prática (VIEIRA, 1987).
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entre direitos LGBT, classe e suas relações com o modo de produção capitalista
são imprescindíveis para pensar um outro modelo possível de sociedade, reco-
nhecendo que o atual momento jurídico que vivemos, apesar de alguns avanços
em termos de conquistas de direitos, possui limites claros, considerando que o
próprio direito se forja e se aperfeiçoa no capitalismo e Estado burguês.
Deve-se reconhecer que a própria noção de direitos humanos possui limites
dentro do sistema capitalista e que emancipação política não pressupõe eman-
cipação humana (MARX, 2010). É necessário afirmar, portanto, que, segundo
Valença e Paiva (2014, p. 11) a luta pelos direitos humanos ou dos seguimentos
historicamente marginalizados, deve ser encarada como luta em curso, de ma-
neira histórica, reconhecendo seus potenciais na realidade concreta, mas tendo
dimensão dos limites a ela imposta pelo próprio modo de produção capitalista.
Conclusão
Conclui-se, portanto, que o processo de lutas da população LGBT, dada sua
configuração histórica e a ênfase aos direitos individuais e liberais clássicos,
tem gerado um maior distanciamento dos debates estruturais e econômicos da
sociedade, o que desponta em um processo de apropriação capitalista, seja ma-
terialmente ou simbolicamente, sobre as demandas LGBT.
Vê-se que é necessário uma articulação entre as pautas de direitos humanos
LGBT com o debate de classe e modo de produção, reconhecendo os limites do
Direito e da noção de sujeito de direito forjadas sob os marcos do capital, de modo
a pensar a luta LGBT rumo a uma perspectiva de emancipação integral e humana
articulada com a superação do capitalismo e da forma jurídica burguesa.
Referências bibliográficas
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
industria-cultural-pink-money-e-a-crise-de-hegemonia-sob-o-prisma-lgbt/>.
Acesso em: 29 jul. 2018.
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Emancipação política e emancipação
humana: uma análise marxista da
teoria dos Direitos Humanos
Introdução
O presente trabalho apresenta uma concepção histórica dos direitos hu-
manos, determinada pelos movimentos reais das classes sociais, demonstran-
do que (via de regra) são marcados por autodefesa economicista fruto de uma
compreensão alienada da realidade social, levando a reivindicações legais
fundadas em uma visão fetichizada do potencial emancipatório da positivação
e constitucionalização de direitos.
A justificativa que motivou a elaboração deste artigo foi o entendimento
de que o surgimento dos direitos humanos está ligado ao processo histórico
da sociedade ocidental, portanto, sua ideia de abrangência global perpassa por
uma compreensão de mundo eurocêntrica, a partir de concepção judaico-cristã
e cosmopolita. Nessa perspectiva, a “doutrina dos direitos humanos” foi estra-
tegicamente utilizada como instrumento de legitimação da dominação colonial
promovida pelos europeus, que afirmavam estar levando cultura e redenção
aos povos não civilizados da América, da Ásia e da África. Ou seja, o discurso
de universalização dos direitos humanos, calcado na busca pela emancipação
política global, justificou a dominação e escravização de outros povos, afim de
conquistar novos mercados para o desenvolvimento do sistema capitalista.
1 Bacharela em Direito pela UFS. Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processo Penal pela
UCAM. Mestra em Direito Constitucional pela UFF. Doutoranda em Direito pela UFRJ. Advogada
Popular. Assessora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ.
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2 Segundo Comparato (2010, p.13), as instituições jurídicas de defesa da dignidade humana contra a
violência, o aviltamento, a exploração e a miséria foram sendo criadas e estendidas progressivamente
a todos os povos da Terra. Tudo giraria, portanto, em torno do homem e de sua posição no mundo.
Para o referido autor (2010, p.50), os homens recuam a cada grande surto de violência, horrorizados,
“e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações
aviltantes faz nascer nas consciências (...) a existência de novas regras de uma vida mais digna para
todos”. A consciência ética coletiva vem se aprofundando, portanto, no curso da História.
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3 Giuseppe Tosi (2002, p.27) acredita que a teoria filosófica que funda os direitos humanos é o
jusnaturalismo moderno, segundo o qual indivíduos livres superam o estado de natureza através
de um pacto para a formação da sociedade civil no qual todos renunciam à própria liberdade para
consigná-la nas mãos de um poder central. O papel do Estado seria garantir e proteger a efetiva
realização dos direitos naturais inerentes ao indivíduo.
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Da mesma forma, treze anos mais tarde, a Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão, de 1798, no contexto da Revolução Francesa, reafirma e
reforça a ideia de liberdade e igualdade dos seres humanos em seu art. 1°: “Os
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Este homem, contu-
do, engloba apenas o homem da sociedade burguesa, egoísta, “recolhido ao seu
interesse privado e separado da comunidade” (Marx, 2010, p. 50) e sua liberda-
de traduz-se essencialmente em direito à propriedade privada.
A incapacidade do pensamento liberal do século XX em lidar com os proble-
mas sociais gerados pelo capitalismo, por excluir da categoria humana a maior
parte da população (os não proprietários e as mulheres), dá corpo à teoria so-
cialista (principalmente após o Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx
e Frederich Engels), que reivindica não mais apenas a liberdade, mas também a
igualdade entre os homens e entre os povos, influenciando, sobretudo, os movi-
mentos revolucionários de 1848.
Na tentativa de humanização do sistema capitalista, ou de sua superação,
surgem movimentos revolucionários de reação da classe trabalhadora para
que o Estado oferecesse uma gama de serviços a fim de dirimir as distorções
econômicas e sociais do sistema, permitindo a efetivação da igualdade material.
São movimentos questionadores da própria estrutura de organização do
Estado e objetivavam a construção de um Estado de Bem Estar Social, onde
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4 São os direitos destinados à correção das distorções socioeconômicas, tais como: à seguridade
social, ao trabalho, ao seguro contra desemprego, de organização sindical, ao lazer e ao descanso
remunerado, à proteção especial para a maternidade e a infância, à educação pública gratuita e de
qualidade e a participar da vida cultural da comunidade.
5 A garantia destes direitos exigiria do Estado determinadas prestações que colocariam em xeque a sua
própria estrutura e o sistema onde se encontra inserido. Os direitos sociais foram, então, lançados
como diretrizes a serem alcançadas a longo prazo, não vinculando a ação imediata do poder estatal,
sendo condicionada à reserva do possível.
6 A Constituição de Weimar instituiu a primeira república alemã, surgindo como produto da
Primeira Grande Guerra. O Estado da democracia social adquiriu a partir dela uma estrutura
mais elaborada, que veio a ser retomada em vários países após a Segunda Guerra Mundial
(COMPARATO, 2010, p. 205).
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nem nacional, mas um problema social que abrange todos os países em que
existe a sociedade moderna”7.
Desta forma, Marx identifica a emancipação humana com a construção da
sociedade comunista, erigida internacionalmente através de lutas articuladas
pelos trabalhadores organizados de todas as partes do mundo. A busca pela
emancipação humana coaduna, portanto, com a busca da transformação social
em direção a uma sociedade sem classes. O seu sujeito não é individual (como
na concepção de homem individual contida na doutrina dos direitos humanos),
mas um sujeito coletivo, identificado com sua classe social.
Porém, não se trata de negar a reivindicação dos trabalhadores e oprimidos
por novos direitos, mas ressaltar o caráter de classe do Estado (e, consequente-
mente, do direito), deixando de compreender a luta por direitos humanos como
um fim para trata-la como um meio de disputa de consciência para a necessida-
de de transformação radical da sociedade. Ou seja, denunciar a positivação de
direitos como arrefecimento da luta de classes, como recuo da classe dominante
frente à possibilidade real de tomada de poder da classe trabalhadora.
A luta por direitos humanos precisa suplantar o paradigma da eman-
cipação política para ser compreendida enquanto instrumento de supera-
ção da consciência de classe “em si” para transformar-se em classe “para
si”, assumindo-se como sujeito revolucionário coletivo capaz de construir a
emancipação humana em uma sociedade formada por sujeitos humanamen-
te diferentes, mas socialmente iguais.
Conclusão
Diante do exposto, é possível extrair as seguintes conclusões a respeito
da luta pela positivação de direitos humanos e da busca pela emancipação
da classe trabalhadora.
Considerando os direitos humanos como fruto de um processo histórico
com raízes no surgimento e desenvolvimento do sistema capitalista, superamos
a hipótese de origem em um processo filosófico, de pensar o direito a partir de
gerações, para identifica-lo com a história da luta de classes. Desta forma, supe-
rando a visão fetichizada da realidade social e destacando a dependência eco-
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Referências Bibliográficas
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Extensão universitária em educação
infantil e popular durante o encontro
dos Sem Terrinha, no assentamento Maísa,
da região de Mossoró/RN
Introdução
Para além da luta pelo direito à terra, o Movimento dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais sem Terra vem pautar também o direito a uma educação
digna e humana, que se faça presente nos ambientes de vivência e que caminhe
de contramão à ideia hegemônica de que o polo de sociabilidade educação se
encontra nos espaços urbanos e põe o campo à margem dela.
Partindo disso, o MST desenvolve propostas pedagógicas de educação popular
que respeitem o indivíduo e seu saber, tanto em vieses formais, quanto informais, e que
incentivam o coletivismo, pautando o processo de luta estabelecido pelo movimento.
A primeira Ciranda Infantil do MST foi realizada em 1987, durante o 1º Encon-
tro Nacional de Educadoras/es da Reforma Agrária (ENERA)4 e, na época, sua
abordagem focava bem mais a facilitação à participação das/os mães e pais no
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5 FREIRE, P. Educação e Mudança. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
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Metodologia
O Encontro dos Sem Terrinha, que é organizado anualmente pelo MST nos
assentamentos reúne crianças assentadas para atividades de reflexão, recreação
e fortalecimento de vínculos de identidade camponesa, aproxima-se da criança
como um espaço em que esta pode desfrutar de um ambiente no qual exerce sua
liberdade de criança, onde sua curiosidade para com o mundo é incentivada,
pois é junto delas que se constrói o ambiente do encontro, buscando pelo novo
e conhecendo sua história. A confiança entre elas e o conhecimento acerca da
identidade camponesa são estabelecidos através de um ambiente afetuoso, per-
meado por brincadeiras, oficinas variadas, místicas, teatro, rodas de conversa,
entre outras atividades lúdicas.
O Encontro se constrói sob a égide da autonomia das crianças, partindo
do pressuposto de que a estrutura de uma ciranda as arruma em um contínuo
fluxo. Sendo assim, o Encontro, do começo ao fim, é posto em movimento e
coordenado por elas.
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De acordo com o MST (2004, p. 39)7, os objetivos das Cirandas Infantis são:
7 MST. Educação Infantil: Movimento da vida, dança do aprender. Caderno de Educação, São Paulo,
n. 12, nov. 2004.
8 ROSSETTO, E. R. A. Essa ciranda não é minha só, ela é de todos nós: a educação das crianças sem
terrinha no MST. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 2009.
456
nam, juntamente com seus brinquedos, que não ficam na esfera do individual,
mas constituem um diálogo alusivo a ela e sua comunidade.9
Para auxiliar na construção e realização do Encontro dos Sem Terrinha da
Região de Mossoró/RN, destacaram-se oito extensionistas do CRDH Semiári-
do, que mantiveram diálogo com as/os representantes do MST através de reu-
niões junto ao setor pedagógico do movimento. Assim, a atividade iniciou-se
com o translado das crianças em um transporte tomado à frente por estudantes
extensionistas e professores/as do Centro, partindo do Acampamento Cirilo até
a Agrovila Paulo Freire, no Assentamento Maisa. O Encontro se deu na Escola
Municipal Professor Maurício de Oliveira, onde o coletivo de extensionistas
se destacou para a realização de múltiplas atividades, a saber: ornamentação e
mística, vigília e portaria, participação em questões referentes à infraestrutura
do Encontro, atividades organizativas de pessoas e materiais, alimentação, re-
gistro e memória e recreação.
No dia inicial, 13 de janeiro, se deu a chegada ao Acampamento Cirilo, às 6
horas e 40 minutos da manhã.
Às sete horas e trinta minutos, alcançou-se a Agrovila Paulo Freire, onde a
responsabilidade com as atividades foi repartida entre as/os extensionistas. No
período da manhã, se deram a ornamentação do espaço, fazendo uso de materiais
como bexigas, bandeiras e tecidos de tipos e comprimentos variados, a reunião
organizativa entre extensionistas e participantes do movimento e as primeiras
atividades recreativas junto às crianças. Materiais diversos, como cadeiras, cor-
das, giz e tinta guache, fizeram parte das brincadeiras, todas voltadas a estimular
a criatividade e a interação entre as crianças, como amarelinha, mímica, dança
das cadeiras, danças de roda e pular corda acompanhados de músicas folclóricas e
canções que discutem companheirismo, e variadas outras brincadeiras seguindo
a mesma lógica de exercícios, formação cultural e de vínculos.
Ao meio dia, participantes do movimento destacados para a atividade de
alimentação serviram almoço, preparado com alimentos originários da reforma
agrária, produzidos por um modelo de agricultura que busca ser parcimoniosa
com o meio ambiente, livre de agrotóxicos e de opressões, garantindo, portanto,
aos encontristas, a segurança alimentar e nutricional necessária para o pleno
desenvolvimento da criança.
9 BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.
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Resultados e Discussão
Ao integrarem o Encontro, as/os extensionistas agiram antropologicamente
frente ao espaço e convívio, participando estruturalmente junto dos integrantes
do MST. Pôde-se observar com clareza a metodologia estrutural que comanda
a forma pela qual o MST organiza um evento como esse e o método empregado
com as próprias crianças.
Logo de início foi colocado como tarefa para os extensionistas a decoração
de alguns espaços da escola, tornando-a um local ainda mais convidativo para
as crianças. Através da experiência é possível compreender a importância de
organizar um ambiente adequado, com informações que a criança possa ter
curiosidade de buscar conhecer, aprender e recriar. Dessa forma torna-se in-
dispensável analisar e compreender o importante papel que o educador possui
dentro da organização de uma ciranda, tendo a função de orientar e oferecer
condições que contribua para o crescimento e autonomia das crianças en-
volvidas no espaço. Mas para que esse processo ocorra de uma forma rica de
aprendizados, é fundamental que os responsáveis em coordenar as ativida-
des, mantenham-se sempre atualizado para levar diversas informações para as
crianças. Todos esses aprendizados que puderam ser obtidos pelos extensio-
nistas durante sua vivência, torna-se muito importante para a organização de
ciranda em outros eventos que virão a acontecer.
A comunidade participar desses momentos, faz com que a mesma compre-
enda a importância de organizar as crianças, as entendendo como sujeito re-
volucionário e que para sua autonomia seja gerada, é necessário o cuidado de
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Conclusão
A análise feita sobre o evento em geral pode ser considerada positiva, por
ter assegurado a realização de todas as atividades, dentro as dificuldades que
qualquer evento possa enfrentar, como cumprimento de horário e assegurar os
participantes nas atividades.
O encontro cumpriu seu objetivo a partir do ponto que é percebido que as
crianças estão se organizando, tendo visão do mundo em que estão inseridas
e que podem fazer parte da luta. A realização de oficinas, reuniões e debates,
estando presente o método da Educação Popular, faz com que as crianças
presentes desenvolvam senso crítico, não permitindo imposições postas pelo
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Referências bibliográficas
FREIRE, P. Educação e Mudança. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
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Juventude e organização política: uma análise
do protagonismo juvenil nas lutas sociais
1. Introdução
Os debates envolvendo juventude se compreendem complexos, uma vez que,
envolvem conceitos específicos e uma noção muito utilizada no senso comum.
Logo, falar de juventude é compreender este segmento não como algo pronto e
acabado, cuja sua trajetória histórica determina-se especificamente pela idade –
a delimitação científica e legislativa brasileira dessa categoria, é de pessoas com
idades entre 15 a 29 anos – mas, como construção histórica de subjetividades
individuais e coletivas, compreendendo seus espaços de ocupação e suas varia-
das expressões e contradições na sociedade, inclusive no campo político.
A consolidação da sociabilidade capitalista, ao passo em que espraia con-
tradições e antagonismos é palco de inúmeras formas de mobilização e resis-
tência. Se esta assertiva é verdadeira, decorre-se dela o fato de que, em todos
os momentos históricos, as contradições e antagonismos inerentes ao modo de
produção capitalista têm se expressado de diversas formas e, ao mesmo tempo,
contribuído para despertar nos sujeitos a necessidade de organização e luta.
Inseridos nessa sociabilidade regida pelos ditames do capital, em que as re-
lações sociais são determinadas por uma lógica de dominação de uma classe
sobre outra, a juventude vem desempenhando um importante papel no campo
da atuação e organização política, colocando-se como sujeito importante nestes
processos, através do seu caráter de rebeldia e subversão, que constituem pontos
1 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Mestre
em Serviço Social e Direitos Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos
Sociais (PPGSSD/UERN).
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base principal, a figura do Estado, que nessa perspectiva Lessa (2012, p. 13)
categoriza como, “instrumento especial e imprescindível de repressão dos
trabalhadores para a reprodução da sociedade de classes, desde a mais antiga
até a mais desenvolvida dos nossos dias”.
Ao ter o controle dos meios de produção e da força de trabalho no processo
de produção a burguesia se constitui classe dominante, estendendo seu poder
ao Estado, que passa a submeter-se aos interesses burgueses expressando isso
através de normas e leis que reafirmam o caráter de Estado Burguês.
Sendo assim, o Estado não apresenta neutralidade e passa a cumprir o papel
contraditório, que de um lado, em maior ou menor escala, atende a alguns an-
seios da classe trabalhadora e, de outro, legitima a dominação e a exploração da
burguesia sobre o proletariado, o que caracteriza a aliança com os interesses da
classe dominante. Sobre as ideias dominantes, Marx fundamenta que:
As ideias dominantes são, pois, nada mais que a expressão ideal das
relações materiais dominantes, são essas as relações materiais dominantes
compreendidas sob a forma de ideias; são, portanto, a manifestação das
relações que transformam uma classe em classe dominante; são dessa
forma, as ideias de sua dominação. (2005, p. 78)
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2 Segundo Iasi (2011, p. 20) “a alienação que se expressa na primeira forma de consciência é
subjetiva, profundamente enraizada como carga afetiva, baseada em modelos e identificações de
fundo psicológico”.
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a verdadeira história humana ou, se se quiser, marca o fim da pré-história huma-
na” (MARX, 2009, p. 25).
A verdadeira consciência de classe, chamada de consciência para si3, é resultado
da negação do proletariado ao capitalismo, reconhecendo sua posição na luta de
classe e compreendendo a dimensão das lutas travadas em virtude de sua emanci-
pação humana. Nesse sentindo, a classe proletária se configura sujeito estratégico e
protagonista da luta contra a hegemonia do projeto do capital, sendo esta classe, a
única detentora dessa possibilidade, devido ao seu caráter revolucionário.
3 Partindo da experiência direta dos sujeitos, a consciência em si desenvolve uma crítica imediata,
vivencial e espontânea, sem a intenção de desvendar as leis da ordem do capital. Já a consciência
para si desenvolve uma crítica verdadeira e mediata embasada no conhecimento total da realidade,
produzindo uma crítica revolucionária e radical que funda a consciência de classe. O desenvolvimento
dessa consciência traz a ideia de transformação e superação da ordem vigente (IASI, 2007).
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4 Essa fração vincula-se aos jovens trabalhadores ou, ainda, aos filhos dos operários, ou seja, à família
proletária, que, por conseguinte condiciona a reprodução da classe.
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A juventude sempre foi um dos grandes motores das lutas progressistas mun-
do a fora. Na década de 1960, jovens na Europa e na América Latina protago-
nizaram mobilizações nas diferentes esferas da sociedade civil em um ambiente
de crise econômica e efervescência social.
Nesse período, a juventude, motivada pelas ideias socialistas disseminadas
e, também, por grande avanço e influência dos meios de comunicação, prota-
goniza manifestações e rebeliões em torno de pautas diversas, desde a negação
aos cortes e reformas na educação, até a luta por liberdade sexual. Além disso,
os jovens se mostravam contrários às relações burguesas, colocando-se a favor
da igualdade e liberdade e apontando fortes mudanças nos estímulos culturais.
O movimento estudantil, responsável por grande parte das mobilizações
mundo a fora, protagoniza algumas das maiores mobilizações inscritas na his-
tória dos movimentos sociais, colocando na ordem do dia as demandas educa-
cionais, culturais e pautando a diversidade. Já nos meses anteriores a maio de
1968, havia uma efervescência entre os estudantes expressada em uma série de
manifestações e ocupações, que viriam a impulsionar um período de ascensão
da resistência e da luta popular na Europa e no mundo.
A onda de protestos realizada pelos estudantes que clamavam por mudanças
e liberdade, cresceu de tal forma que deu espaço a adesão de outras organiza-
ções como sindicatos e partidos de esquerda que deflagraram greves mediante
o momento de grande pressão popular, desencadeando na maior greve geral da
história. As mobilizações tomaram proporções inimagináveis, onde milhares de
estudantes e trabalhadores se lançaram às ruas de países como México, Alema-
nha, França e Brasil, contabilizando protestos massivos por todo o globo.
Todavia, as rebeliões estavam acompanhadas de forte intervenção e repres-
são policial, gerando uma série de confrontos violentos com uma resultante de
centenas de presos e feridos e um processo constante de criminalização das
organizações e movimentos sociais.
Porém, o período de 1968 não se sustentou apenas em crise, instabilidade
política, tiros e bombas, mas também em intervenções com palavras de ordem
em muros espalhados pelas cidades, reuniões em massa e várias intervenções
subversivas com fortes estímulos da juventude, elementos os quais nos permi-
tiram um “legado organizativo”, já que essas ações diretas são utilizadas até
os dias atuais por diversos grupos e caracterizam parte fundamental da luta
política, pois para Lenin (2010, p. 121) “não basta explicar a opressão política
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
de que são objeto os operários, (...) é necessário fazer agitação acerca de cada
manifestação concreta dessa opressão”.
Ademais, esse período torna-se um importante momento histórico por ter
sido ponto de partida para uma série de transformações políticas, éticas e com-
portamentais, que afetaram a sociedade da época com os chamados “sonhos
libertários”. Foi também o marco para o surgimento de movimentos sociais es-
pecíficos, como os movimentos ecologistas, feministas, das Organizações Não
Governamentais (ONG’s) e dos grupos defensores dos direitos humanos.
A arena de conflitos e disputas se acentua, para além da crise econômica estru-
tural, com a expansão de governos ditatoriais militares em vários países da América
Latina, a exemplo de Cuba em 1952, Brasil em 1964 e Chile em 1973. A resultante
do período ditatorial nesses países foi de grande atuação da juventude nos processos
de mobilização e luta; represália policial às manifestações sociais, em especial a juven-
tude; conflito armado entre manifestantes e militares; avanço do conservadorismo
e um combate repressivo ao expansionismo das ideias comunistas nos países latinos.
Além disso, o aprofundamento dos ideais neoliberais, influenciados pelos
Estados Unidos, intensificaram as relações desiguais e a contenção e criminali-
zação das manifestações políticas, além de apresentar um montante de privati-
zações e controle do mercado interno e externo. Em meio a isso, as organizações
políticas e a população jovem, por consequência do enfado conjuntural, somam
esforços na luta pelo fim das intervenções militares e neoliberais.
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
5 O AI-5 foi o quinto decreto emitido pelo governo militar brasileiro, considerado o mais duro golpe
na democracia. Este decreto concedia poder ao Presidente da República para suspender os direitos
políticos, proibia manifestações populares de caráter político e impunha a censura prévia para
jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas. Fonte: https://diadobasta.blogspot.com/2013/10/
ai-5-ato-institucional-numero-5.html. Acesso em 05 de dezembro de 2018.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
recionavam sua luta por uma sociedade democrática através da intensa pressão
popular que resultou na promulgação da Constituição Federal em 1988, a qual
propunha grandes avanços na conquista de direitos sociais, civis e políticos.
Todavia, a onda neoliberal já sinalizava grande ameaça aos anos posteriores.
Colocando essa afirmativa em um contexto mundial mais atual, tem-se no
período dos anos dois mil, uma forte crise econômica que se instala e atinge
fortemente a zona do Euro e os países que a compõem, gerando um colapso
na economia, no comércio e é claro, na classe trabalhadora, que padece com o
grande número de desempregos, cortes salariais, prolongamento do tempo de
trabalho, aumento de tarifas e impostos.
Nesse ambiente de crise estrutural, o Estado neoliberal passa a adotar
políticas voltadas para o enfraquecimento e eliminação da resistência da
juventude, por meio da desestruturação de suas bases organizativas, com a
adoção de políticas sociais focalizadas, o incentivo a expansão de ONG’s
com o intuito de ocupar o papel dos movimentos sociais, deslocando-os
de seu espaço de luta e referência popular. Além disso, tem-se uma maior
criminalização e fortalecimento da repressão policial aos movimentos po-
pulares e a consolidação da ideologia dominante, resultando numa parcela
significativa de sujeitos despolitizados.
O contexto de expansão das ações neoliberais alarga as desigualdades entre
as classes e aumenta suas disputas nas relações sociais, econômicas e também
políticas. O processo de transformação da vida dos jovens e a ausência de cri-
térios de preparação para sua autonomia e independência fortalecida pelo pe-
ríodo neoliberal, através dos retrocessos nos direitos sociais, rebate não só no
cotidiano da juventude, mas em seu processo organizativo, o que remete a uma
infinidade de desafios postos a estes sujeitos nas relações coletivas.
Mediante a conjuntura de aprofundamento do projeto neoliberal, cabe,
ainda, situarmos os processos políticos atuais do país, em que o cenário é de
um boicote, diga-se golpe, à democracia, articulado entre os três poderes em
torno do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, eleita democraticamen-
te nas eleições do ano de 2014.
Consolidado o processo de retirada da presidenta de seu posto no poder
executivo, o vice-presidente Michel Temer assume a direção do país acom-
panhado de um projeto neoliberal ainda mais acentuado e uma extensa
agenda de retrocessos nos direitos civis, sociais e políticos da classe traba-
lhadora e, consequentemente, da juventude brasileira, uma vez que, um dos
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
4. Considerações finais
A conjuntura de crise estrutural, expansão do conservadorismo e desmonte
dos direitos, nos possibilita a compreensão dos processos de organização e luta
da classe trabalhadora, no que se refere, mais especificamente, ao protagonismo
da juventude no mundo capitalista.
Nesse sentido, compreendemos que os processos organizativos, para além
das reivindicações, é resultado do processo de tomada de consciência dos su-
jeitos sociais frente ao alargamento das relações desiguais forjadas pela lógica
destrutiva da sociabilidade capitalista. Como maturamos ao longo do trabalho,
a consciência de classe – a expressão máxima de consciência – permite aos su-
jeitos ampliar sua capacidade reflexiva e crítica da realidade, possibilitando-os
enxergar o movimento real das contradições presentes nas relações sociais e,
consequentemente, os inspirando à superação e transformação destas.
Dessa forma, a identidade dos jovens, neste trabalho, está associada de for-
ma concreta a sua condição de sujeitos sociais e atores históricos e na relação,
destes, com a classe trabalhadora em seu processo organizativa, em que necessi-
tam de articulação e fortalecimento e encontram na juventude – possuidora de
artifícios criativo e organizador que lhes são peculiares – um instrumento viável
de intervenção na realidade.
Todavia, essa juventude não está isenta das contradições inerentes às re-
lações sociais, pois, são perpassadas por desafios que implicam na articulação
e atuação coletiva desses sujeitos. Porém, de outro lado, a juventude encontra
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Referências bibliográficas
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
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Seria Marx ecologista?
Introdução
É comum a referência a Marx como sendo um pensador que pouco – ou
nada – tem a contribuir com a discussão acerca da questão ecológica. Marx
é visto como um autor de visão prometéica, anti-ecológica, pró-tecnológi-
ca, para quem não seria necessária uma consciência ecológica porque o
desenvolvimento econômico capitalista levaria a futura sociedade de pro-
dutores associados a um estágio de abundância. Além disso, entre outras
críticas, Marx teria dissociado os seres humanos dos animais e tomado o
partido daqueles.
No entanto, estas críticas não são corretas. É certo que alguns do graves
problemas ambientais que vivemos hoje não estavam postos no tempo de Marx,
mas é certo também que ele, segundo Massimo Quaini (Apud. Foster, 2005, p.
23), “denunciou a espoliação da natureza antes do nascimento de uma moderna
consciência ecológica burguesa”.
O presente artigo pretende mostrar como, a partir de sua concepção ma-
terialista da natureza e da história, Marx elaborou uma teoria da sociedade
capitalista que, além de ser atual, pode contribuir com a compreensão de uma
faceta da crise geral do capitalismo: a crise ecológica.
Inicialmente, veremos a já citada concepção materialista de Marx, analisan-
do em que consiste seu materialismo. Depois, nos debruçaremos sobre alguns
conceitos importantes no estudo do pensamento ecológico de Marx, visando
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Foi com base na obra de Epicuro (que foi tema de sua tese de doutoramen-
to) que Marx desenvolveu sua concepção materialista da natureza, que afirma
o papel ativo do homem na transformação e reprodução das formas sociais,
porém, sem implicar em um determinismo rígido e mecânico, como no mate-
rialismo mecanicista. A filosofia epicurista concebia a natureza como em cons-
tante mudança, portanto, como mortal e transitória. Os deuses continuavam
existindo, mas habitavam um espaço de interseção entre os mundos, desalo-
jados que estavam do universo material. Assim, o pensamento de Epicuro era
antiteleológico (não reconhecia a necessidade das causas finais aristotélicas) e
rejeitava as explicações baseadas nas intervenções e intenções divinas, sendo
aqui que coincidia com a ciência. Porém, o materialismo epicurista é meramen-
te contemplativo (como depois seria o de Feuerbach). Marx fez a crítica a este
materialismo contemplativo e, a partir da apropriação da dialética hegeliana,
desenvolveu um materialismo prático que se baseia no conceito de práxis.
Na análise da história, Marx também partiu de um ponto de vista
materialista. Para ele, o fator determinante da organização política (estado)
e demais instituições jurídicas e/ou ideológicas de uma dada sociedade é a
produção material. Para existir, os homens precisam, antes de mais nada,
comer, beber, morar, vestir-se. Assim, a satisfação diária de todas estas
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2. A alienação
Desde o início, a noção de alienação em Marx está diretamente ligada à de
trabalho. Como nos diz Leandro Konder (1965, pp. 25, 26):
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Ou seja, nos animais (uma aranha ou uma abelha, como no exemplo acima),
a organização e execução de uma atividade é geneticamente determinada, não
servindo, portanto, de fundamento para o seu desenvolvimento. Já no homem,
esta atividade é consciente e teleológica:
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3 É importante ressaltar que o conceito de alienação não surge com Marx. Outros pensadores antes
dele, como Hegel, Schelling e Fichte, p. e., o utilizaram. Mas não há dúvida de que é a interpretação
marxiana da alienação que circula hoje como aceita e utilizada pelos estudiosos do assunto.
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3. A atualidade de Marx
Nas décadas de 1980 e 1990, notadamente após a queda do Muro de Berlim,
o mundo assistiu ao que parecia ser a vitória definitiva do capitalismo e suas
tendências neoliberais. Uma euforia se apoderou do próprio mundo acadêmico
e teses como a do “fim da história” ganhavam adeptos afirmando que chegára-
mos ao estágio final da civilização. Para estes, não só a história tinha chegado
ao fim, mas também as ideologias, classes sociais e partidos políticos. O pós-
-modernismo era uma evidência e a fragmentação do real não mais permitia
seu conhecimento pleno. O marxismo havia se tornado anacrônico e, com ele,
suas teses e categorias principais: a teoria do valor-trabalho, a categoria da to-
talidade, o trabalho como categoria ontológica fundamental, a dialética como
método de investigação e a perspectiva da revolução. A vitória do capitalismo,
dessa forma, punha fim a qualquer projeto político de transformação social pró-
prio da classe trabalhadora.
Na verdade, Marx é mais atual agora do que no seu próprio tempo. É que,
citando diz Mauro Iasi (2011),
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Dessa forma, fica claro que, para entendermos a crise ambiental em que
vivemos, devemos partir da compreensão da dinâmica do sistema capitalista
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
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Considerações finais
O atual estágio do capitalismo evidencia uma crise civilizacional de caráter
não apenas social, mas climático-ambiental e a saída não se encontra nos
marcos do capitalismo, mas fora dele, já que, por essência, o capitalismo é
excludente, explorador e degradador, ou seja, incompatível com qualquer forma
de equilíbrio ambiental, dado seu caráter reificador. Citando Benjamin (2011):
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Referências bibliográficas
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IASI, M. Marx e a crise: os fantasmas, agora, são eles. Disponível em: http://
www.socialismo.org.br/portal/images/stories/documentos/Marx_e_a_crise.pdf.
Acesso em 06/08/2011.
NETTO, J.P. & BRAZ, M. Economia política – uma introdução crítica. São
Paulo: Cortez Editores, 2007.
494
Uma análise marxista acerca dos
movimentos sociais e seus integrantes
não pertencentes às classes oprimidas
Introdução
Ao longo da trajetória percorrida pelos movimentos sociais no Brasil, as
lutas por direitos e igualdade apresentam-se como rebeliões e ações contra a
ordem estabelecida. Diante disso, viu-se a necessidade de espaço e visibilidade
para que essa luta por direitos fundamentais, comum aos movimentos sociais
atuais, fosse legitimada. Evidencia-se uma luta política para assegurar a acei-
tação da pluralidade de formas de vida. O uso público da razão, a conquista
de direitos de cidadania, bem como a deliberação na esfera pública, se fazem
elementos centrais dos esforços dos movimentos sociais.
Os estudos pertinentes ao tema abordam, em sua maioria, a visão da classe
opressora (a elite, os militares e afins, dependendo do movimento). Como de-
fendia Marx, a luta de classes é existente em diversos âmbitos; ou seja, é comum
que existam uma classe opressora e uma classe oprimida. No entanto, embora
seu estudo tenha sido baseado no proletariado e na burguesia, o presente artigo
trata sobre os movimentos sociais contemporâneos.
Atualmente, nota-se uma grave reorganização nazifascista do mundo.
Desde os Estados Unidos, com Donald Trump, até Jair Messias Bolsonaro, no
Brasil, tem-se acentuado cada vez mais o caráter preconceituoso e intolerante
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
zaria a infraestrutura3 da sociedade. Esta sempre foi guiada por uma espécie de
discurso que promove a submissão social da classe trabalhadora e, analogamen-
te, aos grupos socialmente excluídos, que procuram mudanças com relação à
forma como são vistas suas identidades individuais.
Os pensamentos das elites, portanto, sempre prevaleceram no atual sistema
econômico. Dos direitos mínimos conquistados, grande parte se deu através de
concessão de quem detêm o poder, tanto para amenizar os clamores populares,
para, indiretamente, evitar faíscas de uma revolução socialista ou para garantir,
de outra forma, a mais-valia da classe trabalhadora. Segundo Marx (1993):
3 Bodart (2016): Para Marx, a infraestrutura trata-se das forças de produção, compostas pelo conjunto
formado pela matéria-prima, pelos meios de produção e pelos próprios trabalhadores (onde se dá as
relações de produção: empregados-empregados, patrões-empregados). Trata-se da base econômica da
sociedade, onde se dão, segundo Marx, as relações de trabalho; estas marcadas pela exploração da
força de trabalho no interior do processo de acumulação capitalista.
4 O projeto Panóptico, em gênese inglesa, objetivava trazer um melhoramento das prisões. Contudo,
no Brasil, serviu como forma de manter a submissão produtiva dos prisioneiros, dando continuidade
às relações de opressão.
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Além disso, de acordo com Pereira (2018), (apud Waldron, 2009 – autor
liberal que não segue o método materialista marxiano):
5 Bodart (2016): Para Marx, A superestrutura é fruto de estratégias dos grupos dominantes para a
consolidação e perpetuação de seu domínio. Trata-se da estrutura jurídico-política e a estrutura
ideológica (Estado, Religião, Artes, meios de comunicação, etc.).
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
6 Conforme Volanin (2007): Os movimentos sociais não são invenções das classes populares, dos
capitalistas ou mesmo de intelectuais, eles nascem da insatisfação por parte de determinada classe
ou grupo social. Significa uma rebeldia coletiva, um protesto diante do confronto ideológico entre
um e outro segmento social. Tomam medidas de mudança tomadas pelas sociedades em conjuntos
concordantes que podem causar revoluções na realidade dos indivíduos.
7 A imunidade parlamentar se trata de um conjunto de garantias concebidas aos parlamentares
membros do Poder Legislativo para que exerçam as suas funções sem violações ou abusos por parte
do Poder Executivo e Judiciário.
8 Sanção da Lei Áurea.
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uma pluralidade centralizada, criticamente, na empatia. Ainda seguindo
o conceito de Djamilia (2017), a pessoa branca deve discutir, a partir do
pensamento crítico, as raízes e ramificações do racismo, por fazer parte de
uma localização social que se beneficia dele, dado que, em tal posição, di-
ficilmente um representante protagonista do movimento social em questão
estará disponível para fazê-lo. Dessa forma, amplia-se, consequentemente, a
transmissão da famigerada “consciência de classe”, termo que será discutido
futuramente. Sobre isso, analogamente, destaca Marx (1848) sobre a impor-
tância desta consciência para a revolução:
significa, portanto, a qualidade de alguém estar apto para exprimir os sentimentos de um grupo
social, por ter consciência e, de fato, incluir-se nele.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
populações precárias. Ainda assim, o preconceito, seja por qual classe for, está
presente em diferentes âmbitos da vida, no entanto nem todos têm acesso à
luta para acabar com ele. Dessa forma, é importante que aqueles que têm a
oportunidade de lutar pelos seus direitos contribuam não só para melhorar
a sua situação e daqueles em situações semelhantes, mas para assegurar a
igualdade a todos os que são oprimidos, buscando levar os discursos de em-
ponderamento e de rebelião ao sistema de segregação de classes até eles, a fim
de que o movimento cresça e ganhe visibilidade.
É devido a isso que o trabalho de base é uma ferramenta essencial para o
auxílio aos movimentos sociais. De acordo com Williams (2005):
11 É necessário considerar as diferentes realidades vivenciadas pelas classes oprimidas. Ainda que
compactuando com os ideais de luta por igualdade, nem sempre é possível a atuação direta. É assim
que se torna válido o apoio daqueles que não façam parte da minoria em questão, mas que acham
certo manifestar seu apoio, participando do movimento.
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Ainda que o estudo realizado por Marx tenha sido acerca da classe operá-
ria e da burguesia, devido ao caráter social deste artigo, que trata dos atuais
movimentos sociais em pauta no Brasil, as constatações às quais chegou Marx
serão adaptadas de acordo com a realidade vivenciada atualmente. No sentido
aqui abordado, a consciência de classe deve ser remetida ao reconhecimento de
privilégios historicamente concedidos àqueles que, devido a uma característica
ou outra, estão menos sujeitos às violências e à intolerância da sociedade. Dessa
maneira, considera-se privilégio a identificação cis-gênero – principalmente se
masculino, a cor de pele mais clara, a orientação sexual hétero, além de outras
particularidades a serem analisadas, tais como o local onde se mora, a quan-
tidade de pessoas aptas a contribuírem no sustento da família e etc. “Assim, a
classe não é uma massa homogênea, mas tem ‘raça’/etnia e sexo.” (Cisne, 2015).
Ainda dentro da linha de pensamento de Cisne (2015):
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
pobre gay. A dimensão de classe, contudo, não pode ser dissociada dessa
análise. Um gay rico, por mais que sofra opressões pela sua orientação
sexual, não sofre tanta discriminação quanto um gay pobre, além disso,
possui privilégios oferecidos pela sua condição socioeconômica que um
pobre heterossexual não possui.
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Considerações finais
Através de uma pesquisa bibliográfica, realizada por meio de artigos e livros
pertinentes ao tema, foi possível fazermos uma análise reflexiva acerca do que
se propôs, sabendo-se que, embora preterido por diversos setores da sociedade,
o conceito de movimento social permanece fundamental na ciência contempo-
rânea, sendo evidentemente a principal forma de busca por igualdade pelas mi-
norias. Tendo isso em vista, a parte privilegiada da sociedade não só pode, mas
desde que tomando o cuidado necessário para que não se tome o protagonismo
de quem, de fato, representa o movimento, deve, como já explanado, utilizar-se
de seu lugar de fala para proferir as conceituações de consciência de classe e de
dívida histórica para com os não privilegiados pela sociedade capitalista, bem
como sua importância em busca de uma sociedade justa, em prol de uma contri-
buição para que essas lutas não só se organizem de forma mais sistemática, mas
que também seja facilitada a transmissão das ideias de movimentos sociais, para
que mais pessoas se entendam enquanto participantes desses movimentos, con-
tribuindo, portanto, para que essas lutas permaneçam acesas e se fortifiquem.
Além disso, outro grande ponto, antagônico às lutas sociais, se encontra
nas barreiras impostas pelos discursos de ódio que, por sua vez, camuflam-se
sob a égide da democracia enquanto conservadores de extrema-direita perpe-
tuam, de todas as formas possíveis, a condição de submissão dos que fogem ao
padrão do capital. Tais discursos não refletem uma ideologia intolerante que,
hipoteticamente, poderia existir, uma vez que possuem o entendimento de que
somente retrata a normalidade aqueles que se encontram dentro dos padrões
estabelecidos sob a óptica das elites, que explanam suas motivações legitiman-
do-as na moral do capital, na igreja e nos bons costumes. Refletem, por fim, as
práticas históricas estabelecidas pelo Estado, que, sempre em consentimento
com a burguesia, perdurou a submissão social através dos elementos da supe-
restrutura. Cabe aos privilegiados, neste ponto, a fiscalização e denúncia dessas
práticas, nunca sendo coniventes, tanto em diálogos ou explanações, formais e
informais, com afirmações que deslegitimem a luta de classes dos movimentos
sociais ainda que essa opressão não os afete direta e pessoalmente.
Ademais, observa-se a importância da realização do trabalho de base. É
imenso o número de pessoas que vivem em ambientes de opressão e não pos-
suem o entendimento de que isso é resultado de todo um projeto estrutural pla-
nejado para deixá-los onde estão. Entende-se, por conseguinte, o conceito aqui
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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trabalhado, como toda a luta política promovida por aqueles que tiveram acesso
à consciência de classe, tornando-se, de certa forma, privilegiados. O trabalho
de base trata-se de fazer política em prol da divulgação do autoconhecimento
enquanto grupo, em diferentes ambientes de convívio social, o levando, por
exemplo, para as vítimas de racismo estrutural e subjetivo, que vivem em fa-
velas sem saber, por consequência da elitização do conhecimento, que existe
um movimento negro que pode acolhê-las e as auxiliar na resistência contra
o racismo. Dessa forma, o apoio vindo de quem tem a real intenção de ajudar
é fundamental, uma vez que o discurso levado a um maior número de pessoas
gerará um crescimento do movimento e uma maior forma de resistência, que se
faz tão importante diante do atual contexto vivenciado.
Referências bibliográficas
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Capítulo VII
Mundo do Trabalho e
Reformas Neoliberais
A informalidade do trabalho como
consequência do crescente desemprego
estrutural no Brasil
Introdução
A partir da observação da conjuntura atual no Brasil em termos econômicos
e sociais vividos atualmente, surge a reflexão sobre a temática trabalho infor-
mal como resultado do crescente desemprego estrutural. Nota-se, com base nos
dados apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
que 34,2 milhões de pessoas ocupadas estão inseridos na economia informal, ou
seja, 37,1% de brasileiros encontram-se inseridos como trabalhadores informais.
É perceptível que a informalidade no país só tem crescido. Este fato decorre de
uma grande crise econômica vivida pelo Brasil nos dias atuais, com altos índices
de inflação, queda do PIB e queda das vendas em decorrência do desemprego. A
instabilidade econômica no Estado brasileiro dá-se mais especificamente desde
os anos 1970, a partir do processo lucrativo com a redução do capital humano e
a inserção da automação fabril, que se configura vigente na sociedade brasileira.
Segundo Singer (2000, p. 11), o “trabalho informal é algo relativamente an-
tigo, seja qual modo nos detemos a chamá-lo (subemprego, desemprego disfar-
çado, entre outros), a temática é algo inserida na sociedade desde os primórdios
da Revolução Industrial”.
1 Jássira Simões dos Santos, Faculdade do Vale do Jaguaribe (FVJ), Acadêmica do 8º semestre do curso
de Serviço Social. E-mail: [email protected].
2 Faculdade do Vale do Jaguaribe (FVJ), Acadêmica do 8º semestre do curso de Serviço Social. E-mail:
[email protected].
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Nos anos 80, com a promulgação da Lei Áurea, ergue-se o feudalismo onde
os protagonistas são os senhores feudais (nobres) e os camponeses (servos) que
eram obrigados a cultivar terras e utilizarem-se da sua produção como troca de
mercadorias para sobreviver.
Destarte, o capitalismo chegou de uma forma passiva no século XIII, em que
de início se mostrou como uma leve transição do modo de produção feudal para
o então capitalista de ordem comercial com a expansão e descoberta de novos
mundos. Para explicar o surgimento de uma nova ordem que é o capitalismo,
Guerra (1999, p. 106) preleciona que “neste primeiro estágio do capitalismo, o
trabalhador ainda detém a posse sobre o reconhecimento técnico e habilidade
especifica inerente à sua atividade”.
Em relação ao descrito, Saviani (2007), expõe que
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Almeida e Alencar (2011, p. 01) enfatizam que esta crise estrutural dos anos
1970 permeia no mundo do trabalho até a década atual, pois foi um “amplo pro-
cesso de reorganização da hegemonia econômica e politicamente na dinâmica
do capital, expandindo a lucratividade e o acirramento da luta de classes”.
Para Mota e Tavares (2016),
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Para tanto, é perceptível que a força de trabalho e seu modo de inserção, mo-
dificam-se com o desenvolvimento das forças produtivas. A burguesia torna-se de-
tentora de meios de produção, explorando o ser social por meio de suas atividades
laborativas e ao proletariado determina-se por produzir mercadorias e mais-valor3.
3 “A força de trabalho produz mercadorias, portanto valores, mas só ocorre a valorização (produção do
mais-valor) quando há extensão da jornada de trabalho para além do tempo necessário para produzir
valor”. Para ocorrer a valorização é necessário que a força de trabalho seja consumida em condições sociais
e com meios de produção adequados. Em consequência disso, o valor tem origem na exploração da força
de trabalho, e não nos meios de produção; os meios de produção oferecem, no máximo, condições para
maior valorização e, quando muito, transferem valor de forma fracionada (LARA, 2016, p. 222).
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Considerações finais
O trabalho é uma categoria social, que vem se modificando ao longo do
tempo. O mundo do trabalho vem sendo alterado mediante os impactos do ca-
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Referências bibliográficas
ALMEIDA, Ney Luiz Teixeira de; ALENCAR, Mônica Maria Torres de.
Serviço Social trabalho e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011.
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GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo:
Atlas, 2001.
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_______. A juventude como coorte: uma geração em tempos de crise social. In:
ABRAMO, Helena Wendel; BRANCO, Pedro Paulo Martoni (orgs). Retratos
da Juventude Brasileira: análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2005, p. 27-35.
528
A PEC 287/2016 e a trabalhadora
do campo: a Reforma da Previdência
como obstáculo ao acesso da aposentadoria
rural pelas camponesas
Introdução
O texto da PEC 287 apresentada pela Presidência da República em 2016 foi apro-
vado, após mudanças, em maio de 2017, na Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania da Câmara. Apesar disso a Reforma da Previdência ainda não foi votada,
de modo que podemos considerar que a articulação política do Palácio do Planalto,
até então, não foi apta a obter o quórum necessário à aprovação da emenda.
O fato é que a delação da JBS sobre o presidente Michel Temer2 e as duas
denúncias por organização criminosa, corrupção e obstrução de justiça, mais
tarde barradas pela Câmara Federal3, parecem ter enfraquecido significante-
mente a rede de influências do governo Temer.
A proximidade com o período de campanha eleitoral reduziu consideravel-
mente os potenciais apoiadores da impopular reforma4, porém, em um esforço
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8 Assume-se aqui que o processo que depôs a presidenta Dilma Rousseff em 2016 foi golpe, segundo
a perspectiva de que um golpe “[...] consiste na tomada do poder com a violação de regras
constitucionais e sem a participação popular, por meios violentos ou não”. Disponível em: <http://
www.criticaconstitucional.com.br/por-que-foi-um-golpe/>. Acesso em 10 ago 2018.
9 “Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à
assistência social.”
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10 Seguem alguns dos esforços dessas entidades na garantia da seguridade social: ONU. Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/
UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em 10 ago. 2018.;OIT. C102 - Normas Mínimas da Seguridade
Social. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_235192/lang--pt/index.htm>.
Acesso em: 10 ago. 2018.; OISS. Banco De Información De Los Sistemas De Seguridad Social
Iberoamericanos. Disponível em: <http://www.oiss.org/bissi/files/assets/basic-html/index.html#3>.
Acesso em: 10 ago. 2018.; CISS. Observatorio Interamericano de Seguridad Social (OIPS). Disponível
em: <http://www.ciss.net/datos_ciss/>. Acesso em: 10 ago. 2018.; AISS. ISSA Anual Reviews .
