Direito e Marxismo

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ORGANIZADORES

Daniel Araújo Valença | Enzo Bello


Martonio Mont'Alverne Barreto Lima | Sérgio Augustin

DIREITO E
MARXISMO
Tempos de regresso e a contribuição Marxiana para a Teoria Constitucional e Política
www.lumenjuris.com.br

Editor
João Luiz da Silva Almeida

Conselho Editorial

Abel Fernandes Gomes Gina Vidal Marcilio Pompeu Luigi Bonizzato


Adriano Pilatti Gisele Cittadino Luis Carlos Alcoforado
Alexandre Bernardino Costa Gustavo Noronha de Ávila Luiz Henrique Sormani Barbugiani
Ana Alice De Carli Gustavo Sénéchal de Goffredo Manoel Messias Peixinho
Anderson Soares Madeira Jean Carlos Dias Marcelo Ribeiro Uchôa
André Abreu Costa Jean Carlos Fernandes Márcio Ricardo Staffen
Beatriz Souza Costa Jeferson Antônio Fernandes Bacelar Marco Aurélio Bezerra de Melo
Bleine Queiroz Caúla Jerson Carneiro Gonçalves Junior Marcus Mauricius Holanda
Daniele Maghelly Menezes Moreira João Marcelo de Lima Assafim Maria Celeste Simões Marques
Diego Araujo Campos João Theotonio Mendes de Almeida Jr. Océlio de Jesús Carneiro de Morais
Enzo Bello José Emílio Medauar Ricardo Lodi Ribeiro
Firly Nascimento Filho José Ricardo Ferreira Cunha Salah Hassan Khaled Jr.
Flávio Ahmed José Rubens Morato Leite Sérgio André Rocha
Frederico Antonio Lima de Oliveira Josiane Rose Petry Veronese Simone Alvarez Lima
Frederico Price Grechi Leonardo El-Amme Souza e Silva da Cunha Valter Moura do Carmo
Geraldo L. M. Prado Lúcio Antônio Chamon Junior Vicente Paulo Barretto
Vinícius Borges Fortes

Conselheiros Beneméritos

Denis Borges Barbosa ((in memoriam)


Marcos Juruena Villela Souto ((in memoriam)

Filiais
Sede: Rio de Janeiro Minas Gerais (Divulgação)
Rua Octávio de Faria - n° 81, sala 301 – Sergio Ricardo de Souza
CEP: 22795-415 [email protected]
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Telefax (11) 5908-0240 Tel. (48) 9-9981-9353
Copyright © 2019 by
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima
Enzo Bello
Daniel Araújo Valença
Sérgio Augustin

Categoria: Direito Constitucional

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Alex Sandro Nunes de Souza

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


não se responsabiliza pelas opiniões
emitidas nesta obra por seu Autor.
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer
meio ou processo, inclusive quanto às características
gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais
constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895,
de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e
indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

D598d

Direito e Marxismo : tempos de regresso e a contribuição marxiana para


a Teoria Constitucional e Política / Martônio Mont’Alverne Barreto Lima,
Enzo Bello, Daniel Araújo Valença (organizadores). – Rio de Janeiro : Lu-
men Juris, 2019.
1238 p. : il. ; 23 cm.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-519-1388-8

1. Direito constitucional. 2. Constituição Federal de 1988. 3. Filosofia


marxista. I. Lima, Martônio Mont’Alverne Barreto. II. Bello, Enzo.
III. Valença, Daniel Araújo. IV. Título.
CDD 342

Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927


Os Organizadores

Daniel Araújo Valença é Professor Adjunto do Curso de Direito e do Progra-


ma de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi Árido
(UFERSA). Doutor em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Enzo Bello é Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa


de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Flu-
minense (UFF). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ).

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é Professor Titular do Curso de Di-


reito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza
(UNIFOR). Doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt.

Sérgio Augustin foi Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em


Direito da Universidade de Caxias do Sul (2004 a 2018). É Professor con-
vidado do Master em Direito Ambiental da Universidade de La Empresa
de Montevidéu e Professor convidado do Doutorado em Direito da Univer-
sidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutor em Direito pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR).
Sumário

Apresentação................................................................................................XIII
Capítulo I – Conferências............................................................................... 1
Cuando digo derechos humanos, también digo procesos de lucha
contra la dictadura del Capital....................................................................... 3
Manuel Eugênio Gandara Carballido
O tempo histórico e “O Capital” de Marx: centralidade do
futuro emancipatório na disputa sobre o presente e o passado.................. 23
Newton de Menezes Albuquerque
Socialismo para os ricos, liberalismo para os pobres”: o Golpe
de 2016 e a mercantilização dos direitos sociais......................................... 43
Rene José Keller
O Sujeito neoliberal, a “ditadura do algoritmo” e o identitarismo:
fragmentação dos movimentos sociais no contexto de um
capitalismo em crise civilizacional .............................................................. 59
Maria Beatriz Oliveira da Silva
Bolivia e Proceso de Cambio: caminhos e impasses para o
socialismo comunitário ................................................................................ 71
Daniel Araújo Valença
O Novo Constitucionalismo Latino-Americano a as suas
aproximações com o Marxismo: análise da forma comunal na Bolívia..........85
Gladstone Leonel Júnior
Capítulo II – Marx e o Direito..................................................................... 93
A crise do Capital e o papel do Direito do Trabalho ................................. 95
Eduardo Albuquerque de Souza
A efetivação da política de saúde e as suas dificuldades atuais ................115
Lucas Moreira Rosado
A estigmatização dos direitos humanos..................................................... 129
Jefferson Lee de Souza Ruiz
Função social do Direito e Marxismo.........................................................149
Dâmaris Lívia Pinheiro Damasceno
Fabiana Nogueira Coelho
Lucas Sampaio Dias Lourenço
Pedro Ângelo Pereira Mesquita
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima
Igualdade jurídica e dominação de classe ..................................................161
Rogério Guimarães Frota Cordeiro
Gabriel Landi Fazzio
O conceito de indivíduo na história do pensamento ocidental:
Kant, Marx e Nietzsche ...............................................................................175
Yago Barreto Bezerra
O direito e a teoria da renda fundiária: o IPTU como
instrumento de recuperação de mais-valias fundiárias no Brasil 189
Érica Milena Carvalho Guimarães Leôncio
André Felipe Bandeira Cavalcante
Sobre o método: Pachukanis como seguidor de Marx.............................. 209
Walber Nogueira da Silva
Capítulo III – Constituição e Marxismo.................................................... 225
A construção do direito sob a égide da filosofia política, da
construção moral e filosófica das classes sociais........................................227
José Raisson A. Holanda Costa
Constituinte de 1988: a promulgação de uma Constituição
democrática? Uma análise sob o pensamento de Lênin
e Rosa Luxemburgo ..............................................................................................239
Viviane Vaz Castro
Nadson Nunes Torres
Giulia Maria Jenelle Cavalcante de Oliveira
Mecanismos de participação popular nas cartas constitucionais:
analise entre a brasileira e boliviana...........................................................261
Carlos Eduardo Mota de Brito
Capítulo IV – História, Direito e Marxismo............................................. 281
Direito ao protesto: da crítica a violência à efetivação dos
direitos humanos......................................................................................... 283
José Augusto S. Neto
Guilherme Augusto Sá Barreto de Miranda
Entre libera e valquírias: a incompreensiva condição humana................ 303
Yago Barreto Bezerra
Francisca Kaline Oliveira da Silva
O exercício laboral como fator imprescindível para o
fornecimento da dignidade da pessoa humana...........................................317
Ingrid Teixeira Aguiar
Júlia Maia de Meneses Coutinho
Capítulo V – América Latina, Crises de Hegemonia e Marxismo.......... 333
A internacionalização da ciência e as possibilidades na relação
Sul-Sul a partir do caso brasileiro ............................................................. 335
Cecília Tavares Guimarães
Carla Luiza Cândido de Carvalho Freire
Jéssica Lorena de Araújo Silva
Joyce Pereira da Costa
Pablo de Sousa Seixas
Ana Ludmila Freire Costa
Anticomunismo: a igreja de mãos dadas com o Golpe de 1964.............. 347
Ronnan Thomas Oliveira da Cunha
O Movimento Indianista e sua influência para a concretização do
Estado Plurinacional da Bolívia................................................................. 363
Vítor Carlos Nunes
Partidarização do Sistema de Justiça no Brasil, fetichismo
ético-punitivo e o fim da crítica .................................................................375
Francisco Cardozo Oliveira
Nancy Mahra de Medeiros Nicolas Oliveira
Teoria Marxista como base teórica e metodológica do
Serviço Social: reflexões acerca da influência do marxismo
na construção do Código de Ética dos (as) Assistentes Sociais .............. 393
Emanuelle Monaliza de Sousa Gomes
Ferdinanda Fernandes Gurgel
Letícia Karoline Brito Medeiros Dantas
Thássila Tamires Batista Alves
Capítulo VI – Marxismo e Movimentos Sociais........................................413
Crise capitalista, o embate hegemônico e os desafios dos
intelectuais das classes subalternas ............................................................415
Eliana Andrade da Silva
Direitos LGBT e capitalismo: entre a organização social e os
processos de apropriação do capital............................................................431
Leonardo Gomes de Miranda
Maria Taynara Ferreira Bezerra
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Thariny Teixeira Lira
Emancipação política e emancipação humana: uma análise
marxista da teoria dos Direitos Humanos ................................................ 441
Laíze Gabriela Benevides Pinheiro
Extensão universitária em educação infantil e popular durante
o encontro dos Sem Terrinha, no assentamento Maísa,
da região de Mossoró/RN............................................................................453
Nardella Gardner Dantas de Oliveira
Vagner de Brito Torres
Romana Alves da Câmara
Juventude e organização política: uma análise do protagonismo
juvenil nas lutas sociais............................................................................... 467
Taisa Iara de Almeida Costa
Seria Marx ecologista?.......................................................483
Walber Nogueira da Silva
Shyene Maranhão Guedes de Freitas
Uma análise marxista acerca dos movimentos sociais e seus
integrantes não pertencentes às classes oprimidas.................................... 495
Giovanna Helena Vieira Ferreira
Gabriel Braga dos Santos
Capítulo VII – Mundo do Trabalho e Reformas Neoliberais.................. 509
A informalidade do trabalho como consequência do crescente
desemprego estrutural no Brasil..................................................................511
Jássira Simões dos Santos
Milena de Sousa Freitas
A PEC 287/2016 e a trabalhadora do campo: a Reforma
da Previdência como obstáculo ao acesso da aposentadoria
rural pelas camponesas................................................................................529
Vágner de Brito Tôrres
A relação entre o direito à educação na forma jurídica e sua
contradição com a efetiva realização deste direito: o caso da
contrarreforma do Ensino Médio............................................................... 549
Tibério Bezerras de Brito Baima - UFPB
José Eudes Baima Bezerra – MAIE/UECE
As condições de labor das trabalhadoras de cana em Japoatã – SE........ 563
Shirley Silveira Andrade
Nataly Mendonça
As modificações constantes do art. 394-a da CLT: reflexos do
avanço neoliberal na flexibilização dos direitos das mães
trabalhadoras sob a ótica da Reforma Trabalhista (LEI 13.467/17)........ 583
Milena de Souza Batista
Cooperativas e expansão da informalidade - formas atuais de
controle do trabalho ................................................................................... 599
Sthephane Dutra dos Santos
Reivan Marinho de Souza
Cooperativas e terceirização – formas de controle do Capital
sobre o trabalho no capitalismo contemporâneo.......................................611
Ana Rute Oliveira Duarte
Reivan Marinho de Souza
Educação e mundo do trabalho: uma análise dos processos
formativos voltados para a classe trabalhadora no âmbito da
educação profissionalizante, com enfoque no sistema S de ensino......... 623
Gabriel Vinicius Jesus Maia Medeiros
Marília Paula Carlos Costa
Entre o constitucionalismo liberal e o social – a defesa dos direitos
sociais do trabalhador em contraposição aos meios que garantam
a celeridade na tramitação dos processos na Justiça do Trabalho........... 639
Bento Herculano Duarte
Hilana Beserra da Silva
Experiência de atuação em CREAS de um município de pequeno
porte no RN: uma análise das dificuldades enfrentadas pelo
advogado enquanto técnico SUAS............................................................. 657
Magna Manuelle Ferreira Alves
Samia Dayana Cardoso Jorge
Fabiana Dantas Soares Alves da Mota
Nada a temer! Precisamos resistir! A contrarreforma trabalhista
e a precarização do trabalho....................................................................... 667
Glênia Rouse da Costa
Izabella Patrícia Brito da Silva
Maria Lucilma Freitas
O atual modo de gestão do capital e a retomada da escravização
na contemporaneidade................................................................................ 681
Alex Moura do Nascimento
Luiz Manoel Andrade Meneses
O Positivismo Jurídico da Periferia do Capital na Justiça
Trabalhista da Paraíba ................................................................................ 703
José Mário da Silva Sousa Filho
Os rebatimentos do neoliberalismo na política de saúde:
uma reflexão teórica.................................................................................... 725
Maciana de Freitas Souza
Débora Rute de Paiva Mota
Rodrigo Jácob Moreira de Freitas
Tamara de Freitas Ferreira
Reforma Trabalhista: a atuação sindical e a proteção ao trabalhador.....743
Bento Herculan Duarte
Hilana Beserra da Silva
Ana Cecília Alves Nôga
Lei Nº 13.467/2017: limites e possibilidades a direitos fundamentais
de mulheres transexuais e travestis brasileiras...........................................767
Dandara da Costa Rocha
Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes
Uma análise sobre a categoria trabalho a partir do filme
“segunda-feira ao sol”.................................................................................. 787
Thiago Henrique Lopes da Costa
Irinéia Raquel Vieira
Capítulo VIII – Direito Penal e Marxismo.................................................811
A construção política, legislativa e ideológica da proibição da
maconha no Brasil....................................................................................... 813
Douglas Diógenes Holanda de Souza
Dayane da Silva Mesquita
Luan Fonseca Araújo
A sociabilidade capitalista e a gênese da pena de prisão:
repercussões no atual grande encarceramento ..........................................831
Gênesis Cavalcanti
Júlio Ivo Celestino
Garantia de direitos na perspectiva dos(as) adolescentes em
cumprimento de medidas socioeducativas do Rio Grande
do Norte, Brasil............................................................................................851
Carmem Plácida Sousa Cavalcante
Joyce Pereira da Costa
Ilana Lemos de Paiva
Herculano Ricardo Campos
O relato mítico e sua linguagem persuasiva e ideológica:
um sintético ensaio acerca do mito da igualdade no direito penal...........871
Rodrigo Nunes da Silva
O trabalho na prisão: uma comparação entre as workhouses do
século XVII e o Projeto de Lei do Senado 580/2015................................ 877
Fernanda Vidal Mesquita
Roberta Calini Gomes Pereira
Os fatores socioeconômicos enquanto determinantes do delito:
a necessária abordagem crítica criminológica do sistema
penal brasileiro............................................................................................. 899
Rodrigo Nunes da Silva
Kátia Cristina Guedes Dias
Patriarcado e guerra às drogas: uma análise feminista marxista
do hiperencarceramento por crime de tráfico............................................919
Dayane da Silva Mesquita
Douglas Diógenes Holanda de Souza
Pornografia da vingança e violência contra a mulher: entre a
tipificação penal e os limites da forma jurídica......................................... 933
Maria Taynara Ferreira Bezerra
Leonardo Gomes de Miranda
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Thariny Teixeira Lira
Sistema Penitenciário e Capitalismo: relações entre a sociedade
que pune e aquela que produz.................................................................... 947
Karízia Gabriela leite Cavalcante
João Batista dos Santos Alves
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Adriana Dias Moreira Pires
Capítulo IX – Marxismo, Gênero e Raça...................................................961
A responsabilização pelo cuidado dos filhos e os impactos na
vida das mulheres........................................................................................ 963
Jakciane Simões dos Santos
Thanúsia Hensel da Cunha Ferreira
As religiões de matriz africana no banco dos réus: o Recurso
extraordinário 494.601 e a tentativa de proibição do abate
religioso de animais no Brasil..................................................................... 983
Afonso Falcão de Almeida Filho
Rayane Cristina de Andrade Gomes
Feminismo e marxismo: abordagens concomitantemente essenciais...... 997
Dacielle da Silva Ingá
Interlocuções entre o transfeminismo e o marxismo: uma análise
a partir da inserção da mulher trans no mundo do trabalho................. 1007
Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes
Dandara da Costa Rocha
Ronaldo Moreira Maia Júnior
Interseções entre saúde das trabalhadoras rurais, gênero e Marx..........1019
Annie Lívia Torres de Albuquerque Araújo
Lázaro Fabrício de frança Souza
Mérito e interseccionalidade: uma análise sobre gênero raça e
renda com os ingressantes do curso de Direito da UFERSA
a partir do sistema de cotas sociais e raciais.............................................1037
Nayara Katryne Pinheiro Serafim
Mulheres guerreiras e de fé: feminismo, educação popular e
trabalho na comuna Luís Beltrame/MST em Natal/RN.........................1051
Lorena Cordeiro de Oliveira
Rayane Cristina de Andrade Gomes
O que é coisa de mulher?: reflexões acerca do trabalho considerado
feminino e do trabalho feminino não pago...............................................1071
Cínthia Simão
O silenciamento histórico da mulher do campo: violações domésticas
e familiares voltadas para uma perspectiva marxista.............................. 1083
Ingrid Nataly Fernandes de Sales
Júlia Gomes da Mota Barreto
Racismo e deslocamentos de pessoas não-brancas: uma abordagem
materialista e marxista...............................................................................1101
Amália Rosa de Moraes Silva
Sexualidade e direitos humanos: as “minorias sexuais” na
sociabilidade do capital.............................................................................. 1117
Artur Fernandes de Moura
“Somos a soma da diversidade, lutando por igualdade e por
transformação”: as particularidades da divisão sexual do trabalho
para as mulheres camponesas....................................................................1135
Gabriela Holanda Bessa de Lima
Larissa Ellem Alves da Silva
Larissa Souza Pinheiro
Romana Alves da Câmara
Um estudo sobre a condição de negras e negros no curso de
direito da UFERSA.....................................................................................1151
Luan Fonseca Araújo
Nayara Katryne Pinheiro Serafim
Uma análise do “feminismo mainstream” na realidade brasileira
enquanto mecanismo instrumentalizado a serviço da classe
dominante e reprodutora da desigualdade de gêneros e classe...............1169
Ana Letícia de Oliveira Bezerra Fernandes
Júlia Gomes da Mota Barreto
Uma releitura da ocupação da Mesa do Senado por senadoras:
nas perspectivas de gênero e classe........................................................... 1179
Camila Kayssa Targino Dutra
Verônica Palmira Salme de Aragão
Violência contra a mulher e o golpe de 2016...........................................1199
Maria Alice de Lima Lemos
Ana Caroline de Lima Silva Ferreira
Andréia Garcia dos Santos
Juliano Beck Scott
Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira
Apresentação

A presente obra é fruto dos trabalhos apresentados e das palestras profe-


ridas no III Congresso Internacional Direito e Marxismo: 200 Anos do
Nascimento de Karl Marx: A Contribuição Marxiana para a Teoria Cons-
titucional e Política em Tempos de Regresso Político, realizado na cidade
de Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte, nos dias 07 a 09 de novembro de
2018, na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).
Esta terceira edição foi organizada pelo GEDIC - Grupo de Estudos em
Direito Crítico, Marxismo e América Latina e pelo Programa de Pós-gradu-
ação em Direito da própria UFERSA, então recém inaugurado, em conjunto
com o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza
(PPGD-UNIFOR), o Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucio-
nal da Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF) e o Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul (PPGD-UCS).
Destaca-se o protagonismo do corpo discente da UFERSA, notadamente dos
discentes de graduação do GEDIC, em articulação com movimentos sociais
da região do Semi-Árido nordestino.
Trata-se de evento marcado por sua perenidade e pela articulação entre Pro-
gramas de Pós-Graduação em Direito de 3 regiões do Brasil: Nordeste, Sudeste
e Sul. As duas primeiras edições foram realizadas na Universidade de Caxias
do Sul, nos anos de 20111 e 20132, e contaram com a presença de mais de 1200
participantes, em cada edição, além de palestrantes de todas as regiões do Bra-
sil, bem como da América Latina e da Europa.
As duas primeiras edições do Congresso Internacional Direito e Marxismo
geraram diversos livros (impressos e digitais)3, que trazem as publicações de

1 https://www.ucs.br/site/ucs/eventos/I_seminario_internacional_direito_marxismo
2 https://www.ucs.br/site/eventos/ii-congresso-internacional-de-direito-e-marxismo/
3 AUGUSTIN, Sergio. (Org.). Direito e Marxismo: meio ambiente. Vol. 4. Caxias do Sul: EDUCS,
2014. https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/Direito_e_marxismo_Vol4.pdf>. ISBN 9788570617415.
BELLO, Enzo; LIMA, Martônio Mont'Alverne Barreto; AUGUSTIN, Sérgio (Orgs.). Direito e
Marxismo: materialismo histórico, trabalho e educação. Vol. 1. Caxias do Sul: EDUCS, 2014. 384p.

XIX
resumos, artigos e palestras, contribuindo para a divulgação, a atualização e a
discussão da obra marxiana no Brasil contemporâneo.
A obra que ora apresentamos conta com nove capítulos, que trazem tra-
balhos elaborados a partir dos resumos expandidos apresentados nos Grupos
de Trabalho (GTs) “Marx e o Direito”, “Constituição e Marxismo”, “História,
Direito e Marxismo”, “América Latina, Crises de Hegemonia e Marxismo”,
“Marxismo e Movimentos Sociais”, “Mundo do Trabalho e Reformas Neoli-
berais”, “Direito Penal e Marxismo”, “Marxismo, Gênero e Raça”. Ademais,
abrimos o livro com as conferências e palestras que foram sistematizadas em
textos pelos próprios autores e autoras, ao redor dos temas “Reificação: Lei
e Democracia em Marx”, “A tensão entre capitalismo e direitos humanos”,
“Estado de Exceção Constitucional no Capitalismo”, “Cultura, Liberdade
de Manifestação e Democracia”, “Marxismo e questão racial”, “O Capital:
Teoria da História”, “Movimentos Sociais e Limites da Democracia”, “Novo
Constitucionalismo na América Latina”, “Teoria social marxiana e marxis-
ta: aportes para a luta”.
Cada vez mais se mostra necessária a discussão da obra marxiana. A força
da dialética materalista e de uma profunda historicidade crítica do pensamento
de Karl Marx auxilia na compreensão do fenômenos econônicos e políticos dos
dias de hoje. Se é verdade que não se pode cobrar de nenhum pensador

Disponível em: <http://www.ucs.br/site/midia/arquivos/Direito_e_marxismo_Vol1.pdf>. ISBN:


9788570617439.
LIMA, Martônio Mont'Alverne Barreto. (Org.). Direito e Marxismo: economia globalizada,
mobilização popular e políticas públicas. Vol. 2. Caxias do Sul: EDUCS, 2014. 330p. Disponível em:
<https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/Direito_e_marxismo_Vol2_2.pdf>. ISBN 9788570617392
BELLO, Enzo. (Org.). Direito e Marxismo: transformações na América Latina contemporânea.
Vol. 3. Caxias do Sul: EDUCS, 2014. 272 p. Disponível em: <http://www.ucs.br/site/midia/arquivos/
Direito_e_marxismo_Vol3.pdf>. ISBN: 9788570617408.
BELLO, Enzo; LIMA, Martônio Mont'Alverne Barreto; AUGUSTIN, Sérgio; LIMA, Letícia
Gonçalves Dias (Orgs.). Direito e Marxismo: as novas tendências constitucionais da América
Latina. Caxias do Sul: EDUCS, 2014. 215p. ISBN: 9788570617576.
BELLO, Enzo; AUGUSTIN, Sérgio; LIMA, Martônio Mont'Alverne Barreto; LIMA, Letícia
Gonçalves Dias (Orgs.). Direito e Marxismo: tendências atuais. Caxias do Sul: EDUCS, 2012. 431p.
ISBN: 9788570616678.
BELLO, Enzo; AUGUSTIN, Sérgio; LIMA, Martônio Mont'Alverne Barreto (Orgs.). Anais do
1º Congresso Internacional Direito e Marxismo. Caxias do Sul: Plenum, 2011. 816p. ISBN:
97885885125.

XX
análises sobre peculiaridades e problemas que inexistiam na época de sua pro-
dução intelectual, por outro lado os episódios recentes que comprovam a volta
da xenofobia, da precarização do trabalho, da criminalização da pobreza e dos
movimento sociais ampliados remetem à necessidade de se compreender tais
fenômenos pela ótica do concreto. Desta forma, observar como o Direito se
localiza neste complexo panorama é uma obrigação imposta a todos os juristas,
embora não se possa ser ingênuo a ponto de pensar que logo os juistas irão
analisar criticamente este quadro de realiade, menos ainda lançando mão de
categorais como luta de classes, por exemplo.
As ferramentas com que Karl Marx e os marxistas analisam a realidade
têm a muito dizer sobre os recentes acontecimentos no Brasil. A “legalidade
que nos mata”, como escreveu Engels, fora criada pelos partidos da ordem,
não para ser necessariamente cumprida, mas para ser tolerada até o momen-
to em que não passe de uma “ilusão constitucional”, como advertiu Lênin.
Ter a coragem de assim compreender o golpe contra a incipiente democracia
brasileira de 2016 e seus desdobramentos na América do Sul, é também uma
tarefa de juristas que rejeitam a explicação puramente normativa e ingressam
no território das palavras e ações concretas.
Registramos a relevante contribuição da coletividade reunida em torno do
GEDIC, que construiu esta terceira edição com muita dedicação, carinho e
competência: Adriana Dias Moreira Pires, Adriele Jairla de Morais Luciano,
Afonso Falcão de Almeida Filho, Ana Caroline Melo Carvalho, Ana Flávia
Oliveira Barbosa de Lira, Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes, Carlos
Eduardo Mota de Brito, Dacielle da Silva Ingá, Dayane da Silva Mesquita,
Dandara da Costa Rocha, Evillin Lissandra Cosme Santana, Fabiana Noguei-
ra Coelho, Gabriel Braga dos Santos, Gabriel Vinicius Jesus Maia Medeiros,
Giovanna Helena Vieira Ferreira, Jose Eider Madeiros, Lijohara Julia de Sá
Souza, Luan Fonseca Araújo, Luine Emmile Lima e Silva, Maria Taynara Fer-
reira Bezerra, Marilia Paula Carlos Costa, Nayara Katryne Pinheiro Serafim,
Pedro Ângelo Pereira Mesquita, Raissa Alves da Silva, Rayane Cristina de
Andrade Gomes, Ronaldo Moreira Maia Júnior, Thais Frota Ferreira Caval-
cante, Vitor Carlos Nunes.
No mesmo sentido, cabe consignar o trabalho da equipe de revisão e
formatação dos textos que compõem este livro, sem a qual esta empreitada
não seria possível: Afonso Falcão de Almeida Filho, Anna Cecília Faro Bonan,
Dacielle da Silva Ingá, Felipe Romão de Paiva, Larissa de Paula Couto, Rayane

XXI
Cristina de Andrade Gomes, Ronaldo Moreira Maia JúniorPor fim, desejamos
que esta obra proporcione contribuições a estudos e debates, fomentando a
renovação do pensamento crítico, no anseio pelo advento do IV Congresso
Internacional Direito e Marxismo.
Fortaleza, Mossoró, Niterói, Caxias do Sul, 30 de abril de 2019.

Prof. Dr. Martonio Mont’Alverne Barreto Lima


Prof. Dr. Daniel Araújo Valença
Prof. Dr. Enzo Bello
Prof. Sergio Augustin

XXII
Capítulo I
Conferências

1
Cuando digo derechos humanos,
también digo procesos de lucha contra
la dictadura del Capital

Manuel Eugênio Gandara Carballido1

Introducción
La abstracción de las condiciones socio-históricos ha permitido a la ideología liberal
fragmentar las distintas dimensiones que conforman la realidad social; así, ha hecho
posible formular un discurso de los derechos atendiendo a aspectos estrictamente
jurídicos sin tener que dar cuenta de las dimensiones política y económica.
Cuando asumimos los derechos humanos más allá de reivindicaciones
específicas y nos preguntamos por las razones estructurales que hacen que
en nuestra sociedad se mantengan y reproduzcan relaciones de dominio,
explotación y exclusión, tenemos que preguntarnos si las formas de organización
socio-económica, si los modelos políticos y los marcos civilizatorios, que definen
determinadas relaciones sociales, contribuyen o no a la satisfacción de tales
condiciones para todos y todas. Asumir críticamente los derechos humanos nos
debe llevar no sólo a ver si un determinado derecho está siendo garantizado,
sino a un análisis de nuestra sociedad, intentando determinar qué causas
estructurales (modelo de civilización, relaciones sociales de producción, sistemas
socio-culturales, formas de organización política) establecen una determinada
configuración que hace imposible la vida digna para todos y todas (incluida la
naturaleza). Este análisis no niega acciones específicas más sectoriales, sobre
derechos concretos, pero exige una comprensión del conjunto capaz de orientar
una práctica realmente transformadora.

1 Educador en derechos humanos. Doctor en Derechos Humanos y Desarrollo por la Universidad


Pablo de Olavide, en Sevilla, España. Miembro del Instituto Joaquín Herrera Flores - América
Latina. Realiza una estancia postdoctoral en el Programa de Postgrado en Derecho de la Universidad
Federal de Río de Janeiro.

3
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Por ello, nos proponemos desarrollar algunas reflexiones sobre la posibilidad


de sostener coherentemente derechos humanos en el marco de relaciones
definidas por el capitalismo; régimen que, sin lugar a duda ha logrado establecerse
como forma de organización social hegemónica en los dos últimos siglos.

2. Dibujando el campo de nuestra discusión


Si bien una fórmula mínima de capitalismo le reconoce asentado sobre el
principio de la acumulación ilimitada de capital a partir de una clara asimetría
de poder en las relaciones entre quienes detentan los medios de producción y
quienes han de subordinarse a estos primeros, dado que solo pueden ofrecer
su fuerza de trabajo a cambio de una remuneración salarial (Filho e Fonseca,
2011, p. 234), consideramos que el capitalismo no debe ser considerado
solo como un sistema económico, tal y como hace el análisis clásico de la
economía política, ni tampoco como un sistema cultural, en la línea de los
estudios poscoloniales anglosajones. Como propone el grupo de investigación
modernidad/colonialidad asumimos el capitalismo como una “red global de
poder” que integra procesos tanto económicos como políticos y culturales (Cfr.
Castro-Gómez y Grosfoguel, 2017, pp. 17-18). Esta integración de las distintas
dimensiones en un único sistema de poder queda patente al analizar las formas
en que la modernidad y el capitalismo, siendo procesos históricos con un origen
distinto, se fueron integrando y reforzando mutuamente (Cfr. Santos, 1989). En
ese sentido, Arturo Escobar plantea la necesidad de comprender la economía
occidental como una institución de la que no solo forman parte los sistemas
de producción, sino también, desde finales del siglo XVIII, los sistemas de
poder y significación, estando los tres unidos al desarrollo del capitalismo y la
modernidad, debiendo ser entendidos como formas culturales. La economía,
por tanto, debe reconocerse en su capacidad para producir una determinada
forma de ser humano (como sujeto productivo) y un tipo específico de orden
social (Cfr. Escobar, 1998).
El proceso histórico que venimos describiendo asume una condición
extrema a partir de la universalización de la forma mercantil y de la sujeción
de las normas jurídicas a las exigencias del mercado propias del actual proceso
de globalización capitalista del sistema neoliberal. En éste, se establece una
sensibilidad jurídica capaz de sacralizar tanto la productividad como la eficacia

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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económica, a la vez que logra que se asuman como naturales los imperativos
requeridos por la acumulación privada de capital (Cfr. Gallardo, 2007, p. 3). Tal
y como la describe Herrera Flores (2005b):

Esta nueva fase de la economía neoliberal globalizada se caracteriza,


básicamente, por tres fenómenos. En primer lugar, por la ampliación
constante de las fronteras de la acumulación capitalista (el trabajo
productivo, el ocio, los conocimientos tradicionales). En segundo lugar,
por la contaminación e impregnación de lo humano de las exigencias
morales de dicha acumulación: competitividad, consumismo, egoísmo
“racional”, individualismo, etc. (es decir, por la colonización economicista
de los mundos vitales). Y, en tercer lugar, por la imposición de todas
estos fenómenos en todas las escalas en que la vida y la productividad
humanas se despliegan como si fueran procesos “naturales” e irreversibles
(lo que, en otros términos, podríamos definir como la globalización del
particularismo del capital a todo nuestro universo).

El mercado, como sistema de competencia, genera modelos de relación


social que a su vez van produciendo determinadas formas de sensibilidad en los
sujetos, definiendo así un horizonte de sentido2, de manera tal que no decide
únicamente sobre los productos y las formas de producción, sino también sobre
los productores y su vida Cfr. Hinkelammert, 2003, p. 238). Es por ello que el
sociólogo Edgardo Lander afirma que las alternativas que se quieran generar
al sistema capitalista “requieren no sólo alternativas a los patrones de propiedad
y de consumo de esta sociedad, sino igualmente alternativas a su cosmovisión, sus
subjetividades, a sus modos de conocer y de producir.” (2012, p. 38)
Todo este proceso histórico acontece, con el agravante de que el mercado,
sustentado en la absolutización de la racionalidad instrumental y la lógica de
propio beneficio, se ha constituido en un automatismo que produce riqueza
destruyendo las bases de toda riqueza: el hombre y la naturaleza (Cfr.
Hinkelammert, 2003, p. 249). El mercado, convertido en absoluto, se transforma
de esta manera en la mayor amenaza a la sostenibilidad de la vida.

2 En relación con el capitalismo como orden que implica además del sistema económico, una estructura
social, un modelo de cultura y una estructura política, puede verse la obra de Roger Garaudy. La
alternativa. Madrid: EDICUSA, 1973, pp. 63-64. Sobre el desarrollo y contenidos del capitalismo,
véanse el texto de Karl Polanyi. La gran transformación. Crítica del liberalismo económico.
Madrid: La Piqueta, 1997; también HINKELAMMERT, F y MORA, H. Hacia una economía para
la Vida. San José: DEI, 2005.

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Pero, más aún, tal y como señalan laval y Dardot en su texto “La nueva
razón del mundo”, el capitalismo neoliberal, antes que una ideología o
una política económica es, de entrada y ante todo, una racionalidad. En
consecuencia, tiende a estructurar y a organizar no solo la acción de los
gobernantes, sino también la conducta de los propios gobernados. (Cfr.
Laval y Dardot, 2013, p. 15).
La racionalidad neoliberal tiene como característica principal la
generalización de la competencia como norma de conducta y de la empresa
como modelo de subjetivación. Así, el neoliberalismo se puede defirnir
como el conjunto de los discursos, de las prácticas, de los dispositivos que
determinan un nuevo modo de gobierno de los hombres según el principio
universal de la competencia (Cfr. Laval y Dardot, 2013, p. 15). Nuestras
sociedades de mercado están conformadas por sujetos aislados, que además
se perciben entre sí como competidores que deben orientarse por el logro del
máximo beneficio personal. En ellas, el consumo (o al menos la expectativa
de consumo, cuando consumir no es posible) se convierte en “lugar estructural
y autónomo de relaciones sociales, una forma nueva de poder, de derecho y de
conocimiento.” (Santos, 2003, p. 315)
En este “horizonte de sentido”, en el marco de este proyecto societal, se
configura el régimen civilizacional que Boaventura De Sousa Santos ha
definido como fascismo social, caracterizado por diversas formas de marginación
(apartheid social, fascismo de la inseguridad, fascismo paraestatal, fascismo
financiero…) de extensas masas de población que quedan excluidas de toda
forma de contrato social: jóvenes de guetos urbanos populares, campesinos,
trabajadores del posfordismo, etc. (Cfr. Santos, 2003, p. 83).
Ante este panorama, los desafíos teóricos y prácticos (siempre entendidos
como dimensiones de la praxis humana, no como momentos separados), son
de inmenso calado. Se necesita desnaturalizar las supuestas evidencias que
el capitalismo ha logrado instalar como forma de pensamiento; se requiere
imaginar alternativas concretas que permitan anudar el lazo social sobre la
base de otra dinámica histórica que no sea la del capital. Tal tarea, para que
sea real y efectiva, solo será posible en el diálogo permanente entre los actores
sociales que habiendo reconocido la necesidad de esta transformación, asumen
el compromiso de hacerla posible (Cfr. Gruner, 2011). Por eso, las reflexiones
que siguen pretenden ofrecer algunos aportes para pensar y actuar una teoría
anticapitalista de los derechos humanos.

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3. Necesidad de una aproximación teórica capaz de


recuperar la economía política
Reconocer que la lucha de los derechos humanos va más allá de su mero
reconocimiento formal en los marcos normativos, atendiendo a la construcción de
reales condiciones de vida digna en los diversos contextos en que las personas y
los pueblos realizan sus proyectos vitales, exige recuperar el análisis crítico de la
economía política en la comprensión de los derechos. Es falso todo intento por
construir sociedades que reconozcan y se orienten por la vigencia de los derechos,
si tales intentos no asumen lo económico como una instancia imprescindible (Cfr.
Hinkelammert, mimeo, p. 75). No habrá garantía posible de derechos humanos sin
transformaciones profundas a nivel económico, pues dichas transformaciones son
parte de sus condiciones de posibilidad (Cfr. Hinkelammert y Mora, p. 347).

En cuanto la economía política se interesa por el problema de la


reproducción de los factores de la producción, fuerza de trabajo y capital,
por ejemplo, esta reproducción se constituye en matriz de la asignación
óptima de los recursos sociales. Diciéndolo esquemáticamente, una
economía política determinada puede privilegiar la reproducción
del capital, otra la de la fuerza de trabajo y una tercera la del ser
humano… Desde luego, una política económica puede invisibilizar
ideológicamente su referente en la economía política, pero esta
invisibilización trae consigo la desaparición, también ideológica, del
ser humano y de sus responsabilidades como sujeto. Se advierte aquí
que la matriz que afirma la reproducción de la vida humana y de
la Naturaleza y hace de toda otra decisión social funciones de esta
reproducción, constituye la matriz óptima para imaginar, pensar y
luchar por derechos humanos.(Gallardo, 2008, p. 288)

El discernimiento crítico de los modelos económicos, un ejercicio necesariamente


atravesado por opciones de carácter ético y político, permite desnaturalizar
supuestas posiciones “necesarias e ineludibles” en las formas de asignar los recursos
en nuestras sociedades, identificando también presupuestos y opciones que han sido
interesadamente invisibilizadas. En este sentido, es preciso afirmar que cualquier
propuesta de política económica, y de economía política en general, que desconozca
la centralidad de las necesidades humanas y de las formas de organización social
que se requieren para atenderlas, establece y refuerza dinámicas discriminatorias,

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autoritarias, totalitarias y de exterminio de lo humano y la naturaleza (Cfr. Gallardo,


2000, p. 28). En función de ello, afirmamos la contradicción entre los procesos de
acumulación irrestricta de capital, base de la propuesta capitalista, y la asunción de
derechos humanos entendidos desde el pensamiento crítico.
El discurso y configuración de las prácticas de los derechos humanos pueden
responder de manera diversa a la consolidación del capitalismo; bien resultando
funcional a él, bien reaccionando de manera contundente contra su lógica
de exclusión y explotación de grandes sectores de la población. De hecho, el
proceso histórico de conformación del capitalismo puede ser leído a partir de
sus consecuencias en la configuración de los derechos humanos. Veamos al
respecto el planteamiento de Santos:

Desde meados do século XVIII, a trajectória da modernidade está


vinculada ao desenvolvimento do capitalismo nos países centrais, o
que pode ser ilustrado também no campo dos direitos humanos…
Um tanto esquematicamente pode dizer-se que o primeiro período é o
período da expansão e consolidação dos direitos civis e políticos pois,
como é sabido, a componente democrática do Estado liberal começou
por ser muito ténue e só se foi ampliando em consequência das lutas
sociais conduzidas pelos trabalhadores, as quais, de resto, embora
características deste período, continuaram sob diferentes formas nos
períodos seguintes. O segundo período, o período do capitalismo
organizado, é um período dominado pela conquista dos direitos sociais
e económicos, a segunda geração dos direitos humanos, e a forma
política do Estado em que se veio a traduzir é o Estado-Providência ou
o Estado social de direito. Por fim, o terceiro período, que estamos a
viver, é um período complexo pois se é certo que nele se tem vindo a
pôr em causa os direitos conquistados no período anterior, os direitos
sociais e económicos, por outro lado, tem-se vindo a lutar, en alguns
países com algum êxito, pelo que se poderia considerar a terceira
geração de direitos humanos, os direitos culturais, pós-materialistas,
anunciadores de modos de vida alternativos (ecológicos, feministas,
pacifistas, anti-racistas, anti-nucleares).(Santos, 1989)

En el actual “orden” mundial, en el que el sistema económico capitalista


ordena los demás campos de la relaciones sociales, buena parte de los marcos
normativos son definidos en función de la dinámica de acumulación del capital
(Cfr. Senent, 2012, pp. 13-14). Ante el “orden” gestado desde el capitalismo

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globalizado, necesitamos identificar el papel que ha venido jugando el discurso


tradicional de los derechos humanos, e identificar las potencialidades de otro
discurso que recoja y anime otras prácticas.
Un orden social sostenido sobre la base de la acumulación de capital,
que legitima, por tanto, relaciones asimétricas en el acceso a la propiedad,
en el manejo de la información, en la construcción de conocimiento y en el
control de las condiciones necesarias para vivir dignamente, debe, con justa
razón, calificarse como estructuralmente contrario a derechos humanos (Cfr.
Gallardo, 2008, p. 48). Su lógica de base configura una sociedad conformada
por “vencedores y perdedores estructurales”, respectivamente justificados y
culpabilizados gracias a su aparato ideológico. Resulta evidente el carácter
profundamente antidemocrático de semejante forma de organización de la
vida en sociedad; si optamos, como de hecho lo hacemos, por radicalizar la
democracia en los diferentes órdenes de la vida, eso se debe traducir en la
exigencia de democratizar el poder en los distintos ámbitos y transformar
así las relaciones económicas, la configuración cultural y la organización
política (Red de Apoyo, mimeo).
Por todo ello, afirmamos que en la construcción de la realidad llevada
adelante desde la ideología capitalista, solo podrán afirmarse derechos humanos
de forma aleatoria, fragmentaria y restringida para los victoriosos (Cfr. Gallardo,
2006, p. 57); hay una negación estructural (insistimos en este adjetivo) de la
posibilidad de un ejercicio de derechos a partir del cual todas y cada una de
las personas puedan proponerse y hacer posible horizontes de humanización
desde sus contextos específicos. El proyecto de los derechos humanos es, pues,
impracticable, desde este horizonte civilizatorio (Cfr. Senent, 2012, p. 16). Así
lo recoge el profesor Helio Gallardo:

La acumulación de capital no puede ser matriz de derechos humanos


universales por diversos motivos de los que indicaremos tres: contiene
una lógica de discriminación que produce ganadores y perdedores; reifica
mercantilmente la experiencia humana reduciendo la plenitud posible
de esta experiencia a consumo u opulencia; propone un orden absoluto
desde el que se puede agredir la diversidad humana o sus experiencias
individuales diversas. (2008, pp. 22-23)

Pero, no nos equivoquemos, la estrategia del sistema capitalista


globalizado, el neoliberalismo, no pasa por negar los derechos humanos, por

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el contrario, se propone mundializarlos, siempre que antes logre instalar una


concepción de los mismos que resulte compatible con su lógica, sus intereses,
su concepción de ser humano, de mundo y de sociedad. Ella propondrá
un ejercicio de los derechos centrado en la ficción jurídica de un supuesto
individuo abstracto del que se dice no está determinado por ningún rasgo
identitario específico, pero que en realidad responde al muy específico
modo de ser humano del hombre propietario burgués occidental blanco
(Cfr. Fariñas, 2005, p. 109). “Son los derechos que garantizan la protección
jurídica de las manifestaciones jurídicas del señorío autónomo, racional y
posesivo de la personalidad de cada individuo: los derechos del individuo
propietario libre.” (Fariñas, 2005, p. 104) Se platea, pues, una tendenciosa
homogeneización del modelo antropológico, reduciendo el ser humano a este
individuo ideológicamente configurado, pretendiendo universalizar el tipo
local específico que subyace a la propuesta civilizatoria capitalista.
Pero la estrategia neoliberal, en su reconfiguración de los derechos
humanos, da un paso más, de no poca significación y consecuencia: le reconoce
“personalidad jurídica” a las empresas y corporaciones trasnacionales, de manera
tal que son asumidas como sujetos jurídicos (Cfr. Fariñas, 2005, p. 103). De esta
forma, “los derechos del mercado (derechos humanos de las personas jurídicas y
colectivas, empresas) sustituyen a los derechos humanos (derechos humanos de las
personas corporales).” (Hinkelammert y Mora, 2001, p. 321)
Así, se pone en marcha una reinterpretación de los derechos humanos,
transformándolos en un gran correlato de derechos de propiedad. Todo,
incluido el ser humano, es visto como propiedad, y por tanto como algo
transable, quedando el ejercicio de los derechos reducido al cálculo de utilidad
en función del criterio de la maximización del beneficio (Hinkelmmart, mimeo
2010, p. 8). En la forma de organización capitalista, hoy imperante, el mercado
se constituye en el centro de la sociedad y la legalidad se establece a partir
de la relación contractual entre individuos, protegiendo, fundamentalmente
la propiedad y el estricto cumplimiento de los contratos. Desde este principio
se configura la libertad; libertad es libertad para contratar, y consumir. (Cfr.
Hinkelammert, 2010, pp. 296-298)
Por su parte, los derechos de carácter redistributivo, de sentido igualitario,
son descartados, negados en su condición de derechos (Cfr. Fariñas, 2005, p.
108). Para esta narrativa, los derechos conocidos como económicos, sociales y
culturales son entendidos como distorsión y obstáculo al libre desenvolvimiento

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del mercado; son contrarios a “la” (su) racionalidad económica y, por tanto, son
descartados. Nuevamente la estrategia pasa por simplificar para generalizar una
alternativa, su alternativa: su racionalidad se presenta como “la” racionalidad.
Frente a ello, un pensamiento crítico debe visibilizar las consecuencias de esta
práctica y desestabilizar los discursos que pretenden legitimarla, haciendo ver que
tal racionalidad, la inherente al modelo capitalista, no se corresponde con un
orden natural y objetivo de las cosas, no es ni universal ni necesaria, no es reflejo de
ningún tipo de relacionamiento original del ser humano; es, sí, una construcción
social que, por tanto, está sometida al discernimiento de los actores sociales en
su quehacer socio-histórico (Cfr. Gallardo, 2008, pp. 22-23). Veamos entonces
algunos aportes que pueden ser útiles para la construcción de ese pensamiento.

4. Algunos criterios y principios orientadores


Frente a una concepción de los derechos reductivamente formalista, capaz
de afirmar derechos haciendo abstracción de las condiciones concretas en que
los seres humanos viven, necesitamos construcciones teóricas que integren
en su discurso la gestación de condiciones que hagan posible transformar los
impedimentos socio-históricos que en cada caso concreto las personas y los
pueblos requieren enfrentar para así poder acceder a las diferenciadas formas
de vida digna. Se tratará de una construcción que, sin pretender establecer
de antemano cuáles han de ser esas condiciones y las capacidades necesarias
para enfrentarlas, permita reconocer y animar alternativas frente a los múltiples
mecanismos y estructuras de subordinación que la dinámica sociopolítica
plantea, fundadas en las asimetrías de poder.
Entendiendo los derechos humanos como procesos de lucha por condiciones
de vida digna, ponemos en el centro de la necesidad de que los seres humanos,
individual y colectivamente, estén en posibilidad de reaccionar frente al
entorno de relaciones en que viven, contando con los recursos materiales e
inmateriales necesarios para poder formular y construir mundos de vida a partir
de sus particulares y diferenciadas concepciones de dignidad. Así, el elemento
paradigmático de los derechos humanos lo conformaría "la facultad para gozar
del desarrollo de las capacidades humanas objetivadas social e institucionalmente y
para apropiárselas, es decir, para ponerlas en práctica siempre de un modo renovado.”
(Herrera, 1989, p. 126)

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Se presenta así un abordaje material de los derechos humanos que asume lo


particular-concreto de cada contexto, reconociéndolo y valorándolo en cuanto
tiene de condición de posibilidad para impulsar procesos de transformación.
Se plantea la lucha por los derechos humanos como lucha por la creación de
condiciones para que cada actor social pueda definir y desarrollar su proyecto
personal y colectivo de vida humana. Considerar los derechos humanos desde
esta perspectiva socio-histórica exige recuperar la crítica a la economía política,
al asumir la conquista de los derechos desde las luchas sociales que se gestan
en el marco de sociedades con relaciones socio-económicas asimétricas y
conflictivas (Cfr. Gallardo, 2008, pp. 289-290).
Esta forma de comprender los derechos humanos impulsa a crear
condiciones que permitan frenar el automatismo del mercado irracionalmente
absolutizado; un mercado que se reproduce a sí mismo sin otro criterio que la
máxima eficiencia económica; lo que es contrario a la creación de condiciones
que permitan una vida digna para todos y todas. En sintonía con estos
planteamientos, Herrera Flores concibe los derechos humanos como “medios
discursivos, expresivos y normativos que pugnan por reinsertar a los seres humanos
en el circuito de reproducción y mantenimiento de la vida, permitiendo abrir espacios
de interpelación, de lucha y reivindicación.” (2000, p. 78)
Hacer frente a este desafío e impulsar las transformaciones necesarias,
exige controlar los distintos poderes, tanto públicos como privados. Entre esos
poderes fácticos que ponen en riesgo los derechos humanos, es necesario llamar
la atención con respecto a la necesidad de control sobre las burocracias privadas;
algo que Franz Hinkelammert plantea sin dejar lugar a dudas:

Hoy, en efecto, los derechos humanos centrados en la propiedad privada


tornan imposible el control del poder que nos domina, en vista de que
las burocracias privadas afirman su poder en nombre de estos derechos
humanos. La propiedad privada, como derecho humano central,
destruye a la propia democracia liberal… En la actualidad, el único
control posible de las burocracias privadas pasa por la intervención de
los mercados, intervención que la burocracia privada declara ilegítima
en nombre de su comprensión de los derechos humanos. (2003, p. 27)

En opinión de Hinkelammert, no es posible hablar de derechos humanos


sin asumir la necesaria intervención sistemática en los mercados (Cfr.
Hinkelammert, mimeo, p. 77). Así, pues, en contra del mito de la capacidad de

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los mercados para autoregularse, no podemos hablar de democracia económica


sin asumir la intervención sistemática en los mercados donde ello sea necesario
en función de asegurar las condiciones necesarias para vivir con dignidad.
Necesitamos, por tanto, preguntarnos con qué recursos contamos o podemos
contar para ejercer este poder. Del conjunto de herramientas de lucha, queremos
a continuación preguntarnos por el papel que el Estado puede cumplir.
Participamos de un momento histórico en el que es explícito el debate
sobre el papel del Estado (Cfr. Santos, 2008); la definición de su rol en los
procesos sociales es un campo de disputa (Cfr. Santos, 2006, p. 57). Por ello,
la puesta en marcha de procesos de transformación social que hagan efectivo
el disfrute de derechos humanos obliga, entre otras acciones necesarias, al
discernimiento del Estado como institución central de la actual forma de
organización socio-política.
Contra el discurso que presenta a la globalización neoliberal en el intento
por hacer desaparecer el Estado, es preciso percatarse que en lugar de disolverlo
lo que ésta pretende es transformarlo en función de sus intereses. En lugar de
desregulación lo que está aconteciendo es una re-regulación que tiene como eje
las reglas que el capitalismo requiere para intensificar su acción; en ello, el papel
del Estado es fundamental, para controlar a la población, para poner lo público
al servicio de los intereses privados (Cfr. Hinkelammert, 2001, pp. 197-198). De
tal manera que en lugar de una crisis del Estado, a lo que nos enfrentamos es
a la tentativa de transformación del modelo de Estado hasta ahora conocido
para ajustarlo a las demandas del capital globalizado; el nuevo tipo de Estado
propuesto por los mentores del discurso capitalista se articula de forma directa
con el mercado (Cfr. Santos, 2008, p. 259).
Sin embargo, el Estado, dependiendo de cómo se configure, puede ser de
gran significación en la construcción de alternativas contra-hegemónicas. A
pesar de las resistencias que al interno de la tradición crítica se han tenido a la
figura del Estado, las últimas experiencias, particularmente en algunos países de
América Latina (Venezuela, Ecuador, Bolivia…), obligan a revisar su capacidad
potencial en estos procesos.
Ciertamente la configuración del Estado tal y como le conocemos responde
fundamentalmente a los intereses de los sectores sociales con mayor poder;
sin embargo, no debemos obviar que su configuración también es producto
de luchas llevadas adelante por diversos sujetos populares intentando superar
situaciones de subordinación y exclusión. Es decir, en nuestro análisis crítico

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del Estado es preciso el cuidado necesario para no cometer la injusticia de


invisibilizar los logros de las luchas populares, que también están presentes,
aunque no sea una presencia preponderante a lo largo de la historia. Al
respecto, resulta lúcida la consideración de Nicos Poulantzas cuando, en una
formulación más compleja que acá recogemos de manera sucinta, entiende
que el Estado materializa la condensación material de una correlación de
fuerzas presentes en la sociedad (Cfr. Poulantzas, 2002, p. 159). Miriam Lang
lo desarrolla en los siguientes términos:

El Estado no es ni un simple instrumento de las clases dominantes, ni


una instancia neutra dedicada a realizar el bien común. Más bien sería
un campo estratégico en el cual las distintas fuerzas sociales luchan por el
fortalecimiento y, en el caso ideal, por la generalización de sus intereses o
valores – mediante leyes, recursos públicos, legitimidad oficial o incluso
mediante el blindaje de la coerción. (2010, p. 17)

Necesitamos, por tanto, complejizar la valoración que tradicionalmente


los pensadores de izquierda han tenido sobre el Estado al entenderlo como
mera herramienta de dominación de una clase sobre otra, o bien considerarlo
irrelevante o puro factor de corrupción que debe ser dejado de lado por los
actores que buscan la emancipación social (Cfr. Santos, 2006, p. 95).
Frente a tales posturas, asumir, como veíamos antes, que el Estado es un
campo de contradicciones sociales, permite que dichas contradicciones puedan
ser aprovechadas por los movimientos populares, combinando, en la medida en
que las circunstancias específicas lo permitan, “la lucha legal y la ilegal, la lucha
institucional y la directa, la lucha dentro del Estado y la lucha fuera de éste.” (Santos,
2011, p. 3) En este proceso, será necesario un discernimiento permanente de las
acciones a partir del criterio del protagonismo y empoderamiento de los sectores
sociales vulnerabilizados. En tal tarea, resulta alentadora la lectura histórica
que realiza Rosario Valpuesta Fernández:

La noción de ciudadanía que hoy se maneja y que concita la atención


de los movimientos sociales, no se corresponde con la idea burguesa que
la anudaba casi en exclusiva al sufragio electoral activo y pasivo, y a un
Estado débil, que se limitaba a ejercer casi en exclusiva las funciones
ligadas a la soberanía... esta mudanza en la percepción de la ciudadanía
ha requerido, como parece lógico, la transformación del modelo liberal

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burgués en una organización política más implicada con la construcción


de esa ciudadanía y, por consiguiente, más concernida con la igualdad
sustancial y la libertad real. Este es el cambio que se produce en el
tránsito del Estado burgués al Estado Democrático y Social, que discurre
desde la formalidad de la declaración de los derechos a la esencialidad de
su realización. (2010, p. 1055)

En el sentido expuesto, un movimiento popular robusto, con capacidad


para llevar adelante sus demandas, requiere de un Estado consolidado, con la
fuerza necesaria para asumir y llevar adelante los proyectos presentados desde
los movimientos sociales. Para avanzar en las demandas de los actores sociales
que apuestan a una transformación emancipadora, necesitamos de un Estado
vigoroso capaz de intervenir y controlar al mercado (Cfr. Hinkelammert,
2001, p. 198). Necesitamos repensar el Estado, identificando y potenciando su
capacidad de control sobre las burocracias privadas.
Para ello, es preciso confrontar la propuesta de Estado que el modelo liberal
ha logrado consagrar, y que está directamente vinculada a la configuración
histórica de los derechos tal y como ha quedado recogida en las declaraciones
tradicionales de derechos humanos. A partir de dichas declaraciones, tiene
lugar el establecimiento de “fueros individuales” frente al poder del Estado
(presentado como sociedad política), pero no así ante el poder del mercado
(visto como sociedad civil). Esta tendencia se ha exacerbado al extremo y el
mercado ha pasado a ser visto como espacio de libertad a ser preservado de
la acción del Estado (Cfr. Fariñas, 20005, pp. 111-112), lo que deja el campo
libre a la consolidación de la acumulación capitalista en sociedades marcadas
por profundas asimetrías de poder entre actores asumidos como iguales; una
igualdad que solo es posible sostener en términos formales, desconociendo las
reales condiciones socio-históricas (Cfr. Gallardo, 2000, p. 27). Al respecto, las
palabras de Franz Hinkelammert no pueden ser más contundentes:

La emancipación frustrada de la iluminación independizó la actividad


privada de los controles públicos. Desembocó en la sociedad burguesa y la
imposición mundial del capitalismo, que le corresponde. De la actividad
privada de individuos se transformó en la constitución del poder absoluto
de burocracias privadas, que se apoderaron de los derechos humanos para
legitimarse como poderes despóticos por encima de todos los otros poderes y
en cátedra mundial del pensamiento único que nos domina hoy. Necesitamos

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una respuesta, que, sin embargo, no será posible sino desde los derechos
humanos mismos. Por tanto necesitamos una crítica de la formulación de los
derechos humanos de las declaraciones del siglo XVIII. (2003, p. 461)

Una arista de este debate se plantea si asumir o no una


praxis que reconozca la responsabilidad de las violaciones
a los derechos humanos más allá del Estado. 
5. Para
concluir y seguir pensando derechos humanos
La concepción tradicional, es decir liberal, que restringe la violación de
derechos humanos exclusivamente a la actuación del Estado, acarrea entre
sus consecuencias el que se invisibilicen las responsabilidades de otros poderes
fácticos en las violaciones de dichos derechos, dificultándose así la búsqueda de
respuesta frente a su actuación contraria a la vida digna de los pueblos. Como
bien resalta Ignacio Ellacuría:

El presupuesto de las luchas en favor de los derechos humanos, según el


cual era el Estado el principal opresor de los individuos, no es correcto,
porque dentro de la sociedad hay poderes y mecanismos de opresión
y explotación, no sólo del individuo por el individuo sino de mayorías
sociales por minorías sociales, sean clases o no. En estas condiciones,
el robustecimiento del Estado en favor de las mayorías populares para
contrarrestar el poder de las minorías viene a ser una vuelta al poder de
todos contra el poder de unos pocos. De todos modos queda pendiente,
aún después de la revolución francesa (1789) y de la soviética (1917), el
problema de unos derechos humanos que se planteen no sólo para las
mayorías sino desde y por las mayorías. (2001, Nota 9, pp. 441-442).

Entendiendo los derechos humanos como una construcción socio-histórica,


su posible reformulación ha de estar sometida a la dinámica que definan
los actores sociales y las relaciones (de consenso, conflicto, construcción de
hegemonía, etc.) que entre ellos se constituyan. El discurso de los derechos
humanos (la manera de comprenderlos, de narrarlos, de aplicarlos, de
institucionalizarlos, etc.) es, al fin y al cabo, un espacio de disputa. 

16
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Cuando se plantea que el Estado y no otros actores tiene obligaciones en


materia de derechos humanos, ello responde a una construcción social que,
precisamente por ser tal, puede ser reformulada. Evidentemente, plantear que
otros actores tengan obligaciones y se consideren potenciales violadores de
derechos humanos, también es una construcción social; en ningún caso estamos
describiendo fenómenos naturales o encarnando esencias eternas. La pregunta,
entonces, es, qué forma de comprender y de aplicar los derechos resulta más
provechosa de cara a lograr mejores condiciones de justicia, de vida digna.
Como hemos visto, éste es un discernimiento que hay que hacer tomando
en cuenta las potencialidades, pero también los riesgos que plantear el cambio
traería. Un riesgo puede ser que los Estados relajen su nivel de compromiso con
los derechos humanos. Desde nuestra perspectiva, hablar de ampliar el espectro
de actores con obligaciones en materia de derechos humanos, no se entiende
necesariamente como disminución de obligaciones al Estado; no planteamos
una transferencia de obligaciones.
La pregunta es, entonces, si no sería favorable a las luchas en las que estamos
empeñados, empezar a reconocer los límites en que nos coloca la comprensión
de los derechos humanos que se fraguó fundamentalmente en el marco de
la doctrina liberal, en la medida en que dicha comprensión de los derechos
impide gestar mecanismos de lucha que sirvan para enfrentar a algunos poderes
fácticos que, valiéndose, por ejemplo, de una pretendida división entre lo público
y lo privado, actúan al amparo de los vacíos y distorsiones que los actuales
instrumentos jurídicos presentan a partir de esa concepción teórica.3
Un ejemplo claro de ello es la actuación de las tras-nacionales. Bien a través
de Estados penetrados por el poder económico, o directamente a su servicio,
o bien valiéndose de la debilidad de otros Estados, en el marco del derecho
liberal se ha venido construyendo una nueva "lex mercatoria" que deja impune
prácticas que afectan gravemente la posibilidad de que los pueblos puedan vivir
condiciones de vida digna. Esta nueva "ley" que rige el intercambio comercial en
el escenario globalizado establece sanciones a los Estados cuando sus acciones

3 De ello da cuenta, por ejemplo, la decisión de la Corte Suprema de Justicia de EE.UU. del 21 de enero
de 2010, emitida en el caso "Citizens United vs. Federal Election Commission" en la que se elimina
el límite de financiación a las campañas electorales por parte de las grandes empresas. Resulta difícil
suponer que esa financiación no implicará luego cuotas de poder y definición de acciones por parte
de los gobiernos en función de los intereses de las empresas.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

afecten los intereses de las empresas, sin que ocurra lo contrario obligando a las
empresas a resarcir los daños causados a las poblaciones.
En busca de brindarnos instrumentos para llevar adelante los proyectos de
sociedad en los que creemos, convendría, por una parte, afianzar y desarrollar
las herramientas legales con las que ya contamos, tanto en el plano nacional
como en el internacional, y avanzar en el servicio que el Estado debe prestar
supervisando, controlando y sancionando las acciones por parte de las empresas
que afecten la calidad de vida de la gente; pero, al mismo tiempo, podemos
pensar en construir y desarrollar otras herramientas conceptuales, jurídicas,
políticas, que permitan actuar también en los escenarios que la globalización
ha ido definiendo. Se trata de construir y consolidar nuevas formas de control
democrático que permitan atender a las asimetrías creadas (y, porque creadas,
susceptibles de ser transformadas), sometiendo así a actores hasta ahora no
considerados por la doctrina dominante sobre los derechos (Cfr. Pisarello,
2004). Evidentemente, esta construcción implicará un gran esfuerzo creativo,
no exento de riesgos, y una gran osadía política para definir los mecanismos,
instrumentos y sistemas de protección necesarios.
El criterio para orientarnos en este terreno lleno de desafíos debe ser siempre
aquello que más favorezca la construcción de vida digna para todos y todas, pero
empezando por los y las que se encuentran en condiciones más precarias para
formular y desarrollar sus proyectos de vida: personas y colectivos sometidas a
relaciones de explotación, exclusión y subalternización estructural.

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O tempo histórico e “O Capital” de Marx:
centralidade do futuro emancipatório na
disputa sobre o presente e o passado

Newton de Menezes Albuquerque1

Introdução: o necessário reencontro com Marx e sua


metodologia histórico-crítica
Tornou-se “lugar comum” identificar Marx com uma concepção fechada
de história, presa a um presumido causalismo “físico”, onde a temporalidade
circunscreve-se a uma reiteração do presente que, por sua vez, atribui sen-
tido ao passado e ao futuro como seus desdobramentos lógicos. Tal leitura
decorre de variados fatores, alguns compreensíveis, outros nem tanto, como
passaremos a verificar.
Marx como todo grande pensador encontra-se sujeito a diferentes apropria-
ções teóricas, construções discursivas, interpolações, como sói ocorrer com He-
gel, Kant, Aristóteles, Spinoza, etc. Via de regra, os pensadores estão aí para se-
rem “usados”, relidos a partir de um novo contexto social, político, econômico,
cultural. Contudo, nem sempre, as interpretações de seus aportes teóricos são
feitos com fidelidade metodológica, problemática, ao concebido pelo referido
pensador em seus propósitos iniciais.
No caso de Marx, há um agravante, dado o peso de seu escrutínio sobre as
estruturas do capitalismo vigente, colocando-se assim como um crítico impie-
doso de seus valores e normatividades, o que fez com que desde cedo aquele
visse-se fustigado por seus inimigos, notadamente por todos aqueles que faziam
apologia à ordem produtora de mercadorias. Ou seja, Marx, suas percucientes

1 Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).


Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

análises, conjeturas, proposições foram engolfados pela torrente dos enfrenta-


mentos de classe, pelas clivagens entre as forças burguesas e proletárias que se
esbatiam, sem pudor do sacrifício da verdade por parte de seus figadais inimi-
gos. Compreender suas reflexões, separando-as dos interesses concretamente
situados, forcejando por uma apreensão plenamente autônoma, neutral, de sua
teoria, é pouco viável. Nesse sentido, qualquer autor encontra-se”ameaçado”
pela subjetividade projetante de quem o lê, o que podemos tentar coibir, para
o bem do funcionamento adequado da “esfera pública” argumentativa, são os
excessos, apodando as arbitrariedades tipicas do modismo dominante, prenhe
de “narrativas” sem fundamento doutrinário.
Ademais, as circunstâncias específicas da assimilação do pensamento mar-
xiano pelas distintas realidades nacionais, com suas peculiares formações sócio
econômicas, modelou em graus diversos o sentido da compreensão, do alcance
da crítica marxiana. Posto que uma coisa era compreender a produção de Marx
em sociedades modernas, relativamente integradas na ordem capitalista mun-
dial, dotadas de sofisticadas relações de produção, articulação ideológica de
representações de mundo hegemônicas; outra diversa, era introduzir Marx em
realidades periféricas, dominadas por lealdades estamentais em interação com
as exigências mercantis, onde a complexidade da sobreposição de paradigmas
requeria uma flexibilidade teórica.
Acresça-se a isto, os processos burocráticos que se assenhoraram da Revo-
lução Russa, responsáveis pelo advento trágico do stalinismo e de toda uma
perspectiva apologética do real, do Estado, precisamente após o “Termidor”
soviético, “canibalizando” Marx e sua filosofia da história dentro de um en-
torno doutrinário pobre, esquematista, evolucionista e sem musculatura. Tais
dimensões, com certeza, levaram a que Marx e o marxismo, muitas vezes
fossem vistos como criadores de uma doutrina dogmática, linearista, reducio-
nista do homem e da história.
Outro aspecto a ser considerado, é a abordagem a-histórica de Marx, em que
seus textos, artigos e livros são examinados em “abstrato”,sem coligi-los com os
fatos e motivações que levaram a sua produção. Por exemplo, não é recomendá-
vel falar de Marx sem mencionar os ajustes de contas que ele fez com a filosofia
idealista de Hegel, marcada pelo veio excessivamente sistemático, teleológico
de sua obra. Nem muito menos, de seu rechaço da passividade de um materia-
lismo grosseiro, amplamente difundido por distintos círculos intelectuais.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A ausência desses pressupostos marxianos, de sua consideração adequada,


termina por levar a que Marx sejainterpretado equivocadamente. Daí a frequ-
ência dos unilateralismos metodológicos, tendentes a vê-lo ora como um fisica-
lista social, de laivos positivistas, ora como uma duplicação hegeliana de uma
razão metafísica vagante pela história à sombra dos atores concretos.
O tempo histórico de Marx, portanto, para ser compreendido em seus pró-
prios termos, precisa ser escoimado dos “a prioris” preconceituosos, dos parcia-
lismos ideológicos, das escumalhas dos ódios recalcitrantes, ineptos para uma
avaliação rigorosa, honesta e minimamente isenta das contribuições de Marx
sobre o assunto em tela.
De resto, devemos nos precaver em relação aos vícios corporativistas,
posto que como juristas, temos por péssimo hábito, a tendência a nos en-
clausurar em fórmulas canônicas, não episodicamente de cariz retórica,
quase sempre vazia em termos de conteúdo, de substância. A história para
o direito instituído reduz-se, corriqueiramente, a mera expressão dos inte-
resses de classe dominantes, a razão ou desrazão dos “vencedores”, de sua
gramática de poder. O silêncio eloquente dos códigos, das leis, quase sem-
pre estampa-se na dicção hermenêutica por parte dos aparatos do Estado
burguês, estruturalmente refratários às demandas dos trabalhadores, “dos
de baixo”. O que os leva a ter uma visão exegética, coagulada da história,
acrítica diante dos valores e conteúdos postos pelas normas que integram o
ordenamento jurídico. As categorias normativas da propriedade, da posse,
dos tipos penais, dos contratos, dos procedimentos solenes são veiculadas
à sombra do tempo, da história, ou, como dá no mesmo, dentro de uma
história homogênea, “pacificada” pela omnipresença da racionalidade do
dinheiro e de seus agentes vertidos em “paisagem” onde floresce o direito,
como se estes fossem partes de uma realidade intangível.
O estudo de Marx, a apreensão de sua temporalidade histórica aberta,
resinificada pelas lutas em favor de um futuro emancipatório, retesa os
tempos aparentemente fixos do presente e do passado. Precisamos saber
que o passado, o presente e o futuro estão em disputa, e os juristas em
vez de figurarem como seguidistas de uma ordem decomposta, genuflexa
à ilegitimidade do Capital, como vemos no Brasil contemporâneo, devem
funcionar como sujeitos aliados dos trabalhadores, do povo e dos direitos
instituintes que forcejam por criar.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

2. Marx, o tempo do “Capital” e os vários tempos


concomitantes na sociedade e no direito: contraposição às
visões causalista, linear e fatalista da história
É usual afirmar-se que Marx defendia uma visão de mundo pautada numa
crença linear, evolutiva, inelutável e hermética da história. Como prova, em
geral, apresentam manuais “marxistas”, artigos de terceiros, quando muito,
excertos pinçados de sua obra, apresentados como expressão da totalidade de
sentido última de sua reflexão. Tal caricatura, por vezes, é referendada por de-
terminados epígonos do pensador alemão, o que dificulta o combate as vulgatas
deterministas que se lhe são impingidas.
Marx, na verdade, buscou com sua obra abrangente fugir das percepções
escolásticas do real, bem como refugar as ortodoxias metodológicas, as filoso-
fias da história pejadas de necessitarismo, mesmo porque tais premissas opõe-se
frontalmente ao que pretendem deduzir. Para começar, um tempo fechado, des-
dobrado em si mesmo, simples realização de um evento pré-figurado não pode
ser considerado histórico. Pelo menos, no sentido moderno de sua acepção,
conformada pela inauguração da subjetividade livre, do trabalho como catego-
ria ontológica projetante sobre o meio. Princiaplmente depois de sua virada feu-
erbachiana, quando antrologiza sua percepção da dialética histórica, invertendo
a metodologia idealista de Hegel. Enzo Falleto capta tal mudança:

Conviene mantener presente que la filosofia hegeliana definia la


historia como la historicidad de um principio infinito que se realizava
em un processo dialéctico. Frente a esta interpretación Feuerbach va a
representar la reinvindicación del carácter humano de la historia ; ya
no es un principio el que se realiza a través de la historia sino que esta
es lo los hombres hacen. Este hecho significaba reconocer la finitud del
hombre y de las relaciones de los hombres entre si. La base del nuevo
pensamiento natural de la existencia humana, las conexiones entre la
natureza y la sensibilidad del hombre. La historia pasa a ser una historia
de la relación entre el hombre y su medio natural a través de su própria
sensibilidad ; em forma más especifica, aunque redundante , a través de
de la necessidad de satisfacer necessidades.2

2 Falleto, Enzo. Falleto Latinoamericano: artículos y ensaios.Santiago do Chile: Editorial Universitaria,


p.113. 2016.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Afinal de contas, quando Marx critica implacavelmente o capitalismo


não o faz sob o diapasão da negação da liberdade, do advento da supremacia
ordenadora do Estado e de sua presumida ação conciliatória dos interesses
gerais, sacrificando a autonomia privada do homem. Muito pelo contrário,
Marx investe contra a ordem do Capital, exatamente por que esta é incom-
patível com a verdadeira liberdade, nascida e possibilitada na confluência
de uma sociabilidade erigida sob o reconhecimento recíproco das individu-
alidades livres da coercibilidade presentes nas estruturas normativas deriva-
das do metabolismo da mercadoria.
Foi com a assunção do capitalismo em sua figuração jurídica de Estado Li-
beral que se articulou a ideologia de uma história de circuitos fechados, ten-
dente a um final inexorável. A melhor consecução de tal construção ideológica
vislumbra-se no positivismo sociológico de Augusto Comte, em que o autor
francês intenta submeter a história dos homens aos desígnios de uma causalida-
de natural infensa às contingências, às mudanças.
A ordem liberal burguesa, após os faustosos festins e rega-bofes de sua revo-
lução vitoriosa, empanzinada de poder e privilégios, “in continenti” proclama-
-se infensa às vagas da história pretérita, agora abolida pela eternização norma-
tiva das condições institucionais postas pelo direito. “Se houve história, não há
mais!”3, essa consigna combinada como o preceito da submissão do existente
ao “Tribunal da História” de Immanuel Kant, condensam os fundamentos do
Iluminismo, de sua irresignação contra e toda e qualquer ordem factual das
coisas em desacordo com os ideais da transparência e da ética republicanas. Pa-
lavras de ordem esvaziadas de sentido perante as pretensões de poder das clas-
ses dominantes, estas sentindo-se crescentemente fustigadas pela emergência
proletária na Europa. A “razão emancipatória” dá lugar a “razão instrumental”,
segundo a terminologia versada por Adorno, ao flagrar as tendências destruti-
vas do capitalismo em nossos tempos.
Enfim, ao contrário do propalado, não é Marx que defende uma ideia de
historicidade fechada, retilínea, mas sim os pensadores da ordem dominante,

3 “Os economistas procedem de um modo curioso . Para eles, há apenas dois tipos de instituições, as
artificiais e as naturais. As instituições do feudalismo seriam artificiais, ao passo que as da burguesia
seriam naturais. Nisso, eles são iguais aos teólogos , que também distinguem entre dois tipos de
religiões. Toda religião que não a deles é uma invenção dos homens, ao passo que sua própria religião
é uma revelação de Deus. Desse modo, houve uma história, mas agora não há mais.” Marx, Karl.
Miséria da Filosofia. p.113.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
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do capitalismo vigente, que diante da perpetuidade dialética do movimento


crítico ao real, busca refreá-lo. No âmbito do direito, verificamos tal proce-
dimento de interdição à história, noutra variante do positivismo, este já de
matriz lógico-normativa, o positivismo jurídico de Hans Kelsen.
Hans Kelsen eminente teórico, metodólogo do direito do século XX, com
fulcro em seus estudos feitos no “Círculo de Viena” , particularmente inspirado
nas fusões entre os horizontes filosóficos do neokantismo, da física e da mate-
mática de Carnap e Wittigenstein, pretendeu imunizar o direito e sua produção
das influências da realidade histórica e social. Segundo sua teoria do direito, a
interpretação jurídica deveria ater-se a moldura normativa, mais precisamente
ao raciocínio formalista, eminentemente lógico-formal, de aplicação\subsunção
das normas específicas às normas mais gerais em consonância com a hierarquia
pré-constituída da pirâmide normativa ideada por Kelsen. Aos fatos, a dimen-
são decisória, conflitiva da política, dos interesses, é obnubilada pela ênfase
num cientificismo dogmático do direito. Mas antes de tudo, tal edificação dou-
trinária faz-se com base na negação peremptória da história, em seu fechamen-
to acrítico. Tendência do desenvolvimento do capitalismo em sua fase contem-
porânea de desenvolvimento que é bem flagrado por Pachukanis4:

Finalmente, o formalismo extremo da Escola Normativa ( Kelsen)


indubitavelmente expressa a tendência geral decadente do pensamento
científico burguês recente, que tende a se esgotar em estéreis artifícios
metodológicos e lógico-formais, flertando com a completa ruptura com
a realidade de fato.

Ruptura mencionada que só se agrava na fase atual de financeirização apro-


fundada do capitalismo imperialista, justificadas pela ação de seus intelectuais
no interior do direito, dispostos a destruição, inclusive, da história de tutela de
direitos e garantias institucionais no âmbito do livre-cambismo, em nome da ab-
solutização da ordem, da segurança e do combate ao terror. Mais do que nunca, a
história ingressa em uma “presentificação” que obstrui, ou busca fazê-lo, qualquer
alternativa civilizatória ao capitalismo. O direito como “técnica de compartimen-
tação do poder”, de “positivação da liberdade”, de acordo com a boa consciência
liberal dos primórdios do capitalismo, decai, para condição de instrumento do

4 Pachukanis, Eugeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos 1921 -1929. São Paulo:
Sundaermann, p.94, 2017.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

poder nu. Da observância pura e simples aos comandos aos aparatos privados
e estatais, agora posta-se á serviço do mercado. Dinâmica de poder absorvida,
por sua vez, pelo azeitamento de uma temporalidade instantânea, fundada na
circulação alucinante do dinheiro e da mercadoria em consonância com a mun-
dialização do Capital. A temporalidade na ordem das mercadorias, cada vez mais
afasta-se das pessoas, da mundividência de seus carecimentos, genuflexando-se
aos requerimentos do Capital, do espaço-tempo de sua produção e reprodução
ampliadas, o que, por sua vez, tem dado azo a transição para a constituição de
Estados de Exceção.
Aliás, o positivismo lógico-jurídico mais do que isolar o direito e sua produ-
ção da história, também assim procede em relação ao Estado como marco insti-
tucional de preservação da lógica do sistema. Em relação a este, estabelece uma
“recriação” de seu poder, extirpando tudo que não for normativo, notadamente
aquilo que for histórico, entendendo-se por tal, as possibilidades alternativas
do “tempo instituinte”.Procede-se desta forma, a dogmatização, ao enclausura-
mento do Estado e do Direito em si mesmos, interditando-lhe a crítica sobre a
natureza de suas instituições, aos interesses que o conformam.
Carré de Malberg, em passagem sintética condensa tal orientação positi-
vista com acuidade ao citar Jellinek, outro expoente do positivismo norma-
tivista antihistórico:

La consecuencia, muy importante, que se deduce de estas observaciones,


es que el Estado no debe ser considerado como uma persona real, sino
sólo como una persona jurídica, o mejor dicho, que el Estado aparece
como persona únicamente desde el momento em que se mira bajo su
aspecto jurídico. Em outros términos, que el concepto de personalidad
estatal tine un fundamento y un alcance puramente jurídicos ( Jellinek,
op.cit. ed. francesa, vol.1, pp.267, 271 ss., 295; Michoud, op,cit., vol.I,
pp.7 y 98) …. “Es pues, un concepto exclusivamente jurídico, em el
sentido de que tiene ya su fonte em el Derecho.5

A demonstração do “expurgo” da história, ou de fechamento à dialética, é


uma sobeja comprovação de como pensamento burguês no período hodierno
abre mão de uma dimensão legitimatória, hegemônica, existencial da realidade.
Tempo histórico que é mediado, “administrado” pelo direito e seus mecanismos

5 Malberg, Carré. Teoria General del Estado. México: Fundo de Cultura Economica, p. 43, 2001.

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legais de protraimento e agilização dos ritmos sociais. Como pode-se constatar


em momentos diversos, desde a informalidade, as mediações ágeis dos inte-
resses, cinzelados pelo direito privado, passando pela personificação “imortal”
do patrimônio, até chegar ao constitucionalismo com suas variantes políticas,
porosas ás pressões sociais, principalmente “dos de cima”. A concentração e
distencionamento do tempo dentro da ordem capitalista dá-se em conformi-
dade com as exigências estruturais, funcionais dessa mesma ordem. O que já
não acontece com as “decisões judiciais” contra os pobres, trabalhadores, “seres
periféricos”. Nesses casos, a rapidez do tempo do processo é sabidamente maior,
haja vista a “periculosidade” dessa gente, e a proverbial seletividade dos juízes.
Em raras ocasiões, a não ser quando se conta com correlação favorável às
forças trabalhadores, o direito labora em direção ao futuro, mormente em países
dependentes como o Brasil que detém classes dominantes hiper-reacionárias,
resilientes a toda e qualquer generalização de direitos aos pobres. Quando mui-
to, como refere-se Marcelo Neves, inscreve-se o direito como cristalização de
demandas progressivas como elemento nominal, a ser devidamente procrasti-
nado em sua efetivação, cuidando de aplicar medidas de segurança contra os
potenciais “subversivos”.
Os acontecimentos no Brasil, agravados em 2016 com o golpe de Estado defla-
grado contra a presidenta Dilma Rousseff, colocam tal desiderato com dramatici-
dade. Basta contrastar a jurisprudência dos Tribunais Constitucionais Europeus,
com o papel desempenhado pelo STF no delineamento do Estado de Exceção en-
tre nós. A distância entre “esses dois mundos” é nítida, insofismável, vexaminosa.
François Ost em seu “Tempo do Direito” nos indica as diversas funções do
direito na “gestão” do tempo, onde memória, esquecimento e poder são desen-
volvidos em suas respectivas temporalidades. Sem esquecer, porém, que é na
estabilização de um tempo pretérito, sem descontinuidade com o presente e o
futuro, que se trabalha a importância da segurança jurídica como objeto central
da legitimação do direito nas sociedades burguesas. As rupturas, a não ser as au-
torizadas pelo poder constituído da ordem, são criminalizadas, compreendidas
como tradução, em tom pejorativo, de populismos.
A escrita de Marx de sua obra magna “ O Capital” é precedida de um
ajuste de contas com o idealismo e o positivismo factual impregnados na
ciência e na filosofia de então. Já na “Ideologia Alemã” e nos “Grundrisse”,
Marx havia se oposto a uma histografia meramente unidimensional, que

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

cala as vozes dissonantes e aplaina os processos de sua elaboração, clarifi-


cando sua visão inovadora sobre a história.
A teoria da história para Marx radica-se da reflexão sobre o fino enredo
entre objetividade fatual, força das relações de produção, das formas de apro-
priação das riquezas, e a consciência como fator de alteração dos marcos ins-
titucionais, da transição para um outro horizonte civilizatório. A história que
em Marx é tematizada em variados níveis, não prendendo-se aos pressupostos
eurocêntricos clássicos, ainda que marcado por ela. Contudo, Marx superar tal
particularismo, enveredando para o estudo das temporalidades e espacialidades
regionais da macrorealidade dos sistemas de produção.
A ideia de Revolução Permanente, mais tarde continuada por Trotsky,
surge do reconhecimento das distintas temporalidades submergidas na tem-
poralidade geral, atribuidamente única da normatividade capitalista. Tempo-
ralidades variegadas que estruturam-se diante da sobreposição de modos de
produção diferente, combinando modernidade e atraso, nos países capitalistas
de desenvolvimento periférico.
Uma histografia feita no presente com o único propósito de transformar o
existente no desenvolvimento óbvio, linear e absoluto das instituições burgue-
sas. Mesmo porque foi com tal procedimento metodológico, “a priori” valora-
tivos “normalizadores” da vida social, que se delimitou a “narrativa” sobre o
Estado-Nação nos albores da modernidade. Para tanto, fez-se imprescindível,
apagar os vestígios das pegadas de outras civilizações, povos, culturas, línguas,
etnias, direitos, estabelecendo o mito da unidade nacional abstrata e imperecí-
vel dos homens. Pois é com lastro na ideologia que se “naturaliza” os vínculos de
poder, não somente com a força, a coerção dos exércitos e polícias.
Marx no “contrapelo” dessa história oficial, presa aos circuitos apologéticos
da ordem posta, instaura um pluralismo de caminhos, de potencialidades
criativas, de inauditas tensões sobre a ideia de “partido único” da história. A
leitura do “O Capital” revela-nos uma plurivocidade, interpelando o tempo
com base na proeminência da consciência. Claro que Marx sabia que a história
não pode ser redirecionada em seu “funcionamento” pelo voluntarismo dos
homens, não obstante a relevância da subjetividade na ação transformadora, no
impulsionamento da “práxis”. Entretanto, Marx postulava que a normalidade
burguesa do tempo, do espaço ancorada nas relações de produção, de poder,
entram periodicamente em crises, podendo suscitar brechas para ação
revolucionária do mundo pelos trabalhadores. Por isso, Marx com “O Capital”

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

livrou-se definitivamente de uma concepção homogeneizante do tempo prescrito


por uma tradição filosófica, como se percebe em Hegel mais notadamente,
buscando achegar-se a imanência da política, das lutas sociais.
Saliente-se que Marx ao deter-se analiticamente sobre os processos de for-
mação do capital, dos engenhos que este foi capaz de dar nascimento, nunca
pretendeu agir como um futurólogo, presciente das leis férreas da história. Se
há em Marx, como bem apanhou Gramsci, “incrustações positivistas” em sua
ampla obra, mesmo porque ele era um homem de seu tempo, num tempo de
euforia industrializante, de saberes florescentes, de técnicas poderosas de do-
minação da natureza, também o é, que ele se opôs, de maneira cada vez mais
pronunciada, a um casualismo mecânico e finalista, na medida em que cria na
liberdade do homem. Sua crítica ao capitalismo, identificando-o como momen-
to pré-histórico do homem, deve-se a ênfase positiva que atribuía história como
realidade a ser transfigurada pela livre expressão da personalidade do indivíduo.
Marx escreveu seus textos em uma epocalidade de crise da dominação liberal,
ainda que distante dos ares extremos dos cataclismos vividos no final dos anos
20 como ”crack” da Bolsa de Nova Iorque. Mas foi o suficiente, para concluir
que a noção de uma história mais permeável, pluralista, demandava ser contida,
controlada, sob pena de que as massas populares tornaram-se insurretas diante
das promessas vãs feitas pela burguesia às maiorias. Cedo, o povo, compreendeu
que suas demandas mais singelas, despertavam o furor das classes dominantes
e de seu Estado. A teoria da história precisa ser constringida, alinhada, coe-
sionada, consensualizada pela ordem histórico-concreta em vigor. O instituí-
do concretamente modularia, a partir daí, a ótica da “universalidade” mítica
imposta, atribuindo-se aos agentes da ordem jurídico e política, um papel de
“enquadramento dos eventuais desordeiros”.
Marx ao longo do “O Capital” examina teoricamente os processos de nas-
cimento, formação e “ideologização” da ordem capitalista, sem olvidar as de-
núncias por meio da menção aos relatos de inspetores de fábrica ingleses dos
regimes desumanos de acumulação primitiva que ceifavam vidas de crianças,
mulheres e velhos. Perscruta ainda sobre a lei de equivalência das merca-
dorias, advertindo sobre a distância entre o plano das aparências,da remu-
neração “justa” da força de trabalho, e os processos ocultos de exploração
daquele como eixo da dinâmica produtiva, incrementadora de sobrevalor da
produção. Mas, principalmente, na desmistificação da falsa separação entre as
temporalidades dos circuitos econômicos da vida social, ao desvelar os nexos

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

inextrincáveis entre as esferas da produção, distribuição e circulação de bens.


Obviamente que Marx não era um determinista, compreendida o papel da
política na delimitação da ação do Capital e da dinâmica de sua temporalida-
de hermética. Por isso, Marx reconhecia que em dados momentos, a força da
luta de classes poderia interferir amainando os ritos e processo brutalizantes
do capitalismo. Processos estes que ultrapassam a pretensa autonomia do fun-
cionamento dos parlamentos como instâncias de representação da “vontade
geral”, mas dimanavam, preferencialmente, da auto-organização operária e
popular. Pois, segundo suas palavras:

Vimos que essas determinações minuciosas, que regulam com uma


uniformidade militar os horários, os limites, as pausas do trabalho de
acordo com o sino do relógio, não foram de modo algum produto das
lucubrações parlamentares. Elas se desenvolveram paulatinamente
a partir das circunstâncias, como leis naturais do modo de produção
moderno. Sua formulação, seu reconhecimento oficial e sua proclamação
estatal foram o resultado de longas lutas de classes.6

Afinal a temporalidade indivisa do capitalismo deve-se a centralidade do


capital, de seu metabolismo, paradoxalmente “necrófilo”, posto que seu espec-
tro define-se pelas necessidades internas de sua constituição negando a fruição
da vida pelas maiorias trabalhadoras. No máximo, aceitam que gozem de uma
subvida, premida pelo medo hobbesiano. Como pode-se depreender da densifi-
cação de tais tendências desumanizadoras em sua atual fase neoliberal, em que
o tempo é praticamente suprimido dos trabalhadores, ao ponto de sua vida pri-
vada ver-se subordinada às demandas contínuas da empresa, até quando estão
em seus lares. O tempo do lazer, do descanso, da “preguiça”, deve ceder diante
do imperativo do mercado. Para tanto, avançam sobre as aposentadorias, incre-
mentam exigências brutais de produtivismo, estabelecem moralismos punitivos
para interiorizar e racionalizar a culpa no trabalhador, de maneira a torná-lo
mais subordinado ao Capital.
Ou melhor, o tempo histórico do capitalismo, oposto ao de Marx, é da
absoluta presentificação, da instantaneidade, da descartabilidade dos objetos,
dos corpos, das pessoas em nome da abstração do tempo mercantil, das finanças,
do dinheiro. A própria transformação da cultura no lúdico, presumidamente

6 Marx. Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, pp354-355, 2001.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

vivido no “descanso” após o trabalho, tem como consequência a destruição


da arte como promessa de futuro, visando assim interditar a ampliação dos
sentidos, o sentido antecipatória da utopia como possibilidade de uma nova
realidade. A tendência uniformizadora, determinista do capitalismo, no afã de
colonizar as demais normatividades sociais pela da economia, pelo dinheiro,
explica o templo bloqueado dos adeptos da racionalidade liberal como
tendência inelutável da “modernidade”. Modernidade encerrada na razão
tecnológica dos aparatos que definem os critérios de eficiência, de produção,
inclusive de lazer. A técnica ora autonomizada, desprende-se dos pressupostos
da liberdade, da dúvida, da polivalência dos processos democráticos e
humanistas. Segundo Marcuse:

Tudo contribui para transformar os instintos, os desejos e pensamentos


humanos em canais que alimentam o aparato. As organizações
econômicas e sociais dominantes “não mantém o poder através da
força… Fazem-no identificando-se com as crenças e lealdades do povo”,
e o povo foi treinado a identificar suas crenças e lealdades com as
organizações. As relações entre os homens são cada vez mais mediadas
pelo processo da máquina.7

O tempo utópico do “ainda não existente”, dito por Ernest Bloch, atualiza as
potencialidades encerradas de futuro presentes na liberação do trabalho. A utopia
e a intensidade interior do vivido, rompendo-se com a instrumentalidade aliena-
da do tempo do Capital, projeta-se em variados espaços. Como referiu-se Bloch8:

O espírito da utopia está presente na predicação definitiva de todo grande


enunciado, na catedral de Estrasburgo e na Divina Comédia, na música
expectante de Beethoven e nas latências da Missa em si menor . Ele está no
desespero que ainda contém o unum necessarium como algo perdido, e no
hino á alegria. Tanto o leyrie quanto o credo nascem de modo bem diferente
no conceito de utopia como uma esperança compreendida, mesmo que
não tenham mais o reflexo da mera ideologia situada numa certa época,
justamente nesse caso. (….) A função utópica arranca os assuntos da
cultura humana do leito pútrido da mera contemplação e desse modo

7 Marcuse, Hebert. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Unesp, p.81, 1998.
8 Bloch, Ernest. O Princípio Esperança, p. 157. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

descortina sobre cumes de fato galgados o panorama ideologicamente


desimpedido do conteúdo da esperança humana.

Marx com “O Capital” não intenciona replicar o modelo de cientificidade


factual, legalista, mecânico de um tempo/espaço limitados pelas condicio-
nalidades do horizonte posto. Busca sim, abrir-se a um tempo profético, não
no plano religioso, mas de ultrapassagem dos limites dados pelos párocos do
puritanismo mercantil, de sua teologia ignóbil que coloca a mercadoria na
condição de imagem a ser adorada. A profecia “secular” de um projeto para
além da “razoabilidade” instituída do Estado, da administração dos homens
e coisas,instaurativo de um kairós ativador de um homem autêntico, expres-
sivo, autônomo em quea individualidade seja a condição de uma sociabili-
dade fundada no reconhecimento recíproco entre todos. Não é à toa que os
liberais, encerrados no tempo contábil da ordem, veem Marx como arauto
do caos, da desordem, trazidos pelos eventos da revolução que seccionam
o tempo contínuo, interpelam o dado, questionam o direito como apanágio
da segurança em desacordo com a liberdade a igualdade, assim como da
afirmação da dignidade humana.
O projeto comunista em Marx enraíza-se não na abstração da mercado-
ria, do dinheiro, da instrumentalidade pragmática, mas sim na elevação do
homem à humanidade perdida, a construção deum novo Renascimento, de
uma retotalização dos sentidos, da existência em comunidade de indivíduos
iguais nas suas diferenças.

3. Marx e o contratempo, ou a assunção das


temporalidades dissonantes em contraposição
ao capitalismo
Daniel Bensaid analisa em seu “Marx intempestivo” o que ele denomina de
“contratempo”, categoria que traduziria um tempo contraposto a temporalidade
do Capital em suas distintas esferas. Inspirado na perspectiva de Marx, mas
também de outros pensadores contemporâneos nele inspirados como Benja-
mim. Bensaid propõe uma reconstrução do tempo vivido, daquilo que o sistema
denomina de “perda de tempo”, de ausência de produtividade.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A dinâmica do Capital, tanto no âmbito da produção, da circulação e do


consumo delimitam o sentido da vida útil, justificada segundo os termos do
modo de produção de mercadorias. Vivemos para o Capital, único sujeito váli-
do, enquanto as demais individualidades, especialmente as dissonantes ligadas
ao “Mundo do Trabalho”, das identidades culturais, políticas em recusa à or-
dem, são negadas como legítimas. O tempo no capitalismo está umbilicalmente
ligado ao espaço da mercadoria, a contabilização dos produtos feitos, daí por
que “tempo é dinheiro”.
O dinheiro, aliás, afigura-se como a mercadoria por excelência, a sucedânea
de todas as mercadorias individualizadas, a expressão geral, abstrata, podendo
ser até incorpórea de todas as demais configurações concretas, materiais das
coisas. No mundo da pseudo-concreticidade do Capital, o dinheiro é a causa
motor, eficiente das riquezas existentes, cabendo ao trabalhador um lugar se-
cundário, meramente passivo.
A lógica da funcionalidade do trabalho, empregado nas fábricas, molda essa
subordinação, ao acoplar o homem ao ritmo externo da máquina, aos ditames
gerenciais do comando administrativo da unidade fabril. Daí o caráter de es-
tranhamento do operário diante do seu produto, visto como algo gerado das
determinações do Capital. O próprio tempo apresenta-se como exterior, impes-
soal, regido pelas retortas do utilitarismo do processo produtivo. O paradoxal
é que o liberalismo como doutrina seminal do mundo burguês, síntese de suas
representações mais centrais, ontológicas, prega o valor autonomia como aquele
definitório da personalidade do indivíduo, apesar de sua interdição aos traba-
lhadores. Pregação esta que se vê confirmada pela noção prática fixada pelo
mercado da troca de equivalente dos produtos do trabalho individual mediado
pelo dinheiro, como bem referira-se Marx em “O Capital” No plano das apa-
rências, a premissa da autonomia de vontade legitima a crença na liberdade do
homem na esfera das “escolhas” com quem e o que troca. A própria venda da
força de trabalho seria resultante de um ato deliberado, incoercível, impessoal,
distante dos nexos de dominação direta da época feudal.
Afinal como falar de autonomia individual junto a uma unidade econômica
que dita processos, escolhas e modos de ação avessas à vontade da pessoa? Os
fundamentos constitutivos do racionalismo iluminista apregoaram a não-ins-
trumentalidade humana, numa afirmação da soberania ética do humanismo,
mas as condições existenciais da produção e reprodução do Capital são lhe
completamente antinômicos. O que prevalecerá? Claro, que os “imperativos

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

categóricos” do dinheiro, da mercadoria, da soberania abstrata da nação. Os


valores eminentemente mascarados em sua abstração normativa não têm cor-
respondência – no mundo burguês – com a facticidade.
Gramsci ao tratar em seu livro “Americanismo e Fordismo” dos processos
de alienação cultural presente no capitalismo, mencionara como a estética mu-
sical hegemônica, por exemplo, preparava o trabalhador para a subordinação
aos ritmos inclementes da produção. Além disso, examinou detidamente os
influxos do domínio do Capital sobre a autonomia individual do trabalhador,
constrangendo-a sob as necessidades internas, autotélicas, da produção bur-
guesa. A racionalização dos comportamento, o uso do tempo, o controle da
vida, da família, inclusive da vida sexual dos operários, vê-se magnificado pelo
estabelecimento do capitalismo mais avançados nos EUA, precipuamente com
o desenvolvimento do método fordista de produção. Como refere-se Gramsci
em trecho expressivo:

Por outro lado, é necessário encaminhar esta regulamentação do


fato sexual e a criação de uma nova ética. Deve-se observar como os
industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas relações sexuais
de seus empregados e, em geral, pela organização de suas famílias; a
aparência de “puritanismo” assumidapor este interesse (como no caso
do proibicionismo) não deve levar a avaliações erradas; a verdade
é que não se pode desenvolver o novo tipo de homem exigido pela
racionalização da produção e do trabalho enquanto o instinto sexual não
for adequadamente regulamentado, não for também ele racionalizado9.

Tais aportes de Gramsci atualizam as análises de Marx no conjunto de sua


obra, mais enfática e concretamente em “O Capital” ao apontar o funcionamen-
to cego do movimento do Capital em sua figuração monetária, incontrolada até
pelos capitalistas enquanto indivíduos. Pois, segundo Marx: “A circulação do
dinheiro como capital é, ao contrário, um fim em si mesmo, pois a valorização
do valor existe apenas no interior desse movimento sempre renovado. O movi-
mento do capital é, por isso, desmedido”10

9 Gramsci, Antônio. Cadernos do Cárcere: Americanismo e Fordismo. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, p.252, 2001.
10 Marx, Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, p.228, 2013.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Por isso mesmo, precisamos da política, da afirmação de sua veia instituinte


em contraponto ao mecanicismo cego do funcionamento das relações de pro-
dução capitalistas, para socialmente revolucionarmos o sentido da apropriação
do tempo e do espaço, transfundindo-os aos moldes de uma sociedade humani-
zada. O horizonte comunista, de realização da autonomia individual e social do
homem, é alternativa para o fim da tirania da propriedade privada dos meios de
produção, e a consequente redenção de um novo tempo, um tempo humaniza-
do, suscetível de ser regulado pela construção da personalidade, da cultura, de
uma política, e até de um direito, livres da tutela do dinheiro, do Capital.
A contrapelo da noção religiosa, posteriormente secularizada, de progresso,
devemos orientar-nos pela ação consciente, ético-política, sem quedar-se numa
teleologia necessitarista, como, infelizmente fizeram os marxistas da II Segunda
Internacional socialdemocrática, ao adotar o evolucionismo reformista como
tática/estratégia da esquerda. Postura ideológica que significou uma adaptação
á ordem burguesa, a sua temporalidade geral e específica, submetendo os traba-
lhos às pilhagens do Capital. A luta transformadora, revolucionária articula-se
na proclamação de um outro tempo “profético”, insurrecto, em que a unidade
prévia, burocrática, dos aparatos do estado e do mercado burguês ceda lugar
para capilaridade de uma sociedade civil emancipada.
Um novo tempo que assimile dissonâncias, valores, línguas, expressividades
estéticas, étnicas diversas, multitudinárias, estiolando a unidade abstrato co-
ercitivo do sistema complementar formado pelo Mercado e pelo Estado. Claro
que com mediações, sabendo-se do longo ciclo de transformações, de desen-
volvimentos autônomos que precisam advir para que possamos ultrapassar as
formas de sociabilidade heteronômicas ainda existentes. O caminho adotado
por alguns povos, como os andinos com sua Revolução Bolivariana, fornece-nos
uma senda para a crítica indispensável as práticas tecnológicas de exercício do
poder herdadas da modernidade burguesa.
A hierarquização, a abstração da mercadoria, a genuflexão ao dinheiro, o feti-
chismo objetal, são as características que saltam os olhos das formações capitalis-
tas, cada vez menos abertas a democracia e ao Estado de direito, e por isso mesmo
divorciadas do espaço e tempo concreto forjado pelas comunidades enraizadas. O
tempo dos afetos, da política autêntica dos fins, da cultura, não deve, nem pode
ser o tempo homogêneo do mercado, do Capital personificado no Deus Dinheiro.
Homogeneidade que se vê endossada pela narrativa mítica burguesa da nação,
corpo indiviso, avesso a dissenção, ao pluralismo, a democracia.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Somente com a reescrita da gramática do tempo, sua abertura para os dissen-


sos sociais, poderemos pensar num tempo consentâneo com a liberdade de Marx.

Conclusão
O tempo é matéria controversa, suscetível a interpretações múltiplas se
observarmos a história. Há o tempo estáticos dos conservadores, dos morige-
rados costumes de antanho nas sociedades pré-modernas; há o tempo meticu-
loso dos afetos, da vida privada com seus hábitos de província nos séculos an-
teriores; há o tempo veloz, marcado pela instantaneidade do ciberespaço, dos
circuitos comunicacionais, dos deslocamentos vertiginosos da mercadoria em
tempos recentes. Existe ainda outros tempos, quase todos interditados pela
voragem da dinâmica do capitalismo financeiro, homogeneizador, intoleran-
te, autocrático, como o tempo dos profetas, da secularização revolucionária,
dos afetos expectante por um futuro emancipatório. Tempos estes, abertos,
porosos as subjetividades, as variâncias dos espaços, das culturas,das pulsões
jurígenas por novos direitos.
A grosso modo, numa síntese generalizante, diria que vivemos sob a égide
do tempo do Capital, da mercadoria figurado em Deus Dinheiro. A unifi-
cação do mundo fez-se, sob certo sentido, a partir desse império dos deuses
pagãos da indústria, esmagando distinções, identidades multitudinárias, con-
travalores de resistência a grana.
Marx foi um pensador audaz, corajoso, compromissado com o humani9smo
radical, com a cabeça mergulhada nos livros, na apreensão dos sistemas filosó-
ficos, teorias políticas, literatura e a larga acepção da cultura iluminista, mas
também tinha os pés cravados no chão, na imanência das lutas, dos processos
de crítica real, concreta, ao capitalismo e sua dinâmica criativa e destrutiva.
Nadou contra a corrente, insurgiu-se contra o pensamento único, determinista
da ciência, do linearismo histórico, não obstante ser constantemente acusado
do contrário. Por isso, contestou frontalmente a noção homogênea de tempo
forcejada pelo capitalismo. Buscou dá voz aos silenciados, aos operários, às na-
ções subjugadas pelo colonialismo, às dissonâncias ocultadas pelo positivismo,
ou mesmo pelos idealismos morais mistificatórios da realidade em sua época.
Daí a importância de sua obra, pelas potencialidades ainda não totalmente
exploradas em relação as dimensões emancipatórias de um projeto alternativo,

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

contraposto radicalmente, ao capitalismo e seu fetichismo aniquilador da


economia, da política, da cultura, de todas as instâncias da vida humana. Mais
do que nunca, as conquistas civilizatórias do homem encontram-se sob ameaça,
algumas delas obtidas no interior do próprio capitalismo, que hoje como
Saturno procurar devorar seus filhos. Nenhuma novidade, as classes antes
revolucionárias, presas ao particularismo de seus interesses, logo enfatuam-
se no poder, e renunciam aos seus valores. A dialética da história prega suas
peças, desvela os limites da dominação de classe, sua contraditoriedade com a
universalidade da liberdade, da igualdade.
Marx quando redigiu “ O Capital” buscou perscrutar os desvãos dos meca-
nismos sigilosos do real, da ideologia falseadora do mundo, voltada para legiti-
mação dos privilégios, da exploração, das hierarquias. Sua ciência desmistificou
as aparências solenes da ordem de produção de mercadoria, das retóricas de
seus graves juristas, da brutalidade das armas que a guardavam. Colocou a ci-
ência colada a ação, sem olvidar a sofisticarão dos meios intelectuais, da vetusta
tradução, da apropriação dos antigos saberes. Marx nunca se rendeu ao tempo
imediatista, apologético do Capital, nem as suas divagações mentirosas, presu-
midamente racionalizadoras do desenvolvimento das coisas.
Redescobrir Marx e sua teoria da história, abrindo-se as várias vozes dos
oprimidos, das particularidades de um mundo diferenciado em seus processos,
é uma necessidade inadiável dos pensadores e dos lutadores sociais. Marx é
atual como bem o sabemos, daí a pressa de alguns adeptos da ordem, ao bus-
caram enterrá-lo, fazerem-lhe as exéquias às pressas. Em tempos de violência
inaudita, de golpismo cínico, de tantos que ensarilharam as armas da crítica,
tenhamos a coragem de dissentir, de funcionar como as sementes intelectu-
ais de um mundo que forceja por nascer, um mundo autenticamente livre e
igualitário, de tempos lurais na variada expressão de nossas subjetividades ora
constrangidas pelo Capital.

Referências bibliográficas

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Brasileira, 507 p, 1999.

40
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Escolhidos 1921 -1929. São Paulo: Sundaermann, 384 p., 2017.

41
Socialismo para os ricos, liberalismo
para os pobres”: o Golpe de 2016
e a mercantilização dos direitos sociais

Rene José Keller1

Introdução
Uma das discussões políticas mais acaloradas ao longo dos anos de 2015-2016
foi se a queda da ex-presidenta Dilma Rousseff foi resultado de um processo le-
gítimo de impeachment ou se foi um Golpe de Estado2. No contexto regional, já
se tinha observado no Paraguai discussões semelhantes após as deposições do
ex-presidente Fernando Lugo, em 2012, bem como do ex-presidente de Hondu-
ras, Manuel Zelaya, em 2009. Os casos até então isolados não permitiram uma
reflexão mais ampliada de como tem ocorrido o término de alguns governos
de “esquerda”3 na América Latina, sendo que o ocorrido no Brasil pode ser o
indício da formação de um padrão.
Ao contrário dos Golpes de Estado ocorridos na América Latina no século
XX, em que a remoção de governos de “esquerda” era procedida à força, com

1 Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro


(UERJ). Doutorando em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Bacharel e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Advogado trabalhista.
2 O processo de impeachment foi iniciado em 2 de dezembro de 2015, com o recebimento da denúncia
pelo então presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, encerrando-se em 31 de agosto de 2016
com o julgamento final pelo Senado Federal.
3 “Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos 150 anos,
resistiram à expansão do capitalismo e aos tipos de relações econômicas, sociais, políticas e culturais
que ele gera e que, assim, procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de
uma ordem alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das
populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da
liberdade” (BOAVENTURA, 2018, p. 8).

43
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

utilização do aparato militar e notória influência norte-americana diante da


suposta ameaça comunista, atualmente age-se seguindo os critérios formais de
legalidade4. Quando se utiliza das próprias vias procedimentais do Estado, que
seriam um resguardo do mecanismo democrático contra abuso de poder para
a destituição de chefes do executivo, a palavra golpe passa a assumir uma outra
conotação, radicalmente distinta.
É sem dúvida alguma um trabalho custoso destituir um chefe do executivo
resguardando todos os ritos e tramites formais, todavia, há um preço político
menos alto, pois projeta ao menos a dúvida acerca da legalidade dos atos. A
defesa da queda de Dilma Rousseff como plenamente legítima toca diretamente
ao fato de o impeachment ser um procedimento constitucionalmente previsto,
enquanto os que defendem como sendo um Golpe apontam que não passou de
uma figuração, ante a inexistência de crime de responsabilidade.
Se em outros tempos era necessário inflar ideologicamente a população
como se houvesse uma ameaça comunista real, como foi o caso da queda do
ex-presidente João Goulart em 1964, agora basta encontrar alguma situação
passível de se enquadrar como crime dentro do ordenamento jurídico e levar
até as últimas consequências essa defesa. O caráter do Golpe se revela não
na sua forma, ou na atenção aos ritos legalmente estabelecidos, podendo so-
mente ser localizado nas reais intenções que mobilizaram tanto a população
brasileira, como o congresso e até mesmo entidades da sociedade civil, como
a Ordem dos Advogados do Brasil.
Quem busca defender a existência de um Golpe não encontrará caminho
aberto na forma, na observância dos ritos, senão no contexto conjuntural que o
antecedeu. Há ao menos quatro elementos centrais, extrajurídicos, para a ocor-
rência da queda da ex-presidenta Dilma: a) projeção dos escândalos de corrup-
ção; b) crise econômica; c) crise política (perda da base aliada no congresso); d)
ampla manifestação nas ruas. Sem a confluência desses quatro elementos seria
impossível gritar a palavra Golpe, ao passo que nenhum deles toca o funda-
mento jurídico da sua deposição. Portanto, o presente artigo tem como objetivo

4 No contexto latino-americano, a última tentativa de seguir esse molde “tradicional” de golpe foi
experimentada pelo então presidente Hugo Chávez, da Venezuela, em 2002, quando foi detido
por militares por 47 horas, sendo dissolvida a Assembleia Nacional e o Supremo Tribunal. Após
intensa pressão popular, Chávez retornou ao poder, sendo possível que esse fracasso explique a
mudança de estratégia.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

geral examinar um dos fatores responsáveis pela queda de Dilma Rousseff, que
é o aspecto econômico, i.e., o fundamento material do Golpe.
A primeira parte é dedicada à análise do papel ideológico e concreto
cumprido pela crise econômica no esmorecimento do governo de Dilma,
examinando a tentativa de imposição da racionalidade neoliberal. A se-
gunda, por sua vez, examina como o retorno do neoliberalismo constitui
uma ameaça aos direitos sociais, tendo em vista a sua lógica de oferecimen-
to. Para tanto, propõe-se o estabelecimento de um critério objetivo para o
exame dos projetos político-econômicos brasileiros, a partir da adoção da
teoria do valor, de Karl Marx. O método guiador do estudo é o dialético,
na fundamentação materialista.

2. O real e o semblante da crise econômica no contexto


de Golpe institucional de 2016: a incursão totalitária da
racionalidade neoliberal
Como preleciona Alain Badiou (2017, p. 13-15), o vocábulo “real” atualmen-
te é utilizado de forma intimidadora, como princípio de submissão necessária, já
que não há saída senão aceitá-lo. A economia exerce um papel decisivo na defi-
nição deste real, sendo que em época de crise, tal qual experimentada ao longo
dos anos de 2015-2016, manifesta-se de forma mais acentuada o seu discurso,
que impõe os mandamentos a serem seguidos como fatalidades. Não importa
que os desastres ocorridos dentro da sua própria esfera não tenham sido previs-
tos, ou evitados, até mesmo porque a culpa recai sobre os agentes políticos, os
malfadados que não seguiram as orientações adequadamente.
O real advindo da economia subjuga os mais diversos aspectos do cotidiano,
desde o ato mais adorado do capitalismo, o consumo, até as decisões macroeco-
nômicas a serem tomadas por um corpo diretivo institucional. Se a economia
não vai como o esperado, há espaço para a crise, recessão, inflação, desemprego,
baixa no consumo, i.e., elementos de desestabilização política experimentados
pelo governo Dilma. Portanto, é praticamente impossível governar o país sem
atentar para o real originário do econômico, sendo que a figura do “mercado”
ocupa assento privilegiado nesse assunto.
Quem acompanha o noticiário televisivo, ou é ouvinte de rádio, deve ter se
perguntando alguma vez: “quem é o mercado, afinal? ”; a que tanto se refere

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

como uma pessoa em carne e osso, que porta os mais diversos sentimentos
humanos. Por vezes, o mercado está nervoso, agitado, em outras ocasiões está
esperançoso, animado, ao reagir às informações provenientes da ação do gover-
no. Isso recorda um fato curioso, quando Lula era ainda presidente do Brasil,
em 2004, e havia o boato de que o presidente do Banco Central, Henrique Mei-
relles, seria demitido. Distribuindo castanhas às pessoas que acompanhavam a
cerimônia de lançamento do Programa Nacional de Florestas, Lula disse: “Está
nervoso o mercado? Eu não estou, estou calmo”. Segundo consta, a frase fez
com que o mercado esquecesse a boataria (LULA apud ÉPOCA, 2004).
Essa mesma calmaria não foi experienciada por Dilma Rousseff, que sucum-
biu formalmente pela abertura de créditos suplementares (“pedaladas fiscais”),
ainda que a denúncia apresentada por crime de responsabilidade tenha ressal-
tado as tantas crises que estava sujeita, inclusive a econômica. Por isso, é impor-
tante lembrar que ao lado do real existe o semblante, como na tradicional divi-
são entre essência e fenômeno aprendida na filosofia marxista (KOSIK, 2011, p.
18), que nada mais é do que a aparência falsa do real. Ainda que o semblante
do impeachment seja o crime de responsabilidade, o real tem seus pés fincados
na exploração dos dados econômicos negativos do governo Dilma.
No exato dia em que o Senado Federal iria votar a admissibilidade do pro-
cesso de impeachment na casa, em 12 de maio de 2016, que coincidiria com a
assunção interina de Michel Temer à presidência, o jornal “O Globo” lança a
seguinte matéria: “Com saída de Dilma, mercado vê chance de retomada da
confiança econômica” (CARNEIRO, 2016). Aqui, encontramo-nos em um ter-
reno perigoso, em que a democracia sucumbiu ao real da economia, diante da
necessidade de prover o crescimento econômico almejado pelo mercado, que a
ex-presidenta Dilma supostamente não teria condições de atender.
Na obra responsável pela sua expulsão do Partido Comunista Francês, Ro-
ger Garaudy (1970, p. 43) bem ilustrou o culto do crescimento econômico na
“religião dos meios”, em que um economista pode gracejar sobre um cidadão
que quando chegar no céu será interrogado por São Pedro, o qual, para decidir
sobre o encaminhamento ao paraíso, purgatório ou inferno, irá perguntar: o
que você fez para aumentar o PIB? Não é preciso mencionar qual o destino de
Dilma Rousseff quando amargou uma queda de 3,8% em 2015, depois de um
crescimento pequeno de 0,5% em 2014, inicialmente anunciado como 0,1%.
O crescimento converteu-se na antonomásia do progresso, não importando
que o critério econômico de aferição do sucesso tenha se concentrado no

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

aprimoramento de objetos inanimados, como o PIB ou PNB. Passa à margem


dessa obsessão o quanto isso representa para o efetivo aumento da qualidade
de vida, bem-estar, liberdade, como lembra Amartya Sen (2011, p. 259). O
custo a ser pago por não cumprir os anseios do mercado pode ser alto, como
demonstrou a queda da Dilma, mesmo que se trate efetivamente do cresci-
mento e progresso de objetos inanimados.
Um dia depois do afastamento temporário de Dilma, o “blog” de economia
do “Estadão”, assinado pelo economista Alexandre Cabral (2016), trazia a se-
guinte manchete: “Dados Econômicos da Era Dilma: de Chorar!”. Após apre-
sentar alguns dados econômicos, como queda do PIB, aumento do desemprego
e da inflação, sentenciou: “Infelizmente o governo Dilma foi ruim demais. Vá-
rias medidas equivocadas, teimosia demais, orgulho ao extremo. Este para mim
foi o principal motivo da queda: o governo se achava intocável” (CABRAL,
2016). Ora, e fica nesse discurso as “pedaladas fiscais”?
O Golpe sofrido por Dilma escancarou o fato de que a relação entre o Esta-
do e a economia é um terreno fértil para a ação da ideologia liberal, propagada
pela grande mídia. Os avanços econômicos que o Brasil passou no período de
Lula-Dilma, mesmo em comparação com o de FHC, foi noticiado costumeira-
mente como apesar do PT. Se a economia vai bem, mérito dos investidores e
empresários, se vai mal é culpa exclusiva do governo, que não tomou as medidas
necessárias para manter o crescimento.
A racionalidade neoliberal5, que se firmou como ideologia dominante na
seara do Estado a partir da década de 1990, não foi completamente posta de
lado pelos governos petistas, fazendo com permanecesse o ente estatal como o
principal responsável pelos desconsertos que ocorrem na esfera econômica. Es-
capa dessa lógica que identifica o Estado como um peso e o mercado como efi-
ciência, que, por expresso mandamento constitucional, o seu papel de atuação
na economia é reduzido ao mínimo6; ou seja, não existe no desenho normativo

5 “O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe
que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liberdades e capacidades
empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos
direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar
uma estrutura institucional apropriadas a tais práticas” (HARVEY, 2014, p. 12).
6 “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional
ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” (PLANALTO, 1988).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

brasileiro um projeto nacional-desenvolvimentista com o exercício direto de ati-


vidade econômica pelo próprio Estado.
Até mesmo o incentivo à empresa nacional foi derrocado durante o governo
de Fernando Henrique Cardoso, com a revogação do art. 171 da Constitui-
ção7, imprimindo um modelo de ordem econômica que tem a primazia pela
livre circulação de capital, com apoio ao ingresso de multinacionais. Isso sem
contar que, nos mais recentes debates da eleição presidencial de 2014, nenhum
candidato de potencial se atreveu a defender que o Banco Central se sujeite à
política econômica do governo. Decisões sobre o controle do crédito, o capital
estrangeiro, a regulação do mercado cambial etc., deveriam ser tomadas com no
mínimo autonomia, havendo quem defendesse a independência.
Essa ausência de subjugação do Banco Central às diretrizes de uma plata-
forma política é um dos imperativos do “mercado”, que receiam toda e qual-
quer influência do governo na gestão das decisões macroeconômicas. Na era
ideológica ou dita pós-ideológica em que vivemos, o real que advém da eco-
nomia sequer precisa dar explicações suficientes. A crise econômica brasileira
de 2015-2017 é inquestionável, no entanto, se indagarmos “o que ocasionou
a crise?”, decerto as respostas seriam evasivas, porque se sabe exatamente o
necessário para se entender que estamos em crise, para que se construa a nar-
rativa desejada a partir dela, não raro pesando a culpa para o Estado, ou para
o agente mandatário, como era Dilma Rousseff.
Ora, se o Estado brasileiro não exerce diretamente a atividade econômica,
tem um Banco Central com autonomia, um Ministro da Fazenda sempre ao
agrado do mercado, como era o Joaquim Levy, por que uma crise que brota
das relações econômicas seria culpa da ação do Estado? A resposta não pode
ser mais ideológica: porque não soube criar o “cenário” econômico necessário
à reprodução do capital, que, por via de consequência, mantém a estabilidade

7 “Art. 171. São consideradas: I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua
sede e administração no País; II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo
esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e
residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo
da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do
poder decisório para gerir suas atividades. § 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira
de capital nacional: I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver
atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento
do País; [...] (Revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)” (PLANALTO, 1988).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

dos postos de trabalho e nível de produtividade para alavancar o PIB. Esse é


o real da economia em ação.
Adalberto Cardoso (2003, p. 77-81) captou o arranjo de pensar do nosso
tempo, em que a ideologia liberal ganhou vigor teórico e prático ao pon-
to de impor a sua racionalidade econômica. A partir da década de 1990,
nos governos Collor e FHC, há um câmbio drástico na forma de enxergar
o mundo, assumindo as noções de livre mercado, indivíduo (colaborador),
eficiência, mérito, competição etc., sobrepujanças em relação à igualdade,
solidariedade, justiça social, classes sociais. É o real da economia fincando
os pés sobre a abordagem marxista da sociologia, cujo espaço é contraído
para certos âmbitos da academia, deixando de servir como sustentáculo
para as políticas implementadas faticamente.
A propagação da ideologia em território nacional penetra nos mais variados
meandros sociais, naturalizando anseios de uma classe em específico como se
fosse a vontade geral. Não por menos o Estado é visto hoje como sinônimo de
ineficiência e o mercado o seu oposto, ainda que as pessoas efetivamente de-
mandem serviços públicos. Mais do que promover o embaçamento do Estado,
a racionalidade neoliberal molda a personalidade necessária para sobreviver a
sua lógica. É preciso forjar o profissional do mercado que incorpore certas ap-
tidões relacionais, de qualificação técnica, que aceita as flutuações inerentes
à economia, que quando desempregado agradeça a empresa que o contratou
anteriormente pela oportunidade no aprendizado.
Por isso, a racionalidade neoliberal não é apenas uma questão de política
econômica a ser adotada por um Estado, ao passo que ela demanda a corpo-
rificação em uma subjetividade moldada para agir nos seus marcos. Vladmir
Safatle (2016, p. 137) pontuou que o neoliberalismo não se trata apenas de uma
regulação dos sistemas de trocas econômicas, que tem como mote a maximiza-
ção do livre comércio e da concorrência, senão “é um regime de gestão social e
produção de formas de vida que traz uma corporeidade neoliberal”.
Essa ideia foi extraída, quase literalmente, da obra de Pierre Dardot e
Christian Laval (2016, p. 328), segundo os quais o neoliberalismo modelou a
partir da “cultura da empresa” uma nova subjetividade especifica aos desafios
do tempo histórico. Exige uma corporeidade que governe a si com base numa
racionalidade competitiva, em que “deve maximizar os seus resultados, expondo-
se a riscos e assumindo a inteira responsabilidade por eventuais fracassos”. O

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neoliberalismo, portanto, não se resume a uma plataforma econômica gerida pelo


político, ao passo que exige a formatação de uma individualidade compatível.
Tornar a si próprio um objeto descartável de acordo com as necessidades do
“mercado”, demandando que os sujeitos aceitem que não há mais rigidez nas re-
lações sociais e laborais, constitui um dos imperativos do real acima enunciado.
A própria noção de trabalho, do vínculo com a empresa e dos direitos sociais
inerentes, pouco a pouco vai sendo dissolvida em nome da carreira própria
como símbolo da autogestão. Não existe no plano da consciência uma estrutura
econômica condicionante do agir, somente o indivíduo que deve incorporar
certas aptidões para ser “bem-sucedido”, sob a ótica de um mercado flexível,
desregulado, com mobilidade de contratação e demissão.
Um ditame de Ludwig von Mises (2015, p. 27-29), que pareceria desprovido de
sentido em uma época próxima, é que a “classe dominante” no capitalismo não seria
o detentor do capital, mas o “consumidor soberano”. O motivo residiria no fato de
que a prosperidade do capitalista somente existe porque ele consegue suprir a vontade
de um maior número de pessoas pelo preço mais barato. Ou seja, há uma comple-
ta inversão argumentativa da hierarquia social, pois o verdadeiro soberano seria o
consumidor e não o capitalista, que está sujeito aos imperativos do real mandatário.
Esse arranjo ideológico sistematiza uma forma de pensar a realidade, a qual
está convalidando, no plano ideológico, os dizeres do autor da escola austríaca,
bastando observar o ingresso avassalador do modelo de transporte individual,
o “Uber”, em que o trabalhador não tem qualquer vínculo com a empresa. A
aceitação maciça dessa forma de relação laboral expressa o atendimento a uma
demanda por um serviço com o menor preço e maior qualidade, exatamente
nos moldes formulados por Mises. Vivemos, portanto, sob a égide da racionali-
dade neoliberal e o pior: sem sentirmos, ao passo que não existe nada mais leve
do que a ideologia que repousa sobre a consciência como um dado natural.

3. A teoria do valor e a mercantilização jurídica:


a negação dos direitos sociais sob a égide do retorno
do neoliberalismo
Ao incorporar as diretrizes econômicas estabelecidas pelos seus antecesso-
res, apenas com uma maior margem de interferência do Estado na provisão de

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

direitos, a ex-presidenta Dilma assentiu com os riscos de não tencionar o debate


para o modelo de sociedade e de pessoa que estava em curso. Não é por menos
que há muitos anos não se escuta a palavra “socialismo” no debate eleitoral,
lembrando que a ideologia é sempre uma verdadeira luta pela apropriação de
narrativas, inclusive a ora existente entre Golpe e impeachment.
Se Dilma Rousseff tivesse sido julgada efetivamente pelo cometimento de
crime de responsabilidade, causaria um tremendo espanto a manchete da jor-
nalista Miriam Leitão (2016), no início do julgamento final de Dilma no Se-
nado, que trazia os seguintes dizeres: “Crise econômica é a grande causa do
impeachment”. Como se observa, a crise econômica representa uma das facetas
constituintes do real, enquanto o impedimento por crime de responsabilidade
era somente o semblante, que por vezes era completamente esquecido. O mes-
mo pode ser observado na fala do Entrevistado Militante A, segundo o qual:
“Se tivesse só o crime e tivesse a população bem de dinheiro, cara, talvez a
população não fosse pra rua”.
Na mesma linha, no dia da votação acerca da autorização de abertura do
processo de impeachment, em 17 de abril de 2017, não foram poucos os deputa-
dos que sequer mencionaram o pretenso crime de responsabilidade. A trágica
sinceridade foi verbalizada nos tantos votos, que expuseram as limitações da
representação política, a exemplo do Deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP):

Pela segunda vez, eu vou votar pelo impeachment e, sem dúvida nenhuma,
acompanhando aqueles aposentados, pensionistas e idosos que querem
que eu vote dessa maneira. Pela recuperação da economia brasileira,
pelo combate à recessão e pela garantia de emprego para 10 milhões de
trabalhadores desempregados, meu voto é “sim” (SÁ apud CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 2016).

A face oculta do Golpe está nos interesses de setores econômicos brasileiros,


os quais se manifestaram publicamente favoráveis ao afastamento de Dilma,
conforme notícia veiculada no “Estadão” (HIRATA, SALLOWICZ, ROCHA,
2016), dando conta que cerca de 300 lideranças de associações empresariais
iriam realizar uma pressão conjunta para que o Congresso Nacional priorizasse
o processo de impeachment. A sede da FIESP tornou-se inclusive centro de re-
ferência para os manifestantes anti-Dilma, os quais chegaram a ser agraciados
com um almoço que tinha como prato principal filé mignon, segundo noticiado
no “Valor Econômico” (AGOSTINE, 2016).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Após o apoio maciço dos setores empresariais ao golpe, resta apenas inda-
gar: qual o resultado do Golpe à esfera econômica? A resposta foi antecipada
por Marx (2016, p. 78), ao examinar o Golpe francês de 1851: “O governo da
burguesia nunca foi tão absoluto, nunca ela ostentou com tanta prepotência
as insígnias da dominação”. Colocando em prática um projeto político diverso
do eleito, Michel Temer não tardou para implementar medidas alinhadas ao
liberalismo libertário propugnado pelos setores empresariais, não para eles pró-
prios, que passaram a demandar benefícios do Estado, mas principalmente para
a camada pobre da população.
Grande parte da “esquerda” brasileira foi pega de surpresa com a proposi-
ção, pelo governo de Michel Temer, da Proposta de Emenda Constitucional nº
241/55, aprovada (EC nº 95/2016) para limitar os gastos públicos primários do
governo federal por vinte anos, inclusive os relativos a ensino e saúde. Mesmo
entre os que se posicionavam contrários a medida, não se sabia ao certo de onde
ela teria partido ou com base em que fora pensada.
O que se negligenciou no debate é que se trata da aplicação pura e simples
dos ditames da ortodoxia liberal da Escola de Chicago, preconizada por Milton
Friedman e Rose Friedman, na obra “Livre para Escolher”. Os autores propõem
limites aos gastos públicos federais por meio de Emenda à Constituição, tal qual
adotada no Brasil, a fim de restringir o orçamento do governo: “isso acabaria
com a tendência de um governo cada vez maior, não haveria reversão. [...] Uma
redução gradual de nossa renda que o governo gasta seria uma contribuição
importante para uma sociedade mais livre e mais forte” (FRIEDMAN; FRIE-
DMAN, 2015, p. 429)8.
O congelamento dos gastos públicos em âmbito federal, seguindo a orto-
doxia liberal, tem uma repercussão direta para o modo pelo qual as pessoas
acessam os mais variados direitos sociais, em pormenor a classe trabalhadora.
Ao invés do seu fornecimento ocorrer por meio do Estado, que obtém receita
derivada (tributos) para o custeio, a limitação de gasto com o aumento popu-
lacional fará com que as pessoas passem a “adquirir” os direitos pela via do
mercado, como qualquer outra mercadoria.

8 Na obra consta até mesmo o modelo de Proposta de Emenda Constitucional, sendo que a diferença
entre a que foi aprovada no Brasil e a defendida pelos Friedman é somete o índice de reajuste.
Enquanto a proposta deles para os Estados Unidos da América o orçamento deveria ser corrigido
pelo crescimento do Produto Interno Bruto, no Brasil optou-se pelo índice de inflação oficial.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Em termos de economia política, trata-se do fenômeno da precificação ou


mercantilização dos direitos, em que estes deixam de ser ofertados como valor de
uso e passam a ser assimilados como valor de troca. Toda mercadoria possui um
valor de uso à medida que possui alguma utilidade condicionada pelas proprie-
dades do seu próprio corpo (MARX, 2014, p. 113-123). Uma mesma mercadoria
pode ter mais de um valor de uso, como um carro, por exemplo, que pode servir
como meio de transporte, ou para deleite de um colecionador, podendo servir
para demonstrar aos demais o potencial de riqueza etc.
O valor de troca, ao seu turno, está ligado à quantidade de dinheiro ne-
cessária para se obter o valor de uso do bem, expresso em termos dos custos
reais de produção mais o lucro (HARVEY, 2016, p. 29), abstraindo-se, aqui,
para fins didáticos, o papel do valor (que difere do valor de uso e de troca).
Quando o Estado fornece determinado direito por meio das políticas públicas,
os usuários acessam os direitos apenas sob a veste de valor de uso. Isto é, quem
se gradua em uma instituição de ensino pública acessou o bem “educação”
apenas sob a veste do valor de uso, da utilidade levando em conta o interesse
do Estado na formação e do aluno no aprendizado, no entanto, sem ser trata-
do o direito como valor de troca.
Por outro lado, quando o acesso a determinado direito ocorre pela via
concorrencial privada, o bem é obtido a partir do seu valor de troca, abrindo
espaço à acumulação privada de capital sob a esfera dos direitos até então
assegurados pelo Estado. O governo Temer, com a aprovação da PEC 241/55
impulsionou o processo de privatização ou mercantilização dos direitos que,
com a sua precificação, passam a ser fruídos com base no seu valor de troca. O
reflexo dessa equação é que o ditame liberal de garantia dos direitos pela via
individual privada exime o Estado do seu fornecimento, mercantilizando um
bem que deveria ser alcançado apenas como valor de uso por mandamento
legal, ao agrado do mercado.
O governo de Temer promoveu ainda a chamada “reforma” trabalhista (Lei
nº 13.467/2017), que de forma inédita no sistema judiciário brasileiro passa a
onerar o trabalhador que demandar uma empresa judicialmente, ao passo que
se perder o processo terá de custear os honorários do advogado patronal. Por-
tanto, a receita de Michel Temer para os pobres é o puro e simples liberalismo
econômico, o qual propugna o individualismo epistemológico, em que o traba-
lhador deve ser merecedor do que aufere em contrapartida pelo seu trabalho
(venda da força de trabalho) para que tenha uma vida digna.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Para os integrantes da classe dominante que apoiaram o Golpe, i.e., os em-


presários brasileiros, não foram ministradas as mesmas doses de liberalismo
econômico. Pelo contrário, somente à aprovação da reforma da previdência,
estima-se que o governo Temer tenha aberto mão de R$ 43 bilhões com exone-
rações fiscais. Além disso, como fruto da ação do Estado, editou-se uma medida
provisória, convertida em lei, que concede isenção fiscal às empresas petro-
leiras, que seria na ordem de R$ 20 bilhões entre 2018 e 2020, estimando-se
chegar a R$ 1 trilhão até 2040 (SENADO FEDERAL, 2017).
Outro caso notório foi a aprovação no Congresso da modificação na Lei
Geral das Telecomunicações, aguardando apenas sanção presidencial, em
que seria transferido do patrimônio da União a quantia de R$ 87 bilhões
às operadoras de telefonia (BORGES; BONFIM, 2016). Em 2017, foi edi-
tada também a Medida Provisória 783, convertida na Lei nº 13.496/2017,
instituindo o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert), que,
segundo matéria do “Estadão” (TOMAZELLI, 2017), pode perdoar dívidas
tributárias das empresas de R$ 78 bilhões.
Não se pode esquecer dos aumentos promovidos no salário mínimo, que
nos anos de 2016 e 2017 ficaram abaixo da inflação, fazendo com que a classe
trabalhadora brasileira tenha restringido ainda mais a sua capacidade de con-
sumo. Os ditames do liberalismo econômico ecoam diretamente na vida dos
trabalhadores, que estão libertos à própria sorte, enquanto para os empresá-
rios a mão invisível tem sido a branca e amigável de Temer, com suas benesses
infindáveis. A fórmula guiadora do governo Temer, por conseguinte, é uma
só: socialismo para os ricos, liberalismo para os pobres! Ganha atualidade
nesse debate as palavras de José Paulo Netto (2012, p. 89), segundo o qual:
“ela [a burguesia] e seus associados compreendem que a proposta do ´Estado
mínimo´ pode viabilizar o que foi bloqueado pelo desenvolvimento da demo-
cracia política – o Estado máximo para o capital”.
O aspecto econômico é fundamental para compreender o Golpe de 2016,
ao instante que foi impulsionado por uma elite, que se utilizou da crise política,
das manifestações populares e da crise moral para fazer valer os seus interesses.
E o mais assombroso é que, a par de transbordar ideologia por todos os lados,
o governo salienta que está no atendimento da vontade geral, acreditando pia-
mente no seu discurso. Como lembra Slavoj Žižek (2011, p. 16), “Os pregadores
e praticantes da democracia liberal nos dias de hoje também não ´imaginam
que acreditam em si mesmos´, em seus pronunciamentos? ”.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Não é à toa que Alain Badiou (2017, p. 27) brinca que estamos assistindo a
peça da “democracia imaginária”, não havendo a representação de outra no es-
tágio atual do capitalismo, lembrando que quando o governo decide dar bilhões
ao patronato, sem contrapartida, ele atua na peça com convicção: “que diabos
poderia fazer senão isso?”. Ou seja, o semblante do golpe – o crime de respon-
sabilidade – era uma encenação do real oculto, i.e., os interesses econômicos de
determinados setores da economia brasileira.
Por falar na divisão filosófica entre semblante e real, que tem acompanhado o
estudo até aqui, Badiou (2017, p. 21) o explicita também a partir de uma anedota,
que foi a morte do dramaturgo francês Molière. Considerado um dos mestres da co-
média satírica, Molière faleceu enquanto encenava a peça “O Doente Imaginário”,
fazendo com que o real tenha frustrado a representação, sendo “o momento em que
o semblante se torna mais real do que o real de que ele é o real”. Em 2017, ocorreu
algo similar com o músico Bruce Hampton, que comemorava o seu 70º aniversário
em um show com seus amigos, quando se atirou no chão e os músicos seguiram
tocando. O que se imaginava ser uma performance, era o seu trágico destino. Entre
nós, o impeachment foi somente o semblante do real econômico, ocorre que, ao
instante que todos focalizavam o processo, que é a sua representação, o real é que
a própria democracia falecia enquanto estava sendo encenada como impeachment.

Considerações finais
Os processos políticos turbulentos, tais quais vivenciados no Brasil ao longo
dos anos de 2015-2016, somente terão a sua leitura sedimentada a partir do dis-
tanciamento promovido pelo decurso do tempo, com a sua consequente incur-
são nos tratados de história. O que se tenciona, por ora, é o duelo de narrativas
e a tentativa de firmar uma das versões como a que mais fidedignamente irá
denotar o período. Ccomo não assumo nenhuma postura de neutralidade ou
imparcialidade científica, o presente artigo constitui uma defesa da existência
de um Golpe de Estado em 2016. A focalização do aspecto econômico ocorreu
porque constitui o fundamento material que corroborou à sua perfectibilização.
Rompendo com estudos eminentemente abstratos, que discutem categorias
teóricas do marxismo sem a correlata base material, o presente estudo teve como
intento maior explicitar a validade analítica da teoria do valor, na formulação de
Karl Marx, para compreender processos históricos concretos. O que se intenta é

55
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

o incentivo de se romper com discussões abstratas em demasia (como se haverá


ou não direito em uma sociedade socialista futura [?]), procurando vincular as
categorias teóricas do marxismo com a realidade e suas contradições.
Compreender o que representa o retorno do projeto político neoliberal e a
sua racionalidade tem relevância central para exame do fenômeno jurídico. É
ínsito à lógica do neoliberalismo a promoção da mercantilização do Direitos,
sendo que a primazia do valor de troca representa, em última análise, a própria
negação do valor de uso. Ou seja, o direito deixa de ser efetivado por um crité-
rio eminentemente material: somente irá ter acesso a dado direito social quem
possuir condições materiais de custeá-los.
Nesse aspecto, a teoria do valor de Karl Marx se mostra de grande valia para
compreender tanto o fenômeno da precificação dos direitos sociais em si como
para examinar projetos políticos distintos. O modo como os direitos sociais são
ofertados à população, se como valor de uso ou como valor de troca (ou aceitan-
do valor de troca e destinando como valor de uso) irá repercutir diretamente na
forma como dado direito é efetivado em correlato ao projeto político adotado.
O Golpe de 2016 foi promovido com amplo apoio dos setores empresariais
justamente para que houvesse um regresso dessa lógica de expansão de mercado
sobre os direitos. A mercantilização dos direitos significa a criação de espaços
de acumulação de capital que não são acessíveis caso o Estado assume para si a
tarefa de concessão ou mediação. Com isso, espero que o artigo sirva, ainda que
minimamente, para que se possa pensar criticamente a realidade e o Direito,
fazendo uso operacional das categorias formuladas pelo Karl Marx.

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58
O Sujeito neoliberal, a “ditadura do
algoritmo” e o identitarismo: fragmentação
dos movimentos sociais no contexto de
um capitalismo em crise civilizacional

Maria Beatriz Oliveira da Silva9

A título de introdução: leituras e questionamentos partilhados


Este texto não é uma reprodução exata, mas resulta da palestra que proferimos
no painel que tratava dos movimentos sociais no III Congresso Internacional de
Direito e Marxismo, ocorrido na cidade de Mossoró em novembro de 2018.
Na ocasião, esclarecemos que o objetivo da nossa fala era muito mais dividir
inquietações do que apresentar análises ou conclusões sobre o gigantesco desafio
que é o de (re) pensar, (re) organizar e (re) unificar os movimentos sociais10 (MA-
CHADO, 2018) em um contexto de aprofundamento da ofensiva neoliberal.
Para que nossa fala pudesse, de alguma forma, ser amalgamada escolhemos
como ponto de partida e conexão a palavra “crise”, partindo da realidade con-
creta que revela uma crise (sem precedentes) do capitalismo, crise esta, que se
desdobra em diferentes dimensões.
Entre as dimensões da crise do capitalismo – apontada por muitos como
uma crise sistêmica e civilizacional - está a crise do próprio sujeito visto que tem
ocorrido mudanças de contornos na sociabilidade11 e, consequentemente, nas

9 Professora do Programa de Pós Graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em


Direito e Marxismo (NudMarx) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – [email protected]
10 Quando falamos aqui em « movientos socias » estamos nos referindo aos movimentos do campo popular
e progressista em geral. No entanto, sabemos da amplitude do conceito visto que os « movimento
sociais » podem abrigrar inclusive, movimentos conservadores. Por esta razão fizemos referência a Eliel
Machado que apresenta uma tipologia classista dos movimentos sociais na obra citada.
11 Sociabilidade entendida, aqui, como uma construção histórica produzida coletivamente, envolvendo
relações de poder e refletida em cada sujeito singular por diferentes mediações, expressando, assim,

59
subjetividades, com a exacerbação do individualismo, bem como, em face da
“revolução numérica” com uma “algoritmização” dos sujeitos e da política com
graves consequências para a(s) democracia(s).
Este quadro de crise(s) do capitalismo e de ofensiva neoliberal também traz
consigo o aprofundamento da flexibilização no mundo do trabalho que redun-
da em desregulamentação no mundo do Direito. Gerando enormes retrocessos
com a subtração de direito e garantias conquistados com lutas coletivas, guiadas
pelo princípio da solidariedade, o neoliberalismo acaba forjando um sujeito neo-
liberal (ou neosujeito) norteado pelo princípio da concorrência.
Esta crise (civilizacional) do capitalismo que potencializa a ofensiva neolibe-
ral aprofundando o individualismo gera como consequência uma maior atomi-
zação e fragmentação dos movimentos socais do campo popular e democrático.
Em resumo, a crise do capitalismo contribui para a crise do sujeito, que,
por sua vez, contribui para a crise dos movimentos sociais. Diante desta inter-
conexão de crises muitas questões podem ser extraídas, entre elas: como (re)
organizar e unificar os movimentos e as lutas sociais cuja essência e a própria
sobrevivência encontra-se no princípio da solidariedade (de classe) quando o
princípio norteador do “sujeito neoliberal” é o da concorrência? Como reagir à
“ditadura do algoritmo” e restabelecer o lugar da política? Quem é (ou poderá
vir a ser) neste contexto tão hostil aos que vivem da força do seu trabalho o
“sujeito revolucionário” na concepção marxista do conceito?
Como afirmamos preliminarmente nosso propósito não é dar respostas, mas
dividir inquietações e apresentar alguns cenários e reflexões que, no nosso en-
tendimento, merecem ser levados em consideração na elaboração das respostas
a serem coletivamente construídas.
Iniciaremos nossa exposição com breves considerações sobre a crise do ca-
pitalismo e, posteriormente, para abordar a temática do “sujeito neoliberal” e
da “ditatura do algoritmo” iremos trazer à reflexão algumas ideias contidas em
duas obras de autores franceses tentando entre elas estabelecer algum diálogo.
Uma das obras é intitulada “ A Nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
Neoliberal” (DARDOT; LAVAL, 2016) na qual nos interessa, mais especifi-
camente , o capítulo 9 intitulado “A fábrica do sujeito neoliberal” ; e a outra ,

um ordenamento comum sobre as formas de sentir, pensar e agir.


ainda não traduzida para o português, é “L’homme nu : la dictature invisible du
numérique”1 (DUGAIN; LABBÉ, 2016).
No que tange “identitarismo” teremos como referências básicas dois autores
que, apesar de abordagens um pouco distintas, foram escolhidos por coincidirem
na visão crítica sobre este tema, sendo que um deles é Douglas Rodrigues Barros,
escritor e coordenador político da Uneafro-Brasil; e o outro, Tomasz Pierscionek,
doutor em psiquiatria e editor chefe do London Progressive Journal.
Comecemos, então, pela crise do capitalismo.

2. Crise(s) do capitalismo e ofensiva neoliberal


Em publicação (inédita), datada de 2009, intitulada “Les crises du
Capitalisme”(MARX, 2009) irá mostrar que a incessante busca do lucro e da
valorização do capital está na origem da crise e , quando a crise se efetiva, os
planos de retomada de crescimento e as ajudas do Estado não fazem mais do
que remediar a quebra, visto que as crises resultam das contradições inerentes
ao próprio capitalismo.
Na obra acima citada Marx também assevera que o germe da crise está presen-
te no dinheiro na medida em que ele se tornou autônomo, ou seja, apresentando
uma forma de existência que se tornou independente do próprio valor de troca.
Essa autonomia engendra, segundo Marx, a ilusão de que o dinheiro pos-
sa se multiplicar por partenogênese, pois assim como na partenogênese ocorre
crescimento e desenvolvimento de um embrião sem a fertilização, acredita-se
que com o dinheiro possa ocorrer o mesmo entrando no circuito de crédito e
financeiro sem que tenha passado pelo processo de produção.
Corroborando com o núcleo das ideias acima apresentadas o professor Ben-
jamim (BENJAMIM, 2009) observa que Marx concluiu que o capital procuraria
ampliar suas possibilidades de acumulação na forma D-D’ na qual nunca deixa
de existir como riqueza abstrata, e anteviu, quando essa fórmula se tornasse
predominante, a civilização do capital entraria em crise e , aqui, trata-se de uma
crise civilizatória, muito mais ampla do que as crises cíclicas do capitalismo.
Para a filósofa e marxista francesa Isabel Garo (GARO, 2013) o aumento
da taxa de lucro é a única obsessão do Capitalismo, independente das

1 “O Homem nu: a ditadura invisível do numérico”- “numérico” refere-se aos algoritmos e a “revolução
numérica” que é uma das dimensões da 4ª revolução industrial (Revolução 4.0)

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

consequências sociais ou ambientais que venha a gerar, e o meio que encontra


de se manter em tempos de crise é, notadamente, através da pressão sobre os
salários diretos e indiretos assim como a “mercadorização” (marchandisation)
de tudo que foi conquistado com muita luta no terreno da saúde, previdência,
educação, transporte, etc.
Garo também defende que as políticas ultraviolentas de contrarreforma
(como as que estamos experimentando no Brasil) não parecem adequadas para
resolver o que se considera uma das piores crises da história desse modo de
produção. Por essa razão, afirma que os efeitos do capital fictício são bem reais e
levam esta crise a caracterizar-se como uma crise de civilização.
Esta crise civilizacional que faz avançar o processo de financeirização
da economia, que desumaniza (ainda mais) o humano colocando no centro
das relações o mercado vai forjando um novo contorno de sociabilidade e,
consequentemente, de sujeito. Este novo sujeito Dardot e Laval irão nomear
de “sujeito neoliberal” (ou sujeito empresarial, sujeito empreendedor, empre-
endedor de si mesmo, neosujeito).

3. O sujeito neoliberal
As reflexões aqui trazidas sobre o sujeito neoliberal resultam da síntese de
algumas ideias desenvolvidas pelos franceses Dardot e Laval na obra anterior-
mente citada (DARDOT; LAVAL, 2016).
Os autores apresentam quatro traços que caracterizam a razão neoliberal: 1.
o mercado se apresenta não como um dado natural, mas como uma realidade
construída.; 2. a essência da ordem do mercado não reside na troca, mas na
concorrência - que passa a valer como norma geral das práticas econômicas; 3.
O estado não é simplesmente vigilante deste quadro visto que ele próprio em
sua ação é submetido à norma da concorrência ; 4. A exigência de uma univer-
salização da norma de concorrência ultrapassa as fronteiras do estado atingindo
diretamente os indivíduos em sua relação consigo mesmo e com os demais.
Este último traço caracterizador da razão neoliberal é que nos interessa
examinar mais de perto para, posteriormente, questionar os reflexos dessa
“subjetividade neoliberal” nos movimentos sociais e reinvindicatórios do
campo popular e progressista.
Para Dardot e Laval a grandeza de Marx foi ter mostrado que o preço da
liberdade subjetiva que emergiu com o advento do capitalismo resultou de uma

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

sujeição a leis impessoais e incontroláveis da valorização do capital e, neste caso,


o contrato tornou-se mais do que nunca a medida de todas as relações humanas.
Com base no contrato ( e, poderíamos acrescentar, na instituição sujeito de
direito pelo capitalismo (KASHIURA JUNIOR, 2014)),2 o indivíduo passou a
experimentar, cada vez mais, na relação com outro, sua plena e total liberdade
de compromisso voluntário e passa também a perceber a sociedade como um
conjunto de relações e de associações entre pessoas dotadas de direitos sagrados
- e este é o cerne do que se convencionou chamar de individualismo moderno.
Os direitos sociais e políticas sociais que começam a emergir no final do sé-
culo XIX limitaram um tanto a lógica acumuladora do capital e a concepção
estritamente contratualista das trocas sociais. No entanto, o momento neoliberal
caracteriza-se por uma homogeneização do discurso do homem em torno da fi-
gura da empresa fazendo nascer o “sujeito empresarial”, um ser cuja subjetividade
deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra.
Assim, “a racionalidade neoliberal produz o sujeito de que necessita orde-
nando os meios de governá-lo para que ele se conduza como uma entidade
em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados expondo-se a
riscos”(DARDOT; LAVAL, 2016 p.5) e, mais do que isso, cabe a ele assumir
inteira responsabilidade por eventuais fracassos.
Neste contexto, o indivíduo não deve mais se vender como um trabalhador
mas como uma empresa que vende um serviço ao mercado, e a “ empresa de si
mesmo” passa a ser uma entidade psicológica e social (e mesmo espiritual) ativa
em todos os domínios e presente em todas as relações podendo-se dizer que o
primeiro mandamento da ética do empreendedor é “ajuda-te a ti mesmo.”
Ocorre, em função desse quadro, um enfraquecimento dos coletivos de
trabalho que vem a reforçar o isolamento e o desmonte dos engajamentos
dos sujeitos uns com os outros gerando a corrosão dos laços sociais de soli-
dariedade e de tudo o que sempre fez parte da reciprocidade social simbólica
dos locais de trabalho.
Ainda no campo das mudanças no mundo do trabalho, acrescentamos ao
exposto com base nas ideias de Dardot e Laval, o fato de já termos ingressado
na chamada quarta revolução industrial (ou revolução 4.0) (SCHWAB, 2016)
- o que comprova a tese a tese de Marx de que “a burguesia não pode existir
sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto,

2 Para que possam contratar os indivíduos são tomados, juridicamente, como sujeitos de direito.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

as relações de produção e, portanto, as relações sociais todas” (grifo nosso).


(MARX; ENGELS, 2002)
Não sabemos ainda todas as consequências que trará a revolução 4.0.
O certo é que produzirá um cenário de desemprego sem precedentes, bem
como, dilemas éticos e legais relativos ao rompimento das esferas físicas,
digitais e biológicas.
Os avanços na esfera digital da revolução em curso é uma das facetas
exploradas pelos autores que apresentaremos a seguir e que eles denominam
de “revolução numérica”, ou “revolução dos big data”. Em que pese a abor-
dagem um tanto distinta da de Dardot e Laval, Dugain e Labbé também
tratarão da crise do sujeito e da democracia, mas no contexto da “ditadura
do algoritmo” que, segundo eles, tem deixado “o homem nu”, destituído a
política e matado a democracia.

4. O homem nu e a “ditadura do algoritmo”3


As ideias relativas à temática deste subtítulo foram hegemonicamente reti-
radas (e por nós traduzidas) da obra “L’homme nu: la dictature invisible du numé-
rique” citada na introdução deste texto (DUGAIN; LABBÉ, 2016).
Para os autores Dugain e Labbé o homem é, antes de tudo, um animal co-
letivo e sua força está no grupo. Ocorre que a solidariedade, elemento consti-
tutivo da humanidade, desaparece com um apertar de botão, pois vive-se um
individualismo exagerado, guiado pelas empresas do chamado big data - termo
genérico cujo núcleo representa uma nova revolução - a revolução numérica
(DOS REIS, 2017). 4
A revolução numérica não se contenta em modelar nosso modo de vida na
busca de mais informações e maior rapidez de conexão, ela conduz a um estado
de docilidade e de servidão voluntária, de desaparecimento da vida privada e de
renúncia irreversível da liberdade.
Entramos em um sistema de vigilância total em que a vida privada se tornou
uma anomalia. Carregamos um espião dentro do próprio bolso - o telefone

3 Os autores usam termos como sinônimo “revolução numérica”, “revolução do big data”, “ditadura dos
big data” e “ditadura o algoritmo”.
4 Aos que têm interesse em saber sobre o que é o Big Data há inúmero vídeos explicativos na web
além do citado.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

celular- e jamais o homem esteve tão nu, pois a partir dos metadados dos
celulares, do georreferenciamento e da hora e duração da conexão é possível
também estabelecer o perfil psicológico dos utilizadores, seus hábitos, suas
convicções filosóficas religiosas e mesmo sua origem étnica.
O fato é que por trás de doces promessas e atrativos incontestáveis, a re-
volução numérica implementa um processo que coloca “a nu” o indivíduo em
proveito de um punhado de multinacionais (americanas na sua maioria) por
meio dos famosos big data.
É assim que a Apple, Microsoft, Google e Facebook têm hoje 80% das infor-
mações pessoais numéricas da humanidade o que significa dizer que, jamais na
história, um tão pequeno número de indivíduos teve concentrado tanto poder e
tanta riqueza – o mundo digital gestou uma hiperoligarquia.
No que tange ao campo político e democrático é fundamental ressaltar
que para os big data a democracia é obsoleta, bem como, os valores univer-
sais por ela aportados.
Antoinette Rouvroy, pesquisadora de Direito na universidade de Namur,
estima que as empresas visam a uma “governabilidade algorítmica” - um
modo de governo inédito operando, mais precisamente, por uma configura-
ção antecipatória das possibilidades de conduta do que por regulamentação
de condutas. Neste caso, endereçando-se aos indivíduos muito mais pela via
de alertas aos seu reflexos do que às suas capacidades de entendimento e de
vontade.(ROUVROY, [s.d.])
No futuro configurado pelos big data as democracias são sufocadas as-
sim como os seus sistemas de representação. A questão posta pelos autores
em apreciação é: Será que votar todos os quatro ou cinco anos terá ainda
algum significado visto que, em poucos anos, os big data serão capazes de
conhecer, em tempo real, a reação de cada indivíduo e todas as proposições
coletivas de sociedade?
Para responder a esta questão é preciso considerar que os big data hoje são
capazes de obter bilhões de dados e extrair um perfil político-individual e assim,
é possível conhecer o indivíduo e as suas mais profundas convicções e influir
nos resultados – razão que tem levado os mestres dos “megadados” a organiza-
rem as campanhas políticas nos Estados Unidos.
Assim, segundo os autores aqui trabalhados, os mestres dos megadados po-
dem fazer balançar, ou mudar os rumos de uma eleição (podemos testemunhar
que no Brasil isso ficou muito claro!).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Também alertam para o fato de que a aposta do vale do silício é o da gover-


nança por meio de dados. É substituir o debate político pela performance e tro-
car as leis pelas “regras algorítmicas”. Este novo tipo de governança leva o nome
de “regulamentação algorítmica” e o seu programa é “no lugar de governar as
causas - o que necessita de imaginação e de coragem por enfrentar complexida-
de - se controlar os efeitos”. (DUGAIN; LABBÉ, 2016 p.92)
Destarte, os big data destituem a política dando um golpe de estado invi-
sível que busca esvaziar o sentido da democracia que passa a ser apenas um
vestígio da herança grega.
Evgeny Morozov estudioso da influência da tecnologia sobre a sociedade e
autor de um livro intitulado “Pour tout résoudre, cliquez ici : l’aberration du solu-
tionnisme technologique”5(MOROZOV, 2014) denuncia , entre outras coisas, a
tomada de poder por meio de dados e a morte da política.
Também Giorgio Agamben autor do ”O Homem Sem Conteúdo“ (AGAM-
BEN, 2012) afirma que a cidadania se limita a um estatuto jurídico e o exercício
do direito de voto se assemelha cada vez mais a uma sondagem de opinião.
Esta “ditadura do algoritmo” vende a ilusão de neutralidade da técnica ocul-
tando o fato de que os algoritmos são concebidos pelos homens e estão susce-
tíveis ao viés cultural, político e comercial. No entanto, advertem os autores,
“esta ilusão atende à expectativa de um mundo sem tomar partido, sem convic-
ções ,sem debate de ideias, no qual todos se contentem em reagir por espasmos
emocionais”(DUGAIN; LABBÉ, 2016, p.64).
Dugain e Labbé também advertem que a profecia de Platão está se re-
alizando. No mundo dos big data nós somos acorrentados como jamais às
ilusões e o reflexo da realidade tornou-se, na nossa cabeça, mais importante
do que a própria realidade.
Na caverna na qual estamos presos os vigilantes são também os ilusionistas
que mantêm cada um de seus prisioneiros dentro de um estado de passividade e
de dependência diante da realidade projetada.
A saída desta caverna torna-se difícil dado o fato de que entregamos as
chaves às empresas que codificam o mundo e que passaram a ter um poder
exorbitante, pois dentro desse espaço código numérico é a lei.
Cabe ressaltar que podemos discordar em diversos aspectos dos autores
franceses até aqui trabalhados, no entanto, não tem como deixar de levar em

5 Para Tudo Resolver Aperte Aqui : a aberração do solucionismo tecnológico

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

consideração a realidade por eles apontada ao pensarmos no necessário fortale-


cimento e na busca de unidade das lutas e dos movimentos sociais.
As duas obras dos autores francesas acima sintetizadas coincidem em mos-
trar que uma hipótese básica da ofensiva neoliberal está em retomar os pres-
supostos ideológicos da fundamentação estanque do indivíduo rompendo com
a solidariedade e gerando fragmentação. O tema da fragmentação dos movi-
mentos gerada pelo individualismo que se traduz em “identitarismo” é o que
pretendemos, mesmo que brevemente, comentar a seguir.

5. Identitarismo e fragmentação das lutas e dos


movimentos sociais
Douglas Barros parte do individualismo e da exaltação da identidade para
fazer uma ferrenha crítica ao chamado identitarismo. Segundo ele, devido à falta
de perspectivas sólidas e alternativas concretas à esquerda se criou “uma miscelâ-
nea sincrética de sabedoria oriental com filosofice barata visando promover uma
espécie de autoajuda para ‘rebeldes’.” E vai adiante na sua crítica afirmando que:

A exaltação da identidade como fixo e não relativo é a pura expressão


da forma de valorização do capital como fim em si mesmo que precisa
assegurar alguns indivíduos como colônia ainda viável de exploração. É
esse fenômeno que busca uma identidade estanque, ideal e não relativa,
um Eu=Eu, como forma inconsciente de realização de valorização do
capital, que chamo de identitarismo. (RODRIGUES BARROS, 2018)

Note-se que o autor acima citado, que aliás é coordenador político de Mo-
vimento Negro, não nega a identidade, mas a diferencia de identitarismo que
seria a identidade “como um fixo e não como um relativo”.
Na mesma trilha, Tomasz Pierscionek faz uma crítica à ideologia identitária acu-
sando-a de ter feito a esquerda ocidental perder a sua identidade coletiva. Segundo
ele, “o fenômeno da ideologia identitária, que se alastra no mundo ocidental, serve
como uma estratégia política de atomização social que obstaculiza a emergência de
uma verdadeira resistência às classes dirigentes”.(PIERSCIONEK, 2018)
Correndo o forte risco de, na síntese, simplificar o bem fundamentado texto
do autor supracitado, pode-se dizer que uma das ideias-chave por ele apresentada

67
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

é a de que um princípio fundamental das lutas que têm como horizonte o


socialismo está ligado à solidariedade internacional da classe trabalhadora.
O princípio da solidariedade se opõe a qualquer fator suscetível de dividir
a classe, tal como, nacionalismo, raça, religião ou gênero. Os trabalhadores de
todos os países guiados por este princípio devem se mobilizar em torno dos
mesmos valores e do mesmo nível de responsabilidade na luta contra os que
exploram as suas capacidades intelectuais, seus esforços físicos e psíquicos.
Ocorre que o slogan “ ferir a um é ferir a todos”6 , segundo Pierscionek, foi substi-
tuído por “se ferir a mim é tudo que conta” pois, ao final do século XX, uma tendência
ideológica-liberal se implantou no seio da esquerda pequeno-burguesa (pelo menos no
ocidente) pretendendo abolir a consciência de classe em proveito de identidades múl-
tiplas baseadas em gênero, sexualidade, raça, religião ou tantos outros fatores de divi-
são comunitárias estranhas às relações sociais de produção a que todos se submetem.
O autor acima citado segue a trilha de Marx ao fazer sua análise com base
nas relações sociais de produção. Como sabemos é das relações sociais de pro-
dução que Marx vai extrair o conceito de classes sociais opondo os proprietários
dos meios de produção aos que detém , unicamente, a força de trabalho - e vai
acrescentar que a luta de classes é o motor da história.
Podemos inferir que é de um horizonte de classe e anticapitalista que ambos
autores fazem a crítica ao “identitarismo” como um dos responsáveis pela frag-
mentação e atomização dos movimentos sociais. No entanto, nenhum nega o
pluralismo de “identidades” que compõem as classes sociais.
Também entendemos que o identitarismo, de forma atomizada e desconecta-
do do horizonte de classes, contribui para a fragmentação das lutas e movimentos.
De outra parte, “classe” não é uma categoria “homogênea”, pois a totalidade dos
que não detém os meios de produção e vendem sua força de trabalho é constituída
de múltiplas identidades que, evidentemente, possuem reivindicações específicas.
A grande questão é saber como unificar estas lutas específicas em um hori-
zonte de classe (e, por consequência, anticapitalista) em um contexto tão hostil
como o que foi aqui apresentado.
Esta foi uma das questões inicialmente levantadas para as quais pretende-
mos retornar sem apresentar uma resposta, pois, conforme anunciamos, o nosso
propósito é o de partilhar inquietações.

6 Slogan atribuído a David C. Coates - editor, líder sindical e político socialista - que passou a ser usada
por organizações sindicais e populares.

68
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A título de conclusão: votando às questões para


provocar ações
As questões e inquietações apresentadas introdutoriamente que emergiram
das leituras aqui compartilhadas foram: como (re) organizar e unificar os movi-
mentos e as lutas sociais cuja essência e a própria sobrevivência encontra-se no
princípio da solidariedade (de classe) quando o princípio norteador do “sujeito
neoliberal” é o da concorrência? Como reagir à “ditadura do algoritmo” e resta-
belecer o lugar da política e a retomada da democracia? Quem é (ou poderá vir
a ser) neste contexto tão hostil aos que vivem da força do seu trabalho o “sujeito
revolucionário” na concepção marxista do conceito?
Na verdade, são antigas questões a serem respondidas em um novo contexto histó-
rico. O certo é que as tecnologias, por mais revolucionárias que sejam, trazem consigo
a velha e mais inflexível marca capitalismo que é a de reduzir o tempo de trabalho em
nome do lucro e transformar tudo, não só o trabalhador, em mercadoria.
Também é preciso lembrar que uma das estratégias das classes dirigentes
para alcançar seus objetivos sempre foi a de promover o divisionismo, razão pela
qual a tarefa de buscar a unidade na luta nunca saiu da pauta dos movimentos
do campo popular e democrático.
Retornar a Marx e aos que o interpretam à luz dessa nova e desafiadora
realidade é o melhor caminho para nos munirmos das armas teóricas necessá-
rias para fortalecer e unificar os movimentos renovando a práxis cotidiana sem
perder o horizonte da luta que é que o da construção de uma nova sociabilidade
fundada na solidariedade e não na concorrência: o horizonte do socialismo.

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70
Bolivia e Proceso de Cambio: caminhos e
impasses para o socialismo comunitário
Bolivia and Proceso de Cambio: ways
and impasses for community socialism

Daniel Araújo Valença7

Introdução
A América Latina vivenciou, a princípios deste século, o ascenso de go-
vernos progressistas como resposta às consequências das políticas neoliberais
na década de 1990. Se as condições materiais de depreciação das condições
de reprodução social levaram o continente a um novo ciclo político, cada país
refletiu sua especificidade, formação social e processos próprios de luta política.
Entre os que vivenciaram este intento de superação do neoliberalismo, a Bolívia
aparece com um conjunto de profundas transformações nas esferas econômica,
política, cultural e jurídica, inauguradas com o governo de Evo Morales, deno-
minado de “Proceso de Cambio”.
Se há, no momento, um avanço do capital sobre o trabalho no continente,
materializado, por exemplo, na reforma trabalhista do governo ilegítimo de Te-
mer e na proposta enviada ao parlamento por Macri na Argentina –, na Bolívia
permanece em curso o “Proceso de Cambio”. Este trabalho se volta a analisar
algumas das contradições, potencialidades e conjuntura do mesmo.
Para tanto, parto do materialismo histórico-dialético, com fins de realizar uma
investigação qualitativa, mediante o uso, como instrumentos metodológicos, de

7 Daniel Araújo Valença é professor do Curso de Direito da UFERSA, graduado em Direito pela
UFRN,especialista em Direito Urbanístico pela PUC-Minas, mestre em Arquitetura e Urbanismo
pela UFRN,doutor em Direito pela UFPB e coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico,
Marxismo e América Latina – Gedic.

71
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

revisão bibliográfica e documental, bem como entrevistas a líderes políticos e


intelectuais daquele país andino.
Em um primeiro momento, abordo o processo de alteração na correlação de
forças dentro da sociedade civil boliviana. É do encontro das diversas frações
das classes subalternas bolivianas que haverá a tradução de demandas econômi-
co-corporativas em ético-políticas (GRAMSCI, 2002), possibilitando derrotar
o antigo bloco histórico imperial-burguês-colonial (MOLDIZ, 2009). Analiso,
logo após, o socialismo comunitário, o “Proceso de Cambio” e o Estado Pluri-
nacional da Bolívia a partir de suas características fundantes, assim como das
potencialidades e dilemas que dela aparecem.

2. A tesitura do bloco camponês-indígena-popular


e de um novo projeto político autônomo das classes
subalternas bolivianas
A origem imediata das transformações ocorridas na Bolívia remete às conse-
quências econômicas, políticas e sociais da reestruturação produtiva decorrente
das políticas neoliberais inauguradas na década de 1980. O Decreto 21.060/86,
de privatização da minas, proporcionou tanto a depreciação das condições
objetivas de reprodução social como a reconfiguração de suas classes sociais
(GARCÍA-LINERA, 2010).
A Bolívia, desde a década de 1940 e, especialmente, a partir da Revolução
Nacional de 1952, teve na classe mineira a principal resistência ao status quo,
cujo projeto político se caracterizava pela inserção dependente no capitalismo
internacional, assim como na superexploração da força de trabalho indígena
e em sua exclusão da esfera política. Essa classe operária, que realizaria a Re-
volução Nacional de 1952 e a Comuna de La Paz em 1971, momento em que
se instituiu um poder dual em La Paz e, frente ao avanço dos trabalhadores,
estourou novo golpe de Estado (ANDRADE, 2011), será a principal derrotada e
afetada pelas políticas neoliberais. Com a privatização e fechamento das minas,
milhares de mineiros se deslocaram para o Chapare e El Alto e consigo levaram
a consciência de classe operária, arraigados por décadas de lutas políticas8.

8 Para Thompson (1979), as pessoas se encontram imersas em determinado contexto de reprodução


social, experimentam a exploração, identificam interesses comuns e antagônicos e, a partir daí, se
descobrem como classe.

72
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O Chapare se destaca, nacionalmente, pela sua produção de folha de coca.


Ocorre que o governo boliviano declarou guerra ao seu cultivo e consumo na
década de 1990. A luta camponesa, nesse contexto, encontrava na coca um
elemento unificador, pois incorporava a defesa desta cultura originária e ma-
terializava a resistência a uma nova imposição estrangeira. Um conflito local
e de cunho econômico-corporativo transcendeu à dimensão ético-política
(GRAMSCI, 2002), ou seja, reivindicações de determinadas frações das classes
subalternas se irradiaram para amplas massas populares, constituindo um senti-
mento nacional-popular comum a todo o grupo subalterno (GRAMSCI, 2005).
Mas, para além do legado mineiro, o Chapare também incorporou o india-
nismo, teoria inicialmente elaborada por Fausto Reinaga (TICONA-ALEJO,
2014). Este publicaria, em 1970, o Manifiesto del Partido Indio y, en 1971, Tesis
India (TICONA-ALEJO, 2014). Em seus primeiros escritos, Reinaga realizou
uma particular interpretação da Bolívia e territórios originários incaicos, para
recuperar seus pilares e defender uma nova possibilidade de projeto de sociabili-
dade autônomo de seus povos e nações. Bebendo parcialmente nas formulações
de Reinaga, ainda na década de 1970, se desenvolveu o indianismo katarista.
Em seu interior, havia desde os “indianistas duros”, que rechaçavam qualquer
assimilação ocidental, aos que aproximavam as questões étnicas e de classe,
sendo estes a parte majoritária. Em uma posição próxima à de Mariátegui
(2010), o mais original dos marxistas latino-americanos e precursor da investi-
gação do entrelaçamento entre classe e etnia, o katarismo vê o camponês como
índio. Este camponês, portanto, não era abstrato e a-histórico, como o enxerga
determinado marxismo vulgar. Se na Europa ocidental se materializa desde a
propriedade privada e organização individual do processo de trabalho, o kata-
rismo reconhece a particularidade do campesinato boliviano: este não passou
pela individualização ocidental e preserva, ainda que parcialmente, organização
do processo de trabalho, da propriedade e da reprodução social próprios aos po-
vos originários. Por outro lado, inegável que, naquele momento, amplas massas
indígenas também se enxergassem como camponesas, assim como se auto-or-
ganizassem na forma política sindical. O elemento comunidade, seja em Ayllus9
ou em sindicatos rurais, constituía uma particularidade deste campesinato.

9 Marcelo Vega, indianista katarista, aclara o que são os ayllus: “Los ayllus son las familias, los
conjuntos de familias, los markas, los suyos donde cada uno ve sus intereses, pero nadie ve su interés
para sí mismo, tenemos que avanzar y tenemos que ver que no me perjudique o le perjudiquemos

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Ao contrário do indianismo “mais puro”, o Katarismo enxergava o índio


como camponês e o campesinato indígena como possível sujeito revolucionário
– sem, necessariamente, ancorar-se expressamente em tal categoria marxiana
–, em um país eminentemente rural. Para eles, a ação política indianista deve-
ria recuperar os mecanismos ancestrais dos Ayllus, constituir um sindicalismo
rural autônomo e comunal, assim como desenvolver seu próprio instrumento
partidário (Ticona-Alejo, 2014) para, atraindo o apoio de outras frações das
classes trabalhadoras10, construir a regeneração social da Bolívia. Se desenvol-
veu, desde então, a categoria “campesinato indígena” (VIAÑA, 2014) e um
sujeito histórico que amadureceria em princípios do século XXI.
Quando esse campesinato, objetivamente e historicamente constituído pela
Revolução Nacional de 1952, encontra-se com sua identidade étnica, forma-
-se uma perspectiva nacional-popular, que orientará as organizações sindicais
no campo, a partir dos anos 90. Em paralelo, no oriente do país, conhecido
como Media Luna, os indígenas de terras baixas, povos e nações minoritárias,
desenvolveriam um horizonte indígena-comunitário (CUNHA FILHO, 2015),
durante a mesma década.
Portanto, uma série de transformações econômicas, sociais, políticas e cul-
turais, ocorridas ao longo de décadas, levam as mais diversas frações das classes
subalternas a encontrar-se. No decorrer da resistência às políticas neoliberais,
as organizações de orientação nacional-popular se voltam para a construção de

al otro, si hay que avanzar, entonces avanzamos, no tenemos que ver lo que perjudique y que me
perjudique, ni que lo perjudiquemos al otro, intercambiamos en las reuniones sectoriales y luego ya
se reúne la plenaria y ahí se ponen de acuerdo. Por eso se usan las pausas, ¿no? Es un sistema en el
cual, precisamente, intervienen 3 principios fundamentales: la reciprocidad, la complementariedad y
la solidaridad, entonces bajo esos principios lo que a él le falta, yo le puedo dar, lo que a mí me falta,
él me puede dar, nos colaboramos y ahí vamos hacia el suma qamaña, el ‘vivir bien’, nadie está para
perjudicar a nadie” (Tona-Murisaka & Vega 2014).
10 A mediação política com a correlação de forças real da sociedade boliviana era tal que o Katarismo se
abria para a possibilidade de alianças até com a Igreja Católica e evangélicas progressistas, por mais
que o cristianismo tenha cumprido papel central na exploração colonial: “Los mineros, los fabriles,
los obreros de la construcción, del transporte, las clases medias empobrecidas... son hermanos
nuestros, víctimas bajo otras formas, de la misma explotación, descendientes de la misma raza y
solidarios en los mismos ideales de lucha y liberación. Solamente unidos lograremos la grandeza de
nuestra patria. Pedimos igualmente a la Iglesia Católica (la Iglesia de la gran mayoría campesina)
igualmente a otras Iglesias Evangélicas que nos colaboren en este gran ideal de liberación de nuestro
pueblo aymara y quechua. Queremos vivir íntegramente nuestros valores sin despreciar en lo más
mínimo la riqueza cultural de otros pueblos” (Primer Manifiesto de Tiahuanaco, 1973).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

seu instrumento político-partidário e criam, então, o Instrumento por la Sobe-


ranía de los Pueblos - Movimiento al Socialismo (MAS-IPSP).
Ao avançar da fase de mobilização por demandas econômico-corporativas
e alcançar progressivamente a tessitura de plataformas ético-políticas, que
respondiam às contradições imediatas e mediatas do Estado boliviano (Gar-
cia-Linera 2010), tal fração dirigente reuniu ao seu redor as demais frações das
classes subalternas e compuseram um bloco social de longa duração, exercen-
do direção intelectual e moral sobre amplas massas. Tal bloco desenvolveu,
então um projeto político autônomo que seria materializado, em termos de
sociedade política, na Constituição Política de 2009 e na formação do Estado
Plurinacional da Bolívia.

3. A Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia ou


sobre o entrelaçamento de classe e etnia na lógica estatal
A depreciação das condições de reprodução social no interior da sociedade
boliviana e o encontro de suas classes subalternas levaram o país a viver o que
se denominou de “Quarta Crise Estatal”1: as sucessivas sublevações populares
conhecidas como “Guerra da Água”, “Guerra do Gás”, “O Impuestazo” e o “Le-
vantamento Aimará” provocaram o derretimento da ordem neoliberal.
As ideias-força que regiam a sociedade – livre mercado, privatizações e
Estado Mínimo –, e a lógica estatal fundada na Democracia Pactada2 foram

1 García-Linera (2010) e Moldiz (2009) trabalham a categoria "crise estatal" como o momento em
que a lógica estatal e as idéias-força que guiaram a sociedade por décadas entram em uma crise
insuperável e terminam substituídas por um novo período histórico de reordenamento estatal e
nova configuração de classes. A primeira crise estatal ocorreu com a derrota da Bolívia frente ao
Chile na Guerra do Pacífico e a consequente explosão da guerra civil. A segunda crise estatal se
situa na perda da Guerra do Chaco frente ao Paraguai e o esgotamento do liberalismo, levando
à eclosão da Revolução Nacional do 1952. Depois de décadas liderando a sociedade boliviana,
o nacionalismo revolucionário esgotou-se nos anos 80 e o país, ante sua terceira crise estatal,
entrou no neoliberalismo.
2 Se constituía em uma separação ilusória dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (García-
Linera 2010), pois, enquanto estava em vigor, caso nenhum dos candidatos à presidência atingisse
maioria absoluta nas urnas no 1° turno, a eleição do chefe do executivo ocorria por deliberação do
legislativo, que escolhia um dentre os mais votados. Ao Congresso cabia, também, as indicações
para as cortes superiores do Poder Judiciário, que se davam de acordo com a proporção de cada
agremiação política. Dessa maneira, durante todo o interregno entre a terceira e quarta crise estatais,
o chefe máximo do Executivo foi escolhido de maneira indireta.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

suplantadas a partir de uma alteração na correlação de forças no seio da socie-


dade civil boliviana, a partir da ascensão do bloco camponês-indígena-popu-
lar frente ao refluxo do antigo bloco dirigente imperialista-burguês-colonial.
Com a eleição de Evo Morales e García Linera, o país experimentou transfor-
mações estruturais a partir de 2006, nos campos da economia, lógica estatal
e ideias-força que orientam a sociedade.
A crise de Estado materializada em 2003 produziu a quebra irremediável do
consenso social ao redor dos pressupostos neoliberais, emergindo os pleitos da
nacionalização dos hidrocarbonetos e da convocação de uma assembleia consti-
tuinte como principais mobilizadores das camadas populares. O novo governo,
eleito a partir dessas premissas, iniciou um processo progressivo de ressignifica-
ção da matriz econômica boliviana, desde a nacionalização dos hidrocarbone-
tos, de setores estratégicos privatizados na década anterior, criação de estatais,
bem como atribuiu papel dirigente ao Estado na economia.
Ao nacionalizar os hidrocarbonetos, passou ao controle do Estado o cor-
respondente a cerca de 50% das exportações bolivianas (GARCÍA-LINE-
RA, 2013). Dessa maneira, os ingressos saltaram de um bilhão e seiscen-
tos milhões de dólares nos cinco anos anteriores à nacionalização, a nove
bilhões e meio nos cinco anos posteriores (GARCÍA-LINERA, 2013). Se
tal resultado reflete o cenário internacional da década passada, favorável
à venda de commodities, figura como indiscutível o papel da nacionalização
para a recomposição do orçamento do país.
Paralelamente às mudanças na ordem econômica, o bloco ascendente teceu
novas ideias-força, com base nos pilares da plurinacionalidade e no horizonte do
socialismo comunitário. Aquelas afirmavam a autodeterminação dos povos e das
nações indígenas, bem como o controle da economia pelo Estado como via de re-
distribuição de excedentes e impulsão da economia comunitária (Valença, 2017).
Além disso, ainda em 2006, o governo obtém êxito na convocação de uma As-
sembleia Constituinte para refundar o Estado boliviano a partir destas diretrizes.
Após três anos de intensos debates e conflitos durante o processo consti-
tuinte, o governo Evo Morales-García Linera e as organizações sociais conquis-
tam a aprovação da Constituição Política do Estado de 2009, que proclama o
Estado Plurinacional da Bolívia3. Fruto do encontro das classes subalternas na

3 Para uma análise mais detalhada do processo constituinte, consultar Schavelzon (2012) e
Valença (2017).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

história, representa a síntese de um repertório de levantes indígenas, operários,


camponeses, ocorridos ao longo de cinco séculos de espoliação (Valença, 2018).
A CPE apontou para um Estado antiimperialista e plurinacional: as riquezas
naturais antes abocanhadas pelas multinacionais, se voltam para a redistribuição
de excedentes, com fins de propiciar um novo patamar de reprodução social das
classes trabalhadoras bolivianas. Por outro lado, o plurinacional foi afirmado não
no sentido de reconhecer que a sociedade é multicultural, como o fez a reforma
constitucional de 1993, mas de atribuir ao Estado o caráter de plurinacional (Gar-
cía-Linera 2010), o que significa, segundo García-Linera, "a indianização da forma
estatal” (VALENÇA, ILANA, 2017). Classe e etnia (ou o nacional-popular e o
indígena-comunitário) se entrelaçam no texto legal, como produto das lutas políti-
cas concretas que desaguaram nesta nova CPE. Da consolidação desta nova lógica
estatal, contudo, surgiram novas contradições, e sobre passas passo a me debruçar.

4. A Economía Plural e as contradições no interior do


Proceso de Cambio
A CPE, nos marcos das perspectivas anti-imperialistas e plurinacionais, pre-
via que a Bolívia desenvolvesse uma Economía Plural, a fim de eliminar a po-
breza e a exclusão social, no marco do Vivir Bien (Art. 313). Para o ex-Ministro
de Finanças e Economia, Luis Alberto Arce Catacora, o "Modelo Econômico
Social Comunitário Produtivo" ou a Economía Plural, prevista na CPE de 2009:

[…] es un modelo de transición hacia el socialismo, en el cual


gradualmente se irán resolviendo muchos problemas sociales y se
consolidará la base económica para una adecuada distribución de los
excedentes económicos. En ningún momento se pensó en construir el
socialismo de inmediato, el propio Carlos Marx – cuando habla de la
Comuna de Paris – y Lenin, dan elementos que explican por qué no se
puede realizar el tránsito mecánico del capitalismo al socialismo, hay un
periodo intermedio (Arce-Catacora 2014: 4).

A CPE atribui ao Estado a direção do desenvolvimento econômico e plani-


ficação da economia (Art. 311 e 316), determina que é prioridade do Estado a
industrialização dos recursos naturais para a superação da dependência quanto
a commodities e a constituição de uma economia de base produtiva (Art. 311,

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

318 e 355), prevê que os investimentos nacionais serão priorizados frente aos
capitais multinacionais (Art.320), prevê a redistribuição dos excedentes eco-
nômicos para políticas sociais (Art.306) e a proteção e promoção da economia
comunitária de povos e nações indígenas originário-camponesas (Art.306).
Ademais, com a nacionalização dos hidrocarbonetos – ocorrida em 2006 e
elevada à condição de cláusula pétrea na CPE de 2009 – o governo Evo-Linera foi
exitoso em reverter os excedentes produzidos em favor das políticas públicas esta-
tais. Dessa maneira, o Estado, outrora facilitador da acumulação por despossessão
(HARVEY, 2011), passa a operar para a redistribuição das riquezas socialmente
produzidas. O modelo adotado desde então é claramente de intervencionismo e
direção estatal da economia, voltado à redistribuição de excedentes a partir do
extrativismo e com fins de industrialização dos recursos naturais.
Entre as diversas políticas empreendidas, se ressalta o reajuste periódico do
salário mínimo, a determinação de um 14° salário – por parte dos entes públi-
cos e empresas privadas – em exercícios de crescimento do PIB superior a 5%,
políticas de redistribuição de renda – denominadas de bonos –, entre outras com
amparo constitucional. A partir de tais políticas sociais, segundo García-Linera:

Quanto à distribuição de riquezas, reduzimos a diferença entre os mais


ricos e mais pobres em 139 vezes: os 10% mais ricos tinham 139 vezes mais
riquezas que os 10% mais pobres dos bolivianos. Esta diferença está reduzida
a 40, de 139 a 40 [...]. O petróleo caiu de 100 a 29 dólares e a economia caiu
de 6 a 4-5, ou seja, não despencou. Isto devido à importância do mercado
interno e do fortalecimento das economias comunitárias, das economias
camponesas, das economias artesanais, do mercado interno. Conquistamos
um feito há alguns meses. Há 10 anos, a economia brasileira era 96 vezes
maior do que a boliviana; agora, é 45 vezes, ao redor disto. Segue sendo
enorme, é verdade! Mas, em uma década, reduzir de noventa e algo para 45,
é bastante. A economia chilena era 14 vezes maior do que a boliviana há dez
anos, hoje é sete vezes maior (Valença & Paiva 2017: 358).

O conjunto de medidas no campo da produção e redistribuição de exce-


dentes, tomadas a partir de 2006 e com pilares na nacionalização dos recursos
naturais, portanto, teve o condão de alterar as condições de reprodução social
das classes trabalhadoras bolivianas. Ademais, no campo se materializaram as
maiores transformações, especialmente no que se refere aos índices de pobre-
za, extrema pobreza e acesso à terra.

78
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O modelo econômico adotado permitiu uma ampliação de direitos, drástica


redução da desigualdade social, da pobreza e da extrema pobreza. Por outro lado,
assim como a reestruturação econômica da década de 1985, esta também impli-
ca novas reconfigurações de classe dentro do bloco popular. Se, anteriormente,
a mediação entre indivíduo e sociedade ocorria mediante formas comunitárias
auto-organizativas – Ayllus, Sindicatos, assembleias, etc. – e, consequentemente,
a forma de tessitura do sentido comum –, políticas públicas de transporte, comu-
nicação, transferência de renda, fazem com que concorram outras possibilidades
de mediação entre indivíduo e sociedade. Desta forma, a centralidade sindical e
comunitária para a formação da visão de mundo das pessoas, tende a debilitar-se.
Por outro lado, a perda relativa de poder aquisitivo dos setores médios frente
às massas, de caráter objetivo em termos de inserção no mundo do trabalho,
implica no deslocamento e distanciamento dos mesmos em relação ao bloco
camponês-indígena-popular, ao qual haviam se aproximado no marco da cri-
se estatal derivada do período neoliberal. Assim, a dificuldade de inserção e
exercício de hegemonia pelo bloco camponês-indígena-popular nas capitais,
derivado da própria natureza do sujeito revolucionário – organizado ao redor
de entidades camponesas e indígenas, como a CSUTCB, as Bartolinas, o seu
partido político (MAS-IPSP) – que lideram o processo em curso, se agravou no
decorrer do Proceso de Cambio.
Outra contradição interna e a mais importante, desde 2010, é aquela que opõe
os horizontes nacional-popular e o indígena-comunitário. Como assinalado, desde
a fundação do MAS-IPSP que há uma prevalência do nacional-popular frente ao
indígena-comunitário. Esta distinção de horizontes existia nas classes subalternas
antes do ascenso de Evo-Linera, em 2006 e, desde ali, se transladou à esfera esta-
tal. E se refere a uma questão de cunho objetivo: a necessidade de alteração das
forças produtivas bolivianas, com fins de garantir outro patamar de condições de
reprodução social de suas classes trabalhadoras. Se determinado povo indígena se
opõe a determinada obra, logo após, há outro que a reivindica. Esta contradição
perdurará enquanto existir o Estado Plurinacional, e a única alternativa governa-
mental é assegurar o máximo de decisão democrática e dialogada, ao contrário do
que houve, por exemplo, no caso Tipnis.
De qualquer maneira, o socialismo comunitário só poderá ser possível mediante
o desenvolvimento de forças produtivas que possibilitem outro padrão de sociabi-
lidade, bem como que respeite os valores e interesses de nações e povos indígenas
minoritários. O governo Evo-Linera logrou uma exitosa política de nacionalizações

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

– mas não de expropriações – reposicionando o controle de excedentes no país.


Se, a partir disto, instaurou outro padrão de distribuição de excedentes, por outro
lado, não avançou de maneira contundente na ressignificação da organização do
processo de trabalho – ou seja, não promoveu a expansão do trabalho associado
frente à compra e venda da força de trabalho – o que fortalece, em médio prazo, a
perspectiva de indivíduo liberal (sem vida comunitária, associativa, e submetido ao
trabalho alienado), nem em termos de impulsão da economia comunal.
Se somente a partir da estatização das áreas estratégicas foi possível reestru-
turar a divisão dos excedentes bolivianos, persiste um longo e tortuoso caminho
para a desalienação dos produtores. Apesar da criação de “empresas sociais”
estatais para reforçar a produção e a economia comunitárias, o horizonte do
socialismo comunitário permanece vinculado a políticas redistributivas e não à
economia e desenvolvimento comunal.

Considerações finais
A América Latina passou por importantes processos políticos neste princípio
de século. À ideia-força do “fim da história” e a estabilidade que lhe acompanhou
ao longo da década de 1990 se seguiram várias sublevações populares e ascensos
de governos progressistas. Esta nova conjuntura tampouco chegou a se consoli-
dar; golpes de Estado e algumas derrotas eleitorais levaram o continente a um mo-
mento de indefinição política. Entre os países que vivenciaram esse conjunto de
transformações, avanços e refluxos das classes subalternas, Bolívia mostra surpre-
ende estabilidade. No presente trabalho, se aponta que tal conjuntura se mostrou
possível devido ao ascenso de um bloco hegemônico camponês-indígena-popular
e às alterações estruturais no âmbito econômico, de lógica estatal e de ideias-for-
ça. Tais transformações, sem embargo, ressignificaram a configuração de classes
no interior da sociedade boliviana e setores médios urbanos que anteriormente
se acercavam a tal bloco atualmente dele se afastam. Se desenvolvem, também,
novas formas de mediação do indivíduo com a sociedade, derivadas do acesso a
novas tecnologias, produtos e direitos, levando a uma perda da centralidade das
organizações sindicais e comunitárias, e a uma crescente individuação de pessoas
advindas das classes subalternas e outrora sob influência do bloco popular.
O debate marxiano, expresso na Crítica ao Programa de Gotha, no tocante ao
“teto” das transformações quando estas se realizam apenas na esfera da circulação,

80
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

deve ser, portanto, resgatado e aprofundado. A redistribuição de excedentes


aponta seus próprios limites e nos recorda que a auto-organização popular, o
desenvolvimento de formas de trabalho associado, de economia comunal e
superação do valor como mediador das relações sociais, são passos indispensáveis
para a materialização de um projeto político realmente emancipador.

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83
O Novo Constitucionalismo
Latino-Americano a as suas aproximações
com o Marxismo: análise da forma
comunal na Bolívia

Gladstone Leonel Júnior1

Introdução
Ao realizarmos uma regressão histórica podem ser verificadas as di-
versas mudanças políticas na América Latina, alternadas em momentos
de maior abertura democrática e outros períodos de regimes políticos au-
toritários. Geralmente essa instabilidade se faz presente nos períodos de
crise econômica e aprofundamento da exploração do modo de produção
hegemônico, o capitalismo.
No início dos anos 90, as forças políticas da esquerda latino-americana ago-
nizavam. Após a queda do muro de Berlim, tanto a social democracia européia,
quanto a pretensa social democracia na América Latina, aderiram ao programa
do neoliberalismo. Na geopolítica regional, somente Cuba permanecia isolada e
frágil com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Nesse contexto
histórico, o intelectual liberal Francis Fukuyama (1992) decreta, em um de seus
livros, o “fim da história” com o êxito do neoliberalismo.
Embora na década de 90, a América Latina tenha se tornado o laboratório
das medidas neoliberais, no início dos anos 2000, tornou-se o laboratório de
contestação ao neoliberalismo. Os exemplos históricos são variados e atingem

1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito


Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Direito pela Universidade de
Brasília, com estágio doutoral realizado na Facultat de Dret, Universitat de Valencia, Espanha. Pós-
Doutor em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília. Membro da Secretaria
Nacional do IPDMS (2018-2020) e integrante da RENAP.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

as suas diversas regiões. Basta rememorarmos o Caracaço na Venezuela ainda


em 1989; a atuação dos indígenas zapatistas mexicanos na região de Chiapas;
as lutas populares contra as tentativas de privatização da água e do gás na Bo-
lívia, as recorrentes ocupações de terra e a luta por reforma agrária realizada
pelo MST no Brasil, os bloqueios dos piqueteiros desempregados na Argentina,
dentre outros exemplos. Não por acaso, entre 2000 e 2005, caíram 06 presiden-
tes na zona andina (Peru, Equador e Bolívia). Já entre 2001 e 2002, em duas
semanas há uma sucessão de 03 presidentes na Argentina.
Essa reação da sociedade civil latino-americana às políticas neoliberais im-
pactaram diretamente a conformação dos Estados no período seguinte. A partir
de 1999 apareceram governos que eram fruto de toda essa resistência empre-
endida nas lutas populares. Em pouco mais de uma década, mais de 10 países
se inclinaram à esquerda ou centro-esquerda elegendo presidentes populares.

Dentre os exemplos mais emblemáticos podemos destacar: um militar


revolucionário na Venezuela (Hugo Chávez), um militante operário (Lula)
e uma lutadora contra a ditadura militar no Brasil (Dilma Rousseff), um
sindicalista cocalero na Bolívia (Evo Morales), um economista anti-
imperialista no Equador (Rafael Correa), uma lutadora contra ditadura
militar no Chile (Michelle Bachelet), um guerrilheiro tupamaro no
Uruguai (Pepe Mujica), um casal de peronistas de esquerda na Argentina
(Nestor e Cristina Kirchner), um padre da teologia da libertação no
Paraguai (Fernando Lugo). (LEONEL JÚNIOR, 2018, p. 189).

Em razão desse contexto gerado, é possível compreender os fundamentos emer-


gentes que deram suporte para processos constituintes populares, que ensejaram o
que ficou conhecido como o Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Esses
processos constituintes concebidos “desde abajo” abriram a possibilidade para re-
estruturação de alguns Estados e ampliação de medidas democráticas e populares,
as quais permitiram uma maior participação das pessoas e dos movimentos sociais
na vida política de países como Venezuela, Equador e Bolívia.
O caso da Bolívia chama a atenção na forma de organização social histó-
rica, presente ainda na atualidade, que possibilitou esse rearranjo institucional
plural com a promulgação da Constituição de 2009. Diante dessa realidade é
fundamental compreender como os diferentes grupos se organizam e produzem
suas existências naquele país, além de identificar quais foram os reais sujeitos
transformadores daquele processo histórico.

86
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

2. As formas de organização social para apreensão da


realidade: o caso boliviano
A experiência histórica dos países andinos se assemelham, não somente na
forma de dominação colonial, mas antes mesmo da chegada de qualquer euro-
peu a esse continente. As características históricas, geográficas, econômicas
e políticas guardavam relação, seja dos povos de Tiwanaku, da civilização de
Nazca ou do Império Inca (Tawantinsuyu).
Ao longo do tempo esses povos produziram a existência de suas civilização
prescindindo do capitalismo, que sequer existia. Assim, predominava um modo
de produção da vida comunitário, em boa parte dessas regiões. Após a invasão
europeia no século XVI, passou-se a uma coexistência dos modos de produção
funcionando então, dentro dos Estados-Nação, que passavam a ser divididos
nas disputas territoriais entre as classes dominantes.
Diante desse cenário, países como a Bolívia terão maneiras peculiares para
que se abarque seu panorama social. Um dos autores que oferecem reflexões
trazidas da própria realidade boliviana é o intelectual René Zavaleta Mercado.
Segundo o autor, duas características são basilares para se compreender o de-
senvolvimento dos meios de produção e da vida social na Bolívia:
1) a formação do povo boliviano, seguindo a noção do conceito de nacional-
-popular. De acordo com ele, esse conceito consideraria os números de mineiros e
indígenas em oposição à elite racial senhorial (ZAVALETA MERCADO, 2008).
2) ademais ele destaca um método preferencial de apreensão da realidade
social boliviana: a crise, conforme caracterizado em uma de suas obras clássicas,
“Las masas en noviembre” (ZAVALETA MERCADO, 2009).
A formação social "abigarrada", como diria Zavaleta Mercado, permitiu
a coexistência de poucos capitalistas junto às atividades pré-capitalistas. A
crise unifica o que é nacional na Bolívia: uma classe trabalhadora (pautada
no modo de produção capitalista) mais uma classe comunal (pautada em
uma forma comunitária). Esses são regimes civilizacionais diferentes, algo
que vai além da mera diferenciação do modo de produção, pois partem de
outra matriz cognitiva e de procedimentos de autoridade que regulam a vida
coletiva de maneira diversa.

La producción comunitaria o parcelaria en la Bolivia alta, por ejemplo, no


sólo es distinta en su premisa temporal agrícola a la oriental, por el número

87
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de cosechas y las consecuencias organizativas del trabajo del suelo, sino


también a la minera, que es ya la supeditación o subsunción formal en acción.
El único tiempo común a todas estas formas es la crisis general que las cubre,
o sea la política. La crisis, por tanto, no sólo revela lo que hay de nacional
en Bolivia, sino que es en sí misma un acontecimiento nacionalizador. Los
tiempos diversos se alteran con su irrupción. Tú perteneces a un modo de
producción y yo a otro, pero ni tú ni yo somos los mismos después de la
batalla de Nanawa; (…) (ZAVALETA MERCADO, 2009, p. 216).

Uma sociedade em que apenas aproximadamente ¼ da população participa di-


retamente do processo produtivo deve também olhar para outros setores possíveis,
capazes de compor uma vanguarda compartilhada responsável pelo processo de
transformação na Bolívia (GARCIA LINERA, 2008). A lógica capitalista na Bolí-
via não é impulsionada, em grande parte, por uma estrutura industrial. Ela não teve
sua economia plenamente desenvolvida pelo capitalismo. Logo, inúmeras estruturas
comunitárias permaneceram intactas. Diante desse contexto, torna-se fundamen-
tal estudar as formas sociais de organização dos setores que compõe a noção de Na-
cional-Popular capazes de aprofundarem os processos de transformação na Bolívia.
Um tipo clássico de organização proletária no mundo, e não seria diferente
na América Latina, é a forma sindical. Diante dela há uma submissão real de
trabalhadores ao capital, permitindo a organização do movimento sindical. Esse
foi o principal instrumento de uma vanguarda política em 1952, período em
que ocorreu a Revolução Nacionalista na Bolívia. A Central Obrera Boliviana -
COB – consolidou-se esse processo como vigoroso instrumento de luta, embora
com o passar dos anos, já nos anos 80, as políticas neoliberais implementadas
pelo Estado minaram e enfraqueceram a luta sindical.
Os trabalhadores desempregados pelas políticas de arrocho estatal passa-
ram a realizar as grandes trocas informais de trabalho nas grandes cidades. No
entanto, eles carregaram consigo a forma organizacional e a disciplina política
sindical, que serviram em um momento posterior para fomentar as lutas popu-
lares no período de crise neoliberal.
Uma outra maneira de organização da sociedade boliviana, já citada, que
merece destaque é a forma comunidade. Ela se manifesta através de parte das
comunidades indígenas, ao se organizarem em ayllus2, especialmente aqueles

2 “Configura um modo de organização tradicional andina, proveniente dos antepassados incas,


caracterizado pela utilização de um determinado quinhão de terra, trabalhada, via de regra, de

88
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que vivem nas terras altas dos Andes. Nesses casos, as estruturas civilizacional,
cultural, política e tecnológica são diferentes daquelas praticadas, em geral, pe-
los camponeses e trabalhadores urbanos.
Os comuneros em geral, ao contrário dos camponeses, trabalham em pro-
priedades coletivas, estimula a democracia comunal em acordos, e não têm
como objetivo imediato a mercantilização de sua produção (GARCIA LINE-
RA, 2008, p. 309). O que se observa é que um parte considerável da produção
do ayllus serve para abastecer as comunidades.
No entanto, como já apontado por Zavaleta Mercado, por mais que atue em
um sistema próprio, com dependência diminuta em relação à reprodução do
capital, em tempos de crise geral todos são alcançados, seja na esfera política ou
econômica, revelando o aspecto nacional do Estado.

3. A forma comunidade como possibilidade de produção


da vida a partir das lições de Marx
A economia plenamente boliviana não foi desenvolvida pelo capitalismo
de maneira plena. Lá continuaram intactas diversas estruturas comunitárias
de funcionamento próprio, as quais se mantiveram em boa parte da existência
histórica. Ainda hoje, a maioria exerce alguma relação de troca e complemento
com a economia capitalista urbana, mas ainda possuem autonomia frente a esse
mercado capitalista pelo padrão e modo de vida que levam.

Essa relação do modo de produção dominante e a existência de outros


que se reproduzem em espaços como os exemplificados nos ayllus,
através da forma comunidade, serve para compreender, inclusive, as
formas de minar as estruturas do capitalismo periférico desenvolvido
em um Estado liberalmente montado (LEONEL JÚNIOR, 2018, p. 25).

Diante de diagnóstico, as leituras de Marx apontam caminhos que


extrapolam a linearidade e unicidade de via para avançar rumo às rupturas
fundamentais frente ao Estado burguês, a partir das realidades específicas
de cada lugar. Um dos momentos onde isso é evidenciado foi na Carta que
escreve a Vera Zassulitch (1881), em que aborda o potencial comunista das

forma coletiva em território comum, sendo alguns deles, vinculados ao mercado urbano” (LEONEL
JÚNIOR, 2018, p. 23).

89
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

comunas agrárias na Rússia, não justificando que passassem por um choque de


capitalismo para alcançar o modo de produção socialista.
Na obra que antecede O Capital (1983), conhecida como Grundrisse (2011),
Marx tratará das formas que antecederam a produção capitalista, o que pode
ser refletido aos olhos daqueles que buscam compreender os ayllus, por mais que
Marx não estudasse expressamente essa experiência, mas a vivência asiática.
Nessas situações, “a terra é o grande laboratório, o arsenal, que fornece tanto
o meio de trabalho quanto o material de trabalho, bem como a sede, a base da
comunidade” (MARX, 2011, p. 389). Marx caracteriza o momento da desvin-
culação do trabalhador da terra para gerar força de trabalho para o capitalismo.
Assim, ao compreender que parte do povo foi desvinculado da terra, ingres-
sando no mundo do trabalho alienado, e parte se manteve reproduzindo uma
forma de vida comunitária, admitimos a existência paralela de dois modos de
produção da vida na Bolívia.
Ao trazer esssa análise, não se busca um retorno agrário nostálgico, mas
uma possibilidade em um cenário de universalização do capitalismo e de mu-
danças desiguais internacionais, de rearticular o comunismo e a comunidade
(BOSTEELS, 2013, p. 101). Nos ayllus, as formas de associação e controle da
produção podem ser aprimoradas, visto que as condições atuais de tecnologia
e desenvolvimento são diferentes, das existentes na época de Marx. O que se
apresenta é uma possibilidade de pensar maneiras não simplesmente anteriores
ao capitalismo, mas também pós-capitalista. Em boa parte dos ayllus, conforme
já salientado, não há subsunção do trabalho ao capital, mas desenvolvimento de
valor de uso a partir das necessidades da comunidade.
O que se quer nesse trabalho, não é buscar uma visão idealizada e romanti-
zada desses processos concretos, que possuem uma autonomia relativa em rela-
ção ao mercado e a forma de produzir sua existência. Contudo é fundamental
apontar a existência de alternativas possíveis, como destacado por Garcia Line-
ra (2009), que ocorrem paralelamente à expansão do capital, sem apresentarem
sinais de desaparecimento.

Considerações Finais
Apesar de hegemônico, o capitalismo é algo em constante movimento que se
impõe, mas também sofre resistência e se adapta ao avanço das lutas, podendo

90
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

em algum momento histórico ser rompido. As possibilidades de ruptura que


partiram do Novo Constitucionalismo Latino-Americano abrem brechas para
o aguçamento dessas contradições.
A conjuntura atual conservadora na América Latina traz um tom pessimis-
ta em nossas projeções. Devemos mais uma vez nos valer de Karl Marx (1984)
ao antever o processo histórico como movimento pendular, marcado por ondas,
sobretudo para a emergência revolucionária. Justamente por se tratar de algo
em movimento, não estanque, os períodos históricos tendem a alterar a conjun-
tura atual em algum momento, ainda não diagnosticado.
A tarefa do militante latino-americano é fazer a leitura das falhas passadas
para conseguir avançar rumo a um projeto transformador, quando o momento
político for mais favorável. O compromisso junto à classe trabalhadora deve ser
de jamais baixar a cabeça, pois temos pela frente um mundo a ser transformado!

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92
Capítulo II
Marx e o Direito
A crise do Capital e o papel
do Direito do Trabalho

Eduardo Albuquerque de Souza1

Introdução
Este artigo tem por objetivo analisar os principais aspectos da crise do capi-
tal na sociedade burguesa, e principalmente como esses se conformam na forma
jurídica desta sociedade. Como é notório, o poder político e o poder econômico
no capitalismo se separam, possibilitam com isso a expansão do capital pelo
planeta e universalizam a forma burguesa de produção e propriedade.
Mas esta forma, não se exime de contradições em sua base estrutural, o
capitalismo como forma de produção social se constitui e se desenvolve a partir
destas crises em sua base de formação, assim, o próprio direito não se isenta do
papel de legitimador e conformador dos descompassos desta sociedade.
No primeiro ponto do trabalho será analisada a questão do desmembra-
mento do poder político e do poder econômico, graças a este desmembramen-
to a questão da exploração do trabalho e do desenvolvimento da propriedade
burguesa se liberta do vínculo nefasto de uma opressão direta. O capitalismo
se desenvolve sem a figura subjetiva de poder centralizador como ocorria no
feudalismo, os imperativos desta sociedade assumem uma forma impessoal e
aparentemente neutra.
No segundo ponto do trabalho será apresentado as principais características
da crise da sociedade burguesa, não pretendendo logicamente esgotar o assunto,
mas sim expor de forma coerente os principais aspectos desta crise. O descom-
passo entre a produção e a circulação, entre a compra e a venda e a queda das
taxas de lucro dos capitalistas e como estas questões afetam o trabalhador.

1 Mestrando em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do


Extremo Sul Catarinense (UNESC). Integrante do Núcleo de Estudos em Direitos Humanos e
Cidadania (NUPEC/UNESC). [email protected]

95
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

No último ponto se insere uma reflexão muito importante para compreen-


der a dinâmica do direito, em especial do Direito do Trabalho e sua relação com
o próprio trabalho e com a política dentro desta sociedade. O papel importante
e necessário de naturalização da forma de produção social capitalista e a pro-
teção das conquistas burguesas relativas aos contratos e a propriedade privada
dos meios de produção.
Nesta pesquisa será utilizado o método dialético, envolvendo a técnica de pes-
quisa da documentação indireta, uma vez que o trabalho se baseia também em pes-
quisa bibliográfica e documental, e como método de procedimento, o monográfico.

2. O desmembramento do poder econômico


Uma das manifestações da crise do capitalismo se dá no campo político e
econômico, e no desdobramento deste último. Para compreender esta questão
do desdobramento do político e do econômico é necessário viajar para so-
ciedades pré-capitalistas. Nestas sociedades não capitalistas, como menciona
Ellen Wood, em O Império do Capital, “não costuma ser difícil identificar a
sede do poder”. Este último obviamente se encontrava sempre concentrado
politicamente, militarmente e economicamente. Sendo o poder político fir-
mado através de força militar. A constituição do econômico nestas sociedades
pré-capitalistas se enraizava em razão da coerção militar, ou seja, as classes
dominantes utilizavam da violência militar para se firmarem como classe po-
lítica e econômica. (2014, p. 21).
Um exemplo para ilustrar seria o modo de produção feudal. No feudalismo,
os trabalhadores, que eram camponeses em sua maioria, não eram expropriados
dos meios de produção para realizar o seu trabalho2. Neste caso, para que se ex-
traísse um trabalho excedente destes sujeitos, era necessário o uso ou a ameaça
de uma força militar. (WOOD, 2014, p. 21).
No capitalismo as coisas acontecem diferentemente. O capitalista não ne-
cessariamente precisa do controle direto de uma força militar para fazer valer
o seu poder político ou econômico. Os trabalhadores se encontram em grande
medida expropriados dos meios de produzir a sua subsistência, “porque estes
não têm propriedades, não têm acesso direto aos meios de produção e precisam

2 No feudalismo os camponeses detinham a posse destes meios, ou como proprietários ou como locatários.

96
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

vender a sua força de trabalho”, numa troca que envolve o salário que lhe per-
mite um trabalho para viver. (WOOD, 2014, p. 22).
Logicamente que o capital, e os capitalistas em geral, dependem em última
instância da coerção e da violência do Estado para que sejam mantidos “os seus
poderes econômicos e o domínio da propriedade”, para que seja conservada a
ordem social, bem como, “condições favoráveis à acumulação”. Mas mesmo este
poder de Estado age dentro de limites, conservando certos poderes aos capita-
listas e certos poderes ao Estado. É no capitalismo, portanto, que o “econômico”
se aparta do político. Nas palavras de Wood:

Existe mesmo um sentido em que somente o capitalismo tem uma esfera


“econômica”. Isso se dá porque o poder econômico é separado do poder
político ou da força militar e porque somente no capitalismo “o mercado”
tem uma força própria, que impõe a todos, capitalistas e trabalhadores,
certos requisitos sistêmicos impessoais de concorrência, acumulação e
maximização de lucros. (2014, p. 22).

O mercado não pertence a um capitalista dominante, este não é o senhor


de todos os trabalhadores, pelo contrário, o mercado, ou o econômico, se er-
gue como potência máxima de todos os sujeitos, sejam eles trabalhadores ou
operários. Como estes sujeitos “dependem do mercado para todas as suas ne-
cessidades, todos os atores econômicos são obrigados”, a preencher os requisitos
imperativos deste mercado antes de atender as suas necessidades e caprichos
pessoais. (WOOD, 2014, p. 22).
É justamente este desmembramento que permite ao “econômico” a ex-
ploração em condições capitalistas de produção. Assim, a “crescente mer-
cantilização da vida, a regulação das relações sociais pelas ‘leis’ impessoais
do mercado criaram uma economia formalmente separada da esfera políti-
ca”, como destaca Wood:

[...] como a vida social é cada vez mais regrada pelas leis da economia,
seus requisitos modelam todos os aspectos da vida, não somente a
produção e a circulação de bens e serviços, mas também a distribuição
de recursos, a disposição do trabalho e a própria organização do
tempo. (2014, p. 22).

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Ou seja, a expansão do capital incute esta sujeição das relações humanas, em


uma dependência direta das diretrizes do mercado. Estas tendem a modelar, como
enfatiza Wood, as conexões e relações humanas a maneira de ser do capital.
Outra característica levantada por Wood é a capacidade do capital como re-
lação social, se estender “muito além dos limites da dominação política direta”.
Dito de outro modo: o capitalismo se diferencia de outras formações sociais,
justamente por sua capacidade “de estender seu domínio por meios puramente
econômicos.” O exemplo levantado por Wood, se configura na relação de de-
pendência entre Estados imperiais e subordinados, no qual o modelo para ilus-
trar a questão se mostra na situação das dívidas externas das nações do Terceiro
Mundo. (2014, p. 23). No capitalismo, portanto, a coerção não necessariamente
precisa de meios militares ou extraeconômicos, mas esta coerção pode se confi-
gurar em meios puramente econômicos.
Uma das manifestações da crise é este desmembramento do político e do eco-
nômico em esferas apartadas. Esta cisão atinge também o sujeito, que será con-
siderado também sujeito público, ou cidadão, ou sujeito privado, pessoa egoísta.
O capitalismo parte destes pressupostos para firmar a sua ordem social. As
questões da esfera econômica tornam-se partes da natureza humana, imbuídas
na satisfação egoísta do sujeito que persegue as suas conquistas pessoais no
mercado. Este último se eleva como categoria suprema da realidade burguesa,
as questões do trabalho, do espaço público, dos bens comuns, do direito, da
política, se conformam as diretrizes do modo de produção burguês.
O lado político da vida burguesa se restringe aparentemente numa autoafir-
mação do próprio modo de produção de vida material burguês.
Este primeiro aspecto da crise, o desmembramento do econômico e do polí-
tico em esferas apartadas, revela a fragmentação do poder econômico e a pos-
sibilidade da exploração capitalista ser garantida pelo político, em especial pelo
poder político do Estado. É justamente este, no início da aventura capitalista
que garantiu a ordem que interessava a burguesia industrial nascente.
Obviamente que este Estado se modifica, precisa se atualizar e reconfigurar
novas formas e novos métodos de sociabilidade. As lutas operárias, as guerras, e
as contradições internas deste modo de produção, oscilaram formas de Estado
mais ou menos progressistas, mas basicamente, a ordem econômica que interes-
sa o capital sempre esteve protegida.
Como o processo de configuração do capital aparentemente atinge sua ple-
nitude no capitalismo contemporâneo, o próximo ponto deste artigo irá tratar

98
das questões críticas de ordem interna deste modo de produção que já se firmou
universalmente. A produção burguesa será vista de perto, em suas manifesta-
ções gerais, permitindo compreender a essência da contradição deste modo de
produção que atualmente se limita a suspender os efeitos da crise do capital pela
especulação dos capitais financeiros.

3. A crise do econômico
Em 1848, Marx e Engels escrevem um pequeno livro, panfletário, polêmico,
que tinha a intenção de fazer valer um manifesto político dos comunistas con-
tra a ordem burguesa de sua época3. A simplicidade dos argumentos contidos
no Manifesto não retira o valor histórico e a importância e relevância política
do documento. No que concerne ao problema levantado por este ponto, Marx
e Engels apresentam no exemplo do sistema feudal, os pressupostos da crise do
capitalismo de sua época.
Fato já consumado e verificado pela história as incongruências das forças de
produção e os seus limites internos, tendem a explodir suas contradições eco-
nômicas e sociais, provocando convulsões políticas e levantes populares contra
os obstáculos do crescimento destas forças de produção. O sistema feudal é
característico para ilustrar o ponto do Manifesto.

Em certo estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de


troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e intercambiava, a
organização feudal da agricultura e da manufatura, em suma, as condições
da propriedade feudal deixaram de corresponder às forças produtivas
já desenvolvidas. Entravavam a produção em vez de a incrementarem.
Transformaram-se em meros grilhões. Era preciso arrebentá-los, e assim
sucedeu. Foram substituídas pela livre concorrência, com a organização
social e política pertinente, com a supremacia econômica e política da
classe burguesa. (MARX e ENGELS, 2001, p. 32).

A crise se manifestou pela insuficiência do sistema feudal, em particular,


pelo modo de propriedade feudal e pela limitação no trânsito livre de merca-
dorias. Sendo assim, a substância da crise era o modo de organização da terra,
que impedia a liberdade mercantil, e a ampliação dos mercados. Ocorre aqui

3 Trata-se do Manifesto do Partido Comunista de 1848, escrito por Marx e Engels.


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uma contradição entre os propósitos econômicos e sociais do sistema feudal e


as forças de produção burguesas já bem desenvolvidas.
Mas o fenômeno não é exclusivo das entranhas do modo de produção feudal.
Como muito se sabe, a crise é também vivenciada pelo próprio capitalismo. De
forma análoga este último vive constantemente experimentando crises e novas
crises econômicas em sua sociabilidade. Este sistema econômico político apa-
rentemente se nutre de suas próprias contradições.
As crises comerciais que se manifestam no descompasso entre a compra e a
venda de mercadorias, também entram em contradição com as forças produtivas
existentes, provocando novas crises e novos métodos de superação das mesmas.
“Nas crises eclode uma epidemia social que teria parecido um contra-senso a todas
épocas anteriores: a epidemia da superprodução”. (MARX e ENGELS, 2001, p. 33)
O excesso de produção de mercadorias faz com que estas explodam no merca-
do. A sociedade já não comporta mais em si mesma este acúmulo de mercadorias
que se nutre da exploração do trabalho. A produção não se orienta pela demanda
e a crise se manifesta no não consumo destas coisas criadas pelos homens.

A sociedade vê-se bruscamente de volta a um estado de barbárie


momentânea: dir-se-ia que a fome ou uma guerra geral de aniquilamento
tolheram-lhe todos os meios de subsistência: a indústria e o comércio
parecem aniquilados. (MARX e ENGELS, 2001, p. 33-34).

E qual a razão deste aniquilamento? Marx e Engels apontam no “excesso


de civilização”, isto é, no excesso de todas as coisas produzidas pela indústria.
Toda a força de produção que alimenta a sociedade já não sustenta a própria
sociedade, suas relações entre classes, isto é, a relação de exploração entre capi-
tal e trabalho, não comporta aquela própria sociedade. “As forças produtivas de
que dispõe já não servem para promover a civilização burguesa e as relações de
propriedade burguesas; ao contrário, tornaram-se poderosas demais para essas
relações, e são por elas entravadas”. (2001, p. 34)
A superação das crises inevitavelmente se resolve de forma violenta. Marx e
Engels afirmam que: “De uma parte, pelo aniquilamento forçado de uma enor-
me contingente de forças produtivas; de outra, pela conquista de novos merca-
dos e pela exploração mais acirrada dos antigos”. A violência se caracteriza pela
extensão das crises e pela redução das formas de combatê-las. (2001, p. 34).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

É como se a identidade sempre habitual entre produção e circulação, compra


e venda de mercadorias se tornasse estranha. O vínculo se quebra e a unificação
se torna tarefa difícil e penosa. Cada parte do ciclo se autonomiza, o dinheiro
torna-se também autônomo e as partes que outrora funcionavam tão bem não
conseguem falar o mesmo idioma. É como diz Daniel Bensaid: a crise se instala,
“então, a discórdia entre produção e circulação”, estas partes não funcionam
mais em uníssono, parece não acordarem mais em sua identidade. “A crise é a
expressão desse mal-estar identitário”. (2013, p. 121).
A cisão entre os componentes básicos da lógica do sistema provoca o rompi-
mento do hábito. A mercadoria não consegue perseguir o seu ciclo habitual4. A
razão se justifica. Não existe um alinhamento entre a produção e a circulação
como pressupõe os liberais, o mercado não se regula automaticamente como
sustentam estes teóricos. Pelo contrário, tanto produção e circulação perseguem
o mesmo ciclo da mercadoria (D – P – M – D’), ou seja, cada ramo do sistema de
produção capitalista pode se separar e não necessariamente se alinha no tempo
e no espaço. (BENSAID, 2013, p. 124).
Para os liberais dos tempos do capitalismo clássico, ocorria uma espécie de
equilíbrio lógico entre a produção e a circulação, entre a compra e a venda
de mercadorias. Cada estágio do ciclo era assim misteriosamente equilibrado,
não havendo disjunções e desequilíbrios entre os estágios separados do modo
de produção burguês. Partia-se da ingênua constatação de que cada produtor
tornar-se-ia ou consumidor de seus próprios produtos, ou então comprador e
consumidor de produtos de outro produtor, desta forma, ocorreria um equi-
líbrio natural entre compra e venda, oferta e procura das mercadorias. Estas
constatações se encontram na maioria dos economistas do período clássico do
capitalismo liberal. (BENSAID, 2013, p. 124).
Mas as ingênuas constatações dos liberais não se confirmaram. A crise
aconteceu e o equilíbrio entre as esferas separadas de fato existiu por pouquíssi-
mo tempo. A crise é uma realidade inexorável do modo de produção capitalista.
Qual a razão? Bensaid oferece uma pista:

4 O ciclo habitual da mercadoria no capitalismo moderno é: dinheiro – meios de produção –


mercadoria – dinheiro’, ou D – P – M – D’. O ciclo, no capitalismo já minimamente desenvolvido,
pressupõe a existência do capital na forma dinheiro. O percurso inicia pelo dinheiro e deve terminar
em dinheiro. Tal fato demonstra que para existir em sua “normalidade”, este sistema precisa daquilo
que é vulgarmente denominado “economia real”.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A separação da venda e da compra diferencia a economia capitalista


de uma economia de troca, em que “ninguém pode vender sem ser
comprador” (e reciprocamente), em que a maior parte da produção é
diretamente dirigida para a satisfação de necessidades imediatas. “Na
produção mercantil”, por outro lado, “a produção imediata desaparece”.
Não se produz mais em função de necessidades, mas de lucro – que não
se importa com necessidades sociais, apenas com demanda solvente,
pois, “se não existe venda, é a crise”. (2013, p. 124-125).

No capitalismo, como se sabe, a compra e venda de mercadorias não


esta em sintonia e muito menos reciprocidade mútua. Se o interesse da
produção não é a satisfação coletiva, mas a necessidade solvente do sujei-
to egoísta, a produção não age de maneira alguma de modo a vincular o
interesse do comprador e do vendedor eternamente. Se o comprador não
possui dinheiro1, a mercadoria não vende, a crise se instala, e o vendedor
se esfacela em sofrimento e danação.
Na produção do capitalismo, para que o ciclo da mercadoria2 se realize ju-
bilosamente, é preciso que o mais-valor que se incorpora a mercadoria, seja
transformado novamente em dinheiro. Mas o dinheiro acumulado não neces-
sariamente precisa ser reinvestido na compra de novas mercadorias, é aqui que
o ciclo se quebra, ou como diz Bensaid, que a “metamorfose” da mercadoria se
interrompe. A crise, deste modo se manifesta de duas formas:

Em sua primeira forma, “a crise é a metamorfose da própria mercadoria,


a dissociação entre compra e venda”; em sua segunda forma, é função
do dinheiro como meio de pagamento autonomizado, “onde o dinheiro
atua em duas fases distintas e separadas no tempo, em duas funções
distintas”, de simples equivalente geral entre mercadorias e de capital
acumulado. (BENSAID, 2013, p. 125).

Tal autonomia do dinheiro se estende na separação entre o lucro do negócio


e os juros, estes últimos parecem surgir não da relação concreta do trabalho
contido da empresa, isto é, fruto da força de trabalho dos operários, mas sim,

1 O dinheiro é o facilitador do sujeito. Para que este último possa ser, é preciso portar consigo o
atestado de validade social, isto é, o dinheiro, só assim o indivíduo poderá desfrutar de todas as
maravilhas do convívio social burguês.
2 (D – P – M – D’).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

do esforço do capitalista. É conhecido vulgarmente pela interpretação de que


dinheiro faz dinheiro, suprimindo-se a base material e concreta de sua realiza-
ção. (BENSAID, 2013). Em outros termos: para que este dinheiro se acumule
em capital, é preciso existir uma relação econômica que se sustenta em uma
forma concreta, a economia burguesa não pode sobreviver em um mundo que
se generaliza condições de especulação financeira sem uma base concreta de
trabalho, sejam eles trabalhos materiais ou imateriais.
O elo que permitia a troca no mercado de um valor de uso por outro
valor de uso foi desconectado pela autonomia do dinheiro como equivalente
geral destas mercadorias. Como aponta Bensaid, “não se trata mais da troca
direta de um valor de uso por outro valor de uso, mas de uma mercadoria
por dinheiro”. (2013, p. 127).
Em síntese a crise na análise marxista se apresenta da seguinte forma: no
início ocorre uma “descontinuidade” entre a produção e a circulação destas
mercadorias, estas empresas submetidas a padrões elevados de lucro e competi-
tividade produzem insaciavelmente para o mercado, a produção almeja inchar
o mercado com seus produtos, mas se o processo de circulação não for bem su-
cedido, as mercadorias entulham nas prateleiras, assim, aqueles que produzem
não conseguem liberar novas mercadorias já que a circulação não se livra das
anteriores. (BENSAID, 2013, p. 128).
Se o cenário anterior se tornar excessivo qual o efeito? Sobreprodução
de mercadorias e sobreacumulação de capital. E o que é sobreprodução? É
quando uma mercadoria não consegue ser comprada. E o que é sobreacumu-
lação de capital? É quando o capital se acumula nas mãos de um capitalista
sem investimento produtivo qualquer. Como o capitalismo consegue adiar
a crise e suspender temporariamente os seus efeitos? Através de capitais
financeiros, ou seja, através do capital acumulado em suas diversas manifes-
tações, seja ele: industrial, comercial, bancário, etc., na forma de emprésti-
mos, desta forma, se consegue:

[...] mascarar a desproporção crescente entre a reprodução ampliada e


a demanda final restante. A eclosão da crise pode, assim, ser adiada
principalmente graças a intervenção dos capitalistas financeiros,
que transformam seu lucro em capital-dinheiro para empréstimo.
(BENSAID, 2013, p. 129).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Na sequência da exposição ocorre uma terceira manifestação da crise. A


chamada “lei da queda tendencial da taxa de lucro”. Esta “lei” acontece em
termos contraditórios, pois não são os fatos puramente econômicos que influen-
ciam sobre esta tendência da queda da taxa de lucro. O que isto significa? Que
fatores sociais, lutas de trabalhadores, em suma barreiras humanas impedem a
acumulação serena do capital. Ela “lei”, aponta Bensaid:

[...] só parece se impor por suas próprias negações: aumento da taxa de


exploração (relação entre o tempo de trabalho fornecido gratuitamente
ao empregador e o tempo de trabalho pago), que visa a recuperar o lucro;
predação imperialista, que permite reduzir a “composição orgânica
do capital” (relação entre a parte do capital destinada à compra de
instalações, maquinário etc. e aquela reservada ao pagamento de
salários), por meio da exploração de uma força de trabalho barata
e da redução do custo das matérias-primas; aceleração da rotação do
capital, com o auxílio da publicidade, do crédito e do gerenciamento de
estoques para compensar a diminuição da taxa de lucro pelo aumento de
sua massa; intervenção pública do Estado, mediante despesas públicas,
isenções fiscais e, sobretudo, despesas em armamento. (2013, p. 131).

A tendência da redução da taxa de lucro se consuma num cenário em que


o trabalho morto (meios de produção) se acumula “em detrimento do trabalho
vivo”, desta forma, mais a taxa de lucro tende a baixar. Para compensar as perdas
os capitalistas reagem no intuito de quebrar a tendência de queda. Como se dá
esta reação? De diversas formas, e todas dependem de “múltiplas variáveis, de
lutas incertas, de relações de forças sociais e políticas”. (BENSAID, 2013, p. 132).
De maneira geral os capitalistas tendem a aumentar o grau de exploração
da força de trabalho, seja estendendo a jornada, seja pelo aumento da produti-
vidade, seja pela diminuição salarial abaixo das taxas de inflação e ainda pela
retirada de direitos sociais. (BENSAID, 2013, p. 132). Como as taxas de lucro
se comprimem, diminuem, os capitalistas encontram nos trabalhadores a forma
de recuperar as perdas de lucratividade de seus empreendimentos.
A alta concorrência entre mercados empurra as empresas para uma aventu-
ra que impõe altos níveis de produtividade e velocidade na produção de merca-
dorias e serviços, é preciso sempre mais e sempre o melhor. O resultado desta
nova cosmovisão é uma contínua reorganização do espaço de trabalho e de uma
eterna renovação dos tempos e da velocidade do próprio trabalho, que ao final

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

tende a aumentar a intensidade do trabalho e os níveis de exploração, tudo com


o intuito de compensar as quedas das taxas de lucros do mercado.
Estes acontecimentos se iniciam na Revolução Industrial do século XVIII e
XIX e vão sistematicamente ocorrendo ao longo da história do capitalismo. O
taylorismo, o fordismo e o toyotismo são formas de incrementar as perdas do
lucro impulsionando a intensidade do trabalho e aumentando o grau de explo-
ração dos trabalhadores ao longo do tempo da história do capitalismo. Cada
etapa histórica de transição sempre aumentou a intensificação através do uso de
máquinas e tecnologia ou então de uma reorganização dos espaços de trabalho,
seja diminuindo o número de trabalhadores, aumentando assim a carga de fun-
ções de cada trabalhador, seja simplesmente aumentando o nível de cobrança e
resultados destes mesmos funcionários. (DAL ROSSO, 2008).
Neste cenário já considerado plenamente desenvolvido, as lutas entre a classe
capitalista e a classe trabalhadora se resolvem, ou encontram seu suposto equilí-
brio, na esfera do Direito. É no Direito, em especial, no Direito do Trabalho que
os conflitos do trabalho serão resolvidos, ou seja, não existe mais razão de uma
intervenção violenta ou do uso da força para fazer valer uma vontade. As lutas
de classe se desviam para as lutas de direitos, nesse caso, direitos opostos. Mas
o direito do trabalho pode resolver os impasses e os conflitos sociais provocados
por uma sociedade que se sustenta numa crise em seus fundamentos?

4. O papel do Direito do Trabalho e a política


É no direito que a forma burguesa de propriedade se legitima e se fixa com
maestria. É nestes discursos jurídicos e nas abstrações filosóficas a respeito da
liberdade e da igualdade humana que toda a pompa e todo o requinte do ideário
burguês solidifica sua institucionalidade. O desmembramento do poder eco-
nômico e do poder político possibilita que a esfera estatal se erga socialmente,
se eleve como entidade máxima de controle dos excessos e dos descompassos
contraditórios entre os embates dos sujeitos opostos. O Estado, a política e o
Direito consumam a aliança contraditória do capital e do trabalho num esforço
desmedido para o progresso do capitalismo enquanto forma social.
No primeiro estágio o econômico se separa do político, firma a base de sus-
tentação da exploração do trabalho e da apropriação capitalista dos frutos deste
trabalho. Num segundo momento o direito trata de legitimar a propriedade

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burguesa e o controle da produção pela burguesia. Num terceiro estágio de de-


senvolvimento da forma social burguesa, é preciso compactuar com a classe
explorada garantindo certos direitos sociais. Pois não é possível que os novos
servos da modernidade sejam somente escravos sem garantias e direitos.
A ambiguidade das conquistas dos trabalhadores repousa em uma base tre-
mula. A exploração do trabalhador não pode eliminá-lo por completo, é preciso
reconhecer certos aspectos de dignidade, pois esse é também um potencial con-
sumidor dos bens que fabrica, assim, a banalidade liberal jurídica precisa encon-
trar um apelo humanístico para integrar a massa expropriada dentro de uma
ilusão de pertencimento e relevância social. Como bem apresenta Guy Debord:

[...] Subitamente levado do absoluto desprezo com que é tratado em


todas as formas de organização e controle da produção, ele continua
a existir fora dessa produção, aparentemente tratado como adulto,
com uma amabilidade forçada, sob o disfarce de consumidor. Então o
humanismo da mercadoria se encarrega dos “lazeres e da humanidade”
do trabalhador, simplesmente porque agora a economia política pode e
deve dominar essas esferas como economia política. (2005, p. 31).

Bernard Edelman, em A legalização da classe operária, reconhece um du-


plo aspecto da ambiguidade da conquista dos movimentos operários. O pri-
meiro aspecto seria que as supostas vitórias “foram necessárias para manter
em “boa saúde” a classe operária”, sendo o capitalismo inglês emblemático
no sentido de que o Estado sempre se manteve presente na intenção de
conter a fome insaciável dos capitalistas ingleses; o outro, repousa na cínica
integração do trabalhador no quadro social, uma integração que se dá na
aceitação de sua subordinação e no rebaixamento como mera mercadoria a
serviço do capital. (2016, p. 18).
Outro aspecto da integração é a resignação e o condicionamento das lutas
e conflitos de classe para o âmbito jurídico. Uma luta que nos primórdios do
movimento operário era radical e feroz foi lentamente sendo apropriada e re-
gulada pelos imperativos jurídicos burgueses, que logo trataram de confinar o
conflito de classe dentro da argumentação ponderada e moderada da política e
do direito burguês. (EDELMAN, 2016).
Se o conflito foi apropriado de certa forma pelo direito, os caminhos a se-
rem conduzidos pelas lutas operárias serão sempre limitados e cercados pelo
direito burguês. A história do movimento operário é assim então, reduzida a

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

história jurídica que se pauta em conquistas através do direito. Esta redução da


história da luta operária para uma luta pelo direito caracteriza por um ajuste
“permanente da relação capital/trabalho na própria estrutura da lei, ou melhor,
que considera a relação capital/trabalho uma relação jurídica, uma relação entre
“sujeitos””. (EDELMAN, 2016, p. 19). A noção de sujeito logo importa uma
relação contratual. Como se dá esta relação?
No contrato de trabalho, aponta Edelman, “o trabalhador vende “traba-
lho”, não força de trabalho, mas trabalho, isto é, a forma-mercadoria da força
de trabalho. Em contrapartida, ele recebe um salário, isto é, o preço de seu
trabalho.” (2016, p. 30). Mas qual a diferença entre trabalho e força de traba-
lho? Trabalho é o conceito genérico, envolve as várias espécies de trabalho,
já a força de trabalho se refere ao grau de intensidade do trabalhador numa
produção qualquer. A força de trabalho pode aumentar os valores criados po-
tencializando o lucro do capitalista, logo a força é uma medida que aumenta
o valor da mercadoria produzida.
Quando o direito regula o contrato de trabalho, a relação entre o trabalhador
e o capitalista se expressa numa aparência de troca entre o trabalho e o salário,
sendo este último expressão do equivalente desta relação de contrato. Mas o
salário não corresponde equitativamente ao valor criado pela força de trabalho
dos trabalhadores. O capitalismo se caracteriza pela troca de equivalentes, isto
é, toda mercadoria possui um valor de troca equivalente. Por exemplo: troca-
-se dois reais, por um quilo de arroz. Dois reais significam a equivalência por
um quilo de arroz. Temos uma relação de troca de equivalentes. O valor de um
quilo de arroz se iguala em dois reais. No contrato de trabalho, esta igualdade
de valor não se consuma. E é aqui que habita o mistério do capitalismo, sua ca-
pacidade de extrair mais-valor do trabalho e apropriar a riqueza produzida pelo
trabalhador. Conforme expõe Edelman:

A partir do momento que o contrato de trabalho é um contrato de venda


do trabalho, cuja contraprestação é o salário; a partir do momento
que “a relação monetária oculta o trabalho gratuito do assalariado”,
a relação real entre capital e trabalho torna-se “invisível”. É na forma
salário – que o contrato de trabalho torna tecnicamente eficaz – que
repousam todas as noções jurídicas, tanto do trabalhador como do
capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista,
todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices apologéticas da
economia vulgar. (2016, p. 30).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O trabalho é a única mercadoria em que o valor pago não corresponde ao


valor criado pela força do trabalhador. A capacidade que a força de trabalho
tem de criar valor e aumentar o valor da mercadoria não é paga para o assala-
riado. O Direito jamais regula a extorsão deste trabalho não pago.
O direito ainda regula outra relação muito cara e relevante para a produção bur-
guesa. A questão da propriedade, do direito de propriedade. Toda a interpretação
jurídica da propriedade foi construída baseada na definição burguesa de proprieda-
de privada. A propriedade era e é tratada como uma essência humana, como uma
qualidade natural do ser humano, como parte funcional do seu ser social.
Para firmar o conceito que se ajusta ao modo de produção a interpretação da
propriedade não pode sustentar uma noção de uso comum da propriedade, a pro-
priedade precisa se orientar ao uso privativo, individual do sujeito que a possui. A
instituição do capital como relação social, a definição do homem, “como sujeito in-
dividual e parte de um contrato, torna-se a medida das práticas sociais, a proprieda-
de se define em relação a ele como propriedade privada.” (BENSAID, 2017, p. 23).
Sujeito individual, propriedade individual, trabalho individual, a interpreta-
ção se estende a todas as relações humanas, partem sempre do princípio do su-
jeito isolado, dobrado e voltado a si mesmo, a satisfação do seu próprio interesse
privativo e alheio aos demais que o cercam. A propriedade burguesa se orienta
por este norte. A felicidade desta vida se resume na vida privada, egoísta, a
propriedade é privada, é de alguém, pertence ao proprietário privado. A coisa
pertence ao dono. Um atentado contra a propriedade privada é um atentado
contra o dono da coisa. A qualidade privativa de um bem qualquer se estende
ao dono, é um desdobrar do sujeito na coisa.
A lógica da propriedade privada abraça a produção das mercadorias. A pro-
priedade da empresa é sempre de alguém, é um título jurídico que confere ao
dono o poder de usufruir deste bem. Não se sabe a origem desta coisa, mas o
direito aponta no título a qualidade de dono da coisa, logo este título confere ao
dono a extensão deste poder. Como interpreta Edelman:

Para o direito, os meios de produção são objetos de propriedade, aparecem


como “coisas” autônomas, dotadas da estranha faculdade de “nascer” de
um título – o título de propriedade ou a “origem da propriedade” – e,
portanto, de aumentar por si mesmas. Com efeito, uma vez que o “título”
cria a coisa, e a substância da coisa é seu próprio sinal, seu crescimento é
apenas um desenvolvimento de sua própria substância, um sinal a mais.

108
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Toda a teologia e toda a contabilidade ensinam: só se pode criar a partir


de si mesmo. (2016, p. 30-31).

Se a coisa, ou a propriedade é do dono, que possui o seu título legal, todo


enriquecimento de valor que se agrega ao seu terreno pertence a esta coisa. “Da
mesma forma que a maçã pertence à macieira, o lucro pertence ao objeto de
propriedade”. (EDELMAN, 2016, p. 31).
E como o direito interpreta o trabalho alheio que aumenta o valor da coisa?
Pois logicamente existe a figura de um trabalhador que está envolvido nesta
produção de mercadorias, e é graças ao trabalho destes homens e mulheres que
a mercadoria aumenta o seu valor. Como o direito interpreta esta relação de um
trabalho vendido pelo operário e comprado pelo capitalista? Para o direito, o
trabalho humano valoriza este desenvolver da coisa:

[...] mas essa valorização pelo trabalho apresenta-se também como um


desenvolvimento da “coisa”; o trabalho anima a substância da coisa, ele
a faz trabalhar e, ao fim da operação, a coisa é maior que ela mesma;
o “título” aumentou. Esse é o “mistério” da fórmula D-D’ do capital
portador de juros. (EDELMAN, 2016, p. 31).

Se o capital compra a mercadoria força de trabalho, os frutos que esta mercadoria


produz são de propriedade do seu comprador, isto é, do capitalista. E é aqui que reina
o mistério da produção burguesa, que acumula riqueza e cultura para uma classe em
detrimento da outra. Nesta formulação jurídica da relação de trabalho que a extorsão
do trabalhador e a relação de equivalência da sociedade mercantil não tem sentido. O
trabalho humano é a única mercadoria que não se paga pelo seu valor de equiva-
lência, é a única mercadoria paga abaixo do seu valor real, do valor que ela pro-
duz, e é este o segredo da acumulação do grande capital na sociedade burguesa.
Se todos os trabalhadores recebessem pelo valor real de sua mercadoria,
não existiria acumulação de capital e sociedade capitalista. É justamente esta
extorsão regrada por fórmulas jurídicas e coerção estatal que possibilita o desen-
volvimento desta sociedade contraditória. Pode-se então entender que:

[...] o contrato de trabalho reproduz o direito de propriedade, e como o


direito de propriedade reproduz o contrato de trabalho. De um lado, o
contrato de trabalho aparece como uma técnica de venda do “trabalho”,
que só dá direito a um salário; de outro, o proprietário dos meios de

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

produção compra a força de trabalho sob a forma de salário e a incorpora


juridicamente à sua propriedade. (EDELMAN, 2016, p. 31).

Esta relação entre sujeitos, livres, iguais, detentores de suas propriedades revela
o sentido jurídico que porta cada sujeito. O trabalhador é dono de sua proprieda-
de, da sua capacidade de trabalhar, de sua força de trabalho, logo ele tem direito
a um salário, ele troca a sua força física, mental, psicológica, sua existência, por
um salário; o outro, o capitalista, o empresário, é o dono da propriedade dos meios
de produção. O primeiro aparece no mercado com seu entusiasmo, com uma
vontade imensa de produzir, de trabalhar; o outro aparece neste mesmo mercado
com uma vontade irresistível de que trabalhem para aumentar o valor de sua pro-
priedade. O direito afirma esta relação como uma relação de vontade, de sujeitos
livres, iguais, que se compatibilizam e se harmonizam no contrato.
O direito não tenta compreender a dinâmica real desta sociedade, o conteúdo
destas relações. Ele trata estes sujeitos como sujeitos de direito, portadores de suas
garantias e donos de suas propriedades. Não existe para o mundo jurídico uma
relação contraditória, um mundo que exista de fora do limite positivo da norma.
Fica extremamente fácil para compreender o desenrolar desta história. As
lutas operárias jamais puderam ultrapassar a questão fundamental e absoluta
do direito, que é a propriedade privada dos meios de produção. Este núcleo
enrijecido da política e do direito não se flexibiliza jamais, a propriedade é uma
garantia jurídica importante para a acumulação capitalista e para a extorsão do
valor da força de trabalho.
O poder do capital transparece nesta relação jurídica que envolve o traba-
lho. Edelman afirma que é um “poder desdobrado”, nas palavras do autor:
O que é, então, o poder jurídico do capital? Nada além disto: a dupla
forma do contrato de trabalho e do direito de propriedade. E, quando
digo “dupla forma”, devemos nos entender, porque seria mais exato dizer
“forma desdobrada” do capital. Do ponto de vista do operário, o capital
toma a forma do contrato de trabalho; do ponto de vista do patrão, ele
toma a forma do direito de propriedade. Mas é exatamente uma forma
desdobrada, pois sua unidade não é nada além do capital sob a forma do
direito de propriedade. (2016, p. 31).

Esta proteção jurídica proporcionada pelo direito possibilitou e possibilita


que a lógica de equivalência valha para tudo, menos para a mercadoria de pro-
priedade do trabalhador, isto é, sua força de trabalho.

110
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O direito ainda faz valer outra importante ferramenta ideológica, muito valida
para os fins práticos desta sociedade. Que ferramenta seria? A política, ou melhor,
a despolitização do espaço de trabalho. Se a política entra na fabrica é justamente
para dosar e regular os excessos. A luta política vai sendo sempre orientada pelo
direito. Se existe um conflito político entre classes, é no direito que se harmoniza
o conflito. Limite de jornada, regulamentação do salário mínimo, repouso sema-
nal, segurança e higiene no trabalho, etc., são formas de lutas políticas que se
resumem em reivindicações jurídicas. Mas qual a razão de ser assim?
Para a sociedade burguesa o trabalho é uma espécie de “mola que impulsiona
o desenvolvimento humano; é no trabalho que o homem se produz a si mesmo”.
Graças ao trabalho humano este último se desgrudou “um pouco da natureza e
pôde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais”.
Sem esta relação do trabalho, deste ato que toca e altera a composição dos bens
da natureza, “não existiria a relação sujeito-objeto”. (KONDER, 2007, p. 23).
Sendo o trabalho uma propriedade humana, ele pode ser privativo ao uso
individual de um sujeito. Se um sujeito trabalha solitariamente na criação de
uma mercadoria qualquer ele é o dono desta coisa. A lógica simbólica desta
abstração permanece no cotidiano empresarial contemporâneo. Se o trabalho
é uma essência humana natural, um ato de desenvolvimento humano, uma
propriedade humana, ele é parte de uma natureza egoísta do ser como tal, desta
forma pode ser apropriado individualmente pelo sujeito criador. No capitalismo
o sujeito criador é o dono da propriedade do trabalho, dos frutos do trabalho,
e não o dono da força de trabalho. A empresa como espaço de propriedade do
trabalho é parte de uma essência humana que desenvolve e persegue o progres-
so do gênero humano, logo este espaço não é inteiramente político, é neutro, é
parte de uma essência humana.
Pela leitura a questão da política envolvendo as relações de trabalho é
limitada, mas até onde toca o debate político no âmbito do trabalho? Somen-
te naquilo que envolve as questões profissionais do trabalho enquanto tal.
Edelman analisa a situação da greve, e vislumbra o limite imposto para os
grevistas. A greve, de fato atípico nos primórdios da industrialização teve que
ser institucionalizada pelo Estado e pelo direito burguês, uma greve contida,
contratualizada, e perfeitamente regulada pelos limites do direito. De um fato
não jurídico, a greve se transforma em direito de greve, sendo um direito a
greve possui limites, e se os grevistas ultrapassarem os limites do direito de

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

greve, esta se torna um abuso de direito, podendo ser punida pelo ordenamen-
to jurídico. (EDELMAN, 2016).
O direito do grevista se mantém dentro das cercanias seguras e reguladas
pela forma jurídica, se os grevistas derem um pé adiante do limite, ocorre o
abuso, se os grevistas contestarem a propriedade burguesa, ou o prossegui-
mento da produção de mercadorias, tudo é um atentado contra a nature-
za humana, uma natureza individual e voltada a satisfação das necessidades
individuais. (EDELMAN, 2016). Como já dito anteriormente: propriedade
individual, trabalho individual, sucesso individual, gozo e fruição da vida to-
mados a partir da perspectiva individual.
Ao regressar a pergunta do fim do segundo ponto a resposta torna-se dúbia.
Uma conquista ou um direito laboral em grande medida não se volta contra as
estruturas de normalidade de reprodução do capitalismo. A propriedade priva-
da e a reprodução capitalista seguem regradas e reguladas pela forma jurídica.
Os espaços de luta para promover novos e outros direitos, se resguardam no li-
mite muito bem regulado pelo capital. Inexiste supressão da contradição apenas
um alívio temporário ou então uma tensão contínua provocada pela crise. O
capitalismo, através tanto da política como do direito, apenas suspende os efei-
tos e empurra para os cantos os seus problemas e suas contradições insanáveis.

Conclusão
Como se viu nesse pequeno artigo o sistema capitalista se cerca de garantias
políticas e jurídicas para coibir qualquer avanço contrário que desequilibre seu
poder sobre os indivíduos. Em essência esse poder abarca a totalidade da vida
humana em todas as suas contradições. O desmembramento, ou a cisão, entre
o poder econômico e o político permite que a exploração em condições capita-
listas de produção siga um curso habitualmente normal ou natural. Se a esfera
econômica segue um curso normal essa esfera torna-se natural parte da essência
humana, já a política se encarregaria dos assuntos públicos, do bem comum. É
aquilo que Marx denominaria de cisão do homem em cidadão privado egoísta
e cidadão público ou político. Graças a essa cisão o capitalismo persiste, pois o
processo econômico segue um curso natural e independente da vontade cons-
ciente dos sujeitos da sociedade burguesa.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Se essa sociedade caminha solta e sem rédeas o descompasso entre o inte-


resse individual e o interesse coletivo também se acirra e ganha força. As con-
tradições e crises aumentam os descompassos e a sociedade se torna ainda mais
problemática. A crise e as contradições potencializam os problemas sociais. E
nesse mundo contraditório e repleto de problemas a sociedade burguesa elege o
Direito como sendo a esfera de resolução destes problemas. No que se refere as
relações de labor o Direito do Trabalho se resguarda de tal incumbência.
Como se viu por aqui o Direito do Trabalho em sua essência protege e con-
serva as relações de trabalho em condições burguesas de produção. Mantendo
e garantindo a propriedade privada burguesa bem como o trabalho em condi-
ções assalariadas. Não existe nenhuma transgressão aos limites postos pela lei
que regula o trabalho. A sociedade caminha em sua eterna sina de reproduzir
eternamente a propriedade como sendo privada e o trabalho como sendo as-
salariado. Dessa forma se chega a conclusão por este estudo preliminar que as
garantias e proteções dos trabalhadores dentro da lei apenas legitimam e res-
guardam o interesse na autoreprodução do capitalismo. Existe, portanto, uma
contradição. A lei do trabalho auxilia na vida do trabalhador no mesmo instan-
te que limita qualquer possibilidade de vida além das condições sociais postas.
Como superar tal dilema?

Referências bibliográficas

BENSAID. Daniel. Marx, manual de instruções. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 1. ed. Rio de Janeiro:


Contraponto, 2005.

EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. 1. ed. São Paulo:


Boitempo, 2016.

KONDER, Leandro. O que é dialética. 28. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007.

MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de


madeira. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista:


1848. Porto Alegre: L&PM, 2001.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
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ROSSO, Sadi Dal. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade


contemporânea. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.

WOOD, Ellen Meiksins. O império do capital. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

114
A efetivação da política de saúde
e as suas dificuldades atuais

Lucas Moreira Rosado1

Introdução
O presente estudo tem como interesse abordar a origem dos Direitos Hu-
manos, e seu reflexo na judicialização da saúde em nosso atual contexto social.
O papel atual do Direito surge no início do Estado burguês, numa ilusão falsa
criada pelas classes dominantes, de que tais escrituras são norteadoras de uma
sociedade justa. Porém, na realidade, escondem em si sua adequação à justifica-
ção e manutenção do capitalismo e do individualismo burguês.
Historicamente os Direitos Humanos surgem, em nossa sociedade moderna,
a partir de lutas entre as mais diversas camadas sociais. Num primeiro momen-
to, no início de seu surgimento, os Direitos pelo qual a sociedade lutava exigia
do Estado a manutenção da propriedade privada, principalmente como uma
forma de garantir a acumulação de capital pela burguesia, e posteriormente,
após a evolução das necessidades humanas, surgiram novos Direitos, estes agora
exigindo uma atitude positiva do Estado, no sentido de se necessitar tomar cer-
tas posturas para que os Direitos pudessem ser devidamente efetivados.
Deste modo, os direitos humanos surgem por meio de ações organizadas por
grupos oprimidos, os quais reivindicam as bases legais da dignidade humana
(SANTOS, 2013). De acordo com este raciocínio desenlaçado acerca dos Di-
reitos Humanos, vemos uma relação complexa não só pela sua origem ser fruto
de lutas e reivindicações das classes sociais, por meio dos movimentos sociais,
mas, também pela sua serventia ao Estado burguês, como instrumento eficaz
para trazer de volta a tranquilidade ao grupo dominante.

1 Formado em Direito, cursando Mestrado em Serviço Social e Direitos Sociais na Universidade do


Estado do Rio Grande do Norte - UERN.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

2. O Surgimento do Estado, e sua função à burguesia


O Estado no contexto da sociedade capitalista surge tendo como função
primária a de servir como comitê estruturante para alicerçar a dominação bur-
guesa, porém, à medida em que foram surgindo os movimentos da classe tra-
balhadora, os quais se mobilizavam para cobrar mudanças na atuação estatal,
fosse por meio de concessão de novos Direitos, fosse por meio da abstenção
em agir em determinado sentido, isto porque o Estado no sistema capitalista
necessita agir como um mediador, aplicando os “corretivos necessários” para a
manutenção da dominação (MESZÁROS, 2015).
Neste contexto, devido esse antagonismo base existente, em que, a vida
cotidiana no capitalismo é complexa, onde de um lado apenas na vida em so-
ciedade podemos pensar na acumulação de capital, e na exploração dos tra-
balhadores, e de outro, reside o fato de que é nessa vida em sociedade em que
fragmentam-se os indivíduos, vez que cada um quer enriquecer e explorar o
outro. (LESSA, 2011).
Por esse aspecto antagônico que nosso cotidiano é marcado por disputas
das mais diversas, onde impera o individualismo e a acumulação de capital,
desta forma, o Estado, para que a sociedade entre em consenso, ele passa a in-
corporar diversas funções, todas de forma organizada e aceitável à manuten-
ção da burguesia e do capital, de modo que passa a ter a necessidade de suprir
demandas sociais da classe trabalhadora, para que se possa dar continuidade
à dominação, e é dentro dessa lógica que surgem os Direitos Humanos, são
essas demandas exigidas pela classe trabalhadora, demandas estas que bus-
cam garantir à população um mínimo de dignidade na vida humana, são os
chamados Direitos Humanos.
Com base nessa linha de raciocínio, devemos nos ater ao fato de que a
convicção fática de que os seres humanos possuem Direitos Fundamentais, os
quais, em tese, deveriam existir para que se garanta uma igualdade de trata-
mento, apesar das desigualdades sociais existentes, não passa de uma interação
social forçada e edificada na existência de Direitos controlados pelo Estado,
num agrupamento social chamado de sociedade civil organizada.
É o que nos diz Gramsci (2002, p.41) o qual reforça o conceito de Estado,
afirmando que “O Estado é certamente concebido como organismo próprio
de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima
desse grupo” e, continua seu raciocínio dizendo “Estado é todo o complexo de

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica seu
domínio, mas consegue obter consenso ativo do governados” (2002, p. 331).
Deste modo, explica-se o fato de que a burguesia por ter o controle dos meios
de produção e, consequentemente, controlar o trabalho e a exploração da classe
trabalhadora, pôde estender a sua dominação ao Estado, o qual, na sociedade
capitalista, flui em função da manutenção do próprio sistema e refletir os
interesses da burguesia, desta forma, para fazê-lo, necessita manter uma relação
minimamente consensual entre o grupo dominante e o dominado.
Não obstante, Lessa (2011, p. 85) nos dá uma luz acerca de como entender
o Estado ao ditar o seguinte “Em outras palavras, o Estado capitalista afirma a
igualdade formal, política e jurídica, com o objetivo real e velado de manter a
dominação da burguesia sobre os trabalhadores”. Com base em seus ensinamen-
tos torna-se possível entender que o Estado tem a função primordial de manu-
tenção do consenso e da exploração capitalista, seja por meio do reforço da ideia
ilusória da igualdade entre os cidadãos, seja na intervenção nos conflitos de
classe, o Estado sempre buscará manter o consenso e a condição de exploração
da classe trabalhadora.
Com tal ensinamento, Tonet (2002) reforça o raciocínio aqui delineado
ao nos elucidar que poder político nada mais é que a força social apropriada
por determinada classe social e posta a serviço dele para a reprodução de um
entendimento que possuem.
Trindade (2010), não diferente do que já fora abordado, afirma que a declaração
universal dos direitos do homem, põe o homem enquanto membro da sociedade
burguesa, a igualdade prevista na lei é algo fora do alcance em face da sociedade
capitalista, pois só nos fornece o quanto é necessário fornecer para manter o próprio
regime. Nas suas palavras a igualdade perante a lei não passa de uma “Quimera lu-
zente”, em face à desigualdade que de fato existe na sociedade. Ou seja, a lei formal
não nos abraça enquanto indivíduos sociais, mas, tão somente abarca o quanto for
necessário abarcar para que nós não nos voltemos contra a classe dominante.

3. Os Direitos Humanos e suas diversas peculiaridades


Vemos então que os Direitos Humanos são inerentes apenas à vida do ho-
mem na sociedade de classes, desigual, como a sociedade burguesa que vivemos,
não possuindo necessidade de existência numa sociedade cujo homem esteja

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

efetivamente emancipado. A utilidade e conveniência dos Direitos Humanos


em nossa sociedade encontra base fundamental na necessidade existente de
se esconder a desigualdade inerente ao sistema capitalista dominante, ou seja,
se é necessário garantir-se o acesso à saúde, quer dizer que existem indivíduos
que não conseguem ter o devido acesso à saúde, enquanto outros indivíduos
conseguem ter um pleno atendimento, sem necessitar de uma garantia estatal.
Marx já mencionava tal condição (2010, p.31) ao nos dizer que “A exigência de
rejeitar ilusões a respeito de uma situação equivale à exigência de rejeitar uma
situação que carece de ilusões”.
Esses Direitos surgem como forma de negociação entre as classes dominante
e a dominada, no intuito de arrefecer as lutas sociais, porém à medida em que
sua concessão é fruto de negociação entre os grupos existentes em nossa socie-
dade, e, sendo assim, uma conquista do grupo oprimido, é, também, um instru-
mento de desmobilização. Isto porque, ao acalmar os ânimos das lutas sociais,
evita que se haja uma revolução maior contra o capitalismo, no intuito de se
emancipar a sociedade a outro nível, onde não seja necessário lutar por direitos,
mas sim, que tais direitos sejam concedidos naturalmente, sem necessidade de
se garantir por meio de leis, vez que serão concedidos em face da própria neces-
sidade natural (TRINDADE, 2010). Não obstante, percebemos que o Direito
por surgir em uma sociedade de classes não tem como deixar de ser um Direito
Classista, sendo, assim não deixará de ser um instrumento de reprodução da
desigualdade social (TONET, 2002).
Outrossim, Santos (2013, p. 42) numa visão semelhante nos diz o seguinte:

A hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade


humana é hoje incontestável. No entanto, esta hegemonia convive com
uma realidade perturbadora. A grande maioria da população mundial não
é sujeito de direitos humanos. É objeto de discurso de direitos humanos.

A autora completa o raciocínio questionando acerca de a quem serve eficaz-


mente os direitos humanos se aos oprimidos ou aos opressores.
Nesta linha de raciocínio percebemos que a conquista de direitos é sempre
uma vitória, isto porque evita o avanço desenfreado dos interesses capitalistas
na sociedade, mas ao passo em que conquistamos novos direitos, temos a ilusão
de que a vitória foi suficiente, esquecendo, assim, a luta maior pela emancipação
humana, pela igualdade plena entre os seres sociais. Desta forma é importante

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que, nas lutas, não sejam esquecidos os pontos que integram a luta pela supera-
ção do capital, de modo que busquemos sempre tal avanço.
Para Tonet (2002) a luta pelos Direitos Humanos só terá seu pleno efeito pro-
gressista se não perdermos de vista o fim último da própria extinção destes direitos.
Neste contexto, fruto deste ambiente de lutas e mobilizações sociais é que
nascem os direitos. Para Santos (2007) o Direito é próprio da sociedade de clas-
ses, e ao analisarmos suas origens e função social pode-se revelar os modos de
dominação existentes na organização social.
Estudar a função dos Direitos na sociedade capitalista significa, também,
determinar a existência de um aspecto contraditório, consequência dessa or-
ganização social. Esse caráter contraditório se expressa no fato que de um lado
temos o ganho da garantia e dever por parte do Estado em minimizar a miséria
e a exploração a que a classe trabalhadora é submetida; e por outro o fato do
sistema capitalista acatar o Direito, porém sob a égide de garantir apenas o
mínimo necessário a acalmar os ânimos da classe trabalhadora, dando conti-
nuidade à exploração da força de trabalho. Não obstante Iasi (2013, p;182) tem
entendimento semelhante, afirmando que “Podemos concluir que a pretensão
da ilusão jurídica em adiantar-se à materialidade impondo algo que um dia se
tornaria real só se iguala a sua pretensão de impedir o movimento do real na
direção que as transformações materiais impõem”.
A conquista de Direitos Fundamentais, tais como a saúde, educação, previ-
dência, dentre outros, incorpora-se na garantia de melhores condições de vida
à classe trabalhadora, estes direitos são em sua essência reivindicações e con-
quistas desta classe.
Neste aspecto, os direitos apresentam-se como ganhos para os trabalhado-
res, e, para seu reconhecimento se faz necessário pressionar o Estado para que
atenda as demandas da classe, deste modo, a garantia dos direitos, na sociedade
capitalista, ocorre pela intervenção do Estado, pois é ele, o representante da
legitimidade conferida aos direitos. Santos (2007, p.27) evidencia que a con-
quista de direitos perpassa por um amplo processo de mediações para que a
classe trabalhadora tenha garantido seu pleito, é o que diz: “a luta por direitos se
estende, então, por várias dimensões da vida, sintetizando um amplo processo
de mediação para explicitação das necessidades humanas em diferentes conjun-
turas sócio-históricas”.
Desta forma, percebemos que no capitalismo, o Estado flui em função da
manutenção do próprio sistema e, para fazê-lo, necessita manter uma relação

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consensual entre a classe dominante e a dominada. Ou seja, existe uma espécie


de correlação de forças, em que de um lado existe uma classe dominante, bus-
cando manter-se na dominação, e de outro a classe dominada, que busca sair do
estado de dominação, lutando sempre por melhorias, buscando sua emancipa-
ção. É neste sentido que se firma o conceito do Estado ampliado2 (GRAMSCI,
2002), no qual, a classe dominante busca, por meio de concessões determina-
das, manter-se no controle do Estado, e, consequentemente, da dominação.
Conforme depreende-se do que fora explicitado, torna-se possível vislumbrar
que os direitos sociais servem não só à classe trabalhadora, mas, também, à pró-
pria manutenção do sistema capitalista ao passo em que, por um lado, garante
a atuação do Estado em conceder um mínimo de dignidade ao trabalhador,
serve, também, para a manutenção e perpetuação do próprio sistema capitalista
(NETTO; BRAZ, 2006)
Não obstante, Marx (2010, p.66) nos traz um interessante raciocínio acerca
da efetiva utilidade dos Direitos Humanos, nos dizendo o seguinte:

Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o


egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa,
isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para o seu interesse
particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade.
Longe de conceber o homem como um ser genérico, esses direitos, ao
contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco
exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva.
O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a
necessidade e o interesse particular, a conservação de suas propriedades
e de suas individualidades egoístas.