Disponível em: <https://www.issa.int/en_GB/annual-reviews>. Acesso em 10 ago. 2018.
11 Sendo possível, em casos específicos, o acesso à previdência social sem que se tenha contribuído com
ela de forma direta.
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20 Não existe um consenso se há ou não realmente um déficit previdenciário no Brasil. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41811535>. Acesso em: 13 ago. 2018.
21 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/12/politica/1481558564_122517.html>.
Acesso em: 10 ago. 2018.
22 Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/0/Relat%C3%B3rio+da+Pre
vid%C3%AAncia+editado/>. Acesso em: 10 ago. 2018.
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Ignora-se assim, por completo, o fato de que, na produção rural, a/o traba-
lhadora/trabalhador esteja à mercê das condições naturais necessárias à safra,
principal fonte de renda, o que dificulta o pagamento de uma taxa fixa e mensal
que, levando em conta o salário mínimo atual, exigiria de um casal a contribui-
ção no valor de aproximadamente R$ 100,00 (cem reais) mensais. Dada a reali-
dade de grande parte das localidades camponesas, o regime que a PEC 287 visa
a implementar parece ser agravante da situação social de muitas famílias. Mui-
tas vezes, o trabalho na agricultura familiar se caracteriza pela subsistência ou
pelo consumo em detrimento da venda dos produtos de seu trabalho. Em uma
situação em que seja possível realizar o pagamento da contribuição de apenas
um integrante da família, é improvável, diante das relações patriarcais ainda
existentes na sociedade brasileira, que a contribuição da mulher seja priorizada.
Caracterizado pela sazonalidade, o trabalho no campo pode se dar de forma
rotativa, como por exemplo o trabalho das/dos bóias-frias, o que dificultaria,
ainda mais, o pagamento da contribuição estabelecida de forma fixa e mensal e
a soma dos 25 anos de contribuição exigidos pela reforma.
Apesar dos dados do IBGE apontarem para o envelhecimento populacio-
nal e o aumento na expectativa de vida da população, o que efetivamente
demandará mudanças no sistema previdenciário, é imprescindível atentar
que o processo de aumento da expectativa de vida não se dá de forma ho-
mogênea no território brasileiro.
O trabalho no campo se dá de forma extenuante e penosa, onde se trabalha
em condições difíceis e ao rigor das intempéries naturais, tais quais a chuva, o
sol e as safras exaustivas de plantação e/ou colheita, já que o tempo trabalhado
no âmbito rural não é regulado, podendo a/o produtora/produtor trabalhar do
nascer ao pôr do sol, e, após isso, prosseguir realizando um trabalho de guarda
e vigia das suas plantações ou animais. Estas condições fazem com que, em mé-
dia, as mulheres do campo vivam seis anos a menos que as mulheres da cidade
e cinco anos a menos que o homem urbano e o próprio homem rural.
Também é fato que, apesar do aumento da expectativa de vida no Brasil,
os processos vivenciados pela população rural ocasionam um envelhecimento
precoce que pode ser observado nos dados da Pesquisa Nacional de Saúde
(IBGE, 2013), onde a maior parte da população com doenças crônicas de
coluna se encontra nas regiões rurais e, nos espaços rurais, são as mulheres as
que mais sofrem dessa mazela.
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Conclusão
Durante a pesquisa foi possível se fazer um apanhado sobre os acontecimen-
tos em âmbito nacional que levaram a PEC 287/2016 a ser proposta.
Os grupos interessados na aprovação da Reforma da Previdência continuam
politicamente relevantes e bem representados, independentemente do resultado
dos processos eleitorais em vigência. Convivemos com a composição mais con-
servadora e ligada às pautas religiosas desde a instauração da ditadura militar
em 1964, o que pode ser percebido durante a bizarra sessão da Câmara Federal
na qual processo de impeachment foi aberto, ou no apoio que o governo Temer
encontrou ao propor a PEC do Congelamento dos Gastos e a Reforma Traba-
lhista, esta que resultou no desmonte da CLT.
As possibilidades da PEC 287/2016 retornar travestida de norma infracons-
titucional ou de ser votada às pressas durante algum momento de pirotecnia
midiática em cima de algum outro tema são reais, dado que situações como
essa têm se tornado cotidianas ao povo brasileiro, aparentemente afetado pelo
desmonte organizacional da massa trabalhadora, que encontra dificuldades her-
cúleas em participar diretamente do processo democrático, como foi observado
por Marx e Engels no Manifesto Comunista em 1848 quando, como resposta ao
questionamento sobre quais os recursos utilizados pela burguesia para vencer
suas crises, responderam que as principais estratégias eram, por um lado, re-
forçar a destruição da massa de forças produtivas, e pelo outro lado, conquistar
novos mercados e explorar mais ainda os antigos.
É importante que se dê especial atenção às mulheres campesinas, por estas
vivenciarem duas vezes a marginalização, primeiramente por serem mulheres
em uma sociedade estruturalmente misógina, e novamente por viverem no
campo em um sistema que construiu uma visão dualista, onde a cidade se com-
porta como o pólo político-econômico-cultural enquanto que à população do
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campo esses direitos são negados, por vezes o direito à própria terra para produ-
zir. Fica, após a pesquisa, o desejo de aprofundar os estudos nas questões de âm-
bito global e macroeconômicas, para que nos seja possível relacionar questões
de política interna aos processos ou aos interesses vivenciados geopoliticamente
em outros territórios, mas que afetam o Brasil e seu povo.
Referências bibliográficas
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LIMA, Angela Maria Machado de; SILVA, Henrique Salmaso da; GALHARDONI,
Ricardo. Envelhecimento bem-sucedido: trajetórias de um constructo e
novas fronteiras. Interface (Botucatu), Botucatu , v. 12, n. 27, Dec. 2008.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832008000400010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 9 jul. 2018.
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XAVIER, L. G.; Relator da reforma da Previdência lamenta que texto não seja
votado. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/
TRABALHO-E-PREVIDENCIA/553540-RELATOR-DA-REFORMA-DA-
PREVIDENCIA-LAMENTA-QUE-TEXTO-NAO-SEJA-VOTADO.html>.
Acesso em: 15 ago. 2018.
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A relação entre o direito à educação na
forma jurídica e sua contradição com a
efetiva realização deste direito: o caso da
contrarreforma do Ensino Médio
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A citação ficou longa, mas é útil pelo seu caráter de síntese da perspec-
tiva de Marx na compreensão dos mecanismos básicos da vida social e do
lugar que atribui na concretude, isto é, na totalidade, ao momento jurídico-
-estatal. A rigor, ainda neste Prefácio, Marx recorda de que se defrontou
com a adequação da forma jurídica à base econômica no famoso episódio
do roubo de lenha, na Renânia, registrado numa polêmica nas páginas da
Gazeta Renana, ao perceber que um costume de origem imemorial, a livre
exploração dos bosques foi, no curso da instauração do sistema capitalista
da propriedade privada na Alemanha, objeto de regulação legal, adaptada
às novas condições de apropriação.
Marx registra a guinada do seu pensamento do enfoque jurídico para os
estudos de economia política, como um sinal da virada de sua consciência no
que diz respeito à concepção de sociedade:
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Desta forma,
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funcionar, assim, as categorias da liberdade e da igualdade, já que o homem
não poderia dispor de si se não fosse livre - a liberdade é a disposição de
si como mercadoria - nem poderia celebrar um contrato - esse acordo de
vontades - com outro homem se ambos não estivessem em uma condição
de equivalência formal. (NAVES, 2012, p. 12-13)
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Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional
Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organi-
zados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a
relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino,
a saber:
I - linguagens e suas tecnologias;
II - matemática e suas tecnologias;
III - ciências da natureza e suas tecnologias;
IV - ciências humanas e sociais aplicadas;
V - formação técnica e profissional. (BRASIL, 2017)
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expelir o aluno no primeiro ano e meio, com noções rudimentares das ciências e
com um curso profissionalizante precário. Um retrocesso que remete à Lei 5.692
da Ditadura que reconhecia uma “terminalidade legal” ao lado de uma “ter-
minalidade real”, para justificar a exclusão precoce dos jovens da vida escolar.
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critério do “notório saber”. Note-se que este sistema já está em uso em estados
como o Ceará que têm escolas de ensino médio profissionalizantes.
4. Ataque às licenciaturas
A Lei nº 13.415/2017 ataca o sistema educacional como um todo, num efeito
dominó. A reorganização das disciplinas em grandes áreas, no médio prazo,
tornará os atuais cursos de licenciatura obsoletos, obrigando-os a se reduzirem
a cursos da “grande área de exatas” e da “grande área de humanas”, outra re-
miniscência da Ditadura que instituiu à sua época os cursos de licenciatura em
Ciências e em Estudos Sociais. Se a MP vingar, a demanda pelas atuais licen-
ciaturas desaparecerá, levando a sua substituição pelo novo modelo ou mesmo
a fechar, já que o número de professores necessários ao cumprimento do novo
currículo se reduzirá brutalmente. Desde logo, as licenciaturas em Sociologia,
Filosofia, Artes e Educação Física, se prevalece a MP, deverão fechar as portas
por absoluta falta de demanda.
No que diz respeito às formas de adoção da nova prescrição legal, como
observou o professor Gaudêncio Frigotto, a Lei nº 13.415/2017 é flexível o sufi-
ciente para obrigar as redes públicas a desidratar seus currículos, mas ao mesmo
tempo, permitir que a escola privada mantenha currículos plenos, tornando
legal o que no Brasil sempre foi real, a existência de uma escola para os ricos e
outra para os pobres.
Considerações finais
O presente trabalho tem por finalidade discutir como a forma jurídica opera
na sociedade de classes, permeando e regulando os diversos institutos agregados
a esta. Isso inclui o debate sobre o âmbito educacional, a necessidade da defe-
sa desses direitos garantistas e a negligência evidenciada pelo Direito burguês
quanto a esses setores.
A categoria jurídica, enquanto instrumento próprio das classes dominantes,
se demonstra como um meio volátil de controle social, adaptando-se de acordo
com as necessidades econômicas conjunturais. No presente caso da reforma
do ensino médio, viabilizada pela mudança da Lei de Diretrizes e Bases da
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Referências bibliográficas
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MEC, Portal. Novo Ensino Médio - perguntas e respostas. Disponível em: http://
portal.mec.gov.br/component/content/article?id=40361. Acesso em: 17/12/2018.
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As condições de labor das trabalhadoras
de cana em Japoatã – SE
Introdução
Este trabalho surgiu de um projeto de pesquisa que vem sendo desenvolvido
no programa de Iniciação Científica da Universidade Federal de Sergipe(PIBIC/
UFS). Desde 2015, formamos o Grupo de estudos sobre Trabalho Escravo Con-
temporâneo (GETEC) com o objetivo de compreender a ausência de registro
de trabalho escravo no estado de Sergipe nos dados do Ministério do Trabalho
(MT). O que nos chamou atenção é que Sergipe já tem condenação por Tra-
balho Escravo Contemporâneo (TEC) na justiça do trabalho, mas ele ainda
consta como o único estado brasileiro onde não há registro oficial no MT. O
que dificulta a implementação de políticas públicas nessa seara.
Diante disso, estamos desenvolvendo pesquisa para verificar essa questão,
como a primeira condenação foi na produção de cana-de-açúcar, iniciamos a
investigação por esse cultivo. Depois de investigarmos a atuação dos órgãos de
combate para entender seu funcionamento, passamos a pesquisar a condição de
trabalho dos trabalhadores de cana em seu local de trabalho. Os dados apresen-
tados nesse artigo se referem a uma pequena parte da investigação. Colhemos
informações nos municípios de Japoatã, Japaratuba, Laranjeiras e Capela, por
essas cidades serem sedes ou próximas a usinas de açúcar que existem no estado.
Os dados das outras cidades ainda estão em análise. O peculiar nessa pesquisa
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Isso somente pode ser explicado a partir do duplo caráter do trabalho. Por não
ser somente dispêndio de energia, mas por produzir um trabalho útil.
Marx (1987) esclarece que com esse duplo resultado é possível entender que
na medida em que há um desenvolvimento nos meios de produção, e o traba-
lhador segue com sua jornada de trabalho, há um aumento de valor no produto
final. A questão é que o trabalhador não tem de volta para si esse valor que ele
produziu a mais, o proprietário dos meios de produção vai se apropriar desse
excedente, a mais-valia. Por isso, quanto mais o trabalhador labora, mais ele
fica precarizado e seu patrão tem mais acúmulo de renda.
É importante salientarmos que esse quadro é a regra de como se configura o
modo de produção capitalista, todavia, são possíveis outros modos de produção.
Em relação ao trabalho escravo, pelo fato do capitalista não ter interesse prolon-
gado nessa força de trabalho, não se objetiva um limite de jornada que respeite
as limitações físicas do trabalhador, por isso encontramos jornadas acima de
oito horas. Tampouco há preocupação com limites morais. O TEC é um traba-
lho de curta duração, onde se objetiva explorar o máximo que se puder nessa
relação. Por isso, há casos de morte em canaviais por jornadas extenuantes ou
por excesso de esforço físico.
Essa forma de organização do trabalho de separação entre a força de
trabalho e o trabalhador tem originado uma relação com os produtos do
trabalho e com o próprio trabalho através da alienação. O trabalho passou
a ser externo e penoso, pois o trabalhador nega seu trabalho, não se sente
bem, não se sente feliz com ele. Quando perguntamos as trabalhadoras qual
seu sonho, o trabalho desenvolvido na cana não foi apontado em nenhum
momento, sempre era considerado como penoso. Havia uma confusão entre
o gosto de trabalhar e o trabalho desenvolvido.
De um lado, o produto realizado pelo ser humano se torna independente
de seu produtor, do trabalhador e do outro não se reconhece no trabalho. A
objetivação do trabalho é a perda do objeto e a servidão ao objeto. A aliena-
ção acontece tanto quanto ao produto da produção como ao ato de produzir.
O trabalho não se configura como a satisfação de uma necessidade, mas um
meio de satisfazê-la fora dele (MARX, 2004, p. 470). Quando o trabalhador
vai trabalhar nas fazendas, seja roçando, cortando cana ou fazendo carvão, o
produto de seu trabalho fica com o seu patrão. Ele não se apropria do resultado
de seu trabalho. Além do mais, no momento em que está trabalhando, ele não
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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reconhece esse ato como fundante do seu ser, mas como um ato penoso que está
fora dele. Esse é o duplo caráter da alienação.
Essa visão alienada do trabalho influencia a ação do trabalhador. Nela,
ele aprende que somente lhe cabe essa posição no mundo, há uma divisão do
trabalho que deve ser obedecida. Entende que há uma normalidade nessas
relações, pois ele olha para os sujeitos com quem se relaciona, e com quem
trabalha, e absorve a ideia de normalidade. Essa relação com o trabalho cria
uma consciência do seu lugar no processo de produção. Por vezes, dificultan-
do a organização desses trabalhadores.
3 Art. 149. Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados
ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo,
por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena
- reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos
pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
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envolvidos deve ser marcada pela violação grave de direitos. Numa perspec-
tiva mais ampla, o objetivo desse delito seria proteger o poder de decisão das
pessoas. Seria proteger sua dignidade. Por isso, a previsão legislativa provoca
dois grupos de situações que levam a conceituação do TEC: por um lado,
objetiva proteger a liberdade de ir e vir quando proíbe o trabalho forçado e
por dívidas, situação onde o trabalhador não consegue sair do local de tra-
balho; e, por outro, objetiva proteger a dignidade, quando proíbe o trabalho
sob jornada exaustiva e em condições degradantes, mesmo em situações
que o trabalhador(a) possa sair do ambiente laboral. São sobre essas quatro
modalidades que teceremos comentários a seguir.
O TEC por dívidas é um clássico na realidade brasileira. Ele se caracteriza
por uma redução da possibilidade de decisão que um ser humano possui, subme-
tido em uma relação de trabalho, pelo fato de estar sob uma dívida. Há vários
relatos de trabalhadore(a)s que ficam presos às fazendas, pois fazem dívidas para
pagar seu deslocamento, e como nem sempre conseguem saldá-las, passam a
trabalhar em função delas.
No caso da modalidade trabalho forçado, a ideia é a falta de liberdade
de escolha, é agir sob coação. O trabalhador(a) é enganado ou é colocado
em situações em que precisa aceitar essa relação de trabalho (BRITTO
FILHO, 2011, p. 245).
Já a jornada exaustiva é aquela imposta a alguém por outrem em relação
de trabalho, além dos limites legais e/ou capaz de causar prejuízos à saúde física
e mental do trabalhador, decorrente de uma situação de sujeição que se esta-
belece entre ambos, de maneira forçada ou por circunstâncias que anulem a
vontade do trabalhador(a) (Idem, p. 241).
Dessas quatro situações, aquela que mais dificuldade há na conceituação é a
do trabalho degradante, porque sua definição necessita de maior esforço inter-
pretativo. O TEC é uma relação laboral que atinge a dignidade do ser humano,
é o trabalho humilhante, seja por falta de pagamento, por coerção, ou por um
ambiente de trabalho não saudável. Ou seja, todas as situações previstas no arti-
go 149 são degradantes e atingem a dignidade, mas há nelas uma especificidade
que falta nesta modalidade. O trabalho degradante é aquele que desrespeita, de
forma grave, a dignidade da pessoa humana, porque fere direitos básicos cons-
titucionais (ANDRADE, 2015).
Por isso, a discussão conceitual da modalidade condições degradantes ne-
cessita debater a situação do ambiente de trabalho. O trabalho degradante nos
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faz refletir sobre uma nova concepção de liberdade: em um ambiente onde ine-
xistem condições mínimas de trabalho, como alojamento, banheiros, alimen-
tação, transporte, o trabalhador(a) não vai efetivamente exercer sua liberdade,
que não é apenas de ir e vir, mas é de pensar e de escolher. Como vai poder
fazer escolhas, se não tem condições mínimas de sobrevivência? De que forma
vai exercer suas condições dignas de ser humano, em um ambiente que o trata
pior do que um animal? Trabalho degradante é aquele em que a degradação
das condições sanitárias e de higiene lesiona o axioma da dignidade da pessoa
humana (PRUDENTE, 2006, p. 64).
Pois bem, esse entendimento vem se consolidado nos últimos anos nos tri-
bunais brasileiros. Em levantamento feito em dissertação de mestrado, cons-
tatou-se que o único Tribunal Regional Federal que tem posição contrária a
esta ideia que apresentamos é o da quinta região com sede em Recife, onde o
conceito de TEC está ligado a apenas situações onde o trabalhador está impe-
dido de se locomover e as condições degradantes são consideradas apenas como
infrações trabalhistas e não como crime do artigo 149 (SEVERO, 2017, p. 157).
Uma concepção mais tradicional de escravidão. No Supremo Tribunal Federal,
poucos ministros, como Gilmar Mendes, têm tido uma postura tão tradicional.
Segundo o Ministro, se for dada à vítima a liberdade de: abandonar a jornada
exaustiva, fixada em meio a uma relação de trabalho ou emprego; rejeitar o
trabalho, abandonando o local de trabalho; e de recusar-se às condições degra-
dantes que são impostas, não haverá crime de TEC (ANDRADE, 2015).
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Usina Taquari, Junco Novo e Carvão, todas localizadas em Capela; Usina Cam-
po Lindo, em Nossa Senhora das Dores (SHIMADA, p. 116).
Japoatã, um dos municípios que fornece matéria prima a essas usinas, locali-
zado na região norte do estado de Sergipe, possui 13.238 habitantes distribuídos
em 404,08 Km². Segundo dados do IBGE, em 2016, 1.317 pessoas se enquadram
na categoria de ocupadas. E 49,1% desse total recebe metade do salário mínimo
mensal para sobrevivência. Por outro lado, dentre os trabalhadores formais, a
média salarial é de 1.8 salário mínimo (IBGE, 2018). Portanto, cidade que tem
a desigualdade como uma de suas características. Sua economia tem uma base
agrícola forte, dentre as lavouras temporárias, a cana-de-açúcar se destaca. Em
2016, o município produziu 260.691 toneladas colhidas em 4.635 hectares de
área plantada. Bem distante das 90 toneladas de goiaba e laranja, das 54 tone-
ladas de mamão, de 1834 toneladas de banana, etc. (IBGE, 2018).
Diante dessa realidade, muitos trabalhadores acabam se dedicando ao cultivo
da cana-de-açúcar, não só por dominar a região, mas pelo fato de ter dezenas de
funções que podem ser desenvolvidas pelos trabalhadores. Segundo técnico da
usina carvão, há cerca de 70 funções que envolvem o trabalho na cana. Desde o
plantio, o corte, o adubo, até o resgate de canas que caem no chão no momento
de que são transportadas para os caminhões, serviço realizado predominante-
mente por mulheres, as denominadas “bituqueiras”. Passemos aos dados.
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trabalho, além do desemprego ser muito alto na região, elas não se enquadram
nesse perfil de menos conflitivas.
Os homens estão a cargo de trabalhos que implicam uso de força física,
como levantar caixas de madeira e construir estufas, operadores de máquinas,
condução de tratores e caminhões, aplicação de pesticidas e a manutenção de
equipamentos. Devido a isso, o trabalho das mulheres é considerado como me-
nos qualificado (idem, ibidem). Essa realidade torna a vida das mulheres um
ciclo vicioso. Seu trabalho é considerado como menos qualificado, mas poucas
serão as oportunidades que elas terão de se qualificar.
Isso não significa dizer que a situação dos homens no trabalho na cana
é confortável, eles passam por um processo intenso de exploração e riscos à
sua saúde, mas há um grau ainda maior de exploração dessas mulheres. Essa
realidade da feminização também revela que a divisão de trabalho pelo sexo
não mudou consideravelmente, pois apesar dessas mulheres estarem mais par-
ticipantes nas atividades assalariadas, o trabalho que lhes é devido é sexuado.
Por isso, elas não são bem aceitas na atividade de corte de cana. Outras ati-
vidades menos qualificadas, onde há menos possibilidade de rendas maiores é
que as absorvem. Como, por exemplo, a atividade de bituqueira que é comum
ser realizada pelas mulheres em Sergipe. O seu papel seria apanhar as canas
que caem ao chão quando são transportadas pelas máquinas. Realizar outras
atividades de maior remuneração é muito mais difícil para elas. Muitas nem
se arvoram em fazê-las, por isso, a preciosidade de encontrar essas mulheres
cortadoras de cana em Japoatã.
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caso dela. Para “Três”, a situação é similar: “A comida a gente leva de casa, isso
vale pra quem é fichado e quem não é”.
“Se não tiver uma sombra a comida azeda...” é o que diz “Um”. Isto pois
como não tem um local específico e adequado para realizarem suas refeições,
os trabalhadores são obrigados a depositarem suas marmitas em qualquer lugar,
tendo sorte quando encontram um local fresco para guardá-las. Ela também
comenta que os trabalhadores com carteira assinada possuem alguma estrutura
para realizarem suas refeições “Tem também no ônibus eles colocam umas ten-
das, umas mesinhas... fichado.”
Quando questionadas sobre banheiros, “Um” relata que estes não existem
para quem não é fichado, fazendo com que o trabalhador faça suas necessidades
em meio ao mato, geralmente precisando ir para longe da frente de trabalho
para ter alguma privacidade. Já quem possui carteira assinada, tem direito a usar
um banheiro químico. “Fichado tinha um banheirinho, sabe? Quem é fichado,
tem o banheiro tudo certinho...”.
Sobre este tema, “Dois” nos conta que em suas experiências em canaviais,
havia banheiro químico, porém, os trabalhadores não gostam de usá-lo, pre-
ferindo fazer suas necessidades ao ar livre. “Três” comenta que no local onde
trabalha não tem banheiro. “Vamos pro mato mesmo. Não é questão de querer
ou gostar, é a precisão”. Ela também diz que se incomoda, porque pode aparecer
alguém a qualquer momento.
Tendo deixado claro as condições de higiene, partimos para a segurança da
trabalhadora. Para transportar trabalhadores, é necessário que haja a emissão
da Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores-CDTT nos termos
da instrução normativa 76/2009 do Ministério do Trabalho.
“Um” nos informa que a empresa em que trabalha disponibiliza ônibus, po-
rém em condições precárias. Este ônibus é o mesmo tanto para quem é fichado,
quanto para quem não é. No caso da mulher “Dois” a usina fornece transporte,
com compartimento especial para ferramentas. Todavia, esta “regalia” se restrin-
ge apenas aos trabalhadores fichados. Os clandestinos vão em ônibus diferencia-
dos, com condições bem piores, levando suas ferramentas em punho, o que causa
grandes riscos de lesões. “Três” acha o ônibus que a transporta razoável, havendo
local específico para guardar as ferramentas. “Seis” nos informa que onde traba-
lha, existem ônibus diferenciados para quem é fichado e quem é clandestino.
Com relação à vestimenta, o art. 21 da Convenção nº 155 da Organização
Internacional do Trabalho rege que as medidas de segurança do trabalho não
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
deverão implicar nenhum ônus financeiro ao trabalhador. Em seu art. 16, dita
que o empregador deve fornecer roupas e EPI’s adequados com fim de preven-
ção. “Um” comenta que a empresa em que trabalha fornece as peças necessá-
rias, isto inclui os Equipamentos de Proteção Individual- EPI’s, sendo as princi-
pais para a frente de cana o chapéu, as luvas, as botas e as tornozeleiras.
“Três” levou as ferramentas e EPI's de casa quando começou a trabalhar. Ela
diz que a empresa fornece todos os materiais necessários, mas descontam do
salário. “Tudo que pega, paga”. Em contrapartida, trabalhadores fichados rece-
bem todos os equipamentos necessários gratuitamente. Usar os e equipamentos
de proteção individual são imprescindíveis para amenizar os riscos de trabalho,
sendo importante que o trabalhador esteja devidamente vestido para que possa
trabalhar. Sobre isso, “Três” comenta que “o cabo não olha nada, se tamo vestido
certo ou não”. Já “Seis” diz que onde trabalha, as ferramentas ficam retidas na
frente de trabalho, sem precisar ficar levando e trazendo diariamente. Sobre a
vestimenta, relata: “é casaco, é chapéu, é moletom, bota, tudo completo. A usina
dá. Os clandestinos também têm, mas descontam do pagamento. Desconta garra-
fa, desconta sapato, roupa, chapéu”. Ela finaliza dizendo que se o trabalhador não
tiver com a vestimenta completa, não o deixam trabalhar.
Diante de um trabalho que naturalmente é insalubre e exaustivo, foi ques-
tionado as entrevistadas se elas tinham tentado sair dos canaviais e fixar-se em
outro emprego. “Um” respondeu que por determinado período lecionou “banca”
(reforço escolar) para crianças residentes no assentamento. No entanto, como a
maioria dos moradores trabalhavam em canaviais e recebiam muito pouco, não
conseguia realizar os pagamentos, o que fez “Um” voltar aos canaviais.
“Dois” saiu dos canaviais quando teve oportunidade de trabalhar como professora
em programas do governo. Para sua infelicidade, o programa em que lecionava foi
encerrado na cidade de Japoatã, o que a obrigou a voltar para a cana. Ela comenta que
gostaria que a cidade tivesse mais oportunidades de emprego para mulheres. “Três”
conseguiu trabalhar por 5 meses como professora, porém, logo o prefeito de Japoatã
a demitiu. “Aqui é tudo cortador de cana, não tem outro lugar pra trabalhar não”. E
complementa com a infelicidade de ser cortadora: “Bom não é não, é péssimo. Só vai
porque a pessoa precisa mesmo”. Ela diz que não tem outras opções e gostaria que
houvesse microempresas por perto, gerando oportunidades de emprego. Reafirmando
que elas tem um lugar determinado dentro do processo de exploração do capital.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Considerações finais
Através dos dados levantados ao longo da pesquisa, bem como do estudo
e análise dos textos aqui mencionados, chegamos à conclusão de que não se
encontrou trabalho escravo contemporâneo dentre os sujeitos pesquisado no
município de Japoatã, de acordo com o levantamento das entrevistas. No en-
tanto, isto não quer dizer que lá existem condições ideais de trabalho, visto que
foi possível encontrar diversas falhas sérias.
Háuma notória diferença de tratamento entre trabalhadores com carteira
assinada (fichados) e clandestinos (não fichados), não havendo muito consenso
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entre as entrevistadas sobre qual das modalidades é mais vantajosa. O que ficou
claro é que, apesar de receberem salários um pouco maiores, os clandestinos
são os que mais sofrem violações de direitos trabalhistas, a exemplo de não ter
banheiros na frente de trabalho para eles ou local específico para as refeições.
A questão de gênero também entrou em evidência. Primeiro por termos
encontrado um número considerável de cortadoras de cana; segundo, pela des-
coberta de que as usinas não costumam empregar mulheres exclusivamente
motivados por se tratar de indivíduos do sexo feminino e pressuporem que elas
não possuem o mesmo rendimento físico de um homem. Quando o fazem, não
assinam suas carteiras, deixando-as na clandestinidade e sem acesso aos direi-
tos que uma carteira de trabalho assinado proporciona.
Por fim, ficou claro que as trabalhadoras entrevistadas não sabem o que
de fato é trabalho escravo contemporâneo, pois ficaram restritas a noções da
escravidão dos séculos passados. Isto revela a necessidade de realizar trabalhos
de formação com os indivíduos do corte de cana em relação ao TEC, para que
assim, possam reconhecer situações em que há trabalho escravo e os motivem
a fazerem denúncias.
Referências bibliográficas
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
NETTO, José Paulo. Economia política: uma introdução crítica. 6. Ed. São
Paulo: Cortez, 2010.
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As modificações constantes do art. 394-
a da CLT: reflexos do avanço neoliberal
na flexibilização dos direitos das mães
trabalhadoras sob a ótica da Reforma
Trabalhista (LEI 13.467/17)
Introdução
O presente estudo se funda em contextualizar e analisar a Reforma Tra-
balhista, consubstanciada na Lei 13.467/17, no que concerne à permissão do
trabalho de mulheres gestantes e lactantes em ambientes insalubres. A norma,
em vigor desde 11 de novembro de 2017, estabeleceu nova redação ao art. 394-
A da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e reflete o processo contínuo
de flexibilização dos direitos trabalhistas sob o avanço de políticas neoliberais.
Em paralelo a esta sobreexploração do trabalho, a imposição autoritária de
contrarreformas como as promovidas pelo governo ilegítimo de Michel Temer
(PMDB) refletem a baixa densidade de proteção dos direitos nas relações de tra-
balho. Desse modo, pretende-se analisar neste estudo quais os impactos das modi-
ficações ocorridas na CLT, investigando os argumentos jurídico-políticos que sus-
citaram as modificações legislativas e que envolvem o debate da prejudicialidade
dessas mudanças frente às normas de proteção da mulher trabalhadora.
Como uma das previsões incorporadas pela Reforma Trabalhista é a per-
missão do trabalho das gestantes e lactantes em ambientes insalubres, busca-se
enxergar, através do materialismo-histórico-dialético, as consequências trazidas
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2 O art. 394-A dispunha, a partir da referida lei, da seguinte redação: “Art. 394-A. A empregada
gestante ou lactante será afastada, enquanto durar a gestação e a lactação, de quaisquer atividades,
operações ou locais insalubres, devendo exercer suas atividades em local salubre. Parágrafo
único. (VETADO).”
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É dentro dessa perspectiva, pois, que autores como Harvey (2005) e Alves
(2009) aduzem que o Estado se incorpora na lógica capitalista de tal forma
que, ao invés de garantir o interesse comum e a proteção às trabalhadoras, atua
como principal propulsor da precarização de seus direitos, adotando medidas
3 No Brasil, a produção de dados relevantes sobre o tema das mulheres no mundo do trabalho foi um dos
destaques na atuação da equipe de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas. Entre suas contribuições
está o Banco de Dados Sobre o Trabalho das Mulheres, possuindo o gênero como referencial teórico,
acrescido do envolvimento e comprometimento com a luta feminista. Foi nesse sentido que as
pesquisadoras orientaram as perguntas feitas, as informações procuradas e a maneira de analisar e
apresentar os dados, utilizando a comparação das informações sobre homens e mulheres com o fito de
constatar diferenças e/ou semelhanças do gênero no fator trabalho. Este Banco de Dados foi lançado na
plataforma digital da Fundação Carlos Chagas em 1998 e foi atualizado três vezes: uma em 2000, outra
em 2002 e a última em 2007, limitando as informações atualizadas a este último ano, após uma década
de análises e estatísticas sobre o trabalho sob a ótica das relações de gênero.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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lhista às mulheres gestantes e lactantes. A fim de que fosse dada nova redação
ao art. 394-A da Consolidação das Leis Trabalhistas, os argumentos político-ju-
rídicos fundaram-se na suposta manutenção da previsão constitucional de não
discriminação de gênero no mercado de trabalho. No entanto, o que se pôde
perceber foi mais um ataque ao campo das relações trabalhistas, verificando-se
a intensificação da precariedade na regulação dos direitos das mulheres.
O novo texto trazido ao dispositivo pela Lei 13.467/17 inverteu a lógica
constante da Lei 13.287/16 – sancionada pela presidenta Dilma Rousseff
(PT) – acabando com a vedação até então obrigatória quanto ao exercício,
por mulheres gestantes e lactantes, de atividades em ambientes expostos a
qualquer grau de insalubridade.
Em suma, a transmutação brutal gerada pela contrarreforma possibilita a
identificação de três grandes modificações no trabalho da mulher gestante ou
lactante. A primeira está na possibilidade de que mulheres grávidas trabalhem
em locais insalubres, sendo vedado somente o exercício de atividades com ex-
posição em grau máximo. A segunda é a introdução do atestado médico como
fator que legitima o trabalho em postos insalubres em graus médio e mínimo, só
havendo afastamento diante de recomendação médica. Já a terceira diz respeito
à possibilidade das lactantes trabalharem em local insalubre em qualquer grau,
consistindo em um retrocesso ainda maior nos direitos que conferem proteção
à maternidade e à infância.
Deve-se entender por “insalubre” toda e qualquer atividade que, por sua
natureza, condição ou método de trabalho, exponha a trabalhadora a agentes
que possam trazer prejuízos à saúde. Há na CLT, dipostas ao longo do Capitulo
V da Seção XIII – que trata sobre Segurança e Medicina do Trabalho – nor-
mas atinentes às atividades insalubres ou perigosas, bem como regulamentação
específica na Norma Regulamentadora 15 (NR-15) do Ministério do Trabalho.
Tendo em vista que a vedação total para o trabalho da gestante em grau máxi-
mo de insalubridade está restrita a poucas hipóteses,
1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre
eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e sobre trabalho temporário, mas
acabou se alargando de tal forma a ponto de modificar substancialmente a CLT, alterando mais de
duzentos de seus dispositivos.
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operações ou locais insalubres e exercerá suas atividades em local salubre, excluído, nesse caso, o
pagamento de adicional de insalubridade. § 2º O exercício de atividades e operações insalubres
em grau médio ou mínimo, pela gestante, somente será permitido quando ela, voluntariamente,
apresentar atestado de saúde, emitido por médico de sua confiança, do sistema privado ou público
de saúde, que autorize a sua permanência no exercício de suas atividades. § 3º A empregada lactante
será afastada de atividades e operações consideradas insalubres em qualquer grau quando apresentar
atestado de saúde emitido por médico de sua confiança, do sistema privado ou público de saúde, que
recomende o afastamento durante a lactação.”
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Considerações finais
Ao longo das exposições feitas sobre a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17), bus-
cou-se responder a seguinte questão: como o neoliberalismo atua moldando a forma
jurídica de modo a flexibilizar os direitos das mães trabalhadoras? Para tanto, buscou-
-se tratar dos discursos e argumentos político-jurídicos que forneceram as bases de
legitimação das mudanças promovidas, analisando o contexto histórico da explo-
ração feminina e as novas roupagens de opressão através do mundo do trabalho.
A tensão existente entre os marcos normativos permitiu inferir que os ata-
ques lançados contra as mães trabalhadoras possuem dimensão diretamente
relacionada com a forma de organização social das relações de trabalho, uma
vez que o corpo e a força de trabalho feminina são vistos como mão-de-obra
útil e eficaz para a consolidação e expansão das forças produtivas do capital
(DOMBKOWITSH, 2018). Assim, através das relações de poder que constro-
em as estruturas vulneráveis da legislação trabalhista, perpetuam-se retrocessos
quando da regulação dos direitos das mães trabalhadoras.
Embora o Brasil seja signatário da Convenção n. 183 da Organização Inter-
nacional do Trabalho e tenha se comprometido internacionalmente a adotar
592
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
medidas necessárias para que as mulheres não fossem submetidas a realizar tra-
balhos prejudiciais à sua saúde ou à saúde de seu filho7, a ausência de proteção
às gestantes e lactantes é tão imbricada à lógica de poder explícita no sistema
jurídico que afrontas como as constantes do art. 394-A tendem a ser viabiliza-
das. Neste mesmo sentido, a derrocada da Medida Provisória n. 808/17 devido
a acordos não fechados entre as Casas Legislativas demonstra a atuação golpis-
ta entre governo e parlamentares, bem como a perpetuação dos privilégios do
grande capital através da ampliação das possibilidades de exploração da força
de trabalho das mulheres.
Assim, se as relações de poder utilizam o discurso jurídico como meio de im-
posição das formas de subjugação e de dominação das sujeitas, os ciclos de crise
associados à alternativa neoliberal imposta pelo governo usurpador à classe tra-
balhadora devem consistir no principal catalisador da resistência e organização
(CARDOSO, 2016). Como o desrespeito aos direitos das mães trabalhadoras
se reflete na “posição de desvantagem das mulheres (...) nos novos padrões de
organização do trabalho no capitalismo” (BIROLI, 2018), entende-se que a pro-
blematização destes ataques deve conduzir à capacidade de lutar por reconhe-
cimento político e pela implementação de condições sociais que imponham
transformações nestas relações de poder.
Conforme a discussão exposta, as mudanças promovidas na situação de
trabalho das gestantes e lactantes no Brasil podem ser diretamente relacionadas
às atuações do sistema jurídico de poder que produz os sujeitos e limita seus
7 A Convenção n. 183 dispõe sobre a Proteção da Maternidade e foi convocada em Genebra (SWI)
pelo Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho. Dentre inúmeras
convenções e recomendações no campo do trabalho que a consubstanciaram, a Convenção n. 183
buscou melhorar a promoção da igualdade de todas as mulheres que trabalham, bem como a saúde e
a segurança da mãe e da criança. A fim de reconhecer a diversidade do desenvolvimento econômico
e social dos Membros, bem como a diversidade das empresas e o desenvolvimento da proteção da
maternidade nas legislações e nas práticas nacionais, propõe como uma necessidade assegurar a
proteção da gravidez, uma vez que esta medida se constitui numa responsabilidade partilhada pelos
poderes públicos e pela sociedade. Desse modo, uma vez que o Brasil é signatário e ratificou a referida
Convenção, obrigou-se, por força do art. 3º, ao seguinte: “Art. 3º. Qualquer Membro deve, após
consulta das organizações representativas dos empregadores e dos trabalhadores, adotar as medidas
necessárias para que as mulheres grávidas ou que amamentam não sejam obrigadas a executar um
trabalho que tenha sido determinado pela autoridade competente como prejudicial à sua saúde ou
da sua criança, ou que tenha sido considerado, através de uma avaliação, que comporta um risco
significativo para a saúde da mãe ou da criança.”.
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Referências bibliográficas
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Cooperativas e expansão da informalidade -
formas atuais de controle do trabalho
1. Introdução
A relevância desta pesquisa deve-se a expansão das cooperativas de auto-
gestão e do trabalho informal na contemporaneidade e seus impactos nas con-
dições de vida e de trabalho da classe trabalhadora no contexto da reestrutura-
ção produtiva. Com a crise estrutural do capital de 1970, que se expressa até os
dias atuais, atinge o cerne do sistema sócio-metabólico do capital e, a resposta
à crise via reestruturação produtiva altera a dinâmica da produção capitalista,
das relações de trabalho e das condições de reprodução da classe trabalhadora.
A reestruturação produtiva provocou inúmeras alterações na produção capi-
talista impactando sobre a classe trabalhadora, a exemplo do crescimento do
setor informal e das relações flexíveis de trabalho (subcontrato, temporalidade,
partime), fenômenos que se generalizam com o avanço da produção flexível nos
países periféricos nos anos de 1990. As cooperativas de autogestão e o traba-
lho informal são reeditados enquanto fenômeno social como alternativa à crise
em face do crescimento do desemprego estrutural. Dissemina-se o discurso de
autonomia das relações econômicas/ produtivas com as cooperativas de produ-
ção (autogestão), cujo pressuposto é que os trabalhadores teriam o controle da
produção, do processo e das relações de trabalho. Analisamos se elas realmente
1 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Membro do Grupo de
Pesquisa Sobre Reprodução Social – (GPSRS/UFAL).
2 Mestre e Doutora em Serviço Social, Professora Associada II dos cursos de graduação e pós-
graduação em Serviço Social – (FSSO/UFAL).
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2. Desenvolvimento
A pesquisa realizada nos proporcionou entender a expansão das coopera-
tivas nos anos 2000, seus nexos com o trabalho informal e sua funcionalidade
à produção capitalista dominante. Para analisar tal fenômeno, apreender sua
dinâmica e complexidade, nos referenciamos nos fundamentos ontológicos
do trabalho cooperado/ abstrato, recorremos historicamente as bases do ca-
pitalismo monopolista, as expressões da crise estrutural e a reestruturação
produtiva dos anos 1980 para entender como funcionalmente se articula aos
processos de produção capitalista.
Conforme Marx (1996), a cooperação é a base da produção capitalista, ela
inicia-se quando o capitalista concentra uma massa de trabalhadores – traba-
lhando juntos ou no mesmo campo de trabalho, estendendo seu processo de
trabalho e, consequentemente aumentando de forma considerável sua produ-
ção em relação ao que produzia anteriormente. A produção exige um mínimo
de qualidade da força de trabalho, que é chamada de qualidade social média.
De toda a produção é calculada a média, e Marx exemplifica que pouco se
difere a qualidade de um trabalhador para outro, pois a excelência de um com-
pensará a fragilidade do outro. Essa fragilidade é intitulada de desvios “esses
desvios individuais, chamados em Matemática de “erros”, compensam-se e de-
saparecem, tão logo se tome um número maior de trabalhadores em conjunto”.
(MARX, 1996, p. 440).
Mesmo que a taxa de mais-valia extraída do trabalhador seja a mesma,
o emprego simultâneo, ou seja, a contratação em massa e essa concentração
em um mesmo campo de trabalho são benéficas para o capitalista. Em longo
prazo, há uma redução de custo favorecendo-o, visto que na medida em que o
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dos dois, a depender da sua relação com o mercado. Formas essas que negam
suas características ditas autônomas e expressam ao contrário, uma explicita
subordinação à grande indústria capitalista na era monopolista. A autora
salienta que o trabalho informal se por um lado sofre as mesmas regulações
econômicas do trabalho formal, por outro, são impactados com as perdas de
direitos trabalhistas e da garantia de postos de trabalho, o que se amplia cada
vez mais no universo da informalidade. A ampliação da informalidade tem a
proteção de mecanismos oferecidos pela própria justiça do trabalho, para que
se desenvolvam sem ocasionar custos ao capital, assim, a desregulamentação
do trabalho, pretende eliminar o trabalho formal, transformando os agentes
econômicos em trabalhadores autônomos e independentes. A maioria desses
trabalhadores só são proprietários da sua força de trabalho, são poucos que
conseguem adquirir algum bem, o que não o torna capitalista, visto que,
a finalidade do capital é acumular e deter os meios de produção, o que não
acontece com os ditos “independentes”. Seus defensores sugerem que a simples
ausência de vínculo empregatício transforma trabalhadores independentes
em possuidores de meios de produção, abolindo o regime salarial. Sob essa
orientação, a relação entre iguais é uma falácia.
A descentralização/desterritorialização da produção em plantas industriais
distribuídas no mundo inteiro “provoca a reemergência de velhas formas de tra-
balho precário, originárias de uma forma de exploração mais intensa” (TAVA-
RES, 2004, p.198), ampliando o trabalho informal. No entanto, destaque-se que
esse trabalho informal na atualidade cumpre a mesma função do formal. Esse
ressurgimento é facilitado pelo amparo jurídico, ampliando a clandestinidade,
a desproteção social, a ausência de higiene e segurança, compondo um quadro
de ilegalidade e contradição, mas que como qualquer instituição burguesa, é
regulada pelo mercado. Sendo assim, ele passa a ser complementar e torna-se
importante, decisivo à reprodução capitalista.
O estudo da informalidade leva a entender as formas de trabalho expressa
na contemporaneidade: improdutivo, produtivo e os que não são produtivos e
nem improdutivos, entretanto, o improdutivo cresce principalmente na esfera
de serviços. Formas pré-existentes, mas que hoje se generalizam. É importante
ressaltar a coexistência necessária entre eles, assim conforme salienta Tavares
(2004), o trabalho produtivo, produtor de mais-valia, gera um produto anual
que não pode ficar restrito a mais-valia capitalizada, parte dele transforma-
-se em rendimentos, a relação entre as duas formas de trabalho vai depender
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3. Conclusões
A expansão do trabalho informal acontece em meio aos ajustes econômi-
cos e políticos adequando o Brasil à reestruturação produtiva mundial. As
contradições que são imanentes à reprodução do capital são ativadas com a
crise estrutural, a reestruturação produtiva é uma resposta à crise para mini-
mizar os efeitos na produção e responder aos problemas sociais, é uma estra-
tégia do capital e não para o trabalho. Os trabalhadores que não conseguiram
se inserir no mercado de trabalho vão viver da informalidade. Meio este, que
intensifica precarização do trabalho, a exploração e degradação do trabalho
que existiam anteriormente. Reafirmam-se com uma nova roupagem, mas
mantêm a mesma essência. O Estado apoia via politicas de emprego e renda
- a politica de crédito e financeira, para dizer que é um incentivo para acesso
ao mercado e que dará resultado.
A informalidade cresce significativamente enquanto relação de trabalho e
na atualidade verifica-se sua intrínseca relação o empreendedorismo. A pro-
dução flexível aponta ideologicamente que o trabalhador tem autonomia e
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Referências bibliográficas
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NETTO, José Paulo. Economia Política: uma introdução critica/ José Paulo
Netto e Marcelo Braz- 8° ed. São Paulo: Cortez, 2012.
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Cooperativas e terceirização – formas de
controle do Capital sobre o trabalho no
capitalismo contemporâneo
1. Introdução
O presente estudo tem como objetivo apreender os fundamentos do
trabalho e a organização produtiva capitalista, explicitando a reestruturação
produtiva e seus impactos para os trabalhadores e analisar a consolidação das
cooperativas na atualidade e sua relação com os processos de terceirização
do trabalho. Realizado através da pesquisa bibliográfica e documental, teve
referência nos pressupostos da teoria social de Marx, os quais foram decisivos
para entender o fenômeno do crescimento desenfreado das cooperativas
decorrentes do processo de terceirização no contexto da reestruturação
produtiva. Desta maneira, se fez necessário o domínio das determinações
histórico-materiais do desenvolvimento do capitalismo para apreender os
fundamentos do trabalho (trabalho útil concreto e trabalho abstrato); os
momentos da organização produtiva capitalista (cooperação, manufatura,
grande indústria, taylorismo-fordismo e produção flexível e correspondentes
formas de controle do trabalho); as origens das cooperativas e sua expansão
e consolidação no período da reestruturação produtiva no Brasil e sua
intrínseca relação com os processos de terceirização. Para isso, foi necessário
1 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas. Membro do Grupo de Pesquisa
Sobre Reprodução Social – (GPSRS/UFAL).
2 Mestre e Doutora em Serviço Social, Professora Associada II dos cursos de graduação e pós-
graduação em Serviço Social – (FSSO/UFAL).
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4. Cooperativas e terceirização
Estabelecido na Europa Ocidental no período do capitalismo concorrencial,
o cooperativismo se forma como uma estratégia dos trabalhadores de enfrentar
o pauperismo e à exploração, unindo-se em prol da garantia de melhores
condições de trabalho e de vida. Além de ser um espaço para se reunir e
discutir coletivamente possíveis resoluções para o enfrentamento das mazelas
próprias do sistema, os trabalhadores desenvolveram também as chamadas
cooperativas de produção. Essas ideias cooperativistas na conjuntura do
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Brasil, esta forma de trabalho não deixou de ser utilizado, mesmo com o ad-
vento da tecnologia, denominado de indústrias tradicionais (indústria têxtil/
confecções e calçados). Outro exemplo de processos de terceirização no Brasil
é na indústria automobilística, na rede de fábricas fornecedoras de autopeças
para as montadoras de automóveis, que ao longo dos anos 2000 vem aumen-
tando a rede de empresas subcontratadas. Um terceiro exemplo do processo
de terceirização é sua ampliação na rede dos “serviços de apoio” (limpeza,
restaurante, jardinagem, transporte, vigilância), com o objetivo da “empresa-
-mãe” concentrar-se comente na atividade-fim e transferir as atividades-meio
para os terceiros, a fim de obter máxima qualidade na produtividade. Outro
modelo de terceirização é nas áreas produtivas ou na atividade-fim das em-
presas do setor industrial (realização das atividades no interior da planta da
contratante, realização da atividade fora da empresa contratada) e a Quar-
teirização que consiste nas empresas contratadas com a função de gerir os
contratos com outras empresas terceirizadas.
No Brasil, a nova lei da terceirização, (Lei N° 13.429) sancionada em 31 de
março de 2017 no governo Temer (após o impeachment de Dilma Rousseff), um
contexto de crise econômica, na qual, traz para a nova maneira de flexibilização
de trabalho a possível terceirização ampliada e irrestrita, também a redução de
garantias trabalhistas para os trabalhadores terceirizados. O processo de tercei-
rização no país teve origem com a Lei 6.019/1974 e com a reestruturação produ-
tiva na década de 90, essa lógica da terceirização, tornou-se mais intensificada.
Dessa maneira, no dia 23 de março de 2017 foi aprovado na Câmara dos De-
putados, o Projeto de Lei 4.302/1998, alterando dispositivos da Lei 6.019, de 1974,
sendo sancionado com a Lei 13.429/2017, no qual, contem alterações significati-
vas para a contratação de trabalhos terceirizados, modificando o conceito de tra-
balho temporário, expandindo essa forma de contratação e retirando o caráter de
contratação para situações extraordinárias, também o trabalho temporário pode
ser utilizado também nas atividades-fim da empresa que contrata o serviço. (DIE-
ESE, 2017 apud JUNIOR, Gerson, 2018 on-line). Ademais, amplia-se o prazo de
duração dos contratos temporários de 90 para 180 dias consecutivos, podendo ser
expendido por mais 90 dias, também foi substituído a responsabilidade solidária
para a subsidiária, tornando mais frágil as garantias de direitos dos trabalhadores.
Consequentemente, no período pós-fordista com a reestruturação produtiva, as
cooperativas tendem a ser terceirizadas (não são todas) e essa terceirização inten-
sifica-se conforme as necessidades do capital, segundo Lima (2007), esse processo:
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5. Considerações finais
Diante da exposição realizada ao longo da pesquisa, compreendemos que
a cooperação é um modo de organização da atividade produtiva, pois ela é a
base da produção capitalista a qual adquire sua forma clássica na manufatura.
Na continuidade da pesquisa, entendemos a dupla origem da manufatura e o
surgimento da maquinaria no desenvolvimento da produção capitalista, cujo
objetivo foi intensificar a extração do trabalho excedente, ampliar e baratear
a produção de mercadorias, diminuir a absorção da força de trabalho e in-
tensificar a exploração do trabalho. Entendemos, por fim, conforme exposto
nesse relatório, que a cooperação (trabalho cooperado/ abstrato) é o elemento
que funda a organização da produção capitalista, estando presente no início e
nas etapas mais avançadas do sistema capitalista. Ademais, as primeiras for-
mas de “terceirização” já eram existentes (trabalho domiciliar, trabalho pago
por peça), na grande indústria.
Com o fenômeno da crise estrutural do capital do modelo taylorista-fordista,
a partir do início dos anos 70, de acordo com Antunes (2009), o sistema capita-
lista começa a sinalizar um cenário crítico, após um grande período de acúmulo
de capitais durante o máximo do período fordista e da fase keynesiana. Respon-
dendo a crise, foi gestando-se um processo de reorganização do capital e de seu
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Referências bibliográficas
MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro Primeiro, tomo dois:
O processo de produção do capital. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1996.
NETTO, José Paulo. Economia Política: uma introdução crítica/ José Paulo
Netto e Marcelo Braz. – 8° ed. São Paulo: Cortez, 2012.
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Educação e mundo do trabalho:
uma análise dos processos formativos
voltados para a classe trabalhadora no
âmbito da educação profissionalizante,
com enfoque no sistema S de ensino
Introdução
Para partir do conceito de reflexão acerca da funcionalidade desse sistema
educacional é necessário, então, apresentar o Sistema S, sua história e as suas
especificidades quanto à formação curricular.
O Sistema S é uma corporação educacional formada por nove entida-
des (Sesi, Senai, Sesc, Senac, Sebrae, Senar, Sescoop, Sest e Senat) que
se ligam a determinadas áreas de conhecimento profissionalizante. A sua
estruturação no país se deu em 1942, seus objetivos incluíam a formação de
uma rede de ensino capaz de aumentar a produtividade da mão-de-obra e
oferecer serviços culturais e de lazer, tendo financiamento garantido, mas
sem depender diretamente da gestão estatal.
Tendo funcionamento como organização “paraestatal”, ou seja, recebendo
financiamento público através de taxação obrigatória paga por empresas, vi-
sível quando empresas de comércio recolhem 1,5% de impostos para o Sesc,
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Então, mais uma vez, o caráter profissional do ensino era separado de uma
formação plena, servindo apenas como forma de suprir as demandas indus-
triais crescentes, gerando novamente uma separação evidente entre membros
de diferentes classes, caracterizando o ensino superior como privilégio somente
disponível para sujeitos com boa condição financeira.
A educação profissional esteve muito presente no período de desenvolvi-
mento industrial brasileiro, o que contribuiu para sua caracterização como par-
te essencial da organização educacional do país. Essa essencialidade é posta
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Gramsci e o trabalho
Para contextualização, é importante ressaltar que Antonio Gramsci fez suas
argumentações tendo em vista os desafios postos pela Revolução Russa e pela
crise vigente na Itália da década de 1920. Entretanto, nas crises recorrentes
do capitalismo e principalmente depois da queda do socialismo real, questões
básicas sobre seu pensamento retornaram.
Então, é pautado nessa retomada de ideias que será construído este tó-
pico. As preocupações do marxista italiano sobre a educação profissionali-
zante na Itália do século XX ainda, de certa forma, são pertinentes para a
realidade do século XXI?
Antes de tudo, é necessário entender que o homem se distingue dos animais
por realizar o processo de trabalho, sendo esse uma forma de obter a subsis-
tência. Dentro da sociedade capitalista (caracterizada por Marx pelo trabalho
assalariado), haveria uma distinção “pois há aqueles, dentre eles, que traba-
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lham e nada adquirem e aqueles que adquirem qualquer coisa e não trabalham”
(MARX & ENGELS, 1999, p. 35). Os primeiros representam a classe trabalha-
dora que possui como propriedade sua força de trabalho, já os segundos seriam
a classe burguesa que detém os meios de produção.
O sistema capitalista move-se através da dicotomia entre as duas classes fun-
damentais, uma vez que a apropriação daquilo que Marx nomeou de mais-valia
(também entendida como o lucro da empresa) é gerada através a exploração da
classe trabalhadora e de sua força de trabalho.
Porém, para que seja possível a manutenção do sistema, é necessário que
haja a garantia da hegemonia pela burguesia não somente na economia, mas
também na cultura. Tendo isso em vista, Gramsci desenvolve o conceito de
hegemonia burguesa relacionado ao conceito de que a sociedade civil seria “o
conjunto dos organismos vulgarmente chamados de privados [...] e que cor-
respondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a
sociedade” (GRAMSCI, 1972, p. 16).
A discussão de que o Estado deveria prover escola era intrínseco ao
debate sobre “escola comum, única e desinteressada”, dos dois sairia a crí-
tica à formação humanista/científica oferecida à elite burguesa e à forma-
ção pragmática/técnica oferecida à classe trabalhadora. Para Nascimento e
Sbardelotto (p.6, 2008):
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[...] o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer aos
discentes) desinteressado, ou seja, não deve ter finalidades práticas
imediatas ou muito imediatas, deve ser formativo ainda que “instrutivo”,
isto é, rico de noções concretas. (GRAMSCI, 2001, p.49, aspas do autor).
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O trabalho deve ser visto como um projeto dignificador para o sujeito, não
somente a sua forma de subsistência. Dessa forma, a sua ocupação não será
apenas aquela que o mercado necessita em um momento econômico específico,
mas sim um ofício que atenda suas particularidades e escolhas formativas.
Assim, é recomendado que toda forma de educação desenvolva-se de forma
que possibilite a potencialização das aptidões do discente, priorizando o seu ca-
ráter independente e capaz de decidir acerca de sua formação educacional, sem
que haja uma seleção baseada em questões de interesse das classes dominantes.
Gramsci, ao citar os “aparelhos privados de hegemonia”, compreende que
o sistema educacional, em todos os seus níveis, pode ser utilizado como meio
gerador de coerção social, o que leva os interesse privados de um pequeno grupo
dominante a serem propagados como benefícios para a população.
Tendo isso em vista, o Sistema S e a educação puramente profissionalizan-
te, são ainda mais sensíveis ao caráter do aparelho de hegemonia, já que uma
grande parte de seus objetivos incluem a capacitação rápida de uma mão de
obra necessária ao mercado. Sendo assim, ocorre o atendimento de demandas
mais urgentes da burguesia, sem levar em conta a formação intelectual plena da
classe trabalhadora envolvida no processo.
É possível perceber, diante do exposto, que a educação ofertada pelo Estado
deve ser separada do conceito de fator coercitivo, sendo associada então ao ideal
de ambiente de aprendizagem plena, capaz de atender as diferentes demandas
dos sujeitos sociais. Logo, as instituições precisam estar aptas a preparar o aluno
para a vida acadêmica e para os encaminhar à vida profissional, cabendo ao
discente decidir o que se encaixa melhor em sua vivência e aptidões.
Considerações finais
Através da pesquisa bibliográfica, foi possível avaliar o desenvolvimento da
educação profissional no Brasil, levando em consideração o contexto histórico
do país e os interesses envolvendo a expansão dessa modalidade de ensino.
É possível perceber, portanto, que a formação do trabalhador é associada
principalmente ao interesse do mercado em determinado momento histórico
e vem despertando preocupação de grandes pensadores como Gramsci desde
o século passado. Então, torna-se necessária uma avaliação da influência da
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Referências
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transparencia.sebrae.com.br/p/ sistema-sebrae/execucao-orcamentaria/balanco-
orcamentario?ano=2016> Acesso em: 05 set. 2018.
BRASIL (1971). Lei n°. 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases
para o ensino de 1° e 2o graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União
- Seção 1 – 12 de agosto 1971, Página 6377 (Publicação Original). Sistema de
Legislação Informatizada. (LEGIN). Disponível em: <http://www2.camara.leg.
br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5692-11-agosto-1971-357752-publicacaooriginal-
1-pl.html>. Acesso em 25 de novembro de 2018.
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Entre o constitucionalismo liberal e o
social – a defesa dos direitos sociais do
trabalhador em contraposição aos meios
que garantam a celeridade na tramitação
dos processos na Justiça do Trabalho
1. Introdução
A atual conjuntura política brasileira implementa uma rediscussão acerca da
colisão entre preceitos da livre iniciativa e a proteção a direitos sociais. Com o
escopo de demonstrar que esta temática alça novos meandros com a inserção do
poder estatal para solucionar este conflito, o presente trabalho tenciona analisar
sobre o modelo engendrado pela Justiça do Trabalho brasileira, através do CSJT
que para sistematizar de forma pragmática a razoável duração do processo frente
às demandas de sua alçada, elegeu como método primordial a via conciliatória.
Sendo assim, emerge como problemática a dicotomia existente entre a uti-
lização da mediação e da arbitragem como meios exclusivos à garantia da ra-
zoável duração do processo em detrimento do dever deste mesmo Estado Juiz
para resguardar Direitos Sociais trabalhistas constitucionalmente garantidos,
circunstancia que se indaga: será que a tão festejada agilidade por meio dos
acordos resulta numa tutela jurisdicional justa?
3 Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
Titular do Curso de Direito da UFRN. Professor na PPGD na UFRN. Desembargador Presidente do
Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região.
4 Mestranda no PPGD da UFRN, orientanda de Bento Herculano Duarte. Professora Titular do
departamento de Direito na Estácio de Sá. Especialista em Direito Constitucional.
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sua ambição pelo lucro total para ‘autorizar’, a “ intervenção estatal em favor
das partes mais débeis das relações sociais” (Souza Neto, Sarmento, 2012, p.
58), conferindo-lhes, num plano teórico a promoção da igualdade material, que
segundo estes mesmos autores era revelada “por meio de políticas públicas redis-
tributivas e do fornecimento de prestações materiais para as camadas mais po-
bres da sociedade, em áreas como saúde, educação e previdência social” (Souza
Neto, Sarmento, 2012, p. 58).
A instituição de um Órgão Internacional, através do Tratado de Versal-
les, trouxe recomendações a serem obedecidas por seus signatários, as quais
tratavam de exigências mínimas para conferir um viés protetivo às classes ou
grupos sociais mais fracos ou necessitados, delimitando de forma expressa o
direito à seguridade social e o direito ao trabalho e à proteção contra o desem-
prego (Comparato, 2010, p. 242).
Em que pese a evolução dos princípios de proteção social com enfoque no
trabalhador ter-se desenvolvido sob o manto do Estado Social, o poder consti-
tuinte encontrava-se totalmente submisso à ideologia do liberalismo burguês,
razão pela qual a introdução destes preceitos sociais protetivos foi inserido de
modo homeopático pelo constituinte originário.
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4. Conclusão
O modelo do Estado Liberal instituído no primado da legalidade tinha
por objetivo precípuo a limitação na atuação estatal frente a livre iniciativa
e as escolhas individuais razão pela qual a liberdade – esculpida num padrão
legal individualista, racional e de livre concorrência - foi utilizada como
meio para, utilizando-se do discurso na riqueza do trabalho, subjugar uma
massa de trabalhadores objetivando apenas o enriquecimento cada vez mais
crescente da classe dominante.
O trabalho ganha dois vieses, um primeiro no campo da linguagem enfeita-
do por um discurso de livre iniciativa, e outro, no campo pragmático, revelado
pelos olhos de uma classe operária cada vez mais pobre e exaurida de recursos,
para quem o labor extenuante deriva da necessidade de subsistência e do temor
em perder o emprego para outro operário com esta mesma visão de ganho.
Percebe-se, portanto, que a crise do constitucionalismo liberal ganhou
contexto e força com a união da pequena burguesia e as massas proletárias
sucumbentes no processo atroz do liberalismo econômico trazendo o perigo
de uma nova ruptura revolucionário em desfavor dos poderes constituídos,
razão pela qual a as teorias socialistas serviram apenas de pano de fundo
para criação de um Estado Paternalista no afã de submeter a vontade das
massas ao controle estatal.
Em que pese a crítica sugerida para o romper do constitucionalismo libe-
ral fundado no individualismo, racionalismo e legalismo, para que os fatores
reais do poder pudessem romper este paradigma foi introduzido um consti-
tucionalismo social que conferiu uma espécie de enriquecimento dialético
no afã de conciliar o crescimento econômico e a busca pela justiça social e
do bem-estar coletivo.
Em outras palavras, ao esmaecer a visão individualista com discurso na le-
galidade, o ideal socialista trouxe uma atenção das autoridades constituídas
para a proteção de direitos mínimos em favor da massa desvalida, cujo discurso
foi utilizado no Brasil, como forma de garantia da perpetuação das classes oli-
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Referências bibliográficas
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Experiência de atuação em CREAS de
um município de pequeno porte no RN:
uma análise das dificuldades enfrentadas
pelo advogado enquanto técnico SUAS
1. Introdução
A assistência social foi definida pela Constituição Federal de 1988 como
política pública não contributiva, oferecida a quem dela necessitar. Um de
seus objetivos é a proteção à família, à maternidade, à infância, à adoles-
cência e à velhice. Neste sentido, a convivência social, o protagonismo e a
autonomia são capacidades que devem ser trabalhadas, em conjunto a outras
políticas públicas, para garantir segurança socioassistencial aos usuários. Nes-
ta política está inserido o Centro de Referencia Especializado em Assistência
Social – CREAS, objeto deste estudo realizado em âmbito municipal, através
de pesquisa participante com intuito de analisar a atuação dos técnicos do
CREAS, identificar suas competências e dificuldades, apontar os desafios en-
frentados pela equipe técnica jurídica do CREAS e demonstrar a importância
da inserção de temas socioassistenciais no currículo do acadêmico de Direito
7 Pós- graduanda em Direito Civil pelo Complexo Educacional Faculdades Metropolitanas Unidas-FMU/
Laureate -Coordenadora do CREAS - Membro do NETIN/UFRN- [email protected]
8 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN - Técnica do
CREAS - Membro do NETIN/UFRN - [email protected]
9 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN . Coordenadora do
NETIN/UFRN - [email protected]
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Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, inde-
pendentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e
a promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios
de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família,
conforme dispuser a lei.
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à vítimas (que deve ser realizado por psicólogos clínicos) e estudos sociais
sobre pedidos de guarda e adoção (sendo que estes devem ser realizados
pelas equipes técnicas das varas de infância).
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tuições de Ensino Superior em preparar o bacharel em direito para as carreiras
jurídicas de forma material e processual, desconsiderando a área socioassistencial.
5. Resultados e conclusões
Percebe-se que o fato de pertencer a um município de pequeno porte facilitou
a integração com as equipes dos demais segmentos de atuação municipal na área.
Um desafio é a não regionalização de equipamentos de alta complexidade, como
abrigos e casas de passagem. Nota-se que a politica de assistência social apresen-
ta avanços técnico-normativos acompanhados da necessidade de atualização e
capacitação para toda a rede de proteção intersetorial, bem como as voltadas à
assistência social, saúde, educação, delegacias, Conselho tutelar, judiciário e Mi-
nistério Público. Assim, verifica-se que é corriqueira a busca pelo cumprimento
das normativas constantes nos manuais de orientações técnicas e de uma atua-
ção comprometida com a efetivação de direitos, no entanto, há muitos desafios
municipais, estaduais e federais a serem superados para a execução da política
socioassistencial em sua totalidade, de modo a atender a eficácia esperada.
Referências bibliográficas
FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
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Nada a temer! Precisamos resistir!
A contrarreforma trabalhista
e a precarização do trabalho
1. Introdução
Tendo em vista que o sistema capitalista tem ampliado e metamorfoseado
suas formas de reprodução, traz consigo uma série de mudanças que repercu-
tem não apenas na esfera econômica, mas também, política, social, cultural,
ideológica e no âmbito da subjetividade humana, no que concerne aos valores,
posicionamentos éticos, sensação de prazer e satisfação. Ou seja, provoca um
redimensionamento na totalidade da vida do ser social, principalmente, a partir
da década de 1970, com o conjunto de transformações operadas com a chama-
da crise estrutural do capital.
Em uma conjuntura de crise, é imprescindível que os detentores dos meios
de produção desenvolvam estratégias de proteção do seu interesse fulcral, que
é a acumulação de capital. Dentre elas, acionar o Estado, que de mão invisível
passa a atuar no âmbito dos direcionamentos socioeconômicos, bem como, na
perspectiva de organização, gestão e controle da força de trabalho.
1 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais (PPGSSDS-UERN).
Docente na Faculdade do Vale do Jaguaribe.
2 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pós-
graduada em Políticas Públicas da Assistência Social pela Faculdade Católica N. Srª. das Vitórias.
Discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais (PPGSSDS-UERN).
3 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais (PPGSSDS-UERN).
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Importa mencionar que, conforme Mattoso (1995), para maioria dos traba-
lhadores, a flexibilização dos contratos de trabalho não gera apenas o rebaixa-
mento do salário, mas também, a restrição ou mesmo a eliminação do acesso à
seguridade social e à assistência médica, direitos expressos em lei, mas que tem
sido apropriados pelo mercado privado, tornando o acesso cada vez mais limitado.
Por fim é imprescindível aludir ainda que a precarização do trabalho não
tem se restringido a esfera privada, e sim, tem se espraiado para esfera estatal.
Sendo assim, verifica-se dentro do Estado a terceirização da mão de obra, a pés-
sima estrutura de trabalho, a redução da massa salarial, a subtração de diretos
sociais, o aumento da produtividade, dentre outros reflexos negativos.
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Utilizando Karl Marx como aporte teórico para direcionar esse estudo, te-
mos que ele caracteriza o trabalho, de um ponto de vista mais amplo, como a
interação entre o homem e a natureza, com o objetivo de transformar a nature-
za nos bens necessários à sobrevivência do homem.
Conforme a tradição marxista, o trabalho é considerado a fonte de toda a
riqueza, e também, de prazer e realização humana. A categoria ontológica do
marxismo permite entender que ao realizar o trabalho o ser humano abando-
na a dependência para com a natureza e adentra no universo especificamente
humano. Dessa forma, o trabalho é produto do homem e, ao mesmo tempo,
produtor do ser, da cultura, da civilização, objetivando relações de produção
e reprodução social. Logo, trabalhar tem o significado de garantir as condi-
ções objetivas e subjetivas para a manutenção e o desenvolvimento da nossa
existência e, por isso, a satisfação deveria ser um sentimento dele proveniente.
Entretanto, não é dessa maneira (conforme veremos adiante, nos apontamentos
sobre a conjuntura brasileira contemporânea) que se procede a relação humana
e o trabalho no modo de produção capitalista, que é polarizada em duas classes:
os que detêm os meios de produção e os que dispõem da força de trabalho.
Nesse sentido, o trabalho não deve ser analisado apenas pelas suas diferentes
formas e/ou pelo seu aspecto técnico. É imprescindível considerar também as
relações sociais nas quais ele ocorre. Inclusive, podemos afirmar que essa é uma
das grandes contribuições de Marx: problematizar a historicidade das formas
sociais e como o processo de produção técnico e material se dá em um determi-
nado estágio de desenvolvimento das forças produtivas.
Marx contrapõe o trabalho do ponto de vista do processo simples ao modo
como deve ser examinado na perspectiva específica do modo de produção ca-
pitalista, ou seja, de um ponto de vista historicamente determinado. Portanto,
quando se discute a questão da produção, é preciso situar historicamente a que
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Aqui, cabe a crítica ao uso do termo reforma, o qual se espera ser utiliza-
do para mencionar situações em que algo foi melhorado. Concordamos com
Behring; Boschetti (2007) quando explicam que contrarreforma se adequa me-
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que representa 6,5 milhões de trabalhadores subocupados por insuficiência de
horas trabalhadas e 13,0 milhões de desocupados.
Observamos que os índices destacam a precarização das formas de trabalho. A
informação que pessoas que trabalham 40 horas semanais e que gostariam de tra-
balhar por um período ainda maior, expressa de sobremaneira o quanto as pessoas
são consideradas como coisas na sociabilidade capitalista. E o próprio trabalhador
não reconhece o grau de expropriação a que está submetido, visto que o trabalho
é tido enquanto um mal necessário, como um fardo que é preciso carregar. Como
também, por estar inserido dialeticamente em um processo de negação da sua pró-
pria vida, pois entende que ao trabalhar mais horas poderá adquirir mais capital.
Nesse contexto, Alves (2007) esclarece que essa condição está intrinseca-
mente ligada ao surgimento do sistema capitalista:
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5. Conclusão
As mudanças ocorridas no mundo do trabalho não são resultado de um
processo recente, nem de uma realidade exclusiva nacional. E sim, a par-
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Referências bibliográficas
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O atual modo de gestão do capital
e a retomada da escravização
na contemporaneidade
Introdução
O presente texto aborda o liame entre a retomada da escravização na con-
temporaneidade e o atual modo de gestão do capital, do qual resulta a inten-
sificação do processo de precarização nas relações de trabalho, que, por sua
vez, incita a retomada do regime escravista na atualidade, tema de insofismável
relevância. O estudo também esboça possibilidades de resistência e superação
desse modelo perverso.
Visa-se demonstrar a correlação entre o modo de gestão do capital e a con-
figuração do trabalho escravo na atualidade. Inicialmente, desvela-se a correla-
ção entre o contexto de crise generalizada com a precarização das relações de
trabalho na contemporaneidade. Em seguida, apontam-se os elementos deter-
minantes da intensificação da precarização das relações de trabalho, para, por
fim, delinear as condições de existência, resistência e superação do trabalho
escravo no tempo presente.
Segue-se o método da revisão bibliográfica. Primeiramente, fez-se breve aná-
lise do atual modo de gestão do capital, discorrendo sobre movimento de busca
pela independência em relação ao modo de produção, estágio denominado de
capitalismo financeiro. A partir dessa análise, estabelece-se a relação entre o
referido movimento e o agravamento dos dissensos mundiais, perpassando pelas
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4 A expressão “deslocados forçados” se refere ao grupo de sujeitos que por motivo de sobrevivência,
foram obrigados a deixar seu local de origem, seja o deslocamento no âmbito do próprio Estado, seja
de um Estado para outro.
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À medida que a sociedade se torna cada vez mais plural em termos sócio-
culturais e religiosos, assiste-se a manifestações públicas de estigma,
intolerância, preconceito e xenofobia. [...] os deslocados em geral chegam
ao Brasil, abalados psicologicamente, espoliados da consciência de sua
condição de destinatário de direitos humanos.
Esse número, quase em sua totalidade, é reflexo das guerras espalhadas ao redor
do mundo, considerando aqui o conceito mais amplo trabalhado em tópico anterior
sob o título de guerras híbridas. Assim, tem-se um conjunto de fatores que atuam de
forma determinante para a sujeição dessas pessoas às condições mais degradantes e
indignas, criando um ambiente fértil para toda sorte de exploração.
Primeiramente, tem-se a fragilidade ocasionada pelo brusco rompimento dos
laços afetivos e culturais do sujeito. Em seguida, essa fragilidade é ampliada pela
hostilidade ou pela falta de hospitalidade com a qual são recebidos. Como fator
chave, tem-se também o desprovimento de condições objetivas de vida, como
recursos financeiros, por exemplo. E como quarto fator preponderante, tem-se o
fato de que eles mesmos, em virtude desse processo que os vulnerabiliza, não se
concebem como sujeitos de direitos tais quais todos os demais seres humanos.
Por parte desses sujeitos praticamente não haverá um movimento de resis-
tência à exploração imposta pelo modo de produção capitalista, em virtude da
sua condição de vulnerabilidade.
O grande contingente de refugiados existente na atualidade com a vulnera-
bilidade que lhes é peculiar, bem assim, a apropriação pelo capital das recentes
inovações tecnológicas, resultam no recrudescimento do exército industrial de
reserva, potencializando as condições para a precarização das relações de traba-
lho hodiernas, aspectos que serão abordados a seguir.
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Como visto, a busca incessante pela maximização das taxas de lucro, carac-
terística intrínseca do capitalismo, o obriga a manter uma relação de constante
competitividade na qual, evidentemente, o trabalhador será vulnerabilidade e
precarizado, constante e crescentemente, tendo em vista que seus direitos his-
toricamente conquistados não se coadunam com a lógica perversa da máxima
extração da mais-valia, inerente ao atual modelo de produção.
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Ora, como falar em uma real autonomia coletiva de vontade em uma relação
desequilibrada por natureza e num contexto de crescente excedente de oferta
de mão de obra no mercado? Essa reforma nada mais é que um conjunto de
medidas que visam a sustentação do capital, extraindo da classe trabalhadora
todo o mais-valor que conseguir, ignorando por completo a humanidade do
trabalhador enquanto ser social, bem como suas necessidades, desde que estas
não atendam aos seus interesses.
No limite, esse contexto de intensificação da precarização das relações de
trabalho propicia a retomada do trabalho escravo contemporâneo. Conforme a
ONG Repórter Brasil:
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6 cf. <https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/trabalho-escravo/combate-ao-trabalho-
escravo/gefm.aspx.>
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Considerações finais
No presente texto, demonstra-se o vínculo entre a retomada da escravização
na contemporaneidade e o atual modo de gestão do capital, que, por meio da
promoção de uma crise generalizada, vulnerabiliza os indivíduos, intensifica o
processo de precarização nas relações de trabalho, com a retomada do regime
escravista na atualidade.
A crise é inerente e também arma do capitalismo. No entanto, na atualida-
de, o capitalismo promove a crise como modo de galgar uma superacumulação
de poder e de capital, intensificando as desigualdades sociais em nível global.
As crises, conjuntamente com as inovações tecnológicas, manipulam o exército
industrial de reserva, sujeitando a classe trabalhadora a condições de traba-
lho e de vida cada vez mais precárias. Nessa perspectiva, vê-se que as guerras
retratam as crises do capital e vê-se mais além: as crises são o modo atual de
expansão do capital. O capital fomenta a crise e colhe a dominação.
A crise gera recrudescimento na quantidade de deslocados em escala global,
pessoas suscetíveis à precarização e escravização. Separados do seu contexto
social, os deslocados veem-se fragilizados em razão de: a) do rompimento for-
çado de seus laços sociais, afetivos e culturais; b) eventual hostilidade ou falta
de hospitalidade nos locais de destino; c) ausência de condições objetivas de
sobrevivência; d) findam por não se perceberem como sujeitos de direitos, como
os demais seres humanos. Assim, os deslocados tornam-se vítimas fáceis para o
recrudescimento da precarização e da escravização.
O processo de vulnerabilização decorre da busca do capital financeiro de
se libertar do modo de produção, fator desencadeante de guerras - civis, hí-
bridas e comerciais -, e de deslocamentos das pessoas afetadas. Isso reduz
o patamar civilizatório mínimo e se constitui em fator determinante para a
intensificação da precarização do trabalho e para a configuração do chamado
Trabalho Escravo Contemporâneo.
Essa precarização é impulsionada pela ingerência do Estado na desregula-
mentação dos direitos trabalhistas (a chamada modernização normativa) e pelo
papel que o avanço tecnológico exerce nessa conjuntura, viabilizando inclusive
a exploração do trabalho mediado por plataformas digitais. Os ganhos de pro-
dutividade gerados pela inovação tecnológica são apropriados pela classe domi-
nante em detrimento da classe trabalhadora. Além disso, as novas tecnologias
ampliam o exército industrial de reserva, o que favorece as condições para a
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Referências
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O Positivismo Jurídico da Periferia do
Capital na Justiça Trabalhista da Paraíba1
Introdução
No Tribunal Regional do Trabalho da cidade de João Pessoa na Paraíba;
localizado no Shopping Tambiá, no centro da cidade; são discutidos e julgados
conflitos trabalhistas de várias espécies. Sabendo disso, me encaminhei para lá
para continuar minha pesquisa, dando início à minha quinta visita ao local. Ao
entrar na “sala 1” da segunda vara, pude assistir à primeira audiência do dia. O
caso era de um rapaz, ex-revendedor de uma empresa de refrigerantes.
Ele já estava em sua segunda audiência, na qual a primeira já havia sido
longa e uma proposta de conciliação havia sido rejeitada. O revendedor, assim
como sua testemunha, trabalhava utilizando seu próprio carro, a fim de cum-
prir metas estabelecidas pela empresa antes de serem demitidos. Recebia seu
salário em dinheiro, pessoalmente, e não tinha carteira assinada. Trabalhava
das sete horas às dezesseis, de segunda à sexta com um intervalo de almoço
de apenas trinta minutos.
A audiência foi marcada por uma série de formalidades, perceptíveis du-
rante a maioria das audiências pesquisadas, como a demarcação específica do
lugar onde cada parte envolvida sentaria; as roupas dos juristas e o modo como
se comunicavam, utilizando uma linguagem técnica e rebuscada; além de um
processo burocrático de identificação das pessoas envolvidas no processo, nas
perguntas feitas à testemunha e na tentativa de definição de uma proposta de
acordo entre as partes.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Mundo do trabalho e reformas neoliberais do III Congresso
Internacional Direito e Marxismo; Mossoró, Rio Grande do Norte, 07 a 09 de novembro de 2018.
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
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Porém, a sessão também foi marcada por uma série de informalidades que já
se caracterizavam como algo comum naquele ambiente, como a postura dos ju-
ristas, sempre mais confortável com o lugar, sendo a troca de cordialidade entre
eles dentro da própria audiência algo muito comum, pois cumprimentavam e
conversam sobre todos os tipos de assuntos, desde o futebol do final de semana,
até as notícias mais importantes da política brasileira. Além disso, a sessão era
constantemente atrapalhada devido às conversas externas e ao fato de entrarem
e saírem pessoas da sala de audiência constantemente.
As relações de classe também permeavam todo o ambiente, e não eram só
mostradas nas vestimentas dos juristas em relação às dos não-juristas, mas tam-
bém na linguagem e no comportamento. Essa relação também era perceptível
quando se observava também a diferença entre a parte reclamada, represen-
tante de uma empresa, também vestido formalmente e mais familiarizado com
o ambiente e a parte reclamante, um trabalhador simples, que estava ali para
requisitar seus direitos que lhe foram feridos, se comportando timidamente e
usando uma linguagem informal para se comunicar.
Por fim, a audiência terminou subitamente. Não se pode entender muito
bem o que havia acontecido ali. Na maior parte do tempo os interesses das
partes eram colocados em segundo plano pelos juristas e a audiência ficou como
algo secundário, depois de todas as coisas que aconteceram e que não envolvia
o litígio, como todas as informalidades que impediram com que a audiência se
desenvolvesse. Notavelmente, a parte mais prejudicada ali foi o ex-revendedor
da empresa de refrigerantes, que no final, sem que fossem discutidos seus direi-
tos, optou por concordar com uma proposta de acordo com a companhia.
Ele estava desempregado há quase um ano, sua esposa precisava urgente-
mente realizar uma cirurgia e por isso, necessitava do dinheiro da proposta de
acordo. Não conseguiria sustentar aquele litígio e esperar por uma demorada
decisão da Justiça do Trabalho, apesar de ter certeza de que tinha direitos que
foram feridos e que seria ressarcido com um valor muito maior do que teve que
aceitar naquele acordo. O rapaz precisava do dinheiro e por causa disso, nem
sequer se importava em ter seus direitos atendidos depois de serem feridos.
As conversas cordiais, o barulho, a música do shopping, os anúncios no
sistema de som, a circulação de pessoas de forma desordenada nas salas de
audiência, as negociações de propostas de acordos entre empregadores e empre-
gados onde cada um disputava para obter os maiores benefícios possíveis e os
contrastes; todos esses elementos me fizeram pensar no Tribunal de Justiça do
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Trabalho como algo semelhante a uma feira, onde se vendem todos os tipos de
mercadoria, e onde vendedores e compradores se veem travados num embate
sobre o preço dos produtos até que cheguem em um acordo.
Tais elementos acabam por desconstruir ainda mais as ideias, formuladas
pelo Positivismo Jurídico e reproduzidas no mundo do Direito, de um Tribunal
como algo extremamente formal, onde discutem-se casos e leis, a fim de solu-
cionar conflitos a partir de um ideal de justiça. Mesmo naquele ambiente que
visava defender os direitos das trabalhadores e trabalhadores, eles acabavam
sendo totalmente prejudicados por um sistema marcado por um Positivismo
Periférico com características próprias e contradições que impedem com que
eles possam se desenvolver como classe trabalhadora.
Dessa forma, o presente trabalho se debruça especificamente sobre o tema:
“Positivismo Jurídico da Periferia do Capital na Justiça Trabalhista da Paraíba”.
Ele foi desenvolvido, guiado por uma inspiração etnográfica, dentro do Tribunal
Regional do Trabalho da 13ª Região no Fórum Maximiano Figueiredo, locali-
zado nas instalações do Shopping Tambiá, no centro da cidade de João Pessoa,
estado da Paraíba. E teve início em Agosto de 2017 quando desde então, foram
realizadas cinco visitas e assistidas ao todo, quinze audiências.
Sendo assim, foram acompanhadas atividades na Justiça Trabalhista da Pa-
raíba, com o objetivo de identificar e problematizar as expressões do Positivismo
Jurídico Periférico no seu âmbito, se ocupando – não de uma análise das nor-
mas jurídicas em si, mas – das relações sociais que se desenrolam na práxis do
campo jurídico. Desse modo, busca-se perceber principalmente: a postura dos
juízes, das partes, das testemunhas e dos advogados; os formalismos e informa-
lidades que ali se desenrolavam; a linguagem e o uso da retórica; as vestimentas
e linguagem corporal; o espaço físico; o recurso à lei e à ideia de neutralidade;
como também as relações de classe, de gênero, raça e sexualidade.
Os resultados recolhidos e abordados foram discutidos a partir de uma for-
mação baseada na tradição Marxista, dialogando também com autores de uma
formação teórica distinta, mas que contribuem para o questionamento das re-
lações sociais que se estabelecem no campo jurídico. Relações essas, que são
essenciais para reprodução da sociedade de classes capitalista junto com todas
as suas contradições.
Sendo assim, esse artigo divide-se em quatro partes seguidas de algumas
conclusões. Na primeira parte, desenvolvo sobre o conceito de Positivismo Jurí-
dico Periférico e todas as suas características. Na segunda, trabalho o contraste
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como uma variedade, entre muitas outras, do ato jurídico em geral, e que assim
ocultam que a forma jurídica se baseia materialmente no ato da troca entre
proprietários de mercadorias.
Sendo assim, a noção de que todas as pessoas são “livres” e “iguais”, a des-
peito de uma ordem social exploratória e desigual, é uma contradição que se
expressa na totalidade da forma jurídica:
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2. Violência e Cordialidade
O Fórum Maximiano de Figueiredo, onde a pesquisa foi realizada, se localiza
no centro da cidade de João Pessoa. Partindo da análise da localização desta e
da maioria das instituições de justiça e do poder estatal da capital paraibana
associada à minha experiência, como pesquisador guiado por uma inspiração
etnográfica, observa-se que a distância existente entre esses centros e as pe-
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que estão preparados para entrar e operar dentro do âmbito jurídico, os juristas
como por exemplo: juízes e advogados – e os “profanos” – aqueles que normal-
mente não fazem parte do ambiente, ou seja, os não-juristas que estão lá para
resolução de algum conflito pessoal.
Essa segregação é perceptível principalmente quando observada as expres-
sões utilizadas na fala, além da linguagem corporal e o modo de se vestir. Os
“eruditos” demonstram-se confortáveis no ambiente, estão sempre bem vestidos,
geralmente de ternos, roupas formais e até mesmo toga, no caso dos juízes; re-
presentando inclusive suas condições sociais que os permitem adquirir tais tipos
de vestimentas, além de uma relação clara de poder. Ademais, esses “eruditos”
costumam ser cordiais com seus pares; os “doutores” e “vossas excelências”, ou
seja, aquelas pessoas as quais já conhece e se identifica, utilizando sempre uma
linguagem coloquial.
Dessa forma, procura-se promover ainda mais, por meio uma elite jurídica
criada a partir de uma cordialidade violenta, o Direito como um campo “autô-
nomo” e “neutro”, afastado das outras esferas sociais. Essa elite é reforçada por
um processo em movimento de “reforço circular” do próprio campo jurídico,
de acordo com Bourdieu (2011, p. 234). Seguindo o autor, este campo reduz os
“profanos”, que perdem a capacidade de gerir seus próprios conflitos, ao estado
de clientes dos “eruditos”.
Sendo assim, o Direito cria novas necessidades jurídicas que transforma em
capital a competência dos jurisperitos para gerir esses conflitos, aumentando o
formalismo e reforçando a necessidade de seus serviços. Assim, os não-especia-
listas são excluídos do campo jurídico e cada vez mais se tornam dependentes
dos serviços dos jurisperitos, se vendo forçados a recorrer a estes profissionais
(BOURDIEU, 2011, p. 234).
Em relação ao comportamento dos “profanos”, como o ex-revendedor de
refrigerantes, percebe-se certo constrangimento diante de todo o poder e sim-
bologia emanada daquela instituição jurídica, principalmente nas varas onde
aconteciam as audiências. Essas pessoas eram sempre de poucas palavras e olha-
res inquietos. Além disso, apesar da tentativa de se vestirem de uma maneira
parecida com a dos juristas, tinham vestimentas menos formais e utilizavam-se
de uma linguagem convencional, mais simples e usual.
Isso revelava, na sua maioria, a realidade desses “profanos”, geralmente de clas-
ses sociais mais baixas, trabalhadores que estavam ali para solucionar algum tipo
de conflito com as empresas para as quais trabalham ou já trabalharam. Dessa
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conflitos, ele é extremamente cordial para com as pessoas que o tem como
um ambiente familiar, ou seja, os juristas que o compõem. Essa cordialidade
se expressa também nas salas de audiência, quando várias vezes os jurisperitos
demonstravam uma relação amigável entre si. Era comum que em uma conversa,
advogados debatessem sobre as últimas notícias da política, do futebol e até
mesmo sobre suas vidas pessoais e seus familiares.
Essas conversas aconteciam antes, depois e até durante as audiências, prin-
cipalmente naquelas em que os juízes colocavam à disposição das partes para
negociar uma proposta de acordo. Neste momento, era corriqueiro surgirem
diversos diálogos que não envolvia o conflito em si, que estava ali para ser
solucionado segundo os próprios moldes do Direito positivo. E desse modo, a
cordialidade característica da ideologia Positivista Periférica entre os juristas
violentava de forma relevante aquelas pessoas que estão lá para resolução desses
conflitos próprios, mas que em diversas vezes, são colocadas em segundo plano.
Isso acontece porque a burocracia no Brasil se desenrola por meio dos pro-
cessos que são movidos a partir de interesses particulares e não de interesses
objetivos, e onde também as relações impessoais que caracterizam a vida no
Estado burocrático e o esforço para que se assegurem as garantias jurídicas aos
cidadãos são postas em segundo plano (HOLANDA, 2006). Sendo assim, essa
burocracia se desenvolve de uma maneira diferente nos países periféricos, como
o Positivismo Jurídico; porém, não deixa de operar contundentemente para a
reprodução da sociedade de classes e suas incoerências.
Dessa forma, Holanda (2006) explica que a transição para o trabalho in-
dustrial exigiu a abolição da velha ordem familiar no ambiente de trabalho,
onde existia uma relação familiar e hierárquica natural entre os patrões e seus
aprendizes. Porém, a partir da implantação do moderno sistema industrial no
Brasil, surgiu uma dicotomia brusca entre os empregadores e empregados que,
a partir de então, teriam funções distintas. Foi excluída, portanto, a intimidade
que havia entre eles e os antagonismos de classe foram assim, estimulados.
Isso facilitou a exploração do trabalhador por parte de seus empregados em
troca de salários baixíssimos no moderno sistema industrial. Porém, por ter sido
um processo que, no Brasil, aconteceu de uma forma rápida e desordenada,
as relações sociais nos ambientes públicos permaneceram ligadas aos laços de
afeto e de sangue. Portanto, esse vínculo de cordialidade e familiaridade que
envolvem os juristas nas salas de audiências acabam se reproduzindo como um
aspecto próprio do Positivismo Jurídico Periférico.
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Dessa forma, tal vínculo se estende também aos estudantes de Direito, que ge-
ralmente ocupam as varas para acompanhar algumas audiências, como eu. Quando
notam que somos estudantes; os juízes, mas principalmente os advogados e os es-
crivães; passam a demonstrar um tratamento diferenciado para conosco. Esse trata-
mento se dava de uma maneira muito atenciosa, quando buscavam conversar sobre
o desenvolvimento dos estudos, preocupando-se, inclusive em nos explicar muitas
situações e demonstrar especificidades dentro daquele âmbito, o qual ainda não
conhecíamos muito bem e não estávamos tão familiarizados quanto eles.
Essa relação de cordialidade dos juristas para eles mesmos e para com os
estudantes, futuros juristas, como aborda Frederico Almeida (2010) em “A No-
breza Togada”, decorre de uma tentativa de construção da trajetória comum
acadêmica e profissional das elites jurídicas no Brasil. Sendo assim, os juristas
constroem relações munidas de capitais políticos e sociais que influenciam dire-
tamente na composição dessas elites, desde o momento em que entram em um
contato imensamente cordial com esses juristas em formação.
Isso é extremamente relevante para formação do “poder simbólico” (Bour-
dieu, 2011) dentro deste complexo, e é reforçado pelo que Frederico Almeida
(2010) chama de “culto aos antepassados”. Tal culto aos antepassados é percep-
tível naquele fórum desde o seu nome: Maximiano Figueiredo; uma homena-
gem a um antigo jurista paraibano; até a presença de quadros e fotografias que
homenageiam juristas que ali construíram sua carreira.
Sendo assim, a construção de uma elite jurídica delimita violentamente es-
ses espaços estatais, expressando a todo o momento, a partir de um poder sim-
bólico, quem pertence a ele e quem não, seja através da cordialidade para com
seus pares, ou mesmo na simbologia presente naquele espaço por meio do culto
aos seus antepassados. E assim, este complexo termina por excluir de forma ain-
da mais relevante aquelas pessoas que não estão preparadas para entrarem nele
de maneira violenta e simbólica, contribuindo extensamente para reprodução
da sociedade capitalista periférica e suas contradições.
3. Formalidades e Informalidades
As audiências naquele fórum da Justiça Trabalhista da Paraíba sempre
se iniciavam com um processo burocrático. Os juízes; ou melhor, “as vossas
excelências”, como são chamados, eram os responsáveis por coordenar a
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Dessa forma, O trabalhador, na maioria dos casos apenas entra com um pro-
cesso contra a empresa na qual trabalhava apenas após ser demitido e devido
ao caso de estar desempregado, opta por receber uma indenização menor e não
ter todos os seus direitos atendidos com uma proposta de acordo. Além disso,
o incentivo à propostas de acordo acabam por fazer as empresas a continuarem
reproduzindo uma sociedade de classes periféricas a partir da ofensa a direitos
trabalhistas, pois mesmo que cumpram com propostas de acordo, acaba sendo
mais lucrativo para estas.
Todos esses elementos que envolvem tais propostas, apesar de serem colo-
cados como algo bom para o trabalhador e para as empresas, fazendo parecer
com que elas sejam justas; acabam reforçando com que o Direito na periferia do
capital reproduza a sociedade de classes capitalistas com contradições específi-
cas e alarmantes. Pois mesmo que estes direitos sejam garantidos; nesses casos,
a posição da classe trabalhadora perante a classe burguesa continua sendo de
extrema submissão e desigualdade até em um âmbito que se coloca como pro-
tetor da parte mais “fraca”.
Outra característica notável na pesquisa foi o fato de existirem poucas mu-
lheres como juízas, ou seja, como juristas que ocupavam uma posição de maior
poder; e o fato de haverem menos ainda juristas negros, onde durante o traba-
lho só foi encontrado um, que por sinal era homem; dentro daquele fórum. Isso
não acontece por acaso, pois o desenvolvimento da forma da superestrutura
jurídica acompanha a evolução das formas mercantis (PACHUKANIS, 1988),
que historicamente se constitui de com recortes de gênero e raça específicos.
Sendo assim, esses recortes são refletidos diretamente para a forma jurídi-
ca e diante disso, ganham destaque junto às contradições histórico-culturais
herdadas pelos países periféricos. Dessa forma, o positivismo, principalmente
nos países periféricos, se demonstram como sendo uma ideologia que reforça e
reproduz as diferenças de gênero e raça, além das diferenças de classes.
Apesar disso, no Fórum Maximiano Figueiredo percebe-se “algumas con-
tradições internas pontuais quanto ao reconhecimento de certos interesses da
classe trabalhadora” (ALMEIDA, 2014, p. 55). Isso é notável em relação à pos-
tura daquela instituição judiciária nos cartazes por lá espalhados: “Contra a
precarização do Direito do trabalho, a reforma da previdência e a lei do abuso
de autoridade”, “Contra o trabalho infantil”. Porém; apesar de alguns posicio-
namentos como esses, que se põem como aliados à classe trabalhadora; a Justiça
Trabalhista e o Direito como um todo,
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Considerações finais
Este trabalho sintetiza os resultados parciais de um estudo, que ainda está
em andamento, desenvolvido na Universidade Federal da Paraíba pelo Grupo
de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais; em um projeto de pesquisa in-
titulado “O Positivismo Jurídico na Periferia do Capital”, orientado pela Profa.
Dra. Ana Lia Vanderlei de Almeida.
Tal projeto visa a construção de conhecimentos de base empírica e relacio-
ná-los a temas abordados por uma formação teórica de categorias marxistas,
que é contra hegemônica no curso de Direito. Sendo assim, sua finalidade é
problematizar a as relações sociais que se estabelecem no campo jurídico carac-
terizado pelo Positivismo Periférico, tais quais são essenciais para reprodução do
capital junto com todas as suas contradições.
No projeto de pesquisa está a vertente da qual se trata esse resumo, que
trabalha especificamente dentro do tema: “Positivismo Jurídico Periférico na
Justiça Trabalhista da Paraíba”. Este trabalho buscou sintetizar as conclusões
parciais de uma pesquisa maior que se desenvolve no âmbito da Justiça Traba-
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Referências Bibliográficas
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HOLLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Cia das
Letras, 2006.
LESSA, Sérgio; TONET, Ivo. Introdução à filosofia de Marx. 2 ed. São Paulo:
Editora Expressão Popular, 2011. Disponível em: http://sergiolessa.com.br/
uploads/7/1/3/3/71338853/introdufilomarx.pdf. Acesso em março de 2018.
723
Os rebatimentos do neoliberalismo na
política de saúde: uma reflexão teórica
Introdução
A crise global do capital que repercute nos dias atuais teve seu impacto
mais expressivo no final da década de 1970, provocou mudanças estruturais no
processo de produção capitalista e no campo da reprodução social redimensio-
nando as relações econômicas, sociais, políticas e culturais.