Desta forma, entende-se que ao permitir que haja essa divisão do indivíduo
entre o homem egoísta e o homem em sociedade, permite que haja uma efetiva
coexistência entre igualdade e desigualdade, o que permite o tratamento dife-

2 Teoria fundamentada na perspectiva de Estado a partir da teoria gramsciana, onde entende que a
política se tornou um ambiente de enfrentamentos plurais, vez que passou a englobar os diversos
indivíduos e classes da sociedade capitalista, e, deste modo acabou incorporando a luta de classes
entre trabalhadores e burgueses. Sendo assim, passou, consequentemente, a incorporar as mais
diversas atribuições de modo que ampliou sua função na sociedade do capital, todas de forma que
pudessem manter a dominação burguesa.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

renciado à pessoa em cada âmbito de sua vida, e, portanto, legitima a desigual-


dade entre os indivíduos.
Entender que o direito humano deve ser expresso em forma positiva, escrita
principalmente, é esquecer o próprio fundamento de que o direito humano é
histórico. o modelo positivista implica necessariamente na limitação dessas mu-
danças conforme o tempo e sociedade.
Dentre os direitos sociais constitucionalmente garantidos temos o direito a
saúde, a qual só se tornou preocupação do Estado quando a classe trabalhadora
puxou para si essa luta política, de modo que impôs ao Estado tal obrigação, a
partir do seu dever de manutenção da ordem social, de intervir neste aspecto da
vida, buscando por meio de políticas públicas, a resolução da saúde enquanto
expressão da questão social. Neste sentido, Bravo (2006, p.89) assevera que “a
conquista de alguns direitos sociais pelas classes trabalhadoras foi mediada pela
interferência estatal, no seu papel de manutenção da ordem social capitalista e
de mediação das relações entre as classes sociais”.

A política pública de saúde e seus desafios atuais


No Brasil, por muito tempo as ações na área da saúde se desdobraram
em medicina previdenciária, que atuava apenas em favor dos trabalhadores
que fossem contribuintes do serviço de previdência, e saúde pública, que
se limitava a campanhas mínimas, de vacinação ou educação em saúde,
deixando o atendimento médico às entidades de filantropia e caridade. A
partir dos anos de 1980 a saúde assumiu uma dimensão política, a discussão
deste setor passa a contar com a participação de diversos sujeitos de modo
a contribuir para um melhor debate da questão. Dentre as propostas de-
batidas neste período, destacam-se: a universalização do acesso à saúde; a
concepção da saúde enquanto direito social; e uma reestruturação do setor,
com um novo olhar sobre a saúde individual e coletiva. Importante destacar
a 8ª Conferência Nacional de Saúde ocorrida em 1986, que tratou da refor-
mulação do Sistema Nacional de Saúde (BRAVO, 2006).
Importante destacar que, apesar da mudança da atuação estatal que ocor-
reu a partir do final do século XX, que resultou na redução dos gastos públicos
com as políticas sociais, a política de saúde já havia tomado uma dimensão
tão grande na discussão com a sociedade, que a implementação, em 1988, na

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

nossa Constituição, onde a Saúde é colocada como “direito de todos e dever


do Estado”. Oportunidade em que se cria o Sistema Único de Saúde – SUS,
definido no artigo 198 da Constituição. Outrossim, apesar do SUS ter sido
criado pela Constituição, ele só foi regulamentado em 1990, com as Leis nº
8.080 e a 8.142, nelas restou definido o modo de operação, organização e fun-
cionamento, e prevendo, inclusive a participação da comunidade na gestão.
Neste momento a saúde passa ter uma definição mais abrangente, conforme
previsto no art. 3º da Lei 8080/90:

A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros,


a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente,
o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos
bens e serviços essenciais: os níveis de saúde da população expressam a
organização social e econômica do país.

Nesta baila, o SUS representa um grande avanço em relação às políticas de


saúde, indica um norte no rumo da atuação estatal. Não obstante torna-se ne-
cessário destacar suas diretrizes básicas, firmadas na: Universalidade; equidade;
integralidade; regionalização e hierarquização; resolubilidade; descentralização;
gestão participativa com a sociedade; e a complementariedade do setor privado.
É importante ressaltar que a participação do setor privado que outrora foi
previsto como complementar não se sustentou ao decurso do tempo, a ofensi-
va da tese neoliberal prejudicou de forma veemente a aplicação da política de
saúde. Para Sousa (2014, p.228), seu entendimento segue no mesmo raciocínio,
entendendo que a ofensiva privatizante acarretou em um óbice à efetivação
plena da política de saúde, vejamos:

A desigualdade gerada pelo processo de exploração do capital transforma


tudo que é lucrativo em mercadoria. A reforma do Estado no Brasil,
que teve seu início por volta de 1990 e se estendeu pela década de 200,
impulsionou a ofensiva privatizante, confrontando-se com os princípios
do SUS, particularmente o da universalização da saúde.

Ou seja, a exceção virou regra, nos últimos anos temos visto uma grande
redução do financiamento da saúde no setor público, e o crescimento da entrega
destes serviços ao setor privado, este desrespeito à previsão da complementarie-
dade, regra do SUS, o qual em tese deveria ser um sistema totalmente público e

122
gerido pelo Estado em conjunto com a sociedade tem gerado um problema sem
precedentes, se manifestando como uma das causas da judicialização. Tal asser-
tiva se faz pois enquanto o Estado promove o desmanche do setor público, em
especial o da saúde, a nossa Constituição e demais Leis preveem um tratamento
diferenciado à saúde, em que pese o atendimento completo à sociedade, desta
forma, enquanto o poder executivo por um lado reduz os gastos sociais e au-
menta o índice de privatização, do outro o judiciário impede que o cidadão seja
desassistido, obrigando, na maioria das vezes, o estado a cumprir sua obrigação
de fornecer serviços e medicamentos.
Neste sentido, cabe ressaltar que nossa Constituição Federal de 1988 nos
garantiu Direitos Sociais mínimos à dignidade do cidadão, em especial à po-
pulação integrante da classe trabalhadora. Não obstante destaca-se que ao
final do século XX, com a crise ocorrida no modelo keynesiano3, o Estado
mudou seu foco de atuação, tendendo a reduzir os gastos sociais sob a prer-
rogativa de serem onerosos, alegando que o Estado não possui meios para
custeá-los, ou mesmo custeia de forma ineficaz, sem saber como investir do
melhor modo o orçamento público.
Outrossim, apesar de existirem diversos mecanismos legais para que se ga-
ranta o acesso pleno às políticas públicas por parte da sociedade, vivenciamos
no modelo atual de neoliberalismo adotado no Brasil, nota-se o avanço da pre-
cariedade, o que demarca a tendência hodierna de sucateamento dos órgãos e
serviços que antes deveriam atender a população.
Tais retrocessos não ocorreram apenas no início da implantação do Sistema
Único de Saúde, não obstante à época existirem diversos conflitos de interesse,
onde de um lado os trabalhadores lutavam pela saúde fornecida pelo próprio
Estado, por meio do movimento sanitarista, de outro haviam os empresários do
setor médico, que buscavam a privatização do serviço. Acontece que, mesmo
nos dias atuais, as lutas e conflitos entre os diversos projetos inerentes à saúde
pública continuam em pleno conflito. (BRAVO, 2018). Com tais retrocessos,

3 Também conhecido como Estado de bem-estar social, ou welfare state, é uma teoria criada por
John Maynard Keynes, onde se propunha uma intervenção estatal na economia, cujo objetivo era
conduzir o Estado e a sociedade ao pleno emprego, neste sentido, o Estado era posto numa posição de
organizador da economia, passando a regular os diversos aspectos da vida em sociedade, cabendo ao
Estado promover e garantir o pleno acesso a serviços públicos e Direitos que visassem a proteção da
população, tais como saúde, educação, moradia.
os quais ficaram mais fortes após a ascensão de Temer ao poder, conforme faz
prova os ensinamentos de Bravo (2018, 11):

com o advento do governo Temer, é flagrante a aceleração e a


intensificação das políticas que contribuem com o desmonte do Estado
brasileiro, configurando uma nova fase de contrarreformas estruturais
que atacam os direitos dos trabalhadores[...].

Passa a ser notável a implementação do desmonte da saúde pública na agen-


da de avanço das políticas neoliberais. Os retrocessos não são fatos inéditos de
nossa atualidade, o avanço do Projeto Privatista de Saúde ocorre desde os anos
1990, porém em nossa atualidade, a partir da tomada de poder por um repre-
sentante que promove a defesa do capital tais movimentos têm tomado maior
forma e avançado em nosso cotidiano (BRAVO, 2018).
Não obstante, os Direitos são viabilizados não pelo fato do Estado entender
ser seu papel social, o de nos garantir uma vida com um mínimo de dignidade,
até porque se assim fosse, não estaríamos vivendo este retrocesso legal que vive-
mos hoje, com um esfacelamento de leis trabalhistas, desmanches de estruturas
públicas para a consequente entrega à iniciativa privada, dentre outros.
Tais privatizações ocorrem com discursos frágeis de culpabilização da classe
trabalhadora, alegando que suposta crise na saúde pública e que somente a
privatização pode ser a salvação do problema, (BRAVO, 2018), sendo assim, os
Direitos que deveriam ser plenamente garantidos pelo Estado à sociedade em
geral, passa a ser apenas meros vislumbres, à medida em que a ideologia da crise
é massificada em meio à população, as conquistas da classe trabalhadora passa a
ser reduzida e entregue de volta ao capital, esquecesse que o Direito não advém
da natureza, mas das contradições provocadas pelo capital, os Direitos Sociais
são o mínimo de garantia que temos a uma vida digna, cujas expressões da
questão social possam ser minimizadas, apesar de num contexto de sociedade
fundada no capital, jamais possam ser extintas tais expressões.

Considerações finais
Vivemos numa sociedade baseada no capital, o qual são necessários ins-
trumentos mínimos de redução da exploração do trabalhador, os Direitos
Sociais surgem como meio de garantir mínimo acesso à uma vida digna. Os

124
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Direitos Humanos, apesar de terem seu surgimento vinculado às ideias de


manutenção da propriedade privada e da hegemonia do domínio burguês a
partir de ideais liberais como a manutenção e segurança da propriedade pri-
vada, bem como a afirmação da igualdade de todos perante a Lei (sem que,
contudo, prevejam as próprias diferenças inerentes à exploração do capital),
tiveram em seu seio a complementação de ideias que visavam a garantia da
vida digna, com saúde, educação, lazer.
Não obstante todos esses Direitos foram conquistados mediante lutas, a
classe trabalhadora sempre necessitou afirmar sua revolta, perante o Estado,
contra a exploração do capital, por sua vez o Estado, a partir de seu papel me-
diador, buscou conciliar as reivindicações e o interesse do capital, no sentido de
ampliar ou restringir Direitos na medida apenas necessária à manutenção do
consenso, e da hegemonia burguesa.
Ocorre que, os Direitos Humanos concedidos têm uma dúbia funcionalida-
de, num primeiro momento concede alguma garantia às classes sociais oprimi-
das, de modo a amenizar a desigualdade existente em toda a sociedade. Num
segundo momento, acalma essa classe que estava erguendo-se contra o Estado,
e, assim, evitando uma “tomada do poder” que possa causar uma mudança na
estrutura social e papel do Estado.
Contudo, apesar dos avanços conquistados ao longo dos anos, a agenda ne-
oliberal tem encontrado espaço suficiente para amplificar a massificação do
ideário de crises e justificar a demanda de privatizações impostas pelo capital,
de modo a imputar ao trabalhador a culpa pela falta de estrutura do Estado,
bem como a conta pela crise criada pelo capital.
Devemos nos lembrar que os chamados Direitos Humanos são assim cha-
mados, por serem de extrema necessidade à manutenção da dignidade do ser
humano. Em uma sociedade realmente emancipada, tais Direitos deixam de ter
essa necessidade de serem expressas enquanto leis, pois a dignidade humana é
preservada pela existência da igualdade real entre os indivíduos. Somente a luta
de classes é capaz de incentivar a conquista de Direitos e evidenciar a necessá-
ria superação do capitalismo.
Neste sentido nós, trabalhadores devemos ter em mente sempre que jamais
devemos baixar a guarda, as justificativas impostas pelo capital, massificadas
pela mídia são reflexos da necessidade do próprio capital, mas não da nossa
necessidade enquanto trabalhadores, e, principalmente humanos. A socieda-
de continuará sempre a ter e expressar os reflexos da exploração, e das diver-

125
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

sas expressões da questão social, enquanto vivermos nesse contexto explora-


tório de acumulação de capital e principalmente do individualismo crescente,
sempre estaremos em exploração constante e luta constante, portanto, torna
fundamental a união dos trabalhadores numa perspectiva emancipatória de
superação do modelo de Estado.

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127
A estigmatização dos direitos humanos

Jefferson Lee de Souza Ruiz1

1. Polêmicas históricas e/ou conjunturais


O início do século XXI vivencia uma experiência ímpar. Se outrora setores
conservadores e reacionários defenderam determinadas concepções de direitos
humanos, a crise capitalista e as tentativas de ampliar hiperexploração do traba-
lho têm feito com que direitos antes defendidos como fulcrais por liberais-burgue-
ses sejam sistematicamente violados. Marques (2006) analisa reflexos históricos
de tal processo no imediato período após o ataque às Torres Gêmeas2, em 2001.
Intensificaram-se violações de direitos individuais – o Patrioct Act é uma de suas
maiores demonstrações. Para o capital, direitos são argumento para sustentação
do status quo burguês. Se e quando julgam necessário, mesmo os que afirmam ser
inalienáveis são violados.
O fim da Guerra Fria (cf. HOBSBAWM, 1995) expôs o quanto havia, no
interior dos próprios blocos capitalista e socialista, distintas concepções sobre o
que se costuma denominar de direitos humanos. Harvey (2018) registra o quan-
to o capital, até os anos 1980/90, manteve subsumidas posições reacionárias
como o “fervor anti-imigrante”. Até então políticas de imigração em regimes de

1 Assistente social, mestre e doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Professor na Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]
2 Para uma visão mais abrangente dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, sugerimos a leitura do
ótimo livro 102 minutos (Dwyer & Flynn, 2005). Dentre outras análises – como as tensões e conflitos
entre forças de segurança e socorro –, todas feitas a partir de acontecimentos anteriores e posteriores
ao ataque, os autores demonstram que parte importante das mortes do evento deve ser creditada a
reformas feitas algum tempo antes para ampliar a lucratividade de aluguéis nos edifícios. Uma de suas
consequências foi a redução da área de escape por escadas, o que, na leitura dos jornalistas, contribuiu
para que centenas de pessoas não conseguissem se salvar do desabamento dos prédios.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

livre comércio apontavam algum nível de resultado benigno para quem detém
meios de produção de riqueza.
Alguns fenômenos não deixaram de existir na Guerra Fria, mas se acentuam
na conjuntura do século XXI. É o caso do superencarceramento. Davis (2018)
o caracteriza como complexo industrial-prisional, e lembra que mesmo em se-
tores democráticos a existência de prisões é tão naturalizada quanto o foram
segregação e escravidão em séculos anteriores. Políticas abolicionistas, afirma,
são vistas, no máximo, como ingênuas e cheias de boa intenção. Ainda que se
questione o perfil de classe e raça predominante no encarceramento, não se
questiona sua existência. Ao contrário: corrupção, machismo, racismo, homo-
fobia etc. são expressões para as quais se defende prisão. Há, inclusive, retomada
e intensificação de privação de liberdade em políticas para o envelhecimento
(como instituições de longa permanência de idosos), saúde mental ou supostas
infrações cometidas por adolescentes (RUIZ & PEQUENO, 2015).
Se conservadores ou reacionários estigmatizam direitos humanos como
voltados para “bandidos” (obviamente sem registrar sentidos históricos
conferidos ao termo, como fazem Aslan, 2013, e Hobsbawm, 2015), setores
democráticos ou “à esquerda” no espectro das lutas políticas o fazem em
sentido oposto. Direitos humanos seriam predominantemente servis à lógica
liberal-burguesa. Baseados em uma das leituras de obras de Marx (como
Para a questão judaica – 2009 – em que o autor faz contundente crítica
ao direito burguês), defendem ser necessário o fim do direito (e do Estado,
e dos direitos humanos) em uma sociedade humanamente emancipada.
Para esta leitura, o cidadão/indivíduo burguês, mônada servil à lógica da
produtividade e à apropriação privada da riqueza socialmente produzida
típicas do capitalismo, seria o centro do questionamento de Marx. Não
o individualismo, perspectiva teórico-política construída para a defesa
da sociedade burguesa. Ainda que se reconheça que qualquer plataforma
marxista para o século XXI não pode prescindir da defesa de direitos
humanos (TRINDADE, 2011). Tais perspectivas tendem a acentuar a
indevida dicotomia entre classe e indivíduo. Embora em sentido distinto, se
aproximam de movimentos chamados de “identitários” que, na conjuntura
pós-Guerra Fria, obtêm maior força nas arenas de disputa política e social.
Estes últimos por vezes cometem o equívoco de negar a existência de classes
sociais, quando todos os dados objetivos quanto à produção, distribuição
e apropriação de riquezas no mundo demonstram a persistência da

130
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

apropriação privada, por pouquíssimos, das riquezas socialmente produzidas


(Marx, 2017)3 – o que os leva a perigosa aproximação com a chamada
pós-modernidade. Os primeiros, embora em direção oposta, mantêm uma
suposta supremacia da classe social sobre características identitárias e/ou
individuais de cada ser/indivíduo social. Repetem equívocos como os de
solicitar a segmentos oprimidos (e, por vezes hiperexplorados4) na sociedade
contemporânea que aguardem a solução da desigualdade econômica para
verem suas pautas adquirirem centralidade e legitimidade.
Uma pergunta para qual cuja resposta pretendemos contribuir é: há,
mesmo, dicotomia entre classe e indivíduo? É possível constatar na obra
marxiana afirmações que se chocam com tais perspectivas. Nos Grundris-
se (2011) e na Crítica ao Programa de Gotha (2004) singularidade e uni-
versalidade, indivíduo social e classe são apresentados como processos não
necessariamente dicotômicos, mas complementares e dialéticos. Na primei-
ra obra, ao esboçar o que viria a ser O Capital, tal reflexão é articulada
a constatações feitas acerca da produção, circulação, troca e consumo na
sociedade capitalista (n’O Capital – 2017 – Marx unifica as dimensões de
circulação e troca). Na segunda, como veremos, Marx demonstra que há
necessidades e potencialidades humanas singulares – portanto, individuais,

3 Tal apropriação não se restringe ao período analisado por Marx: “A classificação anual das
grandes fortunas realizada pela revista Forbes recenseou 415 bilionários em dólares em 2006.
Menos de mil pessoas possuem 3,5 trilhões de dólares, ou seja, o dobro do produto interno da
França. Entre 1966 e 2001, a renda dos 10% mais ricos aumentou 58%, a renda do 1% mais rico,
121%, a do 0,1% mais rico, 236%, e a do 0,01@ mais, rico, 617%; 2% da população mundial
possui a metade dos bens financeiros, enquanto 50% dos mais pobres dividem entre si 1% desses
bens” (Bensaïd, 2017, p. 49, grifo original).
4 São conhecidos os dados acerca das desigualdades de renda entre homens e mulheres, brancos e
negros, no Brasil. Há inúmeras fontes fidedignas para demonstrar que a violência não atinge
igualmente todos os segmentos sociais. Homens negros, pobres, jovens, moradores das periferias
e subúrbios brasileiros são suas principais vítimas e, ainda assim, os mais punidos pelo sistema
penitenciário. Tais processos têm profunda relação com a possibilidade de hiperexploração do
trabalho. Atingem segmentos para os quais sequer nos atentamos. Spencer (1996) demonstra que em
vários momentos a repressão à homossexualidade estabeleceu dadas relações com a força de trabalho
disponível em cada sociedade. Naquelas em que era necessária maior disponibilidade de jovens para
a produção, houve tendência a entender o ato sexual meramente como procriador. Levada às últimas
consequências, o autor prevê: “Seria lícito pensar que na conferência das Nações Unidas sobre
população, em 1994, no Cairo, a questão da homossexualidade tivesse sido discutida positivamente,
em vez de completamente negligenciada. (...) E, no entanto, no próximo século, a superpopulação
provocará uma grande pressão sobre os recursos do planeta, e os governos poderão ter de encorajar
os homossexuais, subsidiando seu modo de vida à custa dos casais heterossexuais” (Idem, p. 379).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ainda que mediadas por distintos fenômenos em cada sociedade. Acerca de


como alguns fenômenos ocorrerão na sociedade comunista, Marx recomen-
da prudência. Inclusive no que se refere ao possível fim do Estado numa
sociedade humanamente emancipada, à qual denomina comunismo.
A mesma questão é válida para o âmbito do que denominamos direitos.
Pachukanis (2017) identifica, sob a sociedade capitalista, a profunda equi-
valência entre direito e mercadoria. Na mesma obra, registra que litígio e
tribunal são dimensões centrais da forma jurídica. Ora, a noção de “igual-
dade” de todos e todas perante a lei é uma das fórmulas ideológicas libe-
rais visando convencer setores populares do suposto acerto das revoluções
burguesas (RUIZ, 2014). Mas, como afirma Hobsbawm (2010), segmentos
revolucionários subsequentes adotam sentidos distintos para categorias e
bandeiras anteriores – o autor cita liberdade e igualdade5, lemas consagra-
dos em 1789. Se um aspecto central da forma jurídica é o litígio; se lutas so-
ciais conferem sentido a categorias e conceitos (palavras também compõem
a luta de classes, afirma Konder em 2009) é razoável que haja distintos
sentidos em disputa para o que chamamos “direitos”.
Mesmo no âmbito crítico: Flores (1989) remete à Escola de Budapeste em
sua fase marxista para afirmar que, quando vistos a partir da ontologia do ser
social, direitos se associam a necessidades. Como se sabe apenas homens e mu-
lheres, simultaneamente seres e indivíduos sociais que somos, realizamos o me-
tabolismo entre nossa espécie (também natureza transformada) e a natureza.
Neste processo, todos se modificam, alerta Marx (2017). As necessidades que
reconhecemos e buscamos superar podem ou não ser satisfeitas – e são disputa-
das por vezes com o nome de direitos, não necessariamente legais.

5 No mesmo sentido, parece-nos instrutiva a reflexão de dois autores aos quais não pode se creditar
a defesa da ilusão no direito: “De um lado, a reivindicação de igualdade foi ampliada, buscando
completar a igualdade jurídica com a igualdade social; de outro lado, concluiu-se das palavras de
Adam Smith – o trabalho é a fonte de toda a riqueza, mas o produto do trabalho dos trabalhadores
deve ser dividido com os proprietários de terra e os capitalistas – que tal divisão não era justa e devia
ser abolida ou modificada em favor dos trabalhadores” (Engels & Kautsky, 2012, pp. 19-20).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

2. À esquerda ou à direita, a estigmatização dos


direitos humanos
“Bandido bom é bandido morto”. “Direitos humanos para humanos direi-
tos”. “Quero que se defenda o direito da vítima”. Estas e outras frases são bas-
tante conhecidas em países como o Brasil. Circulam entre a população, em
ambientes tão diversos como universidades, bares, baladas, confraternizações
familiares, locais de trabalho. Como em todo processo social, contudo, ir além
de sua dimensão aparente revela novos conteúdos. Quem as pronuncia não é
contra direitos humanos, embora costumeiramente afirmem sê-lo. Mesmo se
tiver convicção do que está dizendo. Para percebê-lo basta apreciar criticamente
algumas das situações concretas que, em geral, levam a tais afirmações. Nos
debates acerca do sistema penitenciário a forma mais “humanitária” para tra-
tar “bandidos” é substituída pela ideia de um retorno ao momento anterior à
prisão como expressão da pena6. Pessoas que incomodam a sociedade com seus
comportamentos “desviantes” precisam ser vistas como os arrogantes vilões7
da história. No que diz respeito à “defesa da vítima”, retoma-se ideias pré-bur-
guesas: nem a “igualdade perante a lei” das revoluções liberais do século XVIII
aparece. A derrota de pessoas menos capazes não é de ordem meramente moral:
é necessária para o futuro da humanidade8. Estas três reflexões e seus exemplos

6 Historicamente prisões já foram instituições “de passagem”. Eram o local em que pessoas que cometiam
o que cada sociedade considerava “crime” aguardavam pela pena (enforcamentos, apedrejamentos,
guilhotina etc.). A respeito, cf. Davis (2018) e Melossi & Pavarini (2006), dentre outros.
7 “Os habitantes da cidade viam certamente com maus olhos os homens do campo, achavam-nos
rudes, grosseiros. A palavra vilão deriva das villas, quer dizer, das casas que, na Roma antiga, ficavam
fora da área urbana. (...) Quando os pobres pediam (pedir, em latim, é rogare), os ricos podiam tolerá-
los; quando, porém, reivindicavam (reivindicar é arrogare), passavam a ser considerados arrogantes”
(Konder, 2009, pp. 165-166, grifos originais). A mesma linha de reflexão pode ser feita quanto à
palavra bandido. Lestai era a palavra grega para bandidos no tempo de Jesus: “Para os romanos a
palavra ‘bandido’ era sinônimo de ‘ladrão’ ou ‘agitador’. Mas estes não eram criminosos comuns. Os
bandidos representavam os primeiros sinais do que viria a tornar-se um movimento de resistência
nacionalista contra a ocupação romana” (Aslan, 2013, p. 44). A pena de crucificação era então
aplicada quase exclusivamente para crimes de sedição (revoltas, “perturbação da ordem pública”).
Jesus era o maior bandido.
8 “Se houver desenvolvimento econômico e for promovida a mobilidade social na África Central
e Ocidental, aumentarão os incentivos e a capacidade para migrar, e a ameaça de “islamização”
da Europa será substituída pela de ‘africanização’. O grau em que essa ameaça se irá concretizar
sofrerá grande influência do grau em que as populações africanas sejam reduzidas pela AIDS e outras
pestes, bem como do grau de atração que a África do Sul exerça sobre imigrantes de outras áreas da

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

demonstram não uma rejeição a direitos, mas sua restrição a uma parte da hu-
manidade. É uma concepção reacionária de direitos humanos (RUIZ, 2014, p.
180-206), pré-burguesa, que retorna em uma conjuntura internacionalmente
complexa e nas quais as forças que se articulavam em torno de blocos ao longo
da chamada Guerra Fria não se veem mais constrangidas a ocultar suas reais
interpretações e proposições para a sociedade.
Há, aqui, uma estigmatização dos direitos humanos “à direita”: o impedimento
ao debate é justificado sob argumentos que visam “restaurar a ordem”, “impedir a
ameaça comunista”, “reconhecer como cidadãos apenas pessoas de bem”9.
Mas o que nos preocupa centralmente, e de certa forma surpreende, é a
estigmatização dos direitos humanos “à esquerda” – inclusive em setores mar-
xistas. Neste âmbito parece haver algumas origens para a consideração dos cha-
mados direitos humanos como algo de menor importância.
Uma delas é a correta identificação do papel que o direito (enquanto nor-
matizações existentes na vida, mas fundamentalmente em sua dimensão legal)
cumpre na manutenção da sociedade capitalista. A proposição da igualdade
perante a lei é obra das revoluções burguesas do século XVIII. Nas sociedades
anteriores tal noção não existia sequer no discurso religioso10, salvo raras ex-
ceções. A participação nas decisões11, o acesso à riqueza, o direito ao próprio
corpo12, dentre outros aspectos, eram organizados a partir das classes a que se

África” (Huntington, 1997, p. 256, grifos nossos). O autor demonstra sua preocupação com o risco
de “contaminação” do que denomina “civilização ocidental” (para ele, composta por Estados Unidos,
países europeus centrais, Nova Zelândia e Austrália).
9 Seja lá o que, na verdade, tais frases quiserem afirmar. Afinal, uma das características centrais da
“ordem capitalista” é a convivência contínua e ininterrupta com a (a) desordem de suas próprias
crises; não há, na conjuntura recente, qualquer indício de (b) ameaça comunista mundial no planeta;
(c) pessoas “de bem” são constantemente flagradas em ações que demonstram o quanto desprezam
quaisquer perspectivas que não sejam as de obter vantagens pessoais, custe o que custar.
10 Cf., a respeito, os já citados Aslan (2013) e Ruiz (2014). Acerca da relação entre marxismo e religião
também é enormemente instrutiva a leitura de Löwy (2016).
11 Desde a Grécia Antiga a participação nas ágoras, assembleias populares que deliberavam sobre as
questões centrais da sociedade, era restrita a indivíduos do sexo masculino e que detinham posses.
Mulheres e escravos, dentre outros públicos, eram os infantes (os “sem voz”).
12 “Tratava-se, portanto, de sociedades nas quais inexistia a noção da igualdade formal entre os
indivíduos. Cada grupo social tinha direitos diferentes. Os senhores feudais, membros da nobreza e
do clero tinham privilégios. Em diferentes partes da Europa chegaram a ter o direito a dormir a primeira
noite com a noiva dos seus camponeses. E isso era considerado normal em um sistema baseado em relações
de dependência e subserviência” (Dornelles, 2007, p. 15, grifos nossos).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

pertencia. Como vimos, contudo, em Hobsbawn (2010) e Konder (2009), os


sentidos emprestados a termos como igualdade, liberdade e fraternidade, dentre
outros, foram e são fruto de profundas lutas e disputas de interesses. A nascente
burguesia também tinha sua interpretação para tais bandeiras.
Liberdade e igualdade guardavam (e o fazem até hoje) inter-relações entre si,
ainda que também tivessem suas características específicas. Em uma sociedade
em que aproximadamente nove entre dez pessoas morriam na exata localidade
em que nasciam (Hobsbawm, 2010) – exceto por razões como expulsão de suas
terras ou recrutamento militar – era quase impossível fazer circular mercado-
rias excedentes. A liberdade de ir e vir, se respondia a interesses de mulheres
que eram aviltadas sexualmente pelos donos da gleba de terra em que elas e
suas famílias produziam riquezas, tinha, para os burgueses, o papel fundamental
de fazer com que a mercadoria se realizasse (MARX, 2011; 2017; NETTO &
BRAZ, 2006). Igualdade, por sua vez, era uma noção absolutamente necessária
para, perante a lei (o que exclui, nesta perspectiva, a necessidade de igualdade
real, efetiva, de acesso a bens e riquezas) construir a ideia de equivalência entre
capital e trabalho, entre quem vende sua força de trabalho e aquele que a ela
explora. A “igualdade no contrato” é uma perspectiva defendida pela burguesia
desde seu surgimento. Inclusive no âmbito das polêmicas sobre direitos huma-
nos. Neste âmbito (o do que se pode denominar “direito”) estabelece-se uma
equivalência entre a forma jurídica e a forma mercadoria (PACHUKANIS,
2017). Direito e capitalismo guardam profunda e intrínseca relação na perspec-
tiva societária vigente na sociedade burguesa.
Esta precisa constatação não elimina o fato, contudo, de que lutas de classes
e de segmentos de classe13 em torno do que estas e estes também denominam

13 Nas lutas sociais articulam-se demandas de classe a outras que, embora presentes entre as massas
subalternizadas, não lhe são exclusivas. Apreender este sentido para as lutas da população negra,
das mulheres, das pessoas com deficiência, por liberdade de orientação e expressão sexual etc.
é absolutamente necessário para superar a falsa dicotomia existente entre classe e indivíduo.
Optamos (Ruiz, 2014) por chamá-las de lutas de classes e/ou de segmentos de classe para registrar
esta relação dialética. Na conjuntura internacional de 2018 evidencia-se quão equivocada e sectária
é certa polarização dicotômica entre lutas classistas e identitárias, que se excluiriam mutuamente.
Há razões concretas, materiais, para que no século XXI tais expressões identitárias se apresentem
com maior força. Dentre elas, o fim da Guerra Fria, período em que, equivocadamente, no âmbito
das lutas societárias populares, se defendia que a solução da desigualdade econômica deveria ser
a “prioridade zero”, com as demais demandas (por vezes vistas como “pequeno-burguesas”, como
as que envolvem controle sobre o próprio corpo) devendo aguardar uma sociedade humanamente
emancipada para se expressarem.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

“direitos” se efetivem. Elas expressam materialidades distintas e, portanto, in-


terpretações antagônicas e possivelmente excludentes acerca de como conside-
rar o que sejam direitos. Na perspectiva que julgamos mais precisa e promissora
para apreender tal fenômeno, direitos são exclusivos da espécie humana. São
processos advindos do metabolismo que ocorre entre seres humanos e natureza
para satisfação de interesses que só homens e mulheres são capazes de reconhe-
cer, disputar socialmente e efetivar, a depender da correlação de forças de cada
sociedade (FLORES, 1989). A proposição liberal-burguesa para o que sejam
direitos tenta se apropriar desta legítima e ineliminável característica que nos
diferencia das outras espécies vivas. Apreender a essência do que, para setores
subalternizados, são os direitos é urgente e necessário.
Ainda neste aspecto e nos limites de um artigo14 é importante registrar dois
aspectos sobre a obra de Pachukanis (2017) – central para os debates marxistas
acerca do “direito”. O próprio autor afirma que sua produção é um esboço ini-
cial – ainda que posteriormente ao enorme impacto causado por suas reflexões
tenda a valorizá-la mais adequadamente. Este primeiro aspecto faz com que
persistam até 2018 tensões e leituras distintas sobre seus apontamentos (RUIZ,
2018). O que nos leva a um segundo registro: como vimos, ao abordar o que é
essencial na forma jurídica que identifica no direito, o autor russo afirma que
dois elementos fundamentais a compõem: o litígio e o tribunal. O que indica a
possibilidade de que Pachukanis estivesse analisando fundamentalmente como
se organiza, na sociedade capitalista, o caráter normativo do direito, senão seu
próprio funcionamento jurídico-legal.
Nesta hipótese, em que direito e capitalismo guardam a mesma raiz e ori-
gem, há lógica em propor que com o final da sociedade dividida em classes
deixe também de existir o direito. Se sua razão essencial de existência é esta-
belecer equivalência com a forma mercadoria (cuja produção gera a mais-valia,
elemento fundamental para sustentação da sociedade do capital), derrotar a de-

14 A estigmatização dos direitos humanos pelas “esquerdas” vem sendo parte central de nossas
preocupações desde a militância social anterior à graduação em Serviço Social. Iniciada a trajetória
acadêmica, desafiei-me a estudar a relação entre esta profissão e o campo dos direitos humanos
na graduação (Ruiz, 2009). No mestrado concentrei atenções nas distintas concepções de direitos
humanos em disputa na sociedade contemporânea. Dentre as seis identificadas, duas estão no âmbito
marxista (Ruiz, 2014). Uma hipótese central da pesquisa do doutorado ora em curso é que a polêmica
fundamental marxista não está no âmbito dos direitos humanos, mas em torno do que denominamos
direitos. Este artigo e parte importante de minha produção nos últimos nove anos têm abordado
distintas dimensões deste tema.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

sigual e desumana sociedade capitalista exigiria também fazê-lo com o direito.


Consequentemente, com os direitos humanos, como aponta Trindade (2011).
Outro aspecto aparentemente presente na estigmatização dos direitos hu-
manos “à esquerda” é seu deslocamento do âmbito das lutas de classes. Há
quem argumente que Marx (2009), em Para a questão judaica, demonstraria
ser contra os direitos humanos. Ao questionar seu interlocutor, Bruno Bauer,
sobre a distinção entre emancipação política e emancipação humana, a crítica
ao cidadão “mônada” apresentada por Marx desmontaria qualquer possibilidade
de conferir aos direitos humanos previstos pela Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão, da Revolução Francesa, papel no processo de superação da
desigualdade das sociedades divididas em classes. Esta nos parece uma leitura
equivocada e parcial. Equivocada ao não perceber (ou secundarizar) que a crí-
tica marxiana se dá ao direito burguês – adjetivação, aliás, constantemente uti-
lizada por Marx sobre o tema. Parcial por que mesmo na própria polêmica com
os liberais-burgueses, o filósofo alemão defende direitos tão individuais como
os de não inviolabilidade de correspondência – fundamental para o exercício
da política nos tempos de Marx. Ademais, Marx nunca se refere a propriedade,
segurança, liberdade e igualdade como imaginárias ou supostamente universais.
Articulista de jornais de significativa circulação à sua época, o autor se utiliza
de pronomes demonstrativos para evidenciar quais perspectivas de direitos está
questionando: as da burguesia, expressas nas lutas sociais de então e nos docu-
mentos das revoluções do século XVIII.
Outro elemento muito presente, e em profunda conexão com o do parágrafo
anterior, é a dicotomização que ainda persiste em torno de direitos chama-
dos de “civis”, “políticos”, “sociais”, “econômicos”, “culturais”, “ambientais” etc.
A literatura registra em Marshall (1967), ao apreciar relações entre cidadania,
classes sociais e o que denomina “status”, a proposição desta divisão dos direi-
tos. Para o autor inglês, uma análise da evolução da cidadania demonstraria
haver um reconhecimento sequencial de demandas civis para políticas, depois
sociais. Posteriormente se convencionou conferir o mesmo caráter evolutivo a
novas demandas que, socialmente, se apresentaram (como o da defesa do meio
ambiente, central para a vida da humanidade). Merece maior atenção a assi-
milação algo imediata das reflexões e proposições de Marshall. Não deveria
passar desapercebido, por exemplo, que o próprio autor defende cidadania como
participação integral na comunidade, o que o leva a afirmar que “(...) a desi-
gualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a igualdade

137
de cidadania seja reconhecida” (MARSHALL, 1967, p. 62). Ou, coerente com
sua leitura, que “A igualdade de status é mais importante do que a igualdade de
renda” (Idem, p. 95). Para Abreu,

o sociólogo inglês desenvolve com maestria os fundamentos de sua


vertente ideológica e cultura, demonstrando que a cidadania pode ser
transformada em uma força mística, mediadora e reguladora da luta de
classes. (Abreu, 2008, p. 295)

Abreu (Idem, pp. 275-313), questiona mesmo se uma análise atenta dos
acontecimentos da própria Inglaterra permite tal interpretação evolutiva.
Voltando aos debates contemporâneos, para argumentar em defesa da
prioridade de “direitos sociais” há quem defenda que, por demandar algum
nível de redistribuição de riquezas (mesmo que tímida e indiretamente,
como o fazem políticas sociais1), aqueles seriam os que guardam algum ní-
vel de relação com a distribuição da mais-valia. Ora, espaços de participação
política; liberdade de deslocamento pelas cidades e de opinião; organização
sindical e partidária... todos estes não estabelecem relações com o processo
de produção e apropriação de riquezas? Ou, ainda que reconheçamos a im-
portância de organizações coletivas do mundo do trabalho (o próprio Mar-
shall cita as lutas sindicais como importantes elementos de conquistas dos
direitos que qualifica como “sociais”), isto significa estabelecer uma ordem
hierárquica de importância sobre movimentos que, embora tivessem como
discurso central a defesa de liberdades “civis” – pensemos nas lutas contra
a escravidão e/ou o racismo –, denunciavam formas de extração de riquezas
nos modos de produção então predominantemente2 existentes?
Ademais, seria importante qualificar o debate explicitando o que se entende
por “social” no termo “direitos sociais”. Dois aspectos nos parecem evidentes a
respeito. (a) Direitos tidos como “civis”, “políticos”, “econômicos”, “ambientais”
e outros são, sempre, disputados em sociedade. Expressam demandas sociais
distintas – como vimos, de classes ou segmentos que a elas pertencem. Nenhum

1 Basta uma análise atenta dos dados dos gastos oficiais dos governos ao longo dos anos, disponíveis no
sítio eletrônico da Auditoria Cidadã da Dívida.
2 Predominantemente existentes. Afinal, trabalho escravo e não pago persiste sendo realidade mundo
afora. Mesmo em instituições legitimadas socialmente por amplos setores, que não conseguem
articular à dimensão de classes proposições como o fim do aprisionamento de pessoas. A respeito, cf.
Davis (2018) e Herivel (2013), dentre outros.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

direito, então, nem mesmo em uma leitura restrita que só reconheça como tal
aqueles previstos em leis, é extrassocial. (b) Com a complexificação da vida
em sociedade tais demandas estão radicalmente interligadas. Dificilmente se
apontará um direito “civil” que não guarde profunda relação com um “político”
ou “social”. E vice-versa.
A conjuntura vem se mostrando regressiva quanto ao acesso a direitos e políticas
públicas. Neste quadro, os debates “à esquerda” começam a conferir importância a
direitos “civis” e “políticos”. Sem liberdade de expressão, organização, participação na
vida social (o que obviamente inclui acesso a bens e riquezas produzidos socialmente)
retrocede-se a momentos que imaginávamos superados na história da humanidade.
Se tal reconhecimento não é meramente tático é algo a se constatar.
A nosso ver, não há por que sustentar, histórica e/ou conjunturalmente, que
alguns direitos devam ter, sempre e inevitavelmente, prevalência sobre outros –
exceto em uma situação: aquela em que se denominam de “direitos” processos
que geram opressão/exploração de outrém3.
Somos simultaneamente seres e indivíduos sociais. As classes são compostas
por pessoas e nossa diversidade não é um obstáculo para a construção de uma
sociabilidade efetivamente justa. Ao contrário, é condição para ela, como nos
indica o próprio Marx.

4. Em Marx, outra possibilidade de apreensão do tema


De cada um, conforme suas capacidades.
A cada um, conforme suas necessidades.
Karl Marx

As pessoas costumam afirmar que têm direitos. Vários deles, reconhe-


cem, não são efetivados: elas não conseguem garanti-los na realidade con-

3 “Para Budapest, es preciso el reconocimiento de todas las necessidades, a excepción de aquellas


que consideren al hombre como puro medio, aquellas que se dirigen a la opresión de los otros, al
mantenimiento irracional del poder, a la humillación y a la degradación del ser humano” (FLORES,
1989, pp. 89-90, grifo original). Em tradução livre: “Para Budapeste é necessário o reconhecimento
de todas as necessidades, exceto aquelas que considerem o homem como puro meio, aquelas que se
dirigem à opressão dos outros, à manutenção irracional do poder, à humilhação e à degradação do
ser humano”. Certamente a propriedade privada dos meios de produção de riqueza social se enquadra
nesta previsão. Mas esta, como preveem Marx e Engels (2008), deve ser indubitavelmente abolida.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

creta da vida. Na materialidade cotidiana a previsão em lei pode ser vista


como importante, mas não é o aspecto central. O essencial é que o direito
que julgam ser seu seja vivenciado.
Estas constatações poderiam parecer algo ingênuo ou descontextualizado do
papel que o direito cumpre em sociedades de classes. Não nos parece que seja
o que ocorre. Em sociedades desiguais (econômica e/ou culturalmente, lem-
bramos – Ruiz, 2014), a existência de interesses distintos é uma constatação.
Embora haja quem os classifique como “expectativa de direitos”, vendo-os quase
como uma ameaça4, tais processos guardam em si um potencial libertário: o de
contraporem-se desigualdades efetivamente existentes. Lyra Filho (1982), em
perspectiva distinta da de Bobbio, vê o debate sobre o direito como prenhe das
contradições concretas, materiais, da vida.
Ora, se perguntarmos às pessoas o que chamam de direitos quase inevitavel-
mente obteremos como resposta algo similar a necessidades. Ainda que possa-
mos encontrar limites5 nesta definição, ela não esvazia uma constatação mate-
rial, típica da vida em sociedade. E que pode nos levar à investigação de outra
apreensão possível, no âmbito dos pensamentos marxiano e marxista, acerca do
sentido que, para classes e segmentos subalternizados, o direito assume.
Como Marx (2017) constata em O Capital, a espécie humana combina uma
série de distinções fundamentais em relação aos demais seres vivos. Somente
ela é capaz de, ao reconhecer suas necessidades e buscar satisfazê-las, estabele-
cer um processo de metabolismo (da natureza) e autometabolismo (dos próprios
seres humanos) que é ininterrupto. A cada nova necessidade criada, disputa-
da e, quiçá, satisfeita, novas vão surgindo. Ocorre, inclusive, de se alterar, no
curso destas disputas e descobertas, o sentido anteriormente conferido ao que
chamam de direito6. Trata-se do processo dialético, material, da vida concreta

4 Bobbio (2004, pp. 73-75), por exemplo, o faz. Afirma partilhar da preocupação dos que pensam
que equiparar direitos e exigências – “na melhor das hipóteses” – de direitos futuros significa “criar
expectativas que podem não ser jamais satisfeitas” – o que tende a esvaziar o papel das lutas. Diz
que o sentido corrente do termo direito é o de “[...] expectativas que podem ser satisfeitas porque são
protegidas”, e completa: são “[...] meras aspirações, ainda que justificadas com argumentos plausíveis,
no sentido de direitos (positivos) futuros”. Evidencia uma reduzida associação entre direito e lei.
5 Por exemplo, necessidades podem ser criadas artificialmente. Parece-nos ser o caso das “necessidades
do consumo”, algo gerado na sociedade capitalista e apresentado como potencial gerador de status,
de reconhecimento, de ter alcançado sucesso na vida etc.
6 Um exemplo concreto deste metabolismo e autometabolismo, com repercussões para algo que
a sociedade já via como direito, é o que envolve a comunicação. Sabemos que o impressionante

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que faz com que desenvolvamos ciência, tecnologia, investigações, curiosidades


acerca da vida, de sua origem e história, dentre outros diversos aspectos.
Só nós, da espécie humana, somos capazes de gerar direitos, reconhecê-los,
disputá-los e vê-los satisfeitos ou não. Uma das características do que envol-
ve uma concepção dialética de direitos é que eles sempre expressam distintos
interesses, podendo ou não ser efetivados, e em diferentes escalas – universal,
parcial, temporariamente etc. – em cada conjuntura. Se esta reflexão tem lógi-
ca, e estamos convictos de que tenha, estamos diante de uma das proposições
mais radicais e originais da obra de Marx, captada com excelência por György
Lukács (2012; 2013): a ontologia do ser social. Acerca do direito, o que nos
parece típico da sociedade capitalista (RUIZ, 2018) é a equivalência entre for-
ma jurídica e forma mercadoria (PACHUKANIS, 2017), não sua própria [do
direito] existência. Associados às necessidades humanas, como Flores (1989)
identifica na Escola de Budapeste em reflexões de sua fase marxista7, direitos

avanço da ciência e da tecnologia teve neste campo alterações velocíssimas. Para nos limitar a
poucas – mas fundamentais – análises sobre seus impactos, podemos nos referir às alterações nas
lutas sindicais, identificadas por Hobsbawm (1995) no surgimento do rádio. O mesmo autor se alinha
a Harvey (2003) ao chamar atenção para o quanto a revolução nos transportes e nas comunicações
praticamente teria anulado tempo e distância (Harvey denomina este fenômeno de compressão do
espaço-tempo). Sempre importante lembrar que isto não ocorre sem nítidas contradições: a era da
internet viabiliza um processo similar ao de uma escravidão voluntária (Crary, 2014), em que somos
nós quem fornecemos dados pessoais e de nossa inserção política a quaisquer serviços de inteligência
mais equipados. Além de ser viabilizada por aparelhos que são natureza transformada pela espécie
humana (pensemos nos celulares), a comunicação alterou nossas necessidades, nossa forma de agir,
de fazer política – e ainda o vem fazendo; gerou novas exigências de agilidade para a circulação
de informações – não só as midiáticas, mas também as do dia-a-dia, que antes estavam satisfeitas
pelo ditado popular que afirma que “notícia ruim corre rápido”. Mas também alterou o sentido de
debates sobre o direito à comunicação: se em sociedade ditatoriais o centro destas mobilizações era a
recepção de informações sem censura, na era da internet o debate gira em torno da posse de meios de
comunicação que viabilizem o envio, a transmissão de informações por setores muito mais amplos que
os pouquíssimos que possuem, privadamente, os principais e mais massivos veículos de comunicação,
caso inequívoco do Brasil.
7 Uma de suas principais expoentes, Agnes Heller, embora reafirme sua referência em Lukács, diz
abertamente, em entrevista recente, ser antimarxista. Perguntada se a democracia liberal é o
melhor regime possível, sua resposta é: “Sim. Penso que o desenvolvimento da história europeia
atingiu sua última fase com a democracia liberal. Não se pode ir mais longe. Podemos somente
melhorá-la: a liberdade pode ainda ser explorada e desenvolvida em muitas direções” (Heller,
2018). Há que se registrar que a publicação, no Brasil, se deu pelo jornal O Globo, que a nosso
juízo tem evidentes interesses em apontar a democracia de molde liberal como objetivo máximo
e legitimá-la nas reflexões de uma autora internacionalmente reconhecida como discípula de
Lukács. Ressalva feita, os milenares debates sobre o que caracteriza uma real democracia persistem
em curso (Cf. Coutinho, 2009).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

são decorrência do processo que nos fez vingar como a principal espécie viva na
longa história do planeta8.
Isto não elimina férteis diálogos e instrutivas polêmicas, entre interpretações
que não vemos como necessariamente excludentes. Sartori (2010), abordando a
temática do direito em Lukács, demonstra que o autor, dentre outras dimensões
centrais, identifica teleologias secundárias (as das relações entre seres huma-
nos) e mediação jurídica. Na leitura de Flores (1989), da qual já parecemos ter
evidenciado que mais nos aproximamos, o direito está especialmente identifi-
cado com as teleologias primárias (as relações entre ser humano e natureza).
Esta abordagem dialética sobre o que configura o direito e sua relação
com o próprio Estado nos parece ser algo que Marx, embora não a analisasse
centralmente, já constatava. Em 1875, questionando proposições do Partido
Operário Alemão para o Congresso de Gotha (MARX, 2004, p. 119), o
autor afirma que seria necessário ao Programa apresentado àquele evento
dizer “que transformação sofrerá o Estado numa sociedade comunista” (grifo
nosso) e pergunta: que funções sociais análogas às do Estado persistirão em
uma sociedade humanamente emancipada?
Há outros paralelos possíveis para o debate sobre o direito no mesmo texto.
Marx afirma que “o direito igual continua aqui, no seu princípio, a ser o direito
burguês” (Marx, 2004, p. 108)9. Registra que “O direito nunca pode ser mais
elevado que o estado econômico da sociedade e o grau de civilização que lhe
corresponde” (Idem, p. 109). Contudo, à pg. 120 afirma que “só se reclama o
que não se tem”, coerente com outra sua contundente afirmação, a de que

A humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode


resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio

8 Acerca desta especificidade humana podemos acrescer reflexões de autores que não se declaram
marxistas, mas que, em nossa leitura, chegam a conclusões muito semelhantes, como Harari (2015).
9 A epígrafe escolhida para esta seção (De cada um, conforme suas capacidades; a cada um, conforme
suas necessidades) está na mesma obra marxiana. Evidencia-se que a categoria central “classe social”
não elimina, sequer entre nós das classes subalternizadas, características que nos são individuais. As –
se consideradas como naturais e, portanto, insuperáveis – frágeis dicotomias entre classe e indivíduo,
classe e identidade, dentre outras, não encontram lugar nas reflexões feitas por Marx nesta obra, escrita
oito anos antes de seu falecimento. Nos Grundrisse (Marx, 2011) a mesma pista nos parece evidente. O
consumo, que é simultaneamente produção, é caracterizado como o momento singular do processo que,
naquela obra, envolve produção, circulação, troca e consumo da mercadoria. Universal é a produção;
particulares são circulação e troca. O singular é momento que envolve a esfera individual, que combina
elementos sociais com perspectivas e características de cada ser/indivíduo social.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo


existem ou estão em vias de existir. (Marx, 2008, p. 50)

Encontramos em Marx, portanto, elementos que complexificam os debates


marxistas acerca do que seja o direito, sua origem, sua eliminação ou não em uma
sociedade liberta do jugo do capital. Uma concepção dialética de direitos (que,
registremos, sempre são humanos – não por que naturais e imutáveis, mas exata-
mente pela razão contrária, por que sempre sociais e exclusivamente humanos)
permite indicar que eles não se extinguirão na sociedade humanamente emanci-
pada: terão outro conteúdo, serão disputados ou não em outro patamar. Suprimi-
das as “diferenças de classe desaparece por si mesma toda a desigualdade social e
política resultante dessas diferenças”, diz Marx (2004, p. 116, grifo nosso). Não as
demais. Ou corre-se o risco de decretar o fim da história às avessas ou mesmo a
morte da dialética (RUIZ, 2014, p. 298-302) – só invertendo o equivocado sinal
de Fukuyama (199210) em sua leitura do período do imediato pós-Guerra Fria.

Concluindo: possíveis repercussões


As repercussões deste debate não envolvem exclusivamente sua interpretação
teórica. Afinal, “não é a consciência dos homens que determina o seu ser social; ao
contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Marx, 2008, p. 49). A
materialidade da vida social é a que nos permite dialogar sobre o sentido assumido
pelos distintos fenômenos sociais (o que inclui o direito) em cada sociedade.
Se é assim, a repercussão de tais debates envolve, certamente, lutas sociais
efetivamente existentes. Pode incluir, também, profissões que afirmam como
seu papel social a defesa de direitos11.

10 Em artigo publicado logo após a queda do Muro de Berlim, em 1989, Fukuyama defendia que com o fim do
que ele entendia como comunismo – Hobsbawm (1995), prudente e corretamente, prefere qualificar tais
sociedades como aquelas que se reivindicavam socialistas –, a democracia liberal teria demonstrado ser a única
forma possível de governo. Em 2015, relativizando suas opiniões, já afirmava não ter tanta certeza de que
este caminho seria inevitável, ainda que mantenha a posição antidialética de que a história terá um fim:
“Ninguém que viva numa democracia estabelecida pode dar como certa a sua sobrevivência. Mesmo que nos
interroguemos sobre o tempo necessário para que todos acedam a esse estágio, não restam dúvidas quanto ao
modelo de sociedade a que o fim da História conduz” (Fukuyama, 2015).
11 Referimo-nos, aqui, especialmente ao Serviço Social brasileiro. Seu código de ética profissional,
aprovado em 1993 e atualmente em vigor, prevê, entre seus onze princípios fundamentais, a “defesa
intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”. Não o faz em perspectiva

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Limitar direitos a sua esfera normativa elimina a possibilidade de vê-lo em


constante e radical disputa entre modelos societários distintos. Em outras pa-
lavras, retira os direitos – sempre humanos – das esferas das lutas de classes e
da possibilidade de que integrem plataformas e sociabilidades humanamente
emancipadas. No âmbito das profissões (e mesmo das lutas sociais) limita sua
esfera ao âmbito do estritamente normativo-jurídico. Tende a eliminar o caráter
dialético do processo. Não reconhece que também o direito é decorrência de
especificidades humanas, que nos caracterizam como seres ontológicos.
Tende, ainda, a limitar as respostas dadas para a falsa dicotomia (como vimos
brevemente, crescente na conjuntura pós final da Guerra Fria) entre classes e
indivíduos sociais, com suas singularidades identitárias que nada têm de necessa-
riamente pós-modernas nem se identificam com a mônada burguesa questionada
por Marx. Fragiliza a busca de uma sociedade efetiva e humanamente emancipa-
da não apenas do ponto de vista econômico, mas em todas as complexas dimen-
sões que envolvem nossa espécie. Superadas as sociedades de classes, outras dife-
renças e distinções estarão em questão – não mais as advindas daquelas relações.
Se formos capazes de evitar o desaparecimento da espécie humana pela sanha
dos interesses mesquinhos capitalistas (algo que, infelizmente, vai se constituindo
numa das mais difíceis e desafiadoras tarefas para os próximos séculos), a história não
terá fim. Por que ela é, foi e será a história da espécie humana. Complexa, contraditó-
ria, assassina, inúmeras vezes brutal. Mas, ainda assim, bela e desafiadora.

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da “defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da
riqueza socialmente produzida” e o da “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de
construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero” (CFESS,
1993, pp. 23-24; os grifos são sempre nossos). Analisamos o conteúdo do princípio que anuncia uma
defesa intransigente dos direitos humanos em Ruiz, 2013. Ora, se uma pessoa que procura o Serviço
Social apresenta uma demanda não prevista em lei, nossa perspectiva de direitos precisa se associar
à necessidade objetiva, material, concreta, de sua vida. O que nos exigirá, por vezes, ir além das
próprias determinações institucionais, sempre guiados pela relativa autonomia que o fato de sermos
profissão regulamentada e com uma regulamentação ética própria nos confere. Só assim se justifica
a ideia da intransigência na defesa dos direitos humanos.

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148
Função social do Direito e Marxismo

Dâmaris Lívia Pinheiro Damasceno 12


Fabiana Nogueira Coelho 13
Lucas Sampaio Dias Lourenço 14
Pedro Ângelo Pereira Mesquita 15
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima 16

Introdução
O presente artigo tem como objetivo realizar uma análise crítica da fun-
ção social do direito mediante a perspectiva marxista em contraste ao pro-
posto pela ideologia de um direito burguês. Tal tema possui relevância, uma
vez que a luta de classes ainda se evidencia na realidade, sendo necessário
manter-se sempre atento ao rumo que, neste complexo conjunto de elementos
objetivos da realidade, o Poder Judiciário e as relações econômicas, jurídicas,
políticas e sociais têm tomado. De modo, trata-se de procurar compreender
a origem do funcionamento político da institucionalidade, a fim de oferecer
possíveis explicações sobre regressos quando se envolve com o ordenamento
jurídico e sua aplicação prática.

12 Aluna de Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza. E-mail: [email protected].


13 Aluna de Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza. E-mail: [email protected].
14 Aluno de Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza. E-mail: [email protected].
15 Aluno de Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza. E-mail: pedroangelomesquita@
gmail.com.
16 Orientador. Professor Doutor pela JWG-Universität. E-mail: [email protected].

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

2. Da função social do direito


Uma das mais importantes e profundas discussões da Ciência Política é
exatamente sobre a natureza da origem da sociedade. Ao longo da história
diversos pensadores formaram opiniões e defenderam suas teses acerca desse
tema, uns pautados num naturalismo aristotélico, defendido em sua obra A
Política, sobre ser, o homem, um animal naturalmente político (zoon politikón)
e, portanto, a condição social é inerente a ele, de forma que esta sociedade
é consequência inata ao surgimento do homem e não fruto de sua escolha,
como pretendem os contratualistas. Para os defensores desta corrente, a so-
ciedade seria uma criação do homem utilizando-se de sua razão que escolhera
se submeter à égide de um contrato com regras de convivência, abrindo mão
do seu estado natural de liberdade total, o chamado por essa doutrina como
o Estado de Natureza. A título de ilustração, Thomas Hobbes concebe esse
estado natural do homem como um caos, um período de tempo o qual não
havia paz, já que os homens viviam em um estado de guerra permanente de
todos contra todos e, devido a essa insegurança, o mesmo homem decide se
submeter a um disciplina de um poder superior que impõe regras e limites no
comportamento e nas interações sociais.
Todavia, apesar das dicotomias dessas teorias, entre si e internamente,
ambas convergem em um ponto especifico, que a nós é o interessante, nesses
pensamentos e suas difusões, o homem adentrado em sociedade se submete
a regras, normas, em outras palavras, de convivência mútua para com outro
homem, de tal sorte, que ele acaba por ser limitado em suas condutas. Esse
sistema normativo que prescreve condutas a serem cumpridas para desen-
volver uma boa convivência de maneira efetiva era, e é, o Direito. Segundo
a lição de Paulo Nader:

As necessidades de paz, ordem e bem comum levam a sociedade à criação


de um organismo responsável pela instrumentalização e regência desses
valores. Ao Direito é conferida esta importante missão. A sua faixa
ontológica localiza-se no mundo da cultura, pois representa elaboração
humana. O Direito não corresponde às necessidades individuais, mas
a uma carência da coletividade. A sua existência exige uma equação
social. Só se tem direito relativamente a alguém. O homem que vive
fora da sociedade vive fora do império das leis. O homem só, não possui
direitos nem deveres. (2017, p. 18).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O Direito então, desde logo, assume um papel de protagonismo na manuten-


ção da sociedade e mantém com ela, devido a esse papel, íntima relação, sendo,
portanto, “fruto e raiz”, é que o professor nomeia de mútua dependência:

Direito e sociedade são entidades congênitas e que se pressupõem.


O Direito não tem existência em si próprio. Ele existe na sociedade.
A sua causa material está nas relações de vida, nos acontecimentos
mais importantes para a vida social. A sociedade, ao mesmo tempo,
é fonte criadora e área de ação do Direito, seu foco de convergência.
Existindo em função da sociedade, o Direito deve ser estabelecido
à sua imagem, conforme as suas peculiaridades, refletindo os fatos
sociais. (NADER, 2017, p. 27).

Essa “mútua dependência” parece passar por minuciosa confirmação his-


tórica que faz crer de sua existência até nas comunidades tribais no inicio da
humanidade, como apresenta Georges Abboud, na sua Introdução à Teoria e
à Filosofia do Direito, os homens primitivos, apesar de não terem desenvolvido
o princípio de proporcionalidade, pautavam seus comportamentos pelo princí-
pio da retribuição. Dessa forma, sua conduta social era pensada e desenvolvida
pensando sempre no bem da coletividade já que tudo que fizesse poderia ser
utilizado contra si, com efeito, produziam um vinculo jurídico no qual “toda
a estrutura perpassa por uma relação de dar, receber e retribuir de forma obri-
gatória” (ABBOUD, CARNIO, OLIVEIRA, 2015, p. 64) e, ainda, essas obri-
gações “eram a base organizacional das sociedades arcaicas. Era preciso pôr
em circulação os presentes e os benefícios ou, até mesmo, os malefícios” (AB-
BOUD, CARNIO, OLIVEIRA, 2015, p. 65).
Nessa linha de raciocínio, cumpre-se entender o modus operandi do Direito
para executar propriamente sua função social e, dessa maneira, compreender
porque ele se tornou a modalidade mais eficaz de controle do comportamento
humano e sua busca por efetivação que engloba o pensamento de Karl Marx.
De início, é obrigatório pontuar que o Direito não é a única espécie nor-
mativa que pretende manter uma coesão à sociedade, tal como ele a Moral
despende papel semelhante, qual seja, dispositivo normativo de natureza ética
que age sobre o comportamento das pessoas. Esta forma de controle social pode
ser definida como um conjunto de valores e costumes que são considerados
pelos homens em suas relações sociais e que devem ser observados (ABBOUD,
CARNIO, OLIVEIRA, 2015, p. 172). Mas que, exatamente por sua condição

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

axiológica, não produzem uma vinculação obrigatória, uma vez que o homem
usando a razão como instrumento pode questionar e desenvolver esses valores
num sentido oposto o positivado.
Essa noção da subjetividade e instabilidade da Moral decorre daquilo que
Heinrich Henkel busca elencar numa separação das naturezas morais, entre
Moral Natural e Moral Positiva, sendo aquela os princípios gerais da Moral,
os ideais mais nobres, a ideia geral de bem, enquanto a outra se subdivide em
Moral Social, e Moral Autônoma, as quais influenciam o comportamento do
homem mutuamente, ao passo que também sofrem influencias entre si. Quer
dizer, a Moral Social, sendo aqueles comportamentos e princípios inerentes aos
costumes daquela sociedade, é posta à prova e passa por constante reflexão
pela Moral Autônoma, aquela que todo ser humano mantem no seu íntimo
formada pelos valores por ele desenvolvido ao longo da vida. E dessa forma, esta
questiona e atualizada aquela sobre as novas tendências e novos valores que a
sociedade passa a desenvolver.
Nesse sentido, a Moral apresenta-se completamente instável, como dito,
e facilmente mutável, uma vez que determinado grupo que pensa diferen-
te sobre certas condutas podem influenciar os demais ou, até, aqueles que
mantem os meios de comunicação e a indústria cultural podem influenciar
a forma de pensar de grande parte da sociedade, mantendo, então, os pa-
drões de condutas por eles ditados.
Sobre essa discussão e dando ensejo a outro ponto a ser enfrentado acerca
da efetividade da Moral na normatização da conduta humana, Evguiéni B.
Pachukanis afirma:

Por um lado, essa lei [moral] deve ter um caráter social e, como
tal, colocar-se acima da personalidade individual. Por outro lado, o
possuidor de mercadorias, devido à própria natureza, é o portador
da liberdade (da liberdade de apropriação e alienação); portanto,
a regra que determina as relações entre possuidores de mercadoria
deve ser implantada na alma de cada um deles, ser sua lei interna. O
imperativo categórico de Kant reúne essas exigências contraditórias.
Ele é supraindividual, porque não tem nenhuma relação com qualquer
motivação natural, como paixão, simpatia, compaixão, sentimento
de solidariedade etc. Ele, na expressão de Kant, não ameaça, não
convence, não bajula. Está situado, em geral, fora de quaisquer motivos
empíricos, ou seja, puramente humanos. (2017, p. 155 e 156).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Quer dizer, além desta mutabilidade, inerente à natureza reflexiva da Mo-


ral, e decorrente desta mesma essência, há outra razão que impede compre-
ender esse instrumento como o controlador mais eficaz da conduta social, a
sua não coercitividade. Sucintamente, sua natureza axiológica e, portanto,
residente do mundo das ideias, a Moral não pode ser exigida e nem pode exer-
cer força para tanto, já que a subjetividade do sujeito é livre para questionar
e modificar, com certa facilidade, as noções de moralidade “positivadas”. É
essa crítica que o professor russo aufere à noção axiológica das normas morais
como uma mera sugestão incapaz de produzir efeitos práticos, de forma que se
conclui sua ineficácia para esse papel.
A contrário senso das normatizações morais, o Direito mantém caráter co-
ercivo e capaz de produzir efeitos práticos às desobediências para com suas nor-
mas. Essa característica, própria dele, é decorrente da legitimação dada pela
sociedade ao Estado de aplicar sua imperatividade em busca da coesão e ma-
nutenção da sociedade (aquilo que foi apresentado no início deste trabalho).
Nesse modelo, então, a norma jurídica se pretende um mandamento de conduta
a ser seguida, busca imperativamente, efetivar o que é prescrito para atingir a
sua função buscada. Nesse sentido, Pachukanis leciona que “essas regras podem
ser mais ou menos complexas se o objetivo for a eliminação mecânica de um
membro perigoso da sociedade ou sua correção; mas, em todos os casos, nelas se
expressa clara e simplesmente como um fim social em si” (2017, p. 182).
Ademais, vale salientar que Abboud também apresenta, quando tra-
tando das comunidades primitivas e suas relações “jurídicas”, a figura do
banimento, como sanção à ordem descumprida ou àquele principio da re-
tribuição que tinha força obrigatória. Evidente que naquele tempo, dizem
os antropólogos trazidos à baila pelo autor, não desvinculam esse caráter
obrigatório (e porque não normativo) do princípio das crenças religiosas e,
até mesmo, da moral, entretanto, o que cumpre salientar aqui é somente o
papel coercitivo das ordens que buscavam manter o controle e coesão social
já àquela idade recente da humanidade, ressaltando assim essa característi-
ca que viria a ser atribuída às normas jurídicas e a legitimidade do Direito
para usar da força quando necessária em função do cumprimento de sua
função social (ABBOUD, CARNIO, OLIVEIRA, 2015).
Portanto, conclui-se que pela própria natureza da coercitividade do Direi-
to, ele se traduz como método que efetivamente produz mais resultados, por
isso é o mais buscado e batalhado pelas demandas sociais que vão surgindo

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ao delongar histórico. O Direito, apesar de ser mandamento ético no mundo


do Deve-ser, encontra respaldo, ou melhor, produz seus efeitos empiricamente,
no campo do Ser, já que o sujeito em tratamento pelo direito, ou seja, quem
não observou a norma, assume o papel de um devedor pagando uma dívida
forçada e recebendo, por conseguinte, uma sanção disciplinar, atingindo, de-
pendendo da conduta, a própria liberdade (PACHUKANIS, 2017, p. 182).
Por fim, analisada as particularidades do direito enquanto forma de controle
social, vale, sucintamente, para preparar a discussão do direito mais adentro na teo-
ria marxiana, promover uma reflexão breve sobre sua tendência de imperatividade.
Bem, ficou claro que o Direito é capaz de ativar ao Estado o uso da força, para que
se faça ser observado, todavia essa força obrigatória cria à realidade normativa do
Direito para com a sociedade uma disputa interna de exigibilidade oponível, ou seja,
um sujeito daquele meio vê a possibilidade de exigir do outro aquilo que a normati-
vidade lhes impõe, promovendo de certa forma outro tipo de conflito. Essa concep-
ção do Direito pode ser decorrência da forma de interpretação burguesa das normas
e do ambiente ao qual ele foi gestado, um ambiente revolucionário na França.

3. Do direito burguês
A dinâmica do Direito Burguês, de fato, possui seu início com a ascensão
e estabilização da classe burguesa e do capitalismo na sociedade, fazendo-se
necessário remeter-nos mais uma vez à Revolução Francesa, de modo que se co-
nheça a Acumulação Primitiva de Capital, ou seja, os fatores históricos que pro-
piciaram a formação e a concentração de riquezas nas mãos de uma burguesia
comercial (PEREIRA, 2015, p. 9). Ademais, tendo em vista que o Direito, nos
dizeres de Marx (2008, p. 47), ao se pôr como uma superestrutura, se origina da
totalidade das relações de produção que constituem a estrutura econômica da
sociedade, poder-se-á compreender o direito burguês.
Tem-se, como principal marco normativo da sociedade francesa no século
XVIII, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, a qual positivou, nos
termos a seguir, os principais direitos reivindicados pela burguesia:

Artigo 2º- O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos


naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade. a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão. (DECLARAÇÃO
DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 1789)

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Ora, é evidente que para que os interesses defendidos pela sociedade bur-
guesa fossem atingidos, era necessária uma comoção geral que envolvessem os
camponeses, de modo que tal declaração também positiva uma isonomia for-
mal. Entretanto, é clarividente que a classe camponesa - uma maioria pobre
- dificilmente desfrutou de direitos como a propriedade e futuramente, durante
a Revolução Industrial, sofreu a opressão.
Marx, visualizando essa questão, em Sobre a Questão Judaica (2010, p. 71),
expõe que de fato a burguesia atinge sua plenitude ao desvencilhar-se de todos
os laços humano-sociais substituí-los por laços egoístas, os quais colocando um
homem contra outro, trouxe hostilização mútua.
Tal previsão, bem demonstrada por Marx, remete a outro autor, Cesare
Beccaria, que já percebia as consequências de tal relação de direito oponí-
vel, cem anos antes dos escritos marxistas, ao discorrer que o roubo é um
delito decorrente do próprio direito de propriedade - que em seus dizeres
é horrível e desnecessário - que deixa ao homem como único bem, a sua
existência (BECCARIA, 2001, p.52).
Portanto, pode-se observar que a dinâmica do Direito Burguês - diferente da-
quilo proposto e escrito por Marx, em uma união das forças humanas (MARX,
2010, p.65) logo em um direito universal, com o outro - traz uma proposta que ao
invés de emancipar o homem ao lhe dar direitos, o aliena e subordina ao lhe pôr
em eterno estado de conflito contra o outro, em razão, de nada mais, que bens.

4. Do direito em Marx
Em sua vasta obra, Karl Marx desenvolve conceitos como o materialismo
histórico, que foi conceituado, apresentado, explicado e analisado no período
mais maduro de seu trabalho, e que, para atingir esse período ele perpassa por
e desenvolve diversos outros conceitos que o auxiliam a construir o raciocínio
que o faz concluir, em último grau, a relevância da filosofia e prática comunista.
No texto Sobre a questão judaica, no qual o jovem Marx discorre sobre a situa-
ção dos judeus na Alemanha no tocante à aquisição de direitos civis e políticos,
averiguando não só os meios para que isso viesse a se realizar, como também,
dissecando a tese da emancipação política e humana.
Outrossim, no citado texto do escritor prussiano, é apresentado diversos
extratos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e de algumas

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

constituições de Estados Americanos nos quais se visualiza os direitos liberais


conquistados no período da Revolução Francesa e os advindos do processo de
independência norte-americana em relação à metrópole inglesa, apontando a
importância das garantias advindas desses movimentos.
Todavia, tece-se uma crítica a esses direitos a partir dos conceitos apre-
sentados de emancipação política. Marx divide os cidadãos entre bourgeois e
citoyen, definindo o primeiro como o homem egoísta que, com a aquisição dos
direitos civis, utiliza o Estado somente como meio para que haja a proteção
desses direitos adquiridos contra outro indivíduo. Essa categoria renega o es-
paço público a favor da vida individualista, ambientada no cenário privado.
Já o citoyen é a forma que o cidadão se comporta como membro efetivo da
sociedade política, e nas palavras de Marx, atingir-se-ia tal patamar “quando
o homem tiver reconhecidos suas forças próprias como forças sociais e, em
consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força
política” (MARX, 2010). A partir dessa classificação, pode-se compreender o
parecer crítico atribuído aos direitos civis conquistados nas revoluções libe-
rais, normatizados em declarações de direito e constituições de Estados, como
o direito à liberdade, propriedade, igualdade e segurança, que fazem parte do
corolário das garantias burguesas, visto que se apresentam como direitos de
um indivíduo contra o outro, baseados na separação entre um homem e outro,
explicitando a segregação do homem da comunidade.
De fato, nota-se a pontualidade de Marx em relacionar o Direito, ainda que
não tenho desenvolvido uma teoria aprofundada nesse âmbito, à questão da
emancipação política e humana, entendendo que o Estado político deve se dar
por meio da revolução política, em direção à emancipação, que decompõe a
sociedade burguesa na qual se visualiza o mundo das necessidades, do trabalho,
dos interesses privados e do direito privado (MARX, 2010).

5. De Marx sobre a questão judaica


No texto Sobre a Questão Judaica, o jovem Marx responde, aos hegelianos
de esquerda, como eram alcunhados aqueles que integravam o grupo de estu-
dantes e jovens professores na Universidade Humboldt de Berlim após a morte
de Georg Hegel em 1831. Bruno Bauer, em seu ensaio, propõe que é no mínimo
egoísta dos judeus terem a demanda de emancipação em um Estado Cristão;

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

pautada como se eles fossem os únicos fora do processo emancipatório político,


enquanto, na realidade, todos os cidadãos estão no mesmo passo que os judeus,
ou seja, não sendo cidadãos emancipados, portanto, esse grupo não seria uma
exceção à regra, mas sim uma confirmação dela.
Assim, Marx, em sua obra Sobre a Questão Judaica, replica o escrito
de Bauer principalmente na perspectiva da redução da problemática em
questão à crítica do Estado Cristão, pois o filósofo alemão mencionado por
último disserta sobre o que seria o Estado Cristão, como também sobre seu
povo, esmiuçando um raciocínio que, no entanto, não trata o revés de modo
que se analise os seus pontos basilares, tal como a diferenciação entre a
emancipação política e a humana.
Logo, como Marx resume, Bauer propõe que se faz mister a emancipação
de todos antes de se tratar da emancipação de um grupo em particular, os ju-
deus (MARX, 2010, p. 44). Possuindo a questão judaica um cunho universal,
Bauer pormenora a discussão ao tratar que qualquer indivíduo que deseja se
emancipar politicamente, i. e., se tornar, de fato, um cidadão, deve superar a
religião, assim como o Estado que se diz Real. De fato, somente renunciando
ao “privilégio da fé”, o judeu, de acordo com Bauer, estará apto para acolher os
direitos humanos universais conquistados pelas revoluções liberais do século
XVIII, visto que tais direitos são políticos dado que são humanos, ou seja, são
celebrados e exercidos em consonância com a comunidade.
Destarte, Marx propõe a diferenciação entre os direitos do homem e do
cidadão, analisando diversos direitos sociais conquistados no período ilumi-
nista que refletem garantias e liberdades fundamentais presentes na Declara-
ção de Direitos do Homem e do Cidadão (1791) e as constituições dos Estados
americanos. Dentre eles, há o direito de consciência expressamente posto na
Constituição de New Hampshire, artigos 5º e 6º17, que está ligado à liberdade

17 Art. 5. Every individual has a natural and unalienable right to worship God according to the dictates
of his own conscience, and reason; and no subject shall be hurt, molested, or restrained, in his
person, liberty, or estate, for worshipping God in the manner and season most agreeable to the
dictates of his own conscience; or for his religious profession, sentiments, or persuasion; provided he
doth not disturb the public peace or disturb others in their religious worship.
Art. 6. As morality and piety, rightly grounded on high principles, will give the best and greatest
security to government, and will lay, in the hearts of men, the strongest obligations to due subjection;
and as the knowledge of these is most likely to be propagated through a society, therefore, the several
parishes, bodies, corporate, or religious societies shall at all times have the right of electing their own
teachers, and of contracting with them for their support or maintenance, or both. But no person shall

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de praticar cultos, tida como direito natural imprescritível. Entendido, assim,


como direito humano universal o “privilégio da fé”, discordando, nessa pers-
pectiva, Marx de Bauer.
Outrossim, a diferenciação crucial do homem e do cidadão se pronuncia no
tocante ao que se coloca em primeiro plano: o público ou o privado. O homem,
membro da sociedade burguesa, é egoísta, separando-se do seu semelhante e
recolhendo-se ao âmbito privado, vê-se assim que sua relação com a sociedade
é, de certa forma, conflitante, devendo o Direito atuar como moderador eficaz
ao bom convívio social, nesse caso, o Direito de um indivíduo atua em oposição
ao de outro. Essa relação pode ser visualizada na Declaração de Direitos do Ho-
mem e do Cidadão ao definir o direito de liberdade: “La liberté consiste à pouvoir
faire tout ce qui ne nuit pas à autrui”, assim, “trata-se da liberdade do homem
como mônada isolada recolhida dentro de si mesma.” (MARX, 2010, p. 55).
Ainda, o filósofo alemão utiliza-se outro direito que compõe a base da so-
ciedade burguesa como exemplo para explicitar as contradições inerentes a ela:
à segurança. Nessa situação, Marx o entende como a máxima garantia do sta-
tus quo do homem, como definido anteriormente, que o utiliza para assegurar
outros direitos burgueses, tais quais o da liberdade e o da propriedade privada.
A partir dessa análise, reforça-se a ideia de que o Direito Burguês tem o papel
central de perpetuar o conflito de todos contra todos, não se colocando como
ferramenta de emancipação política, nem humana.
Por outro viés, há o cidadão caracterizado por Marx como aquele que, in-
tegrando a comunidade, prioriza o que é proveitoso socialmente, voltado para
os interesses coletivos e para o bem comum (CHAGAS, 2012, p. 5). Assim, a
transição do homem burguês para o cidadão se realiza a partir da emancipação
humana que é, nos dizeres de OLIVEIRA, a “verdadeira liberdade, o retorno
do homem a si, a efetivação da sua genericidade, é a revolução não apenas das
estruturas políticas, mas sociais”.
Enfim, diante do exposto, entende-se que a crítica de Marx se firma na
perspectiva de que o Direito Burguês emancipou politicamente os indivíduos,
separando-os do antigo sistema feudal, emancipando-os do poder do soberano
e individualizando-os. Acontece, assim, certa emancipação política, que cons-

ever be compelled to pay towards the support of the schools of any sect or denomination. And every
person, denomination or sect shall be equally under the protection of the law; and no subordination
of any one sect, denomination or persuasion to another shall ever be established.

158
titui o Estado Real, além de ter desmantelado “o conjunto dos estamentos, cor-
porações, guildas, privilégios, que eram outras tantas expressões da separação
entre o povo e seu sistema comunitário.” (MARX, 2010, p. 63). No entanto,
a emancipação não permitiu a fase humana que seria a conjunção do âmbito
público ao privado, da efetiva junção da vida humana à comunitária, vivência
tal que a sociedade burguesa não permite e promove meios para que aconteça
o contrário: a disjunção dos dois âmbitos e a utilização do Estado apenas como
um intermédio para a realização de direitos individuais e a preservação, por
exemplo, da propriedade privada, através de determinado “poder de polícia”.
Desse modo, apresenta-se a falsa ideia do direito burguês como efetivador da
boa convivência social, quando, como explicitado, atua de forma desagregadora
de maneira que sua função social se torna deturpada e não correspondente à
emancipação humana dos cidadãos.

Conclusão
A perspectiva do Direito que se propõe hoje, no ponto de vista marxista,
não se encaixa mais com o modelo clássico do Direito liberal proposto no
século XVIII, onde há uma quase que completa “autonomia da vontade”,
sendo esse pensamento consolidado com a positivação dos direitos civis.
Segundo Marx, o Direito, como fenômeno criado pela política, deve ma-
nifestar as mudanças da sociedade e servir como uma ferramenta concreta
de emancipação e liberdade dos cidadãos como membros da sociedade civil
organizada, o que não seria possível através de normas de natureza moral
devido à sua valoração volátil e não coerção.
Desta forma, o Direito proposto por Marx, deve atuar como uma ferra-
menta concreta e de efetiva mudança social ao garantir direitos ao homem,
de forma a superar um estado de relações egoístas e conflituosas; garan-
tindo assim uma verdadeira emancipação do cidadão, e a sua inserção em
uma sociedade política.

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160
Igualdade jurídica e dominação de classe

Rogério Guimarães Frota Cordeiro1


Gabriel Landi Fazzio2

“Este mundo, que oferece el banquete a todos y cierra la puerta en las


narices de tantos es, al mismo tiempo, igualador y desigual: igualador en
las ideas y en las costumbres que impone, y desigual en las oportunida-
des que brinda.”
Galeano, E. Patas arriba: la escuela del mundo al revés (1998).

Introdução
O golpe parlamentar contra o governo Dilma põe a nu a legalidade burgue-
sa: toda a fraseologia sobre a soberania do voto popular e o devido processo
legal são atirados à lata do lixo em nome de uma conveniência política. Há,
aqui, duas questões importantes a destacar:
1) Em primeiro lugar, essa reviravolta política é incompreensível fora das
bases materiais do modo de produção capitalista. É comum o esforço de pintar
o impeachment como um fenômeno puramente político ou moral, buscando ex-
plicar as raízes do ódio a Dilma e ao PT. Parece-nos, porém, que o terreno mais
seguro é o da economia. Só assim podemos explicar o programa do golpe: Dilma
foi removida para dar lugar a uma agenda acelerada de contrarreformas, que já
vinham sendo gestadas sob o nome de “Ponte para o futuro” e, depois “Agenda
Brasil”. Tudo isso são fatos políticos notórios.
Só é possível compreender o impeachment no quadro geral da crise capitalis-
ta, deflagrada em 2008 (COSTA, 2018). Essa crise, que nunca foi efetivamente
superada, precipitou inúmeros países, a tempos distintos, em crises políticas.

1 Advogado. Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
2 Advogado. Especialista em Direito do Trabalho.

161
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Seu efeito foi o mesmo em todo o mundo, em ritmos e qualidades distintos:


fortalecimento da agenda de ataques aos trabalhadores, por um lado, e fortale-
cimento do populismo de direita, proto-fascista (FAZZIO, 2018), por outro (dois
lados de uma mesma moeda depreciada).
Por trás da reforma trabalhista, não há outra coisa senão os interesses
da burguesia em aumentar as taxas de extração de mais-valia (tanto mais-
-valia absoluta quanto mais-valia relativa) levando a população trabalha-
dora a sofrer processo acelerado de despossessão social, política e econômi-
ca (FAZZIO, 2016).
Por trás da Emenda Constitucional 95, não há nada senão os interesses dos
grandes monopólios nacionais e internacionais em privatizar a saúde e a edu-
cação, e dos banqueiros em assegurar o pagamento da dívida pública. Convém
oferecer aos pobres o serviço público de saúde, a fim de manter parte da popu-
lação trabalhadora hígida para a produção e a educação para formar trabalha-
dores para a reprodução do capital até o nível intermediário (uma vez que como
país limitado tecnologicamente e em termos de inovação necessita-se continuar
dependente das grandes potências). Assim, significa o aumento do mercado
para a saúde e para a educação privada. Por isso mesmo, deve-se sacrificar o ser-
viço público lentamente no altar dos planos de saúde e redes privadas de ensino.
Por trás da Reforma da Previdência, estão interesses dos mesmos grandes
banqueiros, ávidos pela privatização da previdência, esse abominável fundo
dos pobres que poderia lhes render tanta especulação! Sequer é preciso evi-
denciar quais interesses o golpe está atendendo, quando vende a preço de
banana às multinacionais, o petróleo, a Embraer, enfim, inúmeros capitais
produtivos estratégicos do Estado.
Outro item abordado é a criminalização dos movimentos sociais; estes repre-
sentam uma ameaça ao estado de direito, o qual é fundamental para o capitalismo.
Também as repercussões da negativa de Habeas Corpus em favor do ex-presi-
dente do Brasil, em 2018, representou manutenção do status quo, evidenciando
proteção aos políticos de determinada classe (a classe burguesa) em detrimento
da celeridade no julgamento dos casos contra políticos de origem popular, liga-
dos de uma forma ou de outra à classe trabalhadora.
Os fatos aqui trazidos são representados pela atuação coercitiva do Estado
(aprovada nas duas casas do Congresso Nacional) bem como pelo abuso de
direito por meio de mandados coletivos de busca e apreensão em atuação das
Forças Armadas no Rio de Janeiro e pela reação dos militares ao estabeleci-

162
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

mento da Comissão da Verdade após a atuação das forças de segurança naquele


estado, nítida demonstração do retrocesso que as instituições brasileiras estão
experimentando em curto espaço de tempo.
Outras intimidações têm vindo a lume por ameaças realizadas pelo novo
presidente eleito quando menciona que haverá uma perseguição de partidos e
movimentos políticos e incita seus correligionários a fazer verdadeiras persegui-
ções. Evidencia-se como será o repressivo modus operandi desta ameaça.
Conforme a crise econômica empurra a burguesia para uma crise política,
suas medidas põem em movimento os trabalhadores atacados. Naturalmente,
qualquer pessoa há de notar que o agravamento do descontentamento social
demanda a preparação do Estado para o conflito – e vemos proliferar a legis-
lação e jurisprudência repressiva, em medidas como a restrição do direito de
habeas corpus e tipificação de organizações políticas como terroristas. Ao mesmo
tempo, a extrema-direita organiza um grande ataque à liberdade de expressão,
com propostas como as patrulhas do “Escola Sem Partido” (partidárias do PSL
de Bolsonaro) e a criminalização do comunismo, proposta por Bolsonaro filho.

1. A legalidade no capitalismo
O Estado de Direito é, no capitalismo, o produto de um equilíbrio relativo
de classes. Se as classes dominadas fossem fortes demais, poriam abaixo todo
o regime e ergueriam um novo. Em reforço, a burguesia precisa guerrear com
todas suas armas, sem se permitir limites. Se, após um longo período de auto-
cracia burguesa, a massa trabalhadora se fortalece e pressiona pela liberdade
política, é possível à burguesia conceder determinadas margens de legalidade e
democracia. Se, porém, tais concessões se tornam estorvos, e se, como se isso
não bastasse, a vivência democrática acomodou e deseducou a massa trabalha-
dora para uma luta revolucionária, então, aproveitando-se essa fragilidade, nada
é mais previsível do que a retirada de tais concessões pela burguesia, o que só
poderá ser evitado se a luta social se reestruturar.
Nesse sentido, é absolutamente preciso verificar, no impeachment, uma
demonstração do caráter burguês da legalidade moderna, e seu conveniente
amoldamento às imperfeições jurídicas dos interesses burgueses dominan-
tes. Em momentos críticos, há ampla margem para se contornar essa legali-
dade, sem sequer romper com seu quadro geral. Em outros casos, naqueles

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

em que há resistência dos oprimidos, a situação é mais complexa; a esse


respeito, notava Gramsci (2016, p.1):

Até onde vão os limites da legalidade? Em que momento deixam de


ser respeitados? É certamente difícil fixar qualquer limite, dado o
caráter bastante elástico que assume o conceito de legalidade. Para
qualquer governo, toda ação que se manifesta no campo da oposição
contra ele supera os limites da legalidade. Contudo, pode-se dizer
que a legalidade é determinada pelos interesses da classe que detém
o poder em cada sociedade concreta. Na sociedade capitalista, a
legalidade é representada pelos interesses da classe burguesa. Quando
uma ação busca atingir de algum modo a propriedade privada e os
lucros que dela derivam, tal ação se torna imediatamente ilegal. Isso é
o que ocorre no plano da substância. No plano formal, a legalidade se
apresenta de modo diverso. Já que a burguesia, ao conquistar o poder,
concedeu igual direito de voto ao patrão e seu assalariado, a legalidade
foi aparentemente assumindo o aspecto de um conjunto de normas
livremente reconhecidas por todos os segmentos de um agregado
social. Houve então quem confundisse a substância com a forma,
dando assim vida à ideologia liberal-democrática. O Estado burguês é o
Estado liberal por excelência. Nele, todos podem expressar livremente
seu pensamento através do voto. Na verdade, no Estado burguês, a
legalidade reduz-se a isto: ao exercício do voto. A conquista do sufrágio
pelas massas populares apareceu aos olhos dos ingênuos ideólogos da
democracia liberal como a conquista decisiva para o processo social da
humanidade. Jamais se levou em conta que a legalidade tem uma dupla
face: uma interna, a substancial; outra externa, a formal.

O que nos leva à segunda questão: em segundo lugar, se é verdade que há de-
terminada violação da legalidade burguesa no impeachment de Dilma Rousseff,
esta mesma legalidade manteve-se formalmente intacta em seu quadro geral. A
substancial contradição flagrante de nossa época consiste em vivermos ainda
numa mesma República Constitucional, mesmo após um golpe parlamentar – e,
precisamente, porque se tratou de um golpe parlamentar, e não militar. No es-
sencial, foi precisamente a conivência Judicial o meio pelo qual foi possível, sem
estremecer a legalidade toda, a aceitação de tal farsa pontual de imensas reper-
cussões. Com efeito, sem resistência violenta ao golpe, foi possível fazer o golpe
passar sem violação violenta da legalidade. O mesmo ocorre agora, quando o ju-

164
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

diciário se dobra aos arroubos autoritários do Presidente eleito sem qualquer he-
sitação, permitindo sua campanha à Goebbels (ministro da propaganda nazista)
de notícias que têm sido reputadas como falsas e como propaganda caluniosa.
Em favor disso tudo, muitos juristas (notadamente aqueles que abordam o
tema da Justiça de Transição) já notaram que pesa sobre a tradição política
brasileira a ausência de qualquer enfrentamento radical às reminiscências auto-
ritárias do período militar na própria estrutura estatal brasileira. Gentili (2018,
p. 2) nota que “Brasil salió de la dictadura sin realizar un ajuste de cuentas con
21 años de opresión y violación al estado de derecho democrático. Cuando esto
ocurre, las naciones suelen estar condenadas a repetir el pasado. Pero el pasado
nunca se repite de la misma forma.”

2. Igualdade e dominação
Da leitura de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, de Pachukanis (2017),
obteve-se fundamentação teórica que se aplicou aos fatos trazidos, de modo que
se pôde afirmar a tese aqui pretendida.
Como resultado, aplicou-se, então, o método de Pachukanis a fim de carac-
terizar o direito como instrumento de classe quanto às ocorrências factuais aci-
ma, demonstrando que do texto A Teoria Geral do Direito e o Marxismo subsidia
a interpretação desses fatos.
A concepção materialista dialética da história e dos fenômenos sociais
(o direito entre eles) permite a Marx, Engels, Lenin, Pachukanis e diversos
outros autores compreenderem que o Estado (e sua forma correspondente de
legalidade) não é um aparato estranho à sociedade, que paira acima dela: é
um aparato criado pela própria sociedade, precisamente com a função de se
opor a ela como expressão oficial da coerção social. Engels é quem melhor
desenvolve esse aspecto (em seu A Origem da Família, da Propriedade Priva-
da, e do Estado[1984]): antes da divisão da sociedade em classes, a violência
era compartilhada pela comunidade de caçadores e guerreiros, com meios
coercitivos morais ou diretamente violentos. Essa possibilidade de distri-
buição comum dos meios de coerção desaparece ao mesmo tempo em que
desaparece a propriedade comum dos meios de produção: assim que surge
uma classe possuidora dos meios de trabalho, essa classe organiza para si
um instrumento concentrado de violência, um Estado, que mantém subor-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

dinados os trabalhadores despossuídos, e que preserva sua propriedade de


classe contra a hostilidade das massas. Antes do capitalismo, a ligação entre
a classe dominante e o Estado sempre foi direta. Em Roma, só os senhores
de escravos detinham direitos civis e políticos; na Idade Média europeia, o
Estado era a própria organização hierárquica dos senhores de terras e seus
cavaleiros, e essa estrutura normativa do Estado era conhecida não como
direito, mas como seu oposto, privilégio.
Se a sociedade é dividida em classes e determinada classe domina o Estado,
incluído o judiciário, é imperioso entender que esta utiliza o Estado para domi-
nar as demais classes a favor de seus interesses – ainda que de modo indireto.
Contudo, para abordarmos especificamente do domínio da burguesia no poder
judiciário, é preciso dar um passo além no problema da igualdade.
A sociedade burguesa operou uma mudança significativa nessa forma geral
da dominação de classes. Pela primeira vez, o Estado deixou de se apresentar
como instrumento direito da classe dominante: sabemos que a burguesia está,
em conjunto, imersa no aparelho estatal. A instituição do sufrágio público (pri-
meiro censitário e, só depois, sob a luta e pressão dos trabalhadores, dos negros
e das mulheres, universal) foi acompanhada pela extensão da igualdade jurídica
a toda a sociedade civil, a tal ponto que não só todos são iguais perante o mes-
mo ordenamento de normas abstratas, mas o próprio Estado que suporta esse
ordenamento é subordinado à forma do direito, tendo também nele suas restri-
ções. A teoria liberal-constitucional burguesa foi realizada, e pela primeira vez
as classes dominadas puderam expressar politicamente sua vontade, por meio
do voto em seus governantes.
Na sociedade burguesa, tanto como em toda sociedade de classes, as relações
sociais são fundadas em relações de dominação, relações de exploração. Como
então é possível que todo o procedimento ideológico e jurídico da sociedade seja
igualitário? Simples: ele precisa ser apenas igualitários do ponto de vista de sua
forma, não de seu conteúdo. Para o direito burguês, todos são iguais na medida
em que todos são proprietários. Todos podem vender e comprar voluntariamen-
te; mas apenas na medida desigual da riqueza que possuem. Por isso há, por trás
da forma de igualdade do direito burguês, uma série de conteúdos desiguais.
Para o direito, o empregado e o empregador são iguais. Por isso, um vende livre-
mente sua força de trabalho em troca do dinheiro do outro. A desigualdade de
fundo, a diferença de poderes econômicos e políticos, pode muito bem viver em
harmonia com essa forma de igualdade.

166
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Por isso que, se por um lado o movimento reacionário da burguesia põe em


xeque diversos aspectos da legalidade democrática, por outro lado pode muito
bem preservar os aspectos mais gerais dessa legalidade: a segurança jurídica dos
investidores, o império da lei (ou seria das forças repressivas que a executam?)
etc. Porque, por trás da forma igualitária da legalidade burguesa, existem uma
série de verdades obscenas da desigualdade material: a mais-valia, a desigual
distribuição dos meios de produção, a desigualdade de acesso à riqueza, e todas
as desigualdades e injustiças que pesam sobre os pobres, mulheres, negros e
negras, povos indígenas.

3. A crise do regime constitucional de 88


Sob efeito da crise econômica global e nacional, vivemos desde 2016 uma
flagrante crise da III República, isto é, do regime constitucional pós-88.
Sem antecipar juízos mais profundos, podemos apontar 2013 como o ano
de descarrilamento: quando, por um lado, a burguesia começou a fortalecer
suas aspirações golpistas e quando, por outro lado, iniciou-se um processo
de afastamento entre parcelas do movimento popular e o PT, o que viria
a minar as condições deste de resistência ao golpe. É interessante notar,
contudo, que dentre as palavras de ordem “progressistas” de junho de 2013,
duas saltava aos olhos: saúde e educação.
Não parece fortuito que o início social da crise constitucional remonte justa-
mente às duas grandes promessas mal cumpridas da Constituição de 88. Tam-
bém não parece vão que um dos atores sociais mais destacados, nesse período
de resistência, seja o movimento dos sem-moradia — tendo sido o direito à
moradia uma das inovações significativas da Carta de 88.
Por um lado, realizou todas essas promessas sociais; por outro, consagrou
a propriedade privada. Não buscou resolver a questão de como seria possível
realizar a reforma agrária e urbana e, ao mesmo tempo, pagar as exorbitantes
indenizações decorrentes do direito de propriedade. Não resolveu a questão de
como seria possível conciliar um sistema público de saúde com a propriedade
intelectual das indústrias farmacêuticas, ou com a concorrência dos hospitais
privados. E quando, em face dos imperativos da propriedade privada, o Estado
burguês não pôde cumprir suas promessas populares senão à custa de um endi-
vidamento brutal e da prestação de um serviço precário.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A respeito dessa crise constitucional, é bastante instrutivo verificar a apre-


ciação que Karl Marx (1852), citado por Minikovsky (2012, p. 294-5) fazia das
contradições da legalidade constitucional:

O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal,


as liberdades de imprensa, de palavra, de associação de reunião, de
educação, de religião etc., receberam um uniforme constitucional
que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é
proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre
acompanhada de restrição à margem, no sentido de que é ilimitada
desde que não esteja limitada pelos "direitos iguais dos outros e pela
segurança pública" ou por "leis" destinadas a restabelecer precisamente
essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança
pública. Por exemplo: "Os cidadãos gozam do direito de associação,
de reunir-se pacificamente e desarmados, de formular petições e de
expressar suas opiniões, quer pela imprensa ou por qualquer outro
modo. O gozo desses direitos não sofre qualquer restrição, salvo as
impostas pelos direitos iguais dos outros e pela segurança pública”
(Capítulo II, § 8, da Constituição Francesa). "O ensino é livre. A
liberdade de ensino será exercida dentro das condições estabelecidas
pela lei e sob o supremo controle do Estado" (Ibidem. § 9). "O domicílio
de todos os cidadãos é inviolável, exceto nas condições prescritas
na lei" (Capítulo II, § 3). Etc. etc. A Constituição, por conseguinte,
refere-se constantemente a futuras leis orgânicas que deverão pôr em
prática aquelas restrições e regular o gozo dessas liberdades irrestritas
de maneira que não colidam nem entre si nem com a segurança
pública. E mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas pelos
amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas
de tal maneira que a burguesia, no gozo delas, se encontra livre de
interferência por parte dos direitos iguais das outras classes. Onde
são vedadas inteiramente essas liberdades "aos outros" ou permitido
o seu gozo sob condições que não passam de armadilhas policiais,
isto é feito sempre apenas no interesse da "segurança pública", isto
é, da segurança da burguesia, como prescreve a Constituição. Como
resultado, ambos os lados invocam devidamente, e com pleno direito,
a Constituição: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas
liberdades, e os democratas, que as reivindicam. Pois cada parágrafo
da Constituição encerra sua própria antítese, sua própria Câmara
Alta e Câmara Baixa, isto é, liberdade na frase geral, ab-rogação da

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

liberdade na nota à margem. Assim, desde que o nome da liberdade


seja respeitado e impedida apenas a sua realização efetiva - de acordo
com a lei, naturalmente - a existência constitucional da liberdade
permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes
assestados contra sua existência na vida real.

A Constituição de 88 não conseguiu cumprir suas promessas à classe tra-


balhadora e converteu-se em um obstáculo indesejável à burguesia. Por isso,
tende, irremediavelmente, a perecer. Para essa tendência, apontam não apenas
o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, mas o próprio fortalecimento de
alternativas de extrema-direita e projetos de lei de criminalização dos movi-
mentos populares (como as atuais tentativas de reforma da Lei Antiterrorismo).
A crise da república burguesa se arrasta, portanto, sem desfecho certo. Da
parte da burguesia, esta seguirá atacando os direitos dos trabalhadores o quanto
puder, por dentro da legalidade — mas já se mostrou disposta à sua violação, e
não hesitará em apoiar alguma alternativa autoritária se julgar necessária. Da
parte da classe trabalhadora, a situação é dramática: não pode, como antes,
seguir iludida com os poderes da legalidade e da democracia burguesa, que pode
se lhe fugir sob os pés de uma hora para outra. Só pode confiar, portanto, em
sua própria força organizada, em seu Poder Popular. Esse poder, atualmente,
está muito aquém de suas necessidades históricas — seja para implementar uma
ordem social nova, seja sequer para opor barreira aos ataques da burguesia. Por
um longo e duro período, a tendência, portanto, é a de resistência e a derrota,
no bojo das quais deverão criar-se as forças capazes de reverter a atual correla-
ção, e assim poder reverter às tendências regressivas do movimento social em
tendências progressivas, que superem a ordem capitalista. Justamente porque
não dispõe das forças suficientes para tanto, a classe trabalhadora seguirá, en-
tretanto, sendo vítima das ilusões da legalidade, e seguirá acreditando, embora
cada vez com menor entusiasmo, nos “males menores” e nas tentativas de reso-
lução “pacífica” dos conflitos. Como, contudo, a burguesia não parece ter em
vistas tão cedo uma situação de pactuação, tal tática só poderá conduzir a classe
trabalhadora a derrotas ainda mais graves e penosas. Como dizia Marx:
“Numa palavra: o progresso revolucionário abriu caminho não pelas suas
conquistas tragicômicas imediatas, mas, inversamente, por ter criado uma po-
derosa e coesa contrarrevolução, por ter criado um adversário na luta contra

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

o qual é que o partido da subversão amadureceu, só então se tornando num


partido verdadeiramente revolucionário”. (MARX: 1850, p. 1)
Walter Benjamin citado por (FABRE: 2018) sintetizou muito bem essa lição
que podemos aprender com o impeachment, e sobre a base da qual devemos
erguer um projeto político revolucionário dos trabalhadores:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que


vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos
que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com
isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se
beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome
do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro
com o fato de que os episódios que vivemos no século XX “ainda”
sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum
conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história
da qual emana semelhante assombro é insustentável.

Conclusão
É necessário vencer o fosso entre o que somos e o que poderíamos ser, tendo
em vista que, desde a colonização do Brasil, tem havido permanente violação
dos direitos básicos de educação, de saúde, de segurança, de justiça, em suma:
as necessidades mais elementares para assegurar à maioria do povo uma vida
digna. Como mencionado acima, tristemente se constata que “em nenhum mo-
mento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que
esperávamos.” (Furtado, 1999).
Na luta contra o reacionarismo, os setores populares contam com o apoio
dos juristas anticonservadores, que atuam buscando aproveitar a legalidade, a
doutrina e a jurisprudência como arma para contrapor-se ao conservadorismo
do sistema judiciário. Esses setores podem prestar apoio significativo à luta po-
pular, na medida em que juristas progressistas assumam postos e funções em
todas as esferas, incluindo o judiciário, provocando o acirramento dos conflitos
internos dos poderes constituídos – e, com isso, fazendo com que esses poderes
hesitem na repressão ao povo e no apoio às medidas reacionárias.

170
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O Poder Judiciário sempre foi, no Brasil, uma das instituições mais elitistas
e conservadoras do Estado. Está constantemente a favor da classe dominante,
e na verdade recruta seus quadros especialmente nesta classe. Esse cenário se
agrava no contexto da atual contrarrevolução mundial. Daí a impossibilidade
de quebrar a hegemonia burguesa sobre o poder judiciário, isto é, a curto prazo
não esperamos qualquer mudança fundamental no cenário brasileiro. Espera-
-se, sim, um acirramento dessas contradições e desse acirramento devem brotar
quadros preparados para a transformação para uma sociedade mais justa.
Se as instituições de Estado são incapazes de realizar um ordenamento so-
cial erigido sob uma compreensão mais humanista, distributiva e reparativa
do mundo, então é dever de todo o povo explorado oprimido ser o “freio e
contrapeso” de todo este estado elitista e reacionário. Os juristas progressistas
atuando no interior da burocracia estatal podem ser grandes aliados do Poder
Popular, mas serão absorvidos pela corrente hegemônica, se tentarem atuar iso-
ladamente, sem se ligar à luta popular, ou se essa luta não for forte o suficiente
para exercer fortes pressões sobre as instituições.
Se a sociedade é dividida em classes e determinada classe domina o Estado,
incluído o Judiciário, é imperioso entender que utiliza o Estado para dominar as
demais classes a favor de seus interesses.
As atuais reformas no Brasil não estariam em curso se grande parte da popula-
ção não as apoiasse incluída a classe média (funcionários públicos, arrendatários,
aristocracia sindical, donos de pequenas e médias empresas, professores, profis-
sionais liberais etc.) e a própria classe baixa desprovida de consciência de classe.
A classe intermediária serve de para-choque, de protetor da burguesia dos
golpes mais duros vindos do lado do trabalhador e ao mesmo tempo de condutor
das corruptas influências burguesas naquele meio. (Pachukanis, 2017, p. 255)
Após o dia 28 de outubro de 2018, com a vitória do projeto ultraliberal pelo
candidato Jair Messias Bolsonaro, é certo que haverá retrocessos com maior
potência, pois a vitória com 55% dos votos válidos e a maioria parlamentar
conservadora permitirão realizar mudanças ainda mais radicais.
Percebe-se hoje um esgarçamento dos poderes executivo, legislativo e ju-
diciário, e esse esgarçamento é a demonstração da própria ruína da socieda-
de capitalista, no âmbito da qual as contradições entre as classes sociais estão
absolutamente expostas. Tanto o Estado quanto a iniciativa privada não dão
conta das demandas da sociedade, indicando que o judiciário como arauto da
burguesia não tem dado respostas satisfatórias aos problemas da ampla maioria

171
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

da população. Esse é um dos sinais de que estamos a caminho de uma época de


rupturas significativas.
A sociedade não mais pode suportar os atuais níveis de desemprego, margi-
nalização de grande parte da sociedade, a precariedade das escolas e do sistema
de saúde, a falta de habitação digna etc. Enquanto os trabalhadores penam, a
burguesia usufrui quase que completamente dos imensos recursos naturais e
humanos de que dispõe a economia brasileira. Essas são situações que estão a
levar a uma condição insustentável, que clama por mudança, pois não mais se
poder mais viver nesse nível de contradição, e esta é, por sua vez, insanável sem
uma completa revolução da ordem social existente.
O processo revolucionário está, contudo, nascendo, originado da pró-
pria contradição interna ao capitalismo. Para a maioria da população, que,
infelizmente, está longe de compreender teoricamente o fenômeno, tem-se
percebido na prática cotidiana essa contradição. Em meio a essa confusão
e revolta, deposita, porém, em parte suas esperanças em um projeto de teor
altamente questionável e incerto, capaz de submergir a sociedade em crises
e conflitos ainda mais graves.
Chegará o momento de ruptura.

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173
174
O conceito de indivíduo na
história do pensamento ocidental:
Kant, Marx e Nietzsche

Yago Barreto Bezerra1

Introdução
Sobre quantos mais espetáculos se alicerçará o Estado Liberal? O primeiro
destes: a noção malfeita de individualismo. Alega-se ser o ser humano um
indivíduo fundado em seu livre arbítrio, em sua vontade plena. Por que se trata
de um espetáculo? Ora, porque foi feito com este intuito, de fazer domesticar
os espíritos. Todo espetáculo é como uma dança, que prende os olhos e que
hipnotiza por tempo indeterminado. A noção frouxa de vontade plena, de buscar
tornar o ser humano um império de si, guarda consigo uma franca contradição:
aqui o animal débil, que se afasta dos outros animais presunçosamente, por
possuir certa capacidade de raciocínio e de interpretação, anuncia uma ideia e
a segue, como um tolo; cria uma abstração, algo inexistente, e a torna verdade
para si. Estes seres humanos de modo muito peculiar — e hilário, se tomarmos
a questão por um aspecto inverso — enfrentam o seu próprio vazio afastando
a matéria que os moldou e acreditando em qualquer balbúrdia que lhes sirva.
E quantas asneiras não foram tomadas como verdades no decorrer da história?
E qual a necessidade delas? Por que o ser humano engana a si mesmo? Por que
a verdade lhes é tão incômoda, tão desconfortável? O que lhes dói tanto? Será
que simplesmente não se pode aceitar esta condição inicial de ser um “nada”?
Não, evidente que não. É preciso amaneirar a visão, transformar a realidade
em fantasia, ou em hiper-realidade. É preciso se iludir, para que não se morra

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido.

175
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de angústia. Quanta fraqueza para uma só espécie... e tudo isso a partir dos
devaneios da maldita razão, esta ardilosa meretriz!
Olha-se afinal para o espelho e indaga: que és tu, ó ser humano? Que na
verdade, transmite um anseio um tanto mais egoísta: “Que sou eu?” O reflexo
nada lhe diz. É uma visão indefinida, sem anunciar qualquer concretude. Será
que Marx, em algum tempo ou outro, enfrentou o espelho? E que poderia ele
ter constatado de sua observação? Talvez a imagem mais desnudada, mais de-
sencantada, mais crua. Provavelmente não se viu ali; provavelmente não havia
nada além de uma indefinida construção. Um contrassenso para quem busca o
definitivo. Ser construção significa ser fluidez, e ainda, adotá-la como compo-
nente de sua essência — ou de uma não essência, se essência pressupor neces-
sariamente algo absoluto e indivisível. A percepção, o encontro de si através do
reflexo, ou encontro de si por meio de si, na tentativa mais pura de encontrar
alguma verdade, este entender-se como construção, é a primeira constatação do
ser humano que se identifica enquanto um ser social e não um ser racional — ou
seja, sustentado pela própria razão. A crítica de Marx ao indivíduo racional se
encontra muito bem exposta na Ideologia Alemã, onde ele dispõe largamente so-
bre o seu método de análise, o materialismo histórico-dialético, e sobre a cons-
trução do mundo humano. E o que significa dizer que tudo é construção? Ora,
significa compreender que tudo no mundo, e, portanto, também o ser humano,
é resultante de um processo material anterior. “O primeiro pressuposto de toda
a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos.
O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e,
por meio dela, sua relação dada com o restante da natureza.” (MARX e EN-
GELS, 2007, p. 87) E esta matéria, ainda em sua dimensão mais elementar, no
processo de assimilação do real, eventualmente colide e forma algo, o novo real.
E a cada novo encontro — e isto ocorre de forma indefinida e caótica — outras
partículas vão tomando forma e a realidade vai se amoldando em um processo
indeterminável. Dentro deste cenário, surge então, não melhor do que uma
barata ou um rato, o ser humano. Emerge, pois, desde o princípio, diante das
trocas e encontros materiais, latejando, em estado bruto. É ainda uma criatura-
zinha muito desprezível, trêmula e assustada com o que vê. A mente, esta “dádi-
va” maliciosa, que o acorda para o mundo, tornando-o visível, manifesta-se em
algum momento incerto dessa troca material, não antes ou concomitantemente
à nossa condição animal. Ela surge, pois, no meio de algo; surge empoeirada,
condicionada, construída. Diz Marx:

176
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Somente agora (...) descobrimos que o homem tem também


‘consciência’. Mas esta também não é, desde o início, consciência
‘pura’. O ‘espírito’ sofre, desde o início, a maldição de estar
‘contaminado’ pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma de
camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de
linguagem (MARX e ENGELS, 2007, p. 34).

Neste sentido, os seres e as coisas são manifestações ímpares dentro do real,


e dentro dos seres, e dentro das coisas, existem as mais profundas distinções.
Por exemplo, a matéria se manifesta enquanto lagarta e enquanto árvore. São
seres diferentes, não por causa de uma essência de lagarta ou de uma essência
de árvore, mas pela junção e remodelação, em suma pela composição e sequên-
cia de processos materiais distintos e que as deram forma. Assim também um
ser humano difere de outro, como uma lagarta difere de outra lagarta. E não
seriam todos humanos e todas lagartas? Eis a armadilha de uma visão decaden-
te que estaca sua observação na superfície. Não há falar em “todos” como que
reunindo-os dentro de uma mesma manifestação, pois cada corpo é remodelado
de um modo díspar. E por que isso? Porque cada coisa e cada ser encontra-se em
locais diferentes em tempos diferentes no mundo. O encontro que forma o novo
real dá-se pela proximidade; o próximo encontra-se e afeta-se mutuamente. É
um acaso, uma desordem, uma anarquia de partículas. Não é possível domá-las
com o pensamento, muito menos reordená-las. O esforço é vão. Quando tenta
e admite conseguir, não se percebe que antes fora domado, reposto, ressignifi-
cado. Denote-se que pelo acaso e pela particularidade do encontro, é impossível
conceber algo igual a algo, muito menos uma mente igual a outra. Tal diferença,
contudo, reitere-se, não é derivada da consciência em si, mas do modo históri-
co-material como essa consciência é produzida.
Se a mente de fato é uma construção, como poderia assaltar o altar da fortu-
na e controlar a tudo? É um devaneio, uma loucura, uma histeria coletiva. Al-
guém em algum momento falou “somos livres para pensarmos o que quisermos;
a ideia é infinita e perfeita”, e, com os olhos cintilando e o coração em taquicar-
dia, os demais urraram em concordância. E assim fez-se a fábula do ser humano.
Atormentado pela angústia, fez de uma prepotente afirmação a sua verdade. E
não é este um meio eficiente para contornar todas as adversidades? Que sim ou
que não, o que se seguiu na história foi o mais genuíno ato de covardia (ou se
se preferir, de alienação do espírito): decidiu-se pelo conforto da ilusão em vez

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

da escabrosidade da matéria. E daí vem a Filosofia do eixo socrático-platônico


— que acabou subvertendo para si toda a Filosofia —, e mais tarde a Ciência,
revestida de impessoalidade, para justificar a fábula e revesti-la com o argumen-
to racional, e desponta então o preconceito, a suposta mentira e a verdade, sem
ter-se mais a compreensão de que trata-se, antes, de uma pulsão, de um anseio,
de uma necessidade daquele que pensa. Assim, o filósofo que almeja pensar à
parte do mundo, desconecta o produto de sua ideia à matéria, sua fonte gerado-
ra, se impõe enquanto razão e por fim, inverte o domínio das coisas. “A partir
desta ‘crença’ esforçam-se em alcançar um ‘saber’, criam a coisa que, afinal, será
pomposamente batizada com o nome de ‘verdade’” (NIETZSCHE, 2001, p. 12).
E qual o argumento levantado por estes filósofos que pensam à beira do
mundo? Vejamos o que diz Kant: “Não resta dúvida de que todo o nosso
conhecimento começa pela experiência” (KANT, 2001, p. 62) Aqui, ele
parece admitir a dependência da razão humana, mas note-se o uso do termo
“começar”; continua: “Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a ex-
periência, isso não prova que todo ele derive da experiência.” (KANT, 2001,
p. 62); arrematando:

Há, pois, pelo menos, uma questão que carece de um estudo mais
atento e que não se resolve à primeira vista; vem a ser esta: se haverá
um conhecimento assim, independente da experiência e de todas as
impressões dos sentidos. Denomina-se a priori esse conhecimento
e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na
experiência. (...) designaremos, doravante, por juízos a priori, não aqueles
que não dependem desta ou daquela experiência, mas aqueles em que
se verifica absoluta independência de toda e qualquer experiência. Dos
conhecimentos a priori, são puros aqueles em que nada de empírico se
mistura (KANT, 2001, p. 62).

A questão enfrentada por Kant era estabelecer como se dá este juízo sintético
a priori, ou seja, como poder afirmar algo sobre algo sem que haja a necessidade
da percepção pelos sentidos. Neste enfrentamento, o professor alemão fornece
à ainda incipiente sociedade moderna as chaves para o castelo onde repousa o
indivíduo: como Copérnico para o sistema solar, o sujeito, não mais o objeto,
passa a figurar no centro da problemática do conhecimento. Em palavras mais
esmiuçadas, não seria o sujeito regulado pelo objeto, mas este regulado pelo
sujeito — sujeito enquanto razão — que agora se torna o ser que dá sentido

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

às coisas no mundo e que, de um modo atípico, o constrói através do exercício


racional. É famosa a sua passagem no prefácio da Crítica da Razão Pura:

Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos


objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante
conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-
se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se
não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os
objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim
já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de
um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobre
eles antes de nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhança com
a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação
dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de
estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor
resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis. Ora,
na metafísica, pode-se tentar o mesmo, no que diz respeito à intuição
dos objetos. Se a intuição tivesse de se guiar pela natureza dos objetos,
não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário,
o objeto (enquanto objeto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa
faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade
(KANT, 2001, p. 45 – 46).

O que Kant fez aqui? Ora, o que nem os racionalistas dos séculos anteriores
tiveram a audácia de conceber. Estacou a razão definitivamente no centro de
gravidade do mundo, sem qualquer pudor, numa espécie de convencionalismo
— ou seria boa vontade? — desassombrado. O que o sujeito percebe, por meio
de sua razão, sua construção do mundo, é tudo aquilo que pode ser conhecido;
contudo, não é a coisa em si, admite. A realidade humana diferiria da reali-
dade real, pois esta seria incognoscível, impossível de ser conhecida. Disto, se
a coisa em si não pode ser captada, a coisa elaborada pelo produto racional se
transforma em coisa da realidade humana, única acessível. Daí, agora, os juízos
sintéticos a priori se tornam possíveis, porque derivados do indivíduo, o centro
do conhecimento humano.
Aqui, a mente faz a sua própria teoria, que a legitima; elabora sua pró-
pria emancipação e sua miséria. Diz “sou livre, dentro das liberdades a que
eu mesma me imponho” e se convence disto. Ela cria a verdade, na medida
em que enuncia os pressupostos do que é a verdade. Adentra-se aqui num

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labirinto intrincado e aparentemente sem fim nem saída, em que a mente a


todo tempo tenta se justificar a partir de si mesma. Qual o limite? Qual o
fim do labirinto? Se a mente precisar se auto justificar, de duas consequên-
cias, uma das: ou não teremos labirinto, travaremos logo na entrada, florida
com as felicitações de quem fez uma grande campanha; ou suas paredes nos
conduzirão a um abismo eterno. Na Ideologia, ao tratar sobre a burguesia na
Alemanha, Marx cita o professor alemão:

A forma característica que assumiu na Alemanha o liberalismo francês,


que se baseia em reais interesses de classe, encontramos novamente em
Kant. Nem ele, nem os burgueses alemães, de quem ele foi o porta-voz
eufemístico, perceberam que na base dessas ideias teóricas estavam
os interesses materiais dos burgueses e uma vontade condicionada e
determinada pelas relações materiais de produção; por essa razão, ele
separou essa expressão teórica dos interesses que ela expressa, fez das
determinações materialmente motivadas da vontade dos burgueses
franceses puras autodeterminações da ‘vontade livre’, da vontade em si
e para si, da vontade humana, transformando-a, desse modo, em puras
determinações conceituais ideológicas e postulados morais (MARX e
ENGELS, 2007, p. 194).

Além de Marx, Nietzsche também faz a crítica a Kant, em Além do Bem e


do Mal:

Creio que é chegado o momento de substituir a pergunta de Kant: ‘Como


são possíveis os juízos sintéticos a priori?’ por esta outra pergunta: ‘Por
que é necessário acreditar nesta classe de juízos?’ Devemos lembrar que a
conservação de seres de nossa espécie necessita desses juízos que devem
ser tidos como verdadeiros, o que não impede por suposição, que possam
ser falsos, ou, para sermos mais claros, mais chãos e radicais: os juízos
sintéticos a priori não deveriam ser ‘prováveis’. Nós não temos nenhum
direito sobre eles, são como tantos outros juízos falsos que pronunciamos.
Entretanto, necessitamos considerá-los verdadeiros: isto nada mais é que
uma suposição imprescindível para viver (NIETZSCHE, 2001, p. 21).

Assim, a teoria kantiana, antes de elucidar uma vontade plena, livre em si,
acaba por solidificar as bases da ideologia que sustentam o indivíduo burguês;
mais ainda, que sustentam, a partir do argumento racional, a noção de indivíduo

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

do Estado Liberal; que essa noção fazia-se essencial para domesticar os espíritos
rebeldes e extraviados e que tinham muito mais função do que verdade; era, em
suma, uma verdade que se impunha, por uma pulsão, ou anseio, social e moral.
Não restam dúvidas de que Kant foi um dos maiores defensores deste indi-
víduo fundado na razão. Foi, em verdade, o último a se empenhar com tanto
esmero. A doutrina contratualista, nos dois séculos anteriores, consumou, no
terreno da filosofia política, o ser isolado que, a partir dos desígnios da sua cons-
ciência, convenciona a formação de uma sociedade civil. Assim é, por exemplo,
em Hobbes, onde o ser humano, lobo de si, a fim de preservar a própria vida,
acorda com outros seres humanos pela formulação de um contrato que crie uma
entidade com força suficiente para manter a paz — o Estado, ou o Leviatã. O
pensamento hobbesiano, contudo, carecia de maior contato com a classe à épo-
ca em ascensão, a saber, a dita burguesia, que necessitava de um modelo estatal
que não suprimisse a liberdade dos seus cidadãos. Nesse contexto, surge, como
um encaixe quase perfeito, o contrato político de John Locke, mais “amaneira-
do”, menos severo na sua concepção da função do Estado. Pois se para Hobbes,
o estado natural é estado de guerra generalizada, em Locke, os seres humanos
vivem naturalmente sob o jugo de uma lei natural, percebida e assimilada pela
razão. A sociedade civil apenas emerge para dar maior proteção à propriedade
do indivíduo — propriedade aqui compreendida em sentido amplo de vida, li-
berdade e bens. Tão colossal se torna o indivíduo que a este é dada a faculdade
de resistir a um governo que não cumprisse com tal função basilar do Estado.
Com Kant, o sujeito é inapelavelmente fechado em si; é posto como um impé-
rio, um ser fim de si mesmo, capaz de, com o esforço de seu pensar, criar e dar
sentido ao seu próprio mundo, seja o político, seja o da casa.
Conclui-se a história da Filosofia, e também a história do ser humano, que
prossegue a definhar, agora em seu mausoléu próprio, agora como um “rei”,
num castelo empoeirado e sem luz, onde qualquer rastro de vida parece nunca
ter anunciado passagem. Se devassa e se corrói, sentindo que lhe falta algo,
algo que não sabe expressar em palavras. Há uma imperfeição oculta em algum
canto, talvez sob as teias de aranha, um sabor ainda amargo na boca, um senti-
mento ruim, ah, um sentimento ruim...
Que há de concreto, pois? Nada, não há nada, além do sopro indistinguível
do vazio. O espelho, na sua mais tesa natureza, reflete apenas um abismo; o
expõe, como uma ferida na terra, que o ser humano repudia enxergar. Prefere
ser uma paródia de “rei”. Pois se tudo no mundo é criação resultante de um

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

embate caótico de matéria, o mundo é autêntica fluidez e acaso. E se tudo é


fluido, e tudo é acaso, nada possui uma essência indivisível. E se nada possui
essência, nada é a priori. E pelo acaso, nada está a priori. A árvore não é a
priori; nem o animal, nem a mulher, nem o homem. O que nos é revelado
pela superfície se perfaz apenas em uma aparente solidez, uma aparente esta-
bilidade. Olhamos e não descortinamos os processos anteriores que nos per-
mitiram estar neste ponto. O mero estar não é, vez que a construção do real é
ininterrupta. Mas se não somos a priori, como podemos achar que somos? É
como uma fotografia: eternizamos um instante efêmero, que passeia no tempo
e que, por seu aspecto enxuto, atribuímos-lhe veracidade absoluta. Sobre isso,
interessante colocação de Sartre:

O ser não é uma ‘estrutura entre outras’, um momento do objeto: é a


própria condição de todas as estruturas e momentos, o fundamento sobre
o qual irão se manifestar os caracteres do fenômeno. E, analogamente,
não é admissível que o ser das coisas ‘consista em manifestar sua essência’.
Porque então seria necessário um ser desse ser (SARTRE, 1943, p. 55).

Se não há nada essencial no ser, se homens e mulheres são um nada a priori,


se tudo no mundo resulta do acaso do encontro de partículas — assim também
o ser humano —, então, por consequência, nada no mundo, e mesmo o próprio
o mundo, está para nada, ou seja, nada possui um fim a priori; nem os seres,
nem as coisas, nem os homens, nem as mulheres. É a razão humana — e aqui
Kant estava correto, errou no que tange à excessiva valoração deste impulso
pretencioso — que, quando emerge ao mundo sensível, o ressignifica, e então
diz que uma pedra é uma pedra, e uma árvore é uma árvore, e quem sabe possa
ser outra coisa, além de árvore, se se transformá-la em algo diferente do que é.
A mente é quem atribui a si mesma um fim, como se dissesse “eu estou para
algo, para isto ou para aquilo” no processo de ressignificação do real.
Mas neste ponto da reflexão incide um outro problema a ser enfrentado:
se o ser humano, e tudo no mundo, é um nada a priori que não possui um fim
específico, de onde vem o movimento? Como surge o movimento? Aduz-se “o
ser humano foi feito para a convivência; é um animal gregário”; mas de onde
vem esta força que os torna gregários? Alega-se, por outro lado, “são todos dese-
jantes”; mas insistamos: qual o motor que impõe o desejo? Se for certo que uma
essência não há, que no lugar dela há apenas um monte de coisa alguma, que a

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

matéria se encontra imersa no vazio, em uma interação aleatória, como pode o


ser humano se movimentar dentro do espectro da vida? Como pode ainda dese-
jar, ou arguir que deseja? Como pode, ademais, se esforçar por perseverar em si,
dentro da sua insignificante e angustiante experiência? Precisamente, de onde
vem este esforço inconsciente, esta vontade absurda, que confronta — e persiste!
Mesmo diante de tanta fraqueza, persiste na contradição; é o seu último suspiro
— a contingência do real? O que impede que essa estirpe mal-acabada que é o
ser humano atrofie definitivamente?
Essa “vontade”, essa potência, que move o ser vivo para a conservação de si, é
explicada pela perspectiva essencialista, que precisamente por estar contida no
ser vivo, constitui-se como a sua essência.2 O ser humano seria essencialmente
potência, potência em busca da conservação de si. E por ser potência em prol
de si, e unicamente em prol de si necessariamente, e por nela não se encontrar
potência contra si, porque então o ser não seria, segue-se que não é potência
meramente para a conservação de si, mas para a expressão máxima de si, como
se no ser sempre estivesse presente esta necessidade de viver na condição mais
sublime de existência. O problema, contudo, reside pontualmente na contradi-
ção entre a ideia de essência e a concepção materialista de formação do real,
pois para admiti-la deve-se impor uma verdade, a primeira verdade, a verdade
metafísica. Nietzsche procura resolver essa contradição a partir de seu conceito
de vontade de potência, substituindo a ideia de potência em prol de si por um
impulso fundamental, que se manifesta em decorrência de uma resistência.3
Contudo, não preconiza o caráter contingente do próprio impulso, se limitando
a estabelecer para ele uma natureza dialética. Dessa forma, não há grande dife-
rença substancial entre a vontade de potência nietzschiana e a potência em prol
de si essencialista (contida de modo esmiuçado na filosofia de Espinosa, a quem
Nietzsche também critica). Os impulsos estariam presentes em toda a matéria
viva, não apenas no animal já formado, mas em cada célula constituinte des-
te animal, estando relacionado, pois, com o orgânico. Tudo o que vive, desde
a bactéria unicelular, possui vontade de potência que se expressa na medida
em que algo confronta o ser. Nessa perspectiva, o indivíduo seria constituído
de diversos impulsos, manifestando ele a resultante destes mesmos impulsos.
Perceba-se a diferença com o sistema metafísico, que apregoa uma essência una

2 Sobre isso, Espinosa na Ética (2007).


3 Ver Scarlett Marton, em Nietzsche, das Forças Cósmicas aos Valores Humanos (1990).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

e indivisível. Aqui Nietzsche inova por quebrar essa indivisibilidade: não há


uma essência que aponta para uma direção: há um conjunto de impulsos que se
sobrepõem e se subjugam em um processo de luta interna constante e ininter-
rupta, donde o ser expressa a resultante deste processo. Não há, também, von-
tade em prol da vida; há vontade de potência, ou seja, há impulsos que almejam
triunfar sobre outros, que eventualmente, pela desordem, encontram-se. Ora,
então como não há grande diferença substancial entre a vontade de potência e
a potência em prol de si, se a primeira é múltipla no indivíduo e a segunda una?
Se a primeira está para o triunfo, a segunda para a vida? Não há, na medida em
que o impulso, numa partícula — tomada exatamente no seu sentido elemen-
tar—, se torna o único orientador da própria partícula, e na medida em que este
impulso é aquilo que acompanha o orgânico. A necessidade de triunfar acaba
por tornar-se uma “essência” heterogênea do orgânico.
Falta, pois, responder de onde vem o impulso, para que enfim superemos
essa custosa dicotomia entre essência/existência. Se a resposta de Nietzsche foi
insuficiente para solucionar o impasse, não foi menos fundamental para a sua
conclusão definitiva. Tomemos, pois, a ideia basilar da crítica, a saber, a de que
tudo o que há, assim os seres vivos, são um resultado de uma interação material
anterior, e estes mesmos seres influenciarão na composição da realidade poste-
rior. Ora, imaginemos uma partícula solta, pronta, que num instante seguinte
encontra outras partículas. Que temos? Uma interação material entre as partí-
culas que se encontraram. O que a partícula solta é antes de se encontrar com
outra matéria? Não pode ser nada, além de si, nem pode conservar qualquer
movimento, pois se encontra no nada, de modo que a própria partícula se con-
funde com o nada no qual está imersa. Assim, não há falar também em impulso,
pois não há movimento, nem ação, nem reação. Não há, ainda, vontade. A
partícula é um nada, nada de tudo, não havendo qualquer razão de ser, um nada
a priori. Apenas o encontro material, ou seja, o encontro com outra partícula,
pode fazer com que ela manifeste algo. A interação leva, por conseguinte, à for-
mação de um impulso que eventualmente se manifesta em prol de si, mas não é
possível afirmar que necessariamente. E não é precisamente pelo caráter caótico
e indeterminável das relações materiais. Perceba-se que só então, somente de-
pois da interação material, é que nasce um impulso na partícula. O impulso não
é a priori; é a posteriori. O querer, o último suspiro, mesmo fragilizado, revela
uma resultante do conflito entre os impulsos presentes no ser, sendo, pois, tais
impulsos, derivados de um afeto, ou seja, de um ou mais encontros do ser vivo

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

com o mundo. O que irá definir o desejo, a necessidade, a ansiedade, portanto,


será o encontro material.
Se, contudo, cada ser vivo for, em verdade, um conjunto de impulsos, visto
que cada uma de suas partes constituintes, na medida em que interage, gera um
impulso, e o indivíduo não for fundado em sua razão, nem possui uma essência
una que o defina, como podemos daqui pensa-lo, ou melhor, delimitá-lo? Pois se
o indivíduo é uma pluralidade de outros corpos, aquilo que tomamos enquanto
unidade, não seria mera convenção? Por exemplo, digo que o corpo humano
é um indivíduo por nele haver uma pluralidade de corpos e impulsos. Uma
sociedade de humanos, nesse contexto, também não seria um indivíduo, por
também possuir uma pluralidade de corpos e impulsos? Deste modo, o planeta,
deste modo o sistema solar, e deste modo todo o real? Perceba-se que o concei-
to não fornece delimitação para que se diga que isto é o ser, ou aquilo é o ser;
em suma, qualquer coisa pode ser tomada como um indivíduo, na medida em
que se constitua como um conjunto de impulsos e mantenham determinada
proximidade. A metafísica espinosana procura se afastar deste outro impasse
fundando o indivíduo enquanto singularidade.4 Ou seja, o ser seria tomado
enquanto aquilo que é único no universo. Contudo, mesmo no conceito de
singularidade, ainda não há delimitação fixa que possa afirmar que isto é um
indivíduo e aquilo não. Aqui, tudo o que possui singularidade é um indivíduo,
e dentro do espectro do real, tudo pode ser tomado enquanto singularidade. É
certo que, para Espinosa, para que algo se configure como um indivíduo, faz-se
necessário que o conjunto esteja mais ou menos orientado em torno da mesma
finalidade, qual seja, a preservação daquilo que se toma enquanto um corpo
único. Assim, toda a matéria, ou partícula, que interaja, não para conservação
do corpo, mas para o seu desequilíbrio, nele gerando uma reação em prol de si,
não faz parte do indivíduo, pois não tem a tendência imanente de conservá-lo.
Contudo, dentro da perspectiva nietzschiana de impulso, não havendo a ideia
de potência em prol de si, mas de vontade de potência, que almeja triunfar so-
bre as demais partículas, os corpúsculos internos do corpo se confundem com
a matéria teoricamente externa ao corpo, pois em ambas há o mesmo impulso
movido pela necessidade de triunfar. Em Nietzsche, a tarefa da delimitação,
portanto, fica ainda mais delicada, justamente por não aceitar a ideia de uma
essência regente do ser.

4 Marilena Chauí deixa essa questão deveras esclarecida em seu livro Política em Espinosa (2006).

185
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

De modo que, em face da dificuldade de dizer o que não é um indivíduo,


a questão a ser apreciada deve ser compreender o que é o indivíduo humano,
ou o que é o indivíduo felino, ou o indivíduo inseto, etc. sem se procurar
um essência humana, mas buscando identificar o que constitui-se enquanto
experiência humana. Ora, é perceptível, e plenamente acessível aos sentidos,
a diferença, por exemplo, entre um ser humano e um carneiro. Mas onde, e
quando no decorrer da história, há, exatamente, essa diferença entre um e
outro? Quando o ser humano enxerga o carneiro como algo distinto de si?
Pois o que é ser humano, e o que é ser carneiro? Marx dirá na Ideologia que
o que diferencia o ser humano dos demais animais é a sua capacidade para o
trabalho, uma ideia que merece atenção. Diz, Marx, em nota de rodapé: “O
primeiro ato histórico desses indivíduos, pelo qual eles se diferenciam dos
animais, é não o fato de pensar, mas sim o de começar a produzir seus meios
de vida.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 87) O trabalho, pois, distinguiria a
espécie humana pelo fato de que com ele se é capaz de modificar o real de
modo a alterar a matéria e, com isso, alterar-se na matéria:

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião


ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos
animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo que é
condicionado por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de
vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material
(MARX e ENGELS, 2007, p. 87).

O fator material, portanto, caracterizador da espécie humana, seria a pro-


dução dos próprios meios de vida, que alterarão o modo de viver da própria
espécie, impedindo que toda a existência seja mera reprodução. Mas o trabalho
apenas pode individualizar o humano, não tendo alcance para individualizar o
indivíduo humano. Nesse sentido, a família ainda pode ser tida como um in-
divíduo humano, assim também uma comunidade, assim também uma nação.
Há ainda a estranha indagação: se uma outra espécie, por exemplo o símio do
conto de Kafka5, adquire a capacidade de realizar trabalho, ele vem a se inserir
no mundo humano, ou seja, vem a se tornar humano?
A delimitação permanece no campo da convenção, mas, perceba-se, não
trata-se de convencionar sobre o que é o indivíduo, mas sobre o que ele não é.

5 Refiro-me ao conto Um Relatório para uma Academia, presente no livro Um Médico Rural (1999).

186
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Pois, independentemente da delimitação que se fizer, no real, mesmo que se


admita o conceito de singularidade, tudo o que estiver orientado mais ou menos
para uma mesma finalidade, ainda será singular, e mesmo que se admita o con-
ceito de indivíduo na qualidade de pluralidade de corpos e de impulsos, todo
o mundo vivo pode ser tido como pluralidade de corpos e de impulsos. O indi-
víduo necessariamente existe. Assim, não será indivíduo tudo aquilo que não
corresponder ao conceito formado. O que Kant fez, consolidando o indivíduo
como razão, em verdade foi afastar o que não se afigura dentro da experiência
do indivíduo humano; o professor alemão definiu, então, o que o indivíduo não
é. O conceito de indivíduo é, portanto, negativo; trata-se de estabelecer o que ele
não é. Já o conceito de humano é positivo; pois trata-se de conceber o que ele é.
Enfim retornamos então ao indivíduo adoentado, que não consegue enxergar
de onde vem toda a sua angústia, todo o seu mal viver, já inteiramente preso dentro
do conceito rebuscado desta filosofia ardilosa que torna o ser humano império de
si, sem compreender como ele, império, pode sofrer tanto — pois se é dono de si,
deveria poder afastar o sentimento ruim, mas não afasta; seria ele um masoquista?
Ou um iludido? —, ter ainda acumuladas incomensuráveis dúvidas, parecer ainda
com a pessoa pequena da sua infância, inexperiente diante do mundo, com a úni-
ca diferença de que traz consigo certezas grosseiras. Aqui a noção apregoada de
indivíduo fundado na razão, que ensejou a criação do individualismo, distancia os
homens e as mulheres do que eles realmente são e, por acreditarem nesse conceito
mal-acabado, deformado, distanciam-se de si mesmos, e vivem perdidamente na
ilusão que criaram. Como dói, como corrói os corações... Quanta vontade de se
quebrar o espelho com uma pedra, e quanta falta de vontade de enfim confrontar
toda a angústia, todo o abismo... Ele olha para si, olha para a sua mão, percorre o
resto do corpo, e já não se reconhece. Pergunta talvez se algum dia se reconheceu,
numa languidez típica da sua espécie. Olha para os lados e só vê a poeira nos móveis
antigos e o brejo nas paredes; esqueceu que expulsou a todos, e que agora só há o
eco da sua consciência que, numa indefinida sobrevida de contradição, murcha
progressivamente, perdida de tudo, inclusive de si, mesmo que sua arrogância custe
em admitir, restando-lhe apenas os sonhos, as fantasias e as lembranças de outrora,
e convertendo-as, numa última atitude de resistência, para que não definhe abso-
lutamente. Sonha o pobre humano, toma o seu “antídoto”, e vê-se adequado, vê o
mundo justo, coeso, harmônico, moral. Vê-se dono do destino, tem uma casa bem
arrumada, tem um automóvel na garagem, “tem uma roupa limpa”, tem dinheiro
no banco, tem trinta dias de férias, tem o amor, tem a liberdade, tem amigos, tem a

187
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

força, tem a coragem, tem o reconhecimento, tem a satisfação! E então, vê que pode
até esboçar um sorriso, um sorriso bobo, meio sem graça, meio torto, ainda fraco,
tímido, envergonhado, mas ainda sim um sorriso, uma genuína alegria. Quanta
tolice, quantos delírios... Ainda queres olhar para essa figura miserável? Sob um
manto de alucinações, repousa, pois, o indigente e sofrível ser que se diz humano.

Referências bibliográficas

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Filosofia do Futuro. Curitiba: Editora Hermus, 2001.

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SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

188
O direito e a teoria da renda fundiária:
o IPTU como instrumento de recuperação
de mais-valias fundiárias no Brasil

Érica Milena Carvalho Guimarães Leôncio6


André Felipe Bandeira Cavalcante7

Introdução
A terra ao longo dos processos de desenvolvimento do capitalismo foi se
concentrando nas mãos de poucos e sua reprodução não se manifesta da mesma
forma que as demais mercadorias. A propriedade privada em conjunto com o
desenvolvimento capitalista da cidade ganha força e acaba por dominar as rela-
ções sociais fundadas num sistema de desigualdade social.
Marx e Engels destacam que a burguesia “criou cidades enormes, aumentou
num grau elevado o número da população urbana face à rural”, além disso, os
autores ensinam que esse processo de produção das cidades capitalistas “aglo-
merou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a proprie-
dade em poucas mãos” (MARX; ENGELS, 1997, p. 34).
O presente artigo tem como objeto o estudo do IPTU como instrumento
de recuperação de mais-valias fundiárias, previsto na Constituição Federal

6 Advogada, graduada pelo ICF (Teresina-PI), mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos


Urbanos e Regionais – PPEUR/UFRN (Natal-RN).
7 Bacharel em Direito pela UFRN (Natal-RN), mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos
Urbanos e Regionais – PPEUR/UFRN (Natal-RN).

189
de 1988, Código Tributário Nacional, no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257
de 2001) e legislações municipais. Entendendo-o não apenas como um
tributo em sua função fiscal, mas como uma ferramenta de auxílio à política
urbana, capaz de recuperar, em benefício da coletividade, os benefícios
auferidos pelos proprietários privados com a valorização de seus imóveis em
razão de ações do poder público, como obras de infraestrutura e alocação
de serviços para população.
No entanto, os municípios brasileiros têm apresentado dificuldades na efe-
tivação de tributos como o IPTU. Além disso, observa-se também que não há
uma clara compreensão da relevância dos instrumentos de política urbana pelos
cidadãos, tampouco uma cobrança para que sejam efetivados, sendo relevante
demonstrar como o IPTU pode auxiliar à política urbana, tanto com a sua ar-
recadação em si, como através da sua função extrafiscal.
A noção de recuperação de mais-valias fundiárias utilizada na nossa pesqui-
sa é a de mobilizar uma parte dos incrementos de valor da terra que tenham
sido decorrentes de ações alheias à dos proprietários de terras como: investi-
mentos públicos em infraestrutura, alterações administrativas nas normas ou
regulamentações de usos do solo (SMOLKA, 2014, p.14).
No que diz respeito à retenção da terra urbana, principalmente, aqueles
servidos por infraestrutura, leva parte da população a ocupar áreas inadequa-
das para moradia ou regiões de proteção ambiental ou terrenos ambiental-
mente frágeis. Surge, então, um processo de exclusão da população mais pobre
do acesso ao solo urbanizado. Dessa forma, existe um custo pela manutenção
de infraestrutura paga pela coletividade, mas que devido à capacidade con-
tributiva acaba comprometendo boa parte da renda das classes mais pobres e
exploradas (MARICATO, 2000).
Diante disso, questiona-se: em que medida a arrecadação do IPTU
possibilita (ou não) a recuperação de mais-valias fundiárias em prol da
coletividade? E partindo dessa problematização tem-se por objetivo geral
verificar se o IPTU tem capacidade de recuperar mais-valias fundiárias em
prol da coletividade
Para se chegar ao objetivo proposto, buscou-se a revisão sistemática de lite-
ratura através do uso de referencial teórico, bem como de teses e dissertações
recentes que analisam o IPTU e o conceito de recuperação de mais-valias fun-
diárias. Adotamos o método materialista histórico com base em autores como
Marx, Gonzalez, Topalov e Harvey para compreender a contradição entre a

190
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

valorização coletiva do solo da cidade e sua apropriação privatista. Bem como,


utilizaremos pesquisas mais recentes sobre a recuperação de mais-valias e o
IPTU de autores como Smolka, Furtado e De Cesare.

1. Propriedade de terra no Brasil e a teoria da


renda fundiária
Analisando, historicamente, o processo de urbanização no Brasil, percebe-se
que este processo é pautado por um desenvolvimento capitalista que estruturou
o território brasileiro através da apropriação de terras voltadas para acumulação
extensiva descrita por Brandão (2010), caracterizada pela alta concentração de
renda, riqueza e terras por uma elite privilegiada e por uma classe trabalhadora
sem acesso à propriedade, cidadania e direitos sociais, políticos e civis.
Partindo dessa noção, entende-se que a tanto a concentração fundiária
como a especulação e, consequente, valorização imobiliária estão na base
da expansão desordenada das cidades brasileiras, como demonstrado por
Gottdiener (1993), onde frequentemente se vislumbra processos de retenção
de terras orientados pelo mercado imobiliário ao lado do surgimento de
periferias distantes, onde se localizam as classes trabalhadoras, que, através
de processos de espoliação urbana, segundo retrata Kowarick (1993), são ex-
pulsas dos centros das cidades em direção as regiões mais afastadas, sem in-
fraestrutura e serviços públicos básicos, enquanto que um pequeno número
de proprietários é beneficiado pela valorização de terras mais próximas dos
centros urbanos, aonde a infraestrutura e os serviços chegam antes mesmo
da ocupação dessas áreas.

1.1. A Lei de Terras e a propriedade fundiária no Brasil


Brandão ensina que no Brasil o atraso estrutural constituiu-se através
de uma divisão de classes, onde por cima encontravam-se “classes funda-
das e arraigadas em formas mercantis, patrimonialistas, financeirizadas,
usurárias e rentistas, descompromissadas com o povo e a nação”, enquanto
que por baixo estavam “classes destituídas de direitos e de propriedade”,
assim, a história brasileira pode ser sintetizada “em movimentos em que
todas as heterogeneidades estruturais e as diversidades produtiva, urbana,

191
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

social e ambiental estiveram subordinadas à lógica econômica da valoriza-


ção fácil e rápida, isto é, de natureza imediatista, rentista e patrimonialis-
ta” (BRANDÃO, 2010, p. 48 – 49).
Os estudos acerca da realidade da questão fundiária são recentes e passaram
por longos períodos de submissão colonial. O primeiro grande debate de ideias
e teses que passaram a interpretar de forma diferente as origens e características
da posse, da propriedade e uso da terra no Brasil somente acontece na década
de 1960 (STÉDILE, 2012, p.18).
Vale destacar que em relação à propriedade da terra, a forma adotada pelos
colonizadores foi o monopólio da propriedade de todo território pela Monar-
quia e, dessa forma, a propriedade da terra não era capitalista. E como forma
de implantar e incentivar o modelo agroexportador a Coroa entrega grandes
extensões de terras aos capitalistas-colonizadores com base na ‘concessão de
uso’ com direito à herança. O marco jurídico para o surgimento e legitimação
da propriedade de terras no Brasil tem início na Lei n° 601/1850. Assim,

A lei proporciona fundamento jurídico à transformação da terra – que


é um bem da natureza e, portanto, não tem valor, do ponto de vista da
economia política – em mercadoria, em objeto de negócio, passando,
portanto, a partir de então, a ter preço. A lei normatizou, então, a
propriedade privada da terra [...] ela regulamentou e consolidou o
modelo da grande propriedade rural, que á a base legal, até os dias
atuais, para a estrutura injusta da propriedade de terras no Brasil
(STÉDILE, 2012, p.24-25).

Esse processo tem rebatimentos e influência no processo de concentração da


propriedade da terra até hoje, inclusive no processo de urbanização. O resgate
histórico mostra que vigora no país uma sociedade dividida em classes, de um
lado estando uma elite formada por uma aristocracia herdeira de latifúndios e
que tem na renda da terra, voltada para a especulação imobiliária e valorização
fundiária, uma das suas principais fontes de acumulação de riqueza e, na outra
ponta, uma massa trabalhadora a qual desde o início da urbanização das cida-
des foi negada a posse e a propriedade da terra.
Neste sentido, o poder público – que deveria atuar para diminuir as desi-
gualdades sociais e regulamentar a ocupação territorial – atua como garanti-
dor da segurança dos proprietários fundiários que se apropriam continuamente
dos territórios urbanos e regionais não adensados, ocupando descontinuamente

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

propriedades privadas que se valorizam em razão dos ganhos de retenção espe-


culativa da terra (BRANDÃO, p. 2010, p. 63 -64).
No interior das grandes cidades, esse processo de concentração fundiária
não foi diferente, sendo diretamente influenciado pelo capitalismo então vigen-
te no país. Ao retratar a periferia – que surge no cenário urbano brasileiro com
a intensificação da industrialização – Kowarick (1993, p. 35) caracteriza como
“aglomerados distantes dos centros, clandestinos ou não, carentes de infraestru-
tura, onde passa a residir crescente quantidade de mão-de-obra necessária para
fazer girar a máquina econômica”.
Diante do crescimento metropolitano explosivo, o autor destaca que “o poder
público só se muniu tardiamente de instrumentos legais para tentar dar um míni-
mo de ordenação ao uso do solo”. Ademais, percebe-se que o governo se restringiu
“a seguir os núcleos de ocupação criados pelo setor privado, e os investimentos
públicos vieram colocar-se a serviço da dinâmica de valorização-especulação do
sistema imobiliário-construtor” (KOWARICK, 1993, p. 35).
Assim, quando o Estado sai da sua condição de passividade, ele dificilmente
atua como um agente regulador do uso do solo urbano em benefício da comu-
nidade mais necessitada, mas sim em prol dos agentes do mercado imobiliário,
facilitando a valorização das áreas requeridas por este mercado.
Disso resulta um cenário urbano caótico, formado por um processo desorde-
nado de expansão urbana, onde o setor imobiliário – responsável pela ocupação
espacial – decide como bem quer quais áreas serão ocupadas e quais serão reti-
das em prol da especulação, ou seja, imensas areais mais próximas aos núcleos
centrais foram “guardadas” a espera de valorização, “enquanto zonas mais lon-
gínquas, sem qualquer infraestrutura eram abertas para a aquisição das classes
pobres”, sendo nítido que a ocupação do solo não seguiu nenhum critério de
planejamento governamental, sendo pautada na retenção especulativa de terre-
nos nas grandes cidades brasileiras (KOWARICK, 1993, p. 36).

1.2. Considerações sobre a Teoria da Renda da Terra e as


Mais-Valias Fundiárias
Ao analisar a teoria da renda da terra de Marx, Harvey entende que “o
capital pode ser encarado como o criador da propriedade da terra moderna,
da renda fundiária”. Assim, segundo o pensamento marxista, “a propriedade

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

privada da terra, como o capital e a usura do comerciante, é tanto um pré-


requisito como um produto do modo de produção capitalista” (2013, p. 502).
Quanto à propriedade privada, “a posse da propriedade privada na terra
confere poder exclusivo a pessoas privadas sobre algumas porções do globo”,
para tanto, “a propriedade privada na terra, na prática em geral registrada me-
diante levantamento cadastral e mapeamento, estabelece claramente a porção
da superfície da terra sobre a qual indivíduos privados têm poderes monopolis-
tas exclusivos”. Nessa análise, o autor considera que aqueles que estão melhores
localizados – no sentido de terem custos menores com transporte – e podem ter
um “excedente de lucro” (HARVEY, 2013, p. 437-438).
Mais adiante, aprofundando-se na compreensão da teoria da renda fundiá-
ria de Marx, Harvey entende que ela “resolve o problema de como a terra, que
não é um produto do trabalho humano, pode ter um preço e ser trocada como
uma mercadoria.”, assim, “a renda fundiária, capitalizada como o juro sobre
algum capital imaginário, constitui o valor da terra” (2013, p. 471). Já o lucro
obtido pelo proprietário com a valorização dessa propriedade através de ações
alheias a ele – como obras e melhorias urbanas realizadas pelo Estado – vem a
ser um “mais-valor” agregado a este terreno ou imóvel.
Assim, a renda fundiária é proveniente, em grande parte, do lucro obtido
pela valorização da terra, ou seja, pela expectativa gerada pelo mercado imo-
biliário de que seu valor seja acrescido pelas melhorias urbanas realizadas pelo
Estado, sem que o proprietário tenha realizado nenhum esforço para tanto, ou,
quando muito, beneficiou o terreno com uma construção (residencial ou comer-
cial), porém, não é esta destinação dada ao bem que corresponde ao seu valor
principal, mas sim, aquele que foi gerado através da mais valia agregada.
Explicando tal fenômeno, Gottdiener (1993, p. 245) traz que

Em resumo, a atividade imobiliária reflete o papel do espaço tanto como


fonte de criação quanto de realização de mais-valia; é relativamente
impérvia aos ciclos de acumulação de capital, exceto no tocante a
mudanças em suas formas de investimento (digamos, da habitação
suburbana para os edifícios de escritório e shopping centers na cidade); e
representa um processo mais fundamental da criação de riqueza do que
entenderam os teóricos da acumulação do capital.

Segundo o autor, “a atividade imobiliária é uma fonte de criação de mais-


-valia e não apenas de realização”, confirmando tal entendimento ao lembrar

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que “nos primeiros estágios de desenvolvimento suburbano, os especuladores


precederam os empreendedores”, pois estes últimos são os primeiros a penetrar
em áreas rurais, “comprando terra cultivada disponível e mantendo-a para fu-
tura subdivisão uma década antes do desenvolvimento”, constituindo, portanto,
“a vanguarda da expansão metropolitana não-planificada” (GOTTDIENER,
1993, p. 245 – 246).
O conceito de mais-valia fundiária tem sua base na teoria da renda de Marx,
como bem explica Harvey (2013), como sendo o lucro que o proprietário da ter-
ra aufere com a sua valorização em razão de ações alheias que geram uma mais-
-valia ao valor do imóvel. Assim, tem-se uma pequena parcela da população que
enriquece pelo simples fato de possuir terra em locais que se valorizam dentro
da cidade, seja pela ação estatal seja pelo interesse do mercado imobiliário.
Nesse sentido, Kowarick (1993, p. 40) afirma que

a especulação imobiliária não se exprime tão somente pela retenção de


terrenos que se situam entre um centro de suas zonas periféricas. Ela se
apresenta também com imenso vigor dentro das próprias áreas centrais,
quando zonas estagnadas ou decadentes recebem investimentos em
serviços ou infraestruturas básicas. O surgimento de uma rodovia ou vias
expressas, a canalização de um córrego, enfim, uma melhoria urbana de
qualquer tipo, repercute imediatamente no preço dos terrenos.

Essa explicação trazida pelo autor deixa claro como a mais-valia fundiária é
produzida e assimilada pelos proprietários privados. Nos ajuda na compreensão
da especulação mediante a retenção de terras e valorização imobiliária através
do incremento no valor por meio de obras públicas de infraestrutura construí-
das próximas aos seus imóveis, tornando-os mais acessíveis, mais bem localiza-
dos, entre outros atributos que contam para a valorização.
Em razão disso, é preciso compreender a necessidade de o Estado intervir
de forma a recuperar em prol da coletividade essa mais-valia que é produzida,
em regra, com recursos públicos, mas que não retorna em benefícios para a
cidade ou sua população, servindo, principalmente, à especulação imobiliária,
ao valorizar terrenos em locais privilegiados e ao enriquecimento dos agentes
do mercado imobiliário.
Tal recuperação de mais-valias somente é possível com uma ação estatal
direta a partir da utilização dos instrumentos previstos no arcabouço legislativo,
que visa justamente diminuir as desigualdades sociais existentes, minimizando

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

os efeitos da concentração fundiária e da especulação imobiliária que tanto


prejudicam as cidades brasileiras. Desse modo, compreende-se que o Estado
tem um papel primordial, pois a mera expectativa de que certas terras venham
a ser destinadas para determinados usos urbanos no futuro ou para uma reurba-
nização por si só já pode gerar em aumentos significativos no preço das terras,
mesmo antes da realização de qualquer investimento público.
Em razão disso, Smolka entende que “além dos ganhos indevidos acumulados por
uma minoria privilegiada, que poderiam ser utilizados para financiar investimentos
públicos, decisões públicas tendenciosas podem resultar em custos sociais não conta-
bilizados”, sendo comum ver casos no país de decisões públicas questionáveis “relacio-
nadas com a alocação espacial dos investimentos em infraestrutura urbana e servi-
ços e com o uso arbitrário de normas e regulamentos de usos do solo” (2014, p. 5).
Nesse sentido, Gottdiener (1993, p. 246 - 247) entende que “as atividades
dos governos locais, inclusive projetos de planejamento, zoneamento e regu-
lamentação do código de edificações, se tornam todas altamente políticas em
favor de interesses imobiliários”, além disso, o autor acrescenta que “líderes polí-
ticos locais usam muitas vezes o cargo público de forma corrupta, a fim de tirar
vantagens pessoais e para o partido de sua capacidade de regulamentar o uso da
terá nas regiões que estão crescendo rapidamente”.
Ademais, “o custo do investimento para a provisão de serviços é muito me-
nor do que o incremento do valor da terra daí resultante” (SMOLKA, 2014, p.
7), ou seja, o valor que o Estado investe em infraestrutura e serviços urbanos
é bem menor do que a valorização dos imóveis beneficiados pela ação estatal.
Portanto, é nítido o lucro obtido pelos proprietários de terras urbanas sem
que tenham promovido qualquer investimento, sendo fruto exclusivamente de
ações externas (em grande maioria promovidas pelo governo), de onde estes
proprietários não implementaram nenhum esforço, sendo este processo deno-
minado pela doutrina de produção de mais-valia fundiária.

2. Instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias

2.1. Recuperação de Mais-Valias Fundiárias


A urbanização brasileira é marcada por uma grande concentração fundiária
pertencente a uma seleta classe de proprietários que ao longo do tempo enri-

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

quecem em razão de uma urbanização desordenada, formando cidades cada


vez mais segregadas, tendo na ação governamental o impulso necessário para a
valorização das áreas retidas pela especulação.
Segundo o estudo de Smolka (2014, p. 2) há “uma forte pressão pela oferta
de terras dotadas de serviços, o que resulta em incrementos significativos nos
valores das terras, os quais são distribuídos de forma desigual entre os proprie-
tários e outros agentes envolvidos”, sendo clara a necessidade do poder público
de recuperar as mais-valias fundiárias produzidas por ações alheias aos investi-
mentos dos proprietários.
Diante disso, o autor afirma que:

A noção da recuperação de mais valias fundiárias é a de mobilizar, em


benefício da comunidade, uma parte ou a totalidade dos incrementos
de valor da terra (benefícios indevidos ou mais-valias fundiárias)
que tenham sido decorrentes de ações alheias à dos proprietários
de terras, tais como investimentos públicos em infraestrutura ou
alterações administrativas nas noras e regulamentações de usos do
solo (SMOLKA, 2014, p. 2).

Para ele, apesar de ter crescido de forma geral o interesse das gestões locais
pelos instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias, a efetiva imple-
mentação continua sendo o desafio principal. Segundo as pesquisas realizadas
pelo Lincoln Institute of Land Policy, ainda é vista como “uma ferramenta para
promover a equidade nas cidades, mais que uma forma de avançar na autono-
mia fiscal municipal e no desenvolvimento urbano em geral” (2014, p. 60).
Para que a recuperação de mais-valias fundiárias ocorra é necessária uma
conversão desses “incrementos do valor da terra” produzidos por ações estatais
em receitas públicas “através da cobrança de impostos, taxas, contribuição de
melhoria e outros meios fiscais, ou mediante a provisão de melhorias locais de
forma a beneficiar a comunidade” (SMOLKA, 2014, p. 9).
No Brasil, o Estatuto da Cidade – Lei Federal 10.257 de 2001 – incor-
pora vários princípios relevantes à recuperação de mais-valias fundiárias,
princípios estes que foram estabelecidos na Constituição Federal de 1988
e regulamentados pela legislação federal, que estabeleceu instrumentos de
efetivação da política urbana, de forma a possibilitar a recuperação de mais-
-valias em prol das comunidades.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

No entanto, as pesquisas mais recentes demonstram a dificuldade de im-


plementação desses instrumentos pelas gestões municipais, ainda sendo baixo
o interesse pela recuperação de mais-valias pelos gestores, bem como o desco-
nhecimento da população dessas ferramentas que estão à disposição da admi-
nistração pública.

2.2. A recuperação de mais-valias fundiárias no


ordenamento jurídico brasileiro
A propriedade imobiliária urbana, vista tradicionalmente como um insti-
tuto natural, perpétuo e absoluto, passa a ser percebida dentro do Direito Ur-
banístico. Assim, segundo Débora Sotto (2015, p. 98), “o valor econômico de
um imóvel urbano não é determinado apenas pelos traços ínsitos do bem em si
mesmo considerado, mas também e principalmente por características decor-
rentes da sua inserção na cidade”, podendo repercutir direta ou indiretamente
no valor da propriedade imobiliária urbana.
A inclusão no texto constitucional de um capítulo específico para a política
urbana, com instrumentos voltados à garantia da função social da cidade e da
propriedade urbana, no âmbito de cada município, partiu da luta de um movi-
mento multisetorial e nacional pela reforma urbana iniciado nos anos de 1960
(ROLNIK, 2002, p. 21).
A reforma urbana teria como principal objetivo a instituição de um novo
padrão de política pública orientado, entre outros princípios, pela necessi-
dade de uma gestão democrática das cidades, o fortalecimento da regulação
do uso do solo urbano e focalização de investimentos em política urbana
que favoreça as necessidades coletivas de consumo das camadas populares
(RIBEIRO, 2003, p. 14)
Nesse contexto, o art. 182, §2º da CF vincula a propriedade urbana à sua
função social de ordenação da cidade. A literatura explica que conforme as
normas dos artigos 182 e 183,

A propriedade urbana é formada e condicionada pelo direito urbanístico


a fim de cumprir sua função social específica: realizar as chamadas
funções urbanísticas de propiciar habitação (moradia), condições
adequadas de trabalho, recreação e circulação humana; realizar em
suma, as funções sociais da cidade (SILVA, 2010, p.75).

198
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Para assegurar a adequada utilização dos imóveis e o combate ao uso espe-


culativo do solo urbano através dos planos diretores, a Constituição Federal
de 1988, em seu art. 182, §4º, estabeleceu alguns mecanismos de efetivação
da função social da propriedade urbana. Em que pese ter estabelecido a fun-
ção social da propriedade urbana, bem como mecanismos para sua efetivação a
Constituição Federal de 1988 não estabeleceu parâmetros explícitos para carac-
terizar o seu cumprimento, deixando esta tarefa a cargo do legislador municipal,
através da edição dos planos diretores e de leis específicas.
Além disso, o legislador constitucional previu no artigo acima citado a ne-
cessidade de uma lei federal que determinasse as diretrizes gerais pertinentes à
matéria, somente vindo a ter concretude com o advento do Estatuto da Cidade
(Lei nº 10.257 de 2001) que estabelece regras gerais e determina que os prazos e
condições para implementação estejam previstos em legislação específica, apli-
cando-se em áreas previamente determinadas no plano diretor (CARVALHO
FILHO, 2009, p. 71).
Os instrumentos previstos na CF/1988 e no Estatuto da Cidade/2001, con-
forme afirma a literatura, possuem como objetivo “induzir a ocupação de áreas
já dotadas de infraestrutura e equipamentos, mais aptas para urbanizar ou po-
voar”, o que pode contribui para evitar a expansão horizontal da cidade para
áreas sem infraestrutura ou ambientalmente frágeis, bem como, fazendo o cor-
reto uso de terrenos vazios dentro da malha urbana, que já são beneficiados
pelos investimentos públicos, não servindo apenas à especulação imobiliária
(ROLNIK, 2002, p.63).
Com o objetivo de efetivar a captura de mais-valias fundiárias a legislação
urbanística traz mecanismos direcionados para esse fim. Pinheiro defende que
a diversidade de instrumentos se faz necessária para que os municípios possam
viabilizar “a cobrança de contrapartidas e impostos daqueles que se apropriam
de excedentes gerados pelo poder público e daqueles que subutilizam áreas con-
sideradas estratégicas da cidade”. Para o autor, esses instrumentos “devem ser
utilizados com junto ao planejamento urbano para minimizar os impactos nega-
tivos da produção capitalista no espaço urbano” (2016, p. 53).
Furtado acrescenta que em “praticamente todos os instrumentos está
presente a possibilidade de geração de impactos diferenciados sobre o valor dos
terrenos afetados em relação ao conjunto dos terrenos urbanos”. Ademais, além
dos instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias tradicionais, “como
a outorga onerosa e a própria contribuição de melhoria”, existem também

199
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

outras possibilidades em instrumentos mais genéricos “incluídos ou não como


instrumentos de política urbana no Estatuto da Cidade, como respectivamente
as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) e o Imposto Predial e Territorial
Urbano (IPTU)” (2007, p 248).
Porém, o que se percebe através das pesquisas mais recentes com foco nas
experiências brasileiras é que existem desafios na efetivação desses instrumentos
pelas gestões municipais. Teremos como foco de análise, neste trabalho, o IPTU
enquanto instrumento que apresenta características que possibilitam uma rela-
ção entre a questão fiscal e a questão urbana, principalmente, relacionada na
regulação do uso e ocupação do solo urbano por parte do Poder Público.

3. O IPTU como instrumento de recuperação de


mais-valias fundiárias

3.1. O IPTU no ordenamento jurídico brasileiro


Em relação ao poder de tributar dos municípios brasileiros, desde a Consti-
tuição de 1934 que os municípios alcançaram tal possibilidade com a criação
do imposto predial e do imposto territorial (DE CESARE, 2015, p. 15). Porém,
somente com promulgação da Constituição de 1988 os municípios passaram
a ter autonomia, sendo equiparados aos demais entes federativos – União, Es-
tados e Distrito Federal – no entanto, no que se refere às rendas tributárias, a
União ainda fica com a maior parte das receitas, sendo parte delas, em seguida,
distribuída para Estados e Municípios, conforme dispõe os artigos 157 a 162 da
CF/88 (BRASIL, 1988).
Segundo Fernandes (2016, p. 143), os municípios, via de regra, somam
grandes prejuízos em razão da baixa arrecadação de impostos como IPTU e
o ITBI/ITIV e da Contribuição de Melhoria, bem como da dificuldade em
gerir os instrumentos previstos nos Planos “que poderiam ajudar a prevenir
e minimizar os prejuízos financeiros e decorrentes de um mau planejamento
e gestão dos Municípios”.
O IPTU está regulamentado no CTN em seu capítulo que trata dos
impostos sobre o patrimônio e a renda. O qual inicia com o art. 32, que
estabelece que esse imposto é de competência dos Municípios, tendo como
fato gerador “a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por

200
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

natureza ou acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona


urbana do Município” (BRASIL, 1966).
Quanto à base de cálculo, o art. 33 do CTN traz “o valor venal do imóvel”
(BRASIL, 1966). Machado o conceitua como “aquele que o bem alcançaria se
fosse posto à venda, em condições normais” (2013, p. 404). Ademais, no que se
refere ao valor venal do imóvel como base de cálculo do IPTU, Barreto afirma
que “não é lícito ao legislador municipal adotar qualquer outra”, assim não se
pode eleger qualquer outro valor seja ele, histórico, locativo, especulativo, justo
ou de seguro (2009, p. 206).
Assim, para se fixar o valor venal do imóvel, Barreto (2009, p. 209) as-
severa que deve ser feita uma avaliação de cada imóvel, “não sendo possível,
dessa forma, estabelecer, previamente, em lei, o quantum do imposto. A
determinação numérica do valor venal só poderá ser realizada a posterio-
ri”. Diante dessa constatação, o autor entende que a administração pública
pode optar por uma dessas formas:

a) proceder a avaliações individuais, inteiramente a cargo dos agentes


tributadores;
b) empregar o sistema de avaliação em massa, isto é, proceder a avalia-
ções com lastro em regras e métodos predeterminados, mediante o em-
prego de pessoal especializado e distribuído nas várias fases do processo
(BARRETO, 2009, p. 209).

Já em relação aos contribuintes do IPTU, o art. 34 da lei tributária na-


cional determina que serão assim considerados “o proprietário do imóvel, o
titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título” (BRASIL,
1966). Ou seja, tem o dever de pagar IPTU aquele que seja proprietário ou
possuidor do bem imóvel, ressalvando-se que o locatário não tem obrigação
tributária perante o fisco.
Por fim, no que tange às alíquotas do IPTU, Machado afirma que nem a
CF/1988 e nem o CTN impõem qualquer limitação à fixação de alíquotas pelos
Municípios (2013, p. 401). Sobre essa não imposição constitucional de alíquotas,
Barreto defende que se fundamenta “na diversidade das características regionais,
a exigir tratamento consentâneo com as peculiaridades socioeconômicas das mi-
lhares de comunas brasileiras”, porém o autor lembra que o princípio da vedação
do confisco deve ser considerado para efeito de estipulação desse percentual, de
modo a evitar que o imposto venha a ser confiscatório (2009, p. 213).

201
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

3.2. O IPTU enquanto instrumento de recuperação de


mais-valias fundiárias
Além da finalidade fiscal – arrecadar recursos financeiros para custear as
despesas públicas – o IPTU se destaca da maioria dos outros tributos em razão
da sua extrafiscalidade, pois o imposto está diretamente ligado à promoção do
ordenamento territorial e do desenvolvimento urbano, sendo utilizado, segundo
a literatura, para “evitar a ociosidade da terra urbanizada, recuperar as mais
valias produzidas por investimentos públicos, mitigar a informalidade, legitimar
a posse quando viável e universalizar a provisão de recursos públicos” (DE CE-
SARE, 2015, p. 18).
Assim, ao se fazer uso efetivo do IPTU, o custo da retenção da terra ocio-
sa aumenta, reduzindo o retorno econômico da especulação imobiliária e,
consequentemente, liberando terra para ser devidamente ocupada. Ao clas-
sificar o IPTU, a doutrina tributarista entende que se trata de um imposto
patrimonial, vez que incide sobre a riqueza, sendo embasado pelo princípio
da capacidade contributiva objetiva, tendo o valor venal do imóvel como
presunção de riqueza. Entretanto, de acordo com o princípio do benefício, o
IPTU pode ser graduado conforme os benefícios urbanos - serviços públicos
e infraestrutura - providos pelo Município.
Além disso, o imposto atua também na promoção da cidadania, “na medida
em que alerta para a responsabilidade dos cidadãos com o financiamento dos
gastos públicos”, sendo apelidado de “Condomínio da Cidade” no gibi "Jacinto
BenéFício e o IPTU", publicado pelo Ministério das Cidades, Lincoln Institute of
Land Policy e Caixa Econômica Federal (DE CESARE, 2015, p. 19).
A função extrafiscal do IPTU se dá em razão deste imposto se caracte-
rizar pela busca da justiça tributária, “uma vez que é tido como um instru-
mento de intervenção econômica e social”, ou seja, o IPTU deve incidir de
modo a reduzir as desigualdades socioespaciais e a especulação imobiliária,
além disso, pode funcionar também como um instrumento jurídico de orde-
nação do espaço frente às questões da alta demanda e pouca oferta de terra
na cidade (ARAGÃO, 2016, 35).
Assim, em que pese ser um imposto e ter como função primordial gerar re-
ceita para os cofres públicos, a literatura específica e experiências em algumas
cidades, principalmente latino-americanas, vêm demonstrando que o IPTU

202
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

tem um grande potencial para ser utilizado como instrumento de recuperação


de mais-valias fundiárias pelos Municípios.
Gaio (2012, p. 37) assevera que, “embora o imposto predial e territo-
rial urbano (IPTU) não seja concebido com essa finalidade, observa-se que
qualquer imposto sobre a propriedade imobiliária é uma forma de captura
de mais-valias”. Isso pode ser verificado, principalmente, quando se aplica
o IPTU com finalidade extrafiscal através da utilização de alíquotas pro-
gressivas, pois “além de sua incidência ser maior nas áreas mais beneficiadas
pelo Poder Público, a progressividade igualmente possibilita que as popula-
ções de baixa renda paguem menos, se comparado com o sistema tradicional
de arrecadação”. Outro elemento importante defendido pelo autor é que
como no Brasil há uma baixa aplicação da Contribuição de Melhora, resta
ao IPTU o papel de mecanismo mais eficaz de apropriação da valorização
imobiliária pelo Estado.
Entretanto, os municípios brasileiros têm uma arrecadação do IPTU abaixo
do seu potencial, o que pode ser explicado pelo elevado grau de informalidade
na cobrança do imposto, o que dificulta a atualização dos cadastros de imóveis e
limita a base de imóveis tributados pelos municípios. Segundo De Cesare (2016,
p. 72), em geral, a atualização da base cadastral depende do esforço do fisco,
mas também há uma necessidade de se aumentar o compromisso da comunida-
de local, ou seja, dos contribuintes.
Esse tipo de tributação, além de ser baixa provoca uma desigualdade fiscal e,
por conseguinte, gera injustiça social, contribuindo para a concepção pessimis-
ta que, grosso modo, prevalece entre os cidadãos em relação à gestão tributária.
Corroborando com esse posicionamento, Barreto compreende ser aconselhável
que as municipalidades utilizem os Mapas de Valores, pois “facilita e racionaliza
o trabalho, resguarda a necessária uniformidade no comportamento do Fisco,
evita discrepâncias próprias do arbítrio e representa segurança para o Fisco e os
contribuintes” (2009, p. 227).
Portanto, entende-se que a valorização é gerada de forma coletiva, principal-
mente pela implantação de infraestrutura urbana. Assim, deve ser socializada
entre todos os cidadãos, ou seja, voltando para o patrimônio público de forma
a ser utilizada para prover obras e serviços que beneficiem a todos e contribua
para um processo de urbanização com base no princípio de justiça socioespacial.
Para que isso ocorra, as Administrações Públicas devem “deixar de sus-
tentar e incentivar o latifúndio urbano, a especulação imobiliária e os vazios

203
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

urbanos em área de infraestrutura consolidada”. Além disso, precisa ser en-


frentada com rigor a sonegação e a inadimplência de forma que o IPTU possa
efetivamente garantir o Direito à Cidade (FERNANDES, 2016, p. 170). Na
teoria o IPTU nasce como um tributo essencialmente justo, vez que visa a re-
distribuição de riquezas, a preservação do mínimo existencial e a diminuição
da especulação imobiliária. Na prática, as municipalidades devem ser pauta-
das e se pautarem por tais parâmetros jurídicos para que o IPTU cumpra as
suas funções integralmente.

Considerações finais
Atualmente há nas grandes cidades uma forte atuação do Direito Urbanísti-
co sobre a propriedade, com a ordenação da ocupação do espaço urbano a partir
de interesses coletivos e da qualidade de vida dos cidadãos, não se sujeitando à
discricionariedade do proprietário privado (CARDOSO, 2008). Além da fina-
lidade fiscal, o IPTU se difere da maioria dos outros tributos em razão da sua
extrafiscalidade relacionada também diretamente com questões urbanística.
Deste modo, apresenta uma relação direta com o ordenamento territorial e o
desenvolvimento urbano, fazendo-se necessária a compreensão da formação da
propriedade privada e sua relevância na produção e reprodução do espaço capi-
talista, como no caso brasileiro que, apesar de ter uma origem não propriamente
capitalista, devido a forma como se deu a colonização e a ocupação inicial das
terras no país, logo foi modificada pela legislação então vigente, de modo a
expandir-se através de um modelo capitalista que priorizou as camadas mais
abastadas da população, privilegiando os grandes latifúndios de terra e, mais à
frente, uma urbanização das cidades de forma segregada, onde as melhores loca-
lizações foram sendo paulatinamente ocupadas pelas classes de mais alta renda,
enquanto às camadas populares restou ocupar as periferias distantes, sem aces-
so aos serviços públicos e às infraestruturas básicas, bem como, essa ocupação
se deu de forma irregular, pois o Estado somente passou a se preocupar com a
regulamentação dessas áreas recentemente, especialmente com a Constituição
Federal de 1988 e o Estatuto das Cidades em 2001.
A partir daí que se passou a tratar de instrumentos voltados para o uso e
ocupação ordenada do solo urbano, bem como da necessidade de se recuperar
as mais-valias fundiárias existentes nas propriedades privadas.

204
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Ao se analisar a relação jurídica e as potencialidades do IPTU, as literaturas


e pesquisas mais recentes, permitem compreender o imposto também como um
instrumento de controle do uso e ocupação do solo urbano, pois possibilita
evitar os vazios e a subutilização da terra urbana ao utilizar o mecanismo de
recuperação das mais valias produzidas por investimentos públicos. Bem como,
permite mitigar a informalidade, legitimação da posse quando viável e univer-
salizar a provisão de recursos públicos (DE CESARE, 2016).
No entanto, percebe-se que as prefeituras brasileiras, via de regra, reclamam
permanentemente da ausência de recursos próprios, dependendo de transfe-
rências governamentais para levar adiante seus projetos, sem levar ao conhe-
cimento da população a sua capacidade e potencialidade de tributar e gerir
recursos provenientes da própria arrecadação municipal. Diante disso, as teses
mais recentes que abordam essa temática mostram que não há entre a gestão
municipal e os cidadãos um diálogo sobre como os instrumentos de recuperação
de mais-valias fundiárias podem ser usados para beneficiar suas comunidades e,
numa perspectiva mais ampla, garantir o direito à cidade para seus moradores.
Assim, há necessidade de se buscar esse diálogo, bem como aprofundar os
estudos acadêmicos que tragam novas evidências sobre como funcionam con-
cretamente as políticas e os instrumentos de recuperação de mais-valias fundi-
árias, objetivando uma mudança de comportamento e de atitudes dos gestores
municipais, dos proprietários e da comunidade em geral.

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208
Sobre o método:
Pachukanis como seguidor de Marx

Walber Nogueira da Silva1

Introdução
Pachukanis, para chegar às suas teses acerca do Direito, apresentadas em A
Teoria Geral do Direito e o Marxismo, foi fiel ao método usado por Marx na aná-
lise da economia política, em geral, e da sociedade capitalista, em particular2.
Mas o que seria este método? Em que ele consiste?
Marx, na Introdução de 1857, escrita como introdução aos Grundrisse, mas
publicada também no Brasil junto ao texto de Para a Crítica da Economia Políti-
ca, desenvolve um princípio metodológico que tem como pontos fundamentais
ir do abstrato ao concreto e do simples ao complexo. Dessa forma, para realizar sua
análise da economia política, o pensador alemão parte das determinações mais
simples como o preço, o valor e a mercadoria, para reproduzir uma totalidade
concreta enquanto uma unidade rica de inter-relações e determinações. Em
sentido contrário caminhavam os economistas do século XVII, que começaram
pelas noções concretas e complexas de Nação, Estado e População para chegar
às mais simples e abstratas. A crítica marxiana mostrou que em tal método a
representação plena volatiza-se em determinações abstratas.

1 Advogado, professor de Direito. Graduado em Direito (UFC), especialista em Literatura Aplicada à


Semiótica e Áreas Afins (UECE), especialista em Filosofia Moderna do Direito (ESMP/CE - UECE),
mestre em Filosofia (UECE).
2 Tal “fidelidade” foi chamada por Lukács (2003, p. 64) de “ortodoxia”: “Em matéria de marxismo,
ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao método. Ela implica a convicção científica de que, com
o marxismo dialético, foi encontrado o método de investigação correto, que esse método só pode ser
desenvolvido, aperfeiçoado e aprofundado no sentido de seus fundadores (...)”.

209
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Assim, Marx não começa sua pesquisa pensando a economia em geral, mas
por uma análise da mercadoria e do valor (as determinações mais simples). Isto
porque a economia, enquanto esfera de relação entre particulares, somente se
diferencia das outras atividades vitais, com as quais forma uma totalidade orgâ-
nica, com o surgimento da troca.
Na mesma senda, Pachukanis principia sua análise definindo a Teoria Geral
do Direito como sendo o desenvolvimento dos conceitos jurídicos fundamen-
tais, isto é, os mais abstratos. Pertencem a esta categoria conceitos como o de
norma jurídica, relação jurídica e sujeito de direito. Tais conceitos, por sua natu-
reza abstrata, são utilizáveis em qualquer domínio do Direito, bem como sua
significação, lógica e sistemática permanecem ao mesmo domínio, independen-
temente do conteúdo concreto das normas jurídicas, ou seja, eles (os conceitos)
conservam sua significação mesmo que o seu conteúdo material concreto se
modifique de uma maneira ou de outra. Eles são o resultado de um esforço de
elaboração lógica que parte das relações e das normas jurídicas e representam
o produto tardio e superior de uma criação consciente. Mas, tal corpo de con-
ceitos jurídicos abstratos e fundamentais poderia nos dar um conhecimento
científico do direito ou seriam eles apenas meros expedientes técnicos criados
para fins de comodidade? Qual a possibilidade de uma análise das definições
fundamentais da forma jurídica, tal qual existe na economia política uma aná-
lise das definições fundamentais e gerais da forma mercadoria e da forma valor?
Para o jurista russo, a solução destas questões determinará se a Teoria Geral do
Direito pode ser considerada como uma disciplina teórica autônoma.
Ora, Direito é um conceito das (mal) chamadas ciências sociais, portanto,
sujeito a uma história real que se constrói a partir do desenvolvimento das re-
lações humanas. O direito igualmente, em suas determinações gerais, o direito
enquanto forma, não existe apenas no cérebro e nas teorias dos juristas espe-
cializados. Ele possui uma história real, paralela, que não se desenvolve como
um sistema de pensamento, mas como um sistema particular que os homens
realizam não como uma escolha consciente, mas sob pressão das relações de
produção. Assim, a relação jurídica pode ser entendida como resultado do de-
senvolvimento social, não como mero produto de uma elaboração conceitual.
A Teoria Geral do Direito burguesa o vincula aos interesses materiais das
diversas classes sociais, mas não explica a regulamentação jurídica enquanto
tal, ou seja, por que determinado interesse de classe é tutelado justamente pela
forma jurídica e não por outra forma qualquer. Não há dúvida de que a teoria

210
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

marxista não deve apenas examinar o conteúdo concreto dos ordenamentos


jurídicos nas diferentes épocas históricas, mas fornecer também uma explicação
materialista do ordenamento jurídico como forma histórica determinada. Se
renunciarmos à análise dos conceitos jurídicos fundamentais, obteremos ape-
nas uma teoria jurídica explicativa da origem do ordenamento jurídico a partir
das necessidades materiais da sociedade e, consequentemente, do fato de que
as normas jurídicas correspondem aos interesses de tal ou qual classe social.
Mas o próprio ordenamento jurídico permanece sem ser analisado enquanto
forma, apesar da riqueza do conteúdo histórico que introduzimos neste concei-
to. Ao invés de dispormos de uma totalidade de determinações e seus vínculos
internos, somos compelidos a utilizar, mais modestamente e apenas de forma
aproximada, um esboço de análise do fenômeno jurídico. Este esboço é tão
fluido que as fronteiras que delimitam a esfera jurídica das esferas vizinhas são
completamente enevoadas.
Sobre os pontos centrais de seu método, Pachukanis nos dá algumas pistas:
primeiramente, de que é a forma jurídica burguesa a forma mais evoluída do
direito, e é a partir desta que é possível a compreensão das formas jurídicas pré-
-capitalistas, onde o direito está contido e amalgamado a outras formas sociais
(costumes, religião) e o porquê disto (aqui, o método marxiano apresenta-se
claramente: para Marx, é o mais complexo que explica o mais simples, não
o contrário, como quer uma vulgar proposição de cunho positivista); em se-
gundo lugar, ele afirma corresponder a forma jurídica a uma forma particular
de organização da sociedade (o capitalismo), advindo daí sua especificidade;
por último, mostra a necessidade de se examinar os modos como os conteúdos
materiais do direito se exprimem, não sendo suficiente apenas o exame destes
conteúdos em cada época histórica. Portanto, podemos, partindo destas consi-
derações, estabelecer uma conexão entre as formas do direito e o modo de pro-
dução capitalista, no sentido de que só no capitalismo a forma jurídica se torna
verdadeira, precisamente porque é na sociedade burguesa que a forma jurídica
atinge seu mais alto grau de abstração.
Só podemos obter definições claras e exaustivas se basearmos nossa análise
sobre a forma jurídica inteiramente desenvolvida, a qual revela tanto as formas
jurídicas passadas quanto as suas próprias formas embrionárias. É apenas deste
modo que podemos captar o direito, não como um atributo da sociedade huma-
na abstrata, mas como uma categoria histórica que corresponde a um regime
social determinado, edificado sobre a oposição dos interesses privados.

211
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Neste trabalho analisamos inicialmente o método de Marx para, em segui-


da, nos determos na análise de como Pachukanis se utiliza deste método em sua
pesquisa sobre o Direito exposta em Teoria Geral do Direito e Marxismo. Para
nossa análise do método marxiano, nos deteremos na Introdução de 1857.

1. O método de Marx
A discussão do método na obra marxiana 3 é parca. Podemos recordar
dois momentos de sua obra em que Marx trata do tema de modo mais siste-
mático: no §1 da segunda parte da Miséria da Filosofia, quando, na polêmica
contra Proudhon, analisa o método deste e suas relações com a dialética
hegeliana, e na Introdução aos Grundrisse, os manuscritos econômicos de
1857-1858, onde sintetiza as bases de sua análise da sociedade capitalista
que terá seu ponto alto em O Capital 4.
Não é casual que Marx tenha, numa obra tão extensa como a sua, se de-
dicado tão pouco às questões metodológicas ou mesmo não tenha publicado
uma obra especificamente dedicada ao seu método de pesquisa. É que seu
pensamento tinha uma natureza ontológica e não epistemológica. Como diz
Netto (2011, p. 27): “o seu interesse não incidia sobre um abstrato ‘como co-
nhecer’, mas sobre ‘como conhecer um objeto real e determinado’”. Por isso,
para Marx, não se tratava, como em Hegel, de expor uma ciência da lógica,
“importava-lhe a lógica de um objeto determinado - descobrir esta lógica con-
siste em reproduzir idealmente (teoricamente) a estrutura e a dinâmica deste
objeto” (Netto, 2011, p. 27). Como bem formulou Lênin, “se Marx não deixou
uma ‘Lógica’ (com letra maiúscula), deixou a lógica de O Capital, e isso deve-
ria ser utilizado profundamente nessa questão. Em O Capital aplica-se a uma
ciência a lógica, a dialética, a teoria do conhecimento – não são três palavras:
é uma coisa só – do materialismo, que tomou tudo o que há de valioso em
Hegel e fez esse valioso avançar” (Lênin, 2018, p. 327).
Estabelecido em poucas palavras porque não há uma discussão mais siste-
mática em Marx a respeito de seu método, passemos agora à análise do mesmo.

3 Por “obra marxiana” queremos referir a obra de Karl Marx, diferenciando-a da “obra marxista”, a
obra dos pensadores que se reivindicam da tradição inaugurada por Marx.
4 Como já referido, esta Introdução foi publicada também junto ao texto intitulado Para a Crítica da
Economia Política.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Marx principia a discussão sobre seu método na Introdução aos Grundrisse


afirmando que

quando estudamos um dado país do ponto de vista da Economia


Política, começamos por sua população, sua divisão de classes, sua
repartição entre cidade e campo, na orla marítima; os diferentes ramos
da produção, a exportação e a importação, a produção e o consumo
anuais, os preços das mercadorias, etc. Parece que o correto é começar
pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva; assim,
em Economia, por exemplo, começar-se-ia pela população, que é a base e
o sujeito do ato social de produção como um todo” (Marx, 1974, p. 122).

Mas aquilo que aparentemente parece o correto, se revela depois de uma


observação mais atenta completamente falso porque a população é uma abs-
tração se deixamos de lado em sua análise, por exemplo, as classes que a
compõem. Estas classes são também vazias de sentido se ignoramos os vários
elementos em que repousam (o trabalho assalariado, o capital, etc.). Tais ele-
mentos supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. Por isso, confor-
me Marx (1974, p. 122),

se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica


do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma
análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto
idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos
determinações as mais simples.

Temos aqui a exposição de uma faceta do materialismo de Marx. De fato,


ele está a distinguir o que é da ordem da realidade, portanto, do objeto, daqui-
lo que é da ordem do pensamento, portanto, do sujeito no processo de conhe-
cimento. O começo se opera pelo concreto; então, pela análise, os elementos
são abstraídos e, com o avanço da análise, chega-se a conceitos, “determina-
ções as mais simples”.
Este foi o método historicamente seguido pela economia política nascente e,
diga-se, um procedimento necessário naquele momento. No entanto, Marx nos
lembra que ele não é suficiente para reproduzir teoricamente o real, já que “a
representação plena volatiza-se em determinações abstratas”. Então,

213
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

chegados a este ponto [‘as determinações as mais simples’], teríamos


de voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a
população, mas desta vez não como uma representação caótica de um
todo, porém com uma rica totalidade5 de determinações e relações
diversas (Marx, 1974, p. 122).

Esta “viagem de volta” é que constitui o “método cientificamente exato”, no


qual “as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio
do pensamento”. Daí Marx (1974, p. 123) caracterizar seu método como um
“elevar-se do abstrato ao concreto, porque é assim que procede o pensamento
“para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado”.
A abstração é o procedimento do pensamento pelo qual pode-se extrair de
uma totalidade um elemento, isolá-lo e examiná-lo. É, portanto, um recurso do
pensamento, que o próprio Marx entendia ser indispensável para a pesquisa. Na
falta de microscópio ou reagentes químicos na pesquisa econômica, lembrou ele
em O Capital, a abstração deve substituir estes meios. O ponto de partida da
abstração é a coisa dada, o concreto. Como disse Lukács (2012, p. 322):

o tipo e o sentido das abstrações, dos experimentos ideais, são


determinados não a partir de pontos de vista gnosiológicos ou
metodológicos (e menos ainda lógicos), mas a partir da própria coisa, ou
seja, da essência ontológica da matéria tratada.

Como já referimos anteriormente, ao possibilitar a análise, o procedimento


de abstração vai avançando até chegar às determinações as mais simples do

5 Sobre a categoria teórico-ontológica da totalidade, vale a pena dar voz ao longo, mas imprtante
comentário de Netto (2011, p. 56. Grifos no original): “Para Marx, a sociedade burguesa é uma
totalidade concreta. Não é um ‘todo’ constituído por ‘partes’ funcionalmente integradas. Antes,
é uma totalidade concreta inclusiva e macroscópica, de máxima complexidade, constituída por
totalidades de menor complexidade. Nenhuma dessas totalidades é “simples” – o que as distingue é
o seu grau de complexidade (é a partir desta verificação que, para retomar livremente uma expressão
lukacsiana, a realidade da sociedade burguesa pode ser apreendida como um complexo constituído por
complexos). E se há totalidades mais determinantes que outras (...), elas se distinguem pela legalidade
que as rege: as tendências operantes numa totalidade lhe são peculiares e não podem ser transladadas
diretamente a outras totalidades. Se assim fosse, a totalidade concreta que é a sociedade burguesa
seria uma totalidade amorfa – e o seu estudo nos revela que se trata de uma totalidade estruturada
e articulada. Cabe à análise de cada um dos complexos constitutivos das totalidades esclarecer as
tendências que operam especificamente em cada uma delas”.

214
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

objeto de estudo. Mas, o que seriam estas “determinações”? Neste ponto, é es-
clarecedora a resposta dada por José Paulo Netto (2011, p. 45) à questão:

determinações são traços pertinentes aos elementos constitutivos


da realidade. (...) Por isso, o conhecimento concreto do objeto é o
conhecimento das suas múltiplas determinações – tanto mais se
reproduzem as determinações de um objeto, tanto mais o pensamento
reproduz a sua riqueza (concreção) real.

O real é concreto justamente por ser “síntese de múltiplas determinações”6,


característica de toda totalidade. Porém, este concreto não se oferece imediata-
mente ao pensamento e Marx chamou a atenção para tal fato quando afirmou,
no terceiro volume de O Capital, que “toda ciência seria supérflua se a forma de
manifestação [aparência] e a essência das coisas coincidissem imediatamente”.
O pensamento deve reproduzir a realidade concreta e só a já citada “viagem
de modo inverso” é que permite essa reprodução. Isso que é, para Marx, teoria.
Aprofundando a questão passemos novamente a palavra ao professor José Paulo
Netto (2011, pp. 20, 21):

Para Marx, a teoria é uma modalidade peculiar de conhecimento, entre


outras (como, por exemplo, a arte, o conhecimento prático da vida
cotidiana, o conhecimento mágico-religioso). Mas a teoria se distingue
de todas essas modalidades e tem especificidade: o conhecimento
teórico é o conhecimento do objeto – de sua estrutura e dinâmica – tal como
ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva, independentemente
dos desejos, das aspirações e das representações do pesquisador. A
teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento7 real do objeto pelo
sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a
estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução (que
constitui propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta
e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto (grifos no original).

6 “O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por
isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto
de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida ainda da intuição
e da representação” (Marx, 1974, p. 122).
7 É necessário chamar a atenção para este termo: movimento. De fato, a teoria não é a mera reprodução
ideal (porque no plano do pensamento, da idéia) do real, mas a reprodução ideal do movimento do
real, justamente porque o real não é estático, mas, dialeticamente, movimento.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Marx pretende, com sua teoria, ou seja, com a reprodução ideal do movi-
mento do real, chegar ao estabelecimento das “categorias que exprimem suas
[da sociedade burguesa] relações, a compreensão de sua própria articulação”
(Marx, 1974, p. 124). Estas categorias são reflexivas (porque estabelecidas pelo
pensamento), mas são também ontológicas (porque pertencem à ordem do ser)
e históricas (porque transitórias). É lapidar como Marx explica o caráter onto-
lógico das categorias:

(...) é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das categorias


econômicas, que o sujeito, nesse caso, a sociedade burguesa moderna,
está dado tanto na realidade efetiva quanto no cérebro; que as categorias
exprimem portanto formas de modos de ser, determinações de existência”8
(Marx, 1974, p. 127. Itálicos nossos, W.N.S.).

Já o caráter histórico é assim explicado:

(...) até as categorias mais abstratas – precisamente por causa de sua


natureza abstrata –, apesar de sua validade para todas as épocas são,
contudo, na determinidade desta abstração, igualmente produto de
condições históricas, e não possuem plena validez senão para estas condições
e dentro dos limites destas” (Marx, 1974, p. 126. Itálicos nossos, W.N.S.).

Este caráter histórico das categorias leva, como a citação aponta, a que a
validade plena destas categorias só se dá no âmbito de uma sociedade especí-
fica. Assim, as categorias próprias da sociedade burguesa, só têm validade nos
marcos desta sociedade. Além disso, as categorias da sociedade burguesa são
as mais desenvolvidas e as mais diferenciadas e complexas, exatamente por ser
esta sociedade a mais desenvolvida. Neste sentido, para Marx, é o mais desen-
volvido, o mais complexo, que explica o menos desenvolvido, o mais simples, e
não o contrário, como querem os positivistas. Logo, o presente explica o passa-
do. Passemos a palavra a ele:

8 Não à toa Lukács afirmou que “(...) as categorias não são elementos de uma arquitetura hierárquica
e sistemática, mas, ao contrário, são na realidade, ‘formas de ser, determinações de existência’,
elementos estruturais de complexos relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas inter-relações
dinâmicas dão lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido tanto extensivo quanto
intensivo” (Lukács, 2012, p. 297).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

a sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais


diferenciada da produção. As categorias que exprimem suas relações,
a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na
articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedades
desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos
vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão, desenvolvendo tudo
que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação
etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que
nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao
contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior9.
A Economia burguesa fornece a chave da Economia da Antigüidade etc.
Porém, não conforme o método dos economistas que fazem desaparecer
todas as diferenças históricas e vêem a forma burguesa em todas as
formas de sociedade (Marx, 1974, p. 126).

Toda exposição que fizemos até aqui foi no sentido de apontar aspectos ge-
rais do método de Marx. Para tanto, como já afirmamos, nos restringimos à
análise da parte 3 da Introdução de 1857. Passemos agora à análise do método
de Pachukanis.

2. O método de Pachukanis
Pachukanis aplica ao estudo do Direito o método (dialético) que Marx apli-
cou ao estudo da Economia ou, mais precisamente, que Marx aplicou na elabo-
ração de sua teoria social. Assim, ele procura apresentar o Direito como totali-
dade concreta para explicitar suas contradições e toda a sua dinâmica interna.
Inicialmente, o jurista russo pretende demonstrar o caráter histórico da
forma jurídica para, desse modo, apontar tanto as condições em que ela
se desenvolve por completo, quanto as condições de seu desaparecimento.
Neste ponto, Pachukanis rompe radicalmente com as teorias burguesas do

9 Marx utiliza aqui, claramente, uma metáfora que remete à teoria darwiniana da Evolução. Com isso,
não se pense que ele vê o processo histórico numa perspectiva evolucionista linear. Para Marx, não há
um caminho pré-estabelecido a ser seguido pela História. Em outras palavras: não há determinismo
em Marx. A própria sociedade burguesa não estava pré-estabelecida no início da História. Ela é
produto do devir histórico, logo, traz em si as marcas desse processo. Daí sua crítica aos economistas
clássicos, para quem as características da sociedade burguesa já estavam dadas nas formas mais
arcaicas de vida social, o que levou estes economistas a eternizarem as relações capitalistas, vendo-as
como a-históricas e naturais.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Direito que consideram variáveis historicamente o seu conteúdo, mas imu-


tável sua forma. Diz ele:

O direito, considerado em suas determinações gerais, como forma,


não existe somente na cabeça e nas teorias dos juristas especialistas.
Ele tem, paralelamente, uma história real, que se desenvolve
não como um sistema de ideias, mas como um sistema específico
de relações, no qual as pessoas entram não porque o escolheram
conscientemente, mas porque foram compelidas pelas condições de
produção (Pachukanis, 2017, p. 83).

De fato, Pachukanis busca descobrir a relação social específica que se expri-


me e dá origem à forma jurídica e a identifica como estando na esfera da circu-
lação mercantil, onde relações de troca de equivalentes são estabelecidas entre
os sujeitos-proprietários, ou seja, a relação social que dá origem à forma jurídica
é a estabelecida entre os proprietários de mercadorias no processo de troca10.
Assim, para nascer, a forma jurídica precisa que esteja posta na sociedade a
divisão social do trabalho, onde os trabalhos privados só se tornam trabalho
social mediante a intervenção de um equivalente geral. A forma jurídica nesta
sociedade mercantil se faz necessária porque é preciso que um acordo de vonta-
des equivalentes seja introduzido para que o valor de troca das mercadorias se
realize. Este acordo de vontades é referendado justamente pelo direito.
Temos, então, que a forma jurídica não esteve dada desde sempre. Sua emer-
gência e seu aparecimento, em um estágio mais completo e complexo, como a
conhecemos hoje, ocorreu apenas com o surgimento do capitalismo. Como afir-
mou Pachukanis, “só a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições
necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação nas rela-
ções sociais” (Pachukanis, 2017, p. 75). Antes do aparecimento do capitalismo,
o que havia era uma forma jurídica ainda débil e fraca, amalgamada a outras
formas, como a religião ou a vontade do soberano, por exemplo11. E, como aque-
le estágio indiferenciado correspondia a uma sociedade específica, com relações

10 Dada essa aproximação do direito com a mercadoria, Piotr Stucka, jurista que polemizou com
Pachukanis acerca do caráter do direito na nascente sociedade socialista soviética, definiu a posição
deste com relação à teoria geral do direito como uma “tentativa de aproximar a forma do direito da
forma da mercadoria” (Pachukanis, 2017, p. 60), o que só evidencia a fidelidade de Pachukanis ao
método marxiano.
11 O mesmo se deu com a mercadoria: sua forma plena e acabada só se deu na sociedade capitalista.

218
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

econômicas específicas, o atual, autônomo e separado da religião, corresponde


a outras formas de relações sociais.
O Direito, portanto, é a forma jurídica mais evoluída, mais complexa, prenhe
de determinações e totalmente diferente das formas embrionárias anteriores. E,
como afirmara Marx, a forma mais desenvolvida explica a menos desenvolvida.
Segue daí que é o Direito que permite a compreensão das formas embrionárias
(jurídicas) pré-capitalistas:

a análise da forma do direito completamente desenvolvida oferece


uma interpretação tanto das formas que lhe precederam quanto de
sua forma embrionária. Apenas nesse caso conceberemos o direito não
como acessório de uma sociedade humana abstrata, mas como categoria
histórica que corresponde a um ambiente social definido, construído
pela contradição de interesses privados (Pachukanis, 2017, p. 86).

Aqui temos que a forma jurídica é histórica (porque transitória e possui


validade dentro dos limites de certas condições) e ontológica (já tem existência
concreta. Por isso, capturar sua história é possível, por estar ligada à história
das relações mercantis): “A relação jurídica é, para usar um termo de Marx,
uma relação abstrata, unilateral; nessa unilateralidade, ela se revela não como
resultado do trabalho racional da mente de um sujeito, mas como produto do
desenvolvimento da sociedade” (Pachukanis, 2017, p. 85).
Estabelecido que a forma jurídica é histórica e ontológica, que é mais desen-
volvida que suas precedentes (e por isso as explica) e que seu surgimento está
condicionado ao surgimento do capitalismo, resta a Pachukanis encontrar a
categoria fundamental, aquela que deve ser seu ponto de partida na “viagem de
volta”, rumo às determinações mais concretas.
Lembremo-nos que Marx, em sua análise do modo de produção capitalista,
começa pela mercadoria. Como apontou Kashiura Júnior (2011, p. 13):

Esta é a categoria que, na ordem burguesa completamente desenvolvida,


serve de fundamento para tudo mais, e isto não porque surgiu antes
das demais ou porque não é logicamente viável passar às demais sem
passar pela mercadoria, mas porque ocupa um lugar estratégico na
hierarquia interna da economia capitalista. A mercadoria é a forma
social necessária que todo produto do trabalho humano deve tomar no
capitalismo – ela é o ‘átomo’ da economia capitalista. É a partir dela

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

que deve ter início a reprodução da estrutura da economia capitalista: a


partir da mercadoria Marx pode explicar o dinheiro, depois o capital e
daí por diante, reconstruindo a economia como um todo pela síntese de
suas partes, isto é, como totalidade concreta.

O mesmo pode ser dito sobre o sujeito de direito. A categoria que, na análise do
Direito, cumpre este papel de fundamento e, portanto, ponto de partida é o sujeito
de direito. Pachukanis nos explica: “toda relação jurídica é uma relação entre sujei-
tos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que
não pode mais ser descomposto” (Pachukanis, 2017, p. 117). A concepção teórica do
autor de Teoria Geral do Direito e o Marxismo se organiza, portanto, sobre a noção
de sujeito de direito. Essa concepção implica uma posição antinormativista, ou seja,
de recusa da ideia de que a norma gera a relação jurídica. Na verdade, é a relação
jurídica que permite a conexão dos sujeitos privados através dos contratos.
Há que se destacar que só no modo de produção capitalista os indivíduos se
tornam sujeitos. Isso acontece porque, para que haja uma esfera geral de troca
de mercadorias, é preciso que aqueles que estão trocando os bens sejam proprie-
tários, logo, que sejam livres e iguais (pelo menos formalmente). A liberdade é
fundamental porque a troca implica um ato volitivo, uma expressão do querer
do proprietário. Como diz Marx:

As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos,


portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias.
As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem resistência ao
homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de
violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas
às outras como mercadorias, é necessário que os guardiões se relacionem
entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que
um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas
mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria
alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se
reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma
é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade,
em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou
de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. As pessoas aqui
só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso,
como possuidores de mercadorias (Marx, 1985, pp. 79-80).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O homem transforma-se em sujeito quando, por meio de sua vontade livre,


estabelece com outros homens uma relação consensual de reciprocidade. Essa
equivalência subjetiva corresponde à equivalência material, à troca de mercadoria
com base na lei do valor. Sem essa condição de subjetividade jurídica não se da-
ria a troca de mercadorias, o que significa dizer que a liberdade, esse atributo da
personalidade, existe para a troca, donde concluímos que o homem só é livre uma
vez inserido na esfera da circulação. Mas se o homem se faz livre na troca, quanto
mais se alarga a esfera da circulação de mercadorias, mais o homem será livre, de
modo tal que a mais completa e absoluta expressão de sua liberdade é a liberdade
de dispor de si mesmo como mercadoria, através da venda no mercado de sua
força de trabalho. Dessa forma, ao trocar a si mesmo como mercadoria, o homem
realiza sua liberdade a ponto de ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de direito.
Então, o sujeito de direito é, na esfera jurídica, a categoria que serve de funda-
mento, de ponto de partida para explicar o todo. Logo “se, como nota Marx, toda a
riqueza das sociedades capitalistas se manifesta como uma ‘imensa coleção de mer-
cadorias’ e tem a ‘mercadoria individual como sua forma elementar’, isto equivale,
numa perspectiva inversa, a dizer, como faz Pachukanis, que ‘a sociedade, em seu
conjunto, apresenta-se como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas’ e tem o
sujeito de direito como sua forma elementar (Kashiura, 2011, p. 14, 15).

Conclusões
Pachukanis é o mais importante pensador marxista do direito. Apesar de
inacabada, sua obra Teoria geral do direito e marxismo apresenta teses radicais
onde o autor mostra as contradições de toda a tradição jurídica burguesa que
defende a tese da eternização da forma jurídica. De fato, o Direito é visto como
algo que sempre existiu e para sempre existirá12.
Fundamentado no método marxiano, no qual os elementos mais simples
apontam para a compreensão dos mais complexos, o jurista russo funda a crítica
do Direito sobre uma base materialista. Para ele, a teoria marxiana não tinha
apenas que examinar o conteúdo dos vários ordenamentos jurídicos nas dife-

12 Não custa lembrar o exemplo dado por processualistas para tentarem provar que ubi societas, ibi jus:
na hipotética ilha de Robinson Crusoe, o direito surge apenas com a chegada do nativo Sexta-Feira. Os
processualistas burgueses também cometem “robinsonadas”.

221
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

rentes épocas históricas, mas fornecer também uma explicação materialista do


ordenamento jurídico como forma histórica determinada.
A partir deste método, Pachukanis aproxima o Direito da forma merca-
doria e descobre que o Direito tem por finalidade estabelecer e mediar os
vínculos existentes entre dois agentes econômicos que estão em contato no
mercado. Daí em diante, regras e garantias recíprocas são estabelecidas e a
relação jurídica vai se desenvolvendo de acordo com a complexidade do nível
de desenvolvimento das relações econômicas e sociais. Portanto, a relação
jurídica tem um papel fundamental na economia capitalista, qual seja, o de
permitir e estimular a troca mercantil.
Daí decorre que o Direito está intimamente ligado ao capitalismo, já que
só a sociedade burguesa, produtora de mercadorias, criou todas as condições
para que o momento jurídico aparecesse e fosse plenamente determinado nas
relações sociais. Assim como a mercadoria existia em outras sociedades, mas
só alcança seu estágio pronto e acabado no capitalismo, também o direito só se
torna pleno no âmbito da sociedade burguesa. Nas sociedades pré-capitalistas,
é difícil distinguir a forma jurídica de outras formas sociais, além dela estar
fracamente desenvolvida.
Todas essas descobertas de Pachukanis só foram possíveis porque ele aplicou
ao direito, com inteligência e criatividade, o método que Marx utilizou para
entender a sociedade capitalista e mostrou, assim, as íntimas conexões entre o
direito e o capitalismo.

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223
Capítulo III
Constituição e Marxismo
A construção do direito sob a égide da
filosofia política, da construção moral e
filosófica das classes sociais

José Raisson A. Holanda Costa1

Introdução
Dentro do processo de fundação da sociedade almejada no capital, os víncu-
los objetivos de convivência e os processos interpessoais das relações são modi-
ficados pelo enraizamento contínuo do status objetificação das relações. Nisto,
cabe a reflexão teórica sobre como foram erigidas as formas de governo e a
tomada de lugar pelos agentes que controlam a sociedade (dentro da concepção
da figura de Estado), assim como os possíveis estamentos sociais que pressu-
põem o modelamento do estatuto de sociedade a ser seguido.
Além do já exposto, a figura da burocracia estatal que seria, primaria-
mente, um agente modelador do processo de socialização das vivências.
Esta, detentora do monopólio do conhecimento, do verbo social e das liga-
ções afetivas de implementação e fundação dos processos culturais, passa a
dividir tal quadro situacional como a burguesia econômica, que participou
e participa historicamente do polo ativo no processo de formação dos qua-
dros opinativos das classes estamentárias inferiores, satisfazendo o ponto de
ligação entre burocracia e burguesia.
Dito isto, friso a pressuposição de que o processo histórico de materialização
dos sentimentos pessoais de justiça, cultura e educação passou a ser intrinseca-
mente subconsciente ao ser social, o qual o próprio ser humano passa a figurar
como máquina, num processo de mecanização relacional e prático de diminui-

1 Aluno de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido.

227
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ção crescente da subjetivação e dos potenciais sensíveis do ser; com o ser social
– assim como sua classe – perdendo todo seu sentido de totalidade e corroendo
o sentido de dialética social das classes trabalhadora.
Desta forma, o ser social perde toda a capacidade de relativizar não só o sen-
tido social de si, mas dos relacionamentos interpessoais dele mesmo, desestrutu-
rando não só a ética (ligada ao processo deformação do caráter), como a moral
(ligada ao processo de montagem dos costumes sociais); obstruindo qualquer
sentido de práxis social revolucionária. Numa linha de argumentação precípua
da construção moral/filosófica da classe popular trabalhadora, o processo de
ação sobre a construção do “ser social, moral e ético” a partir de uma classe
dominante que determina métodos de ações de uma sociedade, e que modifica
a sociedade continuamente sob o devir das relações sociais construídas e modi-
ficadas historicamente, torna-se pequeno diante do poderio estatal detentor de
todas as formas de poder.
Em Adorno, a cultura das massas e a indústria cultural formam o polo
binário do mecanismo de dominação, sob o processo de semiformação dos
agentes sociais, fomentadas em ações concretas que nunca serão concretiza-
das, em possibilidades de contradições que não se efetivam, e num contexto
de não problematização das ações formativas que compõem o âmbito social.
Assim, não só classes sociais passam a mover a sociedade, mas de todo um
aparato da psicologia de massas que passa por um processo de semiformação
social do sujeito social, que paira sob os mecanismos de dominação no pro-
cesso de produção de ideias e da gênese das condutas, não deliberando sobre
liberdades básicas do cidadão, assim como perdendo o tato sobre como conci-
liar a vivência com a igualdade democrática.
Tendo demonstração de como o Direito, dizendo-se como um braço das
relações políticas e sociais de uma sociedade, tornou-se uma prática de aplica-
bilidade da dominância da vontade do Estado sobre uma sociedade que a aceita,
além de enraizar e naturalizar proposições de vontades advindas e estruturadas
socialmente por pequenos grupos de classes que atuam no processo mercado-
lógico do capital mundial; modificando as relações ao ponto de tornarem-se
negócios. Assim, todas as relações interpessoais e intersociais perdem sua abs-
tração e se materializam sob a determinação de um capital do desejo. O Direito
configura-se dentro deste universo de vontades e princípios que regem e repre-
senta as vontades desta determinada sociedade.

228
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O ponto comum desta linha de pensamento, de onde parte o ideal de que


o processo de criação de valores e mutabilidade de opiniões, tem crescido
num movimento em que os seres humanos pós-modernos passam a figurar
como máquinas. A crise da modernidade, que vem precedida de mudanças
sociais e intelectuais ocorridas no decorrer do século XX e dentro do século
XXI, formam a sequência de um declínio da filosofia fundada na política e na
ciência social e toma um maior dinamismo fundado nas novas conformações
relacionais, onde parâmetros de sociabilidade entram em choque com novos
horizontes de eventos sociais advindos do processo de desenvolvimento da
sociedade moldada no capital.
Neste novo modelo de sociedade que se remodela constantemente, num
processo de devir de uma classe social como um todo, surge a sociedade que
funciona como um ser vivo retroativo. Dentro disso, os humores, sentimentos,
pressupostos éticos e morais são moldados a partir da classe detentora de poder.
Num processo de esfacelamento das relações socias e desmobilização da classe
trabalhadora em si; em que se mudam os agentes, mas o padrão de movimento
das relações que controlam a sociedade continua inalterável.
Assim, em uma sociedade onde o moderno é tido como sinônimo de um
processo de desenvolvimento liberal da economia, e que se mostra como
reflexo “do que deu certo” deste quadro desenvolvimentista, o projeto mar-
xista passa a ter uma conotação pejorativa que refletiria a imagem de uma
radicalização dos movimentos de esquerda, que entraria em choque com o
processo de desenvolvimento social e com a nova roupagem de desenvolvi-
mento moderno obtida e tomada como a melhor pelas forças que compõem
e modelam o Estado; forças estas, compostas por bens burocráticos e eco-
nômicos materializados.
Seguindo o pensamento de Poulantzas, qualquer que seja o regime político,
as camadas que compõem o sistema burocrático de controle estatal e econômi-
co, tornam-se não só o reflexo de sociedade que eles regulam, mas também o
espelho dos padrões políticos, sociais, culturais, morais e éticos desta sociedade;
dentro de processos culturais, sejam literários ou musicais, em que padrões es-
téticos deixaram delineados uma metamorfose social objetivada, deixando de
fornecer o processo de mimese e a catarse de sentimento social e diminuindo
a noção de representatividade do conteúdo de vida a ser compartilhado social-
mente, já que todas as relações construídas nos percursos de desenvolvimento
dos processos sociais são adjacentes às questões econômicas.

229
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

1. O logocentrismo e a positivação do subjetivo


O pensamento pós-metafísico, onde o domínio do logos torna-se marca do
poder pensante e determinador de verdades absolutas. O logocentrismo, assim,
rompe o paradigma ontológico e resume todas as possibilidades socais a relação
entre linguagem, objeto e metalinguagem. Toda a interioridade se torna objeto
e se projeta como palavra, o verbo, de onde parte o ideal de que o processo de
criação de valores e mutabilidade de opiniões tem se desenvolvido num movi-
mento em que os seres humanos pós-modernos passam a figurar como máqui-
nas sobrepostas num circuito escrito e positivado.
Neste processo de crise da modernidade, que vem precedida de mudanças
sociais e intelectuais ocorridas no século XX e no decorrer do XXI, forma a
sequência de um declínio da filosofia fundada na política e na ciência social e
toma um maior dinamismo fundado nas novas conformações relacionais, onde
parâmetros de sociabilidade entram em choque com novos horizontes de even-
tos sociais advindos do processo de desenvolvimento da sociedade moldada no
capital. Assim, neste novo modelo de sociedade desenvolvida, que cresce e se
remodela constantemente dentro de uma mesma objetividade, que o processo
de devir das classes sociais retroalimenta-se como um ser vivo.
Dentro disso, os humores, sentimentos, pressupostos éticos e morais são
moldados a partir da classe detentora de poder. Num processo de esfacelamento
das relações socias e desmobilização de uma classe trabalhadora que não abre
uma disputa permanente sobre questões de princípio em matéria de Moral ou
de Direito, que objetive um acordo discursivo; numa constância de mudanças
de agentes onde o padrão dos movimentos das relações que controlam a socie-
dade continua inalterável.
O movimento subjetivo deste novo corpo social baseia-se em um ciclo onde
o moderno é tido como sinônimo de um processo de desenvolvimento liberal da
economia, e que se mostra como reflexo “do que deu certo” deste quadro desen-
volvimentista. O projeto marxista passa a ter uma conotação pejorativa que re-
fletiria a imagem de uma radicalização dos movimentos de esquerda, entrando
em choque com o processo de desenvolvimento social e com a nova roupagem
de desenvolvimento moderno obtida e tomada como a melhor pelas forças que
compõem e modelam o Estado, forças estas compostas por bens burocráticos e
econômicos materializados.

230
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Nesta sociedade edificada sobre o símbolo da praticidade e da tecnocracia,


a metafísica e subjetivismo do ser passam por uma nova mobilização e por um
ciclo contínuo de reconstrução aos moldes da sociedade que o compõe, onde
qualquer que seja o regime político, as camadas que compõem o sistema buro-
crático de controle estatal e econômico, tornam-se não só o reflexo de socie-
dade que eles regulam, mas também o espelho dos padrões políticos, sociais,
culturais, morais e éticos desta sociedade.
Assim, os processos culturais, sejam literários ou musicais, não são padrões
estéticos que causariam a mimese e a catarse de sentimento social, originan-
do a noção de representatividade do conteúdo de vida a ser compartilhado
socialmente, que fossem replicados e absolvidos, mas processos de tomada de
consciência do social, já que todas as relações construídas nos percursos de de-
senvolvimento dos processos sociais são adjacentes às questões econômicas. Ha-
bermas abrange a crítica das qualidades linguísticas em “No nível fenomênico,
cada língua se desenvolve apenas socialmente, e o homem só se compreende a
si mesmo ao testar, tentativamente, a compreensibilidade de suas palavras junto
a outras pessoas” (HABERMAS, 2007 p. 67).
Cabe aqui, a relativa crítica ao projeto marxista de emancipação social, mas
em um caminho que se afunila à crítica em relação à cultura do progresso,
numa sociedade regulada pelo poder do Logos, pela racionalidade e pela lingua-
gem, e que afirma como objeto próprio do homem. Este tipo de razão regimen-
tada é essencial para estabelecer uma relação hierárquica de poder.
Assim, esse método de pensar trouxe consigo uma lógica de identidade cen-
trada numa relação de valores, dando a estes o peso e a valoração do que seria
negativo ou positivo. Contrapondo-se a uma Práxis que rompa com a continui-
dade do processo de reificação, caracterizado pela transformação gerada produ-
tivamente pelas relações sociais e pela própria subjetividade humana, sujeitadas
e identificadas cada vez mais ao caráter inanimado, quantitativo e automático
dos objetos ou mercadorias circulantes no mercado.
Neste contexto, O homem unidimensional, é, senão, o homem que vive em
consonância com o sistema capitalista vigente e aceita toda a totalidade do
mesmo; de forma que o tecido social se afunila a somente uma dimensão. Um
sujeito que produz e reproduz os sentidos socias, culturais, econômicos e educa-
cionais de forma automatizada e inconsciente, demonstrando que a dominação
também ocorre a partir da subjetividade. A praticidade só faz parte da reprodu-

231
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ção do sujeito, mas não do seu processo de interiorização. O automotismo desse


sentido veio a ser construído a partir de um alicerce histórico.

2. Semiformação e reficação
A indústria cultural atua como idealizadora do processo de produção ma-
terial no contexto da reificação como mediação social invertida. Nos mo-
mentos objetivos da subjetivação toda uma classe é observada como um ser
único, com opiniões massificadas. Não há consciência neste processo. Não há
consciência onde não há ser consciente. Assim, a formação social fica anco-
rada no processo de reificação, que domina as liberdades e põe a autonomia
do ser social num processo de adaptação ao modo materialista do mercado.
Num processo em que a cultura se tornou mercadoria, findada numa ótica
mercantilista, como na citação a seguir.

(...) Os sistemas obscuros realizam hoje o que o mito do diabo da


religião oficial realizava na Idade Média: a atribuição arbitrária de
um sentido à realidade exterior. (...) a real emancipação dos homens
não ocorreu ao mesmo tempo que o esclarecimento do espírito (...)
quanto mais a realidade social se afasta da consciência cultivada,
tanto mais esta se via submetida a um processo de reificação. A
cultura converteu-se totalmente numa mercadoria (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 117-118).

Ao afirmar a cultura como mercadoria, Adorno funda a concepção de mo-


delamento estamental da classe dominada pela ordem do trabalho, num pro-
cesso de reprodução e naturalização das condições impostas. Deste modo, o
homem passa a reproduzir valores não só herdados, mas transfigurados histori-
camente pela burguesia; de forma que o homem transpassa valores instrumen-
talizados e reproduz todo seu quadro situacional automaticamente a partir dos
meios culturais de reprodução.

A velha experiência do espectador de cinema que percebe a rua como


um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende
reproduzir rigorosamente o mundo da percepção cotidiana, tornou-se a
norma da produção (Idem, ibid., p. 117-118).

232
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Nisto, o sujeito passa a ser apenas o prolongamento do que ele observa nos
meios culturais de representação da realidade e os reproduz automaticamente,
moldado no processo de dominação consistente e gradativo até toda a interio-
ridade do sujeito social seja tomada. Neste conceito de semiformação, o sujeito
que compõe a massa perde seu papel do contraditório e passa a ser massa de
movimentação e de reprodução dos meios.

[...] as tentativas pedagógicas de remediar a situação transformaram-


se em caricaturas. Toda a chamada educação popular – a escolha
dessa expressão demandou muito cuidado – nutriu-se da ilusão de
que a formação, por si mesma e isolada, poderia revogar a exclusão do
proletariado, que sabemos ser uma realidade socialmente constituída”
(ADORNO, 2010, p. 14).

A crítica principal, concerne a uma educação que possibilite a formação


do sujeito social e que lhe dê capacidade crítica em relação ao seu direito à
contradição das condições impostas a si; justificada no fato de que a represen-
tatividade objetiva deixa de existir quando o sujeito social perde a noção do seu
papel no esboço constitutivo da sua classe e da construção da sociedade que
lhe cerca; acatando quaisquer que sejam as imposições aplicadas pelo Estado,
esquecendo e perdendo sua consciência de classe, num primado no indivíduo
reduzido finalizado apenas no fato biológico.
Para Adorno, a cultura não só é formada pelo corpo subjetivo do su-
jeito, mas também é representatividade no processo de produção social.
A formação, para Adorno, é sempre formação cultural, “pois a formação
nada mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva”
(ADORNO, 2010, p. 9).
Assim, numa democracia que tem como base ideais contrários à eman-
cipação das classes, a decisão única de cada ente social torna-se inútil; de
forma que, este sujeito passa a reproduzir a antidemocracia interpretando
como forma de empoderamento social. A consciência que não foi eman-
cipada esbarra nos pressupostos abarcados pela sociedade de classes, que
legitimou a frente de consciência social constitutivo deste sujeito e na sua
formação como classe política.

Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não


temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também

233
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

não a mera transmissão de conhecimento, cuja característica de coisa


morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência
verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua
ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma
democracia com dever de não apenas funcionar, mas operar conforme
seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva
só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado
(ADORNO, 1995a, p. 141-142,).

3. Establishment, formação ética e constituição do estado


Dentro da crítica marxista da classe dominante e no escopo da ciência po-
lítica, as racionalizações ideológicas – independente da classe – são estados re-
lacionais de interesses. A problemática disto sobre a constituição do Estado e
do seu corpo burocrático-legislativo, concerne no fato de praticamente todo o
poder de mobilização do Estado estar sob o poderio de pequenos nichos onde
transcorrem o poder de forma cíclica ou onde os indivíduos dividem a manu-
tenção deste estado de equilíbrio desigual.
Poulantzas problematizou e analisou o sistema das elites políticas, aplicando
uma ótica marxista e afirmando que: “o funcionamento do Estado capitalista
deve ser explicado a partir dos vínculos objetivos (e não subjetivos, isto é, in-
terpessoais) existentes entre essa instituição política e a estrutura de classes”
(Poulantzas, 1969). Logo, o Estado representa todo quadro situacional de fo-
mentação do modelo de classe, de forma que, o papel do indivíduo nos quadros
de função do Estado determina a sua observância e seu papel estatal de manter
o quadro de homogeneidade social.
No processo de interiorização do sentido de establishment e na manutenção
deste, é que principia o moldar da manutenção dos processos cognitivos que
constroem as opiniões que norteiam a consciência de classes. O próprio poderio
das elites econômicas, sociais e políticas detentoras do poder de formular opini-
ões das massas configura-se

...em que se apresenta, em suas instituições mesmas, como Estado


“de classe” (das classes dominantes, que ele contribui a organizar
politicamente) de uma sociedade institucionalmente estabelecida como
não-dividida-em-classes; em que se apresenta como um Estado da classe

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

burguesa, subentendendo que todo o “povo” forma parte dessa classe


(POULANTZAS,1970, p. 240).

Deste universo de economia de mercado, onde liberdades transformam-se


em mercadorias e o controle estatal passa pelas mãos de uma pequena parte
da população que se resume em subtipos de classes interligadas e cíclicas na
manutenção do poder, “os recursos políticos da classe dominante” derivam do
seu poder econômico – ou mais exatamente “da posse dos recursos econômicos”
(SAES, 1994, p. 11). Firmando o poder em frações de classes, criando profissões
que compõem a nova forma de governar e servem de status constitutivos de
representatividade não só de poderio econômico, mas de excelência intelectual.
Esse processo de divisão de classes sociais, agora ultrapassando monopólio
econômico e consagrando-se no intelectual, fecha o clico e concretiza o movi-
mento de alienação social. O novo processo de alienação figura-se num espelho
social, onde as classes sociais correspondem em movimentos repetitivos de uma
esperança e de sucesso pessoal. É nesse contexto que se consagra a desmobi-
lização de classes: a partir do homem unidimensional que passa a agir só para
si e em uma situação politicamente estável, onde reproduz ideias concretizadas
e práticas, não só para a remodelação cíclica do Estado, mas também para a
manutenção deste ciclo social-produtivo

Atualmente, o poder político se afirma através dos seus poderes sobre o


processo mecânico e sobre a organização técnica do aparato. O governo
de sociedades industriais desenvolvidas e em fase de desenvolvimento
só se pode manter e garantir quando mobiliza, organiza e explora com
êxito a produtividade técnica, científica e mecânica à disposição da
civilização industrial (MARCUSE, 1982, p. 25).

Poulantzas também afirma que uma nova subclasse surge com o sentido de
reprodução dos ideais da burguesia. A burocracia servidora que reproduz, num
sentido convectivo, os interesses da classe dominante. “O Estado capitalista
“só pode servir verdadeiramente à classe dominante até o ponto em que seja
relativamente autônomo em relação às várias frações dessa classe, com vista
justamente a tornar-se capaz de organizar a hegemonia do conjunto da classe”
(Poulantzas, 1975, p. 22).
Ao ponto de que se torna quase imperceptível distinguir diferença entre
sociedade civil – montada a partir de classes - e Estado; quando a socie-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

dade não se identifica mais com o sentido de povo (conjunto de cidadãos


detentores dos mesmos direitos). Nesta triangulação de forças, o Estado
mantém o poder formal sobre a modulação de quaisquer forças. As classes
dominantes agem fora do Estado, usando este como ferramenta de mobili-
zação das suas aspirações pessoais.

Conclusão
Dentro da criticidade dos objetos, a formulação dos ideais de classe é a mes-
ma para a reformulação de um Estado onde a cidadania deixou de ser a melhor
forma de representatividade de um povo e da sua constituição básica. Assim, a
perspectiva do indivíduo, mesmo que ele se sinta representado por um processo
legislativo – também positivado – perde a validade com o passar dos aconteci-
mentos históricos moduladores das sociedades
Atestando assim, o fato de o sujeito ser um participante da base dessa
sociedade de classes individualizadas em processos de poder, o torna prati-
camente objeto de representação da vontade das classes detentoras de poder.
Poder este que não se configura apenas nas estruturas estatais, mas já tomou
forma e força em todas as estruturas socias, educacionais e culturais. Pensan-
do no sujeito como nova forma de empoderamento do capitalismo contempo-
râneo A indústria da cultura
Atualmente nos encontramos num dos auges da nova revolução industrial,
onde os processos culturais são moldados por processos midiáticos e tecnológi-
cos, de um excesso de informação que padronizou o sujeito ao ponto de tornar
suas opiniões ocultas aos processos moldadores da sociedade, fugindo da iden-
tidade do ser social.
Assim, a indústria cultural e midiática que Adorno abre crítica, comple-
menta o sentido do ideal de Poulantzas de representatividade e enraizamento
das foças formuladoras das classes estatais; promovendo o binário que move os
ciclos objetivos e constitucionais da sociedade.
Assim, a necessidade da revolução política e cultural assume um papel cen-
tral na transição do modo de como uma sociedade deve observar e absorver os
seus sentidos e imagens nos sistemas reprodutivos para o processo de emanci-
pação social e do sujeito que irá fomentá-la. A conscientização de classes seria
um elo essencial para a estruturação deum Estado onde o social, o cultural e o

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

econômico formam uma tríade de esclarecimento e libertação de pensamento


do sujeito semiformado culturalmente e alienado dentro dos processos produti-
vos e econômicos.

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______. As classes sociais no capitalismo de hoje. Tradução de Antonio


Roberto Neiva Blundi. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1975.

______. Poder Político e Classes Sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

SAES, Décio. “Marxismo e história”. In: Crítica Marxista. 2ª edição. São


Paulo: Brasiliense, n° 01, 1994, pp. 39-59.

238
Constituinte de 1988: a promulgação de uma
Constituição democrática? Uma análise sob o
pensamento de Lênin e Rosa Luxemburgo

Viviane Vaz Castro2


Nadson Nunes Torres3
Giulia Maria Jenelle Cavalcante de Oliveira4

Introdução
“Ser farol e ser alerta,
silêncio e paciência,
quando falta consciência
cabe a ti dizer:- Desperta!”
Pedro Munhoz

Vivenciamos um momento antidemocrático de agudização das desigualda-


des sociais e crescente caráter autoritário do Estado brasileiro. O que temos hoje
no país é uma política reprodutora de desigualdades, realizando-se sob bases de
um Estado, formalmente considerado, constitucional de direito.
Em 2018 a Constituição Federal brasileira faz aniversário de 30 anos.
Ainda muito jovem e reivindicada ao longo desses anos por sujeitos críti-
cos e conservadores, certamente aqueles que estiveram nas lutas da déca-
da de 1980 no Brasil esperavam àquela época que hoje, 30 anos após sua

2 Mestranda em Serviço Social e Direitos Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Componente do GEF (Grupo de Estudos Feministas).
3 Bacharel em Direito pela UFERSA (Universidade Federal Rural do Semi-Árido).
4 Mestranda em Serviço Social e Direitos Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Componente do GEDIC (Grupo de Estudos em Direito Crítico e Marxismo na América
Latina pela UFERSA.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

promulgação, pudéssemos estar avançando em experiências democráticas,


inclusive, em pautas não contempladas na Carta Magna. Na contramão de
avanços democráticos, seguindo a característica do autoritarismo da nos-
sa história, os últimos anos foram marcados por golpe, repressão violenta
(aumento da militarização da polícia e da política), conservadorismo (com
apelo ainda a valores tradicionalistas, como a defesa da família heteropa-
triarcal monogâmica e dos “bons costumes”) e precarização das condições
de vida da classe trabalhadora.
Esse momento histórico que nos é posto atualmente leva-nos a ques-
tionar: o Estado democrático de direito existe de fato? Vivemos em uma
democracia? É possível uma democracia sob bases de um sistema capitalista?
Todas essas perguntas desembocam no objeto deste artigo, qual seja, debater
sobre a concepção de Estado, democracia e Constituição na particularidade
do capitalismo periférico no Brasil.
Nos propomos assim a realizar esse debate, sem, contudo, exaurir esses te-
mas, mas colaborar com a produção acadêmica para a construção de uma visão
crítica, sob o viés marxista, a respeito da nossa Constituinte e como a mesma
está ligada ao que entendemos sobre Estado e democracia.
Para tanto, usaremos de revisão bibliográfica sobre as categorias aqui deba-
tidas, sob análise do método materialista histórico dialético e do pensamento
marxista, com destaque para a contribuição de Lenin e Rosa Luxemburgo.

1. Estado e Democracia sob perspectiva marxista:


como temos e como queremos
São múltiplas as possibilidades de fundamentação e conceituação sobre Es-
tado. Quer dizer, diferentes vertentes teóricas interpretam o Estado a partir de
diferentes propostas metodológicas também. Assim, não é nossa intenção aqui
esgotar a discussão, criar uma verdade absoluta e nem encerrar polêmicas. Ao
contrário, pretendemos debater e apresentar o que compreendemos como Es-
tado a partir de alguns princípios e à luz de reflexões de alguns autores que se
situam na tradição marxista.
Para Engels, a necessidade de existência de um Estado como forma tam-
bém de controle dessas insatisfações prova que as contradições de classes
são inconciliáveis:

240
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O Estado não é de forma alguma, uma força imposta, do exterior, à


sociedade. Não é tampouco, “a realidade da Ideia moral”, nem “a
imagem e a realidade da Razão” como pretende Hegel. É um produto
da sociedade numa certa fase do seu desenvolvimento. É a confissão de
que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se
dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-
se. Mas, para essas classes antagônicas, com interesses econômicos
contrários, não se entredevorassem e não devorassem a sociedade
numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse
aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos
limites da “ordem”. Essa força, que sai da sociedade, ficando, por cima
dela se afastando cada vez mais, é o Estado (ENGELS, 2010, p. 67).

O Estado, assim, apresenta-se como órgão da conciliação das classes. Lênin


afirma que “o exército permanente e a polícia são os instrumentos fundamen-
tais da força do poder estatal” (LÊNIN, 2007). Essa face do Estado, a força,
mostra-se necessária para manter a conciliação do inconciliável, mantendo os
privilégios da classe dominante, em detrimento de uma maioria que precisa
lutar e estar sempre alerta para alcançar e não perder os direitos já tão ardua-
mente conquistados no embate da luta de classes.
É importante deixar claro que Lênin não nega que uma república demo-
crática, ou Estado democrático, seja a melhor forma de governo para o prole-
tariado sob solo capitalista, mas afirma, de modo irônico, que "andaríamos mal
se esquecêssemos que a escravidão assalariada é o quinhão do povo mesmo na
república burguesa mais democrática” (LÊNIN, 2007, p. 37).
O Estado burguês pode, assim, se apresentar de diversas maneiras, mas
como bem nos diz Lênin “todos esses Estados se reduzem, de um modo ou de
outro, mas obrigatoriamente, afinal de contas, à ditadura da burguesia” (LE-
NIN, 2007). Há desse modo, a permanência de uma sociedade dividida em
classes e por isso a necessidade da existência de um Estado, e não de um Estado
qualquer, mas um Estado que promova a falsa conciliação de classes (LÊNIN,
2007). Assim, para Lênin, faz-se necessário eliminar esse Estado burguês, subs-
tituindo-o por uma organização do proletariado como “a classe dominante”.
Não há apenas consensos entre autores que se denominam marxistas
quanto ao Estado. Entretanto, alguns pontos merecem destaque. Dentre
eles, vamos nos ater a elementos que Mandel caracteriza como principais
funções do Estado, a saber:

241
1) criar as condições gerais de produção que não podem ser assegura-
das pelas atividades privadas dos membros da classe dominante;
2) reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou de frações parti-
culares das classes dominantes ao modo de produção corrente atra-
vés do Exército, da polícia, do sistema judiciário e penitenciário;
3) integrar as classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade
continue sendo a da classe dominante e, em consequência, que as
classes exploradas aceitem sua própria exploração sem o exercício di-
reto da repressão contra elas (porque acreditam que isso é inevitável,
ou que é “dos males o menor”, ou a “vontade suprema”, ou porque
nem percebem a exploração) (MANDEL, 1982, p. 333-334).
O primeiro ponto destacado pelo autor diz respeito ao caráter de classe
do Estado, como instrumento de manutenção do poder da classe dominante.
Marx já dizia no Manifesto do Partido Comunista que “O poder do Estado
moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da
classe burguesa como um todo” (MARX, 2008, p. 12), bem como, na obra
O 18 de Brumário de Luis Bonaparte (2011), que o Estado é expressão política
de dominação de uma classe. Mandel sintetiza esse primeiro fundamento ar-
gumentando que o “Estado é produto da divisão social do trabalho” (MAN-
DEL, 1982, p. 333) e que sua origem “coincide com a origem da propriedade
privada” (MANDEL, 1982, p. 334). Isso justifica uma das funções do Estado
burguês ser a garantia das condições de reprodução do capital. Istvan Mésza-
ros (2015) destaca o Estado como um dos três elementos que compõe o tripé
consubstancial do sistema do capital, sendo os outros dois o trabalho e o pró-
prio capital. Assim, para o referido autor,

[...] a materialidade do Estado está profundamente enraizada na base


sociometabólica antagônica sobre a qual todas as formações de Estado
do capital são erguidas. Ela é inseparável da materialidade substantiva
tanto do capital quanto do trabalho (MESZAROS, 2015, p. 29).

Nesse sentido, também afirma Marx, ao nos trazer o Estado como “comu-
nidade ilusória”:

E é precisamente por essa contradição do interesse particular e do


interesse comunitário que o interesse comunitário assume uma

242
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

organização autônoma como Estado, separado dos interesses reais dos


indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como comunidade ilusória, mas
sempre sobre a base real dos laços existentes em todos os conglomerados
de famílias e tribais – como de carne e sangue, de língua, de divisão
do trabalho numa escala maior e demais interesses – e, especialmente,
como mais tarde desenvolveremos, das classes desde logo condicionadas
pela divisão do trabalho e que se diferenciam em todas essas massas de
homens, e das quais uma domina todas as outras. Daqui resulta que
todas as lutas no seio do Estado, aluta entre a democracia, a aristocracia
e a monarquia, a luta pelo direito do voto etc. não são mais do que
formas ilusórias em que são travadas as lutas reais das diferentes classes
entre si e também que todas as classes que aspiram ao domínio, mesmo
quando o seu domínio, como é o caso com o proletariado, condiciona
a superação de toda a velha forma da sociedade e da dominação em
geral, tem primeiro de conquistar o poder político para, por sua vez,
representarem o seu interesse como interesse geral, coisa que o primeiro
momento são obrigadas a fazer (MARX, 2013, p. 48).

Partindo da perspectiva que na história nada é estático, compreendemos


que os diferentes formatos de Estado são resultados da correlação de forças
entre setores que possuem interesses antagônicos (capital e trabalho), bem
como expressam diferentes estágios de acumulação do capitalismo. O modo
de gerir o Estado, nesse sentido, sofre diversas determinações. Dentre elas, si-
tuamos também as particularidades da formação sócio-histórica de cada país,
que revelam contornos diferentes para a luta de classes. Quer dizer, a partir
das transformações societárias se alteram as necessidades de regulação das
relações sociais de produção e reprodução social, e com elas acompanham as
mudanças na legislação, na economia, na política, enfim, em todas as áreas
de atuação estatal. É nesse sentido que:

As formações estatais historicamente dadas do sistema do capital


devem se afirmar como executoras eficazes das regras necessárias
para a manutenção da ordem sociorreprodutiva estabelecida.
Naturalmente, a ‘Lei’ deve ser definida e alterada em conformidade,
a fim de atender às mudanças nas relações de poder e às alterações
correspondentes dos antagonismos fundamentais inseparáveis do
metabolismo de reprodução social do capital. Essa maneira de impor
a legitimidade do Estado é viável por vezes em sintonia com as

243
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

‘normas constitucionais’, e outras vezes só através da suspensão e


violação de todas as regras desse tipo. O desenvolvimento histórico
decide qual dos dois deve prevalecer sob as circunstâncias dadas e,
via de regra, mutáveis (MESZAROS, 2015, p. 56-57).

A função primordial do Estado é garantir a manutenção do poder político


de setores da burguesia para que se mantenham as condições necessárias de
reprodução do capital. Recorrente em países de capitalismo periférico, como
é o caso do Brasil, infringir as leis criadas pela própria classe dominante é le-
gítimo em nome de sua função primeira. Aliás, é possível pensar em diversos
momentos diferentes da história brasileira, como o golpe civil-militar de 1964 e
mais recentemente o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, episódios que
marcam a frágil democracia brasileira em contextos críticos do capitalismo no
país. Dessa forma, os caminhos trilhados pela burguesia na direção do Esta-
do envolvem a reflexão das necessidades do capital em seus diferentes estágios
de acumulação, crise, prosperidade ou regressão. É nesse sentido que Mandel,
quando alerta para a suscetibilidade do capitalismo tardio às crises econômicas
e políticas (1982), afirma que:

[...] a “administração de crises” é uma função tão vital do Estado


na fase tardia do capitalismo quanto sua responsabilidade por um
volume enorme de “condições gerais de produção” ou quanto seus
esforços para assegurar uma valorização mais rápida do capital
excedente. Economicamente falando, essa “administração das
crises” inclui todo o arsenal das políticas governamentais anticíclicas
(MANDEL, 1982, p.340).

Quer dizer, apesar da propagação das ideias liberais de mínima intervenção


do Estado, em tempos de crise as políticas econômicas intervêm em específicos
momentos do ciclo de rotação do capital para salvar aquele que se encontra em
dificuldade de realização. Além disso, por políticas anticíclicas podemos pensar
algumas políticas sociais que também vão cumprir outra função primordial do
Estado que Mandel chama atenção: a necessidade de integrar a classe domina-
da e criar falsos consensos na maioria da população. Assim,

[...] as funções superestruturais que pertencem ao domínio do Estado


podem ser genericamente resumidas como a proteção e a reprodução
da estrutura social (as relações de produção fundamentais), à medida

244
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que não se consegue isso com os processos automáticos da economia


(MANDEL, 1982, p.340).

Essa necessidade de intervenção do Estado burguês na economia evidencia a


lógica destrutiva e insustentável do capital. Garantir a proteção e a reprodução
da estrutura social envolve políticas nas mais diversas áreas: econômica, social,
ideológica (como controle e direcionamento das principais instituições como
escolas, faculdades, Igreja e família) e repressiva, com o apelo militar e a utiliza-
ção de forças armadas para manter a “ordem e progresso”.
Destacado um dos aspectos de nossa concepção sobre Estado, que é neces-
sariamente sua dimensão de classe como instrumento de propagação da ordem
social vigente, vale ressaltar que se são poucos e escassos os espaços da classe
trabalhadora em sua direção, a disputa entre setores da burguesia desenham
conciliações, rompimentos e golpes na história mundial. Foi nesse sentido, para
compreensão de uma conjuntura específica de disputa no interior da própria
burguesia e para frear os avanços de movimentos pré-revolucionários na Eu-
ropa que Marx escreve o 18 de Brumário de Luis Bonaparte, destacando a luta
de classes como a grande lei do movimento da história (2011, p. 22). Assim, a
direção do Estado envolve disputas mesmo no interior da burguesia, nas frações
da classe dominante, já que os diferentes setores buscam interesses particulares
vinculados à sua atividade produtiva.
No Brasil, o enlace dos setores da burguesia é marca recorrente em nossa
história, em alianças que integram a burguesia nacional, internacional e os mi-
litares. Nesse sentido, há um consenso entre os estudiosos da formação sócio-
-histórica brasileira (IANNI, 1984) que

[...] as classes dominantes, ou os blocos de poder, sempre buscaram


impor os seus interesses, em geral de forma exclusiva, sobre o
conjunto da sociedade. Por meio da “conciliação entre frações das
classes dominantes” e lançando mão de “medidas aplicadas de cima
para baixo”, em geral os blocos de poder conseguiram monopolizar
largamente o aparelho estatal. Seja impondo-se pela violência, seja
antecipando-se na adoção de medidas paliativas, seja cooptando
lideranças e organizações, com frequência as classes e frações de
classes dominantes impõem-se aos grupos e classes subordinados, na
cidade e no campo (IANNI, 1984, p. 33).

245
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Quer dizer, há particularidades na dominação burguesa no Brasil com


alianças pragmáticas para controlar os movimentos e possíveis ameaças da
classe trabalhadora, ora com acentuação da repressão e fortalecimento do
aparato militar do Estado, ora por meio de implementação de políticas so-
ciais “consensuais”. Assim, as mudanças que temos no âmbito do Estado
brasileiro ao longo da história não expressam anseios da classe trabalhadora
organizada, são decisões tomadas de “punho firme” por uma burguesia au-
toritária e com forte apelo militar.
Retomando os pontos destacados por Mandel como funções primordiais do
Estado, vamos ao segundo: a dimensão repressiva do aparelho, com utilização
das forças armadas, seja para controle de momentos de efervescência da classe
trabalhadora organizada, seja pra conter ameaças de demais setores da burgue-
sia. Nessa lógica, Mészaros afirma que

[...] dada sua [do Estado] função crucial de reprodução social global,
o tipo de defesa legitimadora do Estado próprio do metabolismo social
estabelecido não pode assumir qualquer outra forma senão a sobreposição
a todo custo. Isso envolve a política/militar global e as formas mais
violentas (MESZAROS, 2015, p.18).

O terceiro ponto sintetizado por Mandel é quanto à alienação e dominação


ideológica. Aqui, são centrais as principais instituições da sociedade burguesa,
como as Igrejas, a tradicional família monogâmica heterossexual, as escolas,
atividades culturais (como música, teatro e novelas) e, com ainda maior força
no Brasil, as emissoras de televisão, capazes de chegar todos os dias na sala das
casas de trabalhadores e propagar as ideias dominantes.

Um aparelho de Estado construído sobre essas bases se propõe a


administrar o sistema social existente – ou, na melhor das hipóteses,
modificá-lo mediante reformas “aceitáveis”, isto é, assimiláveis. Sua
função é intrinsecamente conservadora. Um aparelho de Estado que
não preserva a ordem social e política seria tão impensável quanto um
extintor de incêndio que espalha chamas ao invés de apagá-las. Uma
instituição conservadora desse gênero é por natureza totalmente incapaz
de conceber, para não dizer efetivar, qualquer alteração radical do
sistema social vigente (MANDEL, 1982, p. 348).

246
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Assim, seja pela utilização da força militar ou pela integração e aceitação da


ideologia burguesa, a atividade primordial do Estado é manutenção da ordem social.
Aliás, em sociedades que conseguem firmar os valores dominantes e controlar as re-
beldias da classe dominada – sobretudo em contextos de menor desigualdade social
e barbárie -, os Estados podem utilizar menos a força repressiva e mais a dimensão
da integração das classes e dos consensos. Como nos mostrou Marx no 18 de Bru-
mário, o Estado militar se torna uma alternativa para controle de insatisfações.
A necessidade de um Estado que afirme direitos formais e igualdades for-
mais, mostra uma base material não democrática, preenchida substantivamente
por desigualdades. Como nos diz Ivo Tonet, a conquista de uma democracia
plena e, por conseguinte, a conquista do socialismo, promove a ausência de
manutenção de certas categorias, como capital, Estado, e a existência dos cha-
mados direitos do cidadão,

uma vez que estes são a expressão de uma sociedade articulada sobre a
existência da desigualdade real e da igualdade formal; e por outro lado,
são direitos exatamente porque não podem ser efetivamente realizados
(TONET, 2004, p.132).

Quer dizer, no exercício da democracia substantiva, o Estado perde sua razão


de existir. Defendemos assim, uma sociedade na qual possamos desfrutar de uma
democracia substantiva5, não nos deixando contentar com uma democracia como
“participação”6 efetiva de todos na gestão da sociedade. Ivo Tonet, fazendo uma
crítica sobre essa concepção de democracia participativa, afirma que:

Se por democracia entendermos a participação efetiva de todos


na gestão do processo social – o que, obviamente, supõe já uma
forma de entificação deste mesmo processo a partir da matriz do
trabalho associado – como chamaremos a participação de Atenas,

5 Entendemos democracia substantiva, àquela que está ligada à conquista da cidadania plena,
afirmada por Nelson Coutinho, ligada à concepção de emancipação humana trazida por Marx em
Para a Questão Judaica, ou seja, o fim das desigualdades sociais, das opressões e discriminações, uma
democracia como “O” caminho para a chegada do socialismo.
6 Democracia participativa como sendo àquela que defende a necessidade de uma participação mais
efetiva dos sujeitos sociais nas diferentes instâncias políticas de discussão dos assuntos públicos, onde
o centro seria a influência que os sujeitos coletivos podem exercer, tanto no que tange ao controle das
instituições, quanto a influência por meio de demandas (DURIGUETTO, 2011).

247
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

em Florença, nos países mais desenvolvidos, hoje? Democracia


imperfeita? (TONET, 2004, p.137).

Surge assim um questionamento: o que viria a substituir o Estado? Marx, no


Manifesto do Partido Comunista, afirmou que a máquina do Estado seria subs-
tituída pela “organização do proletariado como classe dominante”, pela “con-
quista da democracia”. Lênin, nesse sentido, complementa de maneira enfática:

Em lugar de instituições especiais de uma minoria privilegiada


(funcionários civis, chefes do exército permanente), a própria maioria
pode desempenhar diretamente as funções do poder político; e, quanto
mais o próprio povo assumir essas funções, tanto menos se fará sentir a
necessidade desse poder (LÊNIN, 2007, p.61).

A construção de um poder político verdadeiramente democrático é dada,


assim, pelo aprofundamento e desenvolvimento da democracia, porém, esta,
se considerada isoladamente não nos trará o socialismo, no entanto, se consi-
derada “em conjunto”, “exercerá a sua influência sobre a economia, cuja trans-
formação precipitará, sofrendo também ela a influência do desenvolvimento
econômico etc. Tal é a lógica da história viva” (LENIN, 2007, p. 95).
Tomando por base a visão de Lênin, a construção de uma sociedade verda-
deiramente democrática, se dá com a supressão natural do Estado:

Isto é, de toda violência, organizada e sistemática, de toda coação sobre


os homens em geral. Não desejamos o advento de uma ordem social
em que caducasse o princípio da submissão da minoria à maioria. Mas,
em nossa aspiração ao socialismo, temos a convicção de que ele tomará
a forma do comunismo e que, em consequência, desaparecerá toda
necessidade de recorrer à violência contra os homens, à submissão de
um homem a outro, de uma parte da população à outra. Os homens,
com efeito, habituar-se-ão a observar as condições elementares da vida
social, sem constrangimento nem subordinação (LENIN, 2007, p. 99).

Enquanto estivermos em uma sociedade capitalista, a democracia estará


sempre comprimida diante da exploração, opressão e desigualdades. A demo-
cracia sob bases capitalistas não irá passar nunca de uma democracia de uma
minoria, uma “democracia mutilada, miserável, falsificada” (LENIN, 2007, p.

248
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

107). Enquanto isso, para a manutenção dessa “democracia”, a massa é mantida


sob o domínio de uma minoria, aonde como nos diz o pensador revolucionário:

os escravos assalariados de hoje, em consequência da exploração


capitalista, vivem por tal forma acabrunhados pelas necessidades e pela
miséria, que nem tempo têm para se ocupar de democracia ou política
(LENIN, 2007, p. 105).

Lênin conclui que só o comunismo é capaz de tornar o Estado inteiramente


supérfluo, “porque não há mais ninguém a coagir (ninguém no sentido social,
não de classe)” (LENIN, 2007), assim:

No período de transição do capitalismo para o comunismo, a repressão é


ainda necessária (...) O aparelho especial de repressão do “Estado” é ainda
necessário, mas é um Estado transitório, já não é o Estado propriamente
dito, visto que o esmagamento de uma minoria de exploradores pela
maioria dos escravos assalariados de ontem é uma coisa relativamente
fácil, tão simples, tão natural, que custará à humanidade muito menos
sangue do que a repressão das revolta de escravos, de servos e operários
assalariados” (LENIN, 2007, p. 108).

Fazer a crítica à democracia formal não retira desta sua importância no


avanço da conquista de direitos e liberdades democráticas, mas a entendemos
como um meio e não como fim. Se por um lado o Estado democrático é um
sistema organizado que mantém uma minoria superior a uma maioria, um sis-
tema de coação, por outro, reconhece, mesmo que formalmente, a igualdade
entre os cidadãos, o direito em determinar a forma de Estado e administrá-lo,
porém é necessário transpô-la:

A tarefa histórica do proletariado, quando toma o poder, consiste


em instaurar a democracia. A democracia socialista não começa
somente na Terra prometida, quando tiver sido criada a infra-
estrutura da economia socialista, como um presente de Natal, já
pronto, para o bom povo que, entretanto, apoiou fielmente o punhado
de ditadores socialistas. A democracia socialista começa com a
destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. Ela
começa no momento da conquista do poder pelo partido socialista
(LUXEMBURGO, 2006, p.121-122).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Necessário assim, como nos diz Luxemburgo, perceber:

Nunca fomos idólatras da democracia formal só pode significar que


sempre fizemos distinção entre o núcleo social e forma política da
democracia burguesa: que sempre desvendando o áspero núcleo da
desigualdade e da servidão sociais escondido sob o doce invólucro da
igualdade e da liberdade formais – não para rejeitá-las, mas para incitar
a classe trabalhadora a não se contentar com o invólucro, incitá-la a
conquistar o poder político para preenche-lo com um conteúdo social
novo. (LUXEMBURGO, 2006, p. 121)

Para Rosa Luxemburgo, as ações espontâneas e organizadas das massas,


com direção autônoma e democrática, constituem o instrumento fundamen-
tal para destituir a democracia burguesa e alcançar a democracia substantiva,
para assim chegarmos ao socialismo. São essas massas que de forma livre,
como fizeram os operários russos no século XX, somam espontaneidade com
a atuação dos sindicatos e partidos para a condução dos processos de luta que
resultam na Revolução Russa, posteriormente degenerada e burocratizada.
Assim, a liberdade das massas e a democracia são inseparáveis, não podendo,
pois, desconsiderar os movimentos espontâneos, tampouco abrir mão de bus-
car a sua direção consciente.
É por isso que a própria inteligência da massa quanto às suas tarefas
e meios é, para ação socialista, condição histórica indispensável assim
como a inconsciência da massa foi, antigamente, condição para as ações
das classes dominantes (LUXEMBURGO, 1971, p. 81).

É evidente que a força das massas na construção do socialismo e da de-


mocracia, para Rosa, estava ligada diretamente a ação das massas, porém,
ela não negava a necessidade e importância da união entre as essas massas
populares e os organismos (sindicatos, partidos, etc.), àquelas entendidas
como corretivo poderoso destes:

Tudo isso mostra que o pesado mecanismo das instituições


democráticas encontra um corretivo poderoso exatamente no
movimento vivo e na pressão constante da massa. E quanto mais
democrática a instituição, quanto mais viva e forte a pulsação da
vida política da massa, tanto mais imediata e precisa é a influência
que ela exerce – apesar das etiquetas partidárias rígidas, das listas

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

eleitorais obsoletos etc. É claro que toda instituição democrática


tem seus limites e lacunas, o que aliás, compartilha com todas as
instituições humanas (LUXEMBURGO, 2006, p.112).

Nos fica claro que a democracia que temos é a formal, mas a que queremos é a
substantiva. Rosa nos mostra assim, a importância da superação dessa democracia
formal, das liberdades apenas formais, para alcançarmos a democracia substanti-
va, com liberdades democráticas substantivas e a construção de um novo mundo.

2. Contribuições marxistas para pensar a Constituinte


de 88 e o Estado Democrático de direito no Brasil
Em contraponto ao idealismo de Hegel, no qual temos no conceito de Esta-
do e Constituição, fundamentos ligados à razão7, à expressão de uma racionali-
dade ideal, aonde “o Estado se anunciava, para Hegel, como razão em si e para
si” (MARX, 2013). Marx, sem desprezar a razão, nos traz como fundamentos da
Constituição, as lutas sociais, envolta por uma política concreta e real. (MARX,
2013, p. 4). Ela surge dos embates e contradições vigentes no mundo real, estan-
do seu surgimento, diretamente atrelado à correlação de forças vigente.
Para Marx, o povo é o “Estado real”, é o todo, a constituição é a “parte”, ou
seja, o poder constituído. Marx percebe assim, que há uma inversão de posições
e a consagração de uma alienação política, no momento em que o povo se sub-
mete a sua própria obra (MARX, 2013, p.67). O povo, assim, transforma-se em
receptor de uma forma estabelecida de Estado.
Uma nova Constituição se faz necessária, de acordo com Marx, quando as
normas vigentes já não são mais o espelho do mundo atual. Trata-se assim de
um acordo político, entre o Estado, o governo e a sociedade civil. O surgimento
de uma constituição está assim atrelado à conjuntura que se impõe, de rupturas
políticas e institucionais.