O ordenamento jurídico que sustenta a política de saúde como direito cons-
titucional, ocorre dentro de um contexto de avanços do ideário neoliberal que
reduz gastos na área social em prol do desenvolvimento econômico. Nesse con-
texto de interesses econômicos e políticos, temos o Estado como o grande pilar
de sustentação do capitalismo na condução do processo de redução de direitos
com a subordinação das políticas sociais a lógica da estabilização econômica e
a partir disso, há um processo de desmonte dos direitos sociais que tem reba-
1 Assistente social – graduada pela Universidade do estado do Rio Grande do Norte – (UERN). Pós
Graduada em Saúde Pública com Ênfase em Saúde da Família pela instituição Faculdade Vale do
Jaguaribe. E-mail:[email protected]
2 Assistente social – graduada pela Universidade do estado do Rio Grande do Norte – (UERN). Pós
Graduada em Saúde Pública com Ênfase em Saúde da Família pela instituição Faculdade Vale do
Jaguaribe RN. E-mail: [email protected]
3 Doutorando em Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde pela Universidade Estadual do Ceará -
PPCCLIS/UECE (2016)). Docente Assistente I do curso de Enfermagem da Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte - UERN/Campus Pau dos Ferros –CAMEAM.E-mail: [email protected]
4 Assistente social – graduada pela Universidade do estado do Rio Grande do Norte – (UERN).
Graduanda de Direito pela Universidade Rural do Semiárido. Contato: [email protected]
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timentos no processo de organização das forças organizadas da sociedade, em
particular na política de saúde.
Assim, este artigo foi estruturado em quatro partes, incluindo as con-
siderações iniciais e finais, na primeira parte apresentamos um histórico
sobre o percurso da saúde, na segunda parte foi efetuada uma análise sobre
a orientação neoliberal e como esse modelo se processa na realidade social.
Nas considerações finais destacamos as principais reflexões apreendidas do
conteúdo explorado, buscando subsídios que possam responder à questão
que orientou a elaboração deste artigo, ou seja: Quais os impactos do mode-
lo neoliberal na política de saúde?
O presente texto, traz uma discussão resultante de reflexões teóricas sobre o
projeto neoliberal e os seus rebatimentos na política de saúde. O objetivo é de-
bater acerca das implicações dessa conjuntura na perspectiva do direito à saúde,
expor a trajetória e a construção do SUS bem como refletir sobre os impactos
da contrarreforma do Estado na política de saúde.
Esse tema é relevante para o Serviço Social, uma vez que esta é uma profis-
são que tem capacidade teórica para atuar diretamente com a sociedade civil
organizada, lutando para a garantia dos direitos sociais.
Para compreendemos quais são os impactos do neoliberalismo na politica de
saude, a metodologia utilizada será pautada em um estudo teórico. Essa escolha
justifica-se pela possibilidade de se valer de referências para obter um conheci-
mento mais objetivo dessa realidade, bem como observar os processos de mu-
dança dos conceitos, e das práticas ocorridas no decorrer dos anos. Para siste-
matizar as informações, adotaremos a análise crítica. Assim, nos apoiaremos na
teoria social crítica de base marxiana que pauta-se numa abordagem histórica e
dialética com base na totalidade social. A teoria marxista é uma “ciência” que
“produz conhecimento sobre a realidade” possibilitando ações capazes de trans-
formação. “Dessa forma, conhecer a realidade torna-se um meio para conduzir
o processo histórico, o que coloca a fonte do Marxismo no mundo concreto,
histórico, em constante reformulação.” (SOARES; CAMPOS et al 2013).
Portanto é importante considerar que através desse método podemos
entender as relações sociais em sua totalidade e as políticas que se
configuram como espaços de legitimação do poder dominante. Desse modo,
buscaremos apreender a realidade social a partir de contribuições teóricas
tentando compreender a dinâmica processual, contraditória existentes no
real na qual se constrói a política de saúde.
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5 Questão Social apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista
madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se
mais amplamente social, enquanto a apropriação dos frutos mantém-se privada, monopolizada por
uma parte da sociedade. (IAMAMOTO, 1999, p. 27)
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tia e a efetividade acerca dos direitos sociais dentre os quais o direito à saúde.
De acordo com o art.196 da Constituição Federal:
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6 ...] A rede de serviços, organizada de forma hierarquizada e regionalizada, permite um conhecimento maior
dos problemas de saúde da população da área delimitada, favorecendo ações de vigilância epidemiológica,
sanitária, controle de vetores, educação em saúde, além das ações de atenção ambulatorial e hospitalar em
todos os níveis de complexidade” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1990, p.05).
7 “A participação social na área da saúde foi concebida na perspectiva do controle social, no sentido de
os setores organizados na sociedade civil participarem desde as suas formulações – planos, programas e
projetos -, acompanhamento de suas execuções, até a definição da alocação de recursos para que estas
atendam aos interesses da coletividade. Esta participação foi institucionalizada na Lei 8.142/90, através
das Conferências, que têm como objetivo avaliar e propor diretrizes para a política de saúde nas três
esferas de governo, e por meio dos Conselhos, que são instâncias colegiadas de caráter permanente
e deliberativo, com composição paritária entre os representantes dos segmentos dos usuários, que
congregam setores organizados na sociedade civil, e os demais segmentos (gestores públicos e privados
e trabalhadores da saúde), e que objetivam tal controle” (CORREIA, 2006, p. 125).
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Considerações finais
Na sociedade política contemporânea, o ideário neoliberal no Brasil tem
sido responsável pela redução dos direitos sociais e trabalhistas, que atrelado
ao processo de reestruturação produtiva vem promovendo o acirramento do
desemprego estrutural, a precarização das relações e condições de trabalho e o
desmonte da saúde. Hoje, a proposta implementada na saúde fica vinculada ao
mercado, enfatizando as parcerias com a sociedade civil e transferindo a mesma
o dever de assegurar os serviços sociais mediante a perspectiva da solidariedade.
A terceirização e a privatização de serviços do setor de saúde são alguns
problemas que inviabilizam o direito à saúde. Esse sucateamento também tem
rebatimento no processo de trabalho em saúde atingindo diretamente os pro-
fissionais da saúde com condições de trabalho precárias e com baixos salários,
tornando deficiente o atendimento ao usuário do sistema. Além da enorme
retirada de recursos, outra questão que põe enorme entrave para que o SUS
se firme, é a privatização do setor, substituindo os serviços públicos pelos
serviços privados, pondo assim, obstáculos para um projeto de saúde coletivo
voltado para toda a população.
Diante do exposto, é possível perceber que o Estado vem desenvolvendo
sua atuação de modo a atender às necessidades do capital. Com isso, fica di-
fícil concretizar o princípio da universalização, pois as situações mostram que
o mesmo não ocorre e os programas passam a ser focalizados. Também a desi-
gualdade de acesso da população aos serviços de saúde, o desafio de construção
de práticas baseadas na integralidade, os dilemas para alcançar a equidade no
financiamento do setor, os avanços e recuos nas experiências de controle social,
a falta de articulação entre os movimentos sociais, dentre outras, são algumas
das dificuldades a serem superadas para o fortalecimento da política de saúde
instituída no Brasil. Desse modo, diante da desestruturação do nosso sistema
público é importante a mobilização política e a organização da sociedade civil
em defesa dos nossos direitos.
Referências bibliográficas
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BRAVO, Maria Inês Souza. Política de Saúde no Brasil. In: MOTA, Ana
Elizabete [et al] (orgs). Serviço Social e Saúde: formação e trabalho profissional.
São Paulo: Cortez; Brasília-DF: OPAS, OMS, Ministério da Saúde, 2006.
CORREIA, Maria Valéria Costa. Controle Social na Saúde. In: MOTA, Ana
Elizabete. et al. Serviço Social e Saúde: Formação e trabalho Profissional, São
Paulo: Cortez; Brasília/DF: OPAS, OMS, Ministério da Saúde, 2006.
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Reforma Trabalhista: a atuação
sindical e a proteção ao trabalhador
Introdução
A Reforma Trabalhista, Lei 13.467/2017, tem como um dos pontos de des-
taque a atuação das negociações coletivas para regular direitos laborais, e desta
forma, a participação dos sindicatos na formação dos contratos de trabalho das
categorias da qual fazem parte. Essa norma é o resultado de longas discussões
trazidas pela classe empresária cuja premissa parte especialmente da diminui-
ção da intervenção do Estado na economia, refletindo nas relações e condições
de trabalho estabelecidas pelas normas jurídicas brasileiras.
Assim como nos governos autointitulados neoliberais, a filosofia liberal, nas
palavras de Milton Friedman, “é a crença na dignidade do indivíduo, em sua
liberdade de usar ao máximo suas capacidades e oportunidades de acordo com
suas próprias escolhas, sujeito somente à obrigação de não interferir com a liber-
dade de outros indivíduos fazerem o mesmo”. (Friedman, 2014, p. 197).
Para tanto, conforme argumenta o referido autor, é necessária a separação
do poder político em relação à economia. Assim, a liberdade econômica é pro-
movida pelo capitalismo competitivo, uma vez que este promove, também, li-
1 Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
Titular do Curso de Direito da UFRN. Professor na PPGD na UFRN. Desembargador Presidente do
Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região.
2 Mestranda no PPGD da UFRN, orientanda de Bento Herculano Duarte. Professora Titular do
departamento de Direito na Estácio de Sá. Especialista em Direito Constitucional.
3 Bacharel em direito pela Universidade Estácio de Sá (FAL), Graduada em História, habilitação
licenciatura, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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4 Sindicato vertical: estende-se no mercado de trabalho abrangendo, regra geral, a ampla maioria dos
empregados das várias empresas, na respectiva base territorial da entidade, que tenham similitude
de atividades econômicas. Portanto, atinge, verticalmente, as empresas economicamente afins.
DELGADO. op. cit. p. 1348.
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Bomfim Cassar e Leonardo Dias Borges. Os autores, em obra que tece comen-
tários à reforma trabalhista, ao tratarem do artigo 477-A da CLT, atribuem
que a dispensa coletiva ou em massa decorre de um único ato do emprega-
dor, rompendo-se o vínculo empregatício com uma gama de empregados pelo
mesmo motivo: redução do número de empregados, geralmente ocorre em
momentos de dificuldades financeiras atravessados pela empresa e tende-se
a retomar o quadro anterior à medida em que houver a melhora econômica
(Borges, 2018, p. 88).
Quanto a dispensa plúmira não decorre, segundo os autores, de um único
motivo, mas gera a despedida de um grande número de empregados e, por vezes,
essa despedida não é determinada por um único ato ou dia, sendo realizada
dentro de um período. Ambas as despedidas passaram, portanto, a fazer parte
do poder potestativo do empregador (Borges, 2018, p. 89).
Desse modo, a nova regulação normativa vai de encontro com a decisão do
Tribunal Superior do Trabalho, do ano de 2009, não apenas por tornar pres-
cindível a atuação sindical nas dispensas imotivadas, mas também, por igualar
a demissão individual com a coletiva. Uma distinção claramente necessária do
ponto de vista do ministro Godinho Delgado.
Nesse largo, o mencionado artigo já era alvo de análise desde quando estava
no Projeto de Lei 38/2017, salientando-se que o mesmo não sofreu nenhuma al-
teração com a promulgação da Lei 13.467/2017. Dessa forma, o juiz do trabalho,
Jorge Luiz Souto Maior, aponta a controvérsia dos argumentos sustentados para
a aprovação da reforma trabalhista, de modo que a nova lei visava a criação de
empregos, porém em sentido oposto trouxe em seu projeto de lei, especialmente
no artigo 477-A da CLT, dispositivo que não garante o emprego de quem estava
empregado (Maior, 2018).
Outra contradição do projeto de lei, apontada pelo magistrado Souto Maior,
é que se por um lado afirmava-se que haveria um aumento da força negocial dos
sindicatos, por outro, um dispositivo, como o artigo 477-A, torna dispensável a
participação dessas entidades, quando já havia sido pacificado o entendimento
da sua obrigatoriedade (Maior, 2018).
Souto Maior finaliza sua análise ao artigo supra, destacando que:
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Considerações finais
Perseguindo seu escopo inicial, o presente trabalho permitiu a exposição de
questões pontuais relativas à inovação legislativa trabalhista. Compreendendo-
-se que a edição dessa lei se deu em meio a um cenário econômico de crise
e instabilidade política, em que os seus idealizadores afirmavam buscar uma
flexibilização da estrutura da relação de emprego para promover um aumento
de postos de trabalho, parece-nos temerária suas repercussões no que atine à
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Referências bibliográficas
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Lei Nº 13.467/2017: limites e possibilidades
a direitos fundamentais de mulheres
transexuais e travestis brasileiras
Introdução
Dentre as medidas propostas pelo legislativo brasileiro pós-golpe parla-
mentar de 2016, o qual destituiu a presidenta eleita Dilma Rousseff da pre-
sidência da República, a chamada Reforma Trabalhista, disposta na lei nº
13.467/2017, foi responsável por alterações no Decreto-lei nº 5.452, de 1º de
maio de 1943, intitulado Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Nesse
sentido, é possível apontar que as relações de capital vs. trabalho assalariado
foram alteradas em dispositivos legais.
Diante dessas modificações, apontar-se-á que direitos fundamentais e so-
ciais foram postos em xeque com a Reforma Trabalhista. A relação jurídica
da burguesia (detentora dos meios de produção) com a classe trabalhadora
(detentora unicamente da força de trabalho como mercadoria capaz de ser
trocada por um salário) foi flexionada a ponto de aprofundar juridicamente o
ataque a direitos conquistados historicamente, como férias, jornada de traba-
lho, remuneração e plano de carreira.
A partir disso, objetiva-se analisar neste artigo, de forma geral, de que forma
os dispositivos da lei nº 13.467/2017 ferem os direitos fundamentais e sociais,
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São essas relações sociais, pois, que ditam as relações jurídicas e a formula-
ção de normas que se propõe a regular as relações sociais. Tendo em vista que
“as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto
é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante” (MARX, 2007, p. 47), é possível concluir que
o direito criado nessas relações é um direito burguês, e esse, dirá Lenin (2012,
p. 187, grifos do autor), “no que concerne à repartição de bens de consumo,
pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um
aparelho capaz de impor a observação de suas normas”.
É esse mesmo “Estado burguês” que mantém uma relação intrínseca com o
patriarcado. Dirá Saffioti (2004, p. 106, grifos da autora) que a principal carac-
terística do patriarcado é
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vidas. (...) uma mulher tende a ser oprimida não só em razão de seu
gênero, mas em razão de sua raça, de seu status socioeconômico,
de sua idade, de sua aparência, de sua orientação sexual, de seu
estado civil, da sua filiação religiosa, de seu nível de escolarização,
do número de filhos que possui, entre outros.
3 Não importa aqui analisar a categoria de gênero, nem mesmo teorizar o que significa ser uma pessoa
transgênero, uma vez que esse conceito é aberto e passível de muitas críticas por não apresentar
uma base materialista, diferentemente do patriarcado, que pressupõe ser “o regime da dominação-
exploração das mulheres pelos homens” (SAFFIOTI, 2004, p. 44). O que se busca teorizar é que o
sistema de dominação-exploração patriarcal do corpo masculino sobre o feminino é radicalizado
quando são considerados os corpos transexuais.
4 Disponível em: <http://tvbrasil.ebc.com.br/estacaoplural/post/visibilidade-trans-a-realidade-do-mercado-
de-trabalho-para-transexuais>. Acesso em: 16 ago. 2018.
5 Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/preconceito-
afasta-transexuais-do-ambiente-escolar-e-do-mercado-de>. Acesso em: 16 ago. 2018.
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6 O texto da Constituição Federal utilizada para este artigo foi editado até a consolidação da Emenda
Constitucional nº 96/2017.
7 Disponível em: <https://nlucon.com/2013/10/18/site-de-empregos-visa-contribuir-para-a-entrada-
de-travestis-e-transexuais-no-mercado-de-trabalho/>. Acesso em: 19 ago. 2018.
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10 A vida representa um dos direitos mais violados da população transgênero no Brasil, tendo em vista
que, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB) e da Rede Trans Brasil, 445 mortes de
pessoas LGBTs registradas em 2017, dentre as quais 194 eram gays, 191 eram pessoas trans, 43 eram
lésbicas e cinco eram bissexuais. Cf. VALENTE, Jonas. Levantamento aponta recorde de mortes por
homofobia no Brasil em 2017. Repórter Agência Brasil, 2018. Disponível em: <http://agenciabrasil.
ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-01/levantamento-aponta-recorde-de-mortes-por-
homofobia-no-brasil-em>. Acesso em: 25 ago. 2018.
11 Cf. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/
emecon/2016/emendaconstitucional-95-15-dezembro-2016-784029-publicacaooriginal-151558-pl.
html>. Acesso em: 26 ago. 2018.
12 Cf. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Disponível em: <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=2119881>. Acesso em: 25 ago. 2018.
13 Cf. BRASIL. Lei nº 13.429 de 31 de março de 2017. Acesso em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13429.htm>. Acesso em: 25 ago. 2018.
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Dessa forma, revela uma das maiores contradições da lei em questão, uma
vez que “a força de trabalho não é uma mercadoria qualquer, pois é impossível
separá-la da pessoa do trabalhador” (CARVALHO, 2017, p. 82). Para delimitar
o objeto, serão analisadas mudanças que exerçam consequências para a inser-
ção das mulheres transexuais no mundo do trabalho.
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Dialogando com Carvalho (2017, p. 88), Vazquez et al. (2018, n.p.) conside-
ram que a lei nº 13.467/2017 estabeleceu a demissão por acordo comum no art.
484-A, o qual “autoriza extinção de contrato de trabalho mediante pagamento
de metade do aviso prévio e metade da indenização sobre o FGTS; movimenta-
ção de 80% do saldo do FGTS e, ainda, retira o acesso ao seguro-desemprego”.
Já no art. 611-A é reforçada a negociação flexível acerca da jornada de tra-
balho e da remuneração (CARVALHO, 2017, p. 83), do uso do banco de horas
(estendida pelo art. 59 para todos os trabalhadores) e “permite reduzir o in-
tervalo em jornadas de mais de seis horas de uma para meia hora e ampliar a
jornada em ambientes insalubres” (idem, p. 83-84).
Quanto à relação entre as horas de trabalho contratuais e horas extras
(jornada de trabalho), dois dispositivos foram alterados. A partir do art. 59-A
legalizou “a jornada 12-36 (doze horas consecutivas de trabalho seguidas de
trinta e seis de repouso) para qualquer trabalhador” (CARVALHO, 2017, p.
84); enquanto que o 59-B reduziu “o pagamento das horas extras em jornadas
não compensadas” e o art. 384 revogou “a necessidade de no mínimo quinze
minutos de intervalo entre a jornada normal e as horas extras” (idem, p.
85). Nos dois primeiros dispositivos, foi retirada da competência Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE) a licença prévia para as atividades em
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Pode-se argumentar que a maior parte dos que realizam esse tipo de
trabalho hoje operam na informalidade, mas não fica claro qual o
efetivo ganho de bem-estar social em se legalizar a precariedade, além
de uma mera mudança de forma. Em vez de ampliar as possibilidades de
formalização por meio de políticas públicas voltadas para a produtividade
do trabalho, procura-se tornar legais trabalhos precários, sob o risco de
precarizar trabalhos que hoje se encontram protegidos (ibidem).
14 Aqui, dialoga-se com o conceito marxiano de mais-valia, o qual se caracteriza como “a forma de
exploração característica do capitalismo”, consistindo “na diferença entre o valor do produto e o
valor do capital despendido no processo de produção” (LOYOLA, 2009, p. 131).
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pode-se inferir que a reforma tem impactado setores marcados por baixos
salários e alta rotatividade, como o comércio, relegando os empregados
desse setor a uma situação mais aguda de precariedade. Desde o
início, críticos da reforma indicaram seu alto potencial de aumentar a
desigualdade (VAZQUEZ et al., 2018, n.p.).
15 Marx (2001, p. 151) discorre que: “A dominação do capital criou para essa massa uma situação
comum, interesses comuns. Assim essa massa já é uma classe diante do capital, mas não o é ainda
para si mesma. Na luta (...) essa massa se reúne, se constitui em classe para si mesma”, o que significa
dizer que “os interesses que ela defende se tornam interesses de classe”.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Considerações finais
Diante do exposto, é possível apontar que as mulheres transexuais e as tra-
vestis são sujeitas historicamente marginalizadas no e pelo sistema capitalista-
-patriarcal, sendo condicionadas a trabalhos precarizados, subalternos e insa-
lubres. Portanto, o corpo feminino está (também historicamente) subordinado
à divisão sexual do trabalho “como um sistema composto com o capitalismo”
– como também ao racismo, enquanto ideologia dominante na sociedade (CIS-
NE, 2015, p. 19) –, o qual “não apenas diferencia trabalho feminino do mas-
culino, mas gera desigualdades entre homens e mulheres pertencentes a uma
mesma classe” (idem, p. 24).
Dito dessa forma, o Estado brasileiro (de moldes republicano e burguês), é o
mesmo que, por meio do poder legislativo, elabora leis para fortalecer seu poder
classístico, ou seja, normas que aprofundem a derrota da classe trabalhadora no
campo jurídico e que potencializem o ataquem a direitos fundamentais e sociais.
Uma vez que as mulheres transexuais e travestis desistem em massa da educação
formal devido a descriminações e negações à própria dignidade, têm-se como
consequências o aprofundamento da exclusão do mercado de trabalho formal.
Por isso, são condicionadas majoritariamente à prática da prostituição, ao mesmo
tempo em que é desdenhado o direito à saúde pública e de qualidade16.
Não por acaso, a aprovação da lei nº 13.467/2017 desgasta direitos já ne-
gligenciados pelo Estado brasileiro, ou seja, uma cadeira de negação de direi-
tos que gera mais negação de direitos. Nesse sentido, tendo em vista que, por
estarem de forma quase unânime na prostituição, as mulheres transexuais e
travestis são as subcategorias que conhecem mais o “trabalho intermitente” –
mas sem contrato de trabalho –, uma vez que a prostituição é uma relação de
produção que coisifica o corpo transexual e travesti, e não vai garantir seguro-
-desemprego ou FGTS, mas tão somente o direito a se contraprestação (econô-
mico e subjetivamente17).
Sendo assim, uma crítica que não pode deixar de ser feita é a ausência de
dados confiáveis (elaborados por órgão público) acerca da presença de mulheres
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Referências bibliográficas
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LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção
Primeiros Passos; 62).
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Uma análise sobre a categoria trabalho a
partir do filme “segunda-feira ao sol”
Introdução
O presente artigo tem por objetivo identificar como a categoria trabalho se
apresenta no decorrer do filme Segunda feira ao sol, proporcionando uma refle-
xão a respeito dessa categoria. Para isto, fez-se necessário apresentar à lingua-
gem cinematográfica, uma arte que recria e cria mundos, espaços e tempos para
impactar o imaginário das pessoas. Dentro dessa linguagem, os temas sociais
ganham amplitude e uma visão crítica sobre a realidade, trazer problemas socio-
políticos para o Cinema, é mostrar questões que não possuem uma visibilidade
de todos na sociedade.
Diante da conjuntura de desemprego e empregos precarizados, o objetivo
geral desse trabalho é identificar como a categoria trabalho se apresenta no
decorrer do filme Segunda feira ao Sol, e os objetivos específicos, analisar a arte
como recurso metodológico, identificar as especificidades do filme e descrever
como a crise do capital impacta na vida dos trabalhadores do filme.
Para a elaboração desse artigo de abordagem qualitativa e cunho bibliográfico
serão utilizados artigos e livros de autores como: Antunes (2006), Alves (2012),
Macário (2012) Carvalho (2016) e documental com o filme Segunda feira ao
sol (2001). Assim a pesquisa traz a possibilidade de discutir e debater assuntos
pertinentes na sociedade como o trabalho, desemprego, atividade formal e
1 Discente do curso de graduação em Serviço social pela Faculdade do Vale do Jaguaribe –FVJ.
2 Docente da Faculdade do Vale do Jaguaribe – FVJ. Possui graduação em Serviço Social pela
Universidade Estadual do Ceará; Especialização em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos
Sociais, pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Serviço Social, Trabalho e Questão Social
pela Universidade Estadual do Ceará.
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Nessa linha de raciocínio o autor conclui que o trabalho foi sendo modifi-
cado através das mudanças da cultura dos povos, da caça e pesca selvagem de
sobrevivência humana para a cultura da produção industrial.
Conforme Estanislau (2012, p.38) “entretanto há que se discorrer também a
respeito de seu caráter subjetivo, principalmente em decorrência da crise estru-
tural pela qual tem passado o capitalismo a partir dos anos de 1970”.
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não ser verdadeiro […]. No cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com
toda força.” (BERNARDET, 1980, p. 5).
Assim, o cinema coopera com a aproximação do ser humano à realidade, tra-
balhando sua subjetividade, seu reconhecimento nas cenas que passam em frente
a seus olhos, “a arte como conhecimento da realidade pode nos revelar um pe-
daço do real, não em sua essência objetiva, tarefa específica da ciência, mas em
relação com a essência humana” (LUKÁCS apud NARCIZO, 2012, p. 5)
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Como foi exposta, a arte busca revelar aqueles fenômenos mais aprofun-
dados que se manifestam na sociedade de forma oculta, e também mostrar
os fatores que são responsáveis pelo surgimento desses fenômenos, a ver-
dadeira arte mostra a conjuntura onde o personagem está inserido, suas
dificuldades e os rebatimentos que esses fenômenos causam na vida do per-
sonagem e suas saídas para enfrentar todos esses obstáculos, que de forma
dialética também são forjados na vida cotidiana, e essa verdadeira arte, traz
contexto e realidades encontradas também no cotidiano do sujeito é que faz
essa arte representar a vida humana.
Segundo Macário (2012, p.37) “O personagem artístico só pode ser utópi-
co e significativo quando o autor consegue revelar as múltiplas conexões que
relacionam os traços individuais de seus heróis aos problemas gerais da época”.
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Segundo Santos; Silva (2012), explicou que o cinema é uma arte que pro-
move o cotidiano em imagens em movimento, por outro lado, contribui para a
reflexão e a construção crítica do receptor instigando sua subjetividade, o filme
é capaz de abordar várias temáticas, problematizando diferentes temas encon-
tradas como problemáticas na sociedade, como por exemplo o eixo temático
Trabalho e Cinema.
“A apropriação crítica (e compreensiva) do filme permite, por um lado, a
apreensão da forma e do sentido da obra fílmica em questão. Por outro lado,
pode contribuir para o desenvolvimento do complexo teórico-categorial.”
(SANTOS; SILVA, 2012, p.70)
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O diálogo, que o autor Alves (2010) cita pode ser entendido como uma
autoimagem do personagem reconhecida no filme pelo indivíduo receptor, pela
sua bagagem histórica, suas experiências vividas, o indivíduo se reconhece nos
dramas e expectativas do personagem.
“A relação do filme como objeto de reflexão crítica com o expectador pode
constituir experiência problematizadora capaz de propiciar um vínculo de com-
preensão hermenêutica e de dialogicidade plena.” (SANTOS; SILVA, 2012, p.70).
Essa arte que propicia a reflexão e a consciência critica do sujeito das pro-
blemáticas da sociedade em sua conjutura, feita pela reprodução da realidade
através do filme, “uma obra estética, social e politica, veiculo de representação
e formação de imagens sobre o mundo na consciência do espectador.” (SAN-
TOS; SILVA, 2012, p.75).
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Os laços ficam distantes entre eles durante o decorrer do filme, Ana pensa
em separar de José mas no final quando juntos comentam sobre o suicidio de
Amador um dos amigos de José, ela tem medo que José cometa o mesmo.
Segundo Alves (2005):
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No filme Segunda feira ao sol, o motivo para que muitos personagens estejam
desempregados, foi exatamente a desindustrialização do estaleiro naval onde tra-
balhavam, deixando o grupo de amigos operários sem seus postos de trabalho.
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Considerações finais
Diante das análises realizadas do filme segunda feira ao sol sobre a cate-
goria trabalho concluiu que a classe trabalhadora vai sendo fragilizada com
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Referências bibliográficas
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
SANTOS, José Alex Soares; SILVA, Antonio Valricélio Linhares da. A Sétima
arte como formação estético-pedagógica: experiência inovadora no âmbito do
projeto novos talentos. In: SANTOS; SILVA; LUSTOSA. (Orgs.). CINEMA
E TEATRO: como experiências inovadoras e formativas na educação.
Fortaleza: EdUece, 2012. P. 69-78.
809
Capítulo VIII
Direito Penal e Marxismo
A construção política, legislativa
e ideológica da proibição da
maconha no Brasil
Introdução
A guerra às drogas é uma grande problemática do século XXI. O molde político
que está posto mostra resultados devastadores, entre eles: mortes, torturas e prisões.
A sociedade como um todo, mídia, a burguesia, a classe trabalhadora muito discute
sobre assuntos relacionados às drogas, mas poucos procuram saber sobre suas raízes
históricas. Tudo isso ocorre porque há interesses que estão em volta dessa política.
Esse estudo tem por finalidade desvendar os vestígios da proibição da maconha no
Brasil. A partir das investigações de legislações, documento de governos, materiais
científicos podemos evidenciar eventos históricos importantes para a compreensão
da proibição das drogas em geral e, principalmente da maconha.
Esse artigo é baseado no método marxista materialista-histórico-dialético.
Trabalharemos com materiais bibliográficos, como livros, artigos virtuais e
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6 Bacharel em Ciências Políticas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(1981); Licenciada em Sociologia com ênfase em Metodologia pela Universidad Nacional Autónoma
de Heredia (1980); Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (1997);
Doutora (2003) e Pós-Doutora (2009) em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS)
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autora do livro: Difíceis ganhos fáceis – drogas e
juventude pobre no Rio de Janeiro.
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Silvestre e Melo7 (2017), a partir de 2001, a taxa de presos por 100 mil habitantes
era de 135. Com o passar de quase 10 anos este dado subiu para 306. Isso representa
um aumento de 127%. Segundo os autores isso representa um processo de “encar-
ceramento em massa”, noção essa que é usada por estudiosos sobre as mudanças do
sistema carcerário depois dos anos 70, especialmente nos EUA.
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A proibição legal foi se consolidando aos poucos, onde por vezes se visuali-
zava tentativas de criminalização até mesmo antes do fim do trabalho escravo
legalizado. Diante disso, Lunardon (2015) traz importantes elementos:
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Dória virou referência no assunto nas décadas seguintes e seus estudos foram
repetidos até meados da década de 1960. (SOUZA9, 2015)
Analisando os discursos da tese de Rodrigues Dória SOUZA (2015) apre-
senta importantes informações:
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Considerações Finais
Diante desse estudo, podemos chegar a algumas conclusões. Uma delas, é
que partindo do pressuposto de Engels e Kautsky (2012), de que os juristas que
tenham a perspectiva revolucionária não podem se deixar enganar na ilusão
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jurídica burguesa. Contudo, isso não quer dizer que os socialistas não possam
reivindicar questões legais. Nesse sentido, a reivindicação de legalização da ma-
conha pode sim estar na pauta da luta, mas não se pode perder de vista que a
real problemática da opressão está nas suas estruturas, ou seja, nas relações de
produção. De maneira mais direta, precisamos romper de vez com a ideologia
jurídica, e voltar nossos olhos na luta política.
A visão dramática do direito como Pachukanis (2017) ressalta, se mostra de
forma muito nítida quando nos referimos à guerra as drogas, e especialmente a
guerra à maconha De um lado, o mundo real: apenas uma planta, de variadas
utilidades, sendo ela elemento da cultura da população negra, e mais a frente da
classe trabalhadora em geral. Do outro lado uma visão jurídica particular, a de
que a maconha é um perigo para a sociedade, que em nada reflete a realidade
concreta. Isso reflete a grande capacidade de controle e de dominação do direi-
to penal, que atinge a classe trabalhadora de forma brutal. Isso revela grandes
interesses por trás dessas políticas penais.
Assim como na Idade Média as penas públicas foram estabelecidas com
propósitos de manutenção da disciplina e interesses de classe, da mesma for-
ma isso se dá com a implantação da política de proibição da cannabis. Isso
é nítido com as propostas leis nas Câmaras municipais do Rio de Janeiro,
de Santos e de Campinas, nos anos de 1830, 1870 e 1876 respectivamente.
(LUNARDON, 2015) A intensão das propostas de proibição da maconha
era controlar os corpos negros, através do aprisionamento de sua cultura a
legislações. O direito penal, que é constituído sobre os princípios da vingança
privada, é um eficiente meio de manutenção da dominação social de uma
classe sobre a outra. (PACHUKANIS, 2017)
Suas instituições e tribunais considerados “livres” perseguem um único
objetivo, a dominação e neutralização da classe trabalhadora. De modo de-
monstrativo a Delegacia de Costumes Tóxicos e Mistificações da época do go-
verno de Getúlio Vargas é um bom exemplo de instituição que tinha o intuito
de dominar a classe trabalhadora, especialmente o povo negro. O nome dessa
instituição já é bem sugestivo, e mostra claramente a discriminação contra as
religiões que não eram permitidas na época, como a umbanda e candomblé
que são aquelas que derivaram dos costumes negros. E é importante ressaltar
que isso fere os princípios de uma sociedade capitalista, que é a liberdade
religiosa, um prisma básico da igualdade política e jurídica proclamada pela
burguesia (MARX, 2010).
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Referências bibliográficas
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A sociabilidade capitalista e a gênese
da pena de prisão: repercussões
no atual grande encarceramento
Gênesis Cavalcanti1
Júlio Ivo Celestino2
Introdução
O problema da gênese e função social do cárcere (como pena) enquanto es-
fera privilegiada do controle penal na sociabilidade capitalista é de importância
candente para o aprofundamento acerca do marxismo, da criminologia crítica
e do direito penal.
Primeiramente, porque ao constatar a gênese e a função social de um de-
terminado complexo social, no caso a prisão (como pena), pretendemos de-
monstrar que o movimento real do objeto que permitiu a sua ascensão também
requer, em um determinado desenvolvimento social, a sua própria extinção.
Desse modo, não compartilhamos da ideia de que a pena de prisão será um
elemento punitivo essencial que determinará toda a sociabilidade humana. Pelo
contrário, como veremos, sua gênese depende de fatores de necessidade social
de produção e reprodução do capital ao passo que seu desaparecimento se dará
na medida da própria supressão do capital.
Em segundo lugar, podemos constatar a partir da gênese, do desenvolvimen-
to e da função social da pena prisão, que ela se constitui, como toda forma de
831
controle social penal, como um modo de garantir a reprodução da dominação
de classe (PACHUKANIS, 2017). Portanto, procuraremos desvelar as íntimas
relações entre prisão como punição e classes sociais. Ademais, a aplicação da
privação de liberdade como pena só pôde realizar-se, de fato, com o apareci-
mento do modo de produção capitalista. É só nessa forma de sociabilidade que
“todas as formas da riqueza social são devolvidas à forma mais simples e abstrata
do trabalho humano medido no tempo” (PACHUKANIS, 2017, p. 177).
Por fim, ao compreendermos o desenvolvimento do sistema prisional, pode-
mos observar nas últimas décadas uma intensificação do controle penal, que
pode ser verificado com o grande encarceramento. Tal fenômeno começa a ser
perceptível a partir da década de 70, período no qual Ístván Mészáros (2011a;
2014) irá demonstrar o surgimento de uma crise estrutural do capital. Tal crise
engendra uma reestruturação produtiva (ANTUNES, 2009), um esgotamen-
to das possibilidades civilizatórias (NETTO, 2017) e o grande encarceramento
(WACQUANT, 2007), como procuraremos demonstrar.
É importante pontuar que não é nossa pretensão colocar o fator econômi-
co como o único responsável nas transformações das relações sociais (no caso
aqui discutido, nas formas de controle social, como por exemplo a prisão), mas
apenas analisar como o modo de produção capitalista está diretamente ligada
ao surgimento das prisões e com as altas taxas de encarceramento das últimas
décadas. Como bem ensina Lukács (1974, p. 14): "é o ponto de vista da totalida-
de e não a predominância das causas econômicas na explicação da história que
distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa".
Partimos da ideia, portanto, de que cada forma de sociabilidade traz consigo
um modelo punitivo específico, isto é, uma forma de controle penal condizen-
te com o próprio modo de organização daquela determinada sociedade. Desse
modo, demonstraremos como o cárcere como pena se constitui como mode-
lo punitivo específico da sociabilidade capitalista. Assim, cabe-nos discutir a
gênese, o desenvolvimento e a função social da prisão como pena, enquanto
controle penal específico da sociabilidade capitalista.
1 Uma dessas leis determinava um limite para o salário e punia quem descumprisse, tendo como
exemplo o Estatuto dos Aprendizes da Rainha Elizabeth. Este estabelecia a pena de dez dias de
prisão para quem pagasse um salário mais alto do que o determinado em lei, e vinte e um dias para
o trabalhador que recebesse (MARX, 2013, p. 810). A legislação elisabetana ainda previa a punição
à mendicância com a queimadura da cartilagem do ouvido direito. Caso fosse reincidente, seria
executado (DOBB, 1983, p. 168)
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2 A prisão como pena é “herdeira das práticas disciplinares prévias, aplicadas a pobres, vagabundos
etc” (ANITUA, 2008, p. 210).
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Com relação à primeira afirmação, de que a crise que assolou a ordem do ca-
pital a partir dos anos de 1970 parece ter pego diversos analistas de surpresa, é
preciso ter em mente de que uma das grandes forças ideológicas do capitalismo
nas décadas que seguiram o pós-Segunda Guerra Mundial, era a formulação de
um "capitalismo organizado", agora livre de qualquer crise. A ideia de um capi-
talismo organizado, livre de crises, não é original do pós-1945 (devemos lembrar
os embates entre Rosa Luxemburgo e Edward Bernstein acerca dessa questão
no período anterior à primeira guerra mundial3), no entanto, nesse período ela
ganha mais força devido às transformações na estrutura do capitalismo (opor-
tunizadas pela grande ascensão econômica, muito em razão das próprias guer-
ras mundiais, e da adoção das ideias de Keynes, que produziu o chamado Estado
de bem-estar social).
Alguns pensadores bastante sérios, como Herbert Marcuse, Lucien Gold-
mann e György Lukács4 (ainda que este de modo diverso dos dois primeiros),
também chegaram a recair na ideia de um capitalismo organizado. É sintomáti-
co nesse sentido, o prefácio escrito por Lucien Goldmann, em 1966, ao seu livro
Ciências Humanas e Filosofia - publicado pela primeira vez em 1951 -, no qual
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5 Numa nota de rodapé à primeira página do seu prefácio, Goldmann revela tal modificação no seu
pensamento: "a modificação mais importante concerne à passagem do capitalismo em crise ao
capitalismo de organização, que nós não havíamos observado em 1951" (GOLDMANN, 1980, p.
05). Logo em seguida, o sociólogo marxista francês explicita o que entende por essas categorias:
"convém precisar que chamamos de capitalismo em crise o período em que, estando o mercado liberal
desorganizado pelo desenvolvimento dos trustes e monopólios, a sociedade europeia foi sacudida
por uma série de crises sociais e políticas extremamente próximas umas das outras; cada uma sendo
dificilmente superada para dar lugar a um equilíbrio inteiramente provisório que, aliás, se desfazia
muito depressa (Primeira Guerra Mundial, movimentos revolucionários entre 1917 e 1923, crise
econômica de 1929/1933, hitlerismo, Segunda Guerra Mundial e, na periferia europeia das sociedades
industriais, fascismo italiano e revolução espanhola). De outra parte, chamamos capitalismo de
organização o período contemporâneo durante o qual a criação e o desenvolvimento de mecanismos
reguladores, devidos em primeiro lugar a intervenções estatais permitem um impulso econômico
contínuo que tem, como consequência, a diminuição considerável e até mesmo o estancamento das
crises sociais e políticas endógenas (GOLDMANN, 1980, p. 06 - 07).
6 Ver o texto de Elcemir Paço Cunha (2018) acerca da crise estrutural do capital no pensamento de
Mészáros e Chasin.
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7 Ver também a argumentação de Netto e Braz: "A análise teórica e histórica do MCP [Modo de
produção capitalista] comprova que a crise não é um acidente de percurso, não é aleatória, não
é algo independente do movimento do capital. Nem uma enfermidade, uma anomalia ou uma
excepcionalidade que pode ser suprimida no capitalismo. Expressão concentrada das contradições
inerentes ao MCP, a crise é constitutiva do capitalismo: não existiu, não existe e não existirá
capitalismo sem crise (NETTO; BRAZ, 2012, p. 170).
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8 Para uma maior e mais profunda análise acerca desses fenômenos, indicamos o texto de José Paulo
Netto, "Uma face contemporânea da barbárie" (NETTO, 2017, pp. 56 - 88).
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superar a crise ruiu a antiga organização social, substitui o Estado Social por um
Estado Penal. A consequência disso foi o recrudescimento da repressão.
O controle penal que imperou a partir do segundo pós-guerra obedecia aos
ditames do Estado que ali se levantava. A forma de organização estatal obede-
cia os princípios propostos por Keynes cujo resultado foi aquilo que conhecemos
por Estado de bem-estar social. Nesse sentido, o controle penal tendeu a uma
racionalidade mais consensual e menos repressiva, de maneira que o encarce-
ramento se tornava "o último recurso punitivo", com a prevalência de outras
alternativas penais (RAMOS, 2015, p. 96). A essa estrutura de controle social
penal, David Garland denominou de previdenciarismo penal:
Nesse período9, o encarceramento foi cada vez mais colocado para segundo
plano. Tanto é verdade que alguns pensadores estavam chegando à conclusão
de que o cárcere se tornaria obsoleto, como observa Dario Melossi:
9 No mesmo período, Loïc Wacquant observou uma diminuição do encarceramento nos Estados
Unidos: "Na verdade, a população prisional diminuía regularmente desde o início da década de
1960, a uma média de cerca de 1% ao ano. Os penologistas debatiam então a abertura do meio
penitenciário, penas alternativas e mesmo o 'desencarceramento'" (WACQUANT, 2007, p. 206).
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
10 Marx e Engels, em 1845, já observavam o traço destrutivo da ordem do capital: "No desenvolvimento
das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que,
no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de produção,
mas forças de destruição (...). Essas forças produtivas, sob o regime da propriedade privada, obtém
apenas um desenvolvimento unilateral, convertem-se para a maioria em forças destrutivas (...).
Chegou-se a tal ponto, portanto, que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade existente de
forças produtivas, não apenas para chegar à autoatividade, mas simplesmente para assegurar a sua
existência" (MARX; ENGELS, 2007, p. 41, 60 e 73).
11 Para uma análise mais aprofundada acerca das transformações que a reestruturação produtiva
promoveu no mundo do trabalho, ver Ricardo Antunes em Os Sentidos do Trabalho (2009).
12 Rucshe e Kirchheimer (2004) já haviam sugerido as relações entre o mercado de trabalho e o controle penal.
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Nesse sentido, basta lembrarmos dos "novos discursos punitivos" que come-
çam a emergir nas últimas cinco décadas: as teorias da "vidraça quebrada" da
política de "tolerância zero" (WACQUANT, 2007), a política criminal atuarial
(DIETER, 2013) e o direito penal do inimigo (ZAFFARONI, 2016). Essa pre-
tensão de combate da criminalidade acabou produzindo o fenômeno do grande
encarceramento, consequência de uma política penal voltada contra a miséria,
contra a população negra e que sustenta a guerra às drogas.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
colocado em curso não se trata de uma mera ação voltada para proteger
e defender os 'bons' dos 'maus' naquela concepção maniqueísta tão bem
defendida pelos apologistas da ordem, mas sim de defender e proteger
o efetivo processo de acumulação e expansão do sistema do capital
(RAMOS 2015, p. 137).
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13 Sobre essa impossibilidade de o sistema capitalista se utilizar da guerra para deslocar as crises, ver
a argumentação de Mészáros: Contudo, o sistema capitalista foi privado da sanção máxima de
que dispunha: a guerra total contra seus inimigos reais ou potenciais. Já não é possível exportar
a violência interna na escala maciça requerida (...). Pela primeira vez na história, o capitalismo
confronta-se globalmente com seus próprios problemas, que não podem ser 'adiados' por muito mais
tempo nem, tampouco, transferidos para o plano militar de forma a serem 'exportados' como guerra
generalizada (MÉSZÁROS, 1989, p. 43)
14 Não é assim casual que em fevereiro do corrente ano, o presidente em exercício Michel Temer
tenha assinado um decreto de intervenção militar no Rio de Janeiro. Intervenção essa que não
só não resolveu o problema da segurança pública, como agravou a violência e a barbárie junto às
populações mais marginalizadas daquele estado. Essa foi a maior expressão da militarização da
vida social no Brasil de 2018.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Considerações finais
Assim, demonstramos que cada espécie de sociedade de classes possui
uma forma característica de controle penal, entendendo que o controle
penal consiste em mais uma forma de controle social das sociedades de
classe. Isso ocorre, como vimos, porque existe uma estreita ligação entre
controle social e organização do trabalho, isto é, cada forma de organização
da força de trabalho requer um modo determinado de controle social que
garanta a produção e a reprodução da sociedade. Partindo disso, compre-
endemos que o surgimento da sociabilidade do capital exigiu novas formas
de controle da produção e reprodução, o que nos leva a concepção de
15 Um estudo do National Institute of Justice destacou que a segurança privada tornou-se o "principal
meio de proteção da Nação", superando a segurança pública em 73%. O gasto anual em segurança
privada foi estimado em U$ 52 bilhões e o número de formalmente empregados foi de U$ 1,5 milhão
de pessoas. No que tange à segurança pública, o gasto estimado foi de U$ 30 bilhões por ano, com
uma força de trabalho de aproximadamente 600 mil pessoas (BRITO, 2010, p. 57).
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Referências bibliográficas
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NETTO, José Paulo. Uma face contemporânea da barbárie. In: José Paulo
Netto: ensaios de um marxista sem repouso. Seleção, organização e
apresentação Marcelo Braz. São Paulo: Cortez, 2017.
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Garantia de direitos na perspectiva
dos(as) adolescentes em cumprimento
de medidas socioeducativas do
Rio Grande do Norte, Brasil
Apresentação
Este estudo versa sobre a concepção que adolescentes em cumprimento de
medida socioeducativa de internação possuem a respeito da garantia de seus
direitos dentro das unidades socioeducativas. Este tema necessita de maior visi-
bilidade, tendo em vista que os resultados mostram que os direitos básicos con-
tinuam sendo violados pelo Estado diante de uma população que é considerada
como sujeito de direitos, mas que sofre com as mazelas da “questão social5”.
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É mister dar atenção aos discursos destes sujeitos e colocá-los como prota-
gonistas de suas vidas e suas histórias. Ademais, dar vazão ao que desejam e ao
que sentem torna-se especialmente relevante diante da dura realidade em que
vivem na privação de liberdade. Estes meninos e estas meninas fazem parte de
um grande grupo da sociedade que tiveram seus direitos violados desde a pri-
meira infância, de modo que parte das violações sofridas no sistema acabam se
configurando como uma reedição de condições vividas outrora.
Segue-se, nesta discussão, com um aporte teórico que embasa as discussões
propostas neste estudo, afim de que se possa corroborar, com a literatura vigen-
te, a necessidade urgente de preservar o que já está previsto e sistematizado em
lei no que se refere à garantia dos direitos desse segmento.
Fundamentação teórica
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) consiste num documento
legal respaldado na Doutrina Jurídica da Proteção Integral, que torna a criança
e o(a) adolescente sujeitos de direitos. Esta doutrina jurídica prevê ações de vão
na contramão das legislações anteriores, que colocavam adolescentes público
infanto-juvenil como objetos de ação do Estado. A noção de sujeitos de direitos,
de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e a necessidade de recebe-
rem cuidados com prioridade absoluta nasce da luta de órgãos e entidades civis
e governamentais contra os tratamentos violadores até então destinados a essa
população. Contudo, estas crianças e adolescentes ainda estão sendo violados
em seus direitos inalienáveis de cidadania, de dignidade e da própria condição
humana (Evangelista, 2011).
Assim como o ECA, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducati-
vo (SINASE), uma legislação especificamente voltada para os(as) adolescentes
autores(as) de ato infracional, também prevê uma série de garantias que visam
a garantia do acesso destes(as) adolescentes aos direitos fundamentais, cujo ob-
jetivo é a proteção integral deste segmento populacional.
Esta legislação parte, portanto, da perspectiva de um sistema garantista,
que coloca a proteção integral do adolescente e da adolescente autores(as) de
ato infracional como condição para a execução das medidas. Neste sentido,
pelo capital. Neto, J. P. (2001) Capitalismo monopolista e serviço social. 3ª edição. São Paulo: Cortez.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
busca-se uma bibliografia que respalda esta discussão, no que tange a defesa
e garantia de direitos, além de colocar em xeque os argumentos violadores
provenientes do senso comum.
Diante do exposto, segue-se através de uma linha teórica na defesa de que
o jovem em cumprimento de medida socioeducativa chegou aos limites do con-
trato social vigente em nossa sociedade para que pudesse ser visto. Este(a) jo-
vem só passa a ser visível na sociedade ao cometer um ato infracional, gerando,
por parte das autoridades, ações de controle e coerção; e, na sociedade, um
olhar perverso. É assim que Mione Apolinário Sales (2007), em seu livro “(In)
Visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência.”, de-
fine a forma como estes(as) adolescentes são vistos pela e na sociedade.
A mudança impetrada pela Doutrina da Proteção Integral e pelo SINA-
SE não tornou menos depreciativo, humilhante e violador o cenário de como
estes(as) adolescentes são tratados dentro das unidades de cumprimento de me-
didas restritivas e privativas de liberdade. As práticas continuam seguindo uma
lógica não garantidora de direitos, fato que preocupa as autoridades, os estudio-
sos e os movimentos de luta pela defesa de direitos da juventude.