7 “O Estado como espírito vivo, só é como um todo organizado, distinto em atividades particulares,
que, procedendo do conceito único (embora não sabido como conceito) da vontade racional,
produzem continuamente esse todo como seu resultado. A Constituição é essa articulação da
potência do Estado. Contém as determinações da maneira como a vontade racional, enquanto
nos indivíduos é somente em si a vontade universal, pode, por uma lado, chegar à consciência e à
inteligência de si mesma, e ser encontrada, e por um lado, chegar à consciência e à inteligência de
si mesma (MARX, 2013, p.24).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A construção da democracia brasileira se deu assim, diante de um “desen-


volvimento desigual e combinado” (MARINI, 2005). As marcas de subordina-
ção e dependência são ainda mais agravadas pela raiz colonial do Brasil, cons-
tantemente revitalizada. A “revolução” burguesa no Brasil ocorre sem alterar as
estruturas dominantes, ou seja, houve uma “revolução passiva”8, enraigada em
uma estrutura patrimonialista, patriarcal, racista e autoritária que não permite
abrir caminhos para processos de democratização substantivos. Para Florestan
Fernandes (1981, p. 350), construímos uma história na qual “democracia e li-
berdade” para uma “minoria dominante” é “oligarquia e opressão para a maioria
submetida” ou, ainda, uma “democracia de cooptação”9, que caracteriza uma
“democracia restrita típica” no país (IDEM, 1981, p. 359).
Isso fica mais evidente quando se analisa a gênese da nossa Carta Magna,
forjada e lapidada não pelo povo, mas, sobretudo, pela elite conservadora a fim
de garantir uma transição sistemática, de forma "lenta e gradual", sem romper
os laços com o regime ditatorial.
Essa mesma elite, financiada pela classe burguesa, conquistou a maioria dos
assentos da Assembleia Nacional Constituinte-ANC, com o intuito primário de
preservação dos próprios interesses. Vale dizer que o sistema eleitoral da Cons-
tituinte era regulado por leis advindas do regime ditatorial, a exemplo da Lei
Orgânica dos Partidos (lei nº 5.682/71), lei 7.493/86, lei 7.508 e lei 7.514/86, fatos
que a afastam, desde a sua gênese, do caráter democrático. Nesse ponto, coa-
dunamos com o entendimento de Lênin, sobre como deve ser uma Assembleia
Constituinte eleita pelo povo e, por conseguinte, verdadeiramente democrática:

É em primeiro lugar, uma assembleia que expressa realmente a vontade


do povo, para o que se requer o sufrágio universal, etc. e a plena garantia
de uma livre agitação eleitoral. É em segundo lugar, uma assembleia
que possua realmente o poder e a força necessários para constituir uma
ordem estatal que garanta a autocracia do povo. É claro como água que
se não se derem estas duas condições, a Assembleia não será realmente
eleita por todo o povo, nem realmente constituinte (LENIN, 1985 p. 24).

8 Aqui tomamos o conceito de “revolução passiva” forjado por Gramsci, sendo o processo pelo qual,
muda-se a forma de dominação, mas, mantém-se sua substância, ou seja, é um “movimento de
cooptação dos dominados pelos dominadores” (GRAMSCI, 2009, p. 8).
9 A “democracia de cooptação” está associada à corrupção no sistema de poder e a compra de alianças
e lealdades (Ver FERNANDES, 1981).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Florestan Fernandes já nos alertava que nossa Assembleia Constituinte, não


passava de uma Assembleia fantasiosa, pois a maioria parlamentar representava
uma minoria econômica e social hegemônica em evidente inversão de represen-
tatividade expressada na pirâmide social.

Na ANC a sociedade civil aparece de cabeça para baixo, invertida.


A minoria dominante, graças aos artifícios da democracia burguesa e
dos mecanismos eleitorais, torna-se maioria parlamentar. A maioria
social – todo povo pobre e trabalhador – surge ali como uma minoria
parlamentar, graças aos partidos políticos proletários e aos setores
dissidentes da burguesia (FERNANDES, 2014, p. 108).

É dizer, de outra forma, que a Constituição Federal de 1988, foi concebida para
resguardar, prioritariamente, os interesses políticos, sociais e econômicos pauta-
dos nos ideais liberais de liberdade, igualdade formal, da proteção da propriedade
privada, da livre iniciativa, enfim, com pautas eminentemente burguesas, mesmo
com alguns pontuais avanços nos direitos para a classe trabalhadora.
Apesar do desequilíbrio na correlação de forças como citado alhures e pro-
mulgação detentoras de mitigada característica de democracia real, foi a consti-
tuinte de 88, a mais democrática desde então. Configurando-se uma democra-
cia constitucional, acolheu milhares de sugestões populares e reuniu um con-
junto de conquistas de direitos. Porém, apesar da ampliação de muitos direitos
sociais, econômicos e políticos dos trabalhadores, restrições democráticas ainda
permaneceram, o que impossibilita até os dias atuais a plenitude dos mesmos,
como por exemplo, a reforma agrária, o reconhecimento de greve de servidores
públicos, o imposto sobre grandes fortunas, dentre outros.
Essa conquista de direitos, pela qual fez o Brasil avançar democraticamente,
provocou reação da oposição conservadora. Embates entre os setores populares
e os neoliberais, herdeiros da oligarquia, foram travados e a luta de classes, mais
uma vez, fez-se presente em nosso processo de transição democrática tardia.
Hoje, do mesmo modo que outrora, os direitos que ainda anseiam por regu-
lamentação, enfrentam uma batalha. A batalha entre os setores conservadores
e progressistas. Direitos formais são amplamente previstos na constituinte, mas
o desafio que se impõe é mais amplo ainda, é avançar para sua eficácia plena e
impedir o retrocesso dos já regulamentados.
Lênin mostra, corroborando com o dito anteriormente, como essa
democracia constitucional, liberal, representativa, é constituída de limitações,

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

exceções, exclusões e obstáculos à classe trabalhadora. Um regime político


dotado de múltiplos mecanismos de restrições:

as velhas contradições entre as palavras de ordem e os fatos, entre o


democratismo, como princípio, e o democratismo no campo da política
realista dão lugar a outra novas, pois a crescente revolução traz à
democracia exigência cada vez maiores. Não obstante, a democracia
burguesa continua caminhando atrás dos acontecimentos ainda que
eleve o alvo das suas palavras de ordem, caminha coxeando atrás
dos fatos, formulando sempre estas palavras alguns graus abaixo do
que realmente exige a verdadeira luta revolucionária e verdadeira
liberdade (LENIN, 1994, p.22).

Democracia como a entendemos, deve pressupor o exercício pleno da


soberania e a garantia de direitos de um povo. Demanda, portanto, a garan-
tia universal de direitos, uma vez que podemos definir democracia como “a
presença efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam ao
conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em
consequência, no controle da vida social” (COUTINHO, 1997, p.145). A
universalização dos direitos ou da cidadania, todavia, “é incompatível com
a existência de uma sociedade de classes. Ou, em outras palavras: a divisão
da sociedade em classes constitui limite intransponível à afirmação conse-
quente da democracia” (IDEM, 1997, p.159).
Para que os direitos não se limitem à integração das massas ao capital ou mes-
mo busquem meramente o aperfeiçoamento da ordem, como preconiza a demo-
cracia liberal, mas que integrem uma perspectiva emancipatória, não podem se
encerrar como uma estratégia em si mesmos, mas como uma tática que na dinâ-
mica da luta de classe, devem “contribuir para revelar movimentos permanentes
de tensão e contradição com a ordem vigente” (SANTOS, 2007, p. 29).
No dizer de Wood:

O capitalismo tornou possível conceber democracia formal, uma forma


de igualdade civil coexistente com a desigualdade social e capaz de deixar
intocadas as relações econômicas entre a elite e a multidão trabalhadora
(WOOD, 2003, p. 184).

A compreensão crítica das contradições e mesmo dos limites dos direitos na


ordem do capital, por outro lado, não nos leva a desconsiderar sua importân-

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

cia, afinal, não “se pode libertar os homens enquanto estes não estiverem em
condições de adquirir comida e bebida, habitação e vestuário na qualidade e na
quantidade perfeitas. A “libertação” é um ato histórico, não um ato de pensa-
mento [...]” (MARX e ENGEL, 2009, p. 36-37).
Com base nessa análise, uma pergunta precede a qualquer discussão para se
pensar a concretização universal de direitos e, por conseguinte, da democracia:
estando a sociedade dividida em classes, a democracia não pode ser alcançada?
Carlos Nelson Coutinho nos elucida:

Como parece óbvio, a condição de classe rica, por um lado, privilégios,


e, por outro, déficits, uns e outros aparecendo como óbices a que todos
possam participar igualitariamente na apropriação das riquezas espirituais
e materiais socialmente criadas. Ora, se há alguma conclusão a tirar disso,
ela me parece óbvia (embora toda a propaganda ideológica atual tenda a
negá-la): só uma sociedade sem classes – uma sociedade socialista – pode
realizar o ideal da plena cidadania, ou, o que é o mesmo, o ideal de soberania
popular e, como tal, da democracia (COUTINHO, 1997, p. 159).

Nesse sentido, faz-se necessário uma sociedade sem classes para a “plena cida-
dania” e, por conseguinte, para a plena democracia. Falar em democracia é, então,
falar em socialismo (COUTINHO, 1997). São assim caminhos interligados que vi-
sam a superação do individualismo para construção de uma sociedade emancipada.

Conclusão
Percebemos limites e contradições inerentes à democracia constitucional
representativa no capitalismo que sacrificam a classe trabalhadora em favor da
manutenção dos privilégios de uma minoria. Uma “democracia” que concentra
muito nas mãos de poucos e, nas mãos de muitos, muito pouco.
É notório, ao longo da construção democrática no país, que os setores domi-
nantes - as classes dominantes e possuidoras - procuram por todos os meios “le-
gais” ou mesmo ilegais impedir a consolidação de uma democracia da maioria,
destruindo e minando os avanços e fechando a cortina para qualquer pequeno
raio de luz que possa nos levar a uma democracia substantiva.
É fato que no regime democrático-burguês os elementos democráticos se
mostram como majoritários, porém, podem e contém ainda elementos ditato-

255
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

riais, como diz Demier e Gonçalves, elementos esses que podem se mostrar
como “residuais ou em fermentação” (DEMIER; GONÇALVES, 2017).
Reconhecer que possuímos uma democracia com a Constituição “Cidadã”
de 88 não pode nos vendar e nos calar face a esses elementos. Uma Consti-
tuição que prega a igualdade civil é a mesma que sustenta uma “democracia”
onde a desigualdade social persiste. É inegável que essa Constituição traz di-
versos direitos individuais e coletivos, mas que substancialmente não se efeti-
vam como se propõe.
Mesmo após 30 anos da promulgação da Constituição Federal de 88 e com
quase 14 destes sob governos de um partido com origem popular de esquerda -
Partido dos Trabalhadores - em que se observou, momentaneamente, aspectos
de ascensão social e econômica da classe trabalhadora, não houve qualquer
alteração na estrutura de classes, o que nos leva a concluir, que na democracia
capitalista "de tempos em tempos, os operários triunfam, mas é um triunfo efê-
mero" (MARX e ENGELS, 1998, p.48).
É notório que não há como mudar a natureza do capitalismo através de polí-
ticas conciliatórias como desejam os reformistas e os sociais-democratas, pois a
essência da democracia capitalista é servir aos interesses do capital.
Além disso, como bem nos afirma Trotsky “o proletariado não pode con-
quistar o poder por meio de leis promulgadas pela burguesia" (TROSTKY, 1998,
p. 162) e a Constituição, em seu sentido amplo, nada mais é, na sua essência,
que uma lei promulgada pela classe burguesa. Por isso mesmo, não devemos
relevar o seu caráter instrumental, com funções bem definidas: organizar, san-
cionar e legitimar a “distribuição de riqueza e do poder da sociedade capitalista,
não "igualmente" para todo povo, porém desigualmente, seguindo o modelo de
desigualdade econômica, cultural e de dominação de classe imperante na socie-
dade civil" (FERNANDES, 2014, p 108).
Podemos enquadrar o Brasil, assim como nos traz Demier, como uma “de-
mocracia blindada” (DEMIER, 2017). As democracias blindadas são forjadas
a partir de 1980, dotadas de um caráter hegemônico, que mantém de forma
equilibrada coerção e consenso, apresentando “estruturas de funcionamento
hermeneuticamente fechadas às pressões populares, preservando seus núcle-
os institucionais decisórios como espaços exclusivos dos interesses da classe
dominante” (DEMIER, 2017, p. 2372). Impendem assim, que as demandas
populares reformistas possam adentrar a política, sendo assim, portanto, es-
sencialmente contra-reformistas.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A democracia constitucional blindada na qual o Brasil se insere, possui as-


sim, uma combinação entre retirada de direitos sociais e expansão de políticas
sociais compensatórias, com aumento do Estado penal, violentador e repressor,
bem como com massiva produção de consenso com uso da mídia como instru-
mento de alienação e de fundamental importância na formação do mesmo, tão
essencial ao Estado burguês.
O cenário "pós-golpe" é ainda mais desafiador para a classe trabalhado-
ra, pois a configuração política das eleições presidenciais e parlamentares de
2018, com um governo essencialmente neoliberal, fascista e ultraconservador,
a torna ainda mais vulnerável, o que nos remete à única solução viável e
permanente para a igualdade real: uma nova ordem social, sem classes, sem
dominação e com emancipação humana. Contudo, como afirma Trotsky: "ne-
nhuma ordem social deixa a cena da História antes de haver esgotado todas
as suas possibilidades" (TROTSKY, 1998, p. 161), quer dizer, não cede seu
lugar sem apresentar resistência.
Como nos diz Rosa, sem a conquista da liberdade plena e da autodetermina-
ção, não há como haver democracia, e existindo de forma substantiva, entrarí-
amos em solo socialista (LUXEMBURGO, 2006).
É com unidade, organização, formação de consciência crítica e ação política
revolucionária voltada à construção de uma contra hegemonia, que permitirá à
classe trabalhadora resistir e alcançar a derrocada da democracia permitida, da
democracia vigente, limitada pelos interesses do capital e grupos hegemônicos,
superando assim a democracia como “valor instrumental” para conquistar a
“democracia como valor em si” e a emancipação humana.

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259
Mecanismos de participação popular nas
cartas constitucionais: analise entre a
brasileira e boliviana

Carlos Eduardo Mota de Brito1

Introdução
Desde o início da organização do homem em sociedade, as reflexões sobre
como a vida comunal deve ser gerida existiram, mas, especificamente o pensar
sobre a democracia, pode ser rastreado desde século V antes de Cristo no livro
Histórias do historiador grego Heródoto. Já na modernidade, com as revoluções
liberais do século XIX a burguesia chega ao poder criando os primeiros Estados
liberais democráticos, onde nesses Estados burgueses, o pressuposto da sobera-
nia popular era - e continua - sendo a base do regime. Porém, paradoxalmente,
como dito por Marx, o Estado eleva interesses particulares à condição de uni-
versais (MARX, 2010, n.p.). Desta maneira, cabe a pergunta se a democracia li-
beral burguesa se ampara realmente na soberania popular ou representa apenas
a melhor maneira de exercício do domínio de classe burguês.
Trazendo para a realidade Latino Americana, onde os Estados Nacionais
foram fundados para garantir a expansão do capitalismo mercantil, toda a
lógica que justificou a criação estatal e jurídica europeia - no tocante do
controle do poder pátrio e garantias de direitos fundamentais - é perdida,
tendo em vista que desde o início do processo democrático latino americano
diversos grupos foram excluídos.

1 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) – campus


Mossoró. Membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC).
E-mail: [email protected]

261
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O desdobrar da história latino-americana causou diversas mutações na so-


ciedade e nesses processos os Estados criavam novas Constituições que dia-
logassem com o momento histórico inserido. No caso do Brasil, após décadas
de ditadura militar, houve um período de “transição” em que uma nova Carta
Constitucional foi escrita, esse documento que contou com uma intensa - e
inédita para os moldes brasileiros - participação popular positivou diversas ga-
rantias e direitos, como também mecanismos de participação popular para que
o povo, de onde emana o poder, interagisse diretamente com o fazer político.
Tendo em mente que nas realidades dos países subdesenvolvidos, diversos
sujeitos históricos só foram recentemente incluídos nos processos políticos, o
presente trabalho pretende analisar – utilizando o método materialista his-
tórico dialético, com documentos acompanhados de literatura jurídica e so-
ciológica sobre o tema - quais formas de mecanismos de participação popular
estão presentes nas constituições do Brasil e na Bolívia. O trabalho objetiva
em síntese: primeiro delimitar a teoria democrática que abarque a América
Latina e a história constitucional dos dois países; a segunda parte está con-
centrada em falar sobre a atual constituição brasileira e seus mecanismos de
participação popular, com a sessão seguinte tendo a mesma finalidade só que
para a Constitución Política del Estado boliviana; e por último, serão feitas
considerações finais sobre os temas elencados no trabalho.

1. Democracia como conceito em disputa


Quando se fala sobre democracia é perceptível a pluralidade de significados
da palavra. Por isso, é necessário situar que a democracia analisada no presente
trabalho está vinculada ao prisma – ainda que liberal - da “representação popu-
lar”, conceito esse que a filósofa francesa Simone Goyard-Fabre explica como:

[...] o axioma propiciador de os governantes falarem em nome dos


governados, e pressupõe a concordância dos atos de quem está no poder
estatal e dos seus representados, produzindo assim, legitimidade formal
de um governo. (GOYARD-FABRE, 2003, p. 277-8).

Apesar das limitações da democracia liberal, a representação popular é


muito “cara” na América Latina, em decorrência de diversos processos como
ditaduras, votos censitários, escravidão, proibição do voto para indígenas e

262
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

mulheres entre outros. Em decorrência de historicamente os governantes


serem representante somente das oligarquias locais, onde os interesses da
maioria excluída da população são esquecidos em detrimento da oligarquia
local e do capital internacional.

1.1. Teoria democrática e América Latina


Na teoria democrática são habituais as definições homogeneizadoras de
povo, Estado, Nação, família e outras instituições que moldam indiretamente
os processos políticos e legislações.
Consciente que essas instituições foram cunhadas primariamente para rea-
lidades europeias, onde a criação dos Estados Nacionais - e por consequência a
criação de identidades nacionais – foram vinculadas com: (1) a uniformização
de valores promovida pelos dogmas da religião católica; (2) a homogeneização
proveniente da expulsão de povos mais diferentes com a uniformização dos me-
nos diferentes. (QUADROS DE MAGALHÃES, 2016, p. 177-8).
Assim, as identidades nacionais integraram a uniformização dos povos por
conter um caráter narcisista e de afirmação da superioridade sobre outras popu-
lações. A exemplo da Península Ibérica que foram portugueses e espanhóis ex-
pulsaram os invasores árabes. (QUADROS DE MAGALHÃES, 2016, p. 177-8).
Já no caso da América Latina a criação de Estados Nações foram desdo-
bramentos desse processo de dominação econômica europeia, pois diferente
da realidade já retratada, os conceitos de instituições foram parte do processo
de dominação do território americano pelos habitantes da Europa. Onde o
colonizador impôs todos regulamentos jurídicos e sociais aos nativos - por
meio da dominação econômica direta bem como pela catequização - para
garantir o espólio de riquezas.
Com a imposição da religião católica e seus dogmas foi possível ao coloniza-
dor controlar o conceito do nativo sobre família, e juntamente ao de racionali-
dade individualista, antropocêntrica e liberal foi cabível sustentar o desenvol-
vimento do capitalismo. Além da existência do exército nacional para o Estado
lidar com os indivíduos que não cedessem as práticas do colonizador.
Chegando ao ramo jurídico, junto a noção de propriedade trazida pelo libe-
ralismo, é possível perceber uma dupla utilidade para o direito, servindo como
forma da burguesia legitimar sua dominação, já que nas a palavras de Engels e

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Kautsky no livro Socialismo jurídico, “as reivindicações resultantes dos interes-


ses comuns de uma classe só podem ser realizadas quando essa classe conquista
o poder político e suas reivindicações alcançam validade universal sob a forma
de leis” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 47).
O europeu impôs ao nativo americano uma assimilação forçada da sua
cultura por meio jurídico. Tendo em vista que legislação relacionada a as-
suntos familiares e morais estaria presente para criminalizar os que não à
seguissem e as forças nacionais exerceriam o controle por meio da força,
utilizando as leis como legitimadoras da exploração econômica exercida na
esfera de produção capitalista.
Explanando todo esse de fundo histórico, é claro compreender os processos
democráticos latino americanos e suas exclusões. Já na maioria dos casos as popu-
lações nativas e os africanos trazidos como escravos para a América constituíam
maioria populacional, mas, paradoxalmente, configurarem-se como indivíduos
excluídos dos processos de partição política. Assim como diz o filósofo argentino
Enrique Dussel “Por su parte el excluido, por definicion, no pudo participar en la
decision del acuerdo que lo excluye” (DUSSEL, 2006, p. 96). Demonstrando que
esses povos habitantes da América Latina nunca foram materialmente sujeitos
políticos, tendo em vista que nunca estiveram presentes no fazer político.

1.2. A experiência histórica das constituições


brasileiras e boliviana
Como já exposto, a criação dos Estados Nacionais na América Latina serviu
como uma dupla forma de dominação, tanto externa para as elites europeias quanto
interna para as elites locais, - que detinham diversos laços com a Europa - sobre
populações nativas e negras escravizadas.
Assim será necessário fazer uma retomada histórica de todo trajeto cons-
titucional brasileiro e boliviano desde suas respectivas primeiras cartas até a
atual, pois como a constituição é o elemento de funda o Estado e nele está
diversos princípios e leis que norteiam o legislador bem como estruturam
toda ação estatal.
A História constitucional brasileira é atípica até para o contexto latino ame-
ricano, com oito cartas constitucionais e singularidades em conquistas de direi-
tos. O cenário constitucional brasileiro é, assim, idiossincrático.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Com a independência brasileira proclamada em 1822, o Brasil foi o único


País latino americano em que, pós independência da coroa, houve a perpetua-
ção do monarquismo. Assim em 1822 foram convocadas – por decreto - eleições
para a primeira assembleia constituinte brasileira. Um ano após, em 1823 os
eleitos reuniram-se no Rio de Janeiro para a criação da Carta com um parado-
xal sentimento liberal que permitia a pratica da escravidão. Essa Carta Magna
tinha como concepção inicial a adoção de uma monarquia constitucional, além
a clássica divisão tríplice dos poderes e limites rígidos sobre a atuação do im-
perador. No entanto, imperador dissolveu a assembleia e outorgando uma nova
com poucas alterações no ano seguinte, como comenta Souza Neto e Sarmento
(2012, p. 84), que além de algumas alterações redacionais a principal diferença
do projeto anterior era a criação de um “Poder Moderador” central e controver-
so exercido pelo monarca.
A novidade redacional significativa, o poder moderador, representava uma
tentativa de aumentar o poder concentrado na mão do monarca. Valendo res-
saltar também que, mesmo essa sendo uma constituição primariamente de
garantia das liberdades individuais, - como por exemplo o direito absoluto à
propriedade -, ela também servia para legitimar violação suprema que era a
escravidão. Além de cercar vertiginosamente o direito a participação popular
pois consagrava o voto censitário e masculino. Sobre esse contexto, Souza Neto
e Sarmento (2012, p. 82) colocam, que o Brasil era um país agrário baseado
na monocultura e latifúndio sustentado pela mão de obra escrava, onde dos 5
milhões de pessoas da população geral, 1,8 milhão de pessoas eram negros ou
indígenas. Onde nessa realidade o voto censitário seria uma forma de manuten-
ção das estruturas de poder presentes
Em 1889 um golpe militar culminou na proclamação da república no Bra-
sil, que passou a chamar-se Estados Unidos do Brasil. Assim, em 1891 foi
promulgada no País, a primeira carta constitucional republicana com fortes
influências do modelo americano. Essa Carta Política trouxe um amplo rol de
direitos individuais, garantiu a laicidade do Estado, concedeu direito políticos
a um grupo de homens maiores de 21 anos entre outros. Sobre o ponto dos di-
reitos políticos vale salientar Souza Neto e Sarmento (2012, p. 93) pois como
relatam os autores; os direitos políticos foram estendidos a todos os cidadãos
brasileiros maiores de 21 anos, desde que não fossem analfabetos, mendigos,
praças militares ou se fizessem parte de alguma ordem religiosa que colocasse
essa restrição. Além dessas restrições os autores ainda comentam que mesmo

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

não existindo nenhum trecho que impedisse a participação de mulheres no


processo político, no entanto:

Não houve qualquer referência restritiva expressa às mulheres no texto


constitucional, mas a discriminação de gênero era tão enraizada que
sequer se discutia se elas podiam ou não votar ou se candidatar: nem
precisava ser dito que as mulheres não tinham direitos políticos, pois isto
seria “natural” (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 93).

Mesmo com algumas alterações, como a abolição do voto censitário e o au-


mento do número de cidadãos votantes, as próprias estruturas sociais impediam
a plena participação política das sujeitas do sexo feminino.
No início da década de 30 o presidente da época Getúlio Vargas edita o
decreto de lei Nº 19.398 que instituiu um governo provisório encabeçado pelo
mesmo que iria comandar o Brasil até o fim dos trabalhos da constituinte. Que
segundo Sousa Neto e sarmento (2012, p.97) texto atribuía prerrogativas de-
mais ao poder presidencial, como de exercer as funções e atribuições dos Pode-
res Executivos e Legislativos, além da extinção do das garantias constitucionais.
Oque os autores finalizam concluindo, “estruturava-se ali, ainda que provisoria-
mente, um governo de exceção”. (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 97).
No período citado, o governo provisório criou o código eleitoral que editou
o sufrágio universal, voto secreto e voto feminino, também se fundou os minis-
térios da Educação, da Saúde e do Trabalho, Indústria e Comércio que desem-
penhavam um papel de Estado interventor e social.
Essa roupagem mais social do Estado era uma das novidades também
presente na Constituição – paradoxalmente outorgada - de 1934, com
inspiração na carta alemã de Weimar. A carta brasileira manteve o fe-
deralismo e a separação dos poderes com um legislativo unicameral que
continham tanto representantes do povo como dos dois lados da relação
empregatícia. Outras novidades foram a primeira aparição da ação popular,
do mandado de segurança e direitos trabalhistas.
Outorgada em 1937, a Carta Constitucional popularmente chamada de pola-
ca teve esse nome pois sua principal influência foi a Constituição da Polônia de
1935, teve como principal objetivo tentar conferir um revestimento de legitimi-
dade ao Estado Novo de Vargas. Usando para isso a justificativa de uma ameaça
comunista e uma suposta guerra civil. (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

103). Outro ponto interessante foi art. 187 em que se firmava o compromisso de
um plebiscito nacional para votar a Carta, no entanto a não convocação desse
plebiscito acarretou na tese de alguns juristas – até o responsável pela redação
da mesma – que a carta não tinha validade.
Mesmo com a tese a da não juridicidade dessa carta, suas principais caracte-
rísticas, como comentam Souza Neto e Sarmento (2012, p. 103): foram a disso-
lução do poder legislativo, concentrando na figura do presidente várias funções,
entre elas a prorrogativa de nomear interventores para os Estados, e o declarar
do estado de emergência que suspendeu inúmeras garantias constitucionais.
No panorama mundial o fim da Segunda Guerra Mundial e o fim da di-
tadura varguista no Brasil, houve uma onda constitucional no mundo que
atingiu o território brasileiro de forma a influenciar a Constituição de 1946.
Com um grande apelo ao respeito aos direitos fundamentais pós os horrores
de regimes como o Nazismo, a carta constitucional brasileira tentou conci-
liar um caráter liberal com as prerrogativas de um Estado social. (SOUZA
NETO; SARMENTO, 2012, p. 110).
Com o início da ditadura militar no brasil em 1964, foi perceptível a cria-
ção de dois principais grupos entre os militares. Um grupo mais moderado
que se propunha a devolver o poder político aos civis depois de livrar-se dos
componentes mais perigosos da vida política e que também não concorda-
vam com os excessos cometidos pela outra ala militar. O segundo grupo
composto por militares linha dura apoiavam a radicalização do regime com
a intensificação de perseguições a opositores entre outras ações (SOUZA
NETO; SARMENTO, 2012, p. 117-8).
A disputa de poder entre esses dois grupos foi a responsável tanto pelas ca-
racterísticas da constituição de 1967, como a de 1969.
Possuindo uma fachada liberal a Constituição de 1967, refletia os interesses
do grupo mais moderado, onde mantinha-se o federalismo dual, com eleições
indiretas e um capítulo destinado – paradoxalmente – aos direitos e garantias
fundamentais. Já no ano de 1969 foi editada uma emenda à Constituição de
1967 que serviu como uma tentativa de viés legitimador a nova Carta que re-
produzia em grandes partes a anterior, mas autorizava que o presidente suspen-
desse diversas liberdades como a de associação, além da suspensão de habeas
corpus para crimes políticos etc.
Em decorrência do desgaste do regime militar e o aumento dos protestos
contra o mesmo, diversas entidades civis começaram a pedir a criação de uma

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

nova assembleia constituinte. Essa assembleia não representou uma ruptura


com o regime anterior e sim uma transição para um novo momento democráti-
co, com medidas como a lei de anistia que concedeu o perdão aos torturadores.
Iniciando seus trabalhos em 1987 sendo composta por 559 membros, sendo
eles 487 deputados federais e 72 senadores – 23 desses sendo ainda do pleito in-
direto de 1982 – a assembleia constituinte aglutinou os trabalhos ordinários do
legislativo com os trabalhos constituintes. Vale ressaltar também que durante a
assembleia constituinte somente 26 parlamentares eram mulheres e 11 negros.
Sobre a assembleia constituinte é necessário entender o momento histórico
em que ela estava inserida, e sobre isso comenta Cristiano Paixão:

Até aquele momento, compreendido entre março de 1985 e fevereiro


de 1987, é necessário reconhecer que o regime militar obteve êxito, em
grande parte, na sua estratégia de abertura “segura, lenta e gradual”: foi
aprovada uma lei de anistia, que postulou o perdão a todos os integrantes
do regime que perpetraram graves violações aos direitos humanos
(1979), a grande mobilização popular em torno de eleições diretas
foi frustrada pela negativa do Congresso Nacional (1984), o partido
governista manteve a maioria no Congresso até os últimos momentos do
regime, a eleição do primeiro Presidente da República civil após 21 anos
de militares no poder se deu de forma indireta, por meio de um Colégio
Eleitoral criado pela própria ditadura (janeiro de 1985), e o próprio
candidato eleito, assim como seu vice, assumiram de modo enfático o
discurso da conciliação (março-abril de 1985) (PAIXÃO, 2011, p. 20).

Para os paramentos da história constitucional brasileira, a Carta Cidadã de


1988 foi a que mais contou com participação popular, demonstrando que mes-
mo com um número ínfimo de pessoas pertencentes a grupos de minorias, essa
magra participação direta mais a intensa interação de grupos da sociedade civil
foram responsáveis pelos avanços nos direitos sociais, a exemplo dos artigos 12 e
13 que legislam sobre a função social da terra, ou o artigo 26 do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias (ADCTs) que permitem uma auditoria da
dívida pública externa. No entanto, como ainda existia uma grande parcela de
parlamentares com intrincadas relações com o regime militar, os avanços não
foram tão plenos e materializaram-se em aspectos como a não reestruturação
das formas militares e policiais pós ditadura militar.

268
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Já no caso da Bolívia, é perceptível a divisão de sua história constitucional


em quatro momentos, sendo eles: O Estado das Oligarquias; Estado Nacional
popular; Estado Neoliberal e o atual Estado Plurinacional.
Começando pelo Estado das oligarquias, em 1825 a Bolívia passava pelo
seu processo de independência despontando como uma das primeiras colônias
espanholas a rebelar-se contra a metrópole. Assim, em 1826 foi escrita com
a presença dos clássicos sujeitos históricos bolivianos Simon Bolívar e Antô-
nio de Sucre a primeira constituição, que nos seus artigos 11° e 14° definiam,
respectivamente, quais requisitos legais para ser considerado boliviano e para
ser cidadão e colocavam limitações a essas categorias, segundo o próprio texto
constitucional no artigo 14:

Artículo 14.- Para ser ciudadano es necesario:


1. Ser boliviano.
2. Ser casado, o mayor de veinte años.
3. Saber leer y escribir; bien que esta calidad sólo se exigirá desde el año de
mil ochocientos treinta y seis.
4. Tener algún empleo, o industria, o profesar alguna ciencia o arte, sin suje-
ción a otro en clase de sirviente doméstico. [grifo nosso] (BOLÍVIA, 1826).

Essas definições de cidadania excluíram de diversos direitos a maioria


da população composta pelos povos originários e escravizados. Nessa mes-
ma carta também estavam presentes as básicas estruturas do Estado liberal
burguês como: defesa da propriedade privada, soberania popular, tripartição
dos poderes, representação para homens que não fossem índios e etc. (NAS-
CIMENTO, 2015, p. 286-7).
Mesmo com a independência, a Bolívia ainda ocupava na economia mundial
o posto de fornecedor de matéria prima, assim a Constituição recém escrita servia
como um legitimador do status quo. Dessa forma a atividade extrativista perpe-
tuou-se exercendo importante papel na economia inclinando o presidente a san-
cionando em 1880 a Lei de Mineraria para equilibrar os gastos públicos e desbaratar
o embrião de organicidade do trabalho mineiro. Essa lei bem como outras tiveram
um papel importante na manutenção de diversos problemas sociais que só seriam
enfrentados depois da metade do século XX (NASCIMENTO, 2015, p. 288).
Dessa forma a contradição entre o ideário de liberal de democracia e a práti-
ca democrática boliviana era gritante, em decorrência do papel que o país ainda

269
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

detinha de simples mina para exportação no cenário do capital mundial, bem


como atrasadas relações sociais de produção.
Entre 1932 e 1935 ocorreu um conflito de proporções bélicas entre a Bo-
lívia e o Paraguai que fiou conhecido como Guerra do Chaco. Por causa da
derrota boliviana e das perdas territoriais houve uma grande desmoralização
das elites no poder, já que o início do conflito se deu pela suposta descoberta
de petróleo na região do Chaco (NASCIMENTO, 2015, p. 289). A junção
do vácuo de poder gerado pelo descredito das elites pós-Guerra do Chaco,
em conjunto com fatores internacionais, como insurreições agrícolas no Mé-
xico, a Revolução Russa e a Crise de 29. As frentes de esquerda começaram
a fazer movimentos nesse cenário de vácuo do poder, com intuito de suprir
fendas sociais que também poderiam configurar-se como fendas ao modelo de
democracia liberal proposta, e sobre isso diz Nascimento (2015, p. 289-90),
que após três décadas de laisssez-faire e posteriormente a crise de 1929, as
intervenções na economia se tornaram pratica comum com as Constituições
de 936 e 1945 vinculando a propriedade privada a uma utilidade pública,
quebrando a defesa absoluta do posse da terra. Essa nova abordagem sobre a
terra foi resultado de junções de frentes nacionais que organizarem pós Chaco
e tinham como objetivo pleitear pautas latentes.
O Estado Nacional popular, é o período que começa após uma guerra civil
que durou 3 dias nos principais centros urbanos do país em 1952. E, como con-
sequências, foram promovidas reformas no Estado boliviano como a reforma
agraria, - exercidas pelos Decretos Supremos Nº 3464 e 1953 - campanha de
alfabetização e uma interiorização das escolas.
Entre 1964 e 1982 o espectro de regimes ditatoriais militares, financiados
pela potência norte americana e com objetivo de barrar a influência soviética
na América latina chegou a Bolívia. E nesse período o Estado continuou exer-
cendo sua facete de intervir na economia como já estava configurado, agindo
nesse cenário por meio das alianças civis-militares. Essa nova realidade gerou
um processo de invisibilização dos indígenas utilizando-se da cooptação de lí-
deres sindicais por vias frequentemente violentas.
Com maior ênfase na década de 1990, mas perceptível desde 1970, uma
onda neoliberal estava presente em todo mundo e por consequência na Bolívia.
Essa nova faceta Neoliberal do Estado foi consequência do esgotamento da po-
lítica de alianças entre civis e militares e as orientações do capital internacional
para descentralização do gerenciamento estatal. Sobre esse contexto Nascimen-

270
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

to (2015, p. 295) diz que desde a década de 50 o Fundo Monetário Internacional


(FMI), usava o acesso a empréstimos financeiros para “controlar” a legislação
boliviana, só que nos anos 1980/90 tais ações se intensificaram, acarretando o
fim de diversas iniciativas estatais. Onde o fim dessas políticas ajudou as diver-
sas frentes de esquerda a reorganizarem-se frente a um “inimigo comum”.
Por consequências como a queda preço dos minerais no mercado inter-
nacional e as demissões de levas de trabalhadores oriundos dessas empresas,
ocorreram êxodos para as plantações de coca. E em razão da coca ser muito
ligada a população originaria junto de ressignificações vindas do trabalho mi-
neiro, a planta passou a ser considerada um símbolo de resistência cultural e
política as intervenções do FMI (NASCIMENTO, 2015, p. 296). Utilizando-
-se dessa bagagem ideológica surge na década de 1970 o indianismo, definido
por Daniel Valença como “[...] uma singular interpretação da Bolívia e terri-
tórios originários incaicos para recuperar seus elementos fundantes e defen-
der uma nova possibilidade de desenvolvimento autônomo de seus povos e
nações” (VALENÇA, 2017, p. 90).
O indianismo acompanhou todo o processo de chegada ao poder de Evo
Morales e o bloco camponês-indígena-popular por ele representado, além
da constituinte convocada em 2006 que promoveu mudanças atípicas na
história constitucional da América Latina, sobre o tema Valença (2017,
p.120) escreve, sobre as três principais questões que diferenciam o proces-
so Constituinte de 2006 da Bolívia foram: (1) era resultado da Ascenção
do bloco camponês-indígena-popular e não da alternância das elites locais;
(2) em decorrência de ser resultado da Ascenção do bloco era baseado na
participação popular; (3) e como era resultado desse momento histórico de
participação popular, as alterações não eram apenas um tipo de “redemo-
cratização” nos mesmo moldes do Estado anterior e sim uma nova lógica de
atuação estatal que refletia o bloco social em ascensão.
As alterações promovidas pelo Poder Constituinte em 2006 teceram a nova
lógica de atuação estatal, ligadas paradoxalmente a efetivação de princípios da
democracia liberal, e ao cercamento de outros como da propriedade privada
para permitir a efetiva utilização do Estado pela maioria excluída da popula-
ção boliviana. Trazendo para a materialidade que Enrique Dussel expõe em
seu livro 20 Tesis de política, “El poder dominante se funda en una comunidad
política que, cuando era hegemónica, se unificaba por el consenso. Cuando los

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

oprimidos y excluidos toman conciencia de su situación, se tornan dissidentes”


(DUSSEL, 2006, p. 96).

2. O Brasil no contexto neoconstitucional


A Constituição brasileira de 1988 foi um marco no paradigma da participa-
ção popular, tanto na sua constituinte com o imenso debate político que cercou
sua elaboração quantos nas garantias e mecanismos de participação positivados
pela mesma. Do ponto de vista teórico, a Carta Magna brasileira pode ser enca-
rada pelo prisma do pós-positivismo e neoconstitucionalismo, com o primeiro
sendo descrito por Sousa Neto e Sarmento (2012, p. 177) como a busca por uma
ligação entre o Direito e a Moral usando interpretações de princípios jurídicos
abertos que tem caráter normativo.
A ligação desses conceitos dão-se com o neoconstitucionalismo, quan-
do o constituinte promove certas alterações tanto no tipo de constituição
como nos arranjos institucionais para reconhecer uma série de fatores
como: constitucionalização do Direito com normas e valores constitucio-
nais permeando outros ramos do ornamento; reaproximação da moral e do
Direito; valorização dos princípios jurídicos mais abertos e a valorização da
importância dos mesmos para a aplicação do Direito entre outros (SOUZA
NETO; SARMENTO, 2012, p. 177).

2.1. Mecanismos de participação popular na


constituição cidadã
No artigo 14 do texto constitucional são previstos o voto e três meca-
nismos de participação popular direta, sendo eles: plebiscito, referendo e
iniciativa popular. Esses três mecanismos tiveram sua execução regulamen-
tada somente 10 anos após a promulgação da carta com a lei nº 9.709, de
18 de novembro de 1998.
Com uma grande parte de seu corpo destinada aos casos de reorganização
do território nacional por meio de criação, incorporação ou fusão de municípios
ou Estados, essa lei ainda das definições para os mecanismos bem como que
situações são cabíveis seu uso. Segundo a Lei n. 9.709, de 18 de nov. de 1998,
(BRASIL, 1998). Plebiscito e referendos são definidos e tem sua abrangência de

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

uso restrita a tais citações de reorganização territorial. Dessa forma plebiscito


será convidado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, para a po-
pulação aprovar ou não pelo voto o que se tenha sido exposto e o referendo uti-
liza a mesma lógica só alterando que é convocado com posterioridade aos atos.
Já a iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei circunscrito
a um único assunto, precisando ser apresentado por um cento do eleitorado
nacional distribuídos, em ao menos em cinco estados. Esses projetos de lei não
podem ser rejeitados por vicia de forma e quando tem as exigências formais
atendidas, a Câmara dos deputados é obrigada a dar continuidade ao processo
conforme o regimento interno da casa.
Como a prerrogativa de convocar um referendo ficou a cargo dos poderes
executivos e legislativos, mais os pré-requisitos complexos para alguma inicia-
tiva popular, além do histórico distanciamento populacional dos processos po-
líticos. O encargo de convocar o referendo ter sido deixado pelo constituinte
originário somente a classe política contribui para o já descrito esvaziamento
democrático, tendo em vista o ideal que todo o poder deveria emanar do povo.
Essa realidade pode ser averiguada tanto pelo fato ter acontecido somente um
plebiscito e um referendo no brasil, com respectivamente um sendo previsto
nos ADCTs sobre a escolha da população entre o regime parlamentarista ou
presidencialista e o outro sobre o comercio de armas de fogo.
No caso da participação popular, o fato da lei exigir adesão de 1% do elei-
torado nacional à proposta pode colocar entraves a sua efetivação. Segundo
estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)1, existem no brasil 147.302.357
eleitores válidos para o processo de 2018, sendo necessários 1.473.024 assina-
turas para atender ao requisito constitucional. Outro ponto relevante é que
as quatro leis que começaram como forma de participação popular, após sua
chegada ao legislativo ou executivo foram tratados como projetos de autoria
parlamentar, como demonstra o relatório sobre Projetos de lei de iniciativa popular
no Brasil, elaborado pelo Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio (ITS). O
relatório do instituto comenta que sobre as iniciativas populares – em decor-
rência da impossibilidade de verificar a veracidade de assinaturas – quando
chegam as casas legislativas ou executivas um membro da casa “apadrinha”

1 Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Agosto/brasil-tem-147-3-milhoes-de-


eleitores-aptos-a-votar-nas-eleicoes-2018>. Acesso em: 28 ago. 2018.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

o projeto como se fosse de sua autoria (INSTITUTO DE TECNOLOGIA &


SOCIEDADE DO RIO, 2017, p. 24).
Os quatro casos de leis que começaram como iniciativa popular foram:
a Lei 8.930/1994, que foi criada após a comoção nacional com a morte da
atriz Daniella Perez e resultou com que o crime de homicídio adentrasse o
rol de crimes hediondos; Lei 9.840/1999, que alterou certas leis eleitorais no
tangente da compra de votos permitindo, entre outras coisas, a cassação de
quem doar, oferecer ou prometer vantagem pessoal em troca de voto; Lei
11.124/2005, que criou o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social,
destinando verbas para a construção de morais destinadas a populações de
baixa renda da área urbana; e a Lei complementar 135/2010, conhecida po-
pularmente por Lei da Ficha Limpa, que aumentou o rigor nos critérios para
o registro de candidaturas excluindo candidatos respondendo processos sobre
certos tipos de crimes.
Analisando os três mecanismos de participação direta que a Constitui-
ção brasileira reconhece, é possível perceber que o constituinte os colocou
com o intuito de garantir a direta participação popular no processo político,
no entanto os requisitos necessários para sua utilização, bem como a his-
tórica exclusão da população civil da política acarretaram a não utilização
dessas ferramentas.
Em cenários como o atual onde o governo golpista encabeçado por Michel
Temer aprova uma série de medidas antipopulares e que atinge negativamente
os cidadãos em geral, esses mecanismos não são usados pois dependem majori-
tariamente da vontade política, que na conjuntura contemporânea está a ser-
viço de setores que historicamente contribuíram para a exclusão de indivíduos
das decisões políticas.

3. O Novo Constitucionalismo latino-americano e a


experiência do Estado Plurinacional da Bolívia
A Constitución Política del Estado (CPE) da Bolívia representou um divi-
sor de águas para história constitucional como um todo, mas principalmente
para a lógica latino-americana. Com sua organização não expansionista e não
homogeneizadora, tornou possível a um Estado Nação que nasceu pela e para

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

dominação do capital estrangeiro inserir os povos historicamente excluídos


no processo democrático.
Sobre a lógica do Estado plurinacional comenta o professor José Luiz Qua-
dros de Magalhães, (2012, n.p.) que a grande mudança do Estado Plurinacional
é o fato de ser um Estado Constitucional, democrático participado e dialógico
que rompe com as bases teóricas e sociais do Estado nacional representativo
e uniformizador de valores que tem por consequência a exclusão. Além disso
Quadros de Magalhaes (2012, n.p.) também fala que essa nova forma de Estado
mais “inclusiva” garante formas de constituição econômica e familiar diversas e
com valores dos grupos originários bolivianos.
Essa nova lógica de atuação e estruturação estatal foi possível após a vitória
do bloco compostos pelos sujeitos excluídos dos processos políticos que após
uma progressão de acontecimentos uniram-se em um bloco camponês-indíge-
na-popular. Assim, em 2006, elegem Juan Evo Morales Ayma e Álvaro García
Linera como presidente e vice-presidente respectivamente.
Esse novo Estado boliviano com lógica indianista é um dos modelos cons-
titucionais que pode ser enquadrado no Novo Constitucionalismo Latino
Americano juntamente com Equador e Venezuela. Como colocam Antônio
Carlos Wolkmer e Lucas Machado Fagundes, (2011, p. 377-8) essas Consti-
tuições que quebram com a antiga matriz eurocêntrica de pensar o Direito e
Estado para esse continente, as refundando para serem instrumentos jurídicos
a favor das classes apagadas pelo processo colonial, podendo também ser pos-
sível relaciona-las com uma possível descolonização do poder e justiça.
Essas novas características são perceptíveis em diferentes aspectos na Bolí-
via, Venezuela e Equador, mas seguindo uma lógica semelhante de inclusão de
sujeitos históricos excluídos e reconhecimentos dos mesmos.

3.1. Mecanismos de participação popular na Constituição


Plurinacional da Bolívia
Sobre os mecanismos de participação popular presentes na CPE é pos-
sível Alencar o quadro produzido por Fidel Pérez Flores, Clayton Men-
donça Cunha Filho e André Luiz Coelho, reproduzidos parcialmente no
presente trabalho:

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Figura 1 – Mecanismos de Participação popular presentes na Constitución Política del Estado.

Mecanismos de
Bolívia
participação
Cortes Superiores do Judiciário eleitas por sufrágio direto (Artigos 182,
183, 188, 194 e 197).
Mecanismos de
Possibilidade de eleger parlamentares indígenas e autoridades dos
representação
territórios autônomos por meio de usos e costumes (Artigo 11).
ampliada
Quota indígena na Câmara (Artigo 146) - Regulamentado por Lei
Eleitoral Transitória de 2009.
Revogação
Todos os cargos eletivos são revogáveis menos o judiciário (Artigo 240).
de mandatos
Revogação/
Qualquer emenda à Constituição precisa de referendo (Artigo 411).
ratificação de leis
Cidadãos podem convocar referendo para aprovar tratados e convênios
internacionais (Artigo 259).
Política Externa Tratados sobre questões limítrofes, integração monetária, integração
econômica estrutural e cessão de competência a órgãos supranacionais
referendo é obrigatório (Artigo 257).
Cidadãos podem propor legislação, modificações constitucionais e
Iniciativa de lei
convocar uma assembleia constituinte (Artigos 162 e 411).
Territórios indígenas autônomos são instâncias sub-nacionais de governo,
nos quais se aplicam justiça indígena e usos e costumes para seleção de
Autonomia
governantes (Artigos 289 a 296).
indígena
Leis que afetem territórios indígenas e recursos naturais dos mesmos
precisam passar por referendo no território em questão (Artigo 30).

Fonte: (COELHO, CUNHA FILHO, FLORES, 2009, p. 4 a 6)

É possível perceber pela análise da figura anterior que a Constituição


boliviana cedeu a povos indígenas o direito a identidade e organização
autônoma já que foram alçados ao título de subnações dentro do território
plurinacional boliviano.
Outro ponto importante trazido nessa Carta em diversas possibilidades é
a atuação direta da população no processo político e na esfera econômica de
gastos estatais com a possibilidade de revogação de mandatos de cargos eletivos,
em que é necessário 15% dos cidadãos da área de onde o representante proveio.
A possibilidade da atuação direta da sociedade civil em todos os níveis e em
todas as empresas estatais e que usem recursos públicos por meio da fiscalização
e denuncia de possíveis casos de revogação de contratos.
Em casos de emendas ao texto Constitucional ou a assinatura de qualquer
tratado internacional sobre questões territoriais, de integração monetária ou

276
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

econômica e estrutural é necessário a consulta popular por meio de referendo


com porcentagens de aprovação distinta para ambos os casos.
Na criação de políticas públicas bolivianas é possível perceber o que (CO-
ELHO, CUNHA FILHO, FLORES, 2009, p. 12) chamam de contra poder na
figura da participação e controle social, já que a população participa desde a cria-
ção e molde da política pública até no auxílio ao legislativa na elaboração de leis
e denunciar de atos de corrupção ligados ao ente público.
Sobre a questão indígena a própria alteração no Nome oficial do País para
Estado Plurinacional da Bolívia demonstra a relevância que foi dada a questão in-
dígena, como também a autonomia eleitoral para escolher e moldar o processo le-
gislativo em consonância com suas tradições e também a consulta a esses mesmos
povos sobre qualquer lei ou projeto que afete seus territórios ou recursos naturais.
No tocando da exploração dos recursos naturais, no seu texto estabelece que os
recursos naturais são propriedade do povo e administrados pelo Estado, em que eles
serão usados para a promoção prioritária para a industrialização com respeito ao meio
ambiente e aos direitos das nações e povos indígenas (VALENÇA, 2017, p. 161).
Por último, é importante salientar que os conceitos de representação foram
ampliados e diversificados quando aspecto de gênero e étnico se tornaram signi-
ficativos ao processo eleitoral. Pois como comentam os estudiosos Fidel Lopez,
Clayton Mendonça e André Luiz Coelho (2009, p.12) condições de indígena e
mulher se tornam politicamente relevante para a eleitores e instituições quando
essas condições passam a ter uma parcela cativa mínima de representação em
diversos órgãos executivos e legislativos.
Essa obrigatoriedade presente na lei de metade das cadeiras do legislativa
estarem destinadas a mulheres garantem a Bolívia o impressionante título de
país com maior representatividade política feminina é a Bolívia2, demonstrando
o êxito nas reformas estruturais promovidas pela Constituição no quesito de
participação popular e inserção de povos historicamente excluídos.

Considerações finais
No presente trabalho foram expostos os mecanismos de participação po-
pular na Constituição Federal brasileira de 1988 e na Constitución Política del

2 Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-06/onu-mulheres-defende-


ampliacao-da-participacao-feminina-na-politica>. Acesso em 03 de setembro de 2018.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Estado Boliviana de 2009. Com o uso de método materialista histórico dialético


foi possível perceber que existem diferenças abissais entre as duas cartas e seus
direitos garantidos. No entanto, é imaterial desejar a transposição de todos os
direitos efetivamos em uma Carta Magna para a outra, sabendo que os dois
Países citados passaram por processos históricos diferentes.
Ainda assim, foi possível perceber no cenário brasileiro um aumento de di-
reitos garantidos na atual Constituição em decorrência da intensa participação
popular, mesmo com os empecilhos que marcaram o início do processo cons-
tituinte para o momento brasileiro durante sua criação. Todavia, é evidente
também que os mecanismos de participação direta presentes na realidade brasi-
leira tiveram utilizações quase restritas ao clássico direito ao voto com as outras
ferramentas tendo pouca usabilidade na pratica.
Já na realidade boliviana em decorrência de diversos processos históricos
debatidos anteriormente, o hall de direitos garantidos como as ferramentas de
participação popular foram numerosas e inovadoras ao ponto que o presente
estudo não conseguiu exaurir a possiblidade de análise de todas, concentrando
nas mais relevantes, e ficando para futuros trabalhos analises aprofundadas so-
bre as legislações bolivianas voltadas a questão fundiária, organização territorial
ou mesmo sobre a organização econômica do país.
Além disso, é necessário frisar que por meio da análise dos mecanismos
de participação popular presentes nas respectivas Cartas Constitucionais, con-
cluiu-se que para a efetivação do conceito democrático básico de representa-
ção política, pelo paradigma da concordância entre os povos governados e seus
governantes é necessário mudar, dentro da realidade material, para conseguiu
incluir os povos que historicamente foram excluídos dos processos políticos. E
nesse tocante ambas as constituições deram passos importante, dentro de seus
avanços, contradições e retrocessos.

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VALENÇA, Daniel Araújo. Disjuntivas do Proceso de cambio: O avanço


das classes subalternas, as contradições do Estado Plurinacional da Bolívia e o
horizonte do socialismo comunitário. 2017. 404 f. Tese (Doutorado em Ciências
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WOLKMER, Antônio Carlos; FAGUNDES, Lucas Machado. Tendências


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e pluralismo jurídico. Pensar - Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 16,
n. 2, p. 371-408, jul. 2011. Disponível em: <http://periodicos.unifor.br/rpen/
article/view/2158>. Acesso em: 03 set. 2018.

280
Capítulo IV
História, Direito e Marxismo
Direito ao protesto: da crítica a violência
à efetivação dos direitos humanos

José Augusto S. Neto1


Guilherme Augusto Sá Barreto de Miranda2

Introdução
Os direitos humanos, mais do que direitos ‘propriamente ditos’, são proces-
sos, ou seja, “o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam
em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida”, já observou o professor
Joaquín Herrera Flores (2009, p. 28), de saudosa memória.
Em uma sociedade dividida em classes, o direito existe para regular as re-
lações entre frações de classe e classes sociais, de forma tendente a garantir o
consenso social. É conveniente observar que direito se distingue da justiça. As
leis não são justas porque se estabelecem como leis e a elas se guarda obediência
não por serem justas, mas porque têm autoridade:

O próprio surgimento da justiça e do direito, o momento instituidor,


fundador e justificante do direito, implica uma força performativa, isto
é, sempre uma força interpretadora e um apelo à crença: desta vez, não
no sentido de que o direito estaria a serviço da força, instrumento dócil,
servil e portanto exterior do poder dominante, mas no sentido de que
ele manteria, com aquilo que chamamos de força, poder ou violência,
uma relação mais interna e mais complexa (...) Ora, a operação de
fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe
de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que,

1 Mestrando em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da


Universidade Federal da Paraíba (UFPB); [email protected]
2 Graduando em Direito na FDR/UFPE; [email protected]

283
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça,
nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação
preexistente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou
invalidar (DERRIDA, 2007, p. 24).

Devem ser distinguidas duas violências relacionadas ao direito: a violência


fundadora – aquela que institui e instaura o direito – e a violência conservadora
– aquela que mantém, confirma e assegura a perpetuação do direito (BENJA-
MIN, 1986). O Estado monopoliza essa violência no interesse do direito e não
na proteção de determinados fins justos e legais, pois deve se levar em conside-
ração “a surpreendente possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o
poder diante do indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos,
mas de garantir o próprio direito” (BENJAMIN, 1986, p. 162-163), de forma que
o poder quando não está nas mãos do próprio direito, o ameaça. Os códigos
tomam tantas precauções contra a violência e a educação debilita de tal manei-
ra nossos impulsos que, institivamente se pensa que toda ação violenta é uma
manifestação de retorno à barbárie (SOREL, 1973, p. 187).
Entretanto, a própria ordem jurídica concede a possibilidade da utilização
de instrumentos para que o indivíduo, atuando coletivamente, possa buscar a
eficácia de determinado direito, como se dá com o direito à greve e, de forma
semelhante, com o direito ao protesto, fundado a partir do direito à liberdade
de expressão, de opinião e de reunião, considerados de primeira geração que,
a despeito de possuírem maior grau de abstração e de maior nível de eficiência
jurídica, também possuem maior dificuldade de proteção. A despeito da previ-
são normativa do seu exercício, a forma que os Poderes do Estado se relacionam
com os protestos sociais e as manifestações populares reflete uma longa tradição
no sistema de repressão e controle do direito de participar, com endurecimento
e exclusão das camadas populares à cidadania ativa, o que ratifica concepção
benjaminiana. Nesse contexto, a pesquisa jurídica não é suficiente, dotando a
presente investigação de certo grau de originalidade.
Nesse contexto, o objeto da presente investigação é analisar, a partir do
ensaio Crí­tica da violência, crítica do poder (Zur Kritik der Gewalt)3, de Walter
Benjamin, a relação entre direito, violência e o exercício dos protestos sociais e

3 Publicada em 1921 na revista fundada em 1888 por Edgar Jaffé, Werner Sombart e Max Weber
Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik.

284
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

mobilizações populares. O filósofo alemão, nesse ensaio, constrói o texto a par-


tir da ambiguidade da palavra gewalt, que pode significar para os alemães “vio-
lência” e, ao mesmo tempo, “poder legítimo, autoridade, força pública”. Gewalt é
ao mesmo tempo a violência e o poder legítimo, a autoridade justificada (DER-
RIDA, 2007, P. 10). É o espírito da violência que, segundo Benjamin, origina o
direito e o poder judiciário.
Para tanto, parte-se dos seguintes objetivos específicos: examinar a indisso-
ciabilidade do direito, coação e Estado, elemento característico do Estado mo-
derno; relacionar a violência fundadora e a violência conservadora do direito e
o exercício dos protestos sociais e mobilizações populares.
No tocante a metodologia, o método de eleição é o dialético, buscando
entender a sociedade enquanto totalidade concreta, onde cada fenômeno deve
ser entendido como parte integrante e se relacionando entre si e com o todo
concreto. Nesse contexto, o direito não é percebido enquanto fenômeno autô-
nomo da vida social, mas como categoria constituída em seu interior, de forma
que o método escolhido permite analisar as relações entre os processos que
ocorrem na totalidade social, o que possibilita uma abordagem descritiva. O
procedimento técnico utilizado será a pesquisa bibliográfica.

1. O fenômeno histórico da monopolização da violência


pelo Estado. O direito, coação e Estado enquanto
elementos indissociáveis
Walter Benjamin inicia o ensaio Crítica da violência – Crítica do Poder (Zur
kritik der Gewalt) (1986) relacionando a crítica da violência com o direito e a
justiça e afasta do conceito de violência tudo o que não toque à moralidade:
“qualquer que seja o efeito de uma determinada causa, ela só se transforma em
violência, no sentido forte da palavra, quando interfere em relações éticas” (1986,
p. 160), portanto às esferas do direito e justiça. Essa é a base para a crítica da
violência (Gewalt: aquilo que pretende ter autoridade) (DANA, 2007, p. 261).
É conveniente, de logo, relembrar uma observação antecipada na introdução
deste trabalho: a palavra Gewalt tem o significado de ‘violência’. Gewalt signi-
fica também para os alemães “poder legítimo, autoridade, força pública”. Observa
Jacques Derrida (2007, p. 9-10) que Gesetzgebende Gewalt é o poder legislativo,

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

geistliche Gewalt é o poder espiritual da Igreja, Staatsgewalt é a autoridade ou o


poder do Estado. “Gewalt é, portanto, ao mesmo tempo a violência e o poder legíti-
mo, a autoridade justificada”.
A coação define o mundo do direito e adquire existência pelo Estado. Direi-
to, coação e Estado são, portanto, três elementos indissoluvelmente ligados. Eis
como Jhering define coação:

Por coação, no sentido mais amplo, entendo a realização de uma


finalidade mediante a subjugação de uma vontade alheia (Der Zweck in
Recht, vol. I, p. 152) (...) A coação se exerce por meio da Gewalt, termo
que em alemão indica o poder que se manifesta na força; as relações
entre poder e direito são assim definidas: O poder (Gewalt) pode em
caso de necessidade estar sem o direito. (...) O direito sem poder é um
nome vão sem realidade, porque só o poder, que realiza a norma do
direito, faz do direito o que ele é e deve ser (op. Ct., vol. I., p. 253).

O direito positivo marca, assim, o monopólio do uso do Poder/Violência pelo


Estado, distinguindo-se o chamado poder sancionado e o não sancionado e “a ques-
tão central passa a ser a da legitimidade de determinados meios que constituem o poder”.
Benjamin sublinha a diferença entre direito natural e direito positivo.
“O direito natural não vê problema nenhum no uso de meios violentos para fins
justos (...) a violência é um produto da natureza, pois assim dizer, uma matéria
prima utilizada sem problemas, a não ser que haja abuso da violência para fins
injustos” (1986, p. 160).
Pois bem.
A tradição do pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção
entre ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ (BOBBIO, 2006, p. 15). A doutrina
do direito natural envolve manifestações de diversos tipos: na antiguidade, o
direito natural girava em torno da oposição entre natureza e norma; no perí-
odo medieval, entre o direito divino e humano e, na modernidade, “em torno
da oposição existente entre a coação jurídica e a razão individual”. Entretanto, em
todas as suas formas, ele se caracteriza por quatro traços essenciais: “primeiro,
oferece juízos de valor jurídico que são determinados quanto ao conteúdo; esses juízos
de valor, conforme sua fonte – natureza, revelação, razão -, tem validade geral e são
invariáveis; são também acessíveis ao conhecimento; e, uma vez conhecidos, têm pri-
mazia sobre os direitos positivos que lhes são opostos” (RADBRUCH, 2004, p. 25).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Norberto Bobbio (2006, p. 20 e ss.) considera que a mais célebre distinção en-
tre direito natural e direito positivo no pensamento moderno é devida a Grócio:

O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que


um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja
ou não conforme à própria natureza racional do homem, e a mostrar
que tal ato é, em consequência dito vetado ou comandado por Deus,
enquanto autor da natureza.

E Acrescenta: “os atos relativamente aos quais existe um tal ditame da justa
razão são obrigatórios ou ilícitos por si mesmos” (grifos no original).
Na metodologia desenvolvida por Norberto Bobbio (1994, p. 13 e ss.), quando
se fala em “doutrina” ou “escola” do direito natural, sem outra qualificação, a
ideia é referir-se ao desenvolvimento do direito natural durante a idade moderna,
entre o início do século XVII e o fim do século XVIII, delimitação que interes-
sa ao presente trabalho. Os jusnaturalistas, em que pese as divergências que os
separam4, são ligados por um método próprio – o método racional - que busca a
redução do direito e da moral a uma ciência demonstrativa. “Se há um fio vermelho
que mantém unidos os jusnaturalistas (...) é precisamente a ideia de que é possível uma
“verdadeira” ciência da moral, entendendo-se por ciências verdadeiras as que haviam
começado a aplicar com sucesso o método matemático” (BOBBIO, 1994, p. 18).
No desenvolvimento dessa concepção racionalista que veio a dominar o
Estado moderno, é conveniente observar que a sociedade medieval era uma
sociedade pluralista, constituída por agrupamentos sociais e cada um dispondo
de um ordenamento jurídico próprio, de forma que o direito se constituía en-
quanto fenômeno social, produzido não pelo Estado, mas pela sociedade civil.
Com a formação do Estado moderno, a sociedade assume uma estrutura mo-
nista, no sentido de que o Estado concentra em si todos os poderes, entre eles o
de criar o direito: “não se contenta em concorrer para esta criação, mas quer ser o
único a estabelecer o direito, ou diretamente através da lei, ou indiretamente através
do reconhecimento e controle das normas de formação consuetudinária” (BOBBIO,
2006, p. 27). Surge, nesse contexto, o processo de monopolização da produção
jurídica por parte do Estado.

4 Observa Norberto Bobbio que sob a etiqueta de “escola do direito natural” estão autores de correntes
diversas: filósofos como Hobbes, Leibniz, Locke, Kant; juristas-filósofos como Pufendorf, Thomasius
e Wolff, professores universitários, como Rousseau (1994, p.14).

287
Observa Walter Benjamin (1986, p. 160-161), que em conformidade com a
teoria política do direito natural, se “todas as pessoas abrem mão do seu poder em
prol do Estado, isso se faz, porque se pressupõe (...) que, no fundo, o indivíduo – antes
de firmar esse contrato deitado pela razão – exerce também de jure qualquer tipo de
poder que, na realidade, exerce de fato”.
Nesse contexto, para compreender as ideias de Benjamin, é interessante
analisar a formação do Estado moderno e, seu pressuposto, o contrato social,
elemento necessário à monopolização da violência pelo Estado.
Para Bobbio (1994), a primeira grande obra política que assinala o início
do jusnaturalismo político e do tratamento racional do problema do Estado
é o De cive1. Hobbes afasta os pressupostos teóricos até então utilizados: a
Política, de Aristóteles e o direito romano e, no problema crucial do fun-
damento e da natureza do Estado, constrói-se um modelo baseado em dois
elementos fundamentais: o estado (ou sociedade) de natureza e o estado
(ou sociedade) civil. Trata-se de um modelo dicotômico no sentido de que
o homem ou vive no estado de natureza ou vive no estado civil (não pode
viver ao mesmo tempo em um e outro).

Entre os dois estados, há uma relação de contraposição: o estado natural


é o estado não político e o estado político é o estado não natural. Em
outras palavras, o estado político surge como antítese do estado natural,
do qual tem a função de eliminar os defeitos, e o estado natural ressurge-
se como antítese do estado político, quando esse deixa de cumprir a
finalidade para o qual foi instituído (Bobbio, 1994, p. 38-39).

O Princípio de legitimação das sociedades políticas é exclusivamente o con-


senso. É interessante destacar que a sociedade política se distingue da sociedade
doméstica e da sociedade senhorial por meio do fundamento da autoridade. O
governante, ao contrário do pai e do dono de escravos, necessita que sua própria
autoridade obtenha consentimento para que seja considerada como legítima.
O Estado, para se originar, necessita de duas convenções sucessivas: o pac-
tum societatis, com base no qual um certo número de indivíduos decide de co-
mum acordo viver em sociedade; e o pactum subiectionis, com base no qual os
indivíduos assim reunidos se submetem ao um poder comum. O primeiro pacto
transforma uma multitudo em um populus; o segundo, um popolus numa civitas.

1 O título exato é Elementa philosophica de cive, com a primeira edição de 1642.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Hobbes, por seu turno, propõe o pactum unionis, com base no qual cada
um dos indivíduos que compõem uma multidão cede o direito de autogover-
nar-se, que possui no estado de natureza, a um terceiro (seja uma pessoa ou
uma assembleia), contando que todos os outros façam o mesmo. Tal pacto
é ao mesmo tempo um pacto de sociedade e um pacto de submissão, já que
os contratantes são os indivíduos singulares entre si e não o populus, por um
lado, e o futuro princeps, por outro, um pacto de submissão na medida em
que aquilo que os indivíduos acordam entre si é a instituição de um poder
comum ao qual decidem se submeter.
Questões relacionadas às modalidades e ao conteúdo do contrato social
apresentaram divergências que podem ser agrupadas em torno dos seguintes
problemas: a) se o poder soberano é absoluto ou limitado; se é indivisível ou
divisível; se se pode restituir a ele ou não. Há uma contraposição clássica entre
Hobbes (para quem o poder era absoluto, indivisível e irresistível) e Locke (po-
der limitado, divisível e resistível).
Na realidade, os pensadores não defendem o caráter absoluto do poder, por-
quanto poder absoluto é somente o de Deus. O fato de que o soberano ser livre
das leis, significa que ele é livre das leis civis, quais sejam, aquelas que ele mes-
mo tem o poder de criar, conforme lição de Rousseau, citado por Norberto Bob-
bio: “assim como a natureza dá a todos os homens um poder absoluto sobre todos os
seus próprios membros, do mesmo modo o pacto social dá ao corpo político um poder
absoluto sobre todos os seus próprios membros; e é esse mesmo poder que, dirigido
pela vontade geral toma (...) o nome de soberania”. O fato de que o poder soberano
esteja acima das leis civis não quer dizer que seja um poder sem limites, mas
que os limites do seu poder são limites não jurídicos (de direito positivo), mas
derivados daquele direito incoercível que é o direito natural.
Observa Norberto Bobbio (1994, p. 78 e ss) que em relação à divisibilidade
do poder soberano, embora a doutrina aponte aqueles que defendem sua indi-
visibilidade, como Hobbes e Rousseau e os defensores da divisão de poderes,
como Locke, Montesquieu e Kant como representantes de duas teorias diver-
sas, essa contraposição não é não evidente como se aparece: quando Hobbes,
por exemplo, afirma que o poder soberano deve ser indivisível e condena
como teoria sediciosa a tese contrária, o que ele rechaça é a teoria do governo
misto, ou seja, a teoria que afirma como governo ótimo aquele em que o poder
soberano está distribuído entre órgãos diversos em colaboração entre si, repre-
sentados cada um por três diversos princípios de qualquer regime (o monarca,

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

os melhores, o povo). Quando Locke defende a teoria da divisão dos poderes,


o que ele acolhe não é absolutamente a teoria do governo misto, mas sim a
teoria segundo a qual os três poderes através dos quais se explicita o poder
soberano – o poder legislativo, o poder executivo e o poder judiciário – devem
ser exercidos por organismos diversos. Entretanto, apesar da divisão apresen-
tada por Locke, o poder soberano é um só, o poder legislativo, e que o poder
executivo deve permanecer subordinado ao primeiro. Somente quando se leva
em conta essa não-correspondência entre os dois conceitos de divisão e, res-
pectivamente, de indivisibilidade do poder soberano, um dos quais se refere
à divisão dos órgãos (rei câmara dos lordes e câmara dos comuns), enquanto
o outro refere-se à divisão das funções (legislativa, executiva, judiciária) é
que se pode compreender o aparente paradoxo de O Contrato Social, no qual
Rousseau afirma ao mesmo tempo a tese da indivisibilidade da soberania,
como Hobbes, e a tese da divisão do poder legislativo e do poder executivo,
bem como a subordinação do segundo ao primeiro, como Locke. O paradoxo
de Rousseau consiste no fato de que, com sua teoria do contrato social, ele
imaginou uma fórmula com a qual visa salvar ao mesmo tempo a unidade do
Estado (pelo que ele se professa admirador de Hobbes) e a liberdade dos indi-
víduos (no que é certamente um seguidor de Locke).
A terceira questão diz respeito à resistência. A anarquia é, para Hobbes,
um mal extremo, um mal que provém da conduta irrefreada dos indivíduos, de
forma que ele se coloca ao lado do príncipe, cujo poder considera irresistível, ou
seja, de tal natureza que, diante dele, o súdito tem o dever de obedecer. Locke,
ao contrário, considera o despotismo como mal extremo, um mal que provem
da conduta irrefreada do soberano, motivo pelo qual se coloca ao lado do povo
que, segundo ele, tem em determinados casos o direito de resistir às ordens do
soberano, ou seja, de não obedecer.
Entretanto, não se pode perder de vista que a formação do Estado moderno
surge a partir dos vários conflitos religiosos (que dá origem ao que Hobbes toma
por anarquia, referido linhas acima). Com o apoio de magistrados e militares,
o Estado dos príncipes forma uma esfera de ação supra-religiosa e racional que,
em oposição às suas demais instâncias, era determinada pela política estatal
(KOSELLECK, 1999, p. 20). É a manifestação da expressão que a doutrina cha-
ma de “razão de Estado”. No século XVI, a ordem tradicional estava em plena
decadência. E “em consequência da perda da unidade da Igreja, a ordem social
como um todo saiu dos eixos” (KOSELLECK, 1999, p. 20).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Hobbes desenvolveu sua teoria do Estado a partir da situação histórica pro-


vocada pelas guerras civis religiosas e ele laça o seguinte problema: em uma
situação de guerra civil, em que o direito de todos prevalece sobre todos, como
é possível desenvolver uma legalidade que permita realizar este desejo? A lei
natural, antes de se tornar lei necessita de uma garantia que viabilize seu cum-
primento, de forma que a filosofia moral deve elaborar tal legalidade e o tema
apropriado à matéria em questão é a política.

Hobbes introduz o Estado como uma construção política em que as


convicções privadas são destituídas de sua repercussão política. No
direito constitucional de Hobbes, as convicções privadas não encontram
nenhuma aplicação às leis; as leis não são aplicadas ao soberano. O
interesse público de Estado, sobre o qual somente o soberano temo
direito de decidir, não compete mais à consciência. A consciência, da
qual o Estado se separa e se aliena, transforma-se em moral privada:
“Autorictas, non veritas, facit legem” [“É a autoridade, e não a verdade,
quem faz as leis”]. O monarca está acima do direito e é sua fonte; ele
decide o que é justo ou injusto; é ao mesmo tempo, legislador e juiz.
O conteúdo deste direito, como direito público, não está mais legado a
interesses sociais e esperanças religiosas; para além de igrejas, estamentos
e partidos, ele marca um domínio formal de decisões políticas. Este
domínio pode ser ocupado por esse ou aquele poder, contanto que possua
a autoridade necessária para proteger os homens, independentemente de
seus interesses e esperanças. A decisão política do príncipe tem força de
lei (KOSALLECK, 1999, p. 31).

Ora, na medida em que a ordem social é assegurada de cima para baixo, sua
estabilidade só é possível quando houver o reconhecimento dos de baixo e isso
é feito por meio de uma necessidade moral. A suprema obrigação do Estado é
oferecer proteção e isso só pode ser feito se todos os homens transferirem seus
direitos ao soberano, conforme visto acima. Mais adiante, na época em que
Walter Benjamin escreveu seu clássico, isso pode ser a origem de uma crise de
legitimidade nos detentores do poder. Para Benjamin, o poder historicamente
reconhecido, distingue-se o poder sancionado e o não sancionado e questiona
qual o sentido desta distinção e a defende: “se o critério estabelecido pelo direito
positivo para a legitimidade do poder só pode ser analisado segundo o seu sentido, a
esfera do seu uso tem de ser criticada segundo o seu valor” (1986, p. 161).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

No Estado de Hobbes, em que a vontade do príncipe é a única lei, racional é


apenas a legalidade formal das leis, não o seu conteúdo. Racional é a obediência
às leis independentemente de seu conteúdo. O que interessa não é o conteúdo
da lei, massa manutenção da paz “a legalidade destas leis não residia na qualifica-
ção de seu conteúdo, mas exclusivamente na sua origem, ou seja, no fato de serem a
impressão da vontade do poder soberano” (KOSELLECK, 1999, p. 37-38).
Para Hobbes, a lei da natureza coincide com a moral e é vinculante para a
consciência individual em seu próprio interior e está completa desprovida de
qualquer conteúdo jurídico. Se a autoridade ordena fazer algo contra as leis da
natureza e a consciência pessoal – por exemplo, inicial uma guerra injusta, “o
súdito deve obedecer, pois o juízo acerca do que é justo ou injusto pertence apenas ao
príncipe: se não fosse assim, todo ser humano estaria no dilema entre a condenação
eterna e a destruição da sociedade humana e a vida civil” (PRODI, 2008, p. 369)
Hobbes secciona o homem em dois: metade privada e metade pública.
No entanto, na medida em que desaparece a neutralidade moral que distin-
gue a decisão soberana, o Estado absolutista perde seu caráter evidente que
estava ligado à situação histórica. Com o iluminismo, a separação entre ho-
mem e súdito deixa de ser compreensível. O homem deve se realizar politi-
camente como homem, o que provoca a desagregação do Estado absolutista
e a separação entre política e moral desencadearia esse processo, cujo ápice
se deu com a Revolução Francesa.
Convém observar, de outra banda, que o direito tem existido como organis-
mo legitimador de domínio. É possível afirmar que o direito serve para manter
um status-quo na medida e na duração em que este domínio tem força para se
sustentar. Dessa forma, o direito se constrói sendo pautado pelas forças que, por
meio de diferentes métodos, conseguem estabelecer seu domínio, e, assim, o sis-
tema jurídico se desenvolve perpassando e sendo adaptado pelos vários estágios
que o poder dominante se mantém. 
Diz-se poder dominante a coalizão de forças políticas que detém maior
grau de controle das instituições sociais. O domínio, enquanto construção
"weberiana" perpassa por uma convivência entre os setores que detém o po-
der de comandar a sociedade. O político e o econômico são os fatores dessa
convivência. O jurídico será o "compasso" legitimador dessa convivência e,
consequentemente, desse domínio.
Observa Walter Benjamin que a função diferente do poder se serve a fins
naturais ou fins jurídicos pode ser demonstrada de maneira mais didática to-

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

mando como base determinadas relações jurídicas que se referem à Europa de


seu tempo (anos 20 do século passado).

2. A violência fundadora e a violência conservadora do direito


Walter Benjamin observa que o direito considera o poder na mão do indiví-
duo um perigo de subversão da ordem judiciária e questiona se a

possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o poder diante


do indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos,
mas de garantir o próprio direito”, pois o poder “quando não está nas
mãos do próprio direito, o ameaça, não pelos fins que possa almejar, mas
pela sua própria existência fora da alçada do direito (1986, p. 162).

Entretanto, há casos em que a ordem jurídica admite o emprego da violência


e nesse caso o poder do indivíduo aparece como ameaça ao direito. Isso se trata,
por exemplo, com o direito de greve em que o operariado organizado é um sujeito
jurídico – além do estado – a quem cabe um direito ao poder. Observa Benjamin
que há concepção de que no exercício desse poder, “a omissão de ações, um não-agir”
não pode ser designada como violência, entendimento esse que favoreceu ao poder
do Estado a positivação do direito de greve. Entretanto, acredita o mesmo autor, que
o momento de violência ocorre nessa omissão sob a forma de chantagem e é nesse
sentido que, segundo a concepção do operariado – oposta à do Estado, o direito de
greve - e o direito de usar a violência para alcançar determinados objetivos.
Nesse contexto, Benjamin apresenta duas formas de violência: a violência
instituinte e a violência mantenedora do direito. Esses dois tipos de poder/vio-
lência estão presentes em outra instituição do Estado moderno: a polícia, com
capacidade de desenvolver um poder para fins jurídicos (execução de medidas)
e, ao mesmo tempo, instituir tais fins jurídicos (através do direito de baixar
decretos) de forma que aí se encontra suspensa a separação entre poder insti-
tuinte e poder mantenedor do direito: é um poder instituinte do direito, cuja
função não é promulgar leis, mas baixar decretos com expectativa de direito e
um poder mantenedor do direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins.

Na verdade, o “direito” da polícia é o ponto em que o Estado – ou por


impotência ou devido às inter-relações imanentes a qualquer ordem
judiciária – não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins

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empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. Por isso, “por questões
de segurança”, a polícia intervém em inúmeros casos, em que não
existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia
acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência
a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal, ao longo de uma vida
regulamentada por decretos (1986, p. 166).

Todo poder, adianta Benjamin, enquanto meio é ou instituinte ou mante-


nedor de direito e esses atributos estão relacionados com a validade do direito.
Nesse contexto o direito se apresenta sob uma ética ambígua, sendo o legítimo
o questionamento se para a regulamentação de interesses humanos conflitantes
não há outros meios não violentos. Até um contrato firmado entre as partes
leva à possível violência, pois ambas as partes têm – uma contra a outra – a pos-
sibilidade de utilizar da violência no caso de rompimento contratual. Também a
origem de qualquer contrato remete a violência – não de forma imediata – mas
a violência instituinte do direito se encontra nele em potência, pois o poder que
garante o contrato jurídico é de origem violenta.
Entretanto, aponta Benjamin que existem meios criados pela humanidade
cuja aplicação desarticula e destrói o império do direito e de sua violência mí-
tica sobre a vida. São os “meios puros” e se trata de ações essencialmente não
violentas que respondem a conflitos entre sujeitos (PÉREZ LÓPEZ, 2015, p.
2015), “... uma esfera de entendimento humano, não-violenta a tal ponto que seja
totalmente inacessível à violência: a esfera propriamente dita do “entendimento”, a
linguagem” (1986, p. 168). Há também os “meios puros da política”, análogos aos
meios puros da linguagem e, em se tratando, de Estados, existe a diplomacia
como meio puro que permite evitar um desenlace bélico.
Quando se trata de conflitos entre classes, o diálogo entre pares superpos-
tos à lei deixa de ser um lugar resolutivo. Benjamin invoca George Sorel e sua
concepção de greve geral proletária como figura exemplar de meio puro político
decisivo em um conflito de classes.
Citando Georges Sorel, Benjamin observa que para os partidários da greve
geral política

a base de suas concepções é o fortalecimento do Poder do Estado; em


suas organizações atuais, os políticos (a saber, os socialistas moderados)
preparam desde já a instituição de um poder fortemente centralizado

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

e disciplinado, que não se deixará intimidar pelas críticas da oposição,


saberá impor o silêncio e baixará seus decretos mentirosos (1986, p. 169).

Já a greve geral proletária se propõe como única tarefa, a aniquilar o poder


do Estado.

Ela elimina todas as consequências ideológicas de qualquer política


social possível; seus partidários consideram como burguesas mesmo as
reformas mais populares. Esse tipo de greve geral manifesta claramente
sua indiferença quanto ao ganho material da conquista, com a declaração
de que pretende superar o Estado; o Estado era de fato ... a razão-de-ser
dos grupos dominantes, que se aproveitam de todos os empreendimentos
que ficam a cargo de todo o mundo (1986, p. 169).

E conclui Benjamin: enquanto que a primeira forma de parar o trabalho


é violenta, uma vez que provoca só uma modificação exterior das condições
de trabalho, a segunda, enquanto meio puro, é não-violenta, pois ela não
ocorre com a disposição de tomar o trabalho depois de concessões superfi-
ciais, mas só com um trabalho totalmente transformado, não compulsório
por parte do Estado. Pois isso, o primeiro tipo de greve instituinte de direito
e o segundo, anarquista.
O certo é que em toda a esfera de poderes que se orientam pelo direito na-
tural ou pelo direito positivo, não se encontra a salvo dos problemas que afetam
todo e qualquer poder judiciário. Entretanto, qualquer solução é irrealizável
quando se exclui todo e qualquer poder.
Fins justos podem ser obtidos por meios legítimos, meios legítimos podem ser
usados para fins justos. A questão é saber como se dar se esse tipo de poder, usan-
do meios legítimos se encontra em conflito inconciliável com os fins justos em si.

3. A efetivação dos direitos humanos, o poder coercitivo


do Estado e os puros meios
A sociedade contemporânea caracteriza-se pela complexidade, se distan-
ciando, em muito, daquela experiência histórica na qual Walter Benjamin
concebeu “Para uma crítica da violência”. Com o desenvolvimento das relações
após a segunda guerra, a internacionalização dos direitos humanos passou
a ser uma realidade incontornável (RAMOS, 2013, p. 31). Na contempora-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

neidade, deve-se levar em consideração que as regras democráticas (procedi-


mentos universais) estabelecem como se deve chegar à decisão política e o que
decidir deve estar vinculado a um padrão civilizatório mínimo ditado pelo
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Para além da concepção de soberania dos Estados nacionais prevalente na
Europa dos anos 20 do século passado, a internacionalização dos direitos hu-
manos trouxe como consequência a implantação formal de seu universalismo,
inoculado pela adoção pelos Estados do mesmo texto de direitos humanos im-
posto nos tratados ratificados (RAMOS, 2013, p. 33). Como observa Antonio
Augusto Cançado Trindade (1991, p. 4 e ss.) a proteção dos direitos básicos da
pessoa humana não se esgota na atuação do Estado, na “pretensa e indemonstrá-
vel ‘competência nacional exclusiva’”.
Nas sociedades capitalistas dependentes do capital financeiro interna-
cional, não é possível democracia plena porque ela só opera, e de forma
bastante limitada – como demonstra a atual crise política brasileira - ao
nível do sistema político, sendo certo que as relações econômicas só “muito
marginalmente podem ser democratizadas a partir do atual sistema político”
(BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS). Na sociedade política e econo-
micamente desigual, o direito ao protesto é utilizado como uma forma de se
assegurar um direito fundamental social.
É nesse contexto que os protestos sociais e manifestações populares ganham
importância pois

são os sintomas mais claros de violação de direitos fundamentais e (ou)


a única forma encontrada para se fazer ouvir num processo democrático
que é surdo aos gritos dos sujeitos que têm seus direitos sistematicamente
negados, violados e, em geral, também são privados de condições
mínimas e dignas de existência (CHUEIRI  E GODOY).

Fundamentado na liberdade de expressão, de opinião e de reunião, o di-


reito ao protesto já não pode ser entendido enquanto categorias aproximadas
dos conceitos de greve geral política ou revolucionária que trata Georges Sorel
(1973, p. 1119-154 e 155-186), mas reforça o sentido da participação dos cidadãos
na tomada das decisões e, de forma paradoxal, aproxima o direito e violência.
Essa aproximação entre direito e violência pode ser observada na história
recente do Brasil, quando algumas mobilizações têm sido reprimidas com vio-

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

lência pelo Estado, destacando-se as organizadas pelo MST2 (Movimento dos


Trabalhadores Sem Terra) e MTST3 (movimento dos trabalhadores sem teto),
em suas lutas por reformas agrária e urbana. A criminalização toma maior real-
ce em protestos de massa, como os ocorridos em 20134 e, a partir daí, ganhando
maior destaque com as mobilizações populares, tais como os dos estudantes
secundaristas de São Paulo5, professores do estado do Paraná6, ocupações pro-
movidas por secundaristas e universitários em 2016 contra a reforma do ensino
médio e a PEC 2417. É conveniente registrar que a repressão tem origem em
todos os Poderes do Estado: no Executivo, a repressão física promovida pela
polícia militarizada dos vários estados da federação; no legislativo, positivando
normas criminalizadoras; no Judiciário, com decisões judiciais que nitidamente
impedem o exercício desse direito.
A organização não governamental Artigo 198, realizou um levantamento
de todos os protestos ocorridos no período de 1o de janeiro a 31 de dezembro
de 2013 (696) encontrando várias decisões emanadas do Poder Judiciário que
dificultavam ou mesmo proibiam a realização de protestos.
Apenas a título de exemplo, pode-se citar decisão proferida na comarca de
Cosmópolis, SP, que proibia o uso de máscaras por manifestantes nas rodovias
D. Pedro I e Professor Zeferino Vaz (SP-332); No Estado do Rio de Janeiro foi
deferida medida que obriga manifestantes mascarados a retirarem as máscaras e
se identificarem para os policiais quando solicitados e, em caso de recusa, a pos-
sibilidade de o manifestante ser encaminhado para identificação criminal em
delegacia de polícia; Também no Estado do Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça
negou pedido da Defensoria Pública do Estado para que fosse proibido o uso de
spray de pimenta e balas de borracha pela polícia militar durante manifestações,
ao argumento de que a polícia militar, em seu papel de manutenção da ordem

2 https://anistia.org.br/noticias/massacre-de-eldorado-dos-carajas-20-anos-de-impunidade-e-
violencia-campo/
3 http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=08d24d640ddb54ad
4 http://www.encontroabcp2016.cienciapolitica.org.br/resources/anais/5/1468352175_ARQUIVO_
GiseleHeloiseBarbosaABCP.pdf
5 http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/11/politica/1462919412_910217.html
6 http://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/29/politica/1430337175_476628.html
7 http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/24/politica/1477327658_698523.html
8 http://protestos.artigo19.org/

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

pública deveria garantir manifestações pacíficas e, não sendo pacíficas, "precisa


a Polícia intervir utilizando-se de armamentos adequado para cada situação", afim
de "resguardar a sociedade e patrimônio público e privado nas ações de baderneiros
que praticavam delitos e depredavam a cidade". Situação semelhante ocorreu no
Estado de São Paulo, quando decisão proferida pelo Tribunal de Justiça enten-
deu que o "artigo 5º da Constituição Federal não podem ser utilizados como escudo
protetivo para a prática de atividades nocivas para a sociedade, tampouco como
argumento para afastar a atuação estatal, pena de rompimento das bases de susten-
tação do Estado Democrático de Direito. A atuação policial preventiva, com vistas à
manutenção da ordem pública, é legítima, e não pode ser afastada, sem prejuízo de
rigorosa apuração e punição de eventuais abusos, se acaso constatados". Já no Es-
tado de Minas Gerais, o Tribunal de Justiça proibiu manifestações convocadas
por dois Sindicatos, então em greve, em torno do estádio Mineirão, durante a
Copa das Confederações, decisão revogada pelo Supremo Tribunal Federal, por
ir contra o direito de reunião e livre manifestação.
A manutenção da violência assegurada pelo direito tem se protraído no
tempo. No seu informe referente ao ano de 2015, a Relatoria Especial para a
Liberdade de Expressão da Comissão da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, relata a continuidade de graves desrespeitos e agressões contra ma-
nifestantes e jornalistas no contexto dos protestos sociais ocorridos em diversas
cidades do país, registrando que

continuaram recorrentes a utilização do poder punitivo do Estado para


criminalizar a manifestação social pacífica, e os desafios que ainda
persistem no país em relação à consolidação de um sistema de meios de
comunicação capaz de promover a diversidade de fontes e o pluralismo
nos meios de comunicação.

Como visto alhures, o direito positivo e Estado passaram a se confundir,


marcando o direito positivo o monopólio do uso do Poder/Violência pelo Esta-
do. O ápice dessa compreensão se dá com a teoria da identificação entre direito
e Estado formulada pela filosofia do direito de certa forma contemporânea a
Walter Benjamin, representada por Hans Kelsen. Nesse contexto, nos dizeres
de Benjamin, “a questão central passa a ser a da legitimidade de determinados meios
que constituem o poder”. Questão subjacente a esta se dá com a natureza do Es-
tado: quando se falava em Estado de Direito, houve uma tendência em conferir

298
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

caráter apenas formal ao conceito de Estado de Direito, daí os dois pressupostos


que o constituiu, a ideia de legalidade de toda atividade estatal e a ideia de rea-
lização da justiça, como fim primário do poder estatal possibilita que, do ponto
de vista formal, a norma jurídica seja confundida com a própria realidade e do
ponto de vista político, legitima a autoridade do Estado.
Um dos constitucionalistas latino-americano que tem mais refletido e escri-
to sobre protesto é o professor argentino Roberto Gargarella e ele é contunden-
te: “é preocupante que um sistema democrático conviva com situações de miséria,
mas é catastrófico não possa que tais situações não possam traduzir-se em demandas
direitos sobre o poder público9”.
Do mesmo modo, a mesma Relatoria para a Liberdade de Expressão da Co-
missão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2002) reconheceu que
para os setores mais empobrecidos do hemisfério, os canais tradicionais de
participação se vêm muitas vezes cerceados, de forma que em muitos países o
protesto e a mobilização social se constituem como ferramentas de petição à
autoridade pública e também como canal de denúncias públicas sobre abusos
ou violações aos direitos humanos. Nesse contexto,

A relatoria recomenda aos Estados membros da OEA que desenvolvam


mecanismos efetivos para o pleno exercício da liberdade de expressão.
A liberdade de expressão não requer, simplesmente, que o Estado “retire
suas mãos”, por exemplo, da esfera da comunicação pública, é dizer,
que não imponha censuras. A liberdade de expressão requer muito
mais: requer, por exemplo, que o Estado se envolva na manutenção
de espaços públicos abertos, e na garantia a todos de um “direito de
acesso aos foros públicos10 (CIDH, 2005).

Pois bem.
Não se pode desconsiderar que os protestos e mobilizações populares foram
essenciais para garantir um padrão civilizatório mínimo no Estado capitalista.

9 No original: “es preocupante que un sistema democrático conviva con situaciones de miseria, pero es
catastrófico que tales situaciones no puedan traducirse en demandasdirectas sobre el poder público”.
10 No original:” La Relatoría recomienda a los Estados miembros de la OEA que desarrollen mecanismos efectivos
para el pleno ejercicio de la libertad de expresión. La libertad de expresión no requiere, simplemente, que el Estado
“quite sus manos”, por ejemplo, de la esfera de la comunicación pública – es decir, que no imponga censuras. La
libertad de expresión requiere mucho más: requiere, por ejemplo, que el Estado se involucre en el mantenimiento
de lugares públicos abiertos, y en la garantía a todos de un “derecho de acceso a los foros públicos”.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Não se pode desconsiderar que desde os finais do século XVII, em um mo-


mento histórico em que inexistia uma construção teórica que pudesse pôr em
discussão o modelo de sociedade em formação, quando se inicia uma reação de
trabalhadores ao destruir máquinas (ludismo) em defesa dos postos de trabalho,
passando pela organização internacional dos trabalhadores, até a edição de um
padrão civilizatório mínimo com a Organização Internacional de Trabalho foi
garantida exclusivamente por grandes protestos e mobilizações dos trabalhado-
res (SOUTO MAIOR, 2011, p. 143 e ss.).
Como foi visto acima, na compreensão de Benjamin, a greve geral proletá-
ria se constitui na esfera política o “puro meio”, o que permite compreender,
de certa forma, a violência ameaçadora do direito, porquanto, apesar de a
ordem jurídica positivar o direito de greve, ela limita seu exercício a certas
condições que, ultrapassadas, transforma-se em ato ilícito (essa questão é fa-
cilmente percebida na legislação pátria por meio da lei nº 7.783, de 28 de
junho de 1989). Ocorre que o simples fato de se abster de trabalhar ou no
caso de participação dos protestos sociais ou mobilizações populares, pode
ser tido como “um meio puro, inteiramente sem violência”, na medida em que a
abstenção ou ocupação das ruas não persegue a um fim algum, mas esgota-
-se em si mesmo. Entretanto, desde que usado como chantagem, torna-se um
meio violento a serviço dos protestantes.
A questão relacionada com os meios justos, do exercício da violência e da
não violência deve ser colocada no topo das discussões sobre o exercício do
direito do protesto, mormente a partir das jornadas de junho de 2013 e da con-
juntura que ora se avizinha a partir de 2019.
Ao que Benjamin chama de “relações de direito” nesses períodos de transi-
ção, o constitucionalismo moderno pode apresentar algumas alternativas e para
tanto, as relações político-econômico-sociais devem permitir a prática de uma
constituição normativa – as que têm plena eficácia e efetividade na realidade
social, observadas pelos detentores do poder e do processo político – na classi-
ficação de Karl Loewenstein.
O constitucionalismo moderno, inclusive o latino-americano tem aprofun-
dado o rol de direitos sociais. Entrementes, essas conquistas são limitadas pelo
fato de, no pensar de Roberto Gargarella,

os reformadores pareceram concentrar suas energias na seção


dos direitos, sem levar em conta o impacto que a organização do

300
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

poder tende a ter sobre aqueles mesmos direitos que então estavam
(extra) protegidos (...) reformistas legais dedicaram a maior parte de
seu trabalho para criar novos direitos, deixando a organização dos
poderes basicamente intocada.

Agindo dessa maneira, acrescenta Gargerella, “reformistas legais mantêm fe-


chadas as portas da “sala de máquinas” da Constituição: o núcleo da maquinaria
democrática não é modificado”. Talvez o rumo para se separar o direito e violência,
ou melhor, construir uma relação social baseada em meios puros não-violentos,
seja reformar a “sala de máquinas” da Constituição, enfrentando a organização
de poderes ainda típica do século XIX de concentração de autoridade: se elas
são social e democraticamente comprometidas em seu rol de direitos, rejeitam
ou parecem rejeitar os mesmos ideais quando se trata de organização de pode-
res, mantendo uma organização política verticalizada.
A tarefa é estudar uma nova forma de organização de poderes que privilegie
a participação política ativa dos cidadãos e assim privilegie, a partir daí, os “pu-
ros meios” na discussão de implementação de um direito.

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302
Entre libera e valquírias:
a incompreensiva condição humana

Yago Barreto Bezerra1


Francisca Kaline Oliveira da Silva2

Introdução
Ei-lo! O espírito avulso que aspira por um pai; o espírito tísico que de pernas
tão bambas, rasteja. Primeiro nos concentremos neste homem, meu caro leitor,
neste homem transformado em porco e que implora a Ulisses para permanecer
em seu chiqueiro. É homem, não pode ser mulher, pois tal covardia não tem
a ver com o feminino. Que esperar deste ser, amedrontado, lânguido, frágil?
Seus olhos são chocos, encostados em si, só têm dois caminhos, para baixo e
para cima, jamais para os lados ou para as diagonais; há um certo brilho, muito
pouco nítido, recôndito na íris, e difuso diante de um olhar desfocado e incerto.
Sua aparência é feia, porque ele mesmo diz que é feia, sua postura é curva, suas
pernas não aguentam o corpo. Então se cobre de joias que diz que são belas,
põe umas costuras de pano a que chama de roupa, dá nome à pedra, à árvore e
ao ar. É preciso sufocar o olhar, o olhar o consome, entrega pensamentos sem
resposta, ideias vagas a serem esquecidas. O coração bate aflito, adoentado, não
se acha a suportar a leveza da liberdade. Ele não pode conceber-se num mundo
em que tenha responsabilidade, em que seja Deus — pois que condição miserá-
vel a de Deus —, em que pese a sua palavra. É preciso suprimir a suspeita, pois
que ela há de revelar? Ora, há de descortinar esta peça de grilos e expor a esta
criatura o que tanto quer ocultar, esta ferida perene, doída, que abre para o in-
certo, o irreconhecível, o indistinguível. Em termos mais curtos, que abre para

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido.


2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

a imaginação. É proibido imaginar. É proibido questionar, é proibido destruir


a Alphaville. Não, a liberdade para ele não, a liberdade é muito. A liberdade
sufoca. O pensamento sufoca. Veja, os dentes já estão gastos demais de tão
rangidos. Os membros esqueléticos e atrofiados o encaminham de volta a uma
posição fetal. Ele é incapaz de se acostumar ao ar que o circunda. Ele treme na
terra encorpado por seus panos e suas joias. Sua única saída é ver-se como uma
imitação. Então ele consegue viver, cambiando sua função na ópera, possuindo
um instrumento servil em vez da batuta, e sonhando com a batuta, admirando-
-a, fitando-a intensamente com os lânguidos olhos, devorando-a com a boca to-
mada pelos dentes, sendo processo, sendo ponte, vendo-se do outro lado herói,
banhado por Wagner, saudado por valquírias, com os pés firmes e decididos na
neve, possuindo medalhas no peito e condecorações das mais justas e eleva-
das, sendo o divino em delírio; eis o seu gozo indelével, sua prática estranha.
E após, sente outra vez o amargor misturado em sua saliva, o ar um tanto in-
sólito, e vê a batuta, ouve a melodia abafada da música, e ouve um cavalgar e
tenta se concentrar nestes passos bestiais até que esboce um ingênuo sorriso,
que remete muito mais a um alívio agora do que a um orgasmo, e quando se
distancia então, o som faz um contorno e vem se aproximando novamente, aos
poucos, como que caminhando na sua direção num indefinido porvir, restando-
-lhe guardado um receio de que a melodia se irrompa num barulho estridente.
Impetuoso leitor, consegues vê-lo?
Hobbes foi o primeiro a constatar este homem, a defini-lo em seus termos
mesquinhos, a expor sua covardia. A dicotomia entre vida e liberdade, coloca-
das assim, em disputa, como se uma fosse impossível à outra, desnuda uma opo-
sição muito mais profunda, que forma o próprio humano, ele em si, a primeira
oposição. Perdido entre a vida e a liberdade, melhor, entre a miséria e o sufocar,
prefere qualquer coisa além de ter de encarar a ferida, ergue um leviatã. Incapaz
de ser dono de si mesmo, fabrica um monstro e se submete a seu jugo. Veja o
tamanho de sua loucura! Dessa incapacidade de se governar, faz então um arti-
fício, além dele, com o intento de ser melhor que ele. Mas como uma ferramenta
feita pelo homem pode ter êxito em transcendê-lo? A máquina a vapor é sempre
um retrato do seu criador. Do mesmo modo o leviatã não possui tripas melhores
do que as contidas no intestino humano. É um monstro de origem já deforma-
do, um amontoado de corpos flácidos e maltrapilhos cheios de pouca vontade
e de muita ambição envoltos de lama escorregadia, com um rosto que não se
reconhece; é uma criatura medonha que tem olhos por todo o corpo, e feita à

304
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

imagem e semelhança do humano. É, portanto, tão desprezível quanto. Guarda


consigo, contudo, o poder absoluto de todos os homens. É a esta criatura ar-
tificial que se nega a liberdade — sendo aqui entendida no seu conceito mais
matemático (ou ideal), como ausência de impedimentos externos, classificação
dada pelo filósofo inglês — e na qual se procura algum tipo de sobrevivência
possível. Hobbes nos coloca diante de uma tragédia: ou se é livre, ou se vive.
Bem, para este homem adoentado não há outra saída; os termos são estes.
Mas por que é preciso se recorrer a este artifício tão ridículo, tão pueril, por
que não é possível ver Sísifo feliz?3 O outro humano, o espírito questionador,
devorador, o enfastiado diante deste conto histérico, o ser que prefere pensar,
indagar, suspeitar, não consegue ver como esta alienação pode ser melhor, como
se pode viver desta forma tão covarde; ele não entende este homem, e por não
entende-lo o diz covarde. É atividade crítica, leva a oposição fundada no huma-
no para o universo comunitário. A este espírito livre, defensor de uma contra-
dição — quiçá nem se possa dizer defensor, uma vez que tudo à prova coloca,
inclusive o seu intento, e que tampouco se põe fora da história, admite-se sujo
com a mesma lama de seu adversário; e não seria ele mesmo o seu adversário?
—, resta um ofício solitário, porque crítica impõe resistência e a resistência sem-
pre começa solitária; os espíritos entoam sua voz aqui e ali e por lá e por acolá
vai que podem encontrar vozes parecidas e fazer do ofício, algo menos recluso.
Todavia, de início, este ser não possui qualquer apoio.

Ele vagueia cruel, com avidez insaciada; o que ele captura, tem de pagar
a perigosa tensão do seu orgulho; ele dilacera o que o atrai. Com riso
maldoso ele revolve o que encontra encoberto, poupado por algum
pudor: experimenta como se mostram as coisas, quando são reviradas.
Há capricho e prazer no capricho, se ele dirige seu favor ao que até
agora teve má reputação — se ele ronda, curioso e tentador, tudo o
que é mais proibido. Por trás do seu agir e vagar — pois ele é inquieto,
e anda sem fim como num deserto — se acha a interrogação de uma
curiosidade crescentemente perigosa. "Não é possível revirar todos os
valores? e o Bem não seria Mal? e Deus apenas uma invenção e finura
do Demônio? Seria tudo falso, afinal? E se todos somos enganados, por
isso mesmo não somos também enganadores? não temos de ser também
enganadores?" — tais pensamentos o conduzem e seduzem, sempre mais

3 Referência à última frase de O Mito de Sísifo, de Camus (2018)

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

além, sempre mais à parte. A solidão o cerca e o abraça, sempre mais


ameaçadora, asfixiante, opressiva, terrível deusa e mater saeva cupidinum
[selvagem mãe das paixões] — mas quem sabe hoje o que é solidão? ...
(NIETZSCHE, p. 6 – 7, 2000).

Mas estes espíritos existem, Nietzsche!4 Existem? Não em sua inteireza, pos-
sivelmente, mas como um suspiro. Existem como crítica, não tomaram ainda o
mundo com as mãos. O humano ainda pertence ao homem, mas é um conceito
em disputa. É disputa consigo e com os outros, interna e externa, individual e
comunitária, que se reproduz em suas tensões, em suas fragilidades, em suas
mutações. Mas recordemos dos homens, destes que necessitam de um pai, vez
que são quem hoje caminham sobre a terra e que existem, não enquanto suspi-
ro, mas enquanto grito desesperado.
Para Kierkegaard, Deus nasce da necessidade de fugir da falta de significado
da existência, que nos põe em posição de responsáveis conjuntamente pelo des-
tino5. É dado um salto em direção ao irracional; o racional é humano, é aquilo
que pode ser compreendido. O irracional é Deus, o incompreensível. Deus é
aquilo que não se compreende e, portanto, ele existe em tudo o que é incompre-
ensível; ele está além do humano. É famosa a citação de Pascal na qual ele diz:

Que nos gritam, pois, essa avidez e essa impotência, senão que houve,
outrora, no homem, uma verdadeira felicidade, da qual só lhe restam,
agora, a marca e o traço todo vazio, que ele tenta inutilmente encher
de tudo o que o rodeia, procurando das coisas ausentes o socorro que
não obtém das presentes, mas que são todas incapazes disso, porque esse
abismo infinito só pode ficar cheio de um objeto infinito e imutável, isto
é, o próprio Deus. (PASCAL, p. 268 - 269. 2002)

Veja esta outra passagem, da Bíblia — o documento principal dos cristãos,


religião que tomou conta de todo o ocidente —, veja o desejo latejante em torno
de seu senhor: “Ó Deus, tu és o meu Deus, de madrugada te buscarei; a minha
alma tem sede de ti; a minha carne te deseja muito em uma terra seca e cansa-
da, onde não há água” (Salmos 63:1,1). E por que falar de Deus, este elemento
tão sublime de prazer irracional? Ora, porque é a primeira figura paterna, depois

4 Ver Humano, Demasiado Humano, de Nietzsche (2000)


5 Presente no Mito de Sísifo, de Camus (2018)

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

do próprio pai, que este homem inventa e tão fortemente anseia, não por querê-
-lo em si — não, o divino é uma maldição —, e sim por ele traduzir esta resposta
patética, esta fuga do olhar. “Porque, quando meu pai e minha mãe me desam-
pararem, o Senhor me recolherá.”6 A religião, portanto, é a representação dessa
alienação do espírito, dessa incapacidade de se governar e de encarar solitária e
lucidamente os desígnios da fortuna. Somente Deus pode guia-lo, “o caminho
de Deus é perfeito; a palavra do Senhor é provada; é um escudo para todos os
que nele confiam.”7 A religião marca a vida e o pensamento deste homem, se
tornando sua própria essência, letárgica e fantasiosa. É por isto que Marx diz
que “a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica” (MARX, p. 145,
2010), porque ela se converte no elemento fundante do homem quando este
homem, ao fundá-la, inverte a ordem da criação; e ainda, porque essa patologia
se espalha por todas as camadas e tripas e impregna o mundo humano com o
cheiro do animal domesticado. Pois que é o Estado se não um novo pai? Que é
o político se não o novo profeta?8
Ora, o espírito humano está à venda, para quem quiser incorrer na contradi-
ta tarefa de tê-lo para si. Não parece, contudo, grande prêmio a ser conquistado,
este homem que se dá tão facilmente, de rosto tão inseguro, que não aparenta
fazer nada além de rastejar. Que poderia se fazer com algo desse tipo? Qualquer
humano lúcido abdicaria dessa função e logo retornaria a atenção para si. Mas
não estamos diante da história da lucidez, a razão é um devaneio deveras recen-
te, a história do homem é a história da loucura, ou a história de como os loucos
perseguem a própria sombra. Vê, ali está, latejando, essa paixão incompreensí-
vel, essa pulsão divina inalcançável, lá está outra vez expondo o que é proibido
ver, o homem precisa conquistar o outro, e conquistar a natureza, precisa cami-
nhar nos passos de sua imitação — não esqueçamos da peça e dos altares, não
esqueçamos das flores e das missas —, precisa viver a fingir, necessita, trêmulo,
incauto, fazer da história a sua única arte. Tela pintada de sangue e de carne e
de ossos e de gordura; a marca do pincel é uma violação, toda a história é uma
violação, a fortuna é violentada, a cornucópia desesperadamente arrancada dos

6 Na Bíblia, Salmos 27:10


7 Na Bíblia, Salmos 18:30.
8 Esta crítica obviamente necessita de maior digressão, coisa que não cabe em um único parágrafo.
Contudo, não constitui o objeto central deste escrito. A fim de amparar o leitor neste tema,
recomendamos os pensamentos de Marx e Nietzsche.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

braços da “deusa”. Este outro delírio constitui o encerramento da fábula psicoló-


gica do humano9. A loucura humana então se traduz como Euphrosina, Thalia
e Aglaia, as deusas gregas da felicidade, que significam respectivamente a ale-
gria, o desabrochar e o esplendor.10 O delírio de Euphrosina é a alegria apática,
o orgasmo duvidoso, o acompanhar silencioso e pavoroso da melodia da ópera.
Thalia é o desabrochar sinuoso, é a suspeita que emerge de quando em quando
no olhar, é a aurora da destruição, “um clarão de desprezo”, um incômodo que
irrompe no acender de um vulcão. E Aglaia é o esplendor, o eterno caminhar
em direção a Deus, é a encenação, a arte, a poesia sangrenta, a ambição sem
razão, a conquista do extrínseco.
É precisamente nestes termos que fenômenos gritantemente absurdos, como
o nazismo de Hitler, ou o fascismo de Mussolini, ou mesmo a dominação de mil
anos da Igreja Católica, emergem no decurso histórico. São nestes contornos
fantasiosos que o rei tem poder de cura, que o judeu pode ser exterminado
como rato, que a cópula antes do casamento pode condenar os amantes a uma
eternidade de dores e queimações, que um homem ressuscitou depois da morte,
que o burguês é democrático, etc. etc. Mas como é possível tomar para si um
amontoado de homens que já anseiam serem tomados? Podes pensar que é tare-
fa simples, que basta que se tenha o desejo. Contudo, caro leitor, o pai ansiado
não pode ser qualquer um; é preciso que se pareça com um pai, que possua em si
certas qualidades a que se atribui àquilo além do homem, que tenha uma parte
admirável, outra incompreensível, que diga a palavra correta, não a verdadeira,
que traga qualquer alívio aos corações, mesmo que faixas de ilusão e adornos
infantis. Como diz Weber: “Deve fazer milagres, se pretende ser um profeta, e
realizar atos heroicos, se pretende ser um líder guerreiro. Mas sobretudo deve
‘provar’ sua missão divina no bem-estar daqueles que a ele devotamente se en-
tregam.” (WEBER, p 326, 2004).
Finalmente, após compreendermos a história do espírito humano, chegamos
a Hitler.
Le pain et le vin.

9 Não desconsidera-se as outras — e indefiníveis em número — loucuras que permeiam a experiência


humana, mas para este escrito, estas três são as que importam.
10 Estão descritas na Teogonia, de Hesíodo (1991).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Enquanto estavam comendo, jesus pegou o pão e deu graças a Deus.


Depois partiu o pão e deu aos discípulos, dizendo: - Peguem; isto é o
meu pão. Em seguida, pegou o cálice de vinho e agradeceu a Deus.
Depois passou o cálice aos discípulos, e todos beberam do vinho.
Enquanto jesus disse: - Isto é o meu sangue, que é derramado em
favor de muitos, o sangue que garante a aliança feita por Deus com
seu povo (MARCOS, 22:25).

Continuemos o discorrer de palavras inúteis.

Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro,


que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Raiael e Gabriel,
não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios.
Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles
outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente
trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso
do conservatório (ASSIS, p. 8, 1984).

Essas duas passagens encontradas em duas grandes obras humanas trazem


parte da questão que abordamos em nossas mortas palavras. Satanás, músico, na
visão do companheiro de Chianti de Casmurro, é expulso do céu por não aceitar
a maneira como eram dispostos os prêmios dos músicos no Reino de Deus. Em
palavras mais vulgares podemos dizer que Lucífer, ange de lumière, foi expulso do
céu ao não comer do pão e beber do vinho apresentados por Jesus em sua Santa
Ceia, bem expressa na grande tela de Da Vinci. A grande ópera do então criado
anjo de Luz de Deus, foi renegada aos ouvidos do Pai por sua desobediência, por
sua busca em construir dentro do palco a sua própria partitura, por comer do seu
próprio pão. Talvez, só talvez, seja este o medo da humanidade de comer do fruto
proibido, do fruto do conhecimento, do "pão que o diabo amassou".
Como já falamos nos parágrafos anteriores, o indivíduo humano parece que
não consegue conceber-se livre, não conhece a si mesmo e suas potencialidades e
é sempre refém de sua necessidade de estar sob grilhões. Essas amarras, como bem
expostas por Foucault em Microfísica do Poder, não estão apenas concentradas
em um único vértice verticalizado, mas se estendem por todo o polígono onde
se encontram as relações entre os seres. Todavia, é mister esclarecermos como
a ideia de centralização do poder em um único ponto é bem utilizada por Adolf
Hitler; ele o faz com o objetivo de facilitar e solidificar seu controle sobre a sua raça

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

purificada. Assim, aquele chamado durante 12 anos de Führer, mesmo sabendo


das várias extensões do poder induz seus seguidores ao desejo do racionalismo
racista, monta um povo inimigo, os judeus, uma doutrina e um partido, a social
democracia. Compreendamos, nossos absurdos leitores, o quanto é valioso reduzir
os focos de poder e manusear a humanidade como um bando de cordeiros que
lutam por um objetivo comum. Lutam por sua tão falada liberdade, mas não
por uma autonomia de pensamento, de ação, mas por uma liberdade imposta
e vislumbrada por um ser que os encaminhem na batalha incompreendida,
alienada dos homens em prol de nada menos do que permanecerem em prisões
com arquétipo de conquista. Afinal, quem não saboreia a conquista de tão onírica
liberdade? Quantos homens e mulheres não já bradaram graças pela conquista
de mais um governo, de mais um representante do povo, de mais um grande pai?
Essa auxina que se espalha cada vez mais na podridão humana, essa pato-
logia que parece necessária ao nosso corpo e espírito. Deus, Zeus, Razão, deu-
ses e mais deuses, seres que nos representam. Algo ou alguém que justifique
nossas próprias incapacidades, como diz Nietzsche sobre Deus. Nossa inten-
ção, seres tomados pelo espírito de porco, nunca foi trazer mais um conceito
aprisionador do que é a tal liberdade, nosso único e sem porquê desenvolver
de descartáveis páginas é simplesmente apresentar como não sabemos de nós,
não sabemos da tal deusa buscada por nós, como não a temos e nunca a tive-
mos porque estamos cobertos pelo medo dos demais anjos que se encontra-
vam no céu ao lado de Deus. Não temos o ímpeto de Satanás, estamos sempre
parasitando o corpo e o sangue de outro ser, de outro espírito. Nietzsche, em
Genealogia da Moral traz a seguinte questão

Nós, que somos homens do conhecimento, não conhecemos a nós


próprios; somos de nós mesmos desconhecidos e não sem ter motivo.
Nunca nós nos procuramos: como poderia, então que nos encontrássemos
algum dia? Com razão alguém disse: "onde estiver o teu tesouro, aí
estará também o teu coração”. (...) Necessariamente permanecemos
estranhos a nós mesmos, não nos entendemos, temos que nos confundir
com outros, e, em nós servirá sempre a frase que disse "cada um é para
si mesmo o mais distante" continuamos a nos considerar "homens do
conhecimento" (NIETZSCHE, 2009, p. 4).

Nos deleitemos sobre as palavras do filósofo da suspeita. Precisaríamos, mais


que de quaisquer deformadas papilas gustativas diante do sabor da liberdade,

310
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

do desejo arriscado de suspeitar. Suspeitar do que conhecemos, suspeitar do


que lemos, suspeitar de nossa liberdade. A epistemologia sempre nos assusta,
sempre nos distancia, estamos sempre atrás da pedra, nunca nos desafiamos
como Sísifo a enganar a morte. Não! Permanecemos no desconhecido, nos
braços do pai, somos constantemente engolidos por Kronos ou estamos
ainda mais estagnados no tártaro que se encontra no centro de Gaia. Ser
útil e dócil, como cães nas mãos de seus donos, isto é, ser o escravo, ter suas
potencialidades reduzidas, medianas.
Pois bem, todo esse nosso prazer de ectoparasitas é bem manejado por
nossos corpos hospedeiros. Hitler via os seus inimigos como tal, dissecava
para a sua raça sua necessidade intrínseca de ser conduzida. No parágrafo
adiante vemos seu fiel desejo de ser esse líder, esse pai que salva a nação
de si mesma.

Assim como as mulheres, cuja receptividade mental é determinada


menos por motivos de ordem abstrata do que por uma indefinível
necessidade sentimental de uma força que as complete e, que,
por isso preferem curvar-se aos fortes a dominar os fracos, assim
também as massas gostam mais dos que mandam do que dos que
pedem e sentem-se mais satisfeitas com uma doutrina que não tolera
nenhuma outra do que com a tolerante largueza do liberalismo. Elas
não sabem o que fazer da liberdade e, por isso, facilmente sentem-se
abandonadas. (HITLER, 1983, p. 27)

Hitler, assim como cristo na cruz, percebia a tendência de seus filhos


ao engano, ao domínio de suas vontades pecaminosas e a necessidade que
detinham de um a força que os conduzissem. Então, assim como o nazareno,
grita em suas páginas " Pai, perdoa-nos, eles não sabem o que fazem!". Que
tamanha misericórdia desses Deuses, a benevolência faz parte da composição
molecular de qualquer ser divino. Contudo, Deus tanto perdoa quanto pune.
Suas mãos estão cheias de amor e sangue, são como o pai de Kambili servindo seu
chá, no livro de Chimamanda, Hibisco Roxo. Veem, nossos " semialforriados "
sapientíssimos, o quão desconhecidos somos aos nossos espíritos? Veem como
Adolf Hitler, em seu tempo, em meio as crises de um Estado, dominado pelo
seu ódio a distintos povos, destinado, como um Deus, a seguir o caminho até
o monte das Oliveiras e salvar seu povo, tomou para si o papel que sempre
recusamos. Não sabemos, se como disse Hobbes, construímos a figura do

311
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Leviatã por medo das capacidades dos demais que compõem o corpo social
ou se o fazemos pelo medo de nossas próprias potências, por nosso medo de
nos conhecermos, de sermos livres.
William Blake, poeta inglês do século XVIII, traz em seu escrito O casamen-
to do céu e do Inferno a seguinte assertiva:

É chegado o domínio de Edom & o retorno de Adão ao Paraíso. Ver Isaías


capítulos XXXIV e XXXV. Sem Contrários não há evolução. Atração
e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência
Humana. Destes contrários nasce aquilo que o religioso denomina Bem
e Mal. O Bem é o passivo que obedece a razão. O Mal é o ativo que surge
da energia. Bem é céu. Mal é inferno. (BLAKE, 2017, p. 15).

Blake via o jogo dialético que existe no seio das relações humanas, percebia
que sem o conflito não existia revolução, compreendia a necessidade da Energia
e da Razão na construção do ser. Perceber que no humano encontra-se também
o escatológico, o kitsch, é compreender que o uso desse passivo disposto pela
Razão torna o homem imóvel e incapaz de uma revolução, de se livrar da pedra
que o derruba montanha abaixo. Observar apenas um ângulo do ser não o liber-
ta, opostamente, o prende, o coloca na posição daquele que conhece em parte e,
meus transeuntes desconhecidos, ser meio desconhecido é ser ainda menos livre
do que ser totalmente desconhecido. Saber parcialmente da sua prisão e não sa-
ber nada dela são posições diferentes, contudo, estar na posição de parcialmente
aponta ainda mais a tamanha covardia e preferência pelo subsolo. Mostra, mais
do que nunca, a sua negação à Zaratustra.
Colocar a consciência dominada pelo passivo do Bem sobre a consciência
ativa, enérgica, é, mais uma vez, recair na moral do escravo tão rebatida por
Nietzsche em Genealogia da Moral. Bom e Ruim, Bem e Mal, Mau e Bom, ter-
mos que separam os seres humanos em categorias de deuses e demônios, dos sal-
vos e dos não salvos, daqueles que são guiados por Deus e dos que se perderam
em meio a lama de seus pecados, de seus espíritos sujos e sujeitos à liberdade
mundana. Ser livre ou não ser livre? eis a questão!
São cento e seis usos do termo “marxismo” no Mein Kampf, no decorrer
de trezentas e sessenta e quatro páginas. Numa delas, o impetuoso Führer
alemão assim nos diz:

312
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

(...) um povo de raça pura, consciente de seu sangue, nunca poderá ser
subjugado pelo judeu. Este só poderá ser dominador de bastardos. É
assim que, sistematicamente, ele tenta fazer baixar o nível racial por um
ininterrupto envenenamento dos indivíduos. Em matéria política, começa
ele a substituir o ideal democrático pelo da Ditadura do Proletariado. Na
multidão organizada do marxismo é que ele foi encontrar a arma que a
Democracia não lhe dá e que lhe permite a subjugação e o governo dos
povos pela força bruta, ditatorialmente. Seu programa visa à revolução
em um duplo sentido: econômico e político. (...) No terreno político,
recusam eles ao Estado os meios para sua subsistência, destroem as bases
de toda e qualquer defesa nacional, aniquilam a crença em uma chefia,
desprezam a história e o passado, e enlameiam tudo que é expoente de
grandeza real. (HITLER, 1983, p. 178).

Como Euphrosina, a ridícula necessidade humana de negar à fortuna ataca


— e deve atacar, para que se mantenha, afinal estamos a discutir uma luta — a
suspeita, de modo a tentar aniquila-la, e para isto utiliza de todo o seu ódio, de
toda a sua volúpia, todo o seu tesão, todo o seu resto de vontade escorregadia.
Acompanha-se aqui, materializado enquanto embate político, a disputa de lou-
curas, entre Euphrosina e Thalia, alegria duvidosa e suspeita dilacerante, entre a
observância ao destino do povo “conquistador” e a crítica que joga para o caos.
Mas não é do caos que as estrelas cintilantes se formam? E que tem um Führer
a ver com estrelas cintilantes! O espírito mesquinho, rastejante ainda anseia
por seu pai; “aniquilar chefias”? Que pensas que estais a fazer, que ordem de
loucura queres implantar? A loucura da responsabilidade pelo próprio destino,
de governar a si mesmo, ou em termos mais sinceros, a loucura de cometer um
parricídio. O primeiro parricídio fora trazido por Nietzsche; é a morte de Deus.1
O segundo fora anunciado por Foucault, é a morte do homem.
Em Marx, o ser humano é colocado à frente da história, como seu agente
construtor. É posto na fatídica condição de responsável, é retirado dos campos
floridos, das ideias ingênuas. Retire este homem miserável de seus devaneios
e ele prontamente gritará em desespero, resistirá, lutará contra tudo o que
quiser libertá-lo, a seu tosco modo, sem forças, com a pele empalidecida, com
a boca ressecada; ele precisa permanecer assim, dócil e reprimido, apenas a
admirar, jamais a fazer, relegando a crítica ao campo de outros devaneios,

11 Ver Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche (2016).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

os devaneios de ordem perigosa. E são perigosos justamente porque podem


destruí-lo. Nas palavras de Marx:

A crítica da religião desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure
a sua realidade como um homem desenganado, que chegou à razão, a fim de
que ele gire em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. A religião
é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não gira em
torno de si mesmo. (MARX, 2010, p. 146).

A primeira libertação humana reside na superação do pensamento religio-


so, pois ele constitui-se como a primeira forma de alienação do espírito. E da
alienação do homem a Deus, perfaz-se a alienação do homem pelo homem, de
modo que o Estado é a instituição da religião no campo político; o citoyen é
o novo devoto, o Estado o novo pai, o burguês o novo vidente. Se o Estado é
burguês, então o burguês deve ser superado. Se ainda restarem tronos e altares,
estes devem ser destruídos. É esta, audacioso leitor, a loucura advinda da crítica.
Não se trata da supressão da liberdade, mas, pelo contrário, de sua imposição.
É a isto que Hitler ataca, à deformação da ópera, à destruição da batuta, à li-
berdade dos instrumentos. Ele, assim como seus seguidores, precisa continuar
a ouvir o cavalgar incerto e duvidoso, precisa persistir na sua imitação, na sua
divina comédia — ó, o título de Dante nunca foi tão certeiro —, dentro da sua
peça, único lugar que consegue se conceber.
Vê-se muito claramente, pois, quão distintos estão estes dois pintores, cada a
seu modo, da história. Suas loucuras são antagônicas, se rebatem, dentro e fora
do espírito humano. Marx, um suspeito, Hitler, um pequeno imperador. Marx,
um iconoclasta, Hitler um conquistador de fracos. Marx, um parricida, Hitler
um candidato ao cargo paterno. Estão em lados contrários da história, de modo
que o sangue de um é o triunfo do outro.

Referências bibliográficas

ASSIS DE, Machado. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BLAKE, William. Casamento do Céu e do Inferno. Porto Alegre: L&PM, 2017.

314
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

BÍBLIA. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edição Graal, 2007.

HESÍODO. Teogonia. A Origem dos Deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991.

HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo: Moraes, 1983.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, Karl. Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das


Letras, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo:


Companhia das Letras, 2000.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2016.

PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Ridendo Castigat Mores, 2002.

315
O exercício laboral como fator
imprescindível para o fornecimento
da dignidade da pessoa humana

Ingrid Teixeira Aguiar1


Júlia Maia de Meneses Coutinho2

1. Introdução
O significado de trabalho, na sociedade contemporânea, refere-se à integra-
ção de atividades que se interligam, ou seja, a variedade de comportamentos
com fins laborais existentes no mundo denota um conjunto de esforços huma-
nos em que um indivíduo, mesmo que exerça de forma autônoma, desempenha
laços mútuos com outras pessoas para a realização de trocas de compra e venda,
afinal, o capital é o resultado almejado que conecta os homens para o funciona-
mento de atividades econômicas em todas as escalas.
É fato que nem sempre o conceito foi claro e, portanto, compreendido pelas
pessoas de determinadas épocas, como os gregos, os quais “[...] não percebiam
as atividades produtivas ligadas umas às outras, ou seja, não havia noção de
trabalho como a entendemos hoje, em que todas as atividades produtivas estão
integradas [...]” (SILVA; SILVA, 2009, p. 401).
Todavia, as atividades laborais existem desde a Pré-história e sua “[...] cultu-
ra da caça e da pesca para a cultura agrária baseada na criação de animais e no

1 Graduanda em Direito pela Universidade de Fortaleza. Participante do Grupo de Pesquisa A


Influência da Filosofia Política nos Movimentos Sociais em Rede, sob orientação da Prof. Ms. Júlia Maia
de Meneses Coutinho, durante o semestre de 2018.2. E-mail: [email protected].
2 Professora da Universidade de Fortaleza. Coordenadora do Grupo de Pesquisa A Influência da Filosofia
Política nos Movimentos Sociais em Rede. Coordenadora do Evento Colóquio de Antropologia Jurídica e da
obra Colóquio Jurídico Interdisciplinar, já em seu terceiro volume. E-mail: [email protected].

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

plantio” (ALBORNOZ, 2014, p. 11). Adiante, com o período de revoluções, o


trabalho artesanal foi substituído por máquinas industriais, contemporâneas da
Revolução Industrial. Esta, por consequência, de importante relevância para a
compreensão dos acontecimentos impactantes que surgiam. De fato, isso

Significa que a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na


história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo
das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da
multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens,
mercadorias e serviços. Este fato é hoje tecnicamente conhecido pelos
economistas como a “partida para o crescimento autossustentável”
(HOBSBAWM, 2015, p. 37).

Em decorrência disso, pode-se citar o Fordismo, cujo modelo aplicado nessa


época definiu a relação entre trabalhador e os meios produtivos em massa, os
quais caracterizavam a produção automatizada em larga escala. Além disso,
ressalva-se o caráter repetitivo das atividades realizadas com jornadas de traba-
lho exaustivas, excedentes e em condições precárias de produção, o que resul-
tava em remuneração desproporcional aos esforços físicos dedicados por via dos
trabalhadores industriais.
Com efeito, é fato relacionar que “o homem de negócios estava sem dúvida
engajado no processo de conseguir mais dinheiro, pois a maior parte do século
XVIII foi para grande parte da Europa um período de prosperidade e de cômoda
expansão econômica [...]” (HOBSBAWM, 2015, p. 40), afinal “a economia, por
assim dizer, voava” (HOBSBAWM, 2015, p. 37).
Sob este prisma, o presente artigo tem por finalidade averiguar o exercício
laboral como fator que dignifica o homem versus a relação de exploração que
pode existir entre patrão e empregado; e o dilema no qual o indivíduo se vê
perante a sociedade. Nesse contexto, para melhor esclarecer as problemáticas
existentes, far-se-ão observações pertinentes em duas análises fílmicas com o
fito de relacionar aos filósofos Marx e Weber.
Nessa via, os ensinamentos de Nietzsche, Strauss e Giddens gravitam em
torno da transdisciplinaridade dos aspectos antropológicos e sócio-filosóficos
para desvendar o sentido da atividade laboral na vida do homem, o embate en-
tre a interação do EU e do ME e da junção do EU com o NÓS, cujas definições
serão melhor analisadas no decorrer do artigo.

318
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Dessa forma, a metodologia distende-se pelo estudo descritivo, de natureza


teórica e abordagem qualitativa por meio de fontes bibliográficas, como livros,
periódicos e documentos jurídicos, além de auxílios fílmicos, os quais facilitam
o esclarecimento de problemáticas identificadas pelos pensadores apontados e
ainda existentes em pleno século XXI.

2. O exercício laboral sob a ótica de Marx


O cenário da Alemanha do século XIX definia-se pelo intenso processo de
consolidação capitalista advinda da Revolução Industrial. Nessa perspectiva,
Marx3 (2010) questionava-se a respeito da posição tomada pelo Estado em rela-
ção a esse contexto.
Sob esse viés, interessou-se por leituras sobre Economia4 com o fito de
apropriar-se de algumas categorias, como o valor, o trabalho, o lucro e o sa-
lário, para compreender a lógica desse sistema e construir sua tese, da qual
originou a obra O Capital5.
Tal produção contradiz a teoria valor-trabalho, argumentada por Adam Smith e
David Ricardo. Sendo assim, o salário é calculado com base na teoria da mais-valia
e da busca pelo lucro por meio da exploração do homem pelo homem.
Durante a produção intelectual, o grande objeto de estudo de Marx voltava-se
para a sociedade burguesa em sua totalidade, analisada a partir de suas contradi-
ções advindas do sistema capitalista.

3 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.
4 A Economia Política Clássica era uma disciplina recém-criada na Inglaterra do século XIX. Adam
Smith e David Ricardo eram os responsáveis por empenharem-se em compreender as categorias
que serviam de consolidação para o Capitalismo, como entender o fundamento do trabalho, definir
o valor de um salário e quanto o trabalhador deve ganhar pela sua atividade laboral. Dessa forma,
Marx apropria-se de algumas categorias – valor, trabalho, lucro e salário – e suas lógicas com o fito
de construir sua grande tese, na qual desenvolve uma de suas maiores obras: O Capital. Para os
economistas Smith e Ricardo, o salário deveria ser calculado a partir da quantidade de horas de
trabalho. Em contrapartida, Marx afirmava que, se assim fosse, não haveria pessoas em condições de
extrema vulnerabilidade.
5 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro 1: o processo de produção do capital.
Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=JSv2AAAAQBAJ&pg=PT790&dq=o+ca
pital+livro+1&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwi4zqexg6zfAhXDiJAKHaZQC3oQ6AEIPTAE#
v=snippet&q=tradu%C3%A7%C3%A3o&f=false>. Acesso em: 19 dez. 2018.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Não obstante ter se apoderado das leituras de Hegel a respeito do homem


abstrato e subjetivo, a filosofia marxista desconstrói essa ideia por acreditar que
só é possível interpretar a realidade, pela qual a sociedade se encontra, se estu-
dar o homem em sua existência concreta, ou seja, a partir de sua prática diária.
A filosofia feita práxis transmitida pelo indivíduo é dinâmica e acompanha o
real sentido de sua inserção no meio. É nessa perspectiva que ele afirma que “os
filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa
é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007, p. 535).
Nesse contexto, sob o olhar voltado para a estrutura social, Marx formula
suas teorias com o fito de contribuir para a consciência de classe, afinal o
intuito era despertar no operário o conhecimento de sua posição perante o
cenário exploratório, conforme é possível confirmar nos escritos da obra O
Capital (2015) sobre

[...] a mera consciência de que o sistema capitalista produz tanto grande


riqueza como a mais triste miséria não cria por si só movimentos
revolucionários. Daí a importância da crise do próprio capital, a disfunção
e disjunção do sistema para gerar condições políticas capazes de afetar
o funcionamento da produção capitalista. É sintomático que os teóricos
da revolução sempre tenham sublinhado a necessidade de lideranças que
proviessem de fora da classe operária (MARX, 2015, online).

Dentre as contradições geradas pelo capitalismo, destaca-se a impossibilida-


de do indivíduo reconhecer sua autonomia enquanto ser humano parte de um
sistema, onde um precisa do outro para o funcionamento das atividades que se
interligam entre si. Nesse universo, o homem em posição hierárquica acima do
proletário, visa o lucro em massa e, para isso, explora os operários.
Seguindo esse raciocínio, o exercício laboral não concede realização profis-
sional, pois não há sensação de completude. A discordância existente é persis-
tente pelo fato de o trabalhador virar um mero instrumento de ganhar dinheiro
em busca pela sobrevivência, enquanto, por outro lado, verifica-se que é por
meio do trabalho que o homem se completa, se dignifica e, portanto, encontra
espaço de modificar sua função e a sociedade em que faz parte.
É incoerente, então, o modelo capitalista impedir a realização do
trabalhador por meio de seu exercício laboral. Dessa forma, os ensinamentos
de Marx são de grande valia para compreender o atual cenário do século
XXI no que diz respeito à criação de políticas públicas, por exemplo, cuja

320
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

ferramenta estatal visa solucionar os problemas dos cidadãos. Algumas


dessas ações denotam contrariedade e é nesse contexto que Marx parte
para analisar a conduta do Estado, afinal, seu compromisso voltava-se para
mudanças na vida do proletariado.
Desse modo, um exemplo de dever do Estado é o oferecimento de cursos de
capacitação. A priori, esse tipo de conduta aparenta ser coerente por induzir o
pensamento das pessoas de que, por meio desses cargos, haverá a promoção da
dignidade da pessoa humana a partir das atividades laborais, entretanto, essas
ocupações não oportunizam seus aprendizes à ascensão no ofício, pois fazem
parte de um sistema inconsciente de exploração do trabalho.
Com efeito, a função que exercem no âmbito laboral é apenas de servir de
instrumento, no qual realizam funções como se vivessem no automático, para
oportunizar um superior hierárquico que visa o lucro em massa. Esse cenário
denota a exploração do homem pelo homem, no qual o empregado é um mero
instrumento de busca pela sobrevivência e, com isso, sua realização pessoal é
interrompida. Portanto, esse tipo de ação ilusiona os indivíduos quanto à pro-
porção da dignidade humana.

2.1. Análise fílmica do filme brasileiro “Que horas ela volta?”


Conforme os ensinos de Marx, a classe social a qual o indivíduo pertence
define sua relevância perante a sociedade. Nesse contexto, o enredo do filme
brasileiro Que horas ela volta? (MUYLAERT, 2015) comprova que o indivíduo
é forjado pela sua classe social.
A narração disserta a história de uma empregada doméstica, do interior de
Pernambuco, que escolheu procurar melhores condições de vida em São Paulo,
deixando sua filha aos cuidados da avó. Lá, Val, interpretada por Regina Casé,
cuida do filho do casal e de uma grande casa, onde também mora no quarto dos
fundos por mais de dez anos.
No desenrolar do filme, paulatinamente as diferenças sociais tornam-se visí-
veis. Apesar da família gostar dos serviços da empregada, divergências, aparen-
temente sutis, são explicitadas quando, por exemplo, Val dá um presente para
a dona da casa e esta age com indiferença. Em outra situação, a empregada se
coloca em uma posição abaixo, enquanto pessoa, ao da família quando diz que
“reconhece o seu lugar” em não poder fazer refeições na sala de jantar, apenas
na mesa da cozinha.

321
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Dessa forma, observa-se um cenário classicista repleto de contradições,


as quais são possíveis apontar a desigualdade social, a submissão e a alie-
nação que desencadeiam em conflitos entre partes até o ápice da situação,
quando a empregada passa a refletir sobre seu verdadeiro significado para
a família e reconhece o seu valor como ser humano. A partir disso, ela
demite-se e inicia um negócio próprio.
A reflexão desse contexto, nos termos de Marx revela que “[...] a partir do
momento em que a propriedade individual não possa mais se converter em
propriedade burguesa, declarais que o indivíduo está suprimido” (MARX; EN-
GELS, 2005, p.54).
Para Marx, a ruptura é a força motriz que habilita o trabalhador a enfrentar
a realidade desigual, opressiva e antidemocrática na qual é explorado e é posi-
cionado como um mero instrumento em busca de sustento. Somente a práxis
da classe trabalhadora de fazer revolução a procura de seus direitos pode fa-
zer transformações. Com efeito, cita-se Marx ao dizer que “[...] tudo o que era
sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os
homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as
suas relações com os outros homens”. (MARX; ENGELS, 2005, p. 43).
No que diz respeito à representação da empregada brasileira no filme, anali-
sa-se que se trata da realidade de inúmeros trabalhadores, os quais extrapolam
as 44 horas semanais estabelecidas na Constituição Federal (BRASIL, 2018,
online). É possível relacionar tal situação com a personagem retratada, cujo local
de trabalho também era sua moradia e, além disso, submetia-se aos mandos da
família no momento em que precisassem, desconsiderando o artigo 7º, inciso
XIII da Constituição Federal.
Ressalva-se, ainda, a importância da atividade trabalhista para o indivíduo
com fundamento no artigo 1º, inciso III, no qual a dignidade da pessoa humana
constitui o Estado Democrático de Direito do País. Entretanto, tal garantia é
falha por ainda existir casos como a que a personagem Val representa.

3. O dilema do homem perante a sociedade com fito em Weber


Com o surgimento do capitalismo, entre o fim do século XVIII e início do
século XIX, e sua expansão pelo território alemão, o lucro gerado em massa
transformava o antigo cenário artesanal para dar espaço às pesadas maquinarias

322
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

industriais. As mudanças geradas implicaram na relação entre indivíduo-


sociedade e na posição tomada pelo Estado em relação a isso.
Sob essa ótica, Weber atenta-se às questões trazidas pelo sistema capitalista
ao indivíduo. Não descarta que isso trouxe feitos positivos à sociedade, entre-
tanto, estabeleceu dilemas às pessoas. Interessa-se, ainda, em entender o que
mantém a sociedade em funcionamento, visto que é preciso haver permanência
e, para isto acontecer, é necessário ter regularidade, a qual permanecerá por
meio da dominação.
Nessa perspectiva, o homem encontrava-se em um dilema entre exercer li-
berdade plena e render-se às regras, pois a hierarquia das instituições impunha
ordens. Diante disso, o indivíduo passava a fazer escolhas pautadas em racio-
nalidade, discriminando sua subjetividade, pois este fator não era elemento de
composição do capitalismo.
Com a racionalização advinda da secularização6, o homem desencanta-se
com o mundo e, com isso, encontra-se aprisionado. Nesse contexto, Weber par-
te das motivações pessoais para desvendar o fenômeno social.
É fato que a sociedade impõe pressão sobre os homens, contudo, cada indiví-
duo é ser dotado de subjetividade e não se encontra preso à estrutura social, ou
seja, é capaz de fazer suas próprias escolhas. Esse ser se movimenta na sociedade
por certo tipo de ação, e, conforme o que se observa nos escritos de Quintanei-
ro, Barbosa e Oliveira (2011, p. 115) que

[...] durante o desenvolvimento da ação, podem ocorrer


condicionamentos irracionais, obstáculos, emoções, equívocos,
incoerências etc., Weber constrói quatro tipos puros, ou ideais, de
ação: a ação racional com relação a fins, a ação racional com relação a
valores, a ação tradicional e a ação afetiva.

As pessoas não são meros produtos resultantes da força da sociedade, mas


sim indivíduos capazes de interpretar suas realidades sociais, de atribuir sentido
subjetivo aos acontecimentos no meio social e de realizar ações independentes.

6 Para Weber, a secularização é a responsável pelo desencantamento do mundo, ou seja, o indivíduo


perde as esperanças por ter sua subjetividade afastada para posicionar a racionalidade e a obediência
às regras das instituições.

323
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Com efeito, a sociedade, para Weber, retrata um feixe de relações, pois o


homem recebe ações vindas da sociedade e, a partir de sua subjetividade, in-
terpreta-a, elabora-a e move-a de volta, assim como ocorre na ordem inversa.

3.1. Análise fílmica do episódio “Todo mundo odeia Corleone”


No que corresponde a relação entre indivíduo e sociedade, é fato perceber
que a burocracia impõe pressão social sobre o sujeito, o qual implica em dilemas
e escolhas puramente racionais. Nesse contexto, os ensinos de Weber dialogam
com o enredo da série Todo mundo odeia o Chris (ORENSTEIN, 2006).
No episódio Todo mundo odeia Corleone7, o pai de Chris – Julius – troca seus
dois empregos para ser unicamente vendedor de peixe, recebendo salário maior ao
que ganhava anteriormente. O conflito surge quando o cheiro desagradável de peixe
impregna nele e resulta no afastamento de vizinhos e da própria família.
Sua esposa incomoda-se com o odor e com o fato da possibilidade de ser alvo
de comentários maldosos na vizinhança. Na perspectiva de reverter a situação, ela
manda Julius sair do novo emprego, mesmo que resulte em um salário mais baixo.
Desse modo, ele opta por voltar aos dois antigos empregos, com remuneração menor,
mas tendo sua família e amigos por perto novamente.
A partir disso, verifica-se que o pai do Chris fez uma escolha puramente racional,
a qual Weber classifica como ação racional com relação a fins. Entretanto, como
ser dotado de subjetividade que é, Julius, ao se ver em uma situação descon-
fortável, empreende uma ação vinda da sociedade de que seria mais feliz se
ganhasse um salário maior, elabora-a e devolve à sociedade, pois não é um mero
produto da dominação.
Além disso, a mãe do Chris também é sucumbida pela hierarquia das ins-
tituições ao comemorar o aumento de salário devido a troca de empregos do
marido. Contudo, após o conflito gerado, ela desenvolve dominação sobre a
situação e conduz seu esposo a sair do trabalho como peixeiro.
Escolhas individuais são constantemente arroladas pela racionalidade, na
qual implica na perda de esperança de exercer autonomia sobre as escolhas.
O papel que o Estado incide sobre a vida social implica na geração de dilemas,
mas as pessoas, não obstante, são capazes de atribuir significado às situações e

7 Episódio dezoito da primeira temporada (Todo mundo odeia Corleone, 2006).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

superar os conflitos advindos da burocratização, afinal, a sociedade é um feixe


de relações que implica na troca de ações movidas de ambas as partes.

4. Aspectos antropológicos e sócio-filosóficos


Os(as) trabalhadores(as) brasileiros(as) ilustrados(as) pela empregada domés-
tica do filme Que horas Ela volta e pelo pai de família da série Todo mundo odeia
o Chris saltam os olhos de qualquer cidadão pela identidade social que causam
na vida de inúmeras pessoas. Quem nunca precisou trabalhar mais do que a sua
jornada de trabalho ou ter dois e até três empregos para sobreviver e garantir
uma vida confortável para a sua família?
A tríade ideológica de Nietzsche (2016), que gravita a órbita dos elemen-
tos homem, Deus e moralidade ética traz à baila a observação pertinente no
sentido de que alguém inserido no contexto laboral capitalista deve seguir um
modelo de padronização para se manter satisfatoriamente dentro da sociedade
e, mesmo que não esteja disposto, o mecanismo que faz a engrenagem funcionar
deglute o cidadão, causando alienação.
Assim, o compartilhamento de sabedoria (NIETZSCHE, 2016) numa socie-
dade movida pelo capital não é suficiente para conter esse lastro de alienação,
haja vista que a sobrevivência é a força motriz de todo trabalhador. Portanto,
para além do bem e do mal, os indivíduos se sujeitam a participar do processo
laboral ainda que isto lhe custe a vida, as suas aspirações, os seus valores e a
convivência com os seus.
Para Nietzsche (2016), na obra Assim falou Zaratustra, o homem é algo a ser
superado, mas como superar a limitação de vida do mesmo a partir do capital?
Uma abordagem existencialista8 por si só não é atributo suficiente, já que a vida
na montanha praticada por longos 10 anos pelo Zaratustra, isolado e solitário,
não é a saída para quem depende do dinheiro para sobreviver.
Tal ideia limitadora deve ser superada a partir da transcendência do que
de fato é importante (BUCKINGHAM et al, 2011, p. 216). Nesse contexto, ao
parar para pensar na vida, a empregada doméstica, interpretada no filme pela

8 A existência se identifica com a liberdade e precede a essência, por isso somos lançados no mundo
sem referência a valores (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006). Nessa linha de orientação, verifica-se
quão difícil seria a missão de reverter a alienação do trabalhador, já que é um estado em que a pessoa
não mais se pertence e passa a ser considerada como coisa por perder seus direitos fundamentais.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Regina Casé, observa que as etapas de desenvolvimento que ela curtiu foi a da
vida do filho da sua patroa e não da sua própria filha. É possível refletir neste
momento acerca da seguinte indagação: até que ponto vale a pena? Isso um dia
será reconhecido pela sua patroa?
A superação humana de suas próprias crenças é uma característica da mo-
ralidade/ética apontada por Nietzsche (2016), mas a empregada doméstica en-
frenta inúmeros medos antes de promover uma reviravolta no filme contra a
alienação, exatamente como quando a multidão se reúne ao redor do acrobata
que está com a sua apresentação na corda bamba prestes a começar, pois o show
da vida de cada pessoa deve ser exemplo de superação sem esquecer que a hu-
manidade, a moralidade e Deus são elementos indissociáveis da ação humana,
já que a empregada reflete sobre os danos que a saída do emprego causaria na
vida daquela família coadunado com a sua moralidade e a sua religião.
Nesse momento é chegada a hora da “revaloração de todos os valores”, já que
“O mundo gira em torno dos inventores de valores novos; gira invisivelmente;
mas em torno do mundo giram o povo e a glória: assim anda o mundo”. (NIET-
ZSCHE, 2016, p. 41). Isso emana uma tentativa de questionar todas as maneiras
habituais de pensar sobre a ética e sobre os sentidos e objetivos da vida.
Chega o momento da empregada doméstica refletir sobre a sua própria alie-
nação e escravização, pois inúmeras coisas que pensamos ser boas se tratam
apenas de uma maneira de limitar ou afastar pessoas da vida. Um exemplo disso
é que podemos ficar em empregos tediosos, não porque precisamos, mas porque
julgamos nosso dever aturá-los, como foi o caso tanto da empregada doméstica
como do pai do Chris.
Para Nietzsche (2016) esse é o momento que eles aprendem que é possível
se ver de maneira diferente, é a hora de perceber que “o homem é uma cor-
da estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo”.
(NIETZSCHE, 2016, p. 47). E complementa dizendo que “[...] é uma perigosa
jornada, um perigoso olhar para trás, um perigoso temer e parar”. Nos termos
de Buckingham et al, (2011, p. 220), “o super-homem é alguém de enorme força
e independência, na mente e no corpo. Nietzsche negou que qualquer um tenha
existido, mas mencionou Napoleão, Shakespeare e Sócrates como modelos”.
Para as autoras deste ensaio, não se faz necessário ter a bravura de Napoleão,
a sensibilidade de Shakespeare e nem a inteligência maiêutica de Sócrates para
promover novos olhares sobre si mesmo e revalorar o que realmente importa.

326
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O Filósofo tinha fascínio na distinção entre aparência e essência (realidade).


Para Buckingham et al, (2011, p. 220),

Esse é um momento-chave para Nietzsche, porque quando apreendemos


o fato de que existe apenas um mundo, subitamente verificamos o erro
de transferir todos os valores para além desse mundo. Somos, então,
forçados a reconsiderar nossos valores, até mesmo o significado do que
é ser humano. E, quando olhamos através dessas ilusões filosóficas, a
antiga ideia de homem pode ser superada. O super-homem, na visão de
Nietzsche, é um modo de ser que fundamentalmente afirma a vida. É
alguém que pode se tornar portador de sentido não no mundo do além,
mas aqui: o super-homem é o sentido da terra.

Isso permite uma profunda reflexão no sentido de que o trabalhador brasi-


leiro é um eterno colecionador de aparências, pois demora para perceber que a
revaloração dos valores deve partir da sua essência.
Findadas as considerações nietzscheanas adentra-se na seara sociológica de Strauss,
um dos representantes mais importantes da terceira fase da Escola de Chicago9.
A primeira consideração a se fazer diz respeito ao interacionismo simbólico,
uma tentativa de estudar o indivíduo e a sociedade a partir da cooperação e do
conflito nas ações coletivas (LEME, 2018, online).
Tal precedente leva a percepção de que a junção da identidade individual
com a identidade coletiva é fundamental para o estudo da sociologia, mas como
garantir que o trabalhador alienado tenha o universo individual resguardado?
É neste tino que Strauss (1996) procurou desenvolver a identidade enquanto
conceito que visa aprofundar as discussões acerca das relações entre as pessoas
e a sociedade, ou seja, as esferas micro e macro.
Com tal abordagem, a interação estruturada passa a ser um processo face a
face e bastante versátil ao ponto de estabelecer as condutas dos indivíduos. Tra-
zendo para o plano prático, tanto a empregada quanto o pai do Chris sucumbem
o lado individual e se imiscuem na alienação para sobreviver economicamente,
o que não permite a interação estruturada.
Para Strauss (2016), representações como essas são decorrentes do proces-
so de interação do EU (máscara-EGO) com o ME (espelho-ALTEREGO), já

9 A Escola de Chicago, no tocante a Sociologia, tentou estudar com profundidade os centros urbanos,
combinando pesquisas teóricas e de campo.

327
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

que interferem diretamente na organização social, haja vista que o trabalhador


passa a viver num cenário de aparência em que ter um emprego é diretamente
proporcional ao contexto de subordinação, alienação e insubordinação aos di-
reitos fundamentais.
Nesta acepção, Strauss (2016) se preocupa em compreender a maneira como
as pessoas se organizam e como estrutura e ação estão, simultaneamente, pre-
sentes nas relações sociais. Um exemplo disso é quando a estrutura econômica
da empregada doméstica e do pai do Chris são capazes de modificar seus valores
sociais e elevar o grau de submissão advindo da condição de dominação.
A máscara, portanto, sofre interação com o espelho e ocasiona duas
perspectivas, a primeira é a do self (relação do EU com o ME) e a segunda
é a da atividade simultânea do EU com o ME, momento em que a identida-
de individual se relaciona com a coletividade. Observa-se que no caso dos
dominantes as duas perspectivas são possíveis, mas no caso dos dominados
(protagonistas fílmicos), apenas a segunda é possível em razão de que o que
o trabalhador aparenta não é o que de fato ele gostaria, pois o faz pensamen-
to em manter o emprego.
Por fim, chega-se ao raciocínio complementar de Anthony Giddens (2011),
que ao comentar Marx, preleciona que a alienação do trabalhador pode ocorrer
por meio da alienação tecnológica em que os meios de produção levam a espe-
cialização do trabalho e desencadeiam o medo dos trabalhadores de serem subs-
tituídos por máquinas e aplicativos e por essa razão acabam se sujeitando a to-
das as formas de trabalho; bem como da alienação de mercado, já que o mundo
do trabalho é organizado, estruturado e voltado para a extração da mais-valia.
Giddens (2011) busca superar o debate entre estrutura e ação ao dialogar
com o funcionalismo, pois tal corrente prega que cada instituição tem uma
função na sociedade e seu mau funcionamento gera o desregramento da mesma.
A funcionalidade gera prática, discursividade, reflexidade, consciência e moti-
vação, ou seja, tudo aquilo que a mais-valia é capaz de retirar do trabalhador.
Nesse contento, para Giddens (2011) a ação interfere nas estruturas, que são man-
tidas pelas rotinas, que se tratam da junção da consciência prática (SUPEREGO)
com a consciência discursiva (EGO) e fomentam as instituições sociais. Assim, o Su-
perego gera o movimento reflexivo necessário para a ação coletiva do EU + NÓS. Por
fim, verifica-se que a rotina de exploração do trabalhador é mantida até hoje pela ação
e interferência da mais-valia, que resulta na instituição de uma sociedade alienada.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Conclusão
O passar dos séculos não apaga os ensinos perpetuados dos grandes filósofos Marx
e Weber. É exequível observar seus pensamentos nos acontecimentos diários, confor-
me foi possível analisar nos dois recursos fílmicos. De fato, são verdadeiros clássicos
atemporais passíveis de serem compreendidos, independente do passar dos anos.
Mudanças significativas sob efeitos da Revolução Industrial reverberaram na
sociedade alemã. Com efeito, os estudos acerca do homem inserido no contexto
capitalista revelam adversidades encaradas pelo sujeito no que diz respeito à sua
posição enquanto trabalhador e à sua relação pessoal com a sociedade, na qual
está inserida sob a administração das instituições comandadas pelo Estado.
A transição dos séculos XIX-XX traz semelhanças para a atualidade. Con-
tinua tornando-se evidentes as relações de desigualdade entre classes e o poder
estatal sobre as pessoas.
Muitas atividades laborais permitem que o trabalhador brasileiro se iluda
com o fato de estar empregado. Para Nietzsche, o embate entre aparência e
essência gravita a órbita do real sentido de que estar empregado implica em pro-
porção de dignidade, mas, na verdade, o indivíduo tem dificuldade de externar
seu valor e sua essência perante a sociedade.
Seguindo esse raciocínio, o homem encontra-se em estado de sucumbên-
cia para o exercício pleno de sua liberdade devido às ordens burocráticas, as
quais tendem a impor o modo de organização da vida social. Nesse contexto,
os ensinos de Strauss complementam a visão weberiana ao fato dos persona-
gens analisados – empregada doméstica e pai do Chris – apresentarem relações
individuais do EU com o ME, ou seja, da máscara com o espelho, as quais in-
fluenciam na organização social e nas ações desenvolvidas entre o indivíduo e
a coletividade para aquilo que melhor o convém.
Dessa forma, analisa-se, ainda, as ações sobre as estruturas, ou seja, a reu-
nião da consciência prática – reflete ação em conjunto do EU com o NÓS –
com a consciência discursiva que potencializam as instituições sociais.
Por fim, as teorias formuladas por Marx e Weber, desenvolvidas com o fito
de responder as questões observadas por estes pensadores em suas devidas épo-
cas, servem de conscientização ao homem. O indivíduo, antes de tudo, é dotado
de subjetividade, é ser capaz de fazer escolhas e de posicionar-se perante a socie-
dade a partir de seus princípios ideológicos, afinal, todo ser humano é dotado

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de liberdade, a qual constitui uma sociedade mais justa, conforme o artigo 3º,
inciso 1º da Constituição Federal.
É fato que o trabalho é um fator imprescindível para conceder dignidade
ao indivíduo, entretanto, esta afirmativa torna-se inválida se o sujeito não
tomar consciência de autonomia, liberdade de escolhas, direitos e posicionar
sua relevância no meio social, assim como no meio laboral, pois, tomando
como ponto de partida o artigo 5º, caput, todos devem ter a oportunidade
de autonomia, independente de classe social, para almejar ascensão no meio
onde exercem atividades que devem servir para a promoção da dignidade
humana e não de ilusão e descrença.
Tal pensamento faz parte de um sistema capitalista que induz o trabalhador
a imposição de um padrão classicista a ser seguido, entretanto, o que cabe é o
não julgamento e o respeito ao próximo e seus anseios, bem como sua valoriza-
ção pessoal por ser membro de uma sociedade com ações mútuas entre a relação
indivíduo-sociedade em constante funcionamento.

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Caio Gullane, Debora Ivanov, Gabriel Lacerda. São Paulo: Gullane, África
Filmes, Globo Filmes, Pandora Filmes, 2015. 1 DVD (112min), son., color.

QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; OLIVEIRA,


Márcia Gardênia Monteiro. Um Toque de Clássicos: Marx, Durkheim, Weber.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

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Clássicos. São Paulo: Contexto, 2009.

331
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

STRAUSS, Anselm. Espelhos e máscaras: a busca de identidade. São Paulo:


edUSP, 1996.

TODO MUNDO odeia o Chris. Direção: Andrew Orenstein. Produção:


Adrienne Carter, Don Reo, Kali Londono. Estados Unidos: CR Enterprises,
Inc. 3 Arts Entertainment, Paramount Television, CBS Television, 2006. 1
DVD (7 hrs., 26 min), son., color.

332
Capítulo V
América Latina, Crises de
Hegemonia e Marxismo
A internacionalização da ciência e as
possibilidades na relação Sul-Sul
a partir do caso brasileiro

Cecília Tavares Guimarães1


Carla Luiza Cândido de Carvalho Freire2
Jéssica Lorena de Araújo Silva3
Joyce Pereira da Costa4
Pablo de Sousa Seixas5
Ana Ludmila Freire Costa6

Introdução
A internacionalização como forma de cooperação científica entre países tem
sido reconhecida como um indicador de qualidade dos programas de pós-gra-
duação (lócus da pesquisa científica brasileira), bem como uma possibilidade de
inserção do Brasil no cenário da ciência mundial (INDJAIAN, 2017). Levando
isso em consideração, o processo de internacionalização da ciência revela-se
um tema atual no contexto do ensino superior, mobilizando ações e programas
governamentais no Brasil, a exemplo do Ciência sem Fronteiras (CsF) e do Pro-
grama Institucional de Internacionalização (PrInt).

1 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


2 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
3 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
4 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN.
5 Professor(a) adjunto da UFRN, campus FACISA.
6 Professor(a) adjunto da UFRN, campus FACISA.

335
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Conforme mostra a literatura, o intercâmbio científico entre países pode


assumir facetas diversas, com implicações distintas para a ciência e os países en-
volvidos. Dentre os debates levantados a esse respeito discute-se, por exemplo,
as diferentes possibilidades e limitações que uma relação entre países de dis-
tintos desenvolvimentos econômicos e científicos apresentam. Nesse sentido,
uma relação entre países do Sul global com países do Norte apresentaria como
vantagens para os primeiros a possibilidade de alcançar conhecimentos e tecno-
logias que, de outro modo, são inacessíveis pela escassez de recursos, enquanto
que, para os últimos, esse tipo de cooperação permitiria o acesso recursos na-
turais não disponíveis em seu país, ou mesmo, a obtenção de mão-de-obra qua-
lificada e de baixo custo (Hubert e L’Hoste, 2008; Hutz, 2014; Morosini, 2011).
Evidentemente, as implicações desse processo dependem de outros fatores,
tais como dos objetivos desse intercâmbio – se orientados para atender ao mer-
cado ou a sociedade – ou em que condições os países envolvidos participam
desse processo. Nessa direção, alguns investigadores têm constatado a existên-
cia de uma relação verticalizada, na qual os países do Sul assumem uma posição
subordinada, a com os investigadores latino-americanos em projetos de pesqui-
sas internacionais (Hubert e L’Hoste, 2008; Kreimer, 2012).
Um outro caminho de internacionalização possível apresenta-se na relação
entre países de mesmo hemisfério, uma vez que possibilitaria uma troca de co-
nhecimentos mais condizentes com as realidades de cada país, dada a maior
similaridade que apresentam do ponto de vista histórico e social. Ademais, este
seria um terreno propício às relações de caráter horizontalizado, pautadas na
solidariedade e com objetivo central de desenvolvimento e fortalecimento de
capacidades locais e regionais. Este caminho tem sido defendido por alguns
autores, especialmente no que tange ao desenvolvimento da ciência latino-ame-
ricana (Lima e Maranhão, 2009; Morosini, 2011).
Considerando estes aspectos, indaga-se: como as políticas científicas
brasileiras tem contemplado os intercâmbios com países latino-americanos?
Diante disso, este estudo pretende fomentar a discussão sobre a política de
internacionalização da ciência brasileira tendo como foco o intercâmbio no
cenário latino-americano, assim como refletir sobre iniciativas de constru-
ção de redes de apoio que visam maior integração de conhecimentos locais.
Como objetivo secundário, pretende-se discutir qual a importância de haver
uma articulação entre os países da América Latina na internacionaliza-
ção científica. Para tanto, utiliza-se a teoria social marxiana e a tradição

336
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

marxista como perspectiva teórico-metodológica para análise da literatura


científica que aborda o tema em questão.
Para tanto, faz-se necessário antes, contextualizar o cenário atual da
internacionalização da ciência. Por isso, são imprescindíveis para a sua me-
lhor compreensão abordar a centralidade da produção de conhecimento
para a acumulação ampliada do Capital e a mercantilização da educação.
Em seguida, serão apresentadas as principais características da internacio-
nalização da ciência brasileira, uma vez que esse país se destaca na região
latino-americana no que tange a produção científica. Por fim, argumenta-
-se porque se deve defender a internacionalização entre países latino-ame-
ricanos, a partir de uma perspectiva solidária.

1. A centralidade da produção de conhecimento para


a acumulação ampliada do Capital
O conjunto de transformações econômicas que marcaram a passagem da
Idade Média para a Idade Moderna impactou não somente os aspectos políti-
cos, sociais e culturais, mas também o processo de produção de conhecimento.
Foi sobretudo a partir do século XVI que a possibilidade de aproveitamento
dos conhecimentos científicos para a solução de problemas práticos se fortale-
ceu: o que estava na base desta articulação, e a sustenta até hoje, era um fator
essencialmente econômico, resultante da necessidade de ampliar mercados, li-
dar com a escassez de matéria-prima e superar travas na produção devido às
limitações da força de trabalho (Bernal, 1973). O conhecimento científico, en-
tão, foi acionado para possibilitar grandes transformações nos meios e nas rela-
ções de produção, representadas principalmente (mas não exclusivamente) pela
construção de novas máquinas. Na segunda metade do século XVIII, a ciência
já tinha estabelecido um relacionamento sólido com a indústria, possibilitando
potencialidades produtivas da sociedade nunca antes imaginadas.
Se essa era a realidade ao longo do século XIX, foi no segundo pós-guerra
que a fusão entre ciência e capitalismo obteve ainda mais sucesso, sem prece-
dentes em outros tempos históricos (Mészáros, 2004). Neste período, a ciência
desempenhou um papel imprescindível na transformação de certas condições
visando a supremacia de um dos projetos de sociedade em disputa durante a
Guerra Fria. A estratégia que estava na raiz dessas transformações refere-se,

337
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

especialmente, ao afastamento das restrições de uma produção voltada ao uso


direto, ou seja, a ideia de que a ciência não precisava se voltar apenas para o que
era necessário de fato, mas também (e principalmente) para aquilo que pudesse
ser produzido em larga escala e comercializado.
Com isso, o conhecimento científico se tornou não apenas indiferente às ne-
cessidades humanas, mas ativamente oposto a muitas delas. Assim, ao invés de
uma ciência em defesa da vida, o que poderia ser alcançado, por exemplo, com
dedicação prioritária às pesquisas sobre vacinas, o que se assiste atualmente é
uma ciência que promove a destruição da humanidade, tendo em vista os altos
investimentos em pesquisa científica voltada para o desenvolvimento do com-
plexo bélico-militar. Hobsbawn (1995), em sua detalhada análise sobre o “breve
século XX”, chama a atenção para a distância entre as expectativas que foram
depositadas na ciência no início do século e as provas de sua incapacidade de
lidar com os problemas humanos observadas no final do período.
Essa articulação entre a produção de conhecimento e a sua funcionalidade
para a reprodução ampliada do Capital não é tema de estudo recente. Bernal
(1973) apenas analisou com detalhes as linhas fundamentais que já haviam sido
traçadas na segunda metade do século XIX por Marx (Marx, 1894/1984).
Ao analisar o desenvolvimento capitalista, ainda incipiente naqueles tem-
pos, Marx propôs a tese da queda tendencial do lucro derivado da alteração da
composição orgânica e técnica do Capital. Isto se daria com a crescente incor-
poração do trabalho morto (incluindo-se aí os resultados do desenvolvimento
científico e tecnológico) e a consequente liberação do trabalho vivo, o único
elemento da equação do Capital que produz valor. Esse processo tem se intensi-
ficado com o desenvolvimento capitalista de forma tendencial e, em momentos
de crise (sistêmica ou não), com a agudização da eliminação de postos de traba-
lho, processo amplamente discutido por Antunes (1999).
Adicionalmente à crescente incorporação dos resultados da ciência, as
transformações no processo decorrentes da adoção da flexibilização produ-
tiva e dos desenvolvimentos da microeletrônica, a informação passa a ser
considerada um elemento vital no mundo da economia. Isto tem gerado
diversas polêmicas a respeito da questão, como a proposição de uma revolu-
ção informacional por Lojkine (1995); a defesa da emergência do “trabalho
imaterial” conforme criticado por Lessa (2001); e a ideia de Chauí (1999),
de que as universidades estão se transformando de instituições em organi-
zações, teses de atualidade indiscutível.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

No Brasil, a produção de conhecimento e, em especial, a de patentes triá-


dicas, passa a ser uma prioridade do Estado, de maneira explícita, no governo
Dilma Rousseff. No próprio lançamento do carro-chefe da política científica do
governo Dilma, o programa Ciência sem Fronteiras (CsF)7, o então ministro
da Ciência, Tecnologia e Inovação enaltecia a posição alcançada pelo Brasil
no ranking da produção científica mundial (na 13a. posição), ao mesmo tempo
em que constatava a posição subalterna do país quanto ao ranking global de
inovação (na 47a. posição). Esses dados servem de fundamento para estabelecer
como um dos objetivos prioritários do programa o avanço na ciência, tecnolo-
gia, inovação e competitividade industrial (Mercadante, 2011).
É neste contexto que se faz mister discutir sobre o processo de mercantilização
da educação, dado que a produção de conhecimento no Brasil é virtualmente
sinônimo de instituição universitária. Não é sem razão que, na apresentação do
programa CsF, uma das estratégias para atingir os objetivos propostos é promover
uma maior internacionalização das universidades brasileiras, tema, aliás, já pre-
sente, de forma destacada, nos dois últimos Planos Nacionais de Pós-Graduação
(CAPES, 2004; 2010).

2. A mercantilização da educação e seus reflexos no Brasil


A mercantilização encontra-se no centro da dinâmica globalização-interna-
cionalização da educação. Tomando-se o caso brasileiro, as fusões de empresas,
com a formação de holdings no campo educacional ocupam lugar de desta-
que no mundo financeiro, como os emblemáticos casos do grupo Anhanguera
Educacional (SP), a Universidade Estácio de Sá (RJ) e a Kroton Educacional
(MG). As aquisições (de risco) dos fundos private equity e a abertura de capital
de empresas educacionais na bolsa de valores são manifestações evidentes des-
se processo de mercantilização. As grandes empresas educacionais, inclusive,
mudaram suas razões sociais, hoje transformadas em Anhanguera Educacional

7 O CsF foi criado em dezembro de 2011 e esteve ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI) e ao Ministério da Educação (MEC). Como principais objetivos, propunha-se a
investir na formação de pessoal altamente qualificado nas competências e habilidades necessárias
para o avanço da sociedade do conhecimento, bem como aumentar a presença de pesquisadores e
estudantes de vários níveis em instituições de excelência no exterior. Seus principais beneficiários
eram os estudantes de graduação e pós-graduação. Em 2017, o programa foi extinto, sob alegação de
necessidade de aperfeiçoamento (Caldeira, 2017).

339
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Participações S.A., Estácio Participações S.A, Kroton Educacional S.A. e Sis-


tema Educacional Brasileiro S.A. (SEB – antigo grupo COC) (Carvalho, 2013).
Como parte integrante desse processo, observamos a crescente participa-
ção de capital estrangeiro no campo educacional, uma vez que as restrições
impostas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (promulgada em
1996 e atualizada em 2001, 2004, 2005, 2009 e 2018), não por acaso, ainda não
estão regulamentadas. Exemplos desse processo no Brasil são as presenças das
pioneiras e gigantes Laureate Education; Whitney International University Sys-
tem; e a rede DeVry University, braços no campo educacional de conglomerados
provenientes de empresas norte-americanas que atuam no mundo dos negócios.
O processo de transformação da educação em uma mercadoria, pois, não
é um fenômeno nacional, mas parte do processo de globalização da economia.
Não é sem razão que a educação passa a ocupar lugar de destaque na pauta de
organismos multilaterais, em especial, do GATS (Acordo Geral sobre Comércio
de Serviços) e da Organização Mundial do Comércio (OMC) (e.g., Altbach,
2002; Knight, 2002; Salmi, 2002).
Um dos importantes marcos do processo de internacionalização das uni-
versidades, parte das estratégias dos organismos multilaterais, é o Processo de
Bolonha (Lima, Azevedo & Catani, 2008; Mello & Dias, 2011; Wielewicki &
Oliveira, 2010 ), que, ao mesmo tempo em que padroniza a estrutura do ensino
superior na Europa, possibilita o trânsito de estudantes e pesquisadores sem os
antigos obstáculos nacionais. Esta reestruturação do ensino superior europeu
ostenta como símbolo a Declaração de Bolonha (1999), que apresenta como
países signatários aqueles que compõem a União Europeia, assim como os não
pertencentes à União, sendo a Carta de Sorbone (1998) sua precursora. Os
princípios evidenciados na declaração objetivam a constituição de um Espaço
Europeu de Educação Superior e a superação da condição da Europa da época,
que vinha perdendo sua posição central como produtora e difusora do conheci-
mento científico (Faria & Maia, 2012).
Dentre as estratégias que constam no processo cita-se como principais a
padronização da estrutura de graduação, o fomento da mobilidade de alu-
nos e professores e empregabilidade, e o estabelecimento de um sistema de
créditos compartilhado.
Apesar das inúmeras transformações propiciadas por esse processo, os países
signatários não escaparam da lógica mercantil competitiva e privatizante das
Instituições de Ensino superior (Lima, Azevedo & Catani, 2008).

340
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Esta mesma estrutura do Processo de Bolonha é, de certa forma, traduzida na


proposta Universidade Nova do Brasil, que redunda no programa REUNI - Pro-
grama de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Fe-
derais (Lima, Azevedo & Catani, 2008). Tal como o processo europeu, o projeto
“Universidade Nova” no Brasil se direciona a padronização, compartilhamento
de créditos acadêmico, incentivo a mobilidade e uma nova estruturação curricu-
lar. Contudo, algumas diferenças merecem ser pontuadas: no caso da mobilidade,
o modelo europeu a incentiva na direção de diferentes países; já na reestruturação
brasileira essa mobilidade ocorre, sobretudo, entre os entes federativos. Ainda no
que tange as diferenças, cabe mencionar que algumas áreas profissionais no caso
europeu só são certificadas a partir do nível da pós-graduação, a exemplo do curso
de medicina (Faria & Maia, 2012).

3. Internacionalização na ciência brasileira: o predomínio


da cooperação Norte-Sul
Buscando caracterizar como a internacionalização a partir dos programas
de pós-graduação, Morosini (2011) verificou que no país prevalecia o modelo de
Cooperação Internacional Tradicional, que privilegia a relação com países do
Norte. Esse modelo conviveria com o tipo de cooperação horizontalizada que,
embora em menor escala, se expressaria a partir da existência de programas de
cooperação Sul-Sul.
Tal preferência por estabelecer relações com países do Norte foi igualmente
identificada por Ramos (2017), em seu estudo sobre a internacionalização de
programas de pós-graduação (PPGs) reconhecidos como de excelência (ou seja,
que receberam notas seis e sete na Avaliação da CAPES de 20108). Nesse estu-
do, a autora identificou que os principais parceiros estrangeiros dos programas
analisados estão nos Estados Unidos, Canadá, França, Reino Unido e Alema-
nha. Alguns países da América Latina, Ásia e África foram citados, porém, por
um menor número de programas.

8 A cada período, a CAPES realiza uma ampla avaliação dos programas de pós-graduação existentes
no país. Neste processo, os programas recebem conceitos que vão de um a sete, sendo o conceito três
o mínimo exigido. Os programas com conceito seis e sete são aqueles que se destacam por possuírem
funcionalmente similar as instituições reconhecidas internacionalmente.

341
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Ao se identificar as políticas existentes ao longo do período no Brasil, torna-


-se mais claro que esse cenário não ocorre por acaso, já que as principais agên-
cias de fomento historicamente direcionam recursos significativos, por exem-
plo, para bolsas de doutorado pleno no exterior nos Estados Unidos e Europa
(Velho e Ramos, 2013).
E ao que tudo indica, esse predomínio permanecerá, tal como é possível
identificar a partir do Programa Institucional de Internacionalização (PrInt),
vinculado à Coordenação de Pessoal de Aperfeiçoamento de Nível Superior
(CAPES). Esse programa objetiva a formação de redes de pesquisa interna-
cionais que potencializem a qualidade da produção científica, com ênfase na
pós-graduação. É interessante notar que, no que tange ao direcionamento ge-
ográfico das cooperações recomendadas, o edital prevê a alocação de 70% dos
R$ 1,2 bilhão dos recursos do programa às parcerias com determinados países,
em sua grande parte pertencentes a América do Norte e à Europa. Dos países
latino-americanos, apenas a Argentina e o México aparecem na lista apresenta-
da pelo programa. Se por um lado, o programa possibilita que 30% do montante
seja direcionado para a articulação com outros países não sinalizados, por outro,
deixa clara a preferência pela interlocução com países do Norte ao delimitar
mais da metade dos recursos para o grupo em que tais nações predominam
(BRASÍLIA, 2018; CAPES, 2017).
Não se pretende aqui desprezar a importância das relações Sul-Norte, tendo
em vista, principalmente, o relevante acúmulo de conhecimento que os países
centrais apresentam, bem como pelo potencial que o saber ali produzido possui
para o desenvolvimento dos países de menor capacidade produtiva. Todavia,
o que se gostaria de ressaltar é que, no seu processo de internacionalização, o
Brasil não deveria excluir os países latino-americanos do seu horizonte de inter-
locução. Isso porque, como exposto no início desse trabalho, as relações Sul-Sul
apresentam a possibilidade de troca de conhecimentos mais atinentes as reali-
dades locais, dado o compartilhamento de condições culturais e econômicas.
Nessa direção, Morosini (2011) ressalta como desafios:

o desenvolvimento de uma política de diálogo e de intercâmbio; o


trabalho em redes; a existência de fundos de organismos multilaterais;
a presença de uma cultura de solidariedade internacional e do
mútuo reconhecimento das capacidades de cada país ou região; o
desenvolvimento da mobilidade acadêmica e estudantil; a colaboração

342
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

em nível interinstitucional; a capacitação de expertos e técnicos; bem


como a existência de reuniões para implantar programas de colaboração
e a participação das IES da região nos foros internacionais (p. 109).

No entanto, a atual conjuntura de crise sistêmica do capital, associada a


uma ascensão da direita no país (e que por aí seguirá na presidência da repúbli-
ca provavelmente, pelos próximos quatro anos), tornam incertos os rumos da
política científica no Brasil e na América Latina. Isso certamente reverberará
nas próprias políticas internacionalização, algo que já vem ocorrendo, a exem-
plo do que ocorreu com CsF, com restrição de orçamento a cada ano. Se por
um lado esse cenário potencializa os desafios que virão pela frente – seja para
a internacionalização da ciência em particular ou para a atividade científica
como um todo –, por outro reforça-se a relevância das articulações no âmbito
da América Latina, uma vez que aí se pode produzir importantes respostas para
os atuais problemas sociais, que se aprofundam nesse contexto de retorno aos
ideais neoliberais. Isso não apenas revela o caráter político da própria ciência,
mas impõe a necessidade de reconhecer de que a luta pela ciência nacional e
latino-americana não pode prescindir da luta por outro projeto societário.

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345
Anticomunismo: a igreja de mãos
dadas com o Golpe de 1964

Ronnan Thomas Oliveira da Cunha1

Introdução
Desde pouco antes das eleições presidenciais do ano de 2014 a população bra-
sileira vem participando ativamente de discussões políticas bem acaloradas. Den-
tro dessas discussões nós vemos várias acusações e apontamentos contra as opini-
ões políticas e ideológicas das pessoas. Situação na qual às pessoas atacam quem
compartilham de ideias políticas de esquerda, ou seja, de ideias compatíveis com
os preceitos marxistas como o socialismo e o comunismo são bem recorrentes.
A partir daí observamos que parte da sociedade tinha um certo preconceito
contra essas ideias, não sabendo bem ao certo o que ela pregava ou ainda tendo
uma má interpretação e/ou um conhecimento distorcido da realidade científica
dessa ideologia elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels. Isso foi um dos
motivos geradores para iniciarmos nossa pesquisa. Porém o estopim para tal in-
teresse foi saber que nos dias de hoje a Igreja Católica não aceita em seus grupos
religiosos pessoas adeptas dessa “Filosofia”.
Ao iniciarmos a investigação, chegamos a conhecer uma grande repulsa do comu-
nismo pela igreja católica e a orientação que essa fez e faz na sua doutrinação para a
sociedade cristã. Essa atitude religiosa fora analisada na primeira metade da década
de 1960 e nos fez verificar que essa aversão desembocou no auxílio à derrubada do
governo do presidente João Goulart em 31 de março de 1964, após ele ser veemente
acusado de comunista devido as suas atitudes e pronunciamentos políticos.

1 Graduado em licenciatura plena do Curso de História pela Universidade Estácio de Sá – UNESA, Pós-
graduado Lato sensu em Sociologia e Pós-graduando em Ciência Política pela mesma Universidade.

347
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

No objetivo de nortear o leitor, vimos como surgiu o movimento anticomunis-


ta no mundo, aprofundando para isso no seu contexto e local de surgimento até a
chagada dessa ideia ao Brasil. Dentre outras vertentes anticomunistas, optamos em
analisar apenas a matriz religiosa dessa, devido a amplitude do assunto. Essa análise
teve como base primária os documentos papais da igreja católica assim como livros
escritos nessa época e contemporâneo a nós. Após a análise de todo esse material
pesquisado, temos a esperança de esclarecermos sobre a posição da igreja frente ao
comunismo, o que fez com que ela fosse uma contribuinte ao Golpe de 64 e quais os
principais instrumentos político-religiosos que ela usou para isso.

1. O surgimento de uma força opositora e sua


chegada ao Brasil
Partindo da premissa de que o comunismo é uma corrente ideológica que
prega a extinção das classes sociais e o fim da exploração do homem pelo ho-
mem e que embora essa ideologia tenha surgido no século XIX, a tentativa de
colocá-la em prática só ocorreu no século seguinte com a Revolução Russa de
1917, onde o grupo dos Bolcheviques, de corrente marxista, derrubaram o Czar
e assumiram o poder, instaurando assim uma ditadura de ideias comunistas.
Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lenin, foi o seu principal líder.
A partir disso podemos dizer que foi também em 1917 que nasceu o Antico-
munismo. De forma simplista podemos conceituar anticomunismo como uma
corrente de pensamento contrário as ideias comunistas. Porém nesse capítulo,
não vamos apenas estacionar nesse frugal conceito, mas faremos também um
breve caminho de aprofundamento em seu contexto histórico de surgimento,
de suas vertentes e de como chegou ao Brasil.
Já definido o anticomunismo é importante frisar que ele não surgiu como
o comunismo, com teóricos e pensadores elaborando teses e mais teses, mas
surgiu de forma espontânea. Com o surgimento do comunismo, e isso foi mais
intensificado com a subida dos bolcheviques ao poder na Rússia, surgiu daí
paixões como também fortes oposições a este modelo. Ao passar do tempo essas
pessoas e grupos organizados foram se arranjando e se unindo contra um ini-
migo comum, chamado comunismo. Alguns criticando e sendo contrários ao
modelo social comunista, outros a forma política e outros ao modelo de como
eles pensavam a espiritualidade.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Desde 1917 até aos nossos dias, o anticomunismo nunca deixou de existir,
ora mais intenso, ora mais brando, quase esquecido, mas nunca inexistente. Isso
se explica devido a sua necessidade de contrapor ao “perigo vermelho”. Em mo-
mentos em que o comunismo ganhava mais força, os anticomunistas, mais viam
a necessidade de intensificarem sua luta contra eles. Assim nós temos desde o
seu nascedouro em 1917, quando pessoas alinhadas ao pensamento comunista,
que pregavam o ar de igualdade, viam na Revolução Russa uma chance de que
sim, poderiam eles mudar o sistema vigente capitalista, e com isso o cresci-
mento e nascimento de partidos políticos de cunho comunista ou de esquerda,
passando por aí pela Segunda Guerra Mundial e pela Guerra Fria, onde esta
última veio acirrar de forma intensa a rivalidade entre o modelo capitalista e o
modelo comunista de ideias e de sistemas econômico.
No bojo de todo esse alvoroço mundial, podemos afirmar que foi nos Estados
Unidos da América e no contexto da guerra fria que o anticomunismo mais se
desenvolveu, inclusive de forma organizada em instituições tradicionais como
veremos no excerto a seguir: “A ofensiva políto-ideológica dos norte-americanos
tendeu a concentrar-se então, nos setores mais receptivos e tradicionalmente
comprometidos com o anticomunismo, como as forças armadas e policiais, os
religiosos e os políticos conservadores.” (SÁ MOTTA, 2002, p.19)
No Brasil também teve momentos de maior e menor pico de batalha contra
“os vermelhos”, tendo, não por acaso, se iniciado também em 1917, após a Re-
volução. Dessa forma podemos cravar que nesse ano teve início o movimento
anticomunista brasileiro como forma de reação não só a Revolução russa, mas
também a outras revoluções de cunho socialistas estouradas pelo mundo.
Para que essas ideias anticomunistas fossem propagadas e aceitas pela so-
ciedade brasileira, um grupo até então não organizado, teve que impulsioná-
-lo. Esse grupo foi à elite brasileira, pois ela já tinha o hábito de importar, não
somente artigos de consumo, mas também ideias estrangeiras, ideias essa que
em sua maioria, advinham de países que dominavam a economia mundial e
se mostravam como exemplo de modo de vida perfeito. A imprensa brasileira
também teve papel destacado nesse processo, pois era através dela que era
passado para o povo os acontecimentos revolucionários ocorrentes na Rússia.
A imprensa fazia várias criticas aquela revolução, e isso deixava o povo brasi-
leiro amedrontado, pois faziam com que eles vissem nos comunistas o mal do
mundo, naquela época.

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Outra instituição que também contribuiu com isso foi a igreja católica, onde
podemos dizer que “os valores católicos se constituíram na base principal da
mobilização anticomunista, relegando outras motivações a posição secundária.”
(SÁ MOTTA, 2002, p.17-18).
A má caracterização do comunismo por esses agentes, como a igreja católica
e a imprensa, serviu como uma forma de conversão dos cidadãos brasileiros as
ideias anticomunistas, pois o comunismo soviético era caracterizado como uma
coisa do mal, perversa, demoníaca, onde esses comunistas viriam a dominar o
país e impor suas ideias destruidoras. Esse era o argumento central que facilitava
a expansão e aceitação da sociedade brasileira das ideias antirrevolucionárias.
No Brasil o anticomunismo teve várias intensificações como na década de
1920, após a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), mais precisamen-
te no ano de 1922, o que trouxe uma preocupação para os políticos brasileiros,
onde viram a necessidade de lutarem contra o eminente “perigo vermelho”. Já
na década de 1930, podemos dizer que foi uma das maiores intensificações, pois
foi nessa década que ocorreu a intentona comunista em novembro de 1935.
A intentona foi um movimento de rebelião, liderado pela Aliança Nacional
Libertadora (ANL), que tinha ideias comunistas, contra o governo do então
presidente Getúlio Vargas, o que foi prontamente sufocado por este. “O levante
foi representado como exemplo de concretização das características maléficas
atribuídas aos comunistas” (SÁ MOTTA, 2002, p.105) e fez aumentar a inten-
sificações dos contrários ao comunismo, inclusive com perseguições aos adeptos
deste. Outra época em que o anticomunismo foi muito forte ocorreu em 1947
e é justamente nesse período que se inicia a chamada guerra fria, o embate
ideológico entre o capitalismo, na representação dos EUA e o socialismo, tendo
como força maior a URSS, trazendo como exemplo sua experiência comunista.
Porém antes mesmo que os EUA rompessem por definitivos seus laços diplo-
máticos com a União Soviética, aqui no Brasil, o presidente da época, o Mare-
chal Eurico Gaspar Dutra iniciou o processo de cassação do registro eleitoral
do Partido Comunista do Brasil. Após uma fraca mobilização anticomunista
durante a década de 1950, motivo pelo qual o comunismo não representava
grande ameaça, na década seguinte, vem emergir com força total as mobili-
zações contrárias à ideologia de esquerda. Essa massificação vem a acontecer
diretamente a subida de João Goulart a presidência da República do Brasil, ou
até antes disso, quando Jânio Quadros, presidente antecessor, fora acusado de
aproximação com países e personalidades comunistas e de esquerda em seus

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

sete meses de governo a frente do Brasil, onde de forma ainda curiosa e pouco
esclarecida renunciou ao cargo presidencial em agosto de 1961, deixando vago
para o seu Vice-presidente João Goulart assumi-lo. A elite conservadora não via
com bons olhos o nome de Jango a presidência da República, sobre isso nos diz
o Rodrigo Patto Sá Motta (2002, p.289):

O temor de que a ascensão de Goulart ao poder pudesse significar o


fortalecimento dos comunistas, associado à frustação dos conservadores
pelo retorno do getulismo, levou a que se tentasse impedir a posse. Os
ministros militares de Jânio declararam-se contrário a posse de Goulart,
criando um ambiente de pré-guerra civil.

Isso nos mostra o quanto nessa época o anticomunismo estava aflorado en-
tre a sociedade e principalmente entra a elite. Porém ao analisar esse movimen-
to desde seu surgimento até o ano de 1964, mas precisamente até o aconteci-
mento do Golpe civil-militar deste mesmo ano, vemos que existem matrizes que
norteiam tal movimento. Podemos julgar como matrizes do anticomunismo no
Brasil o Catolicismo, o Nacionalismo e o Liberalismo. Nesse trabalho nos atere-
mos a matriz do catolicismo, discorrendo e aprofundando sobre ela.

2. A matriz religiosa do anticomunismo


No Brasil a igreja católica, foi a instituição não estatal mais empenhada
na luta contra o comunismo. Isso se deu devido a sua grande quantidade
de adeptos e sua forte representação social. Dando-lhe assim um reconheci-
mento como a matriz mais abrangente na sociedade, frente as outras duas,
pois a religião atingia uma enorme parcela da população brasileira princi-
palmente as classes mais baixas.
Daí se levantou uma questão: Por que a igreja católica não aceita em seus
grupos adeptos das ideias marxistas? Essa é a pergunta que tentaremos respon-
der de forma clara e objetiva.
Como vimos, Karl Marx e Friedrich Engels desenvolveram o materialismo
histórico dialético, onde as relações humanas, inicialmente, são diretamente
influenciadas pelo meio em que vivem, daí também vem a crítica dele à religião,
como no livro Crítica da filosofia de direito de Hegel, “o homem faz a religião,
a religião não faz o homem.” (MARX, 1843, p.145). Dessa maneira a filosofia

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marxista não é compatível com a religião, pois sendo ela a religião, é uma cria-
ção humana. Essas ideias foram gestadas no século XIX, porém vai ser a partir
do início do século XX que a igreja católica vai de forma mais intensa fazer
duras críticas ao comunismo. Isso se deu devido a essas ideias saírem do papel,
com a Revolução Russa de 1917, pois a relação feita pela igreja era a seguinte:
o comunismo se origina do marxismo, esse por sua vez é materialista, e “sendo
materialista é essencialmente ateísta” (ROSSI, 1974, p.94), o que faz o comunis-
mo ser contrário à igreja, e esta a ser perseguida na URSS.
Essa contrariedade entre comunismo e religião na União Soviética de Lenin,
fora trazida também para o Brasil, onde a igreja católica desenvolveu seu anti-
comunismo intenso. Se para a igreja católica, na URSS, o inimigo número um
dos comunistas era a religião, para os comunistas brasileiros, os católicos faziam
esse papel de carrasco, seguindo as ordens papais, que ditavam através de suas
cartas encíclicas, como a Quod Apostolici Muneris e Rerum Novarum do papa
Leão XIII. A primeira apontava os erros da proposta revolucionária e a segunda
ratificava a restauração dos costumes cristãos, constatando que “o comunismo
representa uma ameaça séria para a religião” (SÁ MOTTA, 2002, p.37), porém
o papado não parou apenas nessas duas encíclicas e desenvolveu outras, como a
mais forte delas, a Divinis Redemptoris, do papa Pio XI lançada em 1937. Daí os
bispos e padres tinham a orientação para passar para os seus fies o mal que tal
doutrina trazia para a sociedade. Essas orientações eram transmitidas aos fies
através das Cartas Pastorais, que ensejava a luta contra o comunismo.
A História do anticomunismo religioso no Brasil foi de maior intensidade
já na década de 1930, porém nos propomos a analisar o período de 1961-1964,
devido à singularidade prática em que a igreja desenvolveu esse anticomunis-
mo e a forma que pregava, que o comunismo não era apenas contra a religião
católica, mas contra todas as religiões, fazendo com isso, com que outras reli-
giões também aderissem ao combate a essa ideologia revolucionária. Rodrigo
Patto Sá Motta (2002, p.303-304) em seu livro “Em guarda contra o perigo
vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964)” nos mostra de forma obje-
tiva e resumida esse fato:

Na década de 1960, observa-se uma mudança significativa: a ortodoxia


católica foi substituída por uma espécie de ecumenismo anticomunista.
Igrejas cristãs reformadas, judeus, espíritas e até umbandistas
ocuparam lugar nas mobilizações do período. A própria hierarquia

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

católica contribuiu para isto, à medida que líderes influentes, como o


Cardeal Câmara, deram declarações públicas a favor da “(...) união das
Religiões contra o comunismo”.

A igreja católica também se preocupou com uma “infiltração comunista”


no ceio de sua instituição, principalmente a partir dos anos iniciais de 1960,
quando surgiu uma “esquerda católica”, representada na figura da JUC, Juven-
tude Universitária Católica o que fez os setores mais tradicionais e conserva-
dores da igreja iniciarem uma forte oposição às ideias de reformismo social,
pregado pelos progressistas religiosos. Segundo o imaginário católico, os so-
cialistas instigavam ricos contra pobres, tinham a sede dos prazeres, questio-
navam os fundamentos das religiões, negava a existência de Deus, pretendia
destruir a família e pregava a igualdade de todos, opondo-se assim a hierar-
quia e desordem, enfim, para a ordem católica:

[...] a nova doutrina questiona os fundamentos básicos das instituições


religiosas. O comunismo não se restringiria a um programa de revolução
social e econômica. Ele se constituía numa filosofia, num sistema
de crenças que concorria com a religião em termos de fornecer uma
explicação para o mundo e uma escala de valores, ou seja, uma moral.
A filosofia comunista se opunha aos postulados básicos do catolicismo:
negava a existência de Deus e professava o materialismo ateu; propunha
a luta de classes violenta em oposição ao amor e à caridade cristãs;
pretendia substituir a moral cristã e destruir a instituição da família13;
defendia a igualdade absoluta contra as noções de hierarquia e ordem,
embasadas em Deus. (SÁ MOTTA, 2002, p.38-39).

Para eliminar com esse “Demônio”, a igreja católica desenvolveu algumas


estratégias e foram criadas ou fortalecidas algumas entidades para atrair a par-
ticipação leiga e colocar em prática a “recristianização”. Dentre as mais conhe-
cidas estão: a Ação Católica, as Congregações Marianas, as Filhas de Maria,
os Círculos Operários e os Irmãos Vicentinos. Também como tática e usando
seu prestigio junto à sociedade, a igreja utilizou os meios de comunicação em
massa como televisão, jornais e rádio. Todos esses com fins de propagandear
o anticomunismo. Também temos como parte de sua estratégia a criação de
“uma entidade suprapartidária para congregar os candidatos ligados às posições
religiosas, a Aliança Eleitoral Pela Família (ALEF)” (SÁ MOTTA, 2002, p.49),

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essa entidade teve forte atuação durante o nosso recorte temporal, mas preci-
samente em 1962. Podemos citar também outras organizações anticomunistas
como o Movimento por um Mundo Cristão (MMC) a Liga da Defesa Nacional
(LDN), a Cruzada Brasileira Anticomunista e a Sociedade Brasileira de Defesa
da Tradição, Família e Propriedade. Outros tiveram um vinculo mais profundo
com a igreja, é o caso dos Voluntários da Pátria para a Defesa do Brasil Cristão
e a Liga Cristã contra o Comunismo. Foi nesse período que também surgiram
algumas mobilizações sociais. Nesse trabalho destacaremos dois desses movi-
mentos, julgando como as maiores, as principais e como as que culminaram no
Golpe Civil-militar de 1964, a saber: o “Movimento do Rosário em Família”,
capitaneada pelo Padre irlandês erradicado nos Estados Unidos, Patrick Peyton
e a “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, Principalmente as ocorridas
nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.

3. Precedentes do golpe de 1964


O segundo grande surto do anticomunismo no Brasil se dá justamente no
início da década de 1960, logo após a eleição de Jânio Quadros para a presidên-
cia da República. Jânio vence as eleições em 1960 e toma posse em 1961, po-
rém seu governo é bastante conturbado, o que também o faz precoce, findando
apenas seis meses depois de sua subida ao poder. Os motivos de sua reúncia a
presidência da república até hoje não foram bem esclarecidos e ainda levantam
bastantes indagações e curiosidades. Ele teve certas atitudes que a elite con-
servadora e a direita política do país não viram com bons olhos como estabe-
lecimento de relações políticas com países e personalidades de cunho político
de esquerda, onde em um desses ele condecorou um dos líderes do movimento
revolucionário cubano, o argentino Ernesto Che Guevara, o que fez com que
Jânio fosse interpretado como político que queria levar o país a comunização,
trazendo para si uma enorme pressão. Essa pressão, talvez tenha sido o motivo
pelo qual Jânio renunciou ao cargo de presidente do Brasil no dia 25 de agosto
de 1961 e expôs em carta renunciatória que “forças terríveis” se levantaram
contra si. Mesmo com essa atitude, Jânio não teve apoio de seu eleitorado, pois
eles não vinham aprovando a política econômica anti-inflacionária adotada
por ele, na restrição de crédito, congelamento salarial e nos cortes de subsídios
de importações. Dessa forma esse governante já não tinha também o apoio

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

político da direita, que o tinha colocado no poder, não agradava a esquerda e


também não tinha o apoio popular.
No ato da renúncia de Jânio Quadros o seu vice-presidente, João Goulart,
estava em compromisso político na China, como naquela época os eleitores
elegiam separadamente o presidente e o vice, podemos dizem que João Gou-
lart, foi apoiado pela esquerda, além disso, ele estava em um país comunista.
Isso fez com que políticos contrários ao seu nome, tentassem impedir sua pos-
se, de direito constitucional, a presidência da república. Após muitos embates
políticos e configurações, Jango consegue assumir o cargo de presidente do
Brasil em 07 de setembro de 1961, porém num regime inovador até então, o
parlamentarismo. Com essa medida, os proponentes visavam evitar o perigo
da comunização do Brasil, pois como era tempo de Guerra Fria o mundo es-
tava polarizado entre Capitalismo e Socialismo.
Após várias trocas na liderança do primeiro ministério do país, foi colo-
cado em cheque o modelo governamental do Brasil, convocaram assim um
plebiscito em 1963 na intenção de decidirem entre o parlamentarismo e o pre-
sidencialismo, esse último foi aprovado e logo Jango conquistava seus poderes
presidenciais de direito e tentava colocar em prática seus projetos governamen-
tais com várias reformas. Elas eram vistas com maus olhos pela direita política.
A governabilidade de João Goulart veio a ser colocado em cheque depois de
três fatos principais: o comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964,
onde ele apresenta uma série de medidas que visavam uma brusca mudança
na sociedade brasileira como a desapropriação de latifúndios, o direito ao voto
de analfabetos e praças e a encampação de refinarias estrangeiras de petróleo;
a rebelião dos marinheiros no Rio de Janeiro no dia 24 daquele mês, o que se
deu após o então Ministro da Marinha proibir a realização de uma assembleia
comemorativa da associação dos marinheiros e fuzileiros navais, no sindicato
dos metalúrgicos, onde lá iria ser decidido o apoio por esses, a política nacio-
nalista de Jango. Os militares que foram ordenados a reprimir esse movimento
se compadeceram a esta causa e a seus pares e também aderiram ao apoio,
logo após o fato o ministro da marinha fora substituído no cargo. O novo
indicado do governo anistiou os militares da associação e por último tivemos
a assembleia no Automóvel Clube do Brasil ocorrido em 30 de março de 64,
onde o presidente foi convidado de honra e na ocasião proferiu discurso onde
denunciava que seu governo passava por uma perseguição política. Esses fatos
são eleitos também como uma ofensiva do governo em mudar sua imagem

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

perante a sociedade de forma mais abrangente, inclusive o Comício da Central


fora tido como mobilização popular do governo, pois teve organização de enti-
dades da esquerda do país, é o caso União Nacional dos Estudantes – UNE, a
União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – UBES, o Comando Geral dos
Trabalhadores – CGT, o Pacto de Unidade e Ação – PUA, as Ligas Campo-
nesas e a Frente Parlamentar Nacionalista que convocaram os trabalhadores e
a população em geral. Isso fez com que a direita “caísse em campo” e também
organizassem mobilizações populares em resposta a ofensiva “comunista” do
governo, onde essas por sua vez foram amplamente apoiadas pelos “Liberais”,
aí representados na figura da elite empresarial brasileira, pelos “Nacionalistas”
representados pelos políticos de direita e militares e os Católicos representando
as religiões, onde fora aderido por grande parte da população, devido o seu al-
cance social. Essa adesão popular, que fora mostrado nas mobilizações, servirá
como lastro para o golpe de 1964, por isso é interessante conhecer algumas
dessas manifestações anticomunistas.

4. Manifestações religiosas como instrumentos políticos


Analisaremos duas grandes manifestações anticomunistas de cunho religio-
so ocorridas no Brasil em meados do futuro golpe civil-militar de 1964, inclusive
são consideradas como mobilizações importantes para o aval a destituição do
então presidente João Goulart. Embora essas manifestações sejam de cunho
religioso, elas também passaram a ser patrocinadas por empresários e também
teve o interesse de políticos contrários aos “vermelhos” somando-se a isso o
cunho político a destes movimentos.
Para que possamos conhecer a nossa primeira mobilização, é preciso primei-
ramente conhecer um pouco do seu contexto e do seu criador, o Padre Patrick
Peyton. Esse padre que nasceu na Irlanda, foi morar nos Estados Unidos da
América aos 19 anos de idade, devido à falta de recursos financeiro de sua
família. Na ausência desses recursos ele foi abrigado na catedral de Scranton,
onde desenvolveu seu trabalho como sacristão. Ganhou oportunidade de ter
suas despesas educacionais pagas pelo Monsenhor Kelly. Foi aceito na Congre-
gação de Santa Cruz e logo foi cursar teologia no seminário da Universidade de
Notre Dame, lá fora acometido por uma grave tuberculose, por quase um ano.
Ao se recuperar atribuiu essa recuperação a intercessão da Virgem Maria. Foi

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

ordenado padre em 1941 e desde então passou a enviar carta para outros bispos
com a intenção de promover a reza do rosário em família. A partir daí começou
a ganhar notoriedade nos EUA e artistas o apoiaram a criar a Family Teather
Productions, uma produtora que lançava filmes e documentários católicos em
1947. No ano seguinte começa a realizar suas “Cruzadas do Rosário”. Para ca-
racterizar de forma sucinta citaremos o excerto a seguir:

As Cruzadas do Rosário consistiam em grandes campanhas de missões


populares de evangelização. Para preparar o evento havia grandes
equipes, responsáveis pela organização e divulgação. Durante a
divulgação, eram exibidos filmes de 30 minutos, contendo meditações do
rosário. As equipes eram compostas não só por missionários religiosos,
mas por um grande número de técnicos. (ARNOUD, 1983, p.180 apud
GUISOLPHI, 2011, p.6-7).

Lembremos que nessa época a guerra fria estava a “topo vapor”, e que mui-
tos dos apoiadores do Padre, viam em sua missão uma ótima ferramenta para a
disseminação do anticomunismo.
O projeto das cruzadas do rosário do Padre Patrick Peyton chega ao Brasil
no ano de 1962 e logo ele vê a necessidade de recrutar pessoas para reforçar a
sua equipe. No Brasil ele deu prioridade às mulheres de classe média, pois es-
sas estavam convencidas de que “a segurança de sua família estava ameaçada”
(ARNOUD, 1983, p.192 apud GUISOLPHI, 2011, p.10).
Sobre a cruzada na cidade de São Paulo, Anderson José Guisolphi assim
caracteriza:

Na cidade superpovoada, quase sem padres, a estratégia da Cruzada foi


de divulgação midiática em massa, usando projetores para exibir suas
mensagens e organizar o grande evento da Cruzada do Rosário, que
converteria os operários ao Rosário em família, reforçando a resistência ao
comunismo. (HOLY CROSS, 1992, p.05 apud GUISOLPHI, 2011, p.12).

O padre Peyton era conhecido mundialmente por conseguir unir multidões


em locais públicos no intuito de projetar produções cinematográficas religio-
sas através de inovadoras tecnologias, pregar para as famílias a importância da
união em torno da religião, para isso também contava com artistas e persona-
lidades do meio político, pois assim dizia seu slogan “A família que reza unida,
permanece unida”. Como os católicos acusavam os comunistas de serem ateus e

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de que tinha no seu projeto o anseio de destruir as famílias, durante as cruzadas


também existiam discursos anticomunistas. Sobre isso nos diz Skidmore (1994)
citado por Guisolphi (2011, p.02-03): “O discurso da família, aliado à ideia da
propagação anticomunista contribuíram para o fortalecimento de repúdio a esta
ideologia nos meios católicos”.
O projeto desse padre irlandês foi mundialmente reconhecido por reunir
várias pessoas em grandes eventos “religiosos”, somente aqui no Brasil em 1962
e 1964, juntando os eventos ocorridos no Rio de Janeiro e em São Paulo com-
pareceram a eles cerca de um milhão de pessoas. As cruzadas serviram como
fagulha para a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que é a nossa se-
gunda mobilização religiosa a ser conhecida. Esta Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, aconteceu no dia 19 de março de 1964 em São Paulo e pode ser
tido como uma reação ao comício da Central do Brasil, onde o então Presidente
João Goulart, seis dias antes, comunicou suas “Reformas de Base” ao povo. A
primeira Marcha contou com cerca de 500 mil, pessoas que saíram de suas ca-
sas, desfilando da Praça da República para a Praça da Sé, terminando com uma
missa “pela salvação da democracia”. Assim nos diz Sá Motta (2002, p.326):

Mas o desdobramento mais importante da reação ao comércio, e ao que


ele significava na ótica conservadora, se deu a 19 de março, em São
Paulo, A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi o Comício da
Central do lado conservador, ou seja, se constituiu em evento altamente
impactante no que tange à mobilização antiesquerdista.

Os diários de grandes circulações da imprensa noticiaram de forma ma-


ciça o evento. Era explícito nos discursos dos padres e personalidades o
repúdio ao comunismo.
Com o sucesso da Marcha ocorrida em São Paulo, fora organizada outra no
Rio de Janeiro, essa por sua vez tem uma peculiaridade, se deu no dia 02 de
abril de 1964, um dia após a queda de Jango e por isso foi tida como a “Marcha
da Vitória” e seria uma forma de comemoração pela vitória anticomunista e
“antiGoularista”, mesmo sendo após o golpe, ela teve os mesmos ingredientes:
ataque ao comunismo, a política reformista de esquerda de Goulart e a acusação
deste almejar o poder ditatorial para destruir a pátria, as famílias e as religiões
(SÁ MOTTA, 2002, p.328).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Essas duas marchas não foram somente as mobilizações programadas para


acontecer, outras iriam por vir:

[...] marchas semelhantes estavam programadas para outros grandes


centros urbanos. O golpe veio antes, transformando a mobilização
da direita em desfiles de triunfo. Ela provara, de qualquer modo,
antes do 31 de março, que podia pôr na rua muito mais gente que
a esquerda. A superioridade da mobilização reacionária de massas
sobre a das forças progressistas resultou de um enorme esforço de
organização [por parte do] Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(Ipes), na verdade uma vasta organização política do patronato,
dirigida por um Estado-Maior composto por plutocratas e prepostos
de alto nível, formando a cúpula do aparelho ideológico do capital
no Brasil de então. (QUARTIM DE MORAES, 1997, p.129 apud
CODATO, 2004, p.273).

Conclusão
Foi preocupação recorrente, desde o início deste trabalho a contextualização e
conceituação de pontos essenciais para o bom entendimento da ideologia do co-
munismo, assim como para o entendimento do que foi o anticomunismo. Fazendo
um longo retorno histórico podemos analisar da antiguidade até contemporanei-
dade, onde vimos o surgimento do socialismo utópico e do socialismo científi-
co. Prendendo-nos um pouco mais nos seus verdadeiros criadores, Karl Marx e
Friedrich Engels, onde podemos constatar e conhecer o comunismo. Toda essa
contextualização culminou no esclarecimento do anticomunismo, no seu nasce-
douro e como esse chegou ao Brasil, desdobrando assim, em momentos de maior
e menor intensidade, o que levou a aprofundarmos e conhecermos um pouco
mais desses períodos mais intensos do anticomunismo. Também nos propomos a
analisarmos a matriz religiosa do anticomunismo, frente a liberal e a nacionalista.
Ao nos atermos ao recorte temporal em meados do golpe de 1964 e a matriz
religiosa do anticomunismo no Brasil, podemos verificar que embora a igreja cató-
lica tenha fortes motivos religiosos que explicam essa divergência com a ideologia
comunista, sabemos que ela também fora muito influenciada por instituições in-
ternas e externas, não somente de cunho religioso para que essa repulsa viesse a
acontecer fortemente, mas também de cunho político e financeiro. Isso é explica-

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do devido a forte influência que a igreja católica tinha na sociedade Brasileira da


época, visto que era esmagadora a quantidade de adeptos do catolicismo no país,
num contexto de Guerra Fria onde ocorria a polarização de ideologias e sendo
o Brasil um país cravado na zona de influência estadunidense, o controle dessa
instituição religiosa era de suma importância para a manobra do anticomunismo
brasileiro. Porém a igreja teria que ter explicações espirituais para tal atitude, o
que é prontamente explicado pelo temor da “destruição da família” pelo “comu-
nismo soviético”, onde esse por sua vez era marxista, ateu e daí materialista, sendo
a religião para eles “o ópio do povo”, como dizia Marx e Engels (1943, p.145).
Como pudemos ver, a igreja católica fora muito decisiva para que em 31 de
março de 1964, o presidente João Goulart tivesse sido retirado do poder pelos
militares e também com o apoio de parte da população. Isso foi verificada atra-
vés das “Cruzadas do Rosário” e as “Marchas da Família com Deus pela Liber-
dade”, pois vimos que essas mobilizações serviram de “respaldo” para a atitude
dos militares em darem um Golpe de Estado, instalando no Brasil uma ditadura
civil-militar que somente viera a cessar vinte e um anos depois.

Referências bibliográficas

CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcus Roberto de. A marcha, o


terço e o livro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura
do golpe de 1964. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47,
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GUISOLPHI, Anderson José. O Movimento do Rosário em Família, estratégia


anticomunista no Brasil dos anos 60. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE
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O Movimento Indianista
e sua influência para a concretização
do Estado Plurinacional da Bolívia

Vítor Carlos Nunes1

1. Introdução
Na maior parte da história boliviana, os povos originários ficaram à margem
da sociedade, sem reconhecimento de suas diferenças e não fez parte do gover-
no estatal. Contudo, com a nova CPE de 2009, a Bolívia passou a ser um Estado
Plurinacional, o quê acarretou a legitimidade do pluralismo jurídico, maior en-
foque a direitos coletivos, reconhecimento à ancestralidade, rompimento com
o caráter liberal e individualista das constituições burguesas, e uma democracia
deliberativa; dentre tantas outras consequências.
Muitas das análises em relação à nova constituição boliviana descon-
sideram o processo político de acirramento entre classes e o papel que as
classes historicamente exploradas tiveram para a concretização do Estado
Plurinacional. Tais visões são muito limitadas pois evidencia, na prática,
que os direitos assegurados pela CPE dados de bom grado, e não resultado
de lutas históricas de sujeitos revolucionários que sempre foram afastados da
vida política pelas elites dominantes.
Desse modo, este trabalho analisará o movimento indianista, levando
em conta o contexto de seu surgimento, suas diversas vertentes e suas mu-
danças ao longo da história; visando entender de que forma ele contribuiu

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membro do Grupo
de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC), Extensionista do Centro de
Referência em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Semiárido) e Monitor da disciplina de
Ciência Política. Contato: [email protected].

363
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

para que o indígena campesino e popular, sujeito revolucionário em uma


sociedade marcada pelo colonialismo e violência do capital, emergisse no
final do século XX e início do XXI e protagonizasse o movimento que deu
origem ao Estado Plurinacional.
Visa-se compreender, também, as relações entre o indianismo e o marxis-
mo, na medida em que muitos pensadores deste tem uma visão deturpada do
próprio Marx, utilizando percepção mecânica da sociedade; e vertentes daquele
postam-se completamente contrárias a qualquer forma de análise da sociedade
que parta de referenciais eurocêntricos. O acirramento histórico entre india-
nismo e marxismo deve ser levado em conta em uma análise que visa entender
o processo de construção e concretização do Estado Plurinacional, visto que é
essencial para uma melhor compreensão das classes presentes na Bolívia.
A análise vai ser norteada por pesquisa bibliográfica e documental, uti-
lizando livros, teses de doutorado, entrevistas, sites e a Constituição da Bo-
lívia. Esta pesquisa buscará compreender, por meio dos instrumentos supra-
citados, de que forma o movimento indianista propiciou o surgimento do
Estado Plurinacional.

2. O contexto de surgimento do Movimento Indianista,


sua diversidade e mudanças ao longo da história
A priori, antes de uma discussão mais aprofundada, torna-se necessário es-
clarecer sobre o indianismo aqui estudado. O termo por si só e sem a devida
contextualização pode fazer com que interpretações erradas sejam feitas, sendo
necessário fazer uma distinção entre indigenismo e indianismo. O primeiro tendo
como apogeu entre 1920 e 1960 e o segundo nascendo no final da década de 60
e início da década de 70; “com influência nas artes, literatura e movimentos po-
líticos, o indigenismo buscava ressaltar a particularidade das novas nações frente
ao velho mundo através de certa exaltação romântica do passado pré-colonial”
(CUNHA FILHO, 2015, p. 96).
Como aponta Cunha Filho, o indigenismo vai aparecer com o objetivo de
integrar os povos originários às sociedades as quais estes fazem parte,

[...] foi, entretanto, um pensamento tipicamente crioulo/mestiço, que


pensava sobre os índios, mas sem consultá-los ou incluí-los como sujeitos

364
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

ativos (SALMÓN, 1997). Em sua exaltação do passado pré-colombiano,


também muitas vezes o fazia de forma folclórica ou fossilizada, como se
a cultura indígena fosse um vestígio arqueológico de um passado talvez
glorioso, mas derrotado, ao qual deveria ser oferecido um caminho rumo
à civilização. (CUNHA FILHO, 2015, p. 97)

Apesar da não inclusão do índio enquanto protagonista da integração deles mes-


mos em sociedade e da forma folclórica supracitada, o indigenismo foi de extrema im-
portância pois abriu caminho para outros movimentos, como o próprio indianismo.
O termo indianismo é geralmente utilizado na literatura para se referir às
correntes de pensamento e movimentos político-culturais acerca da problemá-
tica indígena feitos pelos próprios índios (CUNHA FILHO, 2015, P.97). Como
aponta Daniel Valença,

na década de 70, iniciou-se a tessitura do indianismo, uma original


teoria que teve Fausto Reinaga como precursor. Este publicaria, em
1970, o Manifiesto del Partido Indio e, em 1971, Tesis India (TICONA-
ALEJO, 2014). Em seus primeiros escritos, Reinaga realizou uma
singular interpretação da Bolívia e territórios originários incaicos para
recuperar seus elementos fundantes e defender uma nova possibilidade
de desenvolvimento autônomo de seus povos e nações. Bebendo
parcialmente das formulações de Reinaga, ainda na década de 1970,
desenvolveu-se o indianismo katarista. Em seu interior, havia desde os
“indianistas duros”, que rejeitavam qualquer assimilação ocidental, aos
que aproximavam as questões étnicas e de classe, sendo estes a parcela
majoritária. (VALENÇA, 2017, p.90)

Passada a breve diferenciação entre indianismo e indigenismo, e melhor


compreensão do que se trata aquela, que é o objeto de estudo deste artigo;
pretende-se, agora, aprofundar o contexto de surgimento do indianismo, bem
como suas principais transformações ao longo das últimas décadas.

2.1. Surgimento do Indianismo


O indianismo vai emergir na Bolívia pós Revolução de 19523 em um mo-
mento em que pautas como reforma agrária, voto universal e educação gra-
tuita ganhavam força, devido ao ideário nacional revolucionário. Neste mo-

365
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

mento, boa parte do campesinato 2acreditava neste imaginário e defendia a


modernização e homogeneização cultural vigente. Foram momentos de uma
crescente desetnização do discurso e do ideário camponês, uma aposta na in-
clusão imaginada no projeto de coesão cultural mestiça irradiada pelo Estado
(GARCÍA-LINERA, 2010, p.320).

A Revolução Nacionalista de 1952 homogeneizou o tratamento dado


ao indígena boliviano como se mero camponês fosse. Isso demonstrou
uma desconsideração da própria reprodução cultural e social das várias
etnias indígenas, por parte do Estado, naquele período. Esse discurso
de caráter moderno, proveniente dos manuais de economia política,
criava uma impossibilidade epistemológica e uma barreira cognitiva
incapaz de compreender a realidade do local onde ocorria aquele
processo transformador. Tanto é que as medidas do Estado àquele
momento eram democratizantes, mas desconsideravam a formação do
povo, ou a –sociedade abigarrada –, que Zavaleta Mercado se refere.
(LEONEL JÚNIOR, 2014, p.87)

Este período, marcado pelo aumento em massa das cidades e saída do cam-
po, passa a sofrer crises quando valores coloniais voltam a ser utilizados pela
elite dominante e o discurso étnico volta a ser, na década de 70, uma forma de
exploração. Nessa perspectiva, o indianismo surge em um momento marcado
pelo avanço do preconceito étnico que oprime a maioria absoluta da população
boliviana. Nos últimos 34 anos, o indianismo transitou por vários períodos: o
período formativo, o período da cooptação estatal e o período de sua conversão
em estratégia de poder3 (GARCÍA LINERA, 2010, p.321).
Apesar da distinção feita por Álvaro García Linera, este artigo não irá
fazer uma análise aprofundada dos períodos supracitados, visto que o ob-
jetivo deste artigo não é se debruçar de maneira aprofundada sobre toda a

2 A Revolução de 1952 foi um momento de insurgência popular que levou o governo revolucionário a
democratizar setores da sociedade boliviana, além de fazer a reforma agrária. Ela teve um forte caráter
nacionalista, não se atentando para a construção étnico-cultural plural da sociedade boliviana. Ela
perde sua essência com um golpe em 1964. (LEONEL JUNIOR, 2014, p.68)
3 A Revolução de 1952 foi um momento de insurgência popular que levou o governo revolucionário a
democratizar setores da sociedade boliviana, além de fazer a reforma agrária. Ela teve um forte caráter
nacionalista, não se atentando para a construção étnico-cultural plural da sociedade boliviana. Ela
perde sua essência com um golpe em 1964. (LEONEL JUNIOR, 2014, p.68)

366
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

história do movimento, e sim evidenciar pontos que influenciaram o surgi-


mento do Estado Plurinacional.

2.2. Principais mudanças do Indianismo ao longo da história


A priori, com o discurso de ressignificar aquilo que o fator colonial mais
afetou, surgiu o indianismo katarista4 trazendo novas perspectivas em relação à
língua, história e cultura.

A contribuição fundamental deste período é a reinvenção da indianidade,


mas já não como estigma, mas como sujeito de emancipação, como
desígnio histórico, como projeto político. Trata-se de um autêntico
renascimento discursivo do índio através da reivindicação e reinvenção de
sua história, do seu passado, de suas práticas culturais, de suas penúrias,
de suas virtudes, que há de ter um efeito prático na formação de auto-
identificações e formas organizativas. (GARCÍA-LINERA, 2010, p.322)

Desse modo, pode-se compreender, que logo desde o nascimento, o india-


nismo colocou em primeiro plano a questão dos povos originários . Ademais,

[...] bebendo parcialmente das formulações de Reinaga, ainda na década


de 1970, desenvolveu-se o indianismo katarista. Em seu interior, havia
desde os “indianistas duros”, que rejeitavam qualquer assimilação
ocidental, aos que aproximavam as questões étnicas e de classe, sendo
estes a parcela majoritária. Em posição próxima à de Mariátegui (2010),
o katarismo enxerga o camponês como índio. (VALENÇA, 2017, p.90)

Desde o seu início, o indianismo já era marcado pela sua diversidade. Ainda na
fase inicial do movimento, por exemplo, foi criada a Confederação Sindical Única
de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), já outras vertentes focaram
nos partidos políticos, ou em um foco no academicismo. Vale destacar, também,
que na década de 80, vertentes culturalistas e despolitizadas ganharam espaço, bem
como as integracionistas. Em relação a estas, é importante destacar que

4 O termo katarismo refere-se à Tupac Katari, liderança aymara que lutou contra as autoridades coloniais
espanholas no período que precedeu a independência da Bolívia. (LEONEL JÚNIOR, 2014, p.87)

367
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A ala katarista do movimento de reinvidicação da indianidade é a que


dará corpo a esta posição. Aqui o indígena é a ausência de igualdade
diante do Estado por um pertencimento cultural (aimará e quíchua),
que se torna assim o signo identificador de uma carência de direitos
(a igualdade), de um porvir (a cidadania plena) e de uma distinção
identitária (a multiculturalidade). (GARCÍA-LINERA, 2010, p.325-326)

Nota-se, portanto, uma grande multiplicidade de pautas e manifestações,


sendo algumas delas extremamente cruciais para os rumos que o movimento
tomou e o quê ele é hoje. Dentre as mudanças que ocorreram ao longo das
últimas décadas no indianismo, o período ocorrido no final dos anos 80, marca-
do pela fase conhecida como cooptação estatal foi muito marcante. Militantes
indígenas, embalados com os avanços realizados principalmente na década de
70, sofreram derrotas eleitorais, fato este que fragilizou o movimento e fez com
que ele se descentralizasse.

Curiosamente, este também é um momento de confrontação ao interior


da CSUTCB, entre o discurso étnico-camponês katarista e indianista
e o discurso esquerdista frugalmente etnizado. A derrota de Genaro
Flores no congresso de 1988 fechará um ciclo de hegemonia discursiva
do katarismo indianista na CSUTCB, dando lugar a uma longa década
de predomínio de verões despolitizadas e culturalistas da identidade
indígena, muitas vezes diretamente emitidas desde o Estado ou as
organizações não governamentais (GARCÍA-LINERA, 2010, p.327)

Um dos marcos deste período foi a criação da Lei de Participação popular,


que, na prática, mais do que qualquer objetivo, pretendia limitar as lideranças
indígenas e cooptá-las.

A aplicação da Lei de Participação Popular, embora contribuindo em


alguns casos a um notável fortalecimento das organizações sindicais
locais que têm logrado projetar-se eleitoralmente no âmbito nacional,
também pode ser vista como um mecanismo bastante sofisticado de
cooptação de líderes e de ativistas locais, que começam a propugnar
suas lutas e suas formas organizativas ao redor dos municípios e das
instâncias indigenistas expressamente criadas pelo Estado. (GARCÍA-
LINERA, 2010, p.327)

368
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Após o período de cooptação estatal, o indianismo reemerge não apenas en-


quanto foco de resistência ao capitalismo e imperialismo, pois passa a ser hege-
mônico e atuando com claros interesses de promover a emancipação dos povos
originários. Na década de 90, a Bolívia assim como outros países da Améri-
ca Latina, vivenciava a ascensão do neoliberalismo. Neste período, houve um
enorme avanço de setores entreguistas que facilitavam que o grande capital,
com facilidade, ficasse com as riquezas latino americanas.
Na Bolívia alguns casos de avanço da violência do capital são muito emblemá-
ticos, como a tentativa de privatização da água, que resultou na Guerra da Água5;
a Guerra do Gás e a tentativa de proibição da produção da coca, para que as áreas
até então utilizadas para uma cultura econômica milenar ficassem à disposição de
empresas estrangeiras. Tais fatos somados foram fundamentais para a reorgani-
zação do indianismo e para que ele emergisse enquanto conquistador de massas,
dialogando com outros grupos revolucionários, como o marxismo.

3. Marxismo, Indianismo e o Estado Plurinacional


Na América latina como um todo, com a emergência do marxismo, princi-
palmente no início do século XX, tal forma de ver o mundo sofreu duras críticas
de outros setores revolucionários, Isso ocorre devido ao fato de muitos marxistas
ignorarem as particularidades dos países latinos e passassem a defender uma
aplicação mecânica do método materialista histórico dialético, como se este
tivesse um roteiro obrigatório a ser perfeitamente cumprido. Assim sendo, ao
analisar a realidade latino-americana partindo de uma perspectiva eurocêntri-
ca, muitos grupos revolucionários trataram os marxistas como inimigos.
No caso da Bolívia, torna-se impossível uma análise da luta de classes e
das condições materiais da classe oprimida sem levar em conta o fator étnico,
visto que este é bastante relevante quando analisamos a falta de privilégios
que os povos originários enfrentam nas ações mais simples. Desse modo, a
priori, o indianismo se contrapõe ao marxismo, visto que esta perspectiva
majoritariamente não considerava a etnicidade ao analisar a classe. Setores

5 A Guerra da Água é uma delas e ocorre de janeiro a abril do ano 2000, movida pela intenção em
privatizar o sistema de abastecimento de água na cidade de Cochabamba. A outra ficou conhecida
como Guerra do Gás, ocorrida no ano de 2003, em decorrência da tentativa de venda do gás natural
boliviano aos Estados Unidos através dos portos chilenos. (LEONEL JÚNIOR, 2014, p.91)

369
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

estalinistas, por exemplo, consideravam que a Bolívia deveria passar pelo ca-
pitalismo, devido ao quadro de atraso que o país vivenciava até então. De
modo ainda mais majoritário dentro do marxismo, o indígena camponês ain-
da não era considerado sujeito revolucionário.

O marxismo desta primeira época é, sem dúvida, uma ideologia de


modernização industrial do país no plano econômico e de consolidação
do Estado nacional no plano político. No fundo, todo programa
revolucionário dos distintos marxismos desta etapa, até os anos 80,
terá – mesmo quando tenha diversos nomes, a revolução “proletária”
do POR, “democrático-burguesa em transição ao socialismo” do Partido
Comunista Boliviano, de “libertação nacional” do Exército de Liberação
Nacional (ELN), “socialista” do Partido Socialista 1 (PS-1) – objetivos
similares: desenvolvimento incessante da modernidade capitalista
do trabalho, substituição das relações “tradicionais” de produção,
especialmente da comunidade camponesa que deverá “coletivizar-se”
ou “obreirizar-se”, homogeneização cultural para consolidar o Estado e
uma crescente estatização das atividades produtivas como base de uma
economia planificada e de umacoesão nacional-estatal da sociedade.
(GARCÍA-LINERA, 2010, p.318)

De início, o indianismo contrapunha com o marxismo da mesma forma


que tratava o cristianismo, visto que ambos eram considerados os principais
componentes ideológicos da dominação colonial contemporânea (GARCÍA-
-LINERA, 2010, p.322). Contudo, após a ascensão de vertentes marcadas pelo
discurso nacional indígena, dentro do indianismo katarista, muitas das críticas
a esta visão vão ser centradas no fato de não levarem em conta as especifici-
dades dos povos originários, tratando-os como um grande grupo homogêneo.
Nessa perspectiva, as vertentes que seguiram nesta linha de pensamento pas-
saram a criticar esta homogeneidade e passam a levar em conta as identidades
populares bolivianas. Há, ainda neste período, um enfoque na identidade aima-
rá enquanto sujeito político. Este momento é marcante pois passa a haver um
diálogo entre marxismo e indianismo.
Já passando para um contexto mais atual, pós ascensão política dos povos
historicamente oprimidos e com a nova CPE;

[...] no que se refere a uma nova relação entre estes indianismos e o


marxismo, diferentemente do que sucedia nas décadas anteriores, nas

370
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que a existência de um vigoroso movimento obreiro estava acompanhada


de uma primária, mas estendida, cultura marxista, hoje o vigoroso
movimento social e político indígena não tem como contraparte uma
ampla produção intelectual e cultural marxista. O antigo marxismo de
Estado não é significativo nem política nem intelectualmente e o novo
marxismo crítico provém de uma nova geração intelectual, tem uma
influência reduzida e círculos de produção ainda limitados. Contudo,
não deixa de ser significativo que este movimento cultural e político
indianista não venha acompanhado de uma vigorosa intelectualidade
letrada indígena ou indianista. (GARCÍA-LINERA, 2010, p.331)

O diálogo entre o marxismo e indianismo foi fundamental para que o


Estado Plurinacional passasse a ser uma realidade, visto que o debate de
classe, atrelado ao de etnia e de reconhecimento da multiculturalidade pre-
sente na Bolívia fez com que o sujeito revolucionário protagonizasse a luta
por uma maior participação política e mais setores, também participassem
do processo de disputa pelo poder.
Todo o processo de luta de classes aqui estudado foi de extrema importância
para que o atual cenário boliviano viesse a ser uma realidade. Após a Cons-
tituição um fator que foi bastante marcante foi o acesso à justiça. A partir do
reconhecimento dos idiomas originários, bem como a autonomia jurídica dos
povos indígenas, juntos fora de extrema importância para que indivíduos que
por boa parte da história eram totalmente subjugados, passassem a ter acesso ao
meio judiciário, este, importante salientar, sendo quase sempre um instrumen-
tal a serviço da manutenção do poder da elite dominante boliviana. Além disso,
importante salientar os avanços democráticos que a constituição assegura e
incentiva a participação popular na política. Com um modelo democrático que
em muitos aspectos transcende os limites da democracia liberal, há uma maior
participação indígena nas decisões políticas do país.

Conclusão
O movimento indianista foi, portanto, de extrema importância para que a
questão dos povos originários passasse a ser pautas de discussões, devido a sua
característica de colocar o índio enquanto protagonista do seu próprio processo
emancipatório. A diversidade do movimento e suas constantes mudanças frente

371
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

às adversidades históricas contribuíram para que os indígenas passassem ter a


relevância política que tem nos dias hodiernos.
O reconhecimento de que os povos originários são sujeitos revolucionários
mobilizadores de massas em uma sociedade majoritariamente autóctone e re-
sultante de um contexto histórico marcado pelo colonialismo foi fundamental
para que, atualmente, o Estado Plurinacional passasse a ser uma realidade. Des-
tarte, este não foi dado de bom grado por uma elite que sempre esteve no poder
e, inclusive, explorou os indígenas; muito pelo contrário, foi fruto de muita luta
política e das contradições de classe presentes na sociedade boliviana.
Por fim, é fundamental destacar que o indianismo, além do supracitado,
tem a grande característica de ter sido unificador de muitos grupos sociais ex-
plorados. Sendo o eixo indígena, campesino e popular, central na luta contra a
violência do capital, neoliberalismo e imperialismo.

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373
Partidarização do Sistema de
Justiça no Brasil, fetichismo
ético-punitivo e o fim da crítica

Francisco Cardozo Oliveira1


Nancy Mahra de Medeiros Nicolas Oliveira2

Introdução
A análise articula três eixos para elaborar uma visão crítica da atuação do
sistema de justiça, na atual configuração social e econômica brasileira. Inicia-se
pela avaliação da configuração de uma partidarização do sistema de justiça no
Brasil, como forma de construção de hegemonia, operada de modo a bloquear a
defesa de interesses e direitos de trabalhadores e excluídos, ao mesmo tempo em
que, pelo menos de forma implícita, promove interesses financeiros. Na sequên-
cia, investiga-se o modo como o sistema de justiça atua para colonizar o sistema
político. Procura-se mostrar como o fetichismo ético-punitivo de combate à
corrupção constitui o fundamento normativo para a atuação partidarizada do
sistema de justiça, e sua interferência na atuação dos governos identificados
com a defesa de interesses dos trabalhadores e excluídos. Por fim, a investigação
analisa os fundamentos jurídicos próprios à colonização do sistema político pelo
sistema de justiça, questionando os limites e as possibilidades da teoria crítica e
de um pensamento crítico no direito, na atualidade.
Coloca-se como problema a seguinte questão: configurou-se no Brasil uma
partidarização do sistema de justiça, apoiada por um fetichismo ético-punitivo,
cuja construção hegemônica instrumentalizou a crítica?

1 Pós-doutor pela UFSC, Doutor em direito pela UFPR, Professor do mestrado e da graduação em
direito no UNICURITIBA, Juiz de Direito no Paraná.
2 Mestre em direito pela PUCPR, Especialista em direito pela UFPR, Diretora da EMATRA IX.

375
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A principal justificativa da análise reside na indagação do alcance de um


pensamento crítico no direito, no momento em que, pelo menos no Brasil, pare-
ce ter ocorrido uma torção: a utilização do potencial da crítica pelo sistema de
justiça para inviabilizar a mudança social.
Os objetivos da análise estão relacionados à investigação do papel do orde-
namento jurídico de ampliar titularidades de direitos e garantias, e de assegurar
a ampliação da democracia na realidade brasileira.
Adota-se um método dialético e crítico, que ganha sentido na medida em
que se desenvolve o potencial da análise proposta.

1. Instrumentalização do sistema de justiça, mídias digitais


e mudança de governo no Brasil
As bases da democracia parlamentar no Ocidente moderno estiveram
assentadas na estrutura do sistema de partidos e na ideia de representação
parlamentar dos interesses do capital e dos trabalhadores. Na passagem do
Século XIX para o Século XX consolidou-se a premissa de que o funciona-
mento da democracia parlamentar dependia da defesa, ainda que mínima,
dos interesses dos trabalhadores no parlamento. No momento em que o jogo
político inviabilizasse a defesa dos interesses dos trabalhadores, estaria aberta
a oportunidade para a denúncia de parcialidade do Estado na defesa dos inte-
resses do capital. A história do partido socialdemocrata alemão, de composi-
ção com outras forças políticas, pode ser citada como exemplo de preservação
de interesses entre socialistas e conservadores, sob uma perspectiva classista,
que, pelo menos depois da 2.ª Guerra Mundial, permitiu ampliar o desenvol-
vimento social e econômico na Alemanha.
No caso do Brasil, ao longo de Século XX, observou-se uma dinâmica de in-
viabilização de partidos e governos que, ainda que de forma limitada, se propu-
seram a fazer a defesa de interesses dos trabalhadores. Para essa inviabilização
concorreram em grande medida órgãos do próprio Estado, em que o exemplo
mais notório é o das Forças Armadas e da ditadura militar iniciada em 1964.
Em vista dessa situação, questiona-se até que ponto chegou a materializar-se
no Brasil um programa político socialdemocrata, de acordo com o modelo de
concessões feitas pelo capital nas economias de tecnologia avançada, já que a
via do socialismo esteve interditada.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

De qualquer modo, nos últimos anos, observa-se uma crescente interfe-


rência do sistema de justiça na política que, diga-se de passagem, não se ve-
rifica de modo isolado no Brasil. O que ocorre no Brasil, na atualidade, não
é muito diferente do verificado recentemente no Paraguai, no Equador e em
Honduras, em que o sistema de justiça teve papel destacado na mudança de
governos. De forma contraditória na América Latina, ao mesmo tempo em
que se constroem os fundamentos de um novo constitucionalismo, baseado
no pluralismo e na democracia participativa, a exemplo do caso da Bolívia,
conforme anota Antonio Carlos Wolkmer (2013), instrumentaliza-se a atua-
ção política do sistema de justiça que converge para a promoção de mudanças
de governo e de redução de direitos.
Observado esse contexto, convém verificar o sentido da configuração de
uma partidarização do sistema de justiça no Brasil, capaz de caracterizar es-
pécie de colonização do sistema político pelo sistema de justiça, nesse sentido
contrário ao pressuposto por Marcelo Neves, quando faz a análise da insufici-
ência funcional na evolução da socialidade brasileira. Segundo Marcelo Neves,
na modernidade periférica evidencia-se uma relação destrutiva entre o sistema
jurídico (Têmis) e o sistema de poder (político) (Leviatã), por meio da sobrepo-
sição do sistema de poder sobre o código lícito/ilícito (sistema jurídico); assim,
diz ele, “a diferença entre lícito e ilícito não desempenha satisfatoriamente a
função de segundo código de poder, estando ausente assim uma característica
sistêmica do Estado Democrático de Direito.”(2006, p. 236-244). A inversão que
se opera, na atualidade, diria respeito a uma relação destrutiva do código lícito/
ilícito sobre o código do poder político, com a potencialização de riscos para a
procedimentalidade do Estado Democrático de Direito no Brasil.
A colonização do sistema político pelo sistema de justiça pode resultar em
duas formas de bloqueios: uma interna, correspondente aos obstáculos para a
procedimentalidade da democracia; e outra externa, de instrumentalização do
Poder Judiciário em uma das fronteiras das guerras assimétricas, características
da geopolítica atual de alteração de regimes de governos à revelia de processos
eleitorais e, muitas vezes, com o uso da força.
Os bloqueios que podem emergir para a procedimentalidade da democracia
no Brasil derivam do modo como se configurou a judicialização da política ou,
em outros termos, a politização do Poder Judiciário. Tornou-se comum juízes
manifestarem preferências político-partidárias nas redes sociais, ao mesmo
tempo em que se intensificam formas de judicialização da política. É necessário

377
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

distinguir formas de judicialização da política de politização da justiça. A


princípio, uma compreensão dos juízes do alcance da política na estrutura
de procedimentalidade do Estado Democrático de Direito não se revelaria
prejudicial ao exercício da jurisdição, principalmente daqueles encarregados
do controle de constitucionalidade. Na questão da judicialização da política,
o discurso que se tornou aceito é o de que a omissão dos Poderes Executivo e
Legislativo passou a exigir a atuação de uma jurisdição supletiva, garantidora
da efetividade de direitos sociais e de políticas públicas. Esse fenômeno,
segundo Antoine Garapon, se manifestou na França para quem o juiz ativista
pode colocar em risco a democracia quando cria direito pretoriano, ou
quando impede reformas desejadas pela maioria (1999, p. 74). Em alguma
medida, Owen Fiss observa que, nos EUA, também se manifestaram formas
de ativismo judicial, principalmente nas décadas posteriores ao New Deal e à
2.ª Guerra Mundial, que ele denomina de era dos direitos civis, derivada das
alterações de uma concepção de Estado inscrito na teoria do contrato social,
preocupado com a segurança, para uma outra visão de Estado, comprometido
com a melhoria das condições de vida (2007, p. 87). A judicialização da
política, como se observa, nem sempre se revela nociva; contudo, ela pode
derivar para formas de bloqueio, quando assume o papel de substituto da
política e abre espaço para a partidarização da justiça.
Na realidade brasileira as mídias digitais passaram a influenciar formas
de judicialização da política, mediante atos de mobilização que conferem le-
gitimidade à atuação de agentes do sistema de justiça. Com o suporte da
legitimidade alcançada no contexto das mídias digitais, a judicialização da
política pode atingir um grau de operabilidade que, pelo menos no Brasil, per-
mitiu interferir nas políticas de governos, não apenas para complementá-las,
mas para deslegitimá-las e substituí-las consolidando formas de partidarização
do sistema de justiça; consequentemente, tomando o sentido da premissa de
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (1987), com a atuação partidarizada do
sistema de justiça, configura-se um modo de hegemonia e de antagonismo.
Advirta-se que a noção de hegemonia de Laclau, todavia, não está isenta de
controvérsias. Perry Anderson formula crítica incisiva à concepção de hege-
monia de Laclau que, segundo ele, incorpora imprecisões e assume caráter
idealista afastando-se da formulação gramsciana (2018, p. 110-117). Gramsci
havia formulado uma concepção de hegemonia que, de certo modo, substituía
a luta de classes pela formação de maiorias eleitorais. As dificuldades em tor-

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

no da ideia de hegemonia aumentam em face dos vários significados políticos


e ideológicos que ela assumiu ao longo da história; de todo modo, no caso
brasileiro, busca-se substituir o conflito inerente à luta política e as visões de
mundo pela mediação da forma judiciária, com o desdobramento de um outro
eixo de antagonismo; uma espécie de law-satured society que, como lembra
Stefano Rodotá, mais do que necessidade, é indicativo de instabilidade e da
deriva (2006). No Brasil, a forma judiciária, característica da sociedade mo-
derna, passa a assumir o papel de instância ultima de arbitramento político,
em meio a potencialização de crises e da violência, e de arranjo de interesses
difusos para os quais a noção de classe se tornou relativa. Configurou-se, por-
tanto, uma biopolítica que confere ao sistema jurídico o poder de instância
reguladora da vida, do governo e da sociedade, e que se apoia em formas de
punição e dispositivos de comportamento moral e religioso.
O encolhimento das formas de consenso, de certo modo acentuado pela
própria atuação do sistema de justiça como dispositivo político, viabilizou a
emergência no espaço público brasileiro do que pode ser qualificado de con-
sensos mínimos, impostos por um discurso de urgência e de caos iminente
e construídos em torno de interesses dos mercados financeiros globalizados.
Os interesses do mercado surgem como a possibilidade última de consenso.
Rubens Casara, referindo-se à realidade brasileira atual, é mais específico ao
afirmar que o sistema de justiça atua na defesa dos interesses de mercado
(2018, p. 133). Como diz Fabio Ciaramelli, em uma sociedade incapaz de for-
mar uma representação democrática, incapaz de legitimar-se sob as bases do
consenso político, não resta outra alternativa que não a de confiar no jogo
das forças de mercado, ou seja, de buscar legitimidade em torno do consenso
econômico, com os riscos inerentes da mentalidade competitiva e da desinte-
gração social (2013, p. 227-228).
A sujeição da política à forma judiciária, na medida em que substituiu no
Brasil o vazio aberto pela redução das possibilidades de consensos no campo
da política pelas regras ditadas pelo mercado e pela globalização financeiriza-
da, abriu espaço para o impeachment de 2016, e a consequente mudança de
governo à margem do processo eleitoral. A seu modo, repetiu-se o ocorrido em
crises sociais e políticas anteriores, em que os detentores do poder econômico,
minoritários e sem votos, buscam atalhos para assegurar a manutenção do po-
der, mediante a instrumentalização do sistema jurídico.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

2. Fetichismo ético-punitivo, sofrimento e sua


dinâmica totalitária
A partidarização do sistema de justiça no Brasil ganha relevância no contex-
to do discurso de moralização da política e de luta contra a corrupção; tenta-se
substituir a ideologia por uma ética do agir correto e honesto, que seria caracte-
rístico do cidadão comum. A mensagem tem o propósito de atingir a maioria da
população, de renda reduzida, que atribui relevância aos valores de honestidade
e do agir correto. Ao mesmo tempo em que apregoa o mal que aflige todos, o
discurso moralizante escamoteia o fato de que, como lembra Armando Boito
Junior, a corrupção se limita a elite e a classe média que tem acesso a cargos
no Estado, ou que com ele contrata no âmbito da atividade empresarial (2018,
p. 263); ou seja, a corrupção, para além da questão de desvio moral ou ético,
tem uma componente classista, diretamente relacionada ao exercício e à manu-
tenção do poder pelas elites, na defesa de interesses financeiros e econômicos
próprios. Assim, se a corrupção caracteriza forma violenta de extração de renda
pela apropriação privada de recursos públicos, ela não decorre de uma perver-
são moral ou ética, que possa ser combatida no plano individual; antes, o que
a corrupção encerra é um modo sistêmico de apropriação de recursos públicos
inerente à própria dinâmica de acumulação do capital.
O discurso de degradação moral dos agentes públicos, de partidos e de vários
membros do parlamento incumbiu o sistema de justiça do papel que já coube
às Forças de Armadas em 1964, de luta contra a corrupção e de salvação moral
do país. O combate à corrupção protagonizado nos últimos tempos no Brasil
somente se tornou força de antagonismo no campo político na medida em que
o discurso moralizante propiciou meios de legitimação da ação ético-punitiva
conduzida pelo sistema de justiça e seus agentes integrantes da polícia, do Mi-
nistério Público e do Poder Judiciário. A punição exemplar de corruptos assu-
miu feição fetichista, rito de expiação de culpa e de eleição de bode expiatório
como forma de superação da crise moral em que supostamente mergulhados a
política e a administração pública no Brasil.
Marx assinalou o caráter fetichista ou místico, e até religioso, da mercadoria
que, segundo ele, consistiria no fato de que ela opera por meio de um duplo
reflexo; reflete aos homens as características sociais do trabalho como
propriedades objetivas das coisas e, ao mesmo tempo, reflete a relação social

380
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

dos trabalhadores com o trabalho como uma relação social entre objetos;
desse modo, diz ele, o trabalho se torna mercadoria (2006, p. 71). Em Marx
o fetichismo da forma-mercadoria reproduziria a falta de reconhecimento, na
medida em que o trabalhador não se reconhece no produto do seu trabalho e,
ao mesmo tempo, a mercadoria adquire objetividade mensurável pela abstração
do valor de troca e sua capacidade idealizada de produzir equivalentes.
Em Freud a ideia de fetichismo adquire vários significados; talvez o que
mais diga respeito ao problema de definição de um fetichismo ético-punitivo
no Brasil é o que situa o fetichismo como uma dinâmica psicanalítica do ato
reprimido e recalcado, que retorna por meio de uma idealização ou fantasia
(1927); na ideia de fetichismo pensado por Freud opera-se um jogo de troca
de objetos e de fantasia.
Tanto em Marx como em Freud a ideia de fetichismo não chega a obliterar
toda a possibilidade de verdade; a pessoa sabe discernir o que é verdadeiro, mas
age como se não soubesse fazê-lo.
O fetichismo não apela para a irracionalidade; ainda é a razão que opera;
mas uma razão embebida pelo cinismo; ou seja, como diz Peter Sloterdijk, a
consciência infeliz da modernidade sobre a qual o Esclarecimento agiu ao mes-
mo tempo com sucesso e perda; de forma sintética, ele a define como a falsa
consciência esclarecida (2012, p. 34). Em torno dessa mesma questão Vladmir
Safatle sustenta que, do ponto de vista antropológico, o fetichismo é forma de
colonização do outro reduzido à condição de suporte de uma imagem fantasmá-
tica; uma fantasia que projeta a imagem de in-diferença absoluta e de ausência
de alteridade (2010, p. 134). Mas o fetichismo também nutre uma razão cínica
que Vladimir Safatle exemplifica com a música de Stravinski que, segundo ele,
constitui o paradoxo da falsa consciência esclarecida; forma de uma consciência
cínica que representa os gestos musicais de uma consciência reificada, mas que
demonstra, a todo momento, dela tomar distância ( 2008, p. 194-200); o caráter
paradoxal da razão cínica já não provoca estranhamento.
Tomada a realidade brasileira, a estetização da violência e da submissão ope-
ra sob uma forma de fetichismo, mediante projeção de fantasias e de instrumen-
talização do outro, e de uma razão cínica, que atualiza ideias mortas instrumen-
talizando fundamentos do direito para salvaguardar interesses do mercado, em
detrimento dos interesses da cidadania. É nesse sentido que pode ser afirmada
a configuração de um fetichismo ético-punitivo no Brasil, na esteira da ação
moralizante de combate à corrupção.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

De certo modo, o fetichismo ético-punitivo levado a efeito pelo sistema de


justiça no Brasil, em torno do combate à corrupção, envolve uma espécie de
idealização e de fantasia, a de que a punição e a identificação de um bode
expiatório abrirá espaço para uma nova forma de socialidade e de moralidade
pública. Não está em causa, contudo, uma forma de ignorância ou de desco-
nhecimento da complexidade do fenômeno da corrupção, já que a classe média
e a elite que retiram benefícios da corrupção, de forma paradoxal, se revoltam
contra ela. Não se trata propriamente da tentativa de eliminar a corrupção, que
é desejável, mas da ação que elabora e mantém um discurso capaz de antagoni-
zar outros discursos na esfera pública, do que emerge seu caráter essencialmente
político e partidarizado. O combate à corrupção, portanto, não se restringe a
operabilidade de técnicas repressivas ou de atuação do direito penal; no Brasil,
o combate à corrupção, que opera desde a estrutura organizacional e adminis-
trativa do Estado, se amplia e assume uma variante política, destinada a fustigar
a defesa de interesses de trabalhadores e excluídos.
A idealização do fetichismo ético-punitivo de combate à corrupção in-
corpora a dinâmica do retorno do recalcado e do reprimido, que lhe é típica,
em face da realidade brasileira, com seus desdobramentos de ódio, violência
e ressentimento. O combate à corrupção, desse modo, expressa uma forma
de sofrimento e de desamparo decorrente da impotência diante da crise e da
falta de perspectivas para o futuro.
Segundo Hal Foster, o surrealismo aproveitou-se dos estudos de Freud, em
torno da ideia de retorno do reprimido, para expressar o sinistro que retorna
com fins disruptivos, de modo a elaborar no campo da arte a crítica da maqui-
naria e da industrialização moderna, da repressão sexual e da cultura burguesa,
com suas formas de aceleração do arcaico e do kitsch como mercadoria. Nesse
sentido, diz ele, o surrealismo busca qualificar-se como uma crítica ao fascismo;
enquanto o fascismo explora o sinistro para bloquear o passado e o presente, em
meio a uma repetição trágica de estruturas sociais e psíquicas atávicas, o sur-
realismo explora o sinistro para desestabilizar o presente e abri-lo ao futuro, de
modo a transformar o retorno compulsivo do reprimido em modos de liberação
do sujeito e da ação social e política (2008, p.300).
Na situação da realidade brasileira atual, o fetichismo ético-punitivo de
combate à corrupção operou o retorno do reprimido mediante o bloqueio do
presente e a retomada de valores e ideias do passado e da cultura política da
ditadura de 1964. Emergiu na sociedade brasileira a repulsa a toda a forma

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de diferença, com seu corolário de preconceitos racialistas, impulsionada pelo


desejo de segurança e estabilidade perdidos com o fim dos governos militares.
O modo como se opera o retorno do reprimido na realidade atual está atre-
lado à especificidade do sofrimento que se manifesta na construção da sociali-
dade brasileira. Christian Ingo Lenz Dunker procura identificar a gênese do so-
frimento na construção da socialidade brasileira no que ele denomina de lógica
do condomínio (2015, p. 47-106). A busca de segurança e de acesso a serviços
conduz a uma forma de vida de isolamento e de separação territorial, em que
o perigo está fora, enquanto se elabora uma ilha de tranquilidade em meio ao
caos urbano; Chirstian Dunker observa que, no modelo jurídico e social de con-
domínio brasileiro, está em causa uma forma de vida comum sem comunidade,
em que muros e cercas assumem o papel de meios de defesa, de impedimento
da entrada de estranhos e de proteção contra um inimigo potencial. O que é
importante assinalar, é que a lógica do condomínio constitui um traço marcan-
te da construção da socialidade brasileira que, em face da desigualdade, opera
por meio da separação, da exclusão, de muros e de territorialização repressiva.
A forma de vida estruturada pela lógica do condomínio acaba potencializando
a violência e o sofrimento, na medida em que, segundo o próprio Christian
Dunker, degenera em patologia social expressa no ressentimento, no cinismo,
na degradação do respeito e no sentimento de isolamento (2015, p. 66).
Assim, o retorno do reprimido potencializou o sofrimento que estava latente
na construção da socialidade brasileira e fez emergir, de forma objetiva, o senti-
mento de ódio e de recusa em relação ao desejo que o outro demanda e a tudo
que possa conduzir a partilha da vida comunitária.
Os bloqueios decorrentes do fetichismo ético-punitivo, considerado o
modo de evolução da socialidade brasileira, estruturado por formas de vida
apoiadas na separação, na exclusão e na territorialização repressiva, podem
viabilizar práticas de totalitarismos ou de políticas de inimizade, neste últi-
mo caso no sentido da formulação de Achille Mbembe. Obsevando a dinâ-
mica da política contemporânea, Achille Mbembe afirma que vão resurgin-
do a lei do sangue, a lei da retaliação, o dever de raça, base do nacionalismo
atávico que aprisiona a imaginação e faz da ordem política organização para
a morte (2017, p.15). Emerge uma forma de totalitarismo que, como lembra
Michel Foucault, está entranhado na constituição da socialidade moderna
e da democracia liberal, e que, no exercício do poder, dissemina o perigo e
o medo e adota uma biopolítica de segurança e de proteção de indivíduos

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

perigosos que ele mesmo nomeia: mulheres, homossexuais, criminosos, des-


viantes e contestadores (2011). Nesse sentido, é necessário ressaltar o que
afirma Lorezo Bernini de que a democracia liberal pode não ser, necessa-
riamente, o antídoto do dispositivo totalitário, mas uma sua variante, que,
desse modo, exige formas de imunização (2007, p. 141-155).
Assim, a ação repressiva no Brasil corre o risco de não ter reduzido ou eli-
minado práticas de corrupção, dado o paradoxo de que os revoltados com as
práticas da corrupção são os que invariavelmente se beneficiam dela, ao mesmo
tempo em que, em meio aos vários modos de bloqueios, pode ter viabilizado o
retorno de formas de totalitarismo reprimidas, que operam tanto na vida social
como no exercício do poder.

3. Torção da normatividade dos princípios na aplicação


do direito, hegemonia da razão cínica e o fim da crítica
A questão da normatividade dos princípios ganhou nova dimensão a partir
do debate entre H.L.A Hart e Ronald Dworkin. Enquanto Hart fez a defe-
sa da necessidade de compreensão dos elementos internos das regras, o que
remete para os desdobramentos da realidade social, tentando manter as pre-
missas do positivismo jurídico, Dworkin atacou os fundamentos positivistas
que enxergava na reflexão de Hart, para fazer a defesa de um ordenamento
jurídico apoiado em regras e princípios.
A retomada desse debate, em chave de reconstrução histórica e normativa,
na esteira da filosofia hegeliana, se justifica na medida em que permita esta-
belecer os efeitos dele na cultura e na prática jurídica brasileira e, o que mais
importante, o modo como pode ter influenciado a colonização da política pelo
sistema jurídico, com seu corolário de partidarização do sistema da justiça.
Um aspecto da polêmica entre Hart e Dworkin, que serve ao propósito de
avaliar seus reflexos na cultura jurídica brasileira atual, diz respeito ao problema
da intencionalidade ou das razões da conduta ou do comportamento. Na esteira
da virada linguística, Hart sustenta que é necessário compreender a intencio-
nalidade da conduta, de modo a intuir o sentido e o alcance da aplicação da
regra. De acordo com Hart, é possível afirmar a existência de uma prática social
admitida como regra, que ele denomina de regra social, e que, segundo ele, en-
tre outros aspectos, pode ser identificada pelo seu aspecto interno, que consiste

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

em reconhecer no comportamento um padrão geral a ser observado por todos; a


regra social, portanto, consiste no comportamento regular e uniforme que pode
ser objetivado pela interpretação (1961, p. 65).
Na inversão linguística operada por Hart, ganha relevo o aspecto social da
normatividade da regra, que exige uma hermenêutica da intencionalidade ou
das razões da ação ou do comportamento. Nesse sentido, Ronaldo Porto Ma-
cedo Junior sustenta que a perspectiva colocada por Hart exige levar em conta,
na interpretação das normas jurídicas, o conjunto de regras sociais aceitas em
uma determinada forma de vida; logo, diz ele, somente uma perspectiva social
de intersubjetividades é capaz de indicar a linguagem significativa sobre uma
prática social regulada por regras jurídicas (2013, p. 137).
Contrapondo-se à tentativa de Hart de salvar o positivismo jurídicos das
suas limitações, Ronald Dworkin questiona o alcance das regras sociais,
no modelo proposto por Hart, de incluir a possibilidade de reconhecimen-
to convencional das práticas sociais; Dworkin afirma que é necessário que
o sistema jurídico possa assimilar a normatividade dos princípios, em face
do caráter controverso e dos desacordos teóricos entre os juristas; de certo
modo, Dworkin questiona as fontes sociais do direito, ao mesmo tempo em
que sustenta a necessidade de uma prática argumentativa na elaboração da
normatividade; ele afirma que é difícil sustentar a aceitação de uma regra
oriunda do costume e que, desse modo, a única saída é assimilar a ideia dos
princípios como direito, de forma que, poderia ser sustentado que uma obri-
gação jurídica existe sempre que as razões que a sustentam, em termos de
princípios jurídicos, são mais fortes que as razões contrárias (2010, p. 70-71).
Assim, evidencia-se no pensamento de Dworkin o caráter interpretativista do
direito, apoiado em uma razão argumentativa.
Os reflexos desse debate na realidade brasileira podem ter conduzido a uma
encruzilhada: ao mesmo tempo em que a aceitação da normatividade dos prin-
cípios serviu para ampliar titularidades de direitos, por exemplo no direito à
saúde, conduziu a incertezas e a justificação de decisões discricionárias. Segun-
do Ronaldo Porto Macedo Junior, a aposta na normatividade dos princípios no
Brasil decorreu de uma visão restrita do alcance metodológico do caráter inter-
pretativista do direito, no sentido do preconizado por Ronald Dworkin (2013,
p. 13). Com efeito, assumir o caráter interpretativista do direito exige considerar
toda a complexidade fenomenológica da relação jurídica e seus desdobramentos
materiais na realidade social.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Ocorre que no Brasil, conforme lembra José Reinaldo de Lima Lopes, na es-
teira da cultura do naturalismo jurídico, não chegou a configurar-se uma virada
linguística, pelo menos em face da premissa de Miguel Reale de um momento
bilateral na conduta admitido como experiência social (2014, p.238); os contras-
tes decorrentes das assimetrias sociais e seus conflitos acabaram contornados
no pensamento jurídico brasileiro, por meio de uma fuga idealista e de refúgio
na abstração dos conceitos, manejadas na via de um positivismo mitigado pela
prática jurisprudencial. Nesse contexto, o caráter normativo dos princípios, ao
invés de abrir oportunidade para uma perspectiva de intersubjetividade e de
compreensão material da normatividade, reforçou a cultura idealista do jogo
entre conceitos e legalismo estrito. Ganhou relevo o caráter argumentativo do
direito, na esteira da proposta de Dworkin de uma prática interpretativa vol-
tada para enfrentar desacordos, em face da impossibilidade de consenso sobre
o alcance da normatividade e em meio às diferenças de cultura e de valores.
A crítica de Ronaldo Porto Macedo Junior de uma compreensão restrita do
caráter interpretativista do direito no Brasil, nesse sentido sujeita ao jogo argu-
mentativo, evidencia os limites da reflexão que ela elabora, porque não leva em
conta os desdobramentos materiais da normatividade, que somente poderiam
ser compreendidos à luz das formas de vida em sociedade. Para o propósito de
compreensão da dialética implicada na normatividade dos princípios, de forma
paradoxal, o pensamento de Hart se revela mais rico.
No rescaldo da assimilação na cultura jurídica brasileira da normatividade
dos princípios, concebida de forma abstrata e idealista, a partidarização do sis-
tema de justiça operou uma torção: utilizou o arsenal do pensamento crítico e
antiformalista, que ganhou força com a Constituição de 1988, para sustentar o
discurso ético-punitivo de combate à corrupção. Tratou-se, de um lado, da ação
mediada por uma razão cínica, que serviu ao propósito imediato de dar suporte
ao movimento político de substituição de governo, sem eleição; e, de outro, com
implicações no campo da produção do saber no campo jurídico, de apontar para
os limites da própria crítica.
A atuação partidarizada do sistema de justiça também colocou em questão
a crítica da imparcialidade do juiz, que sustentava na linha da análise de Fa-
brício Dreyer de Ávila Pozzebon a ausência de neutralidade de valores e dos
sentidos da realidade social na elaboração da decisão judicial, embora devesse
observar equidistância em relação aos interesses em jogo na demanda (2007,
p. 166-182); a crítica parece ter viabilizado a decisão judicial orientada pelas

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

expectativas alimentadas pelos meios de comunicação de massa e pelas mídias


digitais; emergiu uma forma de imparcialidade estratégica e política, que oscila
de acordo com os interesses em jogo, comprometida com valores regressivos e
identificada politicamente com parcelas significativas da sociedade, ao mesmo
tempo em que, paradoxalmente, órgãos de controle judicial atuam para impedir
a manifestação política de juízes.
A abertura propiciada pela normatividade dos princípios e a adoção de uma
prática de imparcialidade estratégica e política contaminaram a aplicação do
direito penal de valores morais, com a consequente elasticidade dos tipos e da
compreensão da conduta criminosa. A intencionalidade da conduta, em termos
de dolo ou de culpa, por exemplo, viu-se colhida por meio de uma hipótese abs-
trata do que o agente devia saber ou que se esperava que ele soubesse. Aumen-
tou o encarceramento com o respectivo descarte do caráter de ressocialização
da pena. Assim, frustrou-se, ou pelo menos reduziu-se, o potencial da crítica
antiformalista no pensamento jurídico brasileiro.
Contudo, para além do efeito estritamente dogmático, interessa observar o
modo como o discurso ético-punitivo no Brasil se apoiou na visão principialista
do direito e propiciou abertura para uma hegemonia apoiada na razão cínica,
cujo desdobramento se objetiva na partidarização do sistema de justiça.
Esse impasse exige verificar em que medida se sustenta um pensamento crí-
tico capaz de fazer a denúncia da partidarização do sistema de justiça e de
redescobrir a capacidade do direito de operar a mudança social, o que na reali-
dade brasileira significa reduzir as assimetrias e desigualdades.
Antes, porém, de uma forma mais ampla, convém tratar da configuração
do esgotamento da crítica, o que evidenciaria os limites da mudança social no
contexto dos desdobramentos da economia capitalista.
Tomado o campo da arte como paradigma de reflexão, a crítica teria dei-
xado de tomar o distanciamento necessário para a compreensão da forma
artística. Como diz Eduarda Neves, fazendo referência à crítica artística, a
arte surge como prática trend e a crítica se ajusta à racionalidade econômica
como necessidades do capital; ela lembra a expressão de Theodor W. Adorno
para afirmar que a crítica se tornou uma espécie de trabalho administrado
(2016, p. 85-91). Embora referida à arquitetura, Jorge Figueira faz uma análise
irônica, mas pertinente, do problema da crítica, que serve para assinalar a
passagem da crítica de arte à crítica social; ele retoma o paralelo fundamental
da crítica que está etimologicamente ligada à questão da crise. A emergência

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das crises das formas da acumulação capitalista alimentou os fundamentos de


uma teoria crítica que é, essencialmente, crítica social; a crítica indicaria o
remédio para a cura da crise. Ocorre que, segundo Jorge Figueira, a crise se
tornou permanente; assim, diz ele, a crise entrou em velocidade de cruzeiro; é
doença crônica e incurável e quando não é possível formular a cura, a crítica
passa a opinião, comentário, emoji; restou à crítica social comprometida com
a mudança social fazer o acompanhamento da trajetória da crise ou tentar
controlar a doença para a qual não é mais possível formular a cura (2016, p.
133-146). As redes sociais reduziram a crítica a opinião; a razão cínica, desse
modo, esvaziou a crítica social e, consequentemente, a possibilidade de solu-
ção para a injustiça produzida pelas crises da acumulação capitalista.
O diagnóstico do esgotamento da crítica, contudo, não goza de una-
nimidade. Jacques Rancière, por exemplo, sustenta que é falso dizer que a
tradição da crítica social e cultural está esgotada; ele afirma que a crítica
social foi elevada de volta à origem, que seria a interpretação da modernida-
de como ruptura individualista do elo social e da democracia como indivi-
dualismo de massa; nesse sentido, a nova atitude crítica deveria apostar no
dissenso e no processo de subjetivação que possibilita a ação de capacidades
que atacam a unidade do dado e desenham outro mundo possível, onde
a emancipação é a coletivização de capacidades investidas pelo dissenso
(2017, p. 27-49). Tratar-se-ia de reconfigurar sentidos a partir de uma situa-
ção dada, no interior das relações sociais e políticas.
O debate aponta, de um lado, para a redução da capacidade transformadora
da critica, que estaria confrontada com a emergência da crise da sociedade
capitalista tornada permanente; de outro, a crítica estaria restrita a operar no
interior da vida social de modo a reconfigurar nexos de sentido a partir do dis-
senso e do conflito que lhe é inerente.
A teoria crítica, consequentemente, perdeu seu caráter revolucionário, e, no
mínimo, encontra limites para formular os fundamentos das mudanças sociais,
em especial na realidade social brasileira, em que a difusão de comentários e
opiniões embalados pelo cinismo nas redes sociais se tornou uma prática mi-
litante, que demoniza a política e os políticos, e prega soluções simplistas para
problemas sociais complexos, como a questão da segurança e do trabalho. A
crítica acabou assimilada pela tradição.
Na medida em que a razão cínica reduziu a crítica a opinião, onde tudo pode
ser criticado por todos, a partir da manipulação das mídias digitais, esvaziou-

388
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

-se a capacidade de apontar possibilidades de mudança social, para além da


sociabilidade propiciada pela economia capitalista; daí a reemergência nos fun-
damentos do direito de conteúdos morais articulados para ampliar formas de
punição. O discurso moralizante penetrou os institutos jurídicos, apoiado no
caráter abstrato concebido à normatividade dos princípios. Captar a intencio-
nalidade da conduta reduziu-se a mero jogo argumentativo, em que os meios
de comunicação de massa se encarregam de formular o sentido preponderante,
invariavelmente de ampliação de formas de punição e de restrição de direitos e
de titularidades para os mais pobres.
O discurso ético-punitivo e seu correlato objetivo de partidarização do
sistema de justiça no Brasil somente se tornou possível, no momento em que a
crítica não se mostrou capaz de confrontá-lo; disso resultam duas consequên-
cias: no campo político, limita-se as possibilidades de antagonizar o discurso
hegemônico ético-punitivo; no campo jurídico acabam reduzidas as formas
de proteção dos direitos da pessoa. Assim, enquanto o pensamento crítico
no Brasil não se mostrar capaz de confrontar a hegemonia da razão cínica e
de elaborar a denúncia da partidarização do sistema de justiça, que exigirá
compreensão e explicitação dos desdobramentos materiais da normatividade
e da crise permanente da economia capitalista, permanecerá limitada a capa-
cidade do direito de operar a mudança social, com seu corolário de sofrimento
para trabalhadores e excluídos.