Discutir a lógica da garantia de direitos é necessário no sentido de edificar
ações concretas que retirem estes adolescentes do lugar da violência institu-
cional. Sabe-se que romper com práticas históricas de violações de direitos é
mudar uma cultura e que isso não se faz instantaneamente. A alteração radical
na lei não garante acesso imediato dos(as) adolescentes em cumprimento de
medidas socioeducativas privativas de liberdade aos direitos fundamentais. A
lei consiste num instrumento que direciona a execução da medida para ativi-
dades verdadeiramente pedagógicas, mas muitas condutas ainda desrespeitam o
lugar destes(as) adolescentes dentro da lógica da garantia de direitos.
Neste sentido, o SINASE consiste num desafio visto que incide positiva-
mente em um segmento populacional que a estigmatizado pela sociedade; mais
que isso, o SINASE oportuniza o(a) adolescente a um novo projeto de vida,
longe da trajetória infracional, que depende das políticas intersetoriais para ga-
rantia e execução de um novo olhar sobre a vida futura.
Pensa-se que, para a efetividade da Proteção Integral, é necessário um
olhar sobre este(a) jovem de forma holística, concebendo-o(a) como um sujeito
pleno(a), para usufruto dos direitos previstos em lei. Contudo, considera-se que
somente a partir de um projeto integrado junto às políticas intersetoriais que
compõem o sistema, o(a) adolescente poderá ser contemplado em seus direitos
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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nal, ou seja, que compõem o SINASE, que poderão ser efetivados os direitos
fundamentais previstos no estatuto.
A atuação das políticas intersetoriais de forma integrada deve perpassar o aten-
dimento com vistas à integração de agendas coletivas, bem como pela partilha de
objetivos comuns. Para tanto, a intersetorialidade pode e deve ser garantida através
da rede socioassistencial de atendimento, evidenciando maior fluidez nos encaminha-
mentos e no acompanhamento dos(as) socioeducandos, incluindo a contrarreferência
dos atendimentos e dos encaminhamentos para que estes(as) usuários(as) tenham sua
demanda atendida de forma integral (Barbosa, Oliveira, Barbosa,&Leite, 2017). Além
disso, para que seja possível também superar os entraves impostos pelo atual desmonte
das políticas públicas no país, o que intensifica a fragmentação dos serviços, é ne-
cessário fortalecer as políticas intersetoriais. A consequência disso será, certamente,
a efetivação ou, ao menos, a aproximação da efetivação do Sistema de Garantia de
Direitos do(a) adolescente autor de ato infracional.
Não se pode deixar de fazer menção ao Plano Individual de Atendimento
(PIA) como instrumento que congrega todas as ações direcionadas e construí-
das junto ao(à) adolescente durante o cumprimento da medida socioeducativa.
Este instrumento processual condensa todas as metas do(a) adolescente e sua
família durante o processo sociopedagógico. Ele consolida o registro de tudo
que foi construído pelo(a) adolescente e sua equipe para a efetivação de um
projeto de vida possível. É no PIA que se materializa a perspectiva intersetorial
do atendimento socioeducativo, dando um direcionamento mais consistente
para um projeto de vida exequível e distante da prática infracional.
A discussão empreendida até aqui permite uma aproximação geral com a ga-
rantia de direitos de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.
Contudo, ela não esgota todos os elementos envolvidos. Importa também saber
como os sujeitos alvo desse sistema, os(as) adolescentes, concebem o Sistema
de Garantia de Direitos na rotina socioeducativa, como eles consideram que as
medidas devem ser executadas, dentro dos seus entendimentos sobre a garantia
de direitos. Estes objetivos foram alvo da pesquisa descrita a seguir.
Estratégia metodológica
A fim de obter informações que auxiliassem na compreensão de como os(as)
adolescentes entendem a garantia de direitos, empreendeu-se uma pesquisa
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6 Cumpre sinalizar que esta pesquisa fez parte de um conjunto de ações de um projeto de intervenção
mais amplo, que tinha como propósito contribuir para a construção de nova concepção de
socioeducação no sistema socioeducativo do RN.
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Resultados e Discussão
Como já foi exposto, os dados serão apresentados de acordo com temas relacio-
nados aos direitos fundamentais defendidos pelo ECA e pelo SINASE. Em alguns
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
casos, foram reunidos alguns temas sorteados (como “direito a justiça, ou convivên-
cia familiar) de modo a simplificar a análise e, posteriormente, discuti-las.
Escolarização e profissionalização
Ao falarem sobre o acesso à escola, os(as) socioeducandos(as) considera-
vam que o tempo que passavam na escola era insuficiente, além de apontarem
a falta de professores em algumas disciplinas. De acordo com os adolescen-
tes das unidades masculinas há ocasiões em que esse direito é cerceado, como
forma de sanção disciplinar, o que contraria o SINASE. Diante disso, sugeri-
ram que a carga horária fosse cumprida e que o acesso às aulas não fosse alvo
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de sanções. Quando questionados sobre por que o tempo era reduzido, os(as)
socioeducando(as), afirmaram que se tratava de uma forma de evitar conflitos,
que poderiam ser gerados pela presença de facções rivais, que impedia uma con-
vivência pacífica entre os adolescentes. As adolescentes expressaram o desejo
de fazer o supletivo e ressaltaram a falta de estrutura da unidade, com poucas
salas de aula e professores.
Quanto à profissionalização, os(as) adolescentes afirmaram que algumas
atividades que já ocorrem nas unidades poderiam ajudá-los a ter outra opção
como de fonte de renda (tal como a marcenaria). Porém, sinalizam que a ne-
cessidade de que houvesse mais opções de formação, como cursos de culinária
e de informática, de recepcionista, de eletricista, de pintora e de cabeleireira
(estes quatro últimos citados pelas socioeducandas). Além disso, muitas vezes, o
tempo de cumprimento de medida finaliza antes que encerrem alguns cursos, o
que impossibilita o socioeducando de receber o certificado.
Com efeito, a escolarização e a profissionalização possuem relevante papel
durante o cumprimento da medida, uma vez que podem oferecer novas alterna-
tivas para o seu projeto de vida, modificando assim a trajetória que vinha tra-
çando até então e rompendo com a lógica infracional. Por esta razão, ampliar as
opções de escolha dos adolescentes torna-se importante. Nessa direção, Paiva
e Silva (2014) recomendam, inclusive, que a profissionalização seja realizada,
preferencialmente, fora da instituição, a partir, por exemplo, da articulação com
programas com reconhecimento no mercado de trabalho. Tal medida é interes-
sante por possibilitar o progressivo retorno do(a) socioeducando(a) ao convívio
social e auxiliar na ressignificação de seu lugar na sociedade como cidadão.
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Segurança
Os dados apontaram que as ações de segurança eram, muitas vezes, reali-
zadas de forma violenta, com destaque para a contenção, vista pelos(as) ado-
lescentes como uma ação desproporcional às indisciplinas ocorridas dentro da
unidade. Assim, apontam que a contenção só deveria acontecer em caso de
rebelião; que a sanção não deveria ocorrer quando o(a) adolescente batesse a
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grade, e que, uma vez acontecendo, deveria ter seu tempo diminuído e que não
implicasse a perda de direitos. Eles também se posicionaram quanto a “cafua”
(lugar para onde é levado o adolescente quando comete alguma disciplina na
unidade; “solitária”) e afirmaram em mais de uma unidade que esta deveria
ser extinta. Ademais, afirmaram que a direção deveria proibir a entrada de
policiais, que foram considerados, pelos(as) adolescentes como responsáveis por
diversas situações de violência.
É preciso lembrar que a segurança socioeducativa deve zelar pela integridade
física, moral e psicológica do(a) adolescente, tal como recomenda o SINASE
(2006). E, como elemento importante da medida, deve ser trabalhada a partir
de uma perspectiva preventiva, educativa e não punitiva, de contenção - esta
somente recomendada em casos excepcionais (Silva & Pinto, 2004).
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Referências bibliográficas
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O relato mítico e sua linguagem persuasiva
e ideológica: um sintético ensaio acerca
do mito da igualdade no direito penal
1 Mestrando em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
– UERN. Pós-graduado em Direito Penal pela Faculdade Damásio. Graduado em Direito/UERN.
Participante do Grupo de Pesquisa “Estado, Segurança Pública e Cidadania” da UERN.
2 Signos, ritos, fábulas, prosas, poesias, etc.
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O estudo mitológico também se caracteriza por ser umas das formas de ma-
nifestação cultural mais antigas da história humanidade. Os primeiros registros
históricos que se tem conhecimento abordam o próprio surgimento do homem a
partir dos relatos bíblicos. A “Mitologia Cristã” é até hoje a narrativa mais acei-
ta (e questionada) em toda a história, incluindo aqui os fundamentos das mais
diversas acepções religiosas (católicos, judeus, evangélicos, islâmicos, espíritas,
de culto africano, etc.). Nessa sequência cronológica, foi Homero, por volta de
700 a.C., quem principiou os escritos mitológicos na Grécia Antiga enquanto
que na era moderna a mitologia se consolida a partir dos pensamentos e relatos
dos filósofos iluministas, dos antropólogos e sociólogos.
Hodiernamente, a narrativa mítica se compõe de uma teia de fatores que
perpassam pelas mais diversas formas de linguagem e que são conjugadas
com a psicologia, com a poesia, com as artes, com o direito, dentre outras
áreas de manifestação do saber. Cabe destacar também que nas sociedades
mais simples os mitos procuravam decifrar a origem do mundo, do homem,
da sociedade, assumindo por conseguinte uma linguagem muito mais sim-
bólica. Nas sociedades modernas os mitos passam a ser referenciados por
novas condições históricas e sociais e passam a mudar significados, não
mais se detendo a origens, mas procurando explicações para uma realidade
fática envolta de relações sociais complexas.
Assim, o estudo mítico atual passa a ser balizado por experiências psíquicas
e culturais, construção de arquétipos, tentativas de explicações do “eu”, do “sel-
fie” e das relações sociais. Nessa seara, insta invocar as sempre precisas palavras
de Joseph Campbell (1990, p.12.):
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Com efeito, temos que a figura do mito se reveste também de um claro poder
de persuasão, fazendo com que os destinatários, na grande maioria das vezes,
se alinhem e passem a se comportar na moldura3 estabelecida pelo personagem
mitológico. Platão, já nos seus famosos diálogos socráticos, destacava o poder de
convencimento ao contar mitos para as crianças com o intuito de moldar suas
almas. As mães e as amas-secas deviam contar histórias às crianças com o fito
de “modelar suas almas”.
O mito possui uma linguagem própria de persuasão, vale dizer, sua ritologia
transpassa até o consciente humano. Persuadir é muito mais intenso e profundo
que convencer. A persuasão tem como meta afetar o sentido, a alma do destina-
tário, e aqui reside sua grande similitude com a mitologia.
O discurso mitológico, numa abordagem dialética necessária, é confeccio-
nado com base nos fundamentos culturais e sociais, sendo reflexo e refletindo
o plano das ideias e dos sentidos dos seus patronos. A força da narrativa, com
suas linguagens e signos, impõe uma internacionalização afetiva e pessoal dos
ouvintes com vertente autoritária. Assim, consoante já explanado, o mito não
se preocupa com a correlação com a realidade, e nem o persuasor é obrigado a
sempre trabalhar com a pura verdade, podendo engendrar esforços para que sua
mensagem se aproxime, ou pareça, com a verdade.
Também imperioso destacar aqui a dualidade circundante entre o mito e
a ideologia. O pensamento ideológico, naquilo que nos interessa, pressupõe a
manutenção de uma condição atual, naturalizando a existente. Já fazendo um
mergulho na ótica das relações sociais, temos que um sistema dominante utiliza
mitos enquanto instrumentos de dominação ideológica, fazendo uso do poder
de persuasão da narrativa mitológica.
Nesse raciocínio, mais uma vez, fica claro aqui que o relato mítico não é au-
tônomo e reflete aquilo que seus idealizadores representam. Nesse ponto, afirma
Marx (1982, p. 36):
3 Importa dizer, nos moldes estabelecidos pelos autores da narrativa, cujos objetivos podem ser
explícitos ou implícitos.
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4 Robert Merton, sociólogo estadunidense, foi um dos percursores da Teoria da Anomia que aprofundou
os estudos de Durkheim para analisar a estrutura cultural como o conjunto de valores normativos
que governam a conduta comum dos membros de uma determinada sociedade ou grupo. Sua teoria
refletiu o momento econômico vivido pelos Estados Unidos, a partir da primeira metade do século
XX. Merton avaliou a pressão imposta culturalmente por uma sociedade (no caso, o “american
dream”) frente a realidade social vivida.
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5 Dilema narrado pelo escritor português na sua obra “Ensaio sobre a Cegueira”. Nessa narrativa,
Saramago expõe a face sombria da humanidade a partir de uma cegueira generalizada que só faz
potencializar o individualismo, o egoísmo e o pior do ser humano.
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Tem início nesses três mecanismos, seguindo a linha do jurista e sociólogo italia-
no, a figura mitológica do direito penal enquanto direito igual, ou igualitário. Nesse
mesmo pensar, temos que o processo de criminalização, visto hoje a partir de inú-
meras constatações empíricas, aponta para uma negação radical dessa igualdade.
Na prática, fica nítida a percepção de uma desigualdade substancial, notada-
mente acentuada por esses mesmos mecanismos de criminalização. Nesse senti-
do, o caráter fragmentário do direito penal vem a ser utilizado, subterraneamen-
te, como fundamento para o foco nas condutas delitivas da classe subalterna.
A figura mitológica também se destaca pela influência nos institutos de con-
trole social. Com efeito, a influência da narrativa mítica, enquanto instrumento
de dominação a ser exercido pelo controle social, atua nos mais diversos campos
científicos, como na psicologia por exemplo. No direito não seria diferente.
Para Marx, o sistema jurídico nada mais é do que parte da “superestrutura”
invocada pelas forças produtivas para manutenção das relações sociais de
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produção. Nesse passo, mitos9 são criados como forma de ilusão e dominação
pela classe dominante.
Assim, o mito da igualdade, nas palavras de Baratta (2011, p. 162), pode ser
estampado nas seguintes proposições:
9 Os reais objetivos de um ordenamento jurídico podem ser colocados como mito imposto pela
superestrutura, nas palavras de Marx.
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Por fim, não se pode deixar de prescindir os efeitos reais do poder polí-
tico, que, detentor como é da parcela maior que compõe a “superestrutura”,
impõe massivas narrativas míticas que escondem e, na verdade, desviam o foco
maior da problemática penal, em especial, no Brasil. Dentre os males maiores,
destacam-se o superencarceramento, o aumento da criminalidade, inexistência
do fim ressocializador da pena e a seletividade gritante, e ao mesmo tempo
subterrânea, do sistema penal. Todos esses, em especial o último, terminam por
desmascarar o mito da igualdade tão propagado pelos sistemas jurídicos oficiais.
4. Da conclusão
Diante daquilo que foi explicitado, constata-se que o mito ostenta um pro-
pósito, seja temporal ou atemporal, contínuo ou descontínuo, com abrangên-
cia espacial limitada ou ilimitada. A manifestação cultural, e, por conseguinte,
dominante, da narrativa mitológica se perfaz desde os primórdios e é até hoje
invocada constantemente no seio das relações sociais.
O direito, enquanto instrumento estatal de controle ideológico se apropria das
representações míticas como forma de persuasão e dominação, obviamente masca-
rados por objetivos interpostos. O mito da igualdade no direito penal é apenas um
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deles diante de todo um exército fictício envolto nas relações estruturadas da socieda-
de capitalista. Resta comprovado o discurso mitológico da igualdade na medida que
se verificam, continuamente, a seletividade dos órgãos de controle social, mormente
aqueles do aparelho penal que expõe claramente um direito desigual por excelência.
Os sistemas sociais e penais de controle longe estão de refletir a verdade
profunda (conforme Sartre, já citado) da igualdade colocada e publicada pelo
ordenamento jurídico. E também não se interessam no desfazimento, ou na
transformação desse mito. O sistema carcerário é a maior provocador do des-
fazimento desse mito: a grande maioria dos encarcerados são pretos e pobres,
punidos por crimes que são identificados facilmente no seio das camadas sociais
mais baixas e periféricas.
Para além disso, os órgãos policiais, investigativos e também judiciais ex-
põem de forma constante uma efetividade de ação também refletida, na grande
maioria, entre os mais necessitados. E nestes, as políticas públicas socioeconô-
micas de distribuição de renda, educação, cultura, desporto, não chegam nem
perto de se concretizarem. Longe temos, essa igualdade. Ela é mitológica.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Sartre: Direito e Política. São Paulo: Boitempo,
2016, p. 68.
883
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
884
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
______. Manifesto Comunista. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 1998.
______. Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 6 ed. Curitiba: ICPC, 2014.
SMITH, Pierre. A Natureza dos Mitos. In: MORIN, Edgar e outros. São
Paulo: Cultrix, 1978.
885
O trabalho na prisão: uma comparação
entre as workhouses do século XVII
e o Projeto de Lei do Senado 580/2015
Introdução
As prisões são formas-prisões de controle numa sociedade, as quais se confi-
guraram em diferentes maneiras de marginalizar corpos que não se adequavam
aos padrões de lógica econômica, numa era industrial. As workhouses consistem
em uma dessas configurações que se deram na história.
Os indivíduos que não se adequavam à norma industrial e que assim se tor-
navam compulsoriamente mendigos, segundo Rusche e Kirchheimer, recebiam
penalidades por essa condição social. Existiu uma penalização para aqueles que
não se ajustavam ao modelo de industrialização moderna.
Nisso, se percebe como o capitalismo, este vigente modelo econômico e
revolucionário, segundo Karl Marx (2005), consegue se alinhar, tornando-se
interesse da burguesia, sejam leis, moral e religião. As penalidades estão dentro
de uma “obviedade” econômica, para Foucault (2014).
E sociedade vai transformando as formas de adequações ao trabalho do bur-
guês moderno e de uma forma em que esse corpo pague por esse desajustamento
social e atualmente chegue a possibilitar esse ressarcimento pela moeda (dinhei-
ro). Em muitos lugares, o Estado está tirando de si a responsabilidade de arcar com
o preso para ressocializá-lo; o capitalismo toma tal responsabilidade para si, então
teremos um tratamento de readequação com base no lucro direto ao capital.
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Não era possível que os homens expulsos da terra pela dissolução dos
laços feudais e pela expropriação violenta e intermitente se tornassem
fora da lei, fossem absorvidos pela manufatura no seu nascedouro com
a mesma rapidez com a qual aquele proletariado era posto no mundo.
Por outro lado, tão pouco aqueles homens, lançados subitamente para
fora da órbita habitual de suas vidas, podiam adaptar-se, de maneira
tão repentina, à disciplina da nova situação. Eles se transformaram,
por isso, em massa, em mendigos, bandidos, vagabundos, em parte por
inclinação, mas na maior parte dos casos premidos pelas circunstâncias.
Foi por isso que, no final do século XV e durante todo o século XVI,
proliferou por toda a Europa Ocidental uma legislação sanguinária
contra a vagabundagem. Os pais da atual classe operária foram punidos,
num primeiro tempo, pela transformação forçada em vagabundos e
miseráveis. A legislação os tratou como delinqüentes voluntários e
partiu do pressuposto que dependia da boa vontade deles continuar a
trabalhar sob as velhas condições não mais existentes.
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
De fato, nesse período, iniciou-se um forte combate ao ócio daqueles nos quais
se enxergava uma oportunidade se serem absorvidos pelo trabalho nas fábricas.
Segundo Melossi e Pavarini (2006, p. 36), em 1530, na Inglaterra, ainda no século
XVI, um estatuto obrigava o registro de vagabundos, diferenciando os impotents,
aqueles que não serviam para o trabalho, e que por isso, era permitida a mendi-
cância, e os que seriam castigados com açoites caso o fizessem. No mesmo senti-
do, em 1547, foi editado um estatuto que previa sanções cruéis para aqueles que se
recusassem a trabalhar: na primeira vez, seriam entregues como escravos por dois
anos, na segunda vez, punidos com escravidão perpétua, e, numa terceira vez,
condenados à morte (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p.65).
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
891
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
“Art. 12...............................................................................................................
§ 1º O preso deverá ressarcir o Estado das despesas realizadas com a sua
manutenção no estabelecimento prisional.
§ 2º Se não possuir recursos próprios para realizar o ressarcimento, o
preso deverá valer-se do trabalho, nos termos do art. 29 desta Lei.” (NR)
“Art. 39...............................................................................................................
VIII - indenização ao Estado das despesas realizadas com a sua manu-
tenção; ...................................................................................” (NR)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. (BRASIL, 2015)
892
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
O próximo passo, já dado em vários países no mundo, é não apenas não ter
gastos com o sistema carcerário, mas ter lucro com ele, através da privatização. A
ideia não é nova, vide o contract system, pelo qual o Estado era pago pelas empre-
sas em troca da força de trabalho dos presos, e o leasing system, no qual o Estado
abdicava temporariamente da direção da instituição, ambos já vigentes nos EUA
do século XVIII (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 196). Nesse sentido:
893
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
O preso já numa “obviedade” econômica paga por uma infração que lesou
numa vítima, além da vítima a sociedade inteira. Nessa lógica capitalista o
tempo é pagamento do preso para a sociedade o dano cometido. Além de pagar
com o tempo se pagaria também com dinheiro ao Estado o maleficio cometido.
894
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Conclusão
Desde as workhouses, o sistema punitivo obedecia ao princípio da menor ele-
gibilidade, ou seja, as condições dentro da instituição punitiva devem ser piores
que fora dela, para que, desse modo, se prefira viver a realidade fora de seus
muros, por menos rica de possibilidades que seja. No entanto, enquanto nas
workhouses se projetava um reaproveitamento das pessoas, moldando-as para
895
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
o que viria depois de sua saída – as indústrias; atualmente se percebe cada vez
menos na política criminal uma preocupação, por mais problemática e menos
resolutiva que seja, de preparar o preso para a realidade extra-muros. Como já
falado anteriormente, o capital é decisivo nesta questão: enquanto que, na épo-
ca das workhouses, a mão de obra livre não era suficiente, e por isso, precisava-se
adestrar a massa proveniente dos campos, nos dias de hoje, devido ao cresci-
mento populacional, desenvolvimento tecnológico e especialização do trabalho,
a demanda de empregos é bem inferior à oferta, existindo, na verdade, uma
reserva de trabalhadores à disposição. Dessa forma, a mão de obra disposta no
cárcere já não é mais necessária, e pode ser relegada à condição marginal defi-
nitiva. A custódia do preso se torna cada vez menos interessante para o Estado,
e o trabalho desempenhado na prisão, antes totalmente improdutivo, em verda-
de, ganha novos olhares e uma pretensão de que sirva ao menos para custear a
manutenção do preso, já que os gastos relacionados ao cárcere parecem cada vez
mais absurdos à sociedade, para quem ressocialização é impossível, ao passo que
esse mesmo trabalho ganha uma roupagem de nova forma de punição.
Referências bibliográficas
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
______, Karl. Manifesto Comunista Tradução Álvaro Pina. 4ª. Ed. São Paulo:
Boitempo Editoral, 2005.
897
Os fatores socioeconômicos enquanto
determinantes do delito:
a necessária abordagem crítica
criminológica do sistema penal brasileiro
1. Introdução
O sistema penal brasileiro, em percepção notória, encontra-se em crise.
Não há concretização fática dos princípios norteadores dos direitos humanos
e dos direitos sociais necessários ao bem-estar coletivo. Superencarceramento
em escala exponencial, violência urbana e rural sem controle, violação cons-
tante dos direitos humanos, atuação seletiva enraizada nas agências punitivas
estatais e defensoria pública sem estrutura e insuficiente, são alguns dos maio-
res gargalos enfrentados pelo Estado para uma gestão da segurança pública
democrática e humanizada.
Segundo o último levantamento de dados do Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, o Brasil possui uma população car-
cerária aproximada de 726 mil presos3, sendo 64% negros e 37% presos provisó-
rios. Quatro crimes respondem a quase 80% do total: tráfico, roubo, furto e ho-
1 Mestrando em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
– UERN. Pós-graduado em Direito Penal pela Faculdade Damásio. Graduado em Direito/UERN.
Participante do Grupo de Pesquisa “Estado, Segurança Pública e Cidadania” da UERN.
2 Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Pós-graduada
em Direitos Humanos/UERN. Juíza de Direito do TJ/RN.
3 Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Disponível em http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-
levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias. Acesso em 03 jul 2018.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Criminologia Crítica. No fim, a presente pesquisa ousa intentar uma análise, sob
o enfoque da crítica criminológica, que possa despertar mudanças de posturas
no sistema penal brasileiro baseadas em controles sociais não excludentes e que
sejam parametrizadas por enfoques sociais e econômicos.
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
4 Não por menos, a interdicisplinaridade, consoante já dito, é condição necessária para o estudo e
pesquisa da ciência criminológica.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
escolas”. Entre as principais que nos interessam neste momento, podemos citar
a escola clássica e a positiva.
A escola clássica foi a precursora das escolas criminológicas e tem seu surgi-
mento com a obra do Marquês de Beccaria já citada. Duas teorias embasaram
os estudiosos clássicos, a saber, o jusnaturalismo (natureza eterna e imutável do
ser humano) e o contratualismo de Rousseau. A metodologia desta escola se
preocupou em estudar o processo de eleição feita pelo indivíduo ao avaliar os
benefícios e os prejuízos quando do cometimento do delito, sendo secundário a
classe social das pessoas, as características de sua família, a educação que rece-
beu, dentre tantos outros fatores (MAÍLLO, PRADO, 2016).
Já a escola positiva deita suas raízes no início do século XIX na Europa e é influen-
ciada pelos princípios iluministas e fisiocratas. Pode-se dividir em três fases: antropo-
lógica (Lombroso), sociológica (Ferri) e jurídica (Garófalo). Foi através do estudo de
Cesare Lombroso que se desenvolveu o conceito de criminoso nato, que se fez estudos
intensos sobre tatuagens, aplicando-se aqui o método empírico-indutivo. Ele afirmava
que o crime não é uma entidade jurídica, mas sim um fenômeno biológico, devendo,
portanto, ser utilizado o método indutivo experimental em seu estudo.
Entre os anos 1856 a 1929, Enrico Ferri, então genro e discípulo de Lom-
broso, criou a chamada sociologia criminal, onde se negou o livre arbítrio como
base da imputabilidade, enfatizando a responsabilidade social como forma de
prevenção e defesa social (a prevenção geral é mais eficaz que a repressão).
Nos seus textos, Ferri afirmou, nas palavras Antônio García-Pablos de Molina
(2002, p. 195), que o delito:
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
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6 Através da obra “Delinquent Boys” (1955), Cohen fez um estudo acerca das frustrações dos jovens de
classes baixas.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
É com base nessa linha de pesquisa que a criminalidade passa a ser vista
sob o ângulo de ação do sistema penal, que a define e aponta as consequências
do seu existir. Tal análise parte da concepção das normas abstratas e perpassa
pelas instâncias oficiais. Dentro desse contexto, os teóricos do labeling appro-
ach passam a interpretar o crime não como um conjunto de características de
indivíduos ou grupos, mas como um processo de interação, de reação, entre as
condutas tidas como delituosas e não delituosas.
Para essa corrente teórica, a pena cria uma espécie de desigualdade para os de-
linquentes, a partir do momento que o rotula e cria um estigma (etiqueta) para o
condenado. Nesse sentido, essa rotulação não afeta apenas a maneira com os ou-
tros enxergam o indivíduo, mas também influência o senso de identidade pessoal
(GIDDENS, 2012, p. 669). A criminologia inspirada no labeling approach põe em
xeque o princípio finalístico e de prevenção da pena. Será que a pena cumpre hoje
seu papel reeducativo? Baratta (2011, p. 90) assevera que antes de terem efeito re-
educativo, na maioria dos casos, as penas detentivas consolidam uma identidade
desviante do condenado e o seu ingresso na carreira tortuosa do crime.
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
Com efeito, temos aqui uma perspectiva dialética que vai ensejar uma nova
visualização do crime, visto não mais sob uma realidade ontológica, mas sim
como “status” atribuído a determinadas pessoas. No mais, temos que para Cri-
minologia Crítica o estudo do crime e do controle social baseia-se na divisão da
sociedade em classes (estrutura econômica) e na reprodução das condições de
produção (capital / trabalho assalariado) pelas instituições políticas e jurídicas.
Fazendo o fecho necessário, acentua Cirino dos Santos (2012):
A Criminologia Crítica é o produto da integração da teoria do conflito
de classes do marxismo, que desenvolveu um modelo de compreensão
dos processos objetivos das relações sociais de produção e distribuição da
riqueza material, com a teoria da interação social do labeling approach,
que desenvolveu um modelo de compreensão dos processos subjetivos de
construção social da criminalidade.
7 Para a Criminologia, o sistema penal se consubstancia a partir de três instituições, a saber, a policial, a
judiciária e a penitenciária, que, nos termos das regras jurídicas que as regem, realizam o direito penal.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
que incorreram no delito penal; e pelo executivo, que é responsável pela fun-
ção de cumprimento da sanção penal, mormente o cárcere. Todas essas fun-
ções estatais, vale dizer, são investigadas dialeticamente e numa perspectiva
histórico-materialista.
Para os teóricos da Criminologia Crítica, o sistema penal, em verdade, se
encontra envolto de objetivos disfarçados que impõe, de maneira sistematizada
e institucionalizada, a realidade social desejada pela classe dominante. Doutras
palavras, mais um instrumento para a supremacia do status quo. No fim, inte-
ressa à Criminologia Crítica o estudo da realidade desse sistema, e não somente
a realidade por ele estampada nas normas jurídicas.
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
sociedade. Repise-se, não é por ser a pessoa pobre, que naturalmente irá
para o caminho do crime.
Aqui o ponto de análise crucial é o fato de que as condições impostas pela
pobreza, e todas as limitações impostas pela falta de recursos oportunidades,
pode ser ensejador da conduta delituosa. A par disso, esclarece Newton Fernan-
des e Valter Fernandes (2002, p. 389):
8 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/10/1931680-22-dos-brasileiros-vivem-
abaixo-da-linha-da-pobreza-diz-estudo.shtml. Acesso em 30 dez 2017.
9 Também não há como passar em branco as cifras negras da criminalidade que dizem respeito aos
crimes não investigados ou solucionados. Ou ainda, as cifras douradas, que tratam dos crimes
cometidos pelas classes privilegiadas.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
10 Ver artigo e pesquisa do Banco Mundial. Brasil combate à criminalidade levando desenvolvimento
para as favelas. Disponível em: http://www.worldbank.org/pt/news/feature/2013/03/21/brazil-crime-
violence-favela. Acesso em 30.12.2017.
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
11 Disponível em http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2017/08/brasil-tem-r-13-milhoes-de-desempregados-
diz-ibge.html. Acesso em 30.12.2017.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Logo, sem emprego e sem dignidade, o trilhar do crime fica mais próximo
e a promessa de dinheiro fácil envolvente. É preciso um conjunto de políticas
públicas que englobem formação profissional, capacitação, microcrédito entre
outros fomentos, com vistas não somente a geração de emprego, mas também a
circulação da renda entre os subalternos.
Aqui, mais uma vez, o Estado é necessário e precisa se fazer presente no sentido
de propor e fomentar programas de geração e qualificação de postos de trabalho. A
crise econômica de 2008 e o colapso do capitalismo mostraram que o liberalismo
econômico não se incomoda com o desemprego e suas consequências, pelo contrário,
os objetivos sempre são guiados pelo lucro e pela acentuação das desigualdades sociais.
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
4.5. Preconceito
Podemos considerar que preconceito é um estereótipo negativo, e a discri-
minação é o preconceito posto na prática, nas ações cotidianas. Acerca do pre-
conceito, GIDDENS (2012, p. 455), tratando do preconceito, assevera que ele
se refere a opiniões e visões preconcebidas que “muitas vezes baseiam-se em
rumores, em vez de evidências diretas, e são resistentes à mudança, mesmo
frente a novas informações”. São várias as espécies de preconceito que denotam
repugnância e maculam a própria dignidade da pessoa humana.
Discriminações pela etnia, raça, cor, pelo regionalismo, dentre várias outras, são
cada vez mais corriqueiras no Brasil. Hodiernamente tem sido muito comum a dis-
criminação por gênero e até pela opção ideológica. Num passado não tão distante
vimos sessões contínuas de terrores e atrocidades cometidos, levados a efeito por
condutas e políticas discriminatórias que até hoje envergonham o ser humano.
Já o racismo é uma das formas disseminadas de preconceito que leva em
conta conceitos de raça humana. De se destacar que esses “conceitos” que
envolvem superioridade ou inferioridade de indivíduos nunca foi comprova-
do cientificamente. Doravante serviram para alastrar condutas deploráveis ao
longo do tempo. A prática do racismo tem se alastrado há tempos por todo o
mundo, mormente ainda com relação com os negros, mas também muito forte
12 Base conceitual definida por Marx e Engels que define os instrumentos políticos, legais e ideológicos
de dominação e perpetuação do determinismo econômico nas relações sociais.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Parece ser evidente que tais condutas criminosas provavelmente façam parte
das “cifras negras” da criminalidade. Embora sejam presenciados diariamente,
os crimes de racismo não encontram na pena criminal um obstáculo. E aqui
importa destacar que o racismo é um delito muito mais comum nas classes
privilegiadas. Cada vez mais comum nos noticiários e no dia a dia familiar e
comunitário, a incidência de crimes contra homossexuais e, pior do que isso, a
disseminação de um tratamento diferenciado e policialesco, incentivado até por
autoridades e formadores de opinião.
De igual monta, crimes contra a mulher, contra imigrantes, minorias étni-
cas, agentes de movimentos sociais, trabalhadores rurais, grupos religiosos de
gênese africana, dentre vários outros. Há também outro viés da prática pre-
conceituosa e da discriminação que não deixa de ser tão importante quanto.
É aquele emplacado pelo próprio sistema penal. A Criminologia Crítica vem
atacar todas as formas de preconceito, em especial, àquela considerada raiz, a
discriminação quanto aos mais pobres, os sem privilégios, os já vitimados por
um sistema excludente e que aprofunda cada vez mais as desigualdades sociais.
Esses, já nascem com a chancela de delinquente em potencial.
5. Da conclusão
A Criminologia Crítica parte do pressuposto que o percurso de formação e
aplicação da norma penal violada, indo até a punição prescrita, é por demais
influenciado pelos interesses da classe dominante. Nesse sentido, as ideias de
um sistema penal garantidor de uma ordem social justa caem por terra, ao ana-
lisarmos a realidade do comportamento seletivo e parcial dos legisladores e dos
aparelhos formais de controle (policial, judicial e penitenciário).
915
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
Referências bibliográficas
BECCARIA, Marquês Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Ed.
Martins, 2003.
916
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
______; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Trad. Álvaro Pina. São Paulo:
______. Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 6 ed. Curitiba: ICPC, 2014.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4ª ed. – São Paulo: ed. RT, 2014.
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
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Patriarcado e guerra às drogas:
uma análise feminista marxista do
hiperencarceramento por crime de tráfico
1. Introdução
O aumento do encarceramento de mulheres, sobretudo por incidência em
crimes previstos na Lei de Drogas (Lei 11.343/06), perpassa por uma complexa
conjuntura política. Na América Latina, este cenário tem seu prenúncio com
os processos de desemprego e empobrecimento pelos quais o continente passou
na década de 90, durante o neoliberalismo. Coincide com essa conjuntura o
crescimento urbano, a reestruturação produtiva, e mudanças na estrutura fami-
liar, marcada pelo aumento da chefia do lar por mulheres. Esses acontecimentos
fomentaram o fenômeno da feminização da pobreza, isto é, do aumento do con-
tingente de mulheres em situação de miserabilidade (CHERNICHARO, 2014).
Mirando para o Brasil, esse fenômeno ganha força após o golpe antidemocrá-
tico concretizado em 2016. Derivado de uma resposta reacionária aos avanços das
políticas sociais impulsionadas durante os governos petistas, como a democratiza-
ção do acesso ao ensino superior, a implementação de políticas de redistribuição
de renda e extensão dos direitos trabalhistas (MIGUEL, 2018), a gestão de Michel
Temer (PMDB) opera a manutenção dos interesses do capital. Exemplo disto são
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
algumas das medidas implementadas em seu governo: O Novo Regime Fiscal ins-
tituído pela Emenda Constitucional nº 95/16, que congelou por 20 anos os gastos
federais com a saúde e educação no patamar do que foi gasto em 2017 (DWECK
e ROSSI, 2018); a fragmentação do mundo do trabalho empreendida pela tercei-
rização irrestrita (ADPF 324) e a reforma trabalhista (ALVES, 2017).
Nesse sentido, dados presentes na Síntese de Indicadores Sociais (SIS) reali-
zada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatam que
houve um aumento da pobreza no governo de Michel Temer, atingindo 26,5%
da população, totalizando 54,8 milhões de pessoas, 02 milhões a mais que no
ano de 2016 (IBGE, 2018). O mesmo relatório demonstra que quando adotado
o índice de pobreza de 5,5 dólares diários para análise do perfil da totalidade da
população brasileira, há incidência de 64,0% desse índice nos arranjos formados
por mulheres pretas ou pardas, e de 55,6% no arranjo de mulheres sem cônjuge
ou com filhos de até 14 anos (IBGE, 2017).
É diante desse acirramento das desigualdades e das contradições existentes
entre o superdesenvolvimento das forças produtivas e da precarização contínua
das relações de produção (MANDEL, 1978) que o trabalho ilegal e informal
ganha relevo, principalmente o tráfico de drogas3.
Nesse contexto político e econômico das transformações vivenciadas no Brasil,
o aumento da população penitenciária feminina (CELS et. al, 2011, apud CHER-
NICARO, 2014) é um fenômeno que está invariavelmente combinado à situação
de desemprego das mulheres, ao baixo grau de escolaridade e aos arranjos familiares
em que estas são únicas responsáveis pelo sustento dos filhos (CORTINA, 2015).
O ingresso no tráfico por fatores capitalistas estruturantes, somados ao en-
durecimento de penas presentes na atual política de drogas e da gestão social da
pobreza pelo Estado Penal desemboca no encarceramento em massa, sobretudo
das mulheres pretas e pobres.
Apesar de que em termos numéricos os homens são maioria (665.482 segun-
do INFOPEN, 2016), alijar do debate e não estabelecer as mulheres como objeto
central, por serem tanto minorias políticas quanto numéricas das proporções
3 Sob o termo “drogas” pairam diversas interpretações, em sua maioria equivocadamente presume-
se tratar de substâncias psicoativas ilegais. Dessa forma, drogas são “qualquer substância natural
ou sintética que quando introduzida no organismo modifica suas funções, mas também, devem ser
apreendidos como uma mercadoria, que, no contexto da sociedade capitalista, supõe trabalho, valor
de uso e de troca (para atender as necessidades humanas e autovalorização do capital na produção
de bens), exploração e a consequente obtenção de mais-valia” (PINHEIRO, p. 24, 2017).
920
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
2. Metodologia
A análise situa-se no campo do feminismo marxista, orientada por um ho-
rizonte materialista, histórico e dialético. Realizar-se-á uma investigação qua-
litativa, mediante revisão bibliográfica e consulta a documentos oficiais, sendo
centrais as seguintes indagações: houve aumento no encarceramento de mulhe-
res por incidência em crime de tráfico no ínterim após a promulgação da Lei
11.343/06? Em que medida o aporte teórico feminista marxista pode contribuir
para o estudo desse fenômeno?
A perspectiva feminista adotada vincula-se a teoria revolucionária marxista
que traz consigo a luta por liberdade substantiva, demandando necessariamente
“pensar as relações sociais e seus antagonismos, bem como uma ação coletiva
em torno de um projeto societário classista” (CISNE, 2018). Assim o aporte te-
órico marxista que subsidiou inúmeras lutas políticas (VALENÇA, 2013) é um
instrumento de compreensão da realidade indispensável para a luta das mulhe-
res, posto que a abordagem das condições objetivas e estruturais da sociedade
capitalista no âmbito da Criminologia Radical desloca o centro da análise para
as formas de tratamento político e controle social do crime e da criminalidade
(SANTOS, 2015), desvincula-se de uma análise jurídica abstrata e principioló-
gica, e possibilita uma perspectiva teórica político-interventiva.
Desse modo, serão analisadas as diferenciações contidas na atual Lei de
Drogas sobre o enquadramento de indivíduos em usuários e traficantes, e qual
921
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
a influência que essa diferenciação atinge e agrava a seleção das sujeitas crimi-
nalizadas pela posição de classe subalterna (SANTOS, 2015). Nesse sentido, a
investigação perpassará sobre dados contidos no Levantamento de Informações
Penitenciárias (INFOPEN, 2018) sobre a situação das mulheres em privação de
liberdade, dando ênfase aos seguintes números: qual o crescimento do encar-
ceramento feminino no intervalo de tempo adotado para análise, como foco
no ínterim imediatamente posterior a promulgação da Lei objeto de análise até
2016, data-; qual o percentual que cumpre pena por incidência em crime de
tráfico de drogas (art. 33, Lei 11.343/06).
922
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
4 “O uso de uma justificativa médica e de saúde pública para se proibir certas drogas é contraditório
com o fato de que algumas das substâncias mais perigosas são permitidas devido ao seu uso ser
tradicional no Ocidente cristão. O cigarro, por exemplo, desde a guerra da Criméia incorporou-se à
ração dos exércitos e aos hábitos populares, o chá e o ópio à dieta da Inglaterra vitoriana, e o álcool
na forma do vinho, da cerveja e dos destilados continua sendo a bebida nacional de muitas nações”.
(CARNEIRO, p.4, 2002)
5 “Expressão cunhada pelo ex-presidente americano Richard Nixon em 1971 para se referir a sua
política de drogas, centrada na repressão ao uso e ao tráfico, amparada por intervenções policiais
e militares, domésticas e internacionais. Atualmente, o termo é usado para se referir de modo
geral a qualquer política que prioriza a repressão ao tráfico em detrimento de ações de prevenção,
tratamento ou redução de danos”. (ARAÚJO, 2017, p. 44-45).
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
da pena mínima para crime de tráfico para cinco anos de reclusão; outro é a
diferenciação entre “usuário/doente” e “traficante/delinquente”.
O artigo 28 da Lei tipifica o uso de substâncias psicoativas como crime não
sujeito a pena privativa de liberdade, prevê ainda penas alternativas cabíveis
como a advertência sobre os efeitos das substâncias, a prestação de serviços
à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso
(art. 28, I, II). Ainda que a previsão aparente-se benéfica, cabe indagar: Qual é
a distinção entre usuário e traficante e como e por quem ela é feita?
O § 2 do mesmo artigo estabelece que o usuário será identificado pelo juiz,
sendo este o responsável por averiguar se a droga encontrada se destinava a uso
pessoal ou não do indivíduo. Nessa equação entram as variáveis da “natureza
e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se de-
senvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e
os antecedentes do agente” (MACHADO, 2010, p.1011). A redação normativa
abre espaço para o exercício hermenêutico subjetivo dos juízes, que na prática
enquadram usuários como traficantes, aplicando a eles penas mais severas de-
correntes do aumento da pena mínima para cinco anos de reclusão.
É justamente nas lacunas normativas que abrem espaço para a discricio-
nariedade dos juízes que o Estado Penal e a guerra às drogas materializam-se,
causando a superlotação dos sistemas penitenciário e socioeducativo, atuando
de forma ineficaz no controle da criminalidade e eficaz na criminalização da
pobreza (PAIVA & MIRANDA, 2017).
O aumento da pena para o crime do tráfico representa uma incoerência do
sistema legislativo penal. Ao compará-lo com outras sanções, como a cominado
ao crime de estupro (artigo 213 do Código Penal), constata-se que a diferença
em suas penas bases este último é apenas um ano superior, e nas penas máxi-
mas, a de estupro é um terço menor (BOITEUX & PÁDUA, 2018).
Há quem diga que o aumento do encarceramento causado pela Lei de Dro-
gas tem ligação direta com o fato desta não estabelecer critérios objetivos para
distinguir as tipificações penais. Por critérios objetivos compreende-se uma:
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
O fato de não haver no Brasil estudos sobre padrões de uso de drogas bem
como parâmetros de qualidade e pureza das substâncias, criam um cenário
desfavorável para uma possível adoção normativa destes critérios. Ainda que
eles existissem, não trariam impactos significantes no número atual e cres-
cente de encarcerados (MARONNA & ELIAS, 2018), uma vez que sobre
os delitos relacionados ao tráfico de drogas apresentam predominância na
repressão Estatal, sobretudo relacionada a grupos sociais específicos (negros e
pobres) (MARONNA & ELIAS, 2018).
Exemplo disto é que em 2012 o número de presos totais era de 548.003 pes-
soas, 25,21% delas condenadas por tráfico de drogas (BOITEUX & PÁDUA,
2018). Em termos absolutos, há mais homens presos por esse delito, porém em
termos relativos “as mulheres estão super-representadas dentre os condenados
por esse crime”. Isso quer dizer que houve um crescimento alarmente no núme-
ro de apenadas por tráfico na última década.
A verdade é que no movimento real da messe cenário de aumento de mulhe-
res presas, a proporção de apenadas por cometimento de crimes relacionados a
drogas saltou de 49% em 2005 para 61% em 2013 (IBCCRIM, 2016). Dados do
mesmo relatório constatam o número de 18,2 encarceradas para cada grupo de
100 mil mulheres em 2006, e o seu salto para 40,6 encarceradas em 100 mil em
2016. A compreensão desse fenômeno deve partir de uma análise totalizante
que considere não só aspectos mais austeros da própria legislação – aumento
de penas - como causa disto, mas a estrutura da própria sociedade patriarcal/
capitalista, que mediante as opressões decorrentes das relações de raça, sexo e
classe, amplia o contingente humano disponível para os mais baixos salários,
aumentando a capacidade de exploração dessas sujeitas mediante às apropria-
ções do corpo, do tempo e do trabalho não pago das mulheres (CISNE, 2017).
3.2. A seletividade penal feminina no crime de tráfico e a divisão sexual do
trabalho: contribuições da perspectiva feminista marxista
O debate majoritário no campo da criminologia crítica feminista foca
suas análises na figura da mulher desviante (CHERNICHARO, 2016) sob
uma perspectiva epistemológica de gênero centrada nos discursos acerca da
criminalidade feminina. As novas abordagens sobre gênero caracterizam o
distanciamento entre as discussões teóricas e a vida concreta das mulheres,
por vezes limitando-se ao “academicismo” (CISNE, 2017). Sobre a ausência
de potencial transformador real apenas no campo da epistemologia, a mes-
ma autora, pontua que:
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Segundo Kergoat (2000) estas relações possuem uma base material, que
tem como categoria central o trabalho, concretizada na divisão sexual do
trabalho. Esta última é formada por dois princípios: o da separação entre tra-
balhos masculinos e femininos; e o da hierarquia entre o trabalho entre os gê-
neros. Nesse sentido, cabe pontuar de que forma a divisão sexual do trabalho
promovida pelo patriarcado afeta o ingresso no crime de tráfico e estabelece
um padrão de sujeitas alvo da guerra as drogas a partir do estudo dos dados
disponibilizados pelo INFOPEN.
Consoante dados de 2016, do total de mulheres encarceradas, 62% é negra,
acerca do crime de tráfico, 53,5% (DORNELLAS, 2017). Do número total de
encarceradas, 66% destas ainda não cursou o ensino médio, tendo concluído,
no máximo, o ensino fundamental; 62% são solteiras; 74% têm filhos, ao passo
que dados do mesmo período sobre homens encarcerados demonstram que 53%
declararam não ter filhos (INFOPEN, 2018).
Chernicharo (2016) coloca como fator indissociável ao aumento da participa-
ção das mulheres no tráfico o fenômeno da feminização da pobreza. Este emerge
na medida em que a pobreza passa a atingir majoritariamente as mulheres devido
a mudanças na estrutura familiar e nas relações de trabalho. O que se quer dizer
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
6 O processo de exploração das mulheres engendrado pelo patriarcado atinge seu ápice na sexagem.
Esta “A sexagem designa um prolongamento dos conceitos de escravidão e servidão (FALQUET,
2012), por meio do qual as mulheres são resumidas ao sexo, sendo apropriadas não apenas no que
diz respeito a sua força de trabalho, mas, também, ao seu corpo e a sua vida. A sexagem denota a
apropriação material concreta da individualidade corporal das mulheres, em um processo que as tira
da condição de sujeito e as tornam “coisas” (GUILLAUMIN, 2005). Assim, a apropriação se difere da
exploração capitalista sobre a força de trabalho “livre”, pois, não designa relação contratual formal/
salarial mensurada por horas ou produtos. Para Guillaumin (2005), a apropriação sobre as mulheres
se dá tanto individualmente, especialmente por meio do casamento/família, como coletivamente,
por meio das Igrejas, Estado e empresas. Ainda segundo a autora são expressões da sexagem: a
apropriação do tempo; a apropriação dos produtos do corpo; a obrigação sexual e a carga física dos
membros inválidos (bebês, crianças, idosos e pessoas com deficiência) e válidos do sexo masculino)
(CISNE, p.7, 2017)”.
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4. Conclusão
No horizonte de ausência de políticas sociais e garantia de direitos mínimos
sobretudo como a empregabilidade, a escolaridade e à creche, a exploração da
força de trabalho feminino invade outros âmbitos, inclusive o mercado do trá-
fico. Isto aliado ao fomento da crença proibicionista da individualização dos
culpados pelo problema do abuso de drogas, as/aos traficantes, e sua falsa neces-
sidade de punição, massifica o encarceramento de mulheres em uma situação
social específica, deixando-se de perceber as estruturas econômicas e sociais
que determinam a vida dessas sujeitas em sociedade.
A definição da clientela feminina pelo sistema penal perpassa diretamente
pelos crimes relacionados à drogas e desembocam no encarceramento massivo
de mulheres que são mães e únicas trabalhadoras ativas do lar, com dificuldade
de engajamento em trabalhos formais principalmente devido ao cuidado dos
filhos (CORTINA, 2015). Constata-se o óbice que as prisões e o proibicionismo
representam para a emancipação das mulheres. Esta emancipação não com-
preende apenas uma dimensão econômica, mas depende, sobretudo de uma
transformação estrutural da sociedade que abranja o fim da propriedade priva-
da, a mudança da economia doméstica individual em uma economia doméstica
socializada e uma mudança na cultura. Além disso, a mudança na legislação
para que esta se torne menos discriminatória são essenciais para que se chegue
ao patamar de emancipação real feminina (CISNE, 2017).
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Referências bibliográficas
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medium.com/revista-subjetiva/cap%C3%ADtulo-4-do-livro-pris%C3%B5es-
s%C3%A3o-obsoletas-de-angela-davis-b548b39107bd>. Acesso em: 19 set. 2018.
DWECK, Esther, OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de; ROSSI, Pedro. Austeridade
e retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil. São Paulo: Brasil
Debate (2018).
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Pornografia da vingança e violência
contra a mulher: entre a tipificação
penal e os limites da forma jurídica
1. Introdução
Os dados brasileiros sobre a violência contra mulheres são alarmantes. Em
levantamento divulgado pela Central de Atendimento à Mulher constata-se
que foram realizados 634.862 atendimentos em 2015, dos quais 552.748 foram
relatos de violência (Brasil, 2015).
Ainda de acordo com a pesquisa, 49,82% dos atendimentos corresponderam
à violência física; 30,40% a violência psicológica; 7,33% a violência moral; 2,19%
a violência patrimonial; 4,86% a violência sexual; 4,87% a cárcere privado; e
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5 Nesse sentido, os trabalhos de Lelis e Cavalcante (2016), Silva (2015), Simões (2016), Valente, Neres,
Ruiz e Bugarelli (2016).
6 Pesquisa disponível em <http://www.endrevengeporn.org/guide-to-legislation/>.
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7 Importante destacar que o movimento feminista possui diversas vertentes teóricas que alimentam
diferentes incidências práticas, tais como: Feminismo liberal, Marxista, Radical ou da Diferença,
Pós-moderno, Negro, dentre outros. Cada uma dessas vertentes explica a situação de opressão
feminina de maneira diversa, bem como as possibilidades de superação. Por isso, é mais adequado
falar em Feminismos.
8 As feministas desta onda recebem a alcunha de “radical” porque centram suas análises na busca da
origem da dominação feminina pelos homens”.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
o papel social atribuído aos homens e mulheres, sendo urgente descontruir essa
argumentação, tendo em vista que os estudos feministas identificaram que não
são as características sexuais que definem o local social ocupado por homens
e mulheres, mas o que se constrói socialmente sobre os sexos (LOURO, 1997).
A “terceira onda do Feminismo”, conhecida como Feminismo pós-moderno
teve início na década de 1990 e passou a debater as diferenças entre as próprias
mulheres, fazendo crítica às primeiras ondas, principalmente à segunda, tendo
em vista que tratavam o Feminismo a partir das mulheres brancas. Judith Bu-
tler, considerada umas das principais estudiosas e representante desta corrente,
tece sua crítica no fato de haver um problema político nos estudos feministas
das ondas anteriores, tendo em vista que o termo mulheres denota uma espé-
cie de identidade comum, para ela se fazendo necessário fazer intersecção do
gênero com outras categorias, dentre elas: “raciais, classistas, étnicas, sexuais e
regionais de identidades discursivamente constituídas”. Para ela,
Desta forma, percebemos que os estudos feministas são marcados por uma
diversidade de debates e ideais, sendo uma de suas principais contribuições o
nascimento do conceito de gênero, como maneira de questionar a naturalização
das diferenças entre homens e mulheres.
Scott (1989, p. 3), tratando sobre o termo gênero, afirma que este surge,
inicialmente, com as feministas americanas que buscavam indicar o caráter
primariamente social das diferenças baseadas no sexo bem como seu aspecto
relacional, mostrando as ligações existentes entre as mulheres e os homens e
como ambos se influenciavam reciprocamente.
Ainda conforme a autora, no seu uso mais recente, o termo “gênero” pas-
sou a substituir o termo “mulheres”, denotando um caráter mais científico e
neutro aos estudos feministas mas, ao mesmo tempo, retirando do debate a
sua característica política e social. Ademais, o termo “gênero” ainda se aplica
como forma de rejeição às justificativas biológicas para a hierarquia existente
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
são atribuídos por uma classe dominante de acordo com os padrões estabeleci-
dos e naturalizados dentro de um determinado contexto histórico.
Assim sendo, o gênero, assim como outros produtos humanos, perpassa por
esse mesmo processo de significação dominante: a partir dos valores de um con-
texto dado, equivalem significados a expressões que passam a pautar as relações
sociais humanas como regras absolutas.
Nesse espeque, o modelo relacional dominante homem-mulher, que subordi-
na o feminino ao masculino, atribuindo a ambos significados absolutos e ideais,
foi sendo historicamente construído como padrão hegemônico de comporta-
mento ao mesmo tempo que naturalizou as opressões tanto às mulheres quanto
às vivências alternativas da sexualidade.
Assim como explica Berenice Bento (2003, p.1), hoje ocorre o fenômeno
da sexualização dos corpos, ou seja, em face da construção social e cultural de
indissociabilidade e equivalência entre sexo-gênero, o corpo já nasce submetido
a um conjunto de expectativas sexuais.
No contexto das mulheres, o cenário que se coloca é o da opressão, subordi-
nação e repressão a partir do controle exercido de forma estrutural pela família
(pais, irmãos e maridos) e pelo Estado e, legitimado, pela cultura vigente (des-
tacando o papel da religião e da educação), o machismo.
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obsceno deste gênero literário. É neste ponto que a pornografia vai se afastan-
do do cunho político e passa a dar mais destaque ao conteúdo sexual. Alguns
consideram esta censura como uma retaliação da burguesia frente ao potencial
subversivo dos panfletos.
Santana e Rubim (2012, p. 639) concluem que o que há em comum nas dife-
rentes representações históricas da pornografia é o fato de que a mulher sempre
esteve no centro de sua representação e sua produção sempre foi voltada para o
público masculino. Há uma forte exploração do corpo feminino com o intuito
de despertar o apetite sexual do macho. Também toda a publicidade veiculada
em torno da pornografia se volta para o público masculino.
A mercantilização da pornografia e a utilização da sua indústria para ali-
mentar os interesses do capitalismo vem se intensificando, mas não são novida-
de. Datam de outro século. Para Leite (2009, p. 510), “o sexo como um produto
e o prazer como uma mercadoria em si, não são fatores novos no fim do século
XIX, pois sempre estiveram ligados intimamente à edificação do capitalismo”.
É graças a esta exploração exacerbada da mulher pela pornografia que,
entre as décadas 70 e 80, iniciou-se um forte debate entre as feministas acerca
da produção pornográfica e o seu significado para a emancipação ou opressão
dos corpos femininos.
No seio das correntes feministas há um acalorado debate sobre o que vem a
ser a pornografia e qual o seu papel no processo de emancipação da mulher. As
feministas radicais protagonizaram a luta anti-pornografia. De acordo com este
movimento, a pornografia convencional degrada e abusa das mulheres, através
da veiculação de comportamentos violentos e depreciativos que naturalizam a
violência de gênero (Dworkin, 1981, p. 200).
Ainda segundo Dworkin (1981, p. 203), a pornografia pode ser entendida
como uma das instituições de controle do uso do corpo da mulher, juntamente
com a lei, o casamento, a economia, a religião, cada uma delas atuando em
determinada proporção, todas controladas por homens.
MacKinnon (1996, p. 20) define que “empiricamente, toda a pornografia
é feita sob condições de desigualdade com base no sexo” (tradução nossa)9. A
indústria da pornografia comercial, que promove a manutenção dessas relações
desiguais entre homem e mulher no contexto do sexo, é o alvo central da crítica
das feministas proibicionistas, por reforçar o primado da dominação masculina.
9 “Empirically, all pornography is made under conditions of inequality based on sex” (texto original).
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5. Conclusão
A indústria pornográfica nos moldes capitalistas cumpre a função de refor-
çar a dominação e a exploração dos corpos femininos. A sexualidade feminina
permanece um tabu, a despeito do amplo mercado de exploração, que serve
apenas aos homens. Partindo desta perspectiva é que se tem utilizado a porno-
grafia da vingança para vitimizar mulheres e expô-las a situações de violência
moral e psicológica. A partir de então, compreende-se que a criação e aplicação
crua de instrumentos legais não contempla adequadamente esse tipo de viola-
ção. Para além da tipificação, precisamos observar outras questões de grande
relevância, como a proteção totalizante da mulher.
É necessário que, além dos avanços legislativos e jurídicos, progridamos na
luta pela libertação dos corpos femininos da dominação e exploração masculi-
na, que perpassa o enfrentamento ao capitalismo, considerado uma das bases
materiais para a manutenção do patriarcado. Acreditamos que, quando não
houver tamanha criminalização dos corpos e sexos femininos, os danos pela
exposição da intimidade, por mais que ainda se trate de prática ilícita, serão
menores e menos ultrajantes.
Portanto, a saída da tipificação penal por si não tem potencial de resol-
ver o contexto de violência contra a mulher. É preciso pensar novos mar-
cos econômicos, culturais e sociais, fundadas na articulação entre gênero
e classe, bem como na ruptura com o patriarcado, de modo recolocar o
debate do socialismo como caminho para a superação das desigualdades.
Sem a construção de uma hegemonia cultural nova, que realize a ruptura
com o modelo econômico e social atual, não conseguiremos, por meio da
tipificação ou da punibilidade, superar a violência estrutural fundada no
gênero e caminhar para a emancipação humana.
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Referências bibliográficas
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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução:
Christine Rufino Dabate Maria Betânia Ávila. New York: Columbia University
Press, 1989.
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Sistema Penitenciário e Capitalismo:
relações entre a sociedade que pune
e aquela que produz
1. Introdução
A forma de circulação do capital que passou dominar socialmente em mea-
dos do século XVIII é a do capital industrial ou de produção. Nessa circulação o
capital pode ser visualizado como um processo que gera dinheiro visando mais
dinheiro, e com o seu desenvolver, a exploração da força de trabalho, combina-
da com os meios de produção, gera a mercadoria que é vendida no mercado por
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tornando-se, desse modo, excedente (Marx, 1989, p. 731). Com isso, além do
estabelecimento dessa exploração da classe operária gera o mais valor, que nada
mais é do que a materialização dessa relação, esse sistema cria um exército in-
dustrial reserva, formado por essa massa de trabalhadores desempregados, for-
mada, de acordo com Trindade (2017) pelo crescimento da composição orgâni-
ca do capital em sua parte constante, ou seja, a inserção de máquinas, aparatos
tecnológicos, instalações, por exemplo, em detrimento da redução de sua parte
variável, que seria a força de trabalho.
Na conformação desse cenário essas pessoas desempregadas e de baixa ren-
da, são o alvo da política criminal. A conseqüência disso é a constante cri-
minalização da pobreza, consequenciando processos que possuem um caráter
devastador sobre as massa de trabalhadores sobrantes, como colocou Trindade
(2017), que não conseguem se inserir nos circuitos produtivos de mercadorias
ou ainda que vivenciam toda sorte de trabalhos precários e subemprego.
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das políticas sociais do Welfare State, como coloca Löic Wacquant (1999),
que ao desenvolver seu pensamento, reflete sobre a adoção, praticamente
universal, dos princípios de "tolerância zero", que visa limpar as ruas, sendo eles
criados pelos Estados Unidos da América para intensificar seus mecanismos
de repressão à população marginalizada. Nesse limiar, o Estado, tendo se
convertido à ideologia do mercado total, vinda dos Estados Unidos, diminuem
suas prerrogativas na frente econômica e social, voltando-se para a necessidade
da ampliação e reforço de suas missões em matéria de "segurança", subitamente
relegada à mera dimensão criminal (WACQUANT, 1999, p. 04).
Além dos índices de encarceramento de sujeitos determinados, existe o
quadro de homicídios, da violência, também direcionada a um grupo especifi-
co. Com isso, de acordo com o IPEA, a vitimização por homicídio de jovens,
com idades entre 15 a 29 anos no país é fenômeno denunciado ao longo das
últimas décadas, mas que permanece sem a devida resposta em termos de
políticas públicas que efetivamente venham a enfrentar o problema. Os dados
de 2016 indicam o agravamento do quadro em boa parte do país: os jovens,
sobretudo os homens, seguem prematuramente perdendo as suas vidas. No
país, 33.590 jovens foram assassinados em 2016, sendo 94,6% do sexo mascu-
lino. A década 2006-2016, o país sofreu aumento de 23,3% nesses casos, com
destaque para a variação anual verificada em 2012 (9,6%) e 2016 (7,4%). No
período, destoa sem igual comparativo o caso do Rio Grande do Norte, com
elevação de 382,2% entre 2006 e 2016.
É o caso do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, ano base 2015,
que demonstrou que o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no
Brasil é 2,7 vezes maior que o de um jovem branco. Os negros, especialmente os
homens jovens negros, são o perfil mais frequente do homicídio no Brasil, sendo
muito mais vulneráveis à violência do que os jovens não negros. Por sua vez,
os negros são também as principais vítimas da ação letal das polícias e o perfil
predominante da população prisional do Brasil. Para que possamos reduzir a
violência letal no país, é necessário que esses dados sejam levados em considera-
ção e alvo de profunda reflexão. É com base em evidências como essas que po-
líticas eficientes de prevenção da violência devem ser desenhadas e focalizadas,
garantindo o efetivo direito à vida e à segurança da população negra no Brasil.
Com relação à violência letal, se houver um recorte entre os negros e não
negros, e como se eles vivessem em países completamente distintos. Em 2016,
por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de
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não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e
2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa
entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que
a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não
negras. Ainda no relatório do IPEA, na seção das mortes relacionadas com as
“intervenções legais e operações de guerra” houve uma considerável diferença
entre os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade em 2016, que
registrou 1.374 casos de pessoas mortas em função de intervenções policiais, en-
quanto os dados publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com
base nos registros policiais, estimam ao menos 4.222 vítimas nesse mesmo ano.
Percebemos, portanto, que o encarceramento e o extermínio de jovens tem
vitimado milhares de pessoas todos os anos no Brasil, sendo isso influência da
ação do Estado, que volta-se prioritariamente para a política de repressão em
detrimento das políticas sociais. Assim, muitas das vítimas desse processo nun-
ca conheceram a face social do Estado, traduzida em garantia de direitos, como
de educação, lazer, saúde ou trabalho e renda. A realidade das populações mais
pobres no Brasil é de vivenciar a ação truculenta das polícias, reflexo de uma
política criminal de tolerância zero, voltadas ao encarceramento.
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5. Conclusão
Com o passar dos anos houve uma evolução da forma de punir, configu-
rando-se a partir dos meios de materiais que estavam vigorando nos períodos
históricos determinados, vindo a culminar no sistema prisional que temos hoje.
A lógica estabelecida pelas prisões é a ditada pelo capitalismo, que pode ser
caracterizado como sendo um sistema pautado em crises cíclicas, que explora a
força de trabalho, visando lucro. Com isso, os trabalhadores são forçados a ven-
derem sua força de trabalho para os capitalistas e desse modo eles se alienam em
si mesmo, através da propriedade privada, que transforma os trabalhadores em
objeto. Nesse sistema o homem não reconhece o produto do seu trabalho, ou se
reconhece no próprio trabalho realizado, separando-se da sua própria condição
humana, e por conseqüência, animalizando-se.
Os sujeitos que não entram na dinâmica desse tramite configura o
exército reserva, que, de acordo com dados disponibilizados por relatórios
produzidos a nível nacional, tem uma maior tendência a realizar delitos
patrimoniais, ou se submetem a condições de subemprego, pois de acordo
com os dados pode-se traçar um perfil específico. Nesse limiar, percebe-
-se, dentro do sistema capitalista, meios de gerenciamento diferenciado da
pobreza, daqueles que não são absorvidos pela produção do capital, ocor-
rendo esse gerenciamento través de políticas públicas repressivas, fazendo
uma espécie de desmonte do estado de bem estar social, em detrimento da
consolidação de um estado penal.
Dados colocados pelo CNJ mostram que 72% da população prisional
é composta por negros e pardos, indo no mesmo limiar os do DEPEN,
afirmando que 64% desses sujeitos são negros, havendo essa diferença de-
vido os números de informações disponibilizadas durante a alimentação
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Referências bibliográficas
CERQUEIRA, Daniel [et al.]. Atlas da violência 2018. Brasília, IPEA, 2018.
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
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Capítulo IX
Marxismo, Gênero e Raça
A responsabilização pelo cuidado dos
filhos e os impactos na vida das mulheres
1. Introdução
A problemática aqui levantada, isto é, a responsabilização imposta social e
historicamente às mulheres de cuidar dos filhos, presume-se, traz implicações à
vida destas, implicações estas que podem se manifestar nas mais diversas esferas
da vida social, podendo ainda ser diferenciadas de acordo com a época e o local
a ser analisado em suas peculiaridades.
Atualmente, há um discurso em torno dessa questão no sentido de que a
mulher já não desempenha eminentemente o papel de cuidar dos filhos, do
marido e da casa, como também não mais existe a subordinação da mulher ou
a opressão desta pelo homem nas diversas esferas sociais, como havia na socie-
dade patriarcal. No entanto, os estudos sobre gênero apontam que a realidade
de muitas mulheres ainda está muito aquém do aparente, ressaltam ainda a
necessidade tanto de estudos sobre a temática, quanto da organização popular
das mulheres na luta contra as desigualdades de gênero (CISNE, 2012).
A vida cotidiana3 é permeada pela majoritária incidência de mães realizan-
do atividades tais como levar as crianças à escola, acompanhar a vida escolar
destas, levar a equipamentos de saúde para consulta, vacinação, entre outros
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de uma esfera que incorpore a mediação entre as classes, visto que sem ela (a
esfera - o Estado) não há como haver conciliação entre burguesia e proletariado.
Cabe ressaltar que, para o autor, o Estado pertence à classe mais poderosa, à
classe dominante economicamente, tornando-se também a classe politicamen-
te hegemônica (LÊNIN, 1970).
De acordo com estudos acerca da teoria gramsciana, tem-se que
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4 “O atual Regime de Acumulação Flexível, conforme denominação de Harvey (1993), que se estende
a partir da nova fase de crise capitalista (manifestada inicialmente em 1973, com a crise do petróleo)
até os dias atuais, é resultado da confluência de diversas novas configurações que caracterizam um
renovado cenário do capitalismo mundial, o que demandará e permitirá ao capital promover uma
profunda reestruturação sistêmica” (MONTAÑO; DURIGUETTO, p. 180).
5 o “projeto/processo neoliberal” constitui a atual estratégia hegemônica de reestruturação geral do
capital – em face da crise, do avanço tecnocientífico e das lutas de classes que se desenvolvem no pós-
1970, e que se desdobra basicamente em três frentes: a ofensiva contra o trabalho (atingindo as leis
e direitos trabalhistas e as lutas sindicais e da esquerda) e as chamadas “reestruturação produtiva” e
“contra(reforma) do Estado” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011, p.193).
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com foco na família, como é o caso do Programa Bolsa Família, sob o forte
argumento da necessidade de uma maior igualdade de gênero entre os sexos.
Afirma Zola (2015), sobre os programas de transferência de renda: a na-
turalização do papel da mulher como cuidadora é reproduzida no âmbito da
família, contudo é fortalecida por programas sociais, tais como o Programa
Bolsa Família por meio de suas condicionalidades. Para além disso, Martino
(2015) atenta para o fato de que tais programas são falhos ao não realizarem
uma negociação/divisão de funções no âmbito da família, ficando isto a
cargo dos próprios membros.
Carloto (2015) menciona a ausência de serviços públicos que visem o cuida-
do como um problema a ser enfrentado, trazendo uma análise sob três recortes:
gênero, classe e raça/etnia:
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6 Para Iamamoto (2000), a questão social pode ser percebida “como o conjunto das expressões das
desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada
vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus
frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (IAMAMOTO, 2000, p. 27).
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Guedes e Daros (2009) mostram que o ato de cuidar está diretamente vinculado
ao rol de atribuições femininas, as quais a sociedade determinou. Além disso, ressal-
tam que o cuidado acaba por trazer consequências à vida de quem se dispõe a cuidar.
De acordo com Pedreira (2008), “O cuidar não pode [...] ser romantizado
como um ato de abnegação total, pois seus custos são, algumas vezes, altos e
incluem correr determinados riscos” (PEDREIRA, 2008, p. 05).
Um ponto a ser destacado é a existência das redes de solidariedade de que se
utilizam as mulheres quando a elas é atribuído o ato de cuidar. Pedreira (2008) des-
taca esse aspecto no sentido de mostrar que os homens não compõem essas redes:
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A nova mãe se mostra, portanto, como aquela que coloca os filhos como sua
razão de viver, com isso modifica até mesmo seus hábitos para que possa dar a
assistência de que seus filhos necessitam. Ao contrário, aquelas que não aderem
ao novo modelo de mãe passam a ser alvo de críticas e pré-julgamentos por
parte da sociedade, como também a se autoculpabilizarem por não cumprirem
o papel que a maternidade requer.
Com efeito, Badinter (1985) afirma que o novo modelo de mãe imposto na
modernidade é mais facilmente aderido pelas mulheres da classe burguesa, por
suas condições de vida serem favoráveis à disponibilidade de tempo necessário
ao cuidado dos filhos. Já para as mulheres pertencentes às classes pobres, o mito
da maternidade acarreta uma sobrecarga, haja vista que já são responsáveis por
diversas atividades no âmbito familiar, tais como trabalhar fora de casa como
forma de complementar a renda do esposo ou, ainda, ter que dar assistência a
uma grande quantidade de filhos.
A autora traz ainda uma reflexão acerca do grande dispêndio de tempo que
as mães doam aos filhos em detrimento da desresponsabilização dos pais (ho-
mens). Para ela, isso acarreta impactos negativos à vida das mulheres:
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cuidado e a atenção dada aos filhos. Em segundo lugar, “As mulheres estão mais
sensíveis à dualidade dos papéis materno (centralizado na casa, no interior) e
feminino (voltado para o exterior)” (BADINTER, 1985, p. 339).
A partir de seus estudos sobre o mito do amor materno, Badinter (1985)
afirma que, considerando as atitudes maternas em diversos períodos históricos,
o instinto de mãe tão conhecido e reproduzido na sociedade não passa de um
mito. Isto porque não há um modelo de mãe universal, mas, o dom materno
pode se apresentar através de diversos sentimentos e atitudes as quais variam a
depender de cada mulher, podendo até mesmo não existir. Dessa forma, a pes-
quisadora conclui: “O amor materno não é inerente às mulheres. É ‘adicional"
(BADINTER, 1985, p. 360).
Scavone (2001) afirma que o sentimento moderno de maternidade se con-
solidou no contexto de industrialização. Nesse contexto, a massificação da en-
trada das mulheres no mundo do trabalho atrelada à permanência dos cuidados
dispensados aos filhos gerou as duplas jornadas de trabalho.
Ainda em relação às contribuições de Scavone (2001), no Brasil, as novas
configurações de família e de maternidade se caracterizam por um menor
número de filhos por mulher; famílias menores; maior número de famílias
monoparentais (chefiadas por mulheres) e maior participação de mulheres no
mercado de trabalho.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
5. Conclusão
O Estado tem sua parcela de contribuição para a realidade supracitada. Sob
a égide do sistema capitalista, desempenha funções primordiais para a reprodu-
ção da força de trabalho da classe trabalhadora e de incentivo à manutenção do
capital. O Estado capitalista, no contexto apresentado, não se mostra neutro,
mas a serviço da burguesia.
No caso brasileiro, o Estado, por meio das políticas e serviços sociais, con-
tribui para tal realidade na medida em que transfere progressivamente sua
responsabilidade às famílias, a qual recai sobre as mulheres, que desempe-
nham, em sua maioria, atividades domésticas e de cuidado de seus membros.
Os Programas de Transferência de Renda e suas condicionalidades, sobretudo
o Programa Bolsa Família, podem ser citados como exemplo de como o Esta-
do sobrecarrega as famílias (mulheres).
As desigualdades de gênero, especialmente no Brasil, são fruto de um pro-
cesso sócio-histórico marcado pelo patriarcado, sistema em que o homem se
mantém superior à mulher e por uma divisão sexual do trabalho desigual. Com
efeito, a família brasileira foi alicerçada sob essas bases, as quais permanecem
pujantes na sociedade contemporânea, como se pode constatar a partir do nú-
mero alarmante de feminicídios no Brasil e outras formas de violência contra a
mulher presentes no cotidiano em âmbito familiar e extrafamiliar.
Diante do exposto, as mulheres são hoje as principais responsáveis pelo cui-
dado de outros membros da família, a exemplo dos filhos, o qual se soma a uma
série de atividades social e historicamente imputadas a elas sob a falácia de que
possuem dons naturais para o cuidado.
O dispêndio de tempo necessário para a realização dessas atividades traz a so-
brecarga de trabalho que, por sua vez, ocasiona o desgaste físico e psicológico. A so-
brecarga torna-se ainda maior quando estas estão inseridas no mercado de trabalho.
Os impactos dessa responsabilização podem ainda ser conjeturados com o
afastamento das mulheres do mercado de trabalho, e, portanto, pela sua depen-
dência financeira ao marido, o que as coloca em uma situação de subordinação;
ou pela impossibilidade de prosseguir nos estudos.
As consequências da responsabilização das mulheres por atividades relacio-
nadas ao cuidado também podem atingir outras figuras femininas que tomam
para si tal responsabilidade na medida em que são vistas como figuras substitu-
tas às mães, realizando o cuidado temporário das crianças, por meio das redes
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Referências bibliográficas
CISNE, Mirla. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. 1. ed. São
Paulo: Outras Expressões, 2012.
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Matos, Maurílio Castro de; Leal, Maria Cristina (org.). Política Social, família
e juventude: uma questão de direitos. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
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As religiões de matriz africana no
banco dos réus: o Recurso extraordinário
494.601 e a tentativa de proibição do
abate religioso de animais no Brasil
Introdução
O presente trabalho visa a analisar o Recurso Extraordinário (RE) nº
494.601, ação que discute a constitucionalidade do abate religioso de animais
no Brasil, articulando o caso como expressão do racismo estrutural3. O RE em
questão foi interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, MP/RS,
contra decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-RS) que negou pedido de de-
claração de inconstitucionalidade da Lei 12.131/20044. Entre outros argumen-
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5 De 1890 a 1937 a Capoeira foi “proibida” por lei. Cf. Código Penal da República dos Estados Unidos
do Brasil (Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890) Capítulo XIII - Dos vadios e capoeiras.
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela
denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir
lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo
temor de algum mal; Pena de prisão celular de dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96. Parágrafo
único. É considerado circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos
chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
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6 Lei nº 12.131, de 22 de julho de 2004. (publicada no DOE nº 140, de 23 de julho de 2004) Acrescenta
parágrafo único ao artigo 2º da Lei nº 11.915, de 21 de maio de 2003, que institui o Código Estadual
de Proteção aos Animais, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em<www.al.rs.gov.
br/filerepository/replegis/arquivos/12.131.pdf> Acesso em 17 de dez. De 2018.
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7 Cf. ALMEIDA, Sílvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
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8 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual,
eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho
9 Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em
rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em
desacordo com a obtida.
10 DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMENTO, Daniel.
(Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 1,
p. 213-226. Foi utilizada a versão digital disponibilizada no sítio Academia.edu na paginação. Acesso
em 09 de setembro de 2017.
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11 PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria Geral do direito e marxismo. São Paulo: Editora
acadêmica, 1988.
12 Cf. BARBOSA, Henrique. Perseguição aos Terreiros de Candomblé na Década de 1920. Disponível
em <.https://bahia320102myblog.wordpress.com/perseguicao-aos-terreiros-de-candomble-na-decada-
de-1920/> Acesso em 26 de dez. de 2018.
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preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do
denominado curandeiro. (BRASIL, 1890).
16 MOTTA,Aydano André; JACOBS, Cláudia Silva. País registra cada vez mais agressões e quebras de
terreiros. ABRIL. Disponível em<https://super.abril.com.br/sociedade/pais-registra-cada-vez-mais-
agressoes-e-quebras-de-terreiro/> Acesso em 26 de dez. de 2018.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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Racial, lei nº 12. 288/1017, além de legislações internacionais18 sobre o tema, não
se materializam, normalmente, também como consequência do racismo estru-
tural, que tem expressão nessa vertente.
Os votos de Marco Aurélio e de Edson Fachin foram no sentido a dar
provimento parcial ao RE, assentando a constitucionalidade do abate de
animais pelas religiões de matriz africana, pelo primeiro, e de visualizar a
inexistência de quaisquer que seja vício material na norma impugnada na
ação direta, pelo segundo. É necessário visualizar as limitações da luta an-
tirracista dentro do Estado capitalista e suas contradições, tão quanto sua
relação com a emancipação das pessoas negras.
Para a análise do RE, é importante pontuar que não há maus tratos
aos animais na prática de sacralização. A União de Tendas de Umbanda
e Candomblé do Brasil e o Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos
Afro-brasileiros do Rio Grande do Sul sustentam que “Ao contrário do
abate comercial, o abate religioso praticado por judeus, muçulmanos ou
fiéis das Religiões Afro-brasileiras utiliza um método que acarreta morte
instantânea e com o mínimo de dor – a degola”.
Portanto, é inconsistente a ideia de que a sacralização gera dor e sofri-
mento aos animais, tendo em vista a materialidade dos fatos. In casu, tanto
o promotor de justiça, quanto o procurador partilham do posicionamento
de tratamentos crueis aos animais, chegando a afirmar que só deve ser con-
siderada legítima e legal a manifestação religiosa que não ofenda o princípio
da vedação contra a crueldade19.
Dr. Hédio Silva Júnior fez sua sustentação oral pela União de Tendas de
Umbanda e Candomblé do Brasil e Conselho Estadual da Umbanda e do Culto
afro brasileiro do Rio Grande do Sul considerando uma hipocrisia, chegando
17 Art. 1o Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra
a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e
difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Art. 2º É dever do
Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro,
independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente
nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo
sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.
18 Convenção Europeia dos Direitos dos Homens Art. 9º Liberdade de pensamento, de consciência
e de religião
19 Cf. STF. Disponível em<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386393>
acesso em 26 de dez. de 2018.
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21 “O limite da emancipação política fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de
se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado
ser capaz de ser um Estado livre [Freistaat, república] sem que o homem seja um homem livre”
(MARX, 2010, p. 38-39).
22 Cf. ALMEIDA, 2018.
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Conclusões
Vimos ao longo do trabalho que o debate sobre liberdades religiosas, típico
do espectro liberal, ainda está longe de ser pacífico no Brasil. E alguns fatores
concorrem para isso: a reprodução da dominação colonial, o racismo estrutural
e a orientação capitalista do Estado brasileiro se articulam para garantir a he-
gemonia branca nos espaços de poder. Uma das demonstrações desse domínio
se convalida na existência do Recurso Extraordinário ora analisado, que pode
colocar as religiões de matriz africana de volta ao patamar da ilegalidade, onde
passaram boa parte da história de nosso país.
As articulações entre os sistemas de opressão, em uma conjuntura de
avanço dos conservadorismos e de predominância da lógica da “democracia
racial” brasileira, sustentam os debates feitos, inclusive, pelas partes envolvi-
das no processo. O avanço legislativo conquistado por essas populações reli-
giosas no Rio Grande do Sul foi questionado pelo próprio “vigilante” da Lei:
o Ministério Público. A proteção animal, argumento chave do órgão minis-
terial, olvida-se, portanto, de conhecimento sobre as práticas de sacralização
nos terreiros e, somando-se a tradição racista brasileira, atribui a característi-
ca de brutalização dessa liturgia. Contudo, não dedica nenhuma ação de igual
equivalência aos abates comerciais, que comprometem, como visto ao longo
do trabalho, a saúde física dos animais.
De forma que apenas articulando a leitura das relações de hierarquização
estabelecidas em uma sociedade capitalista que pode-se entender por que a pro-
vocação sobre o abater é dedicada apenas a esses setores e não ao agrobusiness.
Por outro lado, a posição do Judiciário é de suspeita. Por mais que até agora
23 O objetivo desse mecanismo é possibilitar mais tempo para o estudo e análise do caso, antes do
proferimento do voto pelo ministro. Os prazos, muitas vezes, não são cumpridos e o julgamento
se prolonga.
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Referências bibliográficas
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MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
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Feminismo e marxismo:
abordagens concomitantemente essenciais
Introdução
O rápido e eficiente desenvolvimento das forças produtivas nas últimas dé-
cadas aparenta equivaler ao sucesso e à plena evolução da espécie humana.
Contudo, basta observar a materialidade das relações, sejam elas de produção
ou não, para perceber a crescente barbárie social.
A configuração social da mulher escancara isto, pois a subjugação da
qual a mulher ainda é vítima, herança dos sistemas anteriores baseados na
propriedade privada, encontrou solo fértil no capitalismo. Sua posição na
sociedade capitalista é marginal até mesmo em termos de absorção pelas
relações de produção típicas desse modo de produção. A exploração da força
de trabalho feminina seja no âmbito produtivo ou reprodutivo, e as opres-
sões transversais herdadas de outros regimes de produção, intensificam o
sofrimento da vida das mulheres operárias.
À vista disso, o presente artigo tem como escopo retratar fundamentos do
feminismo marxista, os quais tornam a concomitância entre as abordagens fe-
minista e marxista essencial. Tendo em vista que a liberdade substantiva do
grupo mulherio só torna-se realizável com a extinção da sociedade de classes.
O progresso capitalista
O progresso capitalista, oriundo da ciência, tecnologia e produtividade acu-
muladas, alimenta a crença que a espécie humana chegou a seu ponto de evo-
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compõem essa classe e como o capital se apropria das mesmas para gerar
mais lucro” (CISNE, 2015, p. 22).
A instituição da propriedade privada é intimamente ligada à gênese da
opressão que vitimiza as mulheres há milhares de anos. Todavia, com o
estabelecimento da propriedade privada, as classes antagônicas tornam-se
para além do sexo, comportando frações com características de ordem na-
tural diversa, como o sexo.
Contudo, primitivamente, a divisão do trabalho foi a divisão do trabalho no
ato sexual (MARX; ENGELS, 2007, p. 35), sendo a divisão sexual do trabalho
a primeira oposição de classe que se manifesta na história e coincide com o
desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher no casamento
conjugal, momento no qual surge o Patriarcado.
O Patriarcado “designa uma formação social em que os homens detêm o po-
der, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinô-
nimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres”. (DELPHY, 2009,
p. 174 apud CISNE, 2015, p. 62). Sua origem remota o surgimento da propriedade
privada, quando a subordinação feminina ganha uma base estruturante (CISNE,
2015, p. 62), pois após o estabelecimento da propriedade privada, marco inicial da
luta de classes, as formações sociais tornam-se predominantemente patriarcais,
pautadas na superioridade masculina e no direito do homem sobre a mulher, fi-
lhos (as), escravos e bens materiais ligados à produção (ENGELS, 1979).
Em síntese, “a classe operária tem dois sexos” (Souza-Lobo, 2011), do contrário
“como podemos explicar que as mulheres estão nos postos de trabalho mais preca-
rizados e mal remunerados?” (CISNE, 2015, p. 24). Negar a dimensão de sexo no
trabalho é negar a realidade em que vive a classe trabalhadora, em especial a das
mulheres, em sua relação com o Capital. Dessa forma, a classe como determinação
central não pode secundarizar os demais elementos estruturadores desse sujeito, do
mesmo modo que tais elementos não podem subtrair a classe (CISNE, 2015, p. 29).
Por conseguinte, em termos de estudos acerca da posição social da mulher, a análise
deve se dar de forma a localizar a mulher no modo de produção capitalista.
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sob a forma de mais-valia relativa. Essa forma pela qual o trabalho excedente
é arrancado do trabalhador é o que distingue o capitalismo dos outros tipos
econômicos da sociedade (MARX, 1988). Em função disso, a determinação da
força de trabalho enquanto mercadoria pressupõe a condição de homem livre
de seu proprietário e esta condição é requisito essencial para a realização histó-
rica desse modo de produção.
Todavia, consoante Saffioti (1976), há certas invariâncias no que tange à
absorção retardada e nunca plenamente realizada de determinados contingen-
tes populacionais pelas relações de produção típicas das sociedades capitalistas.
Em outras palavras, a condição de homem livre do trabalhador nas sociedades
competitivas não se efetiva, imediatamente, para todos os membros da socie-
dade. Isso é dado por fatores, sobreviventes de formações sociais já superadas
e, em contradição com a ordem social capitalista, de ordem natural, tais como
sexo e etnia. Estes interferem não apenas durante o período de constituição da
sociedade de classes, mas também no seu funcionamento, como válvulas de
escape, em dois sentidos gerais.
Primeiramente, no sentido de um aliviamento simulado de tensões sociais
geradas pelo modo capitalista de produção, como a crença que o capitalismo
libertou as mulheres, por exemplo, na qual o fator sexo alivia, aparentemente,
as tensões sociais provocadas pela ordem d’O Capital. Ademais, no sentido de
desviar da estrutura de classes a atenção da sociedade, especificamente dos tra-
balhadores, centrando-a nas características físicas que, inerentemente, certas
categorias possuem. A título de exemplo, diversas organizações sociais que não
reivindicam a superação do modelo de produção atual, ao focar suas exigências
nas opressões subalternas à exploração da força de trabalho.
Destarte, Saffioti expende que o trabalho constitui a via por excelência
para o desvendamento da verdadeira posição ocupada pelas categorias histó-
ricas na totalidade dialética da sociedade capitalista e das relações que elas
mantêm entre si e com o todo social no qual se inserem. Isto porque o tra-
balho é o momento da práxis cujo sintetiza as relações dos homens com a
natureza e dos homens entre si.
Nessa linha de raciocínio, a socióloga brasileira questiona por que determina-
do contingente populacional é marginalizado das relações de produção em virtu-
de de seu sexo ou de sua raça. A resposta, todavia, encontra-se nas próprias rela-
ções de produção, pois as categorias subalternas operam segundo as necessidades
e conveniências do sistema produtivo de bens e serviços (SAFFIOTI, 1976).
1000
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1001
de uma perspectiva totalizante frente ao Patriarcado, de forma a comportar
a estrutura econômica da sociedade como central no método investigativo.
O segundo decorre do primeiro, pois a investigação da realidade direciona à
estratégia de superação da sociedade de classes, o socialismo, o qual, para ser
substancialmente justo, deve visar destruir o Patriarcado, a fim de libertar a
mulher, a primeira a sofrer a escravidão, há milhares de anos, ao se tornar
fundamento de um modo de produção.
Como prova do antagonismo entre o Capital e a libertação substancial da
mulher basta observar muitas das reivindicações feministas, as quais questio-
nam pressupostos fundantes da exploração de uma classe sobre a outra.
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Conclusão
Em síntese, o presente artigo retratou fundamentos que evidenciam a im-
portância de enxergar as relações sociais de sexo a partir do prisma feminista
marxista, como a gênese do Patriarcado, a posição social da mulher na so-
ciedade capitalista e a subalternidade das categorias, provenientes de fatores
de ordem natural, sobreviventes de formações sociais já superadas, frente à
determinação central da classe.
Desse modo, as relações sociais de sexo foram retratadas desde sua gênese,
em diversos de seus pontos, como no que concerne à divisão sexual do trabalho,
à divisão social do poder entre homens e mulheres e à categorização do sexo,
conceitos trabalhados por Cisne (2016).
É perceptível, posto isso, que ambas as abordagens enriquecem-se conco-
mitantemente. O método desenvolvido por Marx, materialismo histórico, pos-
sibilita a perspectiva totalizante acerca das relações de dominação e alienação
capitalistas, gerando análise critica completa acerca da condição da mulher,
ou seja, das estruturas que a explora e oprime. Já, o feminismo contribui para
o debate ao realçar as particularidades e singularidades das mulheres, pois a
percepção da classe trabalhadora em sua totalidade exige o conhecimento das
identidades da própria classe. Em resumo, os fundamentos teóricos políticos do
feminismo são uma contribuição indispensável ao marxismo.
Em suma, faz-se imprescindível ratificar a concomitância entre feminismo
e marxismo, objeto de estudo do presente artigo, a fim de provocar a com-
preensão totalizante da realidade, da ontologia da exploração e da opressão, e
a conscientização, mobilização e organização dos sujeitos revolucionários, em
prol de um projeto societário substancialmente justo e igualitário. Afinal, as
liberdades individualizadas são importantes, todavia, somente com a percepção,
compreensão e transformação das relações sociais estruturantes as relações an-
tagônicas serão superadas.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Referências bibliográficas
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre a mulher. São Paulo: Global, 1979.
(Col. Bases, n. 17.)
MARX, Karl. O Capital. Vol. 2. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
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Interlocuções entre o transfeminismo e o
marxismo: uma análise a partir da inserção
da mulher trans no mundo do trabalho
Introdução
A reestruturação do capitalismo contemporâneo, frente as suas constantes
crises, precariza cada vez mais as condições de trabalho da classe trabalhadora.
Esse crescente cenário de exploração e dominação torna-se ainda mais intenso
nas populações em situação de marginalidade social, de maneira que se percebe
o aumento do número de trabalhadores no mercado informal.
A população transgênero brasileira que historicamente vive em uma con-
dição de total subalternidade, tem suas experiências e vidas atravessadas pela
super-exploração do capital. Essa exploração é concretizada através do extermí-
nio em massa que essa população está sujeita, este processo está intimamente
relacionado ao exercício da prostituição.
1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Membra do Grupo
de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC, Secretária Nacional da Rede
para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano. Email: [email protected]. Tel: (88)
99619-0686.
2 Graduanda em Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) E-mail:
[email protected] Telefone: (84) 99856-2015.
3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialista em
Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Mestrando em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: ronaldomaia4@
gmail.com. Tel: (84) 99616-6842.
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Isto posto, o presente artigo tem como intento demostrar que a condição de se-
gregação das pessoas trans brasileiras é resultado de um conjunto de opressões, tendo
como basilar a exploração capitalista, sendo inequívoco que a teoria e prática trans-
feminista devem estar intimamente ligadas à teoria marxista e ao método materialis-
ta histórico dialético. A análise perpassará à consubstancialidade entre as categorias
sexo, classe e raça, apontando que a condição de exploração das pessoas trans está
visceralmente relacionada com a exploração capitalista e segue os seus interesses.
A pesquisa caracteriza-se por ser uma abordagem qualitativa, a partir do
método materialista-histórico-dialético, tendo como metodologias a pesquisa
documental e bibliográfica, consulta a dados estatísticos, relatórios institucio-
nais, sejam governamentais ou produzidos pela sociedade civil, além de análise
da legislação pertinente ao tema.
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que os corpos femininos sofrem, desde a barbárie até a civilização, sem que
usemos as categorias sexo, raça e classe para se fazer uma inspeção totalizante
do problema. Entendemos, assim, que as relações sociais são construídas através
dos conflitos e processos de exploração dos grupos e classes antagônicas, e por
isso, aponta-se para à condição estruturante de tais relações.
A categorias de classe, raça e sexo não apenas advém das relações so-
ciais existentes, como as constitui, e também são basilares na exploração do
trabalho. Destarte, para que se crie uma teoria e prática capazes de superar
tais conflitos e processos de exploração e que desemboque na construção de
uma nova sociedade anticapitalista, deve-se pautar estudos que extrapolem as
dimensões meramente analíticas e descritivas, mas que apontem para ações
coletivas e políticas que transformem de maneira substancial a vida dos sujei-
tos e sujeitas que estão na luta.
Considerando-se, pois, que a exploração no mundo do trabalho é uma das
bases de sustentação do quadro de extrema vulnerabilidade da população trans
brasileira, se faz indispensável para a construção de um transfeminismo capaz
de emancipar todas as mulheres trans e não-trans, que essa teoria e prática
seja construída sob as categorias da teoria social marxista. Pois esta, tem como
objeto a sociedade burguesa e como objetivo central à superação desta, afim de
se construir um novo modelo de sociedade onde não exista nenhuma forma de
exploração ou opressão (CISNE, 2005).
O transfeminismo surge como um suspiro de liberdade de uma população
que historicamente foi colocada na margem das sociedades ocidentais, onde as
categorias sexo e gênero estão fortemente imbricadas, estando separadas apenas
no campo teórico e filosófico. De acordo com Jaqueline de Jesus (2014, p.10), “o
transfeminismo é uma categoria do feminismo que surge como uma resposta à
falha do feminismo de base biológica em reconhecer plenamente o gênero como
uma categoria distinta do sexo”.
A percepção do gênero como algo dado, natural e imutável, junto a in-
capacidade de reconhece-lo como uma construção biopsicossocial alheia ao
sexo biológico, sustenta o processo de patologização e marginalização dos
corpos e identidades trans e das sexualidades não-heterossexuais. Sendo
assim, a noção de que as pessoas trans são anormais ou doentes não decorre
da natureza das identidades trans, porém da ideia de que o gênero é natural,
biológico e factual (JESUS, 2014).
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lares e famílias, sofrendo a negação e rejeição do afeto e dos laços familiares. Esse
processo familiar é apenas o início de um encadeamento de violações de direitos e
garantias da população transgênero, esta tem o exercício dos direitos à saúde, autode-
terminação, trabalho digno e formal e cidadania sistematicamente violados.
Além disso, ocorre uma imensa evasão escolar desses sujeitos, em consequ-
ência da incapacidade do Estado em reconhecer suas identidades dentro das
instituições de ensino e também da forte violência que esses sujeitos sofrem pelo
convívio social. A negação do uso do nome e do banheiro que se identificam são
apenas pequenos exemplos dos desafios e violências enfrentados pela população
trans brasileira, essas adversidades impossibilitam que essa população conclua
sua formação educacional e as condiciona aos mais baixos níveis de formação.
Percebemos, que a baixa escolaridade impossibilita a capacitação da popula-
ção trans para o mercado de trabalho formal e a coloca à margem dessa relação
social, o que agrava bastante a condição de marginalidade que essa popula-
ção enfrenta no Brasil. Junto ao baixa formação educacional, vemos também
a impossibilidade dos corpos trans serem absorvidos pelo mercado de trabalho
formal, pois tais experiências são lidas como patológicas e por isso são excluídas
imediatamente dos processos seletivos.
Essa incompatibilidade se torna nítida já nos processos seletivos, onde mui-
tas pessoas T, por não possuírem seus documentos oficiais retificados, passam
pelo constrangimento de apresentar documentos discordantes dos seus corpos
e identidade de gênero. Desta maneira, esses sujeitos são excluídos do mercado
formal de trabalho e submetidos as condições precárias do mercado informal, o
que os leva a ocupar os lugares mais baixos do sistema de exploração capitalista.
Na atualidade, cerca de 90% da população de mulheres trans e travestis,
segundo dados da ANTRA, se encontra na prostituição. Esses dados materiali-
zam todo o encadeamento de violações e negações que essa população enfrenta
e apresenta a prostituição como um dos poucos meios de trabalho e sobrevivên-
cia disponíveis para ela. A prostituição, é portanto, um condicionante social
imposto pela sociedade patriarcal burguesa às vidas e experiências das sujeitas
trans, representando não somente um sistema de exploração, mas também de
subordinação dos corpos femininos aos homens e as suas vontades.
Através da história do contrato sexual, a prostituição pode ser encarada
como um problema referente aos homens, está ligada ao porquê dos homens
exigirem que os corpos das mulheres sejam vendidos no mercado capitalista.
Por conseguinte, a prostituição está diretamente ligado ao exercício do direito
sexual masculino, sendo ela um dos meios pelos quais os homens têm acesso
garantido aos corpos das mulheres (PATEMAN, 1988).
Esse estado de total exposição à prostituição é decisivo para a situação de
marginalidade que as sujeitas trans se encontram e está intrinsecamente ligado
a baixa expectativa de vida que elas possuem. Nos dias que correm, as mulheres
trans e travestis brasileiras possuem uma expectativa de vida inferior a 32 anos,
segundo a ANTRA. Essa expectativa de vida é menor que a metade da expec-
tativa de vida de um brasileiro médio que é de 75,8 anos, segundo dados de 2016
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
As prostitutas são lidas, portanto, como fonte da sujeira e da imoralidade e
por isso são facilmente assassinadas e violentadas (PATEMAN, 1988). Dessa
forma, sejam sujeitas trans ou cis, as prostitutas não podem ser encaradas como
qualquer outra mulher que trabalha, pois sua posição é ainda mais incerta e se
encontra na extremidade inferior do mercado (PATEMAN, 1988).
A divisão sexual do trabalho e a binariedade que sustenta a sociedade con-
temporânea está diretamente associada ao processo de extermínio que a po-
pulação de mulheres trans e travestis passam atualmente no Brasil. Segundo
Pateman, a história do contrato sexual evidencia que a construção patriarcal
da diferença entre a masculinidade e a feminilidade são a diferença política
entre liberdade e submissão, e que é através do controle sexual que os homens
afirmam suas masculinidades (PATEMAN, 1988).