Conclusão
A investigação buscou identificar os elementos determinantes de uma
forma de partidarização do sistema de justiça, com a consequente coloni-
zação do sistema político pelo sistema jurídico. Nesse sentido, a análise
indica que a partidarização do sistema de justiça no Brasil apoiou-se em
três eixos complementares:
a) desde uma perspectiva político-ideológica, o primeiro eixo indica a sujei-
ção da política à forma judiciária, no modelo do contraditório e do procedimen-
to do inquérito, em face da redução das possibilidades de consensos limitadas a
obter legitimidade nas forças econômicas de mercado;
b) o segundo eixo, de cunho jusfilosófico, aponta para a ação moralizante
no combate a corrupção, em que o sistema de justiça, apoiado em uma espécie

389
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de fetichismo ético-punitivo, mediante o bloqueio do presente e a retomada de


valores do passado, faz emergir formas de totalitarismo entranhadas na constru-
ção da socialidade brasileira;
c) o terceiro e último eixo, que leva em conta premissas de fundamentos do
direito e da justiça, objetiva o modo como a estrutura do sistema jurídico surge
implicada na emergência da partidarização do sistema de justiça; ao capturar
a dinâmica de abertura da normatividade dos princípios, mediante categorias
idealistas e abstratas, reduziu neles a capacidade de colher a normatividade nos
desdobramentos da materialidade da vida social.
A síntese dialética aponta para a tensão da negatividade que emerge da aná-
lise: a partidarização do sistema de justiça, apoiada no fetichismo ético-punitivo,
produziu uma nova hegemonia, capaz, inclusive, de reduzir a eficácia do pen-
samento crítico; nem por isso está imune de ser confrontada, dado o potencial
disruptivo que ela mesma encerra. Diante da consciência da contradição, o que
permanece indefinido, no tempo histórico, é o quanto estamos todos dispostos a
fazer a crítica radical da estratégia de partidarização do sistema de justiça, e ace-
lerar a emergência do que vem depois.

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392
Teoria Marxista como base teórica
e metodológica do Serviço Social:
reflexões acerca da influência do
marxismo na construção do Código
de Ética dos (as) Assistentes Sociais

Emanuelle Monaliza de Sousa Gomes1


Ferdinanda Fernandes Gurgel2
Letícia Karoline Brito Medeiros Dantas3
Thássila Tamires Batista Alves4

Introdução
O Serviço Social perpassa até hoje por processos de construção e recons-
trução para se consolidar como uma profissão sócio-técnica, atuando em defesa
e legitimação da classe trabalhadora. Ao longo de sua história sofreu transfor-
mações teóricas, operativas e políticas, ao passo que o capital se reinventa, o
Serviço Social se transforma.

1 Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre a Terceira Idade (NEPTI/FASSO/UERN), Membro


do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas (GEPP/UERN), Bolsista voluntária do PIBIC.
2 Assistente Social (UERN), Gestora de RH (UNP), Especialista em Gestão Pública Municipal
(UERN), Especialista em Psicologia Organizacional (UNP), Mestre em Ambiente, Tecnologia e
Sociedade – UFERSA.
3 Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisas sobre a Terceira Idade (NEPTI/FASSO/UERN),
Representante do Centro Acadêmico de Serviço Social Sâmya Rodrigues Ramos (CASS).
4 Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisas sobre a Terceira Idade (NEPTI/FASSO/UERN), Membro
do Núcleo de Estudos sobre a Mulher Simone de Beauvoir (NEM/FASSO/UERN), Bolsista voluntária
do PIBIC, Representante do Centro Acadêmico de Serviço Social Sâmya Rodrigues Ramos (CASS).
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O período ditatorial foi um momento de grandes transformações societá-


rias, o golpe de 1964, foi um período de retirada de direitos, repressão e desuma-
nização, contudo, também foi um período de crescimento e construção política,
com a união de trabalhadores, luta de classes em busca da democracia, direitos
sociais e responsabilização do Estado. Esse movimento contraditório, como o
Modo de Produção Capitalista, reafirma as palavras de Iamamoto, (1998); “a
questão social é desigualdade, mas também é rebeldia, luta, pois os indivíduos
sociais a elas também resistem e expressam seu inconformismo”.
É portanto, no contexto das lutas de classes que o Serviço Social se legiti-
ma como profissão, usado em benefício do Estado para implementação de suas
políticas sociais, via entidades sociais e administrativas. Até então, o Serviço
Social atuava no processo de recristianização da sociedade, restauradora dos
bons costumes e da moral, com grandes influências da Igreja católica e teorias
conservadoras (positivismo). Contudo, a forma de atuação até então não dava
resposta ao novo contexto social.
Para responder a novas demandas fez-se necessário um Serviço Social mais
profissionalizado, foi onde se começou a pensar dentro do Serviço Social o seu
fazer na realidade brasileira. Em meados das décadas de 1950 e 1960 que surge
no Brasil o Movimento de Reconceituação do Serviço Social, onde a profissão
evolui em caráter técnico e formativo, se aproximando de novas influências
teóricas, como o marxismo; tais processos legitimaram-se na profissionalização
dos assistentes sociais e que interferem/ascendem até os dias atuais.
O objetivo do estudo é analisar a influência da teoria Marxista durante o proces-
so de profissionalização do Serviço Social, na consolidação do seu Código de Ética
de 1993, bem como sua regulamentação instituída na lei n° 8.662 de 07 de junho de
1993. Tendo por intuito compreender de que forma se deu tais influencias, e como
isso marcou o Serviço Social na sua ruptura com o conservadorismo e ampliação de
um novo projeto categórico que vincula-se na luta e defesa da classe trabalhadora.
O presente artigo é dividido em três partes, na primeira faz necessário o res-
gate contextual histórico sobre o surgimento do Serviço Social nas suas protofor-
mas. O Segundo ponto terá seu caráter dialético, analisando as transformações
societárias e de que forma esse movimento influencia no Serviço Social, explican-
do o momento de ruptura de suas bases conservadoras e seu novo direcionamento
teórico, voltada as bases marxistas. E por último, a contribuição que o método
materialista-histórico-dialético agrega na construção de todo o arcabouço teóri-
co, metodológico e legal da profissão (projeto ético político, diretrizes curricula-

394
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

res, lei de regulamentação da profissão e em especifico focalizando o Código de


Ética dos (as) assistentes sociais). Buscando trazer reflexões sobre a importância
da teoria marxista para se compreender as relações sociais oriundas do sistema ca-
pitalista e como elas influenciam o fazer profissional do Serviço Social Brasileiro.

Metodologia
Este trabalho foi elaborado a partir de revisão bibliográfica de autoras (es) que
abordam o tema escolhido para estudo, tais como Marilda Iamamoto e Raul de Car-
valho (2014); Carlos Montaño e Maria Lucia Duriguetto (2011); Manuel M Castro
(1987); José Paulo Netto (1991; 1995; 2011); Maria Andrade (2008); Claúdia Santos
(2006); Balbina Vieira (1978); ABEPSS (1996); Maria Barroco e Sylvia Terra (2012);
Mirla Cisne (2015); Antônio Aquiar (1995); Marx e Engels (2008); Código de ética
do/a assistente social de 1993; Lei nº 8.662/93 de regulamentação da profissão. Assim
baseado nas obras foi analisado os registros que retratam a trajetória do Serviço Social,
especialmente, o momento na qual sua atuação aproxima-se as bases marxistas.

1. Serviço social e suas raízes conservadoras


Indubitavelmente o Serviço Social nos países da América Latina é oriun-
do da vigência do Modo de Produção Capitalista (MPC)5. Particularmente no
Brasil, o Serviço Social surge entre a década de 1920/1930 com a crescente
industrialização e urbanização no país neste período e, por consequente, a eclo-
são das desigualdades sociais e necessidade de intervenção na mesma. Suas pro-
toformas vinculavam-se a prática conservadora, caracterizada pela promoção
de ajuda, caridade e solidariedade aos desabençoados na sociedade, estando
subordinados à Igreja, sob as influências das vertentes franco-belga, de caráter
humanista cristão e neotomismo. Tais vertentes influenciaram a prática das/dos
assistentes sociais durante muito tempo, baseada na Doutrina Social da Igreja

5 “O MPC apresenta uma contradição fundante: a constante ampliação e socialização da produção


é acompanhada da cada vez maior apropriação privada do produto. Essa contradição leva 1) uma
concentração e centralização do capital, 2) uma constante expulsão da força de trabalho, criando
uma população desempregada cada vez maior, 3) uma tendencial ampliação da pauperização absoluta
e relativa e 4) uma tendencial queda da taxa de lucro. (MONTANO, DURIGUETO, 2011, p. 181).

395
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

apoiada nas releituras da filosofia de Santo Tomás de Aquino (AGUIAR, 1995;


IAMAMOTO e CARVALHO, 2014).
Assim,

Santo Tomás estará presente no Serviço Social através do neotomismo


[...] a presença do grande filósofo do século XIII virá até o Serviço Social,
através da Igreja Católica. É difícil separar aspectos de uma filosofia tão
unitária e harmônica, mas podemos destacar a visão humana, conceitos
de sociedade e bem-comum e questão ética como pressupostos básicos
presentes da formação do assistente social, [...] tratará em sua reflexão
questões vitais para sua época, tais como: as relações entre Deus e o
mundo, fé e ciência, teologia e filosofia, conhecimento e realidade
(AGUIAR, 1995, p. 41).

Ou seja, concomitantemente a este tempo da releitura da obra citada, a his-


tória mundial passava pelo processo de transição do capitalismo concorrencial
para o capitalista monopolista, modificando o cenário global e consolidando
a exploração do trabalho do homem pelo homem, assim resultando na forma-
ção de duas classes antagônicas em uma relação de desordem, via desigualdade
social. Esse movimento social é marcado pelo avanço do capital industrial e o
crescimento do proletariado urbano. Por isso, se faz necessário a dinâmica har-
moniosa entre as classes.
Para tal, o Serviço Social surge no Brasil,

como parte de um movimento social mais amplo, de bases confessionais,


articulado à necessidade de formação doutrinária e social do laicato, para
uma presença mais ativa da Igreja Católica no ‘mundo temporal’, nos
inícios da década de 1930. Na tentativa de recuperar áreas de influências
e privilégios perdidos, em face da crescente secularização da sociedade e
das tensões presentes nas relações entre Igreja e Estado, a Igreja procura
superar a postura contemplativa (IAMAMOTO, 2011, p. 18).

A Igreja une-se ao Estado, que percebe nas mazelas sociais a oportunidade


de reinserir-se na política econômica burguesa. O que leva-se a afirmar, para-
fraseando Mirla Cisne (2015) que o Serviço Social não surge de uma evolução
da caridade, mas sim, da demanda social oriunda do modo de produção então

396
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

vigente, ou seja, é a partir da efervescência da Questão Social6 que o Serviço


Social é instaurado para intervir na realidade social, muito embora, inicialmen-
te executado pelas Igrejas.
Assim, as desigualdades sociais e a miserabilidade, chamadas de expressões
da questão social se aglutinam. O novo modo de produção resultou em revolta
por parte dos trabalhadores, que por sua vez não aceitava a situação de misera-
bilidade como vontade do destino ou de Deus, deixando de naturaliza-la como
uma vontade de um ser superior.
Esse movimento é resultado da disseminação dos ideais comunistas e socia-
listas no Brasil, amparados na experiência russa, que favoreceu o fortalecimento
das reivindicações dos trabalhadores,

os comunistas trabalhavam por toda parte pela união e o entendimento


entre os partidos democráticos em todos os países. Os comunistas não
ocultavam suas opiniões e objetivos. Declaravam abertamente que seus
fins só serão alcançados com a derrubada violenta da ordem social
existente (MARX e ENGELS, 2008, grifo nosso p. 63).

Á vista disso, o movimento é duplo, ao mesmo tempo que se intensifica


a Questão Social torna-se mais amplo a organização dos trabalhadores frente
as desigualdades, necessitando de algum mecanismo para intervir na situação.
Esse método de intervenção do Estado foi sustentado pela Igreja através da téc-
nica das/dos assistentes sociais durante décadas, mas a prática assistencialista
da Igreja não respondia as demandas presentes, necessitando de um projeto
alternativo para manutenção da ordem.
Nesse caminho,

o Estado responde às demandas das classes subalternas assumindo


sua tutela através do atendimento de algumas reivindicações dos
trabalhadores, tais como, a organização sindical, o salário mínimo,
as férias remuneradas, a limitação do trabalho da mulher e do
“menor”, além de outros benefícios (SANTOS 2006, p. 30 apud
CUNHA, 1989, p.49)

6 O termo Questão Social pela tradição marxista, segundo Montaño e Duriguetto (Glossário. 2011, p.
364) “é empregado como expressão dos fundamentos da sociedade capitalista, como a contradição
capital e trabalho, desdobrando-se e manifestando-se de diversas formas (desemprego, violência,
pobreza etc.) e representando conflitos e lutas em torno do antagonismo de interesses”.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A vista disso, o Estado Novo se estabelece no Brasil como resposta a


situação do país. O crescimento da industrialização e do proletariado ur-
bano exigia um novo quadro político, e já nos primeiros anos de governo
mostra sua intenção para o pacto de classes, buscando aquietar a classe
trabalhadora. Registra-se, nesse período, intensas reivindicações e logo a
promulgação das legislações sociais, como uma nova constituição (1937),
a consolidação das leis trabalhistas (1943) e a criação do Ministério do
Trabalho (IAMAMOTO e CARVALHO, 2014).
A racionalidade capitalista obrigava as/os assistentes sociais a novos instru-
mentos e estratégias. Conforme Maria Andrade (2008, p. 275), é “a partir de
1945/47, que vamos sentir a preocupação dos assistentes sociais com a definição
de uma elaboração teórica própria, pautada em critérios técnicos e científicos,
que imprimisse eficácia à ação”.
É assim que, em meados da década de 1940/1950, com o fim da II Guerra
Mundial e vitória dos Estados Unidos, que cresce no Brasil às influências do
Serviço Social norte-americano, atendendo a maior necessidade de profissiona-
lização e tecnicificação da profissão com ênfase nas teorias de Mary Richmond.
Vale destacar a marca do sincretismo7 na profissão neste período, quando o
Serviço Social se aproxima da teoria positivista – primeira perspectiva teórica
de suporte da profissão, já que o neotomismo por não estar no âmbito da ciência
não é considerado uma teoria – mas, não do positivismo “puro”, o que houve foi
uma junção do mesmo com o pensamento conservador e Neotomismo.
Percebemos assim, que ao longo das décadas de 1920, 1930, 1940 e ainda
meados de 1950,

o objeto de intervenção profissional se configurou pelas disfunções


individuais e sociais; os objetivos se voltaram para a integração social, não
se verificando divergência entre objetivos institucionais e profissionais;
no terreno do conhecimento, a Doutrina Social da Igreja cedeu (em
parte) lugar a correntes psicológicas, principalmente à Psicanálise e às
correntes sociológicas, sobretudo ao positivismo e ao funcionalismo.
A conclusão a que se chega é de que o conservadorismo católico, que
caracterizou o início do SS brasileiro, começou a partir de 1940, a ser
tecnificado ao entrar em contato com o Serviço Social norte-americano

7 Junção de diferentes perspectivas teóricas.

398
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

e suas propostas de trabalho permeadas pelo caráter conservador da


teoria social positivista (ANDRADE 2008, p.295)

Esse conhecimento tecnificado pairava sobre três modelos: Serviço Social


de Caso, Grupo e Comunidade, que, de acordo com Vieira (1978), o méto-
do norte-americano apresentava em sua atuação profissional forte influência
da medicina, psicologia e da sociologia positivista, principalmente da corrente
funcionalista; abordando a questão social como um problema individual, e não
como algo estrutural ao modo de produção vigente.
Portanto, os procedimentos de atuação utilizados estavam direcionados para
a mudança individual, visando por meio das práticas educativas para manuten-
ção da ordem social, fundamentadas nas teorias já citadas. Embora o conheci-
mento técnico passe a ser utilizado na prática profissional, o Serviço Social não
rompe ainda com suas bases conservadoras.

2. Serviço social e o movimento de reconceituação


O período de expansão nos anos 1940, 1950 e 1960 trouxe visibilidade e
necessidade do Serviço Social no cenário brasileiro. A expansão da economia
e má distribuição de renda resultavam no acirramento das relações de desigual-
dade e o aumento das expressões da questão social - matéria de trabalho, estudo
e intervenção do Serviço Social - exigindo assim o aperfeiçoamento diante da
demanda. Todo esse processo é intensificado com o período desenvolvimentista
no país, o que só é interrompido com o golpe militar de 1964.

É apenas no decorrer da década de 1960 que o meio profissional dos


Assistentes Sociais começa a ampliar-se com certa rapidez, processo
que ocorre paralelamente a uma ‘abertura’, isto é, um processo de
‘modernização’ em que a instituição e o agente profissional procurarão
abrir mão de certas características, especialmente aquelas que lhes
valeram o estigma de autoritarismo e paternalismo a serviço das classes
dominantes (IAMAMOTO E CARVALHO, 2014, p. 380).

O golpe de Estado em primeiro de abril de 1964, momento de auge da


autocracia burguesa no Brasil, marcou o Serviço Social. É neste momento de
significativas mudanças na sociedade brasileira, que o Serviço Social começa
a pensar sua atuação e o seu próprio papel na realidade do Brasil, um país

399
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

subdesenvolvido e dependente economicamente. Isso dará suporte a avanços


teóricos que ocorreram com o movimento de reconceituação – movimento
este, que aconteceu em toda a América Lática, mas, com diferentes proporções,
devido a conjunturas econômicas e políticas dos países.

O desenvolvimento das forças produtivas, na moldura sociopolítica


peculiar da autocracia burguesa, saturou o espaço social brasileiro
com todas as refrações da ‘questão social’ hipertrofiadas e com a sua
administração crescentemente centralizada pelas políticas sociais do
Estado ditatorial (NETTO, 2015, p.157).

É necessário refletir sobre o cenário internacional em que se passavam as


questões socioeconômicas daquela época. O movimento revolucionário geri-
do pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ganhava força
política e ideológica, em contrapartida, os Estados Unidos se tornará uma
potência, com grande influência sobre os países da América Latina. Esse
conflito reergueu, além de uma divisão mundial, uma expansão territorial
ideológica e política. De um lado os socialistas, com os movimentos revolucio-
nários, legitimados e referenciados com as teorias marxistas, e do outro lado,
os capitalistas com governos militares ditatoriais por todo o continente latino
americano, na tentativa de conter os movimentos que nasciam e que carre-
gavam a bandeira do socialismo. Esse cenário repercutiu por vários países da
época, dentre eles, o Brasil.
É no período ditatorial que surge o movimento de Reconceituação / Reno-
vação do Serviço Social no Brasil, este movimento hegemônico e heterogêneo,
com suas particularidades conforme cada nacionalidade. No Brasil esteve rela-
cionado com a autocracia burguesa e sociedade capitalista, o reflexo de tal con-
juntura requereu ao Serviço Social mudanças interiores, os métodos até então
usados não respondiam às necessidades demandadas, ampliou-se a limitação da
categoria. Conforme se modifica o Estado surgem novas requisições para a pro-
fissão, o Serviço Social necessitava de um aprimoramento técnico e formativo,
sendo este processo bastante complexo, que transitava de rupturas e transfor-
mações a permanência e continuidades.
Sendo,

a renovação o conjunto de características novas que, no marco das


constrições da autocracia burguesa, o Serviço Social articulou a base do

400
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

rearranjo de suas tradições e da assunção do contributo de tendências do


pensamento social contemporâneo, procurando investir-se como instituição
de natureza profissional dotada de legitimação prática, através de respostas
e demandas sociais e da sua sistematização, e de validação teórica, mediante
a remissão ás teorias e disciplinas sociais (NETTO, 1991, p. 131).

O movimento de reconceituação foi um processo longo e cumulativo de de-


bates e reflexões, repensando a prática profissional, configurando-se em três dé-
cadas – 1960, 1970, 1980 e coexistindo diferentes vertentes teóricas. Segundo
Netto (1991) são três as principais tendências que marcam este processo: a 1° foi
à direção com a Perspectiva da modernização conservadora; a 2° direção com
a Reatualização do conservadorismo; e a 3° direção a Intenção de ruptura. To-
das as tendências são marcadas por seminários de teorização, e acontecem não
necessariamente em ordem cronológica, e sim, se difundem simultaneamente.
A modernização conservadora foi considerada acrítica, visava à adequação
do Serviço Social ao desenvolvimentismo e tinha como vertente o funcionalis-
mo para o enquadramento do usuário, ajustamento do indivíduo na sociedade,
tem-se nesta direção o seminário de Araxá e o seminário de Teresópolis.
A reatualização do conservadorismo criticava a modernização conservadora
e o positivismo, mas tal crítica foi considerada insuficiente; recuperava elemen-
tos conservadores da história do Serviço Social, mas se dizia nova, com um
“verniz de modernização”, como apontado por Iamamoto (2014). Retornando o
pensamento católico, aproximou-se da vertente fenomenológica, tinha caráter
subjetivo, psicossocial, onde se dizia que o diálogo com o sujeito era a solução.
Os seminários que marcaram este período foi o seminário de Sumaré e o semi-
nário de Alto da Boa Vista.
Já a intenção de ruptura (alguns autores defendem que ainda ocorre esse
processo, não havendo a conquista total da ruptura) faz-se uma crítica ao tra-
dicionalismo da profissão. Momento este marcado pelo método de BH carac-
terizado por uma metodologia alternativa aos métodos funcionalista/positivista
e início da interlocução com a vertente marxista – destacando, segundo Netto
(1996), que esse método foi reducionista, não correspondeu à fonte marxiana.
Somente mais tarde, em 1982 pelas formulações de Iamamoto e Carvalho no
livro “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil” é que o Serviço Social vai

401
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ter uma ligação verdadeiramente com a fonte marxiana; destacam-se também


nesta tendência o Congresso da Virada8 e Código de Ética de 1986.

Mesmo diante dos equívocos teóricos apontados, inicia-se um novo


posicionamento sociopolítico rumo á ruptura com o conservadorismo
da profissão, visivelmente percebida por meio das críticas á adaptação
á ordem capitalista, bem como pela aproximação com os movimentos
sociais populares (CISNE, 2012, p.59).

O suporte e estímulo a esta tendência em detrimento das demais, será o


maior contato com o âmbito acadêmico, a entrada do Serviço Social nas uni-
versidades permitiu o alargamento da base teórico-metodológica com a aproxi-
mação as ciências sociais, e uma maior politização com a inserção ao movimen-
to estudantil. Procurou-se investigar novos mecanismos de atuação, que implica
na construção de um processo plural na profissional, e o rompimento com o
conservadorismo profissional dado a aproximação com a classe trabalhadora na
conjuntura política e econômica que vive a mesma.
De fato, é apenas com a 3° vertente de intenção de ruptura que se tem uma
transformação na busca por reais modificações e apontando o fim ao conser-
vadorismo, sendo este o ponto central para se pensar influências marxistas no
interior da profissão, uma nova vertente teórica que traga em seus preceitos
novos valores que rompam com o conservadorismo.
Com a busca de bases científicas para a profissão pode-se ter, como
afirma Santos (2006, p. 60), “profissionais que sejam capazes não apenas
de atender às necessidades do mercado, mas também de propor projetos de
intervenção profissional” e societários. Essa tendência que leva a profissão
a transformações teórico-metodológicas acompanhará a formação e a ação
profissional nos anos seguintes.
Pensar esse momento histórico do Serviço Social é compreender a
profissão na dialética da sociabilidade capitalista, já que a mesma só teve seu
posicionamento de ruptura em um estágio avançado do conservadorismo.
Possivelmente, através da consciência de classe e quando trabalhadores (as)
perceberam que em sua gênese o serviço social não dava mais conta da realidade

8 III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado na cidade de São Paulo, no ano de 1979,
marco histórico e emblemático da profissão.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

social e do contexto no qual estava inserido, percebe-se a emergência de dar


novas respostas às demandas que estavam sendo postas.

3. Serviço social: interface dos princípios do código de


1993 e a teoria marxista
Progressivamente o Serviço Social começa a beber das fontes marxistas,
através das Ciências Sociais, suas expressões diferenciadas, confrontava-se com
a autocracia burguesa: colidia com a ordem autocrática no plano teórico-cultu-
ral, no plano profissional e no plano político. “As bases sociopolíticas da pers-
pectiva de intenção de ruptura estavam contidas e postas na democratização e
no movimento das classes exploradas e subalternas”. (NETTO, 1991, p. 257).
Nessa perspectiva as referências bibliográficas, se reconstruíram em no-
vos moldes. As entidades representativas – Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa do Serviço Social (ABEPSS), Conselho Regional de Serviço Social
(CRESS), Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), Executiva Nacional
de Estudantes de Serviço Social (ENESSO) – são chamadas a um moderno
momento desafiador para a profissão. As faculdades se consolidam e houve um
espraiamento sobre a categoria, aproximando-se da tradição marxista pelo viés
da militância política. Cria-se um caráter ético, político e ideológico, que asse-
melham-se as bases marxistas.
O pensamento marxista traz como aporte teórico uma releitura da socia-
bilidade burguesa, compreendendo-a de forma crítica. Seu objeto de estudo
se alicerça na gênese, consolidação e desenvolvimento do sociometabolis-
mo do capital, apreendendo as relações de crises desse modo de produção,
tratando o trabalho como valor central das relações sociais, percebendo o
indivíduo em sua totalidade.
A ideia dessa analise se materializa na compreensão das contradições – en-
tre capital e trabalho – que são inerentes ao MPC, socialmente instauradas
que não são naturais, mas construídas ao longo da história. Enquanto a ordem
vigente argumenta o conceito de trabalho, sendo este uma ação intrínseca pró-
pria da configuração do capitalismo, Marx em suas obras desnaturaliza essa
tese, revelando uma sociedade histórica, crítica e dialética. Que para o Serviço
Social tem papel relevante em seu novo momento, quando a profissão vai de
encontro ao sistema vigente.

403
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Atingir essas determinações materiais requer analisar o método de Marx:


Materialismo-Histórico-Dialético9, apresentando-o através da história, da
dialética, em suas condições nas esferas econômicas, políticas, culturais, so-
ciais e ideológicas. O Serviço Social colabora nesse percurso e nessas dis-
cursões, participando desse processo em sua prática interventiva. Reforça-se,
entretanto que, o Serviço Social não é uma ciência, ele se apropria das Ciên-
cias Sociais e do método marxista para a partir da compreensão da realidade
social, possa fazer intervenções que comportem as demandas e respostas dada
as várias expressões da Questão Social.
Após o Congresso da Virada, consolidou-se algumas matrizes no Serviço
Social, torna-se estável alguns parâmetros, bem como a regulamentação da pro-
fissão10, com seu código de ética11 e outras diretrizes. Ampliando o discurso
de totalidade baseado na leitura marxista do método materialista, histórico e
dialético, para analisar a realidade social e modifica-la.
Para tal,

o caráter interventivo do assistente social, supõe uma capacitação


crítico-analítica que possibilite a construção de seus objetos de ação,
em suas particularidades sócio institucionais para a elaboração criativa
de estratégias de intervenção comprometidas com as proposições ético-
políticas do projeto profissional. A competência teórico-metodológica,
técnico-operativa e ético-política são requisitos fundamentais que
permite ao profissional colocar-se diante das situações com as quais se
defronta, vislumbrando com clareza os projetos societários, seus vínculos
de classe, e seu próprio processo de trabalho (ABEPSS, 1996, p. 13).

Deve-se, dessa maneira, ter uma compreensão da realidade social, realizan-


do uma intervenção técnica-operativa que busque instrumentos para viabilizar
o acesso aos direitos dos cidadãos, apreendendo as relações sociais, fruto do
sistema capitalista, encarando estas como a divisão de duas classes antagônicas

9 A teoria marxista é vinculada a vida em sociedade, tendo por método o materialismo-histórico-


dialético. O materialismo quer dizer sobre as forças produtivas (a produção e reprodução); o histórico
refere-se ao contexto social que está inserido (realidade social); e sendo dialético porque é dinâmico
(passível de mudanças), ou seja, as forças reprodutivas de um determinado contexto social dinâmico,
ou ainda, a produção e reprodução da realidade social passível de mudanças (NETTO, 2011).
10 Lei 8.662/93 de Regulamentação da Profissão
11 Aprovado em 13 de março de 1993, revisado, com alterações introduzidas pelas resoluções do CFESS.

404
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

e a exploração dos que detém os meios de produção em detrimento daqueles


que detém a força de trabalho.
O Código de Ética de 1986 destaca os princípios e diretrizes12 que orienta
a prática profissional do assistente social, sendo articuladas a luta de classes,
tendo seu posicionamento voltado aos interesses da classe trabalhadora. Este di-
ferente dos códigos anteriores tem em seu caráter a coletividade, equidade para
a sociedade, pluralismo político, a luta de ideias e a produção teórica. Segundo
Barroco e Terra (2012, p. 47), “ao mesmo tempo que se evidenciou como produ-
to de um processo coletivo de deliberação, o Código de Ética de 1986 se colocou
como parte de um projeto profissional, articulado a um projeto de sociedade”.
O referido código utiliza matrizes teóricas e metodológicas compatíveis com
o rompimento com o conservadorismo e direciona os profissionais nos seus di-
reitos e deveres, buscando consolidar uma direção social transparente, voltado
para responder as necessidades sociais e orientar a atuação profissional.
Isso advém

como decorrência dessa politização, a dimensão política da profissão


foi explicitada de forma objetiva, como processo que exigia uma nova
ética e um comprometimento com as necessidades e os interesses
dos usuários do Serviço Social: a classe trabalhadora (BARROCO
E TERRA, 2012, p. 47).

Assim sendo, o código de 1986 rompe com as protoformas do Serviço So-


cial, dando novo corpo a profissão, que deixa seu caráter de neutralidade e
imparcialidade, dirigindo-se a um compromisso com a classe trabalhadora, na
garantia dos seus direitos.
Entretanto, devido a imaturidade e aperfeiçoamento da profissão, este có-
digo tem sua revisão na década de 1990, onde ganha premissas melhor elabo-
radas, e se efetiva conjuntamente com a regulamentação da profissão na lei n°
8.662, de 7 de junho de 1993, normativas que são validadas e servem de aporte
teórico, técnico e interventivo no Serviço Social até os dias atuais. A estrutura
desse projeto requer um suporte teórico, para que o código não consista em
um documento fragmentado, mas em normativas, valores, princípios, direitos e
deveres que orientem os/as assistentes sociais.

12 Rio de Janeiro 09 de maio de 1986. Publicado no Diário Oficial da União nº 101, do 02/06/86, Seção
I, páginas 7951 e 7952.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Faz-se algumas considerações sob as influências da teoria marxista a partir


dos manuscritos de Marx e Engels (2008) distinguindo o seu estado histórico
ao ontológico, que remodelaram/remodela o Serviço Social a partir dos prin-
cípios consagrados no projeto categórico dialogando com CE de acordo com
Barroco e Terra (2012).
O projeto ético-político do Serviço Social polariza-se numa luta aos setores
democráticos, em defesa da liberdade política, da equidade e da justiça social,
contemplando e viabilizando a emancipação humana, desenvolve-se assim uma
teoria e prática que se diferencia no seu fazer profissional, como afirmado no CE
de 1993, a partir de alguns princípios citados a seguir:
“I. Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas
políticas a ela inerentes - autonomia, emancipação e plena expansão dos indi-
víduos sociais” (CFESS, 1993, p. 23), relacionam-se a uma liberdade plena, pois
o capitalismo nos promove uma falsa liberdade, tornando-se dependente da
aquisição social, uma liberdade que aprisiona, condicionando a ser massa ma-
nobrada do sistema; “a emancipação é o valor de caráter humano-genérico mais
central do CE, indicando sua finalidade ético-política mais genérica” (BAR-
ROCO E TERRA, 2012, p. 58).
O IV princípio esclarece: “Defesa do aprofundamento da democracia, en-
quanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzi-
da” (CFESS, 1993, p. 23), trata-se do que Marx e Engels (2008), falava sobre
a ultrapassagem da ordem vigente, uma nova ordem social onde não haja de-
sigualdade social e a produção seja socializada, bem como, a riqueza que dela
extrai; “trata-se de uma concepção de democracia que supõe a ultrapassagem
da ordem burguesa, ou seja, que difere da concepção liberal burguesa” (BAR-
ROCO E TERRA, 2012, p. 59).
Mais adiante fala-se: “VI. Empenho na eliminação de todas as formas de pre-
conceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos social-
mente discriminados e à discussão das diferenças” (CEFSS, 1993, p. 23), ou seja,
uma sociedade laicizada, plural e diversa, onde todos coletivamente participem
politicamente e democraticamente tendo a “viabilização dos valores essenciais:
autonomia, diversidade, participação, pluralismo e competência. Seguem-se os
desvalores e as práticas consideradas negativas: autoritarismo, preconceito, domi-
nação, exploração e discriminação” (BARROCO E TERRA, 2012, p. 60).
“VIII. Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção
de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e

406
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

gênero” (CEFSS, 1993, p. 24). Como Marx e Engels expressam nos seus escritos
do Manifesto do Partido Comunista em 1848, o regime burguês só será extinto
sem a exploração do homem pelo homem, sem a divisão das classes sociais e com
um novo modelo de sociedade que busque a emancipação dos sujeitos. Pensar esse
momento histórico, é pensar a superação do capitalismo e as desigualdades que
nele estão postas, assim o CE “articulou duas dimensões da profissão: a do exercício
profissional institucional á da ação política coletiva vinculada aos processos de luta
contra hegemônicos da sociedade brasileira” (BARROCO E TERRA, 2012, p. 59).
E por fim, o último ponto como reflexão a ser destacado é o: “IX. Articulação
com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios
deste Código e com a luta geral dos/as trabalhadores/as” (CEFSS, 1993, p. 24). Esse
é o princípio primordial das leituras comentadas, onde entende-se que para a supe-
ração da exploração e desigualdade social, o proletariado precisa unificar suas forças,
atingindo o processo de consciência de classe em si e classe para si13.
Esse processo de consciência tem dupla dimensão “que em condições históricas
determinadas pode coexistir num mesmo momento, em outras caracteriza uma pas-
sagem, levando-nos ás seguintes determinações da classe: a ‘consciência’ e as ‘lutas’ de
classes” (MONTAÑO E DURIGUETTO, 2017, p. 98). Isto é, o CE tem como pres-
suposto uma luta que perpassa as instituições categóricas do Serviço Social e soma-se
a uma frente ampla, uma luta coletiva, pensando a dimensão macro das lutas sociais.
A união e adesão da classe trabalhadora em sua forma mais abrangente,
na perspectiva anticapitalista, só será possível através da consciência de clas-
se14, sendo inseparável da luta revolucionária, estando para além das reivin-
dicações pontuais, constitui-se como elemento crucial para a derrubada da
burguesia nessa sociabilidade.
“Que as classes dominantes tremam a ideia de uma revolução comunis-
ta! Os proletários não têm nada a perder nelas, a não ser suas cadeias. Tem

13 A “classe em si” é constituída pela população cuja condição social corresponde com determinado lugar e
papel no processo produtivo, e que, independentemente de sua consciência e/ou organização para a luta na
defesa de seus interesses, caracterize uma unidade de interesses comuns em oposição aos de outras [...]. A
“classe para si “caracteriza outra dimensão possível da constituição e da análise de classe. Conforma uma
classe para si aquela que, consciente de seus interesses e inimigos, se organiza para a luta na defesa destes
[...] a classe trabalhadora se torna sujeito autônomo, consciente de seus interesses e do seu antagonismo
ao capital, e organizado para a luta de classes (MONTAÑO E DURIGUETTO, 2017, p. 97).
14 O desenvolvimento da “consciência de classe”, representa o máximo de consciência possível,
entendida como o conhecimento cientifico da realidade e dos fundamentos da vida social em uma
dada época (MONTAÑO E DURIGUETTO, 2017, pag. 110).

407
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

um mundo a ganhar. Proletários de todos os países. Uni-vos!” (MARX e


ENGELS, 2008, p. 65).
O convite realizado por Marx e Engels (2008), prevê a derrubada da bur-
guesia através da revolução proletária – reverbera nas bases esquerdistas, nos
partidos políticos, nos âmbitos acadêmicos, nas bases categóricas e em parti-
cular no Serviço Social na atual conjuntura, materializa-se na organização dos
trabalhadores via movimentos sociais em defesa de um novo projeto societário.
O Serviço Social entra em um projeto categórico que é contra a lógica vi-
gente, descriminando toda forma de preconceito, em defesa da classe operária e
da democracia, como participantes ativos dos movimentos sociais, pela garantia
dos direitos humanos, na perspectiva de materializar o projeto ético-político da
profissão e reafirmando os princípios dispostos no CE de 1993.
Assim sendo, o Serviço Social, trabalha diretamente as expressões da ques-
tão social, gerenciando e administrando políticas públicas providas pelo Estado,
no sentido de viabilizar direitos a classe trabalhadora, se compreendo enquanto
parte da divisão sócio-técnica do trabalho.

Considerações finais
Foi com a ruptura do tradicionalismo ao modernismo, e a partir das
influências marxistas, que as/os assistentes sociais têm novos olhares às de-
mandas que chegam, trabalham assim, gerenciando, administrando e execu-
tando políticas públicas, de responsabilidade do Estado. Seu histórico entre
o assistencialismo e filantropização são destruídos e as necessidades sociais
são politizadas pelos movimentos da classe trabalhadora que se formam e se
organizam em torno de sua defesa. Direito ao trabalho, à autonomia de or-
ganização sindical, à seguridade social, aos direitos sociais, políticos e civis
e aqueles relacionados à diversidade humana - como liberdade de expressão,
direito à identidade e igualdade de gênero, étnico-racial e à liberdade de
orientação sexual - emergem como demandas concretas e mobilizam os su-
jeitos individuais e coletivos para a luta.
É importante refirmar que, os princípios destacados acima, são ban-
deiras de lutas e valores, que estão vinculados dentro do PEP, mas que
não nos limitamos a estes. A materialização desse projeto se configura na
perspectiva de um fazer profissional político e ético. As intervenções dos/

408
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

das assistentes sociais dentro dos espaços sócio-ocupacionais se efetivam


em caráter de viabilização dos direitos aos nossos usuários, através das de-
mandas que são postas, entendendo que estão inseridos na divisão sócio-
-técnica do trabalho e existem limites e dificuldades que perpassam esses
espaços configurados no seio da sociedade capitalista e que fazem parte do
sociometabolismo do capital.
Entendemos também que, mesmo com a importância do serviço social
na viabilização de direitos para a classe trabalhadora, o PEP vislumbra va-
lores e bandeiras de luta que só serão concretizados integralmente em uma
nova sociabilidade. Ademais, o Código de Ética é baliza fundamental e
intrínseca no fazer profissional dos (as) Assistentes Sociais, norteando-os
e auxiliando-os dentro dos espaços sócio-ocupacionais, em seus deveres,
competências e atribuições, respeitando as especificidades e singularidade
dos usuários.
Refirma-se que o Projeto Ético-Político do Serviço Social promove discur-
sões que se vinculam ao projeto de sociedade que o marxismo nos seus estudos
expõe, orientando nossa caminhada em busca de uma mudança societária, que
se materializa no respeito dos profissionais em relação aos princípios propagados
no CE e na atuação crítica dentro das instituições.
Destarte, nossos princípios se fortalecem por uma ordem anticapitalista,
onde possa existir uma sociedade sem exploração, sem opressão e sem aliena-
ção, sem divisão de classes, com um trabalho coletivo, amplamente social, e a
divisão igualitária do mesmo, onde haja o fim da propriedade privada e com
oportunidades iguais para todas as pessoas.

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411
Capítulo VI
Marxismo e Movimentos Sociais
Crise capitalista, o embate
hegemônico e os desafios dos
intelectuais das classes subalternas

Eliana Andrade da Silva1

Introdução
O mundo experimenta hoje uma grave crise. Trata-se de uma particular
crise do capital a qual podemos considerar como uma crise estrutural. É ne-
cessário salientar que as crises não são uma novidade para a sociabilidade
burguesa. Ao contrario, são parte constituinte do sistema d’ocapital e fazem
parte de seu desenvolvimento.
Pelo seu carater estrutural e global a crise atinge amplos setores gerando
impactos no Estado e na sociedade civil. Assim, a crise estrutural e rastejante se
constitui como um movimento contraditório de ajustes recíprocos que apenas
se conclui ao final de uma dolorosa reetruturação radical (Mezaros, 2002). Nes-
ta linha analitica assistimos no Brasil a um contexto no qual o Estado encontra-
-se capturado pelo capital implementando medidas de ajuste fiscal constituidas
como necessidade orgânica deste diante da crise que se complexifica. Para a
classe subalterna os impactos da crise são devastadores, pois é submetida um
processo no qual tem sido refém de um modelo economico que se baseia na
precarização de suas condições vida e trabalho (Braga, 2014).
Em tal contexto buscamos entender os impactos que a atual crise estrutural
do capital, de caráter global, tem gerado para os intelectuais das classes subalter-
nas. Isto porque partimos do pressuposto que a referida crise tem se constituido

1 Professora do Departamento de Serviço Social da UFRN. Membro do grupo de pesquisas Questão


Social, Políticas Sociais e Serviço Social vinculado ao Programa de Pós Graduação em Serviço
Social da UFRN.

415
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

em uma ofensiva conservadora contra estes intelectuais e suas funções históricas.


Este processo tem se expressado através da negação da função do intelectual fun-
dada em argumentos de que estaria sujeito este “em crise”, “em extinção”, ou seja,
estaríamos experimentando um periodo historico de “fim dos intelectuais”.
Em termos empiricos tem nos chamado atenção que em algumas mobi-
lizações politicas ocorridas no Brasil a partir de junho de 2013 em torno de
demandas como moradia, transporte, segurança entre outros, tenha sido re-
corrente um discurso de negação da presença de lideranças politicas e a favor
de mobilizações espontâneas nas quais seriam dispensados os sujeitos politicos
organizadores. Em tal contexto categorias teóricas como classe sociais, partidos
politicos, intelectuais passam um processo de desintegração e desconstrução
que expressam alguns contornos da hegemonia capitalista contemporanea.

1. Novas formas de hegemonia, transformismo e


intelectuais das classes subalternas
A partir dos anos de 1970 o capitalismo mundial experimenta perturbações
no processo de auto expansão explicitando suas contradições internas. Con-
tradições estas inerentes ao seu funcionamento e através das quais o capital
consegue prosperar. Assim,

seu modo normal de lidar com contradições é intensificá-las,


transferi-las para um nivel mais elevado, deslocá-las para um plano
diferente, suprimi-las quando possivel e, quando elas não puderem
mais ser suprimidas exportá-las para uma esfera ou um país diferente.”
(Mészaros, 2002, p. 800)

Se as crises não representam ameaça, disfunção ou uma novidade para o


funcionamento da sociabilidade capitalista alguns elementos tornam a atual
crise um processo particular com elementos que a diferenciam de outras crises
verificadas na história do capitalismo.
Nos termos de Meszaros (2002) a novidade historica da atual crise que presen-
ciamos é sua manifestação em quatro elementos: a) seu carater universal; b) seu
alcance global; c) sua extensão temporal e permanência e d) seu carater rastejante.
Este quadro nos indica a presença de uma crise estrutural do capital. Dessa
forma é um processo que se espraia por toda a sociedade e ultrapassa os limites

416
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

da esfera socioeconomica, provocando inflexoes na sociedade civil e expandin-


do seus efeitos em todas as instituições politicas.
No contexto atual as estratégias para enfrentar a crise estrutural configuram
um processo de hegemonia provenientes de setores burgueses que transcorre
não somente através de estratégias de ajuste economico, mas tambem através
de uma ofensiva ideológica diante das classes subalternas, no sentido de en-
fraquecer suas resistências atingindo suas condições materiais de existência e
instituindo uma cultura de consentimento entre as classes, bastante apropriada
para o capitalismo contemporâneo.
Na realidade brasileira podemos observar continuamente a elaboração con-
sensos em torno de aspectos como a idéia de uma crise social que atinge a to-
dos indistintamente; a necessidade da responsabilização da sociedade civil pela
crise estrutural; a inoperância estatal na regulação da sociedade; a excelência
do mercado como instância do progresso e do desenvolvimento; a idéia do tra-
balhador-colaborador; do cidadão-consumidor; a necessidade de colaboração
transclassista para superar a crise; entre outros fetiches amplamente difundidos
na mídia, na academia, no mundo do trabalho e na sociedade em geral.
A análise das estratégias históricas de disputa da direção intelectual e moral
das classes e das formas renovadas da hegemonia dos setores burgueses diante
da sociedade, indica a existência de um contexto no qual as classes subaternas
urbanas e rurais sofrem uma ofensiva material e espiritual por parte do ca-
pitalismo contemporâneo, e que também os intelectuais se vêem impactados
pelo avanço desta ofensiva hegemônica. Trata-se portanto de um movimento
conhecido como transformismo, ou seja, a “[…] assimilação pelo bloco no po-
der das frações rivais das próprias classes dominantes ou até mesmo de setores
subalternos” (COUTINHO, 2003, p.205). O transformismo aparece nas anali-
ses gramscianas como veio analitico proficuo para compreender os fenômenos
relativos a presença dos intelectuais na vida politica. Assim, o transformismo é
definido como “ […] um método para implementar um programa limitado de
reformas, mediante a cooptação pelo bloco no poder de membros da oposição.
“ (GRAMSCI, 2007, p. 396)
No canário do Risorgimento italiano, a estratégia transformista se operou
com “[…]a absorção gradual, mas contínua, e obida com métodos de variada
eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos ad-
versários que pareciam irreconciliavelmente inimigos.” (GRAMSCI,2002,
p. 63). À luz do caso italiano, coloca-se como questão histórica e política

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

o fato de que “decaptação” dos grupos adversários pela assimilação de suas


lideranças torna-se estratégia eficaz na reforma intelectual e moral em dife-
rentes fases da história.
É, portanto, diante do atual cenario de crise estutural do capital marcado
por ofensivas transformistas na direção dos intelectuais das classes subalternas,
que sustantamos a tese de que no momento histórico atual, marcado por trans-
formações no mercado, no Estado e na sociedade civil, estes intelectuais têm
sofrido uma ofensiva transformista por parte do capital, e que esta ofensiva tem
construído novas formas de captura destes intelectuais. Isto resulta em uma
tentativa de modificação da função histórica desempenhada pelos intelectuais
das classes subalternas
Nesse sentido, o embate de projetos de classe em disputa ocorre na totali-
dade social, seja nas formas de produzir, de regular relações, seja nas formas e
representações do poder, vivenciadas no cotidiano- arena por excelência destas
disputas hegemônicas. Destacamos que, no atual momento este embate se re-
aliza de forma sutil, metamorfoseado na idéia de modernização de discursos e
práticas, alterando objetivamente as subjetividades, num processo de revigora-
mento de velhas idéias, revestidas em “novos”/atualizados conceitos.
Este processo é parte de um movimento no qual fica explicito o poder da
ideologia, dado que as ideologias dominantes da ordem social gozam de posição
privilegiada em relação aquelas que se propoem a forjar uma ‘contraconsciência’
(Mészaros, 2004). Ou seja,

Dada sua posição privilegiada na ordem social prevalescente, elas podem


ditar as condições e regras gerais do proprio discurso ideológico. Isso
acaba trazendo sérias consequências para os intelectuais que tentam
articular alguma forma de contraconsciência, pois são obrigados a reagir
às condições impostas, em um terreno escolhido por seus adversarios.
Compreensivelmente, portanto, muitas vezes sofrem o impacto negativo
do fato de se acharem presos pela estrutura e pela problemática do
discurso ideológico dominante, como vimos em mais de uma ocasião.
(Mészaros, 2004, p. 233)

Diante deste cenário, partimos do pressuposto que o discurso da morte


do intelectual, do surgimento de novas funções e, sobretudo, que a noção de
“mediadores” podem ser uma das expressões da ofensiva do capital, diante
dos intelectuais do trabalho, na tentativa de realizar uma substituição his-

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

tórica da função do intelectual das classes subalternas pelo mediador. Este


fenômeno se configura, portanto, como uma estratégia inerente ao fenôme-
no do transformismo.
Atualmente, esta ofensiva transformista se apresenta ora como a reivindi-
cação de “novas funções” para os intelectuais, ora como “morte do intelectual
orgânico”; ou ainda, com o surgimento dos “mediadores” como substitutos his-
tóricos dos intelectuais das classes subalternas.
Para desenvolvermos uma análise consistente deste fenômeno é preciso ir as
fontes, para historicizar e conceituar o que uma ampla bibliografia tem denomi-
nado como “mediação” e “mediadores”2.
O termo “mediação” tem origem nos EUA, no inicio do século XX, como
uma modalidade de resolução de conflitos entre países em litígio. É marco
histórico do surgimento da “mediação”, a Convenção de Haia, em 1907, quan-
do a “mediação” é contemplada na Carta de criação da Sociedade das Na-
ções e de sua sucessora Organização das Nações Unidas, como instrumento
de utilizado na área de direito internacional público (Oliveira; Galego,2005).
No período que compreende o início dos anos de 1900, passando pelo pós
II Guerra, a “mediação” logra espaço no rol das estratégias de conciliação e
de negociação entre países em conflito e se institucionaliza a partir de 1970
como como método tradicional de resolução de conflitos, denominado como
Altenative Dispute Resolution (ADR).
Se, na América do Norte, a “mediação” tem sua origem no início do século
XX, na Europa e América Latina, esta modalidade de intervenção inicia-se a
partir das três últimas décadas deste mesmo século. Neste sentido,

[…] es quizá en estados unidos donde existen más antecedentes al


respecto y donde fue institucionalizada formalmente; (…) fue en la
década del 70 cuando empezaron a aperecer en esse país los centros
de mediacíon y há sido la ciudad de los angeles en florida la pionera
(Tommaso, 2004, p. 42).

Já, no continente europeu, a França em 1995, foi o primeiro país a adotar


a “mediação” na esfera administrativa, sob a forma de lei. Posteriormente, esta
modalidade de intervenção foi adotada naquele país, na esfera civil pela As-

2 Utilizaremos, a partir deste momento, os termos mediação e mediadores aspeados, tendo em vista o
diálogo crítico que realizamos com tais noções.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

sembléia Nacional. De forma geral, a entrada dos anos de 1990, demarca uma
ampliação visível da adoção e institucionalização da prática de “mediação” na
Europa em países como Portugal, Itália, Holanda Bélgica e ainda no Canadá.
Na América Latina, também a apartir de 1990 países como Argentina,
Chile e Brasil dão os primeiros passos para adotar a “mediação”. A Argentina
é precussor neste movimento, a partir de 1992, quando o Poder Executivo
declara, por meio de decreto, o desenvolvimento da “mediação” como método
de solução de controvérsias (TOMMASO, 2004).
No Brasil, tendo à frente uma direção de cariz liberal, a Confederação das
Associações Comerciais do Brasil iniciou um movimento que resulta na Lei
Marco Maciel -Lei nº 9.307/96- que regulamenta a arbitragem, tendo a conci-
liação e a “mediação” como modalidades de resolução de conflitos (Vezzuella,
2001). Em 1997 e foi criado o Conselho Nacional de Mediação e Arbitragem
(Conima) cujo objetivo é difundir uma cultura de procedimentos não adver-
sariais e extra-judiciais para a resolução de conflitos. Várias iniciativas tem
sido criadas nesta direção: câmaras e Centros de Mediação e Arbitragem;
juizados especiais; câmaras e centros de Mediação e Arbitragem Trabalhista;
conselhos de conciliação prévia trabalhista, e ainda processos judiciais na
área de conflitos de família.
O histórico da “mediação” permite ainda apresentar as formas e as confi-
gurações que esta assumiu ao longo dos anos. Ou seja, “Mediação” intercultural,
“Mediação” comunitária e “Mediação” social. Em países da Europa, é comum a
utilização da “mediação” intercultural voltada para intervenção em contextos
multiculturais, principalmente, em problemas relativos a integração de imigran-
tes ao contexto cultural e social dos países nos quais passam a residir. Já em paí-
ses como Argentina, Brasil e Chile, as modalidades de “mediação” Comunitária
e Social são mais facilmente encontradas, sendo utilizadas como técnica e ferra-
menta destinadas a resolução de conflitos. Nesse sentido, atesta Olivera (2005)

[…] ya que la mediación comunitaria tiene por sobre todas las cosas
una función educativa, es un modo de gestión de la vida social y solo
un procedimiento de resolución de conflictos, se propone como una
transformación cultura; se trata de que las personas puedan internalizar
mediante su practica los principios que propone, aprendiendo de la
participación, la asunción y el compromiso que requiere la convivencia
dentro de la comunidad ( p.22).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Atualmente, o conceito de “mediação” tem causado bastante influência em


áreas como sociologia, serviço social, psicologia, direito, ciências políticas, eco-
nomia, antropologia e educação. Seja no âmbito da intervenção destas áreas,
como “método de ação”, seja no âmbito da produção de conhecimento. Na Ar-
gentina e no Chile, as modalidades de “Mediación Comunitaria” são utilizadas
como ferramentas na atuação para profissionais como Trabajadores sociais. Já
No Brasil, antropólogos, assistentes sociais e sociólogos têm atuado sob a pers-
pectiva da “Mediação Social”3. Para Oliveira; Galego (2005, p. 26), a “mediação”

[…] mobiliza um projecto de restauração de laços sociais, sustentando


modalidades alternativas de gestão das relações sociais, tornando-
se um processo comunicacional de transformação do social e uma
requalificação das relações sociais.

José Vasconcelos-Souza é hoje, na Europa, um grande elaborador, di-


vulgador e defensor da “mediação”, à qual se refere como forma sofisticada
de negociação. Em suas análises, a “mediação” possui objetivo de recons-
trução de coesão social, de reconstrução de laços e ainda de integração
social e de empowerment4. É mais barata que ação juducial (Vasconcelos-
-Souza, 2002). As infuências de Vasconcelos-Souza chegaram ao Brasil na
figura de Juan Carlos Vezzuella o qual se apresenta como psicólogo, profes-
sor, “mediador”, autor e formador5.
As diferentes configurações que assume a “mediação”, comunitária, inter-
cultural ou social, dá origem a um outro processo: o surgimento do “mediador”

3 No âmbito do serviço Social brasileiro, esta perspectiva tem se expressado, principalmente, na área
da justiça, espaço no qual alguns assistentes sociais se auto-intitulam como “mediadores”, ao atuarem
na resolução de conflitos judiciários. Neste contexto, seria também o assistente social o “terceiro
neutral”, faciliatador da negociação. Conforme seus adeptos, a “Mediação Familiar”, no âmbito da
justiça e do direito de família, seria uma das formas atuais de inserção do assistente social nos espaços
ocupacionais na esfera do judiciário. Diante destes elementos, consideramos que, no Serviço Social,
a perspectiva da “mediação” tende a ampliar-se, como o que ocorre a exemplo de outros países da
América Latina, como Argentina e Chile . a este respeito conferir também Pontes (2002).
4 OLIVEIRA; GALEGO (2005) definem esta categoria como “movimento intencional dinâmico,
centrado na comunidade local, envolvendo respeito mútuo, reflexão crítica, participação e
preocupação do grupo em partes iguais na valorização dos recursos, acesso e controlo sobre os
mesmos” (2005, p.28)
5 Em Vezzuella (2001) o autor apresenta a mediação no Brasil principalmente através de sua atuação
na introdução da mediação em países como Argentina, Paraguai, Brasil e Portugal.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

como profissional. De forma geral, o “mediador” aparece como um “terceiro”


neutro impacial o qual necessita de um poder autorizado para ajudar as partes
em conflito para que as mesmas encontrem mutuamente suas convergências.
Notamos que a concepção latino-americana da ação dos “mediadores” apre-
senta influências da concepção européia, já que neste continente a atuação
desses agentes, além de ser mais sistematizada, é também regulada em lei, como
é o caso de Portugal6. A entrada deste país na União Européia deu um impulso
na utilização da estratégia de “mediação” e do reconhecimento dos “mediado-
res” como um tipo de atuação profissional emergente, tendo em vista que outros
países já haviam reconhecido ambos na forma de lei. Assim, “mediadores” ad-
quirem status de facilitadores da integração social e cultural de minorias étnicas
sobretudo a partir dos projetos de educação da União Européia.
É dessa forma, que Augusto Santos Silva passa a ser um dos “cânones” que orien-
tam a ação dos “mediadores” em Portugal e nos demais países da União Européia,
a partir da segunda metade da década de 1990. Deste período em diante, inicia-se
uma produção teórica sistematizada e mais detalhada, a qual conceitua o papel e o
perfil os desafios da ação dos “mediadores”, definindo-os como elemento neutro, in-
centivador e facilitador do diálogo e da negociação de diferentes partes envolvidas.
As qualidades requeridas para o “mediador” são a equidistância funcional, o não
envolvimento com as partes, a independência em relação às mesmas, a neutralidade
e a capacidade de agir como facilitador, estimulando diálogo e entendimento.
Surgem variadas nomenclaturas para caracterizar os agentes de “mediação”,
ou seja, os “mediadores”: “mediador” jovem urbano, “mediador” socio cultu-
ral, “mediador” comunitário, “mediador” intercultural e “mediador” escolar. A
figura do “mediador” foi regulada pelo Despacho 942/99, no âmbito do Minis-
tério da Educação Português, normatizando a situação dos mediadores e dos
animadores culturais, através do “Programa Educação e Emprego”. As aptidões
necessárias para ocupar estes cargos são ter mais de dezoito anos, ter no mínimo
o sexto ano de ecolaridade obrigatória, demonstrar disponibilidade para diálogo
intercultural (Oliveira; Galego, 2005).

6 Referimo-nos recorrentemente à realidade portuguesa, porque foi o local no qual realizamos um


estágio doutoral sanduíche. E, desta forma, tivemos acesso a uma ampla bibliografia sobre o fenômeno
da mediação e dos mediadores. Além disto, salientamos a influência que muitos autores portugueses
exercem no Brasil.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O “mediador” surge, segundo seus adeptos e divulgadores, como um novo tipo


de profissional, neutro, que investiga os interesses em conflito, decompondo um
problema em partes, para que os “mediados” possam resolver tal problema em
ordem crescente de complexidade, assemelhando-se a um “médico-chinês”. Sob
esta perspectiva o “mediado” é um sujeito fragmentado, cheio de contradições e
dificuldades no reconhecimento de si e de seus problemas (Vezzuella, 2001).
Portanto, na base do papel dos “mediadores” encontra-se a concepção cha-
ve de assimetria, já que este sujeito é compreendido como intermediário. Este
não requer uma teoria específica. Mas na sua prática cotidiana podem utilizar
as várias teorias de acordo com o tipo de situação que têm que mediar, isto é, de
acordo com o problema escolhem aquela que melhor pode responder com sucesso
à situação com que a qual se deparam. Dessa forma, sua posição é delicada, pois
fica entre duas pessoas que lutam “entre a rocha e o mar”. Pode também ser ana-
lisado como especialista que ajuda os “mediados” na busca de convergência de
interesses satsfatórios para todos os envolvidos (Oliveira; Galego, 2005; Vezzuela,
2001). Neste sentido, é consenso entre seus adeptos, que pessoas com formação
em psicologia e trabalho social podem utilizar seus conhecimentos para atuação
como “mediadores”. (Olivera, 2004; Tommaso, 2005;Vasconcelos-Souza,2002)
No que tange aos conhecimentos necessários o “mediador” deve conhecer
técnicas de facilitação de diálogo, de expressão de idéias, de interpretação de
opiniões e de geração de soluções, bem como modalidades alternativas para
conduzir, guiar e apoiar o processo evolutivo das partes: da situação inicial até
o estabelecimento de acordos. Em síntese, “mediação”, se constitui como a pe-
dagogia da negociação (Vasconcelos-sSouza, 2002).
Este levantamento do processo de “mediação” e da ação dos “mediadores”,
suas influências, origem, divulgadores, usos, foi o percurso metodológico que
nos auxilia no entendimento dos contornos que a “mediação” e os “mediadores”
adquirem no Brasil e seu espraiamento na direção dos intelectuais do trabalho,
movimento de onde podemos concluir que “mediação e mediadores” à brasileira
constituem-se em uma síntese das influências européias e latino americanas.

2. À guisa de conclusões: os desafios de ser intelectual das


classes subalternas em tempos de ofensiva do capital
A reforma intelectual de nossos tempos incide na atuação dos intelectuais
das classes subalternas e no desenvolvimento da função dirigente e

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

organizadora que estes desempenharam historicamente na contra-hegemonia.


Os mecanismos burgueses de criação de consenso tornam imprescindíveis a
inversão da ordem das coisas; ou seja, subtrair as classes sociais do cenário
conflitante, criando as condições ideológicas para fazer “sumir” também a
figura do intelectual das classes subalternas, organizador e dirigente de uma
classe, e desqualificar sua função política.
Um dado substantivo a este respeito é a propagação da idéia de que estaría-
mos experimentando uma “crise dos intelectuais” ou “extinção do intelectual”.
Os organizadores deste novo consenso argumentam que tendo em vista um
novo contexto econômico e as mudanças na sociedade, surge um novo papel
para os intelectuais: este se constitui em um tradutor ou como aquele que esta-
belece pontes entre diversos códigos (Coelho, 2004; Silva, 2004).
Um elemento interessante acerca da criação destes consensos é influên-
cia que intelectuais europeus têm obtido historicamente nos intelectuais e
na cultura brasileira. No caso da tese da crise e do fim do intelectual, foi
possível perceber que autores como Coelho (2004) e Silva (2004), ambos
de origem portuguesa, têm contribuído para difundir esta argumentação,
sobretudo, na academia.
Diante de tais assertivas, podemos compreender como intelectuais de outros
países podem influenciar e dirigir outros intelectuais. A mundialização da eco-
nomia se articula à disseminação de idéias, discursos e práticas, e em tal proces-
so, visões de mundo e modismos teóricos do tipo eurocêntricos são facilmente
absorvidos no pensamento social brasileiro, sem uma análise mais detalhada de
forma simplista e mimética, realçando a subordinação não apenas econômica
mas também teórica dos países periféricos7.
Afirmar a extinção da função hegemônica do intelectual é um instrumento
ideológico eficaz no fortalecimento do consenso em torno da existência de uma
sociedade não dividida em classes, mas como aglomerado homogêneo de grupos

7 Autores europeus como Boaventura de Souza Santos, Pierre Bourdieu, Mafesoli têm influenciado
amplamente o pensamento social brasileiro, especialmente na pós-graduação. Em visita realizada
ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), coordenado pelo professor
Boaventura Santos, foi possivel constatar um número significativo de estudantes brasileiros que têm
seus estudos de mestrado e doutorado orientados pelo referido professor. Este, na última década,
tornou-se uma das maiores referências teóricas e políticas nos países do Cone Sul especialmente
no Brasil. Além disto, sua articulação com os movimentos sociais e sua participação na realização
do Fórum Social Mundial tem tornado-o uma forte influência teórica para movimentos sociais em
diversas partes do mundo.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

com interesses comuns, onde a “democracia” e a “cidadania” são horizontes


almejados indistintamente por todos.
Assim, é possível compreender a ofensiva sutil direcionada a pôr em questão
a atuação política dos intelectuais, diante de um contexto de luta por hege-
monia. A ofensiva contra a resistência das classes subalternas também ocorre
quando seus intelectuais são atacados, inclusive no plano ideológico. E desta
forma, a passivização das classes subalternas é acelerada na medida em que seus
intelectuais são molecularmente conformados e desarticulados.
A negação da função hegemônica dos intelectuais não é algo novo. E no mo-
mento, constitui-se como polêmica que se atualiza diante da ofensiva do capital
sobre a sociedade, e é também parte das estratégias de hegemonia da ordem bur-
guesa, diante das classes subalternas. Portanto, a atuação do intelectual e sua fun-
ção política é um tema persistente que atravessa a história da sociedade moderna.
Consideramos que no atual momento de crise estrutural do capital realiza-se
uma reforma intelectual e moral conservadora. E este processo pode ser consi-
derado um dos determinantes da ofensiva que atinge os intelectuais das classes
subalternase que provoca impactos negativos em suas funções, na perspectiva
da uma contra-hegemonia.
É, portanto, no quadro das mutações históricas recentes, dentre as quais
destacamos a mundialização da economia, a financeirização do capital, e as
disputas político-ideológicas no âmbito da hegemonia, que a atuação dos inte-
lectuais se repõe e apresenta novas nuances, novas tendências, novas determi-
nações e mediações no Brasil e no mundo8
Podemos afirmar que, no transcorrer dos últimos dois séculos a atuação
desses sujeitos esteve polarizada por várias perspectivas, donde a tradição dei-
xada por Gramsci constituiu uma das principais referências, mas não a única.
Nesse sentido, a perspectiva de totalidade através da qual Antonio Gramsci
desenvolve a problemática do intelectual, articula elementos de historicidade,
materialidade e ação política. Além destes fatores, vale ressaltar que as aná-
lises Gramsci partem não apenas de sua atuação como analista crítico da so-
ciedade de seu tempo, mas sobretudo, da ação que desenvolve na perspectiva

8 Ao longo do século XX, pensadores de distintas vertentes teóricas tematizaram a questão dos
intelectuais e sua função na sociedade. O debate esteve balizado essencialmente por, Marx, Gramsci,
Stuart Mills, Norberto Bobbio, Karl Mannheim, jean Paul Sartre, Noam Chomsky, Michael Lowy
entre outros. Malgradas as diferenças teórico-políticas entre estes pensadores, é elemento consensual
a legitimidade política alcançada pelos intelectuais na sociedade moderna.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

da contra-hegemonia das classes subalternas, ao travar uma batalha cultural


e política com outros intelectuais.
Ao analisar o avanço das forças produtivas e a hegemonia material do capi-
tal, Gramsci observa que o capitalismo moderno gera um tipo novo de intelec-
tual, diferente do tradicional. Em suas elaborações os intelectuais de tipo orgâ-
nico são diferentes dos tradicionais, pois emergem como necessidade histórica
dos setores burgueses em ascensão, que criam seus próprios intelectuais, para
agregar um bloco cultural que lhe seja favorável. Ou seja,

[…] todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função


essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo
e organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhes dão
homogeneidade e consciência da própria função. Na apenas no campo
econômico, mas também no social e político (Gramsci, 2004b, p.15).

Portanto, é através da análise gramsciana que analisaremos o fenômeno his-


tórico dos intelectuais, por compreendermos que é o pensador sardo que mais
destacou a dimensão política e as relações de classes que envolvem a função
desempenhada pelos intelectuais, seja à serviço do capital, seja do trabalho.
Em nossa avaliação a perspectiva gramsciana é um interlocutor essencial
para compreendermos a ofensiva transformista que incorpora o “mediador”
como substituto do intelectual das classes subalternas, que articula-se ao pós-
modernismo, tão caro ao projeto liberal burguês contemporâneo, o qual encon-
tra na tradição culturalista, uma forma diplomática de desqualificar a tradição
gramsciana (e a tradição marxista).
Ao nosso ver, essa invasão culturalista é inválida para entender o fenômeno
intelectuais, seja na cidade seja campo, mas é a aposta do projeto liberal burguês
para se ampliar e fortalecer, na medida em que fragmenta o Estado e a socieda-
de, a política e a economia, o especialista e o dirigente, o intelectual e a classe.
Nesse sentido, a ação de “mediar” ou intermediar é passível crítica, pois em
suas múltiplas formas, o transformismo, a exemplo a historia italiana e brasilei-
ra, é capaz de desagregar uma possibilidade de contra-hegemonia e fertilizar no
bloco histórico uma hegemonia burguesa por longos períodos de história.
Argumentamos isto porque, junto aos diversos autores e difusores da “me-
diação”, identificamos uma tendência a reconhecer “mediadores” não a partir de
sua função como agregador, organizador mas como aquele que estabelece “elos”,

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

“pontes”, comunicação. Além disto, reivindica-se a neutralidade do “mediador”,


que sendo um “terceiro neutral”, não se vincularia a nenhuma das partes em
disputa. Questionamos esta pretensa neutralidade, pois, no movimento de luta
entre as classes os sujeitos envolvidos expressam interesses determinados.
A tônica da “mediação” contribui para imprimir, pelo menos em nível apa-
rente, um caráter menos violento à disputa de interesses conflitantes, já que
através desta modalidade de intervenção, emergem outros interlocutores na
antagonica relação capital x trabalho. “Interlocutores neutros” quais, preten-
samente poderiam conduzir processos de negociação e obtenção de consensos.
Diante deste quadro transformista observamos o “apagamento” de desigual-
dades sociais as quais, sob a “mediação” transformam-se em puras assimetrias,
diferenças, e perdem o caráter antagônico. Diante disto são dissolvidos os in-
teresses de classe em particularidades de grupos. E as contradições se tornam
conflitos de fácil resolutividade através da negociação das partes em litígio,
realizada pelo “mediador”-especialista do dialógo e do acordo. Assim, as par-
ticularidades aparecem como universalidades; e as universalidades são tenden-
cialmente apagadas e desagregadas, de forma que as relações aparecem com
naturais. Este movimento constitui uma cultura diluidora, que contribui para
confundir teórica e politicamente aqueles cuja análise se encontre encoberta
pela nebulosidade do discurso liberal, no qual a saída compactuada é via de
resolução dos problemas. É emblemático que

[…] na teoria liberal, todas as categorias, para as classes subalternas,


nada mais são do que abstrações vazias embora, do ponto de vista da
burguesia , ela seja uma abstração real, o resumo, qualificado do conjunto
das suas práticas. As necessidades práticas da sociedade capitalista
esvaziadas da sua historicidade ganham fóruns de conceitos universais
(Dias, 2006, p.25).

A instituição da prática da “mediação” e da ação de “mediadores” tenta


substituir, em nivel teórico e prático, o que convencionalmente foi reco-
nhecido nos meios urbano e rural como ação de educadores populares, de
agentes externos, de multiplicadores e de assessores; e, principalmente, de
intelectuais orgânicos. Entretanto, não seria apenas uma forma moderna de
denominar velhos e conhecidos processos, já que na “mediação” um aspec-
to determinante é modificado: a defesa da neutralidade de interesses dos

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

“mediadores” incide, sobretudo, no caráter político que acompanhou a ação


destes sujeitos vinculados a projetos classistas.
Nesses termos, podemos indicar que o “mediador” é uma necessidade históri-
ca da ordem burguesa neste momento, o que aponta para demanda de formação
de um exército de intelectuais para o capital. E isto se expressa na reivindicação
da neutralidade do “mediador”, no que se refere aos antagonismos da relação
capital X trabalho. É possível indicar que “mediador” é produto histórico, fruto
de condições e relações sociais determinadas. Mas é, sobretudo, uma requisição
do capital nesta fase contemporânea. Em síntese, podemos considerar que a
absorção por alguns movimentos sociais e intelectuais das classes subalternasda
idéia de “mediação” configura-se como expressão atual do transformismo.
Portanto, situamos o surgimento do “mediador” nos quadros da hegemonia
liberal que atualmente se desenvolve junto à classes subalternas, apresentada
sob a forma da despolitização da sociedade, de obscurecimento das determina-
ções do Mercado e na aparente cisão Estado/sociedade civil. Representa, desta
forma, a aggiornata do capital para os intelectuais do trabalho; ou seja, a atuali-
zação capitalista da sociedade civil requer a modernização conservadora da fun-
ção do intelectual, cindindo politicamente o intelectual em relação às classes
subalternas. Apenas nestas condições é possivel gerar a imagem de autonomia
absoluta deste intelectual em relação às classes. E uma vez separados das classes
subalternas, podem os intelectuais tranquilamente “migrar” para a sociabilida-
de capitalista, sem problema.
Por fim para contrapor as teses fatalistas de “fim do intelectual”, “crise
da intelligentsia”, “obsolescencia dos dirigentes e organizadores“ buscamos
em conformidade com as análises de Antonio Gramsci reafirmar a pers-
pectiva de que em tempos de aguçamento de conflitos entre classes e um
cenário de complexa crise estrurural do capital a presença de intelectuais
é uma necessidade histórica. Porém, se não estão em declinio ou em crise
os intelectuais das classes subalternasnecessitam estar atentos aos meca-
nismos criados pelo capital para desmontar sua tarefa contrahegemônica.
Nesses termos, conforme Semeraro (2006):

os intelectuais ‘orgânicos’ não se tornaram obsoletos, mas encontram-


se diante de novas tarefas. Como nunca, de fato precisam aprender
com Gramsci a dificil arte de lidar com a diversidade sem cair no
relativismo, de lutar contra os dogmas sem deixar de buscar a verdade,

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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de respeitar a particularidade sem se pulverizar, de construir a unidade


sem transformá-la em uniformidade, de realizar a democracia popular
contra os simulacros pós-modernos (2006, p.149)

Referências bibliográficas

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430
Direitos LGBT e capitalismo: entre a
organização social e os processos de
apropriação do capital

Leonardo Gomes de Miranda1


Maria Taynara Ferreira Bezerra2
Ronaldo Moreira Maia Júnior3
Thariny Teixeira Lira4

Introdução
O Presente trabalho tem como objetivo analisar a relações entre Direitos
LGBT e o modo de produção capitalista, com ênfase nos processos de apropria-
ção das pautas e demandas por reconhecimento deste segmento, considerando
a conexão entre movimento LGBT, mercado e Direito.

1 Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Especialização
em Direito Constitucional pela Rede Futura de Ensino/FAVENI (em andamento). Membro do Projeto
Universidade Operária - GEDIC/UFERSA. Email: [email protected]. Tel: (84) 99915-5905
2  Bacharela em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialização em
Direito Constitucional pela Rede Futura de Ensino/FAVENI (em andamento). Membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: taynarafbezerra@gmail.
com. Tel: (84) 99952-4443.
3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialista em
Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Mestrando em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: ronaldomaia4@
gmail.com Tel: (84) 99616-6842.
4 Bacharela em Direito pela UFERSA, Especialista em Direitos Humanos pela UERN, advogada,
membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – GEDIC. Email:
[email protected]. Tel.: (84) 9600-8698.

431
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Desde sua formação até hoje, o movimento LGBT passou por diversas mu-
danças em sua forma de lutar por direitos bem como por várias fragmentações
e divisões internas, sendo que, atualmente, de forma hegemônica, sua principal
esfera de atuação está ancorada na busca pelo reconhecimento de direitos e de
maior visibilidade, voltando-se com mais ênfase para o debate de pautas liberais.
Tal momento vivido pelo Movimento LGBT no Brasil é sintoma não apenas
de uma abordagem voltada para os direitos de Liberdade (em uma interpretação
geracional, de primeira geração), mas de um processo histórico que relaciona as
pautas de reconhecimento com o modo de produção capitalista, fato que tem
gerado diversos processos de apropriação e mercantilização das pautas do refe-
rido segmento social, objeto do presente estudo.
A presente pesquisa se caracteriza por ser qualitativa, a partir do método de
análise materialista-histórico-dialético. Inicialmente será realizada a revisão de
literatura e em seguida, pesquisa documental, com levantamento dos direitos,
garantias e instrumentos legais, princípios, interpretações jurídicas e políticas,
utilizados nos processos de luta do Movimento LGBT no Brasil, seja pelo acesso
a documentos institucionais, relatórios, planos e programas estruturantes im-
plementados pelo Estado, seja por documentos produzidos pelas organizações
da sociedade civil vinculadas à pauta LGBT.

1. Breve histórico do movimento LGBT


A sexualidade, assim como qualquer outro produto social, se modifica
a partir do contexto histórico em que se encontra. Conforme nos ensina
Carneiro (2016, p. 35-40), na Grécia, por exemplo, a homossexualidade
(embora tal termo só fosse ser utilizado muito tempo depois) era vista não
com o peso do “pecado cristão”, sendo considerada errada ou criminosa
mas, ao contrário, sob determinadas circunstâncias, era tomada como ape-
nas mais uma forma de relação entre homens, voltada a busca pelo conhe-
cimento e pela verdade.
Desse modo, se atualmente as sexualidades não-heteronormativas são con-
sideradas desviantes, tal perspectiva não se dá por acaso mas, ao contrário,
encontra respaldo a partir de toda uma construção social que naturaliza a hete-
rossexualidade e o binarismo de gênero.
A partir disso, todas as sexualidades que não se encaixam nesse paradigma,
seja no tocante à orientação sexual ou à identidade de gênero, encontram uma

432
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

sociedade fechada para sua expressão, o que acaba por invisibilizá-las, relegan-
do-as à marginalidade bem como ressaltando e incentivando a opressão violen-
ta contra as mesmas.
Nesse contexto, os sujeitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
travestis e transgêneros) veem-se constantemente como vítimas seja da ação
violenta da sociedade machista e homolesbobitransfóbica ou da omissão esta-
tal. E é nesse mesmo cenário que se dão os primeiros passos na organização de
um movimento que busca conquistar direitos e discutir de forma cada vez mais
aberta a pauta da sexualidade: o movimento LGBT.
De acordo com Simões e Facchini (2009, p. 40), os primórdios das lutas de
um ativismo homossexual retroagem à Europa do final do século XIX, quando
despontou uma campanha pela descriminalização do comportamento homos-
sexual entre homens na Alemanha. Tal movimento foi crescendo até alcançar
um rápido ápice nas décadas de 1910 e 1920 em várias partes do continente
como, por exemplo, na Rússia, em 1917, com a abolição das leis anti-homosse-
xuais pelo governo bolchevique, e com o surgimento de locais de sociabilidade
lésbica em Paris e Berlim.
A partir da década de 1940, despontam movimentos similares nos Esta-
dos Unidos, com a criação de vários grupos de sociabilidade gay e lésbica.
Embora, num primeiro momento, a perspectiva desse movimento se voltasse
mais para a definição de uma identidade bem como na busca por uma maior
respeitabilidade, posteriormente, influenciado pelos movimentos de contra-
cultura hippie que surgiram no contexto histórico da Guerra do Vietnã, o
movimento tomou uma feição mais política. Como marco dessa mudança,
temos o dia 28 de junho de 1969, quando no bar Stonewall Inn deu-se o
confronto entre a polícia e frequentadores da área (em sua maioria homos-
sexuais). Essa data passou a ser conhecida como o Dia do Orgulho LGBT
(SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 43-45).
Contudo, vale salientar que a tendência menos radical do movimento foi a
que permaneceu e se sobressaiu (SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 47), sendo
formados vários locais de sociabilidade gay e lésbica (guetos) ao redor do mun-
do, o que contribuiu, de forma ainda inicial, para a apropriação do mercado
sobre a pauta do movimento.
A partir da década de 1970, o movimento passou a cultuar um modelo ex-
tremo e idealizado de masculinidade, estigmatizando aqueles sujeitos que não
se encaixavam nesse padrão bem como incorporando o modelo hierárquico das

433
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

relações heterossexuais – o binarismo homem/macho/ativo e mulher/feminino/


passivo. Isso contribuiu de forma incisiva para a gradativa ruptura com o mo-
vimento lésbico que passou a ver o movimento LGBT apenas como mais um
espaço de reprodução do machismo (SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 47-48).
Já em relação ao movimento transexual, desde a década de 1950, perce-
bemos que foi marcado pela tensão com os médicos tendo em vista que a
transexualidade sempre foi tomada a partir de uma ótica patologizante que
persiste até hoje. Nesse contexto, destacamos que já nesse período surgem
as primeiras clínicas especializadas em cirurgias de redesignação sexual, de-
manda essa que ainda ocupa o espaço central de reivindicação desses sujeitos
(SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 50).
Na década de 1980, o impacto da AIDS abateu-se sobre o movimento LGBT
trazendo de volta a ligação já amplamente superada entre a homossexualidade e
a doença. Entretanto, foi também nesse contexto que o debate acerca das sexu-
alidades atingiu seu ápice na sociedade. Tendo em vista o caráter alarmante da
epidemia, a sociedade foi obrigada a discutir temas que antes eram relegados ao
espaço da vida privada, contribuindo para uma maior visibilidade ao movimen-
to e aos sujeitos LGBT (SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 51-53).
Trazendo para o âmbito nacional, o histórico da homossexualidade não se
diferencia muito daquele do resto do mundo posto que passou por vários mo-
mentos, desde a sua criminalização e punição com pena de morte – caracteri-
zada como um crime contra a majestade, durante a época da colonização, até
a descriminalização, com o advento do império. Entretanto, convém assinalar
que, embora tenha sido retirada do rol de crimes, a homossexualidade perma-
neceu sob o crivo social da marginalização e reprimenda, tanto pela sociedade
em geral como por setores específicos, como a Igreja.
Com a descriminalização, o debate em torno da homossexualidade passa do
campo da religião, onde era vista como pecado, para o campo das ciências mé-
dicas, enquanto distúrbio. Sob tal paradigma, o modelo hierárquico também se
desenvolve aqui – dividindo os sujeitos entre ativos (masculinizados) e passivos
(feminilizados), reproduzindo, assim, dentro das relações homoafetivas os ideais
heteronormativos e machistas.
Vale destacarmos ainda que, embora mais à frente haja uma evolução para
um modelo mais igualitário e abolicionista dos termos “passivo” e “ativo”, tanto
no que diz respeito aos papéis desempenhados na relação bem como no inter-
curso sexual, ainda permanecem esses ranços quando, por exemplo, incluímos

434
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

ao debate da orientação sexual a categoria de classe social, na qual os indivídu-


os da classe trabalhadora são inferiorizados.
Como ensina SANTOS (2016, p. 183), foi em meados da década de 1940
que a homossexualidade ganhou uma visibilidade diferente no contexto social
brasileiro, em parte devido à urbanização e industrialização aceleradas. Aqui
começam a emergir os locais de sociabilização destinados especificamente à
população LGBT. Dadas as circunstâncias de ampla repressão social (caracte-
rizada pelas diversas formas de preconceito que os indivíduos LGBT sofriam
cotidianamente de maneira explícita), policial (em face de agentes formados
sob a égide do heterossexismo e machismo) e estatal (com a ausência de polí-
ticas públicas voltadas a essa população bem como na sua omissão diante das
violações de direitos que ocorriam), tal postura do movimento era inicialmente
voltada para dentro, a fim de possibilitar antes de tudo, um sentimento de per-
tencimento, um “enxergar-se no outro”.
Apesar dessas experiências terem sido bem sucedidas, a postura do movi-
mento LGBT mudou à medida que a sociabilidade em espaços restritos não era
mais suficiente. A fundação do grupo Somos, em 1978, é um dos marcos que
delineia a mudança de perspectiva do movimento, que passa por um processo
de politização. Nesse aspecto, o principal debate que permeou e continua até
hoje refere-se a institucionalização da luta LGBT por meio da associação com
partidos políticos (SANTOS, 2016, p. 184).
Em um primeiro momento, marcado pela luta contra o regime militar no
Brasil, o movimento LGBT evitava a associação com a política partidária sob
o discurso de um possível tolhimento da autonomia ao mesmo tempo que
lutava contra toda forma de autoritarismo e discriminação mas, em face da
grande divergência de seus membros em relação a variadas questões, acaba
por sofrer várias quebras.
Diante desse cenário, formaram-se dois grupos: aquele que defendia a auto-
nomia do movimento LGBT em face da política partidária e o que prezava por
uma uniformidade maior das lutas posto que enxergava na institucionalização
das pautas do movimento a possibilidade de transformação da sociedade de
forma mais eficaz (SANTOS, 2016, p. 185).
Diante disso, o movimento LGBT passa a disputar suas pautas de for-
ma institucional a partir da cooperação com partidos políticos. Contudo,
embora tenha ocorrido essa associação com os partidos, ainda havia muita
resistência por parte destes em relação às propostas defendidas pelo movi-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

mento tendo sido inclusive com bastante dificuldade a criação de setoriais


LGBT no seio destas organizações.

2. Pautas LGBT e apropriação capitalista


A presença institucional do movimento LGBT, apesar da contrariedade de
alguns membros, tornou-se real e as demandas do mesmo passou a figurar na
pauta política, através de grupos de pressão, que discutiam a criação de políticas
públicas pela promoção da diversidade e cidadania, contra a homofobia, pelo
reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, dentre outras
(Simões e Facchini, 2009).
A luta por estas demandas ganhava visibilidade através das paradas da di-
versidade e ONGs e uma das suas maiores dificuldades é o avanço na produção
legislativa, tendo em vista que um vasto grupo político condena a existência do
movimento e do que denominam “prática do homossexualismo”. Fato facilmen-
te constatado ao ler um fragmento de texto do Diário da Assembleia Nacional
Constituinte, à época da elaboração da Constituição Federal Brasileira, que dizia:

Se a Bíblia, que é o livro que norteia a vida do povo cristão, não só dos
evangélicos, mas de todos os cristãos, se a Bíblia, que norteia a vida,
a orientação espiritual da maioria do povo brasileiro; se esta Bíblia
que é a palavra de Deus, condena a prática do homossexualismo, não
poderemos nós, representantes do povo cristão do Brasil, ser defensores
dessa prática (VIEIRA, 1987).

As demandas do movimento LGBT, majoritariamente giram em torno das


questões de identidade, liberdade de expressão, casamento e união estável
entre pessoas do mesmo sexo, criminalização da homofobia, direito à saúde e
também a criação do dia do combate à homofobia, dia do orgulho gay e dia
da visibilidade lésbica.
Nesse sentido, convém lembrarmos que as pautas do movimento LGBT
também passaram por amplo processo de mudança. No florescer de sua luta até
hoje, podemos dizer que as pautas LGBT estavam/estão ancoradas na conquista
e reconhecimento de direitos.
Esses direitos, em uma perspectiva clássica, encaixam-se na dimensão dos
direitos liberais individuais, ou seja, que esperam do Estado uma abstenção, um

436
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

não agir. Por exemplo, o reconhecimento do casamento homoafetivo, adoção


homoparental, direito ao nome social, direitos de herança e sucessão, entre ou-
tros. Todos eles demandam que o Estado reconheça certa situação e se abste-
nha de interferir naquilo que pertença à privacidade de cada indivíduo.
Por outro lado, a ênfase destinada aos direitos de liberdade ou individu-
ais, desprovida de uma necessária articulação com as pautas estruturais, tem
gerado diversos processos de apropriação capitalista sobre as demandas e os
corpos da população LGBT. O esforço em estabelecer relações entre si, bem
como com a exploração capitalista, enxergando sexualidade e modo de pro-
dução como pautas que não podem ser dissociadas, está ancorado na crítica
à noção de sujeito de direito cunhada sob o marco da liberdade capitalista,
onde os corpos e pautas tornam-se mercadoria e os/as trabalhadoras veem-se
livres, apenas para vender sua força de trabalho, amoldando-se à forma do
capital (KASHIURA JÚNIOR, 2014).
O movimento LGBT, nesta perspectiva, tem vivido um momento de grande
preocupação com o reconhecimento de direitos individuais e ao mesmo tempo
de apropriação capitalista, expressão do momento histórico que vivemos, de
aprofundamento e redefinição dos níveis de exploração do capital. Com isso,
percebemos que o capital tem conseguido se apropriar da luta LGBT, transfor-
mando tanto os sujeitos (material) quanto suas pautas e reivindicações (simbó-
lico/imagético) em mercadorias passíveis de troca e consumo. É o chamado Pink
Money ou poder/mercado de consumo da população LGBT.
Conforme ensina Filho (2018), “quando o consumo e os produtos culturais
passam a mediar uma ideia de emancipação individual ele passa automatica-
mente a moldar padrões de reconhecimento e de identidade”, repercutindo di-
retamente em aspectos de recorte econômico dos direitos, estabelecimento de
padrões de reconhecimento social e subproletarização como forma de engaja-
mento aos novos padrões impostos, dimensões estas fundadas na desigualdade
econômica e na capacidade de consumo como elementos de reconhecimento.
A própria dimensão do reconhecimento jurídico e social dos direito LGBT
esbarra nos limites colocados pela forma jurídica e pela ideologia do Direito, en-
quanto mantenedor da ordem social. O Direito, portanto, coroa o processo de
apropriação capitalista pois é o ponto de central de seu domínio (NAVES, 2014).
Sobre isso, Pachukanis (1988, p.24) expressa que “apenas a sociedade bur-
guesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurí-
dico esteja plenamente determinado nas relações sociais”. Ou seja, a articulação

437
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

entre direitos LGBT, classe e suas relações com o modo de produção capitalista
são imprescindíveis para pensar um outro modelo possível de sociedade, reco-
nhecendo que o atual momento jurídico que vivemos, apesar de alguns avanços
em termos de conquistas de direitos, possui limites claros, considerando que o
próprio direito se forja e se aperfeiçoa no capitalismo e Estado burguês.
Deve-se reconhecer que a própria noção de direitos humanos possui limites
dentro do sistema capitalista e que emancipação política não pressupõe eman-
cipação humana (MARX, 2010). É necessário afirmar, portanto, que, segundo
Valença e Paiva (2014, p. 11) a luta pelos direitos humanos ou dos seguimentos
historicamente marginalizados, deve ser encarada como luta em curso, de ma-
neira histórica, reconhecendo seus potenciais na realidade concreta, mas tendo
dimensão dos limites a ela imposta pelo próprio modo de produção capitalista.

Conclusão
Conclui-se, portanto, que o processo de lutas da população LGBT, dada sua
configuração histórica e a ênfase aos direitos individuais e liberais clássicos,
tem gerado um maior distanciamento dos debates estruturais e econômicos da
sociedade, o que desponta em um processo de apropriação capitalista, seja ma-
terialmente ou simbolicamente, sobre as demandas LGBT.
Vê-se que é necessário uma articulação entre as pautas de direitos humanos
LGBT com o debate de classe e modo de produção, reconhecendo os limites do
Direito e da noção de sujeito de direito forjadas sob os marcos do capital, de modo
a pensar a luta LGBT rumo a uma perspectiva de emancipação integral e humana
articulada com a superação do capitalismo e da forma jurídica burguesa.

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439
Emancipação política e emancipação
humana: uma análise marxista da
teoria dos Direitos Humanos

Laíze Gabriela Benevides Pinheiro1

Introdução
O presente trabalho apresenta uma concepção histórica dos direitos hu-
manos, determinada pelos movimentos reais das classes sociais, demonstran-
do que (via de regra) são marcados por autodefesa economicista fruto de uma
compreensão alienada da realidade social, levando a reivindicações legais
fundadas em uma visão fetichizada do potencial emancipatório da positivação
e constitucionalização de direitos.
A justificativa que motivou a elaboração deste artigo foi o entendimento
de que o surgimento dos direitos humanos está ligado ao processo histórico
da sociedade ocidental, portanto, sua ideia de abrangência global perpassa por
uma compreensão de mundo eurocêntrica, a partir de concepção judaico-cristã
e cosmopolita. Nessa perspectiva, a “doutrina dos direitos humanos” foi estra-
tegicamente utilizada como instrumento de legitimação da dominação colonial
promovida pelos europeus, que afirmavam estar levando cultura e redenção
aos povos não civilizados da América, da Ásia e da África. Ou seja, o discurso
de universalização dos direitos humanos, calcado na busca pela emancipação
política global, justificou a dominação e escravização de outros povos, afim de
conquistar novos mercados para o desenvolvimento do sistema capitalista.

1 Bacharela em Direito pela UFS. Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processo Penal pela
UCAM. Mestra em Direito Constitucional pela UFF. Doutoranda em Direito pela UFRJ. Advogada
Popular. Assessora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ.

441
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Deste ponto de vista, negros e amarelos eram vistos como culturalmente


inferiores, seja pela simples cor de sua pele, seja pela prática de hábitos culturais
considerados não evoluídos. Partia-se do pressuposto que, por serem grandes
centros comerciais, os países europeus detêm o berço da civilização, devendo os
seus costumes ser absorvidos e difundidos pelo mundo. Os povos americanos,
africanos e asiáticos, foram, como continuam sendo, dependentes das diretrizes
econômicas e sociais advindas dos países ditos desenvolvidos e, apesar de terem
sido incluídos nas discussões e tratados internacionais acerca dos Direitos Hu-
manos, sofreram genocídio de sua população nativa, bem como extermínio de
grande parte de sua cultura.
A criação de um mercado mundial é o grande fenômeno macro histórico
que condiciona todo o processo de universalização dos direitos humanos. É a
partir da comercialização de especiarias e do tráfico de escravos que é inaugu-
rada a universalização da cultura europeia, imposta pelos “descobridores” do
Novo Mundo, que deveriam ser salvos pelos homens brancos de bem. As Gran-
des Navegações assumem, portanto, papel central na formação da chamada
Globalização contemporânea, interligando os mercados mundiais, exportando
uma cultura que deve ser encarada como modelo, unificando padrões morais e
éticos a partir dos praticados na Europa, marginalizando as tradições sociocul-
turais e econômicas dos demais povos.
É necessária uma reconstrução histórica2 que possibilite dar voz aos exclu-
ídos e às vítimas no processo de positivação desses direitos. É preciso demons-
trar que a história não se constrói em linha reta, em uma sucessão simples de
acontecimentos, mas é complexa, dinâmica, multifacetada, gerando ao mesmo
tempo inclusão e exclusão, universalizando também, em certos momentos, a
negação de direitos. Portanto, é vital dialogar com a contribuição de Karl Marx
sobre o Estado, os direitos humanos e o sistema capitalista, a fim de formular
uma crítica aos rumos teóricos que a luta por direitos humanos vem traçando.

2 Segundo Comparato (2010, p.13), as instituições jurídicas de defesa da dignidade humana contra a
violência, o aviltamento, a exploração e a miséria foram sendo criadas e estendidas progressivamente
a todos os povos da Terra. Tudo giraria, portanto, em torno do homem e de sua posição no mundo.
Para o referido autor (2010, p.50), os homens recuam a cada grande surto de violência, horrorizados,
“e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações
aviltantes faz nascer nas consciências (...) a existência de novas regras de uma vida mais digna para
todos”. A consciência ética coletiva vem se aprofundando, portanto, no curso da História.

442
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O problema proposto trata da necessidade de refletir sobre a demanda cada


vez maior pela positivação de direitos humanos, a fim de superar a necessidade
por emancipação política da classe trabalhadora para afirmação da necessidade
de acúmulo de forças para a construção da real emancipação humana dos tra-
balhadores e oprimidos.
Serão demonstradas duas hipóteses: (i) longe de serem frutos da natureza o
humana, os direitos humanos são historicamente conquistados a partir do mo-
vimento real das classes sociais, funcionando como meio de refreamento da luta
de classes; (ii) a luta por direitos humanos está alicerçada na categoria eman-
cipação política, que está plenamente adaptada ao sistema produtivo vigente,
sendo incapaz de produzir a superação das opressões sociais.

1. A (re) construção histórica dos direitos humanos:


para além do caráter dimensional ou geracional
Baseados na teoria jusnaturalista3, os primeiros Direitos do Homem, marca-
damente com uma visão individualista de mundo, visavam garantir a liberdade
frente à Igreja, à aristocracia e ao Soberano, permitindo o nascimento de um
Estado de Direito forte, capaz de superar o Sistema Feudal e impulsionar a acu-
mulação de capital e o nascimento e ascensão do Sistema Capitalista.
Trata-se do período de ascensão da burguesia, que reivindicava maior liber-
dade diante dos privilégios da nobreza e do clero, influenciando a Revolução
Gloriosa do Século XVII e as Revoluções Americana e Francesa do Século
XVIII. Reivindicava-se uma igualdade formal, perante as leis, sem considerar
as diferenças materiais, alcançando apenas os indivíduos do sexo masculino
(COMPARATO, 2010, p.58-65).
Como afirma Giuseppe Tosi (2002, p.31), “a questão central era a garantia
das liberdades individuais contra a intervenção do Estado nos assuntos par-
ticulares”, o que permitiria não só o fortalecimento da classe burguesa - com
maior liberdade de ação e representação política diante da nobreza e do clero

3 Giuseppe Tosi (2002, p.27) acredita que a teoria filosófica que funda os direitos humanos é o
jusnaturalismo moderno, segundo o qual indivíduos livres superam o estado de natureza através
de um pacto para a formação da sociedade civil no qual todos renunciam à própria liberdade para
consigná-la nas mãos de um poder central. O papel do Estado seria garantir e proteger a efetiva
realização dos direitos naturais inerentes ao indivíduo.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

- como também as grandes navegações e a expansão do comércio para o mun-


do oriental – a economia europeia encontrava uma rota para a exploração não
regulamentada para o lucrativo mercado de especiarias. A afirmação do direito
à propriedade privada como um direito inerente ao homem permitiu uma visão
do mercado como autoregulável, demandando uma intervenção estatal míni-
ma, chegando ao ápice da liberdade comercial.
A Declaração de Direitos da Virgínia, datada de 16 de junho de 1776,
constitui o registro do surgimento dos direitos humanos na História. Seu
artigo I estabelece:

Todos os serem humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e


independentes, e possuem certos direitos inatos dos quais, ao entrarem
no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar
ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da
liberdade, com os meios de adquirir e possuir propriedade de bens, bem
como de procurar e obter a felicidade e a segurança.

Da mesma forma, treze anos mais tarde, a Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão, de 1798, no contexto da Revolução Francesa, reafirma e
reforça a ideia de liberdade e igualdade dos seres humanos em seu art. 1°: “Os
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Este homem, contu-
do, engloba apenas o homem da sociedade burguesa, egoísta, “recolhido ao seu
interesse privado e separado da comunidade” (Marx, 2010, p. 50) e sua liberda-
de traduz-se essencialmente em direito à propriedade privada.
A incapacidade do pensamento liberal do século XX em lidar com os proble-
mas sociais gerados pelo capitalismo, por excluir da categoria humana a maior
parte da população (os não proprietários e as mulheres), dá corpo à teoria so-
cialista (principalmente após o Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx
e Frederich Engels), que reivindica não mais apenas a liberdade, mas também a
igualdade entre os homens e entre os povos, influenciando, sobretudo, os movi-
mentos revolucionários de 1848.
Na tentativa de humanização do sistema capitalista, ou de sua superação,
surgem movimentos revolucionários de reação da classe trabalhadora para
que o Estado oferecesse uma gama de serviços a fim de dirimir as distorções
econômicas e sociais do sistema, permitindo a efetivação da igualdade material.
São movimentos questionadores da própria estrutura de organização do
Estado e objetivavam a construção de um Estado de Bem Estar Social, onde

444
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

fosse da competência estatal a garantia da dignidade humana aos cidadãos.


São conquistados, desta maneira, os direitos sociais, culturais, coletivos e
econômicos4 (HOBSBAWM, 1982, p. 94).
Esses direitos foram reivindicados, sobretudo, nas revoluções socialistas dos
séculos XIX e XX, colocados em primeiro plano na Revolução Mexicana e na
Soviética - e em todas que a seguiram. Porém, nos países de orientação socia-
lista, os direitos de liberdades individuais foram relativizados frente aos direitos
da coletividade. Com o objetivo de construção de uma realidade onde houvesse
um equilíbrio social, tentou-se buscar uma socialização dos bens econômicos,
para que fosse atingido um bem-estar social que beneficiasse indistintamente
todos os cidadãos. Houve uma ênfase na distribuição de renda e no equilíbrio
social, em demérito do acúmulo individual de capital.
Os direitos sociais nos países de orientação capitalista foram consagrados
em um momento de pressão dos movimentos de esquerda, e concedidos como
uma tentativa de dar resposta às manifestações da classe trabalhadora, de frear
as mobilizações. Por este motivo, esses direitos foram remetidos à esfera pro-
gramática5, de forma ambígua e sem previsão de como seria sua efetivação, tão
pouco prevendo sanções ao Estado pela omissão na sua garantia.
Após o fim da Primeira Guerra Mundial, a Constituição de Weimar6
tornou-se um dos documentos constitucionais mais importantes da histó-
ria. Resultado da disputa ideológica decorrente da composição da assem-
bleia constituinte (o partido socialdemocrata tinha a maioria dos assentos,
mas não maioria absoluta), estabeleceu o catálogo de direitos fundamentais
a serem garantidos pelo Estado, positivando tanto direitos individuais, de

4 São os direitos destinados à correção das distorções socioeconômicas, tais como: à seguridade
social, ao trabalho, ao seguro contra desemprego, de organização sindical, ao lazer e ao descanso
remunerado, à proteção especial para a maternidade e a infância, à educação pública gratuita e de
qualidade e a participar da vida cultural da comunidade.
5 A garantia destes direitos exigiria do Estado determinadas prestações que colocariam em xeque a sua
própria estrutura e o sistema onde se encontra inserido. Os direitos sociais foram, então, lançados
como diretrizes a serem alcançadas a longo prazo, não vinculando a ação imediata do poder estatal,
sendo condicionada à reserva do possível.
6 A Constituição de Weimar instituiu a primeira república alemã, surgindo como produto da
Primeira Grande Guerra. O Estado da democracia social adquiriu a partir dela uma estrutura
mais elaborada, que veio a ser retomada em vários países após a Segunda Guerra Mundial
(COMPARATO, 2010, p. 205).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

origem liberal, quanto direitos sociais, aí incluídos a proteção ao trabalha-


dor e o direito à educação.
Após a experiência das duas guerras mundiais, do advento da bomba atô-
mica e da certeza que uma terceira guerra poderia dizimar a humanidade, é
criada a Organização das Nações Unidas (ONU) com a tarefa de buscar a paz
mundial. Em 1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi proclamada a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, reafirmando os direitos reivin-
dicados na Revolução Francesa - mas estendendo-os aos que antes estavam
deles excluídos -, os direitos sociais, culturais e econômicos e os direitos de
solidariedade. Encara-se o outro – um indivíduo, uma classe social, um povo
– como um ser igual, a despeito das diferenças de etnia, gênero, costumes
ou fortuna patrimonial (COMPARATO, 2010 p. 238-241). Formalmente, a
titularidade dos direitos humanos foi estendida a toda a humanidade, inde-
pendente da origem, como uma mediação frente a bipolarização entre mundo
capitalista e comunista que vigorava na época.
O final do século XX e início do século XXI, por sua vez, é marcado pela
globalização do neoliberalismo, fruto da globalização econômica, cuja filosofia
é a flexibilização do Estado Nacional, debilitando os laços de soberania e dou-
trinando uma falsa despolitização da sociedade. Tal globalização é vinculada
à lógica do lucro, da concentração e da acumulação de riquezas, tornando
possível que uma mesma empresa esteja em diversos países, utilizando-se de
mão de obra e matéria prima dos países que ofertarem os menores custos (pa-
íses subdesenvolvidos) e remetendo os lucros para a empresa matriz, situada,
em regra, em uma grande potência econômica. São suprimidas as barreiras
nacionais também para o consumo, permitindo que produtos industrializados
fabricados em um país sejam vendidos em qualquer lugar do mundo, depen-
dendo apenas de acordos de comércio.
É concebida a noção de Estado Democrático de Direito, que positiva
uma série de direitos e garantias sem, contudo, preocupar-se com a sua efe-
tivação. As economias nacionais, ligadas através do mercado financeiro,
estão cada vez mais atreladas às grandes corporações mundiais, e os emprés-
timos e investimentos internacionais são condicionados à busca por atingir
alguns índices e indicadores sociais, que pouco traduzem as necessidades
locais, devendo o Estado garantir a superação das barreiras para a expansão
contínua da acumulação de capital.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Há, contudo, um esforço da militância de esquerda em globalizar também


a política, através da defesa dos direitos fundamentais. Desde o final dos anos
50 assiste-se a uma nova onda de práticas internacionalistas - como as redes de
apoio à Revolução Argelina, a rede de solidariedade às lutas do Terceiro Mundo
(animada por Henri Curiel), os movimentos de apoio aos revolucionários viet-
namitas, etc. – ao passo que iniciativas de coordenação internacional se multi-
plicaram nos últimos anos (como o Instituto de Pesquisas Críticas de Amsterdã,
o Fórum por uma Alternativa Econômica, a Conferência dos Povos contra o
Livre Câmbio, o Fórum Social Mundial etc.), visando tornar melhor o mundo
que vivemos para as gerações futuras. Surge, neste contexto, a defesa dos di-
reitos à democracia, à informação e ao pluralismo. Não uma mera democracia
baseada apenas em critérios formais, mas uma democracia cidadã, possibilitada
pela informação e pelo pluralismo de ideias.
É preciso ter em mente que, antes de serem concessões do poder político (em
escala nacional e internacional), os direitos humanos positivados representam
conquistas dos movimentos sociais organizados em torno de demandas reais
de uma significativa parcela da população mundial - seja manifestações de se-
tores médios reivindicando direitos à liberdade ou de proletários exigindo uma
resposta do Estado frente à crise do sistema capitalista e às demandas sociais
resultantes deste quadro. A pressão feita por amplos setores em diversas partes
do mundo foi imperativa para que novos direitos fossem discutidos e gerassem
novas normas e tratados.
Não se trata, portanto, de considerar os direitos humanos como fruto de
um processo filosófico de pensar o direito a partir de gerações, mas com-
preender suas dimensões jurídica e política e a dinâmica da movimentação
conjuntural dos atores sociais.

2. Emancipação política e emancipação humana na noção


de Direitos Humanos
A discussão sobre direitos humanos surge da demanda por direitos civis, no
século XVIII, dada a necessidade de emancipação política da classe burguesa
emergente frente à velha ordem, que a subjugava ao clero e à nobreza. A socie-
dade burguesa é erigida a partir dos ideais franceses de “liberdade, igualdade

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

e fraternidade” e da pretensão de universalização da garantia desses direitos,


significando a emancipação política do homem livre frente ao despotismo.
Porém, a nova ordem erigida é autônoma e autômata, restando ao ho-
mem apenas segui-la. Nesta sociedade, o produto do trabalho se autonomiza
diante do produtor, de maneira que as relações diretas entre produtores são
bloqueadas, podendo acontecer somente através da troca dos produtos do
trabalho. Os seres humanos perdem, assim, o atributo da sociabilidade, que
é deslocado para as coisas, dando à mercadoria (produto do trabalho huma-
no) o poder de ligação social.
Portanto, na sociedade burguesa, o homem não se relaciona diretamente
com os demais homens, de maneira que o sentido de liberdade não pode se ba-
sear na relação do homem com os demais. Nesta sociedade, “o direito humano
à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada” (MARX, 2010,
p. 49), tendo em vista que, somente através dela é exercido o atributo de socia-
bilidade. O homem livre é, necessariamente, o homem proprietário, que pode
dispor à vontade de seus bens, rendas e frutos do trabalho.
A noção de direitos humanos está calcada no homem burguês (egoísta, que
entende a sociedade como um meio de conservação de seus direitos e de sua
propriedade). Desta forma, a emancipação política representa a revolução da
sociedade burguesa, que dissolve a sociedade antiga e extingue a submissão es-
tatal ao soberano, ao passo que gera relações sociais alienadas em que o homem
é subjugado ao produto do seu trabalho e à necessidade de acúmulo de capital.
Marx, enfrentando o tema dos direitos políticos e civis em seus escritos
Sobre a Questão Judaica, destaca que “a cidadania, a comunidade política, é
rebaixada pelos emancipadores à condição de mero meio para a conservação
desses assim chamados direitos humanos e que, portanto, o citoyen é declara-
do como serviçal do homem egoísta” (2010, p. 50), significando a subjugação
do homem como parte do todo social [cidadão] ao homem egoísta, que se
entende como um fim em si mesmo.
A emancipação política, desta forma, libertou o Estado do julgo do soberano
e da Igreja, sem, com isso, produzir um homem de fato livre. A sociedade bur-
guesa suplantou a velha ordem sem fazer a crítica à sua estrutura, mas apenas
retirando os obstáculos para a constituição de um novo Estado, transplantando
para a mercadoria a “objetividade fantasmagórica” e a “sutiliza metafísica” pró-
prias da religião, que somente desaparecerão quando os homens estabelecerem
relações transparentes entre si e com a natureza.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Segundo Marx, “a emancipação humana só estará realizada (...) quando o


homem tiver reconhecido e organizado suas ‘forces propres’ [próprias forças]
como forças sociais, e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força
social na forma da força política.” (2010, p. 54). Ou seja, a emancipação humana
só será realizada quando o homem voltar a se entender como parte do ser social,
integrante de um todo, um sujeito coletivo que organize a sociedade com o fim
de satisfazer as necessidades gerais, superando o egoísmo.
Marx, com isso, não quis se colocar contrário às reivindicações por direitos
civis, mas denunciar sua origem de classe e de cor, ressaltando o caráter mera-
mente reformador destes direitos, tendo em vista que “a revolução política de-
compõe a vida burguesa em seus componentes sem revolucionar esses mesmos
componentes nem submetê-los à crítica” (2010, p. 53).
Identificar na luta pela efetivação e positivação dos direitos humanos um
caráter transformador, com potencial de construção de uma sociedade de fato
livre - onde os seres humanos sejam socialmente iguais - é se furtar da críti-
ca, ignorando a relação dialética entre o direito (superestrutura) e a estrutura
econômica. Segundo Marx (2012) “o direito nunca pode ultrapassar a forma
econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, na sociedade”
(p.31). Ou seja, compreendendo a sociedade burguesa através da chave marxista
do fetichismo da mercadoria (descrita na Seção O Fetichismo da Mercadoria e
seu Segredo do Livro I, Volume 1 de O Capital), conclui-se que a emancipação
humana só é possível através da crítica ao modo de produção do sistema capi-
talista, baseado na Lei do Valor. A chave da luta de classes, comumente reivin-
dicada isoladamente pelos movimentos sociais que pressionam pela positivação
e garantia de direitos humanos, incide a sua crítica na distribuição da riqueza
e na socialização dos meios de produção, posição interna ao modo sistêmico da
sociedade, que não questiona a contradição capital x trabalho.
Marx (2012), afirmou que o procedimento de “considerar e tratar a distribui-
ção como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor
o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torna da distribui-
ção” (p.33) foi herdado da economia burguesa. Ou seja, a emancipação humana
só é possível frente a uma crítica à totalidade do sistema em voga, englobando
as etapas da produção, circulação e distribuição do produto do trabalho.
Marx compreende que a emancipação humana integral e universal só
pode ser alcançada com a derrubada violenta de toda ordem social existen-
te até aqui. Pois “a emancipação do trabalho não é uma emancipação local

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

nem nacional, mas um problema social que abrange todos os países em que
existe a sociedade moderna”7.
Desta forma, Marx identifica a emancipação humana com a construção da
sociedade comunista, erigida internacionalmente através de lutas articuladas
pelos trabalhadores organizados de todas as partes do mundo. A busca pela
emancipação humana coaduna, portanto, com a busca da transformação social
em direção a uma sociedade sem classes. O seu sujeito não é individual (como
na concepção de homem individual contida na doutrina dos direitos humanos),
mas um sujeito coletivo, identificado com sua classe social.
Porém, não se trata de negar a reivindicação dos trabalhadores e oprimidos
por novos direitos, mas ressaltar o caráter de classe do Estado (e, consequente-
mente, do direito), deixando de compreender a luta por direitos humanos como
um fim para trata-la como um meio de disputa de consciência para a necessida-
de de transformação radical da sociedade. Ou seja, denunciar a positivação de
direitos como arrefecimento da luta de classes, como recuo da classe dominante
frente à possibilidade real de tomada de poder da classe trabalhadora.
A luta por direitos humanos precisa suplantar o paradigma da eman-
cipação política para ser compreendida enquanto instrumento de supera-
ção da consciência de classe “em si” para transformar-se em classe “para
si”, assumindo-se como sujeito revolucionário coletivo capaz de construir a
emancipação humana em uma sociedade formada por sujeitos humanamen-
te diferentes, mas socialmente iguais.

Conclusão
Diante do exposto, é possível extrair as seguintes conclusões a respeito
da luta pela positivação de direitos humanos e da busca pela emancipação
da classe trabalhadora.
Considerando os direitos humanos como fruto de um processo histórico
com raízes no surgimento e desenvolvimento do sistema capitalista, superamos
a hipótese de origem em um processo filosófico, de pensar o direito a partir de
gerações, para identifica-lo com a história da luta de classes. Desta forma, supe-
rando a visão fetichizada da realidade social e destacando a dependência eco-

7 Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores (In “Sobre a Questão Judaica”).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

nômica do direito, é possível compreender a positivação dos direitos humanos


como forma de ceder direitos para a classe trabalhadora sem ceder, com isso, o
monopólio do poder político, relegando os direitos sociais à esfera programática,
sem aplicação e garantia prática.
Entendendo que a emancipação política representa a revolução da socie-
dade burguesa, pois dissolve a sociedade antiga e extingue a submissão estatal
ao soberano, ao passo que gera relações sociais alienadas em que o homem é
subjugado ao produto do seu trabalho e à necessidade de acúmulo de capital,
restou claro o caráter meramente reformador dos direitos humanos que nela são
calcados, que tem a finalidade de refrear as tensões oriundas da luta de classes,
garantindo a manutenção da ordem burguesa.
A emancipação humana integral e universal só se realizará em uma socieda-
de erigida a partir da crítica radical dos elementos estruturantes da sociedade
atual, incidindo nas esferas da produção, circulação e distribuição da riqueza e
libertando o trabalho da imposição do tempo e do espaço. Esta emancipação
tem como sujeito o homem coletivo, que superou a individualidade imposta pela
sociedade burguesa e se compreendeu como membro da totalidade social.
Desta maneira, não se trata de negar a reivindicação dos trabalhadores e opri-
midos por novos direitos, mas ressaltar o caráter de classe do Estado (e, conse-
quentemente, do direito), deixando de compreender a luta por direitos humanos
como um fim para trata-la como um instrumento de superação da consciência
de classe “em si” para transformar-se em classe “para si”, assumindo-se como su-
jeito revolucionário coletivo capaz de construir a emancipação humana em uma
sociedade formada por sujeitos humanamente diferentes, mas socialmente iguais.

Referências Bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo:


os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo:
Saraiva, 2009.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.


7. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.

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HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções: Europa 1789 - 1848. 3. ed. Rio de


Janeiro: 1982.

LYRA, Rubens (Org). Direitos Humanos: os desafios do século XXI – uma


abordagem interdisciplinar . Brasília: Brasília Jurídica, 2002.

MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro I, vol 1 (o


processo de produção do capital). Trad. Reginaldo Sant’Anna. 24ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

______. Sobre a Questão Judaica. Trad. Daniel Bensaïd, Wanda Caldeira


Brant. São Paulo: Boitempo, 2010.

______. Crítica do Programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo:


Boitempo, 2012.

TRINDADE, José Damião de Lima. Os direitos humanos na perspectiva de


Marx e Engels: emancipação política e emancipação humana. São Paulo:
Alfa-Omega, 2011.

452
Extensão universitária em educação
infantil e popular durante o encontro
dos Sem Terrinha, no assentamento Maísa,
da região de Mossoró/RN

Nardella Gardner Dantas de Oliveira1


Vagner de Brito Torres2
Romana Alves da Câmara3

Introdução
Para além da luta pelo direito à terra, o Movimento dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais sem Terra vem pautar também o direito a uma educação
digna e humana, que se faça presente nos ambientes de vivência e que caminhe
de contramão à ideia hegemônica de que o polo de sociabilidade educação se
encontra nos espaços urbanos e põe o campo à margem dela.
Partindo disso, o MST desenvolve propostas pedagógicas de educação popular
que respeitem o indivíduo e seu saber, tanto em vieses formais, quanto informais, e que
incentivam o coletivismo, pautando o processo de luta estabelecido pelo movimento.
A primeira Ciranda Infantil do MST foi realizada em 1987, durante o 1º Encon-
tro Nacional de Educadoras/es da Reforma Agrária (ENERA)4 e, na época, sua
abordagem focava bem mais a facilitação à participação das/os mães e pais no

1 Estudante de Engenharia Florestal na Universidade Federal Rural do Semi-Árido, campus Mossoró.


2 Estudante de Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido, campus Mossoró.
3 Estudante de Serviço Social na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, campus Mossoró.
4 ERNST, P. Ciranda Infantil; espaço de cultura e formação para as crianças, 2015. Disponível em:
<http://www.mst.org.br/2015/07/24/ciranda-infantil-e-espaco-de-cultura-e-formacao-para-as-
criancas-na-jornada.html>. Acesso em: 17 mar. 2018.

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ENERA, através do cuidado com as crianças que precisassem acompanhá-los/


as no evento. Porém, em decorrência das demandas por educação e da reflexão
sobre o processo de historicamente invisibilização da criança enquanto sujeito
revolucionário, revelou-se necessário o amadurecimento do conceito de Ciran-
da, que se encaminhava para se tornar a metodologia pedagógica focada na
formação de crianças que podemos observar atualmente.
O Centro de Referência em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Se-
miárido) é um programa de extensão universitária que reúne estudantes e
professores/as dos cursos de Engenharia Florestal, Engenharia Elétrica, Di-
reito, Agronomia, Ciências Sociais, Administração, Ciência e Tecnologia e
Serviço Social, e por meio do seu projeto Eixo Agrário e de Acesso à Terra,
realiza o I Curso de Educação em Direitos Humanos e Acesso à Terra, que
é voltado para munir integrantes de movimentos sociais populares de estra-
tégias de trabalho e reconhecimento de seus direitos. O curso foi dividido
em três módulos, em que foram abordadas temáticas de trabalho diferentes,
porém sempre enfocando na questão agrária.
Visando a possibilitar a participação de pais e mães no curso, a Co-
missão Político-Pedagógica, que conduz sua organização, adotou, como ele-
mento pedagógico e metodológico a adoção de um espaço de Ciranda para
atividades lúdicas, de formação e recreação das crianças trazidas pelas/os
educandas/os cursistas. A experiência com esse espaço nos dois primeiros
módulos do Curso, ocorridos respectivamente em 2 a 7 de abril de 2017 e
18 a 22 de setembro de 201, aprofundou a relação do CRDH Semiárido com
as atividades do setor de educação do MST e, por meio desse diálogo, os/
as extensionistas do Centro construíram, em conjunto do MST, o Encontro
dos Sem Terrinha da Região de Mossoró.
Preceitos freireanos de que ser humano é um ser inconcluso ou incompleto,
e, possuindo ele consciência de sua própria inconclusão, busca o seu apren-
dizado, não servindo como objeto passivo de sua própria educação, porém
como agente de sua aprendizagem5, formaram a práxis das/os extensionistas do
CRDH dispostos a atender ao Encontro com os objetivos de ministrar oficinas,
construí-lo infraestruturalmente e também para adquirir conhecimento sobre a
metodologia de Ciranda.

5 FREIRE, P. Educação e Mudança. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A Educação Popular é uma visão contra-hegemônica da assim chamada


Educação Bancária, que atende somente aos interesses de uma elite dominan-
te detentora da hegemonia econômica e cultural na sociedade. A proposta
freireana traz um processo de aprendizagem que acredita que ninguém educa
ninguém, mas sim que o processo pedagógico se dá de forma emancipatória e
atendendo aos interesses populares e revolucionários. A Educação Popular não
pode ser confundida com a Educação do Povo, já que a Educação Popular é
feita com e para as classes populares, almejando a sua autonomia, enquanto a
Educação do Povo fez surgir as primeiras escolas públicas brasileiras, voltadas
às classes populares por simples pressão empresarial, que enxergava possíveis
vantagens econômicas na alfabetização dos trabalhadores, levando à criação
das primeiras redes de ensino público no Brasil. Durante a década de 1920, o
combate ao analfabetismo foi uma iniciativa plenamente motivada pelos inte-
resses financeiros das classes dominantes, para instruir indivíduos a ocuparem
determinado papel na sociedade, e não para educar visando à sua libertação. 6

Metodologia
O Encontro dos Sem Terrinha, que é organizado anualmente pelo MST nos
assentamentos reúne crianças assentadas para atividades de reflexão, recreação
e fortalecimento de vínculos de identidade camponesa, aproxima-se da criança
como um espaço em que esta pode desfrutar de um ambiente no qual exerce sua
liberdade de criança, onde sua curiosidade para com o mundo é incentivada,
pois é junto delas que se constrói o ambiente do encontro, buscando pelo novo
e conhecendo sua história. A confiança entre elas e o conhecimento acerca da
identidade camponesa são estabelecidos através de um ambiente afetuoso, per-
meado por brincadeiras, oficinas variadas, místicas, teatro, rodas de conversa,
entre outras atividades lúdicas.
O Encontro se constrói sob a égide da autonomia das crianças, partindo
do pressuposto de que a estrutura de uma ciranda as arruma em um contínuo
fluxo. Sendo assim, o Encontro, do começo ao fim, é posto em movimento e
coordenado por elas.

6 BRANDÃO, C. R. O que é Educação Popular. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

De acordo com o MST (2004, p. 39)7, os objetivos das Cirandas Infantis são:

“- Criar um espaço educativo para os filhos e filhas das


famílias que participam do MST;
- Implementar a pedagogia do MST em Educação Infantil;
- Implementar na Ciranda Infantil a organicidade do MST;
- Organizar atividades nas quais as crianças sejam sujeitos do
processo;
- Desenvolver a cooperação, de forma educativa que construa
a vivência de novos valores;
- Trabalhar a criação de vínculos e relações com, os demais
setores do Movimento;
-Garantir a formação política pedagógica permanente das
educadoras e dos educadores infantis;
- Realizar atividades com conjunto com as comunidades
assentadas e acampadas. ”

Em 2009, Edina Rosseto desenvolveu estudos experimentais baseados na


observação do método de ciranda praticada pelo MST em cursos, congresso,
e outras atividades, e, a partir de tais observações, foi possível depreender que
a ciranda consiste numa forma de as crianças se envolverem na luta pela terra
desde bem cedo. Assim sendo, constituem espaços de concepção do universo
coletivo infantil, onde se compartilha o saber, o lanche, o lápis, o sonho por um
país no qual gostar-se-ia de ver banida toda forma de exploração, de injustiça,
de violência, de opressão e no qual houvesse uma distribuição da riqueza de
acordo com as necessidades de cada um.8
Quando se traz a ciranda infantil para o centro da luz, também se traz o
recorte de classe à qual a criança pertence. Pode-se inferir que as crianças são
sujeitos sociais e históricos e que preponderante a qualquer outra questão para
determinar os elementos da vida, há a questão de classe. Logo, as crianças se
constituem enquanto parte de um povo e de uma classe da qual elas se origi-

7 MST. Educação Infantil: Movimento da vida, dança do aprender. Caderno de Educação, São Paulo,
n. 12, nov. 2004.
8 ROSSETTO, E. R. A. Essa ciranda não é minha só, ela é de todos nós: a educação das crianças sem
terrinha no MST. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 2009.

456
nam, juntamente com seus brinquedos, que não ficam na esfera do individual,
mas constituem um diálogo alusivo a ela e sua comunidade.9
Para auxiliar na construção e realização do Encontro dos Sem Terrinha da
Região de Mossoró/RN, destacaram-se oito extensionistas do CRDH Semiári-
do, que mantiveram diálogo com as/os representantes do MST através de reu-
niões junto ao setor pedagógico do movimento. Assim, a atividade iniciou-se
com o translado das crianças em um transporte tomado à frente por estudantes
extensionistas e professores/as do Centro, partindo do Acampamento Cirilo até
a Agrovila Paulo Freire, no Assentamento Maisa. O Encontro se deu na Escola
Municipal Professor Maurício de Oliveira, onde o coletivo de extensionistas
se destacou para a realização de múltiplas atividades, a saber: ornamentação e
mística, vigília e portaria, participação em questões referentes à infraestrutura
do Encontro, atividades organizativas de pessoas e materiais, alimentação, re-
gistro e memória e recreação.
No dia inicial, 13 de janeiro, se deu a chegada ao Acampamento Cirilo, às 6
horas e 40 minutos da manhã.
Às sete horas e trinta minutos, alcançou-se a Agrovila Paulo Freire, onde a
responsabilidade com as atividades foi repartida entre as/os extensionistas. No
período da manhã, se deram a ornamentação do espaço, fazendo uso de materiais
como bexigas, bandeiras e tecidos de tipos e comprimentos variados, a reunião
organizativa entre extensionistas e participantes do movimento e as primeiras
atividades recreativas junto às crianças. Materiais diversos, como cadeiras, cor-
das, giz e tinta guache, fizeram parte das brincadeiras, todas voltadas a estimular
a criatividade e a interação entre as crianças, como amarelinha, mímica, dança
das cadeiras, danças de roda e pular corda acompanhados de músicas folclóricas e
canções que discutem companheirismo, e variadas outras brincadeiras seguindo
a mesma lógica de exercícios, formação cultural e de vínculos.
Ao meio dia, participantes do movimento destacados para a atividade de
alimentação serviram almoço, preparado com alimentos originários da reforma
agrária, produzidos por um modelo de agricultura que busca ser parcimoniosa
com o meio ambiente, livre de agrotóxicos e de opressões, garantindo, portanto,
aos encontristas, a segurança alimentar e nutricional necessária para o pleno
desenvolvimento da criança.

9 BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A partir das 14 horas, ocorreram diferentes espaços de oficinas e também


uma roda de conversa entre os participantes de faixa etária de doze a quatorze
anos do Encontro. As oficinas foram realizadas com as duas menores faixas etá-
rias do encontristas, a saber: de corte e colagem, de três a seis anos, fazendo uso
dos seguintes materiais: papel, cola, tesoura sem ponta, folhas de EVA e com o
apoio de monitoras/es; de geotinta, que fez uso de uma multiplicidade de solos
coloridos oriundos da região de Mossoró, cola branca, água, copos descartáveis,
palitinhos, também com apoio de monitoras/es. A Roda de Conversa propor-
cionou o debate acerca do papel do e da jovem camponês/a enquanto indivíduo
integrante de um movimento social e provocou reflexões acerca do processo
de formação política em que a sua vida cotidiana se dá, e a partir disso, uma
articulação para a construção de um encontro estadual da juventude começou
a se desenhar. Para tal, a juventude realizará jogos de futebol a fim de que o
desenvolvimento dessas atividades, culminem no encontro anual.
Às 17 horas, as crianças foram divididas em dois grupos de acordo com suas
idades, reunidas, elas foram estimuladas a debater sobre quais eram seus desejos
para seus assentamentos ou comunidade, e também para sua escola. Para isso,
elas contaram com o auxílio de um extensionista para a distribuição de mate-
riais como cartazes, lápis, tintas, entre outros. A este momento pode-se atribuir
uma relevância no sentido de considerar a autonomia política das crianças e de
desenvolvimento de capacidades delas, pois embora nem todos os participan-
tes soubessem escrever quais melhorias eles queriam para seus assentamentos e
escolas, eles eram dotados da capacidade de desenhar tais manifestações de de-
sejo. Assim, o espaço se deu de forma descontraída, onde as crianças puderam
brincar e se divertir com seus desenhos, bem como construir análises críticas
sobre as suas escolas, assentamentos, e realidade em torno.
Às 18 horas, houve apresentação teatral com um palhaço, que fez uso de li-
vros, fantasias e truques de mágica. Mais tarde, às 19 horas, houve uma reunião
autônoma dos sem terrinha e jantar.
Às 22 horas, foi o momento do toque de recolher e organização do reve-
zamento para o turno da vigília, para manutenção da segurança dos encon-
tristas e da escola.
No dia 14 de janeiro, às 6 horas da manhã, realizou-se a alvorada, momento
em que as pessoas se preparavam para dar início das tarefas do dia.
O café da manhã foi servido às 7 horas e, às 8, iniciaram-se as atividades do
dia, semelhantes às realizadas no dia anterior

458
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Houve, novamente, uma série de oficinas determinadas de acordo com a


faixa etária dos/das participantes, as oficinas foram, a saber: de dobradura, para
as crianças de 8 a 12 anos, que contou com o uso de papéis coloridos e apoio
de monitoras/es; oficina de pintura aquarela, junto às crianças de menor faixa
etária do encontro, que fez uso de papel, pincéis, tinta guache, água, copos des-
cartáveis, papel higiênico e monitoras/es que auxiliaram no processo de limpeza
das crianças e do ambiente durante e após a realização da oficina.
Às 11 horas, houve recreação com brincadeiras que seguiam a mesma lógica
já utilizada para a sua escolha, como o uso da brincadeira como método peda-
gógico de ensinar sobre cultura e respeito ao próximo, utilização de materiais
como cadeiras, cordas, giz e animação por monitoras/es. Em seguida ocorreu
um momento de apresentação da sistematização dos relatos feitos pelas crianças
no dia anterior, acerca das melhorias que estas desejavam para suas escolas e
assentamentos. A partir da manifestação dos desejos das crianças, as/os ex-
tensionistas puderam perceber a visão crítica destas frente ao mundo, e que,
mesmo com pouca idade, elas reivindicavam seus direitos à saúde, moradia e
segurança principalmente. A compreensão por parte das/os extensionistas da
análise de mundo feita pelas crianças do movimento decorreu no reconheci-
mento da identidade da criança enquanto sujeito revolucionário.
Ao meio dia, houve reunião autônoma dos sem terrinha, para que estes se auto-
-organizassem e tomassem suas decisões próprias, abrangendo aquelas concernentes
ao papel que estas desempenham em seus coletivos na busca pelas melhorias dese-
jadas para suas escolas e assentamentos, bem como na articulação para o encontro
da juventude e o encontro dos sem terrinha, a ser realizado no dia da criança deste
ano. Após reunião, houve almoço seguido de confraternização final, momento em
que o aniversário de uma pequena de sem terrinha foi realizado.
Às 17 horas, foi a finalização, com a preparação de retorno das crianças para
casa. Parte delas foi buscada pelas/os mães e pais. Nossa equipe retornou ao
Acampamento Cirilo, com as crianças ali acampadas, e à UFERSA.
Neste retorno, refletirmos sobre o compartilhamento de conhecimento du-
rante esses dois dias, percebendo que, por meio desses momentos, os laços de
solidariedade, trocas de saberes, lutas e perspectivas para mais ações são forta-
lecidos. Após o encontro, atentamo-nos à necessidade de nos fortificar, enquan-
to projeto de extensão que trabalha a questão agrária, em relação à educação
revolucionária e transformadora para crianças. A partir desse reconhecimen-

459
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

to, construímos um processo interno de aprendizado em ciranda infantil no


CRDH apoiado por integrantes do setor de educação do MST
A ação de registro e memória se deu continuamente durante todo o Encon-
tro, entendendo que historicamente movimentos sociais populares e a classe
oprimida são invisibilizados, o registo e memória se faz importante para garantir
a documentação do evento, estimulando uma identidade camponesa ao regis-
trar os processos de luta
O tipo de atuação realizada durante o Encontro se apoiou na pedagogia
freireana, através da qual buscou-se construir o Encontro, facilitar oficinas e
aprender o método de ciranda colocado em práxis pelo MST.

Resultados e Discussão
Ao integrarem o Encontro, as/os extensionistas agiram antropologicamente
frente ao espaço e convívio, participando estruturalmente junto dos integrantes
do MST. Pôde-se observar com clareza a metodologia estrutural que comanda
a forma pela qual o MST organiza um evento como esse e o método empregado
com as próprias crianças.
Logo de início foi colocado como tarefa para os extensionistas a decoração
de alguns espaços da escola, tornando-a um local ainda mais convidativo para
as crianças. Através da experiência é possível compreender a importância de
organizar um ambiente adequado, com informações que a criança possa ter
curiosidade de buscar conhecer, aprender e recriar. Dessa forma torna-se in-
dispensável analisar e compreender o importante papel que o educador possui
dentro da organização de uma ciranda, tendo a função de orientar e oferecer
condições que contribua para o crescimento e autonomia das crianças en-
volvidas no espaço. Mas para que esse processo ocorra de uma forma rica de
aprendizados, é fundamental que os responsáveis em coordenar as ativida-
des, mantenham-se sempre atualizado para levar diversas informações para as
crianças. Todos esses aprendizados que puderam ser obtidos pelos extensio-
nistas durante sua vivência, torna-se muito importante para a organização de
ciranda em outros eventos que virão a acontecer.
A comunidade participar desses momentos, faz com que a mesma compre-
enda a importância de organizar as crianças, as entendendo como sujeito re-
volucionário e que para sua autonomia seja gerada, é necessário o cuidado de

460
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

incluir nos eventos um "espaço especial" para os sem-terrinha. Planejar eventos


para as crianças é entender que elas também são sujeitas de direitos e que atra-
vés da organização e luta poderão ser conquistados, como escolas com melhor
estrutura, garantia de acesso a hospital de melhor qualidade, entre outros.
É necessário que a criança desde pequena conviva com o processo organiza-
tivo, sendo também organizada, provocando fortalecimento de sua capacidade
de luta e reivindicação, além de acúmulo de conhecimento. Mesmo com pouca
idade, pode ser gerada uma visão crítica do mundo em que se estar inserida,
podendo buscar por melhorias.
O encontro realizado busca a articulação para a construção de posterio-
res eventos, como o Encontro Nacional dos Sem- Terrinha, onde as demandas
discutidas pelas crianças e jovens no Encontro dos Sem- Terrinha da Região
de Mossoró serão colocadas. Uma característica importante a ser destacada é
a busca da paridade de gênero entre os participantes, onde cada Estado envia
uma menina e um menino como representantes.
Além da participação das atividades relacionadas às crianças, os extensio-
nistas também trabalharam com os integrantes do MST na infraestrutura. Se
dividindo em tarefas nas áreas da cozinha, salas e banheiros.
É de suma importância que os extensionistas possuam vivência em experi-
ências que exijam um maior dispêndio infraestrutural para que quando reali-
zando ações de extensão sem o auxílio direto dos movimentos sociais ou outras
entidades tenha arcabouço para a idealização e prática do evento.

461
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Imagem 1 - Extensionistas e integrantes do MST trabalhavam juntos na


infraestrutura do evento. / Foto: Carol Rebouças
Houve uma observação por parte dos extensionistas do método empregado
pelos educadores nas oficinas realizadas, havendo também a colaboração na
condução das atividades, pensando numa futura reprodução das atividades for-
mativas nas Cirandas Infantis Itinerantes que virão a ser realizadas nos espaços
promovidos pelo CRDH Semiárido.

462
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Imagem 2 - Extensionistas participavam das atividades do Encontro dos


Sem Terrinha. / Foto: Carol Rebouças
O contato direto e real com o processo educacional e formativo da Ciran-
da Infantil do MST cumpriu as expectativas e foram de forma real e material
importantes para o desenvolvimento de atividades de educação rural infantil e
respeito à identidade das crianças e sua capacidade de agir enquanto sujeitos
agentes ativos em seu processo educacional.

Conclusão
A análise feita sobre o evento em geral pode ser considerada positiva, por
ter assegurado a realização de todas as atividades, dentro as dificuldades que
qualquer evento possa enfrentar, como cumprimento de horário e assegurar os
participantes nas atividades.
O encontro cumpriu seu objetivo a partir do ponto que é percebido que as
crianças estão se organizando, tendo visão do mundo em que estão inseridas
e que podem fazer parte da luta. A realização de oficinas, reuniões e debates,
estando presente o método da Educação Popular, faz com que as crianças
presentes desenvolvam senso crítico, não permitindo imposições postas pelo

463
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

sistema capitalista, dessa forma levantando e organizando suas demandas, para


que sejam levadas para o Encontro Nacional.
É importante a participação da comunidade e dos parceiros do MST na
construção do Encontro. Uma parceria de grande importância para ambos os
lados, é a do Centro de Referência em Direitos Humanos compõe com o MST,
no encontro que está sendo relatado, o CRDH se fez presente por meio de
extensionistas que puderam fortalecer o espaço em diferentes áreas, podendo
dessa forma obter maiores percepções através da experiência e convívio com
um movimento de bastante vivência e conhecimento.

Referências bibliográficas

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(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Florianópolis, 2013.

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ROSSETTO, E. R. A. Essa ciranda não é minha só, ela é de todos nós:


a educação das crianças sem terrinha no MST. Dissertação de Mestrado.
Universidade Estadual de Campinas, 2009.

464
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São


Paulo: Summus, 1984.

SETOR DE EDUCAÇÃO MST. Papel dos educadores infantis. 2000. Pg.


30-35.

465
Juventude e organização política: uma análise
do protagonismo juvenil nas lutas sociais

Taisa Iara de Almeida Costa1

1. Introdução
Os debates envolvendo juventude se compreendem complexos, uma vez que,
envolvem conceitos específicos e uma noção muito utilizada no senso comum.
Logo, falar de juventude é compreender este segmento não como algo pronto e
acabado, cuja sua trajetória histórica determina-se especificamente pela idade –
a delimitação científica e legislativa brasileira dessa categoria, é de pessoas com
idades entre 15 a 29 anos – mas, como construção histórica de subjetividades
individuais e coletivas, compreendendo seus espaços de ocupação e suas varia-
das expressões e contradições na sociedade, inclusive no campo político.
A consolidação da sociabilidade capitalista, ao passo em que espraia con-
tradições e antagonismos é palco de inúmeras formas de mobilização e resis-
tência. Se esta assertiva é verdadeira, decorre-se dela o fato de que, em todos
os momentos históricos, as contradições e antagonismos inerentes ao modo de
produção capitalista têm se expressado de diversas formas e, ao mesmo tempo,
contribuído para despertar nos sujeitos a necessidade de organização e luta.
Inseridos nessa sociabilidade regida pelos ditames do capital, em que as re-
lações sociais são determinadas por uma lógica de dominação de uma classe
sobre outra, a juventude vem desempenhando um importante papel no campo
da atuação e organização política, colocando-se como sujeito importante nestes
processos, através do seu caráter de rebeldia e subversão, que constituem pontos

1 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Mestre
em Serviço Social e Direitos Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos
Sociais (PPGSSD/UERN).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

característicos desse segmento, já que a juventude sempre foi um dos grandes


motores das lutas progressistas no Brasil e no mundo.
Nessa perspectiva, instigados pelas manifestações políticas da juventude mun-
dial e brasileira e, apoiados na defesa e construção de uma nova sociedade, nos
debruçaremos na realização de uma síntese da primeira sessão do trabalho mono-
gráfico sobre organização política da juventude na cidade de Mossoró-RN.
Nesta, apontaremos alguns processos históricos gerais da organização políti-
ca da classe trabalhadora no contexto de acirramento das relações capitalistas
de produção, bem como, articularemos esses processos com o protagonismo
da juventude nas lutas sociais travadas ao longo das décadas e em especial no
Brasil, em que acrescentamos como elemento novo, um processo ainda em mo-
vimento, tendo em vista os processos políticos que marcam o legado das mobi-
lizações juvenis brasileiras que, de modo inclusivo, rebatem no tempo presente.
Afirmamos, ainda, que a classe trabalhadora e a juventude nela inserida
concentram forças na organização política e pauta a defesa dos interesses de
classe por meio da atuação nas lutas sociais. Para tanto, estarão expressos al-
guns fundamentos para a teoria da organização política dos trabalhadores na
sociabilidade capitalista e os processos de luta protagonizados pela juventude,
em particular a juventude brasileira, na afirmativa de que esta carrega em si, a
tarefa da organização e transformação.

2. Luta de classe, expansão capitalista e organização política


Refletir o processo desigual das relações entre as classes, ao qual são de-
terminadas pelo seguinte panorama: de um lado uma minoria que detém os
meios de produção e, assim, a apropriação dos lucros e, do outro, uma maioria
de pessoas que vende sua força de trabalho aos primeiros, obtendo um retorno
incoerente ao esforço que dedicam na produção social.
Tais elementos são característicos do estreitamento das relações capitalistas
no cotidiano da vida em sociedade, em que corresponde essencialmente uma
relação entre duas classes. “Destas, uma, a burguesia, por ter o monopólio dos
meios de produção e do dinheiro, explora a outra, a classe trabalhadora, que
não é proprietária de nada exceto a sua força de trabalho que se vê forçada a
vender”. (MARX, 1982, p. 67).
Dada essa estruturação capitalista na sociedade, buscam-se os meios
necessários de sustentação e controle dessa classe dominante, tendo como

468
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

base principal, a figura do Estado, que nessa perspectiva Lessa (2012, p. 13)
categoriza como, “instrumento especial e imprescindível de repressão dos
trabalhadores para a reprodução da sociedade de classes, desde a mais antiga
até a mais desenvolvida dos nossos dias”.
Ao ter o controle dos meios de produção e da força de trabalho no processo
de produção a burguesia se constitui classe dominante, estendendo seu poder
ao Estado, que passa a submeter-se aos interesses burgueses expressando isso
através de normas e leis que reafirmam o caráter de Estado Burguês.
Sendo assim, o Estado não apresenta neutralidade e passa a cumprir o papel
contraditório, que de um lado, em maior ou menor escala, atende a alguns an-
seios da classe trabalhadora e, de outro, legitima a dominação e a exploração da
burguesia sobre o proletariado, o que caracteriza a aliança com os interesses da
classe dominante. Sobre as ideias dominantes, Marx fundamenta que:
As ideias dominantes são, pois, nada mais que a expressão ideal das
relações materiais dominantes, são essas as relações materiais dominantes
compreendidas sob a forma de ideias; são, portanto, a manifestação das
relações que transformam uma classe em classe dominante; são dessa
forma, as ideias de sua dominação. (2005, p. 78)

Entretanto, essas questões não acontecem acompanhadas de um silên-


cio da classe trabalhadora, já que esta, embora estando numa condição su-
bordinada, manifesta sua indignação colocando-se frente às contradições e
antagonismos do modo de produção capitalista, o que sinaliza o ingresso do
operariado no cenário político.
Em o Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels destacam que
nessa sociabilidade, marcada pela divisão de classes, são os interesses an-
tagônicos que impulsionam a formação de organizações políticas, através
da correlação de forças entre as classes, discutindo também as diferentes
etapas do desenvolvimento do proletariado em sua luta cotidiana contra
a burguesia, assim como o processo de formação da identidade coleti-
va, que desencadeia a superação da consciência em si e a construção da
consciência para si.
A tomada de consciência se coloca como um fenômeno em movimento,
considerando esta como um processo e não como algo dado, pois se configura
na desconstrução de valores antigos e a construção de novos valores, a partir
das experiências vivenciadas. Essa construção da consciência atinge não só a

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

individualidade de cada sujeito, mas também alcança o coletivo, pois, “a partir da


diversidade de manifestações particulares podemos encontrar, nitidamente, uma
linha universal quando falamos em consciência de classe.” (IASI, 2007, p.13).
O primeiro estágio da consciência é a alienação2, que funciona como a
base para a implantação da ideologia como forma de dominação. A alie-
nação se configura ontologicamente pela atribuição da “naturalidade” das
relações de dominação, desvinculando-se da realidade. As relações sociais
determinadas no sistema capitalista, fundamentadas na propriedade priva-
da, na acumulação de capital e no assalariamento da força de trabalho, con-
duzidas por um arcabouço ideológico, apresentam os subsídios necessários
para criar uma população alienada.
A partir das experiências acumuladas na realidade concreta do proletariado
inserido no modelo de produção capitalista e a negação às condições de explo-
ração, desperta na classe um sentimento contestatório, o que provoca na classe
trabalhadora o desenvolvimento e amadurecimento político-organizativo.
Todavia, movimentos como o ludismo, considerado uma das primeiras for-
mas de manifestação operária de caráter radical, em que os trabalhadores des-
truíam máquinas e incendiavam grandes fábricas como forma de protesto às
péssimas condições de trabalho e a miserabilidade da vida nos centros urbanos,
marca um processo de consciência ainda incipiente da classe, com organização
fracionada pela competição e consciência alienada no processo de produção.
Nesse contexto, os trabalhadores não se reconheciam enquanto classe e, tam-
bém por isto, não compreendiam as relações capitalistas que os condicionavam
à exploração como seu verdadeiro inimigo.
Face o desenvolvimento exponencial da indústria, o proletariado não só se
expande, mas concentra sua organização também nas associações, nos sindica-
tos e partidos políticos, muitas vezes de forma clandestina. Esse processo con-
duziu a um maior direcionamento político, organizativo e formativo da classe
trabalhadora, permitindo que esta crie suas bases de enfrentamento ao sistema
capitalista. Para Lenin:

A organização clandestina dos revolucionários não substituiria ou


desprezaria o papel das massas. A concentração de todas as funções

2 Segundo Iasi (2011, p. 20) “a alienação que se expressa na primeira forma de consciência é
subjetiva, profundamente enraizada como carga afetiva, baseada em modelos e identificações de
fundo psicológico”.

470
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

clandestinas nas mãos do menor número possível de revolucionários


profissionais não significa absolutamente que esses pensarão por todos,
que a multidão não tomará parte ativa no movimento. Ao contrário,
a multidão fará surgir esses revolucionários profissionais. As massas
passariam por um trabalho educativo (LENIN apud BOGO, 2005, p. 134).

Os conflitos entre classes, as expressões gritantes das desigualdades, a exas-


peração das relações capitalistas e a necessidade da força coletiva, foram ele-
mentos que desencadearam um processo maior de consciência e organização da
classe trabalhadora em movimentos sociais.
Estes surgem a partir de novas expressões e demandas dos movimentos
de classe tradicionais, mais precisamente nas questões ligadas ao trabalho,
construídos através dos sindicatos e partidos políticos de esquerda, que
compreendem instrumentos organizativos necessários à luta. Há também os
movimentos camponeses, que articulam suas pautas em torno de demandas
oriundas das questões do campo.
Na compreensão de Duriguetto e Montaño (2011), ao reconhecer-se como
pertencentes a uma determinada classe, os sujeitos se aglutinam em torno de
diversas mobilizações sociais, as quais tem a finalidade de obter respostas às
suas demandas. Aproveitamos, ainda, as palavras dos autores para distinguir o
conceito de movimento social do de mobilização social, pois a primeira carac-
teriza uma organização, com relativo grau de formalidade e de estabilidade, que
não se reduz a uma dada atividade ou mobilização. Já esta última, remete a uma
atividade, que se esgota em si mesma quando concluída.
Desse modo, os movimentos sociais configuram-se como sujeitos coletivos
que apresentam um potencial de mobilização e articulação da classe trabalha-
dora. Segundo Ramos (2002), existe alguns aspectos que levam os indivíduos a
agirem coletivamente, são eles: a necessidade, a consciência e a vontade. Esses
elementos retiram os indivíduos do âmbito da singularidade, inserindo-os na
dimensão humano-genérica, através de ações coletivas.
Nesse sentido, os movimentos sociais enquanto espaços de organização e
luta, possibilitam a materialização de uma transformação social em torno da
ação política. Marx afirma que o horizonte máximo da humanidade, aquele que
expressa e possibilita a efetiva liberdade, é a emancipação humana. Em outras
palavras, “a emancipação humana, transcendendo largamente a emancipação
política, constituirá o programa do comunismo – ordem societária que inaugura

471
a verdadeira história humana ou, se se quiser, marca o fim da pré-história huma-
na” (MARX, 2009, p. 25).
A verdadeira consciência de classe, chamada de consciência para si3, é resultado
da negação do proletariado ao capitalismo, reconhecendo sua posição na luta de
classe e compreendendo a dimensão das lutas travadas em virtude de sua emanci-
pação humana. Nesse sentindo, a classe proletária se configura sujeito estratégico e
protagonista da luta contra a hegemonia do projeto do capital, sendo esta classe, a
única detentora dessa possibilidade, devido ao seu caráter revolucionário.

De todas as classes que se põem frente hoje com a burguesia, somente o


proletariado é uma classe realmente revolucionária. As outras declinam
e, finalmente, desaparecem ante à indústria moderna. O proletariado é o
seu produto mais autêntico (MARX e ENGELS, 1998, p. 26).

Diante disso, se torna nítida a importância da organização política dos tra-


balhadores em razão da maturação de seu processo de consciência de classe,
com a finalidade de atingir a plenitude da emancipação humana, que só será
possível com a superação radical dessa sociabilidade. Nas palavras de Marx,
essa emancipação só se dará por meio da organização e unidade da classe traba-
lhadora frente ao projeto do capital.
Os processos de organização política e articulação dos sujeitos têm se des-
dobrado ao longo da história e despertado diversos segmentos da classe tra-
balhadora para a necessidade da luta. De maneiras diferenciadas, essas lutas
vêm tomando forma e ganhando corpo na sociedade, embaladas por diversos
grupos. Certamente, a juventude é um deles, e é para ela que voltaremos nossos
esforços no item que se segue.

3. Juventude é revolução: lutas sociais e protagonismo juvenil


O movimento da tomada de consciência e a organização que acomete o pro-
cesso político-organizativo da classe trabalhadora, advindos da realidade social

3 Partindo da experiência direta dos sujeitos, a consciência em si desenvolve uma crítica imediata,
vivencial e espontânea, sem a intenção de desvendar as leis da ordem do capital. Já a consciência
para si desenvolve uma crítica verdadeira e mediata embasada no conhecimento total da realidade,
produzindo uma crítica revolucionária e radical que funda a consciência de classe. O desenvolvimento
dessa consciência traz a ideia de transformação e superação da ordem vigente (IASI, 2007).

472
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

e do agravamento das desigualdades entre as classes, perpassa o cotidiano de


lutas da juventude, não falamos de qualquer juventude, mas uma juventude que
se aproxima das ideias socialistas e libertárias da esquerda. No entendimento
de Iasi (2007), a ação coletiva coloca as relações vividas num novo patamar.
Vislumbra-se a possibilidade de não apenas se revoltar contra as relações prede-
terminadas, mas de alterá-las.
Esse processo de organização e seu movimento real alcança também a juven-
tude, enquanto fração4 da classe trabalhadora, estando nela inserida, que com
todas as suas problemáticas e contradições, tem mostrado sua inserção nas lutas
políticas e desenvolvido seu caráter e suas necessidades de organização nessa
sociedade. Nesse sentido:

“(...) O jovem, enquanto sujeito político em processo de construção de


uma consciência revolucionária, através do movimento de percepção
da realidade inserida e o desejo de mudá-la, enxerga a necessidade
de construir ações coletivas, pautadas em um projeto político de
sociedade a qual se deseja que possibilitem a transformação de sua
realidade, pois esta não representa seus interesses, na tentativa de
não apenas inserir-se nos processos, mas disputar ideias, no campo
político” (COSTA, 2015, p. 26-27).

Considerar tais expressões é caracterizar o papel revolucionário da ju-


ventude e considerar também, e ainda elencar, os processos de organiza-
ção e mobilizações marcadas e protagonizadas pela parcela juvenil nas lu-
tas sociais travadas pela classe trabalhadora ao longo da história da luta
de classes. Podemos, ainda, qualificar as disputas políticas como grandes
contribuições para a luta organizada, para os desdobramentos políticos da
juventude e para a conquista de direitos na história da sociedade através do
processo de lutas e revoluções alavancadas pelas camadas populares. Revo-
lução, nesse sentido, caracteriza:

[...] o conjunto de processos de mobilização, organização e luta do


povo, em condições históricas concretas, contra o poder instituído,
pela construção de um novo poder político que dirija as transformações
radicais das estruturas dominantes na sociedade (SADER, 1992, p. 1-2).

4 Essa fração vincula-se aos jovens trabalhadores ou, ainda, aos filhos dos operários, ou seja, à família
proletária, que, por conseguinte condiciona a reprodução da classe.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A juventude sempre foi um dos grandes motores das lutas progressistas mun-
do a fora. Na década de 1960, jovens na Europa e na América Latina protago-
nizaram mobilizações nas diferentes esferas da sociedade civil em um ambiente
de crise econômica e efervescência social.
Nesse período, a juventude, motivada pelas ideias socialistas disseminadas
e, também, por grande avanço e influência dos meios de comunicação, prota-
goniza manifestações e rebeliões em torno de pautas diversas, desde a negação
aos cortes e reformas na educação, até a luta por liberdade sexual. Além disso,
os jovens se mostravam contrários às relações burguesas, colocando-se a favor
da igualdade e liberdade e apontando fortes mudanças nos estímulos culturais.
O movimento estudantil, responsável por grande parte das mobilizações
mundo a fora, protagoniza algumas das maiores mobilizações inscritas na his-
tória dos movimentos sociais, colocando na ordem do dia as demandas educa-
cionais, culturais e pautando a diversidade. Já nos meses anteriores a maio de
1968, havia uma efervescência entre os estudantes expressada em uma série de
manifestações e ocupações, que viriam a impulsionar um período de ascensão
da resistência e da luta popular na Europa e no mundo.
A onda de protestos realizada pelos estudantes que clamavam por mudanças
e liberdade, cresceu de tal forma que deu espaço a adesão de outras organiza-
ções como sindicatos e partidos de esquerda que deflagraram greves mediante
o momento de grande pressão popular, desencadeando na maior greve geral da
história. As mobilizações tomaram proporções inimagináveis, onde milhares de
estudantes e trabalhadores se lançaram às ruas de países como México, Alema-
nha, França e Brasil, contabilizando protestos massivos por todo o globo.
Todavia, as rebeliões estavam acompanhadas de forte intervenção e repres-
são policial, gerando uma série de confrontos violentos com uma resultante de
centenas de presos e feridos e um processo constante de criminalização das
organizações e movimentos sociais.
Porém, o período de 1968 não se sustentou apenas em crise, instabilidade
política, tiros e bombas, mas também em intervenções com palavras de ordem
em muros espalhados pelas cidades, reuniões em massa e várias intervenções
subversivas com fortes estímulos da juventude, elementos os quais nos permi-
tiram um “legado organizativo”, já que essas ações diretas são utilizadas até
os dias atuais por diversos grupos e caracterizam parte fundamental da luta
política, pois para Lenin (2010, p. 121) “não basta explicar a opressão política

474
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de que são objeto os operários, (...) é necessário fazer agitação acerca de cada
manifestação concreta dessa opressão”.
Ademais, esse período torna-se um importante momento histórico por ter
sido ponto de partida para uma série de transformações políticas, éticas e com-
portamentais, que afetaram a sociedade da época com os chamados “sonhos
libertários”. Foi também o marco para o surgimento de movimentos sociais es-
pecíficos, como os movimentos ecologistas, feministas, das Organizações Não
Governamentais (ONG’s) e dos grupos defensores dos direitos humanos.
A arena de conflitos e disputas se acentua, para além da crise econômica estru-
tural, com a expansão de governos ditatoriais militares em vários países da América
Latina, a exemplo de Cuba em 1952, Brasil em 1964 e Chile em 1973. A resultante
do período ditatorial nesses países foi de grande atuação da juventude nos processos
de mobilização e luta; represália policial às manifestações sociais, em especial a juven-
tude; conflito armado entre manifestantes e militares; avanço do conservadorismo
e um combate repressivo ao expansionismo das ideias comunistas nos países latinos.
Além disso, o aprofundamento dos ideais neoliberais, influenciados pelos
Estados Unidos, intensificaram as relações desiguais e a contenção e criminali-
zação das manifestações políticas, além de apresentar um montante de privati-
zações e controle do mercado interno e externo. Em meio a isso, as organizações
políticas e a população jovem, por consequência do enfado conjuntural, somam
esforços na luta pelo fim das intervenções militares e neoliberais.

3.1 Contextos e desafios do protagonismo no Brasil


No cenário expansivo de governos autoritários, influenciados pelos Esta-
dos Unidos da América e sua ideologia neoliberal, o cenário brasileiro, que era
de ordenamento do regime militar, instituído através do chamado “Golpe de
1964”, instituído em abril desse mesmo ano, era de repressão por parte do Es-
tado e contestação por parte da classe trabalhadora e dos movimentos sociais.
O contexto era de repressão e abuso de poder por parte dos militares,
que levantavam a bandeira do conservadorismo e do desenvolvimentismo
acelerado. Essa época ficou marcada na história do Brasil através da
prática de vários Atos Institucionais que colocavam em prática a censura,
a perseguição política, a supressão de direitos constitucionais, a falta total
de democracia e a repressão àqueles que eram contrários ao regime militar,

475
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

realizando além de perseguições e prisões, sessões de tortura com militantes,


maioria jovens, nos porões dos quarteis.
Nesse período, a juventude protagoniza diversas manifestações e ações di-
retas por todo o país, que movimentaram a esquerda brasileira, aglutinando os
partidos políticos de caráter contestatório, os sindicatos, os movimentos sociais
do campo, a esquerda progressista da Igreja Católica, o movimento cultural e
principalmente o movimento estudantil, que tinha na União Nacional dos Es-
tudantes (UNE) uma entidade máxima de representação e base política.
As mobilizações juvenis na França influenciaram os manifestos no contexto
brasileiro. Em abril de 1968, o assassinato do estudante Edson Luiz, em um
confronto com a polícia, resultou uma série de mobilizações estudantis, como
a greve geral estudantil decretada pela União Nacional dos Estudantes (UNE).
Em junho do mesmo ano ocorreu um dos mais importantes marcos da luta
contra a ditadura, a Passeata dos Cem Mil que envolveu estudantes, artistas,
intelectuais e ativistas políticos ocuparam as ruas do Rio de Janeiro em protesto
contra os atos de repressão da ditadura, além de reivindicarem o fim da ditadura
e pela redemocratização do país.
Em resposta aos manifestos aos manifestos populares, foram implantados vá-
rios instrumentos legais com o objetivo de reprimir as mobilizações. Entre eles
está o Ato Institucional 5 (AI-5),5 que vedava qualquer ação ou manifestação
aos órgãos de representação estudantil, extinguindo a UNE dos tramites legais,
passando essa, a agir na clandestinidade. Essas ações desembocaram num pro-
cesso de refluxo da classe operária.
Nesse momento, os estudantes estavam ao lado dos trabalhadores, apoiando
as greves e atuando nas organizações clandestinas de oposição ao regime na luta
pela democratização do país. Com isso, as ruas voltam a ser palco da atuação es-
tudantil, concentrando as forças da juventude e exigindo o fim do regime mili-
tar, revigorando a ação política da classe trabalhadora e de outras organizações.
Numa somatória de ações políticas por parte dos movimentos sociais, parti-
dos, grevistas e estudantes, os chamados “anos de chumbo” no Brasil chegaram
ao fim em 1985. Nessa época, os movimentos sociais da classe trabalhadora di-

5 O AI-5 foi o quinto decreto emitido pelo governo militar brasileiro, considerado o mais duro golpe
na democracia. Este decreto concedia poder ao Presidente da República para suspender os direitos
políticos, proibia manifestações populares de caráter político e impunha a censura prévia para
jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas. Fonte: https://diadobasta.blogspot.com/2013/10/
ai-5-ato-institucional-numero-5.html. Acesso em 05 de dezembro de 2018.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

recionavam sua luta por uma sociedade democrática através da intensa pressão
popular que resultou na promulgação da Constituição Federal em 1988, a qual
propunha grandes avanços na conquista de direitos sociais, civis e políticos.
Todavia, a onda neoliberal já sinalizava grande ameaça aos anos posteriores.
Colocando essa afirmativa em um contexto mundial mais atual, tem-se no
período dos anos dois mil, uma forte crise econômica que se instala e atinge
fortemente a zona do Euro e os países que a compõem, gerando um colapso
na economia, no comércio e é claro, na classe trabalhadora, que padece com o
grande número de desempregos, cortes salariais, prolongamento do tempo de
trabalho, aumento de tarifas e impostos.
Nesse ambiente de crise estrutural, o Estado neoliberal passa a adotar
políticas voltadas para o enfraquecimento e eliminação da resistência da
juventude, por meio da desestruturação de suas bases organizativas, com a
adoção de políticas sociais focalizadas, o incentivo a expansão de ONG’s
com o intuito de ocupar o papel dos movimentos sociais, deslocando-os
de seu espaço de luta e referência popular. Além disso, tem-se uma maior
criminalização e fortalecimento da repressão policial aos movimentos po-
pulares e a consolidação da ideologia dominante, resultando numa parcela
significativa de sujeitos despolitizados.
O contexto de expansão das ações neoliberais alarga as desigualdades entre
as classes e aumenta suas disputas nas relações sociais, econômicas e também
políticas. O processo de transformação da vida dos jovens e a ausência de cri-
térios de preparação para sua autonomia e independência fortalecida pelo pe-
ríodo neoliberal, através dos retrocessos nos direitos sociais, rebate não só no
cotidiano da juventude, mas em seu processo organizativo, o que remete a uma
infinidade de desafios postos a estes sujeitos nas relações coletivas.
Mediante a conjuntura de aprofundamento do projeto neoliberal, cabe,
ainda, situarmos os processos políticos atuais do país, em que o cenário é de
um boicote, diga-se golpe, à democracia, articulado entre os três poderes em
torno do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, eleita democraticamen-
te nas eleições do ano de 2014.
Consolidado o processo de retirada da presidenta de seu posto no poder
executivo, o vice-presidente Michel Temer assume a direção do país acom-
panhado de um projeto neoliberal ainda mais acentuado e uma extensa
agenda de retrocessos nos direitos civis, sociais e políticos da classe traba-
lhadora e, consequentemente, da juventude brasileira, uma vez que, um dos

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

grandes feitos desta gestão foi a aprovação do Projeto de Emenda Consti-


tucional Nº 241 ou 55, que pretende frear a trajetória de crescimento dos
gastos públicos e tenta equilibrar as contas públicas por 20 anos, atingindo
os investimentos em saúde e educação.
Essa conjuntura tornaram expressivas as disparidades entre as classes no
país, pois o processo de impeachment e o projeto conservador de Michael
Temer teve adesão de parcela da população, maioria empresários da classe
média, e de outro lado, uma parcela significativa de jovens, trabalhadores e
organizações se manifestavam contra o golpe e, posteriormente, contra os
retrocessos nos direitos.
Dessa maneira, a gestão ilegítima que esta atuando no Brasil, provoca
sentimentos duvidosos em relação aos rumos do país e, em consequência, das
gerações futuras. Para além dos desafios no âmbito dos direitos sociais e de
sobrevivência da juventude, no que tange a garantia de emprego, alimentação,
segurança, moradia, saúde, educação, cultura e lazer, esta, depara-se ainda com
os desafios políticos da participação popular e da organização política.
Apresenta-se como grande desafio a não identificação da juventude com os
processos políticos e, consequentemente, a ausência de participação desta nos
processos decisórios, uma vez que, a pequena parcela dos jovens que estão em
posições de poder, geralmente filhos de políticos e empresários influentes da
elite brasileira, não representam as demandas e anseios da grande parcela dos
jovens brasileiros situados, em sua maioria, na periferia.
As diversas culturas juvenis e as novas perspectivas de manifestação antis-
sistêmica, também desafiam as ideias convencionais de participação, pois, com-
preender as necessidades e os desejos dos jovens não costuma ser a proposta da
maioria das instituições políticas e sociais que, de alguma maneira, lidam com
esse público. Nesse caso, um importante e desafiador elemento à organização
política da juventude está na perspectiva diferenciada de tratamento das de-
mandas, muitas vezes subjetivas, destes sujeitos.
Além disso, as metamorfoses do mundo do trabalho, o extermínio da ju-
ventude negra e pobre da periferia, as divergências políticas entre grupos de
juventude, a influência das redes sociais e a disseminação dos discursos de ódio
e intolerância, a criminalização, perseguição e repressão violenta aos movimen-
tos e organizações sociais de juventude, apoiados nas distorções informativas
da grande mídia, sinalizam grandes dificuldades enfrentadas por esses sujeitos
nesta sociabilidade ancorada no conservadorismo.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Elencar os desafios apresentados aos jovens é também envolvê-los de forma in-


tegral no enfrentamento destes, uma vez que, nas palavras de Lenin, proferidas aos
jovens do III Congresso das Juventudes Comunistas em 1920, a construção do comu-
nismo tem a “necessidade de sua prática ser baseada em novos valores que neguem
o capitalismo. [...] Cabe às gerações que forjam no período de transição socialista – a
juventude a quem ele se dirige – construir a sociedade sem classes.” (2015, p. 8-9).
Para tanto, a maturidade na organização política dos jovens se faz necessária
com todas as armas que lhes cabem no processo criativo da luta, para que esta
funcione como catalizadora de forças e os coloquem como força motriz na luta
de classes e na defesa de um projeto político de sociedade livre de toda explora-
ção e humanamente emancipado.

4. Considerações finais
A conjuntura de crise estrutural, expansão do conservadorismo e desmonte
dos direitos, nos possibilita a compreensão dos processos de organização e luta
da classe trabalhadora, no que se refere, mais especificamente, ao protagonismo
da juventude no mundo capitalista.
Nesse sentido, compreendemos que os processos organizativos, para além
das reivindicações, é resultado do processo de tomada de consciência dos su-
jeitos sociais frente ao alargamento das relações desiguais forjadas pela lógica
destrutiva da sociabilidade capitalista. Como maturamos ao longo do trabalho,
a consciência de classe – a expressão máxima de consciência – permite aos su-
jeitos ampliar sua capacidade reflexiva e crítica da realidade, possibilitando-os
enxergar o movimento real das contradições presentes nas relações sociais e,
consequentemente, os inspirando à superação e transformação destas.
Dessa forma, a identidade dos jovens, neste trabalho, está associada de for-
ma concreta a sua condição de sujeitos sociais e atores históricos e na relação,
destes, com a classe trabalhadora em seu processo organizativa, em que necessi-
tam de articulação e fortalecimento e encontram na juventude – possuidora de
artifícios criativo e organizador que lhes são peculiares – um instrumento viável
de intervenção na realidade.
Todavia, essa juventude não está isenta das contradições inerentes às re-
lações sociais, pois, são perpassadas por desafios que implicam na articulação
e atuação coletiva desses sujeitos. Porém, de outro lado, a juventude encontra

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

suas possibilidades na organização e ação coletiva, que configuram forte po-


tencial de mobilização e articulação da classe na luta pela hegemonia, atuando
como peça fundamental no processo de construção da consciência revolucioná-
ria e transformação da ordem societária.
Contudo, compreendemos os processos da organização política da classe e
a importância destes, nas lutas por direitos e também na perspectiva maior de
superação desta sociedade estando, a juventude, incumbida da tarefa de trans-
formação, junto as demandas da classe trabalhadora e mediante os desafios
postos à organização política, e construção de uma nova sociedade livre das
amarras do capital.

Referências bibliográficas

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480
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

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SADER, Emir. Quando novos personagens entram em cena: experiências e


luta dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1992.

481
Seria Marx ecologista?

Walber Nogueira da Silva1


Shyene Maranhão Guedes de Freitas2

Introdução
É comum a referência a Marx como sendo um pensador que pouco – ou
nada – tem a contribuir com a discussão acerca da questão ecológica. Marx
é visto como um autor de visão prometéica, anti-ecológica, pró-tecnológi-
ca, para quem não seria necessária uma consciência ecológica porque o
desenvolvimento econômico capitalista levaria a futura sociedade de pro-
dutores associados a um estágio de abundância. Além disso, entre outras
críticas, Marx teria dissociado os seres humanos dos animais e tomado o
partido daqueles.
No entanto, estas críticas não são corretas. É certo que alguns do graves
problemas ambientais que vivemos hoje não estavam postos no tempo de Marx,
mas é certo também que ele, segundo Massimo Quaini (Apud. Foster, 2005, p.
23), “denunciou a espoliação da natureza antes do nascimento de uma moderna
consciência ecológica burguesa”.
O presente artigo pretende mostrar como, a partir de sua concepção ma-
terialista da natureza e da história, Marx elaborou uma teoria da sociedade
capitalista que, além de ser atual, pode contribuir com a compreensão de uma
faceta da crise geral do capitalismo: a crise ecológica.
Inicialmente, veremos a já citada concepção materialista de Marx, analisan-
do em que consiste seu materialismo. Depois, nos debruçaremos sobre alguns
conceitos importantes no estudo do pensamento ecológico de Marx, visando

1 Advogado, professor de Direito, graduado em Direito (UFC), especialista em Literatura Aplicada à


Semiótica e Áreas Afins (UECE), especialista em Filosofia Moderna do Direito (ESMP/CE-UECE),
mestre em Filosofia (UECE).
2 Estudante de Direito, Centro Universitário da Grande Fortaleza (UniGrande).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

mostrar como a teoria marxista, a partir de seu instrumental categorial, pode


contribuir para a compreensão da grave crise ecológica atual e a superação des-
ta, através do estabelecimento de um novo padrão civilizatório. Por fim, vere-
mos como Marx “ressuscitou”, voltando a ser extremamente atual, notadamente
após a queda do Muro de Berlim, quando o mundo assistiu ao que parecia ser a
vitória definitiva do capitalismo e suas tendências neoliberais.

1. A concepção materialista de Marx


Segundo John Bellamy Foster (2005, p. 14), o materialismo,

como teoria da natureza das coisas, surgiu no início da filosofia grega.


(...) No seu sentido mais geral, o materialismo afirma que as origens
e o desenvolvimento de tudo que existe dependem da natureza e da
‘matéria’, ou seja, trata-se de um nível de realidade física que independe
do pensamento e é anterior a ele.

Foi com base na obra de Epicuro (que foi tema de sua tese de doutoramen-
to) que Marx desenvolveu sua concepção materialista da natureza, que afirma
o papel ativo do homem na transformação e reprodução das formas sociais,
porém, sem implicar em um determinismo rígido e mecânico, como no mate-
rialismo mecanicista. A filosofia epicurista concebia a natureza como em cons-
tante mudança, portanto, como mortal e transitória. Os deuses continuavam
existindo, mas habitavam um espaço de interseção entre os mundos, desalo-
jados que estavam do universo material. Assim, o pensamento de Epicuro era
antiteleológico (não reconhecia a necessidade das causas finais aristotélicas) e
rejeitava as explicações baseadas nas intervenções e intenções divinas, sendo
aqui que coincidia com a ciência. Porém, o materialismo epicurista é meramen-
te contemplativo (como depois seria o de Feuerbach). Marx fez a crítica a este
materialismo contemplativo e, a partir da apropriação da dialética hegeliana,
desenvolveu um materialismo prático que se baseia no conceito de práxis.
Na análise da história, Marx também partiu de um ponto de vista
materialista. Para ele, o fator determinante da organização política (estado)
e demais instituições jurídicas e/ou ideológicas de uma dada sociedade é a
produção material. Para existir, os homens precisam, antes de mais nada,
comer, beber, morar, vestir-se. Assim, a satisfação diária de todas estas

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

necessidades básicas torna-se o primeiro ato histórico, a condição fundamental


de toda a história. Deslocando o eixo de análise para as condições materiais
da existência, Marx negava a autonomia, ou seja, o primado das idéias na
vida social, bem como se opunha à reflexão filosófica abstrata. Esta oposição
o levaria a “concepção da centralidade da práxis humana na produção e a
reprodução da vida social e, em consequência disso, a ênfase na significação
do trabalho enquanto transformação da natureza e mediação das relações
sociais, na história humana”. (Bottomore, 1988, p. 255)
O que temos aqui é, portanto, uma (nova) concepção materialista da na-
tureza e da história. De fato, conforme Bellamy Foster (2005, p.22), “o ideal do
próprio Marx, claramente expressado no Capital” seria de uma “análise conju-
gando uma concepção materialista da história com uma concepção materialista
de natureza com toda a força da história natural”, ou seja, no materialismo
prático de Marx as concepções de natureza e história permanecem integradas,
de modo que “o foco do pensamento materialista passou da natureza à história
sem negar prioridade ontológica à natureza” (Foster, 2005, p. 164).
Como vimos, Marx enfatiza o papel do trabalho na transformação da
natureza. De fato, é através do trabalho que o homem modifica a natureza
e, ao fazê-lo, modifica também a si próprio. O trabalho seria a condição de
uma interação metabólica entre o homem e a natureza, a condição perpétua
da existência humana, ou, para falar em termos lukacsianos, a categoria
ontológica fundamental do ser social. Passemos a palavra a Bellamy Foster
(2005, pp. 222, 223):

Marx portanto empregava o conceito [de metabolismo] tanto para se


referir à real interação metabólica entre a natureza e a sociedade através do
trabalho humano (contexto em que o termo era normalmente usado nas
suas obras) quanto, num sentido mais amplo, (sobretudo nos Grundrisse),
para descrever o conjunto complexo, dinâmico, interdependente, das
necessidades e relações geradas e constantemente reproduzidas de forma
alienada no capitalismo, e a questão da liberdade humana suscitada por
ele – tudo podendo ser visto como ligado ao modo como o metabolismo
humano com a natureza era expresso através da organização concreta do
trabalho humano. O conceito de metabolismo assumia assim tanto um
significado ecológico específico quanto um significado social mais amplo.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Este conceito de metabolismo permitiu a Marx expressar concretamente a noção


de alienação, tanto da natureza quanto do trabalho, que foram desenvolvidas nos
Manuscritos Econômico-Filosóficos. É neste ponto que precisamos investigar este
conceito-chave na obra marxiana: o conceito alienação.

2. A alienação
Desde o início, a noção de alienação em Marx está diretamente ligada à de
trabalho. Como nos diz Leandro Konder (1965, pp. 25, 26):

na acepção marxista (...) a alienação é um fenômeno que deve ser


entendido a partir da atividade criadora do homem, nas condições em
que ela se processa. Deve ser entendido, sobretudo, a partir daquela
atividade que distingue o homem de todos os outros animais, isto é,
daquela atividade através da qual o homem produz os seus meios de vida
e se cria a si mesmo: o trabalho humano.

Mas o que é o trabalho?


Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, o trabalho é considerado de duas
maneiras: na sua acepção geral, como atividade produtiva: a determinação
ontológica fundamental da humanidade; e na sua acepção particular, na for-
ma em que ele assume na sociedade capitalista. Analisemos mais detidamente
estas acepções.
Para Marx, os homens, para poderem existir, devem constantemente trans-
formar a natureza. Esta seria a base ineliminável do mundo dos homens, o que
implica em uma dependência da sociedade para com a natureza. É certo que
sem a reprodução biológica dos indivíduos não há sociedade, mas a história hu-
mana é mais que a história de sua reprodução biológica. Dessa forma, há uma
articulação e uma diferença simultâneas entre o mundo dos homens e o mundo
da natureza, e o fundamento disso é o trabalho. É que, através do trabalho,
os homens, ao modificarem a natureza, constroem materialmente a sociedade,
mas, ao mesmo tempo, se constroem enquanto indivíduos. É pelo trabalho que
o homem se faz diferente da natureza, se torna um ser social, com leis distintas
das que regem os processos naturais.
O que Marx entende por trabalho é uma atividade exclusiva do ser humano,
de transformação da matéria de acordo com fins específicos:

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Pressupomos o trabalho numa forma que pertence exclusivamente ao


homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a
abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos
favos de sua colméia. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto
da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de
construí-lo em cera. (Marx, 1983, pp. 149, 150)

Ou seja, nos animais (uma aranha ou uma abelha, como no exemplo acima),
a organização e execução de uma atividade é geneticamente determinada, não
servindo, portanto, de fundamento para o seu desenvolvimento. Já no homem,
esta atividade é consciente e teleológica:

o homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da


sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. (...) A atividade vital
consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal.
(...) Eis porque a sua atividade é atividade livre. (Marx, 2008, p. 84)

Além disso, o homem, ao transformar a natureza, de início, projeta ide-


almente, o resultado que quer atingir na prática. Segundo Sérgio Lessa e Ivo
Tonet (2008, p. 18), “é essa capacidade de idear (isto é, de criar idéias) antes
de objetivar (isto é, de construir objetiva ou materialmente) que funda, para
Marx, a diferença do homem em relação à natureza, a evolução humana”.
O trabalho é uma atividade que, diferente das atividades naturais, “se es-
pecifica por uma relação mediada entre o seu sujeito (aqueles que o executam,
homens em sociedade) e o seu objeto (formas da natureza orgânica e inorgâ-
nica)” (Netto & Braz, 2007, p. 32), ou seja, entre o sujeito que trabalha e a
matéria natural a ser transformada por ele, há sempre um instrumento, um meio
de trabalho que torna mediada a relação entre ambos. Mas a natureza não cria
estes instrumentos, eles são criação dos próprios sujeitos que trabalham e essa
criação coloca para esses sujeitos questões como os meios (de se construir cada
instrumento) e os fins (a finalidade de cada um), o que os leva a fazer escolhas
(se o instrumento deve ser mais pesado ou mais leve para se alcançar com mais
facilidade o fim desejado, por exemplo). Assim, o fim que se deseja alcançar é
antecipado na consciência antes de ser efetivada a atividade do trabalho. O
sujeito, portanto, prefigura o resultado de sua ação.
A outra acepção de trabalho é a que ele assume na sociedade capitalista,
onde o trabalhador, separado dos meios de produção e dispondo apenas de sua

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

força de trabalho, se vê obrigado, para sobreviver, a vendê-la ao capitalista em


troca de um salário. É nesta acepção que o trabalho é base da alienação3.
Para Marx, quanto mais riquezas o trabalhador produz, mais pobre ele se
torna; quanto mais mercadorias cria, mais ele se torna uma mercadoria barata.

Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta


a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz
somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em
geral (Marx, 2008, p. 80).

Isso mostra que o produto do trabalho se apresenta ao produtor, i.e.,


ao trabalhador, como um ser estranho: o trabalhador não se reconhece
naquilo que produz. Temos daí que o trabalho se torna, então, estorvo,
fadiga, condenação. Marx pergunta, então, em que consiste a alienação do
trabalho. Eis sua resposta:

Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence


ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se
nele, que não se sente bem, mas, infeliz, que não desenvolve nenhuma
energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o
seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro
lugar, junto a si [quando] fora do trabalho, e fora de si [quando] no
trabalho. O seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas forçado,
trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma
carência, mas somente um meio de satisfazer necessidades fora dele. Sua
estranheza evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista
coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste.
O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um
trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade
do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse
seu próprio, mas de um outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse,
como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro.
(...) Pertence a outro e é a perda de si mesmo (Marx, 2008, pp. 82, 83).

3 É importante ressaltar que o conceito de alienação não surge com Marx. Outros pensadores antes
dele, como Hegel, Schelling e Fichte, p. e., o utilizaram. Mas não há dúvida de que é a interpretação
marxiana da alienação que circula hoje como aceita e utilizada pelos estudiosos do assunto.

488
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Assim, aquilo que é um fator de humanização do homem, de desenvolvi-


mento de suas potencialidades, de modificação da natureza e de ser modificado
por ela, de ampliação da capacidade criativa humana, torna-se o seu contrário.
Mais que isso: “tanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais
poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais
pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador]
pertence a si próprio” (Marx, 2008, p. 81).
Nos Manuscritos, Marx fala da natureza como sendo o “corpo inorgânico”
do homem:

Praticamente, a universalidade do homem aparece precisamente na


universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto
na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, quanto na medida
em que ela é o objeto/matéria e o instrumento de sua atividade vital. A
natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto
ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa:
a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo
contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está
interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a
natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte
da natureza. (Marx, 2008, p. 84. Itálicos no original).

Ao explicar a expressão marxiana corpo inorgânico, Meszáros acaba discor-


rendo claramente sobre a alienação da natureza:

Marx usa a expressão “corpo inorgânico do homem”, que não significa


simplesmente aquilo que é dado pela natureza, mas a expressão concreta e a
materialização de uma fase e uma estrutura historicamente dadas da atividade
produtiva, na forma de seus produtos, dos bens materiais às obras de arte.
Como resultado da alienação do trabalho, o “corpo inorgânico do homem”
aparece como meramente externo a ele e, portanto, pode ser transformado em
uma mercadoria. Tudo é “reificado”, e as relações ontológicas fundamentais
são viradas de cabeça para baixo. O indivíduo é confrontado com meros
objetos (coisas, mercadorias), uma vez que seu “corpo inorgânico” – “natureza
trabalhada” e capacidade produtiva externalizada – foi dele alienado. Ele não
tem consciência de ser um “ser genérico” (Mészáros, 2009, p. 80).

489
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Vimos até agora como Marx, através de um ponto de vista materialista,


concebia a natureza e a sociedade, o homem enquanto ser social. Analisamos
algumas importantes categorias como natureza, metabolismo, alienação e tra-
balho. Vimos que, para o autor do Capital, a natureza é o “corpo inorgânico do
homem”, ou seja, há uma interação metabólica entre o ser social e a natureza
e esta interação se dá através do trabalho. Porém, devido ao processo de alie-
nação, o homem passa a ver seu trabalho como estorvo e a natureza como algo
separado dele. Daí, da força de trabalho à natureza, tudo é reificado, isto é, tudo
passa a ser mercadoria. Desta forma, justifica-se o avanço capitalista sobre a
natureza e a impossibilidade deste sistema com um pleno equilíbrio ecológico.
Com este arcabouço categorial, podemos agora discutir a atualidade de Marx
no que se refere à análise da atual crise do capitalismo e às questões ecológicas.

3. A atualidade de Marx
Nas décadas de 1980 e 1990, notadamente após a queda do Muro de Berlim,
o mundo assistiu ao que parecia ser a vitória definitiva do capitalismo e suas
tendências neoliberais. Uma euforia se apoderou do próprio mundo acadêmico
e teses como a do “fim da história” ganhavam adeptos afirmando que chegára-
mos ao estágio final da civilização. Para estes, não só a história tinha chegado
ao fim, mas também as ideologias, classes sociais e partidos políticos. O pós-
-modernismo era uma evidência e a fragmentação do real não mais permitia
seu conhecimento pleno. O marxismo havia se tornado anacrônico e, com ele,
suas teses e categorias principais: a teoria do valor-trabalho, a categoria da to-
talidade, o trabalho como categoria ontológica fundamental, a dialética como
método de investigação e a perspectiva da revolução. A vitória do capitalismo,
dessa forma, punha fim a qualquer projeto político de transformação social pró-
prio da classe trabalhadora.
Na verdade, Marx é mais atual agora do que no seu próprio tempo. É que,
citando diz Mauro Iasi (2011),

Como pensa o capital como um conceito, um movimento do real que


dialeticamente transita através de suas formas e, sendo histórico, nasceu,
se desenvolveu e um dia há de ser superado, Marx projeta pela análise
precisa do ser do capital, aquilo que denomina modo de produção espe-
cificamente capitalista, ou seja, um mundo subssumido inteiramente ao

490
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

metabolismo do capital, no qual reina a subordinação real do trabalho


ao capital, no qual a mercadoria e o dinheiro são realidades universais,
subordinando o valor de uso ao de troca.
Ao projetar o capital maduro e completo é que Marx pode avaliar o
processo possível de sua superação. (...) Ora, este capital maduro estava
longe de corresponder à realidade de meados do século XIX; no entanto,
para desespero da respeitável intelligentsia, o capitalismo contemporâneo
se parece muito mais com a previsão de Marx do que com a previsão
mítica anunciada pelos arautos do liberalismo e da economia política.

Assim, apesar de ser visto como anacrônico e ultrapassado, Marx continua


sendo um competente intérprete da realidade justamente por se encontrarem
dadas, agora, as condições de pleno desenvolvimento do capital que foram te-
orizadas por ele notadamente em sua obra máxima. Ademais, a acumulação
capitalista, cuja essência foi desvendada pelo pensador alemão, é a força motriz
da sociedade burguesa (Bottomore, 1988, p. 01). Logo, se esta acumulação con-
tinua em vigência, a teoria que a desnuda, também!
Mas qual a relação entre capitalismo e crise ecológica?
Para Marx, a produção de valor (e, portanto, de mercadoria) necessita tanto
do trabalho (que só pode ser humano, como adiante veremos) quanto da nature-
za, sendo o trabalho uma “relação metabólica entre os indivíduos (estes mesmos
seres naturais, não esquecendo obviamente a sua determinação social) e a na-
tureza” (Apud. Burkett, 2011). A acumulação de capital passa a ser dependente
da força de trabalho que deve explorar e das condições naturais que permitem
essa exploração. Como disse Paul Burkett (2011):

a acumulação de capital e a produção e reinvestimento de mais-valia


mantêm-se dependentes do valor de uso proveniente do intercâmbio entre
trabalho e natureza. A acumulação de capital requer não apenas força de
trabalho para explorar mas também condições naturais e materiais que
por sua vez permitem a exploração da força de trabalho e que o trabalho
excedente seja materializado e incorporado em mercadorias. Isto ajuda
a explicar porque o capitalismo tem sido tão ecologicamente destrutivo
ao longo da sua história e porque atualmente está colocando em risco a
própria habitabilidade humana no planeta.

Dessa forma, fica claro que, para entendermos a crise ambiental em que
vivemos, devemos partir da compreensão da dinâmica do sistema capitalista

491
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

que é, em sua essência, incompatível com toda forma de equilíbrio ambiental.


O que não significa dizer que o homem sob outros modos de produção não
tenha degradado o meio ambiente em que vivia. O que ocorre é que no sistema
capitalista estão postas as condições tecnológicas para uma degradação tal que
inviabilizaria a própria existência humana.
Dada a total incompatibilidade entre o sistema capitalista e toda forma de
equilíbrio ambiental, podemos concluir que não existe aí uma saída ética. Assim
como a exploração do trabalhador não é um ato de “maldade” do capitalista, já
que ele visa o lucro, que é obtido, como vimos, através da exploração das con-
dições naturais e do trabalhador (exploração esta que é da própria essência do
sistema), não há que se falar em “bondade” ou “responsabilidade social” deste
mesmo capitalista, pois, no momento em que as condições de equilíbrio ecológico
entrarem em conflito com suas possibilidades de lucro, ele fatalmente degradará
o meio ambiente, sob pena de ver diminuído seu lucro, ou seja, terá de optar entre
entrar em contradição com o meio ambiente ou com a dinâmica do sistema.
Vê-se, portanto, que nunca foi tão claro o caráter destrutivo do capitalismo
na sua atual fase monopolista e imperialista. O capitalismo

pela primeira vez em sua história produz duas importantes degradações


simultâneas: a primeira é de orem social, pois, apesar de um crescimento
considerável das riquezas produzidas, a pobreza e a miséria não recuam
no mundo. (...) A segunda degradação importante diz respeito à
natureza e aos ecossistemas gravemente atingidos ou ameaçados pelo
esgotamento de certos recursos não renováveis e por poluições de toda a
espécie (Harribey, 2011).

Neste sentido, nunca foi tão urgente a superação do sistema capitalista: a


emancipação humana.

Considerações finais
O atual estágio do capitalismo evidencia uma crise civilizacional de caráter
não apenas social, mas climático-ambiental e a saída não se encontra nos
marcos do capitalismo, mas fora dele, já que, por essência, o capitalismo é
excludente, explorador e degradador, ou seja, incompatível com qualquer forma
de equilíbrio ambiental, dado seu caráter reificador. Citando Benjamin (2011):

492
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Estamos, finalmente, em um sistema-mundo em que tudo é mercadoria,


em que se produz loucamente para se consumir mais loucamente, e se
consome loucamente para se produzir mais loucamente. Produz-se por
dinheiro, especula-se por dinheiro, faz-se guerra por dinheiro, mata-se
por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por
dinheiro, só se pensa em dinheiro. Cultua-se o dinheiro, o verdadeiro deus
da nossa época – um deus indiferente aos homens, inimigo da arte, da
cultura, da solidariedade, da ética, da vida do espírito, do amor. Um deus
que se tornou imensamente mediocrizante e destrutivo. E que é insaciável:
a acumulação de riqueza abstrata é, por definição, um processo sem limites.

Apesar de visto com anti-ecológico e/ou ultrapassado, Marx se mostra cada


vez mais atual e, além disso, um pensador que, superando os horizontes de seu
tempo, anteviu a espoliação da natureza pela sociedade mercantil. A atualidade
de Marx está em mostrar a relação entre a crise ecológica e a crise do capitalis-
mo, oriunda da profunda acumulação de capital. Ora, se esta acumulação está
na origem da crise ecológica, temos por óbvio que, ao teorizar sobre a dinâmica
da acumulação capitalista, longe de ser anti-ecológico, Marx é essencial para a
compreensão da atual crise ambiental.
Neste sentido, seu arcabouço categorial continua de grande valia. Estão em
Marx conceitos fundamentais para a compreensão da realidade atual, como
alienação, trabalho, mercadoria e reificação. Ressalte-se, porém, que Marx é
um importante intérprete do capitalismo do nosso tempo, mas não o único,
ou seja, sua obra é “necessária, mas não suficiente para explicar/compreender e
revolucionar o mundo atual” (Netto, 2006, p. 08).

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494
Uma análise marxista acerca dos
movimentos sociais e seus integrantes
não pertencentes às classes oprimidas

Giovanna Helena Vieira Ferreira1


Gabriel Braga dos Santos2

Introdução
Ao longo da trajetória percorrida pelos movimentos sociais no Brasil, as
lutas por direitos e igualdade apresentam-se como rebeliões e ações contra a
ordem estabelecida. Diante disso, viu-se a necessidade de espaço e visibilidade
para que essa luta por direitos fundamentais, comum aos movimentos sociais
atuais, fosse legitimada. Evidencia-se uma luta política para assegurar a acei-
tação da pluralidade de formas de vida. O uso público da razão, a conquista
de direitos de cidadania, bem como a deliberação na esfera pública, se fazem
elementos centrais dos esforços dos movimentos sociais.
Os estudos pertinentes ao tema abordam, em sua maioria, a visão da classe
opressora (a elite, os militares e afins, dependendo do movimento). Como de-
fendia Marx, a luta de classes é existente em diversos âmbitos; ou seja, é comum
que existam uma classe opressora e uma classe oprimida. No entanto, embora
seu estudo tenha sido baseado no proletariado e na burguesia, o presente artigo
trata sobre os movimentos sociais contemporâneos.
Atualmente, nota-se uma grave reorganização nazifascista do mundo.
Desde os Estados Unidos, com Donald Trump, até Jair Messias Bolsonaro, no
Brasil, tem-se acentuado cada vez mais o caráter preconceituoso e intolerante

1 Graduanda em direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Integrante do Grupo de


Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: [email protected]
2 Graduando em direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Integrante do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC). E-mail: [email protected]

495
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

das populações mundiais, trazendo, com isso, “legitimidade” para todos os


tipos de violências contra as minorias. Buscamos, através de nossas pesquisas,
trazer neste artigo formas de contribuir com a resistência de todos os povos
que sofrem com o ódio irracional das elites, tanto fortalecendo o movimento,
bem como mostrando a importância de cada vida para quem não participa dele
ou mantém-se neutro diante de tais situações, considerando que toda ajuda
seja bem-vinda. Atentos, sempre, à necessidade de desmontar as estruturas do
sistema capitalista para que se possa combater a violência que assola as minorias.
Sucessivos debates conduziram a diversas correntes de pensamento com re-
lação à importância ou não do apoio às classes oprimidas por parte daqueles que
não estão diretamente ligados à luta, seja ela qual for. Englobando essas situa-
ções, este trabalho realiza uma análise sobre uma possível contribuição aos mo-
vimentos sociais vinda dos detentores de privilégios, uma vez que estes podem
fazer uso da sua voz para propagar um discurso favorável às classes oprimidas,
sabendo-se que estas são ignoradas e negligenciadas por parte de uma parte da
população que ainda não se encontra adepta a aceitar as diferenças ou que não
possui o conhecimento necessário acerca do assunto. Dessa forma, pode ser útil
que simpatizantes da causa repassem propostas em prol do movimento, gerando
mais perceptibilidade a este, no entanto, de forma a não protagonizar a luta e
sim dar a assistência necessária para que ela possa ser mais facilmente repassada
e efetivada, buscando difundir a consciência de classe não somente entre os
privilegiados, mas também entre os oprimidos, para que facilite a sua absorção.
Desse modo, o presente artigo trata de temas como o lugar de fala, a consci-
ência de classe e o trabalho de base como meios de auxiliar no crescimento dos
movimentos sociais, contando com o apoio daqueles que não necessariamente le-
vantam a bandeira do movimento, mas que possuam privilégios cultural e histori-
camente lhes concedidos, podendo utilizar deles para aumentar o espaço de fala a
favor da classe oprimida e facilitar a ascensão das minorias para fins de igualdade.

1. O atual contexto de ascensão de discursos


conservadores no Brasil que agem como forma de
legitimar a intolerância e a violência às minorias sociais
Para Marx (1867), fazendo-se uma análise materialista da história, é obser-
vável que as estruturas de poder – no caso, a econômica, são o que caracteri-

496
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

zaria a infraestrutura3 da sociedade. Esta sempre foi guiada por uma espécie de
discurso que promove a submissão social da classe trabalhadora e, analogamen-
te, aos grupos socialmente excluídos, que procuram mudanças com relação à
forma como são vistas suas identidades individuais.
Os pensamentos das elites, portanto, sempre prevaleceram no atual sistema
econômico. Dos direitos mínimos conquistados, grande parte se deu através de
concessão de quem detêm o poder, tanto para amenizar os clamores populares,
para, indiretamente, evitar faíscas de uma revolução socialista ou para garantir,
de outra forma, a mais-valia da classe trabalhadora. Segundo Marx (1993):

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias


dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da
sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A
classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe
também dos meios de produção espiritual, de modo que a ela estão
submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos
daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias
dominantes nada mais são que a expressão ideal das relações materiais
dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como
ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe
a classe dominante, são as ideias de sua dominação.

Diversos foram os contextos em que as formas dos discursos de ódio


foram utilizadas em benefício da classe elitista, para que as relações
permanecessem favoráveis ao crescimento exponencial de seus lucros, sem
se importarem, no entanto, com os problemas sociais que os oprimidos
enfrentariam. Materializado na lei, ocorreu o projeto de penitenciária
Panóptica4 do Brasil, por exemplo, que visava a continuação da submissão
social. Além disso, uma objetificação foi feita com os escravizados para que
a população não os visse como seres humanos, proporcionando a exploração

3 Bodart (2016): Para Marx, a infraestrutura trata-se das forças de produção, compostas pelo conjunto
formado pela matéria-prima, pelos meios de produção e pelos próprios trabalhadores (onde se dá as
relações de produção: empregados-empregados, patrões-empregados). Trata-se da base econômica da
sociedade, onde se dão, segundo Marx, as relações de trabalho; estas marcadas pela exploração da
força de trabalho no interior do processo de acumulação capitalista.
4 O projeto Panóptico, em gênese inglesa, objetivava trazer um melhoramento das prisões. Contudo,
no Brasil, serviu como forma de manter a submissão produtiva dos prisioneiros, dando continuidade
às relações de opressão.

497
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de seus corpos a fim de que se adquirisse mão-de-obra para a produção


de capital. Os demais instrumentos que compõem a superestrutura 5, desde
escolas e igrejas, também são utilizados no processo. Acerca dessa exposição,
no Brasil, consoante Reinaldo Dias (2017):

[...] o discurso do ódio incentiva a agressão às mulheres, aos nordestinos,


aos mendigos, aos grupos LGBT, aos negros, aos deficientes e aos
imigrantes. Depois de muito tempo esses grupos de ódio têm agora até um
candidato à Presidência da República que compactua com sua ideologia,
utilizando a democracia para manifestar sua repulsa à diferença, agride
as minorias, incentiva a violência contra os estrangeiros e se arroga o
direito de manifestar essa ideologia abertamente nas redes sociais.

A comprovação prática do exposto se dá através da observação das notícias


do período eleitoral brasileiro. Em 2018, somente no começo de outubro, mês
em que as eleições são decididas no Brasil, mais de 50 casos de crimes com
motivação nazifascistas foram noticiados. Não por coincidência, foi o mesmo
período em que as pesquisas apontavam a vitória do candidato que explanava
essas espécies de discursos. Com isso, traz-se à tona Mandela (1995), quando
diz que ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, sua origem
ou sua religião, as pessoas precisam aprender a odiar (...).
Conforme Pereira (2018):

Vivemos a era da polarização. No cenário político brasileiro – e


por que não mundial –, a impressão é a de que não há espaço para
consensos e de que as claques se entrincheiram cada vez mais, com
vozes ampliadas no ecossistema virtual das redes sociais. E esse
movimento traz consigo a radicalização das opiniões, impulsionando
discursos virulentos, abjetos, discriminatórios.

Além disso, de acordo com Pereira (2018), (apud Waldron, 2009 – autor
liberal que não segue o método materialista marxiano):

Waldron defende a restrição aos discursos de ódio alegando que a


medida é necessária para proteger minorias vulneráveis e assegurar que

5 Bodart (2016): Para Marx, A superestrutura é fruto de estratégias dos grupos dominantes para a
consolidação e perpetuação de seu domínio. Trata-se da estrutura jurídico-política e a estrutura
ideológica (Estado, Religião, Artes, meios de comunicação, etc.).

498
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

todas as pessoas possam viver livres de discriminação, abuso, difamação,


humilhação ou violência advinda de questões de raça, etnia, gênero ou
religião. Contrapondo o argumento de Dworkin, que entende haver
violação do direito fundamental à liberdade de expressão quando
se restringe os discursos de ódio, Waldron defende que é justamente
para assegurar que a intolerância não arruíne os princípios e valores
democráticos que essas restrições são necessárias.

Dessa forma, atenta-se à centralização do problema: a legitimação dos dis-


cursos intolerantes traz, em suas entrelinhas, por conseguinte, grande parte dos
atentados contra a vida dos socialmente excluídos. Seja subjetivamente, atra-
vés da supressão, utilizando-se das infraestruturas, como a criminalização de
movimentos sociais6 ou objetivamente, matando ou violentando as vítimas da
sociedade da acumulação de lucros. O perigo que a aceitação da “maioria” traz
no que tange a inferiorização da “minoria” – como são chamados os oprimidos,
é de imensa irresponsabilidade para com a vida humana.
Em 2016, com o Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, iniciou-
se o processo de decadência dos direitos adquiridos pelas classes oprimidas.
Em 2018, culminou no Brasil, auxiliado pela ideia errônea da imunidade
parlamentar7, pelos interesses políticos e econômicos das elites brasileiras, e
pelo simples e puro preconceito, ocorreu o ápice recente da legitimação da
intolerância no Brasil: tais discursos simplistas e preconceituosos foram eleitos,
gerando, com isso, uma considerável expansão de suas bases legitimadoras. A
pátria amada foi derrotada na recente batalha do dia 28 de outubro de 2018.
Pátria essa que vivenciou 300 anos de escravidão, seguida de um contexto em
que os negros libertos em 18888 foram jogados nas ruas, sem emprego, terra
ou dignidade, mas que recentemente estavam conquistando, como classe, seus
devidos créditos históricos. Um contexto em que as lutas feministas estavam

6 Conforme Volanin (2007): Os movimentos sociais não são invenções das classes populares, dos
capitalistas ou mesmo de intelectuais, eles nascem da insatisfação por parte de determinada classe
ou grupo social. Significa uma rebeldia coletiva, um protesto diante do confronto ideológico entre
um e outro segmento social. Tomam medidas de mudança tomadas pelas sociedades em conjuntos
concordantes que podem causar revoluções na realidade dos indivíduos.
7 A imunidade parlamentar se trata de um conjunto de garantias concebidas aos parlamentares
membros do Poder Legislativo para que exerçam as suas funções sem violações ou abusos por parte
do Poder Executivo e Judiciário.
8 Sanção da Lei Áurea.

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ganhando proporções animadoras, sendo estas seguidas de um Código Civil


que até recentemente não considerava mulheres casadas absolutamente
capazes. Trabalhadores que, durante os 14 anos de governo do PT, vinham
conquistando progressivamente direitos historicamente negados, mas essenciais
às suas dignidades enquanto seres humanos, observaram as elites nacionais
retomarem as rédeas da sociedade com a vigência da reforma trabalhista9.
É visível, portanto, que atualmente, não só no Brasil, mas em outras regi-
ões do mundo, com a ascensão do conservadorismo, os discursos de ódio às
minorias vêm sendo legitimados. Isso representa não somente uma derrocada
nos direitos sociais obtidos pelas classes oprimidas, mas também uma ameaça
às suas vidas, porquanto grupos extremistas não os consideram, muitas vezes,
sequer seres humanos.

2. O entendimento do lugar de fala e a linha tênue


entre auxílio e protagonismo realizado pelos
privilegiados que buscam apoiar a luta
Perpetua-se, na história da humanidade, a centralização de um padrão
cisgênero, masculino, hétero e branco. As pessoas pertencentes a outros
grupos sociais são, portanto, analisadas e definidas através deste prisma
centralizador, sendo, dessa forma, objetos de negação perante as classes eli-
tistas, compostas pelo padrão estabelecido para o favorecimento da acumu-
lação de capital. Djamila Ribeiro (2017), acerca disso, fixa um antigo con-
ceito dos movimentos feministas negros: lugar de fala. Para ela, se trata de
um lugar social, uma localização de poder dentro da estrutura de poder; ou
seja, da discussão de como o compartilhamento do conjunto de experiências
negras, por exemplo, é difundido na sociedade através da visão do homem
branco que, por sua vez, não se entende enquanto detentor de uma dívida
histórica para com os povos oprimidos.
O lugar de fala não se confunde, entretanto, com representatividade10.
Por ser uma localização dentro de uma estrutura, esse conceito abrange

9 Alteração da Lei nº 13.467 de 2017.


10 Do dicionário: qualidade de alguém, de um partido, de um grupo ou de um sindicato, cujo embasamento
na população faz que ele possa exprimir-se verdadeiramente em seu nome. Representatividade

500
uma pluralidade centralizada, criticamente, na empatia. Ainda seguindo
o conceito de Djamilia (2017), a pessoa branca deve discutir, a partir do
pensamento crítico, as raízes e ramificações do racismo, por fazer parte de
uma localização social que se beneficia dele, dado que, em tal posição, di-
ficilmente um representante protagonista do movimento social em questão
estará disponível para fazê-lo. Dessa forma, amplia-se, consequentemente, a
transmissão da famigerada “consciência de classe”, termo que será discutido
futuramente. Sobre isso, analogamente, destaca Marx (1848) sobre a impor-
tância desta consciência para a revolução:

De tempos em tempos triunfam os operários, mas apenas provisoriamente.


O resultado efetivo de suas lutas não é o êxito imediato, mas sim uma
união operária em crescente expansão. Ela é fomentada pelos meios
de comunicação que, gerados pela grande indústria, se avolumam
e colocam os operários das diversas localidades em contato mútuo.
O mero contato, porém, basta para centralizar as muitas lutas locais,
com caráter semelhante por toda parte, em uma luta nacional, em uma
luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política. É a união,
para a qual os burgueses da Idade Média, com seus caminhos vicinais,
necessitaram de séculos, os proletários modernos, com as estradas de
ferro, a executam em poucos anos.

Dessa forma, evidencia-se, como as pessoas conscientes pertencentes às


classes dominantes, que diariamente se beneficiam de tal submissão, podem
contribuir para uma sociedade justa e igualitária.
Além disso, ainda seguindo conceitos de Marx (1848), observa-se que, da
mesma forma que a burguesia utiliza e, enquanto minoria, necessita da serven-
tia deste para sua permanência dominante do proletário em suas lutas, o inverso
se estabeleceria nas proximidades:

Em tempos, por fim, em que a luta de classes se aproxima da decisão, o


processo de dissolução no interior da classe dominante, no interior de
toda a velha sociedade, assume um caráter tão violento, tão estridente,
que uma pequena fração da classe dominante se desliga dela e se associa
à classe revolucionária, à classe que traz o futuro em suas mãos. Por isso,

significa, portanto, a qualidade de alguém estar apto para exprimir os sentimentos de um grupo
social, por ter consciência e, de fato, incluir-se nele.
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

assim como outrora uma parcela da nobreza passou para a burguesia,


uma parcela da burguesia passa agora para o proletariado, e notadamente
uma parcela dos ideólogos burgueses que se alçaram à compreensão
teórica do movimento histórico em sua totalidade.

Disto retoma-se a importância do lugar de fala. Sem tomar o protago-


nismo de quem vivencia situações de opressão diariamente, ao transmitir
a conscientização, aproveitando-se do lugar estruturalmente concebido às
elites, estas se fazem presentes numa favorável impulsão aos movimen-
tos sociais, contribuindo, por fim, com a batalha em busca de direitos
historicamente negados a essas pessoas, sendo estes alguns dos frutos da
sociedade capitalista dominante. Ou seja: os detentores de privilégios que
desejam contribuir com a luta dos movimentos sociais devem buscar o
entendimento acerca das lutas das minorias para que, então, possam re-
passar os conhecimentos acerca do assunto a uma maior quantidade de
pessoas que não tenham acesso a esse discurso por não estarem inseridas
em ciclos sociais que debatam acerca da opressão. Suas contribuições não
são inválidas: pelo contrário, podem somar positivamente ao crescimento
da luta, conscientizando mais pessoas acerca da dominação gerada pela
elite e pelo capitalismo. No entanto, não é relevante que detentores de
privilégios utilizem de suas vozes para debater sobre o preconceito sofrido
por determinada minoria na qual não estejam inseridos caso haja alguém
que esteja e possa falar sobre isso. Diante dessa situação, o apoiador do
movimento deve possibilitar que o representante da minoria em questão
utilize de seu lugar de fala.

3. O trabalho de base como uma ferramenta de


aproximação à luta por parte das minorias
negligenciadas pelo Estado
Com base nos integrantes dos movimentos sociais que lutam diante do
atual contexto histórico, nota-se que dificilmente aqueles sem acesso à edu-
cação ou aos ambientes acadêmicos, ainda que sejam vítimas de opressão, ad-
quirem a consciência do que são esses movimentos, uma vez que seus atuantes
são, em sua maioria, politizados e detentores de discursos que não chegam às

502
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

populações precárias. Ainda assim, o preconceito, seja por qual classe for, está
presente em diferentes âmbitos da vida, no entanto nem todos têm acesso à
luta para acabar com ele. Dessa forma, é importante que aqueles que têm a
oportunidade de lutar pelos seus direitos contribuam não só para melhorar
a sua situação e daqueles em situações semelhantes, mas para assegurar a
igualdade a todos os que são oprimidos, buscando levar os discursos de em-
ponderamento e de rebelião ao sistema de segregação de classes até eles, a fim
de que o movimento cresça e ganhe visibilidade.
É devido a isso que o trabalho de base é uma ferramenta essencial para o
auxílio aos movimentos sociais. De acordo com Williams (2005):

[...] temos de reavaliar ‘base’ não como uma abstração econômica


ou tecnológica fixa, mas como as atividades específicas de homens
em relações sociais e econômicas reais, que contêm contradições e
variações fundamentais, e por isso estão sempre em estado de processo
dinâmico (trabalho de base para Marx). [...] A coisa mais importante
que um trabalhador produz é a si mesmo, no sentido de alguém fazer um
determinado tipo de trabalho ou, numa ênfase histórica mais ampla, os
homens produzindo a si mesmos, a si e à sua história.

Dessa forma, o trabalho de base pode ser remetido à levada de discursos às


periferias, conversando horizontalmente com as populações com um acesso
reduzido à informação, buscando trazer essas pessoas para a luta, ainda que
minimamente11. É comum que o entendimento sobre machismo, racismo e
afins seja mínimo nessas localidades, ainda que essas pessoas tenham que
lidar diariamente com as violências decorrentes desse preconceito – validado
pelo sistema de opressão. Assim, levar até elas uma ferramenta de luta con-
tra aquilo que as oprime pode ser significativo e libertador, se feito de uma
maneira positiva: levando-lhes o conhecimento político e social, para que se
possa proporcionar consciência política e de classe e gerar uma maior orga-
nização na busca da emancipação política, sabendo-se que a classe opressora
usa de todos os meios possíveis para invisibilizar as lutas por direitos iguais e

11 É necessário considerar as diferentes realidades vivenciadas pelas classes oprimidas. Ainda que
compactuando com os ideais de luta por igualdade, nem sempre é possível a atuação direta. É assim
que se torna válido o apoio daqueles que não façam parte da minoria em questão, mas que acham
certo manifestar seu apoio, participando do movimento.

503
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

convertê-la a algo negativo à sociedade, como é possível observar nas notícias


que circulam na mídia brasileira.

4. A consciência de classe e a importância da


dimensão das particularidades existentes nas
diferentes relações de opressão
De acordo com Cisne (2015):

A formação da consciência de classe na sociedade capitalista é


dificultada pelas relações de alienação que a permeiam, bem como
pela ideologia dominante a ela associada, que levam muitos indivíduos
sociais a naturalizarem e até mesmo a reproduzirem relações de
dominação. Assim, ao contrário de se rebelarem contra uma ordem que
os domina, adequam-se e, muitas vezes, modelam-se sob essa dominação.
Felizmente, alguns, também, no processo de formação da consciência e
da luta de classes, rebelam-se contra essa ordem, ainda que esse não seja
um processo hegemônico.

Ainda que o estudo realizado por Marx tenha sido acerca da classe operá-
ria e da burguesia, devido ao caráter social deste artigo, que trata dos atuais
movimentos sociais em pauta no Brasil, as constatações às quais chegou Marx
serão adaptadas de acordo com a realidade vivenciada atualmente. No sentido
aqui abordado, a consciência de classe deve ser remetida ao reconhecimento de
privilégios historicamente concedidos àqueles que, devido a uma característica
ou outra, estão menos sujeitos às violências e à intolerância da sociedade. Dessa
maneira, considera-se privilégio a identificação cis-gênero – principalmente se
masculino, a cor de pele mais clara, a orientação sexual hétero, além de outras
particularidades a serem analisadas, tais como o local onde se mora, a quan-
tidade de pessoas aptas a contribuírem no sustento da família e etc. “Assim, a
classe não é uma massa homogênea, mas tem ‘raça’/etnia e sexo.” (Cisne, 2015).
Ainda dentro da linha de pensamento de Cisne (2015):

[...] a dimensão da orientação sexual, nessa sociedade patriarcal,


engendra opressões particulares. Por exemplo, um homem pobre e
heterossexual possui muito mais respeitabilidade do que um homem

504
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

pobre gay. A dimensão de classe, contudo, não pode ser dissociada dessa
análise. Um gay rico, por mais que sofra opressões pela sua orientação
sexual, não sofre tanta discriminação quanto um gay pobre, além disso,
possui privilégios oferecidos pela sua condição socioeconômica que um
pobre heterossexual não possui.

Diante disso, adquirir consciência de classe e reconhecer privilégios é impor-


tante, pois proporciona uma diminuição da opressão que pode ocorrer dentro
dos próprios núcleos de determinadas minorias. Além disso, quando se quer in-
tegrar à luta contra a opressão sofrida por outrem, é necessário reconhecer seus
privilégios para que se possa usá-los de modo favorável ao movimento social,
tendo o cuidado necessário para que não se adotem posturas pouco empáticas
e para que não se lide com as diferentes realidades como se estas fossem iguais
à sua. É necessário considerar as particularidades quando se fala de consciência
de classe. Cisne (2015):

Considerar as diferenças e as desigualdades existentes no interior da


classe não deve ser no sentido de pulverizá-la, ou mesmo fragmentá-la.
Ao contrário, elas devem ser percebidas na dinâmica de organização
econômica das sociedades, ou seja, no movimento de produção e
reprodução da vida. [...] Desse modo, considerar a diversidade da classe
faz-se necessário, contudo, sem se perder na ênfase das diferenças em
detrimento da luta política engendrada pela criação dos sujeitos coletivos
em torno de uma luta classista, que deve ser o ponto comum entre todas
as lutas que buscam o fim das desigualdades sociais.

Para que se adquira consciência de classe, é imprescindível a realização de


uma autoanálise acerca dos privilégios que lhe foi concedido. Sobre isso, Cisne
(2015) apud Iasi (2006) afirma que:

[…] antes de tudo, uma consciência social herdada, inercial, resultante


de uma certa ordem social de relações que se instituíram em forma
de valores, juízos, concepções de mundo, partilhados em comum
por aqueles que convivem numa certa época, mas é mais que isto, é
a expressão ideal de uma substância que corresponde à essência das
próprias relações que constituem uma sociedade dada, e, neste sentido,
é uma singularidade, ou seja, uma singular visão do mundo própria de
uma forma singular de vida.

505
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Considerações finais
Através de uma pesquisa bibliográfica, realizada por meio de artigos e livros
pertinentes ao tema, foi possível fazermos uma análise reflexiva acerca do que
se propôs, sabendo-se que, embora preterido por diversos setores da sociedade,
o conceito de movimento social permanece fundamental na ciência contempo-
rânea, sendo evidentemente a principal forma de busca por igualdade pelas mi-
norias. Tendo isso em vista, a parte privilegiada da sociedade não só pode, mas
desde que tomando o cuidado necessário para que não se tome o protagonismo
de quem, de fato, representa o movimento, deve, como já explanado, utilizar-se
de seu lugar de fala para proferir as conceituações de consciência de classe e de
dívida histórica para com os não privilegiados pela sociedade capitalista, bem
como sua importância em busca de uma sociedade justa, em prol de uma contri-
buição para que essas lutas não só se organizem de forma mais sistemática, mas
que também seja facilitada a transmissão das ideias de movimentos sociais, para
que mais pessoas se entendam enquanto participantes desses movimentos, con-
tribuindo, portanto, para que essas lutas permaneçam acesas e se fortifiquem.
Além disso, outro grande ponto, antagônico às lutas sociais, se encontra
nas barreiras impostas pelos discursos de ódio que, por sua vez, camuflam-se
sob a égide da democracia enquanto conservadores de extrema-direita perpe-
tuam, de todas as formas possíveis, a condição de submissão dos que fogem ao
padrão do capital. Tais discursos não refletem uma ideologia intolerante que,
hipoteticamente, poderia existir, uma vez que possuem o entendimento de que
somente retrata a normalidade aqueles que se encontram dentro dos padrões
estabelecidos sob a óptica das elites, que explanam suas motivações legitiman-
do-as na moral do capital, na igreja e nos bons costumes. Refletem, por fim, as
práticas históricas estabelecidas pelo Estado, que, sempre em consentimento
com a burguesia, perdurou a submissão social através dos elementos da supe-
restrutura. Cabe aos privilegiados, neste ponto, a fiscalização e denúncia dessas
práticas, nunca sendo coniventes, tanto em diálogos ou explanações, formais e
informais, com afirmações que deslegitimem a luta de classes dos movimentos
sociais ainda que essa opressão não os afete direta e pessoalmente.
Ademais, observa-se a importância da realização do trabalho de base. É
imenso o número de pessoas que vivem em ambientes de opressão e não pos-
suem o entendimento de que isso é resultado de todo um projeto estrutural pla-
nejado para deixá-los onde estão. Entende-se, por conseguinte, o conceito aqui

506
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

trabalhado, como toda a luta política promovida por aqueles que tiveram acesso
à consciência de classe, tornando-se, de certa forma, privilegiados. O trabalho
de base trata-se de fazer política em prol da divulgação do autoconhecimento
enquanto grupo, em diferentes ambientes de convívio social, o levando, por
exemplo, para as vítimas de racismo estrutural e subjetivo, que vivem em fa-
velas sem saber, por consequência da elitização do conhecimento, que existe
um movimento negro que pode acolhê-las e as auxiliar na resistência contra
o racismo. Dessa forma, o apoio vindo de quem tem a real intenção de ajudar
é fundamental, uma vez que o discurso levado a um maior número de pessoas
gerará um crescimento do movimento e uma maior forma de resistência, que se
faz tão importante diante do atual contexto vivenciado.

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507
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WILLIAMS, Raymond. (2005). Base e superestrutura na teoria cultural


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508
Capítulo VII
Mundo do Trabalho e
Reformas Neoliberais
A informalidade do trabalho como
consequência do crescente desemprego
estrutural no Brasil

Jássira Simões dos Santos1


Milena de Sousa Freitas2

Introdução
A partir da observação da conjuntura atual no Brasil em termos econômicos
e sociais vividos atualmente, surge a reflexão sobre a temática trabalho infor-
mal como resultado do crescente desemprego estrutural. Nota-se, com base nos
dados apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
que 34,2 milhões de pessoas ocupadas estão inseridos na economia informal, ou
seja, 37,1% de brasileiros encontram-se inseridos como trabalhadores informais.
É perceptível que a informalidade no país só tem crescido. Este fato decorre de
uma grande crise econômica vivida pelo Brasil nos dias atuais, com altos índices
de inflação, queda do PIB e queda das vendas em decorrência do desemprego. A
instabilidade econômica no Estado brasileiro dá-se mais especificamente desde
os anos 1970, a partir do processo lucrativo com a redução do capital humano e
a inserção da automação fabril, que se configura vigente na sociedade brasileira.
Segundo Singer (2000, p. 11), o “trabalho informal é algo relativamente an-
tigo, seja qual modo nos detemos a chamá-lo (subemprego, desemprego disfar-
çado, entre outros), a temática é algo inserida na sociedade desde os primórdios
da Revolução Industrial”.

1 Jássira Simões dos Santos, Faculdade do Vale do Jaguaribe (FVJ), Acadêmica do 8º semestre do curso
de Serviço Social. E-mail: [email protected].
2 Faculdade do Vale do Jaguaribe (FVJ), Acadêmica do 8º semestre do curso de Serviço Social. E-mail:
[email protected].

511
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Em consonância com Santos (2006), o desemprego na contemporaneidade


brasileira é uma das refrações da Questão Social que aponta para a mais grave
crise social do País, pois o desemprego demanda outras tantas expressões, como
a marginalidade social, a violência, dentre outras.
Sendo assim, torna-se extremamente relevante a análise do crescimento do
trabalho informal na atualidade como consequência do desemprego, engloban-
do o processo histórico de exploração do trabalho e a crise que se mostra há
décadas no nosso país.

1. O sentido do trabalho (o que é o trabalho?)


Referindo-se ao termo trabalho, pode-se acoplá-lo aos modos de produção que
permeiam a sociedade, como valor de subsistência, troca ou venda da força de tra-
balho. Partindo de uma ideia ontológica do trabalho e a forma de materialização do
mesmo, é preciso analisar “o trabalho como elemento fundamental para o desenvol-
vimento do ser social, o que atribui à categoria o caráter de importante elemento da
condição humano-genérica dos sujeitos sociais” (TEIXEIRA, 2014, p. 24).
Para Saviani (2007),

O desenvolvimento da produção conduziu à divisão do trabalho e, daí, à


apropriação privada da terra, provocando a ruptura da unidade vigente
nas comunidades primitivas. A apropriação privada da terra, então o
principal meio de produção, gerou a divisão dos homens em classes.
Configuram-se, em consequência, duas classes sociais fundamentais: a
classe dos proprietários e a dos não-proprietários. Esse acontecimento
é de suma importância na história da humanidade, tendo claros efeitos
na própria compreensão ontológica do homem. Com efeito, como já se
esclareceu, é o trabalho que define a essência humana. Isso significa que
não é possível ao homem viver sem trabalhar. Já que o homem não tem sua
existência garantida pela natureza, sem agir sobre ela, transformando-a e
adequando-a as suas necessidades, o homem perece (p.155).

Em outras palavras, o trabalho é o meio que o homem encontra para subsis-


tir, e é por meio dele que o sujeito produz sua própria existência e suas relações
de sociabilidade, impactando diretamente na construção do ser social.
Segundo Bensaïd (2013), para Marx em “O Capital”, as relações de produ-
ção são indissociáveis das relações mediadas pelo trabalho, os homens com a

512
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

natureza e os homens entre si, ou seja, o homem materializa sua condição de


trabalho, fundamentando suas relações com a natureza, modificando-a ao pas-
so de sua ação laborativa, portanto não há como analisar trabalho inerente as
relações transformadas pelo próprio sujeito.
Consoante ao exposto, Lara (2016) expõe que

O mundo é palco da ação humana pelo trabalho, o sujeito é o homem


que labora e o objeto é a natureza que sofre a ação laboriosa. Assim, a
explicação sobre a realidade social passa a ser compreendida como a
relação específica entre homem e mundo [natureza] por meio de suas
formas de apropriar recursos naturais e desenvolver suas condições de
vida pelo processo de trabalho. A história é construída pelas formas
sociais como homens produzem suas condições de vida. Neste caso, os
processos de trabalho são fundamentais para a organização da sociedade.
Assim, as categorias teóricas objetivam, acima de tudo, compreender
a práxis social dos homens nos seus respectivos contextos históricos de
produção e reprodução da vida social (p. 213).

Segundo Pochmann (2004), o trabalho, apesar de está atrelado ao processo


de desenvolvimento humano em sua configuração ontológica, não é sempre que
tem esta característica, em sua forma histórica ele caracteriza-se como condição
de subsistência humana.

[...] encontra-se vinculado ao desenvolvimento humano, especialmente


na sua forma ontológica, que representa a capacidade do homem de
transformar a si próprio e a natureza. Mas também, e principalmente,
o trabalho na sua forma histórica tem sido mais visado como condição
de financiamento da sobrevivência humana, nem sempre associado ao
desenvolvimento humano (p. 227).

De acordo com Guimarães (2005), em suas reflexões, a centralidade do tra-


balho “é a produção simbólica sobre as relações sociais do trabalho que confere
sentido e orienta suas percepções, atitudes, pertenças e comportamentos (indi-
viduais ou coletivos)” (p. 152).
Consoante à socióloga,

O âmbito do trabalho é lócus da produção de bens e serviços e,


simultaneamente, o lócus da produção de ideias, de representações e

513
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

simbolizações que informam e vale dizer, são ambos condição de possibilidade,


ao darem forma concreta a maneira de se organizar socialmente a produção
de bens e serviços. Mais ainda, tal produção simbólica está, ela mesma,
enraizada na vida social que transcorre dentro e fora dos espaços onde se
tecem as relações sociais de trabalho (GUIMARÃES, 2005, p. 152).

Não obstante, as relações advindas das transformações realizadas pelo ho-


mem em seu meio, o trabalho torna-se essência da riqueza, mas ao mesmo tem-
po é a pobreza do próprio ser social. Ao ponto que o sujeito que produz riqueza
por meio de seu instrumento de subsistência, o trabalho, ele próprio se torna
mercadoria, pois a iminência que este indivíduo estabelece, por meio de sua
ação laborativa, “valoriza o mundo das coisas, simultaneamente, desvaloriza o
homem” (LARA, 2016, p. 215).

As condições materiais estavam dadas e proporcionaram a classe ascendente,


no caso a burguesia, a condução das relações sociais de produção e apropriação
da riqueza, assim como o cenário estava sinalizado para a resistência da classe
trabalhadora, única saída para esta fugir da crescente degradação de sua
condição de vida (LARA, 2016, p. 218).

Para Pochmann (2004), no sistema capitalista de produção, as classes se


distinguem, entre burguesia e classe trabalhadora “justamente por não deterem
a propriedade da terra e dos meios de produção”. E que só pelo trabalho é capaz
de “torna-se possível libertar-se da mera sobrevivência” (p. 228).
Essa relação dá-se por base, no valor da força de trabalho humano e nos
detentores dos modos de produção, ou seja, a relação entre capital e trabalho.
O indivíduo ao vender sua capacidade de trabalho, ele está condicionado a ser
usado como mercadoria, bem como não ter retorno ao devido valor que seu
trabalho merece. A força de trabalho é consumida ou usada e tem seu valor
determinada pelas necessidades de sua existência e a reprodução do ser social.

2. A evolução do trabalho e os impactos nas


relações sociais
O trabalho se configura como uma questão que vem se modificando ao longo das
épocas e processos sociais, passando por várias etapas até se estruturar o capitalismo

514
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

moderno. Pode-se ressaltar quatro etapas distintas do processo evolucional do traba-


lho, inicialmente o primitivismo, passando para o escravismo, logo após observa-se o
sistema feudal e por último tem-se o capitalismo que perdura-se aos dias atuais.
O primitivismo caracteriza-se pelo trabalho dos primeiros homens que habi-
taram na terra e utilizavam-se da sua ação laborativa para seu sustento mútuo.
Logo após surge o escravismo, que busca o poder, com as primeiras formas de
dominação do homem sobre o homem tornando o trabalho mais intensificado
e mais explorado.
Segundo Saviani (2007),

Na Antiguidade, tanto grega como romana, configura-se esse fenômeno


que contrapõe, de um lado, uma aristocracia que detém a propriedade
privada da terra; e, de outro lado, os escravos. Daí a caracterização
do modo de produção antigo como modo de produção escravista. O
trabalho é realizado dominantemente pelos escravos (p. 158).

Nos anos 80, com a promulgação da Lei Áurea, ergue-se o feudalismo onde
os protagonistas são os senhores feudais (nobres) e os camponeses (servos) que
eram obrigados a cultivar terras e utilizarem-se da sua produção como troca de
mercadorias para sobreviver.
Destarte, o capitalismo chegou de uma forma passiva no século XIII, em que
de início se mostrou como uma leve transição do modo de produção feudal para
o então capitalista de ordem comercial com a expansão e descoberta de novos
mundos. Para explicar o surgimento de uma nova ordem que é o capitalismo,
Guerra (1999, p. 106) preleciona que “neste primeiro estágio do capitalismo, o
trabalhador ainda detém a posse sobre o reconhecimento técnico e habilidade
especifica inerente à sua atividade”.
Em relação ao descrito, Saviani (2007), expõe que

[...] o avanço das forças produtivas, ainda sob as relações feudais,


intensificou o desenvolvimento da economia medieval, provocando a
geração sistemática de excedentes e ativando o comércio. Esse processo
desembocou na organização da produção especificamente voltada para
a troca, dando origem à sociedade capitalista (p.158).

Ao longo do tempo o capitalismo tornou-se industrial, impactando dire-


tamente o trabalho. A força de trabalho passou a ser parcelada e o valor do

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

trabalhador transfere-se para o modo de produção. A posteriori, com a mo-


dernização do capital, a demanda do indivíduo passou a ter uma produção em
grande escala, gerando rotatividade.
Do ponto de vista de Antunes (2009),

[...] o binômio taylorismo/ fordismo, expressão dominante do sistema


produtivo e de seu respectivo processo de trabalho, que vigorou na grande
indústria, ao longo praticamente de todo século XX, sobretudo a partir
da segunda década, baseava-se na produção em massa de mercadorias,
que se estruturava a partir de uma produção mais homogeneizada e
enormemente verticalizada (p. 38).

Sobre o momento histórico de transição dos processos produtivos, Saviani


(2007), revela em suas reflexões que, o trabalho humano crescentemente deu
lugar a maquinaria.

O advento da indústria moderna conduziu a uma crescente simplificação


dos ofícios, reduzindo a necessidade de qualificação específica, viabilizada
pela introdução da maquinaria que passou a executar a maior parte das
funções manuais. Pela maquinaria, que não é outra coisa senão trabalho
intelectual materializado, deu-se visibilidade ao processo de conversão
da ciência, potência espiritual, em potência material. Esse processo
aprofunda-se e generaliza-se com a Revolução Industrial levada a efeito
no final do século XVIII e primeira metade do século XIX (p. 158).

Com a crise de 1929, que resultou de uma superprodução, desemprego e


queda da taxa de lucro, surge uma nova forma de administração do trabalho
designado como keynesianismo. Para uma retomada econômica, Keynes ofer-
ta o pleno emprego com um Estado de bem-estar social (Welfare State), surgin-
do assim às políticas sociais para os trabalhadores, com oferta de alimentos e
de fontes de trabalho e renda. Esta fase é designada como os anos dourados
até por volta dos anos de 1960.
Em 1970, outra crise afeta diretamente o trabalho, tendo em vista que se
visa o lucro, reduzindo os custos do capital humano, intensificando a automa-
ção, a polivalência e a terceirização (FRANCO; DRUCK; SILVA, 2010).
Neste contexto emerge uma nova forma de acumulação do capital, com o
objetivo de recuperar o ciclo produtivo, concomitantemente reorganizar seu
projeto de dominação sobre a sociedade. Com o Toyotismo, na década de 70,

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

a automação, a qualidade no serviço, o sistema just-in-time e a terceirização


tomam lugar no campo societário.
De acordo com Antunes (2009), o novo arranjo do capital sobre a força de
trabalho “possibilitou o advento de um trabalhador mais qualificado, partici-
pativo, multifuncional, polivalente e dotado de maior realização no espaço do
trabalho” (ANTUNES, 2009, p. 50).
Sobre o movimento de outras formas da produção capitalista, Santos (2012),
mediante estudos realizados com base em Chenais, revela que as possibilidades
de reerguer o desenvolvimento das forças produtivas regulam a mundialização
do capital neste período.

[...] além das megafusões, observadas nas últimas décadas, o principal


redirecionamento que vai caracterizar as operações monopolistas, a partir
de então, consiste na canalização da mais-valia obtida no setor produtivo
para o setor financeiro. Neste sentido, o discurso dominante passa a
enfatizar as diretrizes de desregulamentação estatal que fazem supor uma
espécie de libertação ou ausência de barreiras estatais para o movimento
do capital. A internacionalização do capital monetário, portanto, teve um
papel fundamental na crise do padrão de regulação fordista, na medida
em que seu movimento foi desregulamentando as fronteiras dos Estados
nacionais, antes mesmo que essa se tornasse formalmente a política oficial
dos organismos internacionais (SANTOS, 2012, p. 180-181).

Almeida e Alencar (2011, p. 01) enfatizam que esta crise estrutural dos anos
1970 permeia no mundo do trabalho até a década atual, pois foi um “amplo pro-
cesso de reorganização da hegemonia econômica e politicamente na dinâmica
do capital, expandindo a lucratividade e o acirramento da luta de classes”.
Para Mota e Tavares (2016),

De meados do século XIX até o inicio do século XXI, o modo de


produção capitalista transformou-se de maneira notável: diferentemente
do que ocorreu até 1970, o horizonte de expansão do capitalismo
tornou-se restrito, marcado por um cenário de crise de acumulação e
expansão e pela hipertrofia do capital financeiro, o que tende a ampliar
e diversificar os meios de exploração do trabalho e a barbarização da
vida social (MOTA; TAVARES, 2016, p. 229).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O cenário capitalista vivido na contemporaneidade demonstra que a exploração


do trabalho humano, para que o capital se mantenha processual, impacta direta-
mente nas relações sociais, partindo para uma barbárie da vida social humana.
Segundo Lara (2016), para compreender a dialética do trabalho, bem como
sua riqueza e miséria, é preciso analisar a adversidade de classes no processo
de produção e reprodução da sociedade. Em uma abordagem sobre estudos dos
teóricos clássicos Marx e Engels, o autor supramencionado retoma a visão de
mundo e da concepção materialista de que a atividade sensível do homem é o
fundamento inerente às relações sociais.

Ao abordamos a dialética do trabalho, não podemos deixar de situá-la


no conjunto das relações sociais da sociedade burguesa, ou seja, a luta de
classes, a exploração da força de trabalho, os estranhamentos sociais, as
manipulações ideológicas, a produção coletiva e a apropriação privada
da riqueza social (LARA, 2016, p. 211).

Para tanto, é perceptível que a força de trabalho e seu modo de inserção, mo-
dificam-se com o desenvolvimento das forças produtivas. A burguesia torna-se de-
tentora de meios de produção, explorando o ser social por meio de suas atividades
laborativas e ao proletariado determina-se por produzir mercadorias e mais-valor3.

A dialética do trabalho nas relações sociais de produção capitalista


é acelerada pelo desenvolvimento das forças produtivas. O
aperfeiçoamento destas ocorre pela divisão social do trabalho, aplicação
da ciência da indústria, desenvolvimento dos meios de transporte e
comunicação. Tendencialmente, as inovações do processo de trabalho
diminuem o trabalho vivo e aumentam o trabalho morto, apresentando
a possibilidade de com menos tempo de trabalho socialmente necessário
produzir mais mercadorias com menor valor (LARA, 2016, p. 220).

Neste horizonte, na contemporaneidade, o processo de restauração capitalis-


ta efetiva-se a partir de mecanismos que estão determinantemente conectados,

3 “A força de trabalho produz mercadorias, portanto valores, mas só ocorre a valorização (produção do
mais-valor) quando há extensão da jornada de trabalho para além do tempo necessário para produzir
valor”. Para ocorrer a valorização é necessário que a força de trabalho seja consumida em condições sociais
e com meios de produção adequados. Em consequência disso, o valor tem origem na exploração da força
de trabalho, e não nos meios de produção; os meios de produção oferecem, no máximo, condições para
maior valorização e, quando muito, transferem valor de forma fracionada (LARA, 2016, p. 222).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

as novas práticas de exploração da força do trabalho, bem como as alterações


intervencionais do Estado e as relações (aspectos culturais e ideológicos) dos
trabalhadores definem a “divisão internacional do trabalho e afeta diretamente
as relações e processos de trabalho” (Mota; Tavares, p. 231, 2016), ou seja, o
processo do capital, a desreponsabilização do Estado e as novas expressões da
exploração do trabalho alteram significamente a sociabilidade dos indivíduos e
caracterizam os papéis sociais dos sujeitos na sociedade.
Concomitantemente ao processo de capitalização do trabalho, cresce exponen-
cialmente as expressões da Questão Social. Entre elas, destaca-se aqui o trabalho
informal. A Questão Social está ligada diretamente as desigualdades que afetam a
sociedade, seu surgimento deu-se no século XIX com a industrialização e as condi-
ções precárias a subsistência do trabalhador. Para Iamamoto (2013) existe na raiz da
“questão social” hoje políticas de governo que contribuem para o fortalecimento do
grande capital, em detrimento do ônus transferido às classes e grupos sociais
O desemprego estrutural é designado por Karl Marx (1989) como a conse-
quência das economias políticas, levando as pessoas a não serem mais neces-
sárias à produção por inúmeros motivos como a necessidade da acumulação,
crescimento de inovações tecnológicas, entre outros.
Ainda sobre o exposto, Antunes (2013) revela que há, no Brasil, a expansão
de contratos de trabalho temporários, instáveis, sem o registro na carteira de
trabalho. Tais manifestações se mostram dentro e forma das empresas.

3. A cultura do trabalho na contemporaneidade e os


desdobramentos da informalidade no Brasil
Com os avanços tecnológicos, a inserção da automação e da robótica no
universo das fábricas, as relações de sociabilidade do trabalho e a produção
e reprodução do capital expandiram-se, modificando, de forma radical, o
mundo do trabalho.
Consoante aos estudos de Antunes (2011),

Foram tão intensas as modificações, que se pode mesmo afirmar que


a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século, que
atingiu não só a sua materialidade, mas teve profundas repercussões na

519
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes níveis, afetou


a sua forma de ser (p. 23).

Os novos padrões de produção alteram as formas da lógica capitalista em


decorrência da produtividade, “onde o cronômetro e a produção em série e
de massa são substituídas pela flexibilização da produção, pela especialização
flexível”. Outro fator preponderante que cabe ressaltar neste tópico é sobre os
novos processos de trabalho na contemporaneidade, “onde os desdobramentos
são agudos” e, no concernente aos direitos dos trabalhadores, “estes são des-
regulamentados, são flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental
necessário para adequar-se a sua nova fase” (ANTUNES, 2011, p. 24).
Não obstante esses aspectos, Singer (2005) revela o fato de que a “desindus-
trialização combinada com o abandono do compromisso com o pleno emprego
por parte dos governos ensejou a volta do desemprego em massa e de longa
duração nos países desenvolvidos e semidesenvolvidos” (p. 31-32).
Assim, é possível observar que a acumulação flexível4 se torna uma estraté-
gia de mercado, pois para o capitalismo o primordial é a conglobação de toda a
sua produção, assim sendo, dentro do processo de mais-valia, o produto se torna
mais importante que o produtor.
Para Baptista (2010), com as exigências do mercado internacional, as res-
postas são estabelecidas na modernização da formação profissional que impacta
diretamente nas relações do trabalho no Brasil. A Nova Teoria do Capital Hu-
mano5 “reúne uma série de capacidades e competências que tornam o trabalha-
dor apto a se inserir ou se manter num emprego” (BAPTISTA, 2010, p. 136).
Em conformidade com a autora,

[...] há uma individualização do problema “desemprego” com acento


em dois aspectos. Um diz respeito ao esvaziamento da Questão Social,
responsabilizando o trabalhador por sua inclusão/exclusão do mercado;

4 “[...] refere-se às inovações tecnológicas, inovações de gerenciamento da produção e de trabalho,


que objetivam atender a mercados consumidores diferenciados, por meio de uma real flexibilização
da produção e da demanda. Funda-se na flexibilização de processos de trabalho, de produtos e de
padrões de consumo” (MARCONSIN; FORTI; MARCONSIN, 2012, p. 27).
5 “A neo-TCH sublinha a perspectiva do desenvolvimento e – no discurso presente – a perspectiva
da modernização através da reconversão da formação profissional, no sentido de proporcionar a
economia nacional um grau de competitividade satisfatório em relação às exigências do mercado
internacional” (BAPTISTA, 2010, p. 136).

520
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

outro diz respeito ao que estão chamando de “cidadão produtivo”, em que


os trabalhadores passam a entrar no mercado não como trabalhadores,
mas como colaboradores, criando assim novas bases de exploração e de
consentimento (BAPTISTA, 2010, p. 137).

Sobre o exposto, Antunes (2011) revela que, no mundo do trabalho, é


possível perceber múltiplos processos, “de um lado verificou-se uma despro-
letarização do trabalhado industrial, fabril, nos países de capitalismo avan-
çado”, porém simultaneamente, efetivou-se uma “expressiva expansão do
trabalho assalariado” (Idem, p. 47).
Em contraponto a esse contingente de expressiva ampliação de assalaria-
mento, Antunes (2011) delineia que houve também no mundo do trabalho no
capitalismo contemporâneo uma expansão dos processos de subproletarização
exacerbada da classe trabalhadora, intensificando uma “expansão do trabalho
parcial, temporário, precário, subcontratado, “terceirizado”, que marca a socie-
dade dual no capitalismo avançado” (Idem, ibidem).
De acordo com o autor,

O mais brutal resultado dessas transformações é a expansão, sem


precedentes na era moderna, do desemprego estrutural, que atinge o
mundo em escala global. Pode-se dizer, de maneira sintética, que há
uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o operariado
industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o trabalho
precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o trabalho
feminino e exclui os mais jovens e os mais velhos. Há, portanto, um
processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da
classe trabalhadora (ANTUNES, 2011, p. 47).

Para Corseuil; Franca; Poloponsky (2015), a precarização do trabalho afeta


de forma impactante a classe trabalhadora, não só na relação social destes indi-
víduos, mas demandas outras alterações, inclusive aos direitos fundamentais e a
proteção social destes sujeitos.

A relação entre um contrato informal e a precarização da relação


trabalhista se dá na medida em que muitos dos direitos que o trabalhador
deveria receber durante o período empregado são frequentemente negados
nesse tipo de relação trabalhista (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
– FGTS, adicionais de férias e horas extra, extensão de direitos negociados

521
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

por acordo coletivos da categoria profissional são alguns exemplos). Além


disso, há indícios de que os acidentes de trabalho são bem mais frequentes
no setor informal, sugerindo maior precariedade desse tipo de posto de
trabalho (CORSEUIL; FRANCA; POLOPONSKY, 2015, p. 177).

Consoante ao exposto, Santos (2012) delineia as particularidades do desem-


prego no Brasil. De acordo com a autora:

A elevada disponibilidade de mão de obra, resultante da manutenção das


estruturas fundiárias concentradas, somadas ao perfil da legislação do
trabalho no Brasil, cujos parâmetros de proteção social foram instituídos
de modo seletivo, fizeram a informalidade e do desemprego realidades
que se reproduzem de longa data no país (SANTOS, 2012, p. 195).

Em linhas gerais, percebe-se que, em meio a uma grande


crise que se estende por décadas, os sujeitos tentam
moldar-se a ela independente de sua subsistência, e é
dentro desta configuração que a exploração e o trabalho
informal crescem e, como consequência, a valorização
do trabalhador decai, refletindo na vida de muitos
sujeitos, trazendo à tona o desemprego, a polivalência,
a rotatividade e a precarização do trabalho.
3.1. O
surgimento do trabalho atípico: uma nova forma
de informalidade
Trabalho típico é todo aquele que se baseia em um trabalho assalariado es-
tabelecido pela relação de trabalho, o mesmo tem como suporte o contrato de
trabalho que permite ao contratado ser amparado por direitos permanente que
vigoram nas legislações vigentes de amparo à classe trabalhadora.
Em contrapartida o trabalho atípico é aquele que está inserido dentro da
precarização e flexibilização do trabalho, permeado por trabalhos temporários
e subordinados, amparado em alguns casos pelo Estado e em outros pela com-
petitividade de mercado.

522
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A ação labor ativa atípica se assemelha ao trabalho autônomo, tendo como


única diferença a forma de contratação, em que para os trabalhadores atípicos
há um contrato por tempo determinado e para os autônomos tem-se a ideia de
ser dono do seu próprio negócio. Como exemplo de trabalhos atípicos temos: os
noturnos, os executados durante finais de semanas, o tele trabalho, e os que se
desenvolvem no interior de um domicílio, sendo todos eles de forma temporária.
A Lei nº 6.019, de 03 de Janeiro de 1974, que dispõe sobre o Trabalho Tempo-
rário nas Empresas Urbanas e de outras Providências, determina em seu artigo 2º:

Trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física contratada


por uma empresa de trabalho temporário que a coloca à disposição
de uma empresa tomadora de serviços, para atender à necessidade
de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda
complementar de serviços (BRASIL, 1974).

Ao analisar a Lei, torna-se perceptível que o trabalho temporário tem como


principal característica a rotatividade por só ser requisitado em momentos de
necessidade, o que torna o trabalho inconstante, colocando o trabalhador em
situação de vulnerabilidade.
Porém, por o trabalho atípico estar inserido na categoria da informalidade,
as formas de trabalho temporário se tornam para o indivíduo como uma forma
de escape, independente do tempo inserido no mercado, devido as constantes
necessidades econômicas que lhes são impostas todos os dias para que subsista.
Isto se torna mais notável através da observação da ciclicidade do capital e
instabilidade econômica presente em nosso país, um exemplo disto foi à crise
financeira de 2008, em que 40% dos trabalhadores tinham contratos atípicos,
devido ao grande número de demissões nas empresas.
Segundo, Vasapollo (2005),

A fragmentação do trabalho modificou a velha concepção da empresa


fordista e reduziu a existência do trabalho assalariado, com o surgimento
das novas figuras profissionais, que fazem seus trabalhos tanto dentro
quanto fora da empresa. O mercado de trabalho, transformando
rapidamente o trabalho padrão, traz consigo novos tipos de ocupações
que interligam quase todas as características do trabalho autônomo com
as do trabalho efetivo (VASAPOLLO, 2005, p.51).

523
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Estas novas características de trabalho colocadas pelo autor trouxeram mu-


danças ao capital, que teve de se reinventar, assim como o trabalhador, e idea-
lizar modificações para preservar a sua hierarquia e a permanência no topo na
pirâmide econômica.
Quanto a este fetiche do capital se reerguer de forma cada vez mais avassa-
ladora Marx; Engels (1981), no Manifesto do Partido Comunista exprimem que,

Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um


caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países
[...] ela roubou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias
nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente.
São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma
questão vital para todas as nações civilizadas – indústrias que já
não empregam matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas
vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não
somente no próprio país mas em todas as partes do mundo. Ao invés
das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem
novas demandas, que reclamam para sua satisfação os produtos das
regiões mais longínquas e de climas os mais diversos. No lugar do
antigo isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvolvem-
se um intercâmbio universal e uma universal interdependência das
nações (MARX; ENGELS, 1981, p. 24-25).

Estes acontecimentos são designados pela ótica capitalista como a globaliza-


ção, por ser um processo em que o capital cresce e toma outras formas através
da aproximação com outros países, a fim de trazer riquezas e uma forma de
superação que lhe renda lucros significativos.
A partir destas considerações se torna nítido que em cada novo modelo de
trabalho há a instalação de um ciclo do capital inédito, por estes novos modelos
de trabalho originarem-se de várias questões que colocam o trabalhador em situ-
ações desapropriadas, dentre elas o desemprego estrutural, a ilegalidade, a preca-
riedade, a flexibilização, e mecanismos capitalistas de controle e alienação.

Considerações finais
O trabalho é uma categoria social, que vem se modificando ao longo do
tempo. O mundo do trabalho vem sendo alterado mediante os impactos do ca-

524
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

pitalismo moderno. Para manter-se no sistema, o capital se remodela por meio


de mecanismos, gerando metamorfoses no campo do trabalho. Isto implica di-
zer que o ciclo do capital transfigura-se nas relações sociais, no antagonismo de
classe, na reestruturação produtiva, na precarização do trabalho, na flexibilida-
de, no desemprego estrutural, entre outros.
Devido a todos estes processos, o trabalho informal surge como uma
forma de escape para uma vida econômica plena e uma nova forma de se
inserir no ciclo do capital, porém, com o falso discurso de que haverá uma
autonomia e insubmissão.
Como forma de aprofundar-se na categoria, o presente trabalho teve como
objetivo principal contribuir para a reflexão acerca do trabalho informal e todos
os seus desdobramentos históricos, buscando trazer respostas sobre o cresci-
mento da informalidade, como também as vantagens e desvantagens de estar
inserido no mercado de trabalho informal.
Destarte, percebeu-se através dos dados bibliográficos que as crises econô-
micas do país e o crescimento do desemprego são os principais fatores para que
haja a informalidade, tendo em vista, que como já afirmado, a mesma se cons-
titui como uma forma de escape para a vulnerabilidade.

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528
A PEC 287/2016 e a trabalhadora
do campo: a Reforma da Previdência
como obstáculo ao acesso da aposentadoria
rural pelas camponesas

Vágner de Brito Tôrres1

Introdução
O texto da PEC 287 apresentada pela Presidência da República em 2016 foi apro-
vado, após mudanças, em maio de 2017, na Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania da Câmara. Apesar disso a Reforma da Previdência ainda não foi votada,
de modo que podemos considerar que a articulação política do Palácio do Planalto,
até então, não foi apta a obter o quórum necessário à aprovação da emenda.
O fato é que a delação da JBS sobre o presidente Michel Temer2 e as duas
denúncias por organização criminosa, corrupção e obstrução de justiça, mais
tarde barradas pela Câmara Federal3, parecem ter enfraquecido significante-
mente a rede de influências do governo Temer.
A proximidade com o período de campanha eleitoral reduziu consideravel-
mente os potenciais apoiadores da impopular reforma4, porém, em um esforço

1 Estudante do 4º período do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido,


campus Mossoró.
2 EL PAÍS. A delação da JBS devasta Temer. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/
brasil/2017/05/20/politica/1495236202_492795.html>. Acesso em 10 ago. 2018.
3 Ver <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/janot-denuncia-temer-por-corrupcao/>; e
<https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,entenda-o-que-esta-em-jogo-na-segunda-denuncia-
contra-temer,70002051462>.
4 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/01/1954879-pesquisa-do-planalto-
mostra-14-a-favor-da-reforma-da-previdencia.shtml>. Acesso em: 10 ago. 2018.

529
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de conseguir, ainda assim, a aprovação na Câmara, foram-se negociados alguns


cargos5 e mudanças no texto da PEC.
A Reforma da Previdência ainda não foi votada em virtude a Intervenção
Federal decretada no Rio de Janeiro, que conforme o artigo 6º da Constituição
Federal de 1988, obstaculariza qualquer emenda à Carta Magna.
A pesquisa realizada aqui, a partir de uma revisão bibliográfica e levanta-
mento de dados, tem o intuito de realizar uma reflexão crítica a respeito das
alterações propostas pela Reforma Previdenciária.
Realizamos leitura de obras jurídicas referentes ao tema e uma análise de
notas técnicas publicadas pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Es-
tudos Socioeconômicos, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, como
também outras notas e recomendações publicadas pela Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Também foram pesquisados artigos disponibilizados e publicizados pela Orga-
nização Não Governamental Auditoria Cidadã da Dívida6 e por sindicatos de
trabalhadores de diversos segmentos e setores profissionais.7
O principal objetivo do trabalho é analisar como o texto original da PEC
287/2016, se aprovado, poderia afetar o acesso à aposentadoria rural pelas mu-
lheres camponesas. O conceito de Camponês pode ser interpretado de diversas
maneiras, dependendo de a quais aspectos se queira referir, o conceito aqui ado-
tado por nós é o de sujeito que faz parte de um grupo social – ao coletivo desses
grupos social chamaremos Campesinato – que desenvolva atividades que visem
a obter alimentos, fibras, energia, matéria-prima para roupas, construções, me-
dicamentos, ferramentas, ou a contemplação estética, com autonomia total ou
parcial na gestão do território rural, propriedade, ou não, sobre os instrumentos
de trabalho e a posse total ou parcial da produção.

5 O ESTADO DE S. PAULO. Por reforma da Previdência, governo enquadra ministros e redistribui


cargos. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-faz-varias-mudancas-
de-cargos-em-meio-as-negociacoes-da-previdencia,70002117472>. Acesso em 10 ago. 2018.
6 “A Auditoria Cidadã da Dívida é uma entidade aberta à participação de todas as entidades e cidadãos
preocupados com o agravamento dos problemas nacionais dentre os quais o endividamento público
exerce papel preponderante. ” Disponível em: <https://auditoriacidada.org.br/quem-somos/>.
Acesso em: 10 ago. 2018.
7 Como por exemplo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, a
Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais e a Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Agricultura.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

1. Seguridade Social e o contexto político do golpe


de 2016: elementos de como a “Ponte para o Futuro”
afeta a Previdência Social
Antes de apontarmos os elementos contidos no texto original da PEC
287/2016, que afetariam especificamente os direitos das mulheres campone-
sas, é importante apresentarmos alguns elementos fundamentais do conceito
de Seguridade Social, assim como do contexto político radicalmente modifica-
do, após o processo de impeachment da então presidenta da República8, Dilma
Roussef, e posse de Michel Temer na chefia do Poder Executivo.
A compreensão desse contexto é fundamental para a compreensão dos
propósitos a que se destina a Reforma da Previdência e de qual programa
político ela emerge.

1.1. A Seguridade Social


Segundo o que foi firmado na Constituição Federal de 19889, a Seguridade Social
consiste no sistema de promoção, proteção e garantia dos direitos relativos à saúde, à
assistência social e à previdência. Materializa-se através de um conjunto de políticas
sociais que buscam promover a justiça social e uma sociedade mais igualitária, visan-
do ao combate a certos males sociais, tais como a marginalização e a miséria. É, por-
tanto, um meio através do qual o Estado garante pilares fundamentais da dignidade
humana, no tocante às três esferas mencionadas anteriormente, e faz isso através de
fontes diversas de financiamento, arroladas no texto constitucional, artigo 195, que
envolvem a tributação de uma série de setores e atividades da sociedade.
A concepção institucionalmente consolidada sobre Seguridade Social
é produto da luta popular e de quase um século de trabalho de relevantes
instituições supranacionais e organizações internacionais, tais quais a

8 Assume-se aqui que o processo que depôs a presidenta Dilma Rousseff em 2016 foi golpe, segundo
a perspectiva de que um golpe “[...] consiste na tomada do poder com a violação de regras
constitucionais e sem a participação popular, por meios violentos ou não”. Disponível em: <http://
www.criticaconstitucional.com.br/por-que-foi-um-golpe/>. Acesso em 10 ago 2018.
9 “Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à
assistência social.”

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Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Internacional


do Trabalho (OIT), a Organização Iberoamericana de Seguridade Social
(OISS), a Conferência Interamericana de Seguridade Social (CISS) e a
Associação Internacional de Seguridade Social (AISS)10. Existindo um
consenso entre essas organizações da abordagem da seguridade social
enquanto um direito humano inalienável, podemos apontar, como síntese a
menção presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos:

“Artigo 22° - Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à


segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos
econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço
nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização
e os recursos de cada país.” (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948)

A seguridade social funciona como auxílio aos sujeitos e suas famílias em


frente à doença, ao desemprego ou à velhice, fornecendo-lhes, conforme estabe-
lecido nos textos dos artigos 194 a 204 da CF de 1988, políticas sociais que al-
mejam a proteção do cidadão de forma gratuita, o acesso universal aos serviços
de saúde, bem como de saneamento básico públicos e de qualidade, e a previ-
dência social que garanta, mediante contribuição11, a proteção da subsistência.
Prevista no art. 6º, caput, 201 e 202 Constituição Federal de 1988, a Pre-
vidência Social tem por finalidade garantir aos/às segurados/as seu sustento
e da sua família em situações de impossibilidade - temporárias ou perma-
nentes - ou falta de trabalho, assim como o seu amparo na terceira idade ou
o amparo de sua família, em caso de falecimento. O piso para os benefícios
previdenciários é o salário mínimo.

10 Seguem alguns dos esforços dessas entidades na garantia da seguridade social: ONU. Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/
UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em 10 ago. 2018.;OIT. C102 - Normas Mínimas da Seguridade
Social. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_235192/lang--pt/index.htm>.
Acesso em: 10 ago. 2018.; OISS. Banco De Información De Los Sistemas De Seguridad Social
Iberoamericanos. Disponível em: <http://www.oiss.org/bissi/files/assets/basic-html/index.html#3>.
Acesso em: 10 ago. 2018.; CISS. Observatorio Interamericano de Seguridad Social (OIPS). Disponível
em: <http://www.ciss.net/datos_ciss/>. Acesso em: 10 ago. 2018.; AISS. ISSA Anual Reviews .
Disponível em: <https://www.issa.int/en_GB/annual-reviews>. Acesso em 10 ago. 2018.
11 Sendo possível, em casos específicos, o acesso à previdência social sem que se tenha contribuído com
ela de forma direta.

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Em nosso regime constitucional, a previdência é organizada sob a forma de


regime geral, conforme disposto na lei 8.213 de 24 de julho de 199112. Trata-se
de modalidade previdenciária que acoberta amplamente a sociedade brasileira,
sendo o regime predominante entre trabalhadores e trabalhadoras do Brasil.
Segundo os próprios termos da Constituição, a previdência geral tem caráter
contributivo e filiação obrigatória e acoberta os/as segurados/as em situações de
doença, invalidez, morte e idade avançada, maternidade, e desemprego invo-
luntário, além de prever, como elementos dessa cobertura, o salários-família e o
auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda.
Esse modelo previdenciário revela que, com o regime de 1988, o ordena-
mento jurídico brasileiro visou a incorporar uma política de bem-estar-social,
alicerçada, de forma especial, no sistema de seguridade social.

1.2. Elementos políticos da propositura da PEC 287


Resultando de um processo de isolamento político e de interesse de grupos da
elite, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) – o então presidente da Câmara dos Deputados
do Brasil – que vivenciava um processo de investigação no Conselho de Ética sob a
acusação de ter mantido em segredo a posse de contas bancárias no exterior e de ter
mentido sobre a existência dessas em depoimento à CPI da Petrobras13, que acon-
teceu em março de 2015, aceitou o pedido de impeachment da presidenta eleita em
2014, Dilma Rousseff, que havia sido apresentado pelos advogados Hélio Bicudo,
Miguel Reale Jr e Janaina Paschoal, pouco após o Partido dos Trabalhadores (PT)
decidir que seus três representantes no Conselho de Ética votariam pela cassação do
seu mandato, marcando o início do que chamaremos Golpe de 2016.
O relatório do deputado Jovair Arantes (PTB-GO), que visava a abrir o pro-
cesso de impeachment pela prática de crime de responsabilidade foi aprovado,
no dia 14 de abril de 2016, após três meses de debates, pela Comissão Especial
do Impeachment da Câmara, três dias mais tarde, no dia 17 de abril, o Plenário
produziu um parecer favorável ao afastamento da então presidenta.

12 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8213cons.htm>.


13 Tendo posteriormente, em 16 de outubro de 2016, sua prisão decretada pela 13ª Vara Federal de
Curitiba do TRF4, sob a acusação de ter recebido propina de contrato de exploração de petróleo
em Benin, na África, e de usar contas bancárias na Suíça para lavar dinheiro, após ter seu mandato
cassado pela Câmara, no dia 13 de setembro do mesmo ano, perdendo o foro privilegiado.

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A ascensão de Michel Temer à liderança do Executivo vem acompanhada de


diversas propostas de medidas de ajustes da gestão pública de gastos, que, apesar
da impopularidade do presidente em exercício14, encontraram certa facilidade em
ser aprovadas, graças ao grande apoio parlamentar15 ao seu projeto de governo.
O pacote de reformas formuladas pelo Poder Executivo sob a chefia de Mi-
chel Temer dialoga o plano de políticas de austeridade elaborado pelo PMDB,
através da Fundação Ulysses Guimarães, chamado Uma Ponte Para o Futuro16.
Nesse contexto, o Executivo encaminhou à Câmara Federal a PEC 287, que
ficaria popularmente conhecida como Reforma da Previdência.
Os debates legislativos foram acompanhados por uma série de mobilizações
populares de contestação à PEC e de resistência à sua aprovação17 que, somada à
crescente impopularidade do governo Temer18, ocasionou um enfraquecimento
político do Executivo e uma dispersão da base aliada mobilizada para aprovação
rápida da PEC em questão. O próprio relator da PEC, o deputado Arthur Oliveira
Maia (PPS-BA), chegou a afirmar que a delação da JBS e as duas denúncias do
Ministério Público contra o presidente Michel Temer haviam esgotado o capital

14 Pesquisa Ibope. Disponível em: <http://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/72-


avaliam-governo-temer-negativamente-patamar-permanece-o-mesmo-de-dezembro/>. Acesso em:
28 ago. 2018.
15 A consideração do referido apoio parlamentar foi retirada de levantamento produzido pelo site
Poder360, que levou em consideração 15 votações importantes na Casa, com propostas consideradas
relevantes para o Planalto, como a reforma trabalhista, o teto dos gastos públicos e a terceirização.
Também estão na lista as análises da admissibilidade de duas denúncias contra o emedebista.”
Disponível em: <https://www.poder360.com.br/congresso/em-2-anos-temer-recebeu-23-de-apoio-
em-votacoes-importantes-na-camara/> Acesso em: 13 ago. 2018.
16 O plano pode ser acessado no link a seguir: https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-content/
uploads/2016/11/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf
17 Algumas matérias jornalísticas sobre essas movimentações podem ser vistas nos seguintes links:
https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/02/ato-contra-reforma-mobiliza-parlamentares-
e-movimentos-populares; https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/02/19/movimentos-
sociais-defendem-resistencia-a-reforma-da-previdencia;http://www.fenae.org.br/portal/fenae-portal/
noticias/movimentos-sociais-e-trabalhadores-realizam-ato-contra-a-reforma-da-previdencia-nesta-
terca-feira.htm; http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/06/contra-reforma-da-previdencia-
entidades-realizam-protesto-em-brasilia/
18 Pesquisa CNI-IBOPE: Avaliação de Governo. Disponível em: <http://www.portaldaindustria.com.
br/estatisticas/pesquisa-cniI-ibope-avaliacao-do-governo/>. Acesso em: 10 ago. 2018.

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político da gestão19. Após alguns adiamentos de sua apreciação, foi retirada de


pauta pelo governo..

2. A PEC 287/2016: principais elementos


Compreendido o contexto em que a PEC 287 foi proposta, neste tópico, pas-
saremos a apresentar as principais mudanças que ela representa para a o regime
previdenciário e como a previdência no campo poderia ser afetada.

2.1. Comentário sobre as principais mudanças propostas


ao regime previdenciário
O texto original da PEC 287/2016, que, como dissemos anteriormente, tem
raízes firmadas no programa político de austeridade e redução do Estado, vei-
culou uma série de mudanças no regime previdenciário que, se aprovadas, po-
deriam mudar de forma considerável a previdência social no Brasil. As que
têm sido consideradas mais relevantes dizem respeito, principalmente, à idade,
tempo de contribuição a ser exigido e o patamar dos benefícios. A seguir, sinte-
tizamos o conteúdo de alguns dipositivos da proposta.

a. Idade mínima para se aposentar de 65 anos tanto para homens,


quanto para mulheres. É possível, hoje, para as mulheres, aposentar-se
cinco anos antes que os homens, tanto em regime de tempo de contri-
buição, quanto por idade. Para o novo regime – sob a justificativa de que
as mulheres têm uma expectativa de vida maior que a dos homens –, foi
proposta a unificação da idade mínima para a aposentadoria, para ho-
mens e mulheres, aos sessenta e cinco anos. Apesar de no Brasil existir
uma aposentadoria por idade de no mínimo 65 anos para o homem e 60
anos para a mulher, desde que tenham contribuído por pelo menos 15
anos, não se define uma idade mínima para se aposentar.
b. Aumento do tempo mínimo de contribuição de 15 anos para 25 anos.
Valendo-se a regra tanto para os homens, quanto para as mulheres.

19 Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,relator-diz-que-nao-ve-chance-de-votar-


reforma-da-previdencia-por-medidas-infraconstitucionais,70002196992>. Acesso em: 10 ago. 2018.

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c. Benefício integral após 49 anos de contribuição. O texto original


da reforma previa que o aposentado teria direito a 51% do benefício
mais 1 ponto percentual adicionado a cada ano contribuído, atingindo
os 100% do benefício integral da aposentadoria somente após 49 anos
de contribuição.
d. Aposentadoria rural: seguiria as mesmas regras da aposentadoria do/a
trabalhador/a urbano, porém com uma alíquota diferenciada das demais
categorias, com uma contribuição máxima de 5% do salário mínimo.

O tema da reforma previdenciária não se restringe ao Brasil, tendo sido


observado em outros países, geralmente relacionado à questão demográfica,
já que o Brasil vivencia um momento de transição demográfica com o enve-
lhecimento populacional, que tende a crescer, visto que a taxa de natalidade
se reduziu, enquanto que a expectativa de vida aumentou, por consequência
aumentando tanto o número de beneficiários da aposentadoria quanto o de
tempo usufruído dessa aposentadoria.
A taxa de aposentados em constante crescimento em contrapartida ao me-
nor número de trabalhadores contribuintes acaba, em tese20, por gerar um défi-
cit previdenciário, embora algumas correntes econômicas afirmem que a arre-
cadação previdenciária brasileira ainda é superavitária, tornando-se realmente
deficitária daqui a relativamente duas décadas, quando a transição demográfica
vai atingir um número de idosos muito superior ao de massa trabalhadora, sen-
do os mecanismos dessa reforma criticados por serem assimétricos aos processos
vivenciados no Brasil, que é um país em desenvolvimento.
A PEC 287/2016, por outro lado não compreende os militares, que,
proporcionalmente, geram um déficit da previdência maior que a sociedade
civil21. Segundo dados do Tesouro Nacional,22 em 2016 a distribuição de
apenas 370 mil benefícios resultou em 34 bilhões de reais de prejuízo,
equivalendo assim a 45% do déficit do Regime Próprio da Previdência Social
(RPPS). Outra questão interessante ao se analisarem as especificidades

20 Não existe um consenso se há ou não realmente um déficit previdenciário no Brasil. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41811535>. Acesso em: 13 ago. 2018.
21 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/12/politica/1481558564_122517.html>.
Acesso em: 10 ago. 2018.
22 Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/0/Relat%C3%B3rio+da+Pre
vid%C3%AAncia+editado/>. Acesso em: 10 ago. 2018.

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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

do modelo previdenciário militar é a de que, ainda hoje, existem filhas


de militares gozando de pensão por morte de forma vitalícia, sendo esse
direito garantido à prole do militar morto até os 21 anos (24 anos em caso
de ser estudante) para os filhos, sendo que, até o ano de 2000, as filhas de
militares, independentemente do estado civil ou classe econômica, recebiam
o benefício de forma vitalícia – resguardando o direito a esse benefício por
toda a vida àquelas que o receberam anteriormente à Medida Provisória nº
2.131, de 28/12/2000 (ao final MP 2.215). O Ministério da Defesa por meio
do Estudo Atuarial Das Pensões Dos Militares23, revela que o déficit gerado
pelas pensões é de atualmente mais de 8 bilhões de reais. Para além do fato
que os militares contribuem com uma alíquota menor e por menos tempo que
a população civil.
Os benefícios e aposentadorias representam uma poderosa ferramenta de
redistribuição de renda, já que 68% dos benefícios da Previdência Social são
destinados a sujeitos que vivem em municípios de até 50 mil habitantes. Além
de serem de suma importância na movimentação econômica do Brasil, em de-
corrência do fato de que cerca de 71% dos municípios brasileiros terem os va-
lores repassados pelo Fundo de Participação dos Municípios menores que os
valores transferidos pela Previdência Social.
Outro aspecto importante de ser pontuado é o de que, de acordo com o
pensamento de István Mészáros contido em sua obra A Crise Estrutural Do Ca-
pital (apud Alves, 2012), a crise do capitalismo contemporâneo se dá de forma
estrutural e após as globalização do capital – em decorrência do movimento
desse sistema econômico ser concretamente heterogêneo no plano territorial,
podendo ser representado num sistema de bolhas econômicas. Assim, as crises
são empurradas para as regiões marginalizadas economicamente no âmbito glo-
bal, sendo sintomático disso o processo de informalização do trabalho no Brasil,
em uma realidade de 13,7 milhões de desempregados, segundo o IBGE24 (mais
pessoas que a população da Bélgica). Ao revelar que, do total de 91,2 milhões de
brasileiros ocupados, 40,6% ou cerca de 37 milhões de pessoas estão próximas
da informalidade, o IBGE também nos revela que o processo de garroteamento

23 Disponível em: <http://www.planejamento.gov.br/assuntos/orcamento-1/orcamentos-anuais/2018/


pldo-2018/anexo-iv-8-estado-atuarial-da-pensao-dos-militares.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2018.
24 Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/
20995-desemprego-volta-a-crescer-no-primeiro-trimestre-de-2018.html>. Acesso em: 12 ago. 2018.

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de direitos trabalhistas e acesso ao mercado de trabalho são inoportunos ao


arrecadamento previdenciário.

2.2. A aposentadoria rural no regime atual


A previdência social, em seu regime geral, trata de forma diferenciada o
trabalhador que comprovar que exerce atividade rural, de seringueiro, ex-
trativista vegetal ou de pesca artesanal em regime de auxílio familiar e sem
empregados por 15 anos, tendo ele o direito de acessar o benefício no valor de
um salário mínimo se tiver 55 anos, a mulher, ou 60 anos, o homem. A con-
tribuição feita pelo trabalhador rural se dá atualmente pela cobrança de uma
alíquota de 2,3% sobre a produção que for comercializada, sendo estabelecida
em regime econômico familiar.
Apesar da proibição formal do trabalho infantil no Brasil, o trabalhador do
campo, geralmente, inicia-se na labuta desde a infância, ficando assim admitido
pelo STJ que a proibição de trabalhar imposta pelo código brasileiro ao menor
de 14 anos foi pensada em prol de beneficiar o/a adolescente e não de lhe causar
algum prejuízo. Dessa forma o tempo de contribuição do trabalhador rural ou
pescador artesanal se dá a partir dos 12 anos de idade25.

3. A PEC 287/2016 como obstáculo à aposentadoria


das camponesas
Se a Reforma da Previdência se mostra como cerceadora de direitos para a
classe trabalhadora em lato sensu, em stricto sensu, as camponesas nos parecem
as mais prejudicadas pela proposta.
De acordo com Nilde Souza, da Articulação de Mulheres Brasileiras26,
durante participação no Seminário “A Reforma da Previdência e as Mulheres

25 Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&s


equencial=608063&num_registro=200301514186&data=20060424&formato=PDF> Acesso em:
13 ago. 2018.
26 “A AMB é uma organização política feminista, antirracista, não partidária, instituída em 1994 para
coordenar as ações dos movimentos de mulheres brasileiras [...]”. Site oficial da AMB: <http://www.
articulacaodemulheres.org.br/>.

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Trabalhadoras! Mulheres organizadas e em luta!”, acontecido em Brasília no


ano de 2016:

A proposta desse governo golpista é um grande retrocesso para nós


mulheres. Primeiro, porque é uma conquista tão recente que nós temos
de ter acesso às políticas públicas, ter uma Seguridade Social no tripé
Previdência, Assistência e Saúde, e esse governo coloca abaixo essas
conquistas que são constitucionais. Já de cara, é uma afronta e uma
violação aos nossos direitos que tanto lutamos para conquistar. Nós
mulheres vamos ter que trabalhar mais, nós que já temos dupla e até tripla
jornada. Com essa reforma, vamos trabalhar muito mais e as rurais ainda
mais. Tem mulher que nem vai chegar a acessar a aposentadoria porque
não vão chegar à idade mínima para se aposentar. Imagina a situação
dos municípios onde o dinheiro das aposentadorias ajuda a desenvolver
a economia local. É por isso que dizemos NÃO a essa reforma e estamos
conclamando as mulheres, a sociedade como um todo a ir para as ruas
e dizer não, ir para cima dos deputados e senadores que querem mais
uma vez impor a vontade deles, sem ouvir a maioria que somos nós, a
população. Se é preciso fazer alguma reforma, que seja para aperfeiçoar.
Quer sair da crise? Parem de pagar juros altíssimos da dívida, taxem as
grandes fortunas, cortem alguns privilégios dos poderes e ajudar a entrar
mais verbas para a saúde, para a educação, para a reforma agrária, para
as mulheres rurais, é disso que estamos precisando.

A proposta original da PEC 287/2016 eleva a idade mínima para a aposen-


tadoria rural das mulheres em 10 anos, de 55 anos a 65 anos, igualada à dos
homens, desconsiderando os aspectos das diferenças sociais e de gênero que
justificam a diferenciação da idade mínima exigida.
Sob o sistema previdenciário vigente, a contribuição é feita a partir de uma
alíquota de 2,3% do valor comercializado pelo produtor rural, de forma que,
comprovados os 15 anos de trabalho rural em regime econômico familiar, não
se faz necessária a contribuição individual. Com as alterações previstas pela
reforma da previdência, será necessário comprovar 300 contribuições mensais,
ou 25 anos, de forma que agora as contribuições não mais serão admitidas em
regime de economia familiar, impondo que, mesmo que haja a contribuição
igualitária entre os membros do grupo familiar durante o tempo comprovado de
trabalho rural exercido, cada membro contribua individualmente com o INSS
na alíquota de valor de 5% do salário mínimo.

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Ignora-se assim, por completo, o fato de que, na produção rural, a/o traba-
lhadora/trabalhador esteja à mercê das condições naturais necessárias à safra,
principal fonte de renda, o que dificulta o pagamento de uma taxa fixa e mensal
que, levando em conta o salário mínimo atual, exigiria de um casal a contribui-
ção no valor de aproximadamente R$ 100,00 (cem reais) mensais. Dada a reali-
dade de grande parte das localidades camponesas, o regime que a PEC 287 visa
a implementar parece ser agravante da situação social de muitas famílias. Mui-
tas vezes, o trabalho na agricultura familiar se caracteriza pela subsistência ou
pelo consumo em detrimento da venda dos produtos de seu trabalho. Em uma
situação em que seja possível realizar o pagamento da contribuição de apenas
um integrante da família, é improvável, diante das relações patriarcais ainda
existentes na sociedade brasileira, que a contribuição da mulher seja priorizada.
Caracterizado pela sazonalidade, o trabalho no campo pode se dar de forma
rotativa, como por exemplo o trabalho das/dos bóias-frias, o que dificultaria,
ainda mais, o pagamento da contribuição estabelecida de forma fixa e mensal e
a soma dos 25 anos de contribuição exigidos pela reforma.
Apesar dos dados do IBGE apontarem para o envelhecimento populacio-
nal e o aumento na expectativa de vida da população, o que efetivamente
demandará mudanças no sistema previdenciário, é imprescindível atentar
que o processo de aumento da expectativa de vida não se dá de forma ho-
mogênea no território brasileiro.
O trabalho no campo se dá de forma extenuante e penosa, onde se trabalha
em condições difíceis e ao rigor das intempéries naturais, tais quais a chuva, o
sol e as safras exaustivas de plantação e/ou colheita, já que o tempo trabalhado
no âmbito rural não é regulado, podendo a/o produtora/produtor trabalhar do
nascer ao pôr do sol, e, após isso, prosseguir realizando um trabalho de guarda
e vigia das suas plantações ou animais. Estas condições fazem com que, em mé-
dia, as mulheres do campo vivam seis anos a menos que as mulheres da cidade
e cinco anos a menos que o homem urbano e o próprio homem rural.
Também é fato que, apesar do aumento da expectativa de vida no Brasil,
os processos vivenciados pela população rural ocasionam um envelhecimento
precoce que pode ser observado nos dados da Pesquisa Nacional de Saúde
(IBGE, 2013), onde a maior parte da população com doenças crônicas de
coluna se encontra nas regiões rurais e, nos espaços rurais, são as mulheres as
que mais sofrem dessa mazela.

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Levando em consideração que as condições do trabalho rural são, em geral,


mais duras e desgastantes e que, segundo estudos do IPEA do ano de 2014, 70%
das mulheres e 78% dos homens do campo começaram a trabalhar antes dos 14
anos de idade e de que, sob o atual regime da previdência, a idade mínima para
a aposentadoria de mulheres rurais é de 55 anos e a de homens é de 60 anos,
são mais de 40 anos trabalhados em condições ímpares para que, durante a fase
final da vida, se ganhe um salário mínimo. Sob o regime proposto pelo texto
original da PEC 287/2016 seria preciso, em média, que as camponesas traba-
lhassem nas condições acima citadas por 55 anos, com 25 anos de contribuição
individual comprovados, para poderem se aposentar.
Considere-se também a questão cultural atrelada ao gênero, onde as mulheres
vivenciam jornadas extensivas de trabalho, chegando a camponesa a realizar o tra-
balho na lavoura, no cuidado doméstico, no trato das crianças e/ou idosas/idosos
do núcleo familiar e nos quintais produtivos, cuidando das hortas e dos animais.
Realidade que agrava o processo de envelhecimento precoce das camponesas.
De acordo com a ex-deputada Luci Choinacki (PT-SC), as justificativas para a
reforma foram as mesmas utilizadas 30 anos atrás, quando se discutia, na Cons-
tituinte o reconhecimento das mulheres do campo como trabalhadoras.

Continua o discurso daqueles que não querem o direito das trabalhadoras,


que alegam que dá muito gasto, que elas não trabalham, não produzem,
não contribuem. Não fazem a conta de quantas horas a mulher trabalha
na roça, que lá não tem coleta de lixo. A mulher que não tem creche
para as crianças, que precisa trabalhar e cuidar dos filhos e netos, faz
mil e uma coisas, dá uma contribuição enorme pro estado e, ainda por
cima, produz os alimentos. Como questionar que as mulheres não estão
produzindo? (CATARINAS, 2017).

Em uma sociedade de severas relações patriarcais, nas quais geralmente é o


homem o detentor do dinheiro e da renda, a aposentadoria é, por muitas vezes,
a primeira situação em que a trabalhadora do campo tem uma renda que pode
ser administrada por si, a primeira oportunidade de autonomia financeira da
vida. Esta autonomia é frequentemente o gatilho para o término de algumas
relações abusivas ou violentas vivenciadas, a ampliação da idade e a imposição
de uma contribuição individual é condenar algumas mulheres a não consegui-
rem ter acesso a esse tipo de autonomia. Por consequência disso o proposto pela
reforma acaba por manter o status quo e o ciclo de abuso contra a mulher.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A aprovação de projetos legislativos que ignorem os processos culturais e


econômicos vividos pelas mulheres camponesas as entrega à míngua e, con-
sequentemente, à completa dependência da assistência social. Esses impactos
revelam a PEC 287/2016 como um processo de desmonte da seguridade social e
dos direitos sociais que garantam o envelhecimento digno da população, princi-
palmente da população rural feminina, a mais prejudicada pelo projeto.

Conclusão
Durante a pesquisa foi possível se fazer um apanhado sobre os acontecimen-
tos em âmbito nacional que levaram a PEC 287/2016 a ser proposta.
Os grupos interessados na aprovação da Reforma da Previdência continuam
politicamente relevantes e bem representados, independentemente do resultado
dos processos eleitorais em vigência. Convivemos com a composição mais con-
servadora e ligada às pautas religiosas desde a instauração da ditadura militar
em 1964, o que pode ser percebido durante a bizarra sessão da Câmara Federal
na qual processo de impeachment foi aberto, ou no apoio que o governo Temer
encontrou ao propor a PEC do Congelamento dos Gastos e a Reforma Traba-
lhista, esta que resultou no desmonte da CLT.
As possibilidades da PEC 287/2016 retornar travestida de norma infracons-
titucional ou de ser votada às pressas durante algum momento de pirotecnia
midiática em cima de algum outro tema são reais, dado que situações como
essa têm se tornado cotidianas ao povo brasileiro, aparentemente afetado pelo
desmonte organizacional da massa trabalhadora, que encontra dificuldades her-
cúleas em participar diretamente do processo democrático, como foi observado
por Marx e Engels no Manifesto Comunista em 1848 quando, como resposta ao
questionamento sobre quais os recursos utilizados pela burguesia para vencer
suas crises, responderam que as principais estratégias eram, por um lado, re-
forçar a destruição da massa de forças produtivas, e pelo outro lado, conquistar
novos mercados e explorar mais ainda os antigos.
É importante que se dê especial atenção às mulheres campesinas, por estas
vivenciarem duas vezes a marginalização, primeiramente por serem mulheres
em uma sociedade estruturalmente misógina, e novamente por viverem no
campo em um sistema que construiu uma visão dualista, onde a cidade se com-
porta como o pólo político-econômico-cultural enquanto que à população do

542
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

campo esses direitos são negados, por vezes o direito à própria terra para produ-
zir. Fica, após a pesquisa, o desejo de aprofundar os estudos nas questões de âm-
bito global e macroeconômicas, para que nos seja possível relacionar questões
de política interna aos processos ou aos interesses vivenciados geopoliticamente
em outros territórios, mas que afetam o Brasil e seu povo.

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548
A relação entre o direito à educação na
forma jurídica e sua contradição com a
efetiva realização deste direito: o caso da
contrarreforma do Ensino Médio

Tibério Bezerras de Brito Baima - UFPB


José Eudes Baima Bezerra – MAIE/UECE

Introdução: delimitação teórica


O objetivo geral do trabalho é analisar a relação entre o direito à educação
na forma jurídica e sua contradição com a efetiva realização deste direito. Nesse
sentido, objetivamos especificamente: a) discutir a categoria direito na pers-
pectiva marxista; b) examinar o direito à educação no texto constitucional; c)
perceber como se opera a negação do direito à educação no caso da contrarre-
forma do Ensino Médio.
Para tratar do assunto, deve-se atentar para a concepção de direito à edu-
cação, e para a categoria direito, em geral, que utilizamos no presente trabalho.
Para isso é necessário que se volte a uma análise marxista da forma jurídica e
da sua expressão na sociedade capitalista.
Para Marx, a chave da estrutura jurídica e política da sociedade está no des-
velamento da estrutura da própria produção da existência social. No Prefácio à
Contribuição para a Crítica da Economia Política esta concepção da história e da
sociedade é sintetizada:

Na produção social da sua existência, os homens entram em relações


determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado
das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção

549
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre


a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas de consciência social determinadas. O modo
de produção da vida material condiciona em geral o processo da vida
social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser; é inversamente o seu ser social que determina a sua
consciência. Num certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de
produção existentes, ou, o que é apenas a sua expressão jurídica, com as
relações de propriedade no seio das quais até então tinham se movido.
De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas
relações transformam-se em entraves. Abre-se então uma época de
revolução social. A mudança na base econômica altera mais ou menos
rapidamente toda a enorme superestrutura. Quando se consideram
tais alterações, é preciso sempre distinguir entre a alteração material que
podemos verificar de um modo cientificamente rigoroso das condições
de produção econômicas e as formas jurídicas, políticas, religiosas,
artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais
os homens tomam consciência deste conflito e o levam ao seu termo
(MARX, 1983, p. 24-25, grifos nossos).

A citação ficou longa, mas é útil pelo seu caráter de síntese da perspec-
tiva de Marx na compreensão dos mecanismos básicos da vida social e do
lugar que atribui na concretude, isto é, na totalidade, ao momento jurídico-
-estatal. A rigor, ainda neste Prefácio, Marx recorda de que se defrontou
com a adequação da forma jurídica à base econômica no famoso episódio
do roubo de lenha, na Renânia, registrado numa polêmica nas páginas da
Gazeta Renana, ao perceber que um costume de origem imemorial, a livre
exploração dos bosques foi, no curso da instauração do sistema capitalista
da propriedade privada na Alemanha, objeto de regulação legal, adaptada
às novas condições de apropriação.
Marx registra a guinada do seu pensamento do enfoque jurídico para os
estudos de economia política, como um sinal da virada de sua consciência no
que diz respeito à concepção de sociedade:

Os meus estudos profissionais eram os de jurisprudência, com que,


todavia, só me preocupei como disciplina secundária, ao lado da filosofia
e da história. Em 1842-43, sendo redator da Gazeta Renana, vi-me pela

550
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

primeira vez no difícil transe de ter que opinar sobre os chamados


interesses materiais (Idem, p.23).

Desta forma,

A minha investigação desembocava no resultado de que tanto as


relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral
do espírito humano, mas se baseiam, pelo contrário, nas condições
materiais de vida cujo conjunto Hegel resume, seguindo o precedente
dos ingleses e franceses do século XVIII, sob o nome de "sociedade
civil", e que a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na
economia política (Idem, p. 24, grifos nossos).

Assim, nesta concepção histórica materialista, o bastidor econômico estabe-


lece os marcos da forma jurídica da vida social, o Estado, as instituições, além
da filosofia do direito que os sanciona, mas, ao mesmo tempo, mantém com
estas formas ideológicas, formais uma relação de interação. Marx atribui, na
dialética dinâmica do concreto, inclusive uma certa autonomia à forma jurídi-
ca, que se move e se preserva, por certo tempo, apesar das alterações operadas
na base econômica. O essencial, contudo, é que, Marx indica como pólo funda-
mental da relação entre estrutura e superestrutura, a primeira.
É desta concepção que derivam as posições de Pachukanis sobre a forma
jurídica. O direito representaria a relação social entre sujeitos jurídicos, porta-
dores de direitos. Ou seja, a forma jurídica seria aquela regulamentadora, intrin-
secamente ligada à relação entre os sujeitos possuidores de mercadorias, mesmo
que o valor de troca desses sujeitos seja a sua própria força de trabalho, isto é, a
relação capitalista de produção. (PACHUKANIS, 2017, p. 118).
A partir disso, infere-se que a forma jurídica atinge a sua forma plena na
sociedade de classes, por ser justamente esta que pressupõe o valor dos produtos
de trabalho na efetivação das relações sociais. Logo, o direito tem a sua gênese
no âmbito privado, sendo reiterado por certos instrumentos que o complemen-
tam dentro da sua esfera de atuação, assumindo a forma contratual na relação
de troca e reforçado pelo meio jurisprudencial na incidência sobre o real. Pa-
chukanis diz “eu não apenas apontei que a gênese da forma jurídica deve ser
procurada nas relações de troca, mas também que o momento que, segundo

551
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

meu ponto de vista, representa a mais completa realização da forma jurídica, a


saber, o tribunal e o processo judicial” (Idem, p. 104).
O direito, portanto, encontraria a sua equivalência estrutural na forma
mercantil de circulação de mercadorias, determinada pela esfera de produção
capitalista. Desse modo, a existência da forma jurídica analisada por Pachuka-
nis, a partir da compreensão metodológica marxista (materialismo dialético),
implica dizer que tal forma está intrinsecamente ligada ao modo de produção
que tem como núcleo o capital. E com isso, um método revolucionário que
almeje a extinção desse modelo de sociabilidade levaria, consequentemente,
a aniquilação das formas estruturantes que só fazem sentido em seu interior,
como a forma jurídica, impossibilitando assim a existência de um socialismo
jurídico, no sentido dado a esse termo por Engels e Kautsky, ou pautado nas
formas de regulação social burguesa.

De fato, se Pachukanis admitisse a possibilidade de um direito


“socialista”, toda a sua construção teórica estaria comprometida. Se
o socialismo implica a gradativa superação das formas mercantis,
um direito que se qualificasse como “socialista” seria tanto uma
impossibilidade teórica como um objeto a ser combatido politicamente.
Se o socialismo implica a gradativa reapropriação pelas massas das
condições materiais da produção, com a superação da separação entre
os meios de produção e a classe operária e a extinção das formas
mercantis, isso significa que o fundamento último da existência do
direito só pode aparecer como um obstáculo ao socialismo – mesmo
que o direito possa, durante certo tempo, cumprir determinado papel
“revolucionário”. (NAVES, 2008, p. 87)

Em uma sociedade em que a troca de mercadorias assume um ponto central,


o sujeito de direito se consagra como a principal categoria do próprio direito.
A elevação do indivíduo para a categoria supracitada significa por sua vez a
necessidade do estabelecimento de um equivalente geral entre os sujeitos na
relação de troca, entre os trocadores de mercadoria. Dessa forma, os indivíduos
se equivalem formalmente perante o direito a partir de ideais garantidos pela
norma jurídica e pelo Estado, como a liberdade e a igualdade.

A emergência da categoria de sujeito de direito vai possibilitar , então,


que o homem circule no mercado como mercadoria, ou melhor, como
proprietário que oferece a si mesmo no mercado. (...) O direito faz

552
funcionar, assim, as categorias da liberdade e da igualdade, já que o homem
não poderia dispor de si se não fosse livre - a liberdade é a disposição de
si como mercadoria - nem poderia celebrar um contrato - esse acordo de
vontades - com outro homem se ambos não estivessem em uma condição
de equivalência formal. (NAVES, 2012, p. 12-13)

Entretanto, essas mesmas necessidades do capital se expressam na sociedade de


classes a partir das contradições que lhe são intrínsecas. Isso é demonstrado pela
própria Constituição quando é explicitado o papel do âmbito privado na efetivação
do direito à educação. É nesse ponto que se insere a análise sobre o direito à educa-
ção no Brasil. A Constituição Federal garante nos princípios destacados pelo artigo
206 de que o ensino será ministrado com base na igualdade nas condições de acesso
e permanência, e liberdade nos meios que compõe esse ensino. Sendo observado
neste ponto a equivalência formal expressa como condutora do estado democrático,
correspondendo aos valores burgueses de preservação do status quo. O Estado assu-
me, portanto, o seu papel fundamental perante as necessidades do capital.
Com base nesta visão, realizamos um estudo de caráter bibliográfico e do-
cumental, amparados na leitura da Constituição Federal, da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação, bem como em documento do Banco Mundial (1987); para
a abordagem do problema em si, recorremos a autores como Pachukanis (2017),
Fiori (1997), Krawczyk (2002), entre outros.

1. Desenvolvimento e resultados iniciais do estudo


Diz o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 (CF-1988): "A educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".
Esta própria formulação já relativiza o direito, na medida em que o próprio
dever do Estado é relativizado. Veja-se que, ao afirmar que a educação é dever
do Estado, logo se acrescenta que, num mesmo patamar, é dever da família,
ente privado. É da coisa pública que um texto constitucional deve tratar. Assim,
ao invocar o dever da família, a própria CF/1988 reduz as tarefas estatais dela
decorrentes. Mas o texto da CF/1988 vai além: estabelece que tal dever será
fomentado pela sociedade, abrindo espaço para a desobrigação do ente estatal.
Em que contexto a Carta Magna tomou tal definição? A política de redu-
ção do Estado e de suas responsabilidades sociais (não de sua face coercitiva,
atente-se) consagrou a tese de que a crise mundial, a partir de 1973, foi obra dos
compromissos fiscais do welfare state, condensada na crença de que a solução
da crise do capital pudesse resultar da desregulação do mercado de trabalho, re-
dução de salários e direitos trabalhistas e desconstrução dos serviços de Estado
(FIORI, 1997). A partir daí a ideia de direito, inclusive de direito à educação
passou a ser mediada por uma lógica empresarial e de mercado, do público não
estatal, do quase Mercado, da terceira via, das organizações sociais.
No marco desta situação geral, se formulou o capítulo dos direitos sociais e
da educação na CF/1988. O texto constitucional serviu, neste sentido, de bas-
tidor jurídico para as reformas na administração pública e na educação que se
seguiriam na década de 1990 e nas seguintes. No campo do direito à educação,
este novo arcabouço estatal adotado, em consonância com as diretrizes do Ban-
co Mundial (1987), se orientava para a descentralização da gestão, que visava a
empurrar a gestão pública para o campo da sociedade civil, isto é, do mercado
(ALBUQUERQUE, 2005).
Nas reformas do campo educacional os conceitos de descentralização e ges-
tão aparecem, então, como paradigmas centrais. Krawczyk (2002) observa que
a descentralização aparece em três dimensões que se complementam, “[...] ge-
rando uma nova lógica de governabilidade da educação pública: 1) descentra-
lização entre diferentes instâncias de governo – municipalização; 2) descentra-
lização para a escola – autonomia escolar; 3) descentralização para o mercado
– responsabilidade social” (Idem, 2002, p.63).
Este processo de descentralização/desresponsabilização, que põe em xe-
que a noção da educação como direito se desdobrou através de distintos go-
vernos, embora em intensidades diferentes. Se no período FHC (1995-2002)
ele esteve diretamente identificado com o contingenciamento das verbas,
no período Lula-Dilma (2003-2015), ainda que num cenário de aumento
das verbas e de certo ressurgimento da responsabilidade estatal, a lógica
descentralizadora se manteve.
No período do golpe de Estado desferido em 2016, um conjunto de políticas
coerentes com tal lógica, represadas ou atenuadas nos anos Lula-Dilma toma-
ram forma. É nesse contexto que se insere a contrarreforma do Ensino Médio
de que ora tratamos.

554
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

2. O que é a contrarreforma do Ensino Médio?


No imediato seguimento do golpe do impeachment, Temer lançou a MP 746,
da contrarreforma do Ensino Médio “às pressas”. Temer mesmo esclareceu que
a urgência da questão do Ensino Médio era uma exigência dos promotores do
golpe, em particular das organizações interessadas nas alterações deste nível de
ensino, como as fundações mantidas por bancos e outras empresas. De fato,
pressões nesse sentido já vinham desde o período pré-golpe, com o PL 6.840,
que acabou atropelado pela MP 746.
A MP 746 trazia um conjunto de modificações profundas no atual Ensi-
no Médio, todas no sentido do esvaziamento curricular, da profissionalização
aligeirada e precoce, da “abertura” para o setor privado e da precarização do
trabalho docente, atacando inclusive o instituto do concurso público.
Esgotado o prazo de vigência da MP 746, a mesma foi votada e convertida na
Lei nº 13.415/2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nal no sentido de estabelecer uma mudança na própria estrutura deste nível de
ensino, ampliando o tempo mínimo do estudante na escola de 800 horas para
1.400 horas anuais (até 2022) e definindo uma nova organização curricular,
mais flexível, isto é, esvaziada de conteúdos e voltada para o aligeiramento da
formação, agora formalizada pela adoção no Conselho Nacional de Educação
da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio.
A alteração se caracteriza pelo confisco do acesso dos jovens ao conjunto
dos conteúdos correspondentes à formação média, substituído pela “oferta de
diferentes possibilidades de escolhas aos estudantes, os itinerários formativos,
com foco nas áreas de conhecimento e na formação técnica e profissional”
(MEC, 2018). A mudança tem como objetivo o rebaixamento do nível de for-
mação e, no contexto da contrarreforma trabalhista, agilizar a oferta de mão de
obra de baixo custo e formação rápida para um mercado de trabalho degradado
e precarizado, mas apresentado no portal do MEC como forma de “garantir a
oferta de educação de qualidade à todos os jovens brasileiros e de aproximar as
escolas à realidade dos estudantes de hoje, considerando as novas demandas e
complexidades do mundo do trabalho e da vida em sociedade” (Idem).
A cereja do bolo é o aumento da carga-horária, de 800 h/aula para 1400 h/
aula, apresentada como um reclamo da sociedade. Na verdade, um tal aumento
tem a função de integrar um contraturno profissionalizante à guisa de uma falsa
educação integral. Um aspecto que pouco se tem falado desta medida é que ela

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

expulsará milhares de alunos da escola, tendo em vista que o Ensino Médio


noturno será na prática extinto, uma vez que aulas somente no turno da noite
não comportarão as 1400 h/aula, e que o jovem trabalhador, em regra, conta
apenas com o turno noturno para frequentar a escola.
No que respeita ao currículo, a Lei 13.415/2017 afirma a seguinte organização:

Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional
Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organi-
zados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a
relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino,
a saber:
I - linguagens e suas tecnologias;
II - matemática e suas tecnologias;
III - ciências da natureza e suas tecnologias;
IV - ciências humanas e sociais aplicadas;
V - formação técnica e profissional. (BRASIL, 2017)

Note-se a explícita quebra do currículo. Os 5 possíveis itinerários formati-


vos serão “organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares,
conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de
ensino”. Uma relativização completa, que nada assegura e legaliza a negação
do ensino de áreas inteiras do conhecimento, sob o pretexto da adequação ao
“contexto local” e à “possibilidade do sistema de ensino”.
Como se vê, ao contrário de educação integral, a contrarreforma amputa o
currículo do Ensino Médio. Primeiro porque prevê a partição do currículo em
2 etapas. Uma primeira se constituiria de um “resumão” onde as áreas tradicio-
nais do conhecimento seriam diluídas em 5 grandes áreas, aquelas em que se
divide a prova do ENEM mais o profissionalizante. As áreas do conhecimento
(disciplinas) passariam a constar, nesta primeira fase, de um “resumão” de ciên-
cias, humanidades, etc. Uma segunda etapa, de mesma duração, seria dedicada
aos “itinerários formativos específicos”, com as distintas redes de ensino optan-
do por uma ou mais das cinco grandes áreas previstas. Importante: estas duas
etapas terão suas próprias terminalidades, ao fim da qual se terá um diploma
parcial (correspondente a 1 ano e meio) ou pleno (3 anos).
Ramos e Heinsfeld (2017), acerca desta passagem da Lei observam que:

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

À primeira vista, têm-se a impressão de que, dados os itinerários e o foco em


uma formação integral, as possibilidades e caminhos foram ampliados, ha-
vendo a abrangência proposta inicialmente pela LDB, favorecendo também
a autonomia do aluno em sua formação. Contudo, essa percepção de valo-
rização integral se corrompe ao observarmos o §8º do Art. 35-A da Lei nº
13.415/2017, no qual discrimina-se quais as expectativas que o aluno do ensino
médio deve cumprir para que seja considerado “integralmente formado”:
§ 8º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação processual e for-
mativa serão organizados nas redes de ensino por meio de atividades teóricas
e práticas, provas orais e escritas, seminários, projetos e atividades on-line, de
tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre:
I – domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a pro-
dução moderna;
II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem. (BRA-
SIL, 2017).

Revela-se pela simples leitura do texto da Lei, como observam as autoras


que a perspectiva formativa se radicaliza no foco instrumental e pragmático da
formação, além do aligeiramento previsto na concessão de certificados interme-
diários de qualificação para o trabalho, como se nota abaixo:

Art. 36 § 6º A critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação com


ênfase técnica e profissional considerará:
I – a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em am-
bientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável,
de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional;
II – a possibilidade de concessão de certificados intermediários de quali-
ficação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada
em etapas com terminalidade. (BRASIL, 2017)

Também aí, temos duas armadilhas: a primeira é, apesar do aumento da car-


ga-horária, um esvaziamento do currículo, seja pelo fato de que o conjunto das
disciplinas só serão ofertadas na primeira etapa, sendo que na segunda a rede
só tem obrigação de se dedicar a um “itinerário formativo específico” (embora a
rede possa optar por seguir mais de um itinerário), seja porque, mesmo assim, o
aluno só terá acesso a estas disciplinas sob a forma do resumão de exatas ou de
humanas. A segunda, que está associada à adoção do contraturno profissiona-
lizante, é a certificação já na primeira etapa, cujo objetivo indisfarçável é o de

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

expelir o aluno no primeiro ano e meio, com noções rudimentares das ciências e
com um curso profissionalizante precário. Um retrocesso que remete à Lei 5.692
da Ditadura que reconhecia uma “terminalidade legal” ao lado de uma “ter-
minalidade real”, para justificar a exclusão precoce dos jovens da vida escolar.

3. Escolha do estudante ou negação do ensino?


Ao lado disso, a Lei nº 13.415/2017 modifica a LDB quanto às disciplinas
obrigatórias, ao determinar que as disciplinas de filosofia, sociologia, artes
e educação física, embora contempladas no novo texto legal, deixam de ser
obrigatórias, com as duas últimas mantendo obrigatoriedade apenas no Ensi-
no Fundamental. Tais disciplinas se reduzem, conforme o § 7º do Art. 26, à
seguinte redação: “a integralização curricular [das disciplinas referidas] pode-
rá incluir, a critério dos sistemas de ensino, projetos e pesquisas envolvendo
os temas transversais de que trata o caput” (BRASIL, 2017). Neste sentido,
em referência a tais matérias, a Lei deixa de falar em “ensino”, adotando a
terminologia “estudos” e “práticas”.
Finalmente, depois de idas e vindas em função da resistência social, recen-
temente, o Conselho Nacional de Educação consagrou a nova base curricular
que manteve como áreas obrigatórias para o Ensino Médio apenas Matemática
e Linguagens e Códigos.
A celebrada ampliação de carga-horária com a inclusão do profissional traz,
por sua vez, embutida a privatização e a desresponsabilização do Estado, visto
que sua carga-horária poderá ser cumprida por meio de “experiência prática no
setor produtivo, estabelecendo parcerias”. Trata-se antes de mais nada de suprir
as empresas de jovens trabalhadores precarizados.
Tal “ampliação da carga-horária” se mostra ainda mais ilusória quando
a MP estabelece que ela poderá ser completada com um conjunto de ati-
vidades exercidas pelos alunos, anterior ou concomitantemente ao Ensino
Médio, de modo que a sua integralização se baseará num sistema de “cré-
ditos ou disciplinas com terminalidade específica”, também sujeitas a esta
certificação precária citada acima.
A introdução da parte profissional no currículo, também trazida da Lei
5.692/1971, da Ditadura, introduz a figura do professor contratado sem con-
curso público, ao bel prazer da rede de ensino, lançando mão do inexplicável

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

critério do “notório saber”. Note-se que este sistema já está em uso em estados
como o Ceará que têm escolas de ensino médio profissionalizantes.

4. Ataque às licenciaturas
A Lei nº 13.415/2017 ataca o sistema educacional como um todo, num efeito
dominó. A reorganização das disciplinas em grandes áreas, no médio prazo,
tornará os atuais cursos de licenciatura obsoletos, obrigando-os a se reduzirem
a cursos da “grande área de exatas” e da “grande área de humanas”, outra re-
miniscência da Ditadura que instituiu à sua época os cursos de licenciatura em
Ciências e em Estudos Sociais. Se a MP vingar, a demanda pelas atuais licen-
ciaturas desaparecerá, levando a sua substituição pelo novo modelo ou mesmo
a fechar, já que o número de professores necessários ao cumprimento do novo
currículo se reduzirá brutalmente. Desde logo, as licenciaturas em Sociologia,
Filosofia, Artes e Educação Física, se prevalece a MP, deverão fechar as portas
por absoluta falta de demanda.
No que diz respeito às formas de adoção da nova prescrição legal, como
observou o professor Gaudêncio Frigotto, a Lei nº 13.415/2017 é flexível o sufi-
ciente para obrigar as redes públicas a desidratar seus currículos, mas ao mesmo
tempo, permitir que a escola privada mantenha currículos plenos, tornando
legal o que no Brasil sempre foi real, a existência de uma escola para os ricos e
outra para os pobres.

Considerações finais
O presente trabalho tem por finalidade discutir como a forma jurídica opera
na sociedade de classes, permeando e regulando os diversos institutos agregados
a esta. Isso inclui o debate sobre o âmbito educacional, a necessidade da defe-
sa desses direitos garantistas e a negligência evidenciada pelo Direito burguês
quanto a esses setores.
A categoria jurídica, enquanto instrumento próprio das classes dominantes,
se demonstra como um meio volátil de controle social, adaptando-se de acordo
com as necessidades econômicas conjunturais. No presente caso da reforma
do ensino médio, viabilizada pela mudança da Lei de Diretrizes e Bases da

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Educação Nacional, se expressa a perda de direitos, entendido aqui como


garantias essenciais para a formação humana.
Essa análise é evidenciada pelas alterações legais que tal contrarreforma
põe em evidência. A possibilidade do recebimento de um diploma parcial
de conclusão do ensino médio revela a privação do acesso da juventude aos
conteúdos considerados imprescindíveis para a formação média, estando vin-
culada ainda com a aligeirada preparação dessa categoria para o mercado de
trabalho, oferecendo uma mão de obra desqualificada e a baixo custo para o
mercado. Além disso, o novo texto da lei traz a ampliação da carga horária
curricular, apresentada como um ganho educacional para a sociedade, que,
conforme uma leitura circunstanciada do novo texto normativo, ao contrário,
favorece à precarização do ensino com vistas a um mercado de trabalho igual-
mente precarizado, se notarmos que essas horas curriculares podem ser pagas
por meio de experiências práticas no próprio meio mercantil, favorecendo as
forças econômicas dominantes.
E, por fim, disciplinas consideradas menos importantes para esses setores,
como filosofia, sociologia, artes e educação física, passam a ser não-obrigatórias
na base curricular do Ensino Médio, acarretando a extinção da oferta dessas
áreas, principalmente no setor público, pela falta de verbas governamentais, e,
consequentemente, tendo efeito nas licenciaturas preparatórias para o ensino
destas, pela obsolescência da demanda necessária.
A análise crítica do texto legal surge aqui como uma necessidade sine qua
non do combate pelos direitos sociais, desvendando os mecanismos sorrateiros
que, como é próprio ao seu caráter funcional e secundário em relação à base
produtiva capitalista, acaba sendo instrumento da negação das demandas das
massas trabalhadoras.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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561
As condições de labor das trabalhadoras
de cana em Japoatã – SE

Shirley Silveira Andrade1


Nataly Mendonça2

Introdução
Este trabalho surgiu de um projeto de pesquisa que vem sendo desenvolvido
no programa de Iniciação Científica da Universidade Federal de Sergipe(PIBIC/
UFS). Desde 2015, formamos o Grupo de estudos sobre Trabalho Escravo Con-
temporâneo (GETEC) com o objetivo de compreender a ausência de registro
de trabalho escravo no estado de Sergipe nos dados do Ministério do Trabalho
(MT). O que nos chamou atenção é que Sergipe já tem condenação por Tra-
balho Escravo Contemporâneo (TEC) na justiça do trabalho, mas ele ainda
consta como o único estado brasileiro onde não há registro oficial no MT. O
que dificulta a implementação de políticas públicas nessa seara.
Diante disso, estamos desenvolvendo pesquisa para verificar essa questão,
como a primeira condenação foi na produção de cana-de-açúcar, iniciamos a
investigação por esse cultivo. Depois de investigarmos a atuação dos órgãos de
combate para entender seu funcionamento, passamos a pesquisar a condição de
trabalho dos trabalhadores de cana em seu local de trabalho. Os dados apresen-
tados nesse artigo se referem a uma pequena parte da investigação. Colhemos
informações nos municípios de Japoatã, Japaratuba, Laranjeiras e Capela, por
essas cidades serem sedes ou próximas a usinas de açúcar que existem no estado.
Os dados das outras cidades ainda estão em análise. O peculiar nessa pesquisa

1 Professora do Departamento de Direito da UFS, coordenadora do GETEC, doutora em Educação


pela Unb.
2 Discente do curso de direito da UFS e membro do GETEC.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

foi encontrarmos um grupo de mulheres trabalhadoras da cana nesta cidade.


Por isso, o estudo central desse artigo é refletir sobre as condições de labor des-
sas trabalhadoras em Japoatã, com o objetivo central de analisar a presença de
TEC em seu meio de trabalho.
Pela problemática apresentada, fez-se necessária a utilização de duas técni-
cas de pesquisa, cujos dados foram analisados através do materialismo históri-
co e dialético: a observação participante e entrevistas semiestruturadas. Seis
mulheres foram entrevistadas no assentamento onde vivem em Japoatã. Aqui
analisaremos a realidade dessas mulheres, o que nos intrigou porque o trabalho
no corte de cana é predominantemente masculino.
O artigo está dividido em três partes, uma análise da categoria trabalho se-
gundo ditames marxistas, o conceito legal de Trabalho Escravo contemporâneo
e a análise dos dados.

1. Trabalho: ontologia do ser social


Marx (1987, p. 50) defende que o trabalho, como se encontra na sociedade
burguesa, é apenas uma aparência. Para entendê-lo, no campo da essência, é
preciso compreender seu duplo caráter: o trabalho abstrato, que é dispêndio
de energia; e o trabalho concreto, produtor de valores de uso. Essa divisão nos
ajuda a compreender a relação que temos com o trabalho porque isso depende
de como a produção está organizada na sociedade.
Ele chega a essas conclusões quando analisa a mercadoria. Um primeiro
ponto é que ela é um objeto externo que satisfaz necessidades humanas.
Para se entender, portanto, o duplo caráter do trabalho, é preciso entender o
que há na mercadoria. Ela contém tanto valor de uso quanto valor de troca.
Marx (1987, p. 42) se utiliza da citação de John Locke para esclarecer que
o valor de uso é o valor natural, é a capacidade de cada coisa em prover a
necessidade ou servir de comodidade à vida humana. O valor de uso é uma
qualidade intrínseca às coisas.
O que duas mercadorias têm em comum, retirando que são valores de uso,
é que elas são produtos do trabalho e, portanto, resultado do dispêndio de
força física do trabalhador. Para a produção da mercadoria, houve um tempo
gasto, e é esse tempo que vai estabelecer o valor de troca. Esta é a relação
quantitativa entre valores de uso de espécies diferentes. Põe-se, de lado, a

564
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

utilidade das mercadorias em função do tempo de trabalho necessário para


produzi-las. O foco de análise passa a ser o dispêndio da força física pelo tra-
balhador para a sua produção.
Por meio da mercadoria, o trabalho concreto passa a ser abstrato. Isso traz
a ideia de que a utilidade de um trabalho não é criar o valor-de-uso, mas um
objeto que tenha valor de troca. Marx (1987) demonstra que o trabalho tem um
duplo caráter à medida que é produtor de valor de uso e de valor de troca. O
trabalho como valor de uso é defendido pelo autor como essencial à existência
humana, é a necessidade de efetivar a relação entre ser humano e natureza
(MARX, 1987). Nesse aspecto, o trabalho é o elemento fundante do ser social.

1.1. Trabalho na sociedade capitalista


A questão é que o trabalho, na sociedade burguesa, afastou-se de sua for-
ma originária. Seu objetivo central, no capitalismo, passou a ser a produção
da mais-valia. O trabalho, no modo de produção capitalista, generalizou a
compra e venda da força de trabalho, que se tornou uma mercadoria como
outra qualquer. Ele separou o trabalhador dos meios de produção. O artesão
utilizava sua força de trabalho em meios de produção dos quais ele era pro-
prietário. O produto criado por ele era resultado desses dois elementos, ou
seja, não havia separação de propriedade entre eles. No capitalismo, a força
de trabalho é comprada pelo capitalista por um período de tempo. Os traba-
lhadores são separados dos meios de produção, onde um terceiro é quem passa
a ter propriedade sobre estes, eles somente podem ter acesso a esses meios
quando vendem sua força de trabalho.
O trabalho transforma o valor de uso de outros produtos em novos valores
de uso. Em um produto há o tempo de trabalho despendido nos meios de produ-
ção e o utilizado na força de trabalho, que usa esses meios de produção através
de um trabalho específico. Marx (1987, p. 225) explica que o processo de tra-
balho tem um duplo resultado: ele preserva o valor que já existia nos meios de
produção, que são transferidos ao novo produto, e acrescenta valor novo através
de um trabalho específico. Isso quer dizer que os valores de uso existentes em
uma máquina são repassados ao produto que está sendo feito, como uma bone-
ca, mas, além disso, haverá o valor da força de trabalho transferida ao produto.

565
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Isso somente pode ser explicado a partir do duplo caráter do trabalho. Por não
ser somente dispêndio de energia, mas por produzir um trabalho útil.
Marx (1987) esclarece que com esse duplo resultado é possível entender que
na medida em que há um desenvolvimento nos meios de produção, e o traba-
lhador segue com sua jornada de trabalho, há um aumento de valor no produto
final. A questão é que o trabalhador não tem de volta para si esse valor que ele
produziu a mais, o proprietário dos meios de produção vai se apropriar desse
excedente, a mais-valia. Por isso, quanto mais o trabalhador labora, mais ele
fica precarizado e seu patrão tem mais acúmulo de renda.
É importante salientarmos que esse quadro é a regra de como se configura o
modo de produção capitalista, todavia, são possíveis outros modos de produção.
Em relação ao trabalho escravo, pelo fato do capitalista não ter interesse prolon-
gado nessa força de trabalho, não se objetiva um limite de jornada que respeite
as limitações físicas do trabalhador, por isso encontramos jornadas acima de
oito horas. Tampouco há preocupação com limites morais. O TEC é um traba-
lho de curta duração, onde se objetiva explorar o máximo que se puder nessa
relação. Por isso, há casos de morte em canaviais por jornadas extenuantes ou
por excesso de esforço físico.
Essa forma de organização do trabalho de separação entre a força de
trabalho e o trabalhador tem originado uma relação com os produtos do
trabalho e com o próprio trabalho através da alienação. O trabalho passou
a ser externo e penoso, pois o trabalhador nega seu trabalho, não se sente
bem, não se sente feliz com ele. Quando perguntamos as trabalhadoras qual
seu sonho, o trabalho desenvolvido na cana não foi apontado em nenhum
momento, sempre era considerado como penoso. Havia uma confusão entre
o gosto de trabalhar e o trabalho desenvolvido.
De um lado, o produto realizado pelo ser humano se torna independente
de seu produtor, do trabalhador e do outro não se reconhece no trabalho. A
objetivação do trabalho é a perda do objeto e a servidão ao objeto. A aliena-
ção acontece tanto quanto ao produto da produção como ao ato de produzir.
O trabalho não se configura como a satisfação de uma necessidade, mas um
meio de satisfazê-la fora dele (MARX, 2004, p. 470). Quando o trabalhador
vai trabalhar nas fazendas, seja roçando, cortando cana ou fazendo carvão, o
produto de seu trabalho fica com o seu patrão. Ele não se apropria do resultado
de seu trabalho. Além do mais, no momento em que está trabalhando, ele não

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

reconhece esse ato como fundante do seu ser, mas como um ato penoso que está
fora dele. Esse é o duplo caráter da alienação.
Essa visão alienada do trabalho influencia a ação do trabalhador. Nela,
ele aprende que somente lhe cabe essa posição no mundo, há uma divisão do
trabalho que deve ser obedecida. Entende que há uma normalidade nessas
relações, pois ele olha para os sujeitos com quem se relaciona, e com quem
trabalha, e absorve a ideia de normalidade. Essa relação com o trabalho cria
uma consciência do seu lugar no processo de produção. Por vezes, dificultan-
do a organização desses trabalhadores.

2. Trabalho escravo contemporâneo


Pois bem, é nessa perspectiva que compreendemos as relações nos ca-
naviais. O trabalho predominante é o abstrato alienado. E nessa forma de
organização social, todo o trabalho é trabalho explorado, mas é necessário
identificar os graus de exploração dentro da sociedade burguesa. Neste item,
iremos fazer um debate sobre seu conceito legal, pois é a partir dele que são
criadas as políticas públicas de combate, mas sem esquecer a análise trans-
disciplinar que a temática merece.

2.1. O conceito legal de TEC


O TEC está previsto no Código Penal Brasileiro já no século XIX,  mas foi
em 2003 que passou a ter um conceito mais preciso no artigo 1493 dessa legis-
lação. Para se enquadrar como crime, a relação de trabalho entre os sujeitos

3 Art. 149. Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados
ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo,
por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena
- reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos
pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

envolvidos deve ser marcada pela violação grave de direitos. Numa perspec-
tiva mais ampla, o objetivo desse delito seria proteger o poder de decisão das
pessoas. Seria proteger sua dignidade. Por isso, a previsão legislativa provoca
dois grupos de situações que levam a conceituação do TEC: por um lado,
objetiva proteger a liberdade de ir e vir quando proíbe o trabalho forçado e
por dívidas, situação onde o trabalhador não consegue sair do local de tra-
balho;  e, por outro, objetiva proteger a dignidade, quando proíbe o trabalho
sob jornada exaustiva e em condições degradantes, mesmo em situações
que o trabalhador(a) possa sair do ambiente laboral. São sobre essas quatro
modalidades que teceremos comentários a seguir.
O TEC por dívidas é um clássico na realidade brasileira. Ele se caracteriza
por uma redução da possibilidade de decisão que um ser humano possui, subme-
tido em uma relação de trabalho, pelo fato de estar sob uma dívida. Há vários
relatos de trabalhadore(a)s que ficam presos às fazendas, pois fazem dívidas para
pagar seu deslocamento, e como nem sempre conseguem saldá-las, passam a
trabalhar em função delas.
No caso da modalidade trabalho forçado, a ideia é a falta de liberdade
de escolha, é agir sob coação. O trabalhador(a) é enganado ou é colocado
em situações em  que precisa aceitar essa relação de trabalho (BRITTO
FILHO, 2011, p. 245).
Já a jornada exaustiva é aquela imposta a alguém por outrem em relação
de trabalho, além dos limites legais e/ou capaz de causar prejuízos à saúde física
e mental do trabalhador, decorrente de uma situação de sujeição que se esta-
belece entre ambos, de maneira forçada ou por circunstâncias que anulem a
vontade do trabalhador(a)  (Idem, p. 241).
Dessas quatro situações, aquela que mais dificuldade há na conceituação é a
do trabalho degradante, porque sua definição necessita de maior esforço inter-
pretativo. O TEC é uma relação laboral que atinge a dignidade do ser humano,
é o trabalho humilhante, seja por falta de pagamento, por coerção, ou por um
ambiente de trabalho não saudável. Ou seja, todas as situações previstas no arti-
go 149 são degradantes e atingem a dignidade, mas há nelas uma especificidade
que falta nesta modalidade. O trabalho degradante é aquele que desrespeita, de
forma grave, a dignidade da pessoa humana, porque fere direitos básicos cons-
titucionais (ANDRADE, 2015).
Por isso, a discussão conceitual da modalidade condições degradantes ne-
cessita debater a situação do ambiente de trabalho. O trabalho degradante nos

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

faz refletir sobre uma nova concepção de liberdade: em um ambiente onde ine-
xistem condições mínimas de trabalho, como alojamento, banheiros, alimen-
tação, transporte, o trabalhador(a) não vai efetivamente exercer sua liberdade,
que não é apenas de ir e vir, mas é de pensar e de escolher. Como vai poder
fazer escolhas, se não tem condições mínimas de sobrevivência?  De que forma
vai exercer suas condições dignas de ser humano, em um ambiente que o trata
pior do que um animal? Trabalho degradante é aquele em que a degradação
das condições sanitárias e de higiene lesiona o axioma da dignidade da pessoa
humana (PRUDENTE, 2006, p. 64).
Pois bem, esse entendimento vem se consolidado nos últimos anos nos tri-
bunais brasileiros. Em levantamento feito em dissertação de mestrado, cons-
tatou-se que o único Tribunal Regional Federal que tem posição contrária a
esta ideia que apresentamos é o da quinta região com sede em Recife, onde o
conceito de TEC está ligado a apenas situações onde o trabalhador está impe-
dido de se locomover e as condições degradantes são consideradas apenas como
infrações trabalhistas e não como crime do artigo 149 (SEVERO, 2017, p. 157).
Uma concepção mais tradicional de escravidão. No Supremo Tribunal Federal,
poucos ministros, como Gilmar Mendes, têm tido uma postura tão tradicional.
Segundo o Ministro, se for dada à vítima a liberdade de: abandonar a jornada
exaustiva, fixada em meio a uma relação de trabalho ou emprego; rejeitar o
trabalho, abandonando o local de trabalho; e de recusar-se às condições degra-
dantes que são impostas, não haverá crime de TEC (ANDRADE, 2015).

3. As condições de trabalho em Japoatã


Diante das reflexões teóricas desenvolvidas acima, analisamos as informa-
ções da pesquisa de campo realizada em janeiro de 2018. Buscamos perceber se
havia a existência de TEC na realidade das mulheres que entrevistamos, mas
mais que isso, buscamos compreender as relações que envolvem o trabalho abs-
trato e alienado que envolve a vida dessas mulheres.

3.1. O município de Japoatã


Sergipe, que nos séculos passados chegou a possuir muitas usinas de cana-
-de-açúcar, hoje possui apenas cinco: Usina Pinheiro, na cidade de Laranjeiras;

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Usina Taquari, Junco Novo e Carvão, todas localizadas em Capela; Usina Cam-
po Lindo, em Nossa Senhora das Dores (SHIMADA, p. 116).
Japoatã, um dos municípios que fornece matéria prima a essas usinas, locali-
zado na região norte do estado de Sergipe, possui 13.238 habitantes distribuídos
em 404,08 Km². Segundo dados do IBGE, em 2016, 1.317 pessoas se enquadram
na categoria de ocupadas. E 49,1% desse total recebe metade do salário mínimo
mensal para sobrevivência. Por outro lado, dentre os trabalhadores formais, a
média salarial é de 1.8 salário mínimo (IBGE, 2018). Portanto, cidade que tem
a desigualdade como uma de suas características. Sua economia tem uma base
agrícola forte, dentre as lavouras temporárias, a cana-de-açúcar se destaca. Em
2016, o município produziu 260.691 toneladas colhidas em 4.635 hectares de
área plantada. Bem distante das 90 toneladas de goiaba e laranja, das 54 tone-
ladas de mamão, de 1834 toneladas de banana, etc. (IBGE, 2018).
Diante dessa realidade, muitos trabalhadores acabam se dedicando ao cultivo
da cana-de-açúcar, não só por dominar a região, mas pelo fato de ter dezenas de
funções que podem ser desenvolvidas pelos trabalhadores. Segundo técnico da
usina carvão, há cerca de 70 funções que envolvem o trabalho na cana. Desde o
plantio, o corte, o adubo, até o resgate de canas que caem no chão no momento
de que são transportadas para os caminhões, serviço realizado predominante-
mente por mulheres, as denominadas “bituqueiras”. Passemos aos dados.

3.2. Mulheres cortadoras de cana


Em janeiro de 2018, como agendado, fomos ao sindicato de trabalhadores da
agricultura familiar de Japoatã para nos guiar a frentes de trabalhadores de cana.
O que nos foi informado é que não havia frente de trabalho nesse dia. Pela nossa
insistência, a presidenta do sindicato indicou um assentamento de trabalhadores
rurais, cujo anonimato preferimos manter, onde residem muitos trabalhadores e
trabalhadoras que realizam serviços nas usinas em Sergipe. Ela aceitou nos guiar
até lá e nos apresentar aos trabalhadores, então, toda a equipe se deslocou até o
assentamento e conseguimos entrevistar 06 mulheres. O que nos causou grande
surpresa é que a grande maioria delas era cortadora de cana-de-açúcar, atividade
predominantemente masculina. O nome delas não será identificado, sendo utili-
zados numerais por extenso para apontar os relatos de cada uma. As entrevistas
foram gravadas e realizadas em frente a casa dessas mulheres.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

3.2.1. A acentuação da exploração com o gênero

Na plantação de cana, há três etapas. A primeira, o plantio, envolve se-


res humanos e máquinas. Enquanto os trabalhadores semeiam a terra com
pedaços de cana, as máquinas tampam as covas. O segundo ciclo é chamado
de tratos culturais. É a etapa mais perigosa para os trabalhadores, devido
ao uso de herbicidas e a exposição de quem os utiliza. A aplicação é feita
através de um dispositivo que fica nas costas do indivíduo, fazendo com que
ele tenha contato direto. O terceiro ciclo é o da colheita, que envolve uma
grande quantidade de trabalhadores (SHIMADA, p. 120-121), o que esta-
mos chamando de corte da cana.
Dentro dessas fases, há dezenas de atividades que são desenvolvidas até a
venda do produto final que pode ser açúcar, etanol ou até mesmo energia elétrica.
Da cana, os empresários aproveitam tudo, até o bagaço dela é utilizado como
alimento para o gado ou fonte de produção de energia elétrica, como verificamos
ao visitarmos uma usina de cana-de-açúcar em Capela, reflexões que faremos em
outros artigos. Dentre essas atividades, o corte da cana é central na produção da
matéria-prima. O que as pesquisas demonstraram até hoje foi que o corte da cana,
por ser uma atividade que exige muito esforço físico, é realizado por homens. As
trabalhadoras que entrevistamos no assentamento em Japoatã, estabeleceram que
ali havia um grupo de 11 mulheres que são cortadoras de cana, mas que tinham
dificuldade de serem contratadas, justamente por serem mulheres.
Lastarria-Cornhel (2008, p. 5) estabelece que tem havido uma tendência
de feminização da agricultura. Cada vez mais mulheres tem realizado trabalhos
agrícolas porque tem tido mais responsabilidades com o sustento da família.
Todavia, isso vem acompanhado com a visão de que o trabalho feminino é
desqualificado e deve ser menor remunerado.
Segue a autora, explicitando que estudos de diversos países latino-america-
nos revelam que devido ao brusco crescimento que nas últimas décadas hou-
ve no agronegócio de verduras, frutas e flores, as mulheres representam uma
proporção elevada da força laboral (idem, p. 9). Todavia, essa realidade vem
acompanhada de segregação e segmentação segundo o sexo. Os empregadores
preferem mulheres para tarefas que exigem mais paciência e cuidado porque as
considera menos conflitivas e mais flexíveis com respeito as condições de tra-
balho. Talvez por isso, algumas dessas trabalhadoras de Japoatã ainda aguardam

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

trabalho, além do desemprego ser muito alto na região, elas não se enquadram
nesse perfil de menos conflitivas.
Os homens estão a cargo de trabalhos que implicam uso de força física,
como levantar caixas de madeira e construir estufas, operadores de máquinas,
condução de tratores e caminhões, aplicação de pesticidas e a manutenção de
equipamentos. Devido a isso, o trabalho das mulheres é considerado como me-
nos qualificado (idem, ibidem). Essa realidade torna a vida das mulheres um
ciclo vicioso. Seu trabalho é considerado como menos qualificado, mas poucas
serão as oportunidades que elas terão de se qualificar.
Isso não significa dizer que a situação dos homens no trabalho na cana
é confortável, eles passam por um processo intenso de exploração e riscos à
sua saúde, mas há um grau ainda maior de exploração dessas mulheres. Essa
realidade da feminização também revela que a divisão de trabalho pelo sexo
não mudou consideravelmente, pois apesar dessas mulheres estarem mais par-
ticipantes nas atividades assalariadas, o trabalho que lhes é devido é sexuado.
Por isso, elas não são bem aceitas na atividade de corte de cana. Outras ati-
vidades menos qualificadas, onde há menos possibilidade de rendas maiores é
que as absorvem. Como, por exemplo, a atividade de bituqueira que é comum
ser realizada pelas mulheres em Sergipe. O seu papel seria apanhar as canas
que caem ao chão quando são transportadas pelas máquinas. Realizar outras
atividades de maior remuneração é muito mais difícil para elas. Muitas nem
se arvoram em fazê-las, por isso, a preciosidade de encontrar essas mulheres
cortadoras de cana em Japoatã.

3.3. A vida nos canaviais


Quando questionamos a essas trabalhadoras sobre como elas chegam ao tra-
balho na cana, percebemos que há uma relação grande com a própria história
familiar, inclusive foram trabalhadoras infantis também na cana, como muitos
dos seus parentes e pais. A mulher “Um” que é casada e tem um filho, começou
a trabalhar em canaviais aos 21 anos como plantadora, posteriormente foi para
o corte-de-cana. Também nos contou que o esposo e a família dele trabalham
cortando cana e todos eram provenientes de Alagoas.
Já a entrevistada “Dois” tem 40 anos, trabalha em canaviais desde os 15
anos, tendo experiência no plantio e no adubo. É divorciada e tem uma filha.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Nasceu no povoado Pindoba, município de Neópolis, onde os pais trabalha-


vam como lavradores, plantando arroz e milho. Quando surgiu o acampamento
(o atual assentamento que visitamos), em 1998, mudou-se. Tem 7 irmãos, os
quais todos trabalharam em canaviais. Um fato curioso sobre ela, é que possui
anemia falciforme, doença rara que acomete principalmente negros africanos e
transforma as hemoglobinas em células com formato de foice, o que impede a
manifestação da Malária.
Essas informações se coadunam com a ideia de que é determinado aos traba-
lhadores um lugar no processo de produção. Elas foram trabalhadoras infantis
da cana e era isso que a vida lhes reservava. Algumas até conseguiram atingir
o ensino médio, mas permaneceram no trabalho na cana.

3.4. Fichada ou clandestina?


Não bastasse que a vida lhes reservasse um trabalho penoso, ainda há uma série
de diferenciações que são feitas no ambiente de trabalho. Em relação à contratação,
mulher “Um” comenta que trabalhou fichada (com carteira assinada) e não fichada
(clandestinamente), sendo esta última mais comum para as mulheres. Com a mu-
lher “Dois”, a situação se repete, pois trabalhou como fichada para a Usina Agro
Sul e como clandestina em diversas usinas canavieiras. As entrevistadas “Três” e
“Quatro” trabalharam como fichadas no plantio por 2 anos na Usina Agro Sul.
Agora trabalham como clandestinas na Usina Campo Lindo. “Cinco” fala que cor-
tou cana durante décadas e que na época nenhuma mulher era fichada.
Quando perguntadas sobre as diferenças em relação às duas espécies de
contratações, “Um” afirma que que os benefícios sendo fichada eram maiores,
uma vez que a empresa disponibilizava água, alimento, banheiro e vestimentas.
“Dois” relata que “sendo fichado, tem todos os direitos assegurados ao sair do
emprego, tem adiantamento do salário, ganha EPI's sem desconto do salário,
tem salário fixo mesmo não atingindo a meta diária, diferente de quando não é
fichado.” Já “Três” não vê muita diferença entre as duas formas de contratação.
“Seis” dá um depoimento interessante. Ela diz que ser clandestino é mais
vantajoso. Conta que os não fichados ganham água gelada, enquanto os ficha-
dos recebem água quente. “O clandestino tem um direitozinho porque ele não
vai receber os direitos e o INSS e o fichado não ganha nem um picolé, nem agua
gelada”. Além disso, ela nos diz que o salário do clandestino é maior.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Essa relação de fragilidade foi reportada pelas entrevistadas como preferên-


cia de contratação por parte dos empresários. Como existe uma grande quanti-
dade de mão de obra disponível, as trabalhadoras acabam se submetendo a essa
situação. Muitas dessas mulheres que estão a procura de trabalhos nas fazendas
de cana tinham outras fontes de trabalho. Havia programas nas áreas rurais
como de alfabetização e de formação que eram ministrados por muitas dessas
mulheres que conseguiram chegar ao ensino médio. Com o fim desses progra-
mas, elas tiveram que retornar para o trabalho na cana. Com a ampliação do
exército de reserva, o empresário acaba determinando as condições de trabalho.

3.5. Saúde e segurança da trabalhadora


Nesse sentido, um dos focos das entrevistas era averiguar todos esses ele-
mentos na frente de trabalho, checando se a realidade das entrevistadas estava
de acordo com o que é regido legalmente nos termos de segurança do trabalho.
A Norma Regulamentadora do Ministério do Trabalho 31 (NR nº 31) dispõe
sobre segurança e saúde no trabalho na zona rural, englobando a agricultura, pe-
cuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura. Assim, prevê que os empre-
gadores “devem implementar ações de segurança e saúde que visem a prevenção
de acidentes e doenças decorrentes do trabalho na unidade de produção rural.”
A norma também aborda a questão dos agrotóxicos, considerando os traba-
lhadores que os manipulam como indivíduos em exposição direta, seja qual for a
sua etapa de execução (armazenamento, transporte preparo, aplicação, descarte
ou descontaminação de equipamentos). Por ser um ofício que possui muitos
riscos, há uma série de vedações, como proibir a manipulação de agrotóxicos
não registrados pelos órgãos competentes e proibir que os manipuladores sejam
menores de dezoito anos, maiores de sessenta e gestantes. Além disso, o traba-
lhador precisa passar por uma capacitação antes de manipular os agrotóxicos.
A NR 31 ainda estabelece outras obrigações como que os passageiros
devem ser transportados sentados; o ônibus deve ser conduzido por moto-
rista habilitado e devidamente identificado; o transporte necessita possuir
um compartimento para a guarda das ferramentas e materiais, separado dos
passageiros, para que sejam eliminados riscos de acidentes com ferramentas
durante o trajeto dentro do ônibus.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Outro ponto relevante é a previsão de que o trabalhador deve disponibilizar


áreas de vivência, composta de locais para refeição, instalações sanitárias, local
adequado para o preparo de alimentos, lavanderias, além de alojamentos, neste
último caso quando existir trabalhadores que necessitem de permanência entre
as jornadas de trabalho, a exemplo de migrantes de outros estados.
Ao lado na NR nº 31, a NR º 15 também protege o trabalhador rural, uma
vez que dispõe sobre atividades e operações insalubres. Em determinadas ati-
vidades rurais, a insalubridade pode incidir, a exemplo do corte de cana. De
acordo com a norma, uma atividade pode ser naturalmente insalubre; pode
tornar-se insalubre ao exceder os limites previstos na norma ou, ainda, pode ser
detectada através de laudos de inspeção do local de trabalho.

3.5.1. A vida em Japoatã

Os relatos que ouvimos são muito fortes de como o trabalho na cana é


exaustivo. “Já vi homem desmaiar, já vi pessoas comendo comida azeda mesmo,
azeda... é muito complicado... as vezes a pessoa já desgasta ali. Muito sofrimen-
to. É assim mesmo, é um sol, o sol fica turvo e você fica sem ver quase nada já.
A pessoa fica assim olhando...” Foi o que disse a mulher “Um” ao ser questiona-
da sobre problemas de saúde relacionadas ao trabalho. E acrescenta que nunca
teve nada, porém já presenciou os familiares e colegas do corte de cana sofrendo
com problemas nos olhos, dores de cabeça por conta do sol forte e o cheiro
intenso de cana queimada, além de cortes de facão, câimbra e dores na coluna.
“Três” nunca passou mal, mas se incomoda com o sol. “Às vezes a gente sen-
te gastura porque o sol é muito quente”. Mas relata que sente dores musculares
provenientes do trabalho. Ela também se refere a um jovem cortador de cana,
de 27 anos, que sofre com câimbras diárias na frente de trabalho, sintoma bas-
tante comum que acomete este tipo de trabalhador. E é interessante notar que
ela explica o fato desses problemas ocorrerem mais com os homens porque “eles
querem mostrar que são machos, que aguentam a dor e tranco”, diz.
Em relação à alimentação, não é incomum a ocorrência de comida azeda.
“Dois” é “boia fria”, pois a empresa para que atualmente trabalha não disponi-
biliza comida, tendo que preparar seu alimento em casa durante a madrugada.
Sendo fichado, o trabalhador tem espaço próprio para fazer refeições no ônibus,
não sendo, ele come na própria frente do trabalho, exposto ao sol, sendo este o

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caso dela. Para “Três”, a situação é similar: “A comida a gente leva de casa, isso
vale pra quem é fichado e quem não é”.
“Se não tiver uma sombra a comida azeda...” é o que diz “Um”. Isto pois
como não tem um local específico e adequado para realizarem suas refeições,
os trabalhadores são obrigados a depositarem suas marmitas em qualquer lugar,
tendo sorte quando encontram um local fresco para guardá-las. Ela também
comenta que os trabalhadores com carteira assinada possuem alguma estrutura
para realizarem suas refeições “Tem também no ônibus eles colocam umas ten-
das, umas mesinhas... fichado.”
Quando questionadas sobre banheiros, “Um” relata que estes não existem
para quem não é fichado, fazendo com que o trabalhador faça suas necessidades
em meio ao mato, geralmente precisando ir para longe da frente de trabalho
para ter alguma privacidade. Já quem possui carteira assinada, tem direito a usar
um banheiro químico. “Fichado tinha um banheirinho, sabe? Quem é fichado,
tem o banheiro tudo certinho...”.
Sobre este tema, “Dois” nos conta que em suas experiências em canaviais,
havia banheiro químico, porém, os trabalhadores não gostam de usá-lo, pre-
ferindo fazer suas necessidades ao ar livre. “Três” comenta que no local onde
trabalha não tem banheiro. “Vamos pro mato mesmo. Não é questão de querer
ou gostar, é a precisão”. Ela também diz que se incomoda, porque pode aparecer
alguém a qualquer momento.
Tendo deixado claro as condições de higiene, partimos para a segurança da
trabalhadora. Para transportar trabalhadores, é necessário que haja a emissão
da Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores-CDTT nos termos
da instrução normativa 76/2009 do Ministério do Trabalho.
“Um” nos informa que a empresa em que trabalha disponibiliza ônibus, po-
rém em condições precárias. Este ônibus é o mesmo tanto para quem é fichado,
quanto para quem não é. No caso da mulher “Dois” a usina fornece transporte,
com compartimento especial para ferramentas. Todavia, esta “regalia” se restrin-
ge apenas aos trabalhadores fichados. Os clandestinos vão em ônibus diferencia-
dos, com condições bem piores, levando suas ferramentas em punho, o que causa
grandes riscos de lesões. “Três” acha o ônibus que a transporta razoável, havendo
local específico para guardar as ferramentas. “Seis” nos informa que onde traba-
lha, existem ônibus diferenciados para quem é fichado e quem é clandestino.
Com relação à vestimenta, o art. 21 da Convenção nº 155 da Organização
Internacional do Trabalho rege que as medidas de segurança do trabalho não

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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

deverão implicar nenhum ônus financeiro ao trabalhador. Em seu art. 16, dita
que o empregador deve fornecer roupas e EPI’s adequados com fim de preven-
ção. “Um” comenta que a empresa em que trabalha fornece as peças necessá-
rias, isto inclui os Equipamentos de Proteção Individual- EPI’s, sendo as princi-
pais para a frente de cana o chapéu, as luvas, as botas e as tornozeleiras.
“Três” levou as ferramentas e EPI's de casa quando começou a trabalhar. Ela
diz que a empresa fornece todos os materiais necessários, mas descontam do
salário. “Tudo que pega, paga”. Em contrapartida, trabalhadores fichados rece-
bem todos os equipamentos necessários gratuitamente. Usar os e equipamentos
de proteção individual são imprescindíveis para amenizar os riscos de trabalho,
sendo importante que o trabalhador esteja devidamente vestido para que possa
trabalhar. Sobre isso, “Três” comenta que “o cabo não olha nada, se tamo vestido
certo ou não”. Já “Seis” diz que onde trabalha, as ferramentas ficam retidas na
frente de trabalho, sem precisar ficar levando e trazendo diariamente. Sobre a
vestimenta, relata: “é casaco, é chapéu, é moletom, bota, tudo completo. A usina
dá. Os clandestinos também têm, mas descontam do pagamento. Desconta garra-
fa, desconta sapato, roupa, chapéu”. Ela finaliza dizendo que se o trabalhador não
tiver com a vestimenta completa, não o deixam trabalhar.
Diante de um trabalho que naturalmente é insalubre e exaustivo, foi ques-
tionado as entrevistadas se elas tinham tentado sair dos canaviais e fixar-se em
outro emprego. “Um” respondeu que por determinado período lecionou “banca”
(reforço escolar) para crianças residentes no assentamento. No entanto, como a
maioria dos moradores trabalhavam em canaviais e recebiam muito pouco, não
conseguia realizar os pagamentos, o que fez “Um” voltar aos canaviais.
“Dois” saiu dos canaviais quando teve oportunidade de trabalhar como professora
em programas do governo. Para sua infelicidade, o programa em que lecionava foi
encerrado na cidade de Japoatã, o que a obrigou a voltar para a cana. Ela comenta que
gostaria que a cidade tivesse mais oportunidades de emprego para mulheres. “Três”
conseguiu trabalhar por 5 meses como professora, porém, logo o prefeito de Japoatã
a demitiu. “Aqui é tudo cortador de cana, não tem outro lugar pra trabalhar não”. E
complementa com a infelicidade de ser cortadora: “Bom não é não, é péssimo. Só vai
porque a pessoa precisa mesmo”. Ela diz que não tem outras opções e gostaria que
houvesse microempresas por perto, gerando oportunidades de emprego. Reafirmando
que elas tem um lugar determinado dentro do processo de exploração do capital.

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3.6. Trabalho escravo contemporâneo


Como dito anteriormente, a nova redação do artigo 149, do CP estabeleceu
quatro situações principais em que se caracteriza o delito: trabalhos forçados; a
jornada exaustiva; restrição, por qualquer meio, da locomoção da vítima em ra-
zão de dívida contraída pelo empregado; e condições degradantes de trabalho.
Além disso, há das formas equiparadas: retenção no local de trabalho, por cer-
ceamento do uso de qualquer meio de transporte, de manutenção de vigilância
ostensiva ou retenção de documentos ou objetos de uso pessoal do trabalhador. 
Quando perguntada sobre o que entendia por TEC, “Um” responde: “Assim, tipo,
trabalho escravo se a pessoa tivesse aquela obrigação de tá e não poder parar. Mas ali
não, você tem opção de se você quiser parar você para, se não quiser trabalhar mais,
não trabalha, se quiser ir pro ônibus vai, né.” Por sua vez, “Dois” ouviu falar sobre a
temática em palestras do MST. “É aquele obrigatório, tem até alojamentos que eles
ficam, sem se alimentar bem”. E acrescenta que não se reconhece como escravizada.
“Três” diz que acha que o trabalho na cana é escravo. “Ser escravo é quando
a pessoa tá sendo escravizada, só que hoje só é quem quer [...] tá lá o trabalho,
você vai se precisa, mas se não quiser não vai e pronto. Vai ciente sabendo que
o trabalho vai ser assim”. E finaliza dizendo que não sabe dizer se já foi escravi-
zada. “Seis” conta: “aqui não tem não, aqui é tudo na paz de Deus” e conceitua
o TEC dizendo que “escravidão é quando o fazendeiro pega aquela pessoa ali
para trabalhar como escravo direto [...] A cana é uma escravidão mesmo, tem
dias que bebe água, tem dias que não bebe”. Ela nos diz que já ouviu falar sobre
trabalho escravo através do MST e que não se reconhece como escrava. Portan-
to, a visão delas é ainda uma visão tradicional do conceito de TEC.
Diante das condições insalubres de trabalho em que as entrevistadas fo-
ram submetidas durante grande parte da vida, questionamos se elas tinham so-
nhos. O ato de sonhar remete à presença do sentimento de esperança; quando
o trabalhador não tem mais sonhos, pressupõe-se que ele está em alto nível de
alienação, decorrente do seu oficio. “Um” sonha em voltar a lecionar, diz que
agarraria a primeira oportunidade de ser professora na capital sergipana ou em
qualquer outra cidade. “Dois” fala que não tem mais sonhos, mas antes sonhava
em ser professora. Para a filha sonha com que ela estude e tenha uma profissão
decente. “Três” sonhava em ser enfermeira, mas acabou indo para outro cami-
nho. Formou-se em pedagogia e gostaria de voltar a ser professora. “O prefeito
me deu a oportunidade de trabalhar, mas com 5 meses me botou pra fora!”.

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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

3.7. Contratação de trabalhadoras


Como já dissemos, um ponto muito marcante nas entrevistas realizadas em
Japoatã foi a questão de gênero. A presença dos trabalhadores do sexo mas-
culino é marcante, enquanto a presença do trabalho feminino é bem menor.
Em Sergipe, a Usina Taquari é a que emprega o maior número de mulheres,
sendo 7,5% do quadro de funcionários, predominantemente trabalhando como
“bituqueiras”. (SHIMADA, p. 196). Em relação a isso “Um” nos informa que
a Industria Campo Lindo não contrata mulheres; “Dois” fala que a Industria
Carvão também não emprega mulheres.
Todavia, foi uma grande surpresa encontrar, nesta cidade, tantas mulheres
que trabalham em canaviais, inclusive em tarefas pesadas, como o plantio e
o corte de cana. A situação nas outras cidades pesquisadas praticamente não
ocorreu. “Quatro” comenta que “as vezes o homem nem alcançava a meta, nóis
tirava as vezes a mais que os homens”.
Quando perguntada do porque estas indústrias não quererem contratar mulheres,
“Três” diz que homens costumam reclamar menos do que as mulheres, além deles
terem medo de reivindicar seus direitos e arriscarem seus empregos. “Mulher é mais
ousada”, diz ela. E acrescenta que já chegou a denunciar, com um grupo de mulheres,
as condições de trabalho nos canaviais ao Ministério do Trabalho, porém este não
fez nada. É muito importante como essa mulher tem a percepção de seu processo de
exploração e de sua condição de mulher no processo produtivo. Por isso, dissemos
que essas mulheres não se enquadram no perfil de menos conflitivas, elas relatam que
sempre reclamavam de suas condições de trabalho para o cabo de turma.

Considerações finais
Através dos dados levantados ao longo da pesquisa, bem como do estudo
e análise dos textos aqui mencionados, chegamos à conclusão de que não se
encontrou trabalho escravo contemporâneo dentre os sujeitos pesquisado no
município de Japoatã, de acordo com o levantamento das entrevistas. No en-
tanto, isto não quer dizer que lá existem condições ideais de trabalho, visto que
foi possível encontrar diversas falhas sérias.
Háuma notória diferença de tratamento entre trabalhadores com carteira
assinada (fichados) e clandestinos (não fichados), não havendo muito consenso

579
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

entre as entrevistadas sobre qual das modalidades é mais vantajosa. O que ficou
claro é que, apesar de receberem salários um pouco maiores, os clandestinos
são os que mais sofrem violações de direitos trabalhistas, a exemplo de não ter
banheiros na frente de trabalho para eles ou local específico para as refeições.
A questão de gênero também entrou em evidência. Primeiro por termos
encontrado um número considerável de cortadoras de cana; segundo, pela des-
coberta de que as usinas não costumam empregar mulheres exclusivamente
motivados por se tratar de indivíduos do sexo feminino e pressuporem que elas
não possuem o mesmo rendimento físico de um homem. Quando o fazem, não
assinam suas carteiras, deixando-as na clandestinidade e sem acesso aos direi-
tos que uma carteira de trabalho assinado proporciona.
Por fim, ficou claro que as trabalhadoras entrevistadas não sabem o que
de fato é trabalho escravo contemporâneo, pois ficaram restritas a noções da
escravidão dos séculos passados. Isto revela a necessidade de realizar trabalhos
de formação com os indivíduos do corte de cana em relação ao TEC, para que
assim, possam reconhecer situações em que há trabalho escravo e os motivem
a fazerem denúncias.

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581
As modificações constantes do art. 394-
a da CLT: reflexos do avanço neoliberal
na flexibilização dos direitos das mães
trabalhadoras sob a ótica da Reforma
Trabalhista (LEI 13.467/17)

Milena de Souza Batista1

Introdução
O presente estudo se funda em contextualizar e analisar a Reforma Tra-
balhista, consubstanciada na Lei 13.467/17, no que concerne à permissão do
trabalho de mulheres gestantes e lactantes em ambientes insalubres. A norma,
em vigor desde 11 de novembro de 2017, estabeleceu nova redação ao art. 394-
A da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e reflete o processo contínuo
de flexibilização dos direitos trabalhistas sob o avanço de políticas neoliberais.
Em paralelo a esta sobreexploração do trabalho, a imposição autoritária de
contrarreformas como as promovidas pelo governo ilegítimo de Michel Temer
(PMDB) refletem a baixa densidade de proteção dos direitos nas relações de tra-
balho. Desse modo, pretende-se analisar neste estudo quais os impactos das modi-
ficações ocorridas na CLT, investigando os argumentos jurídico-políticos que sus-
citaram as modificações legislativas e que envolvem o debate da prejudicialidade
dessas mudanças frente às normas de proteção da mulher trabalhadora.
Como uma das previsões incorporadas pela Reforma Trabalhista é a per-
missão do trabalho das gestantes e lactantes em ambientes insalubres, busca-se
enxergar, através do materialismo-histórico-dialético, as consequências trazidas

1 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA);


[email protected]; dezembro de 2018.

583
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

por esta modificação legal. Em relação ao objeto desta investigação, o método


pretende analisar como esses impactos se fundam nas relações sociais cons-
truídas durante os tempos históricos (totalidade); necessitando ser analisados
a partir das relações que as trabalhadoras estabelecem com a natureza e entre
si na produção e reprodução de sua existência (trabalho); e como esse trabalho
insalubre revela um grande número de características conflituosas, consistindo
numa forma renovada de opressão que deve permitir-se transformar, evitando a
prejudicialidade (contradição).
Estas, portanto, figuram como categorias fundamentais a partir das quais
se pode realizar uma análise materialista-histórico-dialética vinculada a uma
concepção de realidade que se constitua “em uma espécie de mediação no
processo de apreender, revelar e expor a estruturação, o desenvolvimento e
transformação dos fenômenos sociais” (FRIGOTTO, 2010, p. 84), especial-
mente focada na forma jurídica.
Desse modo, na metodologia investigativa, foi feita revisão de literatura que
teve por base o avanço do neoliberalismo no mundo do trabalho, avaliando as
consequências deste fator sobre a flexibilização dos direitos das mães trabalha-
doras. Ademais, por meio de revisão legislativa, é possível traçar um paralelo
entre as normas anteriormente vigentes e a redação constante nos novos dispo-
sitivos, averiguando as tensões existentes entre os marcos normativos.
A intenção de se analisar esse emaranhado legal é investigar, inicialmente,
o reflexo da política neoliberal na flexibilização dos direitos das mães trabalha-
doras, contextualizando a maior participação das mulheres em postos externos
de trabalho como fator que explicita a continuidade da dinâmica histórica de
opressão. Assim, a apuração parte de uma legislação que proibia, expressamen-
te, o trabalho de gestantes e lactantes em ambientes insalubres, demonstrando
como o capital tende a utilizar os mecanismos de que dispõe para legitimar a
intensificação da exploração sobre o trabalho da mulher.
O resultado é a normatização vigente que, embora tenha enfrentado críticas
em razão de permitir o trabalho das gestantes e lactantes em locais expostos a
fatores prejudiciais, permanece em vigor mesmo após a edição da Medida Pro-
visória n. 808/17, a qual decaiu após 120 dias em vigor. Desse modo, busca-se
problematizar a legitimação dada no campo jurídico a estes discursos flexibili-
zadores e precarizadores do trabalho das mulheres.

584
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

1. O avanço do neoliberalismo no mundo do trabalho


e a flexibilização nos direitos das mães trabalhadoras
A Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17), aprovada e sancionada no ano de
2017, consiste em uma resposta explícita à conjuntura de crise por parte das
diversas frações da burguesia. Conforme afirmado por Netto (2012), essas cri-
ses são inerentes ao sistema capitalista e tendem a ocorrer em períodos não
datáveis, constituindo, a partir da depressão inicial, um processo de retirada
de direitos que tende a dar início a uma nova forma de reprodução do capital.
Como reflexo disso, a classe trabalhadora paga o preço mais alto para lidar
com os impactos promovidos. De um lado, o discurso ideológico da Reforma Tra-
balhista afirma que os fins buscados visam a retomada da economia, do emprego
e da renda, à medida que são elevadas as condições de competitividade e produti-
vidade do país. No entanto, o que se pode observar, na verdade, é o crescimento
vertiginoso da precarização do trabalho que, quando visto sob a ótica da radica-
lização do ideário neoliberal imposto à classe trabalhadora, leva à construção de
um grande obstáculo à resistência e organização (CARDOSO, 2016).
O artigo 394-A da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) é a norma le-
gal objeto de contextualização e análise no presente estudo, a qual é enxergada
como reflexo deste contínuo processo de flexibilização dos direitos trabalhistas
sob o avanço de políticas neoliberais. A partir da modificação de sua reda-
ção pela Reforma Trabalhista, trabalhadoras gestantes e lactantes puderam ser
submetidas a trabalhos insalubres, o que antes era expressamente proibido por
força da Lei 13.287/162.
De acordo com Biroli (2016), as abordagens feministas marxistas referencia-
ram o debate teórico nas análises sobre gênero e trabalho das últimas décadas.
Considerando que a posição das mulheres nas relações de poder a que estão
submetidas é historicamente marcada pela exploração, seja pelo gênero – atra-
vés do patriarcado –, seja pelo capitalismo – através da apropriação da força de
trabalho –, a Reforma Trabalhista apenas se apresenta como uma manutenção,
por parte do Estado burguês, da lógica histórica capitalista de dominação.

2 O art. 394-A dispunha, a partir da referida lei, da seguinte redação: “Art. 394-A. A empregada
gestante ou lactante será afastada, enquanto durar a gestação e a lactação, de quaisquer atividades,
operações ou locais insalubres, devendo exercer suas atividades em local salubre. Parágrafo
único. (VETADO).”

585
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Tanto é que a partir dos anos 1970, no contexto de surgimento do neo-


liberalismo e na tentativa de contenção da crise de acumulação (CARDO-
SO, 2016), pôde-se notar um aumento progressivo e significativo da parti-
cipação das mulheres no mercado de trabalho. Naquele ano, segundo dados
da Fundação Carlos Chagas (1998)3, 18% das mulheres brasileiras exerciam
trabalhos remunerados; já em 2015, de acordo com o Boletim Anual Mulhe-
res e Mercado de Trabalho (UCS, 2017) a taxa de ocupação das mulheres
em vínculos formais de trabalho chegaria a 43,7%. Essa maior ocupação en-
tre as mulheres representa mudanças importantes nas relações de trabalho
como um todo e nas relações de gênero dentro deste campo, pois a demanda
do mercado por mão-de-obra esteve em conflito com as estratégias históri-
cas de dominação do patriarcado.
Desse modo, o fato de a mulher ter alterado seu campo de atuação, saindo
do ambiente doméstico para a ocupação de postos externos de trabalho, não
significou o fim da dinâmica de opressão sofrida, uma vez que a exploração
apenas passou da esfera privada para o que Walby (1990) apud Biroli (2016)
chamou de “patriarcado público”. Nesse sentido,

Estado e mercado de trabalho passariam a ser as dimensões em que os


constrangimentos se organizam e se institucionalizam. Novas formas de
inclusão das mulheres seriam então acompanhadas de formas também
renovadas de opressão e de controle. (BIROLI, 2016, p. 728)

É dentro dessa perspectiva, pois, que autores como Harvey (2005) e Alves
(2009) aduzem que o Estado se incorpora na lógica capitalista de tal forma
que, ao invés de garantir o interesse comum e a proteção às trabalhadoras, atua
como principal propulsor da precarização de seus direitos, adotando medidas

3 No Brasil, a produção de dados relevantes sobre o tema das mulheres no mundo do trabalho foi um dos
destaques na atuação da equipe de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas. Entre suas contribuições
está o Banco de Dados Sobre o Trabalho das Mulheres, possuindo o gênero como referencial teórico,
acrescido do envolvimento e comprometimento com a luta feminista. Foi nesse sentido que as
pesquisadoras orientaram as perguntas feitas, as informações procuradas e a maneira de analisar e
apresentar os dados, utilizando a comparação das informações sobre homens e mulheres com o fito de
constatar diferenças e/ou semelhanças do gênero no fator trabalho. Este Banco de Dados foi lançado na
plataforma digital da Fundação Carlos Chagas em 1998 e foi atualizado três vezes: uma em 2000, outra
em 2002 e a última em 2007, limitando as informações atualizadas a este último ano, após uma década
de análises e estatísticas sobre o trabalho sob a ótica das relações de gênero.

586
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

neoliberais que marcam a ordem sociometabólica do capital, dando continui-


dade a essa opressão.
A possibilidade de trabalhadoras que estejam grávidas ou amamentando po-
derem laborar em atividades insalubres em grau médio ou mínimo – exceto quan-
do apresentarem atestado médico que recomende seu afastamento – demonstra
o quanto a nova redação dada ao artigo 394-A corrobora a vulnerabilidade a que
estão submetidas diante da nova realidade trazida pela Reforma Trabalhista.

2. As tensões existentes entre os marcos normativos como


reflexo das políticas neoliberais
Diante desse cenário de baixa densidade de proteção aos direitos e da con-
sequente caracterização da força de trabalho como mercadoria, a precariedade
se apresenta como uma condição intrínseca do trabalho dentro da ordem ca-
pitalista (ALVES, 2007), e esse contexto não seria diferente para as mulheres.
Embora afronte a “estratégia do patriarcado em manter as mulheres em
casa e privatizar seu trabalho” (BIROLI, 2016), o despertar da mulher para
todas as possibilidades de ocupação social de que dispõe não é um elemento
que se traduz como libertação. Pelo contrário, a mudança do papel feminino
é um resultado combinado das lutas feministas e das forças capitalistas que
mascaram a condição de precariedade do trabalho sob o capitalismo sem,
por conseguinte, findá-la.
Desse modo, um dos caminhos trilhados com a finalidade de encampar uma
sequência de ataques contra as mulheres trabalhadoras e reduzir os direitos
conquistados foi a intensificação da exploração sobre seu trabalho, tendo a for-
ma jurídica como um dos principais aliados. De acordo com Pachukanis (1988,
p. 24), “a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para
que o momento jurídico esteja plenamente determinado nas relações sociais”, e
é por ser burguês que o discurso jurídico serve como mecanismo legitimador de
afrontas à classe trabalhadora.
É nesse contexto que a própria justificação trazida no texto substitutivo do
Projeto de Lei 6.787/20164 reflete a precarização trazida pela Reforma Traba-

4 Projeto do ano de 2017 que se transformou na Reforma Trabalhista, de relatoria do Deputado


Rogério Marinho (PSDB). Visava, inicialmente, alterar o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

lhista às mulheres gestantes e lactantes. A fim de que fosse dada nova redação
ao art. 394-A da Consolidação das Leis Trabalhistas, os argumentos político-ju-
rídicos fundaram-se na suposta manutenção da previsão constitucional de não
discriminação de gênero no mercado de trabalho. No entanto, o que se pôde
perceber foi mais um ataque ao campo das relações trabalhistas, verificando-se
a intensificação da precariedade na regulação dos direitos das mulheres.
O novo texto trazido ao dispositivo pela Lei 13.467/17 inverteu a lógica
constante da Lei 13.287/16 – sancionada pela presidenta Dilma Rousseff
(PT) – acabando com a vedação até então obrigatória quanto ao exercício,
por mulheres gestantes e lactantes, de atividades em ambientes expostos a
qualquer grau de insalubridade.
Em suma, a transmutação brutal gerada pela contrarreforma possibilita a
identificação de três grandes modificações no trabalho da mulher gestante ou
lactante. A primeira está na possibilidade de que mulheres grávidas trabalhem
em locais insalubres, sendo vedado somente o exercício de atividades com ex-
posição em grau máximo. A segunda é a introdução do atestado médico como
fator que legitima o trabalho em postos insalubres em graus médio e mínimo, só
havendo afastamento diante de recomendação médica. Já a terceira diz respeito
à possibilidade das lactantes trabalharem em local insalubre em qualquer grau,
consistindo em um retrocesso ainda maior nos direitos que conferem proteção
à maternidade e à infância.
Deve-se entender por “insalubre” toda e qualquer atividade que, por sua
natureza, condição ou método de trabalho, exponha a trabalhadora a agentes
que possam trazer prejuízos à saúde. Há na CLT, dipostas ao longo do Capitulo
V da Seção XIII – que trata sobre Segurança e Medicina do Trabalho – nor-
mas atinentes às atividades insalubres ou perigosas, bem como regulamentação
específica na Norma Regulamentadora 15 (NR-15) do Ministério do Trabalho.
Tendo em vista que a vedação total para o trabalho da gestante em grau máxi-
mo de insalubridade está restrita a poucas hipóteses,

alguém pode achar que a expressão “grau máximo” representa um gesto


nobre por parte da reforma de 2017, ao tentar proteger as mulheres

1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre
eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e sobre trabalho temporário, mas
acabou se alargando de tal forma a ponto de modificar substancialmente a CLT, alterando mais de
duzentos de seus dispositivos.

588
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

grávidas dos maiores perigos. Mas no campo da higiene ocupacional,


nada é o que parece. Ao longo dos 14 anexos da NR 15, somente existe
o grau máximo com alguns agentes químicos e com agentes biológicos
em risco exacerbado, como centros cirúrgicos, limpeza de bueiros e
trabalhos em necrotérios. Há também grau máximo no contato com
radiação ionizante (cancerígena) e com as pressões elevadas para os
trabalhadores submersos. (SILVA, 2017 apud SOUZA, 2017)

Assim, embora a legislação trabalhista previsse, em determinado momento,


certas garantias em favor das trabalhadoras, Maior e Severo (2017) apud Souza
(2017) enxergam a proteção a quem trabalha – para o efeito de estabelecer os
limites da exploração – como um conjunto mínimo de normas que permitem
que o trabalho continue sendo explorado pelo capital, mas dentro de parâme-
tros socialmente aceitáveis. Com base nessa análise, identifica-se que a Reforma
Trabalhista passou a admitir a permanência de gestantes e lactantes em locais
com ruídos excessivos ou ruídos de impacto, com exposição ao calor e ao frio
elevados, à radiação não-ionizante, à vibrações, à umidade, à poeira mineral e a
boa parte de agentes químicos e biológicos referenciados na NR-15.
Em contrapartida ao que se perfilhou com a contrarreforma promovida pelo
governo ilegítimo de Michel Temer (PMDB), a antiga redação do art. 394-A ga-
rantia que a trabalhadora gestante ou lactante fosse afastada, enquanto durasse
a gestação ou lactação, das atividades, operações ou locais que as expusessem
a condições insalubres de trabalho. Parte dos argumentos que fundamentaram
o Projeto de Lei 814/2007 – transformado na Lei Ordinária 13.287/16 durante
o governo petista – consideravam o trabalho em ambientes insalubres como
inegavelmente prejudicial não só para as mães, mas principalmente para o feto
e para a criança em fase de amamentação.
Já diante do atual cenário, as alterações promovidas trazem condições va-
riáveis quanto ao trabalho da gestante em condições insalubres já que, ex-
cetuando a insalubridade em grau máximo, a trabalhadora apenas poderá
requerer afastamento se apresentar atestado médico. No caso da lactante, terá
que apresentar atestado para se afastar de ambiente insalubre em qualquer
grau, demonstrando a regressividade normativa (COURTIS, 2006 apud BAL-
DIVIESO, 2018) quando comparadas ambas as legislações e os reflexos que
acarretam ao trabalho das mulheres.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

3. A Medida Provisória n. 808/17 e a forma jurídica como


reprodutora das relações capitalistas de exploração
O texto da Reforma Trabalhista foi publicado no Diário Oficial da União
em 14 de julho de 2017, mas só passou a vigorar no mês de novembro deste mes-
mo ano. Assim como a previsão constante do art. 394-A, tantas outras trazidas
pela Lei 13.467/17 foram alvo de duras críticas, uma vez que todo o texto da
contrarreforma demonstra medidas que legitimam e aprofundam os ataques da
burguesia aos direitos dos trabalhadores.
Diante desse cenário, surgiram debates em torno das alterações substan-
ciais promovidas pela Reforma Trabalhista, de modo que a pressa para apro-
vação do texto evidenciou a fragilidade do projeto reformista e a necessidade
pujante de acordos entre os líderes governistas para que a proposta se fizesse
aceitar. Assim, tentando eliminar o risco de uma derrota completa das pro-
posições, o que exigiria uma nova rodada deliberativa na Câmara dos Depu-
tados, o presidente Michel Temer se comprometeu com os senadores da base
governista a editar uma Medida Provisória para ajustar pontos sensíveis e
polêmicos da Reforma. Essa perspectiva se materializou com a publicação da
Medida Provisória n. 808 em 14 de novembro de 2017, três dias após o início
da vigência da Reforma Trabalhista.
No entanto, de acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar (2017)5, a MP 808/2017 recebeu 967 propostas de emendas du-
rante sua tramitação no Congresso Nacional. O tema “Empregada gestante ou
lactante” ocupou o terceiro lugar dentre os pontos mais questionados da Refor-
ma Trabalhista, representando 6% da porcentagem total, com 58 emendas que
questionavam especificamente o art. 394-A, demonstrando um volume subs-
tancial de controvérsias em torno da matéria.
Na redação final proposta pela MP 808/17, houve nova alteração do art.
394-A6, invertendo a lógica trazida pela Lei 13.467/17, e colocando novamente

5 O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) foi fundado em 19 de


dezembro de 1983, estruturado para atuar nos Poderes da República, em especial no Congresso
Nacional e, excepcionalmente, nas assembléias legislativas e câmaras de vereadores, no sentido
da institucionalização e da transformação em normas legais das reivindicações predominantes,
majoritárias e consensuais da classe trabalhadora.
6 Durante a vigência da Medida Provisória n. 808, o art. 394-A passaria a ter a seguinte redação: “Art.
394-A. A empregada gestante será afastada, enquanto durar a gestação, de quaisquer atividades,

590
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

como regra a impossibilidade de a trabalhadora gestante laborar em quaisquer


atividades insalubres. A apresentação voluntária de atestado médico também
foi permitida nos casos em que houvesse interesse da grávida em continuar
desempenhando suas funções nos postos de trabalho com insalubridade nos
graus médio e mínimo.
Não obstante, em que pese as expectativas geradas por esta devolução de
algumas garantias retiradas pela Reforma Trabalhista, a MP 808/17 permane-
ceu válida por um período de apenas 120 dias, tendo-se encerrado o prazo de
vigência em 23 de abril de 2018 sem que virasse lei. Para que as modificações
propostas pela MP surtissem efeitos definitivos, era preciso a instituição de uma
Comissão Mista na Câmara para consolidar os acordos entre as duas Casas
Legislativas. Porém, como a função do Estado é defender os interesses da classe
dominante e garantir a reprodução das relações de produção, Althusser (1980)
nos permite enxergar esse tipo de coalizão como um aparelho ideológico de
Estado que tem, no campo jurídico, a possibilidade de assegurar e reproduzir as
relações de exploração capitalistas. Neste sentido, a Medida Provisória perma-
neceu paralisada até que perdesse a eficácia, retomando a situação de retrocesso
do art. 394-A por pura inércia dos parlamentares.
Partindo da crítica Pachukaniana (1988), há uma impossibilidade de analisar
o conteúdo destas normas apenas restringindo-o a um conjunto lógico-formal
consubstanciador de um ordenamento coercitivo externo. Se a raiz da forma
jurídica está na realidade social concreta, a imposição das tensões normativas
às mães trabalhadoras reflete o processo de diluição de direitos e de imposição
da nova ordem sociometabólica do capital (ALVES, 2007) na constituição de
um mundo do trabalho cada vez mais precário.
Neste sentido, o fato de a MP 808/17 ter caducado sem modificar os pontos
da Reforma Trabalhista a que se propôs, reflete que

operações ou locais insalubres e exercerá suas atividades em local salubre, excluído, nesse caso, o
pagamento de adicional de insalubridade. § 2º O exercício de atividades e operações insalubres
em grau médio ou mínimo, pela gestante, somente será permitido quando ela, voluntariamente,
apresentar atestado de saúde, emitido por médico de sua confiança, do sistema privado ou público
de saúde, que autorize a sua permanência no exercício de suas atividades. § 3º A empregada lactante
será afastada de atividades e operações consideradas insalubres em qualquer grau quando apresentar
atestado de saúde emitido por médico de sua confiança, do sistema privado ou público de saúde, que
recomende o afastamento durante a lactação.”

591
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A precarização possui um significado concreto: ela atinge o núcleo


organizado do mundo do trabalho que conseguiu instituir, a partir
da luta política e social de classe, alguma forma de controle sobre
suas condições de existência através de mediações juridico-politicas.
(...) atinge os proletários sujeitos de direitos e que hoje são vítimas da
“flexibilização do trabalho”, sendo usurpados pelo poder das coisas ou
pelas leis de mercado. (ALVES, 2007, p. 115)

A partir dessa nova dimensão histórica em que houve o esgotamento das


margens de concessão política do capital (ALVES, 2007), o neoliberalismo se
impõe como um projeto para a classe trabalhadora, tendo como principal ob-
jetivo a flexibilização de seus direitos e a continuidade da política de desregu-
lação do trabalho. Aliada ao discurso jurídico, esta política de opressão produz
e reproduz relações pautadas em violências sistêmicas contra as mulheres, rele-
gando suas esferas mais íntimas de saúde e proteção a normas eivadas de preju-
dicialidade, assim como se observa nas modificações trazidas pela Lei 13.467/17
ao art. 394-A da Consolidação das Leis Trabalhistas.

Considerações finais
Ao longo das exposições feitas sobre a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17), bus-
cou-se responder a seguinte questão: como o neoliberalismo atua moldando a forma
jurídica de modo a flexibilizar os direitos das mães trabalhadoras? Para tanto, buscou-
-se tratar dos discursos e argumentos político-jurídicos que forneceram as bases de
legitimação das mudanças promovidas, analisando o contexto histórico da explo-
ração feminina e as novas roupagens de opressão através do mundo do trabalho.
A tensão existente entre os marcos normativos permitiu inferir que os ata-
ques lançados contra as mães trabalhadoras possuem dimensão diretamente
relacionada com a forma de organização social das relações de trabalho, uma
vez que o corpo e a força de trabalho feminina são vistos como mão-de-obra
útil e eficaz para a consolidação e expansão das forças produtivas do capital
(DOMBKOWITSH, 2018). Assim, através das relações de poder que constro-
em as estruturas vulneráveis da legislação trabalhista, perpetuam-se retrocessos
quando da regulação dos direitos das mães trabalhadoras.
Embora o Brasil seja signatário da Convenção n. 183 da Organização Inter-
nacional do Trabalho e tenha se comprometido internacionalmente a adotar

592
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

medidas necessárias para que as mulheres não fossem submetidas a realizar tra-
balhos prejudiciais à sua saúde ou à saúde de seu filho7, a ausência de proteção
às gestantes e lactantes é tão imbricada à lógica de poder explícita no sistema
jurídico que afrontas como as constantes do art. 394-A tendem a ser viabiliza-
das. Neste mesmo sentido, a derrocada da Medida Provisória n. 808/17 devido
a acordos não fechados entre as Casas Legislativas demonstra a atuação golpis-
ta entre governo e parlamentares, bem como a perpetuação dos privilégios do
grande capital através da ampliação das possibilidades de exploração da força
de trabalho das mulheres.
Assim, se as relações de poder utilizam o discurso jurídico como meio de im-
posição das formas de subjugação e de dominação das sujeitas, os ciclos de crise
associados à alternativa neoliberal imposta pelo governo usurpador à classe tra-
balhadora devem consistir no principal catalisador da resistência e organização
(CARDOSO, 2016). Como o desrespeito aos direitos das mães trabalhadoras
se reflete na “posição de desvantagem das mulheres (...) nos novos padrões de
organização do trabalho no capitalismo” (BIROLI, 2018), entende-se que a pro-
blematização destes ataques deve conduzir à capacidade de lutar por reconhe-
cimento político e pela implementação de condições sociais que imponham
transformações nestas relações de poder.
Conforme a discussão exposta, as mudanças promovidas na situação de
trabalho das gestantes e lactantes no Brasil podem ser diretamente relacionadas
às atuações do sistema jurídico de poder que produz os sujeitos e limita seus

7 A Convenção n. 183 dispõe sobre a Proteção da Maternidade e foi convocada em Genebra (SWI)
pelo Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho. Dentre inúmeras
convenções e recomendações no campo do trabalho que a consubstanciaram, a Convenção n. 183
buscou melhorar a promoção da igualdade de todas as mulheres que trabalham, bem como a saúde e
a segurança da mãe e da criança. A fim de reconhecer a diversidade do desenvolvimento econômico
e social dos Membros, bem como a diversidade das empresas e o desenvolvimento da proteção da
maternidade nas legislações e nas práticas nacionais, propõe como uma necessidade assegurar a
proteção da gravidez, uma vez que esta medida se constitui numa responsabilidade partilhada pelos
poderes públicos e pela sociedade. Desse modo, uma vez que o Brasil é signatário e ratificou a referida
Convenção, obrigou-se, por força do art. 3º, ao seguinte: “Art. 3º. Qualquer Membro deve, após
consulta das organizações representativas dos empregadores e dos trabalhadores, adotar as medidas
necessárias para que as mulheres grávidas ou que amamentam não sejam obrigadas a executar um
trabalho que tenha sido determinado pela autoridade competente como prejudicial à sua saúde ou
da sua criança, ou que tenha sido considerado, através de uma avaliação, que comporta um risco
significativo para a saúde da mãe ou da criança.”.

593
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

direitos, legitimando ataques através de um mecanismo que deveria ser utilizado


para oferecer proteção. Segundo Butler (2014) apud Dombkowitsh (2018),

a formação jurídica da linguagem e da política que representa as


mulheres como sujeito é formad[a] através de um discurso que em
tese, deveria facilitar a “emancipação” das mulheres, no entanto, se
transforma em um sistema que produz esse sujeito dentro de padrões de
dominação, contribuindo para o fracasso da tão desejada emancipação.
(DOMBKOWITSH, 2018, p. 12)

Desse modo, se a redação dada ao art. 394-A da CLT reflete a sobreex-


ploração do trabalho das mulheres, estando ligada intimamente à continui-
dade da dinâmica de opressão sofrida, a real emancipação só se dará com
práticas subversivas que questionem as relações de poder tanto de gênero
quanto da forma jurídica.
Se a implementação das políticas neoliberais atua atacando e aneste-
siando a capacidade de organização da classe trabalhadora, a resistência às
investidas é fator fundamental na luta pela implementação de condições
sociais e políticas que assegurem o reconhecimento dos direitos das traba-
lhadoras e desconstruam as relações de poder marcadas pela subalternidade
e precarização do trabalho das mulheres.

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597
Cooperativas e expansão da informalidade -
formas atuais de controle do trabalho

Sthephane Dutra dos Santos1


Reivan Marinho de Souza2

1. Introdução
A relevância desta pesquisa deve-se a expansão das cooperativas de auto-
gestão e do trabalho informal na contemporaneidade e seus impactos nas con-
dições de vida e de trabalho da classe trabalhadora no contexto da reestrutura-
ção produtiva. Com a crise estrutural do capital de 1970, que se expressa até os
dias atuais, atinge o cerne do sistema sócio-metabólico do capital e, a resposta
à crise via reestruturação produtiva altera a dinâmica da produção capitalista,
das relações de trabalho e das condições de reprodução da classe trabalhadora.
A reestruturação produtiva provocou inúmeras alterações na produção capi-
talista impactando sobre a classe trabalhadora, a exemplo do crescimento do
setor informal e das relações flexíveis de trabalho (subcontrato, temporalidade,
partime), fenômenos que se generalizam com o avanço da produção flexível nos
países periféricos nos anos de 1990. As cooperativas de autogestão e o traba-
lho informal são reeditados enquanto fenômeno social como alternativa à crise
em face do crescimento do desemprego estrutural. Dissemina-se o discurso de
autonomia das relações econômicas/ produtivas com as cooperativas de produ-
ção (autogestão), cujo pressuposto é que os trabalhadores teriam o controle da
produção, do processo e das relações de trabalho. Analisamos se elas realmente

1 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Membro do Grupo de
Pesquisa Sobre Reprodução Social – (GPSRS/UFAL).
2 Mestre e Doutora em Serviço Social, Professora Associada II dos cursos de graduação e pós-
graduação em Serviço Social – (FSSO/UFAL).

599
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

representam uma alternativa para a superação do capital, não só como trabalho,


mas suas condições para a melhoria de vida dos trabalhadores ou se sua expan-
são deve-se apenas a funcionalidade das cooperativas e do trabalho informal à
reprodução capitalista. Para tanto, apreendemos os fundamentos ontológicos
do trabalho abstrato e a bases da produção capitalista, a crise estrutural do
capital e a reestruturação capitalista dos anos 1980 e seus impactos para os
trabalhadores, analisamos a proposta da “economia solidária”/ das cooperativas
e a expansão do trabalho informal.

2. Desenvolvimento
A pesquisa realizada nos proporcionou entender a expansão das coopera-
tivas nos anos 2000, seus nexos com o trabalho informal e sua funcionalidade
à produção capitalista dominante. Para analisar tal fenômeno, apreender sua
dinâmica e complexidade, nos referenciamos nos fundamentos ontológicos
do trabalho cooperado/ abstrato, recorremos historicamente as bases do ca-
pitalismo monopolista, as expressões da crise estrutural e a reestruturação
produtiva dos anos 1980 para entender como funcionalmente se articula aos
processos de produção capitalista.
Conforme Marx (1996), a cooperação é a base da produção capitalista, ela
inicia-se quando o capitalista concentra uma massa de trabalhadores – traba-
lhando juntos ou no mesmo campo de trabalho, estendendo seu processo de
trabalho e, consequentemente aumentando de forma considerável sua produ-
ção em relação ao que produzia anteriormente. A produção exige um mínimo
de qualidade da força de trabalho, que é chamada de qualidade social média.
De toda a produção é calculada a média, e Marx exemplifica que pouco se
difere a qualidade de um trabalhador para outro, pois a excelência de um com-
pensará a fragilidade do outro. Essa fragilidade é intitulada de desvios “esses
desvios individuais, chamados em Matemática de “erros”, compensam-se e de-
saparecem, tão logo se tome um número maior de trabalhadores em conjunto”.
(MARX, 1996, p. 440).
Mesmo que a taxa de mais-valia extraída do trabalhador seja a mesma,
o emprego simultâneo, ou seja, a contratação em massa e essa concentração
em um mesmo campo de trabalho são benéficas para o capitalista. Em longo
prazo, há uma redução de custo favorecendo-o, visto que na medida em que o

600
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

local e os meios de produção são utilizados coletivamente, o gasto é obviamente


inferior. Em suma, a cooperação é um sistema produtivo básico à produção
capitalista, sendo benéfico ao capital, em que o trabalho é feito coletivamente
por uma massa de trabalhadores na produção fabril, “a forma de trabalho em
que muitos trabalham planejadamente lado a lado e conjuntamente, no mesmo
processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos,
chama-se cooperação”. (MARX, 1996, p. 440).
Marx traz exemplos em que algumas produções específicas só puderam ser
feitas através do trabalho combinado, e em hipótese alguma pelo trabalho in-
dividual. O trabalho individual muitas vezes gasta maior tempo para produzir
determinado produto, não satisfazendo o capital, como não será possível ser
feito isoladamente, em longo tempo e em pouca escala “o efeito do trabalho
combinado não poderia neste caso ser produzido ao todo pelo trabalho indivi-
dual ou apenas em períodos de tempo muito mais longos ou somente em ínfima
escala”. (MARX, 1996, p. 442).
Assim, o trabalho cooperado é o ponto de partida da produção capita-
lista e esse modo de produzir incide de acordo com o desenvolvimento do
sistema do capital e nas formas de acumulação. Essa é a forma adotada até
os dias de hoje, visto que é a melhor forma de extrair mais-valia da classe
trabalhadora. E evidencia que a cooperação é própria do capitalismo e da
produção em grande escala, a única aproximação constatada foi com a ma-
nufatura, porém mesmo eles trabalhando conjuntamente, a diferença se dá
por não terem uma quantidade maior de trabalhadores e pela quantidade de
concentração dos meios de produção.
A cooperação constitui o modo de ser da organização produtiva capitalista,
não corresponde a um momento específico ainda que se concretize na forma
de cooperação simples ou complexa. O trabalho cooperado adquire sua forma
clássica na manufatura, momento em que se consolida a divisão social do tra-
balho, transformando-se numa divisão sociotécnica com a hierarquização entre
trabalho manual e intelectual, o artesão que antes realizava todas as etapas do
processo produtivo, agora exerce de forma fragmentada, repetitiva e continu-
amente apenas uma única operação. Este momento tem como característica
principal o trabalhador parcial enquanto força motriz da sua ferramenta, sem
a força humana a ferramenta seria inutilizada. A manufatura criou uma or-
ganização produtiva estritamente capitalista, no entanto seus limites técnicos
(objetivos e subjetivos) – trabalhador parcial preso à ferramenta – impediram

601
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

a expansão da sua produção em larga escala. Essa exigência da reprodução do


capital gerou seu desgaste e sua substituição pela grande indústria.
É com a grande indústria que ocorre o investimento da ciência a tecnolo-
gia, a maquinaria, seu desenvolvimento representou objetivamente um grande
avanço para a acumulação do capital de forma expansiva. Marx (1996) afirma
que não é finalidade da maquinaria, no capitalismo, aliviar o sofrimento do ser
humano, mas sim, potencializar a extração de mais-valia relativa, para baratear
a produção de mercadorias, da força de trabalho e encurtar a jornada de traba-
lho, intensificando assim a exploração e subordinação do trabalho ao capital.
Para alguns economistas, a máquina é apenas uma evolução da ferramenta,
entretanto, eles ignoram um elemento histórico, não se trata de uma mera “evo-
lução” técnica e sim da necessidade de expansão do mercado via desenvolvi-
mento das forças produtivas.
Há uma diferença crucial entre o período manufatureiro e a grande indús-
tria. Na manufatura, o trabalhador era força motriz de sua ferramenta, sem ele
a ferramenta seria inutilizada. Com o desenvolvimento das máquinas, neces-
sita-se de uma força natural (animal, hidráulica, eólica) tornando a força de
trabalho um mero apêndice da máquina, um meio de produzir valor. Tanto a
força física quanto a subjetividade do trabalhador, essa mudança faz com que o
trabalhador seja mais subordinado e se adeque ao processo de produção.
A ferramenta e as condições corpóreas do trabalhador limitavam todo o
processo de produção, houve algumas tentativas de o trabalhador executar
duas atividades simultaneamente, porém era praticamente impossível. Portanto,
dada limitação é um elemento para tal desenvolvimento, visto que só a máqui-
na atingiria esse nível. Com a utilização reduzida da força física, o trabalhador
por intermédio da maquinaria pode executar várias tarefas simultaneamente,
no processo de trabalho a máquina “substitui o trabalhador, que maneja uma
única ferramenta, por um mecanismo que opera com uma massa de ferramen-
tas iguais ou semelhantes de uma só vez, e que é movimentada por uma única
força motriz” (MARX, 1996, p. 11). Após as ferramentas se transformarem, a
máquina adquire sua forma totalmente emancipada, com ela as etapas são con-
tínuas e a força de trabalho não é mais principal e sim assistente. Neste período
de revolucionamento da produção capitalista e das forças produtivas reduz-se
a absorção do trabalho vivo, e com isso ocorrem impactos significativos para a
força de trabalho, dentre eles o desemprego, a intensificação da exploração do

602
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

trabalho, a precarização das condições e relações de trabalho e o surgimento


trabalho domiciliar.
Marx (1996) explica que o trabalho domiciliar, dependente/subordinado às
demandas produtivas da grande indústria capitalista, pressupõe uma economia
com unidades produtivas supostamente “autônomas”, sob o controle do traba-
lhador e de sua família. Contudo, efetivamente essas unidades produtivas re-
querem a ampliação do tempo de trabalho, com isso intensifica-se a extração de
mais valia relativa, precarizando as condições e relações de trabalho, diminuin-
do a capacidade de resistência dos trabalhadores. É roubado do trabalhador não
só seu tempo de trabalho, mas as condições necessárias para realização do seu
trabalho, como espaço, luz, higiene (insalubridade), proteção social (direitos so-
ciais) e a irregularidade na garantia de emprego. Sendo assim, entendemos que
as primeiras formas de trabalho informal surgem na grande indústria moderna
no século XVIII com o trabalho domiciliar nas mistress houses, um componente
que o capital movimenta por “fios invisíveis” a produção capitalista.
Portanto, com a mecanização do trabalho o trabalhador não tem mais auto-
nomia sobre seu meio de trabalho. É de forma automática que se realizam todas
as etapas e operações da produção, fazendo o trabalhador se adequar a esse
novo ritmo e tornando-o um mero apêndice da máquina. Os efeitos dessa me-
canização afetam a reprodução da vida social do trabalhador, assim, a grande
indústria vai consolidar a forma mais elevada de exploração e subordinação do
trabalhador pelo capitalista, agravando a contradição capital x trabalho.
Vimos com a transição do século XIX para o XX, da passagem do capi-
talismo concorrencial para o monopolista, o avanço do desenvolvimento das
forças produtivas e o despontar de uma forma de acumulação, inteiramente
integrada à dinâmica acelerada da reprodução do capital, em particular do
avanço do capital financeiro. De acordo com Antunes (2009), após um perí-
odo extenso de acumulação do capital (anos gloriosos do capitalismo – 1830
a 1870) ocorre no início da década de 70, o ápice do taylorismo/fordismo e da
fase keynesiana que entra em cenário critico, a crise estrutural do capital que
afeta todo o sistema sócio-metabólico do capital. Em resposta à crise, desen-
cadeia-se um processo de reestruturar a produção e seu sistema de acumula-
ção que ocasionou diversas mudanças no mundo do trabalho e em toda orga-
nização da sociedade, sendo mais evidente a consolidação do neoliberalismo,
marcada principalmente pela privatização do Estado, desregulamentação do
trabalho, desarticulação do setor produtivo estatal e a ofensiva do capital e do

603
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Estado contra a classe trabalhadora. A reestruturação produtiva tenta recupe-


rar o padrão de acumulação – que se tinha anteriormente, resultando várias
transformações no processo produtivo, dentre elas a produção flexível como
a mais expressiva. A produção flexível substitui elementos do taylorismo/for-
dismo, flexibilizando os contratos, as relações de trabalho e toda a produção,
aumentando a exploração de mais valia relativa.
As contradições que são imanentes à reprodução do capital, são ativadas
com a crise estrutural, trazendo novas mudanças e significados para o trabalho,
como as relações informais de trabalho, fenômeno social que generaliza com
a produção flexível. O debate acerca do trabalho informal ganha destaque na
década de 70 e 80, não por sua novidade, mas por sua tendência à expansão
e funcionalidade à reprodução do capital. O destaque deve-se a forma que ela
vem sendo utilizada, frente ao novo padrão flexível de acumulação.
Conforme Tavares (2004), a Organização Internacional do trabalho (OIT)
foi responsável pelas primeiras pesquisas sobre o trabalho informal, no Rela-
tório do Quênia produzido por pesquisadores da OIT, este relatório avaliava a
evolução do emprego urbano e da renda nos países em desenvolvimento, prin-
cipalmente, nos países mais desenvolvidos. Resultado disso foi uma aborda-
gem dualista, em que se dividia trabalho “formal” e “informal”. Os pesquisa-
dores da OIT qualificavam o trabalho “informal” como unidades produtivas
atrasadas e desorganizadas, com o argumento de pouco desenvolvimento tec-
nológico e organizacional, que deveria ser superada via políticas desenvolvi-
mentistas, com a expansão do capitalismo. Com o avanço da crise estrutural
dos anos 1970, o Estado e o grande capital perceberam a funcionalidade do
setor à reprodução capitalista, com isso muda-se o discurso e as ações estatais
em termos das políticas de emprego e renda na perspectiva do trabalho infor-
mal responder ao desemprego estrutural. Então, o trabalho informal ressurge
com outro aspecto e com o discurso de resposta ao desemprego, e agora rece-
bendo incentivo do Estado, dos organismos financeiros internacionais como
o Banco Mundial e o FMI, e da sociedade civil. Relacionando o mercado in-
formal como uma atividade de sobrevivência e não como um fenômeno social
integrado à dinâmica capitalista.
Para Tavares (2004), a informalidade enquanto um fenômeno social
típico da área do trabalho se expressa em várias formas: nas cooperativas de
autogestão, no trabalho domiciliar, na micro e pequena empresa, podendo
ser trabalho produtivo, improdutivo ou numa forma em que não é nenhum

604
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

dos dois, a depender da sua relação com o mercado. Formas essas que negam
suas características ditas autônomas e expressam ao contrário, uma explicita
subordinação à grande indústria capitalista na era monopolista. A autora
salienta que o trabalho informal se por um lado sofre as mesmas regulações
econômicas do trabalho formal, por outro, são impactados com as perdas de
direitos trabalhistas e da garantia de postos de trabalho, o que se amplia cada
vez mais no universo da informalidade. A ampliação da informalidade tem a
proteção de mecanismos oferecidos pela própria justiça do trabalho, para que
se desenvolvam sem ocasionar custos ao capital, assim, a desregulamentação
do trabalho, pretende eliminar o trabalho formal, transformando os agentes
econômicos em trabalhadores autônomos e independentes. A maioria desses
trabalhadores só são proprietários da sua força de trabalho, são poucos que
conseguem adquirir algum bem, o que não o torna capitalista, visto que,
a finalidade do capital é acumular e deter os meios de produção, o que não
acontece com os ditos “independentes”. Seus defensores sugerem que a simples
ausência de vínculo empregatício transforma trabalhadores independentes
em possuidores de meios de produção, abolindo o regime salarial. Sob essa
orientação, a relação entre iguais é uma falácia.
A descentralização/desterritorialização da produção em plantas industriais
distribuídas no mundo inteiro “provoca a reemergência de velhas formas de tra-
balho precário, originárias de uma forma de exploração mais intensa” (TAVA-
RES, 2004, p.198), ampliando o trabalho informal. No entanto, destaque-se que
esse trabalho informal na atualidade cumpre a mesma função do formal. Esse
ressurgimento é facilitado pelo amparo jurídico, ampliando a clandestinidade,
a desproteção social, a ausência de higiene e segurança, compondo um quadro
de ilegalidade e contradição, mas que como qualquer instituição burguesa, é
regulada pelo mercado. Sendo assim, ele passa a ser complementar e torna-se
importante, decisivo à reprodução capitalista.
O estudo da informalidade leva a entender as formas de trabalho expressa
na contemporaneidade: improdutivo, produtivo e os que não são produtivos e
nem improdutivos, entretanto, o improdutivo cresce principalmente na esfera
de serviços. Formas pré-existentes, mas que hoje se generalizam. É importante
ressaltar a coexistência necessária entre eles, assim conforme salienta Tavares
(2004), o trabalho produtivo, produtor de mais-valia, gera um produto anual
que não pode ficar restrito a mais-valia capitalizada, parte dele transforma-
-se em rendimentos, a relação entre as duas formas de trabalho vai depender

605
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

da relação entre a massa de capitais e os rendimentos. Por exemplo, um tra-


balhador domiciliar, pode adicionar valor a um produto produzido na fábrica,
assim, tratar o trabalho improdutivo como indispensável à produção mascara a
exploração de mais-valia O fato de ser trabalhador improdutivo não quer dizer
que ele esteja isento de exploração - é por isso que o trabalho improdutivo se
expande, e não refere-se a qualidade do trabalho, mas sua natureza com a re-
lação capitalista. Assim, a informalidade demonstra a complexa relação entre
o trabalho produtivo e o improdutivo, relação essa que vai explicitar a forma
deste trabalho, que por natureza é improdutiva, mas pode se tornar produtiva a
depender da sua relação com o mercado.
A descentralização/ desterritorialização da produção não extingue o traba-
lho cooperado, muda-se a forma, mas não muda a essência e nem a finalidade.
Portanto, contatamos que o trabalho informal não é uma alternativa à produ-
ção, ele faz parte de sua interioridade e totalidade que se movimenta permanen-
temente em busca de acumulação. Na verdade, o suposto trabalho independen-
te é executado segundo uma obrigação por resultados, sob o rigoroso controle
do capital via intensa exploração do trabalhador.

3. Conclusões
A expansão do trabalho informal acontece em meio aos ajustes econômi-
cos e políticos adequando o Brasil à reestruturação produtiva mundial. As
contradições que são imanentes à reprodução do capital são ativadas com a
crise estrutural, a reestruturação produtiva é uma resposta à crise para mini-
mizar os efeitos na produção e responder aos problemas sociais, é uma estra-
tégia do capital e não para o trabalho. Os trabalhadores que não conseguiram
se inserir no mercado de trabalho vão viver da informalidade. Meio este, que
intensifica precarização do trabalho, a exploração e degradação do trabalho
que existiam anteriormente. Reafirmam-se com uma nova roupagem, mas
mantêm a mesma essência. O Estado apoia via politicas de emprego e renda
- a politica de crédito e financeira, para dizer que é um incentivo para acesso
ao mercado e que dará resultado.
A informalidade cresce significativamente enquanto relação de trabalho e
na atualidade verifica-se sua intrínseca relação o empreendedorismo. A pro-
dução flexível aponta ideologicamente que o trabalhador tem autonomia e

606
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

também pode se transformar em capitalista, muitas vezes o trabalhador passa


a acreditar nessa ideologia. É uma perda para o trabalho, pois ele não se
identifica na condição de trabalhador, mas na de capitalista. Essa condição
o trabalhador informal nunca assumirá, pois não tem capital, não detém o
controle dos meios de produção, nem do processo de trabalho, os recursos
que obtém com a atividade produtiva são para garantir sua sobrevivência e
daqueles com quem trabalha, desse modo não acumula capital - o objetivo
precípuo da economia capitalista.
As consequências do crescimento do trabalho informal no conjunto da
reestruturação produtiva tem um impacto muito grande sobre o trabalhador,
como a precarização do trabalho, a negação da sua condição enquanto tra-
balhador quando enxerga-se como patrão, a desregulamentação do trabalho,
não ter jornada de trabalho fixa e a extensão e intensificação do seu tem-
po de trabalho. Apresenta, desse modo, contornos mais complexos do que o
trabalho domiciliar, de caráter degradante, do início da grande indústria. O
trabalho domiciliar, originariamente de natureza informal, nasce a partir do
momento em que a regularização da lei fabril impõe a expulsão de crianças e
mulheres das fábricas, levando-as a constituir o trabalho domiciliar, condição
de trabalho sem proteção social, realizado no interior do domicílio, envol-
vendo criança, mulher, trabalhador desempregado, atividades que requerem
habilidade e exigem mais tempo para a sua consecução, confrontando-se
com a rapidez do trabalho realizado no interior da fabrica. Por isso era mais
funcional para o capitalista contratar trabalhadores externos a fábrica via
pagamento sob a forma de salário por peça/ por produção do que empregar
internamente, a exemplo das Mistress houses. Na contemporaneidade, o capi-
tal não elimina essas formas de trabalho arcaicas, ao contrário as incorpora
de modo subordinado e nas mais precárias condições de reprodução social. É
na grande indústria contemporânea, desterritorializada, que se realiza a maior
parte da produção de mercadorias, forma particular e majoritária de produção
de mais-valia relativa, todavia ela requisita o trabalho informal nas suas mais
complexas formas para realizar diversas atividades produtivas. A produção
capitalista articulada a essas formas de trabalho mascara o fundamento que
produz essa contradição – o capital e sua necessidade imanente de acumula-
ção de riqueza via exploração intensa do trabalho. O trabalho informal ca-
racterizado como domiciliar nasce, desde as suas origens na grande indústria,

607
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

integrado precariamente a produção capitalista ainda que constituindo seus


“fios (in)visíveis”, o que não significa estar a margem, a parte dessa produção.
O discurso da organização autônoma do trabalho não consegue eliminar
a articulação do trabalho informal com a produção capitalista, a qual não
libera o trabalhador dos imperativos do capital. Imperativos esses que se ba-
seiam no trabalho assalariado, que estão inseridos na organização da produ-
ção e reprodução do capital, a simples ausência do formal não eliminam este
regime de exploração e suas contradições. É claro que não há possibilidade
de autonomia em uma sociedade com interesses antagônicos. Transformar o
trabalhador em pequeno empresário é a forma mais adequada de camuflar a
exploração capitalista no atual momento histórico, “não há nem de longe a
intenção capitalista em compartilhar poder, e muito menos de superação ao
sistema” (TAVARES, 2004, p. 105).
A descentralização da produção “provoca a reemergência de velhas formas
de trabalho precário, originárias de uma forma de exploração mais intensa”
(TAVARES, 2004, p.198), ou seja, ela amplia o trabalho informal, sendo que ele
cumpre a mesma função do formal. Essa reemergência é facilitada por amparo
jurídico, ampliando a clandestinidade, desproteção social, ausência de higiene
e segurança, compondo um quadro de ilegalidade e contradição, mas como
qualquer instituição burguesa, é regulada pelo mercado. Sendo assim, ele passa
a ser complementar e fundamental à produção capitalista atual.
Constatamos que o trabalho informal se expressa nas cooperativas de auto-
gestão, trabalho domiciliar, micro e pequena empresa, ressurge como parte do
trabalho realizado em diversas unidades produtivas na economia capitalista.
Entendemos que trata-se de uma alternativa contemporânea provisória como
uma das saídas para enfrentar o desemprego, porém tendo seus limites e um
papel de controle do trabalho. Assim, não representa uma forma de organização
produtiva autônoma e não se constitui num meio de emancipação do capital.
Consideramos que o trabalho informal expressa uma forma diferenciada e mais
intensa de exploração, que é funcional à produção e reprodução do capital.

Referências bibliográficas

ALVES, Maria Aparecida; TAVARES, Maria Augusta. A dupla face da


informalidade no trabalho: “autonomia” ou precarização. In: ANTUNES,

608
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

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Tradução Bernardo Joffili. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.

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WELLEN, Henrique A. R. Para a Crítica da “Economia Solidária”. São


Paulo: Outras Expressões, 2012.

609
Cooperativas e terceirização – formas de
controle do Capital sobre o trabalho no
capitalismo contemporâneo

Ana Rute Oliveira Duarte1


Reivan Marinho de Souza2

1. Introdução
O presente estudo tem como objetivo apreender os fundamentos do
trabalho e a organização produtiva capitalista, explicitando a reestruturação
produtiva e seus impactos para os trabalhadores e analisar a consolidação das
cooperativas na atualidade e sua relação com os processos de terceirização
do trabalho. Realizado através da pesquisa bibliográfica e documental, teve
referência nos pressupostos da teoria social de Marx, os quais foram decisivos
para entender o fenômeno do crescimento desenfreado das cooperativas
decorrentes do processo de terceirização no contexto da reestruturação
produtiva. Desta maneira, se fez necessário o domínio das determinações
histórico-materiais do desenvolvimento do capitalismo para apreender os
fundamentos do trabalho (trabalho útil concreto e trabalho abstrato); os
momentos da organização produtiva capitalista (cooperação, manufatura,
grande indústria, taylorismo-fordismo e produção flexível e correspondentes
formas de controle do trabalho); as origens das cooperativas e sua expansão
e consolidação no período da reestruturação produtiva no Brasil e sua
intrínseca relação com os processos de terceirização. Para isso, foi necessário

1 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas. Membro do Grupo de Pesquisa
Sobre Reprodução Social – (GPSRS/UFAL).
2 Mestre e Doutora em Serviço Social, Professora Associada II dos cursos de graduação e pós-
graduação em Serviço Social – (FSSO/UFAL). 

611
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

o estudo de vários capítulos da obra de Marx “O Capital”, com o objetivo


de explorar as categorias fundamentais que constituem o objeto de estudo
- trabalho abstrato/ trabalho coletivo, cooperação, formas de controle do
trabalho, exploração, momentos do desenvolvimento capitalista (capitalismo
concorrencial e monopolista). Na continuidade das atividades propostas foram
estudadas obras de autores contemporâneos para apreender os determinantes
históricos materiais da crise estrutural do capital, a emergência da produção
flexível no contexto da reestruturação produtiva e suas consequências para as
condições de trabalho e de reprodução social dos trabalhadores. Recorremos
às produções teóricas que fazem a defesa e as que criticam a proposta da
“economia solidária” no Brasil, procurando explicitar sua relação com os
processos de terceirização.

2. Organização produtiva capitalista


A cooperação, conforme Marx (1996) é considerada a base da produção
capitalista - uma forma de trabalho combinado e coletivo particular, que
consiste na organização concentrada de trabalhadores em um determinado
espaço, produzindo mercadorias em conjunto, em menos tempo e em grande
quantidade, numa dada divisão do trabalho, a qual barateia o produto final,
estruturando, assim, o sistema de reprodução do capital. Para Marx, a taxa de
mais-valia ou o grau de exploração da força de trabalho é inalterável quanti-
tativamente se um trabalhador produz de forma individual ou coletiva, em ra-
zão da força de trabalho extraída não altera, continua a mesma. No entanto,
o que modifica é o trabalho de qualidade social média, ou seja, a manifestação
da força de trabalho média em que toda produção calcula-se a média, no qual
o autor explica que não existe uma grande diferença na qualidade de um tra-
balhador do outro, pois os “desvios individuais” do trabalho de determinado
indivíduo são compensados pela maior força e habilidade do outro. Ademais,
mesmo não alterando o modo de trabalho, o emprego em conjunto de um
grande número de trabalhadores alocados em um mesmo ambiente é vanta-
joso para a produção capitalista, pois “[...] uma parte dos meios de produção
é agora consumida em comum no processo de trabalho.” (MARX, 1996, p.
441). Desse modo, mesmo que a exploração de mais valia do trabalhador não
se altere, a concentração dos trabalhadores utilizando os meios de produção

612
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

aumentaria sua escala, reduzindo os custos, diminuindo um componente do


capital constante e consequentemente o valor total da mercadoria.
Através da articulação das forças advinda do trabalho cooperado, o contrato
social estimula à concorrência particular do indivíduo, elevando a capacidade
de rendimento na produção do mesmo, sendo possível somente no modo de
trabalho coletivo e cooperado. Marx continua afirmando que mesmo que cada
um esteja exercendo determinada função em um mesmo ambiente, o produto
será finalizado mais rapidamente devido à cooperação. O autor destaca algumas
características que diferem da jornada de trabalho realizada individualmente,
em que a jornada de trabalho combinada produz maior quantidade de valor de
uso, reduzindo o tempo de trabalho necessário para produzir um objeto. Ao co-
operar com os outros trabalhadores de uma forma planejada, o mesmo se desfaz
de suas próprias limitações desenvolvendo a capacidade de sua espécie.
Outro elemento discutido por Marx é a exigência para execução do processo
de trabalho combinado de trabalhadores assalariados comandado pelo capi-
tal, caracterizado pela necessidade de uma direção estabelecendo um equilíbrio
entre as atividades, tornando-se função do capital dirigir e mediar o trabalho
a ele subordinado. O capitalista tem o controle do processo de trabalho e do
trabalhador, o qual visa maior exploração da força de trabalho com o intuito de
extrair mais valia, nesse caso, a absoluta. O trabalhador é hierarquicamente co-
mandado pelo capitalista, ainda que se diferenciem com a divisão do trabalho.
A cooperação é, portanto, a base da produção capitalista, por proporcionar
a confecção de mercadorias em grande escala via exploração do trabalho, sur-
gindo, inicialmente na produção manufatureira, artesanal. Marx afirma que a
cooperação simples é a forma inicial que predomina nos ramos de produção
em grande escala que não utiliza a maquinaria no processo produtivo. O autor
salienta que o trabalho combinado só é descartado em situações particulares de
trabalho que em geral não envolve a mecanização.
Já na produção manufatureira, o autor afirma que a manufatura é a primeira
forma clássica da produção capitalista de base cooperada, a qual predomina
do século XVI ao XVIII a Europa, expressando a primeira forma da divisão
sócio-técnica do trabalho (trabalho manual e intelectual), do trabalho coletivo
e que tem como elemento simples da organização produtiva o trabalhador
parcial e sua ferramenta. Salienta que essa forma característica da produção
capitalista prevalece até o período da industrialização e que possui duas
formas fundamentais: a manufatura heterogênea e a orgânica. A manufatura

613
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

heterogênea é o processo de produção que se realiza numa mesma oficina, onde


são reunidos vários trabalhadores com trabalhos específicos e independentes
entre si. Já a manufatura orgânica produz artigos que percorrem fases associadas
de produção, seguindo uma sequência de etapas gradativas em que cada
trabalhador executa uma atividade específica diminuindo o tempo em que é
gasto ao passar de uma etapa para a outra. Também no período manufatureiro se
desenvolve uma graduação hierárquica entre os trabalhadores qualificados e os
não qualificados. Embora, tenha prevalecido durante três séculos, o seu desgaste
se deve ao limite técnico para expandir a organização produtiva capitalista que
ela mesma criou. É somente com o processo de industrialização que se rompem
as barreiras técnicas de expansão do capital que resultará da exploração intensa
do trabalho abstrato/ do trabalho coletivo, presente na grande indústria.
O objetivo da constituição da maquinaria no processo produtivo é tornar as
mercadorias mais baratas e diminuir uma parcela da jornada de trabalho, com
o intuito de aumentar a outra parcela da jornada de trabalho que o trabalhador
destina de graça ao capitalista, no qual é meio de produção da mais-valia, ou
seja, o objetivo da constituição da maquinaria não foi de diminuir a jornada de
trabalho e sim de baratear as mercadorias. O homem se torna a força motriz na
ferramenta, enquanto a máquina seria movida por uma força natural diferente
da força humana, ou seja, ela é considerada um instrumento movimentado pela
força hidráulica, pela força animal, eólica, dentre outras. Em síntese, com a
instituição da maquinaria, o trabalhador perde sua autonomia sobre o meio de
trabalho, moldando-se ao ritmo da máquina.
Com o surgimento da máquina, decorrente da Revolução Industrial, o tra-
balhador manuseia unicamente uma ferramenta através de um mecanismo em
que é movimentada por uma única força motriz que opera com a reunião de
várias ferramentas. Desta maneira, afirma Marx (1996, p. 11): “Aí temos a má-
quina, mas apenas como elemento simples da produção mecanizada”. Impor-
tante destacar que o período manufatureiro desenvolveu os elementos iniciais
científicos e tecnológicos para a constituição da grande indústria.
O autor salienta as questões fundamentais e os efeitos da produção meca-
nizada na grande indústria. A apropriação de forças de trabalho além da força
de trabalho masculina, inserindo mulheres e crianças no ambiente fabril, sem
distinção de sexo nem idade; também o prolongamento da jornada de trabalho
e a intensificação de trabalho. Em outras palavras,

614
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

é evidente que, com o progresso da mecanização e com a experiência


acumulada de uma classe própria de operadores de máquinas, aumenta
naturalmente a velocidade e, com isso, a intensidade do trabalho. Assim,
na Inglaterra o prolongamento da jornada de trabalho avançou durante
meio século paralelamente com a crescente intensificação do trabalho
na fábrica. (MARX, 1996, p. 42).

Marx ainda afirma que a maquinaria avança em termos da cooperação funda-


mentada pelo artesanato e pela manufatura, em que a divisão do trabalho artesanal
predominava. No entanto, a instituição da maquinaria e o surgimento da Grande
Indústria não interrompem a cooperação e a manufatura, ela absorve as mesmas.
Ademais, o capital move através dos “fios invisíveis” um grande contingente de
trabalhadores domiciliares (mistreses houses). Na contemporaneidade, esse trabalho
permanece, demonstrando a tese de que o desenvolvimento das forças produtivas
não elimina o trabalho domiciliar, informal, ao contrário amplia esse contingente,
que se integra funcional e subordinadamente às leis dominantes do mercado. Es-
sas formas atrasadas e modernas de trabalho se articulam contraditoriamente for-
mando o novo momento do desenvolvimento capitalista com o estabelecimento da
maquinaria no modo de produzir capitalista, intensifica a exploração do trabalho,
aumenta o conflito entre capital x trabalho, contribuindo para agravar a precariza-
ção do trabalho, em face da consolidação da extração da mais valia relativa.

3. Crise estrutural do capital


Segundo Netto (2012), o capitalismo mantêm traços fundamentais de
continuidade, no entanto vive em constante transformação devido ao acelerado
e profundo desenvolvimento das forças produtivas. Sua constituição histórica
é resultante do desenvolvimento das forças produtivas, mas principalmente das
modificações necessárias dos processos de acumulação, que requisitam novos
processos sociopolíticos e culturais, os quais envolvem o confronto dos projetos
antagônicos das classes sociais em determinada quadra histórica. Alterações
fundamentais ocorreram com a consolidação do capitalismo monopolista, no
final do século XIX e no século XX. No século XX, o capitalismo monopolista
vive crises cíclicas, dentre elas a de 1929, que afeta aspectos da reprodução
do sistema do capital, este sistema recupera-se parcialmente das crises e se
expande sob a forma do capital financeiro. Com a ocorrência da crise estrutural

615
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

do capitalista3 em 1970, e do processo de reestruturação produtiva (a resposta


à crise estrutural), o sistema capitalista se apropriou destas estratégias para
ampliar as formas de controle da classe trabalhadora.
Thomas Gounet (1999) ilustra os abalos sofridos pela indústria automobi-
lística nos últimos vinte anos, ou seja, a partir da crise dos anos 1970 com o
desgaste do modelo taylorista-fordista (baseado na produção em massa), que
significa racionalizar o trabalho exercido pelos operários e combater os desper-
dícios, especialmente de tempo; no parcelamento das tarefas; a criação da linha
de montagem e padronização das peças, além da absorção da integração vertical
(controle direto de um processo de produção). Desde meados de 1973 e 1974,
vários países entraram uma crise estrutural, causada pelo fraco crescimento
da demanda, pela crise energética, pela saturação do mercado, a oscilação tec-
nológica, especialmente na microeletrônica, a progressiva internacionalização
(globalização) e o aumento do poder das fábricas japonesas, são fatores caracte-
rísticos da crise do modelo fordista de produção.
Antunes (2009) resgata as características da crise do taylorismo-fordis-
mo, como um fenômeno que expressa superficialmente a crise estrutural
do capital. De acordo com o autor, é nos anos 70 que o sistema capitalista
começa a sinalizar um cenário crítico, após um grande período de acúmulo
de capitais durante a vigência do fordismo, na fase keynesiana.4 Algumas
características evidenciam essa fase, como: a queda na taxa de lucro em
razão do preço da força de trabalho elevado, fruto das lutas sociais dos anos
60, que tinha como objetivo o controle social da produção. Isso reduziu o
nível de produtividade do capital; o enfraquecimento do modelo taylorista-
-fordista de produção, redução em consequência ao desemprego estrutural
que estava em seu estágio inicial; c) relativa autonomia frente aos capitais
produtivos da hipertrofia da esfera financeira, priorizando o capital finan-
ceiro (especulação), na nova etapa do processo de internacionalização; a
crise do Welfare State e seus mecanismos de desempenho acarreta a crise
fiscal do Estado capitalista e, consequentemente, necessita reduzir os gastos

3 Denominada como “crise do petróleo”, também expressa fenomenicamente o desgaste do modelo de


produção taylorista-fordista e do Welfare State. Essa crise atinge a estrutura do capitalismo, o cerne
do metabolismo do sistema do capital (as esferas da produção, circulação e consumo), estendendo-se
às diferentes áreas da produção em todo o mundo.
4 Welfare state ou Estado de bem estar social.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

públicos e a transferência para o setor privado; dentre outros. Respondendo


a crise, foi gestando-se um processo de reorganização do capital e de seu
sistema ideológico e político de dominação, cujo traço mais evidente se
caracterizou com a constituição do neoliberalismo, com a privatização es-
tatal, desregulamentação dos direitos trabalhistas e desarticulação do setor
produtivo estatal. Destacou-se também pela ofensiva generalizada do capital
e do Estado contra a classe trabalhadora. As respostas do capital à sua crise
estrutural e a necessidade de controlar as lutas sociais oriundas do traba-
lho, resultaram em várias transformações do processo produtivo, através da
constituição das formas de acumulação flexível, downsizing (redução de gas-
tos), das formas de gestão organizacional, avanço tecnológico e o destaque
ao conhecido “toyotismo” ou modelo japonês.
Especialmente no Brasil, de acordo com Druck (1999), o modelo japonês foi
sendo difundido fortemente em 1990 com a proposta de governo de Collor, na
qual havia uma necessidade da modernização do país, também com o adven-
to do ideário neoliberal, inaugurando a década da qualidade total. Conforme
destaca a autora, um dos elementos que caracterizam o modelo japonês e as
relações interempresas no Japão são as redes de subcontratação ou terceirização.
É considerada uma relação de complementaridade entre as empresas, indepen-
dente do tamanho, não foi diferente no Brasil, iniciando pelas atividades-meio
(serviços) expandindo-se progressivamente até as atividades-fim das empresas.
Desse modo, os estudos realizados pela autora ora destacam as relações interem-
presas, na procura de maior eficiência e qualidade, através da flexibilização, ora
mostra que a terceirização, como estratégia de reduzir os custos tem precarizado
o trabalho e o emprego, prejudicando o trabalhador e a qualidade da produção.

4. Cooperativas e terceirização
Estabelecido na Europa Ocidental no período do capitalismo concorrencial,
o cooperativismo se forma como uma estratégia dos trabalhadores de enfrentar
o pauperismo e à exploração, unindo-se em prol da garantia de melhores
condições de trabalho e de vida. Além de ser um espaço para se reunir e
discutir coletivamente possíveis resoluções para o enfrentamento das mazelas
próprias do sistema, os trabalhadores desenvolveram também as chamadas
cooperativas de produção. Essas ideias cooperativistas na conjuntura do

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

capitalismo concorrencial, ainda em processo de constituição e consolidação,


apresentavam-se como resultante da dinâmica do sistema.
Historicamente, as cooperativas de trabalho que se constituem na Inglaterra
no século XIX, através da organização do movimento operário, multiplicaram-
-se progressivamente para outros países da Europa. No século XX, as cooperati-
vas aparecem e se desenvolvem em situação de recessão da economia (contex-
tos distintos nos diversos países da Europa). Em 1970, ocorre um novo boom das
cooperativas, no contexto das alterações econômicas, transformando-se em um
“novo” cooperativismo, que objetiva responder as novas demandas que estavam
ocorrendo na sociedade (aumento do desemprego e a necessidade de encontrar
alternativas para gerar renda).
Desde 1990, houve uma multiplicação das cooperativas de trabalho ou
produção industrial no Brasil (em 1980 já adquirem visibilidade), resultado
do processo de reestruturação econômica com o objetivo de redução de
custos, também “diminuir” o desemprego e gerar renda. O ideário ainda
difundido acerca das cooperativas é o de emancipação dos trabalhadores,
uma economia social e solidária, autonomia e uma relação democrática
de trabalho. Entretanto, esse debate é contrário a verdadeira face do capi-
talismo, pois o pragmatismo de mercado é representado pela proposta da
cooperativa ser um empreendimento empresarial voltado a lógica do mer-
cado e mesmo elas sendo autogestionárias, precisam atender as exigências
de custos baixos e da competitividade para sobreviver. Ademais, de acordo
com Lima (2007), uma grande parcela das cooperativas de produção indus-
trial submete-se ao trabalho terceirizado para empresas regulares, gerando
dependência (interfere na autonomia), resultando, muitas vezes, na redu-
ção da demanda ou o fim das cooperativas.
Deste modo, conforme Druck (1999), no período da Revolução Industrial5
(século XVIII), o trabalho doméstico ou domiciliar, pode ser caracterizado
como a forma inicial de terceirização, que emerge juntamente com o estabe-
lecimento das grandes fábricas, envolvendo principalmente o setor têxtil. No

5 Sendo assim, na Revolução industrial, já ocorriam as primeiras formas de trabalho terceirizado,


comprovando que as formas precarizadas de trabalho no capitalismo nascem articuladas as
formas mais avançadas de trabalho na indústria moderna. Os exemplos de relações e contratos
terceirizados de trabalho na atualidade demonstram que as formas precárias se mantem, mas
complexificam-se nos processos de crise, conforme as exigências dos preceitos da flexibilização e
da autonomia do trabalho.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Brasil, esta forma de trabalho não deixou de ser utilizado, mesmo com o ad-
vento da tecnologia, denominado de indústrias tradicionais (indústria têxtil/
confecções e calçados). Outro exemplo de processos de terceirização no Brasil
é na indústria automobilística, na rede de fábricas fornecedoras de autopeças
para as montadoras de automóveis, que ao longo dos anos 2000 vem aumen-
tando a rede de empresas subcontratadas. Um terceiro exemplo do processo
de terceirização é sua ampliação na rede dos “serviços de apoio” (limpeza,
restaurante, jardinagem, transporte, vigilância), com o objetivo da “empresa-
-mãe” concentrar-se comente na atividade-fim e transferir as atividades-meio
para os terceiros, a fim de obter máxima qualidade na produtividade. Outro
modelo de terceirização é nas áreas produtivas ou na atividade-fim das em-
presas do setor industrial (realização das atividades no interior da planta da
contratante, realização da atividade fora da empresa contratada) e a Quar-
teirização que consiste nas empresas contratadas com a função de gerir os
contratos com outras empresas terceirizadas.
No Brasil, a nova lei da terceirização, (Lei N° 13.429) sancionada em 31 de
março de 2017 no governo Temer (após o impeachment de Dilma Rousseff), um
contexto de crise econômica, na qual, traz para a nova maneira de flexibilização
de trabalho a possível terceirização ampliada e irrestrita, também a redução de
garantias trabalhistas para os trabalhadores terceirizados. O processo de tercei-
rização no país teve origem com a Lei 6.019/1974 e com a reestruturação produ-
tiva na década de 90, essa lógica da terceirização, tornou-se mais intensificada.
Dessa maneira, no dia 23 de março de 2017 foi aprovado na Câmara dos De-
putados, o Projeto de Lei 4.302/1998, alterando dispositivos da Lei 6.019, de 1974,
sendo sancionado com a Lei 13.429/2017, no qual, contem alterações significati-
vas para a contratação de trabalhos terceirizados, modificando o conceito de tra-
balho temporário, expandindo essa forma de contratação e retirando o caráter de
contratação para situações extraordinárias, também o trabalho temporário pode
ser utilizado também nas atividades-fim da empresa que contrata o serviço. (DIE-
ESE, 2017 apud JUNIOR, Gerson, 2018 on-line). Ademais, amplia-se o prazo de
duração dos contratos temporários de 90 para 180 dias consecutivos, podendo ser
expendido por mais 90 dias, também foi substituído a responsabilidade solidária
para a subsidiária, tornando mais frágil as garantias de direitos dos trabalhadores.
Consequentemente, no período pós-fordista com a reestruturação produtiva, as
cooperativas tendem a ser terceirizadas (não são todas) e essa terceirização inten-
sifica-se conforme as necessidades do capital, segundo Lima (2007), esse processo:

619
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

[...] vai resultar numa distinta institucionalização das relações de


trabalho na qual a relação-empresa substitui a relação capital-trabalho.
A força de trabalho passa a ser comprada de outra empresa de posse
e gestão dos próprios trabalhadores, dentre das políticas de focalização
e externalização da produção, representadas pela criação de redes de
subcontratação e tercerização. (LIMA, 2007, p. 72).

Por conseguinte, as transformações ocorridas na sociedade a partir da crise


do fordismo, ocasiona também uma “nova” maneira de organização das co-
operativas e com constituição da nova lei da terceirização, juridicamente, o
mercado de trabalho tornou-se mais flexível, precarizando mais as condições
de trabalho, facilitando o processo de terceirização, também das cooperativas
que para sobreviver no mercado muitas vezes os trabalhadores (muitas vezes
desempregados da mesma empresa que subcontrata as cooperativas) aceitam a
condição de subcontratação e terceirização.

5. Considerações finais
Diante da exposição realizada ao longo da pesquisa, compreendemos que
a cooperação é um modo de organização da atividade produtiva, pois ela é a
base da produção capitalista a qual adquire sua forma clássica na manufatura.
Na continuidade da pesquisa, entendemos a dupla origem da manufatura e o
surgimento da maquinaria no desenvolvimento da produção capitalista, cujo
objetivo foi intensificar a extração do trabalho excedente, ampliar e baratear
a produção de mercadorias, diminuir a absorção da força de trabalho e in-
tensificar a exploração do trabalho. Entendemos, por fim, conforme exposto
nesse relatório, que a cooperação (trabalho cooperado/ abstrato) é o elemento
que funda a organização da produção capitalista, estando presente no início e
nas etapas mais avançadas do sistema capitalista. Ademais, as primeiras for-
mas de “terceirização” já eram existentes (trabalho domiciliar, trabalho pago
por peça), na grande indústria.
Com o fenômeno da crise estrutural do capital do modelo taylorista-fordista,
a partir do início dos anos 70, de acordo com Antunes (2009), o sistema capita-
lista começa a sinalizar um cenário crítico, após um grande período de acúmulo
de capitais durante o máximo do período fordista e da fase keynesiana. Respon-
dendo a crise, foi gestando-se um processo de reorganização do capital e de seu

620
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

sistema ideológico e político de dominação, com a privatização estatal, a des-


regulamentação dos direitos trabalhistas e a desarticulação do setor produtivo
estatal. Destacou-se também pela ofensiva generalizada do capital e do Estado
contra a classe trabalhadora. O modelo “flexível” foi a referência da reestrutu-
ração produtiva nos anos de 1980, e um dos elementos que caracterizou esse
modelo foi a relação interempresas no Japão, que são as redes de subcontratação
ou terceirização. É considerada uma relação de complementaridade entre as
empresas, independente do tamanho, da forma ou especialidade.
No Brasil, com o Governo Collor, esse sistema de terceirização e subcon-
tratação ganhou expansão, na década de 1990 (o processo de terceirização
já gestava em meados de 1979), mas em 2017, ocorreram alterações na legis-
lação e foi sancionada a Lei N° 13.429, sancionada em 31 de março de 2017
no governo Temer, alterando significativamente a contratação de trabalhos
terceirizados, modificando o conceito de trabalho temporário, dentre ou-
tros, impactando efetivamente a classe trabalhadora. Desta maneira, com
o modelo flexível, altera significativamente a organização das cooperativas
(“novo” cooperativismo), em que ressurgem como unidades produtivas na
economia capitalista, como estratégia de atenuar o índice de desemprego
de trabalhadores. Assim, uma grande parcela das cooperativas de produção
industrial submetem-se ao trabalho terceirizado para empresas regulares,
gerando relação de dependência e muitas vezes, redução da demanda ou no
fim das cooperativas.
Por fim, a ideologia difundida pela sociedade capitalista é que as cooperati-
vas são organizações que atendem estritamente a necessidade dos trabalhado-
res. No entanto, vimos que na contemporaneidade essas organizações funcio-
nam de modo articulado à produção capitalista dominante, pois para sobrevi-
verem tem que se submeter às demandas e relações de mercado, expressando,
desse modo, a intencionalidade do sistema vigente em incorporar a sua maneira
o ideário das experiências cooperativistas do final do século XIX, para controlar
os efeitos da crise estrutural como o desemprego, o aumento da pobreza. Tanto
econômica quanto ideologicamente a reestruturação produtiva articula, princi-
palmente nos países periféricos, os processos de terceirização e a necessidade de
formação das cooperativas, as quais estimulam os trabalhadores a acreditarem
na suposta autonomia do trabalho agora travestido no empreendedorismo.

621
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Referências bibliográficas

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negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.

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dispositivos da Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho
temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as
relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília,
DF, mar. 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/lei/ L13429.htm.> Acesso em: jul. 2018.

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Tradução: Bernardo Foffily, São Paulo: Boitempo Editorial, 1999 (1° edição).

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WELLEN, Henrique A. R. Para a Crítica da “Economia Solidária”. São


Paulo: Outras Expressões, 2012.

622
Educação e mundo do trabalho:
uma análise dos processos formativos
voltados para a classe trabalhadora no
âmbito da educação profissionalizante,
com enfoque no sistema S de ensino

Gabriel Vinicius Jesus Maia Medeiros1


Marília Paula Carlos Costa2

Introdução
Para partir do conceito de reflexão acerca da funcionalidade desse sistema
educacional é necessário, então, apresentar o Sistema S, sua história e as suas
especificidades quanto à formação curricular.
O Sistema S é uma corporação educacional formada por nove entida-
des (Sesi, Senai, Sesc, Senac, Sebrae, Senar, Sescoop, Sest e Senat) que
se ligam a determinadas áreas de conhecimento profissionalizante. A sua
estruturação no país se deu em 1942, seus objetivos incluíam a formação de
uma rede de ensino capaz de aumentar a produtividade da mão-de-obra e
oferecer serviços culturais e de lazer, tendo financiamento garantido, mas
sem depender diretamente da gestão estatal.
Tendo funcionamento como organização “paraestatal”, ou seja, recebendo
financiamento público através de taxação obrigatória paga por empresas, vi-
sível quando empresas de comércio recolhem 1,5% de impostos para o Sesc,

1 Autor. Estudante da graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido


(UFERSA) – campus Mossoró. Membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e
América Latina (GEDIC).
2 Autora. Estudante da graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido
(UFERSA) – campus Mossoró. Membra do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e
América Latina (GEDIC).

623
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

instituição do sistema S ligada a atividade comercial. Porém, mesmo com esse


financiamento estatal, essas organizações funcionam de maneira independente
da máquina pública e são dirigidas aos moldes de empresas privadas.
Em 2016, a instituição que mais recebeu repasses foi o Sesc, chegando a um
total de 4,64 bilhões de reais de acordo com a Receita Federal, seguida pelo
Sebrae com 3,16 bilhões em verbas repassadas.
A reflexão feita neste artigo diz respeito às consequências educacionais des-
se sistema e em como ele influencia na formação social do sujeito. Visando,
então, mostrar como uma educação somente baseada no trabalho é prejudicial
à construção intelectual plena do trabalhador. Para realizar este feito, procura-
mos adotar uma metodologia investigativa, analisando a própria história do sis-
tema, dentro e fora do Brasil, trazendo a análise de figuras como Gramsci para
afastar elementos puramente especulativos. Ademais, mantemos o enfoque na
estrutura (ou infraestrutura), para apresentar um trabalho com preocupações
sobre as esferas intelectuais e sociais do funcionamento da educação profissio-
nalizante, em especial o Sistema S em vigor no Brasil.
Adiante, buscaremos ressaltar as diferenças entre os modelos de educação
profissional e propedêutica, no qual o primeiro visa a capacitação manual para
as novas e mais específicas demandas de mercado, demandas essas que estão
em constante alteração e crescimento, gerando, então, uma infinidade de novas
funções, delegando aos membros da classe trabalhadora a necessidade de estar
sempre atualizado e consumindo novos cursos de caráter profissional.
Para Manfredi (2002, p. 34), as noções de trabalho foram “se construindo e
reconstruindo ao longo da história das sociedades humanas, variando de acor-
do com os modos de organização da população e de distribuição de riqueza e
poder”. Assim, vê-se a necessidade de estudar a respeito de como essas noções
foram incluídas na esfera educacional e em como essa influência é sentida no
convívio social do trabalhador.
A educação puramente profissional deixa óbvio o interesse voltado so-
mente ao desempenho de funções manuais, fica clara uma divisão popu-
lacional responsável por limitar os horizontes educacionais de um grande
grupo populacional. A divisão de classes no âmbito educacional é uma clara
violação dos direitos de acesso à cultura e educação por parte do cidadão,
então a discussão do tema é essencial para o reconhecimento e a superação
do problema. As considerações a respeito do tema se justificam através da
necessidade de avaliar os mecanismos que perpetuam a divisão de classes, a

624
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

educação pode ser responsável por auxiliar na emancipação do sujeito, mas


quando ministrada em caráter tecnicista é utilizada apenas para a manuten-
ção de um sistema focado no mercado. A intenção da pesquisa é, através da
análise bibliográfica e do uso do método materialista histórico, considerar
os efeitos de um sistema focado apenas na capacitação e em como ele pro-
move ainda mais a já latente divisão de classes.

História da educação profissionalizante no Brasil


Ao longo da história várias tentativas de educar a população para determi-
nados ofícios foram surgindo. No Brasil, especificamente, essa atividade data do
período colonial, quando índios e escravos (tidos como as classes mais baixas na
escala social) eram obrigados a aprender determinadas funções manuais através
do sistema de ensino mestre e aprendiz e os conhecimentos manuais eram re-
passados oralmente. Enquanto isso, aos filhos de membros da elite portuguesa
era reservada uma ideologia educacional firmada no campo teórico, gerando as-
sim um repúdio por parte da classe em relação a trabalhos manuais, reforçando
a ideia de divisão entre ocupações para o patrão e para o servo.
Os membros de classes mais abastadas recebiam uma preparação propedêu-
tica, muitas vezes visando o ingresso em instituições europeias de ensino su-
perior. Todavia, os conhecimentos em trabalhos manuais “eram ensinados aos
jovens e às crianças que não tivessem opção, como aqueles advindos das Casas
da Roda, garotos de rua e delinquentes” (SALES & OLIVEIRA, 2011, p. 165).
Durante o império ocorreu a criação de iniciativas para o estímulo dessa
educação profissionalizante, tais como Casas de Educandos Artífices, que,
entre 1840 e 1865, foram instaladas em diversas províncias visando princi-
palmente a capacitação de jovens pobres e órfãos para as posições exigidas
então pela sociedade.

Nessa perspectiva, pode-se inferir que a educação profissional no Brasil


nasce revestida de uma perspectiva assistencialista com o objetivo de
amparar os pobres e órfãos desprovidos de condições sociais e econômicas
satisfatórias. (ESCOTT & MORAES, 2012, p. 1494).

Já no período da primeira república, em 1930, com o início da industriali-


zação do Brasil, se torna mais evidente a necessidade do mercado por mão de

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

obra qualificada. Então criou-se o Ministério da Educação e Saúde Pública, res-


ponsável pela estruturação da Inspetoria Do Ensino Profissional Técnico, que
passou a supervisionar as Escolas de Aprendizes Artífices. Iniciou-se a partir
daí uma grande expansão do ensino industrial, com a criação de novas escolas
e a expansão de instituições já existentes para atender as demandas crescentes
do mercado industrial, que por sua vez, necessitava de uma grande quantidade
de trabalhadores aptos a funções mais especificadas.
A quarta constituição brasileira, aprovada no regime do Estado Novo em
1937, foi a primeira a abordar especificamente a questão do ensino profissio-
nal, técnico e industrial, estabelecendo como dever do Estado a colaboração
com indústrias e sindicatos com o objetivo de incentivar e criar condições
propícias para a oferta dessa modalidade de ensino. Porém, sempre enfati-
zando que esse modelo educacional se destinavam aos filhos dos operários e
associados dos sindicatos.
A lei n.º 378, de 13 de janeiro de 1937, transformou as Escolas de Apren-
dizes e Artífices em Liceus Profissionais, expandindo-as para o oferecimen-
to de ensino profissional em todos os ramos e graus. E, com a Reforma Ca-
panema, a partir do Decreto-lei n.º 4.422 de 1942, o ensino brasileiro passou
por profunda reformulação.

Nessa nova estruturação do ensino foram criados os cursos médios de


2.º ciclo, científico e clássico, com duração de três anos, com o objetivo
de preparar os estudantes para o ingresso no ensino superior. Assim,
a educação profissionalizante, parte final do ensino secundário, era
constituída pelos cursos normal, industrial técnico, comercial técnico
e agrotécnico, com o mesmo nível e duração do colegial e que, no
entanto, não habilitavam para o ingresso no ensino superior. (ESCOTT
& MORAES, 2012, p. 1495).

Então, mais uma vez, o caráter profissional do ensino era separado de uma
formação plena, servindo apenas como forma de suprir as demandas indus-
triais crescentes, gerando novamente uma separação evidente entre membros
de diferentes classes, caracterizando o ensino superior como privilégio somente
disponível para sujeitos com boa condição financeira.
A educação profissional esteve muito presente no período de desenvolvi-
mento industrial brasileiro, o que contribuiu para sua caracterização como par-
te essencial da organização educacional do país. Essa essencialidade é posta

626
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

em evidência no período do regime militar de 1964, quando através da Lei n. º


5.692/71 (1971) o ensino de 1.º e 2.º grau foi reformado de forma a tornar obri-
gatório o ensino profissionalizante para todos.
O argumento utilizado pelo regime para justificar essa reforma se baseava no
milagre brasileiro, os militares reforçavam a ideia de que o país necessitava dessa
mão de obra. Mas a principal característica dessa mudança foi a caracterização
do ensino médio como algo finalizante, capaz de colocar o sujeito diretamente
no mercado de trabalho, tirando de uma vez a necessidade do ingresso no ensi-
no superior como a meta a ser atingida, o que beneficiaria o governo que sofria
com pressões populares pelo aumento de vagas em cursos universitários.
Essa reforma acentuou a divisão existente entre o ensino público e o
privado, diversas escolas particulares buscaram meios de burlar a lei e pro-
mover um ensino propedêutico aos seus alunos, enquanto que as públicas
(mesmo sem condições materiais para isso) foram obrigadas a se adequar ao
novo regime educacional. Então, por não ter recursos, instituições públicas
acabavam oferendo cursos que não necessitavam de uma estrutura mais
sofisticada, tais como secretariado e datilografia, fato esse que serviu para
gerar um grande número desse profissionais no mercado, superando bastan-
te a demanda e gerando desemprego.

Gramsci e o trabalho
Para contextualização, é importante ressaltar que Antonio Gramsci fez suas
argumentações tendo em vista os desafios postos pela Revolução Russa e pela
crise vigente na Itália da década de 1920. Entretanto, nas crises recorrentes
do capitalismo e principalmente depois da queda do socialismo real, questões
básicas sobre seu pensamento retornaram.
Então, é pautado nessa retomada de ideias que será construído este tó-
pico. As preocupações do marxista italiano sobre a educação profissionali-
zante na Itália do século XX ainda, de certa forma, são pertinentes para a
realidade do século XXI?
Antes de tudo, é necessário entender que o homem se distingue dos animais
por realizar o processo de trabalho, sendo esse uma forma de obter a subsis-
tência. Dentro da sociedade capitalista (caracterizada por Marx pelo trabalho
assalariado), haveria uma distinção “pois há aqueles, dentre eles, que traba-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

lham e nada adquirem e aqueles que adquirem qualquer coisa e não trabalham”
(MARX & ENGELS, 1999, p. 35). Os primeiros representam a classe trabalha-
dora que possui como propriedade sua força de trabalho, já os segundos seriam
a classe burguesa que detém os meios de produção.
O sistema capitalista move-se através da dicotomia entre as duas classes fun-
damentais, uma vez que a apropriação daquilo que Marx nomeou de mais-valia
(também entendida como o lucro da empresa) é gerada através a exploração da
classe trabalhadora e de sua força de trabalho.
Porém, para que seja possível a manutenção do sistema, é necessário que
haja a garantia da hegemonia pela burguesia não somente na economia, mas
também na cultura. Tendo isso em vista, Gramsci desenvolve o conceito de
hegemonia burguesa relacionado ao conceito de que a sociedade civil seria “o
conjunto dos organismos vulgarmente chamados de privados [...] e que cor-
respondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a
sociedade” (GRAMSCI, 1972, p. 16).
A discussão de que o Estado deveria prover escola era intrínseco ao
debate sobre “escola comum, única e desinteressada”, dos dois sairia a crí-
tica à formação humanista/científica oferecida à elite burguesa e à forma-
ção pragmática/técnica oferecida à classe trabalhadora. Para Nascimento e
Sbardelotto (p.6, 2008):

É preciso educar os trabalhadores para encorajar o surgimento


de intelectuais dentro da classe trabalhadora, que defenderiam a
transformação da sociedade capitalista através da revolução da
classe trabalhadora. Surge a perspectiva educacional do partido, que
para Gramsci é fundamental na formação de intelectuais que deem
consistência à luta pelos interesses da classe trabalhadora e, a partir da
revolução, estejam capacitados para governar e orientar a gênese de um
novo modelo de sociedade. Para Gramsci, a classe dominante sempre
tenta corromper os intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, na
intenção de agregá-los em seus partidos. Em contrapartida a mesma
iniciativa deve ser adotada pela classe operária, na tentativa de agregar
intelectuais orgânicos aos burgueses ao partido e à luta revolucionária.

Portanto, para Gramsci, o processo de trabalho deveria ser dotado de


princípios educativos em uma escola que ofereça condições para “[...] que
cada ‘cidadão’ possa tornar-se ‘governante’ e que a sociedade o ponha, ainda

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-lo [...]”. (GRAMS-


CI, 2001, p.50). Ou seja:

[...] o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer aos
discentes) desinteressado, ou seja, não deve ter finalidades práticas
imediatas ou muito imediatas, deve ser formativo ainda que “instrutivo”,
isto é, rico de noções concretas. (GRAMSCI, 2001, p.49, aspas do autor).

É possível perceber que, com a oferta de um ensino profissional por parte do


Estado, há uma idealização de equivalência entre as oportunidades de acesso à
educação em relação aos membros da elite burguesa (que recebem um ensino
humanista, que os influencia à pesquisa e à continuação do ciclo acadêmico no
ensino superior) e os membros da classe trabalhadora (que, em contrapartida,
recebem um ensino pragmático, voltado para o trabalho técnico). Logo, “a es-
cola formativa e ‘desinteressada’ proposta por Gramsci não convém ao Estado
capitalista que, não sendo ‘ético’ e ‘educador’, não trabalha na direção de ofere-
cer a todos os seus ‘cidadãos’ as mesmas condições de se tornarem todos gover-
nantes”. (NASCIMENTO & SBARDELOTTO, p.10, 2008, aspas dos autores).
Apesar das iminentes falhas e suas consequências, é defendido por Gramsci
que, em um Estado burguês democrático, é necessário que se ofereça escola
gratuita aos cidadãos, sem distinção, pois “serviços públicos intelectuais: além
da escola, nos vários níveis, que outros serviços não podem ser deixados à ini-
ciativa privada, mas – numa sociedade moderna –devem ser assegurados pelo
Estado e pelas entidades locais [...]” (GRAMSCI, 2001, p. 187).
Somado à isso, surge a importância da incorporação às reivindicações da
classe trabalhadora uma escola de liberdade intelectual e igualdade dogmática
que garanta real acesso à cultura para essa classe. Isso garantiria que a he-
gemonia burguesa não fosse reproduzida como um consenso, pois esse espa-
ço promoveria condições para a construção de uma cultura própria da classe
trabalhadora, uma vez que haveria autonomia dos intelectuais proletários em
relação aos burgueses.
Com a visível importância do controle do processo de transmissão do co-
nhecimento técnico-científico, Gramsci admite a importância do próprio tra-
balho como princípio educativo:

[...] Gramsci adquire, desse modo, um novo equilíbrio, o conceito


de novo humanismo concretiza-se, assim, como humanismo do

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

trabalho, um trabalho que tem uma dimensão bastante mais


ampla que a dimensão didático-moral habitual das escolas ativas¹.
(MANACORDA, 1990, p.243).

Portanto, a relação de trabalho, para Gramsci, não se relaciona ao modelo


educacional da escola técnica promovida pelo Sistema S de ensino, que pode
gerar uma instrução objetivamente técnica e pragmática. Uma adequação seria
necessária para promover o conceito de Marx de “ensino politécnico” que, em-
bora não tenha essa sido a nomeação usada, descrevia uma forma de aprendiza-
do intelectual (ou humanístico) somada ao aprendizado de diferentes técnicas
(que aqui podem ser entendidas com os curso técnicos ofertados atualmente).

Sistema S e formalização do trabalhador como mercadoria


Para trazer o enfoque da pesquisa ao Brasil, trataremos sobre o maior sistema
de ensino profissionalizante vigente: o Sistema S. Para entendê-lo, é preciso en-
tender como surgiu e em que ponto da nossa história foi capaz de tornar-se algo
tão importante para o Governo e para as iniciativas privadas.
Logo no contexto pós primeira guerra mundial, diversos representantes das
classes dirigentes passaram a se preocupar com o desenvolvimento econômico
do país, tratando de firmar bases em um estilo de produção sólido e diverso. O
modelo idealizado, então, passou a tomar como base o norte-americano, priori-
zando a siderurgia e a indústria petroquímica.
O Sistema S surgiu em 1942, com a elaboração do Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai); em 1943 surge a Lei Orgânica da Educação
Nacional do Ensino Comercial. Alguns anos depois, em 1946, aparecem então
o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), o Serviço Social da
Indústria (Sesi) e o Serviço Social do Comércio (Sesc). Todos eles surgem vi-
sando o atendimento da máquina comercial crescente e o incentivo a profissio-
nalização necessária para o mercado.
A sua criação se deve a tarefa de tentar oferecer uma rede de ensino profis-
sional, responsável por capacitar e melhorar a produtividade do proletariado,
oferecendo também recursos de serviços de lazer e culturais para os seus usu-
ários. Assim, sem depender diretamente de controle público, funciona como
uma organização “paraestatal”, com recursos advindos do Estado, mas certo
grau de independência e regime organizacional privado.

630
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Ele é dividido entidades nacionais, responsáveis por determinados setores e


funções, tais como:

Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai); Serviço Social do


Comércio (Sesc); Serviço Social da Indústria (Sesi); e Serviço Nacional
de Aprendizagem do Comércio (Senac). Existem ainda os seguintes:
Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar); Serviço Nacional
de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop); e Serviço Social de
Transporte (Sest) (GLOSSÁRIO LEGISLATIVO DO SENADO).

As entidades nacionais também são responsáveis por supervisionar as uni-


dades regionais presentes nos estados. A forma como são escolhidos os gestores
pode variar de acordo com cada instituição, variando de nomeação pelo presi-
dente da república (como é o caso do Sesi) à eleição por conselho deliberativo
(como acontece com o Sebrae).
O financiamento desse sistema é questão de discussão, principalmente no
contexto de contenção econômica. Tendo em consideração que, somente em
2016, o repasse total destinado ao Sistema S chegou a casa dos 16 bilhões de
reais, discute-se a respeito do uso desse recurso em outros setores sociais, uma
vez que é arrecadado pela Receita Federal através de impostos obrigatórios que
indústrias e instituições comerciais precisam pagar, sendo um percentual do
que é gasto em sua folha de pagamento.
Essa porcentagem, por sua vez, pode variar de acordo com os fins específi-
cos de uma determinada empresa, por exemplo: uma indústria precisa recolher
uma alíquota de 1% (em relação ao valor de sua folha de pagamento) para o
Senai e 1,5% para o Sesi. Essa caracterização é feita pelo Fundo de Previdência
e Assistência Social (FPAS), que é responsável por identificar a função de uma
determinada empresa e como a mesma deve contribuir.
Em 2015, o então ministro da Fazenda Joaquim Levy tentou destinar 30%
dessas verbas ao fechamento de contas do governo, mas não obteve sucesso.
Uma das grandes críticas ao sistema seria a falta de transparência por parte dos
gestores em relação à como seriam empregados recursos. Entretanto, a Lei de
Diretrizes Orçamentárias de 2013 estipulou que as entidades publicassem na
internet as formas como o dinheiro repassado seria reinvestido.
Em 2016, a instituição que mais recebeu repasses foi o Sesc, chegando a um
total de 4,64 bilhões de reais (fonte-receita federal), seguida pelo Sebrae com
3,16 bilhões em verbas repassadas.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Outro fator controverso a respeito do Sistema S é o fato de que passou “ile-


so” por cortes orçamentários propostos pela reforma trabalhista. No dia 29 de
junho de 2018, o STF decidiu por manter o fim da contribuição sindical obriga-
tória, em vigor desde novembro do ano anterior com a reforma. O que chama a
atenção de diversos economistas é que a taxa de contribuição para a manuten-
ção do Sistema S não foi alterada ou abolida.
Essa questão reforça o caráter utilitário das entidades citadas, os governos
não demonstram interesse em diminuir o repasse de verbas, tendo em vista que
essas instituições beneficiam as indústrias e o mercado como um todo, conside-
rando que necessita constantemente de mão de obra capaz de operar funções
específicas. Enquanto que, a verba sindical utilizada para promover o financia-
mento de uniões de trabalhadores, foi extinta.
O interesse do governo no Sistema S também diz respeito ao Plano Nacio-
nal de Educação, que em sua meta 8 busca elevar o nível médio de escolari-
dade da população entre dezoito à vinte e nove anos, de forma que, em 2024,
seja alcançado o mínimo de doze anos de estudo para as populações da região
de menor escolaridade do país, população essa do campo e que representa os
vinte e cinco por cento mais pobres. Uma das formas de atingir essa meta
é: expandir a oferta gratuita de educação profissional técnica por parte das
entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao
sistema sindical, de forma concomitante ao ensino ofertado na rede escolar
pública (BRASIL, 2014b, p.34).
É evidente, então, a importância dada para a oferta do ensino técnico, po-
rém a forma como esse ensino é ministrado, gera grandes discordâncias entre
os estudiosos. Reflete-se sobre uma mecanização da educação, onde o sujeito
passa a ser tratado como mercadoria e não como depositário de conhecimento.

A educação e o trabalho: a escola como um local de escolhas


Como foi averiguado, inicial e teoricamente, o ambiente escolar deve prio-
rizar a construção de uma dinâmica inclusiva, capaz de mostrar ao sujeitos as
diversas possibilidades existentes em sua busca por autonomia. Logo, o objetivo
da reflexão não se consiste em buscar abolir o conceito de educação profissio-
nal, mas sim buscar meios de adequar esse ensino a realidade da população
como um todo.

632
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O trabalho deve ser visto como um projeto dignificador para o sujeito, não
somente a sua forma de subsistência. Dessa forma, a sua ocupação não será
apenas aquela que o mercado necessita em um momento econômico específico,
mas sim um ofício que atenda suas particularidades e escolhas formativas.
Assim, é recomendado que toda forma de educação desenvolva-se de forma
que possibilite a potencialização das aptidões do discente, priorizando o seu ca-
ráter independente e capaz de decidir acerca de sua formação educacional, sem
que haja uma seleção baseada em questões de interesse das classes dominantes.
Gramsci, ao citar os “aparelhos privados de hegemonia”, compreende que
o sistema educacional, em todos os seus níveis, pode ser utilizado como meio
gerador de coerção social, o que leva os interesse privados de um pequeno grupo
dominante a serem propagados como benefícios para a população.
Tendo isso em vista, o Sistema S e a educação puramente profissionalizan-
te, são ainda mais sensíveis ao caráter do aparelho de hegemonia, já que uma
grande parte de seus objetivos incluem a capacitação rápida de uma mão de
obra necessária ao mercado. Sendo assim, ocorre o atendimento de demandas
mais urgentes da burguesia, sem levar em conta a formação intelectual plena da
classe trabalhadora envolvida no processo.
É possível perceber, diante do exposto, que a educação ofertada pelo Estado
deve ser separada do conceito de fator coercitivo, sendo associada então ao ideal
de ambiente de aprendizagem plena, capaz de atender as diferentes demandas
dos sujeitos sociais. Logo, as instituições precisam estar aptas a preparar o aluno
para a vida acadêmica e para os encaminhar à vida profissional, cabendo ao
discente decidir o que se encaixa melhor em sua vivência e aptidões.

Considerações finais
Através da pesquisa bibliográfica, foi possível avaliar o desenvolvimento da
educação profissional no Brasil, levando em consideração o contexto histórico
do país e os interesses envolvendo a expansão dessa modalidade de ensino.
É possível perceber, portanto, que a formação do trabalhador é associada
principalmente ao interesse do mercado em determinado momento histórico
e vem despertando preocupação de grandes pensadores como Gramsci desde
o século passado. Então, torna-se necessária uma avaliação da influência da

633
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

indústria produtiva e da iniciativa privada na produção curricular quando esta


afeta a classe trabalhadora sem atingir negativamente a classe burguesa.
Uma reflexão foi feita acerca das imposições mercadológicas, atentando para
questionar em até que ponto essas necessidades devem influenciar os setores
sociais relacionados a educação. Ademais, para chegar a essa ponderação foi
necessária uma pesquisa a respeito do desenvolvimento educacional no país,
observando os fatores político e econômicos que regeram a forma como se cons-
truiu a educação profissionalizante no Brasil.
O enfoque no Sistema S foi necessário para a construção de um enten-
dimento sobre os processos formalizantes para a classe trabalhadora pois ele
representa uma referência no quesito educação profissional, com diversas enti-
dades amplamente reconhecidas pelo público.

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638
Entre o constitucionalismo liberal e o
social – a defesa dos direitos sociais do
trabalhador em contraposição aos meios
que garantam a celeridade na tramitação
dos processos na Justiça do Trabalho

Bento Herculano Duarte3


Hilana Beserra da Silva 4

1. Introdução
A atual conjuntura política brasileira implementa uma rediscussão acerca da
colisão entre preceitos da livre iniciativa e a proteção a direitos sociais. Com o
escopo de demonstrar que esta temática alça novos meandros com a inserção do
poder estatal para solucionar este conflito, o presente trabalho tenciona analisar
sobre o modelo engendrado pela Justiça do Trabalho brasileira, através do CSJT
que para sistematizar de forma pragmática a razoável duração do processo frente
às demandas de sua alçada, elegeu como método primordial a via conciliatória.
Sendo assim, emerge como problemática a dicotomia existente entre a uti-
lização da mediação e da arbitragem como meios exclusivos à garantia da ra-
zoável duração do processo em detrimento do dever deste mesmo Estado Juiz
para resguardar Direitos Sociais trabalhistas constitucionalmente garantidos,
circunstancia que se indaga: será que a tão festejada agilidade por meio dos
acordos resulta numa tutela jurisdicional justa?

3 Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
Titular do Curso de Direito da UFRN. Professor na PPGD na UFRN. Desembargador Presidente do
Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região.
4 Mestranda no PPGD da UFRN, orientanda de Bento Herculano Duarte. Professora Titular do
departamento de Direito na Estácio de Sá. Especialista em Direito Constitucional.

639
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Neste desiderato, o primeiro tópico deste artigo discorrerá sobre a relação de


emprego como direito social e a proteção constitucional aos direitos dos traba-
lhadores, razão pela qual demonstrará a inserção dos direitos sociais no Brasil
com enfoque nas Constituição de 1934 e 1937, discorrendo, por fim sobre os
direitos sociais na perspectiva da Constituição Cidadã de 1988.
O tópico seguinte tratará do atual conflito entre a duração razoável do pro-
cesso e a renúncia de direitos sociais trabalhistas quando da utilização da me-
diação como meio para garantir a celeridade processual, principiando, neste
tópico a respeito da visão constitucional de acesso à justiça como igual direito
social, porquanto exige uma prestação positiva do Estado, que no atual contex-
to normativo deve garantir a duração razoável do processo como corolário do
acesso à justiça, fazendo emergir entre este direito social e a renúncia de direitos
sociais por parte do trabalhador para alcançar a solução de uma pretensão resis-
tida que não foi ocasionada por este indivíduo.
A técnica de investigação parte do método indutivo, realizando uma análise
dos conceitos doutrinários para então realizar uma análise das estatísticas en-
gendradas pelo próprio CSJT aduzindo ter alcançado um patamar vitorioso na
solução de conflitos que não foi motivado pelo trabalhador.
Por fim, à guisa de uma conclusão o trabalho tenciona demonstrar as novas
nuances com que se revela a atual dicotomia entre capital e trabalho, as quais
alçam a utilização do aparelho estatal para imprimir ao trabalhador renúncia a
direitos sociais objetivando conferir celeridade processual, vez que toda a prepa-
ração do aparato judicial visa a realização de conciliação como forma precípua
de solução do conflito, relegando o exercício da atividade judicante a causas de
pedir que remontem maiores recursos financeiros.

2. Relação de emprego como direito social e a proteção


constitucional aos direitos dos trabalhadores
As ideias de LASSALE perpassam pela implantação dos direitos sociais pro-
tetivos serviu como liame a unificar as partes integrantes de uma Constituição
que envolvem os banqueiros, a burguesia, a pequena burguesia e o povo (Las-
sale, 2001,p. 20).
No entanto, com propósitos distintos, porquanto os banqueiros e a burgue-
sia (detentores do poder moeda) de modo algum perdem esta condição, “cede”

640
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

sua ambição pelo lucro total para ‘autorizar’, a “ intervenção estatal em favor
das partes mais débeis das relações sociais” (Souza Neto, Sarmento, 2012, p.
58), conferindo-lhes, num plano teórico a promoção da igualdade material, que
segundo estes mesmos autores era revelada “por meio de políticas públicas redis-
tributivas e do fornecimento de prestações materiais para as camadas mais po-
bres da sociedade, em áreas como saúde, educação e previdência social” (Souza
Neto, Sarmento, 2012, p. 58).
A instituição de um Órgão Internacional, através do Tratado de Versal-
les, trouxe recomendações a serem obedecidas por seus signatários, as quais
tratavam de exigências mínimas para conferir um viés protetivo às classes ou
grupos sociais mais fracos ou necessitados, delimitando de forma expressa o
direito à seguridade social e o direito ao trabalho e à proteção contra o desem-
prego (Comparato, 2010, p. 242).
Em que pese a evolução dos princípios de proteção social com enfoque no
trabalhador ter-se desenvolvido sob o manto do Estado Social, o poder consti-
tuinte encontrava-se totalmente submisso à ideologia do liberalismo burguês,
razão pela qual a introdução destes preceitos sociais protetivos foi inserido de
modo homeopático pelo constituinte originário.

2.1. O regime jurídico dos direitos sociais trabalhistas no


constitucionalismo brasileiro
O traço marcante da sociedade brasileira desde sua gênese consiste na exis-
tência de uma classe empresarial-burocrática que ao longo da história brasileira
exerceu a função máxima da liberdade de modo a assenhorear-se da prosperi-
dade para benefício próprio, atuou de forma marcante no processo de formação
do povo brasileiro (Ribeiro, 2006, p. 162).
Perfilando esta ideia de supremacia social de uma classe sobre outra foi que o
Sociólogo Darcy Ribeiro arremata sua crítica a respeito do padrão misógino da
coletividade brasileira, cujas elucubrações devem ser transcritas em virtude da
riqueza na linguagem utilizada e da atualidade de seu conteúdo:

Foi nada menos que prodigiosa a capacidade dessa classe dominante


para recrutar, desfazer e reformar gentes aos milhões. Isso foi feito no
curso de um empreendimento econômico secular, o mais próspero de seu
tempo, em que o objetivo jamais foi criar um povo autônomo, mas cujo

641
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

resultado principal foi fazer surgir como entidade étnica e configuração


cultural um povo novo, destribalizando índios, desafricanizando negros,
deseuropeizando brancos.
Ao desgarrá-los de suas matrizes, para cruzá-los racionalmente e trans-
figurá-los culturalmente, o que se estava fazendo era gestar a nós bra-
sileiros tal como fomos e somos em essência. Uma classe dominante
de caráter consultar-gerencial, socialmente irresponsável, frente a um
povo-massa tratado como escravaria, que produz o que não consome e
só se exerce culturalmente com marginalia, fora da civilização letrada
em que está imersa. (Ribeiro, 2006, p. 163).

Partindo deste viés sociológico, evidenciado no campo pragmático pelos fato-


res reais de poder elucidados alhures pela teoria de LASSALE, cumpre elucidar
que é nesta senda de dominância e subordinação total que se desenvolvem as re-
lações de labor no Brasil de sorte que a mitigação das influências externas, como
as teorias socialistas serviram apenas de pano de fundo para criação de um Estado
Paternalista no afã de submeter a vontade das massas ao controle estatal, devendo
estas massas obedecer à determinação de seus empregadores, que consistiam nos
mesmos financiadores de campanhas do legislativo e do poder executivo.
Em que pese tal crítica, o modelo de Estado introduzido pelo constituciona-
lismo sócia conferiu uma espécie de enriquecimento dialético ao ideário cons-
titucionalista, acrescendo ao modelo de constitucionalismo de base liberal uma
inclusão e sensibilização do Estado para criar condições concretas de vida do ser
humano, objetivando, por via de consequência, uma conciliação entre o cres-
cimento econômico e a busca pela justiça social e do bem-estar coletivo (Souza
Neto, Sarmento, 2012, p. 59).
No campo da conceituação de trabalho, este foi dicotomizado entre a livre
iniciativa e a relação de emprego, modo que o ordenamento jurídico pátrio tra-
çou distinções necessárias entre a o trabalho e a relação de emprego.
Neste último, o atual texto da CLT traça como elemento essencial para sua
configuração a caracterização do empregado, que nos termos do artigo 3º do
menciona do compêndio normativo, é pessoa física que prestar serviços de na-
tureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Ocorre que a análise histórica desta construção remonta a período ditatorial
getulista, cujas elucidações serão a seguir traçadas, cabendo neste ponto esta-
belecer este corte epistemológico para evidenciar as relações de emprego exa-
tamente na implantação dos direitos sociais cuja efetivação observa a criação

642
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

da própria justiça do trabalho, promulgados no bojo da Constituição de 1934 e


posteriormente adequados num período ditatorial intitulado Estado Novo.

2.2. Inserção dos direitos sociais no texto constitucional


brasileiro, com enfoque nas constituições de
1934, 1937 e 1967
Refletindo o ideal compromissário esculpido nas Recomendações pelos Orga-
nismos Internacionais, a Constituição de 1934 foi a primeira Carta política a inserir
a temática da Ordem Econômica e Social, estabelecendo a partir do artigo 120
em diante os preceitos da proteção social do trabalhador no mercado de trabalho,
submetendo tais preceitos aos interesses econômicos do país (Barros, 2013, p. 56).
A importância histórica e social da Constituição de 1934 refere-se às delimita-
ções temáticas resultantes do labor, porquanto foi através de seu texto que o Brasil
tratou, o limite de oito horas da jornada de trabalho, o repouso semanal remunera-
do, as férias anuais remuneradas e a indenização por dispensa sem justa causa (Sou-
za Neto, Sarmento, 2012, p. 59), além de proibir o trabalho a menores de 14 anos
(Barros, 2013, p. 57) e amparar os desvalidos, a maternidade e a família numerosa.
Em que pesem as críticas a respeito da eficácia da norma constitucional, o
texto vertido na Constituição de 1934 contemplava um conteúdo de direitos
positivos, através do qual as massas poderiam vindicar a atuação dos poderes
públicos em seu favor, além de criar uma ideal relativo à função social da pro-
priedade privada ante à intrínseca desigualdade de poder existente o capital e a
mão de obra, impondo ao Estado as necessárias condições de desigualdade para
estabelecer nas relações trabalhistas direitos fundamentais visando proteger os
trabalhadores da exploração implementada por seus empregadores.
Insta elucidar que foi apenas na Constituição de 1937 que o trabalho alçou o
enfoque de dever social, de modo a ser assegurado o direito de exercer trabalho
honesto pelo indivíduo e a obrigação estatal de proteger (Barros, 2013, p. 58).
Neste contexto, fio inserido de forma embrionária a distinção entre a já
mencionada relação de trabalho e relação de emprego, de sorte que o Códi-
go Civil à época era aplicado a todas as relações de trabalho sem distinção,
razão da insatisfação popular ante as evidentes distinções de labor prestado
por profissional liberal e a classe operária relacionadas à habitualidade e a
subordinação jurídica.

643
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Adequando o ideal socialista às necessidades sociais brasileiras, Getúlio Vargas


edita a Consolidação das Leis Trabalhistas em 1º de maio de 1943, no qual consagra
os direitos constitucionalmente estabelecido, criando novos direitos, tais como a esta-
bilidade decenal para atender aos anseios das massas e consolidar o ideal paternalista.
Por fim, a Constituição Federal de 1967 merece igual destaque por trazer
uma ampliação do rol de direitos trabalhistas, quais sejam: aplicação da legis-
lação trabalhista aos empregados temporários; a valorização do trabalho como
condição da dignidade humana; proibição da greve nos serviços públicos e ati-
vidades essenciais e direito à participação nos lucros das empresas e estabeleceu
a aposentadoria para a mulher após 30 anos de trabalho, com salário integral.

2.3. Os direitos sociais na perspectiva da constituição


cidadã de 1988
O atual texto constitucional eleva ao patamar direito social o trabalho estabe-
lecendo um capítulo específico para conceituar e delimitar os títulos específicos
que devem ser alvo da expressa proteção por todo o aparato do aparelho estatal.
O Artigo 6º da Constituição de 1988 define os elementos essenciais que
compõem o conceito de Direito social, destacando o trabalho como un dos ele-
mentis definidores destes direitos sociais, a partir do qual o cidadão conquista o
exercicio de diversos outros direitos subjetivos.
Já os incisos I ao V, VII ao XII e do XV ao XXXIV do artigo 7º, da CRF/88
encerram um patrimônio indisponível pelo trabalhador.
A indisponibilidade dos direitos trabalhistas pelo viés da doutrina civilista é trata-
da como exceção à natureza irrenunciável, motivo pelo qual emerge manifesta crítica
da doutrina trabalhista por arrefecer os efeitos da irrenunciabilidade, porquanto emer-
ge no contexto histórico supra uma medida de abandono ao princípio da igualdade de
direito para uma ascensão do princípio da igualdade de fato no afã de resguardar ao
trabalhador uma suposta proteção jurídica mais favorável (Barros, 1997, p. 89).
O efeito nefasto desta perspectiva se verifica numa efetiva proteção estatal a favor
do trabalhador parte economicamente mais fraca ao estabelecer normas e princípios
protetivos expressos, minorando, por seu turno, os efeitos da autonomia da vontade
e, por via de consequência, a proteção do preceito da indisponibilidade de direitos,
os quais já estariam resguardados por uma proteção pragmática (Barros, 1997, p. 89).

644
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Logo, o instituto da irrenunciabilidade sofreu sistemática flexibilização na


Constituição de 1988, segundo a qual enfatiza a indisponibilidade de direitos ape-
nas a limitados incisos do 7º, quais sejam: irredutibilidade salarial e os preceitos
relativos à jornada de labor de 8 horas diárias e 44 semanais, além da jornada de
6 horas para turnos ininterruptos de revezamento (Barros, 1997, p. 96).
Sendo assim, considerando que os demais incisos do artigo 7º estabelecem
direitos mínimos que dignificam o trabalhador, tais pretensões resistidas não
poderiam ser sublimadas no momento de construção da conciliação na Justiça
do Trabalho; no entanto, perpassam por um crivo protetivo prático, que autori-
za a renúncia das demais pretensões para além das acima citadas.

3. A Constituição Cidadã de 1988 e o conflito entre


a duração razoável do processo e a renúncia de
direitos sociais
Um dos eixos centrais que o presente trabalho tenciona abordar cinge-se na
obrigação de o Estado conferir os meios necessários para que um indivíduo - no
presente contexto: um trabalhador - alcance uma tutela jurisdicional justa como
forma de garantir o exercício constitucional de acesso à justiça nos moldes esta-
belecidos pelo artigo 5º, LXXVIII, da CRFB/1988.

3.1. A duração razoável do processo como corolário


do direito de acesso à justiça na visão da
Constituição Cidadã
O acesso à Justiça pelas lentes do atual texto constitucional alça um hori-
zonte mais amplo a alcançar não apenas institucionalização do acesso por meio
da criação de defensorias públicas e a concessão de gratuidade judiciária, mas
também a própria participação do judiciário na construção do conteúdo decisó-
rio, porquanto ingressar no judiciário através dos mecanismos instituídos deve
ser associado à concessão da medida jurisdicional justa num tempo razoável.
Imerso numa miscelânea de conteúdos normativos que permeiam o orde-
namento pátrio, encontram-se normas marcadamente corporativas ao lado de
outras mais individualistas, além de outras com substância mais ajustada às

645
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

exigências do Estado Democrático de Direito. O papel do Judiciário, neste con-


texto, deve atender a uma visão global para além da norma posta, para evitar
sua rotulação por um aspecto corporativo ou individualista ou social que venha
este Juiz significar o conteúdo normativo (Clève, 2014, p. 186).
Foi apenas na Constituição de 1937 que o trabalho alçou o enfoque de dever
social, de modo a ser assegurado o direito de exercer trabalho honesto pelo in-
divíduo e a obrigação estatal de proteger (Barros, 2013, p. 58).
A Constituição de 1988 trouxe um maior cotejo de direitos sociais; no en-
tanto, seu enfoque nitidamente compromissório tenta transitar de forma equili-
brada entre na ideologia do liberalismo burguês e a social democracia.
Ante ao movimento pendular e dialético existente entre os valores da demo-
cracia liberal e os valores da social democracia, emergem como direitos sociais
todas as prestações positivas a serem conferidas pelo Estado, tais como educa-
ção, proteção do ambiente e dos direitos trabalhistas, alcançando até mesmo o
acesso ao judiciário.
Neste aspecto impende registrar as elucidações ofertadas por Mauro Cappel-
letti que define o acesso à justiça como direito social, consoante se depreende
do aresto a seguir colacionado:

Nos Estados Liberais burgueses dos séculos dezoito e dezenove, os


procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a
filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante.
Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito
formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A teoria
era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um ‘direito natural’,
os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para sua
proteção. (Cappeletti, 1988, Pg: 9).

E finaliza suas elucubrações demonstrando a necessidade do sistema juris-


dicional no Estado moderno no afã de garantir efetividade e concretude aos
direitos, nos seguintes termos:

À medida que as sociedades do laissez-faire cresceram em tamanho


e complexidade, o conceito de direitos humanos começou a sofrer
uma transformação radical. A partir do momento que que as ações e
relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo que
individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás

646
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

a visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações de direito’,


típicas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento fez-se no sentido
de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades,
associações e indivíduos. (...) Entre esses direitos garantidos nas modernas
constituições estão os direitos ao trabalho, à saúde, segurança material
e educação. Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva
do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos esses direitos
sociais básicos. (...) O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado
como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de
um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não
apenas proclamar o direito de todos. (Cappeletti, 1988, Pgs: 11 e 12).

Depreende-se, portanto que a evolução do acesso ao judiciário se dá em


total consonância com a evolução dos direitos sociais trabalhistas, porquanto
resguardam um mesmo enfoque: a necessária intervenção estatal.
Porém, é imperioso destacar que os valores absorvidos pela Constituição pá-
tria, longe de pautar-se exclusivamente na tese neoliberal difundida aos quatro
cantos do Brasil, não pode criar pretextos de submissão dos direitos sociais ao
preceitos de liberdade, tampouco o contrário, na verdade os preceitos de liberda-
de e igualdade devem ser equilibradamente analisados diante do caso concreto.
O texto constitucional, enquanto núcleo dos direitos e garantias fundamen-
tais deixou de implementar puramente os elementos essenciais de construção do
modelo estatal, para enfatizar estas garantias de modo que o Estado deve prestar-
-se como instrumento em favor da coletividade, tal como se depreende das bri-
lhantes elucidações feitas por Clèmerson Merlin Clève a seguir transcritas:

A constituição absorve determinados valores, apresentados na forma de


princípios, de modo a garantir os direitos fundamentais e a dignidade
da pessoa humana. Não é mais um simples corpo orgânico destinado a
estruturar o Estado, os seus órgãos e a desenhar os limites do exercício
do poder. Mais do que isso, é, na verdade, a mina, a reserva, a fonte da
materialidade do direito, dos valores que singularizam esta ou aquela ordem
jurídica, dos compromissos integracionais condensados normativamente.
Por isso, ela é a conquista, é a condensação compromissória, é a expressão
de luta e, ao mesmo tempo, consenso, resultado do acordo sobre o que é
essencial e determinante e, particularmente, sobre o papel que o home,
senhor da sua história, através de seus canais de mediação, em especial
as instituições, haverá de desempenhar na comunidade de destino. Em

647
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

síntese, a Constituição deixa de ser um documento do Estado e para o


Estado para afirmar-se como documento também da sociedade e, por isso
mesmo, do ser humano dotado de dignidade. O Estado é instrumento a
serviço do homem, e não o contrário. (Clève, 2004, p. 227).

Urge, portanto, buscar no movimento de renovação jurídica no afã de alcançar


um modelo dogmático avançado delimitado de conteúdo científico capaz de respaldar
a efetividade dos direitos sociais trabalhistas, especialmente nesse momento crucial
da sociedade pós-moderna, cuja característica mais impactante é a forte tendência
neoliberal de neutralização axiológica da Constituição, colocando-se como essencial
a realização dos meios necessários para rápida duração do processo, que na prática
podem desencadear rupturas na concretização dos direitos sociais do trabalhador.

3.2. A mediação e arbitragem enquanto meio para


solucionar o conflito entre a duração razoável do
processo e a renúncia de direitos sociais
A duração razoável do processo prescinde, nos termos da literalidade do
texto constitucional, da utilização de meios para garantir a celeridade na trami-
tação do referido processo.
Ocorre que escolhendo pelo caminho da utilização de meios para encerrar a
lide solucionando-a com um acordo, e em certo descompasso com a celeridade
na tramitação e efetividade de uma tutela jurisdicional justa, o Tribunal Supe-
rior do Trabalho editou a Portaria nº 174/2016, que trata da a política judiciária
nacional para conferir o tratamento adequado, na ótica do TST, para solucio-
nar as disputas de interesses no âmbito do Poder Judiciário Trabalhista.
A referida portaria considera que o exercício do direito de acesso à Justiça (art.
5º, XXXV, CF) diz respeito ao acesso à ordem jurídica justa; entendendo, todavia,
que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social,
solução, considerando que tal prática tem reduzido a excessiva judicialização dos
conflitos de interesses, bem como a quantidade de recursos e também de execu-
ção de sentenças, razões estas que levam à Justiça Especializada centrar todos os
seus esforços em promover e incentivar a autocomposição por meio da conciliação
para simplificar os atos processuais dentro de uma lide, esquecendo-se, todavia,

648
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que o encorajamento de tal prática sobreleva a forma e decompõe os direitos so-


ciais a meras cifras a serem transacionadas pelo trabalhador.
O artigo 5º da referida portaria estabelece, dentre outras atribuições, a ne-
cessária capacitação, treinamento e atualização de servidores e magistrados
para nos métodos consensuais de solução de conflitos, com foco no empodera-
mento das partes para a autocomposição da disputa.
Neste sentido, impende trazer à baila os resultados das conciliações feitas em
todo Brasil no período de janeiro a outubro de 20175:

5 Informações disponibilizadas pelo CSJT: http://www.tst.jus.br/documents/18640430/a63e185d-2b5c-


be53-102e-d2d8295a495a. Consulta feita em 05/12/2017.

649
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Em contraposição aos dados da tabela relativa aos acordos entabulados entre


janeiro de dezembro de 20166:

A ponderação acerca das pesquisas realizadas percebe-se que, mesmo com


grande incentivo para a pacificação dos conflitos por meio da conciliação, não

6 Informações disponibilizadas pelo CSJT: http://www.tst.jus.br/documents/18640430/3808fc9f-6fa2-


4b95-9f6c-2cab39257ce0. Consulta feita em 05/12/2017.

650
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

ocorreu um aumento expressivo dos acordos, ainda que disponibilizados servi-


dores e magistrados alocados para exclusiva realização de acordos.
Na verdade, ao confrontar os dados percebe-se que houve uma tão gran-
de divulgação acerca da necessidade conciliatória, porém, o resultado em todo
Brasil não alcançou qualquer marca significativa para redução das demandas.
Mas ainda assim emerge como necessário o alerta para evitar a realização de
acordos que venham sublimar direitos sociais do trabalhador.
A presente pesquisa não foi formulada para levantar uma bandeira objeti-
vando a total procedência das demandas em favor do trabalhador, mas sim para
ponderar se a implementação de recursos adstrito à realização de acordos seria o
caminho para alcançar uma razoável duração do processo e se esta forma traria
uma tutela justa em favor do trabalhador.
Os números são claros ao demonstrar que, na prática, existe uma certa
rentabilidade para as empresas não integralizarem obrigações como o depósito
mensal na conta fundiária do trabalhador, e até mesmo deixar de pagar os va-
lores devidos em razão da ruptura abrupta do contrato de trabalho, porquanto
na seara trabalhista será possível a realização de um acordo em cujo bojo os
valores relativos ao fundo de garantia serão pagos diretamente ao empregado,
em detrimento da determinação normativa que estabelece como necessário o
depósito na conta fundiária do trabalhador.
Incentivar o acordo como forma única para solucionar o conflito reflete
uma prática que se utiliza de uma ideal de igualdade entre o trabalhador e
seu empregador inexiste, porquanto desde a formulação dos direitos sociais no
constitucionalismo social, existe uma necessária criação de condições desiguais
para que estes se igualem.
No campo da batalha processual, a existência do advogado representando
os interesses do trabalhador não consiste na condição sine qua non para efe-
tivação do quesito da desigualdade, isto porque sua desigualdade encontra-se
no campo social, motivo este que enseja transcrever as elucidações feitas por
Ronald Dworkin a respeito da igualdade para efetivação dos direitos sociais,
consoante a seguir transcrito:

Podemos dar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo a menos


que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos
sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A
consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política

651
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

– sem ela o governo não passa de tirania – e, quando as riquezas


da nação são distribuídas de maneira muito desigual, como o são as
riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é
suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem
jurídica: a riqueza do cidadão depende muito das leis promulgadas em
sua comunidade – não só as leis que governam a propriedade, o roubo,
os contratos e delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais de
direitos políticos, de regulamentação ambiental e praticamente tudo
o mais. Quando o governo promulga ou mantém um conjunto de tais
leis e não outro, não é apenas previsível que a vida de alguns cidadãos
piore devido a essa escolha, mas também, em um grau considerável,
quais serão esses cidadãos. Nas democracias prósperas, é previsível,
sempre que o governo restringe os programas de previdência social,
ou se recusa a ampliá-los, que tal decisão deteriore a vida dos pobres.
Devemos estar preparados para explicar aos que sofrem dessa maneira
porque foram, não obstante, tratados com a igual consideração que
lhe é devida. (Dworkin, 2005, p.56 ).

Evidente, portanto, a necessária proteção dos direitos sociais no campo pro-


cessual com o fim de garantir a igualdade substancial em favor dos trabalha-
dores, fato este que deve ser ponderado em face do exercício constitucional da
celeridade processual a ser engendrada por meio da realização de acordo.
Neste contexto, o magistrado tem por obrigação observar a função dos di-
reitos sociais no afã de evitar que tais direitos sejam burlados, ainda que sob o
manto da realização do princípio da celeridade processual.
Diante da mencionada dicotomia impende registrar as elucidações de Ri-
cardo Tinoco quanto à efetividade do processo cuja cópia é a seguir transcrita:

A sociedade não espera mais um processo avesso às suas principais


expectativas. Ao contrário, o meio concorre para que o processo reflita
essa gama de anseios e de opções feitas pelo próprio meio. Não havendo
mais espaço para o conformismo, torna-se indesejável um processo cujos
fins se limitem ao juízo de pura declaração. Eleita pela sociedade como
uma das exigências ao exercício da atividade processual, a realização dos
direitos deve ser perseguida, cuidando a comunidade científica de buscar
alternativas para que esta expectativa seja realizada, servindo-se de uma
técnica que promova a prolação de provimentos jurisdicionais úteis e
aptos à concretização desses direitos. (Goés, 2008, Pgs. 82/83).

652
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Evidente, portanto, que o processo tem como finalidade precípua tutelar


a pretensão resistida para assegurar que o direito vindicado longe de perecer,
tenha sua utilidade resguardada pelo provimento jurisdicional.
Ocorre que para além da atividade cognitiva do magistrado e do processo,
o autor arremata suas elucubrações estabelecendo os elementos essenciais da
tutela processual justa, efetiva e adequada enquanto direito fundamental por
meios das seguintes elucidações:

“Esse direito fundamental à tutela processual justa, efetiva e adequada


direciona-se tanto ao legislador como ao juiz. Ele é um direito de fundo
essencialmente principiológico, pois se depreende da informação con-
teudística que se situa na base da Carta Maior e resulta do pacto social
que informa a opção do poder constituinte originário por uma sociedade
democrática, participativa e pluralista.”
(...)
Cremos, portanto, que somente através do bom uso da atividade cog-
nitiva é que o juiz sempre poderá proferir decisões comprometidas com
esse escopo deontológico da função jurisdicional. Não há como disso-
ciar o conhecimento pleno e suficiente da realidade material neces-
sária a dar satisfatividade ao direito com o fim colimado pelo direito
fundamental de acesso.
(...)
Chegamos, assim, a um ponto de curial importância para o enfoque aqui
trazido. Acreditamos que não há como idealizar o exercício de uma téc-
nica cognitiva comprometida com o direito fundamental a uma tutela
efetiva, se essa técnica igualmente não vier garantida pelo selo dos direi-
tos fundamentais.
Enfim: o direito fundamental a uma cognição adequada, refratário das
garantias constitucionais do processo e a serviço do direito fundamental
a uma tutela processual, justa, efetiva e adequada é um direito que se
qualifica pela perspectiva que aproxima a técnica de cognição sobre o
pedido ou pretensão imediata e a técnica de cognição sobre o pedido ou
pretensão mediata. (Goés, 2008, Pgs. 147/148).

Sendo assim, impera a necessidade de uma nova estruturação do Judiciá-


rio trabalhista para evitar que direitos sociais do trabalhador sejam burlados,
sendo necessário observar que o princípio da celeridade processual deve ser
interpretado também no viés de conferir uma tutela jurisdicional justa e efetiva

653
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de modo a enfatizar uma releitura do Artigo 5º, LXXVIII da CRFB/1988 para


prestigiar a efetiva proteção dos direitos sociais estabelecidos nos artigos 6º e 7º,
III também da Constituição pátria.

4. Conclusão
O modelo do Estado Liberal instituído no primado da legalidade tinha
por objetivo precípuo a limitação na atuação estatal frente a livre iniciativa
e as escolhas individuais razão pela qual a liberdade – esculpida num padrão
legal individualista, racional e de livre concorrência - foi utilizada como
meio para, utilizando-se do discurso na riqueza do trabalho, subjugar uma
massa de trabalhadores objetivando apenas o enriquecimento cada vez mais
crescente da classe dominante.
O trabalho ganha dois vieses, um primeiro no campo da linguagem enfeita-
do por um discurso de livre iniciativa, e outro, no campo pragmático, revelado
pelos olhos de uma classe operária cada vez mais pobre e exaurida de recursos,
para quem o labor extenuante deriva da necessidade de subsistência e do temor
em perder o emprego para outro operário com esta mesma visão de ganho.
Percebe-se, portanto, que a crise do constitucionalismo liberal ganhou
contexto e força com a união da pequena burguesia e as massas proletárias
sucumbentes no processo atroz do liberalismo econômico trazendo o perigo
de uma nova ruptura revolucionário em desfavor dos poderes constituídos,
razão pela qual a as teorias socialistas serviram apenas de pano de fundo
para criação de um Estado Paternalista no afã de submeter a vontade das
massas ao controle estatal.
Em que pese a crítica sugerida para o romper do constitucionalismo libe-
ral fundado no individualismo, racionalismo e legalismo, para que os fatores
reais do poder pudessem romper este paradigma foi introduzido um consti-
tucionalismo social que conferiu uma espécie de enriquecimento dialético
no afã de conciliar o crescimento econômico e a busca pela justiça social e
do bem-estar coletivo.
Em outras palavras, ao esmaecer a visão individualista com discurso na le-
galidade, o ideal socialista trouxe uma atenção das autoridades constituídas
para a proteção de direitos mínimos em favor da massa desvalida, cujo discurso
foi utilizado no Brasil, como forma de garantia da perpetuação das classes oli-

654
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

gárquicas no poder por meio de uma proteção puramente legalista e da criação


de direitos mínimos, os quais foram utilizados como discurso paternalista para
perpetuação do poder.
Desse modo, responder à questão problema sugerida no presente trabalho impli-
ca em reanálise dos acordos já realizados, tarefa esta impossível de se empreender
ante aos resultados já alcançados, mas, tal ponderação deve ser enfrentada para o
futuro, porquanto injetar recursos financeiros e humanos em apenas um meio para
solução de conflitos não pode ser considerado a única forma de se alcançar a tutela
jurisdicional justa, devendo ser investido em outras formas para solucionar os confli-
tos trabalhistas sem que haja prejuízo seja do acesso à tutela jurisdicional justa, seja
aos direitos sociais trabalhistas constitucionalmente consagrados.
Por fim, o presente trabalho ambicionou alertar que a conciliação não con-
siste em única alternativa para se alcançar a celeridade processual entabulada na
Constituição brasileira, razão pela qual este princípio, em que pese a Resolução nº
174/2016 do CSJT, deve ser interpretado também no viés de conferir uma tutela
jurisdicional justa e efetiva de modo a prestigiar a efetiva proteção dos direitos
sociais estabelecidos nos artigos 6º e 7º, III também da Constituição pátria.

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656
Experiência de atuação em CREAS de
um município de pequeno porte no RN:
uma análise das dificuldades enfrentadas
pelo advogado enquanto técnico SUAS

Magna Manuelle Ferreira Alves 7


Samia Dayana Cardoso Jorge8
Fabiana Dantas Soares Alves da Mota9

1. Introdução
A assistência social foi definida pela Constituição Federal de 1988 como
política pública não contributiva, oferecida a quem dela necessitar. Um de
seus objetivos é a proteção à família, à maternidade, à infância, à adoles-
cência e à velhice. Neste sentido, a convivência social, o protagonismo e a
autonomia são capacidades que devem ser trabalhadas, em conjunto a outras
políticas públicas, para garantir segurança socioassistencial aos usuários. Nes-
ta política está inserido o Centro de Referencia Especializado em Assistência
Social – CREAS, objeto deste estudo realizado em âmbito municipal, através
de pesquisa participante com intuito de analisar a atuação dos técnicos do
CREAS, identificar suas competências e dificuldades, apontar os desafios en-
frentados pela equipe técnica jurídica do CREAS e demonstrar a importância
da inserção de temas socioassistenciais no currículo do acadêmico de Direito

7 Pós- graduanda em Direito Civil pelo Complexo Educacional Faculdades Metropolitanas Unidas-FMU/
Laureate -Coordenadora do CREAS - Membro do NETIN/UFRN- [email protected]
8 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN - Técnica do
CREAS - Membro do NETIN/UFRN - [email protected] 
9 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN . Coordenadora do
NETIN/UFRN - [email protected] 

657
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

para refletir sobre as dificuldades enfrentadas pelo Advogado do CREAS em


sua atuação como técnico do SUAS.
O CREAS é uma unidade de prestação de serviços especializados e conti-
nuados a indivíduos e/ou famílias em situação de violação ou na iminência de
violação de direitos, responsável por ofertar apoio e acompanhamento a estes.
O Centro de Referência objeto deste estudo é municipal, pertencente à mi-
crorregião do Agreste Potiguar, com cerca de 12.609 habitantes (IBGE,2010),
de economia predominantemente agrícola, e boa parte da população resi-
dente em sítios na área rural. Com o escopo de refletir sobre as dificulda-
des enfrentadas pelo advogado do CREAS em sua atuação como técnico do
SUAS analisamos a atuação dos técnicos do referido CREAS com o intuito
de identificar suas competências e dificuldades enquanto técnicos. Para tan-
to, aproveitando-se da proximidade com o objeto de estudo, a pesquisa de
campo é desenvolvida em contato direto com o objeto, somado à análise de
documentos tais quais prontuários dos usuários do serviço, Plano Individual
de Atendimento (PIA), Relatórios Mensais de Atividades-RMA, pesquisas
bibliográficas, e relatos de experiências de atuação dos técnicos do CREAS
no âmbito de um município de pequeno porte, o que traz uma maior eficácia
para a construção de dados qualitativos.
No primeiro capítulo abordaremos a cerca da importância do CREAS,
apontando as suas normas reguladoras e posteriormente expor as competências
destes Centros de Referência.
No segundo capítulo explanaremos sobre a atuação dos Técnicos do CREAS em
um município de pequeno porte, identificando suas competências e dificuldades.
No terceiro e último capítulo trataremos da atuação do Advogado no CRE-
AS, indicando suas competências e dificuldades.
Por fim, analisaremos os resultados da pesquisa realizada in loco no período
compreendido entre janeiro de 2017 a agosto de 2018, a fim de satisfazer o ob-
jetivo do presente estudo.

2. Centro de Referência Especializado em Assistência


Social - CREAS
A Constituição Federal de 1988 tornou-se um marco histórico para a Assis-
tência Social ao defini-la em seu artigo 203 como direito garantido a todo aque-
le que precisar independente de contribuição à Seguridade Social. Vejamos:

658
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, inde-
pendentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e
a promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios
de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família,
conforme dispuser a lei.

Com a leitura do referido texto constitucional percebemos que o mesmo visa


proteger e amparar àqueles mais vulneráveis à violação de seus direitos, de mes-
mo modo, a Carta Magna em seu artigo 6º define os Direitos Sociais tais como
a proteção à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados como
Direitos e Garantias Fundamentais, por tanto, não sendo possível aboli-los por
serem Cláusulas Pétreas.
Neste sentido, a convivência social, o protagonismo e a autonomia são ca-
pacidades que devem ser trabalhadas, em conjunto a outras políticas públicas,
para garantir segurança socioassistencial aos usuários. Nesta política está in-
serido o Centro de Referência Especializado em Assistência Social – CREAS.

Os Centros de Referência Especializados de Assistência Social


foram instituídos pelo Governo Federal por meio do Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a partir da
aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) em 2004
e da Norma Operacional Básica (NOB/SUAS) em 2005, que vieram a
concretizar a implementação do Sistema Único da Assistência Social
(SUAS), a partir da criação da Lei n. 12.435/2011 (PEREIRA, 2013).

O CREAS é uma unidade pública estatal de abrangência municipal ou re-


gional, tem como competências ofertar e referenciar serviços especializados de
caráter continuado para famílias e indivíduos em situação de violação de direi-
tos (MDS, 2013).
Instituído em 2005 com a criação do Sistema Único da Assistência Social
– SUAS – funciona como unidade de referência da Proteção Social Especial de
Média Complexidade, onde através de uma equipe de profissionais multidisci-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

plinares, desempenha serviços socioassistenciais para indivíduos e famílias em


situação de vulnerabilidade social e risco pessoal e social. Segundo a Política
Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), entende-se vulnerabilidade so-
cial como processo de exclusão social por motivos como pobreza, fragilização
de vínculos afetivos, relacionais e de pertencimento social, discriminações (etá-
rias, étnicas, de gênero ou por deficiência), dentre outros, por sua vez, entende-
-se situações de risco pessoal e social, por violação de direitos, a iminência ou
ocorrência de eventos como: violência intrafamiliar física e psicológica, aban-
dono, negligência, abuso e exploração sexual, situação de rua, ato infracional,
trabalho infantil, afastamento do convívio familiar e comunitário, idosos em
situação de dependência e pessoas com deficiência com agravos decorrente de
isolamento social, dentre outros.
Com o escopo de garantir a efetivação da proteção deste individuo o CRE-
AS busca integralizar os serviços aos demais serviços ofertados pelo Sistema
Único de Assistência Social – SUAS, e demais políticas públicas.
O principal objetivo do CREAS é resgatar as famílias e fortalecer seus vín-
culos entre si e entre a sociedade, fomentando a capacidade de proteção de seus
membros, através da oferta de ações de orientação, proteção e acompanhamen-
to psicossocial individualizado e sistemático.
As competências do CREAS encontram-se consubstanciados em diversas
normas, tais como Constituição Federal, LOAS, PNAS, NOB/SUAS e Tipifica-
ção Nacional de Serviços Socioassistenciais, entre outras. Podemos sintetizá-las
com a descrição trazida pelo Caderno de Orientações Técnicas ( MDS, 2011):

O papel do CREAS no SUAS define suas competências que, de modo


geral, compreendem:
• ofertar e referenciar serviços especializados de caráter continuado
para famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social, por
violação de direitos, conforme dispõe a Tipificação Nacional de Servi-
ços Socioassistenciais;
• a gestão dos processos de trabalho na Unidade, incluindo a coordena-
ção técnica e administrativa da equipe, o planejamento, monitoramento
e avaliação das ações, a organização e execução direta do trabalho so-
cial no âmbito dos serviços ofertados, o relacionamento cotidiano com
a rede e o registro de informações, sem prejuízo das competências do
órgão gestor de assistência social em relação à Unidade.

660
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A delimitação das suas competências é relevante para garantir a oferta de


um serviço de qualidade ao usuário e igualmente para que não se confunda ou
assuma competência de outro serviço das demais Políticas Públicas. Sendo as-
sim, a orientação técnica supracitada, realça a impossibilidade de que o Centro
de Referencia Especializado realize serviços que não lhe compete, Vejamos:

Considerando o papel do CREAS e competências decorrentes, desta-


ca-se que a este não cabe:
• Ocupar lacunas provenientes da ausência de atendimentos que de-
vem ser ofertados na rede pelas outras políticas públicas e/ou órgãos de
defesa de direito;
• Ter seu papel institucional confundido com o de outras políticas ou
órgãos, e por conseguinte, as funções de sua equipe com as de equipes
interprofissionais de outros atores da rede, como, por exemplo, da segu-
rança pública (Delegacias Especializadas, unidades do sistema prisional,
etc), órgãos de defesa e responsabilização (Poder Judiciário, Ministério
Público, Defensoria Pública e Conselho Tutelar) ou de outras políticas
(saúde mental, etc.); (MDS,2011)

É imprescindível que a rede de proteção seja interligada, todavia, que cada


qual exerça seu papel dentro de suas limitações.
O MDS recomenda que os profissionais que trabalham nos Centros de Re-
ferência Especializados sejam Servidores Públicos efetivos para dar melhor con-
tinuidade ao trabalho e evitar a rotatividade de funcionários e gastos desneces-
sários com novas capacitações.

3. Atuação dos técnicos de CREAS em um município


de pequeno porte no RN
A Proteção Social Especial – PSE – organiza oferta de serviços especializa-
dos que contribuem para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários,
fortalecimento de potencialidades e proteção para o enfrentamento de situa-
ções de risco por violação de direitos (BRASILIA, 2011). Nesta política está
inserido o Centro de Referencia Especializado em Assistência Social – CREAS.
O Centro de Referência objeto deste estudo é municipal, localizada no Agreste

661
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Potiguar, com cerca de 12.600 habitantes ( IBGE,2010) , de economia predomi-


nantemente agrícola, e boa parte da população residente em sítios na área rural.
Dos serviços socioassistenciais citados como pertencentes à PSE, no CRE-
AS objeto deste estudo são executados o Serviço de Proteção e Atendimento
Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI) e o Serviço de Proteção So-
cial a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade
Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), atualmente
ofertado a um adolescente, em função de determinação judicial. Em ambos,
reconhece-se a centralidade da família nas intervenções, orientações e acom-
panhamentos, buscando o fortalecimento da função protetiva, potencialização
de recursos, bem assim a construção de possibilidades de mudança.
A busca da autonomia e exercício do protagonismo foram questões chave para a
construção do grupo reflexivo de mulheres usuárias do CREAS e o grupo de jovens
desenvolvido para os usuários do CREAS com faixa etária entre 14 e 21 anos. A
rentabilidade econômica não é critério para atendimento aos que procuram aten-
dimento no CREAS, como apregoa a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS
(1993), uma vez que as situações de vulnerabilidade social não estão estritamente
associadas à vulnerabilidade social, por isso são atendidos usuários das mais diversas
condições econômicas, apesar de os serviços ainda serem mais procurados pelas fa-
mílias em situação de carência material. Em relação ao desenvolvimento do trabalho
social, verificam-se as três dimensões citadas no referido manual: acolhida, com a
identificação das demandas emergentes da família ou indivíduo; o acompanhamento
especializado, composto por atendimentos psicossociais e jurídicos, individuais e em
grupo, além de visitas domiciliares, e a articulação em rede, com desenvolvimento
de atividades em parceria, referenciamento e contrarreferenciamento e realização de
estudo de caso com o conselho tutelar, CRAS e NASF.
A relação com os órgãos de defesa de direitos envolve complexidades
consideradas opostas: considera-se particularmente importante a relação
do CREAS com o Conselho Tutelar, Ministério Público, Poder Judiciário,
Defensoria Pública e Delegacias especializadas (MDS, 2011), pois o público
do serviço são famílias/indivíduos com direitos violados. Entretanto, é clara
a posição do Manual de Orientações quando alerta que ao CREAS “não
cabe ocupar lacunas destes órgãos, assumir atribuição de investigação para a
responsabilização dos autores de violência”. Sobre isso, é frequente o recebi-
mento de ofícios oriundos dos órgãos de defesa que solicitam “averiguação”
e “oitiva” (que são objetos do trabalho perito e/ou policial) e “psicoterapia”

662
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

à vítimas (que deve ser realizado por psicólogos clínicos) e estudos sociais
sobre pedidos de guarda e adoção (sendo que estes devem ser realizados
pelas equipes técnicas das varas de infância).

4. A importância da atuação do advogado no CREAS


em um município de pequeno porte no RN
A natureza do serviço ofertado pelo CREAS importa na composição da
equipe de profissionais, estes necessitam ter um perfil compatível com os
objetivos deste. Por este motivo a Norma Operacional Básica de Recursos
Humanos do Sistema Único de Assistência Social – (NOBRH/SUAS, 2006)
definiu a equipe de referência mínima da seguinte forma: 1 Coordenador,
Equipe Técnica composta por 1 Assistente Social, 1 Psicólogo e 1 Advogado,
2 Profissionais de nível superior ou médio para abordagem dos usuários e 1
Auxiliar administrativo.
A Equipe Técnica é composta por profissionais de nível superior conforme
descrito anteriormente cabendo a estes às mesmas atribuições, dentro das suas
especificidades. No entanto, se tratando de indivíduos e/ou famílias com direi-
tos violados ou na sua iminência, faz-se necessário e de suma importância um
profissional especialista para identificação da demanda e orientação jurídica,
o Advogado. A falta deste profissional torna a prestação do serviço deficiente,
uma vez que, perde-se o objeto do CREAS, o atendimento psicossocial-jurídico.
O Advogado desempenha função social ao buscar a proteção e garantia dos
direitos fundamentais do indivíduo. De igual modo, nossa lei maior descreve a
figura do advogado como indispensável à administração da justiça (CF, 1988).
Todavia, conforme anteriormente citado, o Advogado é Técnico do CREAS e
possui as mesmas atribuições dos demais técnicos, desse modo, não deve operar,
mesmo diante de sua função social e dever público, como Defensor Público.
Esta é outra questão relacionada à judicialização, uma vez que o município
não dispõe de assessoria jurídica gratuita ou Defensoria Pública, estando esta,
além da Promotoria e Juizado, ligados à Comarca de Monte Alegre. Assim, o
advogado do CREAS executa, além do trabalho de orientação sócio jurídica,
principal atribuição deste técnico, a execução de ações relacionadas ao direito
da família e violência doméstica. É frequente a busca por resolução de proble-
mas relacionados à pensão alimentícia, divórcios, intermediação para emissão

663
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de segunda via de certidões de nascimento, certidões de óbito e de nascimento


fora dos prazos, e conciliações familiares quando há uso indevido de proventos
da aposentadoria do idoso, por exemplo.
Visando o bem-estar, proteção e garantia dos direitos das crianças, bem
como evitar sobrecarregar o judiciário com demandas passíveis de resolução
através do diálogo, a equipe jurídica do CREAS, objeto deste estudo, utiliza-se a
mediação como melhor forma de resolução de conflitos familiares e por diversas
vezes intermediam-se acordos extrajudiciais para regularizações de visitações,
guarda e pensão alimentícia entre os genitores. No entanto, os profissionais da
área jurídica estabelecem limites de atendimento que classificam como “atendi-
mento jurídico à família” (SIC), não recebendo “casos” relacionados ao direito
penal como homicídios, direito previdenciário, como negatórias de aposenta-
dorias e direito trabalhista, todavia, não obsta orientar àqueles que buscam o
serviço com tal finalidade.
Diante desta realidade de demandas jurídicas surgem duas dificuldades: a
primeira é desprender a ideia que CREAS atua como defensoria pública ou
substituta de órgãos do poder judiciário e a segunda é a obtenção do benefício
da justiça gratuita para pessoas hipossuficientes nas ações propostas, tendo em
vista que os serviços ofertados não diferenciam o usuário pelo poder econô-
mico, tornando um desafio para os técnicos familiarizar a população com as
possíveis e eventuais cobranças de custas processuais. Sendo o público alvo do
CREAS famílias ou indivíduos em situação ou iminência de violação de direitos
é imprescindível a atuação do advogado nessas demandas.
Salienta-se que tanto o advogado quando os demais trabalhadores devem
utilizar seu saber técnico expresso na forma de comunicação dialógica, não
apenas como comunicados, como oferta de conhecimento pronto a quem su-
postamente não tem saber relevante, fazendo com que o usuário não tenha
a oportunidade de decisão crítica. Esta configuração perpetua-se, de acordo
com Silva e Almeida (2018, p. 272) como “uma prática assistencialista” que
“substitui a comunicação pela doação de informações tendo como efeito uma
formação humana atravessada hegemonicamente pela posição de passividade,
submissão e domesticação do homem”. Paulo Freire (1967, p. 57) refere que não
há responsabilidade e nem decisão do assistencialismo, apenas “gestos que reve-
lam passividade e ‘domesticação’ do homem”.
Diante das complexidades dessas demandas exige da equipe técnica habilida-
des e conhecimentos específicos. Todavia, notamos uma preocupação das Insti-

664
tuições de Ensino Superior em preparar o bacharel em direito para as carreiras
jurídicas de forma material e processual, desconsiderando a área socioassistencial.

5. Resultados e conclusões
Percebe-se que o fato de pertencer a um município de pequeno porte facilitou
a integração com as equipes dos demais segmentos de atuação municipal na área.
Um desafio é a não regionalização de equipamentos de alta complexidade, como
abrigos e casas de passagem. Nota-se que a politica de assistência social apresen-
ta avanços técnico-normativos acompanhados da necessidade de atualização e
capacitação para toda a rede de proteção intersetorial, bem como as voltadas à
assistência social, saúde, educação, delegacias, Conselho tutelar, judiciário e Mi-
nistério Público. Assim, verifica-se que é corriqueira a busca pelo cumprimento
das normativas constantes nos manuais de orientações técnicas e de uma atua-
ção comprometida com a efetivação de direitos, no entanto, há muitos desafios
municipais, estaduais e federais a serem superados para a execução da política
socioassistencial em sua totalidade, de modo a atender a eficácia esperada.

Referências bibliográficas

BRASIL. Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Lei Orgânica da Assistência


Social (LOAS). Brasília, 1993.

______. Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de


Assistência Social – CREAS. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome – MDS. Brasília. 2011.

______. Perguntas e Respostas: Centro de Referência Especializado de


Assistência Social – CREAS. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome – MDS. Brasília. 2013.

______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

PEREIRA, V. S. Sistema Único de Assistência Social (SUAS): considerações


sobre a aprovação do Projeto de Lei n. 189/2010 (PL/SUAS). 2013. Disponível em:
<https://trabajosocialbrasil.wordpress.com/2011/08/21/consideracoes-sobre-a-lei-
federal-n%C2%BA-12-435-regulamentacao-do-suas/>. Acesso em: Ago. 2018.

SILVA, R. B.; ALMEIDA, C. G. F. Ação antidialógica no Sistema Único de


Assistência Social (SUAS): reflexões a partir de Paulo Freire. INTERAÇÕES,
Campo Grande, MS, v. 19, n. 1, p. 265-276, jan./mar. 2018.

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Nada a temer! Precisamos resistir!
A contrarreforma trabalhista
e a precarização do trabalho

Glênia Rouse da Costa1


Izabella Patrícia Brito da Silva2
Maria Lucilma Freitas3

1. Introdução
Tendo em vista que o sistema capitalista tem ampliado e metamorfoseado
suas formas de reprodução, traz consigo uma série de mudanças que repercu-
tem não apenas na esfera econômica, mas também, política, social, cultural,
ideológica e no âmbito da subjetividade humana, no que concerne aos valores,
posicionamentos éticos, sensação de prazer e satisfação. Ou seja, provoca um
redimensionamento na totalidade da vida do ser social, principalmente, a partir
da década de 1970, com o conjunto de transformações operadas com a chama-
da crise estrutural do capital.
Em uma conjuntura de crise, é imprescindível que os detentores dos meios
de produção desenvolvam estratégias de proteção do seu interesse fulcral, que
é a acumulação de capital. Dentre elas, acionar o Estado, que de mão invisível
passa a atuar no âmbito dos direcionamentos socioeconômicos, bem como, na
perspectiva de organização, gestão e controle da força de trabalho.

1 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais (PPGSSDS-UERN).
Docente na Faculdade do Vale do Jaguaribe.
2 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pós-
graduada em Políticas Públicas da Assistência Social pela Faculdade Católica N. Srª. das Vitórias.
Discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais (PPGSSDS-UERN).
3 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais (PPGSSDS-UERN).

667
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Em se tratando da realidade brasileira, a classe trabalhadora tem sentido na


pele o peso dessas medidas, principalmente, a partir de gestão presidencial de
Michel Temer, que em seu pacote de maldades aprovou a Lei nº 13.467/2017,
que altera a Consolidação das Leis do Trabalho.
Nessa esteira, o presente artigo tem como objetivo geral analisar as mudan-
ças ocorridas na Reforma Trabalhista no governo de Michel Temer. E compon-
do os objetivos específicos têm-se: apresentar a importância do trabalho como
categoria fundante do ser social; compreender o desmonte dos direitos a partir
da implementação da Reforma Trabalhista; discutir a intensificação da preca-
rização do trabalho.
As medidas em curso, de cunho nitidamente classista, têm provocado
uma sangria desmedida na classe trabalhadora que, por questões de neces-
sidade de sua sobrevivência acaba submetida a situações de precarização e
prejuízo dos seus direitos.
Destarte, pretendemos mobilizar nosso conhecimento, a partir das lentes
do marxismo, na perspectiva de adensar o debate posto acerca da categoria
trabalho, bem como, por nos reconhecermos enquanto classe trabalhadora, que
deve se organizar pelo fortalecimento dos nossos direitos, que são conquistas
legítimas resultantes de processos reivindicatórios, fazendo frente ao projeto de
desmonte dos direitos sociais.

2. A ofensiva em escala global ao mundo do trabalho


O cenário atual da sociedade tem sido permeado pela desigualdade e regres-
são dos direitos sociais, os quais são frutos das conquistas históricas da classe
trabalhadora. Estamos diante de um processo de reestruturação produtiva e de
competição das economias em escala global, ocasionando diversas transforma-
ções para o mundo do trabalho através do atrofiamento dos setores produtivos
e do crescimento do setor de serviços; da substituição crescente do trabalho
vivo pelo trabalho morto, provocada pelo desenvolvimento tecnológico e do
crescimento do desemprego, verificado mundialmente.
Cabe lembrar que “O processo de reestruturação produtiva consolidou-se
no Brasil a partir do governo Collor de Mello, em 1989, provocada pelo merca-
do globalizado, no atual estágio de acumulação flexível do capital”. (FREIRE,
2010, p. 35). Trata-se de um processo que proporciona uma série de perdas para

668
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

os trabalhadores, principalmente, em relação a expulsão massiva do emprego


concomitante com a diminuição de vagas ofertadas, gerando uma população
sobrante, apta a trabalhar, mas que não é absorvida pelo mercado.
“A acumulação capitalista produz constantemente, e na proporção de sua
energia e seu volume, uma população trabalhadora adicional relativamente ex-
cedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização do capital
e, portanto, supérflua.” (MARX, 1987, p. 857).
A esse público chama-se de exército industrial de reserva. É funcional
ao capital, tendo em vista que é utilizado para minar as possibilidades de
negociação entre empregador e empregado, repercutindo, principalmente,
no rebaixamento dos salários.
São diversos os autores que se dedicam a estudar sobre a categoria em co-
mento. Entre eles, nos reportamos a Antunes (1997), Druck (2013) e Raichelis
(2013), para explicar que a precarização das condições de trabalho não se trata
de um fenômeno de nossos dias. Inicia-se a partir da década de 1970, fortemen-
te vinculada às novas configurações no mundo do trabalho. Para os autores
supracitados, o processo de precarização se concretiza em várias dimensões,
tais como: nas formas de contrato que estabelecem o vínculo empregatício cada
mais desprotegido para o trabalhador; no aumento da carga horária; nos salá-
rios reduzidos, que proporcionam apenas as condições limites de sobrevivência;
na alta rotatividade, que não gera custos tão altos para o empregador e sustenta-
da pela existência do exército industrial de reserva; entre outros aspectos. Essa
conjuntura acometeu a classe trabalhadora e tem modificado a realidade de
modo negativo com o desmonte de direitos historicamente conquistados para
maximização do capital.

No Brasil, antes mesmo da onda (neo)liberalizante dos ajustamentos


estruturais, as diferentes formas de precarização do trabalho, os
altos índices de subemprego e a informalidade da força de trabalho
urbana e rural, bem como, a ausência e a fragilidade do sistema
de proteção social já se apresentavam como traços marcantes do
capitalismo dependente brasileiro, na transição do trabalho escravo
para o trabalho livre, contexto que desencadeia a questão social no
país. (RAICHELIS, 2013, p. 616).

Partindo dessa perspectiva, a afirmação de Marx, a rigor, se expressa na


contemporaneidade, pois a forma com que os seres humanos reproduzem

669
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

seus meios de sobrevivência depende inicialmente da “[...] natureza dos


próprios meios de subsistência encontrados e [...] aquilo que os indiví-
duos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção”.
(MARX, 2009, p. 24-25).
Encontramos essa realidade nas relações e condições de trabalho através
da flexibilização com a finalidade de diminuição dos gastos que oneram o em-
pregador e o aumento da produtividade. Nesse ínterim, a cooptação dos mo-
vimentos sociais e sindicatos, refletem a fragilização da organização da classe
trabalhadora. Na mesma simetria teórica, Druck (2013) acrescenta que o pro-
cesso da precarização do trabalho tem ocasionado a fragmentação coletiva dos
trabalhadores e uma brutal concorrência, com isso, as formas mais tradicionais
de lutas enfraquecem.

Em suma, estamos afirmando que as estratégias utilizadas pelo


grande capital, para redefinir socialmente o processo de produção de
mercadorias, a rigor, evidenciam as reais necessidades do processo de
reestruturação produtiva: a integração passiva dos trabalhadores à
nova ordem do capital, isto é, a adesão e o consentimento do trabalhador
às exigências da produção capitalista”. (MOTA; AMARAL, 1998, p.
40-41, grifo das autoras).

Importa mencionar que, conforme Mattoso (1995), para maioria dos traba-
lhadores, a flexibilização dos contratos de trabalho não gera apenas o rebaixa-
mento do salário, mas também, a restrição ou mesmo a eliminação do acesso à
seguridade social e à assistência médica, direitos expressos em lei, mas que tem
sido apropriados pelo mercado privado, tornando o acesso cada vez mais limitado.
Por fim é imprescindível aludir ainda que a precarização do trabalho não
tem se restringido a esfera privada, e sim, tem se espraiado para esfera estatal.
Sendo assim, verifica-se dentro do Estado a terceirização da mão de obra, a pés-
sima estrutura de trabalho, a redução da massa salarial, a subtração de diretos
sociais, o aumento da produtividade, dentre outros reflexos negativos.

3. A categoria trabalho na perspectiva marxista


As reflexões acerca do trabalho emitidas nesse estudo partem da compreensão
de que não se trata de uma categoria cuja finalidade se encerra em si mesma. E sim,

670
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de que está presente na gênese e no desenvolvimento do ser social, bem como, na


perspectiva da centralidade que adquire no capitalismo, tendo em vista que:

O trabalho, como criador de valores de uso, como trabalho útil, é


indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas
de sociedade –, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio
material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida
humana. (MARX, 1987, p. 50).

Utilizando Karl Marx como aporte teórico para direcionar esse estudo, te-
mos que ele caracteriza o trabalho, de um ponto de vista mais amplo, como a
interação entre o homem e a natureza, com o objetivo de transformar a nature-
za nos bens necessários à sobrevivência do homem.
Conforme a tradição marxista, o trabalho é considerado a fonte de toda a
riqueza, e também, de prazer e realização humana. A categoria ontológica do
marxismo permite entender que ao realizar o trabalho o ser humano abando-
na a dependência para com a natureza e adentra no universo especificamente
humano. Dessa forma, o trabalho é produto do homem e, ao mesmo tempo,
produtor do ser, da cultura, da civilização, objetivando relações de produção
e reprodução social. Logo, trabalhar tem o significado de garantir as condi-
ções objetivas e subjetivas para a manutenção e o desenvolvimento da nossa
existência e, por isso, a satisfação deveria ser um sentimento dele proveniente.
Entretanto, não é dessa maneira (conforme veremos adiante, nos apontamentos
sobre a conjuntura brasileira contemporânea) que se procede a relação humana
e o trabalho no modo de produção capitalista, que é polarizada em duas classes:
os que detêm os meios de produção e os que dispõem da força de trabalho.
Nesse sentido, o trabalho não deve ser analisado apenas pelas suas diferentes
formas e/ou pelo seu aspecto técnico. É imprescindível considerar também as
relações sociais nas quais ele ocorre. Inclusive, podemos afirmar que essa é uma
das grandes contribuições de Marx: problematizar a historicidade das formas
sociais e como o processo de produção técnico e material se dá em um determi-
nado estágio de desenvolvimento das forças produtivas.
Marx contrapõe o trabalho do ponto de vista do processo simples ao modo
como deve ser examinado na perspectiva específica do modo de produção ca-
pitalista, ou seja, de um ponto de vista historicamente determinado. Portanto,
quando se discute a questão da produção, é preciso situar historicamente a que

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

modo de produção se está fazendo referência, delimitando, assim, o nível do de-


senvolvimento social, pois cada formação econômica (escravista, feudal, capita-
lista) tem diferentes relações de produção e é justamente isso que as distingue.
Concordamos com o autor em comento que o desenvolvimento do capital
pressupõe algumas condições históricas: de um lado, o trabalhador livre que
permita o intercâmbio da sua força de trabalho por dinheiro (para que o capi-
tal possa se reproduzir e se valorizar), e por outro, a separação do homem dos
meios necessários para sua reprodução material. Na relação entre o trabalho
assalariado e o capital, o produtor é alijado dos meios de produção necessários
a sua reprodução e precisa vender sua força de trabalho a fim de obter as con-
dições necessárias para sua sobrevivência. Dessa forma, “O sistema inteiro da
produção capitalista baseia-se no fato de que o trabalhador vende sua força de
trabalho como mercadoria”. (MARX, 1987, p. 612).
Os meios de produção constituem-se nos objetos e nos meios de trabalho.
Esses, incluem tanto os elementos que são essenciais para o funcionamento do
processo de trabalho, embora com ele se relacionem indiretamente (canais, es-
tradas, entre outros), quanto os elementos através dos quais o trabalho se exerce
sobre seu objeto (as ferramentas e as máquinas). Esses últimos são sempre resul-
tado de processos de trabalho anteriores e seu caráter está relacionado ao grau
de desenvolvimento do trabalho e às relações sociais sob as quais é realizado.
Tudo isso envolve também a matéria-prima que é usada no processo de trabalho
e já é resultado de um trabalho realizado anteriormente. Os objetos de trabalho
que não têm um trabalho anterior não são matéria-prima, são matéria bruta.
A economia capitalista representa a totalidade das relações de produção
entre as pessoas, ou seja, a união do processo técnico material com suas formas
sociais. Entendemos que o modo de produção capitalista não deve ser estudado
de forma desassociada das relações desenvolvidas entre as pessoas.
A vida social, política, cultural, é condicionada pelo modo de produção da
vida material, da mesma forma, a consciência do homem é determinada pelo
seu ser social, pela forma de organização social na qual o indivíduo vive. Todo
o mundo no qual o homem vive é um produto histórico, mediado pelo trabalho.
Mas, o trabalho, de acordo com a perspectiva marxista, está subordinado, no
sistema capitalista, ao propósito de reproduzir e expandir o domínio material
e político da classe capitalista, enquanto a maioria da população está separada
dos meios de produção e de subsistência e, por conseguinte, é compelida a in-
gressar no trabalho assalariado.

672
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

E em se tratando de questões de sobrevivência da classe trabalhadora, basta


uma breve análise para se perceber que parte considerável dela têm sobrevivido
no fio da navalha, em condições mínimas de dignidade.

A sociabilidade contida em um modo de produção que transforma a


tudo em mercadorias, a começar pela força de trabalho, tem como seu
resultado relações sociais e a atividade laborativa mesma de produzir os
bens e os produtos necessários à vida social, como algo penoso, alienado,
no qual o próprio produtor não se reconhece nos frutos de seu trabalho.
(GRANEMANN, 2009, p. 233).