Isto posto, a prostituição é uma condição bastante hostil para todas as mulhe-
res, sejam elas trans ou cis (não-trans). Todavia, as mulheres T, além da misoginia
estrutural do capitalismo patriarcal, também enfrentam a transfobia de forma
intensa que as submetem a um processo de coisificação específico e as tornam
totalmente descartáveis. Diferentemente das mulheres cis, que já conseguiram o
reconhecimento por parte do Estado da sua condição de violência e subordina-
ção, as mulheres trans se quer conseguem ter suas identidades reconhecidas.
Não há no Brasil nenhuma legislação específica para o combate da transfo-
bia, não existindo, assim, dados governamentais que ratifiquem os altos índices
de violência contra a população T ou, especificamente, contra população de
mulheres trans e travestis. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), por exemplo,
não deixa claro se também atua na proteção da população T, o que deixa tal
proteção refém da discricionariedade do Estado e das delegacias especializadas.
Essa incapacidade do Estado de proteger essa população, junto ao aprofun-
damento da hegemonia do capitalismo contemporâneo colocam essas sujeitas
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Conclusão
A emancipação da humanidade e, especificamente, a emancipação da
mulher, estão ligadas à ruptura com o capitalismo e à construção de uma
nova sociedade, logo a teoria marxista se faz indispensável para a luta das
mulheres, visto que tem como objeto a sociedade burguesa e como finalida-
de a sua superação. Portanto, os “estudos de gênero” não devem se limitar à
categoria tão-somente descritiva e analítica, mas possuir um caráter políti-
co, para tal o gênero não subsiste sem o alicerce de teorias sociais, e nesta
perspectiva a marxista. (CISNE, 2005).
A visão materialista da história de Marx permite que a classe trabalhado-
ra compreenda que todas as representações dos homens, sejam elas políticas,
religiosas, filosóficas ou jurídicas, são derivadas, em última instância, de suas
condições econômicas. (ENGELS; KAUTSKY, 2012). A classe é, portanto, o
ponto de união entre todas as mulheres e identidades trans, posto que é da
contradição de classe que surgem as desigualdades, explorações e opressões que
marcam a vida da mulher trabalhadora. Por conseguinte, não se pode analisar
a categoria gênero apartada das determinações econômico-sociais, devendo ha-
ver uma análise totalizante (CISNE, 2005).
Referências bibliográficas
BRASIL. Expectativa de vida do brasileiro sobe para 75,8 anos. IBGE. Disponível
em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/
noticias/18469-expectativa-de-vida-do-brasileiro-sobe-para-75-8-anos>. Acesso em:
26/12/2018.
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GGB. Pessoas LGBT mortas no Brasil – Relatório 2017. Disponível em: <https://
homofobiamata.files.wordpress.com/2017/12/relatorio-2081.pdf>. Acesso em
26/12/2018.
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Interseções entre saúde das
trabalhadoras rurais, gênero e Marx
1. Introdução
A saúde das camponesas, pensando em termos de determinantes sociais de
saúde, possui significativa associação com o ambiente em que se encontram.
Além disso, assimétricas relações de gênero interferem nessa questão ao abas-
tecerem seu fenômeno saúde-doença com ainda mais complexidades, vistas
através de fatores como subalternização, violência, invisibilização e a desigual
divisão sexual do trabalho. Observa-se que o quadro em que as camponesas se
inserem indica a necessidade de uma abordagem abrangente e que considere
a influência do meio, também sob um enfoque de gênero, na conexão que se
estabelece com o sistema de saúde e nas formas como ele atua, permitindo in-
tervenções compatíveis em termos de cuidado à saúde.
A trajetória histórica do campo brasileiro demonstra uma construção cultu-
ral, econômica e política baseada em aspectos como a concentração de terras,
riquezas e uso de recursos naturais, além de escravidão, extermínio de povos
indígenas, exclusão e segregação de mulheres e famílias camponesas, mas refle-
tindo, outrossim, a influência de conflitos e lutas populares, com exemplos de
resistência como os quilombos ou Canudos (BRASIL, 2013).
Esses elementos auxiliam no desvelamento da situação experimentada
pelas populações do campo, as quais, por conseguinte, em uma perspectiva
de ruptura, organizam-se em torno de demandas como trabalho, terra,
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2. Desenvolvimento
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O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o
que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os
indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua
produção. [...] Essa produção só aparece com o aumento da população.
Esta pressupõe, por sua vez, o intercâmbio dos indivíduos entre si. A
forma desses intercâmbios se acha, por sua vez, condicionada pela
produção[1] (MARX, K. & ENGELS, F. 1998, p. 11)
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Mérito e interseccionalidade: uma
análise sobre gênero raça e renda com os
ingressantes do curso de Direito da UFERSA
a partir do sistema de cotas sociais e raciais
Introdução
A história do Brasil carrega consigo a ausência de políticas públicas voltadas
a grupos minoritários, em particular à população negra. É sabido que as desi-
gualdades sociais no país não perpassam apenas aspectos econômicos, estando
também enraizadas em elementos culturais advindos da formação social brasi-
leira. Este contexto também atravessa a educação superior, tradicionalmente
voltada a setores de maior poder aquisitivo e de pele branca.
Ao longo dos governos Lula e Dilma Rousseff, o acesso à educação superior
foi prioritário em suas agendas de governo, com a criação de novas univer-
sidades, cursos e a manutenção das estruturas já existentes com o intuito de
institucionalizar políticas de Estado de acesso à educação superior. Ademais,
visou o ingresso das classes trabalhadoras, da população negra e indígena ante-
riormente excluída desses espaços.
Como fruto da implementação das agendas de ampliação de acesso ao en-
sino superior, a Universidade Federal Rural do Semiárido foi criada no ano de
2005, resultado da transformação da Escola Superior de Agricultura de Mos-
soró (ESAM) a partir da lei Nº 11.155, em consequência da implementação do
Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais de Ensino (REUNI), com o objetivo de suprir a demanda de vagas
ensino superior prioritariamente em regiões de alta vulnerabilidade social.
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Buscando uma explanação acerca da temática, este artigo tem como objeti-
vo analisar como as categorias de gênero, raça e renda impactam na percepção
sobre mérito entre os estudantes ingressantes do semestre 2017.1 do curso de
direito da Universidade Federal Rural do Semiárido. Além de possibilitar com-
preender o histórico de formação das políticas educacionais de ação afirmativa
no Brasil e por fim identificar as concepções de meritocracia dos discentes e sua
relação de acordo com as categorias de gênero, classe e renda.
2. Referencial teórico
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3. Metodologia
Para os objetivos propostos neste estudo, utilizou-se uma abordagem
qualitativa e exploratória com o intuito de adentrar as nuances do fenôme-
no social em profundidade. Como instrumento de coleta de dados optou-se
pela utilização de questionário com perguntas abertas e fechadas com o
intuito de provocar os indivíduos a manifestar suas opiniões de forma mais
livre com a utilização de questões abertas.
O instrumento de coleta foi divido em três partes temáticas: na primeira
parte dos quesitos 1 a 16 o conteúdo das questões se concentrou em compre-
ender o perfil socioeconômico e gênero dos estudantes, na segunda parte a
temática central escolhida restringiu-se a perguntas relacionadas à educação,
mérito e ações afirmativas dos quesitos 17 a 24. Os questionários foram aplica-
dos no primeiro semestre do curso de Direito, durante o período das aulas de
forma presencial com a anuência do docente que estava em sala no momento.
Em relação a escolha dos sujeitos, ingressantes do curso de Direto, se justifica
por obterem o ingresso após a consolidação do sistema de cotas sociais e raciais
como política de Estado no âmbito das instituições de ensino superior, em es-
pecial por se tratar da Universidade Rural do Semiárido, localizada na região
Nordeste do país, caracterizada pelos índices de vulnerabilidade social em uma
região interiorana no coração do Semiárido e sua hegemonia histórica de ocu-
pação pelas elites brancas. Foram aplicados um total de 33 questionários, dentre
os respondentes 16 declararam-se cotistas e 17 auto-declararam-se não cotistas.
Como método de análise de resultados optou-se por utilizar a análise de
conteúdo proposta por Bardin (2011), que possibilita a realização de inferências
e reflexões em torno do conteúdo extraído do instrumento de forma organizada.
O método de Bardin (2011), institui a subdivisão em três etapas: transcrição
dos quesitos e leitura flutuante; exploração do material e criação de categorias
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Conclusão
Partindo dos resultados analisados, concluímos que existe a presença de um
hiato nas questões relacionadas a identidade dos indivíduos com sua condição
de grupo desfavorecido e ausência de identificação com a sua classe social e
ausência de sentimento de pertencimento em relação a raça e sua condição de
negro na sociedade racista e dominada pelo patriarcado. Desta forma, entre co-
tista e não cotista é hegemônico o discurso meritocrático e a falta de associação
dos critérios de raça, classe/renda e gênero como elementos que se complemen-
tam em relação as opressões sofridas pelos segmentos sociais menos desfavore-
cidos da sociedade. Além disso, ressalta-se a questão da percepção através da
tentativa de invisibilização do caráter histórico e cultural que atravessam as
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Mulheres guerreiras e de fé: feminismo,
educação popular e trabalho na comuna
Luís Beltrame/MST em Natal/RN
Introdução
Falar de organização popular, especialmente sob um viés feminista, é tema
de extrema importância para a quadra histórica que o Brasil atravessa. Muitas
experiências e metodologias de como trabalhar com o povo (BOFF, 1984) tive-
ram, em nosso país, um dos principais espaços de formulação e aprimoramento.
Contudo, muitas dessas formas de trabalho voltadas à participação política e
democrática acabaram sendo suplantadas ou abandonadas como alternativas
de mobilização nos locais de trabalho, moradia ou estudo.
O desacúmulo no trabalho cotidiano de formação política popular nos ajuda
a compreender o que a recente pesquisa realizada pelo Instituto Latinobaróme-
tro aponta: a população brasileira é a que menos confia nas instituições demo-
cráticas4. O assustador percentual de 13% é o resultado de uma infinita combi-
nação de fatores, como a campanha de criminalização da participação política
perpetrada pela mídia comercial, ou pela distância entre a representação parla-
mentar em geral e o perfil majoritário da população brasileira. Contudo, esses
problemas na realização democrática devem ser analisados em conjunto com o
modo de produção que atravessamos – o capitalismo.
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5 Inaugurada por Danielle Kergoat, elaborada por Helena Hirata e continuada, no Brasil, por Mirla
Cisne, entre demais autoras, o debate sobre a consubstancialidade vem para demarcar uma posição
frente a concepção interseccional de feminismo elaborada pelo movimento e pensamento negro das
mulheres e intelectuais estadunidenses. A ideia de recentrar a articulação entre as opressões com a
lógica da divisão sexual do trabalho estão no centro do conceito. Não seria qualquer triangulação de
elementos que traduziria a complexa camada de opressões direcionadas às mulheres. Elas partiriam
de uma base comum, a divisão sexual do trabalho, de forma que as ‘‘relações sociais de sexo“ seriam
cortadas por essa base concreta. Assim, as feministas marxistas têm trabalhado o conceito de
consubstancialidade por dar centralidade a esse aspecto dentro do debate do patriarcado/machismo
(HIRATA, 2014. p. 61-73; CRENSHAW, 2008).
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6 De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD C), no quarto
trimestre de 2017, “as mulheres dedicaram 18 horas semanais a cuidados de pessoas ou afazeres
domésticos, 73% mais tempo do que os homens (10,5 horas)” (IBGE, 2018). A mesma pesquisa
apontou que as mulheres representam 54% dos 6,46 milhões de pessoas que trabalham menos de
40h semanais, mas que gostariam de trabalhar mais. Trata-se de um dos reflexos da desigualdade
de gênero, que leva as mulheres a buscarem ocupações de tempo parcial para conciliar as múltiplas
jornadas de trabalho.
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Na mesma ocasião uma das mulheres também colocou que gostaria de criar
um comitê, uma associação para organizar a fabricação das vassouras junto
com as outras mulheres. Essas falas nos trazem elementos importantes para a
compreensão do processo de construção do empoderamento feminino. Primei-
ramente, a projeção quase imediata que as mulheres fizeram de como poderiam
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- Falta de oportunidades, que a gente não tem. A gente não tem estudo.
Já rodei muito lugar e não consegui.
- Se a gente chega nos cantos, diz que é daqui, ninguém quer. Já é a
discriminação.
- A gente perde muita oportunidade porque não tem estudo.
- Hoje em dia a gente não arruma nem mais lavagem de roupa.
- A gente é submissa ao homem porque a gente não trabalha.
- Muda muita coisa. Ajudar a família, dar o que o filho precisa. O di-
nheiro que você recebe só dá para pagar contas e olhe, olhe a comida.
Você tem que explicar ao marido porque precisa do dinheiro. Se a gente
fosse independente não seria assim.
- Quero trabalhar para dar o melhor para minha filha. Minha filha pede
um biscoito e eu não tenho nada para dar e isso dói (falou emocionada).
- O emprego é o essencial da vida... para nunca depender de homem.
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fatores, já adiantados pelas falas aqui descritas, além da barreira da educação formal.
Apenas 10% das mulheres negras no país possuem ensino superior completo9.
Contudo, são essas mulheres as que mais se dedicam ao trabalho repro-
dutivo. Ainda segundo o IBGE, as mulheres pretas ou pardas são as que
mais se dedicam aos cuidados de pessoas e/ou aos afazeres domésticos, com
o registro de 18,6 horas semanais em 2016. Ou seja, aquelas estruturas colo-
niais não só se mantém, como foram aperfeiçoadas para atender as exigên-
cias do modo de produção capitalista.
Essa é a tradução em dados amplos da realidade das mulheres do Comitê
Popular. Ou seja, a trajetória dessas mulheres é marcada pela pobreza, pelo de-
semprego e pela discriminação racial. Marcadores sociais que se somam às con-
dições peculiares de estarem organizadas em um Movimento social, duramente
perseguido e criminalizado, e de lutarem por moradia. O que acrescenta um
elemento de pressão pela disputa pela efetivação do direito à cidade.
Ou seja, além de enfrentarem os desafios inerentes à condição de serem
negras e pobres, a condição de se inserirem em uma organização que disputa
diretamente com os interesses do capital – especulação imobiliária, luta por
reforma agrária. A pressão para a participação política na liderança do movi-
mento e na organização da própria Comuna – tarefa política pública – é mais
um dos momentos que compõe a vivência dessas mulheres.
O que se percebe, tanto a partir da análise das descrições das falas, quanto
de uma avaliação de todo o percurso da atividade, é que a chave para o em-
poderamento10 dessas mulheres é o reconhecimento através do trabalho. Seja
da compreensão da importância do papel que cumprem na esfera reprodutiva,
lógica que se reproduz na esfera política – são as mulheres que mediam os con-
flitos, que cuidam das cobranças das atividades de “mutirão”, de limpeza da
comunidade, de assistência à saúde dos demais membros da comuna etc. – ou
do acesso ao mercado de trabalho formal.
Logo, essas mulheres são parte de um dos complexos estratos da classe traba-
lhadora, marcadas pelas estruturas do machismo e do racismo. E isso acontece
9 IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Disponível em: <https://
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf> Acesso em 26 de dez. de 2018.
10 Conforme KLEBA (2009, p. 742) entendemos empoderamento aqui como “autodeterminação
de indivíduos e comunidades, objetivando uma participação simbólica e real na busca da
democracia e equidade”.
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Conclusões
A experiência do Comitê Popular Mulheres guerreiras e de fé trouxe impac-
tos diretos na organização das mulheres da comuna Luís Beltrame e também
na atuação parlamentar. A atividade legislativa tem como função precípua a
representação política como instrumento para construção de leis e para o exer-
cício da fiscalização do poder executivo, sejam em nível municipal, estadual ou
federal. A forma de exercitar essas prerrogativas tem como única limitação os
parâmetros legais, sendo seu exercício livre de acordo com as orientações polí-
ticas, ideológicas e partidárias de cada mandato eletivo.
Esses parâmetros, articulados, contribuem para um exercício parlamentar
que efetive o Estado democrático de direito preceituado pela Constituição de
1988. A liberdade de organização política e partidária, elemento fundamental
para a soberania nacional, foi protegido pelo processo constituinte originário e
colocado como fundamento da república.
Dito isto, e inspirados em experiências acumuladas no legislativo municipal
brasileiro, formulamos um projeto legislativo que conjuga processos formativos
– a partir dos marcos teóricos da educação popular, produtivos – a partir da
concepção de economia solidária, e legislativos – com fundamento na episte-
mologia do teatro legislativo.
Para Carlos Brandão (1995, p. 51), a educação popular é “a possibilidade
da prática regida pela diferença” que tem como objetivo principal “o fortale-
cimento do poder popular, através da construção de um saber de classe”. Esse
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12 INSTITUTO AUGUSTO BOAL. Augusto Boal, 2018. Vida e obra. Disponível em:<http://
augustoboal.com.br/vida-e-obra/#1968>. Acesso em: 26 dez 2018.
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mo, dada a íntima relação observada, que era justamente um dos objetivos
do projeto Comitê Popular.
Por outro lado, a vinculação da atividade a um mandato parlamentar tam-
bém apresenta limitações que impactam diretamente os resultados da experi-
ência. A dificuldade em conciliar as tarefas institucionais com o Comitê e a
disponibilidade de poucas pessoas para ficar na ciranda com as crianças foram
alguns dos problemas que enfrentamos ao longo das oito semanas. Aliás, o pró-
prio período de oito semanas limita a ação do Comitê em termos de aprofunda-
mento das relações e do processo educativo.
O Comitê Popular Mulheres guerreiras e de fé, enquanto projeto piloto, per-
mitiu o acúmulo de experiências que poderá servir de orientação para futuros
comitês. Apesar das dificuldades, tirar o projeto do papel e concretizá-lo na
comuna mostrou que é possível fazer política trabalhando e dialogando com o
povo, que é possível contrapor a lógica assistencialista dos mandatos de verea-
dores/as a partir da oferta de oportunidades que levem à construção da autono-
mia de sujeitos e sujeitas.
Referências bibliográficas
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
IPEA. Jovens e mulheres negras são mais afetados pelo desemprego. Disponível
em <http://ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&
id=34371&catid=10&Itemid=9> Acesso em 26 de dez. de 2018.
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O que é coisa de mulher? Reflexões acerca
do trabalho considerado feminino
e do trabalho feminino não pago
Cínthia Simão13
Introdução
É inconteste que, quando se fala em direitos das mulheres, muita coisa foi
modificada, pensando as estruturas sociais mais abrangentes e não as microrre-
lações, claro. Se tivemos abertura aos mais variados postos de trabalho, ainda
vemos mulheres que se veem impedidas, por seus companheiros, de exercer
uma profissão ou mesmo de evoluir em uma carreira. Se, hoje, podemos votar e
ser votadas, vemos um cenário de valorização de candidaturas masculinas e o
total desrespeito para com mulheres que ocupam cargos políticos. Se, agora, é
dispensável a aprovação jurídica do marido para que um casamento se dissolva,
ainda há uma maioria de mulheres que permanecem confinadas em relações
abusivas por se verem ameaçadas por seus companheiros ou por não consegui-
rem visualizar um horizonte de autonomia financeira. Seguindo esse raciocínio,
adentramos no assunto que nos interessa, tal seja: o trabalho doméstico realiza-
do pelas mulheres; o qual, a despeito de todas as transformações consideradas
avanços, ainda é tratado como atividade tipicamente feminina.
Questão que se arrasta por séculos, o trabalho doméstico realizado por mu-
lheres é visto quase como um dom inerente às mesmas e, até a atualidade, a
divisão de tarefas vem sendo colocada enquanto uma mudança necessária para
a libertação feminina. Não é difícil de entender porque, pois este é o modelo
comum e predominante na maioria esmagadora das famílias. Podemos consta-
13 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em
Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estudante do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte.
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tar este fato através de uma simples observação ao nosso redor ou por meio de
consultas à pesquisas elaboradas sobre a temática. Assim sendo, nos unimos
aos esforços empreendidos no sentido de transformar tal condição, a fim de
que possamos vivenciar uma sociabilidade que tenha enterrado a exploração
do trabalho doméstico gratuito feito pelas mulheres e que haja, em seu lugar,
um cenário de partilha igualitária entre os sexos, de salários e possibilidades
equânimes, possibilitando menos apropriação do tempo das mulheres e mais
autonomia de escolha sobre a organização de suas vidas.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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os dias atuais, nos mais diversos cargos e carreiras. Aqui adentramos em um
debate pertencente a uma categoria essencial na discussão sobre o trabalho
doméstico: a divisão sexual do trabalho. É a partir desta que daremos conti-
nuidade ao nosso raciocínio.
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uma vez que é através da manutenção dos serviços no lar e do cuidado com os
membros da família que o ciclo de produção de mercadorias pode fluir.
Não é a toa que os serviços domésticos enquanto trabalho pago eram remu-
nerados com valores baixíssimos e só recentemente foi criada a lei que regula
este ramo. Esse fato traz a tona tanto a questão de classe quanto a questão de
raça e etnia, uma vez que são as mulheres negras as mais presentes no campo
do trabalho doméstico (mal) pago. Não se pode deixar de falar também desses
sujeitos que ocupam tal espaço no Brasil: uma maioria de mulheres pobres e
negras, possuindo baixa escolaridade.
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Essa quantidade de horas a mais que recaem sobre as mulheres nos traça um
panorama preocupante, pois representam a exposição destas à uma exploração
diferenciada. É preciso pensar, também, nos impactos que tal cenário coloca para
outros âmbitos da vida das mulheres, como questões relacionadas a saúde e edu-
cação. Neste último âmbito, vemos que as mulheres ou são impedidas de estudar
para terem que dar conta das atividades domésticas ou, então, quando estudam
se veem prejudicadas por terem menos tempo para dedicarem-se aos conteúdos
exigidos. Desse modo, precisamos transformar as relações sociais que contribuem
para a manutenção das desigualdades entre mulheres e homens, até porque esta
desigualdade atinge uma parcela da população que merece muita atenção, tal seja
a infantil. Meninas são, precocemente, envolvidas nessa rotina de cuidados do-
mésticos, tendo que dividir com suas mães ou outros familiares do sexo feminino
uma série de tarefas que não são colocadas para os meninos. É o que nos aponta
a citação a seguir, sobre um estudo realizado acerca desta temática:
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Esta estrutura que incide sobre a vida das mulheres, de forma precoce, se
mantém na vida adulta, trazendo implicações negativas para as mesmas no
mundo do trabalho. É o que mostra um estudo da Pesquisa Nacional por Amos-
tra de Domicílios:
Esta citação de Diniz que se apresenta a seguir dialoga com o supra citado e
também aponta reflexões sobre as configurações da divisão sexual do trabalho
na atualidade e sua relação com a naturalização de funções destinada pelo sexo.
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Estes fatos nos mostram a realidade da qual falamos logo no início deste
artigo: há, na sociedade um trabalho tornado invisível, coberto pelo véu da
naturalização da ideia de que mulheres devem fazer tarefas relacionadas ao cui-
dado e manutenção dos lares e os homens trabalharem fora de casa e prover o
sustento. Este pensamento é que leva as mulheres a ficarem em casa e restritas
ao âmbito privado e os homens a saírem e ocuparem os mais variados espaços
públicos. Somente com uma mudança estrutural e cultural, que deve ser enca-
beçada imediatamente, é que poderemos um dia falar em uma sociedade que é
democrática, justa e que respeita todas as meninas e mulheres.
Considerações finais
A partir dos dados expostos ao longo desse artigo é possível inferir que a
cultura da separação de tarefas entre homens e mulheres permanece forte e não
dá maiores sinais de esgotamento. Não bastasse a divisão e classificação entre
o que cada pessoa deve realizar de acordo com feminilidade e masculinidade,
ainda percebemos que as tarefas que se relacionam com esta primeira categoria
são tratadas como de menor valor.
Chegamos ao fim deste estudo com uma desagradável constatação: os pri-
vilégios masculinos estão aliados à exploração imposta pelo sistema capitalista,
uma vez que este sempre beneficiou-se com a utilização do trabalho gratuito
realizado pelas mulheres ou da força de trabalho barateada das mesmas.
De posse do conhecimento de tais condições, resta-nos somar esforços para
combatê-las, compreendendo que as mesmas são parte de uma estrutura antiga
e muito bem arraigada em nossa sociedade. As ações entoadas no sentido de
superar a desigualdade na divisão de tarefas domésticas (trabalho não pago) e,
também, no mundo do trabalho assalariado precisam ser incluídas nos diversos
espaços de socialização dos sujeitos. Isto porque está óbvio que não se trata,
aqui, de uma questão natural, mas de algo que é construído pelos próprios su-
jeitos históricos. Sendo assim, a destruição deste sistema que explora mulheres
com recortes diferenciados da forma de exploração dos homens só pode ser des-
truído pela ação desses mesmos sujeitos, pautando ações imediatas e de longo
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
prazo, para que tenhamos outro modelo de sociedade. As gerações futuras pre-
cisam aprender novas formas de vivência e descartar tudo o que vimos até agora
sobre brinquedos, comportamentos e tarefas específicas de meninas e meninos.
Referências bibliográficas
SOUSA, Luana Passos de. GUEDES, Dyeggo Rocha. A desigual divisão sexual do
trabalho: um olhar sobre a última década. Estudos Avançados. vol. 30, n. 87, São
Paulo May./Aug. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_
arttext&pid=S0103-40142016000200123. Acesso em 2 jun. 2017.
1081
O silenciamento histórico da mulher do
campo: violações domésticas e familiares
voltadas para uma perspectiva marxista
Introdução
O seguinte artigo tem como proposta discutir a relação direta do capital com
as relações pessoais no campo, sobretudo nas relações onde há violações contra
a mulher. Há uma profunda análise de como até mesmo o homem do campo
é influenciado pelo capitalismo, despertando nele o caráter violento, e assim,
oprimindo quem encontra-se numa posição social abaixo da sua, reforçando a
dominação de gênero estrutural no meio rural.
A discussão sobre violações contra a mulher no campo nos leva para a dis-
cussão sobre a efetivação da lei 11.340/06. A lei Maria da Penha, criada para
atender as mulheres de todas as classes sociais, encontra-se impedida de prestar
o atendimento nas áreas rurais devido à grande concentração de delegacias e
casas de apoio nas capitais urbanas, dificultando até mesmo o acesso a informa-
ções sobre denúncias nas áreas mais afastadas.
A metodologia a ser utilizada como base fundamental para o artigo é a
teoria de autoras marxistas, tais como Heleieth Saffioti e Ísis Menezes Táboas,
esta última contribuindo fortemente para a pesquisa com o seu livro “É luta!”,
que aborda o cotidiano da mulher camponesa e das suas principais ferramentas
de emancipação. A influência da obra “O Capital”, de Marx, é analisada
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2. O capital e o campo
Para entender a relação entre o homem e o capital e como ela afeta a
realidade no campo, é necessário, antes de mais nada, recordar Marx em O
Capital (2013, p. 289):
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centralidade de suas relações sociais, culturais e econômicas, que fazem
parte de uma construção que vai na contramão do lucro e do capital,
com as peculiaridades de terem suas vidas intensamente marcadas pelo
trabalho, pela luta e pela força.
5 Denominação dada para a rotina de trabalho da mulher camponesa. A múltipla jornada caracteriza-
se pelo trabalho, cuidados da casa, dos filhos e companheiros e a produção no roçado, tais atividades
não costumam ser remuneradas.
6 Sabendo que o acesso à educação é algo limitado no meio rural, torna-se cada vez mais difícil manter
o público feminino nas escolas, tendo sua maioria apenas o ensino fundamental incompleto. O
acesso à educação é uma das pautas defendidas pelo Movimento de Mulheres Camponesas.
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1088
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médicos, em sua maioria, localizam-se nos centros urbanos, logo que as estruturas mé-
dicas no campo sofrem carência de médicos e equipamentos. A população feminina
necessita locomover-se para um hospital na área urbana e ainda aguardar horas para
realizar, em sua maioria, procedimentos simples. A dificuldade para obter assistência
médica leva um grande número de mulheres a desistirem da consulta.
O acesso à documentos é uma das principais pautas para a conquista da
autonomia feminina no campo. A documentação civil, trabalhista e previden-
ciária – esta que foi negada até 1988, salvo em casos de morte do cônjuge, são
postas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário7 como meios de adquirir
políticas públicas no campo. Da ampla necessidade, foi desenvolvido o Progra-
ma Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR), que consiste
em mutirões que percorrem todo o território nacional, e emitem documentos
básicos de forma gratuita. O programa apesar de ser uma grande conquista para
as trabalhadoras rurais, ainda é pouco conhecido no interior, sendo possível
atribuir isso a invisibilidade das questões rurais, pouco divulgada pela mídia.
7 Presente em http://www.mda.gov.br/sitemda/sites/sitemda/files/ceazinepdf/POLITICAS_PUBLICAS_
PARA_MULHERES_RURAIS_NO_BRASIL.pdf
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A força física é vista como uma característica decorrente das relações capitalistas.
A violência física assume sua forma quando o homem agride a mulher fisicamente,
podendo deixar marcar visíveis ou não. A já mencionada dependência financeira da
mulher perante ao homem, é a grande justificativa que parte das mulheres utilizam
quando são agredidas pelos homens, tendendo a naturalizar um comportamento mais
agressivo do macho e usar o trabalho remunerado como causa de sua ira.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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A violência sexual é uma das mais comuns, tanto no meio urbano como
no rural. Consiste na prática da ação sexual sem a permissão da mulher. É
denominado como violência sexual o mantimento da relação sexual indese-
jada, a proibição do uso de método conceptivo, forçando a ter uma gravidez,
prostituição mediante força e aborto. No campo, essa prática além de ser
naturalizada, é a que possui um público alvo mais jovem, visto o grande nú-
mero de casamentos infantis, sendo comum várias jovens não desejarem ter
relações sexuais com os seus esposos e os mesmos não respeitarem a vontade
delas, gerando o abuso sexual.
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8 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é uma das duas entidades que integram o Sistema
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, junto à Corte Interamericana de Direitos
Humanos, tendo sua sede em Washington.
9 A violência doméstica e familiar contra a mulher caracteriza forma específica de violação dos
direitos humanos, representada por qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial e tenha sido praticada em
âmbito doméstico, familiar ou de qualquer relação íntima de afeto.
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11 Responsável por formular e coordenar políticas públicas para mulheres, a secretaria tem como
objetivo promover a igualdade de gênero e estimular atividades anti-discriminatórias na sociedade.
12 Disponível em: http://www.spm.gov.br/sobre/a-secretaria/legislacao-1/nacional/portarias/portaria-2010/
portaria-85a-10082010.pdf/view
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Considerações finais
Sem pretensão de exaurir completamente a discussão acerca das violências
sofridas pelas mulheres do campo e sua associação intrínseca às relações patriar-
cais e capitalistas da nossa sociedade, o presente artigo aponta a importância
13 Disponível em http://www.mmcbrasil.com.br/site/node/45
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Referências bibliográficas
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
MARX, Karl. O capital. [S.l.]: Boitempo, 2013. 1493 p. Disponível em: <https://
coletivocontracorrente.files.wordpress.com/2013/10/tmpsq7jbv.pdf>. Acesso
em: 17 nov. 2018.
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SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Direito como liberdade: o direito achado
na rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2011.
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Racismo e deslocamentos de pessoas
não-brancas: uma abordagem
materialista e marxista
Introdução
Este artigo científico trata sobre a relação entre o capitalismo e os desloca-
mentos de pessoas, ao longo do século XX e início de século XXI, pois um movi-
mento de pessoas se intensificou nas últimas décadas com o acirramento de crises
econômicas no mundo. Diante disso, como uma resposta a estes deslocamentos,
observou-se um crescimento de políticas migratórias restritivas nos países que
eram comumente o destino dos migrantes15, muitas vezes baseadas em critérios
étnicos e/ou raciais, sendo que nos anos mais recentes a situação de refugiados16
e apátridas17 também trouxe novas alterações para estas políticas. Neste sentido,
o presente trabalho busca analisar, mediante uma pesquisa bibliográfica e sob a
ótica histórica e materialista, as razões dos deslocamentos de pessoas não-brancas
e socioeconomicamente vulneráveis, trazendo as motivações diretas e indiretas,
com destaque para a perspectiva econômica, bem como pretende-se discutir os
impactos destes deslocamentos, fazendo-se uma análise crítica acerca das formas
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Conforme conclui Almeida (2018, p. 20), a ideia de raça teve sua gênese na
expansão mercantilista do homem branco europeu pelo mundo, pois, utilizan-
do-se da classificação acerca da existência humana construída pelo pensamento
iluminista, por volta do século XVI, surgiu o conceito de homem universal, po-
rém este não seria outro senão o europeu. Daí também criou-se uma identidade
social em oposição: o “outro”; o qual seria o resto dos povos, relegando estes a
um papel inferior, criando-se então a distinção entre povo civilizado e povo
primitivo, provocando a subjugação, através do colonialismo com suas práticas
de escravidão e extermínio destes povos “selvagens”, por parte do europeu (AL-
MEIDA, 2018, p. 22). Neste período histórico, pessoas, em especial os africanos
e populações nativas de áreas periféricas do mundo, foram sequestradas pelos
europeus para serem escravizados, ou foram forçadas para fora de seus territó-
rios, num processo de desumanização destes homens e mulheres.
Ainda de acordo com Almeida (2018, p. 22), nos séculos XVIII e XIX, a
classificação dos seres humanos também tornou-se objeto de estudo da biologia,
da física e da etnologia, as quais trataram de criar estereótipos negativos so-
bre negros e indígenas, associando-os a animais, fomentando, dessa maneira, o
tratamento discriminatório dado a estes indivíduos e justificando a exploração
destes pelas forças capitalistas.
Partindo disso, verifica-se que o racismo não é um comportamento oriundo
apenas do medo e do desprezo (xenofobia) de pessoas com diferentes caracte-
rísticas físicas ou culturais, mas também o racismo encontra suas bases dos ob-
jetivos capitalistas de produzir mais e acumular capital. Se o intuito é produzir
mais, procura-se diminuir impactos que os custos da produção e as questões po-
líticas possam ter neste objetivo, assim, no que diz respeito ao aspecto da força
de trabalho, pode-se explorar uma mão de obra barata e precarizada, e também
procura-se eliminar suas reivindicações trabalhistas para que se consiga efetivar
ao máximo sua exploração (BALIBAR, WALLERSTEIN, 1988, p. 55-56).
No Novo Mundo, os europeus começaram a utilizar da força de trabalho dos
povos nativos das Américas, cuja humanidade foi reconhecida em certa medida
(ainda não tão igual quanto ao europeu), sendo que tais grupos eram inseridos
na força de trabalho de acordo com suas aptidões, conforme explica Balibar
e Wallerstein (1988, p. 56). Ou seja, se haviam seres civilizados (europeu) e
seres menos civilizados (população indígena), estava permitido a criação de
uma hierarquia salarial e profissional entre eles, o que resultou, nas palavras
dos autores, em uma “etnificação da força de trabalho”, com a colocação
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com o desmonte da estrutura estatal que não conseguia prover uma seguridade
social, os trabalhadores não encontrava mais possibilidade de se desenvolver em
sua terra natal, razão pela qual a migração para os países desenvolvidos tornou-se
o caminho para o sonho de melhorar de vida.
Para além disso, os conflitos, perseguições e fatores ambientais vêm cres-
cendo como a motivação para forçar o deslocamento de pessoas, em que pese
a ausência de reconhecimento jurídico em relação aos refugiados ambientais
(FRACO e MONT’ALVERNE, 2016, p. 209). Em 2016, Organização das Na-
ções Unidas - ONU (2016) já entendia que vivia-se a maior crise humanitária
desde a Segunda Guerra Mundial, pois de acordo com a Agência da ONU para
refugiados – ACNUR (2016), de 65,3 milhões de migrantes, 40,8 milhões eram
pessoas que se deslocaram dentro de seus próprios países (deslocados internos),
já outros 21,3 milhões de pessoas foram para outros países e são chamadas de
refugiados, havendo ainda 3,2 milhões de requerentes de asilo em países indus-
trializados, ou seja, “aguardam uma resposta sobre seu pedido de refúgio”.
No cenário brasileiro, segundo o relatório do Comitê Nacional para os
Refugiados (CONARE) divulgado em 2016, existiam quase 9 mil refugiados
de 79 nacionalidades, constatando-se que as solicitações de refúgio passa-
ram de 966, em 2010, para 28.670, em 2015. Até 2010, haviam sido reconhe-
cidos 3.904 refugiados, e em abril de 2015, o total chegou 8.863, o que sig-
nifica um aumento de 127%. Também verificou-se que os sírios formavam a
maior comunidade de refugiados reconhecidos no Brasil (ao todo são 2.298
sírios), seguidos pelos angolanos (1.420), colombianos (1.100), congoleses
(968) e palestinos (376) (ACNUR, 2016).
Estes dados indicam o motivo da vinda destes indivíduos ao Brasil, pois seus
países/territórios de origens passam ou passaram recententemente por confli-
tos armados originados por razões políticas e/ou religiosas. O surgimento e a
intensificação de velhos e novos conflitos sociopolíticos que afetam os países,
principalmente no Oriente Médio e na África, revividos, em geral, com a onda
de protestos da Primavera Árabe a partir de 2010, deram lugar a uma série de
guerras civis na Líbia, Síria, Iêmen, Egito e Iraque. Neste sentido:
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dos países do Terceiro Mundo, especialmente daqueles locais que vivem con-
flitos, sendo que em alguns casos, intervenções militares diretas por potências
imperialistas europeias e ocidentais, bem como de seus aliados e representantes,
contribuíram fortemente para gerar esta situação de caos (MERLI, 2017).
Para além disso, as crises econômicas capitalistas cíclicas e a crise ecológica ob-
servada recentemente, como explica Löwy (2013, p. 79-80), são resultados de um
mesmo fenômeno, qual seja o sistema capitalista, que transforma tudo – a terra, o ar,
os seres humanos – em mercadoria, e que se orienta apenas pelo critério da expan-
são dos negócios e da acumulação de lucros. Segundo o referido professor, ambas as
crises são aspectos interligados de uma crise mais geral, a crise da civilização indus-
trial moderna, cujo modo de vida é insustentável porque sua lógica produtivista e
mercantil “nos leva a um desastre ecológico de proporções incalculáveis”, de modo
que não sabemos até que ponto os desastres ambientais que obrigam as pessoas a
se deslocarem são resultados da utilização dos recursos da natureza e o despejo de
resíduos de volta no meio ambiente pelos produtores capitalistas.
1 O art. 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe: “toda pessoa tem o direito de deixar
qualquer país, inclusive o próprio e a este regressar”. De outro lado, a Convenção Internacional sobre
a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, de 1990, que
reconhece os direitos fundamentais de todos, em situação migratória regular ou não.
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Conclusões
Numa perspectiva histórica e materialística, os movimentos de pessoas ao
longo dos últimos 500 anos é um resultado de diversos fatores influenciados
pelos interesses econômicos, desde o expansionismo imperialista europeu, até
os conflitos bélicos e desastres naturais que forçam milhões para fora de seus
lugares de origem atualmente, situação esta que é intensificada de maneira geral
com o acirramento de crises econômicas no mundo.
Além disso, verifica-se que, no sistema capitalista, em seu objetivo de
se apropriar e transformar tudo em mercadorias, poucos são os detentores
das riquezas e meios de produção, e para isso, uma maioria deverá ser ex-
plorada. Desta maneira, por intermédio do capitalismo, as interações e as
movimentações entre os diversos povos do mundo criaram as bases para o
desenvolvimento de práticas racistas e segregacionais, como uma forma de
justificar e afirmar a exploração de certos grupos sobre outros, à medida que
foi imposto um papel inferior aos povos não-brancos. Os efeitos desse fenô-
meno podem ser vistos, atualmente, na forma da exclusão e marginalização
das pessoas de origem africana, indígena, latina, asiática, etc., que persistem
até hoje, como um retrato do racismo que está profundamente arraigado
na sociedade capitalista. Do mesmo modo, outro resultado é a situação de
racismo e xenofobia crescentes nos países que receberam refugiados, o que
implica num tratamento degradante destes indivíduos que já se encontra-
ram em uma situação bastante vulnerável.
É assim, numa escala global, que vemos o capitalismo atuando, pois de acor-
do com seus ditames, da mesma forma que um trabalhador é explorado pelos
capitalistas para benefício exclusivo destes, também o foram (e ainda são) os
países mais pobres pelos países que impuseram o sistema capitalista e dele se
beneficiaram, criando uma desigualdade socioeconômica gritante na comuni-
dade internacional, de modo que muitos países menos desenvolvidos se torna-
ram um ambiente hostil para viver e os Estados não conseguem proteger seus
cidadãos, provocando neles grandes diásporas populacionais. Por fim, o mais
irônico é que, de acordo com a ONU (2016), 90% dos refugiados do mundo se
deslocaram para países com renda média ou baixa, que estão próximos às áreas
de conflito, sendo assim pouco expressiva a ajuda vinda dos países mais ricos.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG):
Letramento, 2018.
HOBSBAWM, Eric J.. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
org.br/content/a-guerra-interminavel-do-capitalismo-contra-os-imigrantes/>
Acesso em: 18 dez. 2018.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
VERDÚ, Daniel. Itália anuncia que fechará seus portos a barco de resgate com
600 migrantes. El País, Roma, jul. 2018 Disponível em: <https://brasil.elpais.
com/brasil/2018/06/10/internacional/1528642309_207661.html>. Acesso em:
27 jul. de 2018.
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Sexualidade e direitos humanos: as “minorias
sexuais” na sociabilidade do capital
1. Introdução
Este artigo busca traçar uma discussão em torno da efetivação da vivência
da sexualidade como um direito humano universal, tendo em vista que uma
expressiva parcela da população, sobretudo, gays, lésbicas, bissexuais, travestis,
transexuais, entre outros são alijados do direito de vivenciar uma orientação
sexual e/ou identidade de gênero, socialmente, considerada dissidente.
A moratória sobre tais sexualidades repercute subjetiva e politicamente no co-
tidiano desses sujeitos sob o signo de diversas opressões, tais como: violência física,
psicológica e simbólica. Nesse sentido, buscando fomentar o debate teórico em torno
dos direitos humanos, realizaremos um breve resgate sócio-histórico sobre a conquis-
ta de tais direitos, desvelando sua funcionalidade na sociabilidade do capital. Logo,
apresentaremos, brevemente, as perspectivas teóricas sobre o assunto, focando nas di-
vergências e aprofundando a perspectiva dos direitos humanos na tradição marxista.
Diante disso, delinearemos o debate sobre a sexualidade e a diversidade se-
xual na cultura ocidental, sobretudo, na realidade brasileira. Para tanto, recor-
reremos às discussões de gênero/sexo, visto que tais categorias são teoricamente
imbricadas. Trazendo, por fim, nossas considerações finais.
É importante ressaltar que o presente artigo foi construído a partir de uma
pesquisa bibliográfica e documental com base em diversos autores acerca dos
direitos humanos, gênero e sexualidade. Tais como: Santos (2002; 2008; 2017),
Silva (2011), Trindade (2010), Netto (2011), Loyola (1999), Prado (2012), Tonet
(2002; 2004) etc. Além disso, utilizados documentos como matérias de jornais,
2 Assistente Social. Mestrando em Serviço Social e Direitos Sociais da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN).
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
relatórios, documentários etc. Desse modo, este artigo parte de uma abordagem
essencialmente qualitativa.
3 Os direitos sociais não estavam na agenda da classe burguesa. Diferentemente, por exemplo, dos
direitos civis e políticos, necessários a (re)produção do sistema capitalista. É importante destacar,
no entanto, que tais direitos, tanto sociais como civis e políticos foram resultado da luta coletiva dos
trabalhadores (TRINDADE, 2010).
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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4 Há divergências, no entanto, em relação a essa concepção. Coutinho (1997), por exemplo, defende
ampliação e defesa da cidadania e da democracia no socialismo. O autor, muitas vezes acusado de
reformista, se contrapõe a concepção de Tonet, pois defende a ampliação dos direitos humanos,
inclusive, em uma sociedade socialista que para Tonet não será mais necessária uma vez que não
haverá bases materiais para sua defesa.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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totalmente determinada por ele. Neste sentido, independente do sexo com o qual nasceu, alguém
pode se identificar ou apenas desempenhar papeis sexuais do sexo oposto” (PRADO, 2012, p. 142).
8 O neoconservadorismo surge em meados da década de 1970 num contexto de crise estrutural do capital,
fracasso das experiências do chamado socialismo real, reestruturação produtiva e retirada de direitos
sociais, favorecendo a organização dos movimentos de direita. Grupos skinheads, por exemplo, surgem
como um expoente dessa ideologia, fortemente, influenciada pelo neoliberalismo. Tendo em vista que
“o neoconservadorismo busca legitimação pela repressão dos trabalhadores ou pela criminalização
dos movimentos sociais, da pobreza e da militarização da vida cotidiana. Essas formas de repressão
implicam violência contra o outro, e todas são mediadas moralmente, em diferentes graus, na medida
em que se objetiva a negação do outro: quando o outro é discriminado lhe é negado o direito de existir
como tal ou de existir com as suas diferenças” (BARROCO, 2011, p. 209).
9 A LGBTfobia pode ser definida como a hostilidade geral, psicológica e social contra aqueles(as)
que, supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos do mesmo sexo
(práticas homoeróticas).Atuando como forma específica do sexismo, a LGBTfobia rejeita,
igualmente, todos(as) aqueles(as) que não se conformam com o papel de gênero predeterminado
para o seu sexo biológico. Trata-se de uma construção ideológica que consiste na permanente
promoção de uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra (homo) e uma forma
de identidade de gênero (cis) em detrimento de outra (trans), organizando uma hierarquização
das sexualidades e identidades.
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10 Para Heller (2016), valor é tudo aquilo que potencializa o gênero humano. Dessa forma, “pode-se
considerar desvalor tudo o que direita ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no
desenvolvimento de um determinado componente essencial” (HELLER, 2016, p. 18).
11 Minoria sexual é um termo que se refere ao grupo social cuja identidade de género, orientação
sexual ou práticas sexuais consentidas diferem dos da maioria da sociedade na que vivem. Nesse
sentido, fizemos o uso das aspas pois concordamos com Butler (2016) que as orientações sexuais e as
identidades de gênero são dinâmicas, portanto, transitórias. Dessa forma, todos os indivíduos estão
sujeitos a transitarem pela vasta gama da diversidade sexual. Embora, a heterossexualidade ainda seja
utilizada como norma.
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Tal assertiva nos leva a considerar que nem sempre existiu a distinção hete-
rossexual/homossexual, uma vez que a diferenciação da orientação sexual não
era possível. Visto que a sexualidade era determinada pelas posições e papéis
sexuais (ativo/passivo) dos sujeitos, logo concordamos com Katz (1996) de que
“a heterossexualidade foi inventada”. E os conceitos de heterossexualidade e
homossexualidade são recentes na história ocidental.
Já o modelo de deformismo sexual se inscreve em um contexto de reprodu-
ção das ideologias liberais burguesas, a partir do final século XVIII e início do
XIX, proporcionado o debate da possibilidade em torno da inserção da mulher
no mercado de trabalho. No entanto, esta discussão acabou por ser abortada,
uma vez que (sic) “as mulheres passam a serem vistas como um sexo diferente,
biologicamente determinado, e nesta diferença se ancorariam as justificativas
necessárias para a desigualdade entre os sexos”. (PRADO, 2012, p. 37). Ou seja,
baseando-se no saber médico, centrado numa análise da “fragilidade ovariana”,
a mulher é confinada a esfera privada.
As desigualdades entre os sexos surgem, portanto, para justificar disparida-
des sociais. Além disso, é importante salientar que tais concepções se funda-
mentavam na ideia de indivíduo “natural”. Logo, aqueles que se desviam desse
perfil, ou seja, “[...] daquilo que a natureza cobra de cada sexo, seriam vistos
como imperfeitos, patológicos. Surge, então, a ideia de perversão e degeneres-
cência”. (PRADO, 2012, p. 37).
Os termos “heterossexual” e “homossexual" só foram surgir nos Estados
Unidos, no final do século XIX, nos artigos médicos do americano James
G. Kiernan e do inglês Richard Von Krafft-Ebirig (1893). Para o primeiro
teórico, a heterossexualidade era considerada uma perversão, visto que até
então a sexualidade tinha um objetivo apenas reprodutivo, logo a conduta
sexual associada ao desejo era marginalizada, independentemente de ser
proveniente de um relacionamento heterossexual ou homossexual. Já na
obra de Krafft-Ebing (1893) o termo “hetero-sexual” surge sob uma nova
moralidade sobre a sexualidade, uma normalidade erótica até então negada
pela obra de Kiernan (KATZ, 1996). Logo,
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
14 O estigma é uma característica negativa, comumente, atribuída ao diferente. Para Goffman (1975,
p. 12) “enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo
que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo,
até, de uma espécie menos desejável [...]. Assim deixamos de considerá- la criatura comum e total,
reduzindo-a a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é estigma, especialmente quando
o seu efeito de descrédito é muito grande”.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Conclusão
Diante dessas primeiras reflexões consideramos urgente e necessário
pensar as questões relativas à sexualidade e a identidade do gênero para
além dos preconceitos e estigmas sociais, mas como parte da inserção do ser
humano no mundo, portanto, sujeito aos aspectos culturais nos quais ele se
insere. Nosso esforço aqui é evitar cair numa visão economicista e politicis-
ta sobre a sexualidade.