Logo, para essa parcela da população o trabalho se apresenta como fonte


de descontentamento, tensão e não acesso ao usufruto do que foi produzido. A
contrarreforma trabalhista expõe nitidamente a ideia que afirmamos, conforme
veremos a seguir.

4. A contrarreforma trabalhista no Brasil: quem paga


a conta é a classe trabalhadora!
No processo de mercantilização da vida humana, foi aprovado o Projeto de
Lei da Câmara nº 38 de 2017, a Reforma Trabalhista, Lei nº 13.467 de 13 de
julho de 2017, que altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com o
intuito de adequar a legislação às novas relações de trabalho.

Sob a égide dos termos modernização e/ou flexibilização todos os


direitos sofreram alguma alteração com prejuízo para o trabalhador,
transformando-os em objeto de negociação, como se por meio de livres
acordos as regras legais fossem realmente ser aplicadas. [...] Aos poucos,
o contrato de trabalho vai sendo privatizado e substituído pelo contrato
de prestação de serviço, prática que ocorria há um século, quando
entrou em vigor o antigo Código Civil (1916), liberando o empregador
das obrigações trabalhistas. Ou seja, é um retrocesso sem precedentes.
(SILVA, 2018, p. 117).

Aqui, cabe a crítica ao uso do termo reforma, o qual se espera ser utiliza-
do para mencionar situações em que algo foi melhorado. Concordamos com
Behring; Boschetti (2007) quando explicam que contrarreforma se adequa me-

673
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

lhor as situações em curso, pois são alterações de desmonte, de destruição dos


direitos historicamente conquistados, priorizando beneficiar o mercado, sem
preocupar-se com os prejuízos arcados pela classe trabalhadora.
Diante desse processo que representa a barbarização em dimensões inco-
mensuráveis, temos ainda, análises parciais, em relação ao seu alcance, como
afirma Alves (2007, p. 109): “Muitos países, como o Brasil, possuem critérios
de estatística social cuja metodologia é incapaz de apreender a dimensão da
precariedade (e da precarização) do mundo do trabalho”. Ou seja, ainda é ne-
cessário aprofundar as pesquisas e divulgar amplamente seus resultados, para
que possamos ter uma aproximação mais nítida da realidade vivenciada pela
classe trabalhadora.
Retomando o processo de precarização, tendo como eixo analítico principal
a arena dos direitos trabalhistas, a justificativa para aprovação dessa contrar-
reforma foi alicerçada em dois argumentos: a criação de mais empregos e a
previsão de crescimento econômico, os quais são os grandes anseios de toda a
população. O uso dessas justificativas, por vezes, acaba por embaçar quais os
interesses que se encontram por trás de cada medida aprovada que, de forma
geral, são em favorecimento do capital.
Welle (2017) esclarece no jornal eletrônico Carta Capital que a nova legisla-
ção trabalhista foi alterada em cem pontos, dentre eles: o aumento da jornada
de trabalho, que antes estabelecia um limite de 25 horas de trabalho para a jor-
nada parcial, e passou a vigorar 30 horas semanais sem hora extra, ou 26 horas
semanais com acréscimo de seis horas extras. Autorizou o parcelamento das fé-
rias em três vezes, e o exercício do trabalho das mulheres grávidas em ambientes
insalubres em graus mínimo e médio. Desvinculou a contribuição sindical do
caráter de obrigatoriedade, que era feita anualmente. E fomenta a precarização
da contração do trabalhador autônomo, mesmo que este mantenha exclusivi-
dade e continuidade na prestação do serviço essas condicionalidades passam a
não se configurar como vínculo empregatício.
Diante dessa conjuntura, encontramos as expressões que afirmam que o
atual modo de produção econômica reinventa maneiras cada vez mais aprimo-
radas, atingindo a classe trabalhadora não só na condição salarial, mas também
na sua subjetividade, tendo em vista que o trabalho é categoria fundante do ser
social, portanto, as mudanças nela ocasionadas repercutem na forma de relação
dos indivíduos entre si, com a sociedade e com a natureza.

674
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

[...] na produção social da sua existência, os homens estabelecem


relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade,
relações de produção, que correspondem a um determinado grau de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas
relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a
base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política
e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O
modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da
vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente,
determina a sua consciência. (MARX, 1982, online).

Para Alves (2007), o aumento do desemprego em massa reitera as formas de


rebaixamento salarial e precarização do trabalho e não estão apenas pautadas
em uma função sistêmica para acumulação de capital, neles reside também a
função derivada de implementar uma sociabilidade regressiva em que a barbárie
social exerce importante função de dificultar o reconhecimento da condição
humano-genérica, que possa transcender o sistema capitalista. Por conseguinte,
impulsiona o processo de dessocialização da classe trabalhadora, em que os
indivíduos sociais estão intrinsicamente passíveis as disposições alienadoras da
acumulação de valor.
Outro item importante a destacar é a regulamentação da livre negociação
entre patrão e empregado, em que a definição de pontos que podem ser fruto de
acordo entre empresários e representantes dos trabalhadores passam a ter força
de lei. Ou seja, há uma prevalência do que for negociado sobre os direitos que
estão legislados, mesmo que isso incorra em agravo para o trabalhador. Dessa
forma, passa a ser permitido ao patrão alegar que a demissão foi de comum
acordo e pagar apenas metade da indenização devida.
É notório que as justificativas para implementação dessa contrarreforma não
se sustentam, pois em que podemos notar avanços e melhores possibilidades
para a classe trabalhadora?
Na realidade, os dados são desoladores. A pesquisa: Taxa combinada de
desocupação e de subocupação por insuficiência de horas trabalhadas, divul-
gada em agosto de 2018 pelo IBGE, aponta que pessoas ocupadas (exercendo
algum tipo de atividade remunerada) com uma jornada de menos de 40 horas
semanais, mas que gostariam de trabalhar em um período maior, somada às
pessoas desocupadas foi de 18,7% no Brasil, no segundo trimestre de 2018, o

675
que representa 6,5 milhões de trabalhadores subocupados por insuficiência de
horas trabalhadas e 13,0 milhões de desocupados.
Observamos que os índices destacam a precarização das formas de trabalho. A
informação que pessoas que trabalham 40 horas semanais e que gostariam de tra-
balhar por um período ainda maior, expressa de sobremaneira o quanto as pessoas
são consideradas como coisas na sociabilidade capitalista. E o próprio trabalhador
não reconhece o grau de expropriação a que está submetido, visto que o trabalho
é tido enquanto um mal necessário, como um fardo que é preciso carregar. Como
também, por estar inserido dialeticamente em um processo de negação da sua pró-
pria vida, pois entende que ao trabalhar mais horas poderá adquirir mais capital.
Nesse contexto, Alves (2007) esclarece que essa condição está intrinseca-
mente ligada ao surgimento do sistema capitalista:

Ao dizermos precariedade, tratamos de uma condição sócioestrutural


que caracteriza o trabalho vivo e a força de trabalho como mercadoria,
atingindo aqueles que são despossuídos do controle dos meios de produção
das condições objetivas e subjetivas da vida social. A precariedade do
mundo do trabalho é uma condição histórico-ontológica da força de
trabalho como mercadoria. Desde que a força de trabalho se constitui
como mercadoria, o trabalho vivo carrega o estigma da precariedade
social. (ALVES, 2007, p. 114, grifo do autor).

O levantamento realizado pelo jornal eletrônico Carta Capital aponta que


nos primeiros seis meses de vigência da reforma trabalhista ainda era difícil
mensurar os seus impactos. Isso ocorre por dois motivos: o argumento de que a
reforma traria maior segurança jurídica aos empregadores e claro menor aos em-
pregados. Para tanto, dispõe de diversas polêmicas e antagonismos com relação
a suas modificações, que estariam ferindo a Constituição Federal de 1988. O
segundo motivo está alicerçado nas limitações estatísticas, ou seja, ao estabele-
cer modalidades de trabalho como o intermitente, criam-se diversos obstáculos
que dificultam a quantificação de pessoas desocupadas. Além disso, a própria
caracterização da terceirização perpassa por questionamentos em relação a sua
mensuração. Embora esse processo de mudanças tenha elementos ainda de di-
fícil alcance, pode-se afirmar que a reforma não aponta índices significativos de
recuperação nos níveis de emprego. (VALLEJOS; SOUSA; OLIVEIRA, 2018).
Nesse momento temeroso, perpassado por uma grave crise econômica e po-
lítica, o capital se utiliza de multiformas de precarização do trabalho. Inclusive,

676
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

infiltrando-se nas organizações de base, junto aos representantes populares que


em algum momento expressam e executam em suas ações o fortalecimento da
categoria, e em outros, reforçam a opressão e a destruição gradativa dos direitos
sociais da classe trabalhadora. “A precarização possui um significado concreto:
ela atinge o núcleo organizado do mundo do trabalho que conseguiu instituir, a
partir da luta política e social de classe, alguma forma de controle sobre suas
condições de existência”. (ALVES, 2007, p. 115, grifos do autor).
A precarização das condições de trabalho não é uma realidade que se li-
mita ao nosso país. Ao contrário, se espraia em âmbito internacional, em um
nível sem precedentes, o que desfavorece a organização da classe trabalhadora,
dificultando o seu processo de consciência de classe e abrindo espaços para o
capital criar estratégias de dominação e alienação.
No Brasil, atualmente, o Estado democrático de direito tem se restringido
a um simbolismo, que denota a fragilidade de uma democracia profundamente
ameaçada com a recente eleição de um presidente da república que defende
abertamente um projeto societário de caráter reacionário, o que repercute ne-
gativamente nas condições de sobrevivência de todos os segmentos que têm
sofrido com as medidas de desmonte dos direitos sociais.
E para o agravamento da conjuntura, contamos com um Congresso Nacio-
nal que tem demonstrado posições contrárias aos direitos trabalhistas, visto
que a ocupação dos cargos é composta, em sua maioria, por representantes de
setores que se articulam fortemente em torno dos seus próprios interesses, tais
como: a bancada ruralista, a bancada evangélica e a bancada armamentista. O
resultado dessa junção é a ampliação das estratégias de acúmulo de capital em
detrimento da sangria da classe trabalhadora.
Todavia, não podemos nos render. Não podemos acreditar que esse é o fim
da história. É urgente a necessidade de reorganização dos movimentos de base,
dos segmentos socias que têm seus direitos suprimidos e sua existência invisibi-
lizada, para que possamos fazer frente ao processo de barbárie que se instala em
nosso país. É preciso lutar e resistir!

5. Conclusão
As mudanças ocorridas no mundo do trabalho não são resultado de um
processo recente, nem de uma realidade exclusiva nacional. E sim, a par-

677
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

tir da década de 1970, quando tais mudanças atingem em escala global o


mundo do trabalho, reconfigurando sua estrutura e organização, marcada-
mente com a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, causando
desemprego em larga escala.
O trabalho, enquanto categoria fundante do ser social, se expressa na
garantia das condições objetivas e subjetivas de manutenção da existência
humana e, portanto, deveria expressar sensações de prazer e satisfação para
quem o exerce. Entretanto, no sistema capitalista, a maneira como o traba-
lho se organiza tem se transformado em uma exteriorização do homem, ele-
mento de pesar e alienação, objeto de extração da mais-valia. Esse processo,
enquanto condição sócioestrutural, é o que traz o caráter de precariedade
ao trabalho. Assim, a precarização é um processo histórico e político que
atinge o mundo de trabalho de diversas formas e dimensões (o que inclui a
subjetividade do trabalhador).
A Lei nº 13.467/2017 completou mais de um ano de sua vigência, com diver-
sos retrocessos e destituição dos direitos trabalhistas. Ainda não é possível ob-
servar os impactos positivos apontados como justificativa para a sua aprovação.
Por outro lado, os impactos negativos já vêm sendo sentido há bastante tempo.
É possível que os quantitativos divulgados acerca das condições de trabalho não
expressem a realidade brasileira tal como ela é. Mas, sem dúvidas, nos dão a no-
ção de que a precarização faz parte do cotidiano de milhões de pessoas. É impe-
rante o processo de reificação da vida humana. A indiferença para com o outro,
o individualismo, são algumas das características que expressam a alienação da
nossa capacidade de reconhecer-se no outro enquanto ser humano-genérico.
Nesse sentido, com a aprovação da Reforma Trabalhista da gestão Temer,
estamos vivenciando a barbarização da vida de forma cada vez mais severa. O
ataque e a destituição dos direitos sociais sinalizam os efeitos catastróficos que
sobrepesam para a classe trabalhadora.
Todavia, a história relata que, quando organizados, os movimentos de
resistência conseguem mudar os rumos do que está posto como destino
fatal. Seguindo o ensinamento de Marx e Engels (2008, p. 8), “A história
de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classes”,
sigamos movendo esse motor, defendendo a bandeira de resistência e luta
pelos direitos da classe trabalhadora.

678
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

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680
O atual modo de gestão do capital
e a retomada da escravização
na contemporaneidade

Alex Moura do Nascimento1


Luiz Manoel Andrade Meneses2

Introdução
O presente texto aborda o liame entre a retomada da escravização na con-
temporaneidade e o atual modo de gestão do capital, do qual resulta a inten-
sificação do processo de precarização nas relações de trabalho, que, por sua
vez, incita a retomada do regime escravista na atualidade, tema de insofismável
relevância. O estudo também esboça possibilidades de resistência e superação
desse modelo perverso.
Visa-se demonstrar a correlação entre o modo de gestão do capital e a con-
figuração do trabalho escravo na atualidade. Inicialmente, desvela-se a correla-
ção entre o contexto de crise generalizada com a precarização das relações de
trabalho na contemporaneidade. Em seguida, apontam-se os elementos deter-
minantes da intensificação da precarização das relações de trabalho, para, por
fim, delinear as condições de existência, resistência e superação do trabalho
escravo no tempo presente.
Segue-se o método da revisão bibliográfica. Primeiramente, fez-se breve aná-
lise do atual modo de gestão do capital, discorrendo sobre movimento de busca
pela independência em relação ao modo de produção, estágio denominado de
capitalismo financeiro. A partir dessa análise, estabelece-se a relação entre o
referido movimento e o agravamento dos dissensos mundiais, perpassando pelas

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Sergipe - e-mail: [email protected]


2 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe - Professor Universitário - Juiz Titular da 3ª
Vara do Trabalho da Comarca de Aracaju - e-mail: [email protected]

681
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

guerras civis, pelas guerras híbridas e pelas guerras comerciais, desaguando na


intensificação da vulnerabilidade dos indivíduos, principalmente daqueles que
em virtude dessas crises, veem-se obrigados a sair de seus lares por motivos de
sobrevivência, os assim chamados deslocados. Esse processo de vulnerabilização
constitui fator determinante para a precarização do trabalho na medida em que
retira dos sujeitos o patamar mínimo civilizatório, contribuindo para uma nova
configuração do trabalho escravo denominado Trabalho Escravo Contemporâ-
neo, conceito que, na prática, ainda carece de rigor científico e, consequente-
mente, de aplicação.
Em seguida, discorre-se sobre a precarização das relações de trabalho na
contemporaneidade, considerando conjuntamente a ingerência do Estado na
desregulamentação dos direitos trabalhistas sob a pecha de modernização nor-
mativa e o papel que o avanço tecnológico exerce nessa conjuntura, viabilizan-
do inclusive a exploração do trabalho mediado por plataformas digitais.
Por fim, delineia-se o conceito de Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC) e
esboçam-se mecanismos de resistência e superação da precarização e da escravidão.

1. Hegemonia do capital financeiro e simulacro: o modo


de gestão do capital é a crise
Nesse primeiro tópico, busca-se desvelar a correlação entre o contexto de
crise generalizada do capital com a precarização das relações de trabalho na
contemporaneidade. Uma das características da sociedade contemporânea é
a sensação de crise constante. De fato, é inerente ao capitalismo um estado
de crise permanente, pois ao tempo em que a capacidade produtiva aumenta,
há uma diminuição da capacidade de consumo, em razão do desemprego es-
trutural crescente. Assim:

Em que pesem os diversos ajustes econômicos pelos governos dos países


centrais para estimular a produção capitalista, não se vislumbra uma
reversão do quadro de estagnação. Ao mesmo tempo, decai a qualidade
de vida do proletariado desses países, sufocado pelo desemprego
estrutural e pela perda do poder aquisitivo e de direitos sociais, ante
a crescente adoção de medidas de austeridade como forma de tentar
superar a estagnação econômica e a própria precarização do trabalho

682
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

proporcionada pelas inovações tecnológicas (NUNES; VALENTINI;


VASCONCELOS, 2017, p. 94).

Além da presença do uso desmedido do desenvolvimento tecnológico no


processo de precarização das relações de trabalho, a sociedade contemporânea
é marcada pelo fenômeno da financeirização do capital, propiciado e alavan-
cado pela aceleração do fluxo de capital de dinheiro e informações mediante
o amplo desenvolvimento dos meios de comunicação. De acordo com os autos
Braz e Netto (2012), esse fenômeno tem gerado a intensificação da acumulação
do capital nos sistemas bancários e financeiros, resultando numa superacumula-
ção. Diante desta realidade, os autores constatam que “O que vem se passando
no capitalismo contemporâneo é o fabuloso crescimento (em função da superacu-
mulação e da queda das taxas de lucros) dessa massa de capital dinheiro que não
é investida produtivamente, mas que succiona seus ganhos (juros) da mais-valia
global [...]” (BRAZ; NETTO, 2012, grifos do autor, p. 243-244).
Na mesma linha:

Não se trata, aqui, do tradicional capital financeiro-especulativo, da


virada do século XIX para o século XX, que, no conceito de Hilferding,
traduzia uma articulação específica entre o segmento financeiro e o
industrial, sob o domínio do primeiro. Ao invés, trata-se, agora, do capital
substantivamente especulativo, que gera sua reprodução essencialmente
com o próprio jogo de inversões financeiras, sem compromisso relevante
com a noção de produção, tão cara às fases anteriores do capitalismo
(DELGADO, 2017, p. 19-20).

Diante dessa conjuntura, constata-se a intensificação das desigualdades so-


ciais experimentadas pelos mais diversos países do globo, fruto da superacu-
mulação propiciada pela financeirização do capital. Outrossim, em virtude do
desenvolvimento tecnológico vivenciado nos tempos hodiernos, há a diminui-
ção crescente nas vagas de emprego, desaguando no crescimento do exército
industrial de reserva e, consequentemente, na sujeição da classe trabalhadora à
condições de trabalho cada vez mais precarizadas.
Esses fatores repercutem de diversas formas em âmbito internacional haja
vista a atual conjuntura de sociedade globalizada, repercutindo em questões
geopolíticas, e fomentando diversos tipos de conflitos, tais como guerras civis,

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

guerras híbridas e guerras comerciais como a vivenciada recentemente entre os


Estados Unidos e a China.
Nessa quadra histórica, já não basta a conclusão de que os fenômenos das
guerras são o resultado das crises do capital. Faz-se necessário também a per-
cepção de que a própria crise perfaz o modo de gestão do capital. É nessa pers-
pectiva que se passa a analisar esses fenômenos e suas consequências.

1.1. Guerra civil, guerra híbrida e guerra comercial


na atualidade
Vimos que, no tempo presente, o capital galgou a condição de fomentar
crises como forma de buscar sua expansão. Se antes da segunda guerra mundial
a hegemonia era mantida através do poderio bélico, através de intervenções di-
retas nos Estados alvos, agora, com as recentes inovações tecnológicas, a guerra
muda de configuração e passa a atuar de modo muito sutil. Assim, Korybko
(2018) traz o conceito de guerras híbridas, partindo da união de duas formas de
guerra, a saber, a revolução colorida e a guerra não convencional. Por esses me-
canismos, a hegemonia do capital se amplia também através das crises que gera.
O acentuado desenvolvimento tecnológico e cibernético que tem se es-
praiado por diversos aspectos da sociedade hodierna é apropriado pela classe
dominante em detrimento das classes dominadas. Como um dos efeitos des-
se mecanismo tem-se a manipulação das massas através da propagação de
notícias falsas (fake news), que tem por objetivo desestabilizar instituições e
manter o poderio ideológico do capital. Este mecanismo político ideológico
está ligado ao que o referido autor conceituou como revoluções coloridas,
sendo compreendidas como uma forma de ataque a um determinado Estado,
por meio da manipulação das massas, objetivando fragilizá-lo por dentro. Nas
palavras do referido autor:

[...] as revoluções coloridas tratam, antes de mais nada, e sobretudo,


de disseminar certa mensagem (por exemplo, contra o governo) para
um vasto público [...] é externa em sua origem e desenvolvida para
manchar a autoridade do governo alvo. Ela mira a psiquê do indivíduo
para motivá-lo a lutar [...]. Em larga escala, e com o auxílio dos novos
avanços da tecnologia da informação e dos meios de comunicação, ela
se transforma em uma guerra em rede e centrada em rede. O objetivo é

684
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

conseguir que um grande número de pessoas faça parte da rede social do


movimento de revolução colorida e espalhe a ideia da mesma forma que
um vírus espalha sua infecção em um sistema biológico ou tecnológico
(KORYBKO, 2018, p. 69-70).

Por outro lado, a chamada guerra não convencional é compreendida com


um conjunto de atividades que objetivam fomentar a ação de grupos insurretos
a combater um determinado governo. Trata-se de conflitos pré-existentes, sen-
do inclusive continuidade da revolução colorida que se configura como “uma
semente plantada estrategicamente com a justificativa da ‘luta pela libertação
democrática’, como habitualmente retratado de maneira enganosa pela mídia
ocidental” (KORYBKO, 2018, p. 71-72).
Combinação dos dois conceitos acima, a guerra híbrida nada mais é que o
mais novo método de guerra utilizado pelos Estados Unidos da América3, no
qual se utiliza de métodos mais sutis para manipular o povo de uma determi-
nada nação para, num primeiro momento, causar desconfiança e instabilidade
no plano interno daquele país para, em seguida, incitar os grupos dissidentes a
lutarem através do uso da força para deposição do governo. Assim, fomenta-se
a crise para colher a dominação.
Essa estratégia está em andamento. Atualmente, estão desencadeadas mais
de cinquenta guerras civis em diversas partes do planeta, girando em torno
de eixos geopoliticamente estratégicos, a saber, Síria, Estados Unidos, Rússia,
Europa e China. Somente na Síria já se contabiliza mais de quinhentos mil
mortos e seis milhões de refugiados, situação que dificulta o acesso ao petróleo
produzido na região (MENESES, 2018).
As relações econômicas que permeiam os referidos conflitos são altamente
complexas. Conforme o referido autor:

A China firmou acordo estratégico militar com a Venezuela, enquanto


que os Estados Unidos taxaram em 25% o aço chinês, desafiando o país
para uma guerra comercial. Por sua vez, a Rússia passou a exportar gás
para a Europa e anunciou ter fabricado o míssil pesquisado pela Coréia
do Norte; nesse compasso, a Europa vê-se entre dois mundos, cercada
por imigrantes vindos de diversos locais, em especial do Oriente Médio,

3 Conforme o autor, o objetivo é provocar fragmentação estratégica de facto e de jure de um Estado a


fim de desestabilizar as grandes potências euroasiáticas (Rússia, China e Irã) e prolongar a supremacia
estadunidense no supercontinente (2018, p. 91).

685
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

onde os Estados Unidos aparentam já não possuir hegemonia militar


(MENESES, 2018, p. 83).

Nesse contexto, insere-se a realidade da América Latina. Evidencia-se a


relação entre as crises aqui fomentadas e o interesse dos Estados Unidos nes-
sas terras. Em virtude dos conflitos no Oriente Médio, o petróleo de lá passou
a ser menos acessível, momento no qual os Estados Unidos volta-se para cá.
É neste momento que, observando as crises vivenciadas na América Latina
com modus operandi similar ao modelo acima proposto como guerra híbrida,
podemos compreender o “acirramento da divisão social e o aumento do ódio
de classes” (MENESES, 2018).
Constata-se que as guerras não decorrem mais apenas como consequência
das crises do capital. Este fomenta as crises para através delas potencializar seus
mecanismos de dominação. Entre eles a geração de refugiados e vulneráveis de
toda espécie, base social para a retomada da escravidão na atualidade, aspecto
que se passa a destrinchar.

1.2. Deslocados, vulneráveis e escravos:


uma correlação necessária
Atualmente existem mais refugiados no planeta do que no auge da segunda
grande guerra. Esse contingente de refugiados é gerado em grande parte, como
vimos, por crises fomentadas pelo próprio capital. A vulnerabilidade acentuada
dos refugiados os torna alvos fáceis nos processos de precarização e de escravidão
atuais. Nesse contexto de crise sócio-político-econômica, observamos o recru-
descimento no número de deslocados4 em escala global. Até o final de 2017, já
se alcançava o número de sessenta e oito milhões e quinhentas mil pessoas, um
acréscimo de aproximadamente três milhões quando comparado ao ano anterior,
conforme dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
Assim, tendo sido separados do seu contexto social, fragilizados em virtude
dos laços culturais forçadamente rompidos, estes indivíduos não se compreen-
dem como sujeitos destinatários dos direitos humanos. E, diante de tamanha

4 A expressão “deslocados forçados” se refere ao grupo de sujeitos que por motivo de sobrevivência,
foram obrigados a deixar seu local de origem, seja o deslocamento no âmbito do próprio Estado, seja
de um Estado para outro.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

vulnerabilidade, se tornam vítimas das mais diversas formas de violação de di-


reitos, principalmente escravidão, tendo em vista a necessidade de subsistência
em local totalmente diverso do qual fazia parte. Discorrendo a partir da reali-
dade brasileira, Meneses (2017, p. 101) aduz que:

À medida que a sociedade se torna cada vez mais plural em termos sócio-
culturais e religiosos, assiste-se a manifestações públicas de estigma,
intolerância, preconceito e xenofobia. [...] os deslocados em geral chegam
ao Brasil, abalados psicologicamente, espoliados da consciência de sua
condição de destinatário de direitos humanos.

Esse número, quase em sua totalidade, é reflexo das guerras espalhadas ao redor
do mundo, considerando aqui o conceito mais amplo trabalhado em tópico anterior
sob o título de guerras híbridas. Assim, tem-se um conjunto de fatores que atuam de
forma determinante para a sujeição dessas pessoas às condições mais degradantes e
indignas, criando um ambiente fértil para toda sorte de exploração.
Primeiramente, tem-se a fragilidade ocasionada pelo brusco rompimento dos
laços afetivos e culturais do sujeito. Em seguida, essa fragilidade é ampliada pela
hostilidade ou pela falta de hospitalidade com a qual são recebidos. Como fator
chave, tem-se também o desprovimento de condições objetivas de vida, como
recursos financeiros, por exemplo. E como quarto fator preponderante, tem-se o
fato de que eles mesmos, em virtude desse processo que os vulnerabiliza, não se
concebem como sujeitos de direitos tais quais todos os demais seres humanos.
Por parte desses sujeitos praticamente não haverá um movimento de resis-
tência à exploração imposta pelo modo de produção capitalista, em virtude da
sua condição de vulnerabilidade.
O grande contingente de refugiados existente na atualidade com a vulnera-
bilidade que lhes é peculiar, bem assim, a apropriação pelo capital das recentes
inovações tecnológicas, resultam no recrudescimento do exército industrial de
reserva, potencializando as condições para a precarização das relações de traba-
lho hodiernas, aspectos que serão abordados a seguir.

2. A precarização das relações de trabalho na atualidade


Nesse item, verifica-se como o avanço tecnológico e sua apropriação por
determinada classe social contribuem para o recrudescimento do exército in-

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

dustrial de reserva e, consequentemente, para a precarização das relações de


trabalho na atualidade. Outrossim, estabelecida a correlação entre o contexto
de crise generalizada com a precarização das relações de trabalho na contempo-
raneidade, passa-se a explicitar o papel do Estado no processo de precarização
das relações de trabalho, a partir da recente reforma trabalhista no Brasil.

2.1. O avanço tecnológico e o recrudescimento do exército


industrial de reserva
As inovações tecnológicas, em virtude dos ganhos de produtividade que pro-
piciam, podem, em tese, assegurar à humanidade melhores condições de vida.
No entanto, em uma sociedade de classes ocorre dos referidos instrumentos
serem apropriados exclusivamente por determinada classe e serem, em última
análise, utilizados como arma para maior dominação e ampliar a exploração da
classe subalterna. As novas tecnologias eliminam muitos postos de trabalho e,
com isso, ampliam o exército industrial de reserva e, em decorrência, favorecem
as condições para a precarização do trabalho e a retomada do trabalho escravo.
Para se ter uma noção do potencial de disrupção desse processo, o Fórum
Econômico Mundial prevê a perda de 7,1 milhões de empregos entre 2015 e
2020 com foco nas áreas administrativas e industriais, sendo que no mesmo
período a Federação Internacional de Robótica prevê a venda de 11.900
robôs (PERRIN, 2018).
Noutro aspecto, com o acelerado desenvolvimento tecnológico, vivencia-
-se um processo de transição quanto ao lugar da realização do trabalho. As
empresas mantinham uma estrutura para o atendimento da demanda do mer-
cado pelo fato de seu custo de transação ser muito elevado em virtude da
demora e da perda de qualidade nesse processo. Agora, com o barateamento
dos custos de transação e a velocidade com a qual é realizada, é mais vanta-
joso para as empresas descentralizar a produção, utilizando-se de mecanismos
como as plataformas digitais com fim de minimizar seus custos e maximizar
seu lucro. Desse modo:

[...] conforme as tecnologias melhoram e os custos de transação


reduzem ainda mais, começa-se a observar, em alguns setores, que
a descentralização não é suficiente. Pelo contrário, as empresas estão
dando um passo para uma balcanização do mercado, onde as empresas

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

não contratam trabalhadores – exceto os imprescindíveis –, sendo que


seu modelo de negócio consiste em colocar em contato o demandante do
serviço com o provedor deste (SIGNES, 2017, p. 29).

Assim, configura-se um contexto no qual o trabalhador vê-se legalmente de-


samparado em virtude de não haver um empregador a quem esteja subordinado
diretamente, pois a prestação do serviço se dá diretamente ao demandante. Esse
processo de precarização avança em virtude da legislação trabalhista quanto
ao trabalhador autônomo ser menos protetiva, oportunizando um “leilão pelo
menor preço”, haja vista a liberdade do trabalhador autônomo para fixar o valor
da sua mão de obra (SIGNES, 2017, p. 29-30). E é nessa conjuntura que as tec-
nologias disruptivas se enquadram como elementos determinantes para o des-
monte de setores e categorias da economia, como o caso da plataforma “UBER”
no setor de transportes individuais (atingindo principalmente a categoria dos
taxistas) e o “Airbnb” quanto à rede hoteleira.
Essa realidade faz parte do que Ricardo Antunes (2007, p. 38) descreveu
como a precarização estrutural do trabalho na fase de mundialização do capi-
tal. Explica o autor que “paralelamente à globalização produtiva, a lógica do
sistema produtor de mercadorias vem convertendo a concorrência e a busca
da produtividade num processo destrutivo que tem gerado uma imensa socie-
dade dos excluídos e dos precarizados”. A título de exemplificação, o referido
autor aponta o processo de desmonte de diversos parques industriais espalha-
dos por diversos países do globo. Assim, observa-se que está em andamento
uma força destrutiva contra a força humana de trabalho na medida em que
cada vez mais vem sendo substituído e precarizado, em nome da “competitivi-
dade”. Diante desta realidade:

[...] o exército industrial de reserva refere-se ao desemprego estrutural


da economia capitalista, indispensável à manutenção do próprio
sistema de produção e, por assim dizer, da acumulação de riquezas.
Isso porque o mencionado exército de reserva é a fração desempregada
da força de trabalho indispensável ao sistema porque essa parte da
população ativa permanentemente desempregada atua, na visão
marxista, como um inibidor das reivindicações dos trabalhadores, na
medida em que se sujeitam às mais diversas situações em busca de um
emprego (FRANÇA, 2017, p. 14-15).

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Assim, a apropriação das tecnologias disruptivas pela classe dominante per-


mite que esta manipule os índices de desemprego (exército industrial de reser-
va) em prol de suas políticas de manutenção e ampliação das taxas de lucro, o
que implica em ampliação da mais-valia e, consequentemente, precarização do
trabalho. Para assegurar/potencializar esse efeito, a classe dominante também
se apropria/utiliza a superestrutura do Estado.

2.2. O papel do estado no processo de precarização: o caso


da reforma trabalhista no Brasil
A recente reforma trabalhista no Brasil, configurada através da Lei nº
13.467 de 2017, serve como exemplo para ilustrar como o Estado pode ingerir
na correlação de força capital x trabalho, de modo a favorecer aquele, inci-
tando a precarização do trabalho que, no limite, propicia o recrudescimento
da escravização da população trabalhadora. A serviço da classe dominante, o
Estado incute a desregulamentação dos direitos trabalhistas, sob a pecha de
modernização normativa.
A lei 13.467 de 2017 constitui um duro golpe nos trabalhadores na medida
em que lhes retira diversos direitos historicamente conquistados e impondo-lhes
severas barreiras de acesso ao poder judiciário, ferindo de morte o princípio do
acesso à justiça, em afronta à Constituição Federal e a diversas convenções in-
ternacionais de direitos humanos. Assim, observa-se que o Estado brasileiro, no
pós-golpe de 2016, atua expressamente como agente precarizante.
Nas últimas décadas, principalmente a partir da crise de 70, o capital
passou por um processo de reestruturação produtiva na qual o fordismo/
taylorismo vem sendo substituído pelo toyotismo. Esse processo, auxiliado
em grande parte pelo desenvolvimento tecnológico, a internacionalização
do capital e sob um discurso de racionalização da produção, tem precariza-
do sobremaneira as relações de trabalho. Analisando essa reengenharia do
modo de produção capitalista, Ricardo Antunes (2007, p. 45) aponta como
uma das suas principais consequências a:

[...] expansão do que Marx chamou de trabalho social combinado (Marx,


1978), onde trabalhadores de diversas partes do mundo participam do
processo de produção e de serviços. O que, é evidente, não caminha no
sentido da eliminação da classe trabalhadora, mas da sua precarização

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

e utilização de maneira ainda mais intensificada. Em outras palavras:


aumentam os níveis de exploração do trabalho.

Essa nova forma de produção descentralizada vivenciada no atual contexto


de sociedade globalizada exacerba a competição entre os capitalistas, objetivan-
do a maximização do lucro, ao passo que, cada vez mais os detentores dos meios
de produção buscam explorar mão de obra em locais em que o custo do trabalho
é menor. Desse modo:

O desemprego e a precarização do trabalho crescentes são dois


fatores que atordoam a sociedade atual, mas - conforme já afirmado
- são inerentes à dinâmica da produção capitalista. Essa dinâmica
vem marcada pela flexibilidade, interna e externa, com destaque
para a terceirização. Reportando-se a este tema, Castel afirma que a
flexibilidade, articulada sob a perspicaz propaganda de que é necessária
para maximizar a competitividade e as habilidades do trabalhador,
resulta em transformar a empresa numa “máquina de vulnerabilizar e
de excluir (CASTEL, 2001). A assertiva do autor procede, posto que as
qualificações não são suficientes para a integração no mercado trabalho.
Um número cada vez maior de jovens qualificados, em sentido restrito, é
levado a aceitar empregos que exigem menor qualificação. Isso provoca,
em contrapartida, um massivo desemprego entre os não qualificados
(SOBRINHO, 2008, p. 66).

Nas palavras de MÉSZÁROS (2011, p. 70):

O capital, quando alcança um ponto de saturação em seu próprio espaço


e não consegue simultaneamente encontrar canais para nova expansão,
na forma de imperialismo e neocolonialismo, não tem alternativa a
não ser deixar que sua própria força de trabalho local sofra as graves
consequências da deterioração da taxa de lucro.

Como visto, a busca incessante pela maximização das taxas de lucro, carac-
terística intrínseca do capitalismo, o obriga a manter uma relação de constante
competitividade na qual, evidentemente, o trabalhador será vulnerabilidade e
precarizado, constante e crescentemente, tendo em vista que seus direitos his-
toricamente conquistados não se coadunam com a lógica perversa da máxima
extração da mais-valia, inerente ao atual modelo de produção.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Com efeito, observa-se ao redor do globo o avanço neoliberal, atuando forte e


decisivamente na precarização das relações de trabalho por meio de reforma da
legislação trabalhista, sob o eufemismo de modernização do direito do trabalho5.
Nesse trilhar, os efeitos perversos da precarização instigada pela reforma tra-
balhista já se fazem notar. Por exemplo, os artigos 578 e 579 da CLT, incluídos
no texto legal por meio da lei 13.467/2017, modificando-o com o claro intento de
fragilizar as entidades sindicais, na medida em que retira a obrigatoriedade do
recolhimento do imposto sindical. Outra notável supressão de direitos diz respeito
à inclusão do princípio da intervenção mínima sobre a vontade coletiva pelo art.
611-A, quando este dispõe sobre a prevalência do disposto em acordo ou conven-
ção coletiva quando em confronto com a lei. Dentre todas as alterações na lei
trabalhista, não houve um ganho sequer, apenas supressão de direitos.
Assim, resta evidente que:

O propósito supostamente reformista, conforme dezenas de alterações


perseguidas em dispositivos da CLT, é reduzir drasticamente o custo
do valor-trabalho mediante sua precarização em todas as dimensões
possíveis, com especial destaque para o tema da jornada extenuante,
intensa e intermitente, com evidente rebaixamento de seus patamares
remuneratórios, em resposta às necessidades do capital de ampliação
de seus ganhos com base na potencialização do labor humano como
mercadoria (COUTINHO e REIS, 2017, p. 66)

Ora, como falar em uma real autonomia coletiva de vontade em uma relação
desequilibrada por natureza e num contexto de crescente excedente de oferta
de mão de obra no mercado? Essa reforma nada mais é que um conjunto de
medidas que visam a sustentação do capital, extraindo da classe trabalhadora
todo o mais-valor que conseguir, ignorando por completo a humanidade do
trabalhador enquanto ser social, bem como suas necessidades, desde que estas
não atendam aos seus interesses.
No limite, esse contexto de intensificação da precarização das relações de
trabalho propicia a retomada do trabalho escravo contemporâneo. Conforme a
ONG Repórter Brasil:

5 Esclarece-se de pronto o uso político-ideológico da expressão modernização trabalhista para camuflar


o ataque do capital aos direitos do trabalhador na atualidade.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Desde 2010, mais de 400 costureiros e costureiras foram encontrados em


condições análogas às de escravos no Brasil. A maioria dos casos ocorre
em pequenas confecções terceirizadas, na região metropolitana de São
Paulo. As vítimas mais comuns são migrantes de países sul americanos
que trabalham em oficinas em condições degradantes, suscetíveis
a incêndios e caracterizadas pela falta de higiene, e que muitas vezes
também servem de moradia aos trabalhadores.

Assim, eliminados ou fortemente restringidos os direitos sociais trabalhis-


tas pelo modelo neoliberal, o capital resta sem freios em sua ânsia de acúmulo.
Concentra-se o capital e pulveriza-se o trabalho em uma sequência de infinda
precarização. Através desse círculo vicioso, renovam-se os ímpetos escravagistas.

3. A precarização e o trabalho escravo contemporâneo


Nesse caminhar, identificados os elementos determinantes da intensificação
da precarização das relações de trabalho, passa-se a evidenciar as condições de
existência, resistência e superação do trabalho escravo no tempo presente. Para
tanto, nesse último capítulo, delineia-se o conceito de Trabalho Escravo Con-
temporâneo e esboça-se mecanismos de resistência e superação da precarização
e da escravidão na contemporaneidade.

3.1. Trabalho escravo contemporâneo: uma


delineação necessária
Trata-se aqui de assentar que o contexto de concentração do capital
e pulverização do trabalho recria as condições para uma retomada acen-
tuada do trabalho escravizado. De fato, imerso numa lógica de produção
baseada na competitividade entre os detentores dos meios de produção e
maximização das taxas de lucro, o trabalhador acaba por se sujeitar às mais
diversas condições indignas de trabalho. Assim, “[...] o trabalho análogo ao
escravo é uma potencialidade de qualquer capitalismo sem regulação, pois,
por natureza, o capital objetiva compulsivamente o lucro no bojo de uma
relação (o assalariamento) que envolve agentes estruturalmente díspares”
(FILGUEIRAS, 2015, p. 146).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

E é nessa conjuntura que se verifica a perpetuação e o recrudescimento


do Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC). No escopo deste trabalho,
tendo em vista a divergência no campo conceitual da expressão TEC,
bem como o cabimento do seu uso, utiliza-se aquele trazido por LOTTO
(2015, p. 35) que compreende o trabalho escravo contemporâneo ou for-
çado como sendo:

[...] toda modalidade de exploração do trabalhador em que este esteja


impedido, moral, psicológica e/ou fisicamente, de abandonar o serviço,
no momento e pelas razões que entender apropriadas, a despeito de
haver, inicialmente, ajustado livremente a prestação de serviços.

Na atualidade, tem-se utilizado com mais frequência a expressão trabalho


análogo ao escravo, tendo em vista que trabalho escravo remete a sua versão
típica, abolida no Estado brasileiro contemporâneo (FILGUEIRAS, 2015, p.
146). O autor registra a relevância em manter a distinção das duas expres-
sões, pois equipará-las “abstrai a natureza específica do fenômeno contempo-
râneo, qual seja, a operação do mercado [...]” (FILGUEIRAS, 2015, p. 147).
Outrossim, ao comparar as duas situações, o autor constata que “Em mui-
tos casos, há condições piores que a dos escravos, pois o exército industrial de
reserva permite a reposição sem custos do trabalhador (na escravidão típica a
reposição dependia da compra de novo escravo, muitas vezes um significativo
investimento)” (FILGUEIRAS, 2015, p. 147).
Fixada a correlação entre a precarização e as condições de existência do
trabalho escravo, passa-se a esboçar mecanismos para a resistência e superação
desses fenômenos sociais perversos.

3.2. Esboço de mecanismos de resistência e superação da


precarização e da escravidão
Na atualidade, observa-se uma crescente utilização do trabalho análogo ao es-
cravo tendo em vista a nova conformação do modo de produção, principalmente
pela formação de um excedente de trabalhadores fora do mercado de trabalho,
bem como a máxima extração da mais-valia. Segundo Piovesan (2017, p. 39):

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O trabalho escravo contemporâneo constitui a 2ª atividade ilícita mais


lucrativa do mundo, apenas perdendo para o narcotráfico, gerando um
lucro estimado em US$ 150 bilhões por ano, segundo o Escritório da
ONU contra Drogas e Crimes, e alcançando cerca de 25 milhões de
vítimas, segundo uma estimativa da OIT.

Desse modo, compreende-se que a principal estratégia para combater a uti-


lização do trabalho escravo contemporâneo é o ataque à lucratividade propor-
cionada por meio tão perverso de exploração dos sujeitos. Na lógica da máxima
exploração do trabalho humano para potencializar a extração da mais-valia, os
exploradores assim agem, pois, desta forma, acumulam tanto quanto possível o
excedente produzido, obtendo no fim desse processo o lucro máximo. Assim, o
combate à lucratividade proporcionada pela utilização do trabalho escravo no
tempo presente se revela como ponto central. Nesse sentido:

A estratégia repressiva de efetiva responsabilidade administrativa


e trabalhista - o que não exclui a necessária busca por outras esferas
de responsabilidade - tem se mostrado exitosa para a dissuasão dos
ofensores, na medida em que as consequências pecuniárias sobrevindas
quebram a lógica de aumento de lucro e competitividade desleal às custas
do dumping social que impulsiona a exploração do trabalho análogo ao
de escravo (ROSTON, 2017, p. 44).

Para tanto, as instituições devem atuar para estruturar organismos de com-


bate ao trabalho escravo contemporâneo, investir no seu aprimoramento, bem
como estabelecer parcerias com organizações não governamentais. Essa atu-
ação conjunta potencializa a eficácia da fiscalização, denúncia e punição dos
envolvidos. O grupo especial de fiscalização móvel, composto por auditores
fiscais do trabalho, policiais federais e procuradores do Ministério Público do
Trabalho, tem logrado êxito no combate ao trabalho escravo na atualidade,
contabilizando mais de quarenta mil pessoas resgatadas em dezesseis anos de
atuação, conforme informação disponível no site do senado federal brasileiro6.
Atuando de forma diversa, mas não menos importante, as ONGs pres-
tam um grande serviço na sua atuação. A ONG Repórter Brasil tem agido
de modo contundente no combate ao trabalho escravo. Como ilustração,

6 cf. <https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/trabalho-escravo/combate-ao-trabalho-
escravo/gefm.aspx.>

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vimos em tópico anterior a relevância da sua atuação na investigação e


divulgação dos casos nos quais foram constatadas situações de trabalho to-
talmente indignas e degradantes.
O programa “Escravo Nem Pensar!”, coordenado pela referida ONG, realiza
trabalhos pedagógicos junto às comunidades como forma de combate ao traba-
lho escravo. Nesse sentido:

O programa Escravo, nem pensar!, da ONG Repórter Brasil, e a


Secretaria Municipal de Educação (SME), realizaram, em 2016, o
projeto “Migração como direito humanos: rompendo o vínculo com o
trabalho escravo” para a disseminação dos temas do direito à migração
e da prevenção ao trabalho escravo nas escolas de São Paulo e nas
comunidades que a circundam (SUZUKI, 2018, p.18).

Ao realizar atividades desse gênero, as entidades contribuem significati-


vamente para prevenir a escravização desses sujeitos mais vulneráveis, por
oportunizar a formação de uma consciência sobre os direitos advindos da sua
condição humana. Reconhecendo sua dignidade, estes sujeitos são empode-
rados - em certa medida - para atuarem de modo a fiscalizar e denunciar as
violências a que são submetidos. Registre-se aqui a relevância dessa ação con-
junta entre órgãos estatais e organizações da sociedade civil, corroborando
com as ideias ora defendidas.
Para dar maior efetividade às suas ações, a ONG em comento desenvolveu um
aplicativo chamado moda livre, por meio do qual disponibiliza informações volta-
das ao consumo consciente da moda, bem como informações sobre as empresas
que utilizam mão de obra escrava em sua cadeia produtiva. Instrumentos como
estes impactam diretamente o combate ao TEC por dar visibilidade ao problema,
causando dano à imagem dessas empresas violadoras de direitos e, consequente-
mente, propiciando uma queda significativa em suas taxas de lucro em virtude de
eventuais boicotes promovidos pelos consumidores, bem como - eventualmente
- uma queda no valor das ações nos casos de empresas de capital aberto.
Diante do exposto, verificamos que mesmo diante do avanço do capital no
processo de intensificação da precarização das relações de trabalho, estratégias
de resistência têm sido pensadas e implementadas. E para tanto é necessário
avançar cada vez mais nesse sentido, visando aprimorá-las para dar-lhes a má-
xima eficácia ao combate desse modo de exploração do trabalho humano, tra-
zendo de volta a essas vítimas a dignidade que lhes foi tolhida.

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Considerações finais
No presente texto, demonstra-se o vínculo entre a retomada da escravização
na contemporaneidade e o atual modo de gestão do capital, que, por meio da
promoção de uma crise generalizada, vulnerabiliza os indivíduos, intensifica o
processo de precarização nas relações de trabalho, com a retomada do regime
escravista na atualidade.
A crise é inerente e também arma do capitalismo. No entanto, na atualida-
de, o capitalismo promove a crise como modo de galgar uma superacumulação
de poder e de capital, intensificando as desigualdades sociais em nível global.
As crises, conjuntamente com as inovações tecnológicas, manipulam o exército
industrial de reserva, sujeitando a classe trabalhadora a condições de traba-
lho e de vida cada vez mais precárias. Nessa perspectiva, vê-se que as guerras
retratam as crises do capital e vê-se mais além: as crises são o modo atual de
expansão do capital. O capital fomenta a crise e colhe a dominação.
A crise gera recrudescimento na quantidade de deslocados em escala global,
pessoas suscetíveis à precarização e escravização. Separados do seu contexto
social, os deslocados veem-se fragilizados em razão de: a) do rompimento for-
çado de seus laços sociais, afetivos e culturais; b) eventual hostilidade ou falta
de hospitalidade nos locais de destino; c) ausência de condições objetivas de
sobrevivência; d) findam por não se perceberem como sujeitos de direitos, como
os demais seres humanos. Assim, os deslocados tornam-se vítimas fáceis para o
recrudescimento da precarização e da escravização.
O processo de vulnerabilização decorre da busca do capital financeiro de
se libertar do modo de produção, fator desencadeante de guerras - civis, hí-
bridas e comerciais -, e de deslocamentos das pessoas afetadas. Isso reduz
o patamar civilizatório mínimo e se constitui em fator determinante para a
intensificação da precarização do trabalho e para a configuração do chamado
Trabalho Escravo Contemporâneo.
Essa precarização é impulsionada pela ingerência do Estado na desregula-
mentação dos direitos trabalhistas (a chamada modernização normativa) e pelo
papel que o avanço tecnológico exerce nessa conjuntura, viabilizando inclusive
a exploração do trabalho mediado por plataformas digitais. Os ganhos de pro-
dutividade gerados pela inovação tecnológica são apropriados pela classe domi-
nante em detrimento da classe trabalhadora. Além disso, as novas tecnologias
ampliam o exército industrial de reserva, o que favorece as condições para a

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precarização do trabalho e a retomada do trabalho escravo. Assim, assiste-se a


globalização do capital e a pulverização do trabalho.
Não bastasse, a classe dominante também se apropria/ utiliza da superestru-
tura do Estado. Por exemplo, na recente reforma trabalhista no Brasil, configu-
rada através da Lei nº 13.467 de 2017, sob a pecha de modernização normativa,
o Estado incute a desregulamentação dos direitos trabalhistas, impondo severas
barreiras de acesso ao poder judiciário, ferindo de morte o princípio do acesso
à justiça, em afronta à Constituição Federal e a diversas convenções interna-
cionais de direitos humanos. O Estado brasileiro, no pós-golpe de 2016, atua
expressamente como agente precarizante.
A tendência precarizante é generalizada. Em diversas partes do planeta, o
avanço neoliberal atua na precarização das relações de trabalho por meio de
reforma da legislação trabalhista, sob o eufemismo de modernização do direito
do trabalho. A partir dos anos 70, o capital passou por um processo de rees-
truturação produtiva no qual o fordismo/taylorismo vem sendo substituído pelo
toyotismo, o qual impõe intensificação do trabalho com acentuada precarização
e exclusão social. A empresa tornou-se uma máquina de vulnerabilizar e de ex-
cluir. Elementos criadores das condições para a retomada do trabalho escravo.
Diante da crescente utilização do trabalho análogo ao escravo na nova con-
formação do modo de produção é importante pensar mecanismos para a re-
sistência e superação desse fenômeno social perverso. O ponto nevrálgico do
sistema capitalista é a ampliação da taxa de lucro e da extração da mais-valia
do trabalhador. Assim, a principal estratégia é o ataque à lucratividade obtida
pela exploração guerreada, mediante a aplicação de multas, astreintes etc. pelas
instituições responsáveis. Igualmente, as instituições devem fomentar, apoiar
e firmar parcerias com entes de combate ao trabalho escravo contemporâneo,
tais como organizações não governamentais, sindicatos etc.
Essa atuação conjunta potencializa a eficácia da fiscalização, denúncia e punição
dos envolvidos, como também pode contribuir em campanhas de boicote pelos con-
sumidores às empresas com comprovação de trabalho escravo em sua cadeia produti-
va, bem como fomentar ações formativas visando à tomada de consciência da socie-
dade e das pessoas escravizadas, para que estas possam se perceber como sujeitos de
direitos e contribuírem com as denúncias e o apoio à fiscalização. A simbiose entre
a sociedade civil organizada, as instituições públicas e os trabalhadores envolvidos
é essencial para a erradicação do trabalho análogo à escravidão no tempo presente.

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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Referências

ANTUNES, Ricardo. O neoliberalismo e a precarização estrutural do trabalho


na fase de mundialização do capital. In: SILVA, Alessandro et al. Direitos
Humanos: essência do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.

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mundo do trabalho. 11a ed. São Paulo: Cortez, 2006.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. II


Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Brasília: SEDH, 2008.

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701
O Positivismo Jurídico da Periferia do
Capital na Justiça Trabalhista da Paraíba1

José Mário da Silva Sousa Filho2

Introdução
No Tribunal Regional do Trabalho da cidade de João Pessoa na Paraíba;
localizado no Shopping Tambiá, no centro da cidade; são discutidos e julgados
conflitos trabalhistas de várias espécies. Sabendo disso, me encaminhei para lá
para continuar minha pesquisa, dando início à minha quinta visita ao local. Ao
entrar na “sala 1” da segunda vara, pude assistir à primeira audiência do dia. O
caso era de um rapaz, ex-revendedor de uma empresa de refrigerantes.
Ele já estava em sua segunda audiência, na qual a primeira já havia sido
longa e uma proposta de conciliação havia sido rejeitada. O revendedor, assim
como sua testemunha, trabalhava utilizando seu próprio carro, a fim de cum-
prir metas estabelecidas pela empresa antes de serem demitidos. Recebia seu
salário em dinheiro, pessoalmente, e não tinha carteira assinada. Trabalhava
das sete horas às dezesseis, de segunda à sexta com um intervalo de almoço
de apenas trinta minutos.
A audiência foi marcada por uma série de formalidades, perceptíveis du-
rante a maioria das audiências pesquisadas, como a demarcação específica do
lugar onde cada parte envolvida sentaria; as roupas dos juristas e o modo como
se comunicavam, utilizando uma linguagem técnica e rebuscada; além de um
processo burocrático de identificação das pessoas envolvidas no processo, nas
perguntas feitas à testemunha e na tentativa de definição de uma proposta de
acordo entre as partes.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Mundo do trabalho e reformas neoliberais do III Congresso
Internacional Direito e Marxismo; Mossoró, Rio Grande do Norte, 07 a 09 de novembro de 2018.
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Porém, a sessão também foi marcada por uma série de informalidades que já
se caracterizavam como algo comum naquele ambiente, como a postura dos ju-
ristas, sempre mais confortável com o lugar, sendo a troca de cordialidade entre
eles dentro da própria audiência algo muito comum, pois cumprimentavam e
conversam sobre todos os tipos de assuntos, desde o futebol do final de semana,
até as notícias mais importantes da política brasileira. Além disso, a sessão era
constantemente atrapalhada devido às conversas externas e ao fato de entrarem
e saírem pessoas da sala de audiência constantemente.
As relações de classe também permeavam todo o ambiente, e não eram só
mostradas nas vestimentas dos juristas em relação às dos não-juristas, mas tam-
bém na linguagem e no comportamento. Essa relação também era perceptível
quando se observava também a diferença entre a parte reclamada, represen-
tante de uma empresa, também vestido formalmente e mais familiarizado com
o ambiente e a parte reclamante, um trabalhador simples, que estava ali para
requisitar seus direitos que lhe foram feridos, se comportando timidamente e
usando uma linguagem informal para se comunicar.
Por fim, a audiência terminou subitamente. Não se pode entender muito
bem o que havia acontecido ali. Na maior parte do tempo os interesses das
partes eram colocados em segundo plano pelos juristas e a audiência ficou como
algo secundário, depois de todas as coisas que aconteceram e que não envolvia
o litígio, como todas as informalidades que impediram com que a audiência se
desenvolvesse. Notavelmente, a parte mais prejudicada ali foi o ex-revendedor
da empresa de refrigerantes, que no final, sem que fossem discutidos seus direi-
tos, optou por concordar com uma proposta de acordo com a companhia.
Ele estava desempregado há quase um ano, sua esposa precisava urgente-
mente realizar uma cirurgia e por isso, necessitava do dinheiro da proposta de
acordo. Não conseguiria sustentar aquele litígio e esperar por uma demorada
decisão da Justiça do Trabalho, apesar de ter certeza de que tinha direitos que
foram feridos e que seria ressarcido com um valor muito maior do que teve que
aceitar naquele acordo. O rapaz precisava do dinheiro e por causa disso, nem
sequer se importava em ter seus direitos atendidos depois de serem feridos.
As conversas cordiais, o barulho, a música do shopping, os anúncios no
sistema de som, a circulação de pessoas de forma desordenada nas salas de
audiência, as negociações de propostas de acordos entre empregadores e empre-
gados onde cada um disputava para obter os maiores benefícios possíveis e os
contrastes; todos esses elementos me fizeram pensar no Tribunal de Justiça do

704
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Trabalho como algo semelhante a uma feira, onde se vendem todos os tipos de
mercadoria, e onde vendedores e compradores se veem travados num embate
sobre o preço dos produtos até que cheguem em um acordo.
Tais elementos acabam por desconstruir ainda mais as ideias, formuladas
pelo Positivismo Jurídico e reproduzidas no mundo do Direito, de um Tribunal
como algo extremamente formal, onde discutem-se casos e leis, a fim de solu-
cionar conflitos a partir de um ideal de justiça. Mesmo naquele ambiente que
visava defender os direitos das trabalhadores e trabalhadores, eles acabavam
sendo totalmente prejudicados por um sistema marcado por um Positivismo
Periférico com características próprias e contradições que impedem com que
eles possam se desenvolver como classe trabalhadora.
Dessa forma, o presente trabalho se debruça especificamente sobre o tema:
“Positivismo Jurídico da Periferia do Capital na Justiça Trabalhista da Paraíba”.
Ele foi desenvolvido, guiado por uma inspiração etnográfica, dentro do Tribunal
Regional do Trabalho da 13ª Região no Fórum Maximiano Figueiredo, locali-
zado nas instalações do Shopping Tambiá, no centro da cidade de João Pessoa,
estado da Paraíba. E teve início em Agosto de 2017 quando desde então, foram
realizadas cinco visitas e assistidas ao todo, quinze audiências.
Sendo assim, foram acompanhadas atividades na Justiça Trabalhista da Pa-
raíba, com o objetivo de identificar e problematizar as expressões do Positivismo
Jurídico Periférico no seu âmbito, se ocupando – não de uma análise das nor-
mas jurídicas em si, mas – das relações sociais que se desenrolam na práxis do
campo jurídico. Desse modo, busca-se perceber principalmente: a postura dos
juízes, das partes, das testemunhas e dos advogados; os formalismos e informa-
lidades que ali se desenrolavam; a linguagem e o uso da retórica; as vestimentas
e linguagem corporal; o espaço físico; o recurso à lei e à ideia de neutralidade;
como também as relações de classe, de gênero, raça e sexualidade.
Os resultados recolhidos e abordados foram discutidos a partir de uma for-
mação baseada na tradição Marxista, dialogando também com autores de uma
formação teórica distinta, mas que contribuem para o questionamento das re-
lações sociais que se estabelecem no campo jurídico. Relações essas, que são
essenciais para reprodução da sociedade de classes capitalista junto com todas
as suas contradições.
Sendo assim, esse artigo divide-se em quatro partes seguidas de algumas
conclusões. Na primeira parte, desenvolvo sobre o conceito de Positivismo Jurí-
dico Periférico e todas as suas características. Na segunda, trabalho o contraste

705
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

entre a violência e a cordialidade como um dos aspectos de Positivismo Jurídico


Periférico. Já na terceira parte do texto, como outro aspecto deste, abordo sobre
formalidades e informalidades. E por fim, na quarta parte, focarei no Positi-
vismo Jurídico da Periferia do Capital a partir de especificidades próprias da
Justiça do Trabalho.

1. O Positivismo Jurídico Periférico


A ideologia do positivismo jurídico nasceu na Europa em meio ao contex-
to das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX. E é apenas nessas cir-
cunstâncias que o Direito se caracteriza plenamente, ou seja, quando surge a
sociedade burguesa capitalista, porque somente esta cria todas as condições
necessárias para isso, sendo, antes de tudo, uma sociedade de proprietários de
mercadorias (PACHUKANIS, 1988, p. 70).
A forma jurídica positivista realiza então, nesse contexto, a separação dos
proprietários de mercadorias uns dos outros, com o objetivo de garantir as
mercadorias e a propriedade privada contra toda espécie de pretensão abusi-
va, a partir do contrato. Portanto, é a partir do Direito que a sociedade capi-
talista se reproduz e é somente nessa sociedade, que ele existe absolutamente,
quando a mercadoria se torna plena, ou seja, quando a força de trabalho se
torna mercadoria. Portanto:

Não podemos contestar que entre os animais existe igualmente uma


vida coletiva e que esta é também disciplinada de uma maneira ou de
outra. Porém, fica fora de cogitação afirmar que as relações das abelhas
ou das formigas sejam disciplinadas juridicamente. Se passarmos aos
povos primitivos vemos aí certamente o embrião de um direito, mas a
maior parte das relações é disciplinada extrajuridicamente, por exemplo,
sob a forma de preceitos religiosos (PACHUKANIS, 1988, p. 42).

É dessa maneira que a superestrutura jurídica positivista reproduz a socie-


dade burguesa capitalista, pois representa a forma, envolvida de brumas místi-
cas, de uma relação social específica (PACHUKANIS, 1988, p. 42). Portanto,
seguindo Pachukanis (1988), o contrato se caracteriza como elemento funda-
mental da forma jurídica, pois a origina historicamente. Diferentemente da
operação ideológica das teorias burguesas, que apresentam o contrato apenas

706
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

como uma variedade, entre muitas outras, do ato jurídico em geral, e que assim
ocultam que a forma jurídica se baseia materialmente no ato da troca entre
proprietários de mercadorias.
Sendo assim, a noção de que todas as pessoas são “livres” e “iguais”, a des-
peito de uma ordem social exploratória e desigual, é uma contradição que se
expressa na totalidade da forma jurídica:

A propriedade capitalista é, no fundo, a liberdade de transformação do


capital de uma forma para outra, a liberdade de transferência do capital
de uma esfera para outra, visando obter o maior lucro possível sem
trabalhar. Esta liberdade de dispor da propriedade capitalista é impensável
sem a existência de indivíduos necessitados de propriedade, ou seja, de
proletários. A forma jurídica da propriedade não está, de nenhum modo,
contradizendo o fato da expropriação de um grande número de cidadãos,
pois a qualidade de ser sujeito jurídico é uma qualidade puramente
formal. Ele define todas as pessoas como igualmente “dignas” de serem
proprietárias, mas não as torna, por isso, proprietários. Esta dialética da
propriedade capitalista está grandiosamente exposta em O Capital de
Marx, seja quando sintetiza as formas jurídicas imutáveis, seja quando
as fragmenta pela violência (no período de acumulação primitiva)
(PACHUKANIS, 1988, p. 84).

Desse modo, Pachukanis (1988) desmascara a operação ideológica das te-


orias burguesas do Direito natural, que formularam, de forma abstrata e geral,
esses conceitos de liberdade e igualdade como condições fundamentais de exis-
tência naturais de toda a sociedade e não como conceitos que tem uma relação
objetiva com a sociedade de classes e sua reprodução. Essas formulações pró-
prias da forma jurídica burguesa operam objetivamente dentro da sociedade de
classes reproduzindo as relações de exploração.
Para o autor, a ‘igualdade em princípio’ entre os trabalhadores e burgueses é
expressada a partir do ‘livre’ contrato de trabalho. “Porém, desta mesma ‘liber-
dade materializada’ é que nasce, para o proletário, a possibilidade de ele morrer
de fome” (PACHUKANIS, 1988, p. 110). Sendo assim, essa igualdade formal se
caracteriza ironicamente como expressão e instrumento que reproduz a desigual-
dade material existente na esfera da produção (TONET, 2004). Dessa forma:

[...] o processo de trocas mercantis generalizado exige, para a sua


efetivação, o surgimento da subjetividade jurídica e dos princípios da

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

liberdade, da igualdade etc. que a acompanham. A emergência da


categoria de sujeito de direito vai possibilitar, então, que o homem
circule no mercado como mercadoria, ou melhor, como proprietário
que oferece a si mesmo no mercado: “O sujeito existe apenas a título
de representante da mercadoria que ele possui, isto é, a título de
representante de si próprio enquanto mercadoria”. Desse modo, o
direito põe o homem em termos de propriedade, ele aparece ao mesmo
tempo na condição de sujeito e objeto de si mesmo, isto é, na condição
de proprietário que aliena a si próprio: “A estrutura mesma do sujeito
de direito, na dialética da vontade-produção-propriedade, não é,
definitivamente, mais que a expressão jurídica da comercialização do
homem”. O direito faz funcionar, assim, as categorias da liberdade e da
igualdade, já que o homem não poderia dispor de si se não fosse livre
– a liberdade é essa disposição de si como mercadoria – nem poderia
celebrar um contrato – esse acordo de vontades – com outro homem se
ambos não estivessem em uma condição de equivalência formal (caso
contrário, haveria a sujeição da vontade de um pela do outro) (NAVES.
Prefácio. In: ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 12).

Então, é somente a partir dessa liberdade e igualdade formal que se pode


estabelecer uma relação plena de troca de mercadorias, quando a força de tra-
balho se torna mercadoria e a parir do contrato, o burguês capitalista pode
estabelecer uma relação de troca “igual” com o proletário, que vende sua força
de trabalho “livremente”. Portanto, a partir dessa relação de exploração e da
divisão da sociedade em classes, desenvolvem-se interesses antagônicos e con-
flitos que não podem ser solucionados a não ser pela força e violência legítima
do Direito, sendo “a essência do poder de Estado como a violência organizada
de uma classe da sociedade sobre as outras” (PACHUKANIS, 1988, p. 103).
Sendo assim, a partir da ideia de Bourdieu (2011), o Direito transpõe os
conflitos sociais inconciliáveis para um plano discursivo transformando-os em
trocas de argumentos racionais, a partir de especialistas, os jurisperitos. Eles são
encarregados de organizar esses conflitos segundo as normas e definir soluções
socialmente reconhecidas como imparciais, a partir da aplicação prática, livre
e racional de uma norma universal positivada pelo Estado e cientificamente
fundamentada, caracterizada pela acriticidade, dogmatismo e formalismo.
Dessa forma, o Positivismo Jurídico se caracteriza como ideologia, baseado
em uma abordagem ontológica, tratada por Mészáros (2004), “não porque as

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

representações jurídicas distorçam a realidade, consistindo numa ‘falsa cons-


ciência’ para encobrir a dominação de classe” (ALMEIDA, 2017, p. 898), mas
porque se configura como sendo uma consciência prática da realidade e tem
uma funcionalidade direta no cotidiano jurídico, atuando a fim de sustentar a
reprodução da sociedade de classes e suas incoerências.
Desse modo, como aborda Ana Lia Almeida (2017), as práticas de um
dogmatismo manualesco do Direito positivo na América Latina, assumem
um papel importantíssimo de proteção das classes privilegiadas e de contro-
le da sociedade pelas elites dessas classes. Sendo assim, a maneira como o
Positivismo se expressa contraditoriamente na periferia do capital – apoiado
em uma repetição abstrata das leis em sua retórica, nos recurso a estas, na
ideia de neutralidade, nos formalismos em contraposição com as informali-
dades – apesar de diferente de onde surgiu, se adapta à sociedade de classes
e é essencial para sua reprodução.
Essa funcionalidade positivista na América Latina e no Brasil se deu de
uma maneira distinta de onde foi criada, na Europa. Assim sendo, o Direito
positivo; do mesmo modo que o capitalismo, abordado por Fernandes (1975),
na América Latina; desenvolve-se historicamente de uma maneira dependente
e periférica. Fernandes (1975) aborda que com o desenvolvimento do mercado
e do sistema de produção, incorporou-se um novo padrão ao espaço econômico,
sociocultural e político nas nações hegemônicas da Europa.
Porém da mesma forma que essa modernização se expandiu rápida e de-
senfreadamente para os países periféricos, estes, continuaram a herdar suas es-
truturas econômicas e sociais da sociedade colonial. Desse modo, surge assim
um novo padrão de dominação externa imperialista, baseada não no controle
colonial legal e político (embora com fundamento e fins econômicos), mas sim
puramente econômico, manipulados externamente, a partir dos mecanismos de
mercado (FERNANDES, 1975).
Em vista disso, a ideologia positivista nos países periféricos, assim como
o capitalismo abordado por Fernandes (1975), não é produto de uma evo-
lução interna e sim de um controle externo. Sendo assim, ela evolui sem
contar com condições de crescimento autossustentado e de desenvolvimen-
to autônomo. Dessa forma, o Positivismo Jurídico se adapta à periferia do
capital cujos contextos, estruturas sociais e jurídicas em tanto divergem
com as do local onde surgiu, gerando contrastes típicos de uma sociedade
de classes dependente e subdesenvolvida.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Portanto, esses contrastes da ideologia positivista dentro do âmbito jurídico,


assim como as contradições de uma sociedade de classes dependente e sub-
desenvolvida; se expressam a partir das relações sociais que o configuram na
periferia do capital, especialmente a partir da violência, cordialidade e dos for-
malismos contrastantes às informalidades, além da demora para resolução de
conflitos. No processo de adaptação dos valores e práticas trazidas pela ideolo-
gia positivista às colônias, ocorreram mudanças que transformaram a ideologia
do Positivismo Jurídico no que Schwarz (2015) nomeia de “ideias fora do lugar”
e resultou no que podemos chamar de Positivismo Jurídico Periférico.
O caso do ex-revendedor de refrigerantes, o qual mencionamos no início
deste trabalho, representa questões recorrentes na Justiça Trabalhista, assim
como em todo o sistema jurídico na periferia do capital. Sua dependência em re-
lação ao advogado, além de toda a demora para o desenvolvimento do processo
a exclui de entender o que se passa na sua vida, a partir de um sistema de justiça
que violenta aqueles que não estão preparados para entrarem no seu âmbito, ao
mesmo tempo que é extremamente cordial para com aqueles que encontram no
ambiente jurídico um espaço familiar.
Outro elemento que expressa as contradições típicas de um Positivismo Jurí-
dico Periférico, no desenrolar das relações sociais que se constituem dentro des-
te complexo, se refere à contraposição entre o formalismo e informalidade. O
formalismo e a burocracia estão presentes na maneira padronizada com que as
audiências transcorrem: nos posicionamentos específicos dos seus participantes
na sala de audiência, nas leitura dos processos pelos juízes, no comportamento
das partes, bem como no modo como os juízes comunicam-se com elas. Entre-
tanto, assim como o formalismo, a informalidade também se manifesta naquele
espaço, como por exemplo no uso constante de telefones, ou na frequente en-
trada e saída de pessoas das varas durante as audiências.

2. Violência e Cordialidade
O Fórum Maximiano de Figueiredo, onde a pesquisa foi realizada, se localiza
no centro da cidade de João Pessoa. Partindo da análise da localização desta e
da maioria das instituições de justiça e do poder estatal da capital paraibana
associada à minha experiência, como pesquisador guiado por uma inspiração
etnográfica, observa-se que a distância existente entre esses centros e as pe-

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

riferias, de onde provém grande parte da população, simboliza, mais do que


um distanciamento geográfico, também um distanciamento “da Justiça” e “do
Estado” em relação à sociedade.
Esse distanciamento entre o Estado e a sociedade se manifesta por meio
de uma lei processual “sofisticada” e uma prática jurídica cuja orientação se
pauta em teorias apartadas do cotidiano dos cidadãos. Sendo assim, os pro-
cessos jurídicos apresentam grande opacidade para os leigos, inclusive para os
antropólogos (OLIVEIRA; GROSSI; RIBEIRO, 2012, p. 12). Dessa forma, esse
distanciamento representa a violência posta pelo Estado para com os cidadãos e
é essencial para a reprodução de uma sociedade de classes periférica.
Dessa forma, o afastamento do complexo jurídico diante das outras esferas
sociais o faz passar a ser entendido como uma área isenta dos conflitos que se
desenrolam nessas esferas. Desse modo, tais conflitos só conseguem se introdu-
zir nele a partir dos seus próprios termos, como algo que possa ser classificado
e solucionado pelos jurisperitos. Portanto, o Direito, segundo Ana Lia Almeida
(2017), ordena as relações sociais a partir de uma lógica de funcionamento pró-
pria e aparentemente distanciada dos demais âmbitos da totalidade social., sen-
do exposto como algo “neutro”, “imparcial, “autônomo” e indiferente à domi-
nação de classe, conferindo legitimidade e reproduzindo a sociedade de classes.
Sendo assim, ao chegar no Fórum, já sou recepcionado por alguns seguran-
ças que atuam naquele local e direcionam os visitantes a um sistema de detec-
tores de metal, onde se faz necessário dispor de todos os pertences para revista e
para que possa, enfim, entrar no Tribunal. Essas determinações estão acima de
qualquer vontade individual e devem ser obedecidas, de acordo com os métodos
da esfera jurídica, para que se pudesse entrar naquele “jogo”, que implica na
violência simbólica legítima imposta pelo Estado (BOURDIEU, 2011).
Porém, ao mesmo tempo em que sou obrigado a passar por essa revista, ou-
tras pessoas não são. É notável que essas pessoas já trabalham ali reproduzindo
o complexo jurídico, devido a maneira com que se comunicaram com esses
seguranças, além de suas vestimentas formais e posturas confortáveis. Dessa
forma, já na entrada, este complexo já se apresenta pela primeira vez como
sendo extremamente violento para com aqueles que não “pertencem” a ele, e ao
mesmo tempo, cordial para com aqueles que lhes é familiar.
Logo nos primeiros momentos dentro do fórum, percebe-se que ali se desen-
rolam relações sociais específicas. É notável a segregação, a partir de uma vio-
lência simbólica, entre os quais Bourdieu (2011) chama de “eruditos” – aqueles

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

que estão preparados para entrar e operar dentro do âmbito jurídico, os juristas
como por exemplo: juízes e advogados – e os “profanos” – aqueles que normal-
mente não fazem parte do ambiente, ou seja, os não-juristas que estão lá para
resolução de algum conflito pessoal.
Essa segregação é perceptível principalmente quando observada as expres-
sões utilizadas na fala, além da linguagem corporal e o modo de se vestir. Os
“eruditos” demonstram-se confortáveis no ambiente, estão sempre bem vestidos,
geralmente de ternos, roupas formais e até mesmo toga, no caso dos juízes; re-
presentando inclusive suas condições sociais que os permitem adquirir tais tipos
de vestimentas, além de uma relação clara de poder. Ademais, esses “eruditos”
costumam ser cordiais com seus pares; os “doutores” e “vossas excelências”, ou
seja, aquelas pessoas as quais já conhece e se identifica, utilizando sempre uma
linguagem coloquial.
Dessa forma, procura-se promover ainda mais, por meio uma elite jurídica
criada a partir de uma cordialidade violenta, o Direito como um campo “autô-
nomo” e “neutro”, afastado das outras esferas sociais. Essa elite é reforçada por
um processo em movimento de “reforço circular” do próprio campo jurídico,
de acordo com Bourdieu (2011, p. 234). Seguindo o autor, este campo reduz os
“profanos”, que perdem a capacidade de gerir seus próprios conflitos, ao estado
de clientes dos “eruditos”.
Sendo assim, o Direito cria novas necessidades jurídicas que transforma em
capital a competência dos jurisperitos para gerir esses conflitos, aumentando o
formalismo e reforçando a necessidade de seus serviços. Assim, os não-especia-
listas são excluídos do campo jurídico e cada vez mais se tornam dependentes
dos serviços dos jurisperitos, se vendo forçados a recorrer a estes profissionais
(BOURDIEU, 2011, p. 234).
Em relação ao comportamento dos “profanos”, como o ex-revendedor de
refrigerantes, percebe-se certo constrangimento diante de todo o poder e sim-
bologia emanada daquela instituição jurídica, principalmente nas varas onde
aconteciam as audiências. Essas pessoas eram sempre de poucas palavras e olha-
res inquietos. Além disso, apesar da tentativa de se vestirem de uma maneira
parecida com a dos juristas, tinham vestimentas menos formais e utilizavam-se
de uma linguagem convencional, mais simples e usual.
Isso revelava, na sua maioria, a realidade desses “profanos”, geralmente de clas-
ses sociais mais baixas, trabalhadores que estavam ali para solucionar algum tipo
de conflito com as empresas para as quais trabalham ou já trabalharam. Dessa

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

forma, as relações entre “eruditos” e “profanos” também são permeadas direta-


mente por relações de classe, percebendo-se uma nítida diferença de compor-
tamento, vestimenta e linguagem entre os “profanos” que eram os empregados,
geralmente os “reclamantes” nos processos trabalhistas, e os “profanos” que eram
patrões ou representantes de grandes empresas, geralmente os “reclamados”.
Estes últimos se vestiam com roupas muito elegantes, da mesma forma que
os juristas, utilizavam uma linguagem coloquial e eram, na sua maior parte,
homens brancos. Além dessa relação evidente de classe, os representantes das
grandes empresas se encontram geralmente familiarizados com o ambiente da
Justiça Trabalhista devido à alta quantidade de processos trabalhista levantados
contra elas. Isso provavelmente contribuía para que eles não se sintam intimi-
dados com toda a simbologia e o poder exaurido por aquele Fórum.
No desenrolar das audiências, a distinção feita por Bourdieu (2011) entre os
“eruditos” e “profanos” ganha mais destaque, principalmente quando observada a
linguagem, extremamente técnica e restritiva, utilizada para descrever os proce-
dimentos judiciais, e que dessa forma, só é facilmente assimilada por aqueles que
fazem parte do âmbito jurídico. Além disso, percebe-se, nas partes e nas testemu-
nhas, posturas mais acuadas, constrangidas e submissas em consequência da su-
perioridade que a instituição judiciária dissemina e da fronteira que é criada entre
os detentores do saber jurídico e aqueles que estão aquém desse conhecimento.
O uso de uma linguagem própria por parte dos juristas não ocorre por mera
coincidência, mas sim intencionalmente, para que se estabeleçam barreiras cla-
ras de poder. Portanto, essa relação de poder se demonstra notável quando os
juristas reportavam-se às partes fazendo uso de uma linguagem mais acessível,
mas no momento da transcrição do que estavam decorrendo na audiência, os
juízes se preocupavam em ditar para os escrivães, em “dizeres jurídicos”, todo o
ocorrido. O mesmo ocorria quando os “eruditos” se viam obrigados a “traduzir”
esses “dizeres jurídicos” para os “profanos”, já que as eles eram partes muito
importantes para a continuidade da audiência.
Dessa forma, a linguagem utilizada dentro do complexo jurídico difere das
demais, ao ponto de fazer com que as partes que ali entram para solucionar
seus conflitos fiquem a mercê de seus representantes, já que eles próprios não
são capazes de compreender os processos que se desenrolam no Tribunal, como
aconteceu com o revendedor da empresa de refrigerantes.
Porém, ao mesmo tempo que o ambiente jurídico periférico violenta
todas aqueles que não estão preparados para “entrar no jogo” de resolução de

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

conflitos, ele é extremamente cordial para com as pessoas que o tem como
um ambiente familiar, ou seja, os juristas que o compõem. Essa cordialidade
se expressa também nas salas de audiência, quando várias vezes os jurisperitos
demonstravam uma relação amigável entre si. Era comum que em uma conversa,
advogados debatessem sobre as últimas notícias da política, do futebol e até
mesmo sobre suas vidas pessoais e seus familiares.
Essas conversas aconteciam antes, depois e até durante as audiências, prin-
cipalmente naquelas em que os juízes colocavam à disposição das partes para
negociar uma proposta de acordo. Neste momento, era corriqueiro surgirem
diversos diálogos que não envolvia o conflito em si, que estava ali para ser
solucionado segundo os próprios moldes do Direito positivo. E desse modo, a
cordialidade característica da ideologia Positivista Periférica entre os juristas
violentava de forma relevante aquelas pessoas que estão lá para resolução desses
conflitos próprios, mas que em diversas vezes, são colocadas em segundo plano.
Isso acontece porque a burocracia no Brasil se desenrola por meio dos pro-
cessos que são movidos a partir de interesses particulares e não de interesses
objetivos, e onde também as relações impessoais que caracterizam a vida no
Estado burocrático e o esforço para que se assegurem as garantias jurídicas aos
cidadãos são postas em segundo plano (HOLANDA, 2006). Sendo assim, essa
burocracia se desenvolve de uma maneira diferente nos países periféricos, como
o Positivismo Jurídico; porém, não deixa de operar contundentemente para a
reprodução da sociedade de classes e suas incoerências.
Dessa forma, Holanda (2006) explica que a transição para o trabalho in-
dustrial exigiu a abolição da velha ordem familiar no ambiente de trabalho,
onde existia uma relação familiar e hierárquica natural entre os patrões e seus
aprendizes. Porém, a partir da implantação do moderno sistema industrial no
Brasil, surgiu uma dicotomia brusca entre os empregadores e empregados que,
a partir de então, teriam funções distintas. Foi excluída, portanto, a intimidade
que havia entre eles e os antagonismos de classe foram assim, estimulados.
Isso facilitou a exploração do trabalhador por parte de seus empregados em
troca de salários baixíssimos no moderno sistema industrial. Porém, por ter sido
um processo que, no Brasil, aconteceu de uma forma rápida e desordenada,
as relações sociais nos ambientes públicos permaneceram ligadas aos laços de
afeto e de sangue. Portanto, esse vínculo de cordialidade e familiaridade que
envolvem os juristas nas salas de audiências acabam se reproduzindo como um
aspecto próprio do Positivismo Jurídico Periférico.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Dessa forma, tal vínculo se estende também aos estudantes de Direito, que ge-
ralmente ocupam as varas para acompanhar algumas audiências, como eu. Quando
notam que somos estudantes; os juízes, mas principalmente os advogados e os es-
crivães; passam a demonstrar um tratamento diferenciado para conosco. Esse trata-
mento se dava de uma maneira muito atenciosa, quando buscavam conversar sobre
o desenvolvimento dos estudos, preocupando-se, inclusive em nos explicar muitas
situações e demonstrar especificidades dentro daquele âmbito, o qual ainda não
conhecíamos muito bem e não estávamos tão familiarizados quanto eles.
Essa relação de cordialidade dos juristas para eles mesmos e para com os
estudantes, futuros juristas, como aborda Frederico Almeida (2010) em “A No-
breza Togada”, decorre de uma tentativa de construção da trajetória comum
acadêmica e profissional das elites jurídicas no Brasil. Sendo assim, os juristas
constroem relações munidas de capitais políticos e sociais que influenciam dire-
tamente na composição dessas elites, desde o momento em que entram em um
contato imensamente cordial com esses juristas em formação.
Isso é extremamente relevante para formação do “poder simbólico” (Bour-
dieu, 2011) dentro deste complexo, e é reforçado pelo que Frederico Almeida
(2010) chama de “culto aos antepassados”. Tal culto aos antepassados é percep-
tível naquele fórum desde o seu nome: Maximiano Figueiredo; uma homena-
gem a um antigo jurista paraibano; até a presença de quadros e fotografias que
homenageiam juristas que ali construíram sua carreira.
Sendo assim, a construção de uma elite jurídica delimita violentamente es-
ses espaços estatais, expressando a todo o momento, a partir de um poder sim-
bólico, quem pertence a ele e quem não, seja através da cordialidade para com
seus pares, ou mesmo na simbologia presente naquele espaço por meio do culto
aos seus antepassados. E assim, este complexo termina por excluir de forma ain-
da mais relevante aquelas pessoas que não estão preparadas para entrarem nele
de maneira violenta e simbólica, contribuindo extensamente para reprodução
da sociedade capitalista periférica e suas contradições.

3. Formalidades e Informalidades
As audiências naquele fórum da Justiça Trabalhista da Paraíba sempre
se iniciavam com um processo burocrático. Os juízes; ou melhor, “as vossas
excelências”, como são chamados, eram os responsáveis por coordenar a

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

audiência, pois sempre requisitavam a identificação das partes, das teste-


munhas e dos advogados. Tendo estes últimos, os “doutores”, como eram
conhecidos, de informar também o número de identificação da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB).
Além desse processo que indicava qual era a autoridade que determinava a
direção que as audiências iriam percorrer, o juiz tem uma posição de destaque
dentro do espaço geográfico da vara. Todos os presentes direcionam seus olha-
res e posicionamentos a este, que também detinha uma cadeira, maior, mais
alta e mais confortável. Isso institui uma determinada hierarquia e determinava
quem tinha o maior monopólio de dizer o Direito, apesar da incessante disputa
que envolviam também os outros juristas ali presentes (BOURDIEU, 2011).
O formalismo também se identificava no posicionamento das partes nas sa-
las de audiências, onde os reclamantes e reclamados tinham lugares pré-estabe-
lecidos a partir de placas indicativas. Outro exemplo de formalismo, de disputas
pelo monopólio de ditar o Direito e do poder emanado pelo campo jurídico, diz
respeito às participações das testemunhas durante as audiências. As questões
indagadas pelos advogados a estas eram sempre repetidas pelo juiz. Além disso,
a testemunha depunha olhando para os juízes e escrivães, sem a possibilidade
de contato visual com as partes, tendo elas, sempre “a obrigação de falar a ver-
dade”, segundo a instituição jurídica.
Estes rituais, indicativos do poder simbólico do complexo jurídico, refor-
çavam a compreensão de haver ali um campo “formal”, “neutro”, que busca
sempre a “verdade” e a “justiça”. Tais pretensões não eram apenas assimiladas
no decorrer das audiências, mas também era expressas a partir de diversas sim-
bologias, como quadros da deusa Themis espalhados pelo Fórum e dentro das
salas de audiências. Tal deusa, entendida pelos gregos como deusa da justiça,
segura em suas mãos uma balança e uma espada, e representa um ideal de justo,
neutralidade e verdade a serem seguidas.
Dessa maneira esse espaço se desenvolve e se legitima como um campo autô-
nomo, distante e neutro aos conflitos de classe. Portanto, o formalismo e todas
as suas características que envolvem “o dogmatismo acrítico, o bacharelismo, o
gosto pela retórica, o compromisso de classe etc.” se caracterizam como sendo
“aspectos constitutivos da forma jurídica, diante dos vínculos inescapáveis do
Direito com a sociedade de classes.” (ALMEIDA, 2017, p. 899).
Porém, o Positivismo Jurídico, caracterizado pelo formalismo exacerbado
e pela burocracia, na periferia do capital, também é marcado pela incessante

716
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

informalidade que permeia o âmbito jurídico. Da mesma maneira que o capitalismo,


a ideologia positivista surge nos países periféricos não de uma forma autônoma,
mas sendo imposta a esses países, e que desse modo, herdando suas condições
coloniais, geram contradições típicas. Dentre essas contradições, se caracteriza a
informalidade, que é principalmente marcada pelo intenso tumulto no fórum e
pelas vezes em que as audiências eram conduzidas com certa desatenção.
As convocações das audiências, conhecidas como “pregões”, se dão a par-
tir de um sistema de som do fórum. Porém, o fato de haverem várias varas e
muitas audiências se desenrolando no fórum, fazia com que esses anúncios
fossem feitos frequentemente, causando um tumulto perceptível, como se es-
tivéssemos mais próximos de uma feira comercial do que de uma instituição
jurídica totalmente formal e burocrática. Essa ideia de tumulto e contrastes
era reforçada quando acontecia de pessoas entrarem e saírem das salas du-
rante as audiências, sem o mínimo respeito ou educação àquela resolução de
conflito que ali se desenrolava.
Outro exemplo da inconstante informalidade permeada no Fórum da Justiça
Trabalhista diz respeito ao uso de celulares. Nas portas das salas de audiências
existem avisos de que o uso de celulares é proibido dentro do ambiente, contudo
com frequência os participantes das audiências utilizavam seus celulares, princi-
palmente os representantes de grandes empresas e os juristas, que estavam mais
acostumados àquele espaço e não se sentiam tão incomodados com esse tipo de
aviso e dessa forma, não o respeitavam.
Como aborda Holanda (2006) em “Raízes do Brasil”, os processos burocrá-
ticos são levados a partir de uma gestão política, sendo apresentados mais como
assuntos de interesses particulares e não de interesses objetivos, como deveria
se desenrolar no verdadeiro Estado burocrático característico do Positivismo
Jurídico. Dessa forma, as discussões do processo judiciário são colocadas em se-
gundo plano nos processos burocráticos dos países periféricos, onde na maioria
das vezes, os celulares eram utilizados para questões de interesses particulares, o
que demonstrava uma desatenção para com aquelas resoluções de conflitos por
parte desses juristas e representantes de empresas.
Em uma ocasião, presenciei a realização de um acordo intermediado por
mensagens trocadas entre a representante da empresa reclamada e seu superior
no decorrer da audiência. Em um outro momento, vi que um advogado acordou
com o dono da empresa para a qual trabalhava sobre um possível acordo por meio
do telefone. A questão, nesse caso, que se observa, é de como a burocratização

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

desenvolve-se de uma maneira diferente e particular nos países periféricos. E


apesar de os celulares terem auxiliado na resolução de conflitos, a utilização
desses entrava em desacordo com as próprias regras burocráticas do fórum, o
que só exprimia ainda mais as contradições que ali permeavam.
Outra contraposição clara ao formalismo presente no fórum se mostra a
partir da presença de vários símbolos religiosos como o crucifixo e outras vezes,
bíblias junto às mesas dos juízes. Naquele âmbito, permeia-se a todo momento a
orientação dos dominantes e os valores que compartilham, inclusive os religio-
sos, representadas por essas simbologias. Tal característica entra em contradi-
ção com os ideais liberais burgueses da construção de um Estado laico. Por isso,
se desenvolve como algo próprio de um Positivismo Periférico.
Porém, o fato de esse formalismo e burocratização; características do
Positivismo Jurídico que transpassam os tribunais, terem sido vulgarmente
adaptados ao Brasil; não põem em cheque o Direito e o funcionamento da
sociedade de classes, mas sim o oposto, contribuem para legitimá-la a partir
de suas características próprias, que reforçam o compromisso da ideologia
do Positivismo Jurídico Periférico com as classes dominantes (ALMEIDA,
2017), a partir dessas informalidades que violentam ainda mais aqueles que
não estão preparados para entrarem nesse campo e veem seus conflitos sendo
solucionados a partir de interesses particulares, contrariando até mesmo seus
próprios ideais de “justiça” e “neutralidade”.

4. Justiça do Trabalho na Periferia do Capital


Em uma conversa com um Juiz daquele Tribunal, perguntei a ele qual seria
a causa de tantas empresas não mandarem representantes para as audiências e
faltarem. Ele respondeu que era algo muito comum, pois essas empresas “não
querem ou não conseguem pagar os direitos de seus funcionários” e simples-
mente não comparecem às audiências, dessa forma, muitas delas eram adiadas
e os processos demoravam muito tempo para serem concluídos.
Essa demora também indica que muitas vezes a solução de conflitos não é
tão importante para complexo jurídico, a partir dos próprios contrastes entre o
formalismo e informalidades. Quando haviam chances de os conflitos serem re-
solvidos, pois as partes estavam presentes, os juízes buscavam mediar propostas
de acordo na audiência. Essa estratégia é adotada como uma tentativa diminuir

718
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

as filas de processos travados na justiça trabalhista brasileira, para que dessa


forma, eles tenham uma solução mais rápida, sem a necessidade de os juízes
proferirem decisões.
Sendo assim, Pachukanis (1988, p. 76) compara essa tentativa de solução de
conflitos no ambiente jurídico entre as partes de um processo com um duelo
entre protagonistas de uma luta armada, pois esses lados estão ali para defen-
derem seus interesses individuais veementemente. “Porém, com o crescimento
das forças sociais disciplinadoras, o sujeito perde a sua concretização material.
No lugar de sua energia pessoal nasce o poder da organização social, isto é, da
organização de classe, cuja expressão mais elevada se encontra no Estado” (PA-
CHUKANIS, 1988, p. 76).
Dessa maneira, o poder de Estado, regula esses conflitos de classe, como
sendo um sujeito abstrato, impessoal e afastado desses conflitos. Assim, a me-
diação jurídica age a partir de um objetivo prático, “que consiste em garantir a
marcha da produção e reprodução social” (PACHUKANIS, 1988, p. 13). No
entanto, essa mediação jurídica, na Periferia do Capital, contribui para repro-
dução da sociedade de classes capitalista seguida de contradições que reforçam
e buscam legitimação para as desigualdades de uma forma mais concisa.
Sendo assim, as propostas de acordo tem um papel fundamental nisso,
sendo colocadas em destaque pela Justiça do Trabalho e pelos juízes que
a representam. Na maioria dos casos envolvendo os conflitos trabalhistas,
uma das primeiras perguntas feitas pelos magistrados é sobre a concordân-
cia entra as partes sobre alguma proposta de acordo, muitas vezes até incen-
tivando esse tipo de procedimento.
Isso acontece, segundo os próprios juízes com quem conversei durante a pes-
quisa, porque esse é um modo mais rápido de solucionar os conflitos trabalhistas,
fazendo com que o trabalhador não demore a receber sua indenização. Dessa
forma, a Justiça Trabalhista coloca essa situação como algo favorável ao trabalha-
dor, que geralmente está em situação de desemprego e necessita daquele dinheiro,
mesmo que seja menos do que poderia conseguir caso seguisse com o processo.
A Justiça também torna esse fato como algo favorável às empresas por ser
mais eficaz, pois as empresas costumam não pagar todos os direitos do traba-
lhador, mesmo após uma decisão judicial. Isso acontece, segundo os juízes, por
serem empresas pequenas, ou no caso das maiores, por causa da quantidade de
processos trabalhistas que são lançadas, caso chegassem a pagar integralmente
os direitos do trabalhador, poderiam até mesmo chegar à falência.

719
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Dessa forma, O trabalhador, na maioria dos casos apenas entra com um pro-
cesso contra a empresa na qual trabalhava apenas após ser demitido e devido
ao caso de estar desempregado, opta por receber uma indenização menor e não
ter todos os seus direitos atendidos com uma proposta de acordo. Além disso,
o incentivo à propostas de acordo acabam por fazer as empresas a continuarem
reproduzindo uma sociedade de classes periféricas a partir da ofensa a direitos
trabalhistas, pois mesmo que cumpram com propostas de acordo, acaba sendo
mais lucrativo para estas.
Todos esses elementos que envolvem tais propostas, apesar de serem colo-
cados como algo bom para o trabalhador e para as empresas, fazendo parecer
com que elas sejam justas; acabam reforçando com que o Direito na periferia do
capital reproduza a sociedade de classes capitalistas com contradições específi-
cas e alarmantes. Pois mesmo que estes direitos sejam garantidos; nesses casos,
a posição da classe trabalhadora perante a classe burguesa continua sendo de
extrema submissão e desigualdade até em um âmbito que se coloca como pro-
tetor da parte mais “fraca”.
Outra característica notável na pesquisa foi o fato de existirem poucas mu-
lheres como juízas, ou seja, como juristas que ocupavam uma posição de maior
poder; e o fato de haverem menos ainda juristas negros, onde durante o traba-
lho só foi encontrado um, que por sinal era homem; dentro daquele fórum. Isso
não acontece por acaso, pois o desenvolvimento da forma da superestrutura
jurídica acompanha a evolução das formas mercantis (PACHUKANIS, 1988),
que historicamente se constitui de com recortes de gênero e raça específicos.
Sendo assim, esses recortes são refletidos diretamente para a forma jurídi-
ca e diante disso, ganham destaque junto às contradições histórico-culturais
herdadas pelos países periféricos. Dessa forma, o positivismo, principalmente
nos países periféricos, se demonstram como sendo uma ideologia que reforça e
reproduz as diferenças de gênero e raça, além das diferenças de classes.
Apesar disso, no Fórum Maximiano Figueiredo percebe-se “algumas con-
tradições internas pontuais quanto ao reconhecimento de certos interesses da
classe trabalhadora” (ALMEIDA, 2014, p. 55). Isso é notável em relação à pos-
tura daquela instituição judiciária nos cartazes por lá espalhados: “Contra a
precarização do Direito do trabalho, a reforma da previdência e a lei do abuso
de autoridade”, “Contra o trabalho infantil”. Porém; apesar de alguns posicio-
namentos como esses, que se põem como aliados à classe trabalhadora; a Justiça
Trabalhista e o Direito como um todo,

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

[...] não questionam, antes reforçam (porque legitimam), a exploração


fundante da relação capital-trabalho, que se entrecorta (e é entrecortada
pelas) às demais opressões e desigualdades sociais. Por isso estes
direitos que “interessam” à classe trabalhadora jamais se acharão
plenamente realizados dentro do modo de produção capitalista, marcado
inexoravelmente pela lógica da exploração (ALMEIDA, 2014, p. 55).

Sendo assim, “o Direito é por sua essência necessariamente um direito de


classe: um sistema ordenador para a sociedade que corresponde aos interesses e
ao poder da classe dominante” (LUKÁCS, 2013, p. 233 apud ALMEIDA, 2017,
p. 896), pois tem fundamento na existência da sociedade de classes e alcança a
sua forma plena na sociedade mercantil.
Portanto, mesmo a teoria de um “direito proletário”, se caracteriza como
equivocada pois proclama “a imortalidade da forma jurídica”, que é burguesa
por excelência. (PACHUKANIS, 1988, p. 26). Dessa forma, a classe trabalha-
dora só pode alcançar plenamente a própria condição de vida, “se enxergar a
realidade das coisas, sem as coloridas lentes jurídicas” (NAVES. Prefácio. In:
ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 20).

Considerações finais
Este trabalho sintetiza os resultados parciais de um estudo, que ainda está
em andamento, desenvolvido na Universidade Federal da Paraíba pelo Grupo
de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais; em um projeto de pesquisa in-
titulado “O Positivismo Jurídico na Periferia do Capital”, orientado pela Profa.
Dra. Ana Lia Vanderlei de Almeida.
Tal projeto visa a construção de conhecimentos de base empírica e relacio-
ná-los a temas abordados por uma formação teórica de categorias marxistas,
que é contra hegemônica no curso de Direito. Sendo assim, sua finalidade é
problematizar a as relações sociais que se estabelecem no campo jurídico carac-
terizado pelo Positivismo Periférico, tais quais são essenciais para reprodução do
capital junto com todas as suas contradições.
No projeto de pesquisa está a vertente da qual se trata esse resumo, que
trabalha especificamente dentro do tema: “Positivismo Jurídico Periférico na
Justiça Trabalhista da Paraíba”. Este trabalho buscou sintetizar as conclusões
parciais de uma pesquisa maior que se desenvolve no âmbito da Justiça Traba-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

lhista paraibana, analisando como este chamado Positivismo Periférico se es-


tabelece no estado a partir da observação da práxis jurídica dentro desta seara.
Por fim, como produto final desta síntese, pretendemos enriquecer ainda
mais as discussões sobre como o Positivismo Jurídico é apresentado pelos
autores do campo do Direito. Desse modo, portanto, objetivamos expres-
sar as particularidades e contradições que são determinantes da ideologia
positivista periférica operante na Justiça Trabalhista da Paraíba. E assim,
buscamos mostrar a forma como essa ideologia se adapta, ou seja, de uma
maneira diferente, à sociedade de classes da América Latina, mas se mostra
essencial para sua reprodução.

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723
Os rebatimentos do neoliberalismo na
política de saúde: uma reflexão teórica

Maciana de Freitas Souza1


Débora Rute de Paiva Mota2
Rodrigo Jácob Moreira de Freitas3
Tamara de Freitas Ferreira4

Introdução
A crise global do capital que repercute nos dias atuais teve seu impacto
mais expressivo no final da década de 1970, provocou mudanças estruturais no
processo de produção capitalista e no campo da reprodução social redimensio-
nando as relações econômicas, sociais, políticas e culturais.
O ordenamento jurídico que sustenta a política de saúde como direito cons-
titucional, ocorre dentro de um contexto de avanços do ideário neoliberal que
reduz gastos na área social em prol do desenvolvimento econômico. Nesse con-
texto de interesses econômicos e políticos, temos o Estado como o grande pilar
de sustentação do capitalismo na condução do processo de redução de direitos
com a subordinação das políticas sociais a lógica da estabilização econômica e
a partir disso, há um processo de desmonte dos direitos sociais que tem reba-

1 Assistente social – graduada pela Universidade do estado do Rio Grande do Norte – (UERN). Pós
Graduada em Saúde Pública com Ênfase em Saúde da Família pela instituição Faculdade Vale do
Jaguaribe. E-mail:[email protected]  
2 Assistente social – graduada pela Universidade do estado do Rio Grande do Norte – (UERN). Pós
Graduada em Saúde Pública com Ênfase em Saúde da Família pela instituição Faculdade Vale do
Jaguaribe RN. E-mail:  [email protected]
3 Doutorando em Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde pela Universidade Estadual do Ceará -
PPCCLIS/UECE (2016)). Docente Assistente I do curso de Enfermagem da Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte - UERN/Campus Pau dos Ferros –CAMEAM.E-mail: [email protected] 
4 Assistente social – graduada pela Universidade do estado do Rio Grande do Norte – (UERN).
Graduanda de Direito pela Universidade Rural do Semiárido. Contato: [email protected] 

725
timentos no processo de organização das forças organizadas da sociedade, em
particular na política de saúde.
Assim, este artigo foi estruturado em quatro partes, incluindo as con-
siderações iniciais e finais, na primeira parte apresentamos um histórico
sobre o percurso da saúde, na segunda parte foi efetuada uma análise sobre
a orientação neoliberal e como esse modelo se processa na realidade social.
Nas considerações finais destacamos as principais reflexões apreendidas do
conteúdo explorado, buscando subsídios que possam responder à questão
que orientou a elaboração deste artigo, ou seja: Quais os impactos do mode-
lo neoliberal na política de saúde?
O presente texto, traz uma discussão resultante de reflexões teóricas sobre o
projeto neoliberal e os seus rebatimentos na política de saúde. O objetivo é de-
bater acerca das implicações dessa conjuntura na perspectiva do direito à saúde,
expor a trajetória e a construção do SUS bem como refletir sobre os impactos
da contrarreforma do Estado na política de saúde.
Esse tema é relevante para o Serviço Social, uma vez que esta é uma profis-
são que tem capacidade teórica para atuar diretamente com a sociedade civil
organizada, lutando para a garantia dos direitos sociais.
Para compreendemos quais são os impactos do neoliberalismo na politica de
saude, a metodologia utilizada será pautada em um estudo teórico. Essa escolha
justifica-se pela possibilidade de se valer de referências para obter um conheci-
mento mais objetivo dessa realidade, bem como observar os processos de mu-
dança dos conceitos, e das práticas ocorridas no decorrer dos anos. Para siste-
matizar as informações, adotaremos a análise crítica. Assim, nos apoiaremos na
teoria social crítica de base marxiana que pauta-se numa abordagem histórica e
dialética com base na totalidade social. A teoria marxista é uma “ciência” que
“produz conhecimento sobre a realidade” possibilitando ações capazes de trans-
formação. “Dessa forma, conhecer a realidade torna-se um meio para conduzir
o processo histórico, o que coloca a fonte do Marxismo no mundo concreto,
histórico, em constante reformulação.” (SOARES; CAMPOS et al 2013).
Portanto é importante considerar que através desse método podemos
entender as relações sociais em sua totalidade e as políticas que se
configuram como espaços de legitimação do poder dominante. Desse modo,
buscaremos apreender a realidade social a partir de contribuições teóricas
tentando compreender a dinâmica processual, contraditória existentes no
real na qual se constrói a política de saúde.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

1. Trajetória histórica da política de saúde no Brasil


A literatura sobre a política de saúde no Brasil enfatiza o início do século XX
como o contexto nascente do movimento operário e da questão da saúde públi-
ca. No Brasil, a intervenção estatal acontece no Século XX, mais efetivamente
na década de 1930. Anteriormente, no século XVIII, a assistência médica era
pautada na filantropia e na prática liberal. No século XIX, em decorrência das
transformações econômicas e políticas, algumas iniciativas surgiram no campo
da saúde verificam-se nesse período ações de combate as endemias e melhorias
nas condições sanitárias. A realidade brasileira evidenciava falta de saneamen-
to, grande quantidade de trabalhadores vivendo em péssimas condições de saú-
de, sem nenhum tipo de higiene, estes são alguns dos fatores que contribuíram
para as primeiras intervenções do governo na saúde visando a manutenção da
força de trabalho com interesses meramente econômicos sem nenhuma preocu-
pação real com o social.

O fundamental, nesse contexto do final do século XIX e início do século


XX, é compreender que nosso liberalismo a brasileira não comportava
a questão dos direitos sociais, que foram incorporados sob pressão
dos trabalhadores e com fortes dificuldades para sua implementação
e garantia efetiva. Essa situação começa a se alterar nos anos 1920 e
sofrerá mudanças substanciais a partir dos anos 1930 (BEHRING e
BOSCHETTI, 2011, p. 81).

Nesta perspectiva, o primeiro sistema de proteção social brasileiro se deu


a partir da criação das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) em 1923,
que era também conhecida como Lei Eloy Chaves em decorrência da orga-
nização e da luta dos trabalhadores por melhores condições de vida. Inicial-
mente, as CAPs foram destinadas aos ferroviários, pois essa era a categoria
que impulsionava a economia brasileira. Posteriormente, as CAPs foram
estendidas a outras categorias (marítimos e portuários) ligadas à infraes-
trutura dos serviços públicos. Desse modo, o modelo médico-previdenciário
excluía grande parcela da população, pois limitava-se apenas à cobertura de
certos segmentos de trabalhadores.
Segundo Bravo (2009), no período de 1930, o país passava por grandes
transformações através do processo de industrialização que refletiu em sua
situação econômica e política a partir do avanço da divisão social do traba-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

lho, ou seja, a emergência do trabalho assalariado, além da intensificação das


expressões da questão social5, vinculada à expansão urbana decorrentes do
processo de industrialização, o que necessitou o surgimento de novas medidas
e intervenções por todo o país.
A partir da década de 1930, o Estado começa a intervir na questão social
através das políticas sociais. Com a expansão do processo de industrialização e
a urbanização crescente podemos notar o aumento do pauperismo e o desem-
prego, desse modo a classe operária e os trabalhadores em geral emergem no
cenário social e político reivindicando melhorias nas condições de vida (higie-
ne, saúde, habitação) das massas populares. A formação das empresas médicas
demonstram a estruturação do atendimento hospitalar de natureza privada, a
partir dos anos 1950.
Dessa forma, a corporação médica com interesses capitalistas pressiona-
va o financiamento através do Estado, defendendo claramente a privatiza-
ção. A medicina previdenciária teve como marco a criação dos Institutos de
Aposentadorias e Pensões, que substituíram as Caixas de Aposentadorias e
Pensões (CAP´s) que surgem estruturados por categorias profissionais e com
uma política previdenciária sob a doutrina do seguro e com a orientação de
redução dos gastos. “A previdência preocupou-se mais efetivamente com a
acumulação de reservas financeiras do que com a ampla prestação de servi-
ços” (BRAVO, 2004, p.23).
Acerca da intervenção do Estado na Saúde no período que compreende a
década de 1930 a 1964 podemos dizer que a conjuntura de 30, com suas carac-
terísticas econômicas e políticas, possibilitou a criação de uma política nacional
de saúde organizada em dois subsetores: o de saúde pública e o de medicina
previdenciária (BRAVO,2001)
Entre os anos de 1945 a 1964 ocorre um período de redemocratização do
país em que aconteceram grandes manifestações populares contra a dita-
dura que acabou na deposição em 1945 do presidente Getúlio Vargas e, no
ano seguinte, na elaboração de uma constituição democrática de inspiração
liberal. Conforme Bravo:

5 Questão Social apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista
madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se
mais amplamente social, enquanto a apropriação dos frutos mantém-se privada, monopolizada por
uma parte da sociedade. (IAMAMOTO, 1999, p. 27)

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A situação da saúde da população, no período de 1945 a 1964 (com


algumas variações identificadas principalmente nos anos de 50, 56 e 63,
em que os gastos com saúde pública foram favoráveis, havendo melhoria
das condições sanitárias), não conseguiu eliminar o quadro de doenças
infecciosas e parasitárias e as elevadas taxas de morbidade e mortalidade
infantil, como também a mortalidade geral. (BRAVO, 2009, p. 92)

É importante ressaltar que “a política social, no período de 1974 a 1979, teve


por objetivo obter maior efetividade no enfrentamento da ‘questão social’, a fim
de canalizar as reivindicações e pressões populares” (BRAVO, 2006, p. 94).
Em 1978, pelo desmembramento do INPS foi criado o Instituto Nacional
de Assistência Médica (INAMPS) que proporcionava serviços médicos aos que
contribuíam com a previdência social. BRAVO (2006) garante que a maioria
dos atendimentos eram prestados pela iniciativa privada. Sendo assim, a saúde
era fortemente caracterizada por uma assistência médica privada, dessa forma,
as classes mais pobres eram atendidas por ações caritativas, prestadas na maio-
ria das vezes, pela Igreja, fato este, que não veio a se constituir como um projeto
universal de cidadania. Era simplesmente a continuidade de um modelo frag-
mentado, desigual e de incorporação social da população em estratos de acesso.
Vale dizer que o caráter dessa política continuou sendo restrito, pois limitava-se
apenas à cobertura de certos segmentos de trabalhadores.
Nesse período, destacavam-se as práticas médicas de caráter assistencialista
que valorizava a saúde individual, em detrimento das medidas de saúde públi-
ca, de caráter preventivo e de interesse coletivo. Às práticas de saúde estavam
voltadas aos interesses do capital internacional no que diz respeito a criação de
indústrias farmacêuticas e de equipamento hospitalar. Dessa forma, a saúde na
ditadura militar foi caracterizada pela concepção médico-curativa, comandada
pelo setor privado. Essa estrutura impossibilitava à população que não contribuía
de ter acesso à saúde, aprofundando ainda mais a desigualdade social existente.
Bravo (2006) destaca que no período pós-64 a medicalização da vida social
foi imposta, tanto na Saúde Pública quanto na Previdência Social. Ressalta,
ainda, que a saúde pública teve um declínio nesse período, ocorrendo o cres-
cimento da medicina previdenciária, principalmente após a reestruturação do
setor, em 1966. Enfatizou-se a prática médica curativa, individual, assistencia-
lista e especializada, com intensa articulação do Estado com os interesses do

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

capital internacional, por meio de indústrias farmacêuticas e de equipamento


hospitalar, além da criação do complexo médico industrial.
Dessa forma, a saúde na ditadura militar foi caracterizada pela concepção
médico-curativa, com a predominância da Previdência Social, comandada pelo
setor privado. Essa estrutura impossibilitava à população que não contribuía
de ter acesso à saúde, aprofundando ainda mais a desigualdade social que se
encontrava latente.
No final da década de 1970, a saúde representava uma forte bandeira de luta
defendida por diversos setores da sociedade civil, insatisfeitos com um modelo
de saúde seletivo e de natureza contributiva. Esse período histórico foi eferves-
cente devido ao fortalecimento dos movimentos sociais e surgimento de novos
atores que propiciaram a derrocada da ditadura militar que se estabeleceu no
Brasil em meados da década de 1960. Com a crise da Ditadura Militar, os Mo-
vimentos Populares começaram a ocupar espaços evidenciando a necessidade
da participação da sociedade, em especial na área da saúde.
A participação popular através de movimentos sociais, se fez mais presen-
te na cena política em oposição ao regime militar, lutando em torno da con-
quista, da garantia e da ampliação de direitos, como à melhoria das condições
de vida. No âmbito da saúde, mais especificamente, após anos de lutas surge
um movimento sanitário mobilizado e articulado com um projeto alternativo
ao modelo médico-assistencial até então disponível para a população, voltados
para a democratização da saúde. Tais condições históricas tornaram possível a
realização, em março de 1986, da 8ª Conferência Nacional de Saúde – (CNS),
um marco nacional para as transformações no sistema de saúde brasileiro.
A ascensão das lutas sociais a partir da década de 1980 com a abertura po-
lítica após o período ditatorial mobilizou a sociedade em diversos setores. Estu-
dantes, trabalhadores, intelectuais e segmentos do setor da saúde organizaram-
-se no que ficou conhecido como Movimento da Reforma Sanitária.
O Setor da saúde foi um dos primeiros a defender a prática da participação
popular, desta forma, a saúde é trazida para o cenário político, em meio ao pro-
cesso de luta pela redemocratização, mobilizando diversos setores da sociedade
para pensar a política de saúde brasileira. Já que as condições impostas pela
política macroeconômica brasileira traziam impactos significativos para as con-
dições de trabalho e de vida da classe trabalhadora.
O Movimento da Reforma Sanitária intensificado na década de 1980 no
processo de redemocratização do país defendia a construção do Sistema Único

730
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de Saúde e enfatizava a importância de rompimento com o modelo biomédico,


lutando pelo direito universal a saúde entendendo-a como um direito de todos.
Dessa forma, esse movimento oriundo da crescente mobilização e organização
na luta pela redemocratização fortaleceu o debate acerca da ampliação do con-
ceito de saúde em oposição ao modelo médico assistencial-privatista, não se
desvinculando também da proposta das liberdades democráticas suprimidas
durante a ditadura militar.
O documento Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais na Saúde assim
afirma acerca da Reforma Sanitária:

A principal proposta da Reforma Sanitária é a defesa da universalização


das políticas sociais e a garantia dos direitos sociais. Nessa direção,
ressalta-se a concepção ampliada de saúde, considerada como melhores
condições de vida e de trabalho, ou seja, com ênfase nos determinantes
sociais; a nova organização do sistema de saúde por meio da construção
do SUS, em consonância com os princípios da intersetorialidade,
integralidade, descentralização, universalização, participação social
e redefinição dos papéis institucionais das unidades políticas (União,
Estado, municípios, territórios) na prestação dos serviços de saúde; e
efetivo financiamento do Estado (2010,p. 19).

A 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) resultou na implantação do Siste-


ma Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) e instalou-se a Comissão Na-
cional de Reforma Sanitária (CNRS), a fim de acompanhar e fiscalizar o processo
constituinte. Nesse contexto de lutas pela saúde, deu-se a efetivação da Cons-
tituição de 1988, mediante embates entre progressistas e conservadores, a saú-
de passou a fazer parte dos direitos sociais, a descentralização foi inserida, assim
como a regionalização, a hierarquização e a participação. Na concepção de Bravo
(2009) a questão de saúde vem se alterando a partir da relação Estado/sociedade,
constituindo-se em um fator que merece destaque, visto que é uma compreensão
referente aos avanços decorrentes da ampliação do conceito de saúde.
Na Constituição brasileira de 1988, a política de saúde é abordada dentro
do capítulo de Seguridade Social que “compreende um conjunto integrado de
ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar
os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (BRASIL, art.
194, 1989). Desse modo, faz-se necessária a atuação do Estado, visando a garan-

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

tia e a efetividade acerca dos direitos sociais dentre os quais o direito à saúde.
De acordo com o art.196 da Constituição Federal:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante


políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário as ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL,1990).

O texto constitucional demonstra claramente que a concepção do SUS ba-


seou-se na formulação de um modelo de saúde voltado para as necessidades da
população, procurando resgatar o compromisso do Estado para com o bem estar
social, especialmente no que refere à saúde coletiva, consolidando-o como um
dos direitos da cidadania.
Foi após a Constituição de 1988 que a política de saúde passou a ser compre-
endida como um direito de todos e dever do Estado e da administração pública,
constituindo-se como um projeto social único e igualitário que se materializa
por meio de ações de promoção, prevenção e assistência à saúde dos brasileiros
reduzindo o risco de doenças e de outros agravos que implicam na qualidade de
vida e do bem estar da população (BRASIL, 1990).
Após ampla correlação de forças, vários debates de projetos antagônicos, foi
homologada a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que implanta o Sistema
Único de Saúde (SUS). É importante atentar para o fato de que essa Lei vem
regulamentar o que a Constituição Federal de 1988 já garantia, ou seja, a saúde
como um direito universal e igualitário, além de não-contributivo. Outro fato
de extrema relevância trazida por essa Lei é a nova concepção de saúde que não
mais representa apenas a ausência de doença, como bem afirma o seu Art. 3º:

A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros,


a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente,
o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos
bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a
organização social e econômica do País. (BRASIL,1990)

É importante ressaltar que a Constituição Federal ao tratar sobre o di-


reito à saúde, legitimou a participação da sociedade no controle das ações
e serviços públicos, visando desta forma, a criação de espaços de controle
social para garantir o acesso universal aos serviços de saúde e a participação

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

da população. O Sistema Único de Saúde (SUS) como fruto de ampla mobi-


lização de diversos setores sociais, em especial os setores vinculados à área
sanitária politicamente atuante na década de 80, tem no controle social um
de seus pilares básicos de sustentação.
A constituição Federal de 1988 reconheceu a saúde como “dever do Estado
e direito de todos”. Dessa forma, o SUS agrega princípios que versam sobre a sua
organização enquanto sistema, na perspectiva de garantir a sua operacionaliza-
ção, proporcionando um acesso igualitário e eficaz. Como princípios e diretrizes
do SUS constituídos na Lei Orgânica da Saúde (LOS) têm se a universalidade
de acesso aos serviços da saúde, igualdade na assistência à saúde, integralidade
da assistência, participação da comunidade e descentralização político-admi-
nistrativa com comando único (BRASIL, 1990).
O SUS representou enorme ganho histórico para a população brasileira
trazendo os direitos e deveres desta, atribuindo ao Estado à responsabilidade
de garantir a saúde com acesso universal e igualitário. Esse sistema de saúde
corresponde a um conjunto de ações voltadas para toda a população, composto
por serviços de saúde de caráter público e universal, organizados em conexões
regionalizadas e hierarquizadas, atuando em todo o território brasileiro. Esse
sistema possui também princípios, a saber: a Universalidade, a regionalização
e hierarquização6, a resolubilidade, a descentralização, a participação dos cida-
dãos7 e a complementaridade do setor privado.
Apesar das vantagens trazidas à população por esses princípios que norteiam
o SUS, é preciso analisá-los criticamente, tentando estabelecer a materialidade
destes na realidade dos serviços de saúde no país, pois ainda persiste uma gran-
de lacuna entre o SUS constitucional e o que se esboça na sua concretização.

6 ...] A rede de serviços, organizada de forma hierarquizada e regionalizada, permite um conhecimento maior
dos problemas de saúde da população da área delimitada, favorecendo ações de vigilância epidemiológica,
sanitária, controle de vetores, educação em saúde, além das ações de atenção ambulatorial e hospitalar em
todos os níveis de complexidade” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1990, p.05).
7 “A participação social na área da saúde foi concebida na perspectiva do controle social, no sentido de
os setores organizados na sociedade civil participarem desde as suas formulações – planos, programas e
projetos -, acompanhamento de suas execuções, até a definição da alocação de recursos para que estas
atendam aos interesses da coletividade. Esta participação foi institucionalizada na Lei 8.142/90, através
das Conferências, que têm como objetivo avaliar e propor diretrizes para a política de saúde nas três
esferas de governo, e por meio dos Conselhos, que são instâncias colegiadas de caráter permanente
e deliberativo, com composição paritária entre os representantes dos segmentos dos usuários, que
congregam setores organizados na sociedade civil, e os demais segmentos (gestores públicos e privados
e trabalhadores da saúde), e que objetivam tal controle” (CORREIA, 2006, p. 125).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Percebemos alguns avanços nesse processo de implantação do SUS, mas,


com certeza, há muito ainda a ser realizado na perspectiva de atender a todos
com qualidade. No final da década de 1980 já podem ser observados no país os
primeiros “sinais” do projeto neoliberal, que visava a desconstrução das políticas
sociais, transferindo para o terceiro setor as funções que caberiam ao Estado.
Nessa perspectiva Bravo menciona:

[...] o desrespeito ao princípio da equidade na alocação dos recursos


públicos pela unificação dos orçamentos federal, estaduais e municipais;
afastamento do princípio da integralidade, ou seja, indissolubilidade
entre prevenção e atenção curativa, havendo prioridade para a
assistência médico-hospitalar em detrimento das ações de promoção e
proteção da saúde. A proposta de Reforma do Estado para o setor saúde
ou contrarreforma, era de dividir o SUS em dois – o hospitalar e o básico
(2006, p. 100-101).

Bravo (2006) aponta que alguns fatores provocaram dúvidas e incerte-


zas quanto à implementação do Projeto de Reforma Sanitária, após 1988,
tais como: a fragilidade das medidas reformadoras em curso, a ineficácia
do setor público, as tensões com os profissionais de saúde, a redução do
apoio popular devido à ausência de resultados concretos na melhoria das
condições de saúde da população brasileira e a reorganização dos setores
conservadores contrários à reforma.
Apesar dos problemas que permeiam o SUS deve-se compreender que a Lei
nº 8.080/90 que regulamenta esse sistema de saúde, bem como seus princípios
são avançados na concepção dos direitos sociais. O que se torna contraditório
a esse processo de conquista da saúde pública com responsabilidade estatal, a
partir da década de 1990, é a lógica do capital e a disputa permanente entre
distintos projetos societários.
No próximo item iremos analisar o ideário neoliberal que ganha força no
Brasil no anos 1990 e seus rebatimentos na política de saúde e os principais
desafios frente às mudanças efetivadas na relação Estado-sociedade, orien-
tadas pelo neoliberalismo, traduzidas nas políticas de ajuste recomendadas
pelos Organismos Multilaterais como o Banco Mundial e o Fundo Monetá-
rio Internacional (FMI).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

2. O neoliberalismo e o desmonte da política de saúde


A ideologia neoliberal e política econômica adotada durante a década de
1990 no Brasil, iniciada no governo Collor e ampliada na era FHC, reforçou a
subordinação do Estado em benefício do capital afetando as políticas sociais.
Segundo Nogueira e Mioto (2006) as políticas sociais, criadas para concretizar
os direitos sociais, se tornaram limitadas e restritivas com o desmonte dos direitos
sociais, o que provocou profundas mudanças na estrutura da seguridade social.
O ideário neoliberal no Brasil tem sido responsável pela redução dos direitos
sociais e trabalhistas, através do acirramento do desemprego estrutural, da pre-
carização das relações e condições de trabalho, e do desmonte da saúde.
No contexto real se estabelecem mecanismos de subordinação do sistema
público de saúde ao mercado. Neste sentido, há uma destaque na criação de
parcerias do Estado com a sociedade civil. Essa estrutura faz retroceder a políti-
ca democrática e fragiliza as formas legitimadas de participação social.
Isso acaba refletindo nos princípios do SUS e na qualidade dos serviços pres-
tados aos usuários, além de promover o desmonte da participação social nos
espaços de controle social. Na concepção de Bravo (2006) há um projeto de
saúde vinculado ao mercado, pautado na política de ajuste estrutural definida
pelos organismos financeiros internacionais.

A proposta de política de saúde construída na década de 80 tem


sido desconstruída. A saúde fica vinculada ao mercado, enfatizando-
se as parcerias com a sociedade civil, responsabilizando a mesma
para assumir os custos da crise. A refilantropização é uma de suas
manifestações com a utilização de agentes comunitários e cuidadores
para realizarem atividades profissionais, com o objetivo de reduzir
custos (BRAVO, 2006, p.100).

De fato, com a Reforma Sanitária na década de 1980 a política de saúde foi


conduzida por propostas de: universalização do acesso; concepção de saúde como
direito de todos e dever do Estado; implantação do Sistema Único de Saúde; a
descentralização e fortalecimento da participação popular. No entanto, há duran-
te a década de 1990 um confronto de projetos que contribui para a ocorrência
de um retrocesso na política de saúde, no qual se preconiza o projeto privatista.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A tarefa do Estado, nesse projeto, consiste em garantir um mínimo aos que


não podem pagar, ficando para o setor privado o atendimento dos que têm
acesso ao mercado. Suas principais propostas são: caráter focalizado para
atender às populações vulneráveis através do pacote básico para a saúde,
ampliação da privatização, estímulo ao seguro privado, descentralização
dos serviços ao nível local, eliminação da vinculação de fonte com relação
ao financiamento (BRAVO, 2006, pag.79).

Enfim, prioriza-se a financeirização do capital em detrimento dos direitos do


trabalho, o que se reflete na política de saúde que passa por restrições no seu fi-
nanciamento, sucateando os serviços, incentivando a terceirização e a privatização
além de promover o desinteresse e desarticulação da participação e controle social.
A saúde torna-se uma mercadoria para quem pode pagar, enfatizando-se
implicitamente a lógica do SUS para os pobres. As consequências desse proces-
so trazem para o Brasil vários agravos como: maior desigualdade; inoperância
dos direitos sociais; sucateamento da saúde e seu consequentemente desmonte,
dentre outros problemas (CFESS, 2009).

O governo Fernando Henrique Cardoso lidera as mutações pelas


quais passa o Estado brasileiro, com ênfase no âmbito da saúde, da
lógica do seguro e não da seguridade social, da focalização em vez
da universalidade, da privatização contra o investimento no serviço
público, da desregulamentação e flexibilização dos direitos trabalhistas e
da descentralização sem controle social (TEIXEIRA, 2012, p.59).

Com o governo popular de Luís Inácio Lula da Silva a partir de 2003, há


uma expectativa de um Brasil novo, que promova a redução das desigualdades
sociais, a redistribuição de renda e geração de empregos, além da universaliza-
ção das políticas sociais públicas. Pretendia-se retomar o projeto de Reforma
Sanitária, no entanto, o que se observou foi a continuação de uma política de
saúde focalizada e sem financiamento efetivo (CFESS, 2010). Neste sentido a
contrarreforma do Estado

[...] atingiu a saúde por meio das proposições de restrição do financiamento


público; da dicotomia entre ações curativas e preventivas, rompendo com
a concepção de integralidade por meio da criação de dois subsistemas:
o subsistema de entrada e controle, ou seja, de atendimento básico, de
responsabilidade do Estado (uma vez que esse atendimento não é de

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

interesse do setor privado) e o subsistema de referência ambulatorial e


especializada, formado por unidades de maior complexidade que seriam
transformadas em Organizações Sociais. Nessa lógica, há ênfase em
programas focais: Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)
e Programa de Saúde da Família (PSF). (CFESS, 2010, p. 20-21)

É importante considerar que houve uma redução tímida da desigualdade


social com a criação de alguns programas como o Bolsa Família, contudo, os
fatores de continuidade da política neoliberal vistos nos anos 1990 permane-
ceram, impostos pelos Organismos Financeiros Internacionais. Desse modo, a
articulação do projeto de saúde defendido esteve vinculado ao mercado priva-
tista (BRAVO, 2009).

Há uma enorme distância entre a proposta do movimento sanitário


e a prática social do sistema público de saúde vigente. O SUS foi se
consolidando como espaço destinado aos que não tem acesso aos
subsistemas privados, como parte de um sistema segmentado. A
proposição do SUS inscrita na Constituição de 1988 de um sistema
público universal não se efetivou (BRAVO, 2006, p.106- 107).

No governo Dilma, embora a saúde apareça como prioridade as ações des-


tacam a necessidade de estabelecer parcerias com o setor privado. O discurso
é de defesa do acesso e melhoria da qualidade dos serviços, embora os encami-
nhamentos concretos deste governo tenha conduzido a “ênfase nas políticas e
programas focalizados, a parceria com o setor privado e a cooptação dos movi-
mentos sociais” (BRAVO e MENEZES, 2014, p. 39).
Dando continuidade aos parâmetros neoliberais na saúde, o então Presi-
dente interino Michel Temer, na intenção de manter níveis econômicos sa-
tisfatórios, para mencionar alguns dos retrocessos, citamos a Emenda Cons-
titucional do Teto dos Gastos (EC nº 95/2016), que limita, por 20 anos, a
ampliação dos gastos com a saúde; a revisão da Política Nacional de Atenção
Básica (setembro de 2017) que desestrutura a estratégia de organização do
SUS a partir da atenção básica; e nesse contexto é lançada a proposta de
criação de planos populares de saúde.
Diante dessa realidade, podemos notar a fragilidade na efetivação das polí-
ticas sociais e, particularmente da política de saúde, pela limitação estrutural
e pelo retrocesso na política democrática. O que se apresenta é um discurso

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de um ajuste duradouro que consiste na defesa de um tripé para “[...] redução


estrutural das despesas públicas, na diminuição do custo da dívida pública e no
crescimento do PIB” (GUIMARÃES, 2015, p.16). Todavia, o que se nota é um
retorno à política liberal, a ideia de um Estado não intervencionista.
Diante do exposto, podemos afirmar que a atuação do Estado vem se desen-
volvendo de modo a atender às necessidades do capital. Neste sentido, o prin-
cípio da universalização das políticas sociais é rompido, na medida em que os
programas e serviços passam a ser focalizados. Na saúde, se verifica a desigual-
dade no acesso, o desafio de construção de práticas baseadas na integralidade,
os dilemas para alcançar a equidade, falta articulação entre os movimentos so-
ciais que possibilite a construção de uma pauta e uma organização conjunta de
defesa do sistema de saúde.
Esse contexto representa o avanço do neoliberalismo no Brasil, que prega a
não-intervenção do Estado no mercado, redução de direitos sociais, em contra-
posição ao fortalecimento do grande capital e da área econômica, em uma clara
subordinação da política social à política econômica.
Nesse cenário, processa-se um Estado viabilizador da expansão do grande
capital, principalmente financeiro, em detrimento das garantias sociais, que
passam a ser progressivamente colocadas como responsabilidade para a socie-
dade civil, pois esta é entendida como seio da solidariedade e propiciadora do
bem-comum, concepção que o Estado aliado à classe dominante tenta espraiar
para o conjunto da sociedade, como forma de se alcançar um consenso ativo da
classe trabalhadora e atingir seus objetivos lucrativos.
Conforme mencionado, o SUS vem sofrendo grandes impactos, tanto em
sua base democrática (participação popular) que tem sofrido impactos com as
transformações decorrentes da política neoliberal, quanto as questões econômi-
cas de reordenamento do capital rebate no papel estatal com implicações nas
formas de organização e participação da classe trabalhadora.
Desse modo, diante da ofensiva neoliberal de mercantilização das políti-
cas sociais, o controle social representa um importante avanço na luta contra
hegemônica. Contudo, persistem as dificuldades para a concretização da efeti-
va participação popular no âmbito dos conselhos de saúde. Dentre os maiores
problemas que inviabilizam um controle social real está a ausência de repre-
sentantes orgânicos da classe trabalhadora. Nota-se na realidade a presença
de relações clientelísticas, patrimonialistas e fisiologistas, herança histórica da
nossa formação social.

738
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Considerações finais
Na sociedade política contemporânea, o ideário neoliberal no Brasil tem
sido responsável pela redução dos direitos sociais e trabalhistas, que atrelado
ao processo de reestruturação produtiva vem promovendo o acirramento do
desemprego estrutural, a precarização das relações e condições de trabalho e o
desmonte da saúde. Hoje, a proposta implementada na saúde fica vinculada ao
mercado, enfatizando as parcerias com a sociedade civil e transferindo a mesma
o dever de assegurar os serviços sociais mediante a perspectiva da solidariedade.
A terceirização e a privatização de serviços do setor de saúde são alguns
problemas que inviabilizam o direito à saúde. Esse sucateamento também tem
rebatimento no processo de trabalho em saúde atingindo diretamente os pro-
fissionais da saúde com condições de trabalho precárias e com baixos salários,
tornando deficiente o atendimento ao usuário do sistema. Além da enorme
retirada de recursos, outra questão que põe enorme entrave para que o SUS
se firme, é a privatização do setor, substituindo os serviços públicos pelos
serviços privados, pondo assim, obstáculos para um projeto de saúde coletivo
voltado para toda a população.
Diante do exposto, é possível perceber que o Estado vem desenvolvendo
sua atuação de modo a atender às necessidades do capital. Com isso, fica di-
fícil concretizar o princípio da universalização, pois as situações mostram que
o mesmo não ocorre e os programas passam a ser focalizados. Também a desi-
gualdade de acesso da população aos serviços de saúde, o desafio de construção
de práticas baseadas na integralidade, os dilemas para alcançar a equidade no
financiamento do setor, os avanços e recuos nas experiências de controle social,
a falta de articulação entre os movimentos sociais, dentre outras, são algumas
das dificuldades a serem superadas para o fortalecimento da política de saúde
instituída no Brasil. Desse modo, diante da desestruturação do nosso sistema
público é importante a mobilização política e a organização da sociedade civil
em defesa dos nossos direitos.

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741
Reforma Trabalhista: a atuação
sindical e a proteção ao trabalhador

Bento Herculan Duarte1


Hilana Beserra da Silva 2
Ana Cecília Alves Nôga 3

Introdução
A Reforma Trabalhista, Lei 13.467/2017, tem como um dos pontos de des-
taque a atuação das negociações coletivas para regular direitos laborais, e desta
forma, a participação dos sindicatos na formação dos contratos de trabalho das
categorias da qual fazem parte. Essa norma é o resultado de longas discussões
trazidas pela classe empresária cuja premissa parte especialmente da diminui-
ção da intervenção do Estado na economia, refletindo nas relações e condições
de trabalho estabelecidas pelas normas jurídicas brasileiras.
Assim como nos governos autointitulados neoliberais, a filosofia liberal, nas
palavras de Milton Friedman, “é a crença na dignidade do indivíduo, em sua
liberdade de usar ao máximo suas capacidades e oportunidades de acordo com
suas próprias escolhas, sujeito somente à obrigação de não interferir com a liber-
dade de outros indivíduos fazerem o mesmo”. (Friedman, 2014, p. 197).
Para tanto, conforme argumenta o referido autor, é necessária a separação
do poder político em relação à economia. Assim, a liberdade econômica é pro-
movida pelo capitalismo competitivo, uma vez que este promove, também, li-

1 Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
Titular do Curso de Direito da UFRN. Professor na PPGD na UFRN. Desembargador Presidente do
Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região.
2 Mestranda no PPGD da UFRN, orientanda de Bento Herculano Duarte. Professora Titular do
departamento de Direito na Estácio de Sá. Especialista em Direito Constitucional.
3 Bacharel em direito pela Universidade Estácio de Sá (FAL), Graduada em História, habilitação
licenciatura, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

743
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

berdade política “porque separa o poder econômico do poder político e, desse


modo, permite que um controle o outro. ” (Friedman, 2014, p. 17)
A dicotomia engendrada no Estado Liberal preceituava num plano social uma
liberdade tenazmente defendida em seu viés individual e ilimitado, enquanto que
na esfera pública, os poderes instituídos pelo povo, a atuação da representação
política e popular, assim considerada pelo modelo de outorga de poderes.
Inexistia, nesta senda, qualquer ingerência estatal na limitação ao direito
privado, porquanto nesta visão constitucionalista norte-americano e das tradi-
ções germânica e austríaca, o direito tinha um cunho positivista aos moldes da
filosofia Kelseniana e da sua formulação piramidal para o ordenamento jurídico
(Marx, 2010, Pg. 295).
No campo econômico, impende registrar a defesa de uma análise econômica
sistematizada por Adam Smith e amparada na legislação vigente à época, que
fundamentava a economia moderna e conferia ao trabalho, no contexto da
livre iniciativa, como fonte de riqueza, pregando, ainda, o livre comércio, a con-
corrência e a divisão do trabalho, razão pela qual depreende-se que liberalismo
econômico defende o individualismo, o racionalismo e a legalidade (Fernandes,
In: Cunha, 1998. Pg. 15).
A liberdade, fundada no modelo do liberalismo econômico, trouxe a rebo-
que crescente rivalidade comercial de modo a incentivar melhorias nos métodos
produtivos, como o despontar da energia a vapor, fator este a conduzir altera-
ções na forma de produção. O trabalho, que antes era desenvolvido de forma
tipicamente artesanal e domiciliar, passou a um modelo fabril exigindo do tra-
balhador maiores níveis de produtividade (Iannonne, 1992, Pg. 53).
Eis o contexto do liberalismo, em cujo ápice desenvolvido pelo capitalismo
financeiro desponta o trabalho que trouxe ao seu executor a condição de coisa,
correspondendo este obreiro à mero insumo no processo de produção, fato que
relegava o ser trabalhador a uma total degradação social comparado a um obje-
to descartável (COMPARATO, 2010, Pg. 36).
Em que pese ideia pós-moderna de liberdade econômica segundo a qual
ambiciona a diminuição dos efeitos causados por uma crise econômica, vide a
situação brasileira. É com base em argumentos liberais que se criou uma plata-
forma política para reforma da legislação trabalhista, retirando um alegado ca-
ráter burocrático da norma facilitar-se-ia a criação de novos postos de trabalho,
situação não observada após a sua promulgação.

744
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Em contrapartida atuação sindical sob a égide da nova norma trabalhista


retirou, expressamente, a necessidade da negociação coletiva nas dispensas em
massa, questão amplamente solidificada na Justiça do Trabalho. Nesse sentido,
ao se postular por maior liberdade nas relações trabalhistas acabou gerando, em
diversos aspectos, o enfraquecimento do princípio da Proteção, norteador do
Direito do Trabalho.
A atuação sindical no Brasil está atrelada às relações estabelecidas entre as clas-
ses dos trabalhadores e dos empregadores. O sindicato, enquanto entidade represen-
tativa, alberga reconhecida importância, pela Constituição de 1988, mormente em
seu artigo 8º, inciso III, para a defesa dos interesses individuais e coletivos, inclusive
quanto a questões judiciais ou administrativas. Nessa esteira, os desdobramentos da
relação entre sindicatos, empregados e empregadores estão normatizados tanto pela
Carta Magna como pela Consolidação das Leis do Trabalho. Portanto, coube ao
Direito do Trabalho debruçar-se sobre as peculiaridades dessa relação.
A negociação coletiva enquanto instituto trabalhista visa, através da atu-
ação dos sindicatos, da classe obreira e dos empregadores, a autocomposição,
da qual resultam acordos sobre as condições de trabalho. E, mais uma vez,
com amparo constitucional firmou-se a imprescindibilidade da participa-
ção dos sindicatos nas negociações coletivas, nos termos do artigo 8º, VI, da
Constituição Federal do Brasil.
Diante desse contexto verifica-se a importância da participação sindical nas
relações obreiras, especialmente durante a vigência do contrato de trabalho, ao
ponto de ser imposta pela Constituição brasileira a participação dos sindicatos
para negociar junto às partes envolvidas pela relação de emprego, os direitos
da classe trabalhadora, conforme artigo supracitado. Mas a sua atuação não
se atinha apenas para a consubstanciação de direitos e condições de trabalho.
Para além desse aspecto, em notória decisão do Tribunal Superior do Trabalho,
no ano de 2009, firmou-se o entendimento de que a negociação coletiva era
indispensável para a dispensa em massa de trabalhadores.
Deste modo, o sindicato fora designado como garantidor de direitos dos
trabalhadores no momento da extinção do contrato de trabalho, em especial,
através da negociação coletiva nas demissões em massa. Pois esse tipo de res-
cisão contratual gera efeitos impactantes na estrutura social e econômica da
comunidade na qual esses trabalhadores estão inseridos.
Todavia, no ano de 2017, com o advento da Lei 13.467, promoveu-se no âmbito
trabalhista uma ampla reforma legislativa e, dentre as notórias alterações, passou-se

745
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

a normatizar, no artigo 477-A da Consolidação das Leis do Trabalho, que as dispen-


sas coletivas não necessitam de autorização prévia de entidade sindical ou de cele-
bração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação.
Nesse diapasão, o tema trazido por esta pesquisa é atual e controvertido, a
nova disposição legal contrapõe-se veementemente ao preceituado pela justiça
do trabalho até então, ao retirar do trabalhador a proteção que o sindicato
deveria prover nas dispensas em massa. Desta forma, vê-se uma mitigação do
princípio basilar do Direito do Trabalho, o Princípio da Proteção. E em direção
oposta, ampliou-se o poder da negociação coletiva na elaboração e vigência dos
contratos de trabalho.
Na esteira dessas discussões, o presente trabalho tem como objetivo princi-
pal identificar e analisar a função atual dos sindicatos na defesa dos interesses
da sua categoria, na dispensa em massa e nas negociações coletivas, após a
reforma trabalhista no contexto dos artigos 477-A e 611-A da CLT em contra-
posição ao princípio da Proteção.
Ao realizar uma comparação entre a atuação sindical antes e após a refor-
ma, é possível chegar a um panorama contraditório, no qual ao mesmo tempo,
a nova legislação amplia a atuação sindical nas negociações das condições de
trabalho e desprotege o trabalhador, principalmente nas demissões coletivas, de
modo a afrontar o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, de 2009,
pela imprescindibilidade da negociação coletiva nas demissões em massa.
Sob o ponto de vista da presente pesquisa, conclui-se que a novel legisla-
ção trabalhista trouxe alterações prejudiciais ao trabalhador e fragilização do
Princípio da Proteção ao suprimir a obrigatoriedade da negociação coletiva nas
dispensas em massa.
Ademais, a presente pesquisa visa traçar um breve contexto histórico re-
ferente à disposição legal sobre a formação e a atuação sindical no Brasil, a
relação com o Direito do Trabalho e o angariamento de poder pela entidade
sindical para dispor sobre direitos laborais no sistema jurídico pátrio.
Adiante, debruçando-se sobre os elementos norteadores do princípio da pro-
teção do trabalhador contra a despedida imotivada e a sua consequente mitiga-
ção decorrente da atual norma trabalhista. Em seguida, apontam-se os aspectos
da demissão em massa e a participação dos sindicatos, antes da reforma traba-
lhista, fundamentando-se em decisão do Tribunal Superior do Trabalho.
Ainda, busca-se demonstrar como os atuais parâmetros demissionais, insti-
tuídos pelo artigo 477-A da CLT, resultam no enfraquecimento da proteção ao

746
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

trabalhador, baseada no princípio discutido no tópico 3 deste trabalho. Por fim,


em contraposição ao artigo debatido no tópico anterior, aborda-se o importante
papel das negociações coletivas na disposição de direitos dos trabalhadores, ao
ponto de se sobreporem ao legislado, conforme disposto no artigo 611-A da CLT.
No que se refere à metodologia adotada, optou-se pela pesquisa bibliográ-
fica, partindo-se dos fundamentos e princípios do Direito do Trabalho, dis-
corridos amplamente por doutrinadores, como, Maurício Godinho Delgado,
Amauri Mascaro Nascimento, Alice Monteiro de Barros. A Consolidação
das Leis do Trabalho, decretos, orientação jurisprudencial e da Constituição
Federal de 1988, para balizar este trabalho. No que se refere à temática ne-
oliberal, baseou-se em autores como Milton Friedman. Agregando-se a esse
material, foram utilizados artigos jurídicos, para compreensão da repercussão
dos novos dispositivos no direito dos trabalhadores, uma vez que o tema se
refere a novel legislação.

1. Breve síntese histórica do sindicalismo no Brasil


A organização sindical no Brasil tem início antes mesmo da criação da Justi-
ça do Trabalho. Visto que a Justiça do Trabalho foi consubstanciada, primeiro,
pela Constituição de 1934 como ramo do Poder Executivo e, apenas em 1º de
maio de 1941, houve a instalação nacional da Justiça do Trabalho. Vindo a ser
considerada ramo do Poder Judiciário, apenas, na Constituição de 1946.
Já os sindicatos apareceram no ordenamento jurídico pátrio, a partir de
1903, com o Decreto nº 979, e por outros decretos que a esse sucederam; por-
tanto, inicialmente instituídos em legislações esparsas, para posteriormente se-
rem normatizados pela Constituição brasileira.
Desse modo, ao se estudar a formação do sindicalismo no país é preciso
apoiar a pesquisa nos Decretos e nas Constituições nacionais, a fim de se traçar
uma linha cronológica da forma como eles foram concebidos pelas instituições
normativas do direito brasileiro.
Nesse espeque, como dito, em 1903 surge a primeira legislação de organiza-
ção sindical, o Decreto nº 979, direcionado às empresas agrícolas e aos traba-
lhadores rurais (Martins, 1986, p. 15). O artigo 1º desse decreto afirma ser uma
faculdade dos profissionais organizarem-se em sindicatos, assim como, devem
ter por finalidade o estudo, o custeio e a defesa dos interesses dos profissionais.

747
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Poucos anos depois, em 1907, com o Decreto nº 1.637, regularam-se todos os


profissionais, inclusive os liberais. Trazendo, em seu artigo 1º, como finalidade
do sindicato o estudo, a defesa e o desenvolvimento dos interesses gerais das
profissões e os interesses profissionais de seus membros. O artigo 2º, deste de-
creto, estabelecia que a livre constituição do sindicato era isenta da intervenção
estatal, de tal modo que bastava simplesmente o depósito de seu estatuto para
obter as benesses legais.
Vigorava, naquele momento, como se pode aferir no artigo 4º, do citado
decreto, a pluralidade sindical pelo território, afirmando-se que os sindicatos
poderiam se federar em uniões ou sindicatos centrais, “sem limitação de cir-
cunscrições territoriais”.
Em 1930, ascendia ao governo o presidente Getúlio Vargas, com a vitória da
Aliança Liberal, e assim, chegava ao poder um dos políticos mais importantes
para construção de uma legislação trabalhista sob o comando do Estado. Desta
forma, no início do primeiro governo Vargas fora nomeado para o cargo de Mi-
nistro do Trabalho, Lindolpho Collor.
O "Ministro da Revolução", como ficou conhecido, concebia os sindicatos
como instrumentos para mediação de conflitos entre empregados e empregado-
res. Buscando, também, aproximá-los ao Estado, para que este pudesse exercer
controle sobre as entidades sindicais. Surgiram de forma dialética, nessa mesma
época, os sindicatos patronais. (Collor, 2018).
O ministro Mauricio Godinho Delgado denomina de sindicalismo vertical4,
a concretização da intensa intervenção estatal na estrutura dos sindicatos, a
qual perduraria por muitos anos. Iniciou-se, portanto, com a criação do Minis-
tério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1930, seguindo-se com o Decreto
nº 19.770 de 1931, a submissão do ato de constituição do sindicato e adquirirem,
assim, personalidade jurídica, a aprovação por esse Ministério.
Outro aspecto inovador, trazido pelo artigo 3º e o seu parágrafo 2º desse
decreto, foi a concepção de Federação sindical e Confederação, traçaram-se
os parâmetros para a criação dos sindicatos, devendo constar de número
nunca inferior a três, para formar uma federação regional, com sede nas

4 Sindicato vertical: estende-se no mercado de trabalho abrangendo, regra geral, a ampla maioria dos
empregados das várias empresas, na respectiva base territorial da entidade, que tenham similitude
de atividades econômicas. Portanto, atinge, verticalmente, as empresas economicamente afins.
DELGADO. op. cit. p. 1348.

748
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

capitais dos estados. Ao se atingir o número de cinco federações regionais


passariam a constituir a Confederação Brasileira do Trabalho e a Confe-
deração Nacional da Indústria e Comércio5, com sede na capital do país.
Necessitando-se, uma vez mais, da aprovação do estatuto pelo Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio.
O Decreto nº 19.770, de 19 março de 1931, buscou no seu texto coibir a
represália dos empregadores, com dispensa, suspensão ou rebaixamento de ca-
tegoria, em razão de seus empregados aderirem aos sindicatos da sua categoria.
Do mesmo modo, pelo fato de expressarem ideologias distintas a dos seus pa-
trões, conforme o artigo 13 deste decreto.
Alice Monteiro de Barros aponta que nesse decreto, em seu artigo 9º,
consagrou-se a unicidade sindical, e ainda prevendo a neutralidade sindical,
proibindo-se os sindicatos de se envolverem com questões religiosas e po-
líticas, devendo voltar o seu foco para a defesa dos interesses profissionais.
(Barros, 2016, p. 794).
Em 1932, no Decreto nº 22.132 em seu artigo 1º, restringiu-se aos trabalha-
dores sindicalizados a possibilidade de apresentar reclamação perante as Juntas
de Conciliação.
Noutro vértice, a primeira vez que o instituto da Convenção de Conciliação
de Trabalho apareceu no ordenamento jurídico brasileiro, trazendo no seu âmago
a participação do sindicato para sua realização, foi no Decreto nº 21.761 de 1932.6
Já no Decreto nº 24.694, de 1934, antecedendo a Constituição do mesmo
ano, em seu artigo 5º impôs-se uma importante limitação para o funcionamento
dos sindicatos dos empregados, qual seja, a participação de no mínimo um terço
dos empregados que exerçam a mesma profissão na respectiva localidade.
Iniciando-se o período do Estado Novo, ainda sob comando do presi-
dente Vargas, entre os anos de 1937 a 1945, a Constituição deste período,
conhecida como Polaca, por sua inspiração na Carta Magna polonesa,
legitimava a existência de um governo autoritário, concedendo-o poderes
praticamente ilimitados.

5 Confederação Brasileira do Trabalho - a que se constituir por federações operárias e - Confederação


Nacional da Indústria e Comércio - a que se constituir por federações patronais.
6 Conceito: Art. 1º Entende-se por convenção coletiva de trabalho e ajuste relativo às condições
do trabalho, concluído entre um ou vários empregadores e seus empregados, ou entre sindicatos
ou qualquer outro agrupamento de empregadores e sindicatos, ou qualquer outro agrupamento
de empregados.

749
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Desta forma, vivendo-se um período ditatorial, as liberdades sociais foram


restringidas e, consequentemente, os movimentos grevistas foram tidos pelo go-
verno como “recursos antissociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatí-
veis com os superiores interesses da produção nacional.” (Martins, 1986, p. 28)
Durante esse governo, em 1943, foi criada a CLT – Consolidação das Leis do
Trabalho, o primeiro conjunto de normas destinado a legislar as relações entre
empresa, empregado e sindicato nacionais.
Em 1946, ocorreu o período da redemocratização do país, promulgando-
-se a Constituição datada do mesmo ano, a qual tratando sobre a organização
sindical, no seu artigo 159, manteve o entendimento quanto a liberdade de
associação e a necessidade de regulação legal sobre a forma de constituição, da
representação legal nas convenções coletivas de trabalho pelos sindicatos.
E como medida da retomada dessa democracia, o Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias, no artigo 28, concedeu anistia a todos os cidadãos que
até a promulgação desse Ato eram considerados “insubmissos ou desertores”
e “igualmente aos trabalhadores que tenham sofrido penas disciplinares, em
consequência de greves ou dissídios do trabalho”.
Um importante marco para a criação de uma central sindical nacional ocor-
reu durante o 3º Congresso Sindical, realizado no Rio de Janeiro em 1960. Nes-
se Congresso, apresentou-se a ideia de alterar o sistema e a estrutura sindical, de
liberdade sindical, buscar relacionamento com outros movimentos sindicais do
mundo, a criação de um organismo nacional que coordenasse os trabalhadores
em todo país (Martins, 1986, p. 37). Como resultado desse movimento, surgiu
o CGT – Comando Geral dos Trabalhadores, em 1962, todavia sem apresentar
os anseios do congresso mencionado.
A partir de 1964, o Brasil passaria a viver por mais de 20 anos sob a égide
de governos militares e, como consequência deste período, muitos sindicatos
sofreram intervenções. O ápice do intervencionismo ocorreu com a decretação
do Ato Institucional nº 5, segundo o autor Milton Martins, “passou o Governo
a dispor de poderes absolutos para impedir quaisquer manifestações julgadas
contrárias à segurança nacional” (Martins, 1986, p. 77).
Nesse diapasão, em 1967, mesmo diante de uma grande articulação repressiva
as entidades sindicais, surgiu o MIA – Movimento Intersindical Anti-Arrocho,
formado por lideranças sindicais mais agressivas reivindicando por melhores
salários e condições de trabalho (Martins, 1986, p. 48). Com a redemocratização,

750
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

em 1985, por decisão governamental consideraram-se reabilitados para a vida


sindical aqueles dirigentes cassados, por greves consideradas ilegais.
Um importante aspecto quanto a formação dos sindicatos sob o amparo
legislativo é o sistema de unicidade sindical, o qual vigora no país desde 1930
até os dias atuais, com a Constituição de 1988, disposto em seu artigo 8º, inciso
II, postulando-se a vedação a formação de mais de uma organização sindical
na mesma base territorial, a qual não pode ser inferior à área de um Município.
Com a Constituição de 1988, nota-se a solidificação do sindicato como en-
tidade de imprescindível importância nas relações de trabalho para a defesa dos
interesses individuais e coletivos, seja no âmbito judicial como no administrati-
vo, previsão do art.8º, III.
Outra medida significativa, apresentada por essa Constituição, foi que
se retirou do Estado o controle político-administrativo sobre os sindicatos;
extinguindo-se, por consequência, a comissão de enquadramento sindical
do Ministério Público do Trabalho e Emprego. Dando base, conforme o
ministro Godinho Delgado, a um dos princípios assecuratórios da existência
do ser coletivo obreiro, o Princípio da Autonomia Sindical, que de acordo
com suas palavras significa:

a garantia de autogestão às suas organizações associativas e sindicais


dos trabalhadores, sem interferências empresariais ou do Estado.
Trata ele, portanto, da livre estruturação interna do sindicato, sua
livre atuação externa, sua sustentação econômico-financeira e sua
desvinculação de controles administrativos estatais ou em face do
empregador (Delgado, 2012, p. 1332).

A Constituição vigente ampliou os direitos das entidades sindicais, como


por exemplo, no artigo 8º, caput, assegurou-se a liberdade de associação profis-
sional ou sindical; e no mesmo artigo, em seu inciso VI, tornou obrigatória a
participação dos sindicatos nas negociações coletivas.
No artigo 7º, VI, apesar de primar pela irredutibilidade salarial, pode
haver disposição contrária disposta em convenção ou acordo coletivo; a
proteção a duração da jornada de trabalho não superior a oito horas diárias
e quarenta e quatro semanais, facultando-se a compensação de horários
e a redução da jordana, através, novamente, de acordo ou convenção de
trabalho, inciso XIII do artigo 7º; a definição da jornada de seis horas
para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo

751
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

negociação coletiva, artigo 7º, XIV; e o reconhecimento das convenções e


acordos coletivos de trabalho, pelo artigo 7º, XXVI.

2. Os elementos norteadores do princípio da proteção


do trabalhador contra a despedida imotivada
O Direito do Trabalho é o ramo jurídico que visa, entre outros aspectos,
disciplinar as relações entre empregados e empregadores, sujeitos que não se
relacionam apenas no âmbito individual, mas também de forma coletiva, como
a sua representação por sindicatos.
Entretanto, diferentemente dos outros ramos do Direito, este se fundamenta
na proteção ao trabalhador, por entender que há uma disparidade econômica
entre as partes envolvidas. Um dos elementos chaves da relação de emprego é a
subordinação do empregado ao empregador. Alice Monteiro de Barros, citando
Salvatore Hernandez, aduz que o Direito do Trabalho é:

todo centralizado no princípio da tutela “compensatória” ao trabalhador


subordinado, que consiste num conjunto de normas estabelecidas para
contrabalançar a posição superior do empregador não apenas de fato,
mas também juridicamente reconhecida e normativamente sustentada
(HERNANDEZ, Salvatore apud BARROS, op. cit., p. 122).

Pensando nisso, criou-se um ordenamento juslaboral, norteado pelo Princí-


pio da Proteção, que visa atenuar os prejuízos que essa desigualdade pode gerar
na ordem prática. Segundo Alice Monteiro de Barros esse princípio fundamen-
ta mais dois princípios, o da norma e da condição mais favoráveis.
O Princípio da Norma Mais Favorável, ainda sob o olhar da autora, é aque-
le que autoriza a aplicação de uma norma, independentemente da sua hierar-
quia, quando houver mais de duas normas passíveis de serem apostas ao objeto,
preferindo-se a que se mostrar mais favorável ao empregado ((HERNANDEZ,
Salvatore apud BARROS, op. cit., p. 122).
Já o Princípio da Condição Mais Benéfica está voltado à proteção de
situações mais favoráveis incorporadas ao patrimônio do empregado, previs-
tos em seu contrato, e que não poderão ser retiradas pelo advento de nova
norma menos benéfica.

752
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O reconhecimento da hipossuficiência do trabalhador não se encontra ape-


nas enquanto indivíduo, é de se ressaltar que ela igualmente se aplica na posi-
ção coletiva dos trabalhadores. Um dos reflexos dessa condição hipossuficiente
é traduzida pelo Princípio da Interveniência Sindical na Normatização Cole-
tiva, em que a validade do processo negocial coletivo submeta-se à necessária
intervenção do ser coletivo institucionalizado obreiro, o sindicato.
Nesse ínterim, Delgado aduz que referido princípio apresentou o escopo
de assegurar a existência de equivalência entre os sujeitos contrapostos. Evi-
tando-se “a negociação informal do empregador com grupos coletivos obrei-
ros estruturados apenas de modo episódico, eventual, sem a força de uma
institucionalização democrática como a propiciada pelo sindicato” (Delgado,
2012, p. 1335). Essa premissa, então, parte justamente da discrepância entre a
autoridade do empregador em face dos empregados, ainda que coletivamente
agindo, na intenção de protegê-los.
Nesse esteio, verifica-se, atualmente, que na vigência dos contratos de traba-
lho buscou-se a proteção do trabalhador com a exação de rol taxativo de direitos
passíveis de negociação coletiva, exposto no artigo 611-A da CLT; e os direitos
proibidos de serem negociados, com base no artigo 611-B da CLT. Inclusive, essas
negociações com força suficiente para se sobreporem ao disposto na lei.
Contudo, esta mesma proteção desaparece quando da possibilidade de de-
missão coletiva, a qual deveria igualmente ser considerada item primordial para
a negociação coletiva. Porém a lei, expressamente, dispõe não haver a necessi-
dade de autorização prévia de entidade sindical ou a celebração de negociação
coletiva para sua efetivação quando se tratarem de demissões individuais, cole-
tivas ou plúrimas, nos termos do artigo 477-A da CLT.
Há, diante dos dispositivos legais citados, uma mitigação da proteção nor-
teadora do Direito do Trabalho, especialmente, no tocante as demissões coleti-
vas. Situação que antes da Lei 13.467, de 2017, era refutada por entendimento
sedimento pelo Tribunal Superior do Trabalho, como se pode verificar adiante.

3. A atuação dos sindicatos nas demissões em massa


antes da reforma trabalhista
Antes de adentrar no cerne da presente investigação científica, é salutar
retomar a importância dos sindicatos durante os contratos de trabalho, como

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

por exemplo, a sua participação obrigatória nas negociações coletivas, tratativas


entre empregados e empregadores. Para só então, ser explanado o papel dos
sindicatos no fim da relação contratual, culminando a sua extinção e, especial-
mente, quando se tratarem das dispensas em massa.
O doutrinador e ministro Maurício Godinho Delgado postula que os sindi-
catos são

entidades associativas permanentes, que representam trabalhadores


vinculados por laços profissionais e laborativos comuns, visando tratar
de problemas coletivos das respectivas bases representadas, defendendo
seus interesses trabalhistas e conexos, com o objetivo de lhes alcançar
melhores condições de labor e vida (Delgado, 2012, p. 1345).

Conforme o Ministro, a atuação dos sindicatos, reconhecidos como o cerne


do Direito Coletivo do Trabalho, é considerada “uma das mais significativas
garantias alcançadas pelos trabalhadores em suas relações com o poder empre-
sarial” (Delgado, 2012, p. 1335).
Para o doutrinador, o Direito Coletivo do Trabalho é o conjunto de nor-
mas e princípios reguladores das relações entre os seres coletivos trabalhis-
tas: os trabalhadores, representados pelas entidades sindicais, e os entes
empresariais, os quais atuam isoladamente, ou por meio de seus sindicatos
(Delgado, 2012, p. 1344).
Destarte, a atuação dos sindicatos nas Negociações Coletivas, que hoje se
desmembram em dois modos de atuação, a Convenção Coletiva de Trabalho e o
Acordo Coletivo de Trabalho. Essas negociações são de importância reconheci-
da pelo ordenamento jurídico pátrio com a ratificação da Convenção nº 154 da
Organização Internacional do Trabalho, em 1981, que versa sobre o incentivo
a negociação coletiva.
A definição apresentada pela Convenção nº 154 sobre negociação coleti-
va, no seu artigo 2º, compreende que são todas as negociações entre emprega-
dor, individualmente ou coletivamente, e organizações de trabalhadores, com
a finalidade de fixar condições de trabalho, regular as relações entre as partes,
como também, entre esses e as suas organizações.
Segundo Amauri Mascaro Nascimento, a Convenção nº 154 da OIT, que tem
por finalidade fomentar a utilização das negociações coletivas, juntamente com
as convenções 98 e 151, trouxe o que ele chamou de Princípio da Negociação

754
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Coletiva “consubstanciado na noção de autonomia privada coletiva, o que


pressupõe a não intervenção estatal”. (Nascimento, Nascimento, 2014, p.1298).
Na esteira dessas decisões legais tomadas pelo ordenamento jurídico pá-
trio, em relação ao papel dos sindicatos nas relações entre empregados e os
empregadores, verifica-se o incentivo à autocomposição entre os particulares
da relação de trabalho. Deste modo, busca-se ressaltar que o valor da atuação
sindical não deve se limitar as prerrogativas na vigência dos contratos de tra-
balho, mas é necessária, também, ter participação no momento mais crítico
do contrato de trabalho, a sua extinção.
Nesse sentido, em 2009, a empresa Embraer, de São José dos Campos/SP,
dispensou aproximadamente 4 mil trabalhadores, sem um acordo com o sin-
dicato dos trabalhadores. Esse caso, antes de chegar ao Tribunal Superior do
Trabalho, passou pelo Tribunal Regional Federal da 15ª Região (Campinas-
-SP), onde se transformou em dissídio coletivo, julgado procedente em parte,
declarando-se abusiva a dispensa coletiva, por ausência de negociação coletiva
com o sindicato obreiro (Melo, 2018).
O Tribunal Superior do Trabalho, ao apreciar o tema da demissão em massa,
em sede de dissídio coletivo, teve como relator o ministro Maurício Godinho
Delgado, e este entendeu ser cogente a participação dos sindicatos nesse tipo de
extinção contratual. Então, por decisão da maioria dos votos, acompanhando
o voto do Ministro Relator, fixou a Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal
Superior do Trabalho, a premissa de que a negociação coletiva é imprescindível
para a dispensa em massa de trabalhadores.7
O próprio Ministro, Godinho Delgado, analisando a sua decisão, dispôs que
“submeter à negociação coletiva trabalhista, apta a lhes atenuar os drásticos
efeitos sociais e econômicos”8. Pois se deve tratar as dispensas individuais e
as dispensas coletivas de maneira distinta, visto que estas atingem um campo
maior que apenas um indivíduo, elas são “social, econômica, familiar e comuni-
tariamente impactantes”.9

7 TST-RODC 309/2009-000-15-00.4. Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado. Seção de 10.8.2009


(DEJT de 4.9.2009)
8 DELGADO, op. cit., p. 1137.
9 TST-RODC 309/2009-000-15-00.4. Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado. Seção de 10.8.2009
(DEJT de 4.9.2009).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

No trecho a seguir, da Ementa proferida nesse dissídio, tem-se enaltecido o


papel do Estado Democrático de Direito,

Na vigência da Constituição de 1988, das convenções internacionais


da OIT ratificadas pelo Brasil relativas a direitos humanos e, por
consequência, direitos trabalhistas, e em face da leitura atualizada
da legislação infraconstitucional do país, é inevitável concluir-se pela
presença de um Estado Democrático de Direito no Brasil, de um regime
de império da norma jurídica (e não do poder incontrastável privado), de
uma sociedade civilizada, de uma cultura de bem-estar social e respeito
à dignidade dos seres humanos, tudo repelindo, imperativamente,
dispensas massivas de pessoas, abalando empresa, cidade e toda uma
importante região. Em consequência, fica fixada, por interpretação da
ordem jurídica, a premissa de que – a negociação coletiva é imprescindível
para a dispensa em massa de trabalhadores.10

Dessa forma, fundamentando a necessidade da participação sindical nas


despedidas em massa, apresenta os seguintes argumentos baseados no respeito
a normas constitucionais e infraconstitucionais, além dos diplomas internacio-
nais ratificados pelo Brasil, como as Convenções da Organização Internacional
do Trabalho. Em consonância a todo esse aparato normativo impede-se atu-
ação unilateral e potestativa do empregadores nas dispensas coletivas “por se
tratar de ato/fato coletivo, inerente ao Direito Coletivo do Trabalho, e não Di-
reito Individual, exigindo, por consequência, a participação do(s) respectivo(s)
sindicato(s) profissional(is) obreiro(s).”11
É imperioso, portanto, conforme suscitado pelo ministro, travar uma distin-
ção normativa entre as dispensas individuais e as demissões em massa, em razão
dos efeitos desta atingirem uma amplitude social mais impactante. Exigindo-se,
nestes casos, a participação do sindicato.
Em contraposição a essa linha protecionista da Justiça do Trabalho, em
meio à crise política e econômica, foi permitido Congresso Nacional, tomado
pelos anseios da classe empresária em abrandar os direitos trabalhistas anga-
riados ao longo do tempo, a aprovar a Lei 13.467/2017, a Reforma Trabalhista.

10 TST-RODC 309/2009-000-15-00.4. Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado. Seção de 10.8.2009


(DEJT de 4.9.2009).
11 TST-RODC 309/2009-000-15-00.4. Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado. Seção de 10.8.2009
(DEJT de 4.9.2009).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Essa norma nasce em contexto semelhante ao vivido entre o fim da década


de 1980 e início dos anos 1990, em meio à crise econômica, enquanto na
plataforma mundial ocorria a “queda” do bloco soviético, circunstancias que
levaram a atuação sindical a um retrocesso. Como se pode depreender das
palavras de Ricardo Antunes:

nos últimos anos da década de 1980, acentuava-se as tendências


econômicas, políticas e ideológicas que inseriam o nosso sindicalismo na
onda regressiva. A automação, a robótica e microeletrônica, desenvolvidas
dentro de um quadro recessivo intensificado, deslanchavam um
processo de desproletarizaçao de importantes contingentes operários,
de que a indústria automobilística é um forte exemplo. As propostas
de desregulamentação, de flexibilização, de privatização acelerada, de
desindustrialização tiveram, no neoliberalismo do projeto Collor, forte
impulso (ANTUNES, 1995, p. 134).

Sob a égide de governos neoliberais, os países capitalistas passaram por uma


reestruturação produtiva, aplicando-se as políticas de enxugamento do estado,
privatização acelerada, o fim do “bloco socialista”, os países capitalistas suces-
sivamente retiram os direitos e as conquistas sociais dos trabalhadores, dada a
“inexistência” do perigo de outrora, o socialismo (Antunes, 2000, p. 40).
Em busca de suavizar os efeitos da crise econômica, o discurso da política
neoliberal ganha espaço mais uma vez no Brasil e, como consequência, passa-se
a uma progressiva diminuição da proteção ao trabalhador, reduzindo a atuação
sindical em situações cruciais da relação de trabalho, como a dispensa em massa.

4. Os atuais parâmetros demissionais instituídos pelo


artigo 477-A, da Consolidação das Leis do Trabalho
A Lei nº 13.467, que veio para regular a vigente legislação trabalhista, em
2017, trouxe o artigo 477-A da CLT, segundo o qual exara haver equiparação,
para todos os fins, entre as dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coleti-
vas e que não é preciso autorização prévia de entidade sindical ou de celebração
de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação.
Ainda que não haja uma definição legal de dispensa coletiva e plúrima,
alguns autores apresentam uma conceituação aos institutos, dentre eles Vólia

757
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Bomfim Cassar e Leonardo Dias Borges. Os autores, em obra que tece comen-
tários à reforma trabalhista, ao tratarem do artigo 477-A da CLT, atribuem
que a dispensa coletiva ou em massa decorre de um único ato do emprega-
dor, rompendo-se o vínculo empregatício com uma gama de empregados pelo
mesmo motivo: redução do número de empregados, geralmente ocorre em
momentos de dificuldades financeiras atravessados pela empresa e tende-se
a retomar o quadro anterior à medida em que houver a melhora econômica
(Borges, 2018, p. 88).
Quanto a dispensa plúmira não decorre, segundo os autores, de um único
motivo, mas gera a despedida de um grande número de empregados e, por vezes,
essa despedida não é determinada por um único ato ou dia, sendo realizada
dentro de um período. Ambas as despedidas passaram, portanto, a fazer parte
do poder potestativo do empregador (Borges, 2018, p. 89).
Desse modo, a nova regulação normativa vai de encontro com a decisão do
Tribunal Superior do Trabalho, do ano de 2009, não apenas por tornar pres-
cindível a atuação sindical nas dispensas imotivadas, mas também, por igualar
a demissão individual com a coletiva. Uma distinção claramente necessária do
ponto de vista do ministro Godinho Delgado.
Nesse largo, o mencionado artigo já era alvo de análise desde quando estava
no Projeto de Lei 38/2017, salientando-se que o mesmo não sofreu nenhuma al-
teração com a promulgação da Lei 13.467/2017. Dessa forma, o juiz do trabalho,
Jorge Luiz Souto Maior, aponta a controvérsia dos argumentos sustentados para
a aprovação da reforma trabalhista, de modo que a nova lei visava a criação de
empregos, porém em sentido oposto trouxe em seu projeto de lei, especialmente
no artigo 477-A da CLT, dispositivo que não garante o emprego de quem estava
empregado (Maior, 2018).
Outra contradição do projeto de lei, apontada pelo magistrado Souto Maior,
é que se por um lado afirmava-se que haveria um aumento da força negocial dos
sindicatos, por outro, um dispositivo, como o artigo 477-A, torna dispensável a
participação dessas entidades, quando já havia sido pacificado o entendimento
da sua obrigatoriedade (Maior, 2018).
Souto Maior finaliza sua análise ao artigo supra, destacando que:

com essa menção expressa à possibilidade ampla e ilimitada da ameaça


de dispensas coletivas confere-se ao empregador um poder tal que
inviabiliza totalmente a retórica de que a liberdade na negociação

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

coletiva, trazida na “reforma”, tenha sido para ampliar direitos dos


trabalhadores (Maior, 2018).

Com a edição da Lei 13.467/2017, e a manutenção integral do art. 477-A,


o juiz Jorge Luiz Souto Maior, mantendo seu entendimento, vê que esse artigo
concedeu um poder irrestrito ao empregador para dispensar seus empregados,
individualmente ou coletivamente, sem precisar do respaldo dos órgãos de pro-
teção ao trabalhador. Mas é preciso avaliar essa “liberalidade” normativa por
uma ótica maior, visto que “o emprego e, consequentemente, o desemprego,
vistos no contexto da lógica do Estado Social, são questões de ordem pública e
a atividade empresarial está vinculada aos seus fins sociais, fixados constitucio-
nalmente” (Maior, 2018).
Nesse mesmo sentido, ao analisar as modificações com advento da Lei
13.467/2017 quanto a atuação dos sindicato, Marcelo Melek em artigo para o
periódico do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, assinala que o atual
tratamento dado pela norma é contrário ao entendimento do Tribunal Superior
do Trabalho, pois, afirma que a negociação coletiva nas demissões em massa é
necessária para “mitigar os efeitos dessas demissões, de inegável impacto social”
(Melek, 2017), de modo que a critica a nova legislação por não desenvolver
meios alternativos para a negociação no momento em que o empregador ten-
cione realizar dispensas em massa, motivo pelo qual a única alternativa possível
consiste no ato demissional privilegiando o capital e trazendo graves impactos
sociais e econômicos (Melek, 2017).
Portanto, a exclusão do sindicato laboral nesse processo tende a enfraquecer
e diminuir a atuação sindical, deixando os trabalhadores ainda mais vulnerá-
veis no difícil momento da demissão.
Nessa esteira de análises dos novos comandos normativos da Lei
13.467/2017, o Desembargador do TRT da 1ª região, Enoque Ribeiro dos San-
tos, em artigo publicado sobre a dispensa coletiva na nova legislação, retoma
a necessidade de a concepção sobre dispensa coletiva ser distinta da dispensa
individual, visto que a demissão coletiva é um instituto do Direito Coletivo do
Trabalho e que “ vige neste ramo do Direito, como objeto, os direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos, e os direitos mais elevados da dignidade
humana” (Santos, 2017).
Acrescenta o dever de proteção na dispensa coletiva, indicando como ponto
de partida o interesse público primário de proteção especial de modo a conver-

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

gir toda a sociedade ao cumprimento deste interesse e a necessária participação


dos legitimados como o Ministérios Público do Trabalho na proteção dos direi-
tos sociais indisponíveis do trabalhador (Santos, 2017).
É cediço, diante das palavras do Desembargador, observar que a dispen-
sa coletiva passa do estágio da relação privada para proteção do interesse
público, de tal modo que torna essencial a proteção dos direitos sociais in-
disponíveis dos trabalhadores.

5. A atuação da negociação coletiva a partir do artigo


611-A, da Consolidação das Leis do Trabalho
A Carta Magna, de 1988, sedimentou a imprescindibilidade da atuação das
entidades sindicais nas questões pertinentes às relações de trabalho, conforme
o artigo 8º, VI. Dentre os poderes e direitos dos sindicatos, já mencionados, há
previsão para a defesa dos interesses individuais e coletivos, seja no âmbito ju-
dicial, como no administrativo e o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico,
das negociações e dos acordos coletivos.
Nessa senda, em razão da normatização constitucional, a doutrina estabe-
lece princípios basilares de concepção das entidades sindicais, enquanto entes
autônomos, como o princípio livre associação, em que ninguém está obrigado a
filiar-se ou permanecer filiado; e o já citado, princípio da interveniência sindical
na normatização coletiva.
A relevância da Negociação Coletiva, pelas palavras de Godinho Delga-
do, é de que se trata de “um dos mais importantes métodos de solução de
conflitos existentes na sociedade contemporânea” (Delgado, 2012, p.1387).
Essa prerrogativa, assimilada pelo direito brasileiro, tem por escopo gerir os
interesses profissionais e econômicos das categorias obreira e empresarial,
com significativa relevância social.
No direito pátrio, a Negociação Coletiva bifurca-se em Convenção Coletiva
de Trabalho (CCT) e Acordo Coletivo de Trabalho (ACT). Nesse sentido, a
perspectiva do ministro Godinho Delgado sobre a CCT é de que ela cria regras
jurídicas e cláusulas contratuais.
As regras jurídicas, então, são regras gerais, abstratas e impessoais, as quais
geram direitos e obrigações que passarão a integrar os contratos individuais de
trabalho. Já as cláusulas contratuais, também criam direitos e obrigações, mas

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

estão voltadas para as partes convenentes, ou seja, o sindicato obreiro e a em-


presa (Delgado, 2012, p.1402).
Os sujeitos legitimados para as tratativas negociais por parte da categoria
econômica, os empregados, sempre serão representados pelos sindicatos, já por
parte das empresas, essas podem ou não ser representadas pelo sindicato, nas
CCTs, ou se autorrepresentarem, nos ACTs.
É importante ressaltar o caráter dinâmico que possui o acordado em nego-
ciação coletiva, pois conforme artigo 164, §1º da CLT, não poderá ser estipulada
duração de prazo superior a dois anos; assim como, não pode haver sua ultra-
tividade. Como também, a possibilidade de prorrogação, revisão, denúncia ou
revogação total ou parcial, com base no artigo 165 da CLT, estão subordinados
à aprovação de Assembleia Geral dos Sindicatos convenentes ou partes acor-
dantes, com observância do disposto no artigo 612, CLT. Esse artigo supracita-
do, traz no seu escopo os limites em que dar-se-á a celebração das negociações
coletivas por parte dos sindicatos.
Com o advento da Lei nº 13.467/2017 e, posterior regulação pela Medida
Provisória nº 808, inseriram-se diversos dispositivos normativos na CLT,
outros foram alterados e alguns suprimidos. Dentre as inovações, apresenta-
das pela legislação, está o caput do artigo 611-A, em rol taxativo e extensivo,
prevendo que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho poderão
prevalecer sobre a legislado.
Deve-se, todavia, observar os incisos III e VI do art. 8º, da CF/88, inseridos
pela Medida Provisória nº 808, que alterou dispositivos trazidos pela Lei nº
13.467, de 2017. Entretanto, em 23 de abril de 2018, a referida Medida Provi-
sória perdeu a vigência e, consequentemente, suprimiu-se do texto do artigo
611-A o expresso dever de se observar os incisos III e VI do 8º da Constituição
Federal. Em que pese o ocorrido, todo o ordenamento jurídico pátrio precisa ser
analisado pelo viés das normas constitucionais.
Nesse sentido, Vólia Bomfim e Leonardo Borges, ao analisarem a alte-
ração proposta pela Medida Provisória, vislumbraram que a inserção dos
incisos constitucionais foi apenas para reafirmar o disposto na Lei Maior,
como resultado da reivindicação por parte dos sindicatos, em face do receio
que estes tinham quanto a possibilidade de intervenção de outros entes ou
da comissão de empregados nas negociações coletivas. Mas, como afirmam
os autores, tal previsão era desnecessária visto que as convenções coletivas

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

são produzidas por sindicatos e os acordos coletivos, pelos sindicatos pro-


fissionais (Borges; Cassar, 2018, p. 108).
Desse modo, a mera supressão dos incisos constitucionais no artigo da CLT,
não permite a inobservância do disposto na Constituição Federal, assim, per-
manecendo-se a previsão de defesa dos interesses coletivos ou individuais da
categoria obreira pelo sindicato, como igualmente, a obrigatória participação
dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho.
Pela ótica de Marcelo Melek, em artigo supramencionado, ao analisar os pa-
rágrafos deste artigo, no parágrafo primeiro há uma busca legislativa em afastar
a atuação do judiciário quanto ao pactuado em negociações coletivas. O Judici-
ário, assim, conforme o parágrafo, o qual remete ao disposto no artigo 8º, §3º,
da mesma lei, “analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essen-
ciais do negócio jurídico” (Melek, 2017), isto é, às disposições do Código Civil,
e delimitará sua atuação pelo Princípio da Intervenção Mínima na Autonomia
da Vontade Coletiva, concluindo que

o objetivo do legislador não foi de fortalecer a atuação sindical, mas sim


de tornar imutável o negociado, inclusive por sindicatos enfraquecidos
e com pouco ou nenhum poder negocial, vedando o Poder Judiciário
de analisar cláusulas supostamente ilegais, limitando-o a uma análise
meramente formal (Melek, 2017).

Nesse sentido, Ricardo Antunes, ao remeter-se a crise da década de 1990 atin-


giu também diretamente os organismos de representação dos trabalhadores, como
os sindicatos que “foram forçados a assumir uma ação cada vez mais defensiva,
cada vez mais atada à imediatidade, à contingência, regredindo sua já limitada
ação de defesa de classe no universo capitalista”.(Antunes, 1995, p. 131)

Considerações finais
Perseguindo seu escopo inicial, o presente trabalho permitiu a exposição de
questões pontuais relativas à inovação legislativa trabalhista. Compreendendo-
-se que a edição dessa lei se deu em meio a um cenário econômico de crise
e instabilidade política, em que os seus idealizadores afirmavam buscar uma
flexibilização da estrutura da relação de emprego para promover um aumento
de postos de trabalho, parece-nos temerária suas repercussões no que atine à

762
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

manutenção de garantias constitucionalmente erigidas.Nessa perspectiva, me-


rece destaque, ainda, a ampliação da atuação das negociações coletivas, expres-
samente tratada no artigo 611-A da CLT, afirmando-se que os direitos regulados
por negociação podem vir a se sobrepor ao disposto em lei.
Mas restou notável que, de outro modo, a norma veio a fragilizar a proteção
ao trabalhador, em especial nas demissões em massa, por expressamente em
seu artigo 477-A, postular não haver necessidade de participação da negociação
coletiva, a qual é reconhecida como um instituto que buscaria nessas situações
amenizar os impactos da extinção contratual de trabalho e a proteção dos direi-
tos adquiridos ao longo da relação laboral.
Partindo-se de uma comparação entre a atuação sindical antes e após a
reforma, aferiu-se uma situação ainda mais contraditória e, ao mesmo tempo, a
não proteção ao trabalhador, de modo a afrontar o entendimento do Tribunal
Superior do Trabalho, alçado desde o ano de 2009, pela imprescindibilidade da
negociação coletiva nas demissões em massa.
Restou evidente a preocupação dos Organismos Internacionais de proteção
do trabalhador, principalmente, em razão dos novos dispositivos legais delegar
um grande poder delegado as negociações coletivas. Visto que a atuação dessas
negociações deve se referir a circunstâncias limitadas e por razões específicas,
quando afastarem disposições legais. Nessa esteira, é possível concluir, diante
do que se pôde discutir com a presente pesquisa, que a inovação legal trouxe
alterações in pejus ao trabalhador, com a consequente fragilização do Princípio
da Proteção ao permitir que no momento da dispensa do empregado, este esteja
em condições de igualdade com seu empregador, uma vez que não é necessária
a autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coleti-
va ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação.
Tal disposição normativa parece ir de encontro aos princípios que fundam
o Direito do Trabalho, notadamente ao reconhecimento da própria posição hi-
possuficiente do trabalhador, o que nos conduz a questionar quais interesses,
efetivamente, foram satisfeitos com a sua edição.

Referências bibliográficas

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765
Lei Nº 13.467/2017: limites e possibilidades
a direitos fundamentais de mulheres
transexuais e travestis brasileiras

Dandara da Costa Rocha1


Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes2

Introdução
Dentre as medidas propostas pelo legislativo brasileiro pós-golpe parla-
mentar de 2016, o qual destituiu a presidenta eleita Dilma Rousseff da pre-
sidência da República, a chamada Reforma Trabalhista, disposta na lei nº
13.467/2017, foi responsável por alterações no Decreto-lei nº 5.452, de 1º de
maio de 1943, intitulado Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Nesse
sentido, é possível apontar que as relações de capital vs. trabalho assalariado
foram alteradas em dispositivos legais.
Diante dessas modificações, apontar-se-á que direitos fundamentais e so-
ciais foram postos em xeque com a Reforma Trabalhista. A relação jurídica
da burguesia (detentora dos meios de produção) com a classe trabalhadora
(detentora unicamente da força de trabalho como mercadoria capaz de ser
trocada por um salário) foi flexionada a ponto de aprofundar juridicamente o
ataque a direitos conquistados historicamente, como férias, jornada de traba-
lho, remuneração e plano de carreira.
A partir disso, objetiva-se analisar neste artigo, de forma geral, de que forma
os dispositivos da lei nº 13.467/2017 ferem os direitos fundamentais e sociais,

1 Autora. Estudante da graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA)


– campus Mossoró. Membra do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina
(GEDIC). Email: [email protected]
2 Coautora. Estudante da graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido
(UFERSA) – campus Mossoró. Membra do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e
América Latina (GEDIC). Email: [email protected]

767
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

potencializando a condição de exclusão das mulheres transexuais e travestis


do mercado de trabalho; e especificamente objetiva-se: (1) trabalhar teorias e
oposição entre patriarcado e gênero, uma vez que a transexualidade escancara
a disputa desses conceitos; (2) depreender, a partir de bibliografia marxista, a
interpelação dos conceitos de classe trabalhadora, trabalho e direito; (3) apre-
sentar dados sobre pessoas transexuais no mercado de trabalho, a partir da qual
deve ser construída uma crítica teórica; e (4) analisar de forma circunscrita dis-
positivos da lei nº 13.467/2017 que violam direitos fundamentais e sociais. Nas
considerações finais, discorre-se acerca de como a proposição da Reforma Tra-
balhista pode implicar social e juridicamente na vida da população transexual.
Dessa forma, toma-se como fundamentação teórica tanto textos legais
(como a Carta Maior de 1988 e a Lei nº 13.467/2017) e teóricos como leituras
de cunho sociológico e filosófico acerca da transexualidade. Porém, é preciso
ter em vista que a referida lei tem (até o momento de construção deste artigo)
pouco mais de um ano, sendo assim o referido trabalho limita-se a fazer uma
crítica sobre os riscos formais tal diploma, e do aprofundamento de violações de
direito de mulheres transexuais e travestis.
Por fim, a natureza deste artigo se propõe a combinação qualitativa e quan-
titativa, uma vez que se pretende compreender as condições de mulheres tran-
sexuais e travestis a partir de dados de sua presença no mercado de trabalho
brasileiro. A metodologia, por fim, é analítica e jurídica de base qualitativa, ou
seja, o que se espera é compreender quais as consequências formais e, principal-
mente, materiais para as pessoas transexuais no âmbito do mercado de trabalho
pós Lei nº 13.467/2017.

1. Patriarcado, trabalho e direito


O direito não é um fenômeno isolado do conjunto da sociedade capaz de ser
acessado somente por meio da neutralidade axiológica. Pelo contrário; ensina
Pachukanis (2017, p. 117) que “toda relação jurídica é uma relação entre sujei-
tos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisí-
vel, que não pode mais ser decomposto”. Sendo assim, é possível apontar que
existem diferentes consequências de uma lei da proporção tamanha da Reforma
Trabalhista para os mais diversos sujeitos.

768
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

1.1. Trabalho e classe trabalhadora


A necessidade de interação do homem com a natureza por meio do trabalho
é o processo de humanização e tomada de consciência de ser o único animal
capaz desse processo, diferentemente de outros animais (MARX, 2013, p. 327),
sendo esse um processo educativo (SAVIANI, 2007, p. 154). Na compreensão
de Marx (2008, p. 326-7):

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza,


processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e
controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria
natural como com uma potência natural. A fim de se apropriar da matéria
natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento
as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas,
cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio
desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza.

Dito isso, é possível apontar uma histórica divisão do trabalho pautada na


diferença sexual, mantida pelo patriarcado como sistema de dominação-explo-
ração ideológico (SAFFIOTI, 2004, p. 106), ficando a cargo de homens e mu-
lheres funções divergentes e propulsoras de estereótipos que se cristalizaram
também na materialidade do mundo do trabalho.
Para o autor alemão, não seria possível, pois, aos seres humanos de deter-
minada época, marcada por determinadas relações sociais, mudar o legado do
passado, mas sim lidar com os desafios para o futuro (MARX, 2011, p. 25).
Dessa forma, o trabalho, com o processo de apropriação do modelo capitalista,
foi ressignificado historicamente, e transformado em mercadoria privada.
Ao passo que o sistema capitalista se ressignifica, novos e complexos ele-
mentos são introduzidos nas relações de produção “com a valorização do mundo
das coisas”, fazendo com que o trabalhador se torne “tanto mais pobre quanto
mais riqueza produz, quanto mais sua produção aumenta em poder e extensão”
(MARX, 2010, p. 80). Ou seja, mesmo que a construção da história se dê de for-
ma autônoma por parte dos seres humanos, a exploração da classe trabalhadora
pelo sistema capitalista é inegociável, ou, mais ainda: é essencial. Dessa forma,
dirá Marx (op. cit., p. 83): “Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o
homem (o trabalhador) só se sente livre e ativo em suas funções animais, comer,
beber e procriar, (...) e em suas funções humanas só [se sente] como animal”.

769
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

No capitalismo, ser classe trabalhadora, significa, então, estar condicionada


a uma privação hereditária de propriedade dos meios de produção (ENGELS;
KAUTSKY, 2012, p. 20). E, sendo assim,

Só pode conhecer plenamente essa condição se enxergar a realidade das


coisas, sem as coloridas lentes jurídicas. A concepção materialista da história
de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida,
demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas,
filosóficas, religiosas etc. – derivam, em última instância, de suas condições
econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos. Está
posta com ela a concepção de mundo decorrente das condições de vida
e luta do proletariado; à privação da propriedade só podia corresponder a
ausência de ilusões na mente dos trabalhadores (idem, p. 21).

Diante disso, evidenciou-se que o trabalho em si, ou seja, no capitalismo e


como aspecto antológico do homem, não é animalesco, mas sim a prática que
define o ser humano enquanto tal.

1.2. Direito e patriarcado


Pachukanis (2017, p. 85, grifos nossos) compreende “a relação jurídica” como,
“para usar um termo de Marx, uma relação abstrata, unilateral; nessa unilatera-
lidade, ela se revela não como resultado racional da mente de um sujeito, mas
como produto do desenvolvimento da sociedade”. Nessa encontram-se (não de
forma pacífica) questões transversais que influem diretamente na vida de seres
humanos, que são, pois, disputas decorrentes da luta de classes, mas também
luta de sexo, que pode ser analisada a partir do patriarcado.
Para Saffioti (2004, p. 102), a natureza do patriarcado é “material”, assim como
a luta de classes, por ser dotado de dominação ideológica tão profunda que “assume
enorme importância quando não se opera por categorias dicotômicas, separando cor-
po de mente, natureza de cultura, razão de emoção”. É necessário, pois, uma análise
da abordagem ontológica em suas três esferas: “a inorgânica, a orgânica e o ser social”,
as quais restabelecem a unidade do ser humano enquanto “ser social, dotado de cons-
ciência, (...) responsável pelas transformações da sociedade” (ibidem, p. 102-3).
Em outra obra, Saffioti (1992, p. 190) considera que

770
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

tanto o gênero quanto o sexo são inteiramente culturais, já que o gênero


é uma maneira de existir do corpo e o corpo é uma situação, ou seja,
um campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas. Nesta
linha de raciocínio, o corpo de uma mulher, por exemplo, é essencial
para definir sua situação no mundo. Contudo, é insuficiente para defini-
la como mulher. Esta definição só se processa através da atividade desta
mulher na sociedade. Isto equivale a dizer, para enfatizar, que o gênero
se constrói – expressa através das relações sociais.

São essas relações sociais, pois, que ditam as relações jurídicas e a formula-
ção de normas que se propõe a regular as relações sociais. Tendo em vista que
“as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto
é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante” (MARX, 2007, p. 47), é possível concluir que
o direito criado nessas relações é um direito burguês, e esse, dirá Lenin (2012,
p. 187, grifos do autor), “no que concerne à repartição de bens de consumo,
pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um
aparelho capaz de impor a observação de suas normas”.
É esse mesmo “Estado burguês” que mantém uma relação intrínseca com o
patriarcado. Dirá Saffioti (2004, p. 106, grifos da autora) que a principal carac-
terística do patriarcado é

A dominação-exploração [que] constitui um único fenômeno, apresentando


duas faces. Desta sorte, a base econômica do patriarcado não consiste apenas
na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua segregação
ocupacional e em sua marginalização de importantes papéis econômicos
e político-deliberativos, mas também no controle de sua sexualidade. (...)
o controle está sempre em mãos masculinas, embora elementos femininos
possam intermediar e mesmo implementar estes projetos.

Com essa análise, a socióloga marxista brasileira atribui ao patriarcado à di-


ferença salarial dos homens em detrimento às mulheres, não por uma possível
discrepância acadêmica-intelectual, mas porque é um controle necessário para
os homens. Ou, analisando a partir da leitura de Grossi e Aguinsky (2012, p. 31),
devido à opressão de gênero, a qual pressupõe outras questões, incluindo a classe.

(...) enquanto podemos falar de “pessoas oprimidas”, não podemos


precisamente acessar o tipo, ou medir o grau, de opressão em suas

771
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

vidas. (...) uma mulher tende a ser oprimida não só em razão de seu
gênero, mas em razão de sua raça, de seu status socioeconômico,
de sua idade, de sua aparência, de sua orientação sexual, de seu
estado civil, da sua filiação religiosa, de seu nível de escolarização,
do número de filhos que possui, entre outros.

Entretanto, assim como se propõe este estudo, outra perspectiva deve


tomada no rol de dominação-exploração do patriarcado: a das mulheres
transexuais e travestis3.

1.3. As mulheres transexuais e travestis brasileiras


no mercado de trabalho
Dados da Rede Nacional de Pessoas Trans (RedeTrans) revelam que cerca de
80% das mulheres transexuais e travestis abandonam o ensino médio entre os
14 e os 18 anos devido à discriminação sofrida na escola e à ausência de apoio
familiar4. No mesmo sentido, Cris Stefanny, presidenta da Associação Nacional
de Travestis e Transexuais (Antra), apresenta que 90% das populações travestis e
transexuais trabalhando na prostituição5. Além disso, segundo a ativista transe-
xual Daniela Andrade, “ainda que elas queiram arranjar um emprego com rotina,
horário de trabalho e carteira assinada, o preconceito fica evidente quando elas se
candidatam a uma vaga” (apud LAPA, 2013). Dito isso, é possível apontar razões
sociais, históricas e culturais para criticá-los e teorizá-los.
Esses dados estão diretamente imbrincados com as questões de raça e classes
no Brasil. Dito isso, considera-se que as pessoas transexuais estão condiciona-
das, pelo sistema capitalista-patriarcal, a não ultrapassar os 50 anos devido à
dominação-exploração estrutural que violenta esses corpos, bem como ao uso

3 Não importa aqui analisar a categoria de gênero, nem mesmo teorizar o que significa ser uma pessoa
transgênero, uma vez que esse conceito é aberto e passível de muitas críticas por não apresentar
uma base materialista, diferentemente do patriarcado, que pressupõe ser “o regime da dominação-
exploração das mulheres pelos homens” (SAFFIOTI, 2004, p. 44). O que se busca teorizar é que o
sistema de dominação-exploração patriarcal do corpo masculino sobre o feminino é radicalizado
quando são considerados os corpos transexuais.
4 Disponível em: <http://tvbrasil.ebc.com.br/estacaoplural/post/visibilidade-trans-a-realidade-do-mercado-
de-trabalho-para-transexuais>. Acesso em: 16 ago. 2018.
5 Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/preconceito-
afasta-transexuais-do-ambiente-escolar-e-do-mercado-de>. Acesso em: 16 ago. 2018.

772
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de drogas e desgaste da saúde (KULICK, 2008, p. 219). Nesse sentido, é “fácil


(...) conectar a realidade social das travestis à pobreza, à miserabilidade, ao
tráfico e às favelas” (FERREIRA et al., 2014, p. 100). Nesse espaço de socia-
bilidade, ausência do Estado e radicalização da pobreza e exploração da classe
trabalhadora, segundo Ferreira et al. (op. cit., p. 103),

é também o lugar onde a moral burguesa não possui influência direta,


e ainda que reflita nos padrões de consumo, é obrigada a conviver com
outras manifestações étnicas e culturais também consideradas marginais
(como as religiões afrodescendentes, por exemplo), perdendo o fôlego
que teria ao se aliar à moral cristã.

Mesmo formalmente detentora de direitos fundamentais e sociais, uma vez


que, segundo o caput do art. 5º, “Todas são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza” (BRASIL, 2017b6, p. 9) e, de acordo com o §1º, “as normas
definidoras dos direitos sociais e garantias fundamentais têm aplicação imedia-
ta” (idem, p. 11), esses mesmos direitos foram e são social e materialmente ine-
xistentes para a população transexual. Nesse contexto, as consequências para
essa população é a radicalização da dominação-exploração do patriarcado nas
relações sociais e do capitalismo nas relações de trabalho, tendo em vista que

(...) as identidades transgênero, quando expressadas na sociedade,


tendem a empurrar as travestis e transexuais para uma situação de
vulnerabilidade social, marcada pela fragilidade dos vínculos de trabalho
ou das relações sociais, e que determina uma restrição na participação
social destas pessoas em igualdade de direitos, caracterizando a condição
de desvantagem social. Este processo afeta a autonomia, os direitos e o
empoderamento pessoal e social das mesmas (SILVA et al., 2015, p. 370).

É possível, pois, que mesmo a partir de iniciativas de ativistas e militantes


transexuais como o portal eletrônico do TransEmprego7 e o projeto de capaci-

6 O texto da Constituição Federal utilizada para este artigo foi editado até a consolidação da Emenda
Constitucional nº 96/2017.
7 Disponível em: <https://nlucon.com/2013/10/18/site-de-empregos-visa-contribuir-para-a-entrada-
de-travestis-e-transexuais-no-mercado-de-trabalho/>. Acesso em: 19 ago. 2018.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

tação profissional Damas8, por exemplo, ou mesmo com aumento significativo


de candidaturas político-partidárias de pessoas transexuais no decorrente ano9,
a garantia do direito ao trabalho digno não é uma realidade para essas pessoas.

2. A Reforma Trabalhista no contexto pós-Golpe de 2016


Dialeticamente consideradas, as relações de produção são culturalmente evi-
denciados os corpos que importam e os que não importam (e também como impor-
tam e quando importam) para o processo de coisificação, isso é, de condicionamento
da classe trabalhadora como uma mercadoria que produz outras mercadorias.
Entretanto, quando se faz uma análise da subcategoria mulheres transexuais
e travestis no mundo do trabalho, essa coisificação é aprofundada, fazendo sur-
gir outros elementos a serem analisados, argumentando estarem aquelas social,
histórico, político e juridicamente discriminadas por não estar inserida em de-
terminado padrão ideológico, sendo assim condicionada à coisificação diferen-
te, desempenhando trabalhos condicionados e bem delimitados. Dessa forma,
direitos fundamentais básicos (propostos pela teoria constitucional como tendo
eficácia social e jurídica) são materialmente inexistentes, como é o caso do di-
reito ao trabalho, o qual mantém uma relação intrínseca com o direito à vida, à
dignidade, à igualdade, à educação, à saúde etc.

2.1. Violação aos direitos fundamentais e sociais


Esses direitos, mencionados no parágrafo anterior, estão na Carta Magna
brasileira de 1988 em diversos artigos. Dentre esses, estão no art. 1º as responsa-
bilidade dos entes federativos pela garantia e manutenção da cidadania (inciso
II), da dignidade da pessoa humana (inciso III) e dos valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa (inciso IV). Já no art. 2º, são apresentados como objetivos
da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(inciso IV), dispostos nessa ordem (BRASIL, 2017b, p. 9).

8 Disponível em: <https://nlucon.com/2013/08/27/transexual-revela-como-projeto-damas-ajudou-


capacitar-e-enfrentar-mercado-de-trabalho/>. Acesso em: 19 ago. 2018.
9 Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/diversidade/dobra-o-numero-de-candidato-trans-
para-legislativo>. Acesso em: 19 ago. 2018.

774
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Já no art. 5º são classificados como garantias fundamentais o “direito à vida10,


à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” a “homens e mulheres (...)
iguais em direitos e obrigações” e no art. 6º, como direitos sociais “a educação, a
saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desam-
parados” (BRASIL, 2017b, p. 11). Dessa forma, pode-se afirmar que o trabalho é
um direito social garantido aos trabalhadores rurais e urbanos (art. 7º), mas que,
com a lei nº 13.467/2017, foi atacado em vários incisos, como o seguro-desemprego
(inciso I), o FGTS (inciso II), o que estabeleceu contrariedade formal com os
direitos constitucionais, como o salário (inciso VII) e jornada de trabalho (inciso
XIV), gerando consequências até mesmo em negociações coletivas e na organiza-
ção sindical (art. 8º) (BRASIL, 2017b, p. 12-13).
Dessa forma, a lei nº 13.467 não deve ser vista como politicamente ou juri-
dicamente desassociada, uma vez que, com a concretização do pós-golpe par-
lamentar de 2016, a partir do que se verifica nas alterações ou propostas de
alteração em diplomas legais, existe uma inter-relação e continuidade de ata-
ques aos direitos fundamentais e sociais, que se inicia com o Projeto de Emen-
da Constitucional (PEC) 287/201611 e prossegue com a aprovação da Emenda
Constitucional (EC) nº 95/201612 e, por conseguinte, da lei nº 13.429/201713,
as quais gerarão (não por acaso) consequências muito mais enfáticas, como a
potencialização das desigualdades à classe trabalhadora.

10 A vida representa um dos direitos mais violados da população transgênero no Brasil, tendo em vista
que, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB) e da Rede Trans Brasil, 445 mortes de
pessoas LGBTs registradas em 2017, dentre as quais 194 eram gays, 191 eram pessoas trans, 43 eram
lésbicas e cinco eram bissexuais. Cf. VALENTE, Jonas. Levantamento aponta recorde de mortes por
homofobia no Brasil em 2017. Repórter Agência Brasil, 2018. Disponível em: <http://agenciabrasil.
ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-01/levantamento-aponta-recorde-de-mortes-por-
homofobia-no-brasil-em>. Acesso em: 25 ago. 2018.
11 Cf. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/
emecon/2016/emendaconstitucional-95-15-dezembro-2016-784029-publicacaooriginal-151558-pl.
html>. Acesso em: 26 ago. 2018.
12 Cf. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Disponível em: <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=2119881>. Acesso em: 25 ago. 2018.
13 Cf. BRASIL. Lei nº 13.429 de 31 de março de 2017. Acesso em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13429.htm>. Acesso em: 25 ago. 2018.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Dito isso, a elaboração de determinados textos legais são consequências da


manifestação de poder da classe dominante, como ensina Lyra Filho (2006, p.
8, grifos do autor):

A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada


à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem
a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que
comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos
meios de produção. [...] A legislação abrange, sempre, em maior ou menor
grau, Direito e Antidireito: isto é, o Direito propriamente dito, reto e
correto, e a negação do Direito, entortados pelos interesses classísticos e
caprichos continuístas do poder estabelecido.

Como parte da classe trabalhadora, as mulheres transexuais e travestis en-


contraram se deparam com dificuldades especiais ao tentarem acessar os di-
reitos fundamentais. Dificuldades essas que podem ser atribuída à dominação-
-exploração do patriarcado e do capitalismo nos corpos transexuais.

2.2. Contradições no novo texto da CLT


Assim sendo, a análise aqui feita vai de encontro ao pensamento de Carva-
lho (2017, p. 81-82), de que

há, no conjunto da Lei nº 13.467/2017, uma lógica que busca diminuir, no


marco do direito do trabalho no Brasil, a noção de que a venda da mercadoria
força de trabalho trata-se de uma relação entre pessoas, substituindo-a por
uma visão que trata essa venda como uma relação entre coisas.

Dessa forma, revela uma das maiores contradições da lei em questão, uma
vez que “a força de trabalho não é uma mercadoria qualquer, pois é impossível
separá-la da pessoa do trabalhador” (CARVALHO, 2017, p. 82). Para delimitar
o objeto, serão analisadas mudanças que exerçam consequências para a inser-
ção das mulheres transexuais no mundo do trabalho.

2.2.1. Considerações acerca de rupturas formais


Dessa forma, visto no contexto das relações de produção capitalista, é fun-
ção do direito ao trabalho: “alterar a balança de poder para o lado mais frágil

776
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

da relação, ou seja, introduzir um elemento estranho ao mercado, e, portanto,


alterar seu equilíbrio” (CARVALHO, 2017, p. 92).
Dito dessa forma, deve-se considerar que, na visão do autor, um dos
pontos mais importante da lei nº 13.467/2017 é a organização da classe tra-
balhadora em torno do fortalecimento das negociações, da qual decorre “o
sucesso da reforma”, ponto esse “deixado de lado na reforma” (CARVA-
LHO, 2017,p. 93). E prossegue:

ao mesmo tempo em que o ponto principal da reforma proposta é sobrepor


o negociado sobre o legislado, de maneira a flexibilizar as relações de
trabalho mediante a negociação entre empregadores e empregados,
a reforma não se preocupa em fortalecer a associação coletiva dos
trabalhadores; pelo contrário, estes tendem chegar à negociação mais
enfraquecidos, na medida em que a Lei nº 13.467/2017 ainda procura
descentralizar ao máximo as negociações, dificultando o aumento do
poder de barganha dos trabalhadores, bem como procura restringir a
intervenção da JT [Justiça do Trabalho] (CARVALHO, 2017, p. 93).

Dialogando com Carvalho (2017, p. 88), Vazquez et al. (2018, n.p.) conside-
ram que a lei nº 13.467/2017 estabeleceu a demissão por acordo comum no art.
484-A, o qual “autoriza extinção de contrato de trabalho mediante pagamento
de metade do aviso prévio e metade da indenização sobre o FGTS; movimenta-
ção de 80% do saldo do FGTS e, ainda, retira o acesso ao seguro-desemprego”.
Já no art. 611-A é reforçada a negociação flexível acerca da jornada de tra-
balho e da remuneração (CARVALHO, 2017, p. 83), do uso do banco de horas
(estendida pelo art. 59 para todos os trabalhadores) e “permite reduzir o in-
tervalo em jornadas de mais de seis horas de uma para meia hora e ampliar a
jornada em ambientes insalubres” (idem, p. 83-84).
Quanto à relação entre as horas de trabalho contratuais e horas extras
(jornada de trabalho), dois dispositivos foram alterados. A partir do art. 59-A
legalizou “a jornada 12-36 (doze horas consecutivas de trabalho seguidas de
trinta e seis de repouso) para qualquer trabalhador” (CARVALHO, 2017, p.
84); enquanto que o 59-B reduziu “o pagamento das horas extras em jornadas
não compensadas” e o art. 384 revogou “a necessidade de no mínimo quinze
minutos de intervalo entre a jornada normal e as horas extras” (idem, p.
85). Nos dois primeiros dispositivos, foi retirada da competência Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE) a licença prévia para as atividades em

777
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ambientes insalubres e evitado o julgamento pelo “uso recorrente de horas


extras em acordos sobre banco de horas como forma de burlar os limites
constitucionais da jornada de trabalho e minimização do pagamento de
horas extras” (CARVALHO, 2017, p. 84).
No entanto, a grande novidade para Carvalho (2017, p. 86-87) foi a criação
do instituto trabalho intermitente. Enquanto nova categoria de trabalho, aquele
está contido no art. 443, in verbis: “O contrato individual de trabalho poderá ser
acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo deter-
minado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente” (BRA-
SIL, 2017a, p. 70). Sendo assim, está “regulamentada no Artigo 452-A, porém
de maneira muito vaga”, uma vez que “não fica determinado como se daria
trabalho intermitente determinado em horas”, possibilitando “não se exclui[r] a
possibilidade que o trabalho intermitente seja determinado a partir de poucos
dias durante o mês ou ano” (CARVALHO, 2017, p. 87)14.
Dessa forma,

Pode-se argumentar que a maior parte dos que realizam esse tipo de
trabalho hoje operam na informalidade, mas não fica claro qual o
efetivo ganho de bem-estar social em se legalizar a precariedade, além
de uma mera mudança de forma. Em vez de ampliar as possibilidades de
formalização por meio de políticas públicas voltadas para a produtividade
do trabalho, procura-se tornar legais trabalhos precários, sob o risco de
precarizar trabalhos que hoje se encontram protegidos (ibidem).

Da mesma maneira e com o mesmo intuito de potencializar a precari-


zação de formas de trabalho (ibidem), o art. 442-B, em seu parágrafo úni-
co, proíbe o estabelecimento de vínculo empregatício entre uma sociedade
cooperativa e seus associados, “nem entre estes e os tomadores de serviços
daquela” (BRASIL, 2017a, p. 69).

14 Aqui, dialoga-se com o conceito marxiano de mais-valia, o qual se caracteriza como “a forma de
exploração característica do capitalismo”, consistindo “na diferença entre o valor do produto e o
valor do capital despendido no processo de produção” (LOYOLA, 2009, p. 131).

778
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

2.2.2. Efeitos e presunção de efeitos


Dito dessa forma, Carvalho (2017, p. 82) argumenta que “mudanças de ta-
manha magnitude dificultam a tarefa de se antever seus impactos”. Por sua vez,
Vazquez et al. (2018, n.p.) destacam dois motivos pelos quais há essa dificuldade
em estimar os efeitos da Reforma Trabalhista em seu curto período de vigência,
sendo eles: segurança jurídica e limitações estatísticas. Sobre o primeiro motivo,
os autores argumentam que as discussões em torno do Projeto de Lei 6.787/2017
(que foi transformado na Lei Ordinária nº 13.467/2017) quando ainda estava
em tramitação, debatia-se acerca de sua “maior segurança jurídica para os em-
pregadores”, o que significaria dizer “menor segurança jurídica aos empregados”.
Em contraste com isso, a Lei nº 13.467/2017 apresenta contradições jurídicas no
âmbito constitucional, “como, por exemplo, o desrespeito ao salário mínimo por
meio da contratação de autônomos e intermitentes” (ibidem).
Quanto às limitações estatísticas, Vazquez et al. (2018, n.p.) dissertam que
a Reforma Trabalhista emitiu novos bloqueios quanto à “formalização de con-
tratos anteriormente considerados fraudulentos, como os de terceirização de
atividades-fim, intermitente e autônomo com exclusividade” e à “mensuração
da desocupação”, uma vez que “um intermitente que não é convocado a realizar
serviços por mais de um ano, em tese, possui vínculo ativo de emprego, embora
não esteja efetivamente empregado”, o que se soma a velhas “formas burladas de
terceirização, sob contratos de falsas cooperativas, contratos de natureza civil”,
dentre outros tipos de contrato.
Entretanto, ao contrário do que se propunha a formalidade do texto da Re-
forma Trabalhista, não se empregou mais com a entrada em vigor da lei nº
13.467/2017, mas se potencializou a limitação do mercado de trabalho: “Pelos
dados iniciais, infere-se que a reforma tem impactado setores já marcados por
baixos salários e alta rotatividade, como o comércio, aumentando ainda mais
a precarização das relações de trabalho” (VAZQUEZ et al., 2018, n.p.). Além
disso, potencializam-se as históricas desigualdades entre as regiões do país.
Da mesma forma que Carvalho (op. cit.), Vazquez et al. (op. cit.) se debru-
çaram sobre aspectos da Reforma Trabalhista, a partir dos quais já se percebe
efeitos no mundo do trabalho, destacando dois deles: “demissões por ‘acordo
comum’” e trabalho intermitente. Os autores analisam que num período de 4
meses foram realizados 52.898 de demissões por acordo comum em modalida-
des de trabalho específicas, com maior incidência no setor de atividade (ibidem).

779
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Entretanto, nenhuma outra mudança na CLT potencializará o aprofunda-


mento da pobreza, das desigualdades sociais, enfim, das relações sociais de pro-
dução capitalistas e patriarcais do que o chamado trabalho intermitente.
Dessa forma, como em seguida argumentam os autores, essa nova modalida-
de de trabalho escancara “que a ‘moderna’ reforma trabalhista é largamente uti-
lizada em ocupações precárias e mais sujeitas a terceirização”, o que evidencia
sim o caráter de geração de empregos, mas de características insalubres, indig-
nas e até mesmo análogas à escravidão, “sem contar que 93% dos trabalhadores
com contratos intermitentes possuem até o ensino médio” (VAZQUEZ et al.,
2018, n.p.), dado esse que dialoga com o índice de abandono das instituições de
ensino pelas pessoas transexuais.
Ademais, a partir da leitura desses dados inicias e novos institutos criados
pela Reforma Trabalhista,

pode-se inferir que a reforma tem impactado setores marcados por baixos
salários e alta rotatividade, como o comércio, relegando os empregados
desse setor a uma situação mais aguda de precariedade. Desde o
início, críticos da reforma indicaram seu alto potencial de aumentar a
desigualdade (VAZQUEZ et al., 2018, n.p.).

É nesse sentido que os sindicatos serão impedidos, pela conjuntura, de orga-


nizar sua base e luta por direitos para a classe trabalhadora, que Marx chamaria
de “classe para si”15, como deixa claro Carvalho (2017, p. 89), ao afirmar que
existem institutos “na reforma [Trabalhista] que ampliam a discricionariedade
do empregador sobre contratos individuais, como expansão do banco de horas,
jornada 12-36, indenização de intervalo de descanso”.
São postos de trabalho como esses – os quais são condicionados a baixos
salários e alta rotatividade, ocupados majoritariamente por pessoas que nem
sequer conseguiram concluir o ensino médio escolar – que se apresentarão
como alternativas possíveis para que mulheres transexuais se insiram no mer-
cado de trabalho formal.

15 Marx (2001, p. 151) discorre que: “A dominação do capital criou para essa massa uma situação
comum, interesses comuns. Assim essa massa já é uma classe diante do capital, mas não o é ainda
para si mesma. Na luta (...) essa massa se reúne, se constitui em classe para si mesma”, o que significa
dizer que “os interesses que ela defende se tornam interesses de classe”.

780
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Considerações finais
Diante do exposto, é possível apontar que as mulheres transexuais e as tra-
vestis são sujeitas historicamente marginalizadas no e pelo sistema capitalista-
-patriarcal, sendo condicionadas a trabalhos precarizados, subalternos e insa-
lubres. Portanto, o corpo feminino está (também historicamente) subordinado
à divisão sexual do trabalho “como um sistema composto com o capitalismo”
– como também ao racismo, enquanto ideologia dominante na sociedade (CIS-
NE, 2015, p. 19) –, o qual “não apenas diferencia trabalho feminino do mas-
culino, mas gera desigualdades entre homens e mulheres pertencentes a uma
mesma classe” (idem, p. 24).
Dito dessa forma, o Estado brasileiro (de moldes republicano e burguês), é o
mesmo que, por meio do poder legislativo, elabora leis para fortalecer seu poder
classístico, ou seja, normas que aprofundem a derrota da classe trabalhadora no
campo jurídico e que potencializem o ataquem a direitos fundamentais e sociais.
Uma vez que as mulheres transexuais e travestis desistem em massa da educação
formal devido a descriminações e negações à própria dignidade, têm-se como
consequências o aprofundamento da exclusão do mercado de trabalho formal.
Por isso, são condicionadas majoritariamente à prática da prostituição, ao mesmo
tempo em que é desdenhado o direito à saúde pública e de qualidade16.
Não por acaso, a aprovação da lei nº 13.467/2017 desgasta direitos já ne-
gligenciados pelo Estado brasileiro, ou seja, uma cadeira de negação de direi-
tos que gera mais negação de direitos. Nesse sentido, tendo em vista que, por
estarem de forma quase unânime na prostituição, as mulheres transexuais e
travestis são as subcategorias que conhecem mais o “trabalho intermitente” –
mas sem contrato de trabalho –, uma vez que a prostituição é uma relação de
produção que coisifica o corpo transexual e travesti, e não vai garantir seguro-
-desemprego ou FGTS, mas tão somente o direito a se contraprestação (econô-
mico e subjetivamente17).
Sendo assim, uma crítica que não pode deixar de ser feita é a ausência de
dados confiáveis (elaborados por órgão público) acerca da presença de mulheres

16 O que inclui a cirurgia de transgenitalização, implante de cirurgias plásticas diversas e acesso ao


tratamento contra o HIV ou outras ISTs.
17 Com isso se quer dizer transformar sua condicionada força de trabalho em dinheiro que será gasto
com maquiagem, roupas, calçados, produtos capilares, implantes estéticos etc., ou seja, com a
manutenção da figura lida socialmente como feminina.

781
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

transexuais e travestis no mercado de trabalho formal. Fazem-se necessários,


pois, levantamentos e pesquisas que comprovem e divulguem o impacto mate-
rial da Reforma Trabalhista nas relações de emprego de mulheres transexuais
e travestis, utilizando variáveis de raça, de orientação sexual, de regionalidade,
de escolaridade, dentre outras, para evidenciar as disparidades dessas relações.
Dessa forma, evidenciar-se-á que essa população tende a ser cada vez mais pre-
carizada no âmbito das relações sociais de produção, o que significa ter negada
sua própria condição humana.
Portanto, são essas novas relações de trabalho, legalizadas pelas abstratas
relações jurídicas e legitimadas pelo sistema capitalista a patriarcal, que man-
terão as mulheres transexuais em postos de trabalho insalubres, indignos e de-
sumanos, em descompasso com os direitos fundamentais e sociais garantidos
pela Constituição Federal de 1988 de maneira universal, mas desmontados pelo
Direito positivado pelo Estado burguês.

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785
Uma análise sobre a categoria trabalho a
partir do filme “segunda-feira ao sol”

Thiago Henrique Lopes da Costa1


Irinéia Raquel Vieira2

Introdução
O presente artigo tem por objetivo identificar como a categoria trabalho se
apresenta no decorrer do filme Segunda feira ao sol, proporcionando uma refle-
xão a respeito dessa categoria. Para isto, fez-se necessário apresentar à lingua-
gem cinematográfica, uma arte que recria e cria mundos, espaços e tempos para
impactar o imaginário das pessoas. Dentro dessa linguagem, os temas sociais
ganham amplitude e uma visão crítica sobre a realidade, trazer problemas socio-
políticos para o Cinema, é mostrar questões que não possuem uma visibilidade
de todos na sociedade.
Diante da conjuntura de desemprego e empregos precarizados, o objetivo
geral desse trabalho é identificar como a categoria trabalho se apresenta no
decorrer do filme Segunda feira ao Sol, e os objetivos específicos, analisar a arte
como recurso metodológico, identificar as especificidades do filme e descrever
como a crise do capital impacta na vida dos trabalhadores do filme.
Para a elaboração desse artigo de abordagem qualitativa e cunho bibliográfico
serão utilizados artigos e livros de autores como: Antunes (2006), Alves (2012),
Macário (2012) Carvalho (2016) e documental com o filme Segunda feira ao
sol (2001). Assim a pesquisa traz a possibilidade de discutir e debater assuntos
pertinentes na sociedade como o trabalho, desemprego, atividade formal e

1 Discente do curso de graduação em Serviço social pela Faculdade do Vale do Jaguaribe –FVJ.
2 Docente da Faculdade do Vale do Jaguaribe – FVJ. Possui graduação em Serviço Social pela
Universidade Estadual do Ceará; Especialização em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos
Sociais, pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Serviço Social, Trabalho e Questão Social
pela Universidade Estadual do Ceará.

787
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

informal de forma mais prazerosa e instigante quando se utiliza um filme como


recurso metodológico.
A reprodução de fenômenos sociais que se relacionam com a categoria tra-
balho são apresentados em diversas produções cinematográficas, torna-se uma
ferramenta convidativa para ampliação do campo de discussão sobre esse assunto.
O trabalho é visto na sociedade capitalista como algo “digno” e aquele que
não trabalha é tido como indigno taxado como vagabundo, mesmo o capital
não absolvendo todos os trabalhadores, é interessante que o exército industrial
de reserva, criado também através de ciclos de crise econômica, esteja pronto
para ser absolvido quando necessário e oportuno para o capital.
É relevante tocar no assunto da crise econômica porque essa é a força mo-
tora para a situação atual em que se encontra o trabalhador, em posição desfa-
vorecida e claro essa crise decorre do sistema capitalista de acumulação e dessa
forma o trabalhador é a peça substituível do “motor” financeiro. Para não se
perder toda a engrenagem troca-se essa pequena peça humana. Feito essa com-
paração para compreender a importância que o trabalhador possui e que não é
assumida pelo capital.
Trazer para o centro das discussões a problemática vivenciada pela classe
trabalhadora, o desemprego em massa, o trabalho informal, os casos de suicídio,
a quebra dos vínculos familiares, os casos de falência econômica, o aumento das
mazelas da questão social, pode ser decisivo para o amadurecimento e reconhe-
cimento do papel primordial que o trabalhador possui como classe fundamental
desse modo de sociedade de produção de bens.
Com a arte utilizada como recurso metodológico, podemos apropriar-se da
realidade através dos meios artísticos, em especial das produções fílmicas para
cativar e colaborar com a classe trabalhadora com assimilação do conteúdo e
melhorar a análise da realidade e possibilitando a mudança do olhar do traba-
lhador sobre o trabalho.
Nessa proposta o filme do diretor Arona, contextualiza a trajetória de ex-
-operários da metalúrgica naval em uma pequena cidade costeira na Espanha, o
grupo de desempregados perdem seus postos de trabalho mesmo após os poucos
restantes dos empregados terem feito acordo abrindo mão de seus direitos e ga-
rantias trabalhistas para que a sua vaga de emprego continuasse a existir, ainda
assim o estaleiro é fechado para a construção de um hotel de luxo no espaço.
O fechamento de postos de trabalho, o cenário de desemprego, conflitos
emocionais, trabalho informal, compõe o universo que cerca os personagens,

788
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

como Santa, Lino, José, Amador e Serguei, amigos, companheiros de trabalho


e agora sobreviventes nesse mundo concorrencial.
A partir do filme segunda feira ao sol, vemos as condições dos trabalhadores
retratando a realidade da sociedade capitalista, refletindo o que acontece em
escopo global com a reestruturação produtiva e o avanço do neoliberalismo.

1. A categoria trabalho a partir do filme Segunda-feira ao sol


O trabalho é modificado com o passar do tempo pelo homem na busca
de encontrar as melhores formas para atingir o seus objetivos, controlando a
natureza e seu metabolismo, A ação humana de modificar a natureza tem seu
propósito em alcançar um fim determinado pelo homem.
Segundo Albornoz (1988)

O significado da palavra trabalho e o seu sentido adquiriram, durante os


séculos, vários traços conforme o tempo e a cultura, e apesar desta distinção,
pode-se supor que todos eles apontam para um só sentido: a ação dos homens,
física ou intelectual, para alcançar um determinado fim. As transformações
no mundo do trabalho têm como seu ponto de partida as passagens da
cultura da caça e da pesca para a cultura agrária, fundamentada na criação
de animais e no plantio, da cultura agrária para a manufatureira, e dessa
última para a industrial (apud ESTANISLAU, 2012 p.38).

Nessa linha de raciocínio o autor conclui que o trabalho foi sendo modifi-
cado através das mudanças da cultura dos povos, da caça e pesca selvagem de
sobrevivência humana para a cultura da produção industrial.
Conforme Estanislau (2012, p.38) “entretanto há que se discorrer também a
respeito de seu caráter subjetivo, principalmente em decorrência da crise estru-
tural pela qual tem passado o capitalismo a partir dos anos de 1970”.

A globalização e os conceitos neoliberais diluíram os direitos e as


conquistas da chamada classe trabalhadora. O desenvolvimento
tecnológico e o fracasso do Estado no controle da economia afetaram
o cenário organizacional em escala mundial. Antunes (2003) afirma
que as grandes transformações no mundo do trabalho tornaram a classe
trabalhadora cada vez mais fragmentada, heterogênea e complexa.
(ESTANISLAU, 2012, p.38).

789
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A partir da década de 70 e 80 o trabalho sofreu grandes transformações com


os avanços do capitalismo em escopo global, impactando diretamente a vida e
as vagas de emprego dos trabalhadores daquela época e futuras gerações.
Alves (2005, p.01) afirma que,

O desenvolvimento da mundialização do capital e do capitalismo global,


a partir da década de 1980, implicou numa nova divisão internacional
do trabalho, com impacto significativos em alguns setores industriais
nos países capitalistas do Primeiro Mundo, como, por exemplo, Espanha
e Reino Unido. Ocorreu um agudo processo de desindustrialização e de
reconversão produtiva que atingiu o mundo do trabalho, contribuindo
para o aumento significativo do desemprego em massa e do desemprego
de longa duração e da precarização do trabalho. Surgiram formas
agudas de estranhamento da força de trabalho em virtude da sua
desvalorização como mercadoria. Um grande contingente de ex-
operários foram obrigados a buscar inserções precárias no mercado de
trabalho no setor de serviços em expansão. Enfim, eles foram vítimas
da globalização do capital e das mutações do capitalismo global, marcado
pela financeirização exarcebada e pela constituição da sociedade em
rede. Nessa nova etapa de desenvolvimento do sistema mundial do
capital se engendra uma nova dinâmica social caracterizada pelo sócio-
metabolismo da barbarie, isto é, pela aguda dessocialização de amplos
contingentes da sociedade do trabalho estranhado.

É nesse cenário econômico que surgem os ex-operários da indústria naval,


esses são os personagens do filme Segunda-feira ao sol que estão expostos a uma
realidade de desindustrialização, um processo de desemprego e perca dos postos
de trabalho, a busca por outros espaços para continuarem trabalhando, alguns
encontram espaços nos setores de serviços. Portanto, os trabalhadores do filme
são vítimas da avalanche do capitalismo global, que destrói suas garantias e
direitos como trabalhadores.
Estanislau (2012, p.39) define:

Ao debater o trabalho com base na formulação marxista, Antunes


(2005) o caracteriza como o início do processo de humanização do ser
social. Porém, no capitalismo, em vez do trabalho constituir a finalidade
do ser social, ele é degradado, transformando a força de trabalho em
uma mercadoria que produz outra mercadoria. Em vez de realização, o

790
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

trabalho passa a ser a única possibilidade de subsistência daquele que


não tem posses. Assim, o trabalho se torna estranho ao trabalhador, que
se vê privado daquilo que pode tornar-lhe mais humano.

De forma sucinta, Estanislau (2012) explica que o trabalho perdeu o seu


papel de humanização do homem e transformou-se em algo distante do tra-
balhador, sendo o único meio para a sobrevivência do homem vendendo a sua
força de trabalho. Portanto, o distanciamento do homem com a mercadoria que
foi produzida por ele causa uma distorção, não reconhecendo o trabalho como
uma realização mas como uma obrigação para sobreviver.
É nesse campo de conflito, de não reconhecimento e pertencimento do que
produz enquanto trabalhador que a arte em suas diferentes formas ver a possi-
bilidade de contribuir para que os homens e mulheres consigam alcançar uma
compreensão melhor da realidade e sua participação na sociedade. “Uma dessas
outras formas é a utilização dos recursos estéticos da arte, como o cinema, que
nos propicia ir além do raciocínio lógico, envolvendo o sentimento e a experiên-
cia perceptiva desenvolvida pelos sentidos”. (ESTANISLAU, 2012, p.37).

Consideramos que a utilização de filmes permite a realização de exercícios


de abstração e de reflexão tão importantes à construção e à transmissão
de conhecimentos, especialmente no que se refere à matriz crítica do
pensamento social. Além disso, “o cinema é mais completa arte do século
XX, capaz de ser a síntese total das mais diversas manifestações estéticas
do homem.” (ALVES, 2010, p. 17 apud CARVALHO, 2016 p.3).

Dessa maneira, as manifestações artísticas em especial o cinema, permite


um entendimento da realidade com uma capacidade maior de absorção dos
vários problemas encontrados na sociedade e das expressões da questão social.
Segundo Steyer (2000, p.11) “as múltiplas possibilidades de relações entre o
cinema e outras áreas de conhecimento têm se mostrado como oportunidades
relevantes para estimular a reflexão e o pensamento crítico sobre os mais varia-
dos temas de nossa realidade”.
O pensamento crítico ou até um debate crítico pode ser formado a partir
do mergulho que o cinema proporciona ao jogar luz nas questões que são temas
pertinentes da realidade dos indivíduos.
Segundo Carvalho (2016, p.5):

791
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O cinema, enquanto recurso audiovisual que reproduz imagens da


realidade ou cria imagens que levam à reflexão e abstração sobre ela,
constitui instrumento privilegiado na formação cultural dos sujeitos.
Para além de significar forma de entretenimento e arte, o cinema
é artefato cultural que nos aproxima da complexidade do mundo em
que vivemos bem como é capaz de nos incitar a pensá-lo e transformá-
lo. A exibição de um filme e a análise posterior do mesmo garante
necessariamente transmissão de determinados conhecimentos – mesmo
por meio de ficção – e pode conduzir a construção de outros a depender
da recepção do espectador e de sua socialização anterior.

Portanto, o filme Segunda – feira ao sol é uma produção audiovisual que


consegue transmitir as situações determinantes da vida dos trabalhadores, em
que a conjutura econômica de desemprego, trabalhos precários, conflitos fa-
miliares são situações também vivenciadas por grande parte do público que o
assisti, por fazerem parte da grande massa de trabalhadores e quem estão pro-
prensos a essas conjunturas.

2. Arte, reflexo da realidade


Porém, algumas manifestações artísticas revelam essas expressões da ques-
tão social. O cinema é uma delas, que contribui com o debate acerca dessa a
sociedade globalizada e desigual, por intermédio de filmes acessíveis as pautas
da classe trabalhadora. Narcizo (2012) explica como o cinema pode contribuir
para apreensão dessa realidade,

O cinema através da produção ou apresentação de filmes, por se


tratar não somente de uma obra plástica, mas, de uma visualização
poética da realidade, traz a possibilidade de mostrar um ponto
de vista inusitado, servindo para abrir o leque de interpretações
possíveis, remetendo a uma aproximação mais universal da realidade.
[...] o trabalho com filmes buscará o desenvolvimento da capacidade
de decifração e interpretação do mundo, tratando da capacitação
para selecionar informações ou complementar a obra dando-lhe um
sentido pessoal. (NARCIZO, 2012, p.9)

“O cinema dá a impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas


verdadeiras, amores verdadeiros. Mesmo quando se trata de algo que sabemos

792
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

não ser verdadeiro […]. No cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com
toda força.” (BERNARDET, 1980, p. 5).
Assim, o cinema coopera com a aproximação do ser humano à realidade, tra-
balhando sua subjetividade, seu reconhecimento nas cenas que passam em frente
a seus olhos, “a arte como conhecimento da realidade pode nos revelar um pe-
daço do real, não em sua essência objetiva, tarefa específica da ciência, mas em
relação com a essência humana” (LUKÁCS apud NARCIZO, 2012, p. 5)

Lukács (1966) no último capítulo a “Introdução a Estética Marxista”


afirma que a vivência propiciada pela arte provoca um enriquecimento no
sujeito de sua personalidade, e não um enriquecimento do individualismo
que menospreza o contexto social, mas aquele que o homem pode reviver
o passado da humanidade e o presente com perspectivas que apontam
para o futuro. A fruição, a contemplação, a criação, categorias fundantes
da arte, são em potencial o último território livre, onde se firma a
humanização do homem, sua ontologia, e o fazer teleológico. A arte,
na contramão de um mundo que glorifica o produto e visa dispensar o
produtor, valoriza o criador e não só a criação. (NARCIZO, 2012, p.5).

A arte é um instrumento que colabora com a formação crítica do indivíduo e


que valoriza o ser humano, proporcionando inúmeras reflexões e análise acerca dos
assuntos latentes na sociedade, como foi citado nesse projeto, à questão do trabalho
e suas mutações no contexto neoliberal. “O mundo do trabalho é invisível. É preciso
dar visibilidade ao mundo do trabalho. Nesse caso, saliento cinema como arte capaz
de expor com candência o mundo do trabalho.” (ALVES, 2012, p.20).
Diante das reflexões expostas, o cinema contribui essencialmente para cha-
mar atenção aos assuntos mais variados possíveis na sociedade, em especial aos
assuntos sobre desigualdades sociais e seus rebatimentos.

Como salientou Walter Benjamin, a arte deve ser politizada no sentido de


que o cinema – que é a Sétima Arte – deve-se tornar experiência critica.
A utilização do cinema como experiência crítica visa a formar sujeitos
humanizados capazes de recuperar o sentido da experiência humano-genérica
desefetivada pela relação-capital. Sob o capitalismo manipulatório, só a arte
realista é capaz de nos redimir da barbárie social. (ALVES, 2012, p.21).

A sétima arte é utilizada para uma experiência crítica, com um viés de


formação de sujeitos politizados, Alves (2012, p.21) explica “Na medida em

793
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

que o filme realista é um reflexo antropomorfizado da vida social, ele é um


meio propício para a experiência crítico-hermenêutica como autoconsciên-
cia da humanidade”.
A aproximação dessa arte o cinema, faz com que o indivíduo tenha uma
experiência crítica mediante “a obra de arte como o cinema, [...] permite uma
forma de apropriação do mundo capaz de formar (ou enriquecer) a práxis sin-
gular das individualidades pessoais de classe.” (ALVES, 2012, p.21). Portanto o
autor demonstra que o cinema possui uma forma de aproximação do mundo e
suas complexidades com os sujeitos de classe.

Um dos veios temáticos mais prolíficos para discussão crítica por


meio do cinema é o nexo temático “Trabalho e Cinema”. Primeiro
trabalho é categoria fundante (e fundamental) do ser social. Como
observou mais uma vez Georg Lukács, o homem é um animal
tornando homem pelo trabalho. Eis o sentido ontológico da categoria
trabalho. No mundo do capital, entretanto, ocorre uma inversão
categorial fundante (e fundamental) no processo civilizatório. No
modo de produção capitalista, o homem tornando homem, por meio
do trabalho, se desumaniza na medida em que o trabalho alienado o
animaliza. Como salientou Karl Marx, o homem, nas condições do
trabalho assalariado, não se sente mais livremente ativo senão em
suas funções animais. (ALVES, 2012, p.21).

O eixo Trabalho e Cinema são assuntos pertinentes para ser discutidos e


representados no cinema pela importância dessas categorias, o trabalho como já
foi ilustrado é a categoria fundante para transformação do homem, e o cinema
como explica Alves (2012, p.21) “aflora expondo o mundo do trabalho.” Essa
arte foi usada no início do seu surgimento para registrar momentos do capitalis-
mo tardio, como capturar cenas e registrar o cotidiano das cidades.
Alves (2012, p.21) define:

Como arte suprema da modernidade do capital em sua etapa tardia, o


cinema nasce como registro documental do cotidiano da proletarização
moderna. Um dos primeiros registros do cinema intitulou-se La Sortie
de I´usine Lumière a Lyon (“A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”).
Produzido em 1895 por Auguste Lumière e Louis Lumière, “A Saída da
Fábrica Lumière” e outros pequenos filmes foram exibidos para divulgar
em Paris, o cinematógrafo, invento dos Irmãos Lumière.

794
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O cinematógrafo usado para registar o cotidiano dos trabalhadores no século


XIX, deu espaço no século passado para as produções cinematográficas, “cine-
astas no século XX trataram, direta ou indiretamente, do drama trágico da pro-
letariedade, expondo com suas obras fílmicas visões da modernidade do capital
com suas contradições sociais que dilaceram o ser genérico do homem.” (ALVES,
2012, p.22). Ganham espaço nas produtoras de filmes, os temas pertinentes sobre
a categoria trabalho e o uso do cinema para retratar essas condições.
Segundo Alves (2012) o eixo temático Trabalho e Cinema é mais que uma
reflexão crítica, é um tema fundamental para compreender a conjuntura do
campo social, a barbárie fruto do capital que afeta a civilização hoje, e sua crise
econômica que angustia a classe trabalhadora.
Tanto o trabalho possui sua práxis interferindo sobre os elementos da natu-
reza para criar objetividade, arte também possui esse viés a práxis artística, que
recria a realidade e impacta no subjetivo e na sensibilidade do indivíduo.
Assim como define Macário (2012, p.33):

O trabalho, é práxis que intervém sobre elementos objetivos dados


pela natureza ou postos pela sociedade, com base neles, constituem-se
novas formas de objetividade, de conteúdo material e/ou simbólico.
A práxis artística recria a realidade mediada pela sensibilidade do
sujeito; produz obras que referem sempre ao sujeito, a sua maneira de
perceber e reagir ao mundo.

E essa práxis artística tem o sentido de reunir todos os elementos para


impactar o indivíduo nas suas diferentes formas, seus sentidos, sentimentos.
Segundo Macário (2012, p.33) “os impactam porque os elementos escolhi-
dos traduzem a relação do indivíduo singular com a humanidade” Em outras
palavras, impactam pela a aproximação da singularidade do indivíduo e a
realidade da humanidade.
Conforme Macário (2012, p.33). “A arte é uma forma peculiar de práxis que
captura e expressa às dores e alegrias, os dilemas morais e éticos, os vícios e
virtudes, os sonhos e utopias experimentados pelo sujeito artista.” Nessa pratica
o artista se envolve na arte com suas especificidades, seus sentimentos e sonhos
dando realidade à arte.
Macário (2012) afirma que, no desenvolvimento do fazer artístico, a práxis
do artista esta intrinsicamente ligada aos conflitos humanos, a arte é uma for-
ma de expressar esses conflitos produzidos pela relação sociedade e indivíduo,

795
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

os conflitos que acontecem dos interesses individuais e coletivos são represen-


tados na sua obra.

A verdadeira arte, portanto, sempre se aprofunda na busca daqueles


momentos mais essenciais que se acham ocultos sob a superfície
dos fenômenos, mas não representa esses momentos essenciais de
maneira abstrata, ou seja, suprimindo os fenômenos ou contrapondo-
os a essência; ao contrário, ela apreende exatamente aquele processo
dialético vital pelo qual a essência se transforma em fenômeno, se revela
no fenômeno, mas figurando ao mesmo tempo o momento no qual o
fenômeno manifesta, na sua mobilidade, a sua própria essência. Por
outro lado, esses momentos singulares não só contem neles mesmos um
movimento dialético, que os leva a se superarem continuamente, mas
se acham em relação uns aos outros numa permanente ação e reação
mútuas, constituindo momentos de um processo que reproduz sem
interrupção. (LUKACS, apud MACARIO, 2012, p.36).

Como foi exposta, a arte busca revelar aqueles fenômenos mais aprofun-
dados que se manifestam na sociedade de forma oculta, e também mostrar
os fatores que são responsáveis pelo surgimento desses fenômenos, a ver-
dadeira arte mostra a conjuntura onde o personagem está inserido, suas
dificuldades e os rebatimentos que esses fenômenos causam na vida do per-
sonagem e suas saídas para enfrentar todos esses obstáculos, que de forma
dialética também são forjados na vida cotidiana, e essa verdadeira arte, traz
contexto e realidades encontradas também no cotidiano do sujeito é que faz
essa arte representar a vida humana.
Segundo Macário (2012, p.37) “O personagem artístico só pode ser utópi-
co e significativo quando o autor consegue revelar as múltiplas conexões que
relacionam os traços individuais de seus heróis aos problemas gerais da época”.

A obra de arte, como já referimos, afeta a práxis de outros homens,


potencializando ou esmaecendo determinados traços, valores e ideias
deles. A fruição estética é um caminho privilegiado que conduz o
indivíduo a reavaliar sua visão e, por consequência, sua atitude em
face dos dilemas pessoais e dos problemas sociais. Na fruição estética,
a subjetividade é interpelada de modo tal que o indivíduo vislumbra
a si próprio – seus defeitos e fraquezas, suas virtudes e potencias,
seus valores éticos, estéticos, morais, suas convicções ideológicas –

796
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

podendo reposicionar-se perante o mundo, assumindo nova conduta.


(MACÁRIO, 2012, p.39).

A arte ela é potencial para os indivíduos para esclarecer a vida cotidiana,


conseguir avaliar e reavaliar sua conduta e visão de mundo em face aos proble-
mas e obstáculos que precisam ser enfrentados. Quando o artista interpreta de
tal forma a arte transparecendo verdadeira, coloca o indivíduo dentro de deter-
minada situação representada, reconhecendo a si mesmo naquela condição. E a
sétima arte é capaz de promover esse reconhecimento.
Segundo Alves (2012) argumenta,

O cinema é a arte-máquina, arte total, a arte mais completa do século


XX, arte-síntese capaz de reunir as mais diversas formas estéticas num
sistema de imagens em movimento, promovendo a compreensão espaço-
tempo e se apropriando da subjetividade do sujeito-receptor, instigando
a sua disposição de virtualização com maior intensidade e amplitude.
Por isso, é arte superior, capaz de contribuir como meio estético para a
constituição da experiência crítica. Como forma cultural de mediação
estética, é capaz de desenvolver, num patamar superior, a potentia de
virtualização. A proposta de interpretação do cinema como experiência
crítica considera que o filme é uma totalidade concreta aberta, capaz
de “sugerir” um complexo de temas significativos e eixos temáticos para
uma discussão sobre problemas cruciais da vida humana que podem
ser apreendidos, de forma crítica, pelo espectador. Por intermédio da
problematização de temas sugeridos podem-se discutir alternativas
positivas radicais ao metabolismo social do mundo contemporâneo.
(apud SANTOS; SILVA, p.70).

Segundo Santos; Silva (2012), explicou que o cinema é uma arte que pro-
move o cotidiano em imagens em movimento, por outro lado, contribui para a
reflexão e a construção crítica do receptor instigando sua subjetividade, o filme
é capaz de abordar várias temáticas, problematizando diferentes temas encon-
tradas como problemáticas na sociedade, como por exemplo o eixo temático
Trabalho e Cinema.
“A apropriação crítica (e compreensiva) do filme permite, por um lado, a
apreensão da forma e do sentido da obra fílmica em questão. Por outro lado,
pode contribuir para o desenvolvimento do complexo teórico-categorial.”
(SANTOS; SILVA, 2012, p.70)

797
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

E essa contribuição para desenvolver o sentido de categoria do receptor, o


autor Alves (2010) explica que,

Ao “dialogar” com a obra fílmica, o sujeito-receptor dialoga, e certo


modo, com sua tradição histórico-existencial. O filme é apenas o elo
mediador capaz de contribuir para a auto-reflexividade crítica do sujeito-
receptor. Tão logo descubra o eixo temático essencial, o sujeito-receptor
discerne os elementos compreensivos do filme. O intérprete esboça um
projeto de significação para todo o texto fílmico. (ALVES, 2010 apud;
SANTOS; SILVA, 2012, p.70).

O diálogo, que o autor Alves (2010) cita pode ser entendido como uma
autoimagem do personagem reconhecida no filme pelo indivíduo receptor, pela
sua bagagem histórica, suas experiências vividas, o indivíduo se reconhece nos
dramas e expectativas do personagem.
“A relação do filme como objeto de reflexão crítica com o expectador pode
constituir experiência problematizadora capaz de propiciar um vínculo de com-
preensão hermenêutica e de dialogicidade plena.” (SANTOS; SILVA, 2012, p.70).
Essa arte que propicia a reflexão e a consciência critica do sujeito das pro-
blemáticas da sociedade em sua conjutura, feita pela reprodução da realidade
através do filme, “uma obra estética, social e politica, veiculo de representação
e formação de imagens sobre o mundo na consciência do espectador.” (SAN-
TOS; SILVA, 2012, p.75).

Ensinar a linguagem cinematográfica e os elementos que compõem


a obra fílmica, conjugados com uma perspectiva crítica que vê o
filme não só como entretenimento, mas também como obra estética
permeada de sentindo social, político e ideológico, parece ser uma das
mais importantes estratégicas [...] ou seja, propicia uma perspectiva
mais filosófica do que contemplativa e permite maior fruição estética
do filme, forma o espectador critico capaz de perceber os nexos do
real, presentes, na obra fílmica, rompendo com a deseducação do
olhar e com a banalização da imagem, geralmente presa aos filmes
mais comerciais e dependente de uma forma televisiva do filme.
(SANTOS; SILVA, 2012, p.77).

Sendo assim o cinema contempla a formação do homem, como ser pensante


e consciente, a arte amplia os horizontes e a compreensão da realidade, consegue

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

extrapolar os limites do cotidiano e analisar a conjuntura em diversos aspectos,


social, politico e ideologico.

3. Especificidades do filme Segunda-feira ao sol


Segundo Alves (2005) o filme do diretor Arona retrata a situação social do de-
semprego de homens que não conseguem encontrar um lugar ao sol, devido a crise
estrutural que assola a sociedade burguesa. Um filme repleto de dramas pessoais e
singulares, o drama dos personagens como Santa, Lino, José, Amador e Serguei que
traz a luz a questão do trabalho vivo dilacerado pelo movimento do capital.

Segunda-Feira ao Sol fala como indica seu título, sobre um grupo de


pessoas que pode passar uma segunda-feira descansando sob o sol – e a
referência não é as pessoas em colônias de férias. O retrato aqui é dos
desempregados, homens sem perspectivas e sem ilusões, que lutam para
acordar de manhã e enfrentar todas as horas livres que têm pela frente.
Os tipos são bastante representativos: desde aquele que não se rende,
aceitando condições de trabalho aquém das anteriores, até o boa-vida
que espera que a boa sorte lhe caia do céu. Particulares situações do
cotidiano, como o relacionamento com a esposa que defende o sustento
do lar, ou o abandonado pela família que encontra no fundo do copo de
bebida seu último consolo, são outros momentos que ganham evidência
durante a projeção. (MILANI, 2018).

Em uma pequena cidade costeira ao norte da Espanha, os amigos desem-


pregrados Santa, Lino, José, Amador e Serguei encontram-se todos juntos no
pequeno bar de outro ex-metalurgico Rico, nesse ambiente partilham esperança
e frustações entre conversas e bebedeiras.
O personagem Santa é um homem solitário e um dos principais perso-
nagens, ex-lider sindical perdeu seu emprego na indústria naval assim como
os seus outros amigos no contexto da reestruturação produtiva, Antunes
explica (2006, p.165) “o neoliberalismo e a reestruturação produtiva da era
da acumulação flexível, dotados de forte caráter destrutivo, têm acarretado,
entre tantos aspectos nefastos, um monumental desemprego, uma enorme
precarização do trabalho”.
Mesmo os funcionários assinando um acordo abrindo mão dos seus di-
reitos como garantia dos postos de trabalho, eles são demetidos quando o

799
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

estaleiro é fechado e adquirido por investidores coreanos para implatarem


no local um hotel.
Os personagens principais de Segunda feira ao sol, estão entregue ao
desemprego estrutural, Alves (2012) explica, que o desemprego em massa
tornou-se, sob o capitalismo global, um problema estrutural que descons-
titui o homem-que-trabalha. O capitalismo global virou uma máquina de
destruir carreiras profissionais.
Os ex-metalurgicos da indústria naval perderam o seus empregos e mais
além, os seus postos de trabalho não existem mais pela extinção da ins-
dústrial naval, dessa forma as suas habilidades ficam desaproveitadas, para
continuar no mercado de trabalho “há uma massa de trabalhadores precari-
zados, sem qualificação, que hoje está presenciando as formas de part-time,
emprego temporário, parcial, ou então vivenciando o desemprego estrutu-
ral” (ANTUNES, 2006 p.17).
Na balsa entitulada Lady Espanã estão uma parte do grupo de desemprega-
dos em plena segunda feira, os amigos Santa, José e Lino, esse último desempre-
gado busca ser recolocado no mercado de trabalho.

Lino lê no jornal, um aviso de emprego e se defronta com os requisitos de


contratação que tendem a excluir do mercado de trabalho homens como ele
– desempregado de meia-idade. Exige-se, por exemplo, boa aparência, limite
de idade, carro próprio e conhecimentos de informática.  (ALVES, 2005).

Essas são condicionalidades que o mercado de trabalho concorrencial do ca-


pitalismo tardio impõe para homenes (mulheres) que estão fora da faixa etária,
excluindo os mais velhos.
Os ex-metalúrgicos são obrigados a buscar trabalhos precarizados em outros
ramos, a mercê de ocupações ocasionais, Santa o ex-sindicalista nega a verdade
do desemprego, mas ele e os outros amigos estão mergulhados no desemprego,
alcoolismo, frustações e conflitos familiares.
O filme mergulha no cotidiano dos personagens, homens com uma vasta
experiência de trabalho sendo operários na indústria naval e que após serem
demitidos ficam vagando na cidade, alguns à procura de serem recolocados no
mercado novamente mesmos sem ter lugares para eles.

No mundo do capital subsumido a lógica do trabalho assalariado, torna-se


impossível uma vida plena de sentido, haja visto o fato de que o homem passa

800
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

a fazer do trabalho assalariado tão-somente meio de subsistência voltado


para a fruição do consumo alienado, invertendo, deste modo, a relação que
teria com o trabalho como atividade produtiva. (ALVES, 2012, p.21).

Na busca diária de conseguir um novo emprego, um consegue ser segurança


de estádio de futebol, outro fica acompanhando os anúncios do jornal e outro
abre um bar, onde todos se encontram diariamente.
Segundo Alves (2005), sem o trabalho os personagens ficam dispersos na
temporalidade uma passagem que demonstra bem esse sentido atemporal, no
filme, por exemplo, é Santa quem sempre se interroga: “que dia é hoje?”. De-
monstra como os ex-metalúrgicos que estão sem trabalho, sem sua ocupação
rotineira ficam a flutuar no tempo.
As diversas instabilidades, financeira, social, familiar, de saúde afeta a todos,
Alves (2012) explica, na medida, entretanto, que o desemprego se torna de longa
duração, ocorrem abalos estruturais nos laços familiares e esse abalo é visto no
núcleo familiar de José que vive uma instabilidade financeira no seu casamento,
desempregado a mais de quatro anos é sua esposa Ana que mantém as finanças
da casa, trabalhando no horário nortuno em um emprego mal pago e precário.
Segundo Alves (2005):

José não é mais o provedor na relação de casal. Tal como o personagem


Dave, (do filme “Ou Tudo Ou Nada”, de Peter Cattaneo), José é um
homem deslocado em todos os sentidos – do mercado de trabalho e
do mercado de afetos. Ele está inseguro a respeito dos sentimentos da
mulher Ana. Ela trabalha e José, não. Mas em “Segunda-Feira Ao Sol”,
José é um personagem inerte – apenas divaga, ao lado de Santa e dos
companheiros de bar. Por exemplo, logo na abertura do filme, aparece
preenchendo um bilhete de loteria. Talvez não se iluda mais com os
anúncios de emprego ou a ideologia da empregabilidade. Busca a sorte –
afinal, vive-se no mundo da suprema contingência.

Os laços ficam distantes entre eles durante o decorrer do filme, Ana pensa
em separar de José mas no final quando juntos comentam sobre o suicidio de
Amador um dos amigos de José, ela tem medo que José cometa o mesmo.
Segundo Alves (2005):

O personagem Amador é um personagem interessante. É a própria


expressão da desefetivação proletária. Ele expõe a situação-limite

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

dos parceiros desempregados do Bar Naval. Amador é a síntese do


Nada, da completa perda de sentido de realidade, em si, mas não para
si, pois através dele, em seu diálogo, ele divaga de modo elíptico e
parabólico, sobre a essência da forma de ser do mundo burguês. O
suicídio enigmático de Amador – suicídio ou queda repentina? –
traduz o ponto final de uma vida sem sentido – vale dizer, sem sentido,
mas, como salientamos, com plena consciência de si, dos impasses da
condição pós-moderna. Amador talvez tenha sido como Santa, um
grande agitador sindical, no local de trabalho. No decorrer do filme,
ele oculta de seus companheiros que foi abandonado pela mulher.
Sentado num cantinho no balcão do bar Naval, é um tipo calado e
solitário. Enfim, não possui mais gana de viver. 

O casal José e Ana conseguem fazer um reecontro de sentido emocional,


entendendo as vulnerabilidades e as dificuldades que passam juntos, ela teme
que José possa fazer o mesmo contra sua vida “aconteceu com Amador, mas
poderia estar acontecendo também com José e com ela. É a situação comum
àqueles que não têm nada a não ser seu trabalho.” (JARDIM, 2009).
Segundo Jardim (2009):

Uma das cenas mais provocantes ocorre no espaço do bar, quando


se inicia uma discussão entre os que trabalham e aqueles que não
trabalham, sendo mantidos pelos recursos de proteção social. Santa
então recupera a história que desembocou no fechamento da empresa
e na demissão coletiva, lembrando que a greve visava a manutenção
dos postos de trabalhos de todos, e que foi um momento importante
quando todos - efetivos e temporários - estavam juntos, do mesmo lado.
Criticando, ainda que compreendendo, os colegas que assinaram o
acordo e ganharam uma indenização, Santa mostra como eles estavam
assinando uma espécie de sentença de morte para si mesmos e para as
futuras gerações - não tinham mais idade para voltar ao mercado e,
ainda, extinguiam os postos que poderiam empregar seus filhos.

Santa como homem solitário, tenta sobreviver alimentando sua subjetivi-


dade com fantasia, junto com seus colegas desempregados, Jardim (2009) “a
observação final de Santa é de que são todos como irmãos siameses: iguais;
de certa maneira, a despeito das diferenças e das novas clivagens, estão todos
no mesmo barco”. Igualmente o filme aborda uma balsa nomeada como Lady

802
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Espanã, mostrando os seus personagens flutuar sobre o mar, como se estivesse


a mercê do tempo.

4. Crise do capital e desemprego


Nessa sociedade de classes, o trabalhador apenas possui a sua força de tra-
balho para vender como forma de sobrevivência. Além do trabalhador está em
situação desfavorável com somente sua força de trabalhado, o capital apropria-
-se de trabalho excedente e não pago para gerar mais riqueza, destacando ainda
os trabalhadores em reserva, fora do mercado de trabalho esperado uma opor-
tunidade conveniente para o mercado.
Conforme Iamamoto (2013, p.330):

Sabemos que o capital é uma relação social por excelência que, na


sua busca incessante de lucro, tende a expandir-se indefinidamente
por meio da apropriação de trabalho não pago dos trabalhadores. [...]
outra condição e resultado contraditório desse mesmo processo é a
ampliação da superpopulação relativa – ou população “sobrante” para
as necessidades médias de valorização do capital –, fazendo crescer o
desemprego e a precarização das relações de trabalho.

Essa população sobrante, “uma massa de trabalhadores que passam da con-


dição de assalariados com carteira para trabalhadores sem carteira assinada.”
(ANTUNES, 2006, p.58), sofrem com a precarização do trabalho das relações
trabalhistas, flexibilizadas e temporárias.
Conforme Santos (2008, p.150) “faz parte desse quadro, em nível mundial,
o aumento sem precedentes do desemprego, decorrente da adoção das novas
tecnologias poupadoras de mão-de-obra”.
Essas tecnologias que diminuem a mão-de-obra também reduzem os custos
com o trabalho, objetivo do capital é a exploração do trabalho a um custo baixo,
portanto o avanço da microeletrônica, conforme Santos (2008) são caracterís-
ticas da acumulação flexível que impactam no processo e na forma de trabalho,
modificando a forma de produção, afetando diretamente o trabalhador.

O mais brutal resultado dessas transformações é a expansão, sem


precedentes na era moderna, do desemprego estrutural, que atinge o
mundo em escala global. Pode-se dizer, de maneira sintética, que há

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o operariado


industrial e fabril; de outro. Aumenta o subproletariado, o trabalho
precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o trabalho
feminino e exclui os mais jovens e os mais velhos. Há, portanto, um
processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da
classe trabalhadora. (ANTUNES, 2006, p.49).

Ao mesmo tempo em que o desemprego exclui os trabalhadores do mercado,


deixando-os na reserva esperando o capital absolverem novamente, sendo a
decisão tomada quando o capital achar propício.
“Houve uma expressiva queda das oportunidades ocupacionais no setor pro-
dutivo que, embora preservado, passa a não mais absorver em proporções satis-
fatórias o aumento da população ativa.” (SANTOS, 2008, p.21).
Por outro lado, esses mesmos trabalhadores que estão fora do mercado de
trabalho formal, encontram espaço para sobreviverem no campo informal, sem
proteções trabalhistas.
Conforme Antunes (2006, p.52):

Subproletarização do trabalho, presente nas formas de trabalho


precário, parcial, temporário, subcontratado, “ terceirizado” ,
vinculados à “ economia informal” ,entre tantas modalidades
existentes. Como diz Alain Bihr (1991: 89), essas diversas categorias
de trabalhadores têm em comum a precariedade do emprego e da
remuneração; a desregulamentação das condições de trabalho em
relação às normas legais vigentes ou acordadas e a consequente
regressão dos direitos sociais, bem como a ausência de proteção e
expressão sindicais, configurando uma tendência à individualização
extrema da relação salarial.

Sem o emprego formal, o cenário de ocupações informais aumenta, os


trabalhadores buscam uma forma de sobrevivência, a crise do capital e seu
rebatimento na desindustrialização, são fatores que joga esses trabalhadores
para o mercado informal.
“A miserabilidade presente nas grandes capitais, às altíssimas taxas de
desemprego, a desindustrialização de inúmeros complexos produtivos são
algumas expressões mais visíveis da crise aguda que marca a sociedade
capitalista” (ANTUNES, 2006, p.147).

804
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

No filme Segunda feira ao sol, o motivo para que muitos personagens estejam
desempregados, foi exatamente a desindustrialização do estaleiro naval onde tra-
balhavam, deixando o grupo de amigos operários sem seus postos de trabalho.

A desindustrialização expressa no fechamento de empresas que não


conseguem manter-se na concorrência com a abertura comercial, o que
redunda na redução dos postos de trabalho; no desemprego, na intensificação
do trabalho daqueles que permanecem no mercado; na ampliação das
jornadas de trabalho; da clandestinidade e da invisibilidade do trabalho não
formalizado, entre outros aspectos. (IAMAMOTO, 2013, p.332).

Iamamoto (2013), explica que as situações daqueles trabalhadores que con-


seguem permanecer no mercado de trabalho formal encontram-se em situações
precárias, com carga horária aumentada, e outros no mercado informal sem
proteção trabalhista, dessa forma com a categoria fragilizada a organização da
classe trabalhadora como os sindicatos sofre o enfraquecimento.
“A fragmentação da classe trabalhadora a partir da fragilização de seus vín-
culos empregatícios é notável, enfraquecendo os mecanismos sindicais”. (SAN-
TOS, 2008, p.150).
Esse enfraquecimento da classe trabalhadora por causa da perda dos seus
postos de trabalho, como já foi mencionado, afeta além dos trabalhadores as
organizações da classe trabalhadora como sindicatos e associações.

As conjunturas de crises são as que mais dificultam a organização dos


trabalhadores – especialmente a organização operária – devido à maior
precariedade das condições de vida, de trabalho, ao aumento da concorrência
por vagas de emprego, ao rebaixamento salarial e ao crescimento do desemprego
e desregulamentação das relações de trabalho. Ela é acompanhada de ampla
investida ideológica por parte do capital e do Estado voltada à cooptação
dos trabalhadores, agora travestidos em parceiros, solidários aos projetos do
grande capital e do Estado. (IAMAMOTO, 2013. p.333).

Esse é o mundo do trabalho, trabalhadores inseridos no mercado formal e


outros vendendo sua força de trabalho no setor de serviços em subcontratos,
terceirizados, temporários e etc.

Mundo do trabalho, nele incluído desde os trabalhadores produtivos,


“estáveis”, até o conjunto dos trabalhadores precários, daqueles que

805
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

vivenciam o desemprego estrutural etc. E este conjunto de segmentos,


que dependem da venda da sua força de trabalho, que configura a
totalidade do trabalho social, a classe trabalhadora e o mundo do
trabalho. (ANTUNES, 2006, p.98).

Nos países de capitalismo central a crise repercute fortemente na industrialização


com o avanço tecnológico, para diminuir os custos do trabalho e a mão-de-obra.

A crise penetra no centro dos países capitalistas, numa intensidade


nunca vista anteriormente. Paralelamente à globalização produtiva, a
lógica do sistema produtor de mercadorias acentuou em tal intensidade a
concorrência intercapitalista que converteu a busca da “produtividade”,
da “modernidade”, em um processo autodestrutivo que gerou, entre
outras consequências nefastas, a criação sem precedentes de uma
sociedade de excluídos, não só nos países de Terceiro Mundo, mas no
coração dos países avançados. O salto tecnológico de que é exemplo o
japonês, seguido pelo avanço alemão tem ocasionado a desmontagem
de inúmeros parques produtivos que não conseguem acompanhar a
lógica perversa da “ produtividade”. (ANTUNES, 2006, p.145).

Como o autor afirma esse processo autodestrutivo de desmonte e desindus-


trialização dos postos de trabalho, faz com que cada vez mais homens e mulhe-
res fiquem fora do mercado formal de trabalho, sendo submetido a aceitarem
qualquer labor para sua manutenção, o pior dos lados é o desemprego estrutural
que a lógica do capital produz.
“O desemprego estrutural aparece, nesses países, em decorrência da tran-
sição para a acumulação flexível e tendo como “alvo” a desregulamentação do
regime de trabalho”. (SANTOS, 2008, p.143).
Essa desregulamentação do regime de trabalho atinge a classe trabalhadora
tradicional, como explica Antunes (2006), esse feito causou uma grande di-
minuição da classe operária, por outro lado houve um aumento expressivo do
trabalhador no setor de serviços e o crescente contingente feminino no mundo
do trabalho, na expansão do trabalho temporário, subcontratado, precarizado.

Considerações finais
Diante das análises realizadas do filme segunda feira ao sol sobre a cate-
goria trabalho concluiu que a classe trabalhadora vai sendo fragilizada com

806
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

o avanço da acumulação flexível e a busca por maiores produções de bens e


produtos para acumulação capitalista.
A acumulação flexível expandiu o processo de produção por todo o glo-
bo, deslocando a produção para regiões antes não industriais, flexibilizando a
produção, com isso, implementando a desregulamentação, a flexibilização e a
terceirização latentes no mundo do trabalho.
Segundo Antunes (2010, p.177), “são expressões de uma lógica societal onde
o capital vale e a força humana de trabalho só conta enquanto parcela impres-
cindível para a reprodução desse mesmo capital”.
Como já foi citado, o produto primordial é à força de trabalho, e essa
massa que é criado pelo modo de produção capitalista, pode ser ativa, pro-
duzindo riqueza e sendo explorados de várias formas, empregos temporá-
rios, terceirizados ou inativos com o desemprego estrutural, dependendo do
interesse do capital.
“Essas mutações criaram, portanto, uma classe trabalhadora mais hetero-
génea, mais fragmentada e mais complexificada, dividida entre trabalhadores
qualificados e desqualificados, [...] formal e informal, jovens e velhos.” (ANTU-
NES, 2006, p.184).
A consequência é um desgaste sobre a classe trabalhadora, alguns valores
do mundo capitalista vêm aumentando a competitividade, o individualismo, a
intensificação da exploração da força de trabalho, em atividades precárias, etc.
Diante das reflexões expostas o cinema pode contribuir essencialmente para
chamar atenção aos assuntos mais variados possíveis na sociedade, em especial
aos assuntos sobre desigualdades sociais e seus rebatimentos.
A arte usada como recurso metodológico colabora com a valorização do ser
humano e a formação crítica do indivíduo, proporcionando inúmeras reflexões
e análise acerca dos assuntos latentes na sociedade, como foi citado nesse proje-
to, à questão do trabalho e suas mutações no contexto neoliberal.

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809
Capítulo VIII
Direito Penal e Marxismo
A construção política, legislativa
e ideológica da proibição da
maconha no Brasil

Douglas Diógenes Holanda de Souza1


Dayane da Silva Mesquita2
Luan Fonseca Araújo3

Introdução
A guerra às drogas é uma grande problemática do século XXI. O molde político
que está posto mostra resultados devastadores, entre eles: mortes, torturas e prisões.
A sociedade como um todo, mídia, a burguesia, a classe trabalhadora muito discute
sobre assuntos relacionados às drogas, mas poucos procuram saber sobre suas raízes
históricas. Tudo isso ocorre porque há interesses que estão em volta dessa política.
Esse estudo tem por finalidade desvendar os vestígios da proibição da maconha no
Brasil. A partir das investigações de legislações, documento de governos, materiais
científicos podemos evidenciar eventos históricos importantes para a compreensão
da proibição das drogas em geral e, principalmente da maconha.
Esse artigo é baseado no método marxista materialista-histórico-dialético.
Trabalharemos com materiais bibliográficos, como livros, artigos virtuais e

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), membro do


Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC), do Centro de Referência
em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH) e do Diretório Central dos Estudantes Romana Barros
da UFERSA.
2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e pesquisadora de
campo da UNB.
3 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC), do Centro de Referência
em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH) e do Diretório Central dos Estudantes Romana Barros
da UFERSA.

813
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

impressos, além de legislações e documentos oficiais. Ao decorrer das páginas


abordaremos eventos concretos e materiais que influenciaram e trouxeram mu-
danças na vida dos povos. Ademais, nos amparemos na história, como fonte
fundamental dessa análise, elencando pontos importantes. Por fim, apontare-
mos contradições e antagonismo de interesse entre as classes sociais, como for-
ma de procurar entender o problema de maneira holística.
Em suma, ao decorrer do trabalho se busca que os leitores compreendam que
a maconha, planta antiga e de vários dotes, é muito mais do que se falam nas
“mesas das casas”. Muito mais do que é construído nos noticiários, os quais de-
monizam a figura do usuário, ou do traficante como um inimigo a ser extermi-
nado. Muito mais do que é transmitido por políticos moralistas que induzem em
pleitos que essa planta é a “entrada para outras drogas” Ela possui uma história,
cheia de transformações e construções ideológicas sobre seus derivados. O objeto
dessa pesquisa é a proibição da maconha no Brasil e seu objetivo é compreender
os caminhos traçados aqui, como se deu sua proibição e quais os interesses con-
cretos de classes estão imersos na criminalização de uma simples planta. Diante
disso, em primeiro ponto abordaremos a construção social da proibição das drogas
no Mundo. Em seguida, como se deu esse formato no contexto brasileiro e sua
consequência sobre a maconha. E por fim, analisar a relação entre o direito e o
marxismo, e procurar a possibilidade de superação do problema trazido no texto.

1. História da construção social da proibicionismo

1.1. Construção do proibicionismo no Brasil e no mundo

A história da humanidade e da configuração de suas civilizações sempre


esteve interligada com drogas em geral. Sendo assim, a história dos alimentos,
do fogo, da escrita, do comércio e da política estão intrinsicamente ligadas a
questão das drogas. A história do proibicionismo é bem recente; seu início tem
pouco mais de 100 anos. Neste lapso temporal que se começou a proibir o uso
de certas drogas e por meio disso foram colocadas no rol de substâncias ilícitas.
A história dessa proibição define o percurso da humanidade, e como vimemos

814
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

nos dias atuais. (LUNARDON4, 2015) A construção social da proibição das


drogas é hoje um problema determinante no que tange o debate sobre seguran-
ça pública no Brasil e no mundo. A construção social dessa política tem como
berço o Estado Norte-americano, no início no século XIX. (LAVOIS5, 2016).
A evolução dessa política tem se mostrado preocupante, uma vez que cada vez
mais a violência predomina sobre tal questão, principalmente no decorrer do
século XX. Dessa forma, ressalta LUNARDON:

A evolução das políticas criminalizantes levou ao que Richard Nixon, então


presidente dos Estados Unidos, chamou, em 17 de julho 1971, de guerra às
drogas. Os (ilegais) entorpecentes tornavam-se o "inimigo público número
um", segundo o discurso do presidente. A partir daí, foram bilhões de dólares
gastos, milhões de pessoas encarceradas, e rios de sangue - em geral preto,
pardo e pobre - derramados da favela até o asfalto das grandes cidades até
que se começasse a declarar: a guerra falhou. Depois de todos os esforços, o
planeta não reduziu o número de usuários de drogas nem a força do tráfico,
pelo contrário. Segundo o último World Report on Drugs, de 2013, estudo
anual realizado pelo Escritório sobre Drogas e Crime da Organização das
Nações Unidas, entre 162 milhões e 324 milhões de pessoas (de 3,5% a 7%
da população mundial) fez uso de drogas consideradas ilegais. A maconha,
substância mais utilizada mundialmente, tem de 2,7% a 5% da população
mundial como usuária: de 125 a 227 milhões de pessoas. No Brasil, segundo
o estudo, que utilizou dados de 2011, 8,8% da população entre 16 e 64 anos
fez uso da maconha ao menos uma vez durante o ano. Entre os jovens (10
a 19 anos), com dados de 2010, 5,7% havia experimentado maconha pelo
menos uma vez na vida, enquanto 2% eram usuários mensais da erva. (UN,
2013). O estudo também demonstra que somente 1 em cada 6 usuários
no mundo tem acesso a algum tipo de tratamento (que não o penal) com
relação ao uso de qualquer droga ilícita. (LUNARDON, p. 12-13)

4 Pesquisador, mestre em Ciência Política pela UFRGS. ([email protected]), autor


do artigo: Maconha, Capoeira e Samba: a construção do proibicionismo como uma política
de criminalização social.
5 Juiz de Direito titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas. Mestre e doutor em Criminologia
e Direito Penal pela Universidade de São Paulo - USP, Largo de São Francisco. Pós-doutorando em
Criminologia na Universidade de Hamburgo, Alemanha. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais - IBCCrim e da Associação de Juízes para Democracia - AJD. Escritor do livro: O Direito
Penal da Guerra às Drogas.

815
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

As drogas acabam se convertendo em um grande eixo, que percorrem o plano


moral, político, religioso e étnico. Nela se constrói a imagem de um inimigo inter-
no, e paralelo a isso produz grandes verbas para o capitalismo industrial de guer-
ra. Esse grande modelo bélico proporciona marcas no capitalismo jurídico, assim
como corrobora com banalização da morte. Os efeitos dessa política atingem com
mais ênfase determinada classe social: os trabalhadores jovens, especialmente os
mais pobres e com o recorte étnico. (BATISTA6, 2003). No que se referem os
marcos legais dessa discussão, a Convenção Única sobre Entorpecentes, aprovada
em 1961 tem muito a contribuir sobre a temática. Ela, por sua vez, recebeu novas
informações normativas pelo Protocolo de 1970. Já se havia aí um caráter proibiti-
vo sobre o comércio e consumo de algumas drogas, marcada pela implantação de
um sistema internacional de controle, colocando que os países membros deveriam
incorporar bases legais nacionais que contemplassem os acordos da convenção.
Diante disso, outra legislação foi colocada em curso: a Convenção das Nações
Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de
1988. A partir disso, é possível visualizar a repressão firme contra os entorpe-
centes, estabelecendo a problemática do tráfico internacional de drogas como de
responsabilidade global, fundamentada sobre vários princípios, entre eles o da res-
ponsabilidade compartilhada, que se orientará em sentido de neutralizar o tráfico.
A implantação dessa política de drogas, no século XXI tem-se mostrado algo
cheio de contradições. Dessa forma, para se compreender todas as correlações so-
ciais de poder sobre qualquer construção de ideias forças, é necessário se embasar
na história. A partir do estudo direcionado na maconha, podemos perceber pon-
tos elementares na construção política de sua proibição. Anos se passam, e outras
legislações que proibiam a venda de maconha se consolidaram, ainda com mais
repressão, como exemplo entraram em vigor, a Lei 6.368/1976, a Lei de Crimes He-
diondos (Lei 8.072/90), e a atual lei vigente: a Lei de Drogas (Lei 11.343/06). Após
alguns anos de implementação de tais políticas, um fator determinante é que o siste-
ma carcerário brasileiro disparou em número de pessoas nos últimos anos. Segundo

6 Bacharel em Ciências Políticas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(1981); Licenciada em Sociologia com ênfase em Metodologia pela Universidad Nacional Autónoma
de Heredia (1980); Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (1997);
Doutora (2003) e Pós-Doutora (2009) em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS)
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autora do livro: Difíceis ganhos fáceis – drogas e
juventude pobre no Rio de Janeiro.

816
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Silvestre e Melo7 (2017), a partir de 2001, a taxa de presos por 100 mil habitantes
era de 135. Com o passar de quase 10 anos este dado subiu para 306. Isso representa
um aumento de 127%. Segundo os autores isso representa um processo de “encar-
ceramento em massa”, noção essa que é usada por estudiosos sobre as mudanças do
sistema carcerário depois dos anos 70, especialmente nos EUA.

1.2. Criminlização da maconha no Brasil e seus vestígios


de dominação de classe.
Antes de chegar ao Brasil, a maconha não era criminalizada e tinha um
grande papel econômico na Europa, sendo ela utilizada desde os tempos do pa-
leolítico. A palavra maconha, escrita com as mesmas sete letras é um anagrama
da palavra cânhamo. Esta planta constituiu forte matéria-prima fundamental
para o Renascimento. Como exemplo, Gutenberg utilizou papel de cânhamo
para produzir uma faixa de 135 bíblias impressas no mundo. Um desses exem-
plares localiza-se no acervo da Biblioteca Nacional na Cinelândia, no Rio de
Janeiro. (BARROS e PERES8, 2011)
A cannabis chegou ao Brasil através dos trabalhadores negros, trazidos à
força do território da Angola, para trabalhar como escravos por volta de 1500.
As caravelas de Pedro Álvares tinham velas, cordas e trapos feitos da planta.
O óleo da maconha possuía diversas utilidades, fazia-se papel com seu caule,
além de as pessoas usarem roupas produzidas com sua fibra, que eram muito
mais resistentes do que a fibra feita de algodão. No que tange o uso psicoativo,
era comum entre os trabalhadores escravizados, que, segundo Lunardon (2015
p.03), trouxeram as sementes da maconha escondidas em suas roupas. É possí-
vel deduzir que já se tinha um caráter discriminatório com relação à planta e
aos costumes africanos, uma vez que se havia uma preocupação em esconder a
semente da planta. Era por costume até o século XX chamada de pito de Ango-
la ou diamba. Esta erva eram fumada, principalmente, em momentos de rituais
religiosos de origem africana. (LUNARDON, 2015)

7 Escritores do artigo: Encarceramento em massa e a tragédia prisional brasileira


8 Advogado criminalista, Mestre em Ciências Penais (UCAM) e Professora Adjunta da Escola de
Educação Física e Desportos , UFRJ. Doutora em Sociologia (UnB) autores do artigo: Proibição da
maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas.

817
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A proibição legal foi se consolidando aos poucos, onde por vezes se visuali-
zava tentativas de criminalização até mesmo antes do fim do trabalho escravo
legalizado. Diante disso, Lunardon (2015) traz importantes elementos:

A necessidade da repressão às drogas nasce com as contradições do


processo de abolição da escravatura no Brasil, em 1888. Com a perda da
ferramenta da escravidão há de se criar outras para que se possa controlar
a cultura negra que agora luta para fazer parte do tecido social existente.
Não se pode correr o risco de os negros impregnarem os brancos e seus
costumes, diziam à época políticos, governantes, cidadãos. Segundo
Henrique Carneiro (2002), Câmaras Municipais do Rio de Janeiro,
em 1830, de Santos, em 1870, e de Campinas, em 1876, já emitiam
documentos com vistas à proibição do uso recreativo de maconha. Estas,
apesar de iniciarem um processo, não foram efetivadas. Nessa época,
cigarros de maconha eram vendidos em lojas e tabacarias, também no
centro, mas principalmente nas periferias das cidades. Seu uso crescia
entre os brancos pobres, fazendo-se notar nas elites abastadas. Nas
primeiras décadas dos 1900 isso já era evidente. Clubes de diambistas
eram frequentes entre as comunidades negras, músicas exaltando a erva
tornavam-se populares e o folclore com relação à cultura da maconha
crescia. É interessante notar que o hábito coletivo do fumo da erva e
o processo de folclorização da prática eram preocupações constantes
para sociólogos e políticos da época, principalmente a partir dos anos
1930, quando o discurso do proibicionismo se tornou mais intenso.
(LUNARDON, 2015, p. 04-05)

Após o fim do trabalho escravo legalizado em 1888, do regime propriedade


sobre os corpos negros, agora se havia trabalhadores “livres” prontos vender sua
força de trabalho. Ou seja, os trabalhadores deixaram de serem propriedades
para serem mercadorias. Esses trabalhadores com esse fato conseguiram uma
espécie de emancipação política (MARX, 2010). Contudo arrisca-se dizer que
não é total, à medida que os produtos de sua cultura ainda estavam aprisiona-
dos às legislações. Sobre esse assunto, Florestan (2008) compreende que, com a
falta de apoio ao negro após a abolição da escravatura, os negros ficaram margi-
nalizados até do próprio processo de produção. Sua marginalização colocou em
descrédito também suas práticas culturais.
Por vezes, contudo não só ligados a rituais religiosos dos costumes negros,
os sentidos e significados expressivos dessa coletividade que se integravam a

818
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

partir do consumo da maconha instigava grande preocupação nas elites. Isso


serviu com uma ferramenta para o processo de estigmatização da cultura das
populações negras. Outros fatores também se difundiam pela sociedade brasi-
leira e incitavam a atenção e a preocupação das autoridades, como: o samba, a
capoeira e a umbanda. Fato intrigante, visto que todos esses elementos fazem
parte dos significados da coletividade cultural afro.
Ao decorrer da década dos anos de 1920, inaugura-se a primeira legislação
brasileira a criminalizar o uso da maconha em território nacional: o decreto fe-
deral de 6 de julho de 1921. (LUNARDON, 2015). Entretanto, cannabis indica
é oficialmente listada no Decreto N° 20.930, de 11 de janeiro de 1932. Estabe-
lece-se após a ratificação do Congresso Nacional do documento da Convenção
de Genebra. Anterior a isso, em 13 de julho de 1931 é assinado pelo Brasil um
documento destinado à elaboração de uma política global de combate às drogas
no ambiente da Liga das Nações, instituída pelo Comitê Central Permanente
do Ópio (LUNARDON, 2015) Passados alguns anos, a nação brasileira cria sua
primeira lei interna que proíbe a maconha. A criação dela inicia-se em 1937,
com a ditadura de Getúlio Vargas, e o que Luís Carlos Valois (2016) vai chamar
de “Brasil Americanizado”. Esse termo tem como fundamento o apoio financei-
ro ao Brasil pelo EUA com a implantação de usinas siderúrgicas.
No ano de 1915 houve uma importante ocasião: o Congresso Científico
Pan-Americano, realizado em Washington nos Estados Unidos. Neste evento,
foi representando o estado da Bahia, a Faculdade de Direito, a Faculdade de
Medicina. Além do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e a Sociedade de
Medicina Legal e Psiquiatra da Bahia, na pessoa do médico José Rodrigues da
Costa Dória. Dória, Natural de Sergipe, doutorou-se na UFB em 1882, assu-
mindo a cadeira de medicina legal e toxicologia na mesma instituição em 1885,
além de ter vida política ativa, sendo eleito deputado federal em 1887. Em sua
viagem aos Estados Unidos em dezembro de 2015, apresentou o trabalho que
se tornou a principal referência do proibicionismo da maconha no Brasil: “Os
fumadores de maconha: efeitos e males do vício”. Este trabalho de modo geral
ressaltou o discurso condenatório da maconha, que a cada dia vinha sendo
bem absorvido pelos cientistas, imprensa e autoridades. Essa linha de discurso
enquadrava o hábito na categoria de “toxicomania”, onde havia uma acusação
sobre as classes subalternas, diziam que elas eram consumidoras exclusivas da
erva, ressaltando a dimensão racial do uso da maconha no Brasil. Rodrigues

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Dória virou referência no assunto nas décadas seguintes e seus estudos foram
repetidos até meados da década de 1960. (SOUZA9, 2015)
Analisando os discursos da tese de Rodrigues Dória SOUZA (2015) apre-
senta importantes informações:

Outra tese importante para a criminalização da maconha foi


desenvolvida nas páginas do artigo de 1915. Foi Rodrigues Dória o
primeiro a tomar como predominante no Brasil o consumo de maconha
que havia entre as classes trabalhadoras. Ele viveu boa parte da vida
em sua cidade natal, Propriá, no interior de Sergipe, onde afirmou
haver um uso bastante difundido em “bordéis”, “quartéis”, “prisões”
e nas “feiras semanais”. Com base em observações feitas em Sergipe,
além de Salvador e no Rio de Janeiro, foi o pioneiro na associação que
se tornou inseparável no discurso e prática da repressão à maconha, a
de que seu uso psicoativo era uma exclusividade de “pessoas de baixa
condição”. Localizando-as “principalmente no norte do Brasil”, Dória
(1958, p.2) afirmou: ”[...] é nas camadas mais baixas que predomina
o seu uso, pouco ou quase nada conhecido na parte mais educada e
civilizada da sociedade brasileira”. (p.39)

Na ditadura de Vargas, dentro dos gabinetes do governo inicia-se um


processo de elaboração de uma nova legislação, só que dessa vez própria do
Brasil. Nesse sentido, SOUZA (2015) mostra indícios interessantes sobre a
formulação dessa lei:

Em seu gabinete no Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro, no dia 24 de


agosto de 1938, o Ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha,
encaminhada a Getúlio Vargas um ofício. Seguia em anexo o anteprojeto
do que viria a ser, alguns meses depois o Decreto-Lei n. 891, a norma
jurídica mais abrangente sobre o controle e repressão ao uso psicoativo
de drogas no Brasil até então. (p. 33)

9 Licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus II-Alagoinhas.


Mestre e Doutorando em História Social pelo PPGH da Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Atualmente sou Professor EBTT no Instituto Federal da Bahia - IFBA/Campus Jacobina. Concentro
meus estudos na história das drogas,discutindo temas relacionados ao consumo de substâncias
psicoativas, seus significados culturais e o proibicionismo contemporâneo; à criminalização da
maconha no Brasil dos séculos XIX e XX.. Escritor do livro: Sonhos da Diamba, Controle Cotidiano:
uma história da criminalização da maconha no Brasil republicano.

820
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Neste documento, no capítulo III há uma preocupação com a “saúde pú-


blica”, onde se destaca a necessidade de “internação” e “interdição civil” do
usuário de drogas, assim como a proibição do “tratamento de toxicômanos em
domicílio” como forma de lidar com o fenômeno. (SOUZA, 2015) Diante disso,
instaura-se o Decreto-lei N° 891 de Novembro de 1938. Esse dispositivo decla-
rava proibida uma gama de plantas e substâncias, incluindo a maconha, no Art.
1° inciso XVI. No que se refere às contravenções penais, o Art.33 desta mesma
lei estabelece que seja proibido: instigar por atos ou palavras o uso, venda e
emprego de qualquer substância entorpecente. Analisando o decreto, é impor-
tante destacar dois traços interessantes, e que tem grande valor demonstrativo
sobre a legislação: o primeiro é que, pelo contrário do que se vê na atualidade, o
usuário era punido muito mais severamente do que o comerciante e o produtor.
Um aspecto intrigante é de que o foco da criminalização era ao hábito social
do uso. O segundo traço, diz respeito ao nome do órgão encarregado de tratar
da questão das drogas, que é bem sugestivo, a qual o nome era: Delegacia de
Costumes, Tóxicos e Mistificações. (DCTM). (LUNARDON, 2015)
Essa Delegacia foi criada no Rio de Janeiro, por volta de 1934, para se en-
carregar da questão das drogas ilícitas, além de outras questões, como controlar
e reprimir as rodas de samba, a prática da capoeira e os rituais da umbanda.
Todos esses elementos faziam e fazem parte do universo cultural dos negros,
descendentes de trabalhadores escravizados. Essa política pública se mostra
uma grande evidência da criminalização dessa população. Essa Delegacia, não
só atuou na repressão interligada ao proibicionismo, como também a repressão
à cultura religiosa do folclore negro, elevando a um papel criminoso a prática
de certos hábitos dessa população. A repressão foi tão intensa que se desenvol-
veram formas de resistência na época, como a realização de seminários afro-
-brasileiros em 1934, na cidade de Salvador presidida por vários personagens
famosos da época, como Gilberto Freyre. (LUNARDON, 2015)
No período do Estado Novo, o Governo ditador de Getúlio Vargas enfa-
tizava a importância da DCTM, colocando-a como parte do Departamento
Federal da Segurança Pública, com a chegada do Decreto-Lei n. 6.378, de 28 de
março de 1944, quando há a formulação do Departamento Federal de Seguran-
ça Pública. Este, por sua vez, foi registrado no Diário Oficial da União, definin-
do as competências da DCTM, as quais eram: apuração de crimes que estavam
ligadas as drogas e saúde pública; questões que envolviam práticas religiosas;
infanticídios; abortos; meretrícios; julgamentos sobre a “moralidade pública e

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

decoro familiar”, casa de jogos e, inclusive, logradouros públicos de casa de ba-


nhos. De pouco em pouco foi liberado o samba, a capoeira, a umbanda e outras
práticas. Contudo, não a maconha, pelo contrário a criminalização evoluiu,
dela e de outras drogas. (LUNARDON, 2015)
No que se refere a discursão sobre quem é o personagem imputado como
“maconheiro’, Jorge Emanuel Luz Souza (2015) fornece boas contribuições:

Dentre as profissões de 61 “maconheiros” presos nas penitenciárias da


capital em 1949 listados no relatório de Pereiras, 50 são definidos como:
colchoeiro, jornaleiro, taifeiro, barbeiro, vendedor ambulante, engraxate,
aguadeiro, carregador, funileiro, motorista, coveiro, marítimo, mecânico,
peixeiro além de tecelões, carpinteiros, pedreiros, alfaiates, açougueiros
e sapateiros. Todas são ocupações das classes subalternas. Pode-se
encontrar também boa parte dessas categorias funcionais em linha de
frente das manifestações e dos conflitos sociais contra a carestia de vida
ao longo de toda a Bahia republicana até então. (p.92)

Nessa mesma perspectiva, a característica de “maconheiro” no Brasil havia


a algum tempo sendo aplicado a um vasto conjunto de personagens sociais que
eram identificados entre as “populações nordestinas pobres”. Suas característi-
cas “afeiçoadas” seriam da região da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Pará
e Maranhão, compostas por pessoas predominantemente “negras e pardas”. Po-
dendo ser também os “canoeiros e pescadores” e todos os tipos de embarcadi-
ços, estes acusados de serem os maiores responsáveis pela propagação do vício.
Eram enquadrados também os sertanejos, bem como os adeptos dos catimbós,
xangôs, e candomblés, estes seguimentos estariam entre o vasto e heterogêneo
conjunto de trabalhadores urbanos. Nas falácias da época: sem dúvida seriam
encontrados na posse de “gatunos”, malandros, boêmios, “larápios”, “munda-
nas” e “decaídas”. (SOUZA, 2015)
Esse universo das classes subalternas foi traçado por autoridades e especia-
listas por muito tempo como a moradia preferida da maconha no Brasil. O dis-
curso discriminatório contra a maconha até a década de 1960 era baseado em
seguintes argumentos “[...] seus viciados geralmente pertencem à última e mais
baixa escala social, são analfabetos e sem cultura” Estes argumentos são bem
intrigantes. Seriam só maconheiros só os de “mais baixa escala social”? Somen-
te os pobres consomem maconha? Obviamente não. Entretanto esse termo é

822
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

um elemento de criminalização da classe trabalhadora que consumia maconha,


com referência aos mais pobres e aos negros. (SOUZA, 2015)
Todo esse modelo implantado no Estado brasileiro foi baseado em modelos
de proibição de drogas nos Estados Unidos. A Lei Seca no EUA (1919 A 1932)
teve como fim conter hábitos dos miseráveis imigrantes irlandeses e italianos
chegados em território americano. Além de ser altamente desastrosa, essa lei
também surtiu efeitos no aumento de consumo de maconha na sociedade pu-
ritana estadunidense. O proibicionismo também incorporou práticas precon-
ceituosas e políticas de exclusão social contra negros e latinos vindos, de modo
geral do sul do país. Foram utilizados vários argumentos científicos médicos
para legitimar a criminalização da maconha, a exemplo, pesquisas da década
de 1930 em seguinte, quando era alegado que o uso de cannabis provocava em
negros e latinos preguiça, vagabundagem e desejos sexuais incontroláveis. Afir-
mavam que o consumo levava a práticas de estrupo e outras práticas sexuais
condenáveis, como orgias. Todas essas pesquisas nunca foram achadas, pois
eram forjadas pelas autoridades. (LUNARDON, 2015)
Vários anúncios e peças publicitárias da época ilustram como houve uma
construção de demônios incitados pelo governo e de certas elites que tinham
interesse na proibição da maconha. Essas imagens tinham grande potencial
manipulador, e eram veiculados em setores da comunicação. Nelas havia alertas
sobre os riscos decorrentes do uso e da disponibilidade da droga envolvendo
famílias e seus filhos. Cabe aqui ressaltar que nessas figuras havia a demoniza-
ção da imagem do negro, com uma forma diabólica, onde ele está pronto para
abusar sexualmente de uma mulher jovem branca. As palavras contidas nos
anúncios eram: “insanidade”, “degradação”, “deboche” e “fumaça do inferno”.
Enfatiza um caráter demoníaco e infernal da cannabis, e sempre atentando aos
vícios e pecados relacionados a seu consumo. (LUNARDON, 2015)
Outras imagens mostravam um ponto de vista da desnaturalização do ima-
ginário simbólico sobre as drogas ilícitas e sobre sua proibição. Pode-se compre-
ender que o ideário do senso comum não tem no horizonte a perspectiva de que
algumas drogas, como maconha e cocaína já foram produzidas e comercializa-
das regularmente, além de serem vendidas para fins medicinais e terapêuticos.
Na sociedade brasileira até o início da repressão mais intensa, eram comuns
nos cotidianos anúncios de cigarros de cannabis, em especial de espécie indica.
Esses anúncios eram muito comuns em jornais da época. Anúncios de marca
Grimault, a publicidade da época atentava para utilização deles para fins de

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

tratamento de certos problemas de saúde. No rótulo das embalagens era desta-


cado: “recomendada por autoridades médicas para doenças pulmonares, febre
de feno e laringite”. (LUNARDON, 2015)
Ademais, ainda analisando a construção da política de proibição da maco-
nha no EUA, foram construídas várias campanhas publicitárias sobre a maco-
nha, no período da Segunda Guerra Mundial como a da época do governo de
Franklin Roosevelt e 1942. Este tipo de mídia apresenta a produção de plantas de
cannabis e seu potencial industrial para ser transformada em fibra e óleos. Sua
produção foi incentivada em regiões estadunidenses, para ser usada na indústria
de mantimentos à guerra. Um filme de 13 minutos no mesmo ano, cujo nome
foi intitulado: “Hemp for Victory” (“Maconha para a Vitória”, em tradução li-
vre) também foi utilizado com propaganda para que os fazendeiros investissem na
plantação da maconha como matéria prima para mantimentos para à guerra. Isso
foi tão relevante que na articulação de proibição da planta nos Estados Unidos,
vários setores do empresariado concorrentes aos produtos advindos da maconha,
como do ramo do algodão e da indústria petrolífera foram grandes apoiadores
da campanha proibicionista pós-guerra. Vários foram os fatores que provocaram
a ânsia da proibição da maconha, dentre elas a invenção do maquinário para o
barateamento da colheita do algodão. Dessa forma, tiveram grande influência
das empresas têxteis em financiar a proibição não só no âmbito do uso recreativo,
mas também da existência da planta para qualquer fim, no objetivo de controlar
o mercado. Da mesma forma se deu na indústria petrolífera, que necessitava da
garantia do mercado consumidor para viabilizar os altos investimentos que eram
necessários ao ramo do petróleo e seu refinamento de óleos e plásticos. Acabar de
vez com a maconha, a grande produtora de fibra e óleos significava o domínio de
mercado. (LUNARDON, 2015)

2. Análise entre o direito e marxismo


Compreende-se, nesse sentido, que a legislação possuía e ainda possui um
recorte sociocultural, porém não é de se estranhar que tais leis se dirijam a
interesses de uma classe opressora. Engels e Kautsky10 (2012) chamam atenção
para que não se deixe cair na ilusão jurídica burguesa, mas entendem que os

10 Escritores do livro: O Socialismo Jurídico.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

socialistas devem possuir suas reivindicações legais. Os direitos fundamentais


por vezes tem pouca eficácia prática, mas não deixam de ter utilidade. Para real
transformação da realidade da classe trabalhadora, é importante que os operá-
rios percebam alguns elementos reforçam Engels e Kautsky:

Para que a classe operária possa transformar as relações sociais


existentes, é necessário que rompa com a ideologia jurídica, pois ela “não
pode exprimir plenamente a própria a própria condição de vida na ilusão
jurídica”, de modo que os trabalhadores possam compreender essas
condições na própria realidade, a partir da demonstração de que “todas
as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas
etc, - derivam, em última instância, [...] de seu modo de produzir e trocar
produtos”. (2012, p.14)

Para Pachukanis11 (2017) a perspectiva do direito privado espelha direta-


mente as condições mais gerais da existência da forma jurídica como tal. Então,
se tratando do direito penal, a sua esfera na relação jurídica atinge a máxima
tensão. (PACHUKANIS, 2017) O caráter jurídico e seus procedimentos iniciou
uma visão dramática, em que um lado está o mundo real, e do outro uma exis-
tência jurídica particular. Todas as áreas do direito tem uma grande capacidade
de afetar os indivíduos, mas o direito penal, em especial, tem a potência de
atingi-los de uma forma muito mais brutal. Por essa razão, sua finalidade sempre
atraiu para si um pragmático e árduo interesse por trás de seus instrumentos.
(PACHUKANIS, 2017)
Historicamente, a formação do direito penal esteve interligada ao costu-
me da vingança e do sangue. (PACHUKANIS, 2017) O delito é conside-
rado na visão de Pachukanis (2017) uma variante particular de circulação,
na qual a relação de troca, ou seja, a relação contratual é estabelecida entre
o delito e a reparação, fazendo que essa máxima se reduza a proporção de
troca. (PACHUKANIS, 2017) Na Idade Média, às chamadas penas públicas,
originalmente, foram introduzidas, por preocupações fiscais, que, sobretudo,
serviam para encher os cofres dos representantes do poder. Ademais, paralelo
as penas públicas como fonte de renda, logo se formulou a pena como sendo
também meio de manutenção da disciplina, além de medida de salvaguarda
da autoridade do sacerdote e do poderio militar. Diante disso, o direito penal,

11 Escritor do livro: Teoria Geral do Direito e Marxismo.

825
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

constituído sob os princípios da vingança privada, é um forte meio eficiente


de manutenção da disciplina social, ou seja, da dominação de uma classe so-
bre a outra. (PACHUKANIS, 2017)
O processo de transição entre o Estado medieval e o Estado burguês passou
por uma secularização da visão teológica. Nesse sentido, o dogma e o direito
divino foram substituídos pelo direito humano e a Igreja pelo Estado. O que
antes era representado como criação do dogma e da Igreja agora se representa
fundadas no direito pelo Estado. A concorrência vira forma fundamental das
relações entre livres produtores de mercadorias, e por usa vez a igualdade ju-
rídica tornou-se a principal pauta de guerra da burguesia. A reivindicação por
igualdade, assim como do produto integral do trabalho, perdia-se em contradi-
ções insolúveis. (ENGELS e KAUTSKY 2012)
Se debruçando ainda sobre a construção do direito penal, Pachukanis (2017)
nos traz cruciais reflexões sobre esse eixo de estudo:

O surgimento de uma hierarquia eclesiástica e de uma hierarquia


laica coloca em primeiro lugar a proteção de seus privilégios e a luta
contra as camadas mais oprimidas da população. A desintegração da
economia natural e, com isso, o aumento da exploração dos camponeses,
o desenvolvimento do comércio e a organização do Estado de castas
implicarem outras tarefas para a justiça criminal. Nessa época a justiça
criminal se torna para o poder já não tanto um meio de provisionamento
de receitas quanto um meio de repressão implacável e brutal às pessoas às
“pessoas insolentes”, ou seja, na primeira linha estavam os camponeses
fugidos da exploração insuportável dos senhorios e do Estado enquanto
proprietário, as populações pauperizadas, os vagabundos, os mendigos
etc. Papel principal começa a desempenhar o aparato policial e
inquisitório. As penas se tornam meios para o extermínio físico ou de
intimidação. Essa é a época das torturas, dos castigos corporais e de
formas brutais de pena de morte. ( p.171)

É nesses moldes que se constrói, progressivamente, o amálgama complexo do


direito penal da contemporaneidade. Nesse sentido, podem-se separar facilmente
as raízes história das quais ele é formado. Analisando, essencialmente do ponto
de vista sociológico, a nascente sociedade burguesa, por meio dos instrumentais
da sistemática penal, salvaguarda seu domínio de classe e mantém a obediência
e a exclusão da classe explorada. Nessa relação, suas organizações privadas e

826
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

seus tribunais “livres” de fura-greves perseguem um único e mesmo objetivo. Se


visualizarmos essa questão a partir desse ponto de vista, o tribunal penal é somente
um apêndice do aparato de polícia e investigação. (PACHUKANIS, 2017)
A justiça criminal do Estado onde a classe dominante é a burguesia se es-
tabelece com um terror de classe organizado, que pouco se diferencia em certo
grau das chamadas medidas excepcionais aplicadas no memento de guerra ci-
vil. Spencer citado por Pachukanis (2017) indica por meio de uma interessante
analogia a identidade entre uma reação defensiva dirigida a um ataque externo
(guerra) e a reação dirigida a um ataque contra um infrator de origem interna
(defesa jurídica ou tribunal). É importante destacar que as medidas do primei-
ro gênero, ou seja, as penas-punitivas são aplicadas principalmente contra ele-
mentos que estão à margem da sociedade. As medidas de segundo gênero são
direcionadas contra militantes ativos da nova classe que ascendem ao poder.
Para compreender o verdadeiro sentido da ação punitiva do Estado e da classe
é necessário partimos de uma natureza antagonista. As chamadas teorias do
direito penal com seus princípios da política penal e os interesses da sociedade
como um todo, praticam de forma consciente ou inconsciente uma deformação
da realidade. O ideário da “sociedade como um todo” só existe no imaginário
desses juristas. (PACHUKANIS, 2017)
Em verdade, diante de nós temos classes com interesses contraditórios.
Historicamente, qualquer sistema dado de políticas punitivas traz consigo
impresso os interesses da classe que a realizou. No período medieval, o se-
nhor feudal condenava a execução alguns camponeses e cidadãos rebeldes e
contrários à postura de dominação. Era considerado um infrator da lei, por
exemplo, aquele que queria exercer artesanato sem estar encaixado em uma
oficina. A burguesia capitalista, que tinha acabado de nascer, declarou como
crime o almejo de trabalhadores de se unirem em associações. Nessa perspec-
tiva, os interesses de classe marcam a especificidade histórica de cada molde
do sistema penal. (PACHUKANIS, 2017)
Se por seu conteúdo e seu caráter a prática penal do poder é um instrumen-
to de defesa dessa dominação de classe, então, diante de sua forma, ela surge
como um elemento da superestrutura jurídica. Assim integra a ordem jurídica
como um de seus ramos. (PACHUKANIS, 2017) Sabendo que o direito penal
torna-se parte integrante da superestrutura jurídica, visto que encarna em uma
variedade dessa forma fundamental à qual a sociedade moderna está subordina-
da, ela também está subordinada a forma de troca de equivalentes com todas as

827
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

suas consequências e implicações. A manifestação dessas relações de troca no


direito penal é um dos lados da realização do Estado de direito como uma forma
ideal de relação entre os produtores de mercadorias independentes e iguais que
se defrontam no mercado. Contudo, assim como as relações abstratas não es-
tão limitadas às relações abstratas entre proprietários de mercadoria, o tribunal
penal é somente a consolidação da forma jurídica abstrata, e assim, uma arma
imediata da luta de classes. (PACHUKANIS, 2017) Em suma, quanto mais pro-
funda e tensa for essa luta, mais complexo e difícil se tornará exercer o domínio
de classe na forma do direito. A figura do tribunal “imparcial” com suas garan-
tias é na verdade ocupado pela organização da violência de classe direta, a qual
em suas ações se orienta apenas por considerações partidas de conveniências
políticas. (PACHUKANIS, 2017)
Diante de tais considerações, apenas com a completa extinção das classes
se dará a possibilidade de se construir um sistema de política penal do qual
serão afastados quaisquer elementos de antagonismo. Entretanto, há de se
questionar se em tais condições haveria a necessidade de um sistema penal.
(PACHUKANIS, 2017) Engels e Kautsky (2012) refletindo sobre as obras de
Marx compreendem que ele nunca projetou reivindicações jurídicas de ne-
nhum tipo em suas obras teóricas. Para Marx, o direito jurídico apenas reflete
as condições econômicas de determinada sociedade. Na verdade o direito
ocupa uma posição secundária nas pesquisas teóricas do autor. Aparecem em
primeiro plano à legitimidade histórica, as situações específicas, os modos
de apropriação, as classes sociais de determinadas épocas, ondem o exame
interessa fundamentalmente aos que veem na história um desenvolvimento
contínuo, apesar de contraditório e não simples caos de brutalidade e loucu-
ra como se havia no século XVIII. As reivindicações que são resultadas dos
interesses comuns de uma classe social só podem ser realizadas quando esta
determinada classe consegue conquistar o poder político. Assim, suas reivin-
dicações alcançam uma validade universal na forma de suas leis.

Considerações Finais
Diante desse estudo, podemos chegar a algumas conclusões. Uma delas, é
que partindo do pressuposto de Engels e Kautsky (2012), de que os juristas que
tenham a perspectiva revolucionária não podem se deixar enganar na ilusão

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

jurídica burguesa. Contudo, isso não quer dizer que os socialistas não possam
reivindicar questões legais. Nesse sentido, a reivindicação de legalização da ma-
conha pode sim estar na pauta da luta, mas não se pode perder de vista que a
real problemática da opressão está nas suas estruturas, ou seja, nas relações de
produção. De maneira mais direta, precisamos romper de vez com a ideologia
jurídica, e voltar nossos olhos na luta política.
A visão dramática do direito como Pachukanis (2017) ressalta, se mostra de
forma muito nítida quando nos referimos à guerra as drogas, e especialmente a
guerra à maconha De um lado, o mundo real: apenas uma planta, de variadas
utilidades, sendo ela elemento da cultura da população negra, e mais a frente da
classe trabalhadora em geral. Do outro lado uma visão jurídica particular, a de
que a maconha é um perigo para a sociedade, que em nada reflete a realidade
concreta. Isso reflete a grande capacidade de controle e de dominação do direi-
to penal, que atinge a classe trabalhadora de forma brutal. Isso revela grandes
interesses por trás dessas políticas penais.
Assim como na Idade Média as penas públicas foram estabelecidas com
propósitos de manutenção da disciplina e interesses de classe, da mesma for-
ma isso se dá com a implantação da política de proibição da cannabis. Isso
é nítido com as propostas leis nas Câmaras municipais do Rio de Janeiro,
de Santos e de Campinas, nos anos de 1830, 1870 e 1876 respectivamente.
(LUNARDON, 2015) A intensão das propostas de proibição da maconha
era controlar os corpos negros, através do aprisionamento de sua cultura a
legislações. O direito penal, que é constituído sobre os princípios da vingança
privada, é um eficiente meio de manutenção da dominação social de uma
classe sobre a outra. (PACHUKANIS, 2017)
Suas instituições e tribunais considerados “livres” perseguem um único
objetivo, a dominação e neutralização da classe trabalhadora. De modo de-
monstrativo a Delegacia de Costumes Tóxicos e Mistificações da época do go-
verno de Getúlio Vargas é um bom exemplo de instituição que tinha o intuito
de dominar a classe trabalhadora, especialmente o povo negro. O nome dessa
instituição já é bem sugestivo, e mostra claramente a discriminação contra as
religiões que não eram permitidas na época, como a umbanda e candomblé
que são aquelas que derivaram dos costumes negros. E é importante ressaltar
que isso fere os princípios de uma sociedade capitalista, que é a liberdade
religiosa, um prisma básico da igualdade política e jurídica proclamada pela
burguesia (MARX, 2010).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

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BARROS, André PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes
históricas escravocratas. Revista Periferia, Volume III, Número 2. 2011..

830
A sociabilidade capitalista e a gênese
da pena de prisão: repercussões
no atual grande encarceramento

Gênesis Cavalcanti1
Júlio Ivo Celestino2

Introdução
O problema da gênese e função social do cárcere (como pena) enquanto es-
fera privilegiada do controle penal na sociabilidade capitalista é de importância
candente para o aprofundamento acerca do marxismo, da criminologia crítica
e do direito penal.
Primeiramente, porque ao constatar a gênese e a função social de um de-
terminado complexo social, no caso a prisão (como pena), pretendemos de-
monstrar que o movimento real do objeto que permitiu a sua ascensão também
requer, em um determinado desenvolvimento social, a sua própria extinção.
Desse modo, não compartilhamos da ideia de que a pena de prisão será um
elemento punitivo essencial que determinará toda a sociabilidade humana. Pelo
contrário, como veremos, sua gênese depende de fatores de necessidade social
de produção e reprodução do capital ao passo que seu desaparecimento se dará
na medida da própria supressão do capital.
Em segundo lugar, podemos constatar a partir da gênese, do desenvolvimen-
to e da função social da pena prisão, que ela se constitui, como toda forma de

1 Gênesis Jácome Vieira Cavalcanti: Mestrando em Direitos Humanos, Políticas Públicas e


Cidadania pela UFPB, Bacharel em Direito pela UFPB (Santa Rita). Especialista em Direito Penal
e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). E-mail: genesis.vieira.
[email protected].
2 Júlio Ivo Celestino Ferreira: Mestre em Ciências Jurídica pela UFPB, Bacharel em Direito pela UFPB
(Santa Rita), Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e
Política Criminal (ICPC). E-mail: [email protected].

831
controle social penal, como um modo de garantir a reprodução da dominação
de classe (PACHUKANIS, 2017). Portanto, procuraremos desvelar as íntimas
relações entre prisão como punição e classes sociais. Ademais, a aplicação da
privação de liberdade como pena só pôde realizar-se, de fato, com o apareci-
mento do modo de produção capitalista. É só nessa forma de sociabilidade que
“todas as formas da riqueza social são devolvidas à forma mais simples e abstrata
do trabalho humano medido no tempo” (PACHUKANIS, 2017, p. 177).
Por fim, ao compreendermos o desenvolvimento do sistema prisional, pode-
mos observar nas últimas décadas uma intensificação do controle penal, que
pode ser verificado com o grande encarceramento. Tal fenômeno começa a ser
perceptível a partir da década de 70, período no qual Ístván Mészáros (2011a;
2014) irá demonstrar o surgimento de uma crise estrutural do capital. Tal crise
engendra uma reestruturação produtiva (ANTUNES, 2009), um esgotamen-
to das possibilidades civilizatórias (NETTO, 2017) e o grande encarceramento
(WACQUANT, 2007), como procuraremos demonstrar.
É importante pontuar que não é nossa pretensão colocar o fator econômi-
co como o único responsável nas transformações das relações sociais (no caso
aqui discutido, nas formas de controle social, como por exemplo a prisão), mas
apenas analisar como o modo de produção capitalista está diretamente ligada
ao surgimento das prisões e com as altas taxas de encarceramento das últimas
décadas. Como bem ensina Lukács (1974, p. 14): "é o ponto de vista da totalida-
de e não a predominância das causas econômicas na explicação da história que
distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa".
Partimos da ideia, portanto, de que cada forma de sociabilidade traz consigo
um modelo punitivo específico, isto é, uma forma de controle penal condizen-
te com o próprio modo de organização daquela determinada sociedade. Desse
modo, demonstraremos como o cárcere como pena se constitui como mode-
lo punitivo específico da sociabilidade capitalista. Assim, cabe-nos discutir a
gênese, o desenvolvimento e a função social da prisão como pena, enquanto
controle penal específico da sociabilidade capitalista.

1. Surgimento da pena privativa de liberdade


Entre os séculos XIV e XVI, temos o período que Marx (2013) deno-
minou de acumulação primitiva do capital. Este foi o momento chave de
uma reorganização da produção e reprodução das condições materiais de
existência da sociedade e, ao mesmo tempo, uma redefinição dos elementos
sociais punitivos. Expropriados dos meios de produção e expulsos do campo,
os camponeses são obrigados a partirem para os centros urbanos, onde a
insuficiente absorção de mão-de-obra pela manufatura e a não adaptação às
novas condições de trabalho os conduzem a engrossar as massas de desocu-
pados e pobres urbanos (MARX, 2013, p. 806).
Desta forma, os camponeses, após terem sua terra violentamente expropria-
da, foram obrigados a migrarem para os centros urbanos. Ao chegarem nas
cidades, despojados das suas terras, local onde detinham o conhecimento do
trabalho para sua sobrevivência, a única alternativa era vender o que lhes resta-
vam: a força de trabalho, seus corpos. No entanto, além de não existir emprego
para todos os expropriados recém chegados, o que resultou na formação de um
grande número de pessoas desempregadas que vagavam pelas ruas das cidades,
a maioria desses indivíduos ainda não estavam adaptados às novas formas de
trabalho. Assim, nesse contexto, essa massa de pessoas expulsas da zona rural
foi obrigada a se submeter, por meio de leis autoritárias1, instituições de tra-
balhos forçados, açoites e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de
trabalho assalariado (DOBB, 1983, p. 168).
Diante de tal cenário, foi preciso, portanto, criar instituições que pudessem
disciplinar os camponeses (agora assalariados) ao trabalho nas manufaturas.
Aos que não conseguiam trabalho e formavam uma enorme contingente de
desempregados, também era necessário introjetar nesses indivíduos a discipli-
na das novas formas de trabalho, para que ficassem a disposição em caso das
manufaturas precisassem de mais mão de obra. Como ensina Anitua (2008), ao
abordar a necessidade de adestramento dos grupos que “só” detinham a força
de trabalho para subsistência:

o mercantilismo necessitou de um disciplinamento selvagem dos grupos


sociais que não se integraram a nenhum dos grupos economicamente
produtivos. A forma de ‘educar’ os não proprietários para que aceitasse

1 Uma dessas leis determinava um limite para o salário e punia quem descumprisse, tendo como
exemplo o Estatuto dos Aprendizes da Rainha Elizabeth. Este estabelecia a pena de dez dias de
prisão para quem pagasse um salário mais alto do que o determinado em lei, e vinte e um dias para
o trabalhador que recebesse (MARX, 2013, p. 810). A legislação elisabetana ainda previa a punição
à mendicância com a queimadura da cartilagem do ouvido direito. Caso fosse reincidente, seria
executado (DOBB, 1983, p. 168)

833
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

como natural esses estado de coisas foi através da violência punitiva


(ANITUA , 2008, P. 114).

É desse contexto que surge a lógica da prisão moderna (RUSCHE E KIR-


CHHEIMER, 2004, 99). Em 1576, na Inglaterra, no período de germinação
do sistema capitalista, são criadas as Casas de Correção, que forneciam traba-
lho aos desempregados, e/ou obrigavam a trabalhar quem se recusasse a fazê-lo
(MELOSSI E PAVARINI, 2006, p. 37). O objetivo central era converter os
recolhidos por meio da disciplina e do trabalho obrigatório. Outra função dessa
instituição era servir como desestímulo à população para que não seguissem
o caminho da mendicância e/ou ociosidade, incutindo a ideia de que o único
meio digno de sobrevivência deveria ser por meio do trabalho (MELOSSI E
PAVARINI, 2006, p. 36).
Assim, percebe-se que os modelos punitivos foram alterados para não des-
perdiçar força de trabalho, incutindo nos detidos a disciplina das novas formas
de trabalho para quando fossem ‘libertos’ e, concomitantemente, com o au-
mento de mão de obra dos trabalhos forçados nas casas de correção, impedir
o aumento salarial dos que estavam empregados no mundo ‘livre’. Frise-se que
as casas de correção não eram os únicos meios utilizados para manter baixo os
salários e controlar a força de trabalho. Esse período é marcado pelo estabe-
lecimento por lei de tetos salariais (com punições para quem desobedecesse),
prolongamento de jornadas de trabalho, da proibição da livre associação dos
trabalhadores, dentre outras medidas (MELOSI E PAVARNI, 2006, p. 40).
Deste modo, podemos compreender que as casas de correção e os seus traba-
lhos forçados, junto com outras ações da classe dominante, tinham por função
principal disciplinar os camponeses para as novas formas de trabalho. Logo, a
imposição da disciplina para uma nova realidade foi um dos objetivos que o ca-
pital teve que se propor a realizar em suas origens, e que necessitou de um longo
período para conseguir destruir a resistência da antiga população rural, agora
proletários, aos hábitos anteriores ao modo de produção capitalista.
Nessas instituições, temos presente, desde já, a lógica da menor elegibilida-
de. Esta fundamenta-se na ideia de que as condições de vida na prisão devem
ser mais miseráveis que a situação da classe trabalhadora ‘livre’ mais precari-
zada, de modo que esses aceitassem qualquer tipo de trabalho, mesmo aquele
trabalho mais explorado, em vez de cometesse um ato definido como crime e

834
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

fosse detido. Portanto, já é visível o constrangimento ao trabalho e busca dos


efeitos dissuasivos da pena (RUSCHE E KIRCHHEIMER, 2006, p. 14)
Desta forma, nota-se que uma função da casa de correção era o aprendizado
da disciplina para o trabalho no modo capitalista de produção. Assim, impondo
um comportamento regrado e submetido à autoridade, o objetivo buscado era o
disciplinamento dos detidos para que quando estivessem em liberdade se trans-
formassem em proletários submissos e produtivos.
Nesse sentido, as casas de correção foi transformando a punição cada vez mais
num modelo detentivo. O desempregado, o ocioso, o pedinte, a prostituta e todo
aquele que não trabalhasse deveria ser conduzido e mantido nessas instituições para
que fossem domesticados às novas formas de trabalho e, ao mesmo tempo, puni-
dos, com trabalhos pesados, por ainda não serem bons proletários. Aos poucos, o
entendimento vai se consolidando de que manter indivíduos nas casas de correção
por pouco tempo era algo não-pedagógico; ou seja, era necessário um bom período
de detenção para transformação do sujeito em um proletário dócil e útil ao sistema
produtivo. Assim, podemos considerar que as casas de correção do período manu-
fatureiro está diretamente ligada à forma originária do cárcere moderno (MELOSSI
E PAVARINI, 2006, p. 58 RUSCHE E KIRCHHEIMER, 2004, p. 96).
Depreende-se, assim, que o surgimento da prisão como pena é fruto do
contexto das mudanças sociais presenciadas na Europa entre os séculos XVI
e XVII, tendo como um dos objetivos sanar problemas de exclusão social da
origem do capitalismo2. Portanto, a criação e a adoção das casas de correção
para a punição desses grupos criminalizados no século XVII não se deu por uma
simples questão humanitária, de deixar de aplicar uma pena cruel, como era o
suplício, mas, sim, na mudança das condições sócio-econômicas gerais. Nas pa-
lavras de Rusche e Kirchheimer (2006, p. 83): “algumas mudanças econômicas
contribuíram para incrementar o valor da vida humana e levaram o Estado a
fazer um uso pragmático da força de trabalho à sua disposição”.

1.2. A crise estrutural do capital


Nas últimas quatro ou cinco décadas, uma pluralidade de autores no interior
da criminologia crítica observaram significativas mudanças na configuração do

2 A prisão como pena é “herdeira das práticas disciplinares prévias, aplicadas a pobres, vagabundos
etc” (ANITUA, 2008, p. 210).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

controle social penal (GIORGI, 2017; GARLAND, 2008; BATISTA, 2015;


WACQUANT, 2007). A discussão que pretendemos esboçar a partir daqui
consiste na defesa da hipótese de que as transformações ocorridas na estrutura
do controle penal, que produziram o atual fenômeno do encarceramento em
massa, não podem ser explicadas senão como uma das expressões daquilo que
o professor István Mészáros qualificou como uma crise estrutural da ordem do
capital (MÉSZÁROS, 2011; 2011a; 2014).
Sustentaremos nas próximas páginas que a crise estrutural do capital traz
como exigência a intensificação do controle penal, sendo possível a sua verifi-
cação a partir de pelo menos dois fatores: o primeiro consiste na necessidade
de regulamentação da força de trabalho excedente, derivada da reorganização
das relações capital/trabalho (reestruturação produtiva) e capital/organização
estatal (implementação do neoliberalismo e o esgotamento das possibilidades
civilizatórias da ordem do capital); o segundo fator observado é o deslocamento
do complexo industrial militar para a questão segurança pública. Se outrora a
guerra se constituía como o meio do capitalismo contornar as crises cíclicas
(basta recordar as duas Guerras Mundiais na primeira metade do século XX
e suas consequências extremamente positivas para a expansão do capital), nas
últimas cinco décadas a aposta tem sido a segurança pública (a guerra “contra
as drogas” e a guerra contra as "classes perigosas").
Iniciaremos expondo os contornos mais gerais da crise estrutural do capital
para, em seguida, demonstrar como ela redesenhou toda a sociedade contempo-
rânea, sendo uma de suas expressões aquilo que poderíamos chamar, na esteira
de Wacquant (2007), da substituição do Estado social para o Estado penal.
Nas últimas quatro ou cinco décadas, isto é, desde pelo menos a primeira
metade dos anos de 1970, é possível observar transformações bastante
contundentes no desenvolvimento sociometabólico do capital. Mais uma
crise atingiu a sociabilidade capitalista, que se expressava primeiramente com
a elevação dos preços do barril de petróleo. Até aí, nada de novo no front,
porque sabemos bem desde Marx que a crise não é um fenômeno adjetivo
no desenvolvimento do capital, pelo contrário, capital é crise. No entanto,
duas constatações preliminares precisam ser explicitadas. A primeira se
refere ao fato de essa crise ter pego muitos analistas de “surpresa”, como se
ela fosse uma raio em céu sem nuvens, desse modo, é necessário analisar os
sinais da crise; a segunda constatação é de que essa crise da década de 70 do
século XX possui contornos diversos das demais já enfrentadas pela sociedade

836
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

capitalista, sendo, portanto, imprescindível discutir as características da crise


estrutural do capital. Nos deteremos, a partir de agora, a analisar de forma
mais detalhada essas duas questões.

1.2.1. Os sinais da crise

Com relação à primeira afirmação, de que a crise que assolou a ordem do ca-
pital a partir dos anos de 1970 parece ter pego diversos analistas de surpresa, é
preciso ter em mente de que uma das grandes forças ideológicas do capitalismo
nas décadas que seguiram o pós-Segunda Guerra Mundial, era a formulação de
um "capitalismo organizado", agora livre de qualquer crise. A ideia de um capi-
talismo organizado, livre de crises, não é original do pós-1945 (devemos lembrar
os embates entre Rosa Luxemburgo e Edward Bernstein acerca dessa questão
no período anterior à primeira guerra mundial3), no entanto, nesse período ela
ganha mais força devido às transformações na estrutura do capitalismo (opor-
tunizadas pela grande ascensão econômica, muito em razão das próprias guer-
ras mundiais, e da adoção das ideias de Keynes, que produziu o chamado Estado
de bem-estar social).
Alguns pensadores bastante sérios, como Herbert Marcuse, Lucien Gold-
mann e György Lukács4 (ainda que este de modo diverso dos dois primeiros),
também chegaram a recair na ideia de um capitalismo organizado. É sintomáti-
co nesse sentido, o prefácio escrito por Lucien Goldmann, em 1966, ao seu livro
Ciências Humanas e Filosofia - publicado pela primeira vez em 1951 -, no qual

3 Ver o pequeno grande livro de Rosa Luxemburgo (2010), Reforma ou Revolução.


4 Em agosto de 1969 foi publicada no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, uma entrevista concedida por
György Lukács - o maior filósofo marxista do século XX -, que contava 84 anos de idade, ao filósofo
brasileiro Leandro Konder, intitulada "A Autocrítica do Marxismo". Konder questiona o velho
Lukács acerca da possibilidade de ocorrer novas crises no capitalismo como a que ocorreu em 1929,
ao que o filósofo húngaro responde: "é possível que ocorram, porém, sinto-me um tanto cético a
respeito dessa possibilidade. O desenvolvimento da manipulação e controle capitalista das condições
de consumo talvez tenham conseguido afastar o fantasma da crise" (LUKÁCS, 1978, p. 23). Como
podemos observar, a colocação de Lukács é bastante mediada, ele trata o problema com muito
mais cuidado do que o trataram Goldmann ou Marcuse. Além disso, diferente de Marcuse (2015)
que prevê que o capitalismo industrial havia conformado os sujeitos capazes de se rebelar, Lukács
afirma que "a regulamentação da vida no mundo criado pelo capitalismo provoca, atualmente, um
sentimento cada vez mais generalizado de mal-estar e é cada vez maior o número de pessoas que se
dispõem a contestar os princípios da sociedade capitalista" (LUKÁCS, 1978, p. 23).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ele defende (fortemente influenciado por O homem unidimensional, de Marcuse)


a passagem de um "capitalismo em crise" para um "capitalismo de organização"5
Embora à primeira vista a crise que assolou a ordem capitalista nos anos 70 do
século passado pareça ter surgido sem sinais anteriores, István Mészáros foi um
dos poucos a observar, já na segunda metade dos anos 1960, a emergência de uma
nova grande crise do capital. Segundo o filósofo húngaro, a Grande Depressão de
1929 não passaria de "uma festa no salão do vigário" (MÉSZÁROS, 2011, p. 17)
se comparada com a crise que se avizinhava. E, já em 1971, numa conferência
em homenagem à Isaac Deutcher, Mészáros volta a alertar para a "crise estrutural
global do capitalismo atual" (MÉSZÁROS, 1989, p. 15). Não era apenas o pen-
sador húngaro que observava os sinais da crise, José Chasin6, filósofo brasileiro, e
Maurice Dobb, economista, também verificaram tal prelúdio.
Maurice Dobb (1983) escreveu em 1966 um pós-escrito para a segunda edi-
ção do seu livro A Evolução do Capitalismo, cuja primeira edição é de 1945.
Nesse pós-escrito de 66, Dobb vai analisar o desenvolvimento do capitalismo
no pós-1945. Suas conclusões apontam fortemente para as concepções já recor-
rentes no pensamento marxista, de que as crises continuaram a ser um espectro
mesmo no período de maior expansão do capital:

Houve crises ou “retrações” econômicas em quatro ocasiões desde 1945,


ou seja, em 1948/49, em 1953/54, em 1957/58 e novamente em 1960/61
nos Estados Unidos (embora nesta última data não acontecesse isso

5 Numa nota de rodapé à primeira página do seu prefácio, Goldmann revela tal modificação no seu
pensamento: "a modificação mais importante concerne à passagem do capitalismo em crise ao
capitalismo de organização, que nós não havíamos observado em 1951" (GOLDMANN, 1980, p.
05). Logo em seguida, o sociólogo marxista francês explicita o que entende por essas categorias:
"convém precisar que chamamos de capitalismo em crise o período em que, estando o mercado liberal
desorganizado pelo desenvolvimento dos trustes e monopólios, a sociedade europeia foi sacudida
por uma série de crises sociais e políticas extremamente próximas umas das outras; cada uma sendo
dificilmente superada para dar lugar a um equilíbrio inteiramente provisório que, aliás, se desfazia
muito depressa (Primeira Guerra Mundial, movimentos revolucionários entre 1917 e 1923, crise
econômica de 1929/1933, hitlerismo, Segunda Guerra Mundial e, na periferia europeia das sociedades
industriais, fascismo italiano e revolução espanhola). De outra parte, chamamos capitalismo de
organização o período contemporâneo durante o qual a criação e o desenvolvimento de mecanismos
reguladores, devidos em primeiro lugar a intervenções estatais permitem um impulso econômico
contínuo que tem, como consequência, a diminuição considerável e até mesmo o estancamento das
crises sociais e políticas endógenas (GOLDMANN, 1980, p. 06 - 07).
6 Ver o texto de Elcemir Paço Cunha (2018) acerca da crise estrutural do capital no pensamento de
Mészáros e Chasin.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

em alguns países da Europa ocidental como a Alemanha Ocidental,


a França e a Itália, que continuaram no movimento ascendente dos
dois anos anteriores). No momento em que escrevemos este pós-escrito
ouvimos falar novamente na possibilidade de uma nova “retração”
norte-americana em 1963. Assim, as decaídas na atividade econômica
mostram-se mais frequentes do que foram antes, e o desenvolvimento
certamente não se mostrou livre das crises (DOBB, 1983, p. 278).

No entanto, o economista também adverte que essas depressões eram menos


profundas e mais curtas que as ocorridas no século XIX, além disso, nenhuma
delas teve o impacto e as proporções da crise de 1929. Outros dados trazidos por
Dobb que constituem diagnósticos prévios da crise que surgiria na década de
70 são: a queda da produção industrial, a estagnação da taxa de crescimento e
a margem crescente de desemprego (DOBB, 1983, p. 278 - 279).

1.2.2. Características da crise estrutural do capital


Como já dissemos antes, no interior do pensamento marxista já existe
a constatação de que as crises não são meramente adjetivas ou acidentais
no percurso de desenvolvimento do capitalismo, pelo contrário, a crise é
constitutiva do seu movimento7, isto é, as crises são "o modo natural de
existência do capital”:

Assim, não há nada especial em associar-se capital e crise. Pelo


contrário, crises de intensidade e duração variadas são o modo natural
de existência do capital: são maneiras de progredir para além de suas
barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo cruel sua
esfera de operação e dominação. Nesse sentido, a última coisa que o
capital poderia desejar seria uma superação permanente de todas as
crises, mesmo que seus ideólogos e propagandistas frequentemente
sonhem com (ou ainda, reivindiquem a realização de exatamente isso)
(MÉSZÁROS, 2002, p. 795).

7 Ver também a argumentação de Netto e Braz: "A análise teórica e histórica do MCP [Modo de
produção capitalista] comprova que a crise não é um acidente de percurso, não é aleatória, não
é algo independente do movimento do capital. Nem uma enfermidade, uma anomalia ou uma
excepcionalidade que pode ser suprimida no capitalismo. Expressão concentrada das contradições
inerentes ao MCP, a crise é constitutiva do capitalismo: não existiu, não existe e não existirá
capitalismo sem crise (NETTO; BRAZ, 2012, p. 170).

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O sistema capitalista se constitui de três dimensões fundamentais: a pro-


dução, o consumo e a circulação/realização, e no decurso do seu desenvolvi-
mento histórico elas tendem a "reforçar-se e expandir-se reciprocamente, ga-
rantindo também a motivação interna necessária para respectiva reprodução
dinâmica em escala cada vez mais ampliada" (MÉSZÁROS, 2014, p. 28). Isso
significa que os limites e obstáculos imediatos enfrentados por cada uma des-
sas dimensões são deslocados exatamente por causa dessa interação recíproca
com as outras duas. Assim, por exemplo, "o obstáculo imediato à produção é
superado com êxito durante algum tempo pela expansão do consumo e vice-
-versa" (MÉSZÁROS, 2014, p. 28).
Desse modo, enquanto esse mecanismo de interação recíproca entre as
dimensões da produção, do consumo e da circulação continuar a funcionar
em níveis adequados, não podemos falar em crise estrutural do capital, na
medida em que esta surge da incapacidade do capital de deslocar os limites
de seus desenvolvimento.

A crise estrutural do capital, que começamos a experimentar a mais de


três décadas, não se refere a nenhuma condição absoluta. Ela significa
simplesmente que a tripla dimensão interna da autoexpansão do capital
mostra 'disfunções' cada vez maiores, o que tende não só a desagregar o
processo normal de crescimento, mas também antecipa uma quebra na
transferência das contradições acumuladas, que é função vital. Desde o
princípio aquelas três dimensões formavam uma unidade contraditória
cheia de problemas, posto que cada uma devia subordinar as outras a
sim mesma, até funcionar a estrutura em seu conjunto (...). Contudo,
a situação muda radicalmente quando o interesse de cada uma já não
coincide em absoluto com o das restantes. A partir desse momento,
as alterações e as disfunções, em vez de serem absorvidas, dispersas,
difundidas e dissolvidas, tendem a transformar-se em acumulativas e,
portanto, estruturais, bloqueando perigosamente o complexo mecanismo
da transferência das contradições. Estamos, então, diante de uma coisa
não simplesmente 'disfuncional', mas potencialmente explosiva, porque
o capital não resolveu nunca nem a mais ínfima de suas contradições.
Não só porque não estava em condições de fazê-lo, mas também porque
não devia fazê-lo, dado que por sua natureza e constituição intrínseca
ele prospera sobre elas (MÉSZÁROS, 2014, p. 29)

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Nesse sentido, Mészáros observa que a crise estrutural do capital possui


quatro características fundamentais no seu processo de aprofundamento: ela é
universal, global, permanente e rastejante (MÉSZÁROS, 2011a, p. 796 - 797;
MÉSZÁROS, 2014, p. 34). A crise estrutural possui um caráter universal, na
medida em que seu alcance não fica restrito a uma esfera particular, como a fi-
nanceira ou comercial, nem atinge apenas um ramo particular de produção ou a
um tipo específico de trabalho etc. Sua amplitude é global, não se restringindo a
um conjunto particular de países. A escala de tempo dessa crise é permanente,
de modo que sua duração é contínua e não limitada ou cíclica. Por fim, a crise
estrutural se desdobra de maneira rastejante, diferente das crises do passado,
que se desdobravam com erupções e colapsos mais "espetaculares e dramáticos",
o ritmo da crise atual é mais lento e prolongado. Não nos parece casual que a
crise estrutural tenha se "rastejado" há quase meio século e seja protagonista de
transformações societais profundas.
As profundas mudanças que a sociedade burguesa enfrentou nas últimas
cinco décadas não podem ser aqui largamente documentadas8. Mas é impor-
tante reforçarmos que uma crise estrutural do capital não tem apenas efeitos
econômicos, mas efeitos sociais os mais diversos. É nesse sentido que podemos
observar uma transformação profunda nas relações do controle social penal,
intimamente vinculadas aos novos imperativos da ordem do capital: tais trans-
formações se expressaram na "intensificação do controle penal do Estado sobre
a força de trabalho - intensificação essa que tem se expressado dentre outras
formas concretas pelo encarceramento em massa" (RAMOS, 2015, p. 127).

1.3 O grande encarceramento contemporâneo


Como resposta à crise estrutural, inicia-se um período de "restauração do ca-
pital", que consistiu em medidas que acabaram por minar o Estado de bem-estar
social - produto do segundo pós-guerra. O Estado de Bem-Estar social foi capaz de
garantir a uma ampla massa de trabalhadores, sobretudo em países de capitalismo
central, a participação na sociedade, com direitos sociais e de cidadania assegura-
dos. No entanto, a nova fase de restauração imposta pelo capital na tentativa de

8 Para uma maior e mais profunda análise acerca desses fenômenos, indicamos o texto de José Paulo
Netto, "Uma face contemporânea da barbárie" (NETTO, 2017, pp. 56 - 88).

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superar a crise ruiu a antiga organização social, substitui o Estado Social por um
Estado Penal. A consequência disso foi o recrudescimento da repressão.
O controle penal que imperou a partir do segundo pós-guerra obedecia aos
ditames do Estado que ali se levantava. A forma de organização estatal obede-
cia os princípios propostos por Keynes cujo resultado foi aquilo que conhecemos
por Estado de bem-estar social. Nesse sentido, o controle penal tendeu a uma
racionalidade mais consensual e menos repressiva, de maneira que o encarce-
ramento se tornava "o último recurso punitivo", com a prevalência de outras
alternativas penais (RAMOS, 2015, p. 96). A essa estrutura de controle social
penal, David Garland denominou de previdenciarismo penal:

O mesmo paradigma penal-previdenciário ditou as formas


predominantes através das quais as instituições de justiça criminal
foram requeridas. Até metade dos anos 1970, as propostas de reforma
mais recorrentes concerniam ao aperfeiçoamento dos serviços voltados
à reabilitação, à redução de controles opressivos e ao reconhecimento
dos direitos de suspeitos e presos. A demanda era por menos
criminalização, por minimizar o uso da custódia, por humanizar
a prisão e, onde fosse possível, por tratar os criminosos no seio da
comunidade (GARLAND, 2008, p. 211).

Nesse período9, o encarceramento foi cada vez mais colocado para segundo
plano. Tanto é verdade que alguns pensadores estavam chegando à conclusão
de que o cárcere se tornaria obsoleto, como observa Dario Melossi:

(...) ainda no início dos anos 1970, tanto as principais orientações


políticas nos Estados Unidos e nos outros países desenvolvidos quanto
as principais leituras dos fenômenos previam uma obsolescência mais
ou menos veloz da instituição carcerária, bem como um aumento dos
sistemas de controle extra-institucionais, 'em comunidade', como se
costumava dizer (MELOSSI, 2017, p. 11)

A ideia de uma obsolescência da prisão, isto é, de um "desencarceramento"


que pairava sobre a consciência de estudiosos da época tinha a mesma raiz de

9 No mesmo período, Loïc Wacquant observou uma diminuição do encarceramento nos Estados
Unidos: "Na verdade, a população prisional diminuía regularmente desde o início da década de
1960, a uma média de cerca de 1% ao ano. Os penologistas debatiam então a abertura do meio
penitenciário, penas alternativas e mesmo o 'desencarceramento'" (WACQUANT, 2007, p. 206).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

uma outra já apresentada por nós anteriormente, ou seja, a ideia de um "capita-


lismo organizado", livre de crise. Ambas tinham como pressuposto uma suposta
racionalidade do capital em seu desenvolvimento. Entretanto, o que essas con-
cepções negligenciavam é que o desenvolvimento do capital é necessariamente
irracional e a destruição é a regra de sua imanência10. De modo que nos encon-
tramos hoje em um período em que a produção destrutiva do capital põe em
risco a simples sobrevivência da humanidade (MÉSZÁROS, 2011a).
As principais medidas tomadas pela restauração do capital para tentar deter
os sintomas da crise estrutural foram sintetizadas por José Paulo Netto como
sendo uma tríplice exigência de flexibilização, desregulamentação e de privati-
zação (NETTO, 2017, p. 65). Aliado a isso, temos também a reformulação do
Estado, apontando para o neoliberalismo. A consequência dessas transforma-
ções é uma mudança significativa das relações de trabalho, a chamada rees-
truturação produtiva11. Essa reestruturação permite ao capital, com desenvol-
vimento tecnológico, aumentar a produção sem a necessidade de aumentar o
trabalho vivo. Pelo contrário, aumenta vertiginosamente a força de trabalho
excedente e, com ela, o desemprego estrutural12.

Desde a época em que essas linhas foram escritas, testemunhamos um


crescimento acima de dez vezes a taxa de desemprego na Grã-Bretanha
e em outros lugares. Como ainda hoje isso permanece, de acordo com os
números oficiais - grosseiramente subestimados -, há mais de 40 milhões
de desempregados nos países industrialmente mais desenvolvidos.
Desse número, a Europa conta com mais de 20 milhões, e a Alemanha
- outrora elogiada por produzir o "milagre alemão" - ultrapassou a
marca dos 5 milhões. Em um país como a Índia - reverenciada pelos
organismos econômicos tradicionais por sua realizações na direção

10 Marx e Engels, em 1845, já observavam o traço destrutivo da ordem do capital: "No desenvolvimento
das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que,
no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de produção,
mas forças de destruição (...). Essas forças produtivas, sob o regime da propriedade privada, obtém
apenas um desenvolvimento unilateral, convertem-se para a maioria em forças destrutivas (...).
Chegou-se a tal ponto, portanto, que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade existente de
forças produtivas, não apenas para chegar à autoatividade, mas simplesmente para assegurar a sua
existência" (MARX; ENGELS, 2007, p. 41, 60 e 73).
11 Para uma análise mais aprofundada acerca das transformações que a reestruturação produtiva
promoveu no mundo do trabalho, ver Ricardo Antunes em Os Sentidos do Trabalho (2009).
12 Rucshe e Kirchheimer (2004) já haviam sugerido as relações entre o mercado de trabalho e o controle penal.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

do desenvolvimento -, há não menos do que 336 milhões de pessoas


desempregadas e outros milhões sob condições inadequadas de trabalho,
cujos dados não foram registrados. Além disso, a intervenção do FMI,
organização dos Estados Unidos que dita ordens pretendendo melhorar
as condições econômicas dos países "em desenvolvimento" mais afetados
pela crise, tem na verdade piorado as condições dos desempregados (...).
A economia do México parece estar bem, mas seu povo está mal. Desde
a operação de salvamento do FMI as camadas médias foram esmagadas;
25 mil pequenos negócios foram à falência; 2 milhões de trabalhadores
perderam os seus empregos no mesmo período (...). Atingimos uma fase
do desenvolvimento histórico do sistema capitalista em que o desemprego
é a sua característica dominante (MÉSZÁROS, 2006, p. 30 - 31).

Assim, sob a lógica irracional do capital de expandir seu lucro a qualquer


custo, temos o aviltamento da condição de vida da classe trabalhadora que vê
aumentar seu contingente excedente, que não é aproveitado pelo mercado de
trabalho, aquilo que Marx chamou de exército industrial de reserva ou super-
população relativa (no capítulo XXIII de O Capital). Este cenário exige uma
reorganização do controle penal e da repressão política estatal para manter a
reprodução do capital e para controlar a população excedentária (RAMOS,
2015, p. 125). Segundo Mészáros:

(...) trata-se de uma tentativa ameaçadora de colocar os órgãos políticos


de controle em sintonia com as necessidades da articulação atual
da economia capitalista, ainda quando tal ajustamento exija uma
transição “liberal” da "tolerância repressiva" à "intolerância repressiva"
(MÉSZÁROS, 1989, p. 38).

Nesse sentido, basta lembrarmos dos "novos discursos punitivos" que come-
çam a emergir nas últimas cinco décadas: as teorias da "vidraça quebrada" da
política de "tolerância zero" (WACQUANT, 2007), a política criminal atuarial
(DIETER, 2013) e o direito penal do inimigo (ZAFFARONI, 2016). Essa pre-
tensão de combate da criminalidade acabou produzindo o fenômeno do grande
encarceramento, consequência de uma política penal voltada contra a miséria,
contra a população negra e que sustenta a guerra às drogas.

Diante desse quadro societário podemos então apreender que o objetivo


principal do processo de aprisionamento em massa que vem sendo

844
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

colocado em curso não se trata de uma mera ação voltada para proteger
e defender os 'bons' dos 'maus' naquela concepção maniqueísta tão bem
defendida pelos apologistas da ordem, mas sim de defender e proteger
o efetivo processo de acumulação e expansão do sistema do capital
(RAMOS 2015, p. 137).

O discurso do combate à criminalidade, tão utilizado pelos apologistas da


ordem, não passa de fraseologia, visto que o grande encarceramento é, na ver-
dade, uma resposta às necessidades econômico-sociais advindas da crise es-
trutural do capital. Nesse sentido, a partir dos anos 1970, para que o capital
pudesse retomar altas taxas de lucro de outrora, milhões de pessoas tiveram
suas condições de vida precarizadas. A alternativa encontrada para a manu-
tenção segura desse processo foi o encarceramento dos descartáveis ao sistema,
recaindo, assim, sobre a população pobre e negra.

É exatamente essa busca contínua e interminável de lucro que faz


com que o capital em crise explore economicamente a violência e a
insegurança social a que estão submetidas milhares e milhares de seres
humanos (...). É portanto, dentro desse complexo quadro societário
que o encarceramento em massa vem se configurando num negócio
altamente lucrativo para o sistema do capital em crise, e uma das portas
de entrada desse negócio profundamente rentável é a privatização dos
estabelecimentos prisionais (RAMOS 2015, p. 146 - 147).

Aqui é interessante notar que em contextos de crises passadas o capital sem-


pre se utilizou da guerra como maneira de deslocar suas contradições e retomar
suas taxas de lucro - basta lembrarmos os ciclos de expansão econômica gerados
a partir dos dois pós-guerras mundiais. Segundo José Paulo Netto:

Sabe-se que a guerra foi, ao longo do século XX, uma resposta


autorreprodutiva do capitalismo. Além de a guerra operar como uma
saída provisória para suas crises, mediante a destruição massiva de forças
produtivas, as atividades econômicas ligadas à guerra - a indústria bélica
- sempre constituíram um elemento dinamizador da economia capitalista
(...) sem o qual as taxas de ociosidade industrial seriam insuportáveis
e o desemprego alcançaria cifras altíssimas. No tardo-capitalismo (...),
esta funcionalidade não só se mantém, mas se acentua, inclusive porque,

845
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

na verificação de Chossudovski, “a guerra e a globalização caminham


juntas” (NETTO, 2017, p. 77).

No entanto, na atual conjuntura não é mais possível a utilização da guerra


nas proporções das duas guerras mundiais para deslocar a crise estrutural. Isso
porque o desenvolvimento da indústria bélica tomou proporções tais que uma
guerra mundial hoje envolveria potências nucleares e o resultado não seria ou-
tro que não e destruição de toda a vida humana na terra13.
Nesse sentido, queremos aqui propor, na esteira de José Paulo Netto (2017),
que o capital substituiu a guerra como alternativa de deslocamento da crise,
pela segurança pública, gerando a conhecida militarização da vida social14:

Entretanto, se a guerra, como tal, apresentou-se no século XX como um


fenômeno que excedeu completamente o teatro e o âmbito dos combates,
envolvendo muito mais para além deles, o que agora se verifica é que o
belicismo passa a incluir as políticas de segurança pública em períodos
de paz formal e se estende como negócio capitalista privado à vida na
paz e na guerra, configurando a emergência da militarização da vida
social (NETTO, 2017, p. 77).

Ou seja, com o advento do chamado Estado Penal, a repressão se amplia


para as "classes perigosas", se utilizando de toda uma produção de tecnologia
a favor da segurança, com a desculpa do combate à criminalidade. Cada vez
mais se coloca no imaginário popular a ideia de uma insegurança generali-
zada. Desse modo, cresce a produção industrial de alta tecnologia voltada

13 Sobre essa impossibilidade de o sistema capitalista se utilizar da guerra para deslocar as crises, ver
a argumentação de Mészáros: Contudo, o sistema capitalista foi privado da sanção máxima de
que dispunha: a guerra total contra seus inimigos reais ou potenciais. Já não é possível exportar
a violência interna na escala maciça requerida (...). Pela primeira vez na história, o capitalismo
confronta-se globalmente com seus próprios problemas, que não podem ser 'adiados' por muito mais
tempo nem, tampouco, transferidos para o plano militar de forma a serem 'exportados' como guerra
generalizada (MÉSZÁROS, 1989, p. 43)
14 Não é assim casual que em fevereiro do corrente ano, o presidente em exercício Michel Temer
tenha assinado um decreto de intervenção militar no Rio de Janeiro. Intervenção essa que não
só não resolveu o problema da segurança pública, como agravou a violência e a barbárie junto às
populações mais marginalizadas daquele estado. Essa foi a maior expressão da militarização da
vida social no Brasil de 2018.

846
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

para a vigilância, para a segurança privada15 etc. Nesse sentido, é interessante


observar que "tais empresas crescem 300% ao ano, desde 2001, nos Estados
Unidos" (NETTO, 2017, p. 78).
Diante disso, pudemos observar até aqui como a crise estrutural do capital
afetou todas as estruturas da sociedade burguesa contemporânea e, no âmbito
penal, sua maior consequência foi a intensificação do controle penal sobre a
massa de excedentes que foram novamente expulsas do mercado de trabalho
e, mais do que isso, expulsas de uma vida digna. E, ao mesmo tempo, uma
das maiores estratégias para a retomada do lucro foi o deslocamento da guerra
para a segurança pública, que sob a desculpa de combater a criminalidade,
tem gerado todo um universo novo de lucratividade com a segurança privada,
com a guerra às drogas, às classes perigosas, à população negra etc. Uma situ-
ação que tem levado a cada vez mais destruição, e que nos coloca novamente
o imperativo: ou superamos a ordem sociometabólica irracional do capital ou
seremos por ele triturados e a humanidade perecerá antes de se superar sua
própria pré-história rumo a uma sociedade verdadeiramente livre. O dilema
proposto por Rosa Luxemburgo se faz cada dia mais atual, nos resta escolher-
mos: socialismo ou barbárie.

Considerações finais
Assim, demonstramos que cada espécie de sociedade de classes possui
uma forma característica de controle penal, entendendo que o controle
penal consiste em mais uma forma de controle social das sociedades de
classe. Isso ocorre, como vimos, porque existe uma estreita ligação entre
controle social e organização do trabalho, isto é, cada forma de organização
da força de trabalho requer um modo determinado de controle social que
garanta a produção e a reprodução da sociedade. Partindo disso, compre-
endemos que o surgimento da sociabilidade do capital exigiu novas formas
de controle da produção e reprodução, o que nos leva a concepção de

15 Um estudo do National Institute of Justice destacou que a segurança privada tornou-se o "principal
meio de proteção da Nação", superando a segurança pública em 73%. O gasto anual em segurança
privada foi estimado em U$ 52 bilhões e o número de formalmente empregados foi de U$ 1,5 milhão
de pessoas. No que tange à segurança pública, o gasto estimado foi de U$ 30 bilhões por ano, com
uma força de trabalho de aproximadamente 600 mil pessoas (BRITO, 2010, p. 57).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

que fábrica (local privilegiado de produção) e cárcere (local privilegiado


de controle da força de trabalho) constituem-se reciprocamente enquanto
determinação reflexiva necessária da gênese do capitalismo – “os internos
devem ser trabalhadores, os trabalhadores devem ser internos” (MELOSSI
E PAVARINI, 2006, p. 266).
Por fim, chegamos à compreensão que a crise estrutural do capital, emergen-
te a partir da década de 1970, traz importantes elementos para que possamos
discutir o fenômeno atualíssimo do grande encarceramento, que se constitui
como a demonstração cabal mais contemporânea das interrelações entre o de-
senvolvimento do capitalismo e o desenvolvimento dos seus meios de controle
penal; nesse sentido, podemos notar que a crise do capital revela a necessidade
de intensificação do controle penal sobre as classes subalternas.

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850
Garantia de direitos na perspectiva
dos(as) adolescentes em cumprimento
de medidas socioeducativas do
Rio Grande do Norte, Brasil

Carmem Plácida Sousa Cavalcante1


Joyce Pereira da Costa2
Ilana Lemos de Paiva3
Herculano Ricardo Campos4

Apresentação
Este estudo versa sobre a concepção que adolescentes em cumprimento de
medida socioeducativa de internação possuem a respeito da garantia de seus
direitos dentro das unidades socioeducativas. Este tema necessita de maior visi-
bilidade, tendo em vista que os resultados mostram que os direitos básicos con-
tinuam sendo violados pelo Estado diante de uma população que é considerada
como sujeito de direitos, mas que sofre com as mazelas da “questão social5”.

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Rio Grande do Norte


(2017). Possui mestrado em Psicologia pela mesma instituição (2014). É membro do Observatório da
População Infantojuvenil em Contextos de Violência – o OBIJUV/UFRN e do Grupo de Pesquisas
Marxismo & Educação (GPM&E).
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Rio Grande do Norte
(2013). Possui mestrado em Psicologia pela mesma instituição (2010). É membro da ABRAPSO –
núcleo RN e do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educação (GPM&E).
3 Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
coordenadora do Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (OBIJUV/
UFRN), do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educação (GPM&E) e do Centro de Referência em
Direitos Humanos Marcos Dionísio (CRDHMD/UFRN)
4 Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
coordenador do Núcleo de Estudos em Psicologia Histórico-Cultural. (UFRN).
5 A questão social no sentido do aumento da pobreza e o aumento da capacidade social em produzir
riqueza para as classes dominantes. Representação de uma pobreza relativa, produzida e respaldada

851
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

É mister dar atenção aos discursos destes sujeitos e colocá-los como prota-
gonistas de suas vidas e suas histórias. Ademais, dar vazão ao que desejam e ao
que sentem torna-se especialmente relevante diante da dura realidade em que
vivem na privação de liberdade. Estes meninos e estas meninas fazem parte de
um grande grupo da sociedade que tiveram seus direitos violados desde a pri-
meira infância, de modo que parte das violações sofridas no sistema acabam se
configurando como uma reedição de condições vividas outrora.
Segue-se, nesta discussão, com um aporte teórico que embasa as discussões
propostas neste estudo, afim de que se possa corroborar, com a literatura vigen-
te, a necessidade urgente de preservar o que já está previsto e sistematizado em
lei no que se refere à garantia dos direitos desse segmento.

Fundamentação teórica
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) consiste num documento
legal respaldado na Doutrina Jurídica da Proteção Integral, que torna a criança
e o(a) adolescente sujeitos de direitos. Esta doutrina jurídica prevê ações de vão
na contramão das legislações anteriores, que colocavam adolescentes público
infanto-juvenil como objetos de ação do Estado. A noção de sujeitos de direitos,
de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e a necessidade de recebe-
rem cuidados com prioridade absoluta nasce da luta de órgãos e entidades civis
e governamentais contra os tratamentos violadores até então destinados a essa
população. Contudo, estas crianças e adolescentes ainda estão sendo violados
em seus direitos inalienáveis de cidadania, de dignidade e da própria condição
humana (Evangelista, 2011).
Assim como o ECA, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducati-
vo (SINASE), uma legislação especificamente voltada para os(as) adolescentes
autores(as) de ato infracional, também prevê uma série de garantias que visam
a garantia do acesso destes(as) adolescentes aos direitos fundamentais, cujo ob-
jetivo é a proteção integral deste segmento populacional.
Esta legislação parte, portanto, da perspectiva de um sistema garantista,
que coloca a proteção integral do adolescente e da adolescente autores(as) de
ato infracional como condição para a execução das medidas. Neste sentido,

pelo capital. Neto, J. P. (2001) Capitalismo monopolista e serviço social. 3ª edição. São Paulo: Cortez.

852
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

busca-se uma bibliografia que respalda esta discussão, no que tange a defesa
e garantia de direitos, além de colocar em xeque os argumentos violadores
provenientes do senso comum.
Diante do exposto, segue-se através de uma linha teórica na defesa de que
o jovem em cumprimento de medida socioeducativa chegou aos limites do con-
trato social vigente em nossa sociedade para que pudesse ser visto. Este(a) jo-
vem só passa a ser visível na sociedade ao cometer um ato infracional, gerando,
por parte das autoridades, ações de controle e coerção; e, na sociedade, um
olhar perverso. É assim que Mione Apolinário Sales (2007), em seu livro “(In)
Visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência.”, de-
fine a forma como estes(as) adolescentes são vistos pela e na sociedade.
A mudança impetrada pela Doutrina da Proteção Integral e pelo SINA-
SE não tornou menos depreciativo, humilhante e violador o cenário de como
estes(as) adolescentes são tratados dentro das unidades de cumprimento de me-
didas restritivas e privativas de liberdade. As práticas continuam seguindo uma
lógica não garantidora de direitos, fato que preocupa as autoridades, os estudio-
sos e os movimentos de luta pela defesa de direitos da juventude.
Discutir a lógica da garantia de direitos é necessário no sentido de edificar
ações concretas que retirem estes adolescentes do lugar da violência institu-
cional. Sabe-se que romper com práticas históricas de violações de direitos é
mudar uma cultura e que isso não se faz instantaneamente. A alteração radical
na lei não garante acesso imediato dos(as) adolescentes em cumprimento de
medidas socioeducativas privativas de liberdade aos direitos fundamentais. A
lei consiste num instrumento que direciona a execução da medida para ativi-
dades verdadeiramente pedagógicas, mas muitas condutas ainda desrespeitam o
lugar destes(as) adolescentes dentro da lógica da garantia de direitos.
Neste sentido, o SINASE consiste num desafio visto que incide positiva-
mente em um segmento populacional que a estigmatizado pela sociedade; mais
que isso, o SINASE oportuniza o(a) adolescente a um novo projeto de vida,
longe da trajetória infracional, que depende das políticas intersetoriais para ga-
rantia e execução de um novo olhar sobre a vida futura.
Pensa-se que, para a efetividade da Proteção Integral, é necessário um
olhar sobre este(a) jovem de forma holística, concebendo-o(a) como um sujeito
pleno(a), para usufruto dos direitos previstos em lei. Contudo, considera-se que
somente a partir de um projeto integrado junto às políticas intersetoriais que
compõem o sistema, o(a) adolescente poderá ser contemplado em seus direitos

853
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

fundamentais. Um atendimento setorizado e fragmentado não apresentará


resultados positivos para a vida do(a) socioeducando(a). A ação intersetorial
é o atravessamento que garantirá a efetividade do acesso aos direitos. Deste
modo, “perder” adolescentes e jovens pela falta da garantia de direitos é uma
realidade concreta na execução das políticas públicas, no Brasil (Patrício,
Ramalho, Silva, & Pessoa, 2017).
É ao chamado Estado de Direito, como ente subjetivo, preconizado sob a
ótica da “nova” ordem capitalista que se pretende alcançar, ao viabilizar o aces-
so dessa população aos direitos fundamentais defendidos em lei. A perspectiva
intersetorial de atendimento aparece como um caminho que deve guiar os(as)
profissionais que atendem o(a) jovem, na execução das medidas socioeducati-
vas, para efetivação do acesso a esses direitos.
Integrar o atendimento é parte necessária e vital para não violar ainda mais
as vidas destes(as) adolescentes, considerados como resquícios da “questão so-
cial”. Esta entendida aqui como parte do sistema capitalista, que, em sua “nova
ordem”, produz uma crise estrutural através da perpetuação da miséria e da
violência, levando parte da população a níveis estúpidos de violações de di-
reitos básicos. Considerada como expressão do processo de formação da classe
trabalhadora e de sua entrada na cena política da sociedade, a questão social dá
visibilidade a esta população e ao seu reconhecimento como classe pelos setores
mais abastados (Iamamoto & Carvalho, 1983). Intimamente relacionada à es-
sência da exploração capital-trabalho, a “questão social”, em sua integralidade,
implica a materialidade de componentes históricos, políticos e culturais de uma
dada sociedade. Ou seja, as principais manifestações da “questão social” (po-
breza, exclusão, desigualdades sociais) são decorrências diretas das contradições
inerentes ao sistema capitalista (Pastorini, 2010).
O sistema socioeducativo consiste, portanto, numa estratégia do Estado
para combater os resquícios da “questão social” que atinge os(as) jovens e ado-
lescentes que tiveram uma vida permeada por violações e encontram, no ato
infracional, uma estratégia de sobrevivência. Como política pública vem cum-
prir o papel de minimizar os efeitos da produção capitalista na sociedade, na
tentativa de resgatar o(a) adolescente da vida infracional, cuja entrada dele,
na condição de infrator, foi propiciada por complexos fatores multicausais,
não apartados do funcionamento do Modo de Produção Capitalista. Portanto,
será através da conexão entre as políticas públicas setoriais que compõem o
Sistema de Garantia de Direitos (SGD) do adolescente autor de ato infracio-

854
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

nal, ou seja, que compõem o SINASE, que poderão ser efetivados os direitos
fundamentais previstos no estatuto.
A atuação das políticas intersetoriais de forma integrada deve perpassar o aten-
dimento com vistas à integração de agendas coletivas, bem como pela partilha de
objetivos comuns. Para tanto, a intersetorialidade pode e deve ser garantida através
da rede socioassistencial de atendimento, evidenciando maior fluidez nos encaminha-
mentos e no acompanhamento dos(as) socioeducandos, incluindo a contrarreferência
dos atendimentos e dos encaminhamentos para que estes(as) usuários(as) tenham sua
demanda atendida de forma integral (Barbosa, Oliveira, Barbosa,&Leite, 2017). Além
disso, para que seja possível também superar os entraves impostos pelo atual desmonte
das políticas públicas no país, o que intensifica a fragmentação dos serviços, é ne-
cessário fortalecer as políticas intersetoriais. A consequência disso será, certamente,
a efetivação ou, ao menos, a aproximação da efetivação do Sistema de Garantia de
Direitos do(a) adolescente autor de ato infracional.
Não se pode deixar de fazer menção ao Plano Individual de Atendimento
(PIA) como instrumento que congrega todas as ações direcionadas e construí-
das junto ao(à) adolescente durante o cumprimento da medida socioeducativa.
Este instrumento processual condensa todas as metas do(a) adolescente e sua
família durante o processo sociopedagógico. Ele consolida o registro de tudo
que foi construído pelo(a) adolescente e sua equipe para a efetivação de um
projeto de vida possível. É no PIA que se materializa a perspectiva intersetorial
do atendimento socioeducativo, dando um direcionamento mais consistente
para um projeto de vida exequível e distante da prática infracional.
A discussão empreendida até aqui permite uma aproximação geral com a ga-
rantia de direitos de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.
Contudo, ela não esgota todos os elementos envolvidos. Importa também saber
como os sujeitos alvo desse sistema, os(as) adolescentes, concebem o Sistema
de Garantia de Direitos na rotina socioeducativa, como eles consideram que as
medidas devem ser executadas, dentro dos seus entendimentos sobre a garantia
de direitos. Estes objetivos foram alvo da pesquisa descrita a seguir.

Estratégia metodológica
A fim de obter informações que auxiliassem na compreensão de como os(as)
adolescentes entendem a garantia de direitos, empreendeu-se uma pesquisa

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

com adolescentes que estavam cumprindo medida em quatro unidades de in-


ternação do Rio Grande do Norte6. Trata-se de três masculinas e uma feminina,
duas das quais estão localizadas na capital e duas no interior do estado.
Para mediar as conversas com os(as) adolescentes foi utilizado o “Bingo Socio-
educativo” (Figura 1), por ser uma atividade lúdica e passível de adequação com
a peculiaridade etária, escolar e circunstância de vida dos colaboradores. Nesse
sentido, os itens das cartelas do bingo eram compostos por figuras que remetiam
aos direitos dos(as) socioeducandos(as)sinalizados pelo SINASE (Brasil, 2006),
pela lei nº 12.594 do SINASE (2012) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescen-
te (lei nº 8069/90).Mais precisamente, foram abordados direitos relacionados às
visitas familiares, à saúde, à educação, à alimentação, acesso à justiça, aspectos
sobre segurança, sobre a intersetorialidade, uso de algemas, Plano Individual de
Atendimento, esporte, profissionalização, regimes disciplinares, dentre outros.

Figura 1: exemplo da cartela do “Bingo Socioeducativo”

6 Cumpre sinalizar que esta pesquisa fez parte de um conjunto de ações de um projeto de intervenção
mais amplo, que tinha como propósito contribuir para a construção de nova concepção de
socioeducação no sistema socioeducativo do RN.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A atividade era iniciada com uma breve apresentação dos(as)


pesquisadores(as) e dos(as) adolescentes. Em seguida, os materiais (uma car-
tela e um lápis ou giz de cera) eram distribuídos entre os(as) participantes.
Procedido o sorteio, aquele ou aquela em cuja cartela houvesse o desenho
sorteado era convidado(a) a falar sobre a imagem, a partir de algumas ques-
tões disparadoras, que envolviam identificar que direito poderia estar sendo
representado com a figura, como o acesso a ele acontecia dentro da unidade
e como achavam que deveria ser esse processo. Seria o campeão do jogo, tal
como num bingo comum, aquele(a) que preenchesse primeiro toda a cartela.
Ao final do jogo, todos(as) participantes ganharam um brinde.
Buscando garantir a exequibilidade da atividade considerando o tempo dis-
ponível, quantidade de mediadores e respeito às medidas de segurança adotadas
em cada instituição, o jogo foi realizado em pequenos grupos de até doze partici-
pantes, definidos(as) pela equipe técnica ou direção do local. A sua execução foi
mediada por dois(as) pesquisadores(as) em cada unidade, que, além de mediar a
atividade, também fizeram o registro das informações por escrito.
É importante ressaltar que o “Bingo socioeducativo” mostrou-se um instru-
mento efetivo para incentivar os(as) socioeducandos a falarem sobre os tópicos
abordados, sem tornar a atividade desinteressante ou cansativa. Isso se revelou
tanto pela participação de adolescentes que optavam por falar mesmo quando
não tinham a figura sorteada em suas cartelas, quanto pela insistência em con-
tinuar o jogo ainda que alguém já tivesse alcançado o objetivo.
Posteriormente, a análise das informações coletadas envolveu a sua leitura
e sistematização dos dados de acordo com os direitos abordados. Essa leitura
permitiu identificar que o conteúdo das falas abordava, pelo menos, dois as-
pectos: em que condições esses direitos eram ou não garantidos e como esses
direitos deveriam ser assegurados, refletindo a condução da atividade. Diante
disso, os resultados apresentados e discutidos a seguir estão divididos pelos
principais direitos trabalhados na ocasião, ressaltando-se em cada um deles os
dois aspectos apontados. A partir de tais informações foi possível depreender
como os(as) adolescentes compreendem a garantia de direitos, algo que tam-
bém será debatido na próxima seção.
Importa destacar que algumas informações obtidas pelos(as) pesquisadores(as)
em outros momentos de contato como o funcionamento da unidade foram uti-
lizadas para a apresentação e análise dos dados. Isso não quer dizer que o intui-
to deste estudo tenha sido averiguar a veracidade das informações fornecidas

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

pelos(as)adolescentes, mas, antes, oferecer uma melhor compreensão do con-


texto em que esses direitos são (ou não) efetivados.
Ressalta-se que todos(as) os(as) adolescentes que participaram desta
pesquisa cumpriam medida de internação nas três unidades de medida de
privação de liberdade masculinas e na única unidade de privação feminina.
De modo geral, as falas foram bastante próximas, indicando que as con-
dições de cumprimento das medidas nas unidades de internação possuem
similaridades – algo atestado pelos/as pesquisadores/as em outras ativida-
des na unidade. Por outro lado, algumas especificidades também foram ob-
servadas, especialmente no caso das socioeducandas e no caso dos adoles-
centes que se encontram nas unidades do interior do estado. Diante disso,
optou-se por apresentar o conteúdo das falas em conjunto, especificando as
unidades ou os grupos que participaram apenas quando as informações e a
discussão exigirem tal recurso. Tal procedimento justifica-se também por
preservar a identificação dos(as) participantes.
Importante demarcar que este estudo empreende uma pesquisa de viés
qualitativo e que o plano de análise dos dados foi realizado com base no mate-
rialismo histórico-dialético, tendo em vista que se considera a aparência, isto
é, os dados coletados revelam pressupostos definidos através de uma essência
não vista a priori. Neste sentido, foi necessária uma análise para além do que
está exposto na realidade concreta, desvelando as verdadeiras características
inerentes aos dados encontrados. Isto posto, parte-se do princípio de que há
uma preocupação expressa em relação às mazelas da “questão social” postas
na sociedade pelo sistema capitalista, revelando, com isso, a essência do fe-
nômeno. Esta é considerada como parte constitutiva do desenvolvimento do
sistema capitalista, com diferentes estágios, e produzindo e reproduzindo dife-
rentes manifestações (Yamamoto & Oliveira, 2010), que podem ser expressas
através de vivências diversas, vistas na sociedade capitalista e que impõem
uma lógica de segregação da classe trabalhadora diante do distanciamento
desta em relação às classes dominantes.

Resultados e Discussão
Como já foi exposto, os dados serão apresentados de acordo com temas relacio-
nados aos direitos fundamentais defendidos pelo ECA e pelo SINASE. Em alguns

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

casos, foram reunidos alguns temas sorteados (como “direito a justiça, ou convivên-
cia familiar) de modo a simplificar a análise e, posteriormente, discuti-las.

Atenção integral à saúde


No que tange a atenção à saúde, os(as) socioeducandos(as) indicaram que os
cuidados não eram integralmente garantidos, uma vez que enfrentavam limitações
diversas quando necessitavam de atendimento. Alguns grupos salientaram a de-
mora existente para serem atendidos – alguns afirmaram que já estavam há quatro
meses a espera de atendimento médico. Além disso, foram relatadas situações nas
quais foram alvo de desconfiança por parte dos socioeducadores, que não acredita-
vam nas suas queixas por suspeitarem de que poderia ser parte de um plano de fuga,
o que acarretou na demora, evidenciando negligência por parte do Estado.
Ressalta-se que o direito à saúde é considerado um direito fundamental, pre-
visto e defendido pela Constituição Federal de 1988, pelo ECA e pelo SINASE.
Tendo isso em vista, manifestaram o desejo de que houvesse maior agilidade
no acesso a atendimentos de saúde e que os socioeducadores conferissem maior
credibilidade ao adolescente e à adolescente. Assim, nessas situações parece
haver fragilidade dos vínculos estabelecidos entre os adolescentes e os trabalha-
dores da unidade, posto que são pautados pela desconfiança.
É importante destacar que em todas as instituições em que a atividade foi
realizada havia espaço reservado para o cuidado à saúde, porém caracterizados
pela precariedade dos recursos. Diante desse quadro, verifica-se que o direito à
atenção integral à saúde não se concretiza na prática e as ações de caráter in-
tersetorial possuem apenas caráter emergencial, quando não se efetivam através
das relações interpessoais e não institucionais.

Escolarização e profissionalização
Ao falarem sobre o acesso à escola, os(as) socioeducandos(as) considera-
vam que o tempo que passavam na escola era insuficiente, além de apontarem
a falta de professores em algumas disciplinas. De acordo com os adolescen-
tes das unidades masculinas há ocasiões em que esse direito é cerceado, como
forma de sanção disciplinar, o que contraria o SINASE. Diante disso, sugeri-
ram que a carga horária fosse cumprida e que o acesso às aulas não fosse alvo

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de sanções. Quando questionados sobre por que o tempo era reduzido, os(as)
socioeducando(as), afirmaram que se tratava de uma forma de evitar conflitos,
que poderiam ser gerados pela presença de facções rivais, que impedia uma con-
vivência pacífica entre os adolescentes. As adolescentes expressaram o desejo
de fazer o supletivo e ressaltaram a falta de estrutura da unidade, com poucas
salas de aula e professores.
Quanto à profissionalização, os(as) adolescentes afirmaram que algumas
atividades que já ocorrem nas unidades poderiam ajudá-los a ter outra opção
como de fonte de renda (tal como a marcenaria). Porém, sinalizam que a ne-
cessidade de que houvesse mais opções de formação, como cursos de culinária
e de informática, de recepcionista, de eletricista, de pintora e de cabeleireira
(estes quatro últimos citados pelas socioeducandas). Além disso, muitas vezes, o
tempo de cumprimento de medida finaliza antes que encerrem alguns cursos, o
que impossibilita o socioeducando de receber o certificado.
Com efeito, a escolarização e a profissionalização possuem relevante papel
durante o cumprimento da medida, uma vez que podem oferecer novas alterna-
tivas para o seu projeto de vida, modificando assim a trajetória que vinha tra-
çando até então e rompendo com a lógica infracional. Por esta razão, ampliar as
opções de escolha dos adolescentes torna-se importante. Nessa direção, Paiva
e Silva (2014) recomendam, inclusive, que a profissionalização seja realizada,
preferencialmente, fora da instituição, a partir, por exemplo, da articulação com
programas com reconhecimento no mercado de trabalho. Tal medida é interes-
sante por possibilitar o progressivo retorno do(a) socioeducando(a) ao convívio
social e auxiliar na ressignificação de seu lugar na sociedade como cidadão.

Atividades culturais, esportivas e de lazer


Os dados afirmam que os adolescentes possuem acesso a algumas ativi-
dades que de seus interesses, mas teriam pouco tempo para aproveitá-las. No
caso do esporte, importa destacar que as atividades que ocorrem na maioria
das unidades são reduzidas ao futebol (única opção de esporte). A exceção
fica por conta da unidade feminina, onde praticam vôlei e queimada – esta,
quando permitida pelos agentes socioeducativos. Diante desse cenário, os(as)
socioeducandos(as) afirmaram que gostariam de ter mais opções de esporte e
mais tempo de desfrutar das atividades.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Nesse ponto, é interessante destacar que as unidades contam com espaços


em condições distintas para a prática de esporte – por exemplo, a unidade fe-
minina contava apenas com uma pequena quadra de areia, enquanto, em outra
unidade de atendimento, havia uma piscina, uma pista de corrida e um cam-
po de futebol, mesmo que sem manutenção. Em todas as unidades, os espaços
destinados à prática de esportes necessitavam de algum tipo de melhoria e,
em alguns casos, estavam interditados não apenas por conta de suas condições
materiais, mas por medidas de segurança para evitar fugas.
O artesanato foi outra atividade mencionada pelos(as) adolescentes, em rela-
ção a qual expressaram interesse e desejo de participar mais vezes. É importante
destacar que em todas as unidades, o artesanato envolve pintura e origami. Nas
masculinas, há também a marcenaria, mas que é restrita aos jovens que possuem
“bom comportamento”. Diante disso, os adolescentes manifestaram o desejo de
que pudessem participar mais da marcenaria e que houvesse outras atividades
culturais, como grafite e atividades de informática com acesso à internet (que,
como pode-se depreender, qualificam também como atividade recreativa).
Cumpre frisar que as atividades artísticas, esportivas e de lazer não devem
ter fins meramente ocupacionais, dado o potencial que possuem no desenvolvi-
mento do trabalho cooperativo e da criatividade, além do caráter de educação
não formal que apresentam. É necessário atender aos pedidos dos(as) adoles-
centes no sentido levar para as unidades atividades com as quais eles tenham
afinidade e envolvimento. Assim, sua utilização deve estar orientada para o de-
senvolvimento de habilidades e conhecimentos que permitam ao(a) adolescente
despertar para novas possibilidades (Pinto & Silva, 2014). Permitem, ainda, que
os(as) socioeducando(as) possam expressar-se de outros modos, podendo ser um
interessante caminho para um trabalho de reflexão sobre si mesmos(as), suas
histórias, sobre a sociedade e sobre seus projetos futuros.

Segurança
Os dados apontaram que as ações de segurança eram, muitas vezes, reali-
zadas de forma violenta, com destaque para a contenção, vista pelos(as) ado-
lescentes como uma ação desproporcional às indisciplinas ocorridas dentro da
unidade. Assim, apontam que a contenção só deveria acontecer em caso de
rebelião; que a sanção não deveria ocorrer quando o(a) adolescente batesse a

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

grade, e que, uma vez acontecendo, deveria ter seu tempo diminuído e que não
implicasse a perda de direitos. Eles também se posicionaram quanto a “cafua”
(lugar para onde é levado o adolescente quando comete alguma disciplina na
unidade; “solitária”) e afirmaram em mais de uma unidade que esta deveria
ser extinta. Ademais, afirmaram que a direção deveria proibir a entrada de
policiais, que foram considerados, pelos(as) adolescentes como responsáveis por
diversas situações de violência.
É preciso lembrar que a segurança socioeducativa deve zelar pela integridade
física, moral e psicológica do(a) adolescente, tal como recomenda o SINASE
(2006). E, como elemento importante da medida, deve ser trabalhada a partir
de uma perspectiva preventiva, educativa e não punitiva, de contenção - esta
somente recomendada em casos excepcionais (Silva & Pinto, 2004).

Acesso ao sistema de justiça


Aspectos relativos a esse quesito só foram abordados em duas unidades (uma
feminina e uma masculina). As adolescentes relataram que o sistema de justiça
como um todo não presta assistência devida, segundo as necessidades delas,
na unidade. Ao se referirem especificamente sobre a “defesa técnica”, tanto os
meninos como as meninas manifestaram descontentamento com os defensores
públicos, afirmando que eles não atuavam de acordo com suas expectativas,
bem como deveriam ser mais presentes durante todo o cumprimento da medida
socioeducativa. No tocante às audiências, os adolescentes de uma das unidades
masculinas afirmam que nunca estiveram presentes em audiência de acompa-
nhamento e que, por esta razão, não são ouvidos.
Além de ser um direito do(a) adolescente, é importante lembrar que o acesso
ao sistema de justiça é parte fundamental do cumprimento da medida socioe-
ducativa, dentre outros fatores, pela sua co-responsabilidade no funcionamento
e fiscalização dos programas e na execução das medidas. Assim, quanto mais
presente na unidade, menos violações de direitos ocorrerão contra os(as) ado-
lescentes, além de efetivar o caráter socioeducativo, de modo que sua atuação
não se limite apenas ao âmbito jurídico. Isso pode e deve ocorrer desde o pri-
meiro contato do(a) adolescente com o sistema, além de dos órgãos de justiça
serem co-responsáveis pelo monitoramento das unidades e dos programas de
atendimento socioeducativo.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Cumpre destacar que outros direitos, como o exercício da fé religiosa e de


documentação para exercício da cidadania não foram trabalhados, tendo em
vista que não foram sorteados durante a realização da atividade.

Visita familiar e revista vexatória


No tocante à visita familiar, os(as) socioeducandos(as) relataram que nem
todas as pessoas de sua família têm autorização para entrarem nas unidades e
realizarem as visitas, a exemplo dos primos e sobrinhos. Por esta razão, sugeri-
ram que o acesso à visita fosse ampliado, de modo a permitir que outras pessoas
do grupo familiar, além do nuclear, tivessem acesso. Além disso, aproveitaram
o ensejo das oficinas para reivindicar quanto a insuficiência em relação ao di-
reito à convivência familiar, pois relataram que uma ligação de dez minutos por
semana é muito pouco para falarem com os parentes.
Outra questão fundamental é o fato de que muitos adolescentes cumpriam a
medida em outra cidade, violando, em demasia, o direito à convivência familiar.
Diante disso, sugeriram que a fundação responsável pela execução das medidas de
internação disponibilizasse mais transportes para os familiares nos dias de visita, ou
que transferissem o(a) adolescente para onde ele(a) pudesse estar mais próximo da
família. As adolescentes da unidade feminina acrescentam a esse rol de sugestões e
reivindicações a necessidade de maior privacidade no momento da visita familiar.
Já no tocante a revista vexatória, os(as) socioeducandos(as) manifestaram-se
contrários(as)à prática que, segundo eles(as), deveria ser evitada nas unidades por
colocar suas famílias em situação constrangedora. Diante disso, alguns(as) adoles-
centes afirmaram que chegaram a pedir às suas famílias que não viessem visitá-los
ou que não trouxessem seus filhos. Acreditavam que a revista deveria ser feita de
outra forma, com o uso de instrumentos que pudessem auxiliar nessa tarefa e que
não fossem invasivos. Nesse ponto, demonstraram que conheciam outras alterna-
tivas, assinalando o uso de detector de metais ou da revista invertida.
A família é um dos pilares centrais na execução das medidas, vista como
co-responsável pela proteção integral dos(as) adolescentes (SINASE, 2006).
Nessa direção, a consideração da família no processo socioeducativo assu-
me maior relevância pelo importante suporte que pode oferecer para os(as)
socioeducandos(as) durante o processo, contribuindo inclusive na elaboração
de um novo projeto de vida para o(a) adolescente (Teixeira, 2014). As medidas

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

socioeducativas devem favorecer o fortalecimento desses vínculos e, inclusive,


ampliar o que se entende por “família”, a fim de reconhecer grupos ou pessoas
com os quais o(a) socioeducando(a) tenha vínculo afetivo (SINASE, 2006).
Contudo, a maior participação das famílias no processo socioeducativo
torna-se fragilizada, tanto pela distância do local onde são levados para cum-
prir a medida – se contrapondo a própria recomendação de municipalização do
atendimento (lei nº 8094/1990) –,quanto pelo uso de procedimentos vexatórios
durante a revista – os quais se constituem em grave violação da dignidade hu-
mana (Medeiros & Paiva, 2015). Quanto ao segundo ponto, é imperativo que
outras alternativas sejam debatidas e adotadas, algo que já ocorre em outras
instituições do país (Andrade & Barros, 2018).

Sexualidade e visita íntima nas unidades masculinas e femininas


No tocante ao exercício da sexualidade, os(as) adolescentes mencionaram
que já assistiram a palestras sobre o tema e que gostariam de ter mais infor-
mações e debates a respeito, abordando, por exemplo, educação sexual. Além
disso, apontam que deveria haver distribuição de preservativos nas unidades
nos momentos da visita íntima. Ainda, merece destaque a solicitação por parte
das socioeducandas de que os casais homossexuais que existem na unidade
feminina pudessem ficar no mesmo alojamento. Para elas, muitos profissionais
“têm a cabeça antiga” e, por isso, acreditam que a equipe técnica precisaria ser
melhor preparada para lidar com a diversidade sexual.
No que se refere às visitas íntimas, diversas questões foram apontadas
pelos(as) socioeducandos(as). Destacaram que o tempo cedido para a visita ín-
tima era muito pouco e que nem todos(as) tinham acesso a esse direito. Res-
salta-se que na unidade feminina nunca foi efetivado o direito à visita íntima,
somente nas unidades de internação masculinas.
Os dados indicam que o exercício da sexualidade e a questão de gênero
precisam ser abordadas com maior profundidade nas instituições, merecendo
uma atenção especial por parte do sistema socioeducativo. Além de ser um
aspecto importante do desenvolvimento na adolescência, a vivência da sexu-
alidade é um direito que não deve sofrer restrições de nenhuma ordem(Lei
nº 12.596/12). Ademais, concordando com Mattar (2008), o direito à visi-
ta íntima não deveria estar vinculado à comprovação de relação anterior à

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

entrada na unidade, uma vez que o exercício da sexualidade é um direito


humano, reconhecido nacional e internacionalmente (e.g. Organização das
Nações Unidas, 1994; Ministério da Saúde, 2010).Ademais, a própria solicita-
ção, por parte das meninas, de que os exames preliminares exigidos para que
seja autorizada a visita íntima sejam dispensáveis, mostra a necessidade de se
avaliar que tipo de conscientização há sobre a importância do autocuidado,
bem como pensar em estratégias de como viabilizar a realização de tais exa-
mes, tendo em vista que fazem parte da atenção à saúde.

Uso de fardamento e de algema em ambiente externo


Nesse quesito, os(as) socioeducandos(as) afirmam que se sentem mais expos-
tos ao saírem das unidades com as fardas, uma vez que são alvos de condutas co-
ercitivas e de repreensões por parte da sociedade, de um modo geral. A exemplo
disso, relataram situações em que receberam reprimendas verbais de pessoas que
estavam no mesmo local e com as quais não tinham qualquer relação, enquanto
estavam nos ambientes jurídicos aguardando pelas audiências. Diante disso, trou-
xeram como sugestões a retirada do símbolo do sistema socioeducativo do estado
do fardamento, bem como a não obrigatoriedade do seu uso no dia das audiências.
Assim, pela ótica dos direitos, é possível relacionar os relatos dos(as) adolescen-
tes ao direito de que tenham a sua identidade preservada (lei nº 8069/1990). Ainda
que o uso de fardamento e algemas possam cumprir o papel de segurança, isso não
deveria sobrepor-se aos princípios socioeducativos. Mais precisamente, qualquer
ação que reforce a vinculação da sua identidade com o ato infracional impõe-se
como um obstáculo para a efetividade da socioeducação, na medida em que se nega
a olhar para o sujeito como um ser com potencial de desenvolvimento, reduzindo-o
a uma condição de periculosidade e fragilizando qualquer possibilidade de relação
de confiança entre os(as)socioeducandos(as) e os(as) socioeducadores(as).
Importa destacar que a defesa não é de que o uso da algema venha a ser
totalmente proibida, mas que seu uso não venha a ser realizado de modo ar-
bitrário, pelas implicações anteriormente expostas. Até o momento, o seu uso
não está vedado, mas deve ser utilizado em casos excepcionais e não abusivo
- ou seja, quando o(a) adolescente apresentar ações que ponham em risco a si
mesmo e aos demais (Supremo Tribunal Federal, 2003).

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Considerações finais sobre a compreensão dos(as)


adolescentes acerca da garantia de direitos
De modo geral, os relatos permitiram concluir que os(as) adolescentes reco-
nhecem os direitos que possuem, tal como é prescrito pelo SINASE, e enten-
dem que boa parte desses direitos são acessados precariamente ou sequer são
garantidos. Apesar dos(as) socioeducandos(as) abordarem aspectos que, de fato,
são previstos pela legislação quanto aos seus direitos, é possível identificar algu-
mas lacunas no conhecimento que possuem a esse respeito. Exemplifica isso o
fato de não questionarem o impedimento de receber visitas familiares por parte
de algumas unidades, utilizado como forma de sanção – prática essa relatada
por alguns(as) adolescentes durante o bingo. Ou, ainda, por fazerem sugestões
que não são plausíveis do ponto de vista das normativas e diretrizes que regem
o sistema socioeducativo – como no caso do uso de drogas, em relação ao qual
acham que deveria ser totalmente liberada, embora compreendam que a neces-
sidade de maior cuidado em relação à dependência química. Tal situação revela
a necessidade de trabalhos formativos que propiciem aos(as) socioeducandos(as)
um conhecimento mais completo sobre a legislação a fim de compreendam
quanto a garantia de seus direitos.
Reconhece-se que a garantia de direitos tem como um dos seus principais
obstáculos a falta de condições materiais, técnicas e políticas para que sejam
concretizados, tal como assinalado por Mattar (2008):

[...] ao partirmos para a realidade das instituições executoras de medidas


socioeducativas, nos deparamos com um cenário de insulamento de
direitos, cujo foco principal está vinculado à retirada do adolescente do
convívio social. Embora os direitos sociais estejam convencionados em
todo o arsenal normativo que permeia tal realidade, nos defrontamos
com o minimalismo de tudo o que concerne às garantias sociais (p. 406).

Não obstante, a sua garantia também depende do conhecimento que o pró-


prio sujeito-alvo possui. Isso porque essa conscientização é imprescindível para
que (as)os adolescentes possam participar mais ativamente do desenvolvimento
da medida socioeducativa como um todo, fortalecendo seu potencial de contri-
buição com a construção, o monitoramento e a avaliação das ações desenvolvi-
das na unidade, tal como recomendado pelo SINASE (2006). Essa participação

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permite, por seu turno, o exercício da cidadania e da autonomia, aspectos esses


buscados durante a medida socioeducativa (Teixeira, 2014). Assim, o conheci-
mento, por parte do(a) adolescente, sobre os seus direitos deveria ser reconheci-
do como um pressuposto da própria socioeducação, através de formação.
Outro ponto que é possível observar relaciona-se com a preocupação com os
aspectos da segurança, sendo um dos itens que também interfere no acesso aos
demais direitos, como pode ser observado no tocante à diminuição do tempo
das aulas em função das rivalidades entre os grupos de adolescentes, ou da de-
mora do atendimento como medida de segurança. Ademais, a lógica punitivista
presente em algumas ações relatadas pelos(as) adolescentes, a exemplo da res-
trição em relação às visitas familiares ou do acesso à escola como forma de san-
ção, acaba impondo-se como outro obstáculo para a efetivação dos direitos nas
unidades, mostrando que as condições de acesso aos direitos não se resumem
apenas à questão material. Além disso, mostra que os aspectos da segurança
configuram uma preocupação maior que os aspectos sociopedagógicos.
Neste ponto, importa sinalizar que o viés punitivista é identificável até mes-
mo em algumas falas dos(as) adolescentes, refletindo os discursos sociais e mes-
mo a própria lei, que também apresentam esse traço. Ficou explícito, na fala
dos adolescentes de uma das unidades masculinas, que a sanção (solitária) é
necessária em casos de indisciplina grave, mas que diminuíssem o tempo.
Assim, tanto as falas quanto algumas condições levantadas pelos(as) ado-
lescentes indicam a permanência de ações historicamente herdadas das legisla-
ções anteriores, de cunho corretivo-punitivo, revelando que parte dos direitos
fundamentais dos(as) adolescentes estão sendo precariamente garantidos ou,
em alguns casos, retirados, refletindo a natureza quase que exclusivamente san-
cionatória da socioeducação e não cumprindo com a finalidade da medida, que
deve (ou deveria) ser socioeducativa.
Neste sentido, concluímos que é preciso reconhecer que o cenário estuda-
do, pela sua complexidade e contradições exigem outros estudos– por exemplo,
entrevistas com os operadores do sistema socioeducativo – para uma apreensão
mais aprofundada do campo. Contudo, os resultados apresentados e discutidos
dão uma direção quanto ao entendimento dos(as) adolescentes sobre suas trajetó-
rias de acesso aos direitos básicos, especialmente sobre os direitos que devem ser
resguardados durante o cumprimento das medidas socioeducativas. Eles compre-
endem o lugar a eles destinado na e pela sociedade, além fazerem uma reflexão
bastante crítica quanto ao fato de percebem seus direitos mais uma vez violados.

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Dar vazão ao que estes sujeitos trazem retira-os da condição de objeto de


ação do Estado e os coloca verdadeiramente na condição de sujeitos de direi-
tos. É necessário construir com eles(as) as ações e atividades socioeducativas,
para que possam ressignificar seus lugares criticamente, no cumprimento de
uma medida que tem como finalidade a ação pedagógica. Faz mister tornar
o PIA um instrumento de suma importância na construção de um projeto de
vida exequível, com a participação direta deste sujeito e de sua família, junto
às ações intersetoriais que vão garantir a integralidade do atendimento deste
sujeito, pleno de direitos e gozando destes.

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870
O relato mítico e sua linguagem persuasiva
e ideológica: um sintético ensaio acerca
do mito da igualdade no direito penal

Rodrigo Nunes da Silva1

1. Introdução ao estudo do mito: aspectos propedêuticos


O estudo da figura mitológica é por demais instigante, esclarecedor e circun-
dante das narrativas histórico-sociais. Por isso necessário. O mito, em verdade,
se apresenta como um meio de compreensão da realidade, e, em outros casos,
de dominação dessas mesmas realidades. Partindo do início, podemos atestar
que vários são os conceitos estabelecidos para o “Mito” que variam conforme o
plano de estudo ou área de interesse. Dentre as várias definições, aquelas que
pautarão o presente estudo dizem respeito às abordagens antropológicas e socio-
lógicas. E nesse ângulo, temos que o mito pode se consubstanciar em um relato
simbólico destinado a explicar a origens e fenômenos passados de geração em
geração. Em outro ponto, mas na mesma linha, o relato mítico também pode
se traduzir numa exposição alegórica de uma ideia qualquer, de uma doutrina e
até de uma teoria filosófica. Em suma, podemos definir o mito com sendo uma
narrativa que procura justificar um fenômeno.
O pensar mítico envolve e se entrelaça por diversos aspectos que his-
toricamente se comunicam e se dissociam ao longo do tempo. São fatores
religiosos, sobrenaturais, culturais, metalinguísticos e literários que estabe-
lecem representações,2 sempre procurando uma explicação fenomenológica.
Com efeito, verifica-se, no discurso mitológico uma constante e abrangente

1 Mestrando em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
– UERN. Pós-graduado em Direito Penal pela Faculdade Damásio. Graduado em Direito/UERN.
Participante do Grupo de Pesquisa “Estado, Segurança Pública e Cidadania” da UERN.
2 Signos, ritos, fábulas, prosas, poesias, etc.

871
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

tentativa de explicação do fato interpretado. É nesse raciocínio que discorre


Cassirer (1994, p. 123):

Não há nenhum fenômeno natural, e nenhum fenômeno da vida


humana, que não seja passível de uma interpretação mítica, e que
não peça uma tal interpretação. Todas as tentativas das diversas
escolas de mitologia comparativa no sentido de unificar as ideias
mitológicas, reduzi-las a um certo tipo uniforme, estavam destinadas
a acabar em um completo fracasso.

O estudo mitológico também se caracteriza por ser umas das formas de ma-
nifestação cultural mais antigas da história humanidade. Os primeiros registros
históricos que se tem conhecimento abordam o próprio surgimento do homem a
partir dos relatos bíblicos. A “Mitologia Cristã” é até hoje a narrativa mais acei-
ta (e questionada) em toda a história, incluindo aqui os fundamentos das mais
diversas acepções religiosas (católicos, judeus, evangélicos, islâmicos, espíritas,
de culto africano, etc.). Nessa sequência cronológica, foi Homero, por volta de
700 a.C., quem principiou os escritos mitológicos na Grécia Antiga enquanto
que na era moderna a mitologia se consolida a partir dos pensamentos e relatos
dos filósofos iluministas, dos antropólogos e sociólogos.
Hodiernamente, a narrativa mítica se compõe de uma teia de fatores que
perpassam pelas mais diversas formas de linguagem e que são conjugadas
com a psicologia, com a poesia, com as artes, com o direito, dentre outras
áreas de manifestação do saber. Cabe destacar também que nas sociedades
mais simples os mitos procuravam decifrar a origem do mundo, do homem,
da sociedade, assumindo por conseguinte uma linguagem muito mais sim-
bólica. Nas sociedades modernas os mitos passam a ser referenciados por
novas condições históricas e sociais e passam a mudar significados, não
mais se detendo a origens, mas procurando explicações para uma realidade
fática envolta de relações sociais complexas.
Assim, o estudo mítico atual passa a ser balizado por experiências psíquicas
e culturais, construção de arquétipos, tentativas de explicações do “eu”, do “sel-
fie” e das relações sociais. Nessa seara, insta invocar as sempre precisas palavras
de Joseph Campbell (1990, p.12.):

A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias


de iniciação, quando você passa da infância para as responsabilidades

872
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

do adulto, da condição de solteiro para a de casado. Todos esses rituais


são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você
passa a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para
voltar com o novo, assumindo uma função responsável. Quando um
juiz adentra o recinto do tribunal e todos se levantam, você não está
se levantando para o indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o
papel que ele vai desempenhar. O que o torna merecedor desse papel é
a sua integridade como representante dos princípios que estão no papel,
e não qualquer ideia preconcebida a seu respeito. Com isso, você está se
erguendo diante de uma personagem mitológica.

Com efeito, temos que a ideia mitológica, enquanto forma de representa-


ção, busca meios de explicar e conhecer o cotidiano, ou o pretérito do mundo,
sempre explorando respostas para as necessidades existenciais e sociais. Nesse
sentido, o personagem mítico pode vir formatado por arquétipos criados des-
de a infância, de tal maneira que um inconsciente imaturo venha a evoluir a
partir de crenças preestabelecidas, como por exemplo, a do mito-herói (Hen-
derson, 2016, p. 150-155).
A figura do mito, dentre outras características, se manifesta a partir de de-
terminada “linguagem simbólica”, vale dizer, compõe-se de uma narrativa re-
cheada de significados e estruturada sob uma ordem particular, qual seja, uma
ordem própria e sincrética. Assim, a narrativa se faz necessidade e condição
primeiras no paradigma evolutivo do discurso mitológico, conforme acentua
Serres (2015, 172): “Todos precisamos de uma narrativa para existir”.
Portanto, embora dissociado de um discurso científico, a narrativa mítica im-
põe uma ordem, um conjunto de imagens e significados, entrelaçados e interde-
pendentes. Acerca dessa “ordem” e seus significados, discorre Strauss (2007, p.11):

Falar de regras e falar de significado é falar da mesma coisa; e, se


olharmos para todas as realizações da Humanidade, seguindo os registos
disponíveis em todo o mundo, verificaremos que o denominador comum
é sempre a introdução de alguma espécie de ordem. Se isto representa
uma necessidade básica de ordem na esfera da mente humana e se a
mente humana, no fim de contas, não passa de uma parte do universo,
então quiçá a necessidade exista porque há algum tipo de ordem no
universo e o universo não é um caos.

873
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Neste mesmo ângulo, Joseph Campbell pontua a necessidade de uma ordem


mitológica, mas adverte que o significado é estabelecido impõe subjetivo e é defi-
nido pela própria mente. Afirma o renomado mitologista (Campbell, 2008, p. 34):

Uma ordem mitológica é um conjunto de imagens que dá à consciência


um significado de significado de existência, que, não tem significado
algum, simplesmente existe. Mas a mente sai em busca de significados; ela
só consegue funcionar se conhecer (ou inventar) um conjunto de regras.

Outrossim, a narrativa mítica não exige, a priori, comprovação empírica.


A verdade do mito é estampada por meio de afirmações coletivas, pela práxis
comunitária, com objetivos outros e diversos, distantes de comprovações reque-
ridas. Nesse pensar, Smith (1978, p. 240), citando Malinowski, propõe:

O discurso mitológico deve ser captado em seu contexto social, como


um elemento entre muitos daquilo que constitui a coesão do grupo.
De modo que a função dos mitos é menos explicar ou atender a uma
curiosidade de tipo científico, filosófico ou literário, que justificar,
reforçar e codificar as crenças e práticas que constituem as molas da
organização social.

Diante do necessário arcabouço exordial exposto, temos que o mito per-


severa o sentido, o sentimento, fazendo com que eles sejam expostos e trans-
formados. A narrativa mítica propõe, sobretudo, uma certa satisfação quanto
às necessidades mais profundas do ser humano, dentre elas, àquelas de ordem
moral, psicológica, social e especialmente política.

2. A função persuasiva e ideológica da figura mítica


no direito
O discurso mítico se apresenta por diferentes horizontes de feições fictícias,
mas que também podem esconder objetivos outros. Nessa importante conjun-
tura que aborda a extensão da figura mitológica, vale mais uma vez o destaque
de Ernest Cassirer (1994, 124-125), que, ao estabelecer uma nova forma de in-
terpretação do mito moderno, assevera:

874
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Embora o mito seja fictício, trata-se de uma ficção inconsciente, e não


consciente. A mente primitiva não tinha consciência do sentido de suas
próprias criações. Mas cabe a nós, cabe à nossa análise científica, revelar
esse sentido – detectar o rosto verdadeiro por trás dessas inúmeras máscaras.

Com efeito, temos que a figura do mito se reveste também de um claro poder
de persuasão, fazendo com que os destinatários, na grande maioria das vezes,
se alinhem e passem a se comportar na moldura3 estabelecida pelo personagem
mitológico. Platão, já nos seus famosos diálogos socráticos, destacava o poder de
convencimento ao contar mitos para as crianças com o intuito de moldar suas
almas. As mães e as amas-secas deviam contar histórias às crianças com o fito
de “modelar suas almas”.
O mito possui uma linguagem própria de persuasão, vale dizer, sua ritologia
transpassa até o consciente humano. Persuadir é muito mais intenso e profundo
que convencer. A persuasão tem como meta afetar o sentido, a alma do destina-
tário, e aqui reside sua grande similitude com a mitologia.
O discurso mitológico, numa abordagem dialética necessária, é confeccio-
nado com base nos fundamentos culturais e sociais, sendo reflexo e refletindo
o plano das ideias e dos sentidos dos seus patronos. A força da narrativa, com
suas linguagens e signos, impõe uma internacionalização afetiva e pessoal dos
ouvintes com vertente autoritária. Assim, consoante já explanado, o mito não
se preocupa com a correlação com a realidade, e nem o persuasor é obrigado a
sempre trabalhar com a pura verdade, podendo engendrar esforços para que sua
mensagem se aproxime, ou pareça, com a verdade.
Também imperioso destacar aqui a dualidade circundante entre o mito e
a ideologia. O pensamento ideológico, naquilo que nos interessa, pressupõe a
manutenção de uma condição atual, naturalizando a existente. Já fazendo um
mergulho na ótica das relações sociais, temos que um sistema dominante utiliza
mitos enquanto instrumentos de dominação ideológica, fazendo uso do poder
de persuasão da narrativa mitológica.
Nesse raciocínio, mais uma vez, fica claro aqui que o relato mítico não é au-
tônomo e reflete aquilo que seus idealizadores representam. Nesse ponto, afirma
Marx (1982, p. 36):

3 Importa dizer, nos moldes estabelecidos pelos autores da narrativa, cujos objetivos podem ser
explícitos ou implícitos.

875
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

As representações que estes indivíduos elaboram são representações a


respeito de sua relação com a natureza, ou sobre suas mútuas relações, ou
a respeito de sua própria natureza. É evidente que, em todos estes casos,
estas representações são expressão consciente – real ou ilusória – de suas
verdadeiras relações de atividades, de sua produção, de seu intercambio,
de sua organização política e social. A suposição oposta é apenas possível
quando se pressupõe fora do espírito de indivíduos reais, materialmente
condicionados, em outro espírito à parte. Se a expressão consciente das
relações reais destes indivíduos é ilusória, se em suas representações
põem a realidade de cabeça para baixo, isto é consequência de seu modo
de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que
daí resultaram.

Por óbvio, sabemos que o mito antecede a ideologia, e a relação um com o


outro envolve uma complexidade muito maior tendo em vista as várias formas
de manifestação que possui a narrativa mitológica. Doutra ponta, sabemos ser
plenamente possível a instrumentalização do mito com o intuito de fazer valer
uma ideologia, uma cultura, um modo de vida, como bem explicita Merton ao
tratar do “american dream”4.
Ora, necessariamente, a implementação de uma política ideológica, levada
a efeito por um discurso mitológico, passa necessariamente, na sociedade capi-
talista, pelo Estado, pelo direito e pelos controles sociais. Em outras palavras, O
Estado, gerido pelo interesse de uma classe dominante, faz uso do direito para
implementar controles sociais consoante sua ideologia. É nesse processo, por
vezes, que entra o discurso mítico, vale exemplificar, dentre vários, o bordão
“todos são iguais perante a lei”.
Ora, o verdadeiro interesse desse sistema é bem decifrado por Pachukanis
(2017, p. 144):

O Estado jurídico é uma miragem, mas uma miragem totalmente


conveniente para a burguesia, pois substitui a ideologia religiosa em
decomposição e esconde das massas o domínio da burguesia. A ideologia

4 Robert Merton, sociólogo estadunidense, foi um dos percursores da Teoria da Anomia que aprofundou
os estudos de Durkheim para analisar a estrutura cultural como o conjunto de valores normativos
que governam a conduta comum dos membros de uma determinada sociedade ou grupo. Sua teoria
refletiu o momento econômico vivido pelos Estados Unidos, a partir da primeira metade do século
XX. Merton avaliou a pressão imposta culturalmente por uma sociedade (no caso, o “american
dream”) frente a realidade social vivida.

876
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

do Estado jurídico é mais conveniente que a religiosa, porque ela, além


de não refletir a totalidade da realidade objetiva, ainda se apoia nela.

Nas palavras de Pachukanis, a subjetividade do direito é articulada para fa-


zer valer uma ideologia efetiva, de controle. Assim discorre o jurista que melhor
compilou o direito e o pensamento marxista (2017, p.65):

Mas, apenas na sociedade capitalista burguesa, em que o proletário


aparece na qualidade de sujeito que dispõe de sua força de trabalho
como mercadoria, as relações econômicas de exploração são mediadas
juridicamente na forma de contrato. E a isso está ligado justamente o
fato de que, na sociedade burguesa, em contraposição à escravagista
e àquela baseada na servidão, a forma jurídica adquire significado
universal, a ideologia jurídica torna-se a ideologia por excelência e a
defesa dos interesses da classe dos exploradores surge, com cada vez mais
sucesso, como defesa abstrata do princípio da subjetividade jurídica.

Sartre também ilustra limpidamente a influência do direito estatal não só


como forma de dominação, mas também como meio de obstacularizar a verdade.
Para Sartre, o direito é uma exigência, e como tal atua em nome de qualquer coisa
que lhe convenha. Ele ainda afirma que o direito não é projetado como a verdade
mais profunda, porque esta destrói as aparências (Almeida, 2016, p. 68).
É possível aqui fazermos uma aproximação do viés ideológico do direito com
a célebre narrativa do “Mito da Caverna” de Platão. Nesta alegoria, Platão co-
loca vários seres humanos acorrentados dentro de uma caverna, vivendo de
escuridão e sombras, até que um deles consegue passar o muro e descobrir a
luz. Esse homem, que encontra a verdade estampada no mundo exterior, passa
a vivenciar o dilema de dizer a realidade que ele constatou, e ser ignorado, ou
até morto (Platão, 2012). A libertação da escuridão e a busca do conhecimento
e da realidade nos liberta das amarras, das crenças, da dominação ideológica.
Em igual perspectiva Saramago trata sobre a cegueira humana5 e suas novas e
antigas formas de convivência sem a luz da verdade.
O presente artigo não pretende aprofundar uma discussão acerca do mito e
sua força ideológica no direito em si; o campo de pesquisa seria por demais vasto

5 Dilema narrado pelo escritor português na sua obra “Ensaio sobre a Cegueira”. Nessa narrativa,
Saramago expõe a face sombria da humanidade a partir de uma cegueira generalizada que só faz
potencializar o individualismo, o egoísmo e o pior do ser humano.

877
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

e complexo. Como corolário, nos deteremos, nas linhas necessárias, a abordar um


mito específico implantado, e objeto de muito debate hoje, sobretudo nas ciências
criminais e, notadamente no direito penal, qual seja, o mito da igualdade.

3. O mito da igualdade no Direito Penal

3.1. Conceitos e Funções do Direito Penal


O Direito Penal consiste num “corpo de normas jurídicas voltado à fixação
dos limites do poder punitivo do estado, instituindo infrações penais e as san-
ções correspondentes bem como regras atinentes a sua aplicação” (Nucci, 2017,
p. 59). Em síntese, ousamos dizer que o Direito Penal seria uma proposta de
convivência em uma sociedade baseada na paz, onde a transgressão das normas
estipuladas ensejaria uma punição convencionada.
No seu aspecto sociológico ou ainda dinâmico, o Direito Penal pode ser con-
siderado como um instrumento formal de controle social, assim como outros
existentes, que objetiva assegurar a disciplina social e a convivência harmônica
dos membros do grupo (Sanches, 2016, p. 32).
As funções nucleares do Direito Penal são, num primeiro plano, atuar
subsidiariamente quando esgotadas as prescrições dos outros ramos do direito
(ultima ratio)6. Num segundo plano, de punir aqueles que transgredirem a paz
social imposta, aplicando as penas descritas, visando uma prevenção sem deixar
de dar importância ao aspecto retributivo. Doutra ponta, a doutrina moderna,
apurando ensaiar a real função do Direito Penal, apresenta uma composição
teórica fundada em duas vertentes, a saber, o funcionalismo teleológico e o
funcionalismo sistêmico.
Para o funcionalismo teleológico, cujo patrono maior é Claus Roxin, a fun-
ção do Direito Penal é dar proteção aos bens jurídicos, assim considerados aque-
les valores indispensáveis à vida em sociedade. Já de acordo com o funcionalis-
mo sistêmico, defendido por Günther Jakobs, a função do Direito Penal é fazer
valer a supremacia da norma de modo a preservar o sistema vigente. Ou seja,
no fim, para os defensores dessa corrente, a garantia de validade do sistema
normativo é causa primeira da atuação da norma penalista.

6 Princípio da Intervenção Mínima, como dito pela doutrina.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A par desse necessário apanhado introdutório da dogmática Penal, de bom


alvitre destacar aqui os esclarecimentos feitos pelo professor Juarez Cirino dos
Santos no seu compêndio de Direito Penal, ao pontuar simbolicamente as dife-
renças entre os objetivos declarado e real da norma penal. Em verdade, procura
o ilustre crítico penalista nada mais que desmistificar todo o mito envolto da
dogmática jurídico-penal.
Nessa perspectiva, Juarez Cirino afirma que os objetivos reais do Direito
Penal permitem compreender a dimensão política desse setor no ordenamento
jurídico à medida que o coloca como centro de estratégia de controle nas socie-
dades atuais (Santos, 2014, p. 6).
Para isso, o renomado professor e jurista, adotando as teorias de Marx e
Engels, arremata que o Direito Penal (Santos, 2014, p. 7):

garante as estruturas materiais em que se baseia a existência das classes


sociais - o capital (como propriedade privada dos meios de produção
e de circulação da riqueza) e o trabalho assalariado (como energia
produtora de valor superior ao seu preço de mercado) -, assim como
protege as formas jurídicas e políticas que disciplinam a luta de classes
e instituem o domínio de uma classe sobre outra. Se o Direito Penal
garante uma ordem social desigual, então garante a desigualdade social.
Mas o Direito e o Estado não se limitam às funções reais de instituição e
reprodução das relações sociais, exercendo também funções ilusórias de
encobrimento da natureza dessas relações sociais, em geral apresentadas
sob forma diversa ou oposta pelo discurso jurídico oficial.

Fazendo uso da dialética marxista, Juarez Cirino destaca a moldura mítica


desenhada pela dogmática penal como forma de reproduzir os anseios das clas-
ses dominantes, por meio de um discurso institucional que procura encobrir as
mazelas sociais, dentre elas, a famigerada desigualdade social.

3.2. A Figura Mitológica da Igualdade Penalista

Feitas as análises dos conceitos, objetivos e funções do Direito Penal, te-


mos que toda a narrativa mítica acerca dos seus discursos repousa, de início,

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

no sistema estático das suas normas. Nesse sentido, a Criminologia Crítica7


analisa, para além da valoração das normas, a sistemática do Direito Penal e
suas funções sob uma ótica dinâmica e conflituosa, fazendo uso, para isso, do
Materalismo-Histórico de Marx.
Outrossim, consoante aquilo que já foi debatido, a abordagem crítica faz o ne-
cessário desvio de enfoque do delito para o processo de criminalização, agregando
nessa conjuntura toda uma interdisciplinaridade necessária8. A esse respeito, e
fazendo uso da fenomenologia, assevera Alessandro Baratta (2011, p. 161):

O direito penal não é considerado, nesta crítica, somente como sistema


estático de normas, mas como sistema dinâmico de funções, no qual
se podem distinguir três mecanismos analisáveis separadamente:
o mecanismo da produção de normas (criminalização primária),
o mecanismo da aplicação das normas, isto é, o processo penal,
compreendendo a ação dos órgãos de investigação e culminando com o
juízo (criminalização secundária) e, enfim, o mecanismo da execução da
pena ou das medidas de segurança.

Tem início nesses três mecanismos, seguindo a linha do jurista e sociólogo italia-
no, a figura mitológica do direito penal enquanto direito igual, ou igualitário. Nesse
mesmo pensar, temos que o processo de criminalização, visto hoje a partir de inú-
meras constatações empíricas, aponta para uma negação radical dessa igualdade.
Na prática, fica nítida a percepção de uma desigualdade substancial, notada-
mente acentuada por esses mesmos mecanismos de criminalização. Nesse senti-
do, o caráter fragmentário do direito penal vem a ser utilizado, subterraneamen-
te, como fundamento para o foco nas condutas delitivas da classe subalterna.
A figura mitológica também se destaca pela influência nos institutos de con-
trole social. Com efeito, a influência da narrativa mítica, enquanto instrumento
de dominação a ser exercido pelo controle social, atua nos mais diversos campos
científicos, como na psicologia por exemplo. No direito não seria diferente.
Para Marx, o sistema jurídico nada mais é do que parte da “superestrutura”
invocada pelas forças produtivas para manutenção das relações sociais de

7 Vertente de estudo da Criminologia focada na Sociologia Criminal (Teoria da Reação Social)


acrescida de uma base marxista. Aponta críticas à formatação do sistema penal a partir da relação
capital x trabalho e também da seletividade dos órgãos de controle social desse sistema.
8 A Criminologia tem o seu objeto de estudo analisado sob forte influência da Sociologia, Antropologia,
Biologia, Psicologia, Filosofia, Estatística, dentre outros ramos científicos.

880
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

produção. Nesse passo, mitos9 são criados como forma de ilusão e dominação
pela classe dominante.
Assim, o mito da igualdade, nas palavras de Baratta (2011, p. 162), pode ser
estampado nas seguintes proposições:

a. O direito penal protege igualmente todos os cidadãos contra os ata-


ques aos bens jurídicos essenciais, o que implica no interesse de todos.
b. A lei penal é aplicada igualmente a todos, ou seja, todos tem iguais
chances de sofrerem os rigores legais.

Doutra ponta, de forma a materializar a dialética necessária do mito propos-


to, são contrapostas as seguintes críticas, assim detalhadas pelo doutrinador e
sociólogo italiano (2011, p. 162):

o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos


quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando
pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e
de modo fragmentário;
a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de
modo desigual entre os indivíduos;
o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é inde-
pendente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à
lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação
criminalizante e da sua intensidade.

No que tange à instrumentalização do mito simbólico na psicologia da socie-


dade, em especial nos meios de comunicação de massa, a Criminologia Crítica
avança para identificar o verdadeiro significado de projeções e símbolos incuti-
dos no tecido social.
No estudo criminológico, visível a utilização desses meios de convencimen-
tos projetados a partir de imagens e símbolos mitológicos. Nesse sentido, asse-
vera Juarez Cirino (Santos, 2017):

Assim, o estudo de percepções e atitudes projetadas na opinião pública


permitiu à Criminologia crítica revelar efeitos reais de imagens da

9 Os reais objetivos de um ordenamento jurídico podem ser colocados como mito imposto pela
superestrutura, nas palavras de Marx.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

criminalidade difundidas pelos meios de comunicação de massa, que


disseminam representações ideológicas unitárias de luta contra o
crime – apresentado pela mídia como inimigo comum da sociedade –
e, desse modo, introduzem divisões nas camadas sociais subalternas,
infundindo na força de trabalho ativa atitudes de repúdio contra
a população marginalizada do mercado de trabalho, por causa de
potencialidades criminosas estruturais erroneamente interpretadas
como defeitos pessoais.

Trazendo para uma realidade brasileira, assim, arremata no final o ilustre


professor paranaense (Santos, 2005, p.3):

No Brasil, um dos efeitos reais da ação do poder político sobre a imagem


da realidade através dos meios de comunicação de massa é a legislação
penal de emergência dos anos 90, que introduziu os conceitos de crime
organizado, de delação premiada, de agente infiltrado, além de suprimir ou
reduzir garantias democráticas do processo penal.

Por fim, não se pode deixar de prescindir os efeitos reais do poder polí-
tico, que, detentor como é da parcela maior que compõe a “superestrutura”,
impõe massivas narrativas míticas que escondem e, na verdade, desviam o foco
maior da problemática penal, em especial, no Brasil. Dentre os males maiores,
destacam-se o superencarceramento, o aumento da criminalidade, inexistência
do fim ressocializador da pena e a seletividade gritante, e ao mesmo tempo
subterrânea, do sistema penal. Todos esses, em especial o último, terminam por
desmascarar o mito da igualdade tão propagado pelos sistemas jurídicos oficiais.

4. Da conclusão
Diante daquilo que foi explicitado, constata-se que o mito ostenta um pro-
pósito, seja temporal ou atemporal, contínuo ou descontínuo, com abrangên-
cia espacial limitada ou ilimitada. A manifestação cultural, e, por conseguinte,
dominante, da narrativa mitológica se perfaz desde os primórdios e é até hoje
invocada constantemente no seio das relações sociais.
O direito, enquanto instrumento estatal de controle ideológico se apropria das
representações míticas como forma de persuasão e dominação, obviamente masca-
rados por objetivos interpostos. O mito da igualdade no direito penal é apenas um

882
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

deles diante de todo um exército fictício envolto nas relações estruturadas da socieda-
de capitalista. Resta comprovado o discurso mitológico da igualdade na medida que
se verificam, continuamente, a seletividade dos órgãos de controle social, mormente
aqueles do aparelho penal que expõe claramente um direito desigual por excelência.
Os sistemas sociais e penais de controle longe estão de refletir a verdade
profunda (conforme Sartre, já citado) da igualdade colocada e publicada pelo
ordenamento jurídico. E também não se interessam no desfazimento, ou na
transformação desse mito. O sistema carcerário é a maior provocador do des-
fazimento desse mito: a grande maioria dos encarcerados são pretos e pobres,
punidos por crimes que são identificados facilmente no seio das camadas sociais
mais baixas e periféricas.
Para além disso, os órgãos policiais, investigativos e também judiciais ex-
põem de forma constante uma efetividade de ação também refletida, na grande
maioria, entre os mais necessitados. E nestes, as políticas públicas socioeconô-
micas de distribuição de renda, educação, cultura, desporto, não chegam nem
perto de se concretizarem. Longe temos, essa igualdade. Ela é mitológica.

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885
O trabalho na prisão: uma comparação
entre as workhouses do século XVII
e o Projeto de Lei do Senado 580/2015

Fernanda Vidal Mesquita1


Roberta Calini Gomes Pereira2

Introdução
As prisões são formas-prisões de controle numa sociedade, as quais se confi-
guraram em diferentes maneiras de marginalizar corpos que não se adequavam
aos padrões de lógica econômica, numa era industrial. As workhouses consistem
em uma dessas configurações que se deram na história.
Os indivíduos que não se adequavam à norma industrial e que assim se tor-
navam compulsoriamente mendigos, segundo Rusche e Kirchheimer, recebiam
penalidades por essa condição social. Existiu uma penalização para aqueles que
não se ajustavam ao modelo de industrialização moderna.
Nisso, se percebe como o capitalismo, este vigente modelo econômico e
revolucionário, segundo Karl Marx (2005), consegue se alinhar, tornando-se
interesse da burguesia, sejam leis, moral e religião. As penalidades estão dentro
de uma “obviedade” econômica, para Foucault (2014).
E sociedade vai transformando as formas de adequações ao trabalho do bur-
guês moderno e de uma forma em que esse corpo pague por esse desajustamento
social e atualmente chegue a possibilitar esse ressarcimento pela moeda (dinhei-
ro). Em muitos lugares, o Estado está tirando de si a responsabilidade de arcar com
o preso para ressocializá-lo; o capitalismo toma tal responsabilidade para si, então
teremos um tratamento de readequação com base no lucro direto ao capital.

1 Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN


2 Graduanda em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN

887
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

As workhouses no século XVII: influência do capitalismo


nascente na política de controle social
Segundo Foucault (2014), em sua obra Vigiar e Punir – Nascimento da pri-
são, as prisões hoje sistematizadas nas leis penais já existem há muito tempo
e elas estão ligadas as essas formas reguladoras dos corpos em sociedade.
Numa investigação histórica das técnicas de poder as “formas-prisões” vão
ganhando configurações diferentes.

A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu


nascimento dos novos códigos. A forma-prisão preexiste à sua utilização
sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judiciário,
quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir
os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classifica-los, tirar
deles o máximo de tempo e o máximo de forças, treinar seus corpos,
codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade
sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação
registro e anotações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se
centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos
dóceis e úteis, por meio de um trabalho preciso sobre o seu corpo, criou
a instituição-prisão, antes que a lei definisse como a pena por excelência.
(FOUCAULT, 2014, p. 223)

As workhouses surgiram na Inglaterra elisabetana como instituições de


subsídio público para as massas que, saídas do campo, não se adequavam
ao mercado de trabalho das fábricas, o qual, por sua vez, apresentava uma
demanda cada vez maior. A esse cenário, também se alia o forte declínio
demográfico da época, como observam Melossi e Pavarini (2006, p. 38). As
workhouses, então, foram instituídas para treinar as massas de pobres pedin-
tes, “vagabundos” e mesmo criminosos, às fábricas que necessitavam de mão
de obra, consistentes na internação compulsória e na obrigação de se desem-
penhar, ali, algum tipo de trabalho. Esse modelo foi levado para outros países
da Europa, como a Holanda, no século XVII, onde se chamava rasp-huis – lá
se raspava madeira com uma lâmina até que se transformasse em pó, usada
posteriormente por tintureiros (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 43). Sobre
esse contexto, Marx (1996, p. 344), observa que:

888
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Não era possível que os homens expulsos da terra pela dissolução dos
laços feudais e pela expropriação violenta e intermitente se tornassem
fora da lei, fossem absorvidos pela manufatura no seu nascedouro com
a mesma rapidez com a qual aquele proletariado era posto no mundo.
Por outro lado, tão pouco aqueles homens, lançados subitamente para
fora da órbita habitual de suas vidas, podiam adaptar-se, de maneira
tão repentina, à disciplina da nova situação. Eles se transformaram,
por isso, em massa, em mendigos, bandidos, vagabundos, em parte por
inclinação, mas na maior parte dos casos premidos pelas circunstâncias.
Foi por isso que, no final do século XV e durante todo o século XVI,
proliferou por toda a Europa Ocidental uma legislação sanguinária
contra a vagabundagem. Os pais da atual classe operária foram punidos,
num primeiro tempo, pela transformação forçada em vagabundos e
miseráveis. A legislação os tratou como delinqüentes voluntários e
partiu do pressuposto que dependia da boa vontade deles continuar a
trabalhar sob as velhas condições não mais existentes.

As workhouses, portanto, embora firmadas como um projeto de assistência aos


pobres, combatia o pauperismo do jeito mais conveniente possível ao capital, de
uma forma brusca e rápida, para que se atendesse às necessidades da indústria:

As origens do internamento compulsório na Inglaterra da segunda


metade do século XVI, no qual se recolhem ociosos, vagabundos,
ladrões, e pequenos delinqüentes para obrigá-los a realizar trabalhos
forçados sob uma rígida disciplina, e a multiplicação, seguindo o modelo
que se experimentou no castelo de Bridewell, de casas de correção em
numerosos lugares da Inglaterra, se consideram, à luz das hipóteses de
Marx, tão avançadas para seu tempo, sobre a necessidade de enfrentar
com instrumentos repressivos as grandes massas de ex-trabalhadores
agrícolas e de debandados que, como conseqüência da crise irreversível
do sistema feudal, se deslocam para as cidades, sem que a nascente
manufatura seja capaz de absorvê-los com a mesma rapidez com que
estes abandonam o campo. Nesta primeira fase, portanto, a segregação
não se deve tanto a uma necessidade de destruição ou eliminação física,
muito pelo contrário, se deve à necessidade de utilização da mão de obra
recalcitrante, assim como, à necessidade de adestrar tal massa de ex-
camponeses para o trabalho manufatureiro, vez que eram refratários
a submeter-se aos novos mecanismos de produção (MODENA, apud
GUIMARÃES, 2006, p. 126).

889
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

De fato, nesse período, iniciou-se um forte combate ao ócio daqueles nos quais
se enxergava uma oportunidade se serem absorvidos pelo trabalho nas fábricas.
Segundo Melossi e Pavarini (2006, p. 36), em 1530, na Inglaterra, ainda no século
XVI, um estatuto obrigava o registro de vagabundos, diferenciando os impotents,
aqueles que não serviam para o trabalho, e que por isso, era permitida a mendi-
cância, e os que seriam castigados com açoites caso o fizessem. No mesmo senti-
do, em 1547, foi editado um estatuto que previa sanções cruéis para aqueles que se
recusassem a trabalhar: na primeira vez, seriam entregues como escravos por dois
anos, na segunda vez, punidos com escravidão perpétua, e, numa terceira vez,
condenados à morte (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p.65).

Um decreto de Bruxelas de 1599 estabelecia penalidades para mendigos-


aptos, serviçais domésticos que abandonassem seus senhores, e
trabalhadores que deixassem seus empregos para se tornarem mendigos.
Um decreto francês de 1724 justificava a punição à mendicância apta
com base na ideia de que eles de fato privavam os pobres de pão, pois
privavam as cidades e vilas de seu potencial de trabalho (RUSCHE;
KIRCHHEIMER, 2004, p.67).

A recusa ao trabalho, no entanto, não era infundada. Melossi e Pavarini (2006,


p. 37-38) atentam para uma série de condições das fábricas que a tornavam pouco
atrativas para as pessoas recém obrigadas a sair dos campos, aliado ao fato de que
se tratavam de operações completamente novas. Mesmo assim, o trabalhador era
compelido a aceitar praticamente qualquer oferta, por pior que fosse, e as workhou-
ses desempenhavam um importante papel no sentido de moldar as massas para
trabalhos em péssimas condições, para que, saídos de lá, suportassem a cruel rotina
da fábrica, que, no entanto, ainda era menos pior que a das próprias workhouses:

[...] em pleno desenvolvimento industrial moderno, o cárcere passa


a ser locus temporário de reeducação, sem propriamente, feições
empreendedoras. Sua justificativa é reformar sujeitos desviantes
incutindo em suas mentes a importância de se dedicar ao trabalho
(PASTANA; SILVA, 2017, p. 378).

Assim, as workhouses serviam para induzir o novo estilo de vida necessário


ao desenvolvimento do capitalismo nascente, tanto no aspecto mais imediato
que é a subordinação às condições de trabalho de fábrica, quanto aos mais me-

890
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

diatos, como a organização, o vestuário, a disciplina. Assim sustentam Melossi


e Pavarini (2006, p. 46-47):

A particular dureza das condições de trabalho no interior da casa de correção


tem, pois, outro efeito sobre o lado de fora, aquele que os juristas chamarão
de “prevenção geral”, isto é, uma função intimidadora para com o operário
livre, já que é preferível aceitar as condições impostas ao trabalho e, de forma
mais geral, à existência, do que acabar na casa de trabalho ou no cárcere.
[...] tudo isso constituía uma tentativa de representar, concretamente,
na casa de trabalho, o novo estilo de vida há pouco descoberto, para
despedaçar uma cultura popular subterrânea que lhe é radicalmente oposta,
que é contemporaneamente uma encruzilhada das velhas formas de vida
camponesa recém-abandonada com as formas novas de resistência que o
ataque incessante ao capital impõe ao proletariado.

No século XVII, as workhouses perduraram, com algumas modificações, so-


bretudo com a Lei dos Pobres de 1601, restringindo quem entraria nelas, siste-
matizando-as como subsídio público, deixando responsabilidades administrati-
vas com a Igreja (DORIGAN, 2006, p.119)
Mais tarde, no período do Iluminismo, o regime das casas de trabalho veio
a inspirar diversos pensadores do direito penal, servindo de inspiração para a
pena privativa de liberdade e o próprio cárcere como o temos hoje (PASTANA,
2012 p. 545), já que – apesar das justificativas humanistas e filantrópicas – este
modelo atende muito mais as necessidades do capital do que as penas medievais.

O Projeto de Lei do Senado 580/2015: reflexos do


capitalismo desenvolvido e tendência de privatização
das instituições prisionais
O projeto de Lei do Senado 580/2015, de autoria do senador Waldemir Moka
(PMDB-MS) vem como um reflexo das atuais configurações capitalistas no Direito
Penal. De acordo com o projeto, o preso ficaria obrigado a ressarcir o Estado com as
despesas de sua manutenção na instituição carcerária, nos seguintes termos:

O CONGRESSO NACIONAL decreta:


Art. 1º Os arts. 12 e 39 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, passam
a viger com a seguinte alteração:

891
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

“Art. 12...............................................................................................................
§ 1º O preso deverá ressarcir o Estado das despesas realizadas com a sua
manutenção no estabelecimento prisional.
§ 2º Se não possuir recursos próprios para realizar o ressarcimento, o
preso deverá valer-se do trabalho, nos termos do art. 29 desta Lei.” (NR)
“Art. 39...............................................................................................................
VIII - indenização ao Estado das despesas realizadas com a sua manu-
tenção; ...................................................................................” (NR)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. (BRASIL, 2015)

Em sua justificação, demonstra-se grande preocupação com os custos tidos


atualmente com o sistema carcerário, ressaltando-se que, transferindo-os para
os presos, o dinheiro poderia ser investido em outras áreas de grande apelo so-
cial, como saúde, educação e infraestrutura.
Dispõe o projeto que o trabalho com fins de restituição seria uma forma de
custeamento residual, quando o preso não dispuser de recursos próprios para
efetuá-lo. No entanto, segundo dados do Levantamento Nacional de Informa-
ções Penitenciárias de 2016 do INFOPEN, 51% da população carcerária não
chegou sequer a cursar o ensino fundamental completo, apenas 9% concluiu
o ensino médio e não há um número significativo daqueles que tenham com-
pletado o ensino superior, fato que indica que a maioria dos presos não teriam
condições financeiras para arcar com o ressarcimento, restando-lhes trabalhar.
Fazendo um paralelo com o trabalho desenvolvido nas workhouses, percebe-
-se que, enquanto nelas o trabalho servia como forma de adequação das massas
ao mercado de trabalho, aqui serve como uma forma de abatimento da respon-
sabilidade estatal pela custódia do preso. O desenvolvimento do capitalismo,
evidentemente, alterou as fundamentações punitivas em relação ao trabalho
prisional e à própria forma como o preso é visto pela sociedade, acenando cada
vez mais para uma privatização dos estabelecimentos prisionais, numa escala
global (PASTANA; SILVA, 2017, p. 383).
No capitalismo tardio, com a demanda de trabalho inferior à oferta, o preso
deixou de ser visto como reaproveitável, e principalmente, necessário para a
indústria, restando-lhe a condição de marginal definitivo, com quem a socie-
dade e o Estado devem ter a menor responsabilização e custos possíveis. Nesse
sentido, Bauman (2009, p. 24-25), afirma que:

892
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Assim como aqueles que são excluídos do trabalho, os criminosos (ou


seja, os que estão destinados à prisão, já estão presos, vigiados pela
polícia ou simplesmente fichados) deixaram de ser vistos como excluídos
provisoriamente da normalidade da vida social. Não são mais encarados
como pessoas que seriam "reeducadas", "reabilitadas" e "restituídas
à comunidade" na primeira ocasião, mas vêem-se definitivamente
afastadas para as margens, inaptas para serem "socialmente recicladas":
indivíduos que precisam ser impedidos de criar problemas e mantidos a
distância da comunidade respeitosa das leis.

O próximo passo, já dado em vários países no mundo, é não apenas não ter
gastos com o sistema carcerário, mas ter lucro com ele, através da privatização. A
ideia não é nova, vide o contract system, pelo qual o Estado era pago pelas empre-
sas em troca da força de trabalho dos presos, e o leasing system, no qual o Estado
abdicava temporariamente da direção da instituição, ambos já vigentes nos EUA
do século XVIII (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 196). Nesse sentido:

Ao mesmo tempo, a implantação das penitenciárias se afirmou


como um poderoso instrumento de desenvolvimento econômico
e de fomento do território. [...] As prisões não utilizam produtos
químicos, não fazem barulho, não expelem poluentes na atmosfera
e não despedem seus funcionários durante as recessões. Muito pelo
contrário, trazem consigo empregos estáveis, comércios permanentes
e entradas regulares de impostos. A indústria da carceragem é um
empreendimento próspero e de futuro radioso, e com ela todos aqueles
que partilham do grande encarceramento dos pobres nos Estados
Unidos (WACQUANT, 2001, p. 93)

Aliado a isso, há um crescente clamor social no sentido de se aprofun-


dar o princípio da menor elegibilidade. As condições no cárcere devem ser
as piores possíveis, ultrapassando até mesmo as menores condições huma-
nitárias, esperando-se que, assim, não haja reincidência. Esse comporta-
mento social é um respaldo para que o Estado, também, aplique o trabalho
cada vez menos com um intuito adequador, e passe a incorporá-lo como
uma nova espécie de punição.

Se há um mercado de trabalho escasso, os pobres não têm de onde tirar


o seu sustento, a não ser recorrendo a maneiras alternativas, e o crime é

893
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

uma delas. Dessa forma, se há uma massa de desempregados que poderia


por necessidade ficar mais propensa a cometer delitos, esta apenas
deixaria de cometê-los sob penalidades cruéis (LUCENA, 2017, p. 76).

Se o trabalho nas workhouses já tinha um fim puramente econômico e não


educativo, nas prisões de hoje revela intuitos ainda menos nobres: mesmo que
adestrado pelo trabalho na prisão, ao sair dela, dificilmente terá o preso uma
oportunidade no mercado de trabalho que sofre com o inchaço, somado ao
crescimento de ideologias de repressão criminal na sociedade.
Além disso, as prisões penais em si já são uma forma de ressarcimento. Fou-
cault percebe que as prisões:

[...] permite quantificar exatamente a pena segundo a variável do


tempo. Há uma forma-salário da prisão que constitui, nas sociedades
industriais, sua “obviedade” econômica. [...] Obviedade econômico-
moral de uma penalidade que contabiliza os castigos em dias, em
meses, em anos e estabelece equivalências quantitativas delitos-
duração. (FOUCAULT, 2014, p. 224)

O preso já numa “obviedade” econômica paga por uma infração que lesou
numa vítima, além da vítima a sociedade inteira. Nessa lógica capitalista o
tempo é pagamento do preso para a sociedade o dano cometido. Além de pagar
com o tempo se pagaria também com dinheiro ao Estado o maleficio cometido.

O preso no trabalho carcerário: do sujeito


criminoso-não-proprietário a proletário
Em toda a sua história, desde as workhouses até os sistemas filadelfiano e
auburniano, o trabalho no cárcere foi improdutivo e anti-ecônimico, como afir-
mam Melossi e Pavarini (2006, p. 186), e também Minhoto (2002, p. 138), ser-
vindo como meio de controlar os salários externos para uma oferta de trabalho
inferior à demanda. Nesse sentido, o trabalho no cárcere não foi proveitoso nem
para o preso, visto que desprovido de um caráter efetivamente educativo, nem
para o operário livre, já que se tornava uma concorrência. O beneficiado é o
empresário, que vê à sua disposição uma mão de obra bem menos protegida pela
legislação, e por isso, com bem menos custos.

894
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

As modernizações da relação entre empresariado e cárcere começaram nos


EUA, através do amplamente difundido contract system, já comentado (MELOS-
SI; PAVARINI, 2006, p. 196), e vem se aperfeiçoando às realidades de cada país.
No Brasil, de acordo com a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), o
preso deverá receber, por seu trabalho, quantia não inferior a ¾ (três quar-
tos) do salário mínimo. Entretanto, dados do Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias de 2016 do INFOPEN demonstram que 41% dos
presos que trabalham recebem abaixo desse valor. Se a baixa remuneração
estabelecida em lei já oferece ao empresário um benefício, o que se cumpre
de fato é ainda mais lucrativo.
Desse modo, o trabalho na prisão serve, na hipótese mais otimista, na hipó-
tese em que há realmente o que se chama de ressocialização, para homogeneizar
a massa carcerária, de não proprietários de coisa alguma, e muito por isso, cri-
minosos, a proletários que não ofereçam perigo à propriedade e à ordem social
instaurada, na qual lhe foi relegado o papel de marginal.

O cárcere – em sua dimensão de instrumento coercitivo – tem um


objetivo muito preciso: a reafirmação da ordem social burguesa (a
distinção nítida entre o universo dos proprietários e o universo dos não-
proprietários) deve educar (ou reeducar) o criminoso (não-proprietário)
a ser proletário socialmente não perigoso, isto é, ser não proprietário sem
ameaçar a propriedade (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 216).

Nesse ponto, o cárcere se demonstra muito interessante para o capital: afinal,


as medidas lançadas como educativas obedecem às necessidades do mercado, e
gradativamente, esse mercado encontra meios de lucrar diretamente com a mão
de obra fragilizada do preso. Assim, ambos cárcere e fábrica se mostram lugares
de adestramento, no tocante à desconstituição da ameaça à propriedade.

Conclusão
Desde as workhouses, o sistema punitivo obedecia ao princípio da menor ele-
gibilidade, ou seja, as condições dentro da instituição punitiva devem ser piores
que fora dela, para que, desse modo, se prefira viver a realidade fora de seus
muros, por menos rica de possibilidades que seja. No entanto, enquanto nas
workhouses se projetava um reaproveitamento das pessoas, moldando-as para

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

o que viria depois de sua saída – as indústrias; atualmente se percebe cada vez
menos na política criminal uma preocupação, por mais problemática e menos
resolutiva que seja, de preparar o preso para a realidade extra-muros. Como já
falado anteriormente, o capital é decisivo nesta questão: enquanto que, na épo-
ca das workhouses, a mão de obra livre não era suficiente, e por isso, precisava-se
adestrar a massa proveniente dos campos, nos dias de hoje, devido ao cresci-
mento populacional, desenvolvimento tecnológico e especialização do trabalho,
a demanda de empregos é bem inferior à oferta, existindo, na verdade, uma
reserva de trabalhadores à disposição. Dessa forma, a mão de obra disposta no
cárcere já não é mais necessária, e pode ser relegada à condição marginal defi-
nitiva. A custódia do preso se torna cada vez menos interessante para o Estado,
e o trabalho desempenhado na prisão, antes totalmente improdutivo, em verda-
de, ganha novos olhares e uma pretensão de que sirva ao menos para custear a
manutenção do preso, já que os gastos relacionados ao cárcere parecem cada vez
mais absurdos à sociedade, para quem ressocialização é impossível, ao passo que
esse mesmo trabalho ganha uma roupagem de nova forma de punição.

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896
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

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897
Os fatores socioeconômicos enquanto
determinantes do delito:
a necessária abordagem crítica
criminológica do sistema penal brasileiro

Rodrigo Nunes da Silva1


Kátia Cristina Guedes Dias2

1. Introdução
O sistema penal brasileiro, em percepção notória, encontra-se em crise.
Não há concretização fática dos princípios norteadores dos direitos humanos
e dos direitos sociais necessários ao bem-estar coletivo. Superencarceramento
em escala exponencial, violência urbana e rural sem controle, violação cons-
tante dos direitos humanos, atuação seletiva enraizada nas agências punitivas
estatais e defensoria pública sem estrutura e insuficiente, são alguns dos maio-
res gargalos enfrentados pelo Estado para uma gestão da segurança pública
democrática e humanizada.
Segundo o último levantamento de dados do Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, o Brasil possui uma população car-
cerária aproximada de 726 mil presos3, sendo 64% negros e 37% presos provisó-
rios. Quatro crimes respondem a quase 80% do total: tráfico, roubo, furto e ho-

1 Mestrando em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
– UERN. Pós-graduado em Direito Penal pela Faculdade Damásio. Graduado em Direito/UERN.
Participante do Grupo de Pesquisa “Estado, Segurança Pública e Cidadania” da UERN.
2 Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Pós-graduada
em Direitos Humanos/UERN. Juíza de Direito do TJ/RN.
3 Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Disponível em http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-
levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias. Acesso em 03 jul 2018.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

micídio. Ainda, segundo dados do INFOPEN houve um aumento de 267,32%


nos últimos 14 (quatorze) anos da população carcerária no Brasil.
Com efeito, a par dessas premissas, há de se relevar uma abordagem interdis-
ciplinar, fenomenológica e sócio-política da conjuntura estrutural não somen-
te do aparelho prisional, mas sobretudo de todo o enlace estatal que formata
a atuação do sistema penal brasileiro. Esse ângulo de visão deve ser crítico,
não devendo, pois, ser centrado no imediatismo de soluções prontas de polí-
tica criminal, mas sim examinando de forma científica sua gênese, estrutura
e mecanismos de seleção. É nesse pensar que a Criminologia, no seu viés crí-
tico, se apresenta com opção de nova visualização do sistema penal brasileiro,
investigando-o a partir de uma realidade manifesta.
Dois, são os pontos de maior destaques que a Criminologia Crítica faz
uso investigativo para desnudar os reais objetivos do aparato penal estatal:
o primeiro, a reprodução das desigualdades sociais como condição neces-
sária para um direito penal refletor dos anseios da classe dominante; o
segundo, a atuação, já não tão subterrânea assim, seletiva das agências
representativas do poder punitivo.
Perceptível, pois, que a realidade de um sistema penal envolto das atuais
políticas neoliberais não passa pela escuta dos excluídos, pelo contrário, no fim,
visa expurgá-los do convívio social através da sua atuação seletiva. A maior
prova disso é a prisão, que desde os primórdios, sempre teve um viés excludente
e reprodutor da relação opressor/oprimido. Os diferentes sistemas penais, in-
dependente da ordem cronológica ou espacial, sempre estiveram intimamente
imbricados às fases do desenvolvimento econômico da sociedade vigente (KIR-
CHHEIMER, RUSCHE, 2012, p. 23).
A par dessa realidade, são precisas as palavras do ilustre doutrinador argen-
tino Eugenio Raúl Zaffaroni (2006), ao evidenciar que não dá para levar a sério
um estudo criminológico que não passa necessariamente pelo enfoque político.
Assim, urge invocar razões de ordem socioeconômicas que se encontram ali-
nhadas enquanto determinantes do estudo da criminalidade. Dentre diversas
fontes, temos que a pobreza e a desigualdade social, a educação, a questão do
emprego, a comunicação social e o preconceito, destacam-se entre os principais
e devem ser vistos sob um olhar dialético-materialista.
Para tudo isso, a abordagem será feita com base em pesquisas de caráter
bibliográfico e documental conjugada a uma empiria possível, relacionando-
se, sobretudo, a temática explicitada com os fundamentos metodológicos da

900
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Criminologia Crítica. No fim, a presente pesquisa ousa intentar uma análise, sob
o enfoque da crítica criminológica, que possa despertar mudanças de posturas
no sistema penal brasileiro baseadas em controles sociais não excludentes e que
sejam parametrizadas por enfoques sociais e econômicos.

2. Notas propedêuticas da ciência criminológica


A Criminologia, sob o ângulo etimológico, deriva do latim “crimino” (crime)
e do grego “logos” (tratado ou estudo), tendo, em corolário, como primeira de-
finição basilar, o estudo do crime. Trata-se sim, de uma ciência empírica e, por
consequência, causal-explicativa, que analisa o fenômeno do crime e todas as
nuances que o circundam. É focada no “ser”. Definição nuclear e necessária é
aquela feita por Antônio García-Pablos e Luiz Flávio Gomes (2002, p. 30):

Cabe definir criminologia como ciência empírica e interdisciplinar,


que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do
controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar
uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e
variáveis principais do crime – contemplado este como problema
individual e como problema social.

A ciência criminológica possui como característica marcante a interdis-


ciplinaridade na medida que interage fortemente com a biologia, sociologia,
psicologia, medicina, economia, política, dentre outras áreas do conheci-
mento. Suas bases conceituais e empíricas serão determinantes para um em-
basamento dinâmico e evolutivo da Criminologia enquanto ciência social e
humana. Assim, em síntese necessária, podemos destacar que a Criminolo-
gia se apresenta enquanto ciência social autônoma, empírica e interdiscipli-
nar, que, baseada na realidade fática, se ocupa do estudo do crime com suas
causas e consequências.
Doutra ponta, são reluzentes as diferenças metodológicas quando colocadas,
lado a lado, a Criminologia e o Direito Penal. Aquela, se formata na concretude
do fato, enquanto esta se detém à norma penal e sua dogmática. A Criminologia
vislumbra a realidade para explicá-la, enquanto o Direito se sustenta em parâ-
metros axiológicos (Molina; Gomes, 2002, p. 44). Com efeito, e aqui fazendo o
necessário recorte para o direito penal brasileiro, temos que sua atual dogmática

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

adota a corrente causalista a qual define o crime como conduta comissiva ou


omissiva, típica, antijurídica e culpável. Noutra ponta, a Criminologia intencio-
na abordar o crime enquanto fenômeno social, multifacetado, e sujeito as mais
diversas interações científicos-causais4.
Relativamente ao seu objeto de estudo, a Criminologia sofreu diversas
alterações, e evoluiu à medida que a sua própria base científica se encor-
pava de contornos teóricos ao longo da história. Num primeiro momento,
o objeto de estudo se resumia à explicação das causas do crime, depois aos
criminosos e aos remédios de combate ao delito. Modernamente, o objeto
de investigação da Criminologia se funda num quarteto, a saber, delito, de-
linquente, vítima e controle social.
Assim, cabe pontuar que a Criminologia, ao tratar em especial do delito, o
analisa a partir de uma realidade observada e contextualizada dentro de uma
problemática social. É nesse intuito que a investigação, ora debatida, se debru-
ça, na medida em que procura conjugar importantes fatores socioeconômicos
inerentes à sociedade brasileira e suas influências que perpassam pela conduta
criminosa, pelo sujeito criminoso, pela vítima, e por fim, pelos órgãos de con-
trole social do sistema penal pátrio.

2.1. A criminologia e sua primeira fase etiológica


A Criminologia enquanto ciência autônoma existe há pouco tempo, embora
se possa buscar no passado uma fase pré-científica. Não há consenso acerca do
momento em que a Criminologia alcança o seu status de independência cien-
tífica. Muitos doutrinadores afirmam que foi Cesare Lombroso o seu fundador
em 1876, com a publicação da obra “O homem delinquente”. Outros defendem
a tese que foi Rafael Garófalo, em 1885, que usou o termo “Criminologia” como
nome de um livro científico. Doutra ponta, inegável foi a abordagem crimino-
lógica feita sob forte influência das ideias liberais e humanistas do Marquês de
Beccaria, com a obra intitulada “Dos delitos e das penas”, ainda nos idos do
século XVIII (PENTEADO FILHO, 2017).
A Criminologia contemporânea nada mais é do que uma evolução perene,
incluindo várias disputas teóricas e metodológicas, intituladas como “lutas de

4 Não por menos, a interdicisplinaridade, consoante já dito, é condição necessária para o estudo e
pesquisa da ciência criminológica.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

escolas”. Entre as principais que nos interessam neste momento, podemos citar
a escola clássica e a positiva.
A escola clássica foi a precursora das escolas criminológicas e tem seu surgi-
mento com a obra do Marquês de Beccaria já citada. Duas teorias embasaram
os estudiosos clássicos, a saber, o jusnaturalismo (natureza eterna e imutável do
ser humano) e o contratualismo de Rousseau. A metodologia desta escola se
preocupou em estudar o processo de eleição feita pelo indivíduo ao avaliar os
benefícios e os prejuízos quando do cometimento do delito, sendo secundário a
classe social das pessoas, as características de sua família, a educação que rece-
beu, dentre tantos outros fatores (MAÍLLO, PRADO, 2016).
Já a escola positiva deita suas raízes no início do século XIX na Europa e é influen-
ciada pelos princípios iluministas e fisiocratas. Pode-se dividir em três fases: antropo-
lógica (Lombroso), sociológica (Ferri) e jurídica (Garófalo). Foi através do estudo de
Cesare Lombroso que se desenvolveu o conceito de criminoso nato, que se fez estudos
intensos sobre tatuagens, aplicando-se aqui o método empírico-indutivo. Ele afirmava
que o crime não é uma entidade jurídica, mas sim um fenômeno biológico, devendo,
portanto, ser utilizado o método indutivo experimental em seu estudo.
Entre os anos 1856 a 1929, Enrico Ferri, então genro e discípulo de Lom-
broso, criou a chamada sociologia criminal, onde se negou o livre arbítrio como
base da imputabilidade, enfatizando a responsabilidade social como forma de
prevenção e defesa social (a prevenção geral é mais eficaz que a repressão).
Nos seus textos, Ferri afirmou, nas palavras Antônio García-Pablos de Molina
(2002, p. 195), que o delito:

não é produto exclusivo de nenhuma patologia individual (o que


contraria a tese antropológica de Lombroso), senão – como qualquer
outro acontecimento natural ou social – resultado da contribuição de
diversos fatores: individuais, físicos e sociais. Distinguiu, assim, fatores
antropológicos ou individuais (constituição orgânica do indivíduo, sua
constituição psíquica, características pessoais como raça, idade, sexo,
estado civil etc.), fatores físicos ou telúricos (clima, estações, temperatura
etc.), fatores sociais (densidade da população, opinião pública, família,
moral, religião, educação, alcoolismo etc.).

É nesse contexto que surge Rafael Garófalo, no período compreendido entre


os anos de 1851 a 1934, afirmando que o crime está no homem e se revela como
degeneração deste. Foi assim criado o conceito de periculosidade e medida de

903
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

segurança. O mesmo Garófalo também contribuiu criminologicamente estabe-


lecendo o conceito de delito natural.

3. A guinada paradigmática da criminologia e a nova


sociologia criminal
Levando em consideração a multiplicidade de teorias que se debruçaram
sobre o estudo do crime, necessário se faz um recorte para abordar aquelas
que se desenvolveram sob um viés social. As teorias até então abordadas
focavam suas explicações sobre o crime a partir de uma perspectiva indivi-
dual – do homem delinquente.
Agora se parte das relações e interações do indivíduo com a sociedade. São
teorias que elevam a sociedade ao patamar de fator criminógeno. Tais teorias se
inserem no padrão ditado pela virada sociológica, como afirmado por Alessan-
dro Baratta (2011), que agora, procura explicar o fenômeno criminal a partir de
fatores alheios às questões biológicas do criminoso; daí porque se deve entender
como sociológicas todas aquelas estruturações que não têm como paradigma
etiológico fatores patológicos individuais.
Surgem, com essa virada paradigmática da Criminologia, dois grupos teóri-
cos: as teorias de consenso e as teorias do conflito. De um lado, as teorias do
consenso procuram entender a sociedade a partir do funcionamento perfeito de
suas instituições com: “indivíduos convivendo e compartilhando as metas so-
ciais comuns, concordando com as regras de convívio” (PENTEADO FILHO,
2017, p. 67). Já as teorias de conflito, segundo Alessandro Baratta (2011, p.119):
“negam o princípio do interesse social e do delito natural” afirmando que os
verdadeiros interesses do direito penal estão a serviço de grupos que detém
poderes de influir em todo o processo de criminalização. Ou seja, “a crimina-
lidade, no seu conjunto, é uma realidade social criada através do processo de
criminalização. Portanto, a criminalidade e todo o direito penal têm, sempre,
natureza política” (BARATTA, 2011, p.120).
Se de um lado a teoria do consenso afirmava que a manutenção da
sociedade se dá por meio de “acerto” de todos os membros acerca de ideais
comuns, do outro, a criminologia do conflito procura asseverar que a coesão
e a ordem social são impostas na força, mantendo-se a sociedade a partir da
coação que uns membros exercem sobre outros. Entre as teorias do consenso

904
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

temos a Associação Diferencial, Anomia e Subcultura, enquanto que nas


teorias do conflito exsurgem o Labeling Approach (Teoria do Etiquetamento)
e a Criminologia Crítica.
Nessa linha epistemológica, pode-se dizer que foi a Escola de Chicago5, cuja
principal contribuição está atrelada ao campo dos estudos empíricos e da políti-
ca criminal, quem propiciou uma guinada no estudo sociológico do crime. Nes-
se sentido, o mestre Zaffaroni (2013, p. 121) assevera que “No geral, Escola de
Chicago representou um notável progresso, em particular por seu antirracismo
e por inaugurar uma sociologia criminal urbana muito mais razoável”.
Preciosas foram as contribuições do sociólogo americano Edwin Sutherland
ao destacar a teoria da Associação Diferencial cujo núcleo de estudo maior evi-
denciava que “o delito é uma conduta que, como qualquer outra, se apreende”
(MAÍLLO, PRADO, 2016, p.132). Foi nesse mesmo período que surgiu a ex-
pressão White Collor Crimes (crimes do colarinho branco) para designar os au-
tores de crimes específicos, confrontando com àqueles praticados por crimino-
sos comuns. O grande apelo dessa teoria, fundamentalmente, foi desmistificar a
criminalidade dos criminosos, que até então era tratada de forma diferenciada
por todo o sistema penal. Doutra ponta, a principal crítica a esta teoria provém
da desconsideração da incidência de fatores individuais de personalidade e os
processos psicossociais do indivíduo envolvido no processo de aprendizagem.
Outra teoria de consenso que podemos aqui citar é a da Anomia, com nu-
ances levemente marxistas. Se insere no plano das correntes funcionalistas,
desenvolvidas com apoio na doutrina de E. Durkheim (O Suicídio). Para essa
corrente, “a sociedade é um todo orgânico articulado, que para funcionar per-
feitamente, necessita que os indivíduos interajam num ambiente de valores e re-
gras comuns” (PENTEADO FILHO, 2017, p. 73). Durkheim explica a Anomia
como “ausência de normas”, enquanto Nestor Sampaio (2017, p. 74) apresenta
Anomia como “nada mais é do que as manifestações comportamentais em que
as normas sociais são ignoradas ou contornadas”.
Destacado autor dessa teoria foi Robert K. Merton, que relevou uma
a adaptação da teoria da anomia ao modelo de vida americano da primeira
metade do século XX. Merton avaliou a pressão imposta culturalmente por
uma sociedade (no caso, o “american dream”) frente a realidade social vivida.

5 Grupo de professores e pesquisadores da Universidade de Chicago – EUA que, a partir da década de


20, inauguram estudos de sociologia Urbana, combinando conceitos teóricos e pesquisas etnográficas.

905
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Seguindo a mesma linha de Merton, foi Albert Cohen6quem primeiro apresentou


o conceito de “subcultura”, também baseando sua teoria na contradição da
sociedade norte-americana. Mas, o que vem a ser “subcultura”? A resposta mais
direta crava que é uma cultura dentro de outra. Em verdade, a subcultura se
encontra mais associada a minorias, vale dizer, jovens e adolescentes das classes
menos abastadas (cultura dos guetos).
Doravante, numa perspectiva inovadora, não podemos deixar de considerar
que a teoria das subculturas criminais indicou uma importante reflexão acerca
das condições econômicas da criminalidade. Nesse sentido, essa teoria colocou
assento no combate à criminalidade, não pelos meios tradicionais de combate
ao delito, mas sim pela educação e acesso aos meios de produção.

3.1. Teoria do Etiquetamento – Labeling Approach


Surgida nos anos 1960, nos Estados Unidos, constitui umas das primeiras e mais
importantes teorias do conflito, tendo como principais expoentes Erving Goffman,
Howard Becker e Edwin Lemert. Nesta teoria a criminalidade é tratada enquanto
processo de estigmatização. Didaticamente, Nestor Sampaio (2017, p.76.) indica que
“a criminalidade não é uma qualidade da conduta humana, mas a consequência de
um processo em que se atribui tal qualidade (estigmatização)”.
É nesse limiar que temos a chamada virada sociológica da Criminologia, onde o
crime deixa de ser visto enquanto consenso social e passar a ser abordado sob a ótica
das relações sociais históricas. Com efeito, é partir daqui que os criminólogos passam
conceber a reação social ao crime como constituinte do fenômeno criminal. Nessa
linha de raciocínio, contextualiza Baratta (2011, p. 86):

Por debaixo do problema da legitimidade do sistema de valores recebido


pelo sistema penal como critério de orientação para o comportamento
socialmente adequado e, portanto, de discriminação entre conformidade
e desvio, aparece como determinante o problema da definição do delito,
com as implicações político-sociais que revela, quando este problema
não seja tomado por dado, mas venha tematizado como centro de uma
teoria da criminalidade. Foi isto o que aconteceu com as teorias da

6 Através da obra “Delinquent Boys” (1955), Cohen fez um estudo acerca das frustrações dos jovens de
classes baixas.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

“reação social”, ou labeling approach, hoje no centro da discussão no


âmbito da sociologia criminal.

É com base nessa linha de pesquisa que a criminalidade passa a ser vista
sob o ângulo de ação do sistema penal, que a define e aponta as consequências
do seu existir. Tal análise parte da concepção das normas abstratas e perpassa
pelas instâncias oficiais. Dentro desse contexto, os teóricos do labeling appro-
ach passam a interpretar o crime não como um conjunto de características de
indivíduos ou grupos, mas como um processo de interação, de reação, entre as
condutas tidas como delituosas e não delituosas.
Para essa corrente teórica, a pena cria uma espécie de desigualdade para os de-
linquentes, a partir do momento que o rotula e cria um estigma (etiqueta) para o
condenado. Nesse sentido, essa rotulação não afeta apenas a maneira com os ou-
tros enxergam o indivíduo, mas também influência o senso de identidade pessoal
(GIDDENS, 2012, p. 669). A criminologia inspirada no labeling approach põe em
xeque o princípio finalístico e de prevenção da pena. Será que a pena cumpre hoje
seu papel reeducativo? Baratta (2011, p. 90) assevera que antes de terem efeito re-
educativo, na maioria dos casos, as penas detentivas consolidam uma identidade
desviante do condenado e o seu ingresso na carreira tortuosa do crime.

3.2. A nova criminologia e seu viés crítico


A Criminologia tida com Crítica vem surgir como consequência às teorias po-
líticas e econômicas do crime e também como corolário à mudança paradigmática
do fenômeno criminológico. Numa linha temporal, esse movimento de contrapon-
to à criminologia tradicional aparece com força após a segunda guerra mundial e se
aprofunda como desdobramento das teorias conflituais entre as décadas de 60 e 80.
Em verdade, a escola Crítica Criminológica vem a ser caracterizar notada-
mente pelo aprofundamento da teoria labeling approach conjugada a preceitos
marxistas. Nesse sentido Alessandro Baratta (2011, p. 159):

Quando falamos de “criminologia crítica” e, dentro deste movimento


tudo menos que homogêneo do pensamento criminológico
contemporâneo, colocamos o trabalho que se está fazendo para a
construção de uma teoria materialista, ou seja, econômico-política, do
desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização,

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

um trabalho que leva em conta instrumentos conceituais e hipóteses


elaboradas no âmbito do marxismo.

Com efeito, temos aqui uma perspectiva dialética que vai ensejar uma nova
visualização do crime, visto não mais sob uma realidade ontológica, mas sim
como “status” atribuído a determinadas pessoas. No mais, temos que para Cri-
minologia Crítica o estudo do crime e do controle social baseia-se na divisão da
sociedade em classes (estrutura econômica) e na reprodução das condições de
produção (capital / trabalho assalariado) pelas instituições políticas e jurídicas.
Fazendo o fecho necessário, acentua Cirino dos Santos (2012):
A Criminologia Crítica é o produto da integração da teoria do conflito
de classes do marxismo, que desenvolveu um modelo de compreensão
dos processos objetivos das relações sociais de produção e distribuição da
riqueza material, com a teoria da interação social do labeling approach,
que desenvolveu um modelo de compreensão dos processos subjetivos de
construção social da criminalidade.

O estudo crítico da Criminologia passa necessariamente pela historici-


zação do comportamento desviante. Nesse ponto, a teoria crítica vem se
apropriar da metodologia de estudo de Karl Marx fundada na explicação
histórica da estrutura social e política do Estado. Assim, temos que, quanto
à metodologia aplicada, a Criminologia Crítica aplica o Materialismo His-
tórico-Dialético que possui como caraterística central a dinâmica de ideias
no movimento natural da história.
Nesse contexto, a empiricidade do método é consubstanciada no estudo das
relações sociais derivadas da produção concreta de bens e serviços e seu imbri-
camento com as formas de trabalho. Em suma, o estudo da criticidade crimi-
nológica encara historicamente o delito e destaca sua relação funcional, com
as estruturas sociais voltadas para o desenvolvimento da sociedade capitalista.
Nesse pensar, a Criminologia Crítica direciona seu olhar dialético-mate-
rialista para a conjuntura histórica e atual do sistema penal 7, em nosso recor-
te, o brasileiro. Com efeito, temos que as funções do sistema penal perpassam,
portanto, pelas três esferas de poder: pelo legislativo, por ser fonte primária
das leis que programam o sistema; pelo judiciário, que julga e pune aqueles

7 Para a Criminologia, o sistema penal se consubstancia a partir de três instituições, a saber, a policial, a
judiciária e a penitenciária, que, nos termos das regras jurídicas que as regem, realizam o direito penal.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que incorreram no delito penal; e pelo executivo, que é responsável pela fun-
ção de cumprimento da sanção penal, mormente o cárcere. Todas essas fun-
ções estatais, vale dizer, são investigadas dialeticamente e numa perspectiva
histórico-materialista.
Para os teóricos da Criminologia Crítica, o sistema penal, em verdade, se
encontra envolto de objetivos disfarçados que impõe, de maneira sistematizada
e institucionalizada, a realidade social desejada pela classe dominante. Doutras
palavras, mais um instrumento para a supremacia do status quo. No fim, inte-
ressa à Criminologia Crítica o estudo da realidade desse sistema, e não somente
a realidade por ele estampada nas normas jurídicas.

4. Os fatores sócioeconomicos enquanto


determinantes do delito
Diante das principais teorias já expostas, notadamente aquelas baseadas em da-
dos empíricos, resta clarividente que o fenômeno delitivo exsurge a partir de fatores
endógenos e exógenos. Com efeito, importa aqui destacar que os fatores aborda-
dos a posteriori não podem ser tratados como causas exclusivas da criminalidade.
Conquanto, poderão ser determinantes, e até compilados aos fatores psíquicos e
de ordem interna do indivíduo. Nesse pensar, alerta Orlando Soares (2003, p. 63):

Considera-se fator aquilo que pelas suas características ou condições,


contribui ou concorre para um resultado, isto é, torna viável o efeito,
servindo-se de nexo, entre este e a causa, relacionando-os naturalmente.
Mas, assim como em Matemática, um só fator não dá produto, o caráter
criminoso não resulta de um só fator.

Assim, dito isto, destacaremos à frente os principais fatores socioeconômicos


ensejadores e relacionáveis à criminalidade, sem deixar de dar, por óbvio, a im-
portância devida às análises particulares do método criminológico. Nesse sentido,
abordaremos as temáticas da pobreza e a desigualdade social, a educação, a ques-
tão do emprego, a influência dos meios de comunicação e por fim o preconceito.

4.1. Pobreza e Desigualdade Social


De início, ao analisarmos o fenômeno da pobreza, não podemos, impe-
riosamente, associar essa condição a todos os delinquentes encontrados na

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

sociedade. Repise-se, não é por ser a pessoa pobre, que naturalmente irá
para o caminho do crime.
Aqui o ponto de análise crucial é o fato de que as condições impostas pela
pobreza, e todas as limitações impostas pela falta de recursos oportunidades,
pode ser ensejador da conduta delituosa. A par disso, esclarece Newton Fernan-
des e Valter Fernandes (2002, p. 389):

É evidente que há estreita relação entre a pobreza e o crime. O sentimento


de revolta por viver na pobreza não deixa de ser um dos fatores que induz
o indivíduo ao crime (contra o patrimônio especialmente), adquirindo,
não raro, um sentido de violência delinquencial muito grande. Esse ódio
ou aversão contra os possuidores de bens age como verdadeiro fermento,
fazendo crescer o bolo da insatisfação, do inconformismo e da revolta das
classes mais pobres da sociedade.(...) As causas emanam, principalmente,
da má distribuição de riquezas e do conluio do poder público com o
poder econômico, permitindo que este caminhe paralelamente com ele,
como seu subgerente na condução dos destinos de um país.

No Brasil temos hoje cerca de 45 milhões de pessoas consideradas po-


bres8. Uma parte desse montante sobrecarrega o sistema penitenciário do
país na medida que, consoante já discutido, os crimes associados às classes
subalternas são muito mais investigados, julgados e penalizados do que, por
exemplo, os crimes de colarinho branco9. Dúvida não pode haver que todas
essas condições excludentes nutrem, até certo ponto, sentimentos de ódio,
aversão e revolta à tamanha desigualdade social e a aqueles que detém as
posses e privilégios. Não há como cobrar, igualitariamente, os rigores do
Direito Penal entre aqueles que nascem e crescem sob uma harmonia fa-
miliar, social e educacional, e outros despidos integralmente de dignidade.
Não é justo. Não é sereno.
Doutra ponta, perceptível, consoante já dito, o tratamento dado pelo sis-
tema penal brasileiro, aos infratores de classes sociais subalternas e a aqueles
detentores do poderio econômico. Sim, por que estes também incorrem nos

8 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/10/1931680-22-dos-brasileiros-vivem-
abaixo-da-linha-da-pobreza-diz-estudo.shtml. Acesso em 30 dez 2017.
9 Também não há como passar em branco as cifras negras da criminalidade que dizem respeito aos
crimes não investigados ou solucionados. Ou ainda, as cifras douradas, que tratam dos crimes
cometidos pelas classes privilegiadas.

910
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

mais diversos crimes, inclusive, patrimoniais, a saber, crimes de corrupção, so-


negação fiscal, lavagem de dinheiro, dentre outros. Ciente da discrepância de
tratamento, pontua o professor Juarez Cirino dos Santos (2014, p.2);

Por outro lado, condutas criminosas próprias dos segmentos sociais


hegemônicos, que vitimizam o conjunto da sociedade ou amplos
setores da população, são diferenciadas ao nível da criminalização
primária (tipos legais) ou da criminalização secundária (repressão
penal): no nível da criminalização primária, ou não são definidas
pelo legislador como crimes, ou são definidas de modo impreciso e
vago, ou as penas cominadas são irrisórias; no nível da criminalização
secundária, portanto, ou frustram a repressão penal, ou a natureza
das penas cominadas transforma essas práticas criminosas em
investimentos lucrativos.

Nessa perspectiva de diferenciação de abordagem, que engloba os crimes de


colarinho branco, e a tolerância com que eles são tratados, o sociólogo GID-
DENS (2012, p. 684) vem dizer que: “Embora seja considerado pelas autorida-
des sob uma luz muito mais tolerante do que os crimes dos menos privilegiados,
o custo dos crimes de colarinho branco é enorme”.
E o que a Criminologia Crítica tem a dizer acerca desses fatores tidos como
criminológicos? Ora, aquilo desenhado por Marx há décadas: atacar na raiz, na
busca da própria dignidade humana, na igualdade de oportunidades, na divi-
são de riquezas conforme a necessidade, vale dizer em resumo, na busca pela
diminuição máxima das desigualdades sociais. Com efeito, fazendo o fecho ne-
cessário, estudos e pesquisas mostram que nas áreas pobres de centros metropo-
litanos, onde se investiu em políticas sociais e distribuição de renda, houve uma
queda sensível nos índices de criminalidade10.

4.2. Fator Educacional


A questão educacional também vem a ser um fator importante e influente
na concepção do delito. Aliás, a falta dela. É inegável a necessidade de uma

10 Ver artigo e pesquisa do Banco Mundial. Brasil combate à criminalidade levando desenvolvimento
para as favelas. Disponível em: http://www.worldbank.org/pt/news/feature/2013/03/21/brazil-crime-
violence-favela. Acesso em 30.12.2017.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

política educacional efetiva e transformadora, não só como formação intelectu-


al, mas também como norteadora de atitudes éticas e facilitadoras do convívio
social. Falando da educação enquanto meio de socialização, GIDDENS (2012,
p.590), invocando Durkheim, assevera:

A educação tem um papel importante na socialização das crianças,


pois, particularmente ao aprenderem história, por exemplo, as
crianças adquirem uma compreensão dos valores comuns na
sociedade, que congregam uma variedade de indivíduos diferentes.
Esses valores comuns incluem crenças religiosas e morais e um
senso de autodisciplina. Durkheim argumenta que a escolarização
proporciona que as crianças internalizem as regras sociais que
contribuem para o funcionamento da sociedade.

Num ângulo crítico, a falta de investimento na educação também termina


por espelhar interesses escusos da classe dominante. A elite privilegiada não
consegue conviver com a igualdade substancial. Para ela, “igualdade” é pura
e simplesmente a ideia do pobre (que teve educação extremamente defasada),
disputar, com o rico (que estudou nos melhores colégios), exames e vestibulares,
sem qualquer diferenciação. Ora, a diferenciação já foi criada, desde o berço.
A imposição de uma educação de qualidade nas periferias, desde o nível
básico até o universitário, passando pelo ensino técnico, é condição sine qua non
para o desenvolvimento das comunidades carentes. O investimento educacio-
nal, e todos os outros de caráter socioeconômico, servem para dotar crianças e
jovens de um futuro a ser vivido fora do crime, fora das influências negativas e
dentro de uma formação educacional e cultural requerida pela sociedade atual.

4.3. Emprego, Subemprego e Desemprego


O Brasil tem hoje cerca de treze milhões de desempregados11 segundo dados
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. O enorme quanti-
tativo de desemprego, e também subemprego, desestabiliza acentuadamente o
desenvolvimento social e econômico do país. Se a educação inclina o indivíduo
para um futuro promissor, o emprego gera dignidade, sensação de ser parte do

11 Disponível em http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2017/08/brasil-tem-r-13-milhoes-de-desempregados-
diz-ibge.html. Acesso em 30.12.2017.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

tecido social produtivo, além da própria estabilidade familiar. Significando o


valor social do trabalho, assim discorre o GIDDENS (2012, p.652):

Nas sociedades modernas, ter um emprego é importante para


manter a autoestima. Mesmo quando as condições de trabalho são
relativamente desagradáveis e as tarefas são tediosas, o trabalho
tende a ser um elemento estruturante na formação psicológica das
pessoas e no ciclo de suas vidas cotidianas.

Logo, sem emprego e sem dignidade, o trilhar do crime fica mais próximo
e a promessa de dinheiro fácil envolvente. É preciso um conjunto de políticas
públicas que englobem formação profissional, capacitação, microcrédito entre
outros fomentos, com vistas não somente a geração de emprego, mas também a
circulação da renda entre os subalternos.
Aqui, mais uma vez, o Estado é necessário e precisa se fazer presente no sentido
de propor e fomentar programas de geração e qualificação de postos de trabalho. A
crise econômica de 2008 e o colapso do capitalismo mostraram que o liberalismo
econômico não se incomoda com o desemprego e suas consequências, pelo contrário,
os objetivos sempre são guiados pelo lucro e pela acentuação das desigualdades sociais.

4.4. Meios de Comunicação


Os meios de comunicação, em especial os de massa, tais como a televisão e a
internet com suas pujantes redes sociais, apresentam forte poder de alienação social
sob as mais variadas perspectivas. Fácil por isso afirmar que a tecnologia moderna
envolvida e a amplitude de penetração midiática influencia por demais o cotidiano
das pessoas. É nesse diapasão que Lola Aniyar (2005, p.201) afirma:

Os meios de comunicação demonstram ser cruciais na construção de


ideologias. E, em consequência, das atitudes e dos valores. Levando esse
argumento à sua expressão mais acabada, a tecnologia massificadora
parece representar o mais aterrorizante instrumento de controle e
dominação, não apenas no nível das nações particulares, mas, ainda
mais drasticamente, no âmbito internacional.

Além de definir modos de conduta e estereótipos, e se empenhar por objeti-


vos mercadológicos e políticos, a televisão e outros meios também denotam um

913
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

sensacionalismo ultrajante acerca da criminalidade. Não é raro nos dias atuais


uma programação televisiva (novelas, filmes, séries, etc.) que evidencia desta-
ques acerca de condutas delitivas e até cultuam figuras criminosas.
Bem característico também no cinema, essa prática torna os meios de co-
municação um agente publicitário do crime. Nesse mesmo sentir, a publicidade
é algo muito maior que tornar público um fato. Traduzem representações, repe-
tem afirmações, persuadem os destinatários acerca de fatos reais ou ficcionais
(CASTRO, 2005, p. 203).
Com efeito, os meios de comunicação constituem-se em poderosa ferramen-
ta da “Superestrutura”12 para manter, e mais que isso, prolongar maciçamente
o domínio das classes abastadas. E, obviamente, o tratamento da temática cri-
minológica passa por isso.

4.5. Preconceito
Podemos considerar que preconceito é um estereótipo negativo, e a discri-
minação é o preconceito posto na prática, nas ações cotidianas. Acerca do pre-
conceito, GIDDENS (2012, p. 455), tratando do preconceito, assevera que ele
se refere a opiniões e visões preconcebidas que “muitas vezes baseiam-se em
rumores, em vez de evidências diretas, e são resistentes à mudança, mesmo
frente a novas informações”. São várias as espécies de preconceito que denotam
repugnância e maculam a própria dignidade da pessoa humana.
Discriminações pela etnia, raça, cor, pelo regionalismo, dentre várias outras, são
cada vez mais corriqueiras no Brasil. Hodiernamente tem sido muito comum a dis-
criminação por gênero e até pela opção ideológica. Num passado não tão distante
vimos sessões contínuas de terrores e atrocidades cometidos, levados a efeito por
condutas e políticas discriminatórias que até hoje envergonham o ser humano.
Já o racismo é uma das formas disseminadas de preconceito que leva em
conta conceitos de raça humana. De se destacar que esses “conceitos” que
envolvem superioridade ou inferioridade de indivíduos nunca foi comprova-
do cientificamente. Doravante serviram para alastrar condutas deploráveis ao
longo do tempo. A prática do racismo tem se alastrado há tempos por todo o
mundo, mormente ainda com relação com os negros, mas também muito forte

12 Base conceitual definida por Marx e Engels que define os instrumentos políticos, legais e ideológicos
de dominação e perpetuação do determinismo econômico nas relações sociais.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

com a questão dos imigrantes e refugiados. Em verdade, o racismo hoje deriva


de várias fontes, nos termos explanados por SHECAIRA (2014, p. 111):

Contemporaneamente, o racismo tem sido identificado por inúmeros


estudos, de diferentes fontes. São os cruzamentos de dados que envolvem
analfabetismo, média de salário percebida por brancos e negros, número
de negros que tem acesso à universidade, disparidade de índices de
mortalidade infantil, diversidade nos dados no que concerne a quantos são
mortos “em confronto” com as polícias estaduais, questões políticas, etc.

Parece ser evidente que tais condutas criminosas provavelmente façam parte
das “cifras negras” da criminalidade. Embora sejam presenciados diariamente,
os crimes de racismo não encontram na pena criminal um obstáculo. E aqui
importa destacar que o racismo é um delito muito mais comum nas classes
privilegiadas. Cada vez mais comum nos noticiários e no dia a dia familiar e
comunitário, a incidência de crimes contra homossexuais e, pior do que isso, a
disseminação de um tratamento diferenciado e policialesco, incentivado até por
autoridades e formadores de opinião.
De igual monta, crimes contra a mulher, contra imigrantes, minorias étni-
cas, agentes de movimentos sociais, trabalhadores rurais, grupos religiosos de
gênese africana, dentre vários outros. Há também outro viés da prática pre-
conceituosa e da discriminação que não deixa de ser tão importante quanto.
É aquele emplacado pelo próprio sistema penal. A Criminologia Crítica vem
atacar todas as formas de preconceito, em especial, àquela considerada raiz, a
discriminação quanto aos mais pobres, os sem privilégios, os já vitimados por
um sistema excludente e que aprofunda cada vez mais as desigualdades sociais.
Esses, já nascem com a chancela de delinquente em potencial.

5. Da conclusão
A Criminologia Crítica parte do pressuposto que o percurso de formação e
aplicação da norma penal violada, indo até a punição prescrita, é por demais
influenciado pelos interesses da classe dominante. Nesse sentido, as ideias de
um sistema penal garantidor de uma ordem social justa caem por terra, ao ana-
lisarmos a realidade do comportamento seletivo e parcial dos legisladores e dos
aparelhos formais de controle (policial, judicial e penitenciário).

915
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Nesse sentido, a crítica criminológica vem visualizar o sistema penal en-


quanto sistema social despido de legitimação na medida em que não releva os
fatores sociais e econômicos que tanto desequilibram a harmonia da convivên-
cia social. Associado a isso, a pesquisa se propôs também, na resolução de sua
problemática, que seja delineado um olhar clínico, por meio de políticas públi-
cas, junto às questões sociais e econômicas no seio social que corrompem o sis-
tema penal atual. Vale dizer, a solução pra toda uma crise sem fim na segurança
pública, no sistema prisional e na implantação efetiva de políticas criminais,
passa por soluções fora do sistema penal, fora dos muros das prisões.
E por isso, em linhas finais, deve a sociedade caminhar de modo a compre-
ender e combater de forma objetiva e eficiente as causas da criminalidade, den-
tre elas, a pobreza, a miséria, o desemprego, a falta de uma educação pública e
de qualidade, e assim, no fim, buscar a maior diminuição possível das desigual-
dades sociais. Essa compreensão passa necessariamente por uma consciência
de classe, de combate ao sistema econômico degradante, da luta pela igualdade
substancial e de oportunidades e do respeito às pluralidades.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
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918
Patriarcado e guerra às drogas:
uma análise feminista marxista do
hiperencarceramento por crime de tráfico

Dayane da Silva Mesquita1


Douglas Diógenes Holanda de Souza2

1. Introdução
O aumento do encarceramento de mulheres, sobretudo por incidência em
crimes previstos na Lei de Drogas (Lei 11.343/06), perpassa por uma complexa
conjuntura política. Na América Latina, este cenário tem seu prenúncio com
os processos de desemprego e empobrecimento pelos quais o continente passou
na década de 90, durante o neoliberalismo. Coincide com essa conjuntura o
crescimento urbano, a reestruturação produtiva, e mudanças na estrutura fami-
liar, marcada pelo aumento da chefia do lar por mulheres. Esses acontecimentos
fomentaram o fenômeno da feminização da pobreza, isto é, do aumento do con-
tingente de mulheres em situação de miserabilidade (CHERNICHARO, 2014).
Mirando para o Brasil, esse fenômeno ganha força após o golpe antidemocrá-
tico concretizado em 2016. Derivado de uma resposta reacionária aos avanços das
políticas sociais impulsionadas durante os governos petistas, como a democratiza-
ção do acesso ao ensino superior, a implementação de políticas de redistribuição
de renda e extensão dos direitos trabalhistas (MIGUEL, 2018), a gestão de Michel
Temer (PMDB) opera a manutenção dos interesses do capital. Exemplo disto são

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), membra do


Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC), pesquisadora de campo
da Universidade de Brasília (UnB) e estagiária da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do
Norte (PGE-RN). Contato: [email protected].
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC), Diretor de Assistência
Estudantil do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e Extensionista do Centro de Referência em
Direitos Humanos do Semi-Árido (CRDH). Contato: [email protected].

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

algumas das medidas implementadas em seu governo: O Novo Regime Fiscal ins-
tituído pela Emenda Constitucional nº 95/16, que congelou por 20 anos os gastos
federais com a saúde e educação no patamar do que foi gasto em 2017 (DWECK
e ROSSI, 2018); a fragmentação do mundo do trabalho empreendida pela tercei-
rização irrestrita (ADPF 324) e a reforma trabalhista (ALVES, 2017).
Nesse sentido, dados presentes na Síntese de Indicadores Sociais (SIS) reali-
zada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatam que
houve um aumento da pobreza no governo de Michel Temer, atingindo 26,5%
da população, totalizando 54,8 milhões de pessoas, 02 milhões a mais que no
ano de 2016 (IBGE, 2018). O mesmo relatório demonstra que quando adotado
o índice de pobreza de 5,5 dólares diários para análise do perfil da totalidade da
população brasileira, há incidência de 64,0% desse índice nos arranjos formados
por mulheres pretas ou pardas, e de 55,6% no arranjo de mulheres sem cônjuge
ou com filhos de até 14 anos (IBGE, 2017).
É diante desse acirramento das desigualdades e das contradições existentes
entre o superdesenvolvimento das forças produtivas e da precarização contínua
das relações de produção (MANDEL, 1978) que o trabalho ilegal e informal
ganha relevo, principalmente o tráfico de drogas3.
Nesse contexto político e econômico das transformações vivenciadas no Brasil,
o aumento da população penitenciária feminina (CELS et. al, 2011, apud CHER-
NICARO, 2014) é um fenômeno que está invariavelmente combinado à situação
de desemprego das mulheres, ao baixo grau de escolaridade e aos arranjos familiares
em que estas são únicas responsáveis pelo sustento dos filhos (CORTINA, 2015).
O ingresso no tráfico por fatores capitalistas estruturantes, somados ao en-
durecimento de penas presentes na atual política de drogas e da gestão social da
pobreza pelo Estado Penal desemboca no encarceramento em massa, sobretudo
das mulheres pretas e pobres.
Apesar de que em termos numéricos os homens são maioria (665.482 segun-
do INFOPEN, 2016), alijar do debate e não estabelecer as mulheres como objeto
central, por serem tanto minorias políticas quanto numéricas das proporções

3 Sob o termo “drogas” pairam diversas interpretações, em sua maioria equivocadamente presume-
se tratar de substâncias psicoativas ilegais. Dessa forma, drogas são “qualquer substância natural
ou sintética que quando introduzida no organismo modifica suas funções, mas também, devem ser
apreendidos como uma mercadoria, que, no contexto da sociedade capitalista, supõe trabalho, valor
de uso e de troca (para atender as necessidades humanas e autovalorização do capital na produção
de bens), exploração e a consequente obtenção de mais-valia” (PINHEIRO, p. 24, 2017).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de sujeitos encarcerados no mundo, é perder os aspectos estruturantes e funda-


mentais do estado penal (DAVIS, 2003).
Partindo disso, a presente análise pretende aferir se houve um aumento do
encarceramento de mulheres por incidência no crime de tráfico de drogas no
intervalo de 2006 a 2016. Esse lapso temporal compreende não só a promulga-
ção da Lei de Drogas, que inovou ao trazer novos requisitos para distinção en-
tre usuários e traficantes, mas também por abranger um período de mudanças
abruptas na conjuntura brasileira.
Ademais, compreendendo que as várias opressões que suplantam a eman-
cipação feminina são determinadas por relações sociais estruturantes (CISNE,
2018), busca-se investigar quais fatores estruturais interferem na inserção das
mulheres nesse mercado e quais fatores contribuem para o encarceramento de
sujeitas por incidência em crime de tráfico de drogas.

2. Metodologia
A análise situa-se no campo do feminismo marxista, orientada por um ho-
rizonte materialista, histórico e dialético. Realizar-se-á uma investigação qua-
litativa, mediante revisão bibliográfica e consulta a documentos oficiais, sendo
centrais as seguintes indagações: houve aumento no encarceramento de mulhe-
res por incidência em crime de tráfico no ínterim após a promulgação da Lei
11.343/06? Em que medida o aporte teórico feminista marxista pode contribuir
para o estudo desse fenômeno?
A perspectiva feminista adotada vincula-se a teoria revolucionária marxista
que traz consigo a luta por liberdade substantiva, demandando necessariamente
“pensar as relações sociais e seus antagonismos, bem como uma ação coletiva
em torno de um projeto societário classista” (CISNE, 2018). Assim o aporte te-
órico marxista que subsidiou inúmeras lutas políticas (VALENÇA, 2013) é um
instrumento de compreensão da realidade indispensável para a luta das mulhe-
res, posto que a abordagem das condições objetivas e estruturais da sociedade
capitalista no âmbito da Criminologia Radical desloca o centro da análise para
as formas de tratamento político e controle social do crime e da criminalidade
(SANTOS, 2015), desvincula-se de uma análise jurídica abstrata e principioló-
gica, e possibilita uma perspectiva teórica político-interventiva.
Desse modo, serão analisadas as diferenciações contidas na atual Lei de
Drogas sobre o enquadramento de indivíduos em usuários e traficantes, e qual

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

a influência que essa diferenciação atinge e agrava a seleção das sujeitas crimi-
nalizadas pela posição de classe subalterna (SANTOS, 2015). Nesse sentido, a
investigação perpassará sobre dados contidos no Levantamento de Informações
Penitenciárias (INFOPEN, 2018) sobre a situação das mulheres em privação de
liberdade, dando ênfase aos seguintes números: qual o crescimento do encar-
ceramento feminino no intervalo de tempo adotado para análise, como foco
no ínterim imediatamente posterior a promulgação da Lei objeto de análise até
2016, data-; qual o percentual que cumpre pena por incidência em crime de
tráfico de drogas (art. 33, Lei 11.343/06).

3. A Lei nº 11.343/06 e o hiperencarceramento feminino


O fenômeno da criminalidade feminina historicamente abrangeu crimes re-
lacionados à situação específica das mulheres: aborto, infanticídio e prostituição.
O início da década de 90 muda esse perfil, ganha relevo o tráfico de drogas como
tipo penal pelo qual as mulheres mais são privadas de liberdade (CHERNICHA-
RO, 2014). Ressalte-se que, no Brasil, a taxa de aprisionamento feminino inten-
sificou-se no intervalo entre 2000 e 2016, aumentando em 525% (INFOPEN,
2016). Conforme dados do mesmo relatório, as mulheres representam o total de
6,8% dos sujeitos privados de liberdade no país (INFOPEN, 2016).
Um dos fatores que explica esse significativo aumento de mulheres encar-
ceradas é a Lei 11.343/2006, que apesar de seus avanços simbólicos no campo
das Políticas Públicas Sobre Drogas, decorrentes de seus elementos inovadores
como a não estigmatização e a garantia de tratamento adequado aos usuários de
drogas, resultou em “superencarceramento, mitigação de garantias processuais
e cristalização da figura do traficante como inimigo público, a justificar exe-
cuções extrajudiciais, incursões violentas em comunidades vulneráveis e toda
sorte de violações de direitos humanos” (IBCCRIM, 2016).

3.1. A interpretação arbitrária do judiciário


no enquadramento de mulheres entre
usuárias e traficantes
O conteúdo da Lei de Drogas reitera o modelo proibicionista, elege como
discurso legitimador a necessidade de proteção da saúde pública, taxa o consumo

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de determinadas substâncias como intolerável e contradiz o fato de existirem


substâncias mais danosas com comercialização permitida4. Que sentido faz o
discurso sanitarista quando grandes contingentes de jovens morrem anualmente
pelo combate militarizado ao narcotráfico? (TELLES et al, 2018).
A tática de institucionalização e fortalecimento dessa política reflete uma
estratégia de controle social e gestão penal da pobreza, caracterizada pelo
remanejamento de investimentos em implementação de políticas sociais que
diminuem o abismo entre a classe trabalhadora e a emancipação humana
concreta, para o crescimento das prisões, aumento das polícias e alargamento
das penas relacionadas à Lei de Drogas, tornando-as mais severas. Nesse sen-
tido aponta Paiva (2017) que:

O processo de reestruturação produtiva, a flexibilização e precarização


do trabalho, a incorporação do receituário de governabilidade neoliberal
e a desvalorização da vida – ou da força de trabalho – em um capitalismo
predatório, são alguns dos elementos associados à emergência do Estado
penal como forma de gestão do refugo da sociedade de mercado.

É nesse cenário capitalista de emergência do Estado Penal que são fomen-


tados os discursos e práticas de guerra às drogas5, que resulta na perseguição
de usuários e traficantes de forma violenta e prioriza a repressão ao tráfico e o
encarceramento em massa, em detrimento de ações preventivas e de redução
de danos (Araújo, 2017).
Elencadas as características do endurecimento do Estado Penal, resta de-
monstrar quais os pontos da lei de drogas coadunam-se com essa lógica. Ar-
güello (2017) destaca dois pontos indispensáveis para análise: um é o aumento

4 “O uso de uma justificativa médica e de saúde pública para se proibir certas drogas é contraditório
com o fato de que algumas das substâncias mais perigosas são permitidas devido ao seu uso ser
tradicional no Ocidente cristão. O cigarro, por exemplo, desde a guerra da Criméia incorporou-se à
ração dos exércitos e aos hábitos populares, o chá e o ópio à dieta da Inglaterra vitoriana, e o álcool
na forma do vinho, da cerveja e dos destilados continua sendo a bebida nacional de muitas nações”.
(CARNEIRO, p.4, 2002)
5 “Expressão cunhada pelo ex-presidente americano Richard Nixon em 1971 para se referir a sua
política de drogas, centrada na repressão ao uso e ao tráfico, amparada por intervenções policiais
e militares, domésticas e internacionais. Atualmente, o termo é usado para se referir de modo
geral a qualquer política que prioriza a repressão ao tráfico em detrimento de ações de prevenção,
tratamento ou redução de danos”. (ARAÚJO, 2017, p. 44-45).

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da pena mínima para crime de tráfico para cinco anos de reclusão; outro é a
diferenciação entre “usuário/doente” e “traficante/delinquente”.
O artigo 28 da Lei tipifica o uso de substâncias psicoativas como crime não
sujeito a pena privativa de liberdade, prevê ainda penas alternativas cabíveis
como a advertência sobre os efeitos das substâncias, a prestação de serviços
à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso
(art. 28, I, II). Ainda que a previsão aparente-se benéfica, cabe indagar: Qual é
a distinção entre usuário e traficante e como e por quem ela é feita?
O § 2 do mesmo artigo estabelece que o usuário será identificado pelo juiz,
sendo este o responsável por averiguar se a droga encontrada se destinava a uso
pessoal ou não do indivíduo. Nessa equação entram as variáveis da “natureza
e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se de-
senvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e
os antecedentes do agente” (MACHADO, 2010, p.1011). A redação normativa
abre espaço para o exercício hermenêutico subjetivo dos juízes, que na prática
enquadram usuários como traficantes, aplicando a eles penas mais severas de-
correntes do aumento da pena mínima para cinco anos de reclusão.
É justamente nas lacunas normativas que abrem espaço para a discricio-
nariedade dos juízes que o Estado Penal e a guerra às drogas materializam-se,
causando a superlotação dos sistemas penitenciário e socioeducativo, atuando
de forma ineficaz no controle da criminalidade e eficaz na criminalização da
pobreza (PAIVA & MIRANDA, 2017).
O aumento da pena para o crime do tráfico representa uma incoerência do
sistema legislativo penal. Ao compará-lo com outras sanções, como a cominado
ao crime de estupro (artigo 213 do Código Penal), constata-se que a diferença
em suas penas bases este último é apenas um ano superior, e nas penas máxi-
mas, a de estupro é um terço menor (BOITEUX & PÁDUA, 2018).
Há quem diga que o aumento do encarceramento causado pela Lei de Dro-
gas tem ligação direta com o fato desta não estabelecer critérios objetivos para
distinguir as tipificações penais. Por critérios objetivos compreende-se uma:

“opção normativa adotada em alguns países para diferenciar as condutas


de uso e tráfico de drogas. Reduz a discricionariedade das autoridades
no enquadramento criminal de pessoas presas em flagrante portando
drogas ilícitas (...)”. (ARAÚJO, p.36, 2017)

924
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O fato de não haver no Brasil estudos sobre padrões de uso de drogas bem
como parâmetros de qualidade e pureza das substâncias, criam um cenário
desfavorável para uma possível adoção normativa destes critérios. Ainda que
eles existissem, não trariam impactos significantes no número atual e cres-
cente de encarcerados (MARONNA & ELIAS, 2018), uma vez que sobre
os delitos relacionados ao tráfico de drogas apresentam predominância na
repressão Estatal, sobretudo relacionada a grupos sociais específicos (negros e
pobres) (MARONNA & ELIAS, 2018).
Exemplo disto é que em 2012 o número de presos totais era de 548.003 pes-
soas, 25,21% delas condenadas por tráfico de drogas (BOITEUX & PÁDUA,
2018). Em termos absolutos, há mais homens presos por esse delito, porém em
termos relativos “as mulheres estão super-representadas dentre os condenados
por esse crime”. Isso quer dizer que houve um crescimento alarmente no núme-
ro de apenadas por tráfico na última década.
A verdade é que no movimento real da messe cenário de aumento de mulhe-
res presas, a proporção de apenadas por cometimento de crimes relacionados a
drogas saltou de 49% em 2005 para 61% em 2013 (IBCCRIM, 2016). Dados do
mesmo relatório constatam o número de 18,2 encarceradas para cada grupo de
100 mil mulheres em 2006, e o seu salto para 40,6 encarceradas em 100 mil em
2016. A compreensão desse fenômeno deve partir de uma análise totalizante
que considere não só aspectos mais austeros da própria legislação – aumento
de penas - como causa disto, mas a estrutura da própria sociedade patriarcal/
capitalista, que mediante as opressões decorrentes das relações de raça, sexo e
classe, amplia o contingente humano disponível para os mais baixos salários,
aumentando a capacidade de exploração dessas sujeitas mediante às apropria-
ções do corpo, do tempo e do trabalho não pago das mulheres (CISNE, 2017).
3.2. A seletividade penal feminina no crime de tráfico e a divisão sexual do
trabalho: contribuições da perspectiva feminista marxista
O debate majoritário no campo da criminologia crítica feminista foca
suas análises na figura da mulher desviante (CHERNICHARO, 2016) sob
uma perspectiva epistemológica de gênero centrada nos discursos acerca da
criminalidade feminina. As novas abordagens sobre gênero caracterizam o
distanciamento entre as discussões teóricas e a vida concreta das mulheres,
por vezes limitando-se ao “academicismo” (CISNE, 2017). Sobre a ausência
de potencial transformador real apenas no campo da epistemologia, a mes-
ma autora, pontua que:

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Se entendemos, portanto, que não são as ideias que determinam a


realidade, mas, ao contrário, podemos concluir que é insuficiente
transformar as ideias, é fundamental a intervenção coletiva nas relações
materiais que determinam as ideias dominantes. (CISNE, p.5, 2017).

Partindo disso, analisa-se a categoria “gênero” a partir da consubstanciali-


dade das opressões, isto é, de sua relação indissociável entre raça, classe e sexo.
Justifica isto o fato de que não é possível separar as relações de produção das
relações sociais, e destas últimas não o podem ser as relações sociais de sexo, as
quais dizem respeito:

a relações sociais amplas, permeadas pelos conflitos, hierarquias e


antagonismos entre os sexos. É impensável estudar as relações sociais entre
os sexos dissociada das dimensões de “raça” e de classe. Para sermos mais
claras, partimos do pressuposto de que classe, “raça” e relações sociais de
sexo (incluindo a sexualidade) não compõem apenas relações superpostas,
tampouco adicionais ou mesmo com “intersecções”, como defende Crenshaw
(1995) entre as relações de “gênero” e “raça. (CISNE, p.11, 2017).

Segundo Kergoat (2000) estas relações possuem uma base material, que
tem como categoria central o trabalho, concretizada na divisão sexual do
trabalho. Esta última é formada por dois princípios: o da separação entre tra-
balhos masculinos e femininos; e o da hierarquia entre o trabalho entre os gê-
neros. Nesse sentido, cabe pontuar de que forma a divisão sexual do trabalho
promovida pelo patriarcado afeta o ingresso no crime de tráfico e estabelece
um padrão de sujeitas alvo da guerra as drogas a partir do estudo dos dados
disponibilizados pelo INFOPEN.
Consoante dados de 2016, do total de mulheres encarceradas, 62% é negra,
acerca do crime de tráfico, 53,5% (DORNELLAS, 2017). Do número total de
encarceradas, 66% destas ainda não cursou o ensino médio, tendo concluído,
no máximo, o ensino fundamental; 62% são solteiras; 74% têm filhos, ao passo
que dados do mesmo período sobre homens encarcerados demonstram que 53%
declararam não ter filhos (INFOPEN, 2018).
Chernicharo (2016) coloca como fator indissociável ao aumento da participa-
ção das mulheres no tráfico o fenômeno da feminização da pobreza. Este emerge
na medida em que a pobreza passa a atingir majoritariamente as mulheres devido
a mudanças na estrutura familiar e nas relações de trabalho. O que se quer dizer

926
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

é que a partir do momento em que estas passam a serem as únicas trabalhadoras


ativas do lar, os óbices como a baixa remuneração feminina, a sobrecarga com o
trabalho doméstico e demais encargos com trabalhos reprodutivos6 são fatores
que passam a intensificar a opressão de classe, aumentando o contingente de
mulheres em situação de miserabilidade de um lado e forçando-as a se engajarem
nos mercados ilícitos e informais de outro. Admite-se que a exploração da força
de trabalho das mulheres mediante a divisão sexual de trabalho e, portanto o
desempenho de múltiplas jornadas de trabalho com sub-remuneração não é uma
opressão específica das mulheres, mas estruturante do sistema capitalista.
Com isso reconhecemos a indissossiabilidade da venda da força de trabalho
e do corpo que o realiza, que tem cor e tem classe. Numa sociedade como a
brasileira, fundada na exploração da mão de obra negra, sobretudo pelo colo-
nialismo e omissão Estatal na criação de políticas sociais para esse grupo, que
some da história tradicional após a “libertação dos escravos”, é factível que os
estilhaços da degradação da elite que comandava e comandou o país ricochete-
ariam em outros períodos históricos.
É no cenário de desvalorização da mão de obra negra e feminina e de sua
caracterização como um trabalho que não teria atingido o estágio de desenvolvi-
mento completo que torna-se possível fazer uma relação entre sexo e classe e raça
e classe. O trabalho então desvalorizado obrigará dessas sujeitas que criem novas
estratégias de sobrevivência que vão desde a “permissão” em situações de trabalho
precárias para complementar a renda familiar muito baixa obtida pela exploração.
A relação entre capital, raça e classe amplia o número de sujeitas disponíveis
para os mais baixos salários e aumenta diretamente a sua capacidade de explo-

6 O processo de exploração das mulheres engendrado pelo patriarcado atinge seu ápice na sexagem.
Esta “A sexagem designa um prolongamento dos conceitos de escravidão e servidão (FALQUET,
2012), por meio do qual as mulheres são resumidas ao sexo, sendo apropriadas não apenas no que
diz respeito a sua força de trabalho, mas, também, ao seu corpo e a sua vida. A sexagem denota a
apropriação material concreta da individualidade corporal das mulheres, em um processo que as tira
da condição de sujeito e as tornam “coisas” (GUILLAUMIN, 2005). Assim, a apropriação se difere da
exploração capitalista sobre a força de trabalho “livre”, pois, não designa relação contratual formal/
salarial mensurada por horas ou produtos. Para Guillaumin (2005), a apropriação sobre as mulheres
se dá tanto individualmente, especialmente por meio do casamento/família, como coletivamente,
por meio das Igrejas, Estado e empresas. Ainda segundo a autora são expressões da sexagem: a
apropriação do tempo; a apropriação dos produtos do corpo; a obrigação sexual e a carga física dos
membros inválidos (bebês, crianças, idosos e pessoas com deficiência) e válidos do sexo masculino)
(CISNE, p.7, 2017)”.

927
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ração associada a sexagem e ao trabalho não pago. Essas mulheres se tornarão


mão de obra barata, e, portanto mais lucrativa para o capitalismo.
É nesse cenário de exploração da força de trabalho feminina e óbices es-
truturais a entrada de muitas no mercado de trabalho formal que será travado
o debate acerca das drogas. O ponto comum dessas duas coisas, a exploração
força de trabalho feminina e a venda de drogas, é a capacidade de apropriação
delas pelo capitalismo para a geração de lucratividade a qualquer custo. Seja
pela crescente intervenção política e militar sobre o discurso de guerra às drogas
(CARNEIRO, 2002) que custa o encarceramento de milhares de sujeitos (as), a
estigmatizarão desenvolvida historicamente pelo uso de psicoativos, ou mesmo
pela alto contingente de mortes anuais decorrentes da “guerra às drogas”.

4. Conclusão
No horizonte de ausência de políticas sociais e garantia de direitos mínimos
sobretudo como a empregabilidade, a escolaridade e à creche, a exploração da
força de trabalho feminino invade outros âmbitos, inclusive o mercado do trá-
fico. Isto aliado ao fomento da crença proibicionista da individualização dos
culpados pelo problema do abuso de drogas, as/aos traficantes, e sua falsa neces-
sidade de punição, massifica o encarceramento de mulheres em uma situação
social específica, deixando-se de perceber as estruturas econômicas e sociais
que determinam a vida dessas sujeitas em sociedade.
A definição da clientela feminina pelo sistema penal perpassa diretamente
pelos crimes relacionados à drogas e desembocam no encarceramento massivo
de mulheres que são mães e únicas trabalhadoras ativas do lar, com dificuldade
de engajamento em trabalhos formais principalmente devido ao cuidado dos
filhos (CORTINA, 2015). Constata-se o óbice que as prisões e o proibicionismo
representam para a emancipação das mulheres. Esta emancipação não com-
preende apenas uma dimensão econômica, mas depende, sobretudo de uma
transformação estrutural da sociedade que abranja o fim da propriedade priva-
da, a mudança da economia doméstica individual em uma economia doméstica
socializada e uma mudança na cultura. Além disso, a mudança na legislação
para que esta se torne menos discriminatória são essenciais para que se chegue
ao patamar de emancipação real feminina (CISNE, 2017).

928
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

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931
Pornografia da vingança e violência
contra a mulher: entre a tipificação
penal e os limites da forma jurídica

Maria Taynara Ferreira Bezerra1


Leonardo Gomes de Miranda2
Ronaldo Moreira Maia Júnior3
Thariny Teixeira Lira4

1. Introdução
Os dados brasileiros sobre a violência contra mulheres são alarmantes. Em
levantamento divulgado pela Central de Atendimento à Mulher constata-se
que foram realizados 634.862 atendimentos em 2015, dos quais 552.748 foram
relatos de violência (Brasil, 2015).
Ainda de acordo com a pesquisa, 49,82% dos atendimentos corresponderam
à violência física; 30,40% a violência psicológica; 7,33% a violência moral; 2,19%
a violência patrimonial; 4,86% a violência sexual; 4,87% a cárcere privado; e

1 Bacharela em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialização em


Direito Constitucional pela Rede Futura de Ensino/FAVENI (em andamento). Membro do Grupo de
Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: taynarafbezerra@gmail.
com. Tel: (84) 99952-4443.
2 Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Especialização
em Direito Constitucional pela Rede Futura de Ensino/FAVENI (em andamento). Membro do Projeto
Universidade Operária - GEDIC/UFERSA. Email: [email protected]. Tel: (84) 99915-5905.
3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialista em
Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Mestrando em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: ronaldomaia4@
gmail.com Tel: (84) 99616-6842.
4 Bacharela em Direito pela UFERSA, Especialista em Direitos Humanos pela UERN, advogada,
membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – GEDIC. Email:
[email protected]. Tel.: (84) 9600-8698.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

0,53% a tráfico de pessoas. Desta forma, o relatório mostra um crescimento na


quantidade de relatos 40,33% superior aos relatos registrados no mesmo período
em 2014 (Brasil, 2015).
Entendendo que a “pornografia da vingança” ocasiona danos morais e psico-
lógicos de maneira mais impactante nas mulheres, tendo em vista o modelo de
sociedade machista no qual estamos inseridos e a criminalização da sexualidade
feminina, a nossa proposta de trabalho busca explorar tal prática como uma
forma de violência contra as mulheres, a partir do olhar do marxismo, reconhe-
cendo os limites e possibilidades de sua tutela jurídica.
Tradução literal da expressão em inglês revenge porn, a “pornografia da
vingança” nomeia a divulgação de qualquer material sexual por meio da in-
ternet, com o objetivo de constranger a vítima, como uma forma de retalia-
ção feita pelo agressor, por sadismo ou outro motivo relacionado à ruptura,
tendo sido o material obtido através de uma relação afetiva e de confiança
entre agressor e vítima.
No campo jurídico há poucos trabalhos que abordem o tema, o que pode
ser atribuído ao fato de a “pornografia da vingança” ser um fenômeno recen-
te, difundido a partir de meados de 2013 (Valente et al., 2016, p. 9), com um
aumento massivo no número de casos até os dias atuais. Além disto, a maioria
dos trabalhos5 aborda a pornografia da vingança apenas como um delito rela-
cionado ao direito informático, uma violação do direito de imagem, crime de
difamação ou injúria, dentre outras perspectivas. No entanto, tais pesquisas
não realizam o recorte da violência de gênero contra a mulher (mesmo diante
do fato de que a maioria massiva desses crimes seja praticada contra mulheres).
De acordo com pesquisa divulgada em 20136, dentre as pessoas que alega-
ram terem sido vítimas da pornografia de vingança, 90% eram mulheres. Este
fato indica a necessidade de se fazer um recorte, utilizando as lentes de gênero
como uma relação de poder que estabelece as diferenças entre homens e mu-
lheres também no tocante a sexualidade (Louro, 1997, p. 25). A divulgação do
conteúdo íntimo relacionado como uma forma de vingança contra as mulheres
relaciona-se também a um contexto histórico de criminalização da sexualidade
feminina (Andrade, 2003, p. 275).

5 Nesse sentido, os trabalhos de Lelis e Cavalcante (2016), Silva (2015), Simões (2016), Valente, Neres,
Ruiz e Bugarelli (2016).
6 Pesquisa disponível em <http://www.endrevengeporn.org/guide-to-legislation/>.

934
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

No Brasil, a tutela jurídica dos casos que envolvem pornografia da vingança


se dividia entre os que buscavam reparação civil, os que tentavam enquadrar
a conduta enquanto crime (geralmente contra a honra) e os que defendiam
a aplicabilidade da Lei nº 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da
Penha, por reconhecer as condições peculiares das mulheres em situação de
violência doméstica e familiar.
Contudo, recentemente foi sancionada a Lei nº 13.718/2018, que regulamen-
ta especificamente os casos envolvendo pornografia da vingança, alterando o
Código Penal no que diz respeito a crimes como de importunação sexual, contra
a liberdade sexual, crimes sexuais contra vulnerável, divulgação de cena de es-
tupro - dentre outras práticas criminosas - e majoração da pena de crimes como
a divulgação de conteúdo íntimo, se o ato delituoso é praticado por alguém que
manteve relação de afeto e confiança com a vítima, buscando vingança, como
é o caso da pornografia da vingança.
Apesar de poder ser considerado um avanço legislativo, é preciso fazer o
debate sob a ótica da teoria marxista, com ênfase na dimensão dos limites da
forma jurídica, com fins a verificar se a criminalização desta conduta se mostra
suficiente para resolver tais situações.
A presente pesquisa caracteriza-se por ser qualitativa, a partir do método de
análise materialista-histórico-dialético. Ao longo do seu desenvolvimento, será
realizada a revisão de literatura sobre pornografia, teorias feministas, porno-
grafia da vingança, marxismo e direito, seguida de pesquisa documental, com
levantamento dos projetos de lei, dados estatísticos, relatórios institucionais so-
bre violência, entre outros que abordem o tema ou que busquem tipificar como
crime a pornografia da vingança.

2. O conceito de gênero e a construção da sexualidade


feminina na sociedade
É de premente constatação que ultimamente os debates públicos sobre os
mais variados assuntos encontram-se permeados pelo termo gênero. Entretanto,
ainda hoje, discute-se bastante sobre o seu significado. Contudo, a partir de uma
análise mais concreta, podemos conceber que a história do termo encontra-se
ligada ao movimento feminista/de mulheres e às discussões sobre as relações
entre o sexo e os papéis sexuais dos indivíduos na sociedade.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Compreende-se o Feminismo7 como um movimento teórico e prático que


tem como objetivo denunciar a situação de opressão das mulheres e sua supe-
ração. Wayne Morrison (2006, p.572), sobre o Feminismo, afirma que “é um
conjunto variado de práticas discursivas que operam no sentido de resistir aos
pressupostos correntes da cultura masculina dominante e solapá-los. Além dis-
so, o feminismo é uma forma de práxis”.
Conforme Louro (1997), é a partir do século XIX, no Ocidente, que o Fe-
minismo se constrói como movimento social organizado. Logo após, na virada
do século, a luta feminista passou a ter mais força e visibilidade, em decorrência
do movimento sufragista, período denominado como a “primeira onda do Fe-
minismo”. De acordo com Alves e Pitanguy (1991, p. 41) o movimento chegou
a mobilizar até 2 milhões de mulheres de todas as classes, tornando-se um dos
movimentos políticos de massa de maior significado no século XX.
A “segunda onda do Feminismo” teve início no final da década de 1960,
também conhecida como feminismo radical8 ou da diferença, foi nesse período
que teve o aumento da produção teórica, bem como o início da problematização
e construção do conceito de gênero (LOURO, 1997, p. 15) e de outras impor-
tantes categorias como o patriarcado e o machismo. O patriarcado é compreen-
dido como um sistema social de dominação das mulheres e do corpo feminino.
Saffioti, (2015, p. 47) define patriarcado como o “regime da dominação-explo-
ração das mulheres pelos homens”, e acrescenta que o patriarcado não abrange
apenas a família, mas a sociedade como um todo.
Os estudos dessas pesquisadoras feministas tinham um caráter predominan-
temente político e de denúncia do silenciamento que viviam as mulheres na
sociedade. Tais estudos, com o passar do tempo, passaram a ir além de descre-
ver e denunciar as opressões sofridas pelas mulheres, indo buscar explicações
que justificassem as desigualdades entre homens e mulheres, com o objetivo de
desconstruí-las. A principal justificativa identificada que legitimava a submis-
são das mulheres foi o discurso da distinção biológica natural, que determinava

7 Importante destacar que o movimento feminista possui diversas vertentes teóricas que alimentam
diferentes incidências práticas, tais como: Feminismo liberal, Marxista, Radical ou da Diferença,
Pós-moderno, Negro, dentre outros. Cada uma dessas vertentes explica a situação de opressão
feminina de maneira diversa, bem como as possibilidades de superação. Por isso, é mais adequado
falar em Feminismos.
8 As feministas desta onda recebem a alcunha de “radical” porque centram suas análises na busca da
origem da dominação feminina pelos homens”.

936
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

o papel social atribuído aos homens e mulheres, sendo urgente descontruir essa
argumentação, tendo em vista que os estudos feministas identificaram que não
são as características sexuais que definem o local social ocupado por homens
e mulheres, mas o que se constrói socialmente sobre os sexos (LOURO, 1997).
A “terceira onda do Feminismo”, conhecida como Feminismo pós-moderno
teve início na década de 1990 e passou a debater as diferenças entre as próprias
mulheres, fazendo crítica às primeiras ondas, principalmente à segunda, tendo
em vista que tratavam o Feminismo a partir das mulheres brancas. Judith Bu-
tler, considerada umas das principais estudiosas e representante desta corrente,
tece sua crítica no fato de haver um problema político nos estudos feministas
das ondas anteriores, tendo em vista que o termo mulheres denota uma espé-
cie de identidade comum, para ela se fazendo necessário fazer intersecção do
gênero com outras categorias, dentre elas: “raciais, classistas, étnicas, sexuais e
regionais de identidades discursivamente constituídas”. Para ela,

A presunção política de ter de haver uma base universal para o


feminismo, a ser encontrada numa identidade supostamente existente
em diferentes culturas, acompanha frequentemente a ideia de que
a opressão das mulheres possui uma forma singular, discernível
na estrutura universal ou hegemônica da dominação patriarcal e
masculina (BUTLER, 2015, p. 21).

Desta forma, percebemos que os estudos feministas são marcados por uma
diversidade de debates e ideais, sendo uma de suas principais contribuições o
nascimento do conceito de gênero, como maneira de questionar a naturalização
das diferenças entre homens e mulheres.
Scott (1989, p. 3), tratando sobre o termo gênero, afirma que este surge,
inicialmente, com as feministas americanas que buscavam indicar o caráter
primariamente social das diferenças baseadas no sexo bem como seu aspecto
relacional, mostrando as ligações existentes entre as mulheres e os homens e
como ambos se influenciavam reciprocamente.
Ainda conforme a autora, no seu uso mais recente, o termo “gênero” pas-
sou a substituir o termo “mulheres”, denotando um caráter mais científico e
neutro aos estudos feministas mas, ao mesmo tempo, retirando do debate a
sua característica política e social. Ademais, o termo “gênero” ainda se aplica
como forma de rejeição às justificativas biológicas para a hierarquia existente

937
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

entre os sexos como também significa o caráter relacional existente entre os


mesmos (SCOTT, 1989, p. 6).
Fazendo uma crítica a este posicionamento, a autora ressalta que é im-
prescindível o rompimento com essa noção fixa e imutável de gênero, des-
cobrindo as reais causas que levam à essa aparência eterna das relações
hierárquicas de gênero. Além disso, é preciso também impregnar o debate
com a política, o social e o institucional trazendo, para além do parentesco/
doméstico/familiar, as dimensões do mercado de trabalho, do sistema edu-
cacional e político (SCOTT, 1989, p. 23).
Desse modo, Scott (1989, p. 21) conceitua gênero da seguinte forma:

Minha definição de gênero tem duas partes e várias sub-partes. Elas


são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O
núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder (Grifos da autora).

Analisando a primeira parte, percebemos que: a) as “diferenças percebidas


entre os sexos” provém de símbolos culturais que dão margem à múltiplas
interpretações; b) essas interpretações são limitadas e restritas a significados
binários que opõem o masculino e o feminino ao mesmo tempo que os colo-
cam como complementares e absolutos, marginalizando e/ou proibindo inter-
pretações alternativas e definindo-os como produtos de um consenso social
ideal, ocultando todos os conflitos; c) a história é contada do ponto de vista
que naturaliza esse comportamento e o eleva à categoria de eterno e imutável;
e d) esse comportamento validado socialmente dá forma às identidades subje-
tivas (SCOTT, 1989, p. 21-23).
Partindo para sua segunda premissa do conceito do gênero, Scott afirma
que o gênero é o espaço no qual ou por meio do qual as relações de poder são
primeiramente estabelecidas, pois é “a partir do gênero pode-se perceber a orga-
nização concreta e simbólica da vida social e as conexões de poder nas relações
entre os sexos” (FILHO, 2005, p. 136).
Contribuindo para o debate, Guedes (s/d, p. 5) questiona o fato de que a
espécie humana se comunica por meio das mais variadas formas, que vão desde
a linguagem escrita ou falada até gestos corporais. Todas essas formas implicam
tentativas de mediação ideológica inerentes aos significados das palavras que

938
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

são atribuídos por uma classe dominante de acordo com os padrões estabeleci-
dos e naturalizados dentro de um determinado contexto histórico.
Assim sendo, o gênero, assim como outros produtos humanos, perpassa por
esse mesmo processo de significação dominante: a partir dos valores de um con-
texto dado, equivalem significados a expressões que passam a pautar as relações
sociais humanas como regras absolutas.
Nesse espeque, o modelo relacional dominante homem-mulher, que subordi-
na o feminino ao masculino, atribuindo a ambos significados absolutos e ideais,
foi sendo historicamente construído como padrão hegemônico de comporta-
mento ao mesmo tempo que naturalizou as opressões tanto às mulheres quanto
às vivências alternativas da sexualidade.
Assim como explica Berenice Bento (2003, p.1), hoje ocorre o fenômeno
da sexualização dos corpos, ou seja, em face da construção social e cultural de
indissociabilidade e equivalência entre sexo-gênero, o corpo já nasce submetido
a um conjunto de expectativas sexuais.
No contexto das mulheres, o cenário que se coloca é o da opressão, subordi-
nação e repressão a partir do controle exercido de forma estrutural pela família
(pais, irmãos e maridos) e pelo Estado e, legitimado, pela cultura vigente (des-
tacando o papel da religião e da educação), o machismo.

3. A pornografia na perspectiva das teorias do feminismo


radical e liberal
Historicamente, a pornografia seria a representação das prostitutas e suas
ações. No escopo deste conceito, figura uma percepção de pornografia mais
ligada ao erotismo, até mesmo pelos meios utilizados. Santana e Rubim (2012,
p. 637) escrevem que “O próprio entendimento do que vem a ser considerado
pornográfico é fruto de contextos históricos”. Há registros de pornografia en-
contrados até mesmo no século XVI, mas é necessário atentar que as percep-
ções do que é grosseiro e do que é artístico dependem da época, da sociedade.
A respeito da pluralidade da pornografia e de seus significados históricos,
Prada (2010) afirma que os panfletos pornográficos, em meados do século XIX,
traziam um forte conteúdo político e subversivo. As camadas mais populares
começaram a ter acesso a tais conteúdos e é justamente nesta época que se ini-
cia a perseguição e a censura, sob o argumento da moralidade contra o caráter

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

obsceno deste gênero literário. É neste ponto que a pornografia vai se afastan-
do do cunho político e passa a dar mais destaque ao conteúdo sexual. Alguns
consideram esta censura como uma retaliação da burguesia frente ao potencial
subversivo dos panfletos.
Santana e Rubim (2012, p. 639) concluem que o que há em comum nas dife-
rentes representações históricas da pornografia é o fato de que a mulher sempre
esteve no centro de sua representação e sua produção sempre foi voltada para o
público masculino. Há uma forte exploração do corpo feminino com o intuito
de despertar o apetite sexual do macho. Também toda a publicidade veiculada
em torno da pornografia se volta para o público masculino.
A mercantilização da pornografia e a utilização da sua indústria para ali-
mentar os interesses do capitalismo vem se intensificando, mas não são novida-
de. Datam de outro século. Para Leite (2009, p. 510), “o sexo como um produto
e o prazer como uma mercadoria em si, não são fatores novos no fim do século
XIX, pois sempre estiveram ligados intimamente à edificação do capitalismo”.
É graças a esta exploração exacerbada da mulher pela pornografia que,
entre as décadas 70 e 80, iniciou-se um forte debate entre as feministas acerca
da produção pornográfica e o seu significado para a emancipação ou opressão
dos corpos femininos.
No seio das correntes feministas há um acalorado debate sobre o que vem a
ser a pornografia e qual o seu papel no processo de emancipação da mulher. As
feministas radicais protagonizaram a luta anti-pornografia. De acordo com este
movimento, a pornografia convencional degrada e abusa das mulheres, através
da veiculação de comportamentos violentos e depreciativos que naturalizam a
violência de gênero (Dworkin, 1981, p. 200).
Ainda segundo Dworkin (1981, p. 203), a pornografia pode ser entendida
como uma das instituições de controle do uso do corpo da mulher, juntamente
com a lei, o casamento, a economia, a religião, cada uma delas atuando em
determinada proporção, todas controladas por homens.
MacKinnon (1996, p. 20) define que “empiricamente, toda a pornografia
é feita sob condições de desigualdade com base no sexo” (tradução nossa)9. A
indústria da pornografia comercial, que promove a manutenção dessas relações
desiguais entre homem e mulher no contexto do sexo, é o alvo central da crítica
das feministas proibicionistas, por reforçar o primado da dominação masculina.

9 “Empirically, all pornography is made under conditions of inequality based on sex” (texto original).

940
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O pensamento proibicionista das feministas radicais não é consenso nos mo-


vimentos feministas, no que diz respeito à pornografia. É justamente este debate
que se faz imprescindível para ressignificar a pornografia, o erotismo, pautar
políticas de sexualidade para as mulheres e propor mudanças nos modelos de
relações sexuais hierarquizadas que temos hoje.
Desta forma se posicionam as feministas anti-censura, acreditando na pos-
sibilidade de retratar a sexualidade de uma forma diferente do que é colocado
pela indústria do “pornô”. Não se trata de negligenciar o caráter de domi-
nação e violência contido na pornografia, mas de lembrar que há também o
prazer, muitas vezes negado às mulheres na nossa sociedade criminalizadora
da sexualidade feminina.
A partir da identificação do sujeito opressor e da compreensão da sexualida-
de na história, é possível repensar a prática da produção pornográfica de modo
a não reproduzir a dinâmica de violenta dominação, focando no prazer do sexo,
especialmente o feminino, negado durante tanto tempo.
Conforme alega Carole Vance (1984, p. 1), se houver somente o foco no
prazer, corremos o risco de esquecer o contexto patriarcal e de dominação no
qual estamos inseridas. Contudo, se vislumbramos apenas a violência sexual,
deixamos de considerar a sexualidade da mulher, aumentando o terror sexual
no qual elas vivem.

4. Diferenciação entre pornografia não consensual


e pornografia da vingança
No século XXI, a difusão de conteúdos pornográficos não é mais exclusi-
vidade das indústrias pornôs, uma vez que vários gêneros vêm surgindo com
a massificação do acesso à internet, tal como a pornografia não profissional.
A divulgação mais fácil de conteúdos eróticos fez nascer novas formas de ex-
posição das mulheres e de sua sexualidade: a pornografia não consensual e a
pornografia de vingança.
A massificação do uso da internet e, principalmente, das redes sociais, apre-
sentou-nos novas práticas de interação, como o envio de fotos e vídeos instan-
taneamente. Seguindo essa tendência, há o surgimento de uma prática conhe-
cida como sexting, que, segundo Barros e Ribeiro (2015), consiste no envio de
mensagens e mídias com teor sexual, modificando as relações de intimidade.