Neste sentido, compreendemos ser primordial que a luta pela garantia da
emancipação política deva está associada também a criação de políticas públi-
cas para as “minorias sexuais”, sobretudo, homossexuais, bissexuais, travestis,
transexuais etc. Apresentam-se como demandas políticas dessa população a cri-
minalização da LGBTfobia, a criação de cotas nas universidades para travestis
e transexuais, a desburocratização e humanização do processo transexualizador
no Sistema Único de Saúde, a legalização do aborto, a implementação dessas
discussões de gênero e diversidade sexual nas escolas etc.
Portanto, a partir do que já foi discutido sabemos que o atendimento dessas
demandas requer a organização coletiva desses sujeitos, tendo em vista que o direito
a sexualidade assim como os demais direitos é fruto da luta organizada dos traba-
lhadores. E este direito, em especial, mostra-se mais conflituoso, pois envolve, além
de questões econômicas e políticas, também questões culturais. A Revolta de Sto-
newall e a Revolução Sexual das mulheres na década de 1960/70 são um exemplo
de contestação da moratória conservadora historicamente imposta a homens e
mulheres, principalmente, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
Nesse sentido, concordamos com Tonet (2002) e Santos (2017) que esta luta
deve ter como fim último a emancipação humana, visto que somente em uma
sociedade humanamente livre de opressão de gênero, raça/etnia e classe a sexu-
alidade, principalmente, as consideradas socialmente marginais deixarão de ser
subalternizadas e invisibilizadas.
Referências bibliográficas
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
RUBIN, G. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality.
In: VANCE, Carole (Ed.). Pleasure and danger. Routledge & Kegan, Paul, 1984.
______. Para além dos direitos humanos. Revista Novos Rumos. São Paulo,
v. 17, n.37, p.63-72, 2002.
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“Somos a soma da diversidade, lutando
por igualdade e por transformação”: as
particularidades da divisão sexual do
trabalho para as mulheres camponesas
Introdução
A formação sócio histórica do Brasil, com seu processo de capitalismo tardio,
patriarcal e racista, marcado por contrarrevoluções burguesas, é atravessada por
um desenvolvimento desigual e combinado. A classe burguesa foi forjada pelos
proprietários de terra, os grandes latifundiários, o que fez com que a falta de
reforma agrária seja uma característica marcante na história do país, atribuindo
um traço conservador já no nascedouro do capitalismo no país.
A partir desse processo de formação do capitalismo e da burguesia brasileira,
a luta pela terra também faz parte da nossa história de resistência e se apresenta
como um gargalo de dimensão estruturante na luta de classes no Brasil. Desde a
ocupação do território brasileiro pelos europeus que a luta pela terra é marcada
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pela violência, os povos indígenas foram os primeiros a sofrerem com esse pro-
cesso, em um verdadeiro genocídio que acontece até os dias atuais.
Se de uma forma geral a luta por terra tem sido uma luta difícil e mar-
cada por muita violência, a realidade das mulheres em relação a essa pauta
é ainda mais difícil. Terra, nessa sociedade capitalista, quer dizer posse e
como as mulheres que ainda são vistas como posse de outra pessoa, terão
como possuir alguma coisa? Como as mulheres que têm seu trabalho des-
valorizado e invisibilizado terão como discutir produção? Assim, para nós
mulheres, os desafios são ainda maiores.
No Brasil, o direito das mulheres a terra só entra na agenda pública nos anos
1980, com o processo de redemocratização e pela pressão dos movimentos de
mulheres rurais que se formavam nessa época. Porém, ainda assim, os progra-
mas que foram implementados nos anos de 1980 e 1990, pouco levaram em
consideração a situação da mulher e não as inseriram como sujeitos que teriam
direito a essas políticas, além de reforçarem a noção tradicional de família e
desconsiderar o trabalho das mulheres como trabalho produtivo, reforçando a
divisão sexual do trabalho.
Um exemplo disso, é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultu-
ra Familiar (Pronaf) que foi criado em 1996. Nos primeiros cinco anos de fun-
cionamento do programa, apenas 7% dos titulares no acesso ao crédito foram
mulheres e mesmo com a mudança no programa ocorrida em 2001, que desti-
nava 30% da verba do programa para mulheres o quadro pouco se modificou.
Na safra de 2002, as mulheres só representavam 10,4% dos contratos realizados.
Em relação à titularidade da terra destinada à reforma agrária também é
possível constatar a desigualdade em relação ao acesso das mulheres à terra. No
censo da reforma agrária de 1996, apenas 12% da titularidade das terras foram
para mulheres. Em 2002 essa realidade foi confirmada como uma constante
com a pesquisa realizada pela FAO/Unicamp, que constatou que 87% dos títu-
los de terra emitidos pelo Incra destinavam-se aos homens.
Após 2002, é possível ver algumas mudanças e avanços no acesso das mu-
lheres a terra, a primeira e mais significativa ação que possibilitou esse avanço
foram as campanhas de documentação para as camponesas que de 2004 a 2010
realizou 837 mutirões itinerantes, em 1050 municípios, emitindo mais de 546
mil documentos. (MDA, 2010).
A realidade para as mulheres camponesas foi de negação dos seus direitos
por muitos anos, a falta de documentação é um exemplo de como para elas até
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Ianni (1984) ainda nos traz três marcos históricos importantes para a con-
cretização dessa revolução burguesa, o primeiro foi a abolição da escravidão e o
advento do trabalho livre, o segundo a proclamação da república, que segundo
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
ele marca uma abertura para o novo, ainda que não de forma completa como
já dissemos anteriormente, e o terceiro a ditadura militar de 1964, que para ele
representou o ascenso da grande burguesia.
O que podemos perceber até aqui, é que a revolução burguesa no Brasil traz,
de forma geral, duas características centrais: a primeira, é a não desvinculação
do poder dos grandes latifundiários e com isso quase nenhuma alteração na
estrutura agrária brasileira; e a segunda, é seu caráter antidemocrático, autori-
tário e de contra revoluções.
Oliveira (2001, p. 186) nos fala sobre a fusão de capitalista e proprietário de
terras no Brasil em uma pessoa só:
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Nesse período histórico, a opressão sobre as mulheres vai se realizar de
forma diferenciada para mulheres negras e brancas. Se sobre as mulheres
brancas pesava o alto poder do patriarca, na figura do seu pai ou marido,
que lhes impunham uma dura moral sexual e que seguissem a rigor as tare-
fas tidas como femininas, para as mulheres negras pesava a escravidão que
lhes explorava não só o trabalho, mas seus corpos para fins de reprodução
de força de trabalho, como também para satisfação sexual dos desejos dos
homens brancos, negando-lhes qualquer possibilidade de composição fami-
liar e de direitos sobre as suas vidas e corpos, num verdadeiro processo de
coisificação. Saffioti (2013, p.240 - 241) nos fala sobre a situação das mulhe-
res brancas e negras no período colonial:
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A partir do que nos traz Silva (2011), podemos perceber que esse conceito
de desenvolvimento não é pensado por todos e todas e nem muito menos os
beneficia. Baseado no sistema capitalista, vai gerar desigualdades, estruturado,
alimentado e gerador de pobreza espalhada e de riqueza concentrada. Nessa
lógica, tudo é passível de venda e de troca, terras, águas, territórios e vidas. Mas
não quaisquer vidas, vidas com sexo e cor, Silva (2011, p. 118) nos diz sobre
como essa lógica funciona
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Disto, avistamos uma sociedade em que, não à toa, mas como uma forma
de lucro do capital através da mais-valia, além da invisibilização do trabalho
das mulheres, ainda são submetidas aos trabalhos precarizados. O ingresso no
mercado de trabalho foi sempre muito categórico em determinar quais serviços
seriam executados por elas, e este não foge muito de seus afazeres domésticos.
Por isto, no ponto seguinte, procuramos trazer as particularidades da reali-
dade das mulheres camponesas, que além de terem o seu trabalho reprodutivo
invisibilizado, também passam pela negação de sua produção, que por muitas
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Considerações finais
Longe de esgotarmos o debate, podemos perceber que as mulheres cam-
ponesas enfrentam de forma diferenciada e agudizada a divisão sexual do
trabalho, pois além de terem de lidar com a separação feita de forma di-
cotômica entre trabalho produtivo e reprodutivo, elas também têm o seu
trabalho produtivo tido como mera ajuda, mesmo que este componha de
forma substancial a renda familiar.
Além disso, elas enfrentam outras formas de opressão e exploração que re-
caem sobre as mulheres de forma geral de maneira diferenciada, como a depen-
dência financeira, a violência doméstica e a dificuldade de organização política.
Seja pelas longas distâncias e falta de direitos e equipamentos públicos que ca-
racterizam a realidade do campo, como a falta de documentação, direitos previ-
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Referências bibliográficas
BIROLI, Flávia. Justiça e Família. In: BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luiz Felipe.
Feminismo e Política. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 47-62.
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Um estudo sobre a condição de negras e
negros no curso de direito da UFERSA
Introdução
O seguinte trabalho tem como intuito apresentar uma análise sobre a ques-
tão racial no Brasil, considerando a realidade de classe colocada sobre os sujei-
tos de pele escura. Nesse sentido, o racismo por ser uma relação social dotada
de materialidade e historicidade não ficaria distante da teoria marxista. Os
longos anos de escravidão no país influenciaram diretamente na construção da
sua sociedade, deixando o negro quase impossibilitado de se adequar ao novo
regime econômico (FERNANDES, 2008).
O acesso ao ensino superior no Brasil está diretamente vinculado às questões
estruturais dessa sociedade, como classe e raça. Nessa perspectiva, a população
brasileira não foge ao caráter predatório do sistema capitalista, até mesmo quando
se estuda a educação. Marx (1993) compreendia que a educação era parte da
superestrutura de controle das classes dominantes, dessa forma o ensino transmi-
tido pela classe burguesa faria com que o proletariado não conseguisse perceber
seus interesses de classe. Sobre isso, adentrando as políticas públicas direcionadas
no Estado brasileiro para a classe trabalhadora, pode-se citar a política de cotas
raciais. Tal política foi de importância significativa para o trabalho, pois incor-
porou ao grupo de estudantes um novo setor social: a população negra. Nesse
sentido, o objeto escolhido para essa pesquisa foram os estudantes do curso de Di-
1 Graduando do curso de Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido, bolsista do Programa
de Iniciação Científica Institucional (PICI), pesquisador do Grupo em Direito Crítico, Marxismo e
América Latina e extensionista do Centro de Referência em Direitos Humanos do Semi-Árido.
2 Professora Substituta na Universidade Federal Rural do Semiárido, graduada em Administração-
(UFERSA), mestre em Administração (UFPB).email :[email protected].
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2. Referencial Teórico
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de uma inserção de uma parcela maior de negros nesses espaços ainda pouco ex-
pressiva em relação ao quantitativo geral (DUBET,2015;MINTO,2014).
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mente livres foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos
feudais, que, como observou corretamente sir James Steuart, ‘por toda parte
lotavam inutilmente casas e castelos’” (MARX, 2013). Deste modo, os negros
brasileiros foram abandonados pela sociedade e Estado, tendo em vista o seu
caráter marginal, decorrente da ausência de adequação aos padrões demanda-
dos pelos setores produtivos da sociedade burguesa branca (ALMEIDA,2018).
Assim, a precariedade da força de trabalho negra relativa a inexistência de
qualquer nível de qualificação não se configurava para o sistema vigente um
atrativo em primeira instância, no entanto ao longo do processo conseguiu
absolver uma parte da mão de obra disponível de forma excessiva para a ocu-
pação dos postos de trabalho precários. Porém a vivência de uma vida atre-
lada à escravidão assegurou a incorporação de comportamentos e posturas
relativas a ocupação de espaços que não poderiam ser apagadas com o simples
direito a liberdade de ir e vir, impedindo-os que os negros obtivessem boas
possibilidades de atuação e condução do trabalho livre em comparação a ou-
tros agentes humanos (FERNANDES, 2008). A sociedade de classes que se
formava no Brasil não facilitou a organização econômica dos negros. Assim,
Fernandes (2008) diz que “a sociedade de classes se torna uma miragem que
não lhes abre nenhuma via de redenção coletiva”.
Não se pode esquecer, nesse debate, a existência de várias correntes ao longo
do desenvolvimento dos processos históricos que lutaram por uma afirmação
racial no Brasil, como o movimento da negritude e pelo reconhecimento da sua
condição desigual. Acredita-se que essa corrente nasceu nos Estados Unidos e
depois se propagou por outras partes do mundo (DOMINGUES, 2005). Esse
movimento só chegou ao Brasil na década de 1940 por meio, principalmente, do
Teatro Experimental do Negro (TEN), instituição fundada no Rio de Janeiro
com o intuito de desenvolver uma dramaturgia negra no país. Essa entidade
acreditava que a negritude era uma filosofia de vida, capaz de trazer as bases
teóricas e políticas da plena emancipação do negro, porém, assim como a versão
francesa, esse ideário era uma expressão da pequena-burguesia intelectual negra
contra a supremacia branca (DOMINGUES, 2005). Somente a partir dos anos
70 que esse grupo vira sinônimo de um processo mais amplo de consciência
racial do negro brasileiro. Assim, diz Domingues (2005) sobre essa nova estru-
turação da negritude no Brasil relata:
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Além disso, não se pode generalizar a luta dos negros junto com as lutas
da classe proletária, pois esse discurso universalista é “um engodo, porque não
se atinge o plano universal sem passar pelo que é específico e particular” (DO-
MINGUES, 2005, p. 42). Ao negro, não há como fugir de sua condição de cor.
Sobre isso, Sartre (1968) diz que para o negro não há:
3. Metodologia
Para os objetivos traçados no âmbito de execução deste estudo, utilizou-se
uma abordagem qualitativa e exploratória com o intuito de compreender as
nuances do fenômeno social em profundidade. Como instrumento de coleta
de dados optou-se pela utilização de questionário com perguntas fechadas.
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
5. Resultados
A análise dos resultados dos dados presentes nos questionários foi realizada
por meio da análise de conteúdo. Primeiramente, foi feito uma leitura flutuante
e depois uma exploração do material dos questionários. Buscou-se fazer, preli-
minarmente, a separação entre os alunos cotistas e não cotistas, e entre bran-
cos, negros, amarelos, indígenas e sem identificação. Não houve uma separação
entre os semestres explorados, já que o público atingido é bem restrito e poderia
haver possível identificação de alguns dos entrevistados.
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Tabela 1
RAÇA
Sem
MODO DE Brancos (as) Negros (as) Indígenas Amarelos (as)
Declaração
INGRESSO
Cotista 11 28 0 1 0
Não cotista 21 21 0 0 1
Tabela 2
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Tabela 3
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
de direito seja com algum terceiro ou com o próprio entrevistado. Além disso,
perguntou-se se houve denúncia do caso.
*É importante frisar que, no caso das pessoas brancas, a questão é relacionada a ter presenciado
alguma situação de racismo.
Esses dados demonstram que o curso de Direito possui poucos casos de ra-
cismo, o que provoca que o ambiente seja menos hostil para as pessoas ne-
gras. Entretanto, nenhum dos casos de racismo descrito pelos discentes, foram
denunciados. Dessa forma, é negativo perceber que os poucos casos não são
colocados para os órgãos competentes, mas para isso pode ser levado em consi-
deração o medo da vítima de sofrer algum tipo de retaliação pelo agressor.
A partir da questão 22, as perguntas foram direcionadas às pessoas negras,
tentando explorar como elas se sentem em relação ao ambiente universitário.
Convém lembrar que as pessoas que se autodeclaram pardas foram colocadas na
categoria negros e por isso alguns desses questionários não foram respondidos,
mas também por não se perceberem como pessoas negras.
Mulher cis Mulher trans Homem cis Homem trans Travesti Outros
Sentem-se
segurança em
falar durante 4 0 6 0 0 0
discussões em
sala de aula
Não sentem
segurança em
falar durante 3 1 4 0 0 0
discussões em
sala de aula
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Conclusão
Posteriormente a análise dos dados, chegou-se a algumas considerações mais
abrangentes sobre a problemática racial no curso de Direito. É possível associar
o receio de muito dos alunos negros em fazer colocação dentro de sala de aula
ao fato de ser minúscula a discussão sobre o racismo velado nas salas de aula. A
presença do racismo nas estruturas institucionais fortalece esse receio, não sen-
do, muitas vezes, visível, pois, por ter um caráter histórico, se enraizou de forma
a se apresentar cotidianamente na vida social. Os dados alertam que os casos
de racismo ocorridos no bloco não foram direcionados aos órgãos competentes
da universidade, trazendo a percepção da impunidade nessas situações. Nesse
sentido, á maioria dos entrevistados compreendem que o racismo existe, porém
é deixado de lado e até mesmo negligenciado. Em linhas gerais, o curso não se
mostra um ambiente hostil para os alunos negros e cotistas.
Nesse sentido, a Lei de Cotas no Brasil funciona como um instrumento
que auxilia no processo de reparação histórica, logo não se pode esque-
cer que essa política possibilitou que vários estudantes negros e de escola
pública se inserissem nos ambientes universitários. Segundo a Síntese de
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Referências bibliográficas
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Uma análise do “feminismo mainstream”
na realidade brasileira enquanto mecanismo
instrumentalizado a serviço da classe
dominante e reprodutora da desigualdade
de gêneros e classe
Introdução
Historicamente, as mulheres foram postas em situação de inferioridade
na sociedade em comparação aos homens, onde foi lhes relegado pela grande
parte do tempo os trabalhos domésticos e a restrição de grande parte das suas
atividades a casa. Isto resultou na criação de estigmas à cerca do comporta-
mento feminino e sua natureza, como se suas ações e todo o contexto criado
socialmente adviesse de questões biológicas, estes se irrigaram de tal forma ao
imaginário popular ao ponto de consequentemente gerarem e perpetuarem
preconceitos de gênero que se estendem até a atualidade. Ao longo da histó-
ria surgiram mulheres independente e movimentos de mulheres organizadas
em contraposição a estas questões da dominação e superioridade masculina,
relatos são encontrados ao logo de toda a história, começando vagarosamente
a ganhar destaque a partir do século XV, porém é apenas durante a revolução
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
Tendo isto como base, é viável analisar que muito do que vinculado na
mídia e no mercado brasileiro, assim como no mundo de modo geral, acerca do
movimento tem uma forte base teórica ligada as vertentes liberais do feminis-
mo4, que se propõe ao de conceder tal liberdades de escolha dentro do sistema
já existente, o que torna inviável uma emancipação aos moldes de eliminar as
desigualdades por um processe de restruturação de base que Gail Dines propõe.
Percebe-se então que muitas dessas campanhas funcionam apenas como um
disfarce bem pensado para atrais mulheres para o mercado sem conceder reais
expectativas de libertação, além de que estimulá-las a este modelo individu-
alista de feminismo faz com que essas mulheres não consigam expandir sua
visão crítica para além de sua própria realidade, correndo o perigo de reduzir o
movimento a questões supérfluas. Tão preocupante quanto, é também garantir
que as pautas usadas para a libertação feminina não sejam cooptadas e usadas
para justificar outros preconceitos, como os de classe e raça, que usualmente
são colocados para fora desse cenário de empoderamento feminista neoliberal,
como se não fossem questões dignas de atenção.
4 Feminismo liberal é uma forma individualista da teoria feminista, que incide sobre a capacidade das
mulheres em manter a sua igualdade através de suas próprias ações e escolhas, e propõem mudanças
no sistemas jurídicos mas não mudanças nas estruturas sociais.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
é preciso assumir uma postura crítica para que não se acabe tendendo para
as ilusões de nenhum dos extremos.
Faz-se necessário reconhecer o progresso que é ter o feminismo em alta
como assunto que vem se popularizando na sociedade, tanto como forma de
a legitimar os avanços conquistados pela lut/a e também como maneira de
aproximar mulheres da discussão sobre seus direitos, porém ainda assim é
necessário estar aberto a autocrítica. É preciso ter a compreensão que apenas
esta face do movimento, que é comercial, não basta para que as mulheres
tenham noção da completude e complexidade do movimento feminista, ar-
riscando que aquelas deslumbradas pelo que é vendido sobre ele tenham uma
visão bastante restrita de sua totalidade.
Isto torna-se notório quando ao analisar campanhas publicitárias ou men-
ções do movimento feminista em grandes mídias vê-se uma “higienização”
de suas pautas, trazendo para o debate apenas aquelas que já são mais acei-
tas socialmente pela grande parte da população, sem nunca problematizar
ou expandir a discussão. Tenta-se também desassociar a figura da mulher
feminista e empoderada que ali quer se vender daquela que é o estereótipo
que a população mais conservadora rejeita, isso para que seja possível gerar
o engajamento daquele novo público alvo, sem perder a outra parcela que já
fazia parte sua clientela antiga.
Fala-se assim em “feminismo cool”, que as marcas e as mídias se utilizam
como forma de passar uma boa imagem de si mesmas e conseguir chegar até
outras esferas da sociedade que antes não se viam tão tentadas a consumi-las
por não se ver representadas nelas. Como exemplos clássicos, existem as marcas
de produtos como maquiagem e perfumaria que trabalham superficialmente e
de forma bastante restrita a representatividade, jogando “frases de efeitos femi-
nistas” em suas campanhas publicitárias esperando assim receber mais apoio de
mulheres feministas, mesmo que este na maioria das vezes este suporte não se
concretize na realidade e não vá além de poucos segundos mostrados no comer-
ciais que passam na televisão.
Vê-se com isto que esta presença das pautas feministas na grande mídia
tem muito mais caráter de apropriação lucrativa do que incentivar uma real
libertação das mulheres, por isso é dado o nome de “feminismo mainstream”.
Isso pois tendo ele o controle do que é vinculado, o sistema capitalista jamais
abrirá espaços que possibilitem discussões que o questionem, tendo esse poder
de vinculação em relação aos movimentos ele consegue lucrar enquanto passa
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Conclusão
A partir de uma análise do que foi supracitado é possível entender que a
libertação das mulheres dos padrões de gênero impostos pela sociedade não é
possível a partir de uma perspectiva liberal e de manutenção do sistema, assim
como a emancipação na luta de classes não é possível nos quadros do machis-
mo. A partir das questões elucidadas no presente trabalho, pode-se notar que é
inegável o quanto o movimento feminista deu visibilidade às mulheres e à sua
situação de exclusão. Em contrapartida, não se pode constatar uma mudança
real nas estruturas institucionais da sociedade capitalista, que, frequente e astu-
ciosamente, coopta elementos de crítica anticapitalista, como as críticas feitas
pelo feminismo, para legitimar uma nova forma de si mesma.
Culturalmente, o feminismo vem sendo captado pelo neoliberalismo, en-
quanto a sua dimensão econômica é ignorada, justamente porque não interessa
à classe dominante dar respostas a essa dimensão. É o que se pode perceber ao
observarmos grandes marcas e a grande mídia se apropriarem de determinadas
pautas do movimento com objetivo exclusivamente mercantil, sem dar as con-
dições realmente necessárias para que as mulheres possam romper com as bar-
reiras da exploração em suas muitas facetas. A consequência desse fenômeno de
cooptação por parte do capitalismo é um feminismo desagregado das demandas
de classe, raça e sexualidade, se deixando levar por um pensamento de liberta-
ção individual que a vertente liberal do feminismo propõe.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Dessa maneira, será possível pensar-se uma nova fase do movimento femi-
nista, em que este se desassocie por completo das estruturas de dominação ca-
pitalista que não permitem mudanças reais e concretas para as mulheres. É
interessante que nessa linha o movimento possa seguir seu caminho próprio,
visando não somente almejar a superação desses mecanismos de dominação
e violação, mas também a reparação deles e que assim este não assuma carac-
terísticas individualizantes, mas de uma inclusão no combate dos princípios
estruturantes da sociedade: o patriarcado, o racismo e o capitalismo. Tudo isso
em nome da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Referências bibliográficas
1177
______. Fortunes of feminism: from State- Managed Capitalism to
neoliberal crisis. New York: Verso, 2013.
Introdução
Em 11 de Junho de 2017, a Mesa do Senado - representação máxima dos
entes Federativos Estaduais do Brasil - vivenciou um fato inusitado e que oca-
sionou as mais variadas repercussões em jornais de origem nacional e inter-
nacional: a ocupação da Mesa do Senado, por Senadoras de alguns partidos
políticos, durante a votação da Reforma Trabalhista3.
Diante da atualidade de tal temática - mulheres ocupantes de cargo po-
lítico, em face de um ato praticado em desfavor da Reforma Trabalhista -
vislumbra-se a urgente necessidade de discutir o papel da mulher política,
e mais ainda, os discursos midiáticos produzidos por diferentes jornais a
respeito dessas mulheres.
1179
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
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4 Em sua base está a ideia sempre repetida de haver uma identidade natural, dois sexos considerados
normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade masculina, a inferioridade das mulheres e outros
pensamentos que soam bem limitados mas que ainda são seguidos por muita gente (TIBURI, p. 27, 2018).
1180
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
2. Metodologia
Para a realização dessa pesquisa, selecionaram-se seis textos midiáticos vei-
culados por diferentes jornais para constituírem o corpora a ser analisado: três
de origem nacional (Jornal Gazeta do Povo - Editorial, O Globo - Editorial e
Carta Capital) e três de origem estrangeira, mas com versão nacional (El País
Brasil, Sputnik Brasil e BBC Brasil), escolhidos a partir da abordagem do tema e
por serem jornais de grande circulação.
O primeiro momento foi dedicado a estabelecer quais categorias iriam ser
utilizadas para compor o referencial teórico, bem como servirem de base para
a análise do discurso. Assim, como categorias de análise foram elencadas: a
Credibilidade e a Legitimidade, propostas por Charaudeau, e o Gênero, teorizado
por Garcia (2015) e Mathieu (2009), além das categorias de estereótipos e clichês,
propostas por Amossy (2010), e de Classe Social, conforme Safiotti (2013).
O segundo momento volta-se para a análise das matérias jornalísticas, compa-
rando-as entre si, para a identificação do teor informativo e avaliativo do sujeito
enunciador (o jornal), a fim de verificar os jornais que priorizam o acontecimento
em si e os que emitem um juízo de valor. Com isso, buscam-se verificar as re-
presentações de classes, verificáveis nas análises de diferentes jornais sobre os
senadores que apoiam a Reforma e as senadoras que insurgiram contra a mesma.
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O termo feminismo foi primeiro empregado nos Estados Unidos por volta
de 1911, quando escritores, homens e mulheres, começaram a usá-lo no
lugar das expressões utilizadas no século XIX tais como movimento das
mulheres para descrever um novo movimento na longa história das lutas
pelos direitos e liberdades das mulheres.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
[...] o feminismo nos leva à luta por direitos de todas, todes e todos.
Todas porque quem leva essa luta adiante são as mulheres. Todes porque
o feminismo liberou as pessoas de se identificarem somente como
mulheres ou homens e abriu espaço para outras expressões de gênero - e
de sexualidade - e isso veio interferir na vida toda. Todos porque luta por
certa ideia de humanidade.
[...] desejo por democracia radical voltada à luta por direitos daqueles
que padecem sob injustiças que foram armadas sistematicamente pelo
patriarcado. Nesse processo de subjugação, incluímos todos os seres
cujos corpos são medidos por seu valor de uso: corpos para o trabalho,
a procriação, o cuidado e a manutenção da vida, para a produção do
prazer alheio, que também compõem a esfera do trabalho na qual está
em jogo o que se faz para o outro por necessidade de sobrevivência.
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
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5 Há que se buscar nas primeiras (relações de produção) a explicação da seleção de caracteres raciais
e de sexo para operarem como marcas sociais que permitem hierarquizar, segundo uma escala de
valores, os membros de uma sociedade historicamente dada (SAFFIOTI, 2013, p. 60).
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5. Estereótipo e Clichê
Dada a proposta, neste artigo, e a urgência em discutir como a mulher - ocu-
pante de cargo político - foi retratada em textos midiáticos, nada mais urgente
do que apresentar também, o que se entende por estereótipo e como decorrên-
cia lógica, o clichê. Esses conceitos são retratados nas perspectivas teóricas de
Mussalim e Fonseca-Silva (2011), Amossy (2005) e Amossy e Pierrot (2010),
que os descrevem sob diferentes concepções e modalidades.
Mussalim e Fonseca-Silva (2011, p. 139) defendem que “os estereótipos per-
tencem ao repertório de fórmulas, imagens, tópicos e representações compar-
tilhadas pelos sujeitos falantes de uma língua determinada ou de uma mesma
cultura”, e o definem como:
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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin
6 Amossy (2005, p. 142) define como “esquemas coletivos e representações sociais que pertencem à
doxa, ou seja, à indexação de representações partilhadas”.
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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Quadro nº 01
Nº do Jornal 01
Jornal Jornal Gazeta do Povo (Editorial)
Título Ocupação da mesa do Senado é expressão do totalitarismo
“A ocupação da mesa diretora do Senado pelas Senadoras Fátima Bezer-
ra (PT-RN), Gleisi Hoffmann (PT-PR) e Vanessa Grazziotin (PCdoB)
(...) vai entrar para a história como um dos ataques mais constrangedo-
Credibilidade res à democracia desde a redemocratização”.
“(...) uma reforma ampla das leis trabalhistas que moderniza as normas
sem retirar direito, como insiste em dizer a oposição”.
“As três senadoras, vendo frustrada sua vontade de alterar o projeto de
lei da reforma trabalhista, pisaram fora dos limites impostos a seu traba-
Legitimidade lho parlamentar”.
7 De acordo com Mattedi (2007, p. 404) “O totalitarismo tem por escopo a separação dos indivíduos
uns dos outros (atomização) e a eliminação de sua capacidade de pensamento crítico (raciocínio
massificado) para a destruição de seu bem maior e essencial: a liberdade. [...] O totalitarismo vai
muito além, alcançando a destruição do mundo comum (ação e discurso) e da consciência critica do
indivíduo como formador da realidade social”.
1189
Quadro nº 02
Nº do Jornal 02
Jornal O Globo (Editorial)
Título Reforma trabalhista incentiva o emprego formal
“Apesar do ato antidemocrático, de inspiração bolivariana, de senadoras
da oposição, ao tomarem de assalto, quarta-feira, a mesa do Senado, foi
possível, depois deste ato estudantil, a Casa votar e aprovar a reforma
trabalhista”.
Credibilidade “Contra a medida, entre outras, é que as senhoras petistas Gleisi Hoff-
mann (PR), Fátima Bezerra (RN), Regina Sousa (PI), Vanessa Grazziotin
(AM) e do PSB, Lídice da Mata (BA) praticamente se acorrentaram à
mesa do Senado. Elas representam as corporações sindicais que perdem
com a reforma. Não a grande massa de desempregados e subempregados”.
“Pode ser que a sessão do Senado de 11 de julho de 2017 seja mais lembra-
da por ser a da ocupação da mesa da direção da Casa por senadoras que
Legitimidade
representam o bloco derrotado na matéria, também na Câmara, pelo voto,
símbolo da democracia”.
Nesse editorial de pouco mais de duas laudas, O Globo inicia o texto colo-
cando em evidência que a reforma traz ‘incentivo ao emprego formal’, e segue
a construção narrativa associando a atitude das Senadoras como ‘ato antide-
mocrático’, verifica-se tanto neste jornal como no antecessor (Gazeta do Povo),
a tendência em associar o ato (das Senadoras) a uma prática não democrática.
Ao pender para este raciocínio retira-se então, a credibilidade e mais
ainda, associa-se sempre o fato de terem sido ‘as senadoras’ (mulher) a
tomarem tal atitude. Percebe-se uma necessidade em expor que foram
‘as mulheres senadoras que fizeram tal ato, resta então a dúvida, de que
se fossem senadores da oposição a ocupar a Mesa, o texto midiático iria
imprimir a mesma importância em destacar o gênero (homens senadores)
ao elucidar tal acontecimento.
No que tange a legitimidade, O Globo é enfático ao colocar ainda, que tais
senadoras fazem parte do ‘bloco derrotado’, retirando qualquer legitimidade da
oposição de exercer livre manifestação garantida, sobretudo, pela Constituição
Federal de 1988.
3) A Carta Capital integra o grupo da Editora Confiança e tem circulação
no Brasil desde o ano de 1994. A matéria a respeito da reforma trabalhista foi
publicada em 11 de julho de 2017 e as demais informações foram sistematizadas
no quadro a seguir:
Quadro nº 03
Nº do Jornal 03
Jornal Carta Capital
Título Senadoras da oposição ocupam mesa diretora e Eunício suspende a sessão
“O que está acontecendo hoje no Senado, produzido pelos partidos de es-
querda, usando-se das mulheres senadoras, que tomaram a mesa diretora do
Plenário, é sem dúvida nenhuma algo que vai exigir do Conselho de Ética
Credibilidade
do Senado uma avaliação e providências. Esse não é um comportamento
compatível com a dignidade política de quem representa o povo brasileiro
no Senado da República", afirmou Bauer”.
“Cinco senadoras da oposição ocupam há mais de quatro horas mesa direto-
ra do Senado e impedem a votação da reforma trabalhista”.
“Pelas regras do Senado, qualquer senador pode abrir uma sessão, desde que
Legitimidade haja quórum. Foi isso o que fizeram”.
1191
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
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Nº do Jornal 04
Jornal El País Brasil
A reforma trabalhista à meia luz - Votação no Senado é suspensa após
Título
oposição ocupar a Mesa do plenário para tentar obstruir trabalhos
“O presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB), suspendeu, nesta
terça-feira, a sessão que analisaria a polêmica proposta de mudança na
Credibilidade legislação trabalhista, após senadoras da oposição se recusarem a desocu-
par a mesa do plenário, a fim de impedir que o peemedebista desse início
aos trabalhos do dia”.
“‘Isso não é protesto, é avacalhação’, atacou o vice-presidente do Senado
Cássio Cunha Lima (PSDB-PB). ‘Não satisfeitos em terem destruído o
Legitimidade
país, estão agora avacalhando o país’, acrescentou, garantindo que o pro-
jeto "de uma forma ou de outra será votado hoje”.
1192
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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Nº do Jornal 05
Jornal BBC Brasil
Senado aprova reforma trabalhista: saiba o que pode mudar para os traba-
Título
lhadores
“Em mais uma evidência do caos político que o país atravessa, a reforma
trabalhista foi aprovada pelo Senado em uma sessão marcada por bate-
Credibilidade
-boca, gritaria e protesto de senadoras de oposição, que por mais de 6 horas
ocuparam a mesa diretora da Casa, atrasando a apreciação da matéria”.
“O presidente do Senado, Eunício Oliveira, chamou o protesto das senado-
Legitimidade ras de "ditadura", ao impedir o funcionamento da Casa, e chegou a mandar
apagar as luzes do plenário”.
A matéria veiculada pela BBC Brasil traz em seu título a aprovação da refor-
ma trabalhista e o que poderá mudar para os trabalhadores. Nas categorias de
credibilidade e legitimidade foram selecionados trechos que trazem que evocam
a ainda a posição de oposição das senadoras e se utiliza também da expressão
ditatura para enquadrar a atitude das senadoras.
6) O Sputnik Brasil é uma agência de notícias com sede em Moscou – Rússia,
com escritório no Brasil e em outros países. Em 11 de julho de 2017 publica ma-
téria relativa a ocupação da Mesa do Senado. As principais informações estão
no quadro a seguir:
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Quadro nº 06
Nº do Jornal 06
Jornal Sputnik Brasil
Advogados trabalhistas: 'Reforma da CLT ignora direitos assegurados
Título
pela Constituição'
“O senador José Medeiros (PSD-MT) protocolou uma ação no Conselho
de Ética, por quebra de decoro, contra as parlamentares da oposição que
Credibilidade
atrapalharam a sessão desta terça-feira no Senado, dedicada à votação da
polêmica reforma trabalhista”.
Legitimidade -
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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
Considerações Finais
A ação das senadoras, além de um ato político, configura-se também em um
ato de cunho feminista, em que há uma intencionalidade clara de defender uma
classe social menos favorecida, a classe trabalhadora. A representação feminina
está diretamente relacionada com esta classe, bem como, na defesa dos direitos
fundamentais da mesma, garantidos pela Constituição Federal de 1988.
A partir da análise do corpora, seis textos midiáticos foram selecionados e
colocados em dois grupos com base na origem, nacional e internacional. Após,
foram utilizadas os conceitos abarcados na Teoria Semiolinguística do Discurso
de Charaudeau, de legitimidade e credibilidade. Realizada a análise, percebeu-se
que a representação da classe abastada é realizada pelos senadores que votaram
a favor da Reforma Trabalhista e há uma notável internalização dos interesses
do mercado (empresariado), em detrimento da classe trabalhadora.
Restou também evidente a diferença entre os jornais de origem nacional e inter-
nacional, no primeiro grupo há uma notável tendência em associar o ato das senado-
ras a ‘utilização da força em ato antidemocrático’, há clara uma associação ao grupo
de ‘derrotado’ da oposição do Senado, no qual se incluem as senadoras, resta de ma-
neira categórica a ausência em trazer um conteúdo informativo e que contextualize
o motivo das senadoras terem ocupado a Mesa durante a votação da Reforma.
Os jornais incluídos no segundo grupo – de origem internacional – trouxe-
ram uma narrativa de teor informativo e não preferiram não destacar a relação
de gênero, tão evidente nos jornais nacionais. Além disso, foram capazes de
contextualizar até mesmo o motivo de tal ocupação, tendo em vista o conhe-
cimento de que a Reforma Trabalhista nos moldes em que foi realizada, retira
mais direitos da classe trabalhadora.
Tal pesquisa possibilitou a oportunidade ímpar de trazer aos debates acadê-
micos como a mulher – ocupante de cargo político – é percebida e categorizada
nos textos midiáticos. Sendo de extrema importância trazer para o debate tais
questões, quando ainda se busca uma sociedade em que homens e mulheres
sejam tratados de maneira igualitária.
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Referências bibliográficas
BBC BRASIL. Senado aprova reforma trabalhista: saiba o que pode mudar
para os trabalhadores. Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/
brasil-40577806> Acesso em 07 set. 2017.
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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política
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PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2017.
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Violência contra a mulher
e o golpe de 2016
Introdução
Com o surgimento da nova forma de propriedade privada (ENGELS, 2010)
e da divisão em classes sociais como fruto do desenvolvimento das relações ca-
pitalistas, surgem determinadas formas correlatas ao processo do valor de troca,
tanto no nível social, quanto no político e no jurídico (MASCARO, 2013).
Estas formas são denominadas por Alysson Mascaro como “formas sociais” e
definidas como “modos relacionais constituintes das interações sociais” (MAS-
CARO, 2013). Uma destas formas é a “forma-família” que “estatui posições,
papéis, poderes, hierarquias e expectativas” (MASCARO, 2013, p. 21). Assim,
é nesse período que surge a família monogâmica como um dos pilares da pro-
dução e reprodução no modo de produção capitalista, passando a se constituir
como “expressão da propriedade privada nas relações familiares (LESSA, 2012,
p. 43)”. O que vai mudar radicalmente o que é “ser feminino” e o “ser masculi-
no” dentro das relações sociais (LESSA, 2012). Homens e mulheres passaram a
ser enquadrados em “padrões ideais” para as interações da sociedade capitalista.
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Aos homens o público e para as mulheres, o âmbito privado. Estas deverão ser,
a partir de então, como define Lessa (2012):
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contra a mulher e a população LGBT (CISNE & SANTOS, 2018). Sendo as-
sim, as relações patriarcais de gênero dizem respeito às relações hierárquicas de
exploração e opressão presentes nas relações entre os sexos e que se encontram
ancoradas na diferença sexual.
Haraway (2004, p. 211), por sua vez, acrescenta que “gênero é um con-
ceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual”. Ou
seja, a teoria e a prática na discussão de gênero buscam explicar e trans-
formar as diferenças sexuais entre homens e mulheres que são socialmente
construídas e hierarquizadas em antagonismos e relações de poder. Assim,
apesar de homens e mulheres viverem sob a mesma cultura, está destino a
cada gênero um papel diferente nas relações sociais (SAFFIOTI & ALMEI-
DA, 1995). Portanto, segundo Scott (1989), o gênero não está constituído
apenas pelas diferenças sexuais, mas pelas relações de poder produzidas pela
constatação oriunda dessas diferenças.
Assim, gênero estaria imbuído da função de dar significado às relações de
poder que sustentam as relações sociais entre homens e mulheres, sendo consi-
derado relacional, visto que subentende uma relação social estabelecida a qual
atravessa e constrói a identidade de homens e mulheres (Scott, 1989). Ou seja,
não é a diferença sexual por si só que organiza as relações entre homens e mu-
lheres, mas as relações de poder que definem como homens e mulheres devem
interagir e manter suas relações (TILIO, 2014).
Gênero, portanto, além de ser socialmente construído, corporifica a sexuali-
dade e a exerce como uma forma de poder, classificando homens e mulheres em
duas categorias distintas: dominantes e dominados (SAFFIOTI & ALMEIDA,
1995). Estas categorias obedecem aos requisitos impostos pela heterossexua-
lidade (padrão heteronormativo), funcionando como ponto de apoio da desi-
gualdade de gênero (SAFFIOTI & ALMEIDA, 1995). Além disso, a relação de
dominação dos homens sobre as mulheres está baseada numa fundamentação
biológica construída socialmente. Essa cria e retroalimenta a dominação, desig-
nando o homem como detentor de poder e controle (SAFFIOTI, 1969/2013;
1987; 1999; 2001; 2004).
Uma das formas de se estudar as relações sociais inscritas nas questões de
gênero é por meio da abordagem marxista. De acordo com Eisenstein (1980),
pode-se utilizar o método elaborado por Marx para compreender a opressão
feminina, principalmente no que se refere à estrutura sexo/raça/classe, família e
divisão sexual do trabalho. Essa seria uma forma de realizar uma análise marxista
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2. Desenvolvimento
Dilma Vana Rousseff, aos 63 anos de idade, economista e com uma carrei-
ra política consolidada ingressou na militância política aos 16 anos de idade,
lutou contra a ditadura, foi presa e torturada, saiu, se formou, ingressou no
Partido dos Trabalhadores (PT) em 2001 e, ao lado do então presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, se destacou ao fazer parte da equipe responsável pelo plano
de governo na área energética. Em janeiro de 2011, deu-se início ao primeiro
mandato de Rousseff e ela subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado da sua
única filha, Paula Rousseff Araújo. Não bastou ser a primeira mulher a ocupar
a presidência da República, contar com uma formação acadêmica e experiência
política suficiente e levar, pela primeira vez, uma família monoparental e femi-
nina ao Congresso Nacional para receber o respeito e prestígio que são seus por
direito, já que no dia da cerimônia de posse Dilma foi alvo de ofensas machistas,
conforme reportagem de O Globo (2011):
A presidente Dilma Rousseff até que se esforçou, com seu novo corte
de cabelo e vestindo um tailleur marfim para sua posse, mas foi a beleza
estonteante da mulher do vice-presidente Michel Temer que capturou
olhares e cliques de homens Brasil afora (O Globo, 2011).
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Figura 1. Marcela Temer e Michel Temer no dia da posse da presidenta Dilma Rousseff (2011).
Fonte: https://oglobo.globo.com/politica/beleza-da-vice-
primeira-dama-rouba-cena-na-posse-da-dilma-2844111
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Com todas as estratégias utilizadas pela mídia e por parte da população para
deslegitimar a pessoa e o governo da presidenta Dilma foi dado prosseguimento
ao seu “impeachment”, em abril de 2016. Na ocasião, 367 deputados votaram
a favor da continuidade do processo. A votação que durou mais de cinco horas
contou como justificativa, além do voto pelo “sim” ou pelo “não”, com pérolas
absurdas e violentas. Mais uma vez a presidenta foi violentada “simbolicamen-
te” e desculpas como “religião, família, ditadura e povo brasileiro” tentaram
fundamentar as atrocidades do “tchau, querida”. Após esta votação, o Senado
Federal também se apontou como favorável ao “impeachment”. Nestas ocasi-
ões, não foi só a presidenta que foi oprimida, mas todas as mulheres.
Saffioti (1987) ressalta que o poder do macho na propriedade privada provo-
ca grandes desigualdades entre os sexos acarretando o que a autora denomina
de inferiorização/ social feminina, ou seja, o modo de produção advindo da
propriedade privada, o capitalismo, acaba por oprimir a mulher, impondo pa-
péis que são construídos socialmente e que devem ser absorvidos como parte da
identidade social feminina. Tais papéis sociais acabam por reforçar sobre a mu-
lher a ideologia dominante de superioridade do homem. Saffioti (1987) acredita
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tema de dominação patriarcal por este oferecer benefícios pelo simples fato de
serem homens, o que faz com que não encontrem motivos para mudar o siste-
ma; e as masculinidades subordinadas as quais englobam aquelas relacionadas,
principalmente, aos homens gays, que são discriminados por serem “femini-
nos”. Portanto, conforme dito anteriormente, a hegemonia masculina se cons-
trói nessa relação de dominação sobre as mulheres, assim como também sobre
outros homens, no caso das masculinidades subordinadas (CONNELL, 1987).
A masculinidade hegemônica, portanto, segue um padrão de práticas que reforça
a desigualdade entre os homens e a dominação sobre as mulheres e outras plurali-
dades de masculinidades, definindo padrões de masculinidades opostos a qualquer
modelo de feminilidade existente (CONNELL & MESSERSCHIMDT, 2013).
Conclusão
Apesar de todas as formas de atentados à imagem, lugar e poder da primeira
mulher presidenta gerindo o país, ao analisarmos a gestão total do governo Dil-
ma é possível perceber sua resistência e que, apesar desses impasses, ela trouxe
vários ganhos e avanços históricos para a pauta de luta das mulheres como, por
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exemplo, foi a primeira vez que houve uma maior presença de mulheres nos
ministérios e houve também o fortalecimento da Secretaria de Políticas para as
Mulheres, surgida no governo Lula, em 2003.
Mesmo com limitações, foi durante o governo Dilma que se desenvolve-
ram políticas e ações para o enfrentamento da violência contra a mulher,
bem como em prol da sua autonomia financeira: destaques para a lei do fe-
minicídio e o “Programa Minha Casa Minha Vida”. Em 2015, após reforma
ministerial, a secretaria passou a ter status de ministério com a criação do
Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos
Humanos (Rubim & Argolo, 2018).
Portanto, é premente trazer para o debate do “impeachment” da Dilma as
questões de violência contra a mulher, pois fazem parte dos nexos do fenômeno
político e jurídico do golpe. Essa discussão foi escamoteada, minimizada e rele-
gados ao status de problema menor, o que deflagra uma tentativa, dentre tantas
outras, de silenciamento da história das mulheres brasileiras na política. Além
disso, é necessário entender o fenômeno dentro do tecido social capitalista para
tentar captar a sua essência partindo da aparência fenomênica que salta aos
sentidos, como a violência contra a mulher. Precisamos encarar que a superação
do sexismo, do patriarcado e do racismo, expressões da díade capital/trabalho,
só será possível, quando superarmos as relações sociais de exploração construí-
das no sistema capitalista.
Referências bibliográficas
CONNELL, R. (1987). Gender and Power: society, the person and sexual
politics. Stanford: Stanford University Press.
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EISENSTEIN, Z. (1980). Algunas notas sobre las relaciones del patriarcado
capitalista. In: IDEM. (Org.). Patriarcado capitalista y feminismo socialista.
México, D. F: Siglo XXI.
RUBIM, L.; ARGOLO, F. (2018). Precisamos falar de gênero. In: Idem; Idem
(Orgs.). O golpe na perspectiva de gênero. Salvador: Edufba.
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Cada vez mais se mostra necessária a discussão da obra mar-
xiana. A força da dialética materialista e de uma profunda
historicidade crítica do pensamento de Karl Marx. Auxiliam
na compreensão de fenômenos econômicos e políticos dos
dias de hoje. Se é verdade que não se pode cobrar de nenhum
pensador análises sobre peculiaridades e problemas que ine-
xistiam na época de sua produção intelectual, por outro lado
os episódios recentes que comprovam a volta da xenofobia,
da precarização do trabalho, da criminalização da pobreza e
dos movimento sociais ampliados remetem à necessidade de
se compreender tais fenômenos pela ótica do concreto. Desta
forma, observar como o Direito se localiza neste complexo
panorama é uma obrigação imposta a todos os juristas, em-
bora não se possa ser ingênuo a ponto de pensar que logo os
juristas irão analisar criticamente este quadro de realidade,
menos ainda lançando mão de categorias como luta de clas-
ses, por exemplo.
As ferramentas com que Karl Marx e os marxistas têm a
muito dizer sobre os recentes acontecimentos no Brasil. A
“legalidade que nos mata”, como escreveu Engels, fora criada
pelos partidos da ordem, não para ser necessariamente cum-
prida, mas para ser tolerada até o momento em que não passe
de uma “ilusão constitucional”, como advertiu Lênin. Ter a
coragem de assim compreender o golpe contra a incipiente
mosaic abrasileri de 2016 e seus desdobramentos na América
do Sul, é também uma tarefa de juristas que rejeitam a ex-
plicação puramente normativa e ingressam no território das
palavras e ações concretas
ISBN 978-85-519-1388-8