941
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O compartilhamento destas mídias íntimas pressupõe uma relação de


confiança previamente estabelecida. Contudo, não se pode considerar que
seja uma prática isenta de riscos. Existe o perigo do vazamento, intencional
ou não, do conteúdo. A problemática surge, especialmente, no contexto do
rompimento dos laços.
É neste contexto que surge a conduta conhecida como “pornografia da
vingança”, que tem se tornado cada vez mais frequente e consiste, segun-
do Bambauer (2014, p. 2026), na “[…] prática de divulgar imagens e víde-
os retratando nudez ou de conteúdo sexualmente explícito, frequentemente
acompanhados de informações pessoais identificadoras de antigos parceiros
românticos sem o consentimento deles”.
Neste ponto, faz-se necessário destacar que, para ser considerada pornogra-
fia da vingança, não pode ser apenas um caso de divulgação de uma imagem
íntima sem o consentimento da pessoa nela retratada. Trata-se, no caso em
tela, da pornografia não-consensual. A pornografia da vingança é uma conduta
através da qual se busca humilhar a vítima, com quem, necessariamente, o au-
tor da prática teve algum tipo de relacionamento afetivo e, valendo-se da con-
fiança existente em virtude do relacionamento, obteve o acesso ao conteúdo.
A pesquisadora Mary Anne Franks (2015, p. 3) diferencia precisamente tais
condutas, colocando a pornografia não consensual como a exposição de con-
teúdo sexual explícito sem o consentimento de todas as partes envolvidas; já
a pornografia da vingança se diferencia daquela pelo fato de o conteúdo por-
nográfico ter sido obtido através de laços de confiança e a sua exposição seja
utilizada para obter vingança sobre a vítima.
No caso da pornografia da vingança, tendo em vista a especificidade do
laço afetivo prévio à violência e por ter como objetivo reafirmar a domina-
ção masculina através da exposição da mulher, caracteriza nitidamente uma
forma de violência contra a mulher, que está alocada dentro do conceito de
violência de gênero, conforme escreve Saffioti (2001, p. 134), “a violência
contra mulheres, não obstante incluir mulheres em todas as idades, exclui
homens em qualquer etapa da vida”.
A legislação atual pune criminalmente quem comete este tipo de delito e a
própria Lei Maria da Penha é apontada como um caminho a ser trilhado, pois
poderia ser utilizada subsidiariamente, no entanto, o debate é mais profundo.
A própria Lei Maria da Penha tem sido objeto de diversos estudos que apon-
tam suas fragilidades, bem como a ausência de efetividade em diversos aspectos,

942
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

principalmente aqueles que tratam da questão da violência contra a mulher antes


do cometimento de crimes. Como sabemos, a questão da violência de gênero é
estrutural, culturalmente e economicamente, de modo que uma legislação possui
limites claros na resolução da questão. Seguindo o pensamento de Pachukanis
(1988), o Direito, e nesse caso, a tipificação legal, na realidade são forma do capi-
tal, aperfeiçoa-se nos marcos da ficção da igualdade formal e da noção de sujeito
de direito consagradas pelo liberalismo (KASHIURA JÚNIOR, 2014).

5. Conclusão
A indústria pornográfica nos moldes capitalistas cumpre a função de refor-
çar a dominação e a exploração dos corpos femininos. A sexualidade feminina
permanece um tabu, a despeito do amplo mercado de exploração, que serve
apenas aos homens. Partindo desta perspectiva é que se tem utilizado a porno-
grafia da vingança para vitimizar mulheres e expô-las a situações de violência
moral e psicológica. A partir de então, compreende-se que a criação e aplicação
crua de instrumentos legais não contempla adequadamente esse tipo de viola-
ção. Para além da tipificação, precisamos observar outras questões de grande
relevância, como a proteção totalizante da mulher.
É necessário que, além dos avanços legislativos e jurídicos, progridamos na
luta pela libertação dos corpos femininos da dominação e exploração masculi-
na, que perpassa o enfrentamento ao capitalismo, considerado uma das bases
materiais para a manutenção do patriarcado. Acreditamos que, quando não
houver tamanha criminalização dos corpos e sexos femininos, os danos pela
exposição da intimidade, por mais que ainda se trate de prática ilícita, serão
menores e menos ultrajantes.
Portanto, a saída da tipificação penal por si não tem potencial de resol-
ver o contexto de violência contra a mulher. É preciso pensar novos mar-
cos econômicos, culturais e sociais, fundadas na articulação entre gênero
e classe, bem como na ruptura com o patriarcado, de modo recolocar o
debate do socialismo como caminho para a superação das desigualdades.
Sem a construção de uma hegemonia cultural nova, que realize a ruptura
com o modelo econômico e social atual, não conseguiremos, por meio da
tipificação ou da punibilidade, superar a violência estrutural fundada no
gênero e caminhar para a emancipação humana.

943
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

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945
Sistema Penitenciário e Capitalismo:
relações entre a sociedade que pune
e aquela que produz

Karízia Gabriela leite Cavalcante1


João Batista dos Santos Alves2
Ronaldo Moreira Maia Júnior3
Adriana Dias Moreira Pires4

1. Introdução
A forma de circulação do capital que passou dominar socialmente em mea-
dos do século XVIII é a do capital industrial ou de produção. Nessa circulação o
capital pode ser visualizado como um processo que gera dinheiro visando mais
dinheiro, e com o seu desenvolver, a exploração da força de trabalho, combina-
da com os meios de produção, gera a mercadoria que é vendida no mercado por

1 Aluna do 6º período do curso de direito, Universidade Federal do Semi-Árido - Ufersa, Membro do


Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – GEDIC, Membro do Centro de
Referência em Direitos Humanos do Semiárido – CRDH. Email: [email protected]. Tel:
(84) 9 9610-8654;
2 Aluno do 6º período do curso de direito, Universidade Federal do Semi-Árido - Ufersa, Membro do Grupo
de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – GEDIC, Membro do Centro de Referência
em Direitos Humanos do Semiárido – CRDH; [email protected]. Tel: (85) 9 9860-0225;
3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA, Especialista em
Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Mestrando em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: ronaldomaia4@
gmail.com. Tel: (84) 99616-6842;
4 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA, Especialista em
Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN,
Especialização em Direito Penal e Processo Penal (em andamento) pela Universidade Potiguar - UnP,
Membro do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email:
[email protected]. Tel: (84) 9 9661-2140.

947
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

seu proprietário, o capitalista, gerando um lucro. Nesse trâmite percebeu-se que


formas de castigo, como o suplício, colocado por Foucault, deixa de ser a saída
mais apropriada a ser seguida, passando a ser estabelecido de outra maneira, e
com isso cenas de corpos sendo puxados e desmembrados por cavalos e seus
membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas
ao vento deixaram de ser comuns, saindo da lógica da economia do poder.
Nesse cenário, a política criminal, que pode ser entendida como um conjun-
to de ações do governo para atenuar a criminalidade, podendo ser essa repres-
siva ou preventiva, pode ser usada como instrumento de realização de interes-
ses do grande capital. Seguindo com o desenvolvimento, apontamos as crises
no sistema penitenciário, com recortes de raça e classe, percebendo-se que há
uma tendência, que pode ser vislumbrada nos relatórios disponibilizados pelo
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), os dados colocados pelo Con-
selho Nacional de Justiça (CNJ), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) ou dos levantamentos do Ministério da Justiça ou do Conselho Nacio-
nal do Ministério Público (CNMP), por exemplo, tenta-se estabelecer um perfil
alvo dessa política repressiva.
Nesse limiar, encaminha-se o desenvolvimento da produção para o es-
tabelecimento de uma relação entre as formas de punição e o modelo eco-
nômico, culminando em uma política criminal, que possui um caráter de
higienização no meio social. Para alcançar os objetivos esperados deste tra-
balho, realizou-se uma pesquisa teórica através de um sistema constituído
por “fontes de papel”, com a averiguação bibliográfica por meio de pesquisas
fornecidas por instituições anteriormente citadas. A verificação documen-
tal, abarcou propostas legislativas como a proposta de emenda à constitui-
ção (PEC) 171/1993, consulta à própria constituição federal de 1988, que
serve como a base fundadora do Estado democrático de direito, assim como
artigos disponíveis nos veículos eletrônicos.

2. Política criminal brasileira e sistema penitenciário:


elementos constitutivos da punibilidade no Brasil
Marx (1848) coloca que a história da humanidade até o nosso atual momen-
to é a história da luta de classes, desde o homem livre ao escravo, patrício ou
pebleu na época do império romano, com a chegada idade média, as relações

948
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

eram entre os senhores feudos, vassalos, burgueses de corporação ofício. As


luzes da modernidade, que guiaram a novas descobertas, não foram capazes de
por um fim nesse motor que impulsiona a história, mas colocou novas classes
e configurou novas condições de opressão e de luta, que se sobrepuseram as
antigas. Essa nova classe, intitulada de burguesia, emerge dessas novas condi-
ções, e ela, para Marx (1848), exerceu um papel revolucionário, servindo para
espantar os fantasmas do velho mundo, colocando por terras as relações feudais
e seus senhores, tirando da relação familiar o seu comovente véu sentimental
e reduzindo tudo a dinheiro. Como isso, os burgueses, o capital e proletariado
iam se desenvolvendo de forma simultânea, configurando relações, que foram
se transpondo para a modernidade.
Para entendermos a política criminal e como ela se estrutura na sociedade,
faz-se necessário um resgate histórico da punição, mais especificamente quan-
do a punição passa a ser vigilância, entre os séculos XVII e XIX, fazendo com
que o exercício do poder de punir passe a ser no corpo social, o vigiar, e não
mais sobre o corpo social, que seria o punir (FOUCAULT, 1987). A figura da
prisão foi surgindo, passando a ser mais rentável, logo o ius puniendi, promovido
pelo Estado, passou a ser de executado de outra forma. Em contrapartida, esse
poder/dever necessita ser promovido, preservando-se as condições mínimas de
dignidade da pessoa humana.
Com isso, o corpo supliciado (FOUCAULT, 1987) através das práticas de
esquartejamento, amputação, a marca simbólica do rosto ou no ombro, sendo
exposto vivo ou morto, dado como espetáculo, foram ficando para trás. A san-
ção passa a ser a da vigilância, impedindo os crimes ou, caso seja inevitáveis,
encarcerando os seus autores. Foucault (1987) coloca que a polícia e justiça de-
vem andar juntas como duas ações complementares de um mesmo processo, a
polícia faz o papel de ação da sociedade sobre cada indivíduo e a justiça, protege
os direitos dos indivíduos contra a sociedade, visando que cada crime seja puni-
do. Nesse momento teria sido percebido, de acordo com a economia do poder,
mais eficaz e mais rentável o vigiar do que o punir.
A economia do poder de Foucault (1987) está relacionada com essa transi-
ção, ocorrendo quando o suplício penal passa a gerar mais uma produção exce-
dente e diferenciada de sofrimento do que uma punição em si e o vigiar se torna
um meio mais eficiente, fazendo com que, a reforma penal sob a ótica dessa eco-
nomia, passe a ser suspensão dos direitos do cidadão infrator. As conseqüências
disso, é que em um sistema em que tudo se atribui um valor de troca, a punição

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

poderia tornar-se uma forma de movimentar o processo do capital, gerando


meios de gerenciamento diferenciado da pobreza, través de políticas públicas
repressivas, por exemplo, realizando um recrudescimento do sistema penal.
O sistema capitalista tem suas bases lançadas na modernidade e se con-
cretiza ao longo dos anos, sendo estruturado, segundo Harvey (2011, p. 41-42)
através da circulação do capital e podendo ser visualizado como um processo,
que gera dinheiro visando mais dinheiro, e não como uma coisa determinada.
Nesse processo movimentado através dos capitalistas, que ocupam papéis di-
ferentes nessa movimentação, podendo ser os financistas, que se preocupam
em ganhar mais dinheiro, através dos juros; os comerciantes compram barato
e vendem caro; os proprietários cobram aluguéis; os rentistas que ganham di-
nheiro com royalties, por exemplo, ou próprio Estado, que pode figurar como
um capitalista, quando usa as receitas fiscais para investir em infraestruturas
que consequencie mais receitas em impostos. Com o desenvolver desse trâmi-
te, tem-se que a exploração da força de trabalho combinada com os meios de
produção, gera a mercadoria que é vendida no mercado por seu proprietário,
o capitalista, gerando um lucro.
Na lógica desse sistema a apropriação do objeto tanto aparece como estra-
nhamento, pois tanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode
possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital. Dessa for-
ma, quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, mais poderoso fica o
mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele
mesmo, seu mundo interior, pertencendo menos a si próprio. (MARX, 1844,
p.81), nesse limiar, Karl Marx coloca que Hegel percebeu

[...] a autocriação do homem como um processo, a objetificação como


perda do objeto, como alienação e transcendência dessa alienação, e,
por isso, perceber a natureza do trabalho, e conceber o homem objetivo
(verdadeiro, porque real) como o resultado de seu próprio trabalho
(MARX, 1844, p. 26).

O desemprego, também faz parte desse processo de alienação, remontando


aos primórdios do capitalismo, Marx traz essa questão em seus escritos, co-
locando que [...] a acumulação capitalista sempre produz, e na proporção de
sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relati-
vamente, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital,

950
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

tornando-se, desse modo, excedente (Marx, 1989, p. 731). Com isso, além do
estabelecimento dessa exploração da classe operária gera o mais valor, que nada
mais é do que a materialização dessa relação, esse sistema cria um exército in-
dustrial reserva, formado por essa massa de trabalhadores desempregados, for-
mada, de acordo com Trindade (2017) pelo crescimento da composição orgâni-
ca do capital em sua parte constante, ou seja, a inserção de máquinas, aparatos
tecnológicos, instalações, por exemplo, em detrimento da redução de sua parte
variável, que seria a força de trabalho.
Na conformação desse cenário essas pessoas desempregadas e de baixa ren-
da, são o alvo da política criminal. A conseqüência disso é a constante cri-
minalização da pobreza, consequenciando processos que possuem um caráter
devastador sobre as massa de trabalhadores sobrantes, como colocou Trindade
(2017), que não conseguem se inserir nos circuitos produtivos de mercadorias
ou ainda que vivenciam toda sorte de trabalhos precários e subemprego.

3. Dimensões da crise no sistema penitenciário brasileiro:


raça e classe
A consolidação do capitalismo trouxe para as relações humanas, dentre
outras coisas, a pauta do individualismo e as fortes desigualdades sociais, que
levam muitas vezes os indivíduos socialmente desprivilegiados a cometerem cri-
mes patrimoniais. Tal processo se reflete nos números trazidos pelo volume VI
do Ministério Público: Um Retrato (2017), dentre os quais, se observarmos a
região Nordeste, percebe-se que os crimes contra o patrimônio estão dentro
dos principais assuntos processuais dos inquéritos policiais recebidos na região,
correspondendo a 23, 4% do total; o que pode ser visualizado também nos pro-
cessos criminais que são recebidos, pois o seu volume supera os demais delitos,
como os crimes contra a vida, que possui uma marca de 13,6, enquanto os
patrimoniais alcançam 23,8%.
Nesse cenário, no qual os valores monetários do mercado, muitas vezes
suplantam os valores humanos de sociedade, percebemos algo que vem des-
de o progresso da moderna indústria, pois enquanto ela se desenvolvia, am-
pliava e aprofundava o antagonismo de classe entre burgueses e proletários,
marca da relação capital-trabalho, (MARX, 1871, p. 65) o poder do Estado
foi adquirindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

trabalho, de força pública organizada para a escravização social, de máquina


do despotismo de classe.
As propostas legislativas que rodeiam a sociedade, como a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) 171/1993, que tomou força no Congresso Nacio-
nal em 2015, visando diminuir a maioridade penal, por exemplo, é uma forma
de estabelecer uma política pública repressiva, visando resolver problemas de
criminalidade, que na verdade são sociais, estruturados na sociedade há déca-
das, senão séculos e que não serão resolvidos através de medidas como essa. Pois
se observar o perfil traçado dentro das prisões, percebemos que há um público
mais específico e através de dados disponibilizados pelo Ministério da Justiça
(2016), nota-se que ele é constituído de uma população majoritariamente negra
(64%), que não possui o ensino fundamental completo (51%) e estão na faixa
etária de 18 a 29 anos (55%).
As penitenciárias do Brasil possuem uma lógica de encarceramento e as
pessoas que ocupam as celas insalubres possuem raça, classe e CEP (Código
de Endereçamento Postal), de modo que há uma tendência para determinados
perfis e isso é retratado nos relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ,
2018). Pelas informações disponíveis, temos um total de 54,96% pessoas que
foram classificadas como pretos ou pardos, essa porcentagem se refere a 209.003
registros que estão no sistema, sendo que essa quantidade representam apenas
34,71% do total das pessoas que estão cadastradas. Na seção do relatório do
DPEN (2016), que trata sobre o perfil socio-demográfico das pessoas privadas
de liberdade no Brasil, percebe-se que há um diálogo com os dados disponibili-
zados pelo CNJ. A informação sobre a raça, cor ou etnia da população prisional
que estava disponível nesse relatório era para 493.145 pessoas, correspondendo
a 72% da população prisional total, o dobro do CNJ, de modo que é possível
estabelecer uma relação de proporcionalidade e identificar o quanto esses per-
centuais são aproximados. Com isso, partir da análise da amostra de pessoas,
sobre as quais foi possível obter dados acerca da raça, cor ou etnia, podemos
afirmar que 64% da população prisional é composta por pessoas negras.
O INFOPEN (2014, p. 6), em seu relatório, coloca que os problemas no
sistema penitenciário que se concretizam em nosso país, devem nos conduzir a
profundas reflexões, sobretudo em uma conjuntura em que o perfil das pessoas
presas é majoritariamente de jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa
renda. Diante disso nos questionamos sobre a criminalização da pobreza e nos
preocupamos com a emergência de um Estado penal concomitante ao desmonte

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

das políticas sociais do Welfare State, como coloca Löic Wacquant (1999),
que ao desenvolver seu pensamento, reflete sobre a adoção, praticamente
universal, dos princípios de "tolerância zero", que visa limpar as ruas, sendo eles
criados pelos Estados Unidos da América para intensificar seus mecanismos
de repressão à população marginalizada. Nesse limiar, o Estado, tendo se
convertido à ideologia do mercado total, vinda dos Estados Unidos, diminuem
suas prerrogativas na frente econômica e social, voltando-se para a necessidade
da ampliação e reforço de suas missões em matéria de "segurança", subitamente
relegada à mera dimensão criminal (WACQUANT, 1999, p. 04).
Além dos índices de encarceramento de sujeitos determinados, existe o
quadro de homicídios, da violência, também direcionada a um grupo especifi-
co. Com isso, de acordo com o IPEA, a vitimização por homicídio de jovens,
com idades entre 15 a 29 anos no país é fenômeno denunciado ao longo das
últimas décadas, mas que permanece sem a devida resposta em termos de
políticas públicas que efetivamente venham a enfrentar o problema. Os dados
de 2016 indicam o agravamento do quadro em boa parte do país: os jovens,
sobretudo os homens, seguem prematuramente perdendo as suas vidas. No
país, 33.590 jovens foram assassinados em 2016, sendo 94,6% do sexo mascu-
lino. A década 2006-2016, o país sofreu aumento de 23,3% nesses casos, com
destaque para a variação anual verificada em 2012 (9,6%) e 2016 (7,4%). No
período, destoa sem igual comparativo o caso do Rio Grande do Norte, com
elevação de 382,2% entre 2006 e 2016.
É o caso do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, ano base 2015,
que demonstrou que o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no
Brasil é 2,7 vezes maior que o de um jovem branco. Os negros, especialmente os
homens jovens negros, são o perfil mais frequente do homicídio no Brasil, sendo
muito mais vulneráveis à violência do que os jovens não negros. Por sua vez,
os negros são também as principais vítimas da ação letal das polícias e o perfil
predominante da população prisional do Brasil. Para que possamos reduzir a
violência letal no país, é necessário que esses dados sejam levados em considera-
ção e alvo de profunda reflexão. É com base em evidências como essas que po-
líticas eficientes de prevenção da violência devem ser desenhadas e focalizadas,
garantindo o efetivo direito à vida e à segurança da população negra no Brasil.
Com relação à violência letal, se houver um recorte entre os negros e não
negros, e como se eles vivessem em países completamente distintos. Em 2016,
por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e
2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa
entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que
a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não
negras. Ainda no relatório do IPEA, na seção das mortes relacionadas com as
“intervenções legais e operações de guerra” houve uma considerável diferença
entre os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade em 2016, que
registrou 1.374 casos de pessoas mortas em função de intervenções policiais, en-
quanto os dados publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com
base nos registros policiais, estimam ao menos 4.222 vítimas nesse mesmo ano.
Percebemos, portanto, que o encarceramento e o extermínio de jovens tem
vitimado milhares de pessoas todos os anos no Brasil, sendo isso influência da
ação do Estado, que volta-se prioritariamente para a política de repressão em
detrimento das políticas sociais. Assim, muitas das vítimas desse processo nun-
ca conheceram a face social do Estado, traduzida em garantia de direitos, como
de educação, lazer, saúde ou trabalho e renda. A realidade das populações mais
pobres no Brasil é de vivenciar a ação truculenta das polícias, reflexo de uma
política criminal de tolerância zero, voltadas ao encarceramento.

4. Sistema penitenciário e capitalismo: entre o


lucro e a punição
Em um primeiro momento, faz-se necessário, para entender os elementos
em questão, trabalharmos a relação entre o domínio econômico-político e
os instrumentos que asseguram a relação em prol da construção de um Esta-
do capitalista. Segundo Offe (1984), o mercado está continuamente usando
o Estado para alcançar legitimação de seus interesses, elemento importante
para ampliação da sua influência. A dominação política, na sociedade ca-
pitalista, oculta o aspecto da dominação de classe na medida que o Estado
escolhe determinada ações de políticas públicas em detrimento de outras
para favorecer o interesse do capital.
Com isso, o Estado torna-se um Estado capitalista, no entanto a própria
classe burguesa possui interesses diversificados, o que exige do Estado uma sele-
tividade de ações que busquem unificar e propagar os interesses dos capitalistas
em um contexto global, mesmo que em alguns momentos atinja os interesses

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

específicos de alguns capitalistas. Nessa perspectiva, o Estado funciona mais


como um agente regulador, desse modo, a seletividade estatal se evidencia nas
ações políticas de regulação dos fins capitalistas e repressão dos interesses con-
trários, conforme conclui Dieter (2007). Vale salientar que a regulação e repres-
são são elementos fundamentais, porém não suficientes para definir o Estado
como capitalista, o que torna necessário a comprovação empírica que as políti-
cas alternativas foram abandonadas.
Isto posto, camuflar o objetivo final das medidas estatais é uma condição
para que o poder do mercado sobre o Estado seja preservado e que continue
aparentando ser produto da vontade coletiva, culminando na ocultação da
dominação de classe. Como exemplo, cita-se a PEC nº 171, que visa dimi-
nuir a maioridade penal. Essa PEC é uma forma de estabelecer uma políti-
ca pública repressiva, visando resolver problemas de criminalidade, que na
verdade são sociais, estruturados na sociedade há décadas e que não serão
resolvidos com sua aprovação.
Além disso, propostas que visam a privatização do Sistema Penitenciário,
bem como a utilização de mão de obra carcerária como pena, gera uma série
de debates, tendo em vista que o Estado atua nos marcos do capital, a partir de
pressões econômicas que buscam reconfigurar, aprofundar e ampliar as fron-
teiras de exploração capitalista. Tornar todas as dimensões da vida humana
em mercadoria, inclusive a punibilidade, constitui um elemento que aprofunda
a crise do sistema penitenciário, pois se sustenta em uma cultura de repressão
social articulada com a exploração do trabalho em níveis precários.
Desse modo, essas relações não podem ser clarificadas, visto que provocaria
crise de credibilidade no sistema, tornando fundamental o discurso de inde-
pendência do Estado para que não se intensifique a luta de classes de forma
explícita, ou seja, objetivo geral se constitui na dominação política que promove
o ocultamento da dominação de classe.
Via de consequência, a ação estatal modifica a economia e a estrutura em
favor da burguesia, ao mesmo tempo em que vende o discurso de produto das
decisões democráticas. Desta maneira, a ação deve atingir o fim do mercado,
mas possuir uma alegação racional fundada em uma lógica fora da guerra de
classes, no entanto essa estrutura apresenta contradições o que provoca crises
de legitimação a serem combatidas pela via da repressão ou disciplina.
No Brasil, portanto, a pena é apontada como a única resposta do Estado
para o crime. Isto posto, a grande controvérsia da questão da legitimação da

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

pena esbarra na funcionalidade incompatível com materialidade da sua aplica-


ção, o que faz da sanção criminal incapaz resolver o problema da criminalidade.
Esse fato já corrobora com desautorização da intervenção penal pública.
Conforme a teoria unificada, a pena tem como escopo retribuir o crime e
prevenir futuros delitos. Diante disso, o pensamento majoritário manifesta-
-se no sentido de criticar a retribuição, visto que objetivo do Direito Penal
não é realizar vingança, mas proteger bens jurídicos, além disso a retribui-
ção fere o elemento democrático por não dialogar com o poder que deve
ser exercido em nome do povo. Já em relação a prevenção temos algumas
ramificações conceituais que indicam diversos tipos de prevenção, dentre
elas: prevenção especial e prevenção geral.
A prevenção especial divide-se em negativa (aquela que objetiva isolar o
criminoso da sociedade) ou positiva (aquela que busca a reeducação). Ambas
sofrem críticas, a primeira por considerar o criminoso uma patologia diante
de um corpo social saudável, o que desconsidera o crime como fato social. En-
quanto a segunda crítica, indica que a reeducação em ambiente que fere direitos
humanos básicos e a ressocialização pelo isolamento não passam de uma falácia
sem efetividade para atingir os objetivos que se propõem.
Essa construção, ao invés de proteger a sociedade civil, serve tão somente
para manutenção dos interesses do capital, na medida em que constituiu-se
numa relação direta entre as formas de punição e as demandas do modelo eco-
nômico, expressos em propostas de ampliação da exploração capitalista, como a
privatização do sistema penitenciário, que com avanço das políticas neoliberais,
o próprio Estado passa delegar ao mercado a efetivação da execução penal.
Enquanto isso, a prevenção geral negativa acredita que uma punição
dolorosa é elemento suficiente para que o criminoso não volte a cometer
delitos, o que não se constata ao se analisar os altos índices de reincidência
criminal, logo sendo considerado um pressuposto inconsistente e que tenta
justificar as péssimas condições dos presídios brasileiros, como algo aceitá-
vel. Já a prevenção geral positiva visa normalizar as relações sociais, uma
vez que a pena, nessa perspectiva trazida por Niklas Luhmann, mantém as
expectativas sociais (DIETER, 2007.). Desse modo, a aparente segurança
jurídica prevalece diante da proteção de direitos, posto que influencia mo-
ralmente o magistrado a condenar o réu em nome do bem-estar coletivo,
pois, em caso contrário, estaria provocando o desequilíbrio na ordem social
e o descrédito na intuição que deveria promover justiça.

956
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Diante disso, levando em conta o sopesamento de valores, observa-se


que o imediatismo da sanção penal prevalece sobre a garantia de direitos
fundamentais. Em virtude disso, esse fato corrobora com a perspectiva da
teoria crítica que entende o direito penal, como um instrumento de controle
social, consequentemente, de dominação de classe. Ocorre que a função
declarada de proteção de direitos ocupa um lugar subsidiário, quando na
verdade a função real é o controle social.
Assim, há uma relação entre as formas de punição e o modelo econômico,
sendo que isso vai depender da funcionalidade do condenado no sistema de
produção. Diante do forte discurso técnico-jurídico que busca esconder esse
elemento é necessário analisarmos a distribuição desigual dos meios de produ-
ção, política penal do Estado e a sujeição mediante o trabalho assalariado, como
evidencia Cirino dos Santos(1981), citado por Dieter (2007, pg. 41):

O objetivo real mais geral do sistema de justiça criminal (além da


aparência ideológica e da consciência honesta de seus agentes) é a
moralização da classe trabalhadora, através da inculcação de uma
‘legalidade de base’: o aprendizado das regras da propriedade, a
disciplina no trabalho produtivo, a estabilidade no emprego, na família,
etc. A utilidade complementar da constituição de uma ‘criminalidade
de repressão’ (localizada nas camadas oprimidas da sociedade e objeto
de reprodução institucional) é camuflar a criminalidade dos opressores
(abuso de poder político e econômico), com a tolerância das leis, a
indulgência, dos tribunais e a discrição da imprensa.

Diante disso, o padrão pós indústria é mantido, a partir do momento que


destina ao trabalho aqueles que se adequam as condições impostas pelo sistema
e as penitenciárias aqueles não são úteis. Desse modo, o verdadeiro horizonte da
prevenção especial é disciplinar a ideologia oficial, enquanto que a prevenção
geral preserva a ordem social fundada na relação entre o capital trabalho e a
retribuição determina pelo tempo prisão do indivíduo.
Assim sendo, a intervenção penal é seletiva e subliminar, o crime se consti-
tui somente com a punição dos historicamente oprimidos, desta maneira, cum-
prindo a verdadeira função de manutenção da distribuição desigual dos meios
de produção. Assim aqueles considerados inúteis ou indesejáveis são colocados
distantes da sociedade em condições exponencialmente piores, uma verdadeira
“gestão penal da pobreza” que deve ser escondida a todo custo.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Dessa forma, reproduz-se a relações sociais de dominação de classes e tem-


-se o Estado agindo como mantenedor e impulsionador das relações capita-
listas de produção, contribuindo para tornar a dimensão da punição social
como mercadoria, legitimada pela cultura da repressão e pela violência do
perpetrada pelo Estado. Sistema penitenciário e capitalismo, portanto, estão
imbricados, escolhendo seletivamente determinados setores sociais, conside-
rados vulneráveis, como objeto de exploração.

5. Conclusão
Com o passar dos anos houve uma evolução da forma de punir, configu-
rando-se a partir dos meios de materiais que estavam vigorando nos períodos
históricos determinados, vindo a culminar no sistema prisional que temos hoje.
A lógica estabelecida pelas prisões é a ditada pelo capitalismo, que pode ser
caracterizado como sendo um sistema pautado em crises cíclicas, que explora a
força de trabalho, visando lucro. Com isso, os trabalhadores são forçados a ven-
derem sua força de trabalho para os capitalistas e desse modo eles se alienam em
si mesmo, através da propriedade privada, que transforma os trabalhadores em
objeto. Nesse sistema o homem não reconhece o produto do seu trabalho, ou se
reconhece no próprio trabalho realizado, separando-se da sua própria condição
humana, e por conseqüência, animalizando-se.
Os sujeitos que não entram na dinâmica desse tramite configura o
exército reserva, que, de acordo com dados disponibilizados por relatórios
produzidos a nível nacional, tem uma maior tendência a realizar delitos
patrimoniais, ou se submetem a condições de subemprego, pois de acordo
com os dados pode-se traçar um perfil específico. Nesse limiar, percebe-
-se, dentro do sistema capitalista, meios de gerenciamento diferenciado da
pobreza, daqueles que não são absorvidos pela produção do capital, ocor-
rendo esse gerenciamento través de políticas públicas repressivas, fazendo
uma espécie de desmonte do estado de bem estar social, em detrimento da
consolidação de um estado penal.
Dados colocados pelo CNJ mostram que 72% da população prisional
é composta por negros e pardos, indo no mesmo limiar os do DEPEN,
afirmando que 64% desses sujeitos são negros, havendo essa diferença de-
vido os números de informações disponibilizadas durante a alimentação

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

do sistema serem distintas de cada instituição, mas podendo-se estabelecer


uma proporcionalidade entre eles. Logo, esse modelo punitivo, de colo-
car o sistema penal cada vez mais presente na vida social, deixando-o de
tratá-lo como ultima ratio, comprometendo com isso o desenvolvimento das
políticas sociais do Welfare State e gerando a tendência aumentar cada vez
mais a população carcerária, não resolvendo o problema da criminalidade
no país, que é estrutural e está estritamente interligado com as profundas
desigualdades sociais envolvidas no sistema capitalista.

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no Brasil contemporâneo. Serv. soc. soc, n. 129, p. 225-244, 2017.

960
Capítulo IX
Marxismo, Gênero e Raça
A responsabilização pelo cuidado dos
filhos e os impactos na vida das mulheres

Jakciane Simões dos Santos1


Thanúsia Hensel da Cunha Ferreira2

1. Introdução
A problemática aqui levantada, isto é, a responsabilização imposta social e
historicamente às mulheres de cuidar dos filhos, presume-se, traz implicações à
vida destas, implicações estas que podem se manifestar nas mais diversas esferas
da vida social, podendo ainda ser diferenciadas de acordo com a época e o local
a ser analisado em suas peculiaridades.
Atualmente, há um discurso em torno dessa questão no sentido de que a
mulher já não desempenha eminentemente o papel de cuidar dos filhos, do
marido e da casa, como também não mais existe a subordinação da mulher ou
a opressão desta pelo homem nas diversas esferas sociais, como havia na socie-
dade patriarcal. No entanto, os estudos sobre gênero apontam que a realidade
de muitas mulheres ainda está muito aquém do aparente, ressaltam ainda a
necessidade tanto de estudos sobre a temática, quanto da organização popular
das mulheres na luta contra as desigualdades de gênero (CISNE, 2012).
A vida cotidiana3 é permeada pela majoritária incidência de mães realizan-
do atividades tais como levar as crianças à escola, acompanhar a vida escolar
destas, levar a equipamentos de saúde para consulta, vacinação, entre outros

1 Discente do 8º semestre do Curso de Serviço Social da Faculdade do Vale do Jaguaribe – FVJ.


E-mail: [email protected].
2 Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Docente do
Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN. Docente do
Curso de Serviço Social da Faculdade do Vale do Jaguaribe – FVJ. E-mail: [email protected].
3 Precisamente, a partir do estágio supervisionado obrigatório do curso de Serviço Social no Colégio
Marista de Aracati/CE, surgiu a motivação para a transformação dessas observações em objeto de
análise presente nesta pesquisa.

963
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

procedimentos, cuidar da higiene pessoal e da socialização, ou, ainda, serem


elas alvos de críticas por deixarem de “realizar seu papel na vida das crianças”,
ao passo que os pais, nesses casos, nem sequer são citados/cobrados.
Cabe ainda citar a sobrecarga do trabalho doméstico, haja vista a dependên-
cia não só da criança, mas, muitas vezes, de um idoso ou de uma pessoa com
deficiência, havendo, nesta sociabilidade, uma tendência à naturalização de pa-
péis socialmente atribuídos às mulheres voltados para o cuidado (PEDREIRA,
2008). Dito isto, o estigma da culpabilização das famílias pelo bem-estar de seus
membros recai, primordialmente, às mulheres (MIOTO, 2010). Malgrado o que
foi citado, ainda, muitas enfrentam as duplas jornadas de trabalho.
Isso pode ser também apreendido por meio de pesquisas, com destaque para
a mais recente de âmbito nacional (IBGE, 2015), a qual aponta que, na maioria
das famílias, é da mulher a responsabilidade maior pelo cuidado dos filhos.
A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), realizada pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2015, aponta “Aspec-
tos dos Cuidados das Crianças de Menos de 04 Anos de Idade”, com análises
dos dados relevantes para a compreensão do objeto de estudo desta pesquisa.
No tópico “Características dos responsáveis por crianças de menos de 04
anos de idade”, a pesquisa verificou a condição dos responsáveis por crianças de
até 04 anos de idade. A maioria delas, 87,9%, tinha duas pessoas como respon-
sáveis. Dessas duas pessoas, analisou-se a primeira responsável pelas crianças e
83,8% delas tinham como responsáveis mulheres. Entre as regiões do país, esse
número foi maior no nordeste (IBGE, 2015).
Outro dado que chamou a atenção foi a estimativa da situação de ocupação
desses responsáveis pelas crianças, que mostra uma grande diferença na quan-
tidade de homens ocupados quando apontados como primeiros responsáveis
pelas crianças em relação às mulheres enquadradas nas mesmas características.

A estimativa da situação na ocupação mostrou que para 52,1% das


crianças de menos de 4 anos de idade a primeira pessoa responsável
por elas era ocupada na semana de referência – quando essa pessoa era
mulher, a proporção baixava para 45,0%, enquanto para os homens a
estimativa alcançava 89,0% (IBGE, 2015).

Diante do exposto, os dados e as análises realizadas pelo IBGE permitem


supor que, considerando a faixa etária das crianças participantes da

964
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

pesquisa, a mulher ainda é a principal responsável pelas crianças no interior


das famílias. Pode-se ainda conjeturar que a baixa taxa de ocupação dessas
mulheres informada pela pesquisa seja um dos impactos na vida delas,
causados por essa responsabilização.

2. Estado, políticas sociais e família: reforço ao papel


socialmente atribuído às mulheres

2.1. Definindo Estado e compreendendo o seu papel na


sociabilidade capitalista
Para conceituar o Estado burguês, Saes (1998) parte de uma correspondên-
cia entre o Estado e as relações de produção capitalistas. A correspondência diz
respeito à ideia de que a criação do Estado burguês não se configura meramente
como um resultado das relações de produção capitalista, mas como imprescin-
dível à reprodução desse sistema. “Um tipo particular de Estado – o burguês
– corresponde a um tipo particular de relações de produção - capitalistas -, na
medida em que só uma estrutura jurídico-política específica torna possível a
reprodução das relações de produção capitalistas” (SAES, 1998, p. 22).
Ianni (1976) enfatiza que “o Estado se apresenta como poder e violência
concentrados nas mãos dos representantes governamentais das classes domi-
nantes” (p. 123).
Lênin (1970), levando em consideração o pensamento de Engels e a tradição
marxista, revela:

O Estado é o produto e a manifestação de facto de as contradições


de classe serem inconciliáveis. O Estado aparece precisamente no
momento e na medida em que, objectivamente, as contradições
das classes não podem ser conciliadas. E inversamente: a existência
do Estado prova que as contradições das classes são inconciliáveis
(LÊNIN, 1970, p. 09, grifo do autor).

A existência do Estado, portanto, é consequência da existência de classes


sociais distintas e antagônicas. Sua essência tem fundamento na necessidade

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de uma esfera que incorpore a mediação entre as classes, visto que sem ela (a
esfera - o Estado) não há como haver conciliação entre burguesia e proletariado.
Cabe ressaltar que, para o autor, o Estado pertence à classe mais poderosa, à
classe dominante economicamente, tornando-se também a classe politicamen-
te hegemônica (LÊNIN, 1970).
De acordo com estudos acerca da teoria gramsciana, tem-se que

O pensador italiano observou que, de um lado, embora o Estado


prosseguisse com seu caráter classista, não era mais apenas o comitê
de negócios da burguesia: algumas demandas das classes subalternas
foram por ele incorporadas. De outro lado, Gramsci constata que o
monopólio da violência e a coerção não eram mais suficientes para
a manutenção da ordem social: fazia-se necessário organizar novas
formas de estabelecer o consenso, tarefa que passou a ser empreendida
pelo Estado, através da formulação e disseminação de um conjunto
de valores e normas políticas, sociais e culturais (VASCONCELOS;
SILVA; SCHMALLER, 2013, p. 84)

Corroborando com essa ideia, Simionatto (2001), ao tecer considerações


sobre o pensamento de Gramsci, afirma que, na contemporaneidade, o poder
estatal não mais é desempenhado apenas pela coerção (através de aparelhos
repressivos), mas também por uma esfera que desempenha importante papel
no consenso, a sociedade civil. Para ela, a união entre sociedade política e so-
ciedade civil - composição do Estado de acordo com Gramsci - caracterizam a
originalidade do pensamento do autor. Vale destacar a indissociabilidade dessas
duas esferas (VASCONCELOS; SILVA; SCHMALLER, 2013).
Nas palavras de Montaño e Duriguetto (2011), o Estado capitalista, a partir
de um enfoque marxista, é parte constituinte do sistema capitalista, construído
por esta ordem societária a partir de interesses específicos de determinada clas-
se social, a fim de garantir a permanência de características próprias do sistema
vigente. Isto é, sob o viés marxista, “o Estado é pensado como uma instituição
que faz parte de um sistema social mais amplo, em que estão presentes os inte-
resses de classes, determinado em última instância pelas relações de produção,
pela luta de classes, a partir das correlações de forças” (p. 140).
De acordo com os autores, o Estado desempenha hoje novas funções. Atre-
lado à função coercitiva, ele passa a se utilizar do consenso como forma de
manutenção da ordem e do sistema do capital a partir das demandas da classe

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

trabalhadora e por meio da difusão ideológica de que o aparelho estatal atende


aos interesses de todos.
A partir de tal consideração, pode-se afirmar que o Estado exerce funções
específicas de acordo com cada estágio do desenvolvimento do capitalismo.
Portanto, a falsa ideia de “neutralidade”, de “apolítico”, não existe quando pen-
samos o Estado de forma crítica.
Para Montaño e Duriguetto (2011), no regime de acumulação flexível4,
o Estado passa a sofrer influência do projeto neoliberal5. Em tal contexto,
sob forte influência da ideia de que a crise teria suas raízes nos excessivos
gastos do Estado com direitos sociais, é necessária uma reorganização deste
com o objetivo de “liberalizar – desimpedir, desregulamentar – os mercados”
e suprimir direitos conquistados historicamente pela classe trabalhadora, o
que configura não uma reforma estatal, mas uma verdadeira contra (reforma)
(MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011).

2.2. A desresponsabilização do Estado e a transferência de


responsabilidade para as famílias (Mulheres)
Para Mioto (2010), muito comumente, depara-se hoje com discursos os quais
alegam que a família tem passado por modificações, o que aponta para uma
heterogeneização de modelos familiares na atualidade, contudo permanece pre-
sente a expectativa por parte da sociedade em relação a tarefas e obrigações
delegadas histórica, social e legalmente a elas.
Segundo Alencar (2010), a família desempenha hoje papel central no âmbi-
to da sobrevivência material, pois é nela que os indivíduos procuram a resolução
para os problemas ocasionados pela fragilização da proteção social estatal.

4 “O atual Regime de Acumulação Flexível, conforme denominação de Harvey (1993), que se estende
a partir da nova fase de crise capitalista (manifestada inicialmente em 1973, com a crise do petróleo)
até os dias atuais, é resultado da confluência de diversas novas configurações que caracterizam um
renovado cenário do capitalismo mundial, o que demandará e permitirá ao capital promover uma
profunda reestruturação sistêmica” (MONTAÑO; DURIGUETTO, p. 180).
5 o “projeto/processo neoliberal” constitui a atual estratégia hegemônica de reestruturação geral do
capital – em face da crise, do avanço tecnocientífico e das lutas de classes que se desenvolvem no pós-
1970, e que se desdobra basicamente em três frentes: a ofensiva contra o trabalho (atingindo as leis
e direitos trabalhistas e as lutas sindicais e da esquerda) e as chamadas “reestruturação produtiva” e
“contra(reforma) do Estado” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011, p.193).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Dessa maneira, há o que a autora classifica como uma “tendência de privatiza-


ção da vida social brasileira” (ALENCAR, 2010, p. 62), isto é, a reprodução social
da classe trabalhadora vai progressivamente deixando de ser objeto de interven-
ção público, passando a compor o rol de responsabilidades da família. Isto porque,
o Estado burguês, de posse dos ideais neoliberais que apregoam um Estado enxuto
para o social, transfere de maneira exponencial sua responsabilidade de prover as
necessidades da população para a sociedade civil, diga-se para a família.
Campos (2015) dá conta de “um novo casamento” da política social
com a família, o que Carloto (2015) chama de “acirramento da perspectiva
familista nos moldes da proteção social da América Latina” (p. 182). O
período a que as autoras se referem está compreendido entre o início do
movimento de reestruturação produtiva, com a marca dos ideais neolibe-
rais, até os dias atuais (pós 1970).
No Brasil, o novo familismo (modelo em que o ônus maior recai sobre a fa-
mília e, diga-se, sobre a mulher) passa a caracterizar o foco das políticas sociais,
mais precisamente a partir dos anos 1990 pela influência dos ideais neoliberais
e de “mudanças histórico-estruturais”, o que marca a transferência de responsa-
bilidades do Estado para a família por meio dos programas e serviços sociais, ou
o “neofamilismo”, como caracterizam alguns teóricos.
De acordo com Pereira (2010), é em tal conjuntura global que se engendra o
“pluralismo de bem-estar”, como uma das estratégias neoliberais para a supera-
ção da crise do Estado de Bem-Estar Social, o que vem ocorrendo com grande
intervenção e orientações dos organismos internacionais, que veem na família
uma instância propulsora para a superação da pobreza (MARTINO, 2015).
Pereira (2010) alerta ainda para o fato de que existem posturas diversas entre os
países no tangente às políticas de proteção à família. No caso brasileiro, ao mesmo
tempo em que se tem um novo contexto no que diz respeito às políticas sociais
marcadas pela maior incidência de programas de transferência de renda, tem-se
também o surgimento de novos arranjos familiares, cabe destacar um grande nú-
mero de famílias chefiadas por mulheres. Tais conformações apontam para uma
maior responsabilização da família, sobretudo da mulher (MARTINO, 2015).
Nesse sentido, Martino (2015) observa que é consenso dentre estudiosos a
proposição de que a família passou por mudanças ao longo do tempo, por isso
há uma orientação quanto ao uso do substantivo “famílias” em vez de “família”,
denotando os vários arranjos familiares. De outro lado, tem-se, mais precisa-
mente a partir de 1990, a expansão dos Programas de Transferência de Renda

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

com foco na família, como é o caso do Programa Bolsa Família, sob o forte
argumento da necessidade de uma maior igualdade de gênero entre os sexos.
Afirma Zola (2015), sobre os programas de transferência de renda: a na-
turalização do papel da mulher como cuidadora é reproduzida no âmbito da
família, contudo é fortalecida por programas sociais, tais como o Programa
Bolsa Família por meio de suas condicionalidades. Para além disso, Martino
(2015) atenta para o fato de que tais programas são falhos ao não realizarem
uma negociação/divisão de funções no âmbito da família, ficando isto a
cargo dos próprios membros.
Carloto (2015) menciona a ausência de serviços públicos que visem o cuida-
do como um problema a ser enfrentado, trazendo uma análise sob três recortes:
gênero, classe e raça/etnia:

A insuficiência de serviços públicos na esfera dos cuidados penaliza mais


as mulheres de famílias mais empobrecidas, à medida que “atrapalha” a
inserção delas no mercado de trabalho, e aumenta o tempo de trabalho
(não remunerado), na reprodução dos membros da família e ainda
limita a cidadania feminina, à medida que inviabiliza sua inserção e
permanência qualitativa no mercado de trabalho e na participação de
decisões coletivas. Se associarmos a pobreza à condição de raça/etnia, no
caso das mulheres negras aumenta as dificuldades de inserção no mundo
do trabalho (CARLOTO, 2015, p. 186).

Para ela, a obrigação de cumprir as condicionalidades do Programa Bolsa Fa-


mília recai sobre a mulher, o que aumenta o tempo utilizado para o trabalho
doméstico em que se inclui a esfera dos cuidados. Assim, o trabalho realizado na
esfera privada, comumente invisibilizado, é de suma importância no contexto dos
programas familistas, haja vista que funcionam como base de sua sustentação.
Diante do exposto, não se pode desconsiderar os impactos que isso vem
ocasionando à vida das mulheres quando sua disponibilidade para a realização
de outras atividades se mostra reduzida. O tempo utilizado pelas mulheres
com vistas ao cumprimento das condições para receber a transferência
financeira garantida pelo Programa Bolsa Família, por exemplo, garante
a sobrecarga de funções e atividades. Isto dificulta a inserção da mulher
no mercado de trabalho e esta acaba por ficar dependente dos serviços
socioassistenciais, o que se mostra como uma contradição entre os objetivos
e resultados do próprio programa. No caso de descumprimento de tais

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

condições (principalmente as relacionadas ao cuidado, porque demandam,


muitas vezes, além de muito tempo, horários programados), as causas podem
estar atreladas à ausência de tempo (CARLOTO, 2015).
Com efeito,

Considerando que a família não é um bloco monolítico, e que, devido


a sua reestruturação ela passou a ser predominantemente gerida e
sustentada pelas mulheres, pergunta-se (fazendo coro com amplas vozes
feministas): quem, na família contemporânea, arcará com o encargo de cuidar
cotidianamente de crianças, enfermos, idosos debilitados, além de assumir
as responsabilidades de provisão e gestão do lar? Tudo leva a crer que se
está pensando na mulher, quando se requisita a participação da família
no esquema misto de bem-estar, pois era ela quem tradicionalmente
arcava com esse ônus. Ora, como a visão tradicional continua em pauta,
é das mulheres que se espera a renúncia das conquistas no campo do trabalho
e da cidadania social, pois se presume que o foco central de suas preocupações
continua sendo a casa, enquanto o do homem ainda é o local de trabalho
(PEREIRA, 2010, p. 38-39, grifo nosso).

Para Zola (2015), há hoje a necessidade de adaptação das políticas so-


ciais aos novos arranjos familiares. Por exemplo, essa necessidade se esten-
de ao problema da desigualdade de gênero expresso, dentre outras peculia-
ridades, pela dificuldade das famílias (mulheres) em conciliar trabalho na
esfera pública e privada.
Sobre o trabalho realizado na esfera privada e sua relação com o Estado
capitalista, preconiza Cisne (2012):

Sem trabalho doméstico não remunerado, o Estado capitalista teria que


arcar, por exemplo, com restaurantes, lavanderias e escolas públicas
em tempo integral em grande escala, de modo a atender à massa da
classe trabalhadora. Outra opção seria aumentar significativamente
o salário mínimo, de tal forma que um trabalhador pudesse pagar por
alguns serviços necessários à reprodução da sua força de trabalho.
Ambas as alternativas implicariam em um ônus significativo que afetaria
diretamente os lucros do capital (CISNE, 2012, p. 116, grifo nosso).

Conforme Oliveira (1976 apud Osterne, 2001), a divisão sexual do tra-


balho existente no âmbito da família pobre, em que o homem se apresenta

970
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

como provedor (gerador de valor de troca), enquanto a mulher se encarrega


do lar (produtora de valor de uso), é totalmente benéfica ao sistema capita-
lista. Isto porque é possível pagar um salário menor que o necessário para a
reprodução da força de trabalho.
Destarte, o trabalho doméstico (âmbito também permeado pela exploração
do trabalho), desempenhado majoritariamente por mulheres, é extremamente
funcional ao Estado capitalista, na medida em que garante a reprodução da
classe trabalhadora. É ele que mantém uma parcela de trabalhadores aptos para
a venda de sua força de trabalho, parcela esta constituída por trabalhadores
ativos e pelo exército industrial de reserva, além de possibilitar a sobrevivência
de futuros trabalhadores (crianças).

3. Gênero e divisão sexual do trabalho no contexto


do capitalismo: algumas considerações
Para a tradição marxista, a gênese da desigualdade entre homens e mulhe-
res, ou melhor, o fato de estas estarem subordinadas àqueles, tem como marco
a existência da propriedade privada. Haja vista que a mudança no quadro de
subordinação da mulher pelo homem depende da existência de uma nova so-
ciabilidade, a teoria social crítica de Marx muito tem a contribuir com a luta
feminista (CISNE, 2012).
As desigualdades de gênero são, de acordo com o que preceitua Cisne (2012),
fruto da contradição existente entre capital e trabalho que vem a desencadear
o que chamamos de “questão social”6.
Para Saffioti (1987), com a emergência do capitalismo, há a fusão de três sis-
temas de dominação-exploração, os quais se transformam em um só: “patriar-
cado-racismo-capitalismo”. Para ela, esse sistema é o responsável pela desigual-
dade entre homens e mulheres, de onde as classes dominantes tiram proveito.
Cisne e Santos (2018) também comungam da ideia de existência de um
sistema estruturante das desigualdades sociais composto pelas relações sociais
de sexo/gênero, raça/etnia e classe. Os três sistemas (sexo, raça/etnia, classe)

6 Para Iamamoto (2000), a questão social pode ser percebida “como o conjunto das expressões das
desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada
vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus
frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (IAMAMOTO, 2000, p. 27).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

possuem a mesma substância/essência e amplitude e não podem ser analisados


separadamente (SAFFIOTI, 1987; CISNE; SANTOS, 2018).

Em síntese, as classes sociais, a propriedade privada e a forma mercadoria


estruturam o capitalismo, as relações sociais de sexo, o patriarcado e as
relações sociais de raça, o racismo. Essas três relações sociais por serem
permeadas pela exploração da força de trabalho, são estruturantes da
totalidade da vida social, do sistema heteropatriarcal-racista-capitalista
(CISNE; SANTOS, 2018, p. 76).

Diante do exposto, pode-se compreender que, na sociabilidade capitalista-


-racista-patriarcal, o homem branco e burguês tem lugar de destaque e dispõe
de inúmeros privilégios, logo abaixo dele, numa perspectiva de hierarquia, tem-
-se o homem negro, a mulher branca e, por último, a mulher negra. Como se
pode perceber, a mulher ocupa um lugar de desprestígio social no contexto de
divisão de classes e, quando negra, as desigualdades se multiplicam.
A divisão sexual do trabalho recebe influência desse sistema, trazendo ca-
racterísticas diferenciadas à exploração da força de trabalho feminina, a qual
difere em alguns aspectos da masculina.
Hirata e Kergoat (2007) afirmam que os estudos sobre a divisão sexual do
trabalho tiveram maior impulso em decorrência do movimento feminista a par-
tir dos anos 1970 na França. Sobre esse contexto, mencionam as autoras:

Foi com a tomada de consciência de uma “opressão” específica que


teve início o movimento das mulheres: torna-se então coletivamente
“evidente” que uma enorme massa de trabalho é efetuada gratuitamente
pelas mulheres, que esse trabalho é invisível, que é realizado não para
elas mesmas, mas para outros, e sempre em nome da natureza, do amor e
do dever materno (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 597, grifo nosso).

A perspectiva de estudo das autoras em relação à referida temática está vol-


tada não somente para a constatação de existência das desigualdades de gênero,
mas se preocupam em analisar o surgimento de tais disparidades, isto é, dão
ênfase à compreensão do sistema (capitalista) cuja estrutura origina as desigual-
dades de gênero. Assim, na visão delas,

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social


decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa


forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a
designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera
reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções
com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.)
(HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599, grifo nosso).

Corroborando com o exposto, Cisne (2012) ressalta o caráter desigual com


que o capitalismo se utiliza da divisão sexual do trabalho, sendo esta, resultado
do patriarcado capitalista. O capitalismo, através da divisão de tarefas entre
homens e mulheres coloca a mulher em um local de desprestígio em relação aos
homens no mundo do trabalho e isto se dá através da educação sexista.
O lugar da mulher no mercado de trabalho é, portanto, visivelmente afetado pela
simbologia construída socialmente acerca dela e isto tem implicações diretas para a
manutenção do capitalismo. Por isso, Cisne (2012) alerta para o fato de que

É necessário perceber que a feminização do trabalho, explícita


numa análise crítica da divisão sexual do trabalho, implica em
determinações relevantes para a produção e para a reprodução do
capital, que, para tanto, desenvolve uma superexploração sobre o
trabalho e sobre as atividades desenvolvidas por mulheres, tanto
na esfera pública quanto privada. Na esfera privada, pela utilização/
responsabilização da mulher pela garantia da reprodução social, o que
possibilita a produção social ser realizada com um custo menor; na esfera
pública pela desvalorização, subordinação, exploração intensificada
(por exemplo, baixos salários e desprestígios presentes no mundo
produtivo) (2012, p. 112, grifo nosso).

Dessa forma, a imagem construída da mulher como dotada de dons e habi-


lidades consideradas naturalmente femininas acaba por descaracterizar o tra-
balho e desvalorizá-lo. Atrelada a essa desvalorização do trabalho feminino,
“a responsabilidade com o lar e com as (os) filhas (os) reduz o tempo livre das
mulheres para atividades políticas” (CISNE, 2012).
Bruschini (1994), ao realizar uma análise acerca dos fatores que levam as
mulheres à entrada massiva no mercado de trabalho e também dos principais
motivos que impedem tal inserção, afirma que a existência de filhos é o fator
com maior peso para a restrição de muitas mulheres ao âmbito doméstico:

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Mas é a presença de filhos o que mais interfere na participação feminina


no mercado de trabalho. A responsabilidade pela guarda, cuidado e
educação dos filhos na família e a insuficiência de equipamentos coletivos
como as creches limitam a saída da mulher para o trabalho remunerado,
sobretudo se os rendimentos obtidos são insuficientes para cobrir custos
com formas remuneradas de cuidado infantil. Contudo, quando a
necessidade econômica é tão premente que inviabiliza o exercício da
maternidade em tempo integral, como nas famílias muito pobres ou nas
chefiadas por mulheres, outros arranjos como a rede de parentesco ou
de vizinhança poderão ser acionados para olhar as crianças enquanto
a mãe vai trabalhar. O difícil equilíbrio entre atividades econômicas
e familiares, que se torna mais frágil ainda pela presença de crianças,
depende também do tipo de atividade econômica a absorver a
trabalhadora. Atividades formalizadas, com horários regulares de
trabalho e maior distanciamento entre a casa e o trabalho são fatores
que dificultam a conciliação de responsabilidades. A atividade informal,
na qual não há jornadas regulares de trabalho, o trabalho domiciliar
e o rural, ao contrário, costumam facilitar o arranjo necessário entre
família e trabalho, embora não haja acesso a garantias trabalhistas
(BRUSCHINI, 1994, p. 185-186).

Para Cisne (2012), inserir-se no mercado de trabalho não garantiu às


mulheres a sua emancipação. Estas continuam sendo responsabilizadas pe-
las atividades domésticas (dupla jornada de trabalho) e pelos desajustes fa-
miliares. Nesse sentido, “o Estado permanece desresponsabilizado ou sem
impor esse ônus ao capital” (2012, p. 120). Conclui-se, dessa forma, que “o
que se difunde hoje como conquista do mercado de trabalho pelas mulheres,
pode e deve ser também analisado como uma forma de estratégia do capital
para obter maiores lucros” (2012, p. 123).

4. O cuidar e seus impactos na vida das mulheres:


uma atribuição marcada pela desigualdade de gênero
O cuidar requer atenção e responsabilidades por parte do cuidador, o que
pode implicar, de maneira genérica, um dispêndio de tempo considerável e re-
núncia de outras atividades, projetos.
Na perspectiva de Tronto (1997), o cuidado é visto como

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Um tipo de responsabilidade e compromisso contínuos [...] cuidar é


assumir uma carga. Quando uma pessoa ou um grupo cuida de alguma
coisa ou de alguém, presumimos que estão dispostos a trabalhar, a se
sacrificar, a gastar dinheiro, a mostrar envolvimento emocional e a
despender energia em relação ao objeto de cuidados. Podemos, assim,
compreender afirmações como: ele só cuida (ele só se preocupa) de
ganhar dinheiro; ela cuida (com carinho) de sua mãe; esta sociedade não
cuida (não se preocupa com) dos sem-teto. À reclamação, você não tem
cuidado (você não se importa), respondemos mostrando alguma prova
de trabalho, sacrifício ou compromisso (TRONTO, 1997, p. 187-188).

Tronto (1994) ainda alerta para o fato de que “cuidar é necessariamente


relacional” (p. 188), pois há sempre um “objeto” a ser cuidado. Para ele, existem
dois tipos de cuidado: o “cuidado com” e o “cuidar de” que podem ser diferen-
ciados a partir do sujeito/objeto cuidado. O primeiro (cuidado com) refere-se a
“objetos menos concretos”, ao passo que o segundo (cuidar de) relaciona-se com
um “objeto específico”, de onde se extrai uma acepção moral.
Sobre o “cuidar de”, o autor reflete que: "Cuidar de’ envolve responder às
necessidades particulares, concretas, físicas, espirituais, intelectuais, psíquicas e
emocionais dos outros. O próprio ser, uma outra pessoa ou um grupo de outros,
podem fornecer cuidados” (TRONTO, 1994, p. 188).
Na sociabilidade vigente, é na família onde a atividade de cuidado encontra
ambiente privilegiado. Sendo esta a primeira instância responsável pelo cuidado
de seus membros. Tão somente quando ela falha, há intervenção do Estado ou
do mercado (TRONTO, 1994).
Trazendo um recorte de gênero para a discussão acerca dos tipos de cuidado,
Tronto (1994) assevera que

Cuidar é uma atividade regida pelo gênero tanto no âmbito do mercado


como na vida privada. As ocupações das mulheres são geralmente aquelas
que envolvem cuidados e elas realizam um montante desproporcional de
atividades de cuidado no ambiente doméstico privado. Para colocar a
questão claramente, os papéis tradicionais de gênero em nossa sociedade
implicam que os homens tenham "cuidado com" e as mulheres "cuidem
de" (TRONTO, 1994, p. 189).

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Guedes e Daros (2009) mostram que o ato de cuidar está diretamente vinculado
ao rol de atribuições femininas, as quais a sociedade determinou. Além disso, ressal-
tam que o cuidado acaba por trazer consequências à vida de quem se dispõe a cuidar.

Observa-se no senso comum afirmações em que a naturalização da


mulher como cuidadora vincula-se a diferentes lugares atribuídos a ela
na família: esposa ou companheira; filha, mãe, tia, avó. De qualquer
lugar, desde que seja mulher, cuidar do membro da família que está
adoecido e requer atenção constante ou ainda, cuidar dos familiares
para que atravessem uma fase de fragilidade a fim de preservar o direito
à vida, torna-se prioritário sobre os próprios projetos. Ao identificar-se
com o ato de cuidar, a mulher, muitas vezes, distancia-se da possibilidade
de outras escolhas, ou distancia-se dos próprios projetos. Cuidar do outro
torna-se o seu cotidiano (GUEDES; DAROS, 2009, p. 124-125).

De acordo com Pedreira (2008), “O cuidar não pode [...] ser romantizado
como um ato de abnegação total, pois seus custos são, algumas vezes, altos e
incluem correr determinados riscos” (PEDREIRA, 2008, p. 05).
Um ponto a ser destacado é a existência das redes de solidariedade de que se
utilizam as mulheres quando a elas é atribuído o ato de cuidar. Pedreira (2008) des-
taca esse aspecto no sentido de mostrar que os homens não compõem essas redes:

Apesar de a dimensão do cuidado ser sempre compartilhada entre


as redes de solidariedade estabelecidas por essas mulheres, estas não
reivindicam que os homens têm de cuidar. A figura do marido quase
nunca habita a rede de solidariedade das mulheres e ao relatarem
situações em que precisaram de apoio especial ou em atividades
cotidianas, os personagens centrais são a mãe, a sogra, as cunhadas e
as irmãs. A família do marido é, muitas vezes, um poderoso suporte nas
tarefas de cuidado, especialmente nos casos em que as mães moram com
as sogras (PEDREIRA, 2008, p. 06).

Badinter (1985) assevera que a ideia do sentimento de amor materno


presente nas mulheres começou a ser difundida no século XVIII e teve re-
lação com a mudança do lugar que as crianças ocupavam, outrora, nas fa-
mílias, passando estas a ocuparem o centro familiar. Para tanto, lançou-se
mão de uma ideologia sob um discurso impositivo pautado no mito do amor
materno (BADINTER, 1985).

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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Após 1760, abundam as publicações que recomendam às mães cuidar


pessoalmente dos filhos e lhes "ordenam" amamentá-los. Elas impõem, à
mulher, a obrigação de ser mãe antes de tudo, e engendram o mito que
continuará bem vivo duzentos anos mais tarde: o do instinto materno, ou
do amor espontâneo de toda mãe pelo filho (BADINTER, 1985, p. 145).

A nova mãe se mostra, portanto, como aquela que coloca os filhos como sua
razão de viver, com isso modifica até mesmo seus hábitos para que possa dar a
assistência de que seus filhos necessitam. Ao contrário, aquelas que não aderem
ao novo modelo de mãe passam a ser alvo de críticas e pré-julgamentos por
parte da sociedade, como também a se autoculpabilizarem por não cumprirem
o papel que a maternidade requer.
Com efeito, Badinter (1985) afirma que o novo modelo de mãe imposto na
modernidade é mais facilmente aderido pelas mulheres da classe burguesa, por
suas condições de vida serem favoráveis à disponibilidade de tempo necessário
ao cuidado dos filhos. Já para as mulheres pertencentes às classes pobres, o mito
da maternidade acarreta uma sobrecarga, haja vista que já são responsáveis por
diversas atividades no âmbito familiar, tais como trabalhar fora de casa como
forma de complementar a renda do esposo ou, ainda, ter que dar assistência a
uma grande quantidade de filhos.
A autora traz ainda uma reflexão acerca do grande dispêndio de tempo que
as mães doam aos filhos em detrimento da desresponsabilização dos pais (ho-
mens). Para ela, isso acarreta impactos negativos à vida das mulheres:

A mãe permanece a principal dispensadora de amor para o recém-


nascido e o bebê. É a ela, ou a um substituto feminino, que está
reservado o prazer ou o fardo de assumir esse primeiro corpo a corpo
vital para a criança. Embora a palavra "devotamento" já não esteja em
moda, a realidade que designa é um dado incontornável que todas as
mães conhecem perfeitamente. Amamentar, dar banho e comida, vigiar
os primeiros passos, consolar, cuidar, tranquilizar à noite... são gestos de
amor e de devotamento, mas são também sacrifícios que a mãe faz pelo
filho. O tempo e a energia que ela lhe dedica são também algo de que ela se
priva em favor do filho (BADINTER, 1985, p. 338, grifo nosso).

Apesar disso, as mulheres, de maneira geral, vêm questionando o dom natu-


ral imposto social e historicamente à figura da mãe. Em primeiro lugar, elas es-
tão solicitando maior atenção por parte de seus companheiros, a fim de dividir o

977
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

cuidado e a atenção dada aos filhos. Em segundo lugar, “As mulheres estão mais
sensíveis à dualidade dos papéis materno (centralizado na casa, no interior) e
feminino (voltado para o exterior)” (BADINTER, 1985, p. 339).
A partir de seus estudos sobre o mito do amor materno, Badinter (1985)
afirma que, considerando as atitudes maternas em diversos períodos históricos,
o instinto de mãe tão conhecido e reproduzido na sociedade não passa de um
mito. Isto porque não há um modelo de mãe universal, mas, o dom materno
pode se apresentar através de diversos sentimentos e atitudes as quais variam a
depender de cada mulher, podendo até mesmo não existir. Dessa forma, a pes-
quisadora conclui: “O amor materno não é inerente às mulheres. É ‘adicional"
(BADINTER, 1985, p. 360).
Scavone (2001) afirma que o sentimento moderno de maternidade se con-
solidou no contexto de industrialização. Nesse contexto, a massificação da en-
trada das mulheres no mundo do trabalho atrelada à permanência dos cuidados
dispensados aos filhos gerou as duplas jornadas de trabalho.
Ainda em relação às contribuições de Scavone (2001), no Brasil, as novas
configurações de família e de maternidade se caracterizam por um menor
número de filhos por mulher; famílias menores; maior número de famílias
monoparentais (chefiadas por mulheres) e maior participação de mulheres no
mercado de trabalho.

Entre o modelo reduzido de maternidade com uma variedade


crescente de tipos de mães (mães donas de casa, mães chefes-de-
família, mães “produção independente”, “casais igualitários”) e
as diversas soluções encontradas para os cuidados das crianças
(escolas com tempo integral, creches públicas, babás, escolinhas
especializadas, vizinhas que dão uma olhadinha, crianças entregues
a seus próprios cuidados, avós solícitos), a maternidade vai se
transformando, seguindo tanto as pressões demográficas - natalistas
ou controlistas - como as diferentes pressões feministas e os desejos
de cada mulher (SCAVONE, 2001, p. 56).

Apesar disso, enfatiza a autora, “A realização da maternidade ainda é um


dilema para as mulheres que querem seguir uma carreira profissional, já que
são elas que assumem a maioria das responsabilidades parentais” (SCAVO-
NE, 2001, p. 56).

978
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

5. Conclusão
O Estado tem sua parcela de contribuição para a realidade supracitada. Sob
a égide do sistema capitalista, desempenha funções primordiais para a reprodu-
ção da força de trabalho da classe trabalhadora e de incentivo à manutenção do
capital. O Estado capitalista, no contexto apresentado, não se mostra neutro,
mas a serviço da burguesia.
No caso brasileiro, o Estado, por meio das políticas e serviços sociais, con-
tribui para tal realidade na medida em que transfere progressivamente sua
responsabilidade às famílias, a qual recai sobre as mulheres, que desempe-
nham, em sua maioria, atividades domésticas e de cuidado de seus membros.
Os Programas de Transferência de Renda e suas condicionalidades, sobretudo
o Programa Bolsa Família, podem ser citados como exemplo de como o Esta-
do sobrecarrega as famílias (mulheres).
As desigualdades de gênero, especialmente no Brasil, são fruto de um pro-
cesso sócio-histórico marcado pelo patriarcado, sistema em que o homem se
mantém superior à mulher e por uma divisão sexual do trabalho desigual. Com
efeito, a família brasileira foi alicerçada sob essas bases, as quais permanecem
pujantes na sociedade contemporânea, como se pode constatar a partir do nú-
mero alarmante de feminicídios no Brasil e outras formas de violência contra a
mulher presentes no cotidiano em âmbito familiar e extrafamiliar.
Diante do exposto, as mulheres são hoje as principais responsáveis pelo cui-
dado de outros membros da família, a exemplo dos filhos, o qual se soma a uma
série de atividades social e historicamente imputadas a elas sob a falácia de que
possuem dons naturais para o cuidado.
O dispêndio de tempo necessário para a realização dessas atividades traz a so-
brecarga de trabalho que, por sua vez, ocasiona o desgaste físico e psicológico. A so-
brecarga torna-se ainda maior quando estas estão inseridas no mercado de trabalho.
Os impactos dessa responsabilização podem ainda ser conjeturados com o
afastamento das mulheres do mercado de trabalho, e, portanto, pela sua depen-
dência financeira ao marido, o que as coloca em uma situação de subordinação;
ou pela impossibilidade de prosseguir nos estudos.
As consequências da responsabilização das mulheres por atividades relacio-
nadas ao cuidado também podem atingir outras figuras femininas que tomam
para si tal responsabilidade na medida em que são vistas como figuras substitu-
tas às mães, realizando o cuidado temporário das crianças, por meio das redes

979
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de solidariedade. Isto é, mesmo quando a mulher tem a possibilidade de romper


com a naturalização do papel socialmente atribuído a ela, outras figuras femini-
nas a substituem, permanecendo a lógica da subalternização da mulher.

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982
As religiões de matriz africana no
banco dos réus: o Recurso extraordinário
494.601 e a tentativa de proibição do
abate religioso de animais no Brasil

Afonso Falcão de Almeida Filho1


Rayane Cristina de Andrade Gomes2

Introdução
O presente trabalho visa a analisar o Recurso Extraordinário (RE) nº
494.601, ação que discute a constitucionalidade do abate religioso de animais
no Brasil, articulando o caso como expressão do racismo estrutural3. O RE em
questão foi interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, MP/RS,
contra decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-RS) que negou pedido de de-
claração de inconstitucionalidade da Lei 12.131/20044. Entre outros argumen-

1 Graduando em direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), membro


do Grupo de Estudo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, GEDIC. Contato:
[email protected]
2 Mestranda pelo Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) e graduada em Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).
Membro do Grupo de Estudo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, GEDIC. Contato:
[email protected]
3 Para Sílvio Almeida, a estrutura que o racismo proporciona não afeta somente a sociedade em suas
relações exteriores, mas, sobretudo, sua formação interna, naturalizando formas históricas de dominação
e justificando a intervenção estatal sobre grupos subalternizados. O racismo não é anormal, é normal, não
devendo ser naturalizado, mas por compreender que ele constitui as relações no seu padrão de normalidade.
“Portanto, não é o racismo estranho à formação social de qualquer Estado capitalista, mas sim um fator
estrutural, que organiza as relações políticas e econômicas.(…) é possível dizer que países como Brasil,
África do Sul e EUA não são o que são apesar do racismo, mas são o que são graças ao racismo”.
4 Art. 2º - Para o exercício de cultos religiosos, cuja liturgia provém de religiões de matriz africana,
somente poderão ser utilizados animais destinados à alimentação humana, sem utilização de recursos
de crueldade para a sua morte.

983
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

tos, o MP sustenta que lei estadual trata de matéria de competência privativa da


União, além de restringir a exceção às religiões de matriz africana.
É de suma importância registrar que a tentativa da criminalização formal
das manifestações religiosas e culturais de matriz africana não é novidade. Ma-
nifestações culturais vinculadas a população negra, como samba, a capoeira e
o próprio candomblé, já foram considerados ilegais5. Entretanto, mesmo após
a Constituição de 1988, com a formalização do ideal de isonomia, práticas ex-
pressivas da negritude são alvos de ataques, que ocorrem, muitas vezes, por
meio do próprio direito.
O efeito prático, caso o RE seja julgado procedente, é a total proibição de
um dos atos litúrgicos mais importantes para as religiões de matriz africana – a
sacralização dos animais. Dito de outra forma, a ação que tramita no Supremo
Tribunal Federal, STF, tem um forte caráter anacrônico que pode colocar em
xeque a licitude do candomblé, ameaçando-o de voltar para a ilegalidade.
De maneira que para compreender esses avanços e retrocessos, especial-
mente no que diz respeito a questão racial, precisamos falar de racismo es-
trutural. O que reprercute em falar um elemento que faz parte da própria
dinâmica da vivência cotidiana, economia, política e subjetividade. Assim, o
caráter definidor do racismo no Brasil se consubstancia em uma verdadeira
racionalidade, ou seja, uma forma de compreensão das relações, sejam essas
conscientes ou inconscientes.
Assim, a abordagem buscará refletir, de maneira articulada, sobre esse pro-
cesso social. Ampara-se, portanto, em uma análise de dados de acordo com a
teoria social marxiana e marxista, especialmente no que se refere às categorias
totalidade, historicidade e dialética. Será utilizado o método materialista, histó-
rico, tratando-se de uma pesquisa qualitativa, e, como instrumentos metodoló-
gicos, utilizar-se-á pesquisa bibliográfica e documental.
Assim, no primeiro momento, será feita uma análise do RE, visando a evi-
denciar de onde vem, quais seus impactos para essas religiões, qual o estado que

5 De 1890 a 1937 a Capoeira foi “proibida” por lei. Cf. Código Penal da República dos Estados Unidos
do Brasil (Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890) Capítulo XIII - Dos vadios e capoeiras.
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela
denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir
lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo
temor de algum mal; Pena de prisão celular de dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96. Parágrafo
único. É considerado circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos
chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.

984
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

está esse recurso e o percurso metodológico, entendendo os pressupostos utili-


zados pelo MP para o recurso. Além disso, entender, sem esgotar, o debate do
racismo estrutural com o RE em questão, 494.601. Logo em seguida, buscar-se-á
entender as consequências que o RE proporciona para as religiões de matriz
africana, impactando, de forma negativa, na prática da crença, relacionando-o
ao racismo estrutural, compreendendo que esse debate está imbricado com o
modo de produção no regime capitalista.

O Recurso Extraordinário 494.601 e suas relações com


o racismo estrutural
Como dito anteriormente, a ação que tramita no STF tem como origem o
questionamento da constitucionalidade de uma lei do Rio Grande do Sul. A
ação direta de inconstitucionalidade nº 70010129690, impetrada pelo Ministé-
rio Público, MP, perante o Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul não foi procedente, sendo reconhecida a constitucionalida-
de da Lei. O MP, inconformado, ingressou com o RE 494.601, que questiona a
Lei Estadual nº 12.131/20046, que foi editada a fim de expandir o entendimento
de que o abate de animais pelas religiões de matrizes africana não é ilegal,
acrescentando ao artigo 2º da lei nº11.915/2003, dessa forma, o parágrafo único,
que versa o supracitado. Antes, havia a vedação parcial de sacrifício de ani-
mais e, junto a isso, a almejada supressão da garantia jurídica em questão, pode
acarretar, para as religiões, que têm o culto de natureza de abate, insegurança
jurídica ainda maior, uma vez que fica a mercê da boa vontade das autoridades
administrativas de cada caso concreto.
Nesse sentido, o Recurso Extraordinário, impetrado pelo MP/RS, alega a
infração da competência legislativa privativa da União, a ofensa à competência
da União para editar normas gerais de proteção do meio ambiente, além da
infração ao princípio da isonomia, já que outras religiões, que não têm matrizes
africanas, também utilizam de imolação e o parágrafo único questionado tem
seu texto bem restrito as religiões de matrizes africanas. Esses posicionamentos

6 Lei nº 12.131, de 22 de julho de 2004. (publicada no DOE nº 140, de 23 de julho de 2004) Acrescenta
parágrafo único ao artigo 2º da Lei nº 11.915, de 21 de maio de 2003, que institui o Código Estadual
de Proteção aos Animais, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em<www.al.rs.gov.
br/filerepository/replegis/arquivos/12.131.pdf> Acesso em 17 de dez. De 2018.

985
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

foram embasados, em sua maioria, em normas cogentes da Constituição, mes-


mo que, como será visto, de maneira equivocada.
Além disso, será analisado como esse Recurso é uma expressão do racismo
estrutural, delimitando esse conceito, que se apresenta em todos os espaços,
já que estrutura as relações sociais, compreendendo sua veemencia como uma
consequência direta da formação social brasileira, que foi forjada na superexplo-
ração do trabalho de negros escravizados. Nesse sentido, será resgatado exem-
plos históricos de manifestações culturais e religiosas que foram reprimidas por
meio do direito ao longo da história brasileira, a fim de entender a sua per-
sistência, para que a ação patrocinada pelo MP/RS seja entendida como uma
expressão do racismo estrutural que se perpetua.
Na sessão em questão, a sustentação oral do promotor de justiça do Rio
Grande do Sul Alexandre Saltz, a estabilidade da jurisprudência, consolidada
no artigo 926 do Código de Processo Civil, CPC, deve ser mantida, já que
em decisões anteriores o princípio da vedação da crueldade também esteve em
questão. A Corte, que teve como base a moldura protetiva dos direitos dos ani-
mais, já julgou no RE 153.531 sobre a Farra do boi, em Santa Catarina, SC, na
Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI, 1856, no Rio de Janeiro, e 2514 de
SC e sobre a vaquejada na ADI 4983, no Ceará. Para ele, esse é um dos argu-
mentos que faz com que o MP/RS conteste a decisão do TJ/RS.
Também em sua sustentação oral, ele ressaltou a “esquizofrenia legal”, ques-
tionando o porquê não seria cruel esse ato na manifestação religiosa, se fora
do cenário religioso seria cruel e, por fim, se a ausência do registro religioso
faz o ato legítimo. Além disso, ressalta-se a necessidade da adaptação a nova
realidade constitucional. Nesse sentido, conforme Sílvio Almeida7 (2018) iden-
tificamos nessas passagem as marcas do racismo estrutural. Entendendo que o
mesmo não se constitui de atos isolados de preconceitos, mas sim um processo
social de assujeitamento, em que as práticas, os discursos e a consciência dos ra-
cistas e dos que sofrem racismo são reproduzidas socialmente. Esse processo, por
sua vez, se reproduz sustentado pelo poder estatal, tanto por ações institucionais
diretas, como é o caso, quanto pela omissão sistemática diante da desigualdade
material sobre os negros.
O julgamento do RE 494.601 foi suspenso por pedido de vista do Ministro
Alexandre de Morais, pelo Supremo Tribunal Federal, tendo dois votos, am-

7 Cf. ALMEIDA, Sílvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

986
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

bos no sentido a negar o provimento do recurso. Os votos foram os do relator,


Marco Aurélio, e de Edson Fachin. O Ministério Público apontou inconstitu-
cionalidade formal em dois sentidos, o primeiro na perspectiva de apontar o
suposto desvio de competência exclusiva da União, no flanco criminal, além da
violação do artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, CF. Além disso, o de-
bate remete à legislação sobre Direito Ambiental, de competência concorrente
da União e dos Estados.
Porém, não houve a infração do artigo 22, inciso I8, da CF, no que remete a
competência privativa da União, no direito penal, já que o foco de alteração da
norma não é penal, por isso não se criou excludente de ilicitude, além de que é
necessário a definição de fatos puníveis e das sanções em caso de cometimento de
violações. Também não se pode falar em violação da competência da União para
editar normas de proteção ao meio ambiente, sobretudo no que tange a questão
do abate de animais com finalidade religiosa, frente o silêncio da União sobre9.
Além disso, no § 3º, do artigo 24, da CF, versa que “Inexistindo lei federal
sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para
atender a suas peculiaridades.”, por isso, não se pode considerar que houve ofensa
à competência da União para editar normas de proteção ao meio ambiente. Nessa
perspectiva, ambos os votos foram no sentido a não dar provimento ao recurso.
Contudo, em nenhum momento essa postura deve ser encarada com tran-
quilidade para os defensores das religiões de matriz africana. Pelo contrário.
Como explica Dimoulis10 (2009, p. 09) “Para quem não possui dons proféticos é
impossível saber se a Corte constitucional será mais ou menos liberal e sensível
aos direitos fundamentais do que os tribunais das instâncias inferiores ou o
próprio legislador”. Ou seja, não podemos nos levar por algumas decisões pro-
gressistas e que garantem direitos a grupos minoritários, pois basta que se mude

8 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual,
eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho
9 Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em
rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em
desacordo com a obtida.
10 DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMENTO, Daniel.
(Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 1,
p. 213-226. Foi utilizada a versão digital disponibilizada no sítio Academia.edu na paginação. Acesso
em 09 de setembro de 2017.

987
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

a composição dos ministros ou da conjuntura política para que, se questionados


novamente, revoguem a posição garantista anterior.
De forma que o debate sobre a extensão da proteção da decisão do STF
nesse case se confunde com a própria natureza do Direito. Como Pachukanis11
(1988, p.24) apresenta, “apenas a sociedade burguesa capitalista cria todas as
condições necessárias para que o momento jurídico esteja plenamente deter-
minado nas relações sociais”. Ou seja, todo o modelo de judiciário que temos
hoje foi forjado e aprimorado dentro de uma sociedade Capitalista e em um
modelo de Estado burguês, que encontrou na forma jurídica – em sua máxima
expressão no contrato e na igualdade formal – a maneira de extrair a mais valia
e estabelecer limites e controle para a manutenção dessa ordem.
E esse Estado Capitalista é, como vimos, atravessado pelo racismo estru-
tural. Ou seja, por mais que os tensionamentos históricos avançaram para ga-
rantir um mínimo de garantias para o livre exercício da fé de matriz afro, elas
persistem sendo frágeis e incompletas. Assim o são, pois não são o nervo central
da estrutura jurídica, qual seja, a proteção da propriedade e a manutenção do
monopólio da violência.
Ou seja, ainda em tramitação, espera-se que o julgamento mantenha a tradi-
ção da leitura liberal dos próprios direitos e garantias fundamentais, o que não
deve inspirar qualquer esmorecimento na luta dessas populações pela defesa da
livre manifestação de sua fé e religião, em todos os seus ritos.
A liberdade de crença, uma das mais tradicionais garantias fundamentais
liberais, é um dos pontos nevrálgicos da Ação. Contudo, a questão não recai
sobre qualquer crença, mas sobre aquelas que não são hegemônicas, revelando
a persistência da intolerância com as liturgias de matriz africana. Tal ação, se
deferida, levaria tais religiões à clandestinidade novamente, assim como nas dé-
cadas de 1930 e 1940, quando a polícia impedia a prática religiosa e apreendia
os elementos que remetiam a tal religião12.
A Economia, a política e a subjetividades são as principais dimensões que
constituem o racismo estrutural, que deve ser encarado como uma normalida-

11 PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria Geral do direito e marxismo. São Paulo: Editora
acadêmica, 1988.
12 Cf. BARBOSA, Henrique. Perseguição aos Terreiros de Candomblé na Década de 1920. Disponível
em <.https://bahia320102myblog.wordpress.com/perseguicao-aos-terreiros-de-candomble-na-decada-
de-1920/> Acesso em 26 de dez. de 2018.

988
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de, no sentido de constituir as relações nos padrões de normalidade, indepen-


dentemente da aceitação ou não13. Nesse sentido, há o pleno funcionamento
do sistema com a reprodução das desigualdades, com o constrangimento dos
indivíduos na dinâmica social, como é o caso em questão.
Mesmo que mais da metade da população brasileira se autodeclare negra,
em espaços de tomada de decisão, sujeitos construidos sob privilégios raciais,
estabelecidos historicamente, estão numericamente mais presentes. Para a su-
peração de tal situação, a luta pela construção de uma sociedade mais igualitá-
ria, materialmente, perpassa a luta contra o racismo na sua dimensão estrutural,
havendo, pois, a necessidade da abdicação de privilégios, para a devida descons-
trução. O entendimento do racismo de forma estrutural, reflete de forma que a
luta antirracista deve estar ligada a luta anticapitalista.
A estrutura da sociedade capitalista é permeada, portanto, por institutos ju-
rídicos e político estatais, compreendidos, pelo povo, como centrados no Estado.
Porém, não se entende que este também tem sua estrutura a partir das relações
do capital. Logo, Estado e capitalismo não deve ser dissociado. O desenvolver
jurídico e a política se destacam no capitalismo de tal forma que a busca por
melhores condições de vida não perpassa a transformação do capitalismo, mas
sim a tomada do poder econômico, a emancipação política, a igualdade formal14
A persistência da criminalização da cultura e da religião negra ajuda a en-
tender a ação patrocinada pelo Ministério Público. No decorrer da história do
Brasil, várias foram as criminalizações das expressões culturais negras, mencio-
nar-se-á algumas para que fique melhor ilustrada tal afirmação. Em meados do
século XX, a título de exemplo, o samba era considerado Contravenção Penal
por meio do Decreto Lei 3688/4, de vadiagem, sendo, portanto, proibido, por
infringir uma determinação legal.
A repressão penal, protagonizada, muitas vezes, pela força policial, tem
grande expressividade com o Código Penal de 189015, que incriminava

13 Cf. ALMEIDA, 2018.


14 Cf. PACHUKANIS, 2017.
15 Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar
a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo
as leis e regulamentos. Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans
e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis
ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica. Art. 158. Ministrar, ou
simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

curandeiro, feiticeiro, espíritas e cartomantes. Por meio de denúncias, ge-


ralmente, havia a repressão das religiões de matriz africana, subsidiada no
direito, já que essas eram associadas àquilo. Essas mesmas práticas de cri-
minalização são percebidas hoje. Modus operandi, algozes e repercussões
para os religiosos de matriz africana se matém quase que intactos: a cada
15 horas, uma queixa de discriminação por motivo religioso é registrada no
Brasil, a maioria contra credos afro-brasileiros16.
Portanto, é necessário pensar o racismo não por meio das normas e do direi-
to, porque se tende a entender, nessa perspectiva, como um problema cultural, e
este não é. Além disso, as teorias liberais não são capazes de explicar o racismo
nas relações materiais de produção, por isso, subsidia-se este artigo no método
marxista, entendendo o Estado e o Direito como ponto de inflexão e elementos
estruturais para perceber o movimento concreto.

Análise do julgamento no STF e seus impactos para as


religiões de matriz africana
A análise do julgamento se dará pela análise dos documentos do RE, pelos
votos já apresentados, com o fito de entender o que mais chamou atenção nes-
ses, qual posição, entre os ministros prevalece, tendo ciência das limitações e
da dialética do processo. Além disso, analisaremos a peça do Ministério Público
do Rio Grande do Sul, as visitas das organizações ao STF, os pronunciamentos
e demais elementos para entender quais resistências foram apresentadas, com
referência aos impactos que as religiões de matriz africana podem sofrer, se de-
ferido o pedido de inconstitucionalidade apresentado pelo Ministério Público.
Perceber que a questão tratada versa sobre intolerância religiosa, é também
visualizar que as diversas previsões legais apresentadas no Estatuto da Igualdade

preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do
denominado curandeiro. (BRASIL, 1890).
16 MOTTA,Aydano André; JACOBS, Cláudia Silva. País registra cada vez mais agressões e quebras de
terreiros. ABRIL. Disponível em<https://super.abril.com.br/sociedade/pais-registra-cada-vez-mais-
agressoes-e-quebras-de-terreiro/> Acesso em 26 de dez. de 2018.

990
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Racial, lei nº 12. 288/1017, além de legislações internacionais18 sobre o tema, não
se materializam, normalmente, também como consequência do racismo estru-
tural, que tem expressão nessa vertente.
Os votos de Marco Aurélio e de Edson Fachin foram no sentido a dar
provimento parcial ao RE, assentando a constitucionalidade do abate de
animais pelas religiões de matriz africana, pelo primeiro, e de visualizar a
inexistência de quaisquer que seja vício material na norma impugnada na
ação direta, pelo segundo. É necessário visualizar as limitações da luta an-
tirracista dentro do Estado capitalista e suas contradições, tão quanto sua
relação com a emancipação das pessoas negras.
Para a análise do RE, é importante pontuar que não há maus tratos
aos animais na prática de sacralização. A União de Tendas de Umbanda
e Candomblé do Brasil e o Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos
Afro-brasileiros do Rio Grande do Sul sustentam que “Ao contrário do
abate comercial, o abate religioso praticado por judeus, muçulmanos ou
fiéis das Religiões Afro-brasileiras utiliza um método que acarreta morte
instantânea e com o mínimo de dor – a degola”.
Portanto, é inconsistente a ideia de que a sacralização gera dor e sofri-
mento aos animais, tendo em vista a materialidade dos fatos. In casu, tanto
o promotor de justiça, quanto o procurador partilham do posicionamento
de tratamentos crueis aos animais, chegando a afirmar que só deve ser con-
siderada legítima e legal a manifestação religiosa que não ofenda o princípio
da vedação contra a crueldade19.
Dr. Hédio Silva Júnior fez sua sustentação oral pela União de Tendas de
Umbanda e Candomblé do Brasil e Conselho Estadual da Umbanda e do Culto
afro brasileiro do Rio Grande do Sul considerando uma hipocrisia, chegando

17 Art. 1o Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra
a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e
difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Art. 2º É dever do
Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro,
independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente
nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo
sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.
18 Convenção Europeia dos Direitos dos Homens Art. 9º Liberdade de pensamento, de consciência
e de religião
19 Cf. STF. Disponível em<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386393>
acesso em 26 de dez. de 2018.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

a chamar de escrizofrenia, a tentativa da proibição da sacralização. Ele pontua


que, em censos do Ministério da Agricultura, a cada segundo são abatidos 180
frangos, um porco e um boi pela indústria agrobusiness, sendo inconsistente esta
tentativa de tornar inconstitucional o abate da “galinha da macumba”.
Fica evidente, portanto, no caso concreto, a influência do modo de pro-
dução para a tomada de decisões no direito. No documentário “A carne é
fraca”, do Instituto Nina Rosa, se discute o avanço desenfreado da criação
de animais para o abate do consumo humano. No mundo, em 50 anos, o
rebanho bovino se multiplicou por cinco, sendo 6 bilhões de bovinos e 16
bilhões de aves, majoritariamente para a alimentação humana. É interes-
sante ressaltar que, em alguns Estados brasileiros, como Santa Catarina,
numericamente há mais animais do que pessoas, 6.383.286 habitantes , no
censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, de 2012, e
7,97 milhões de suínos, em 31 de dezembro de 201120.
Sob essa ótica, é sine qua non a percepção dos impactos que tal tentativa de
tornar inconstitucional a lei estadual em questão causará, se tiver deferimento,
como a perpetuação da estigmatização social, de maneira ainda mais veemente
dessas religiões. Historicamente, têm-se registros de ataques violentos às reli-
giões de matriz afro brasileiras, que nunca apresentaram boa aceitação social.
Nesse sentido, a Secretaria Estadual de Direitos Humanos do Rio de Janeiro,
criada em meados de 2017, registrou 12 casos, todos contra religiões de matriz
africana, 11 deles de invasão e atentado a casas de santo só na Baixada Flu-
minense. No país do “Chuta que é macumba”, a liberdade concreta nunca foi
plena, as religiões de matriz africana já foram associadas a feitiçaria, ou seja,
eram por meio de normas cogentes ilegais, Código Penal de 1890. O surgimento
desse debate no STF é preocupante, ao se entender que, se for deferido tal pe-
dido de inconstitucionalidade, a volta dessas religiões para a ilegalidade é fato.
Nesse sentido, deve-se pensar os limites e as contradições do direito ao avançar
nas conquistas das lutas concretas, com base no modo de produção capitalista.
Diante do exposto, é necessário perceber que quando essas sujeitos subalter-
nos lutam por direitos, o fazem por meio do judiciário, de institutos jurídicos,
reflexo da socialização capitalista, perpetuando a ideia do poder centralizado
no Estado, sem saber que este também tem suas estruturas no capitalismo. Essa
forma jurídica e política se impõe de tal maneira que a luta por transformar o

20 Dado referente à pesquisa do IBGE "Produção da Pecuária Nacional 2011".

992
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

direito não perpassa na de transformar o capitalismo e tomar o poder econômi-


co. Assim, a simples luta por mais direitos está imbricada com a da estruturação
do capitalismo, porque o direito possui a capacidade de estar vinculado a este.
Ao falar de emancipação política e de religião, em um Estado construído
aos moldes ocidentais, como o Brasil, deve-se perceber que aquela se dará para
os sujeitos religiosos quando o Estado se emancipar da religião (MARX, 2010,
p. 38). O que não implica em destituir os sujeitos de manifestarem suas cren-
ças, contudo apresenta-se como uma limitação a capacidade de uma doutrina
religiosa hegemônica tolher as demais. Assim, para seguir a leitura de Marx, a
emancipação política, mesmo que não represente a emancipação humana, é
fundamental para acumular nesse sentido21.
“O Estado cristão, por sua própria essência, não pode emancipar o ju-
deu; mas, arremata Bauer, o judeu, por sua própria essência, não pode ser
emancipado. Enquanto o Estado for cristão e o judeu judaico, ambos serão
igualmente incapazes tanto de conceder quanto de receber a emancipação”
(MARX, 2010, p. 34). Nesse sentido, com o racismo estrutural é impossí-
vel a emancipação dos sujeitos negros, da sua cultura e religião, no Estado
capitalista. Estudar o marxismo e o racismo é compreender que Estado e
Direito, são elementos estruturais, e, por isso, é fundamental para entender
o movimento material da realidade.
Assim, visualizar a reprodução do racismo por mecanismos de poder é en-
tender esse como uma relação social, dentro de uma lógica, que é a da repro-
dução do capitalismo. O Estado, como expressão das condições estruturais do
modo de produção capitalista, tem como ideologia o racismo, encarando essa
como a prática material, que forma a subjetividade social. Sendo assim, a eman-
cipação do sujeito negro não pode ser dada no Estado capitalista, pois a luta anti
racista deve está vinculada diretamente com a luta anti capitalista22.
Nessa perspectiva, com a monopolização dos meios de judicialização pelo
Estado, há a expressão do constrangimento social, porque a mesma justiça
que se busca para dirimir conflitos raciais é a que impetra uma ação que pode

21 “O limite da emancipação política fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de
se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado
ser capaz de ser um Estado livre [Freistaat, república] sem que o homem seja um homem livre”
(MARX, 2010, p. 38-39).
22 Cf. ALMEIDA, 2018.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

desembocar em uma nova clandestinidade das religiões de matriz africana,


se for deferida. Logo, mesmo que os votos dos ministros, que até agora foram
manifestadas, tenham sido no sentido de dar provimento parcial e desprovi-
mento ao RE, existe um constrangimento real da população negra. A sessão
foi suspensa porque o ministro Alexandre de Moraes pediu vista23 e aguarda
o prosseguimento do julgamento.

Conclusões
Vimos ao longo do trabalho que o debate sobre liberdades religiosas, típico
do espectro liberal, ainda está longe de ser pacífico no Brasil. E alguns fatores
concorrem para isso: a reprodução da dominação colonial, o racismo estrutural
e a orientação capitalista do Estado brasileiro se articulam para garantir a he-
gemonia branca nos espaços de poder. Uma das demonstrações desse domínio
se convalida na existência do Recurso Extraordinário ora analisado, que pode
colocar as religiões de matriz africana de volta ao patamar da ilegalidade, onde
passaram boa parte da história de nosso país.
As articulações entre os sistemas de opressão, em uma conjuntura de
avanço dos conservadorismos e de predominância da lógica da “democracia
racial” brasileira, sustentam os debates feitos, inclusive, pelas partes envolvi-
das no processo. O avanço legislativo conquistado por essas populações reli-
giosas no Rio Grande do Sul foi questionado pelo próprio “vigilante” da Lei:
o Ministério Público. A proteção animal, argumento chave do órgão minis-
terial, olvida-se, portanto, de conhecimento sobre as práticas de sacralização
nos terreiros e, somando-se a tradição racista brasileira, atribui a característi-
ca de brutalização dessa liturgia. Contudo, não dedica nenhuma ação de igual
equivalência aos abates comerciais, que comprometem, como visto ao longo
do trabalho, a saúde física dos animais.
De forma que apenas articulando a leitura das relações de hierarquização
estabelecidas em uma sociedade capitalista que pode-se entender por que a pro-
vocação sobre o abater é dedicada apenas a esses setores e não ao agrobusiness.
Por outro lado, a posição do Judiciário é de suspeita. Por mais que até agora

23 O objetivo desse mecanismo é possibilitar mais tempo para o estudo e análise do caso, antes do
proferimento do voto pelo ministro. Os prazos, muitas vezes, não são cumpridos e o julgamento
se prolonga.

994
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

o STF tenha se manifestado favorável a livre manifestação religiosa, isso não


implica em nenhuma garantia para as populações de terreiro.
Assim como a própria ineficiência do Estatuto da Igualdade Racial e da
própria Carta Magna, ou seja, dos instrumentos jurídicos. O Direito é lin-
guagem do Capital, é a forma como se organizam as relações de subordina-
ção dentro de uma sociedade mediada pelo acúmulo de valor. Concluímos
também que justamente por ser assim, a esfera jurídica é um importante
espaço de disputa, mas que não deve gerar ilusões. No sentido do debate
de emancipação política e humana, avançar nos mecanismos de reconhe-
cimento da legitimidade dos cultos de matriz afro é crucial para um país
marcado pela questão racial, mas não deve ser visto como a totalidade da
guerra, mas sim como um front.
A posição dos amigos da corte no processo também nos instigaram a apon-
tar para a necessidade dos grupos organizados intervirem nos debates da Su-
prema Corte. A luta política também encontra no meio jurídico um espaço por
excelência para se reproduzir. Assim, o balanço final que fazemos da ação até
o presente momento é que ela se convalida como uma expressão do que é o ra-
cismo estrutural no Brasil e que o risco de retorno para um status de ilegalidade
atinge todas as pessoas praticantes de cultos afrobrasileiros. O que dimensiona
a extensão do poder que se concentra nas onze ilhas que tomam assento no
Supremo Tribunal Federal.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Sílvio Luiz. Estado, direito e análise materialista do racismo. In:


Celso Naoto Kashiura Junior; Oswaldo Akamine Junior, Tarso de Melo. (Org.).
Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São
Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitária, 2015, v. , p. 747-767.

______, O que é racismo estrutural? 1ª ed. Belo Horizonte: Letramento, 2018

Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p. BRASIL.


Constituição(1988). Constituição da República Federativa do Brasil.

DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMENTO,


Daniel. (Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro:

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Lumen Juris, 2009, v. 1, p. 213-226. Foi utilizada a versão digital disponibilizada no


sítio Academia.edu na paginação. Acesso em 09 de setembro de 2017.

ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo:


Boitempo Editorial, 2012

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.

PACHUKANIS, Evguiéni B..Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo:


Boitempo Editorial, 2017.

STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO: 494.601/RS. Relator: Ministro Marco


Aurélio. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/
anexo/RE494601MMA.pdf>. Acesso em 10 de out. 2018.

STF. Recurso Extraordinário: 494.601/RS. Relator: Ministro Marco Aurélio.


Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/
RE494601EF.pdf>. Acesso em 10 de out. 2018.

996
Feminismo e marxismo:
abordagens concomitantemente essenciais

Dacielle da Silva Ingá1

Introdução
O rápido e eficiente desenvolvimento das forças produtivas nas últimas dé-
cadas aparenta equivaler ao sucesso e à plena evolução da espécie humana.
Contudo, basta observar a materialidade das relações, sejam elas de produção
ou não, para perceber a crescente barbárie social.
A configuração social da mulher escancara isto, pois a subjugação da
qual a mulher ainda é vítima, herança dos sistemas anteriores baseados na
propriedade privada, encontrou solo fértil no capitalismo. Sua posição na
sociedade capitalista é marginal até mesmo em termos de absorção pelas
relações de produção típicas desse modo de produção. A exploração da força
de trabalho feminina seja no âmbito produtivo ou reprodutivo, e as opres-
sões transversais herdadas de outros regimes de produção, intensificam o
sofrimento da vida das mulheres operárias.
À vista disso, o presente artigo tem como escopo retratar fundamentos do
feminismo marxista, os quais tornam a concomitância entre as abordagens fe-
minista e marxista essencial. Tendo em vista que a liberdade substantiva do
grupo mulherio só torna-se realizável com a extinção da sociedade de classes.

O progresso capitalista
O progresso capitalista, oriundo da ciência, tecnologia e produtividade acu-
muladas, alimenta a crença que a espécie humana chegou a seu ponto de evo-

1 Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, integrante do Grupo


de Estudos em Direito Crítico Marxismo e América Latina e militante do Partido dos Trabalhadores.
Endereço eletrônico para contato: [email protected].

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

lução máximo. Afinal de contas, atualmente, a humanidade tem a capacidade


potencial de solucionar problemas que, desde os primórdios, assombram a vida
das pessoas em toda a Terra, como a fome, as doenças, as catástrofes naturais e
as distâncias, as carências e os desejos.
Todavia, apesar dessa ciência, tecnologia e produtividade acumuladas, isto
é, do grande desenvolvimento das forças produtivas, os velhos problemas da hu-
manidade continuam existindo e novos problemas, causados pelo próprio pro-
gresso, também não encontram solução. Isto porque o progresso não beneficia
a todos: ao passo que a produtividade é uma força coletiva, ela é administrada
por poucos e pelo interesse de poucos (POMAR, 2016).
Desse modo, as contradições do capitalismo tornam-se a cada dia mais palpáveis.

Talvez o principal exemplo da contradição em que estamos imersos


seja a de que, num mundo em que todos poderiam trabalhar pouco
e viver bem, há bilhões obrigados a trabalhar duro em troca de uma
miséria, outro tanto é privado até mesmo de um emprego, enquanto uma
pequena minoria que não trabalha possui muito mais que o restante
somado. (POMAR, 2016, p. 9)

Assim, a forma mais desenvolvida, até hoje, das sociedades baseadas na


divisão, luta e exploração de classe, o capitalismo, encontra-se em seu desem-
penho mais agressivo.
Portanto, faz-se imprescindível dar outro uso social para todo o progresso acu-
mulado, a fim de libertar a humanidade do capitalismo, ou seja, da exploração e
opressão de classe para que, por fim, seja concluída a pré-história da humanidade.
Para tanto, é preciso que o proletariado moderno paute também o aniquila-
mento de outras formas de opressão, herdadas muitas vezes de outros regimes
sociais, para que o projeto de sociedade sem classes torne-se efetivamente justo.

A gênese da opressão de um sexo sobre o outro


Para entender as classes e, consequentemente, a dinâmica da luta de
classes atual, buscando superá-la, é crucial “compreender não apenas a di-
nâmica econômica restrita da exploração capitalista sobre a classe traba-
lhadora, mas compreender as particularidades e diferenças dos sujeitos que

998
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

compõem essa classe e como o capital se apropria das mesmas para gerar
mais lucro” (CISNE, 2015, p. 22).
A instituição da propriedade privada é intimamente ligada à gênese da
opressão que vitimiza as mulheres há milhares de anos. Todavia, com o
estabelecimento da propriedade privada, as classes antagônicas tornam-se
para além do sexo, comportando frações com características de ordem na-
tural diversa, como o sexo.
Contudo, primitivamente, a divisão do trabalho foi a divisão do trabalho no
ato sexual (MARX; ENGELS, 2007, p. 35), sendo a divisão sexual do trabalho
a primeira oposição de classe que se manifesta na história e coincide com o
desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher no casamento
conjugal, momento no qual surge o Patriarcado.
O Patriarcado “designa uma formação social em que os homens detêm o po-
der, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinô-
nimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres”. (DELPHY, 2009,
p. 174 apud CISNE, 2015, p. 62). Sua origem remota o surgimento da propriedade
privada, quando a subordinação feminina ganha uma base estruturante (CISNE,
2015, p. 62), pois após o estabelecimento da propriedade privada, marco inicial da
luta de classes, as formações sociais tornam-se predominantemente patriarcais,
pautadas na superioridade masculina e no direito do homem sobre a mulher, fi-
lhos (as), escravos e bens materiais ligados à produção (ENGELS, 1979).
Em síntese, “a classe operária tem dois sexos” (Souza-Lobo, 2011), do contrário
“como podemos explicar que as mulheres estão nos postos de trabalho mais preca-
rizados e mal remunerados?” (CISNE, 2015, p. 24). Negar a dimensão de sexo no
trabalho é negar a realidade em que vive a classe trabalhadora, em especial a das
mulheres, em sua relação com o Capital. Dessa forma, a classe como determinação
central não pode secundarizar os demais elementos estruturadores desse sujeito, do
mesmo modo que tais elementos não podem subtrair a classe (CISNE, 2015, p. 29).
Por conseguinte, em termos de estudos acerca da posição social da mulher, a análise
deve se dar de forma a localizar a mulher no modo de produção capitalista.

A posição social da mulher na sociedade capitalista


O modo capitalista de produção se caracteriza pela apropriação do exce-
dente de trabalho do produtor imediato, o trabalhador, por parte do capitalista,

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

sob a forma de mais-valia relativa. Essa forma pela qual o trabalho excedente
é arrancado do trabalhador é o que distingue o capitalismo dos outros tipos
econômicos da sociedade (MARX, 1988). Em função disso, a determinação da
força de trabalho enquanto mercadoria pressupõe a condição de homem livre
de seu proprietário e esta condição é requisito essencial para a realização histó-
rica desse modo de produção.
Todavia, consoante Saffioti (1976), há certas invariâncias no que tange à
absorção retardada e nunca plenamente realizada de determinados contingen-
tes populacionais pelas relações de produção típicas das sociedades capitalistas.
Em outras palavras, a condição de homem livre do trabalhador nas sociedades
competitivas não se efetiva, imediatamente, para todos os membros da socie-
dade. Isso é dado por fatores, sobreviventes de formações sociais já superadas
e, em contradição com a ordem social capitalista, de ordem natural, tais como
sexo e etnia. Estes interferem não apenas durante o período de constituição da
sociedade de classes, mas também no seu funcionamento, como válvulas de
escape, em dois sentidos gerais.
Primeiramente, no sentido de um aliviamento simulado de tensões sociais
geradas pelo modo capitalista de produção, como a crença que o capitalismo
libertou as mulheres, por exemplo, na qual o fator sexo alivia, aparentemente,
as tensões sociais provocadas pela ordem d’O Capital. Ademais, no sentido de
desviar da estrutura de classes a atenção da sociedade, especificamente dos tra-
balhadores, centrando-a nas características físicas que, inerentemente, certas
categorias possuem. A título de exemplo, diversas organizações sociais que não
reivindicam a superação do modelo de produção atual, ao focar suas exigências
nas opressões subalternas à exploração da força de trabalho.
Destarte, Saffioti expende que o trabalho constitui a via por excelência
para o desvendamento da verdadeira posição ocupada pelas categorias histó-
ricas na totalidade dialética da sociedade capitalista e das relações que elas
mantêm entre si e com o todo social no qual se inserem. Isto porque o tra-
balho é o momento da práxis cujo sintetiza as relações dos homens com a
natureza e dos homens entre si.
Nessa linha de raciocínio, a socióloga brasileira questiona por que determina-
do contingente populacional é marginalizado das relações de produção em virtu-
de de seu sexo ou de sua raça. A resposta, todavia, encontra-se nas próprias rela-
ções de produção, pois as categorias subalternas operam segundo as necessidades
e conveniências do sistema produtivo de bens e serviços (SAFFIOTI, 1976).

1000
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Desse modo, as invariâncias ou determinações simples provenientes da


operação de caracteres raciais e de sexo, enquanto marcas sociais que per-
mitem hierarquizar os membros de uma sociedade historicamente dada, não
contêm em si mesmas a explicação nem da totalidade na qual se inscrevem,
nem das determinações essenciais do sistema social em questão. Nem mesmo
do modo de operação de si próprias, tendo em vista que assumem diferentes
feições, de acordo com o tipo estrutural da sociedade e sua respectiva fase
de desenvolvimento. Prova disto são as diversas análises acerca da condi-
ção do negro e da mulher na sociedade brasileira atual que, entretanto, não
conseguem enxergar o modo de produção capitalista como fator central na
exploração e, por conseguinte, não oferecem aporte teórico suficiente para a
compreensão da ontologia das opressões.
Para mais, Heleieth Saffioti (1976) ainda propõe a tese na qual o sexo opera-
ria como fator de discriminação social enquanto perdurasse o modo de produção
baseado na apropriação privada dos meios de produção. Para ela, alguns desses
caracteres naturais isolados para operar como desvantagens sociais são passíveis
de anulação ao longo do tempo. Diante disso, ao passo que a sociedade acaba
por encontrar outros fatores que possam funcionar como marcas sociais, a fim
de justificar o desprestígio de outros setores demográficos, determinados carac-
teres naturais, como o sexo, não são passíveis de anulação ou abrandamento, o
que facilita seu funcionamento como desvantagem no processo de competição.
Estes caracteres não passíveis de mudança tornam-se cada vez mais onerosos,
na medida em que outras categorias fossem libertando-se de seus handicaps.
Por isso, com o passar dos vários modos de produção fundamentados na
propriedade privada e, por consequência, na opressão da mulher pelo homem,
esta opressão será superada à posteriori da dissolução daquela. Porém, não se
pretende afirmar que com a dissolução da propriedade privada será extinto de
maneira automática o Patriarcado, mas que conseguintemente à dissolução des-
ta, é papel indelegável da classe operária a busca pela libertação daquelas que
em tantas instâncias são exploradas e oprimidas: as mulheres.
Assim, a intrínseca relação trazida entre o modo de produção e a condição
da mulher na sociedade de classes é questão basilar de ordem explicativa quanto
à essencialidade da concomitância entre as abordagens feminista e marxista.
Em virtude disso, o feminismo marxista torna-se primordial por dois motivos
precípuos. O primeiro é que a perspectiva feminista marxista é a única que se
propõe a interpretar a ontologia da exploração e da opressão da mulher, ao partir

1001
de uma perspectiva totalizante frente ao Patriarcado, de forma a comportar
a estrutura econômica da sociedade como central no método investigativo.
O segundo decorre do primeiro, pois a investigação da realidade direciona à
estratégia de superação da sociedade de classes, o socialismo, o qual, para ser
substancialmente justo, deve visar destruir o Patriarcado, a fim de libertar a
mulher, a primeira a sofrer a escravidão, há milhares de anos, ao se tornar
fundamento de um modo de produção.
Como prova do antagonismo entre o Capital e a libertação substancial da
mulher basta observar muitas das reivindicações feministas, as quais questio-
nam pressupostos fundantes da exploração de uma classe sobre a outra.

O movimento feminista ao longo de sua história trouxe à tona discussões e


lutas que, obviamente estavam ligadas aos interesses das mulheres, mas que
também confrontavam diretamente o capital. Destacamos especialmente
a contestação à propriedade privada e à família nuclear burguesa e
monogâmica, condicionalidades fundamentais para a sustentabilidade do
capitalismo. Além disso, ressaltamos a denúncia à apropriação do corpo
da mulher e à exploração da força de trabalho feminina, tanto na esfera
produtiva, como reprodutiva (CISNE, 2015, p. 18).

Em resposta às mobilizações confrontantes com a ordem capitalista, o Capi-


tal tem-se revelado relativamente flexível, ao permitir e mesmo estimular mu-
danças institucionais. Assim, o sistema imprime soluções para os problemas,
o que gera sério limite no próprio Capital (SAFFIOTI, 1976), todavia, com
a alteração de conjuntura favorável a tanto, logo a mulher é posta de forma a
retornar à posição de subjugação.

A construção interdependente das abordagens em questão


Para além das questões de ordem explicativas, há ainda as justificativas com-
plementares comprovantes da importância de um feminismo marxista e de um
marxismo feminista. Dentre elas um fato supramencionado: os pais fundadores
do marxismo já estavam preocupados com a exploração e opressão decorrente
das relações sociais de sexo. Além disso, diversas referências marxistas são femi-
nistas, preocupadas em extinguir todo tipo de opressão.
No que concerne às contribuições dos denominados pais fundadores do
marxismo, Karl Marx e Friedrich Engels, para o debate sobre a opressão sofrida
pelas mulheres, na década de 1840 ambos já apontavam a necessidade de uma
economia doméstica comunal e da abolição da família como pré-requisito para
a libertação das mulheres (FRIZZO, 2018). Nas obras Situação da Classe Traba-
lhadora na Inglaterra (1844), A Ideologia Alemã (1845-46) e O Manifesto Comu-
nista (1848) a posição da mulher na sociedade burguesa é traçada. Entretanto,
somente com o domínio sobre as relações sociais do trabalho Engels disserta de
forma mais densa, em A origem da Família, da propriedade privada e do Estado
(1884), resgatada acima, baseado, inclusive, nos Cadernos Etnológicos escritos
por Marx entre 1880 e 1881.
Quanto às feministas marxistas indispensáveis à construção teórica do mar-
xismo Rosa Luxemburgo (1871-1919) é um dos principais nomes. Luxemburgo
escreveu extensa obra sobre a economia capitalista e sobre os problemas ineren-
tes à participação do proletariado no sistema político das sociedades burguesas,
entre elas Sozialreform oder Revolution? (1889), Massenstreik, Partei und Gewerks-
chaften (1906), Die Akkumulation des Kapitals (1913), Die Krise der Sozialde-
mokratie (1916) e a póstuma Die russische Revolution (1922).
Ademais, Clara Zetkin (1857-1933), considerada por muitos o principal nome
do marxismo feminista da virada do século XIX para o século XX, e Alexandra
Kollontai (1872-1953). Kollontai foi a única mulher a ocupar um cargo no primei-
ro escalão do governo após a Revolução de Outubro, como comissária do povo,
equivalente à ministra de Estado do Bem-Estar Social. (OLIVEIRA, 2013). Es-
creveu artigos sobre política, economia, feminismo e as seguintes novelas: Amor
Vermelho, Irmãs e O Amor de Três Gerações, além de outros livros: A Situação da
Classe Operária na Finlândia (1903), A Luta de Classes (1906), Primeiro Almana-
que Operário (1906), Base Social da Questão Feminina (1908), A Finlândia e o So-
cialismo (1907), Sociedade e Maternidade (?), Quem Precisa da Guerra? (?), A Classe
Operária e a Nova Moral (?), Comunismo e Família (1918), A Nova Mulher (1918),
A Moral Sexual (1921), Romance e Revolução (?) e A Oposição Operária (1921).
Portanto, na construção de ambas as abordagens em questão, marxista e fe-
minista, houve a preocupação com a questão da mulher na sociedade de classes.
A invalidade da crítica no qual o marxismo, assim como o feminismo marxis-
ta, é incapaz de explicar e apontar respostas a questões sociais que aparentam
não estar ligadas diretamente ao principio básico da luta de classes no campo
econômico, é desvelada. Essa crítica, ao passo que associa o marxismo a um

1003
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

economicismo tosco, corrobora, por ser infundado, para a percepção da rique-


za teórica e prática do arcabouço marxiano e marxista, tendo em vista que o
próprio método materialista dialético propõe-se a compreender a realidade para
além da aparência dos fenômenos.

Conclusão
Em síntese, o presente artigo retratou fundamentos que evidenciam a im-
portância de enxergar as relações sociais de sexo a partir do prisma feminista
marxista, como a gênese do Patriarcado, a posição social da mulher na so-
ciedade capitalista e a subalternidade das categorias, provenientes de fatores
de ordem natural, sobreviventes de formações sociais já superadas, frente à
determinação central da classe.
Desse modo, as relações sociais de sexo foram retratadas desde sua gênese,
em diversos de seus pontos, como no que concerne à divisão sexual do trabalho,
à divisão social do poder entre homens e mulheres e à categorização do sexo,
conceitos trabalhados por Cisne (2016).
É perceptível, posto isso, que ambas as abordagens enriquecem-se conco-
mitantemente. O método desenvolvido por Marx, materialismo histórico, pos-
sibilita a perspectiva totalizante acerca das relações de dominação e alienação
capitalistas, gerando análise critica completa acerca da condição da mulher,
ou seja, das estruturas que a explora e oprime. Já, o feminismo contribui para
o debate ao realçar as particularidades e singularidades das mulheres, pois a
percepção da classe trabalhadora em sua totalidade exige o conhecimento das
identidades da própria classe. Em resumo, os fundamentos teóricos políticos do
feminismo são uma contribuição indispensável ao marxismo.
Em suma, faz-se imprescindível ratificar a concomitância entre feminismo
e marxismo, objeto de estudo do presente artigo, a fim de provocar a com-
preensão totalizante da realidade, da ontologia da exploração e da opressão, e
a conscientização, mobilização e organização dos sujeitos revolucionários, em
prol de um projeto societário substancialmente justo e igualitário. Afinal, as
liberdades individualizadas são importantes, todavia, somente com a percepção,
compreensão e transformação das relações sociais estruturantes as relações an-
tagônicas serão superadas.

1004
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

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1006
Interlocuções entre o transfeminismo e o
marxismo: uma análise a partir da inserção
da mulher trans no mundo do trabalho

Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes1


Dandara da Costa Rocha2
Ronaldo Moreira Maia Júnior3

Introdução
A reestruturação do capitalismo contemporâneo, frente as suas constantes
crises, precariza cada vez mais as condições de trabalho da classe trabalhadora.
Esse crescente cenário de exploração e dominação torna-se ainda mais intenso
nas populações em situação de marginalidade social, de maneira que se percebe
o aumento do número de trabalhadores no mercado informal.
A população transgênero brasileira que historicamente vive em uma con-
dição de total subalternidade, tem suas experiências e vidas atravessadas pela
super-exploração do capital. Essa exploração é concretizada através do extermí-
nio em massa que essa população está sujeita, este processo está intimamente
relacionado ao exercício da prostituição.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Membra do Grupo
de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC, Secretária Nacional da Rede
para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano. Email: [email protected]. Tel: (88)
99619-0686.
2 Graduanda em Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) E-mail:
[email protected] Telefone: (84) 99856-2015.
3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA, Especialista em
Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Mestrando em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Membro do
Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina - GEDIC. Email: ronaldomaia4@
gmail.com. Tel: (84) 99616-6842.

1007
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Isto posto, o presente artigo tem como intento demostrar que a condição de se-
gregação das pessoas trans brasileiras é resultado de um conjunto de opressões, tendo
como basilar a exploração capitalista, sendo inequívoco que a teoria e prática trans-
feminista devem estar intimamente ligadas à teoria marxista e ao método materialis-
ta histórico dialético. A análise perpassará à consubstancialidade entre as categorias
sexo, classe e raça, apontando que a condição de exploração das pessoas trans está
visceralmente relacionada com a exploração capitalista e segue os seus interesses.
A pesquisa caracteriza-se por ser uma abordagem qualitativa, a partir do
método materialista-histórico-dialético, tendo como metodologias a pesquisa
documental e bibliográfica, consulta a dados estatísticos, relatórios institucio-
nais, sejam governamentais ou produzidos pela sociedade civil, além de análise
da legislação pertinente ao tema.

Entre o trasnfeminismo e o marxismo: bases teóricas


para pensar a questão social da população T no Brasil
O feminismo possui variadas vertentes e perspectivas teórico-políticas que foram
construídas e modificadas ao longo da história da luta de classes e da luta das mu-
lheres. Durante muito tempo, as mulheres que participavam da construção teórica
e da luta política feminista eram as mulheres brancas, heterossexuais, cisgêneras e
burguesas, formando uma identidade universal para as mulheres.
Essa mulher universal, que constitui o feminismo liberal e mainstream, apon-
ta para a sua falha em analisar as categorias raça e classe frente ao debate acerca
das relações de sexo. O século XX foi palco para o surgimento de inúmeras ver-
tentes e debates feministas, entre elas, o feminismo negro, o feminismo lésbico
e o ainda incipiente transfeminismo. Esses feminismos contemporâneos surgem
através do questionamento sobre o sujeito central da luta feminista, vemos, as-
sim, o surgimento de novas feminilidades e a construção de novas identidades
reivindicadoras da luta feminista.
Se outrora as mulheres negras, trabalhadoras, lésbicas e trans estiveram fora
da construção do feminismo, hoje elas lutam para construir teorias e práticas
inclusivas e libertadoras que tenham como norte a emancipação de todas as
mulheres e, portanto, a emancipação da humanidade.
O primeiro antagonismo de classes que surgiu na história relaciona-se com
o antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e, por conseguinte, a

1008
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

primeira opressão de classes coincide com a opressão do homem sobre a mulher


(ENGELS, 2016). Por consequência, a instauração da propriedade privada e a
subordinação das mulheres aos homens foram dois processos que ocorreram
simultaneamente. Esta máxima aponta não apenas para a forte ligação entre as
opressões de classe, sexo e raça, mas também para capacidade da teoria social
marxista trazer resposta para tais processos de violência e exploração.
Através dessa abordagem, pode-se afirmar que o marxismo, através do mé-
todo materialista histórico dialético, não só apontou para a necessidade de se
debater as opressões específicas, como também tem a capacidade de superá-las.  
Tem se tornado cada vez mais frequente dentro do campo teórico a constru-
ção de pensamentos e estudos de gênero voltados ao subjetivismo e ao identita-
rismo. Esses estudos, frutos das teorias pós-modernas e pós-estruturalistas, têm
se detido de forma intensa ao estudo da cultura e dos símbolos e têm colocado
de lado as categorias de raça e classe. Portanto, apesar de se sustentarem sob
a égide da intersecção, não conseguem fazer leituras totalizantes da realidade
e muitas das vezes descentralizam a sujeita mulher do centro desses estudos.
Essas pesquisas e reflexões prendem-se ao campo das ideias, acreditando que
a realidade é fruto das teorias, esquecendo que, na verdade, a consciência e os
pensamentos são frutos de relações sociais pré-existentes.
Não é a consciência que determina o ser dos homens, ao invés disso,
é homem enquanto ser social que determina suas ideias e pensamentos
(MARX, 2008). Vemos, portanto, que não são as ideias que constroem a
realidade, pelo contrário, é a realidade social que o sujeito está inserido que
constrói suas ideias (CISNE, 2018).
Devemos reconhecer a importância da cultura e da educação na manuten-
ção da sociedade patriarcal-racista-capitalista, todavia devemos perceber que
elas são fundadas sob o modo de produção. Dito isto, vemos que as ideias domi-
nantes e a cultura são fundadas a partir da estrutura econômica da sociedade
burguesa. Necessitamos, portanto, que dentro dos estudos de gênero e dentro
das vertentes feministas a condição da mulher seja vista como central e, assim,
devemos fazer uso da consubstancialidade como forma de análise da realidade
dessas sujeitas no campo social.
Compreendemos que as relações sociais de sexo, raça e classe são antagôni-
cas e estruturantes, pois determinam materialmente a exploração do trabalho,
através da divisão de classe e da divisão racial e sexual do trabalho (CISNE,
2018). Logo, não há como analisar de maneira precisa o processo de exploração

1009
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

que os corpos femininos sofrem, desde a barbárie até a civilização, sem que
usemos as categorias sexo, raça e classe para se fazer uma inspeção totalizante
do problema. Entendemos, assim, que as relações sociais são construídas através
dos conflitos e processos de exploração dos grupos e classes antagônicas, e por
isso, aponta-se para à condição estruturante de tais relações.
A categorias de classe, raça e sexo não apenas advém das relações so-
ciais existentes, como as constitui, e também são basilares na exploração do
trabalho. Destarte, para que se crie uma teoria e prática capazes de superar
tais conflitos e processos de exploração e que desemboque na construção de
uma nova sociedade anticapitalista, deve-se pautar estudos que extrapolem as
dimensões meramente analíticas e descritivas, mas que apontem para ações
coletivas e políticas que transformem de maneira substancial a vida dos sujei-
tos e sujeitas que estão na luta.
Considerando-se, pois, que a exploração no mundo do trabalho é uma das
bases de sustentação do quadro de extrema vulnerabilidade da população trans
brasileira, se faz indispensável para a construção de um transfeminismo capaz
de emancipar todas as mulheres trans e não-trans, que essa teoria e prática
seja construída sob as categorias da teoria social marxista. Pois esta, tem como
objeto a sociedade burguesa e como objetivo central à superação desta, afim de
se construir um novo modelo de sociedade onde não exista nenhuma forma de
exploração ou opressão (CISNE, 2005).
O transfeminismo surge como um suspiro de liberdade de uma população
que historicamente foi colocada na margem das sociedades ocidentais, onde as
categorias sexo e gênero estão fortemente imbricadas, estando separadas apenas
no campo teórico e filosófico. De acordo com Jaqueline de Jesus (2014, p.10), “o
transfeminismo é uma categoria do feminismo que surge como uma resposta à
falha do feminismo de base biológica em reconhecer plenamente o gênero como
uma categoria distinta do sexo”.
A percepção do gênero como algo dado, natural e imutável, junto a in-
capacidade de reconhece-lo como uma construção biopsicossocial alheia ao
sexo biológico, sustenta o processo de patologização e marginalização dos
corpos e identidades trans e das sexualidades não-heterossexuais. Sendo
assim, a noção de que as pessoas trans são anormais ou doentes não decorre
da natureza das identidades trans, porém da ideia de que o gênero é natural,
biológico e factual (JESUS, 2014).

1010
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Segundo o relatório de 2017 do Grupo Gay da Bahia (GGB), o Brasil é o país


que mais mata e discrimina sujeitos e sujeitas LGBT no mundo, seja através da
violência física ou das violências verbal, simbólica e institucional. As relações
sociais e as instituições que delas advém, sustentam um quadro de total exter-
mínio e perseguição dos corpos tidos como contra hegemônicos, aqueles que
fogem das normas cisgêneras e heterossexuais, culminando em uma realidade
profundamente violenta e hostil para esses sujeitos e sujeitas.
Por conseguinte, a população trans experimenta uma realidade hostil e vio-
lenta, estampada em uma expectativa de vida que não passa de 32 anos e um
quadro de exposição à prostituição elevado. De acordo com a ANTRA, 90%
da população de travestis e transexuais encontra-se na prostituição, esta como
um condicionante social e um limitante das capacidades de desenvolvimento
social dessas sujeitas.
Essa difícil realidade foi palco de processos de resistência e luta que mar-
caram a história da militância LGBT brasileira, culminando em um afrouxa-
mento das barreiras e limitações impostas pelas relações de sexo, classe e raça
à população T. Em vista disso, essa população, mesmo que maneira incipiente,
começou a alcançar espaços e lugares antes não ocupados, o que permitiu a
chegada de alguns sujeitos e sujeitas à instituições de ensino superior.
Percebemos que acesso à educação é usado como um instrumento de luta e
de transformação social pela população T, que através desse mecanismo ques-
tiona e reconstrói sua realidade e experiência social. Esse decurso, propiciou a
construção de pesquisas, teorias e reflexões dentro das universidades brasileiras
que objetivam analisar e descrever a realidade vivenciada pela população trans
brasileira e superá-la.  O transfeminismo, portanto, surge no seio da resistência
LGBT frente as suas violações e serve como base potencializadora e organiza-
dora de suas lutas e ações coletivas.
O transfeminismo, portanto, é um movimento intelectual e político que
contribui de maneira significativa para desconstrução da binariedade de gênero
e, assim, da dicotomia homem/pênis e mulher/vagina. Aponta, ainda, para a
necessidade de rompermos com as concepções essencialistas acerca das identi-
dades e sexualidades e compreende que o movimento trans é aberto para todos
que queiram participar, inclusive pessoas cis (JESUS & ALVES, 2010).
Essa incipiente epistemologia feminista surge questionando o sujeito polí-
tico central do feminismo de base cisgênero, rompendo com o essencialismo
biológico imposto as mulheridades e identidades femininas e acrescentando

1011
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

conflitos até então não estudados e questionados. Portanto, agenda feminista


trans surgiu para ampliar a concepção de sujeito central do feminismo, acres-
centando à luta todas as experiências trans e cis na outrora invisibilizadas
(JESUS & ALVES, 2010).
Vê-se, assim, que essa linha de pensamento feminista tem como intuito a
busca e realização da emancipação humana, não negando identidades, ao invés
disso, as incluindo no campo de pensamento e luta. O feminismo trans abrange
como sujeitos políticos, segundo JESUS (2014, p.19): “homens e mulheres trans-
gênero; mulheres cisgênero histerectomizadas e/ ou mastectomizadas; homens
cisgênero orquiectomizados e/ ou “emasculados”; e casais heterossexuais com
práticas e papéis afetivossexuais divergentes dos tradicionalmente atribuídos,
entre outras pessoas.”
O debate da prostituição, por vezes, torna-se central e desafiador, posto que
essa condição de exploração dos corpos das mulheres trans e travestis, também
é formadora de suas identidades e subjetividades. Nota-se, que o mesmo proces-
so que desumaniza e explora essas sujeitas, também financia suas transições e
necessidades básicas de sobrevivência e ainda permite que esses corpos abjetos
experimentem a dimensão do prazer e da sexualidade.
A discussão acerca da prostituição de sujeitas T, não deve se prender as
concepções moralistas e religiosas, devendo ser levada em consideração a reali-
dade hostil e condicionante que a sociedade burguesa-patriarcal-racista impõe
a essas sujeitas. Destarte, não devemos cair no debate de criminalização ainda
mais intensa dessa prática, no entanto, analisar de que forma esse fato social se
constrói e como o capitalismo o alimenta e sustenta, visto que a prostituição é
integrante do capitalismo (PATEMAN, 1988).
Por conseguinte, a prostituição assim como o casamento, são formas cir-
culação do capital e manutenção da propriedade privada em que enxergamos
uma nítido processo de subordinação das mulheres aos homens. As duas são,
portanto, caminhos sociais para os homens terem acesso sexual aos corpos das
mulheres (PATEMAN, 1988). Em ambas, percebemos a nítida relação entre as
relações de sexo e classe, não havendo, assim, como debate-las separadamente,
sem que percebamos suas intersecções e novelos.
Deve-se salientar, que o contrato de prostituição não possui apenas bases
econômicas, mas está diretamente ligado ao processo de subordinação dos
corpos das mulheres aos homens. Essa subordinação civil é um problema

1012
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

eminentemente político e não moral, logo se torna central o debate acerca da


lei do direito sexual masculino (PATEMAN, 1988).
Esse grande novelo formado pelas opressões estruturais, desvela a neces-
sidade de que os feminismos consigam fazer leituras totalizantes das realida-
des experimentadas pelas mulheres, para que, assim, a agenda feminista tenha
como eixo central a superação da sociedade burguesa e a construção de uma
sociedade livre de quaisquer relações de opressão e exploração.
Isto posto, o transfeminismo deve trazer para o cerne seus de debates e refle-
xões à luta de classes e suas implicações sobre a vida dos sujeitos e sujeitas trans,
uma vez que o simples debate subjetivista e identitário não consegue se desvin-
cular da exploração do trabalho posta pelo mundo capitalista. Dessa maneira,
esse feminismo deve trazer, junto ao debate da não subordinação morfológica
do gênero ao sexo, como esse corpos são construídos e condicionados dentro de
um sistema de exploração capitalista.

O submundo do trabalho: entre o ser trans e o ser mercadoria


A sociedade burguesa é fundada sob a lógica binária de gênero, onde existe a
dicotomia homem/pênis e mulher/vagina. Essa divisão sexual binária é imposta
como natural, factual e imutável, e é através dela que todas as relações e insti-
tuições são fundadas, inclusive o mercado laboral.
Portanto, toda a organização do mercado de trabalho é feita sobre essa di-
visão, os corpos que se encaixam na dicotomia homem/pênis e mulher/vagina
são tidos como inteligíveis (BENTO, 2012). No entanto, as experiências trans
não conseguem se enquadrar nessa divisão binária imposta pela cisgeneridade,
ao contrário, as experiências trans são incapazes de se enquadrar nessa lógica e
construção binária e limitante.
De acordo com Berenice Bento (2012, p.2657): “As performatividades de
gênero que se articulam fora dessa amarração são postas às margens, analisadas
como identidades transtornadas, anormais, psicóticas, aberrações da natureza,
coisas esquisitas.” Isto posto, o incompatibilidade das experiências trans com os
padrões de identidade impostos pela sociedade burguesa as tornam vítimas da
estigmatização e as colocam em uma condição de subalternidade.
A transfobia e os processos de marginalização são vivenciados desde de cedo pela
população T, muitos sujeitos após o início de suas transições são expulsos de seus

1013
lares e famílias, sofrendo a negação e rejeição do afeto e dos laços familiares. Esse
processo familiar é apenas o início de um encadeamento de violações de direitos e
garantias da população transgênero, esta tem o exercício dos direitos à saúde, autode-
terminação, trabalho digno e formal e cidadania sistematicamente violados.
Além disso, ocorre uma imensa evasão escolar desses sujeitos, em consequ-
ência da incapacidade do Estado em reconhecer suas identidades dentro das
instituições de ensino e também da forte violência que esses sujeitos sofrem pelo
convívio social. A negação do uso do nome e do banheiro que se identificam são
apenas pequenos exemplos dos desafios e violências enfrentados pela população
trans brasileira, essas adversidades impossibilitam que essa população conclua
sua formação educacional e as condiciona aos mais baixos níveis de formação.
Percebemos, que a baixa escolaridade impossibilita a capacitação da popula-
ção trans para o mercado de trabalho formal e a coloca à margem dessa relação
social, o que agrava bastante a condição de marginalidade que essa popula-
ção enfrenta no Brasil. Junto ao baixa formação educacional, vemos também
a impossibilidade dos corpos trans serem absorvidos pelo mercado de trabalho
formal, pois tais experiências são lidas como patológicas e por isso são excluídas
imediatamente dos processos seletivos.
Essa incompatibilidade se torna nítida já nos processos seletivos, onde mui-
tas pessoas T, por não possuírem seus documentos oficiais retificados, passam
pelo constrangimento de apresentar documentos discordantes dos seus corpos
e identidade de gênero. Desta maneira, esses sujeitos são excluídos do mercado
formal de trabalho e submetidos as condições precárias do mercado informal, o
que os leva a ocupar os lugares mais baixos do sistema de exploração capitalista.
Na atualidade, cerca de 90% da população de mulheres trans e travestis,
segundo dados da ANTRA, se encontra na prostituição. Esses dados materiali-
zam todo o encadeamento de violações e negações que essa população enfrenta
e apresenta a prostituição como um dos poucos meios de trabalho e sobrevivên-
cia disponíveis para ela. A prostituição, é portanto, um condicionante social
imposto pela sociedade patriarcal burguesa às vidas e experiências das sujeitas
trans, representando não somente um sistema de exploração, mas também de
subordinação dos corpos femininos aos homens e as suas vontades.
Através da história do contrato sexual, a prostituição pode ser encarada
como um problema referente aos homens, está ligada ao porquê dos homens
exigirem que os corpos das mulheres sejam vendidos no mercado capitalista.
Por conseguinte, a prostituição está diretamente ligado ao exercício do direito
sexual masculino, sendo ela um dos meios pelos quais os homens têm acesso
garantido aos corpos das mulheres (PATEMAN, 1988).
Esse estado de total exposição à prostituição é decisivo para a situação de
marginalidade que as sujeitas trans se encontram e está intrinsecamente ligado
a baixa expectativa de vida que elas possuem. Nos dias que correm, as mulheres
trans e travestis brasileiras possuem uma expectativa de vida inferior a 32 anos,
segundo a ANTRA. Essa expectativa de vida é menor que a metade da expec-
tativa de vida de um brasileiro médio que é de 75,8 anos, segundo dados de 2016
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
As prostitutas são lidas, portanto, como fonte da sujeira e da imoralidade e
por isso são facilmente assassinadas e violentadas (PATEMAN, 1988). Dessa
forma, sejam sujeitas trans ou cis, as prostitutas não podem ser encaradas como
qualquer outra mulher que trabalha, pois sua posição é ainda mais incerta e se
encontra na extremidade inferior do mercado (PATEMAN, 1988).
A divisão sexual do trabalho e a binariedade que sustenta a sociedade con-
temporânea está diretamente associada ao processo de extermínio que a po-
pulação de mulheres trans e travestis passam atualmente no Brasil. Segundo
Pateman, a história do contrato sexual evidencia que a construção patriarcal
da diferença entre a masculinidade e a feminilidade são a diferença política
entre liberdade e submissão, e que é através do controle sexual que os homens
afirmam suas masculinidades (PATEMAN, 1988).
Isto posto, a prostituição é uma condição bastante hostil para todas as mulhe-
res, sejam elas trans ou cis (não-trans). Todavia, as mulheres T, além da misoginia
estrutural do capitalismo patriarcal, também enfrentam a transfobia de forma
intensa que as submetem a um processo de coisificação específico e as tornam
totalmente descartáveis. Diferentemente das mulheres cis, que já conseguiram o
reconhecimento por parte do Estado da sua condição de violência e subordina-
ção, as mulheres trans se quer conseguem ter suas identidades reconhecidas.
Não há no Brasil nenhuma legislação específica para o combate da transfo-
bia, não existindo, assim, dados governamentais que ratifiquem os altos índices
de violência contra a população T ou, especificamente, contra população de
mulheres trans e travestis. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), por exemplo,
não deixa claro se também atua na proteção da população T, o que deixa tal
proteção refém da discricionariedade do Estado e das delegacias especializadas.
Essa incapacidade do Estado de proteger essa população, junto ao aprofun-
damento da hegemonia do capitalismo contemporâneo colocam essas sujeitas

1015
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

numa condição extrema de exploração e subordinação. Portanto, para vencer


esse quadro de violência, se faz necessário que a teoria e prática transfeminista
sejam construídas com o aparato das categorias marxistas para que assim pos-
sam apontar para ações coletivas capazes de superar essa situação.

Conclusão
A emancipação da humanidade e, especificamente, a emancipação da
mulher, estão ligadas à ruptura com o capitalismo e à construção de uma
nova sociedade, logo a teoria marxista se faz indispensável para a luta das
mulheres, visto que tem como objeto a sociedade burguesa e como finalida-
de a sua superação. Portanto, os “estudos de gênero” não devem se limitar à
categoria tão-somente descritiva e analítica, mas possuir um caráter políti-
co, para tal o gênero não subsiste sem o alicerce de teorias sociais, e nesta
perspectiva a marxista. (CISNE, 2005).
A visão materialista da história de Marx permite que a classe trabalhado-
ra compreenda que todas as representações dos homens, sejam elas políticas,
religiosas, filosóficas ou jurídicas, são derivadas, em última instância, de suas
condições econômicas. (ENGELS; KAUTSKY, 2012). A classe é, portanto, o
ponto de união entre todas as mulheres e identidades trans, posto que é da
contradição de classe que surgem as desigualdades, explorações e opressões que
marcam a vida da mulher trabalhadora. Por conseguinte, não se pode analisar
a categoria gênero apartada das determinações econômico-sociais, devendo ha-
ver uma análise totalizante (CISNE, 2005).

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1018
Interseções entre saúde das
trabalhadoras rurais, gênero e Marx

Annie Lívia Torres de Albuquerque Araújo1


Lázaro Fabrício de frança Souza2

1. Introdução
A saúde das camponesas, pensando em termos de determinantes sociais de
saúde, possui significativa associação com o ambiente em que se encontram.
Além disso, assimétricas relações de gênero interferem nessa questão ao abas-
tecerem seu fenômeno saúde-doença com ainda mais complexidades, vistas
através de fatores como subalternização, violência, invisibilização e a desigual
divisão sexual do trabalho. Observa-se que o quadro em que as camponesas se
inserem indica a necessidade de uma abordagem abrangente e que considere
a influência do meio, também sob um enfoque de gênero, na conexão que se
estabelece com o sistema de saúde e nas formas como ele atua, permitindo in-
tervenções compatíveis em termos de cuidado à saúde.
A trajetória histórica do campo brasileiro demonstra uma construção cultu-
ral, econômica e política baseada em aspectos como a concentração de terras,
riquezas e uso de recursos naturais, além de escravidão, extermínio de povos
indígenas, exclusão e segregação de mulheres e famílias camponesas, mas refle-
tindo, outrossim, a influência de conflitos e lutas populares, com exemplos de
resistência como os quilombos ou Canudos (BRASIL, 2013).
Esses elementos auxiliam no desvelamento da situação experimentada
pelas populações do campo, as quais, por conseguinte, em uma perspectiva
de ruptura, organizam-se em torno de demandas como trabalho, terra,

1 Discente do 6º período do curso deMedicina da Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA.


2 Professor do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde - CCBS (Departamento de Ciências da
Saúde) da Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA. Sociólogo e Mestre em Ciências
Sociais e Humanas.

1019
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

distribuição uniforme de recursos e acesso a direitos fundamentais, como


é o caso da saúde.
O artigo tem como objeto as mulheres camponesas, no que diz respeito
à sua saúde e, para uma melhor compreensão desse quadro, em associação
inclusive com as relações de gênero, lançou-se mão das contribuições de Karl
Marx. Possui como objetivo colaborar com a reflexão e análise a respeito da
situação de saúde das mulheres rurais, partindo do que é apontado na litera-
tura. Esse empreendimento se configura como uma pesquisa bibliográfica, de
cunho qualitativo, recorte de uma pesquisa monográfica em andamento, que
se baseia em livros, artigos e outras obras que desenvolvem o tema analisa-
do. Especificamente, parte de autores como Araújo (2000), Carneiro (1994,
1998), Cisne (2018), Salvaro, Lago e Wolff (2013) entre outros.
No sentido de refletir a respeito da saúde, faz-se útil compreender o cenário
em que se processam os cuidados. No Brasil, 15,28% da população vive em
áreas rurais, sendo a região Nordeste a que possui percentual mais expressivo
de brasileiros vivendo no campo, com 26.88% (IBGE, 2015). Uma quantidade
tão significativa de pessoas vivendo no campo contrasta com a falta de amparo
sentida pelos camponeses. Esse espaço e seus habitantes enfrentam problemas
relacionados à falta de reconhecimento e esquecimento, os quais, inclusive,
obstaculizam proteções inerentes à sociedade moderna e dificultam a garantia
de direitos e condições mínimas de independência, na lógica de uma proteção
social não limitada à concessão de benefícios, mas uma condição básica para
todas as pessoas (ROSÁRIO, 2005).

2. Desenvolvimento

2.1 Saúde rural, campo e ruralidades contemporâneas


Considerando a frequência dos debates sobre ruralidade tanto no meio
acadêmico e científico quanto dentro dos movimentos sociais, bem como
pelas entidades responsáveis pela formulação de políticas públicas que se
concentram nesse meio, duas perspectivas se destacam a respeito de delinear
significações: a do campo como um espaço físico diferenciado e como um
lugar de vida particular, como aponta Wanderley (2001). Nas palavras da
autora, deve-se entender o campo:

1020
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Em primeiro lugar, enquanto um espaço físico diferenciado. Faz-se, aqui,


referência à construção social do espaço rural, resultante especialmente
da ocupação do território, das formas de dominação social que tem
como base material a estrutura de posse e uso da terra e outros recursos
naturais, como a água, da conservação e uso social das paisagens
naturais e construídas e das relações campo-cidade. Em segundo lugar,
enquanto um lugar de vida, isto é, lugar onde se vive (particularidades
do modo de vida e referência “identitária”) e lugar de onde se vê e se
vive o mundo (a cidadania do homem rural e sua inserção na sociedade
nacional) (Wanderley, 2001, p. 26).

A essas duas formulações, Martins (2014) adiciona uma terceira concepção


a respeito do mundo rural: além de um espaço físico e um lugar de vida, aparece
a ideia de um lugar de onde se vê o mundo social, apartando-a da segunda ideia
de Wanderley. Martins (2014) ainda comenta que se, em meados das décadas
de 1950 e 1960 o foco de ciências como a geografia, sociologia e economia se
depositava na modernização do campo (ou da agricultura – sinônimos, à épo-
ca), a partir da década de 1980 entram em cena novas possibilidades de leitura
a respeito de sociabilidades no campo. O autor aponta que, com o esgotamento
da tese voltada para a industrialização/urbanização do campo, é suplantada a
ideia de agricultura como identidade única e exclusiva do campo, de modo que
esta passa a ser apenas uma das dimensões das múltiplas ruralidades contem-
porâneas. A ruralidade aproxima-se então, de um caráter plural e repleto de
multiplicidades, admitindo novas leituras e reconhecendo processos de reestru-
turação e transformações que reorganizam o modo de vida nesse contexto. A
compreensão de campo também deve incluir, como aponta Wanderley (2001),
o reconhecimento da existência de especificidades históricas, sociais, políticas e
ambientais, evitando entendê-lo como um local descolado da realidade ou um
universo autônomo, mas sim vinculado a um modo de ser e viver determinados
por certa inserção em processos sociais e históricos, passível de contínua incor-
poração de novas técnicas, hábitos e valores.
Continuando a respeito das transformações ocorridas no mundo rural,
Martins (2014) destaca dois grupos principais. O primeiro envolve o trabalho,
havendo o já citado afastamento da ideia de agricultura como identidade,
alterações na composição do emprego, modificações no trabalho agrícola
– notadamente em seu ritmo de crescimento e organização –, mudanças no
ritmo e intensidade de exploração e extensões do trabalho familiar para além

1021
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

da agricultura. O segundo grupo se refere à questão ambiental, ponto que, ao


assumir características transversais – perpassando eixos como a questão agrária,
o trabalho, a atuação do Estado e a regulação de estratégias de uso dos recursos
–, associa-se à construção de novas instituições para normatizar os meios de
uso social do meio ambiente rural, em sintonia com a noção de território, às
políticas públicas voltadas para conservar à biodiversidade, à gestão dos recursos
naturais e a um ponto de vista problematizador frente às atividades econômicas
que emergem nesse novo cenário. É relevante destacar, nesse sentido, que
ambas as dimensões – trabalho e meio ambiente – vivenciadas pela mulher do
campo são reconhecidas, inclusive pela Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da Mulher (BRASIL, 2004), como elementos capazes de exercer forte
influência na saúde das trabalhadoras rurais. Finalmente, Martins (2014)
adiciona outra mutação ocorrida no campo e pertinente à compreensão do
rural e das ruralidades contemporâneas – e consequentemente para a saúde
dos/as envolvidos/as nesse ambiente – a construção social do rural, enquanto
categoria de pensamento, ou, nas palavras do autor, quando “o rural é alçado
à categoria simbólica, deslocado no simples recorte espacial e circunscrito a
temporalidades que lhe conferem nova complexidade, tornando-se referência
para práticas negociadas entre grupos e classes sociais” (MARTINS, 2014, p. 9).
Com isso, entende-se que uma visão superficial e descontextualizada do rural
não permite uma produção de cuidados de saúde que seja capaz de suprir as
necessidades dos habitantes ou mesmo uma compreensão condizente com o que
realmente se processa do ponto de vista do abrangente fenômeno saúde-doença.
Afastando-se de uma concepção idealizada e bucólica de campo ou de um
local atrasado, remoto e rústico, surge uma ruralidade que envolve a articulação
de movimentos e vivências nesse contexto, em vez de algo homogêneo, ou um
simples oposto de “urbano” (MACIAZEKI-GOMES; NOGUEIRA; TONELI,
2016). Entende-se o campo, então, para além de estereótipos negativos – como
um símbolo de um lugar atrasado, primitivo ou um contraponto à urbanidade
–, ou como um modelo de vida anterior, que inevitavelmente progredirá para
o modelo urbano. Nesse diapasão, a racionalidade urbana que usualmente se
adota, fortalece tal concepção – de que a expansão das cidades será responsável
por “consumir” o modo de vida rural. No entanto, a estruturação de identida-
des rurais próprias e distintas traduzem a resistência da sociabilidade rural ao
processo de urbanização (BONOMO et al., 2017).

1022
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Do mesmo modo que enxergar o campo como uma contraposição ao meio


urbano, reduzir o campo a um reflexo da urbanização impossibilitaria a explica-
ção dos processos e reformas vivenciados nesse espaço. Carneiro (1998), sobre
isso, refere que é cada vez mais difícil limitar fronteiras claras entre os dois es-
paços, acrescentando, porém, que isso não resultaria em uma homogeneização
entre rural e urbano dominada pela cena urbana. Em uma compreensão mais
aprofundada e consistente, autora também salienta que a ruralidade se apresen-
ta a partir de diferentes formatos enquanto representação social, ou categorias
associadas com determinado universo simbólico ou visão de mundo.
Ultrapassando uma noção de ruralidade que se reduz à sua posição frente ao
urbano (seja como um oposto, um território a ser anexado, em um contexto de
igualdade absoluta ou homogeneização), entende-se a impraticabilidade de reprodu-
zir elementos processados no meio urbano no campo, avaliando que houve apenas
uma translocação de espaço geográfico. Assim como acontece com a educação,
por exemplo, a atenção à saúde no meio rural deve levar em conta a existência das
particularidades (a exemplo do que já foi apontado acima) resultantes da inserção
nesse contexto, que moldam, por exemplo, a forma como se processam as relações
sociais, a metabolização de informações e o próprio acesso aos serviços.
Aspectos como a construção e a reconstrução da realidade a partir das lutas
sociais, e a própria conexão com a terra e com a natureza inserem-se entre os
determinantes sociais da saúde e ilustram essa questão. Considerando a saúde
e doença como frutos do meio social e cultural onde se organizam (ALVES;
MINAYO, 1994) é substancial a influência da conjuntura vivenciada sobre a
saúde do indivíduo, algo sentido de maneira ainda mais particular quando se
pensa na saúde da mulher camponesa.

2.2. Trabalhadoras rurais


A situação do campo no Brasil, acima esboçada, constitui-se como um re-
flexo de uma história permeada de desigualdades, como pode ser visto através
do amplo poder de grandes latifundiários e coronéis, que permitiu que agrega-
dos, crianças e mulheres permanecessem sem voz, silenciados (RODRIGUES;
COSTA, 2007; SPIVAK, 2010). Acrescentando ao cenário que se desenha,
uma pesquisa realizada com trabalhadoras do campo e da floresta pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2012) apontou que somente 23,8% das

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

mulheres casadas ou em união estável pesquisadas se apontavam como chefes


da família, sendo que 8% das 40,4% que indicaram chefia masculina relataram
que o motivo para a escolha do chefe era o fato de ser homem; ao mesmo tem-
po, ser mulher foi a razão menos manifestada pelas mulheres (1%). Outro dado
significativo da mesma pesquisa é que 73% das trabalhadoras do campo e da
floresta que passaram pelo estudo já haviam feito pelo menos algum curso de
capacitação profissional, revelando seu interesse e preocupação com diversificar
estratégias de subsistência e acesso à renda. Ainda significativo foi o fato de que
18% das entrevistadas expuseram a vontade de deixar o campo, em razão dos
melhores serviços de educação, saneamento e saúde. Este aspecto em especial
coloca em evidência a possibilidade de debate em torno da extensão dos me-
canismos de proteção em relação ao campo. Considerando a relação estabele-
cida por Castel, citado por Rosário (2005), entre a proteção social e riscos de
doenças, acidentes, desemprego, perda da capacidade de trabalhar em razão da
idade, entre outros, observa-se que um indivíduo carente em relação a ser asse-
gurado contra esses imprevistos, posiciona-se em uma situação de insegurança
ao passo que se entende a proteção social como uma condição para a constru-
ção de uma sociedade de semelhantes – uma democracia (ROSÁRIO, 2005).
Cabe enfatizar que, se por um lado a forma de se inserir em determinado
contexto influencia na saúde das mulheres, quando se pensa em um ambiente
rural, o enfoque de gênero também abre margem para compreender outras es-
feras do modo de viver e se relacionar das camponesas – como no que diz res-
peito ao acesso a políticas públicas e à autonomia, por exemplo – e, portanto,
para o entendimento do processo saúde doença por elas vivenciado. Destarte,
aspectos como a construção da cidadania, a invisibilização, as condições de
trabalho, as vulnerabilidades às quais as mulheres estão sujeitas, o empodera-
mento e o próprio conceito de gênero podem funcionar como equipamentos
para uma análise mais cuidadosa.
Para se acessar direitos sociais como a saúde, é necessária a construção
da cidadania (PORTELA; SALGADO, 2013; SALVARO; LAGO; WOL-
FF, 2013). No caso das mulheres, a cidadania exibe forte relação com a
visibilização de seu trabalho, na medida em que este seja socialmente reco-
nhecido e dissociado de algo intrinsecamente feminino, seja dentro ou fora
de casa (CARNEIRO, 1994).
Salvaro, Lago e Wolff (2013) referem que a garantia de uma cidadania plena
é mediada por regras de controle e identificação que partem do Estado, sur-

1024
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

gindo associadas a uma biopolítica da população que as autoras associam ao


pensamento de Foucault. Continuam destacando que a partir do século XVII
o poder passou a se concentrar no corpo-espécie (regulando, então, processos
de saúde, doença, mortalidade, nascimento) e que, nesse sentido, o acesso aos
direitos que as mulheres reivindicam dependia e depende do reconhecimento
de um corpo que trabalha, isto é, de que obtenham visibilidade e oficialidade
enquanto mulheres agricultoras.
O processo de ocultação do ponto de vista das mulheres, de seus saberes,
vivências e lutas – através do silenciamento – reforça um cenário de subalter-
nidade que se reproduz em seu quadro de saúde e é questionada por movimen-
tos sociais. Para romper com a subalternidade e com o silenciamento, Spivak
(2010) destaca que é preciso que o oprimido conquiste direito à fala, à voz
e visibilidade. Desse modo, a estratégia para desconstruir essa subalternidade
seria desenvolver, com as mulheres, espaços de protagonismo, de modo a forta-
lecer a visibilidade de suas lutas e sua autonomia. A partir do reconhecimento,
aproxima-se de um discurso que problematiza a situação de saúde das mulheres,
assim como discute o modo como seus direitos são ou deveriam ser assegurados.
Outro fator determinante na invisibilização das mulheres, com consequên-
cias diretas e indiretas sobre sua saúde é a divisão sexual do trabalho (KER-
GOAT, 2009), a qual determina uma jornada laboral extenuante para as cam-
ponesas, mas não reconhecida. Traduzindo, na verdade, uma relação de poder
dos homens sobre as mulheres, o conceito analítico de divisão sexual do tra-
balho organiza-se sobre os princípios da separação (há trabalhos de homens e
trabalhos de mulheres) e da hierarquização (o do homem possui “mais valor”
que o da mulher), sofrendo adaptações históricas e sociais, como reforça Ker-
goat (2009). Entre as contribuições de Engels, no contexto da divisão sexual
do trabalho, Araújo (2000) ressalta as raízes socioeconômicas na dominação
masculina, anunciando a natureza da relação entre homens e mulheres como
uma relação de opressão, ao invés de definir o lugar social das mulheres como
uma manifestação de uma suposta natureza feminina inata.
No que se refere às raízes desse fenômeno, Amorim e colaboradores (2010)
enfatizam que as mulheres, desde a Idade Média, em razão dos vários conflitos
que ocupavam seus maridos, acumulam funções que incluem desde o cuidado
dos filhos à produção de alimentos, mantendo-se, porém, longe do espaço públi-
co (de supremacia masculina) e resguardando-se no espaço privado – destinado
à família e à reprodução. Enquanto os homens se responsabilizam, desse modo,

1025
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

pelo trabalho produtivo – pecuária, agricultura e outros serviços voltados para o


mercado – as mulheres permanecem com o trabalho reprodutivo – cuidando de
hortas e pequenos animais, atividades domésticas, e outros serviços para consu-
mo próprio –, tido como uma extensão de seu papel enquanto mulher (FARIA,
2005; NOBRE, 2005; HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Sobre o mundo do trabalho, pensando em relações de opressão e explora-
ção, é pertinente a inserção das ideias do pensador alemão Karl Marx. Apesar
de nalgumas de suas postulações existirem pressuposições, como as de que o
trabalho reprodutivo não se configuraria como socialmente necessário; que a
força física foi o fator limitante para a participação da mulher no trabalho; que
a igualdade de gênero só aconteceria a partir de um salto tecnológico e que a
fábrica, e não a comunidade, seria o local da luta contra o capitalismo; quando
atribui à indústria moderna a libertação das mulheres do trabalho doméstico
e do regime patriarcal, possibilitando a participação na produção social (FE-
DERICI, 2017), outros conceitos relacionados ao autor, como o de alienação,
auxiliam no estudo do tema proposto.
Em linhas gerais, para Marx os indivíduos devem ser analisados conforme suas
condições econômicas e sociais, o que, em termos amplos, produziria sua existência
em grupo. Marx, ao lado de seu colaborador de toda vida, Engels, em obras como
“O Capital” (1983) e o “Manifesto Comunista” (1999), estava interessado sobre-
maneira em estudar as condições de existência de homens reais na sociedade. O
foco da teoria marxiana está nas classes sociais, conquanto a questão da relação
indivíduo/sociedade também esteja presente. Marx afirma que os seres humanos
constroem sua história, mas não da maneira que querem, levando em consideração
que situações anteriores condicionam o modo como ocorre a construção, eviden-
ciando que existem condicionantes estruturais que levam o indivíduo, os grupos e
as classes para determinados caminhos, o que não implica necessariamente a total
perda de capacidade de reação e/ou transformação diante desse quadro.
Em A Ideologia Alemã (1998, pp. 10, 11), Marx, exempli gratia, assinala
que os homens começam a se distinguir dos animais assim que encetam a pro-
dução de seus meios de existência. Por conseguinte, produzem indiretamente
sua vida material. Ainda para o autor a maneira como os homens produzem
seus meios de existência depende, antes de qualquer outra coisa, da natureza
dos meios de existência encontrados e que precisam ser reproduzidos, o que
representaria uma forma já posta de manifestar a vida e, principalmente, um
modo de vida determinado.

1026
O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o
que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os
indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua
produção. [...] Essa produção só aparece com o aumento da população.
Esta pressupõe, por sua vez, o intercâmbio dos indivíduos entre si. A
forma desses intercâmbios se acha, por sua vez, condicionada pela
produção[1] (MARX, K. & ENGELS, F. 1998, p. 11)

Araújo (2000), insere o trabalho doméstico em um plano mais amplo que


o das relações privadas, passando a entendê-lo como ligado às relações sociais
em geral, e enfatiza, no sentido de compreender a forma pela qual se articulam
a exploração de classe e a opressão de sexo, que com a alienação, os processos
de trabalho assumem um caráter naturalizado, coisificando-se paulatinamen-
te e exteriorizando-se em relação aos indivíduos que os executam, concluindo
que “as relações e a divisão de trabalho entre homens e mulheres também se
apresentam naturalizadas, ganhando um aspecto a-histórico, fixo e dicotômi-
co” (ARAÚJO, 2000, p. 5). Aproximando-se da ideia de alienação, verifica-se
que uma inércia ou estabilização das relações de trabalho, através da natu-
ralização da forma pela qual estas se dividem, contribui com a solidificação
da hierarquização entre os serviços executados por homens e mulheres, o que
potencialmente dificulta uma perspectiva de redefinição. Como ainda ressalta
Araújo (2000), o enfoque histórico e material das práticas sociais, apresentado
por Marx oferece uma alternativa para evitar perspectivas essencialistas sobre
a dominação masculina e a subordinação das mulheres, as quais definem as
mulheres como subordinadas desde sempre e por natureza e os homens como
opressores. Este outro ponto de vista sobre a questão, nas palavras da autora,
colaborou para o entendimento de que as relações entre homens e mulheres,
inseridas nas relações sociais, passam por processos de construção, reprodução
e transformação, “uma vez que a natureza humana não é concebida como algo
ontológico e imutável, mas produto das práticas sociais, conflituosas e, muitas
vezes, antagônicas.” (ARAÚJO, 2000, p. 4).
No que se refere ao reconhecimento das mulheres inseridas na classe
trabalhadora, isto é, reconhecer que além de trabalhadores, trabalhadoras
também atuam nesse grupo, Cisne (2018) destaca que em vez de se limitar a
questões linguístico-gramaticais, analisar a exploração da mulher no mundo
do trabalho implica examinar como as mulheres vivenciam uma exploração

1027
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

particular, ainda mais intensa da que acomete homens da classe trabalhadora,


o que atende de forma direta aos interesses dominantes.
A situação de saúde das mulheres do campo possui uma relação direta
com as circunstâncias de trabalho e vida, o que se observa, especialmen-
te, por meio da produção de riscos, adoecimentos e agravos através de, por
exemplo, contaminações – com agrotóxicos ou outros produtos químicos –,
exposição frequente e desprotegida ao sol, acidentes de trabalho e longas jor-
nadas – como já apontado (BRASIL, 2015). Com essa exposição a fatores que
potencialmente deterioram sua saúde, as mulheres camponesas aproximam-
-se, então, de um contexto de vulnerabilidade, uma vez que há carência de
aparatos para enfrentar esses problemas.
O não reconhecimento de seu trabalho, a invisibilização de suas atividades e
as assimetrias nas relações de gênero que vivenciam acaba inserindo as mulhe-
res rurais em um quadro de vulnerabilidade social (MARTINS, 2017), que se
reflete na saúde. As vulnerabilidades, que acometem também mulheres da flo-
resta e das águas, decorrem de uma série de elementos como a desigualdade nas
relações de gênero, mas também de raça e classe social, doenças relacionadas ao
trabalho, violência, doenças mentais e outros, que, juntamente com problemas
crônicos como cânceres ginecológicos e a morte materna representam grandes
desafios na saúde dessas mulheres (BRASIL, 2015). Em razão do ambiente onde
vivem e pelo fato de serem mulheres em uma sociedade de orientação patriar-
cal, as mulheres do campo inserem-se em uma situação adversa do ponto de
vista da saúde, que as expõe ao adoecimento.
Na luta por protagonismo, espaço, direitos e voz, e também no sentido de
enfrentar essas vulnerabilidades, surge o conceito de empoderamento. Sar-
denberg (2009) define duas vertentes a partir do qual esse conceito pode
ser apresentado. Em primeiro lugar, refere uma perspectiva “liberal”, isto é,
entendendo o empoderamento das mulheres como um instrumento para que
se desenvolvam prioridades, contemplando a erradicação da pobreza e a cons-
trução da democracia, de forma harmônica com ideais liberais e passível de
ser ensinado. A segunda perspectiva, “libertadora”, volta-se para as relações
de poder, para a conquista da autonomia e autodeterminação por parte das
mulheres; seria uma ferramenta para a desarraigar o patriarcado, reordenan-
do, no enfoque de gênero, a dominação patriarcal. A mobilização das mulhe-
res, com sua transformação em sujeitos coletivos atuantes as aproxima de uma
identidade de mulher rural capaz de proporcionar visibilidade e participação

1028
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

nos processos de produção, em termos de empoderamento, e o rompimento


com o passado patriarcal e com a estrutura androcêntrica persistente, uma
vez que a reivindicação de melhorias, exposição de suas demandas e potencia-
lização de sua cidadania permitem que as mulheres rurais conquistem visibili-
dade ao desenvolverem espaços de autonomia, fortalecendo e possibilitando a
liberdade de escolhas e opiniões, a reordenação da divisão sexual do trabalho,
a sua participação no mercado de trabalho e a reconstrução de suas identida-
des (AMORIM et al., 2010). Desse modo, ao se organizarem na perspectiva
de aumentar sua capacidade de decidir sobre sua vida, alicerçando-se na au-
tonomia, na autodeterminação e no empoderamento, é fortalecida e intensifi-
cada a luta por um cenário mais favorável de saúde e contra os fatores acima
descritos que a deterioram, em diversas dimensões.
As desiguais relações de gênero expressam-se na saúde e vida das mulheres
através da subordinação, opressão e negação a direitos fundamentais, produ-
zindo barreiras, inclusive, em sua participação na redefinição desta situação.
Para compreender essa situação, relacionando com a saúde das camponesas,
e com o referencial teórico sobre o qual o trabalho se estrutura, um conceito
pertinente é o de gênero. Carneiro (1994), inclusive, destaca que as identida-
des das mulheres rurais – cuja relação com a saúde e garantia de direitos foi
discutida acima e que são, de fato, múltiplas – são produzidas a partir de dois
aspectos: por pertencer ao gênero feminino e por ocupar certa posição em
uma estrutura socioeconômica.
Scott (1995) afirma que gênero se relaciona a duas noções principais: um
elemento constituinte das relações sociais, com base nas diferenças percebi-
das entre os sexos; e como uma primeira forma de significação das relações de
poder. Distanciando-se do foco exclusivo nas diferenças marcadamente físicas
entre os corpos, a autora sugere uma ruptura com a binaridade, de modo a
inserir a dimensão política (instituições e organizações sociais) no gênero e,
conforme o próprio título de seu trabalho anuncia, propõe a compreensão
de gênero como uma categoria útil de análise histórica. Faria (2005) afirma
que gênero é usado para reforçar a construção social de homem e mulher na
sociedade, visando diferenciar o ser macho ou ser fêmea – o que constitui o
sexo – de masculinidade e feminilidade – que são construídas socialmente.
Araújo (2000), porém, quando une contribuições marxistas ao feminismo e
ao enfoque de gênero, chama atenção para o risco de uma totalização concei-
tual de gênero, que poderia ocasionar uma perda da perspectiva estrutural em

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

um sistema econômico e político mais amplo e do reconhecimento dos impac-


tos potenciais das relações de classe e raça na situação da mulher, voltando a
reflexão para a possibilidade de preservar as dimensões materiais e simbólicas
nas relações sociais de gênero. Ademais, a autora supracitada também classi-
fica como outras contribuições do marxismo ao feminismo:

(…) o enfoque histórico e material, que permitiu a desnaturalização da


subordinação da mulher, situando sua gênese num processo gerado nas
e pelas relações sociais, em contextos socioeconômicos determinados; a
interpretação da economia política em relação ao processo de trabalho
capitalista e ao lugar do trabalho doméstico; e a análise sobre a ideolo-
gia, que oferece elementos para pensar outras dimensões das relações e
dos conflitos sociais, para além dos vinculados à base material, mesmo
quando mediados por esta. (ARAÚJO, 2000, p. 3).

Cisne (2018), inclusive, ressalta que no feminismo marxista, as origens para


a subordinação da mulher aos homens relacionam-se com a instauração da pro-
priedade privada e da luta de classes e ainda que, ao dispensar a um semelhan-
te, isto é, a outro ser da mesma espécie, um tratamento como o de uma coisa,
configura-se um não reconhecimento do ser humano e nega-se, logo, a sua pró-
pria natureza. Marx, em seu livro Manuscritos Econômicos-Filosóficos, quando
reflete sobre propriedade privada, casamento e o que chama de comunismo
rude e irrefletido, de perspectiva limitada, refere que:

Na relação com a mulher como presa e criada da volúpia comunitária


está expressa a degradação infinita na qual o ser humano existe para
si mesmo, pois o segredo desta relação tem a sua expressão inequívoca,
decisiva, evidente, desvendada, na relação do homem com a mulher. (…)
Do caráter desta relação segue-se até que ponto o ser humano veio a ser
e se apreendeu como ser genérico, como ser humano; a relação do homem
com a mulher é a relação mais natural do ser humano com o ser humano.
Nessa relação se mostra também até que ponto o comportamento natural
do ser humano se tornou humano ou até que ponto a essencia humana se
tornou para ele essência natural, até que ponto a sua natureza humana
tornou-se para ele natureza. (MARX, 2008, p. 104-105).

O autor, desse modo, aponta características da dominação e supremacia


masculina, com a objetificação da mulher e a naturalização dessa situação

1030
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

– problematizando, inclusive o fato de tais relações serem “naturais”. Cisne


(2018), em suas reflexões, ainda destaca que tratando a mulher como uma
coisa, o homem se coisifica e se desumaniza. A exploração do trabalho de um
ser humano por outro resulta na submissão das mulheres inseridas em uma
sociedade classista e monogâmica, configuração imprescindível ao sistema
dominante quando se pensa na transmissão hereditária, por exemplo, o que
gera a preocupação em rigidamente disciplinar a família (RAMOS, 2015).
No campo, as desigualdades de gênero são reconhecidamente mais fáceis
de serem percebidas e mais acentuadas, subordinando as mulheres ainda mais
ao patriarcalismo (SILVA; LAGE, 2012). Tal reconhecimento surge como um
fruto da problematização empreendida pelas mulheres e movimentos sociais do
campo. Movimentos como a Marcha das Margaridas demonstram a luta pela
igualdade de gênero e pelo reconhecimento de que as relações de gênero são
elementos estruturantes das relações sociais no campo, gerando mudanças sig-
nificativas como foi o caso das políticas de acesso à terra que, a partir da mobi-
lização das mulheres, passaram a assegurar a elas o direito de titulação (IPEA,
2012). A própria Marcha das Margaridas – homenagem à Margarida Alves,
líder sindical paraibana e importante símbolo de luta das mulheres do campo,
assassinada a mando de usineiros –, a exemplo de outros movimentos de mu-
lheres do campo, floresta e águas, ilustra a relevância do debate e participação
das mulheres na implementação, avaliação e controle social de políticas públi-
cas, devendo, portanto, ser garantidos e legitimados pelo Estado, uma vez que
servem como uma medida para que sejam protegidos os direitos dos cidadãos e
cidadãs (BRASIL, 2015).
As reivindicações das mulheres rurais revelam a disparidade da situação na
qual se encontram em relação a um contexto de justiça social e, além disso,
atuam no desvelamento da magnitude da interferência exercida pelas relações
desiguais entre homens e mulheres no campo em sua saúde e adoecimento.
Como enfatiza o Ministério da Saúde (BRASIL, 2015), para que se pense em
uma saúde com equidade é de fundamental importância o empoderamento das
mulheres e sua participação no controle social na busca por qualidade de vida,
igualdade de direitos e cidadania. Do mesmo modo, conforme continua o texto
supracitado, se faz essencial a compreensão que a desigualdade de gênero é
social, cultural e politicamente construída para satisfazer um sistema social ali-
cerçado em desigualdades, para que, a partir desse entendimento, desenvolva-se

1031
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

a possibilidade de desconstruir essa situação, no sentido de estruturar novos va-


lores, com viabilidade de justiça social, igualdade de gênero, raça e classe social.

3. À guisa de (não) conclusão


Utilizado para explicar diferenças comportamentais entre homens e mulhe-
res, de origem não biológica, mas sim social e cultural, o conceito de gênero, ou
melhor, de relações de gênero, identifica a forma como estes dois seres são cons-
truídos na sociedade e se refletem em dificuldades sentidas pelas mulheres no
trabalho, vida pessoal, política, vida sexual e reprodutiva, fazendo referência a
relações de poder desiguais (BRASIL, 2015). Percebe-se, dessa forma, que é for-
te a conexão exibida entre as relações sociais e o modo como se constrói a saúde
da mulher do campo, entendida aqui em uma perspectiva holística. Seguindo o
conceito adotado pela própria Organização Mundial da Saúde (WHO, 2014),
não se pode considerar a saúde como a simples ausência de doença, uma vez
que ela se classifica como um completo bem-estar físico, mental e social. A
partir do reconhecimento das particularidades e complexidades intrincadas na
atenção à saúde das mulheres rurais é que se pode pensar, em um contexto de
justiça social, em produzir cuidados de saúde em sintonia com as necessidades
das mulheres, com um sistema de relações sociais pautado na liberdade e na
igualdade e efetivos do ponto de vista do enfrentamento de vulnerabilidades.

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1035
Mérito e interseccionalidade: uma
análise sobre gênero raça e renda com os
ingressantes do curso de Direito da UFERSA
a partir do sistema de cotas sociais e raciais

Nayara Katryne Pinheiro Serafim1

Introdução
A história do Brasil carrega consigo a ausência de políticas públicas voltadas
a grupos minoritários, em particular à população negra. É sabido que as desi-
gualdades sociais no país não perpassam apenas aspectos econômicos, estando
também enraizadas em elementos culturais advindos da formação social brasi-
leira. Este contexto também atravessa a educação superior, tradicionalmente
voltada a setores de maior poder aquisitivo e de pele branca.
Ao longo dos governos Lula e Dilma Rousseff, o acesso à educação superior
foi prioritário em suas agendas de governo, com a criação de novas univer-
sidades, cursos e a manutenção das estruturas já existentes com o intuito de
institucionalizar políticas de Estado de acesso à educação superior. Ademais,
visou o ingresso das classes trabalhadoras, da população negra e indígena ante-
riormente excluída desses espaços.
Como fruto da implementação das agendas de ampliação de acesso ao en-
sino superior, a Universidade Federal Rural do Semiárido foi criada no ano de
2005, resultado da transformação da Escola Superior de Agricultura de Mos-
soró (ESAM) a partir da lei Nº 11.155, em consequência da implementação do
Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais de Ensino (REUNI), com o objetivo de suprir a demanda de vagas
ensino superior prioritariamente em regiões de alta vulnerabilidade social.

1 Professora Substituta na Universidade Federal Rural do Semiárido, graduada em Administração-


(UFERSA),mestra em Administração(UFPB). Email: [email protected]

1037
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Com o programa, o perfil da instituição viu-se modificado, tanto no que se


refere ás graduações e pós-graduações ofertadas, quanto ao público que atende e
à ampliação dos Campi para demais cidades do interior potiguar, ao número de
quatro, encontram-se sediadas em Pau dos Ferros, Caraúbas e Angicos, assim
como previsto no seu Projeto Político Institucional que possui como diretriz
central a interiorização de sua atuação e a formação de profissionais críticos e
reflexivos perante o seu papel na sociedade.
Quanto ao perfil pedagógico, aos tradicionais cursos voltados para as ciên-
cias agrárias cuja á existência data da década de 1960 somam-se graduações das
Ciências Sociais Aplicadas: Direito, Administração e Ciências Contábeis.
Em decorrência da existência de apenas um curso de graduação de direito
na região ofertado por uma instituição pública de ensino, no ano de 2009 foi
aprovado pelos conselhos superiores da universidade respaldados pelo Minis-
tério da Educação (MEC) a criação do curso, e iniciou-se os transmites para
abertura do curso de Direito na Ufersa Campus Central localizado na cidade
de Mossoró, com o primeiro ingresso de discentes no ano de 2010, funcionando
no turno noturno, atendendo as demandas sociais relacionada aos estudantes
trabalhadores e demais segmentos da sociedade com uma oferta inicial de 40
vagas. Diante disso, neste estudo optou-se por atuar com os alunos ingressantes
do curso de direito, em decorrência da historicidade de ocupação do curso está
vinculada a classes sociais mais altas, pela natureza burocrática e tecnocrática
do curso relacionada ao aparelho estatal.
Em meio a este cenário de ampliação do número de vagas no ensino supe-
rior, a homologação e sanção da Lei 12.71/12, que institui á implementação do
sistema de cotas sociais e raciais. Como medida de ação afirmativa a partir do
ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico
de nível médio, representa um avanço no reconhecimento por parte do Estado
da relação entre especificidades culturais somadas a questões econômicas em
relação a cotas de demanda racial. Neste interim, a UFERSA adota prontamen-
te o sistema de cotas sociais e raciais em sua primeira seleção após a vigência da
norma já no processo Seletivo de 2013, enquanto o prazo de integralização total
previsto em lei para o ano de 2016.
Para tanto, neste estudo nos debruçaremos acerca da seguinte problemática:
como a intersecção entre as categorias de gênero, raça e renda afeta a percepção
sobre mérito entre os estudantes cotistas e não cotistas na Universidade Federal
Rural do Semiárido, ingressantes 2017.1 no curso de Direito?

1038
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Buscando uma explanação acerca da temática, este artigo tem como objeti-
vo analisar como as categorias de gênero, raça e renda impactam na percepção
sobre mérito entre os estudantes ingressantes do semestre 2017.1 do curso de
direito da Universidade Federal Rural do Semiárido. Além de possibilitar com-
preender o histórico de formação das políticas educacionais de ação afirmativa
no Brasil e por fim identificar as concepções de meritocracia dos discentes e sua
relação de acordo com as categorias de gênero, classe e renda.

2. Referencial teórico

2.1. Raça/Classe/Renda e Gênero na Formação da


Sociedade Brasileira
O processo de formação da sociedade brasileira ao longo dos períodos his-
tóricos é marcado pela presença de um modo de produção capitalista baseado
na exploração da mão de obra escrava e na valoração de preceitos europeus
como elementos centrais na construção de critérios relacionados ás hierarquias
sociais, presentes até hoje na nossa sociedade injusta e desigual. Com uma ma-
triz advinda do espaço rural que representa um ambiente com características
sociais, políticas econômicas e culturais, e que carrega consigo uma serie de
estigmas e padrões de comportamento que acirram a invisibilização do traba-
lho feminino, as barreiras de ascensão social das classes menos favorecidas e os
malefícios do racismo estrutural legitimados pelo modo de produção baseado na
mão de obra escravista (SOUZA,2017; GUIMARÃES et al,2011).
A condição do negro no contexto brasileiro é o resquício das configurações
relativas ás relações de poder instauradas na sociedade brasileira, que ainda
destina aos indivíduos de pele negra os espaços mais periféricos e marginaliza-
dos dentre os segmentos sociais. Florestan (2008), discorre acerca do cenário
de abandono de marginalização que carrega a população de pele negra, desde a
formalização da abolição da escravatura em caráter de lei no final do XIX, até
os processos desencadeados pelo surgimento de um novo mercado de trabalho
caracterizado pela competitividade.
Como também, ressalta-se que a abolição da escravatura no Brasil tem o seu
cerne em questões econômicas relativas a diminuição de custos e adequação aos
padrões do mercado internacional, e não como elemento prioritário os aspectos

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

humanos dos indivíduos escravizados e sua condição de invisibilização na socie-


dade (ALMEIDA,2018; AKOTIRENE,2018; SOUZA,2017).
Diante disso, a ausência isonomia de oportunidades em relação a popula-
ção negra está presente no desenvolvimento dos processos históricos em seus
diversos períodos, consequência da sua condição precária e desigual em relação
aos demais segmentos sociais. Como também o papel negligente da burocracia
estatal perante a população negra, pela ausência de apoio e reconhecimento
de sua condição desigual perante os demais grupos sociais com inserção de
políticas que auxiliassem a inserção do negro livre neste novo contexto social
enfrentado nos grandes centros urbanos após a abolição formal da escravidão
(AKOTIRENE,2018; DUBET,2015).
Nesta conjuntura a abolição da escravatura não representou um avanço na
melhoria das condições de vida e nível de oportunidades dos indivíduos ne-
gros, e sim intensificou a estrutura de classes desenhada pelo fortalecimento do
poder de uma elite burguesa emergente no cenário brasileiro representada em
parte pelo setor cafeeiro na região Sudeste em ascensão decorrente do desloca-
mento do eixo econômico da região Nordeste do país, somados a inserção de
imigrantes no território nacional (SOUZA, 2017; ALMEIDA,2018).Assim, as
elites burguesas continuaram fortalecendo os mecanismo de dominação social,
por meio das relações de poder econômico, político e cultural para assegurar a
manutenção dos seus privilégios.
De acordo com Florestan (2008), os negros ex escravos enfrentaram um
mercado de trabalho competitivo e desleal com a chegada dos imigrantes, além
do agravante da ausência de compreensão dos padrões de comportamento e
iniciativas apropriadas ao trabalhador livre. Como descrito abaixo:

Seja no campo ou na cidade, as novas chances de ordem competitiva


se abrem para os segmentos mais capazes de arregimentar maior
qualificação comparativa do trabalho, poupança e mobilidade espacial e
ocupacional. Os imigrantes e os segmentos mais cultos e semi-instruídos
de origem nacional são os candidatos naturais a ocuparem os novos
espaços.(SOUZA,2017,p76)

Para Souza (2017), Florestan descreve com detalhes a estrutura da sociedade


de classes brasileira representada em seu topo pelas famílias herdeiras das gran-
des propriedades rurais, e que mesmo após da derrocada do regime escravocrata
em meados do final do século XIX conseguiram manter as configurações das

1040
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

relações de poder intacta com a preservação da sua condição privilegiada em


relação aos segmentos sociais menos favorecidos hegemonicamente representa-
dos pelos negros libertos.
Deste modo, a sociedade brasileira estava segmentada em três classes so-
ciais, no topo a elite burguesa ascendente e com forte presença das famílias tra-
dicionais ruralistas que estreitaram os laços comerciais e financeiros no espaço
urbano. Em seguida os imigrantes e indivíduos com altos níveis de qualificação
e conseguinte uma parcela da população branca advinda dos movimentos das
populações do campo para cidade, e por fim abaixo os negros recém- libertos
com baixos níveis de qualificação, mulatos e mestiços que ocupavam as regiões
periféricas dos centros urbanos (FLORESTAN,2008; SOUZA,2017).
A emergência de um mercado de trabalho competitivo também demarca sta-
tus sociais a outros grupos sociais, em particular as mulheres negras, destinando
ocupações voltadas para atuação em trabalhos domésticos nos espaços urbanos
pela ausência de concorrência em relação aos imigrantes e a população de pele
branca por questões de remuneração e o próprio status dos trabalhos domésticos
e cuidados precarizados comum entre mulheres dos segmentos menos favoreci-
dos e de pouco prestigio e status social (AKOTIRENE,2018;CARNEIRO,2011).
Para tanto, por conta da forte presença dos elementos do patriarcado e da divi-
são sexual do trabalho as mulheres negras conseguiram se inserir no mercado
de trabalho para atuação em trabalhos domésticos e de cuidados com um nível
de dificuldade menor do que os homens que competiam de forma direta com
os imigrantes e da ausência de prestigio e reconhecimento social dos trabalhos
domésticos em suma invisibilizados e sua condição de mulher negra (SOU-
ZA,2017; CARNEIRO,2011).
Para fins de compreensão do termo raça neste trabalho utilizaremos a abor-
dagem empreendida por Almeida (2018), que a qualifica como um conceito que
não poderá ser dissociado dos elementos políticos, ainda que seja construído a
partir de duas nuances, uma fundamentada na perspectiva biológica atribuída a
questões fenotípicas ou seja a traços físicos e a cor da pele, e outra corrente re-
lacionada aos preceitos étnico-culturais associados a religião, região geográfica,
língua e costumes. O autor ainda salienta que a perspectiva biológica é retro-
grada e ultrapassada, e delimita o uso do conceito de raça como um mecanismo
de legitimação dos comportamentos discriminatórios:

1041
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

não existem diferenças biológicas ou culturais que justifiquem um


tratamento discriminatório entre os seres humanos, o fato que a noção
de raça é um fator politico importante, utilizado para naturalizar
desigualdades, justificar segregação (ALMEIDA, 2018,p.24).

Nesta conjuntura, o papel destinado à população negra no Brasil está res-


trito a atuação em espaços periféricos e invisibilizados, acirradas por elementos
do racismo estrutural e da cultura racista desenvolvida a partir da nossa histori-
cidade de valoração da cultura europeia e branca. Ainda presente no contexto
atual com o racismo presente na marginalização de tudo que tem relação à cul-
tura negra, seja na intolerância e marginalização das religiões de matriz africa-
na e no genocídio dos jovens negros nos grandes centros periféricos do país pelo
aparato policial (ALMEIDA, 2018; CARNEIRO, 2011; AKOTIRENE,2018).
Portanto, é sabido a existência de uma dívida histórica em relação a negligencia
do Estado e dos diversos setores da sociedade com a população pobre e negra
que até hoje continua sofrendo com os percalços da sua trajetória de resistência
e luta contra o racismo e a opressão das elites burguesas e da sociedade em geral
que ainda tenta os responsabilizar pela sua condição, utilizando a meritocracia
como argumento central e desprezando toda a sua carga histórica.
É notório a relação entre gênero, raça e classe/renda como elementos
que estão associados e que de tratados de forma isolada comprometem a
sua compreensão dos cenários em sua totalidade. Isto, posto, para compre-
ender os preceitos que influenciaram na formação da sociedade brasileira e
que continuam presentes no cenário atual é necessário realizar uma análise
robusta das questões relacionadas a gênero, raça e classe/renda em decor-
rência destas categorias atuarem no fortalecimento dos cenários de opressão
cada qual com a sua especificidade.
Portanto, o resgate histórico da formação da sociedade brasileira nos aju-
dar a compreender como a manutenção da hegemonia da população negra nos
segmentos menos favorecidos da sociedade continua prevalecendo no cenário
atual, e a reinvenção de novas formas de dominação por parte da elite branca
detentora do comando das configurações das relações de poder almejando pre-
servar sua condição de privilégios. Como também, o racismo institucional per-
sistente com a ausência da presença do Estado nos grandes centros periféricos,
restritos a força policial que contribuem para o genocídio dos jovens negros e

1042
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

pobres que não possuem nenhum tipo de isonomia de oportunidades em relação


ao acesso a serviços públicos essenciais (ALMEIDA,2018; CARNEIRO,2011).
Conquanto, a nossa historicidade carregada pelo abandono de uma parcela
considerável da população negra pobre e periférica, ainda continua contribuin-
do para a manutenção de um cenário caracterizado por desigualdades sociais e
altos níveis de concentração de renda, reforçados pelo caráter racista e do modo
de produção capitalista excludente hegemônico na nossa sociedade.

2.2 Mérito, educação e interseccionalidade no Brasil


A construção das relações da conjuntura da sociedade brasileira é carac-
terizada pelos altos níveis de desigualdade e ausência de isonomia de oportu-
nidades entre os grupos populacionais em condição de vulnerabilidade social,
em especial a população negra e pobre hegemônica nos contextos periféricos,
enraizados por especificidades da nossa história cultural, política e econômica
em conjunto (AKOTIRENE, 2018; ALMEIDA, 2018).
De acordo com Carneiro (2011), as desigualdades são reforçadas a partir
da consolidação do paradigma meritocrático inserido nos cenários pela proli-
feração de ideais neoliberais que reforçam a consolidação da igualdade em sua
perspectiva substantiva relativa apenas as normas e leis do aparato formal do
Direito burguês que assegura a proteção da propriedade privada e os direitos
individuais, como também das questões relativas ao consumo e liberdades indi-
viduais (SEN,2001).
Deste modo, as estruturas sociais delimitam critérios básicos de ordenação
social que também reforçam desigualdades econômicas, por não possibilitarem
mecanismos de compensação social, e contribuírem para a consolidação dos pa-
drões existentes relativos a trajetória pessoal de casa individuo (RAWLS,2000).
Diante disso, esses critérios de ordenação fundamentam-se nos ideais merito-
cráticos, que norteiam a responsabilização dos indivíduos pelo desempenho pes-
soal com o discurso do esforço pessoal como elemento central no êxito de suas
atividades, sem considerar o histórico e especificidades que cada indivíduo car-
rega consigo em sua trajetória pessoal (BARBOSA, 2014; CARNEIRO,2011).
Em outra perspectiva o discurso meritocrático também reforça a quesito de
que todos os indivíduos estão em posição de igualdade e isonomia de oportu-
nidades, no entanto em uma sociedade desigual e injusta como é a conjuntura

1043
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

social do contexto brasileiro, apenas fortalece os discursos de manutenção de


condições privilegiadas pelas elites que possuem condições superiores de traje-
tória em relação ao acesso à educação, saúde, e mercado de trabalho (MINTO,
2014; BARBOSA,2014).

No Brasil, essa noção de igualdade substantiva “trata-se de empurrar


o eixo da responsabilidade social pelos resultados individuais, centrado
principalmente nas condições históricas e sociais, em direção ao eixo da
responsabilidade individual (BARBOSA, 2014, p.101).

Uma vez que, as responsabilidades perante aos aspectos que fogem ao


controle dos indivíduos e tem caráter histórico, cultural, social e econô-
mico como ocorre no caso da população negra, os segmentos sociais con-
trários a adoção de medidas de ação afirmativa justificam sua reprovação
com o discurso de uso assistencialista dos aparelhos estatais e da concessão
de privilégios a esses indivíduos provocando um espaço de disparidades de
oportunidades e condições. (MINTO,2014). Conquanto é notória a fragili-
dade destes argumentos pautados na responsabilização individual perante a
conjuntura social vivenciada pela população negra e na ausência de repre-
sentatividade nos diversos espaços da sociedade.
As políticas de ações afirmativa são elementos que auxiliam na diminuição
dos impactos das disparidades sociais presentes nos grupos menos favorecidos
da sociedade, em especial objeto de discussão das reflexões deste estudo no
âmbito da educação como reprodutora das desigualdades sociais, a política de
cotas sociais e raciais em vigor nas instituições federais de ensino superior do
país (CARNEIRO,2011; ALMEIDA,2018). Para Minto (2014), anteriormente
o acesso à educação superior restringia-se apenas ás elites brancas por falta de
acesso dos grupos vulneráveis em sua maioria a população de pele negra a edu-
cação superior e possibilidades de manutenção após o ingresso.
Desta forma a política de cotas sociais e raciais representa um grande passo
da burocracia estatal de compreensão a partir de uma abordagem interseccio-
nal da problemática, além do caráter econômico presenta na demanda da cota
social, a prerrogativa de trajetória dos indivíduos de pele negra invisibilizados e
marginalizados (ALMEIDA,2018,SOUZA,2017). Assim, portanto reconhecen-
do em parte a dívida histórica com esses grupos com altos índices de vulnera-
bilidade social em sua maioria negros que tanto contribuem para a formação

1044
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

e pluralidade cultural do Brasil. Portanto, a política de cotas sociais e raciais


tem atuado como mecanismo de compensação social e tornado o ambiente das
instituições de ensino superior mais diverso e plural, mesmo ainda represen-
tando um avanço tímido em relação ao quantitativo geral em decorrência da
complexidade da problemática que envolve diversos segmentos sociais, políticos
e econômicos (SANTOS,2012 ;SAVIANI,2010 ;MINTO,2014).

3. Metodologia
Para os objetivos propostos neste estudo, utilizou-se uma abordagem
qualitativa e exploratória com o intuito de adentrar as nuances do fenôme-
no social em profundidade. Como instrumento de coleta de dados optou-se
pela utilização de questionário com perguntas abertas e fechadas com o
intuito de provocar os indivíduos a manifestar suas opiniões de forma mais
livre com a utilização de questões abertas.
O instrumento de coleta foi divido em três partes temáticas: na primeira
parte dos quesitos 1 a 16 o conteúdo das questões se concentrou em compre-
ender o perfil socioeconômico e gênero dos estudantes, na segunda parte a
temática central escolhida restringiu-se a perguntas relacionadas à educação,
mérito e ações afirmativas dos quesitos 17 a 24. Os questionários foram aplica-
dos no primeiro semestre do curso de Direito, durante o período das aulas de
forma presencial com a anuência do docente que estava em sala no momento.
Em relação a escolha dos sujeitos, ingressantes do curso de Direto, se justifica
por obterem o ingresso após a consolidação do sistema de cotas sociais e raciais
como política de Estado no âmbito das instituições de ensino superior, em es-
pecial por se tratar da Universidade Rural do Semiárido, localizada na região
Nordeste do país, caracterizada pelos índices de vulnerabilidade social em uma
região interiorana no coração do Semiárido e sua hegemonia histórica de ocu-
pação pelas elites brancas. Foram aplicados um total de 33 questionários, dentre
os respondentes 16 declararam-se cotistas e 17 auto-declararam-se não cotistas.
Como método de análise de resultados optou-se por utilizar a análise de
conteúdo proposta por Bardin (2011), que possibilita a realização de inferências
e reflexões em torno do conteúdo extraído do instrumento de forma organizada.
O método de Bardin (2011), institui a subdivisão em três etapas: transcrição
dos quesitos e leitura flutuante; exploração do material e criação de categorias

1045
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

temáticas a posteriori; e análise, interpretação e inferências acerca do conteúdo


dos questionários semiestruturados.

4. Análise e discussão do resultados


Após a realização da coleta dos dados, foram aplicados 37 questionários
distribuídos entre discentes que autodeclaram-se cotistas e não cotistas no
primeiro semestre do curso de Direito turno noturno da Universidade Federal
Rural do Semiárido, em seguida realizou-se uma leitura flutuante transcrição
dos dados, e posteriormente a criação de categorias temáticas com o objetivo de
organizar os dados transcritos por temática e por fim a realização de inferências
e comparações com os aparatos teóricos discutidos.
Dos discentes entrevistados que responderam aos quesitos referentes a pri-
meira parte do instrumento destinada aos aspectos socioeconômicos, 16 de-
clararam-se cotistas em um total de sete homens e oito mulheres e 17 auto-
declararam-se não cotistas dentre os quais onze homens e dez mulheres. Em
um primeiro momento não observou-se a ocorrência de disparidade numérica
entre a quantidade de homens de mulheres de ambos os grupos de cotistas e
não cotistas. No entanto, quando se avalia o quesito de autodeclararão de raça
constatou-se á baixa presença entre ambos os grupos de cotistas e não cotistas,
dentre os cotistas apenas mulheres que autodeclararam-se pretas e um homem
preto e os demais em sua maioria pardos. Dentre os não cotistas apenas duas
estudantes autodeclaram-se pretas, como também um maior quantitativo de
estudantes que autodeclararam-se brancos em relação aos estudantes cotistas.
Para tanto nas considerações relativa aos primeiros quesitos constatou-se
que a influencia da raça e gênero com o predomínio de estudantes negros e
pardos dentre os discentes cotistas atendidos pelas política de ação afirmativa
e que consequentemente possuem os menores níveis de renda entre um a dois
salário mínimos e em sua maioria estudantes que realizam algum tipo de ati-
vidade profissional durante o dia, e vivenciam a sua primeira experiência no
âmbito do ensino superior.
Em contrapartida aos discentes não cotistas que possuem níveis de renda no
mínimo a partir de três salários mínimos, e não exercem atividades profissionais
durante o dia, além da ocorrência de uma quantidade significativa de discentes
que não estão cursando a primeira graduação.

1046
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Diante disso, quando se associa os critérios de demanda econômica com os


de demanda racial, é notório á congruência desses elementos para cenários nos
quais os discentes cotistas representam um segmento social vulnerável em relação
ao demais, como a política de ação afirmativa se propõe a atingir como público,
ainda que a presença em relação ao quantitativo de pessoas que autodeclararam-
-se negras seja tímida em especial a situação as mulheres negras. Em decorrência
da sua posição de vulnerabilidade social enquanto sua posição de mulher e negra,
em relação as demais mulheres brancas na sociedade (AKOTIRENE,2018).
Portanto, as políticas de ação afirmativa voltadas para o ingresso do ensino
superior não são suficientes para atenuar os abismos sociais enfrentados pela
população negra em especial as mulheres negras, representando um dos fatores
mais complexos de se solucionar em relação a problemática, como também ho-
mens negros com baixa presença advinda dos cenários de genocídios dos jovens
negros nas regiões periféricas (ALMEIDA,2018; AKOTIRENE,2018).
Em relação aos níveis de escolaridade dos pais entre os cotistas observou-se
a ocorrência de pais analfabetos e a predominância de no miminho ensino fun-
damental e no máximo ensino médio completo e incompleto, com apenas um
discente que a mãe possui ensino superior e o outro pós-graduado. Entre os não
cotistas os níveis de renda e escolaridades registrados foram superiores aos dos
estudantes cotistas com a grande ocorrência de pais com ensino superior e pós-
-graduados e sem a presença de analfabetos e com níveis de renda acima de 3 sa-
lários mínimos. Portanto, a descrição comparativa dos dados entre cotistas e não
cotista evidencia o cenário de disparidades sociais e econômicas que permeiam
o acesso à educação e sua associação aos níveis de renda como um elemento pre-
ponderante nos indivíduos com maiores níveis de escolaridade concentrado entre
os discentes não cotistas, como também a figura da educação como um elemento
reprodutor das desigualdades (AKOTIRENE, 2018; MINTO,2014).
Na segunda parte dos quesitos relacionados a questão das políticas de cotas
raciais e sociais, os achados evidenciaram entre ambos os grupos cotistas e não
cotistas quando questionados acerca do caráter assistencialista ou não da política
de cotas sociais e raciais avaliaram como caráter assistencialista, utilizando como
argumento central o papel do esforço individual como elemento essencial para o
êxito dos indivíduos. Assim considerando a política uma forma de privilegiar um
grupo especifico, e não um mecanismo de compensação social em relação aos
demais quando questionados sobre o elemento racial da ação. A cota por deman-
da social é aceita por ambos os grupos de discentes cotistas e não cotistas, pela

1047
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

visão compartilhada com ambos os grupos cotistas e não cotistas da precariedade


do ensino oferecido nas instituições públicos de ensino fundamental e básico e
que essa problemática legitima esse tipo de ação, e a questão racial não é um
elemento de associação a esses preceitos de acordo com os estudantes cotistas e
não cotistas. Para tanto, dentre os discentes cotistas e não cotistas, é hegemônico
o discurso meritocrático como legitimador das demandas sociais, e uma ausência
de compreensão acerca dos aspectos culturais e históricos que contribuem para
manutenção desta conjuntura (BARBOSA, 2014).
Diante disso, os elementos culturais, sociais, históricos e econômicos que
permeiam a realidade desses sujeitos não são considerados e identificados por
eles, restringindo a problemática apenas aos elementos de cunho econômico,
por ambos os grupos cotistas e não cotistas. Deste modo, não há entre os dis-
centes cotistas uma identificação de sua condição de disparidade e compreen-
são da influência da sua historicidade para a sua situação atual.
Esse estudo não se propõe a estagnar o debate sobre a temática, mas a apontar
a centralidade do discurso enraizado nas percepções acerca do desempenho e es-
forço pessoal através da responsabilização individual, desconsiderando os fatores
associados as origens sociais e construções históricas e culturais que em conjunto
permeia a construção dos contextos e da conjuntura atual. E principalmente a
invisibilização das questões relativas a influência de raça, classe/renda e gênero de
forma ampla na visão dos sujeitos enquanto público alvo da política em relação
aos cotistas e em condição privilegiada em relação aos não cotistas.

Conclusão
Partindo dos resultados analisados, concluímos que existe a presença de um
hiato nas questões relacionadas a identidade dos indivíduos com sua condição
de grupo desfavorecido e ausência de identificação com a sua classe social e
ausência de sentimento de pertencimento em relação a raça e sua condição de
negro na sociedade racista e dominada pelo patriarcado. Desta forma, entre co-
tista e não cotista é hegemônico o discurso meritocrático e a falta de associação
dos critérios de raça, classe/renda e gênero como elementos que se complemen-
tam em relação as opressões sofridas pelos segmentos sociais menos desfavore-
cidos da sociedade. Além disso, ressalta-se a questão da percepção através da
tentativa de invisibilização do caráter histórico e cultural que atravessam as

1048
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

desigualdades sociais e de concentração de renda no país que não permeiam


apenas elementos de cunho econômico e carregam consigo uma dívida históri-
ca de abandono e marginalização da população negra.
As limitações referentes a execução deste estudo, estão relacionadas a res-
trição aos alunos do curso de Direito, tendo em vista o universo total de cursos
da instituição e as barreiras relacionadas a ausência de conhecimento sobre
a temática e o receio por parte dos entrevistados em expor suas opiniões de
forma livre, tendo em vista a complexidade que atravessa os elementos acerca
das políticas de ação afirmativa em especial as cotas sociais e raciais. Para tan-
to, recomenda-se a execução de estudos futuros que possam colocar a mulher
negra em posição de protagonismo no intuito de compreender a condição da
mulher negra dentro desses espaços de ensino superior.
Compreendemos ainda que o sistema de cota sociais/raciais não soluciona o
problema do acesso de grupos periféricos nas universidades em sua totalidade, mas
que essas medidas se fazem necessárias dada as disparidades existentes entre os
grupos sociais menos favorecidos em especial a população negra e que a abordagem
interseccional nos auxilia a tentar compreender as diversas nuances que permeiam
esta conjuntura, de que os efeitos de sua consolidação carecem de estudos que apro-
fundem os conhecimentos acerca desses cenários e dos seus impactos no ingresso
ao ensino superior no Brasil tornando um espaço cada vez mais diverso e plural.

Referências bibliográficas

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

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SOUZA, J. A Elite do atraso: da escravidão a lava jato. Rio de Janeiro:


Leya,2017.

1050
Mulheres guerreiras e de fé: feminismo,
educação popular e trabalho na comuna
Luís Beltrame/MST em Natal/RN

Lorena Cordeiro de Oliveira2


Rayane Cristina de Andrade Gomes3

Introdução
Falar de organização popular, especialmente sob um viés feminista, é tema
de extrema importância para a quadra histórica que o Brasil atravessa. Muitas
experiências e metodologias de como trabalhar com o povo (BOFF, 1984) tive-
ram, em nosso país, um dos principais espaços de formulação e aprimoramento.
Contudo, muitas dessas formas de trabalho voltadas à participação política e
democrática acabaram sendo suplantadas ou abandonadas como alternativas
de mobilização nos locais de trabalho, moradia ou estudo.
O desacúmulo no trabalho cotidiano de formação política popular nos ajuda
a compreender o que a recente pesquisa realizada pelo Instituto Latinobaróme-
tro aponta: a população brasileira é a que menos confia nas instituições demo-
cráticas4. O assustador percentual de 13% é o resultado de uma infinita combi-
nação de fatores, como a campanha de criminalização da participação política
perpetrada pela mídia comercial, ou pela distância entre a representação parla-
mentar em geral e o perfil majoritário da população brasileira. Contudo, esses
problemas na realização democrática devem ser analisados em conjunto com o
modo de produção que atravessamos – o capitalismo.

2 Advogada e mestre em Direito na área de direitos humanos pelo Programa de Pós-Graduação em


Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
3 Advogada, mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte e professora da Universidade Estadual de Goiás.
4 CORPORACIÓN LATINOBARÓMETRO. Informe 2018. Disponível em: <http://www.latinobarometro.
org/lat.jsp> Acesso em: 26 dez 2018.

1051
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Como nos alerta Wood (2011), a convivência entre o modo de produção


capitalista com a plena participação cidadã é incompatível. De maneira que os
sujeitos expropriados e marcados pelos sistemas de opressão – como o machis-
mo e o racismo – encontram ainda mais barreiras para alterar a correlação de
forças e superar o establishment.
Uma das formas possíveis de reverter esse quadro, no sentido de acumular
forças para uma ruptura revolucionária, é precisamente disputar os espaços de
Poder. Em um país continental, majoritariamente negro e com um eleitorado
eminentemente feminino, não podemos discutir alternativas que não passem
por colocar essas sujeitas no centro da análise.
Assim, abordaremos a discussão sob um viés feminista consubstancial5 que
compreende que a realidade das mulheres – especialmente negras – só pode
ser explicada a partir da articulação das categorias de classe, gênero e raça.
Igualmente, por se tratar de uma análise de algo concreto, buscaremos utilizar
a categoria da educação popular como um elemento central para a observação
do Comitê popular mulheres guerreiras e de fé.
A ação, que teve como entidade propulsora o mandato da vereadora do Par-
tido dos Trabalhadores Natália Bonavides, foi construída com e para o trabalho
com as mulheres do Movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST). A
atividade, desenvolvida entre outubro e dezembro de 2017, articulou aspectos
produtivos e políticos na busca de contribuir com o processo de organização das
mulheres da comuna urbana.
Aqui buscaremos, a partir do olhar da equipe vinculada ao gabinete
parlamentar, lançar ideias sobre todo o desenvolvimento do trabalho. O
fizemos como primeiro olhar a ser lançado sobre a experiência, para acu-
mularmos os primeiros aspectos teóricos no sentido de aprofundar, sem es-
gotar, os debates que vêm com o trabalho de campo. Metodologicamente,

5 Inaugurada por Danielle Kergoat, elaborada por Helena Hirata e continuada, no Brasil, por Mirla
Cisne, entre demais autoras, o debate sobre a consubstancialidade vem para demarcar uma posição
frente a concepção interseccional de feminismo elaborada pelo movimento e pensamento negro das
mulheres e intelectuais estadunidenses. A ideia de recentrar a articulação entre as opressões com a
lógica da divisão sexual do trabalho estão no centro do conceito. Não seria qualquer triangulação de
elementos que traduziria a complexa camada de opressões direcionadas às mulheres. Elas partiriam
de uma base comum, a divisão sexual do trabalho, de forma que as ‘‘relações sociais de sexo“ seriam
cortadas por essa base concreta. Assim, as feministas marxistas têm trabalhado o conceito de
consubstancialidade por dar centralidade a esse aspecto dentro do debate do patriarcado/machismo
(HIRATA, 2014. p. 61-73; CRENSHAW, 2008).

1052
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

escolhemos a revisão bibliográfica para aprofundar os debates suscitados e


produzir apontamentos com base na análise do caso em estudo, lançando
mão da análise de depoimentos das mulheres registrados nas relatorias dos
encontros do Comitê.
Assim, organizamos o texto em três seções para que esse objetivo fosse al-
cançado. De forma que na primeira seção – Mulheres guerreiras e de fé: do pa-
pel à prática - apresentaremos o processo de concepção do Comitê, objetivos
e ferramentas metodológicas idealizadas. Na sequência – Vassouras, educação
popular e empoderamento feminino – apontamos a necessidade de se articular as
três dimensões propostas nesse estudo no sentido de afirmar a autonomia e o
empoderamento das mulheres que fizeram a ação, e por fim, no tópico – Pro-
dução, política e poder: a organização das mulheres para enfrentar o machismo e a
pobreza – introduzirmos as categorias selecionadas para observar de conjunto o
desenvolvimento da atividade.

2. Mulheres Guerreiras e de fé: do papel à prática


A formulação da proposta de atuação junto à comunidade e em parceria
com os movimentos sociais sempre esteve no foco da atuação parlamentar do
mandato da vereadora Natália Bonavides. Do processo de formulação de uma
candidatura do campo da esquerda e que voltasse seus esforços para a organiza-
ção popular até a eleição em 2016, a presença do Movimento dos trabalhadores
rurais sem-terra, entre outras organizações, foi fundamental. Igualmente, o viés
feminista e socialista compôs o espectro político-ideológico do grupo e das pro-
postas formuladas para a Câmara Municipal de Natal.
Entre uma das ideias a ser desenvolvida enquanto mandato parlamentar
estava a elaboração e execução de atividades de organização social com mu-
lheres e em parceria com os movimentos sociais. De maneira que em meados
de junho de 2017 a equipe parlamentar, em parceria com o MST, começou a
formular uma proposta de intervenção em uma das ocupações da entidade.
Alguns parâmetros foram estabelecidos: a) a necessidade de uma atividade
produtiva, que visasse inserir as mulheres em alguma atividade econômica; b)
que o trabalho contribuísse no processo de organização do próprio MST e c)
que o processo trabalhasse com debates políticos de temas prioritários à vida
das mulheres na comunidade.

1053
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Estabelecidos os eixos, chegou-se à escolha do local. A comuna Luís Beltra-


me, que em 2016 havia atravessado um momento delicado, a partir do processo
de reintegração de posse levado a cabo pelo Governo do Estado do Rio Grande
do Norte, faz parte de um processo de organização do movimento que cuida
das demandas de luta por moradia, diferenciando-se da pauta tradicional do
MST – reforma agrária.
Nesse sentido, trata-se de uma comunidade de quase 100 famílias que ocu-
pam um território público situado na zona norte da capital potiguar, onde mu-
lheres e homens, adultos, idosos, crianças e adolescentes reivindicam o direito à
moradia e vida dignas. A ocupação tem como traços gerais a predominância de
uma população heteroidentificada pelas autoras como negras. Durante o tempo
de execução do trabalho – outubro a dezembro de 2017 – percebeu-se que a
maioria das famílias viviam de trabalhos informais, da catação de materiais
recicláveis ou de atividades de produção e conserto de fogões.
O que de plano justificou a seleção das mulheres como as sujeitas da ação
foi a pré-compreensão de que são elas que, seguindo a tendência nacional, têm
os trabalhos mais precarizados e mais dificuldade de acessar o mercado por sua
responsabilização com a reprodução e cuidado6.
Assim, elaborou-se junto com o MST uma estratégia de ação que combinas-
se a aprendizagem de uma atividade produtiva com a necessidade de debater as
assimetrias de gênero e raça dentro da própria comunidade.
A atividade produtiva escolhida pelas mulheres foi a produção de vassouras
com material reciclado. Tanto por terem mais facilidade com a obtenção dos
materiais, quanto o interesse de aprofundar os conhecimentos de algumas das
mulheres que já tinham tido contato com a atividade e a possibilidade de retor-
no financeiro, a fabricação das vassouras foi a componente produtiva da ação.
Dessa forma, elaborou-se um cronograma base que foi apresentado às mu-
lheres no primeiro dia de encontro entre as mulheres do gabinete e as mora-
doras da comuna. A proposta intercalava encontros de debate político com o

6 De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD C), no quarto
trimestre de 2017, “as mulheres dedicaram 18 horas semanais a cuidados de pessoas ou afazeres
domésticos, 73% mais tempo do que os homens (10,5 horas)” (IBGE, 2018). A mesma pesquisa
apontou que as mulheres representam 54% dos 6,46 milhões de pessoas que trabalham menos de
40h semanais, mas que gostariam de trabalhar mais. Trata-se de um dos reflexos da desigualdade
de gênero, que leva as mulheres a buscarem ocupações de tempo parcial para conciliar as múltiplas
jornadas de trabalho.

1054
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de produção das vassouras, sempre mediadas com um espaço lúdico-educativo


para as crianças. A “ciranda”, como foi chamada por nós, contava com a partici-
pação dos homens vinculados ao mandato e de alguma das mulheres da equipe,
no sentido de engajá-los no debate do cuidado com as crianças e adolescentes.
Até o processo de inserção na comunidade, a equipe executora, composta de
quinze pessoas, atravessou formações sobre as temáticas de educação popular,
trabalho com as crianças e adolescentes e teatro do oprimido. Durante o traba-
lho, na semana que antecedia a ida a comunidade, toda a equipe voltava-se à
preparação e planejamento das atividades, conforme os acordos firmados com
as mulheres, crianças e adolescentes.
Além da equipe parlamentar, mobilizamos parcerias com o Serviço Brasilei-
ro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE-RN) e com um traba-
lhador que fabrica vassouras a partir de garrafa PET, responsável por facilitar
o curso de produção das vassouras de material reciclado. Conforme o plano
de atividades, trabalhamos com as metodologias do teatro do oprimido para
realizar um diagnóstico participativo da percepção das mulheres quanto aos
debates feministas, mesclando com sessões de cinema e debates sobre os temas
de participação política da mulher, violência de gênero e cooperativismo.
Importante destacar que, a despeito de haver uma coordenação da
equipe, todas as mulheres se revezavam na condução dos trabalhos, rela-
toria da atividade e registro, oportunizando uma diversidade de linguagem
e abordagem, explorando as potencialidades e habilidades diferenciadas
de cada uma das mulheres. A construção da ação foi orientada nos prin-
cípios da educação popular, utilizando o método ver, julgar, agir, avaliar,
celebrar (SOUZA, 2016, p. 145), desenvolvido na perspectiva teórica da
teologia da libertação, buscando ser uma ação refletida a partir das de-
mandas das mulheres que tivesse alguma relevância concreta para a su-
peração das dificuldades apontadas por elas, e que ao fim obtivesse êxito,
havendo conquistas a serem apontadas.
O conceito do método é trabalhado na teologia da libertação, que compar-
tilha muitos dos princípios da educação popular. Conforme Souza (2016, p.147):

Vernão é só um olhar sobre a realidade sócio-político-econômica, mas


é um observar integral. “Julgar” não se limita a analisar as Sagradas
Escrituras, mas também buscar luzes e orientações nas doutrinas da
Igreja e nos valores éticos oferecidos pela cultura cristã. Este método,

1055
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

desenvolvido pela teologia pós-conciliar, principalmente pela Teologia


da Libertação, pretende responder às questões básicas do fazer teológico:
quem faz teologia? Quando? Onde? Para quem?

Assim, começamos o trabalho que culminou com a fabricação das vas-


souras pelas mulheres que participaram da atividade e que chegaram a ser
vendidas em uma feira multicultural no centro da cidade de Natal. O que
começou com um diagnóstico que apontava que uma das principais dificul-
dades das mulheres era a ausência de uma atividade econômica, culminou
com a venda do produto e na unificação de um grupo de mulheres que par-
ticiparam de todos os oito encontros.
O nome do grupo, construído pelas moradoras da comunidade – Comi-
tê Popular Mulheres guerreiras e de fé – representa bem o que foi todo o
processo de construção da atividade. O que foi rascunhado ganhou forma e
contribuiu, ainda que minimamente, para a construção do sentido de quebra
das assimetrias de gênero das participantes. Os encontros, que aconteciam
aos sábados, geralmente no turno da tarde, eram momentos de encontro das
mulheres e de fortalecimento de vínculos para além da produção das vassou-
ras ou do debate político proposto.
A participação do mandato, ao garantir a disponibilidade de seus cola-
boradores e com as despesas do curso, foi combinada com a disposição de
cada uma das mulheres que trouxeram o Comitê Popular a vida. Alguns dos
equipamentos foram deixados para que a atividade pudesse prosseguir mesmo
com a desintensificação dos encontros, apresentando uma nova fase de desa-
fios para as mulheres da comuna. Os impactos e impressões sobre a atividade
serão abordados em sequência.

2.1. Vassouras, educação popular e empoderamento feminino


A construção de um saber útil para as mulheres era um dos objetivos ideali-
zados com o Comitê Popular de Mulheres, em cujo horizonte estava contribuir
para o processo de empoderamento feminista das “Mulheres guerreiras e de
fé” da comuna Luís Beltrame/MST. Ao observarmos os impactos do trabalho
desenvolvido, identificamos que a utilização da educação popular foi essencial
para que esse processo de empoderamento fosse iniciado.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O Comitê Popular foi pensado e executado mediante orientações peda-


gógicas e políticas que compõem a educação popular, metodologia que bus-
ca construir relações a partir da horizontalidade, do diálogo e do respeito
aos saberes do outro ou da outra com quem se relaciona. Compreender as
sujeitas, suas necessidades e o espaço em que elas estão inseridas, portan-
to, foi fundamental para o desenvolvimento do projeto, que contou com as
opiniões e sugestões das mulheres da comuna desde a escolha da atividade
produtiva ao calendário de atividades.
Para as mulheres da comuna, a superação da desigualdade de gênero está di-
retamente relacionada à independência financeira, algo que se coloca como um
desafio permanente tendo em vista a dificuldade de se inserirem no mercado
formal de trabalho e as barreiras para o ensino formal e profissionalizante. Em
suma, por sua condição de classe. Logo, era imprescindível que o trabalho de
formação política fosse atrelado a oficinas práticas, que instrumentalizassem as
mulheres com conhecimento que pudesse torná-las independente.
Dessa forma, notamos que a oficina de produção de vassouras de garrafa
pet, por ser fruto de uma escolha delas e por envolver matéria prima acessível
– as garrafas podiam ser adquiridas por vizinhos que trabalham com material
reciclado – proporcionou uma oportunidade de acesso a um conhecimento útil
e capaz de produzir impacto direto em suas vidas, saber esse, aliás, que apenas
elas detinham na comuna.
Com o conhecimento da produção de vassoura de garrafa pet, as mulheres
se perceberam com possibilidades de crescimento numa vida da qual elas eram
protagonistas, como ilustra a seguinte conversa registrada no segundo encontro
do Comitê, durante a oficina de produção das vassouras:

N.: - vou guardar essa vassoura para minha casa nova!


C.: - aí já vão ter outras... Sonhar é bom, né? Eu sonho alto!
N.: - eu também sonho alto!
C.: - eu ainda quero ter meu próprio negócio!

Na mesma ocasião uma das mulheres também colocou que gostaria de criar
um comitê, uma associação para organizar a fabricação das vassouras junto
com as outras mulheres. Essas falas nos trazem elementos importantes para a
compreensão do processo de construção do empoderamento feminino. Primei-
ramente, a projeção quase imediata que as mulheres fizeram de como poderiam

1057
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

ser suas vidas depois de obter o conhecimento sobre a produção de vassou-


ras. Isso foi possível porque, como já dito, a atividade foi escolhida em diálogo
com as mulheres, a vassoura tinha uma ligação direta com a realidade delas, e
porque a oficina produtiva, mesmo sendo um momento de trabalhar técnicas,
estava inserida dentro de um debate político de gênero. Diálogo, conexão com
a realidade das sujeitas e ação educativa e política são justamente algumas das
características da educação popular pensada por Paulo Freire.
Na pedagogia freireana, o diálogo ocorre mediante uma relação de horizon-
talidade entre as pessoas envolvidas na ação educadora, de forma que “ambos
se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos (...) e se educam em
comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1996, p. 39), permitindo não
a transferência de conhecimento, mas a criação das possibilidades para a sua
produção ou construção (FREIRE, 1996, p. 47).
Para que atenda a uma perspectiva de educação libertadora, o diálogo deve
ser crítico, libertador e realizado com os oprimidos (FREIRE, 1996, p. 29), a
partir de elementos da sua realidade, de suas condições concretas e do respeito
ao seus conhecimentos:

Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto


de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral,
e da humana, de modo especial, como um dos impulsos fundantes da
produção do conhecimento (FREIRE, 1996, p. 77).

Além disso, a emancipação exige a combinação simultânea da ação e refle-


xão, isto é, do trabalho crítico-intelectual sobre a realidade e a incidência sobre
ela para transformá-la, consoante as reflexões realizadas:

Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta


sobre ela. Por isto que, só através da práxis autêntica, que não sendo
“blábláblá”, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo. (...)
Dessa forma, esta superação exige inserção crítica dos oprimidos na
realidade opressora, com que, objetivando-a, simultaneamente atuam
sobre ela (FREIRE, 1996, p. 21).

Outro ponto é a questão de que não se trata de qualquer conhecimento, mas do


conhecimento socialmente útil. Aqui a ação do Comitê Popular de Mulheres se apro-
xima do conceito de extensão universitária popular de José Francisco de Melo Neto:

1058
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Sendo trabalho social e útil, a efetivação da extensão gera um produto


que transforma a natureza, na medida em que cria cultura. É um
trabalho imbuído da sua dimensão educativa. O produto desse trabalho,
todavia, passa a pertencer tanto às equipes dos projetos de extensão, na
universidade, quanto à própria comunidade ou aos grupos comunitários,
para aplicação na organização de seus movimentos. Esta tem sido uma
busca constante de apropriação do produto gerado nas atividades
de extensão. Essa dimensão da extensão possibilita a superação da
alienação gerada pela não posse do produto do trabalho por parte de
seus produtores, no modo de produção capitalista. Todos os produtores
devem apropriar-se desse produto do trabalho, que é o saber (MELO
NETO, 2004, p. 36-37).

As oficinas de produção de vassouras e de precificação produziram, junto com


as mulheres, um conhecimento de efeitos práticos na vida delas, sobretudo na
esfera da autonomia. Sabendo quais os instrumentos e materiais necessários para
produzir as vassouras e quais os cálculos que chegam ao valor de venda, as mu-
lheres da comuna Luís Beltrame poderão seguir na produção econômica por elas
mesmas, gerando rendimentos econômicos que poderão ajudar no seu processo de
independência e empoderamento feminino. Isso, claro, são possibilidades, antes
inexistentes, que se abriram a partir do Comitê, de maneira que há vários fatores
que poderão ainda constituir obstáculos à continuidade da produção, como a não
organização das mulheres, não ter acesso à obra-prima, ordens judiciais de despejo
contra a ocupação do movimento, cortes das políticas sociais, etc.
A valorização da autonomia também é um dos elementos da educação po-
pular. De acordo com Freire (1996, p. 18), “a liberdade, que é uma conquista, e
não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só exis-
te no ato responsável de quem a faz”. Ou seja, para ser de fato transformadora,
a prática educativa deve ter em mente que as sujeitas são protagonistas de sua
própria história, respeitando sua autonomia e agindo para que esta seja fortale-
cida no enfrentamento às opressões. Negar a autonomia das mulheres, por sua
vez, seria agir para a manutenção da opressão:

Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a


sua “generosidade” continue tendo a oportunidade de realizar-se, da
permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é fonte geradora
permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e
da miséria (FREIRE, 1987, p. 17).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Ainda sobre a produção de conhecimento, vale destacar que, tendo ocor-


rido mediante um trabalho de educação popular, entre sujeitas educando-se
entre si, mediatizadas pelo mundo (FREIRE, 1996, p. 39), as mulheres que
executaram o projeto Comitê Popular, participando como articuladoras e fa-
cilitadoras do processo, também puderam se apropriar dos saberes produzidos
com as mulheres da comuna, de maneira que a experiência se constituiu em
aprendizado útil e relevante no âmbito da atuação parlamentar. Em contato
direto com as usuárias das políticas públicas do município de Natal, a equipe
tomou conhecimento de falhas dos serviços, provocando o mandato a exercer
a função de fiscalização. O processo de diálogo também contribuiu com a
construção de um projeto de lei que institui a política municipal de fomento
à economia solidária na capital e com a construção de conhecimentos que
poderão ser aplicados em outras ações do projeto Comitê Popular.
Do diálogo mencionado no início deste tópico, podemos extrair ainda a ideia
de organização econômica e social das mulheres em torno da produção de vas-
souras. Se no primeiro encontro do Comitê, as mulheres pensavam a indepen-
dência financeira a partir da obtenção de um emprego no qual trabalharia para
outras pessoas, conforme observamos nas falas “hoje boto currículo em tudo
quanto é canto e não consigo”, “já rodei muito lugar e não consegui”, “hoje em
dia a gente não arruma nem mais lavagem de roupa”, agora as mulheres guer-
reiras e de fé podem pensar na possibilidade de alcançar a tão sonhada inde-
pendência através do próprio negócio, seja individual ou coletivo (associação).
Compreendemos que essa fala também está situada no contexto da prática
da educação popular realizada pelo Comitê, que tinha como objetivo estimular
a auto-organização das mulheres para o enfrentamento coletivo e feminista de
sua condição. Quer dizer, que tinha no cerne de sua práxis, a valorização da
autonomia através da oferta de oportunidades que pudessem auxiliar no enfren-
tamento da pobreza e do machismo.
A superação da desigualdade de gênero para as mulheres da comuna Luís
Beltrame, segundo elas, passa necessariamente pelo trabalho, pelo acesso a
possibilidades de alcance da independência financeira, permitindo sua parti-
cipação na economia, na política, no espaço público como um todo. É o que
apreendemos da fala de uma delas quando perguntamos sobre o maior problema
da mulher: “a gente é submissa ao homem porque a gente não trabalha”. Quer
dizer, enquanto a dependência econômica permanecer, menores são as chances

1060
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de essas mulheres conseguirem exercer seus direitos de forma autônoma, na


esfera pública e privada, enquanto verdadeiras sujeitas de direitos.
Neste sentido, a escolha da educação popular como metodologia de traba-
lho foi essencial para a produção dos resultados obtidos pelo Comitê Popular
Mulheres guerreiras e de fé frente ao contexto de pobreza e de negação de di-
reitos vivenciado pelas mulheres da comuna Luís Beltrame. A oportunidade de
trabalho figura como questão central na medida em que garante as condições
materiais para o debate sobre gênero e política.
De certo que, em sendo um processo, a construção da autonomia dessas
mulheres também depende de outros fatores para continuar a se desenvolver,
inclusive das suas próprias condições concretas de existência, e mesmo da exis-
tência da própria comuna. Assim, o papel do Comitê foi de propiciar o acesso às
condições de superação das desigualdades enfrentadas pelas mulheres guerreias
e de fé da comuna Luís Beltrame.

3. Produção, Política e Poder: a organização das mulheres


para enfrentar o machismo e a pobreza
Nos encontros do Comitê Popular, a palavra “trabalho” era sempre referen-
ciada como condição para uma série de realizações na vida das mulheres da
comuna Luís Beltrame – independência financeira, atender às necessidades dos
filhos, construir uma casa, ter uma vida digna, se alimentar, dentre outras – de
forma que trabalho e empoderamento feminino apresentam-se diretamente in-
terligados no discurso delas.
No primeiro encontro do Comitê, quando perguntadas sobre qual era
o maior problema da mulher, as respostas se dividiram entre as opressões
praticadas pelo homem (faltar com o respeito e explorá-las no trabalho do-
méstico, por exemplo) e o desemprego, como podemos observar em algumas
das falas registradas na ocasião:

- Qual o maior problema enfrentado pela mulher?


- É o homem que quer fazer ela de empregada. A mulher não tem voz
ativa. A mulher sozinha é rainha... com homem ela desce.
- Tem homem que não valoriza a mulher.
- A grande situação de desemprego aqui na comuna. Não tem recurso.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

- Falta de oportunidades, que a gente não tem. A gente não tem estudo.
Já rodei muito lugar e não consegui.
- Se a gente chega nos cantos, diz que é daqui, ninguém quer. Já é a
discriminação.
- A gente perde muita oportunidade porque não tem estudo.
- Hoje em dia a gente não arruma nem mais lavagem de roupa.
- A gente é submissa ao homem porque a gente não trabalha.

Em seguida, quando perguntadas sobre o que mudaria na vida delas se ti-


vessem um emprego, o trabalho e o empoderamento da mulher apareceram de
forma claramente relacionadas, como questões que dependem uma da outra:

- Muda muita coisa. Ajudar a família, dar o que o filho precisa. O di-
nheiro que você recebe só dá para pagar contas e olhe, olhe a comida.
Você tem que explicar ao marido porque precisa do dinheiro. Se a gente
fosse independente não seria assim.
- Quero trabalhar para dar o melhor para minha filha. Minha filha pede
um biscoito e eu não tenho nada para dar e isso dói (falou emocionada).
- O emprego é o essencial da vida... para nunca depender de homem.

Para compreender o valor que o trabalho representa na vida dessas mu-


lheres, necessário nos debruçar sobre o espaço ocupado pela mulher negra na
história do trabalho no nosso país. Afinal, estamos falando de mulheres que
são submetidas à exploração do trabalho desde o período colonial, antes mesmo
da entrada das mulheres brancas de classes populares no mercado de trabalho.

Se para as mulheres brancas das classes médias, um ponto importante


para autonomia é sua inserção no trabalho remunerado, demandando
políticas de ativação; para as mulheres negras das classes mais pobres, a
participação no mundo do trabalho é, em geral, precoce, precarizada e
as inscreve, de partida, em patamares desvantajosos. As demandas são,
por conseguinte, diferenciadas (SILVA, 2013, p.110).

As mulheres negras escravizadas acumulavam uma série de tarefas domés-


ticas e de cuidado, além de serem forçadas a atender as exigências sexuais do
senhor e de estarem submetidas aos mesmos castigos corporais que os homens
negros escravizados. De acordo com Gonzalez (1984), Carneiro (1985) e Santos

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

(1985), “ao contrário de uma exploração atenuada, observa-se uma complexifi-


cação do quadro de subalternidade desses sujeitos” (apud VIEIRA, 2018, p. 55).
Após a abolição, a maior parte das mulheres negras permaneceu nas ativi-
dades domésticas, nas quais continuavam sendo vítimas de abusos sexuais dos
patrões e submetidas a situações precárias de trabalho, o qual era comumente
tratado como troca de favores, sob os parâmetros da gratidão e da obediência,
mediante salários baixos, sobretudo quando comparado ao valor recebido pelas
mulheres brancas trabalhadoras. A título de ilustração: em 1886, apenas em
São Paulo, 85% das estrangeiras brancas recebiam salários entre 20 e 50 mil
réis, e 70% das trabalhadoras negras (africanas e brasileiras) recebiam abaixo
desse valor (TELES, 2013 apud VIEIRA, 2018, p.63).
Além do trabalho doméstico, as mulheres negras desempenhavam trabalhos
informais como de lavadeira e vendedora de rua. Porém, até mesmo este tipo de
trabalho era dificultado através de medidas estatais que impediam o exercício
dessas atividades, como é o caso das obras de modernização das cidades, rea-
lizadas para atender as elites locais, as quais “manifestavam profunda aversão
aos ‘focos de infecção’ e ‘promiscuidade’ os quais julgavam serem as beiras dos
rios, onde trabalhavam as lavadeiras, como também vendedores ambulantes”
(VIEIRA, 2018. p. 62).
Assim, podemos perceber que a exploração do trabalho das mulheres ne-
gras atravessa séculos de cultura colonial, que as submete aos mais precários e
desvalorizados postos de trabalho. Essa mesma cultura, de contornos machista,
racista e capitalista, se expressa hoje através de dados: segundo a Relação Anual
de Informação Social (Rais), do Ministério do Trabalho7, em média, o ganho
de duas mulheres negras corresponde ao valor de uma não negra. Segundo a
mesma base de dados, uma mulher negra ganha no Brasil, em média, R$ 790,
enquanto o salário do homem branco chega a R$ 1.671,00 – mais que o dobro.
Ao mesmo passo que ganham menos, as mulheres negras estão 50% mais vulne-
ráveis ao desemprego, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea)8. A dificuldade de acesso e de atingir melhores remunerações vem de outros

7 MINISTÉRIO DO TRABALHO. Relação Anual de Informações Sociais (Rais). Disponível em <http://


portalfat.mte.gov.br/relacao-anual-de-informacoes-sociais-rais/>. Acesso em 26 de dez. de 2018.
8 IPEA. Jovens e mulheres negras são mais afetados pelo desemprego. Disponível em <http://ipea.
gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34371&catid=10&Itemid=9>.
Acesso em 26 de dez. de 2018.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

fatores, já adiantados pelas falas aqui descritas, além da barreira da educação formal.
Apenas 10% das mulheres negras no país possuem ensino superior completo9.
Contudo, são essas mulheres as que mais se dedicam ao trabalho repro-
dutivo. Ainda segundo o IBGE, as mulheres pretas ou pardas são as que
mais se dedicam aos cuidados de pessoas e/ou aos afazeres domésticos, com
o registro de 18,6 horas semanais em 2016. Ou seja, aquelas estruturas colo-
niais não só se mantém, como foram aperfeiçoadas para atender as exigên-
cias do modo de produção capitalista.
Essa é a tradução em dados amplos da realidade das mulheres do Comitê
Popular. Ou seja, a trajetória dessas mulheres é marcada pela pobreza, pelo de-
semprego e pela discriminação racial. Marcadores sociais que se somam às con-
dições peculiares de estarem organizadas em um Movimento social, duramente
perseguido e criminalizado, e de lutarem por moradia. O que acrescenta um
elemento de pressão pela disputa pela efetivação do direito à cidade.
Ou seja, além de enfrentarem os desafios inerentes à condição de serem
negras e pobres, a condição de se inserirem em uma organização que disputa
diretamente com os interesses do capital – especulação imobiliária, luta por
reforma agrária. A pressão para a participação política na liderança do movi-
mento e na organização da própria Comuna – tarefa política pública – é mais
um dos momentos que compõe a vivência dessas mulheres.
O que se percebe, tanto a partir da análise das descrições das falas, quanto
de uma avaliação de todo o percurso da atividade, é que a chave para o em-
poderamento10 dessas mulheres é o reconhecimento através do trabalho. Seja
da compreensão da importância do papel que cumprem na esfera reprodutiva,
lógica que se reproduz na esfera política – são as mulheres que mediam os con-
flitos, que cuidam das cobranças das atividades de “mutirão”, de limpeza da
comunidade, de assistência à saúde dos demais membros da comuna etc. – ou
do acesso ao mercado de trabalho formal.
Logo, essas mulheres são parte de um dos complexos estratos da classe traba-
lhadora, marcadas pelas estruturas do machismo e do racismo. E isso acontece

9 IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Disponível em: <https://
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf> Acesso em 26 de dez. de 2018.
10 Conforme KLEBA (2009, p. 742) entendemos empoderamento aqui como “autodeterminação
de indivíduos e comunidades, objetivando uma participação simbólica e real na busca da
democracia e equidade”.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

a um só tempo, em um só corpo. Analisar a realidade que enfrentam na luta


cotidiana pelo acesso a moradia destacando qualquer uma dessas peças é um
erro. Busca-se uma compreensão consubstancial do fenômeno. Essas mulheres
são trabalhadoras, possuem cor, endereço e trajetórias muito bem determinadas
e sua auto organização é uma grave ameaça ao capital.
Como já prenunciava o próprio Marx, o capitalismo cria seu próprio coveiro. E
ao propor uma teoria revolucionária, de ruptura, o racismo, o machismo e os demais
sistemas de opressão não podem ser tirados dessa equação, sob pena de manterem-
-se intactos os elementos sustentadores da exploração do próprio trabalho.
Assim, o aspecto produtivo encontra o reprodutivo na alteração da corre-
lação de forças dentro da própria comuna. As mulheres, através do curso, pas-
saram a ser detentoras de um conhecimento diferenciado dos homens. Alguns
comentários durante o período de realização das atividades apontavam para
isto, que os companheiros/esposos manifestavam interesse em fazer o curso, ao
que algumas das participantes acordavam e tantas outras discordavam.
Ou seja, o processo de construção da organização, e especialmente daquela
de caráter identitário, como é o caso, é permeado de contradições, como todo
processo histórico. A elevação da compreensão da necessidade sobre o protago-
nismo das mulheres era o objetivo dos momentos eminentemente de discussão,
e um dos reflexos disso se faz perceber na comunidade após o término das ati-
vidades: as mulheres ocuparam o barracão central e o transformaram em um
espaço para uso prioritário delas. É onde se encontram os cartazes, banners e
materiais que continuam a ser produzidos por elas hoje. Não à toa, é um dos
primeiros barracos da comuna.
Ainda que reduzida, houve uma pequena alteração da relação de poder exis-
tente na comuna. São as mulheres as protagonistas, elas que detém o saber
sobre a produção, o que impacta diretamente nos processos de liderança e de
organização interna. Por outro lado, as atividades paralelas com as crianças
eram fundamentais para garantir a presença delas em qualquer momento. Ou
seja, o lema feminista da década de 80 “o pessoal é político” é ainda uma síntese
da vivência das Mulheres guerreiras e de fé.
A política, aqui entendida como um estar no mundo, está totalmente arti-
culado com avanço dessas mulheres. Não à toa, Angela Davis cunha a famosa

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frase “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se


movimenta com ela”11.
O avanço de quem está na base da pirâmide social faz toda ela se desesta-
bilizar. No sentido do debate de Marx (2015) sobre emancipação humana e
política, a atividade realizada – que em si não carrega conteúdo revolucionário
ou de ruptura com o capital – promove o acúmulo de forças para a organização
dessas sujeitas, o que é uma contribuição importante para o processo de enfren-
tamento ao machismo, ao racismo e à pobreza.

Conclusões
A experiência do Comitê Popular Mulheres guerreiras e de fé trouxe impac-
tos diretos na organização das mulheres da comuna Luís Beltrame e também
na atuação parlamentar. A atividade legislativa tem como função precípua a
representação política como instrumento para construção de leis e para o exer-
cício da fiscalização do poder executivo, sejam em nível municipal, estadual ou
federal. A forma de exercitar essas prerrogativas tem como única limitação os
parâmetros legais, sendo seu exercício livre de acordo com as orientações polí-
ticas, ideológicas e partidárias de cada mandato eletivo.
Esses parâmetros, articulados, contribuem para um exercício parlamentar
que efetive o Estado democrático de direito preceituado pela Constituição de
1988. A liberdade de organização política e partidária, elemento fundamental
para a soberania nacional, foi protegido pelo processo constituinte originário e
colocado como fundamento da república.
Dito isto, e inspirados em experiências acumuladas no legislativo municipal
brasileiro, formulamos um projeto legislativo que conjuga processos formativos
– a partir dos marcos teóricos da educação popular, produtivos – a partir da
concepção de economia solidária, e legislativos – com fundamento na episte-
mologia do teatro legislativo.
Para Carlos Brandão (1995, p. 51), a educação popular é “a possibilidade
da prática regida pela diferença” que tem como objetivo principal “o fortale-
cimento do poder popular, através da construção de um saber de classe”. Esse

11 Discurso de Angela Davis durante a conferência de abertura da Escola de Pensamento Feminista


Negro, em 17 de julho de 2017, na cidade de Cachoeira-BA. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=6CdrOqPE7Rs>. Acesso em 26 dez 2018.

1066
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

referencial teórico orienta a prática do mandato e é de onde partimos para a


construção da atividade, construindo o processo legislativo com quem é seu
destinatário final, de maneira a democratizar as pautas da atuação parlamentar
a partir de um movimento compartilhado.
Essa forma de desempenhar um cargo parlamentar não é novidade. Augusto
Boal, eleito vereador no Rio de Janeiro em 1993, utilizou a metodologia do Tea-
tro Legislativo para elaborar seus 33 projetos de leis, dos quais 14 se efetivaram
como normas municipais12. Essa experiência bastante estudada por teóricos de
diversos campos do saber possibilitou uma forma criativa e acessível para qual-
quer cidadão – independente de sua escolaridade e classe social – contribuir
diretamente para a elaboração das normas do município que residia.
O Comitê Popular Mulheres é elaborado com base nesses dois referenciais,
aos quais se soma o último aspecto: o produtivo. Reunir grupos comunitários
em seus locais de estudo, trabalho e moradia demanda um importante elemento
de convencimento da importância da atividade, e como o aspecto da educação
popular orienta, é fundamental que seja um espaço de troca e de construção de
saberes. A conclusão sobre a centralidade da combinação da oficina produtiva
com o debate de gênero foi confirmada pelas falas das mulheres durante os en-
contros, quando sempre associavam a liberdade à independência financeira, o
desemprego à opressão de gênero.
Ao mesmo tempo, a adoção de princípios e ferramentas da educação po-
pular para mediar essa relação com as mulheres da comuna também se coloca
como central na análise da experiência. O diálogo, o respeito ao contexto, ao
conhecimento e à autonomia das mulheres, a provocação da reflexão crítica
sobre a realidade, a produção coletiva de saberes, e todo o preparo da equipe
do mandato para que todos esses elementos fossem observados durante os
encontros permitiram que tivéssemos como um dos resultados o engajamento
das mulheres nas atividades do Comitê, o que consideramos um fator relevan-
te para a ação educativa.
Engajamento esse que levou à organização das mulheres para além dos
encontros aos sábados, reunindo-se em outros dias da semana para a produ-
ção de vassouras e assim aumentarem a produção, o que traduz uma espécie
de enfrentamento coletivo da pobreza, do desemprego e do próprio machis-

12 INSTITUTO AUGUSTO BOAL. Augusto Boal, 2018. Vida e obra. Disponível em:<http://
augustoboal.com.br/vida-e-obra/#1968>. Acesso em: 26 dez 2018.

1067
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

mo, dada a íntima relação observada, que era justamente um dos objetivos
do projeto Comitê Popular.
Por outro lado, a vinculação da atividade a um mandato parlamentar tam-
bém apresenta limitações que impactam diretamente os resultados da experi-
ência. A dificuldade em conciliar as tarefas institucionais com o Comitê e a
disponibilidade de poucas pessoas para ficar na ciranda com as crianças foram
alguns dos problemas que enfrentamos ao longo das oito semanas. Aliás, o pró-
prio período de oito semanas limita a ação do Comitê em termos de aprofunda-
mento das relações e do processo educativo.
O Comitê Popular Mulheres guerreiras e de fé, enquanto projeto piloto, per-
mitiu o acúmulo de experiências que poderá servir de orientação para futuros
comitês. Apesar das dificuldades, tirar o projeto do papel e concretizá-lo na
comuna mostrou que é possível fazer política trabalhando e dialogando com o
povo, que é possível contrapor a lógica assistencialista dos mandatos de verea-
dores/as a partir da oferta de oportunidades que levem à construção da autono-
mia de sujeitos e sujeitas.

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1070
O que é coisa de mulher? Reflexões acerca
do trabalho considerado feminino
e do trabalho feminino não pago

Cínthia Simão13

Introdução
É inconteste que, quando se fala em direitos das mulheres, muita coisa foi
modificada, pensando as estruturas sociais mais abrangentes e não as microrre-
lações, claro. Se tivemos abertura aos mais variados postos de trabalho, ainda
vemos mulheres que se veem impedidas, por seus companheiros, de exercer
uma profissão ou mesmo de evoluir em uma carreira. Se, hoje, podemos votar e
ser votadas, vemos um cenário de valorização de candidaturas masculinas e o
total desrespeito para com mulheres que ocupam cargos políticos. Se, agora, é
dispensável a aprovação jurídica do marido para que um casamento se dissolva,
ainda há uma maioria de mulheres que permanecem confinadas em relações
abusivas por se verem ameaçadas por seus companheiros ou por não consegui-
rem visualizar um horizonte de autonomia financeira. Seguindo esse raciocínio,
adentramos no assunto que nos interessa, tal seja: o trabalho doméstico realiza-
do pelas mulheres; o qual, a despeito de todas as transformações consideradas
avanços, ainda é tratado como atividade tipicamente feminina.
Questão que se arrasta por séculos, o trabalho doméstico realizado por mu-
lheres é visto quase como um dom inerente às mesmas e, até a atualidade, a
divisão de tarefas vem sendo colocada enquanto uma mudança necessária para
a libertação feminina. Não é difícil de entender porque, pois este é o modelo
comum e predominante na maioria esmagadora das famílias. Podemos consta-

13 Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em
Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estudante do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte.

1071
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

tar este fato através de uma simples observação ao nosso redor ou por meio de
consultas à pesquisas elaboradas sobre a temática. Assim sendo, nos unimos
aos esforços empreendidos no sentido de transformar tal condição, a fim de
que possamos vivenciar uma sociabilidade que tenha enterrado a exploração
do trabalho doméstico gratuito feito pelas mulheres e que haja, em seu lugar,
um cenário de partilha igualitária entre os sexos, de salários e possibilidades
equânimes, possibilitando menos apropriação do tempo das mulheres e mais
autonomia de escolha sobre a organização de suas vidas.

2. Compreender o que é trabalho para perceber o trabalho


feminino “invisível”
Nosso ponto de partida, neste artigo, é a ideia de que há uma espécie de
trabalho que não é considerado como tal, podendo ter atribuído à si o adjetivo
“invisível”. Nos referimos, aqui, ao conjunto de atividades desenvolvidas por
mulheres no âmbito doméstico. Deixar uma casa e os objetos de seu interior
organizados e limpos, cuidar dos pertences de cada sujeito, preparar alimen-
tação...todas estas tarefas exigem tempo, esforço físico e mental e são, majo-
ritariamente, realizadas por pessoas do sexo feminino; realidade expressa na
maioria dos modelos de sociedade que conhecemos. Tal constatação nos leva
à seguinte indicação: por que há uma carga de tarefas que são tidas como de
execução exclusiva das mulheres? E, após tal questionamento, colocamos ainda:
por que tal carga é considerada um dom e uma obrigação feminina, ao invés de
ser compreendida como trabalho que é? Esses são questionamentos importantes
para consolidar o processo de reversão dessa prática de fomento da desigualda-
de entre mulheres e homens, e nos leva a um campo de respostas inserido em
um debate amplo sobre o conceito e fundamentos do trabalho. É por aqui que
iniciaremos nossa caminhada.
O trabalho, tomado em seu sentido ontológico, é uma atividade essencial
e de grande valia aos sujeitos, uma vez que é por meio deste que se consegue
transformar os bens naturais e convertê-los para o atendimento das necessida-
des humanas. “Como condição de existência do homem em todas as formas de
sociedade é objetivação indispensável do ser social” (DINIZ, 2014, p. 53).
A interação e a ação de mulheres e homens sobre a natureza permitiu a
construção de abrigos, a coleta e a produção de alimentos, o desenvolvimento

1072
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de utensílios; enfim, foi trabalhando que as sociedades evoluíram e se expandi-


ram, que puderam se proteger de alguns perigos e superar a escassez de supri-
mentos importantes para a sobrevivência. Conciliada com a exposição acima
temos a seguinte citação de Antunes que diz:

os indivíduos devem reproduzir sua existência por meio de funções


primárias de mediações, estabelecidas entre eles e no intercâmbio e
interação com a natureza, dadas pela ontologia singularmente humana
do trabalho, pela qual a autoprodução e a reprodução societal se
desenvolvem (2009, p. 22).

Observamos e entendemos, até aqui, a centralidade que o trabalho possui


para a humanidade em seu sentido ontológico e podemos, a partir de agora,
pensar o mesmo sob um outro aspecto: a atividade do trabalho como finalidade
única de arrecadar lucros. Essa análise é bastante relevante para compreender-
mos o lugar que é dado às atividades realizadas pelas mulheres em nossas socie-
dades contemporâneas, seja no trabalho assalariado, seja no trabalho não pago
realizado no âmbito doméstico, o qual se coloca como nosso foco de estudo.
Vimos que as relações sociais são construídas ao redor do trabalho, sendo
este o responsável por proporcionar o atendimento das mais distintas necessi-
dades humanas. Inicialmente, os sujeitos dominavam totalmente a confecção
dos produtos, conhecendo e tendo poder sobre todas as etapas de produção.
Todavia, com advento de efetivação do sistema capitalista, esse processo foi
transformado. Teve vez a polarização entre os que possuíam os meios de produ-
ção e os que apenas possuíam sua força de trabalho para vender. Com a reor-
ganização dos processos de trabalho, uma característica das relações sociais foi
acentuada, tal seja a de relegar as mulheres ao espaço doméstico enquanto os
homens ficavam responsáveis ao âmbito público, seja do trabalho assalariado ou
da política. Vejamos, no modelo de sociedade capitalista, o salário passou a ser
a fonte de atendimento das necessidades. A mulher, sem trabalhar fora e sem
receber salário, ficava à revelia do homem.
Com o advento da revolução industrial as mulheres foram inseridas na
lógica da produção direta de mercadorias; isto levou a um acúmulo de funções
para as mesmas, pois o trabalho que era realizado nos lares continuou sob sua
responsabilidade. Outro ponto de destaque nesse novo contexto foi o fato
de as mulheres receberem salários rebaixados. Cenário este que persiste até

1073
os dias atuais, nos mais diversos cargos e carreiras. Aqui adentramos em um
debate pertencente a uma categoria essencial na discussão sobre o trabalho
doméstico: a divisão sexual do trabalho. É a partir desta que daremos conti-
nuidade ao nosso raciocínio.

3. O trabalho considerado feminino e a divisão sexual


do trabalho
Quando nos propomos a debater as diferenciações entre trabalhos femini-
nos e masculinos no contexto da sociedade capitalista existe uma categoria
fundamental para que possamos ancorar nosso pensamento e iniciar nossas
reflexões. Estamos falando da divisão sexual do trabalho. Para as autoras Hi-
rata e Kergoat, esta representa a

forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre


os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência
da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica
e socialmente. Tem como características a designação prioritária
dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e,
simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior
valor social adicionado (2007, p. 599).

Esta assertiva, além de nos explicar o que é a divisão sexual do trabalho


traz, também, um debate que perpassa nosso tema central e que precisaremos
fazer: nos referimos ao trabalho produtivo e improdutivo. Este primeiro é,
comumente, relacionado a esfera de produção das mercadorias, produtos com
valores de uso e de troca que gerem mais valia e permitam o lucro para os
possuidores dos meios de produção. Tem a ver com o processo que acontece
dentro das fábricas e demais locais onde a matéria natural é transformada em
produto pelas mãos dos seres humanos. Já o segundo está relacionado com o
conjunto de atividades que não lidam diretamente com a transformação de
alguma matéria prima, mas que estão inclusas no ramo de serviços essenciais
para a reprodução da sociedade.
Em consonância com as autoras supracitadas, podemos observar que o âmbito
produtivo, por muito tempo, absorvia majoritariamente a mão de obra masculina;
enquanto as mulheres desenvolviam atividades consideradas reprodutivas, ligadas
a serviços tratados como socialmente secundários e de menor valia se comparados
com a produção de mercadorias. Com a expansão capitalista assistimos a inserção
de mulheres em trabalhos do ramo considerado produtivo e a ocupação destas
em cargos considerados inicialmente como masculinos, todavia essas mulheres
são constantemente colocadas em dúvida quanto a sua capacidade e habilidade
de realizar as tarefas. Para além disso observa-se que, quando da ocupação dos
mesmos cargos e desenvolvimento de funções iguais, mulheres e homens recebem
remunerações diferenciadas, questão ainda persistente nos dias atuais.
Ainda como parte dos nossos esforços para compreender a divisão sexual do
trabalho, trazemos uma citação de Hirata e Kergoat sobre os princípios desta.
As autoras afirmam:

Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois princípios


organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos de homens e
trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem
“vale” mais que um trabalho de mulher) (2007, p. 597).

Esta assertiva coaduna com a explanação realizada acima e oferece elemen-


tos teóricos para pensarmos o que é, facilmente, percebido na prática do nos-
so cotidiano social. No passado, haviam trabalhos considerados como espaços
reservados exclusivamente aos homens, evidenciando o princípio da separação
na divisão sexual do trabalho. As transformações no mundo do trabalho permi-
tiram a inserção das mulheres nestes espaços, nos fazendo perceber o princípio
da hierarquia, uma vez que mulheres recebem menos realizando as mesmas
atividades que os homens e estes últimos, também, são mais aclamados.
Ao voltarmos o olhar para dentro dos lares, constatamos o acirramento
destes dois princípios, pois sair de casa para trabalhar na esfera considerada
produtiva não fez com que as tarefas domésticas passassem a ser dividas entre
os membros da casa. É sabido que tais tarefas são delegadas para mulheres
adultas, jovens, adolescentes ou para meninas. Meninos são socializados, des-
de muito cedo, para não realizarem atividades como varrer casa, lavar louça,
roupa e entre outras. Em diferentes palavras, mulheres continuaram com o
máximo de responsabilidades no âmbito reprodutivo, mesmo adquirindo res-
ponsabilidades no setor produtivo.

Essa atribuição social do cuidado ao feminino, primeiramente, limitou


a vida das mulheres ao espaço privado, e posteriormente, com as

1075
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

transformações socioeconômicas e a busca de independência feminina,


marcou desvantagens em relação aos homens na atuação econômica e
social (SOUSA e GUEDES, 2016, p. 125).

Isto ocorreu porque há um sistema de crenças e valores que acredita e


dissemina a existência de um trabalho unicamente feminino. Jules Falquet
(2008) nos dá uma contribuição neste debate quando explica que o trabalho
de manutenção (doméstica e/ou comunitária), o trabalho sexual e o trabalho
de produção/cuidado dos filhos constituem um conjunto que ela denomina
de “trabalho considerado feminino”. Algumas religiões, por exemplo, contri-
buem com o reforço da ideia de que a mulher deve servir ao homem e este
servir tem a ver com submeter suas escolhas, vontades e, também, tomar para
si as atividades de cuidado e manutenção do lar e dos sujeitos que compõe a
família, principalmente das crianças.
Reforçamos, diante do exposto, que os princípios da divisão sexual do traba-
lho são os responsáveis por existir um trabalho não pago atribuído às mulheres
e considerado de exclusividade das mesmas. Todas as tarefas realizadas por este
grupo social no âmbito doméstico necessitam de um dispêndio de energia e
intelecto e cumprem uma função social de muita valia. Porém, a junção de
religiões com um sistema cultural e econômico interessados em uma educação
sexista contribuem para que o trabalho executado pelas mulheres não seja valo-
rizado, ainda que este trabalho seja demasiado, seja pesado e desgastante.
Em nossa sociedade não há interesse em saber os impactos negativos – tanto
físicos, quanto psicológicos – que são gerados para as mulheres através da exe-
cução de tantas tarefas domésticas ou da sobreposição destas com um trabalho
assalariado. Interessa, somente, que o trabalho doméstico esteja feito e que as
necessidades de alguns membros da família sejam supridas. Costumamos deno-
minar tal trabalho de invisível porque, primeiramente, ele não é tratado como
trabalho e, segundo, porque são atividades que somente são notadas quando
não realizadas. Apenas quando não se tem casa varrida, louça e roupa lavadas
e comida no prato é que se nota a falta de algo, a falta desse elemento essencial
que são as atividades delegadas às mulheres. Neste ponto podemos adentrar,
novamente, na discussão sobre trabalho considerado produtivo e reprodutivo.
De fato, o trabalho feito pelas mulheres no que concerne às tarefas domésticas
não produz lucros diretos para algum empregador. Porém, precisamos entender
que tais atividades ocupam um papel econômico fundamental na sociedade,

1076
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

uma vez que é através da manutenção dos serviços no lar e do cuidado com os
membros da família que o ciclo de produção de mercadorias pode fluir.

Desse ponto de vista, o trabalho das mulheres toma uma importância


fundamental, pois é a partir dele que se estruturam as condições
materiais para a criação dos sujeitos que trabalham, uma vez que não se
pode construir carros por exemplo, se não há quem os faça. [...] Ademais,
o capitalismo tem percebido isto, visto que é o sistema de exploração que
mais enfatizou a importância do trabalho e da família nuclear burguesa
onde existem fortes separações de papeis entre homens e mulheres. De
modo que fica evidenciado, como aponta Federici (2013, p.03,) que “as
mulheres são o sujeito produtivo mais importante, mas para manter
esta produção da forma mais barata possível, este trabalho tem-se feito
invisível” (DINIZ, 2014, p. 70).

Não é a toa que os serviços domésticos enquanto trabalho pago eram remu-
nerados com valores baixíssimos e só recentemente foi criada a lei que regula
este ramo. Esse fato traz a tona tanto a questão de classe quanto a questão de
raça e etnia, uma vez que são as mulheres negras as mais presentes no campo
do trabalho doméstico (mal) pago. Não se pode deixar de falar também desses
sujeitos que ocupam tal espaço no Brasil: uma maioria de mulheres pobres e
negras, possuindo baixa escolaridade.

4. Apontamentos atuais sobre a divisão de tarefas


domésticas entre mulheres e homens no Brasil
Aproximando-se da finalização da discussão proposta, tivemos acesso a ele-
mentos que permitiram o entendimento do porquê, em nossa sociedade, existe
um tipo de trabalho para o qual damos a denominação de invisível. Inicialmen-
te, nos apoiamos em teóricas feministas que fazem tal debate e que possuem
uma profunda relação com estudos e produções sobre o trabalho considerado
feminino, perpassando por outras questões fundamentais, como a categoria di-
visão sexual do trabalho. Agora, pretendemos exibir um pouco do panorama
real da sociedade brasileira, trazendo dados e informações de alguns estudos.
Podemos dizer que há um grande interesse em que o trabalho doméstico fei-
to por mulheres continue invisível, pois há uma série de vantagens e privilégios

1077
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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

em torno do mesmo. Homens, – individualmente – empresas e poder público


são beneficiados em não ter que realizar ou oferecer os serviços que foram natu-
ralizados como habilidades e responsabilidades das mulheres. Isoladamente, os
homens acumulam menos horas com tarefas domésticas e ganham mais tempo
livre e de descanso. Em um cenário mais abrangente, os empregadores e o poder
público investem menos em serviços essenciais para a manutenção da força de
trabalho e em políticas públicas respectivamente, o que propicia a possibilidade
de lucros maiores e menos investimentos sociais. Pensemos um pouco...mulhe-
res são um pacote de serviços: cozinheira, lavanderia, passadeira, creche, cui-
dadora de doentes. Sem esses serviços realizados majoritariamente pela classe
das mulheres, como estaria organizada nossa sociedade? Pensar sobre a resposta
para essa pergunta é fundamental para traçar novos caminhos rumo a igualda-
de entre mulheres e homens. Os dados atuais mostram que:

As mulheres vêm dedicando, independentemente da posição na família,


mais que o dobro de horas aos cuidados domésticos que os homens na
última década, e, no mínimo, seis horas a menos em trabalho remunerado.
Para as mulheres na posição de cônjuge a situação é ainda pior, com no
mínimo nove horas a menos de trabalho pago, e quatro horas a mais de
afazeres domésticos, o que evidencia que relações maritais robustecem
os papéis sociais estereotipados (SOUSA e GUEDES, 2016, p. 130).

Essa quantidade de horas a mais que recaem sobre as mulheres nos traça um
panorama preocupante, pois representam a exposição destas à uma exploração
diferenciada. É preciso pensar, também, nos impactos que tal cenário coloca para
outros âmbitos da vida das mulheres, como questões relacionadas a saúde e edu-
cação. Neste último âmbito, vemos que as mulheres ou são impedidas de estudar
para terem que dar conta das atividades domésticas ou, então, quando estudam
se veem prejudicadas por terem menos tempo para dedicarem-se aos conteúdos
exigidos. Desse modo, precisamos transformar as relações sociais que contribuem
para a manutenção das desigualdades entre mulheres e homens, até porque esta
desigualdade atinge uma parcela da população que merece muita atenção, tal seja
a infantil. Meninas são, precocemente, envolvidas nessa rotina de cuidados do-
mésticos, tendo que dividir com suas mães ou outros familiares do sexo feminino
uma série de tarefas que não são colocadas para os meninos. É o que nos aponta
a citação a seguir, sobre um estudo realizado acerca desta temática:

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
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Intitulado “Por ser menina no Brasil: crescendo entre direitos e


violências”, o estudo ouviu 1.771 meninas de 6 a 14 anos nas cinco regiões
do país e constatou uma desigualdade gritante na distribuição de tarefas
domésticas entre meninas e meninos. Para se ter uma ideia do tamanho
desse abismo, 81,4% das meninas relataram que arrumam a própria cama,
tarefa que só é executada por 11,6% dos irmãos meninos. 76,8% das
meninas lavam a louça e 65,6% limpam a casa, enquanto apenas 12,5%
dos irmãos lavam a louça e 11,4% limpam a casa (LARA, 2015, n.p).

Tal pesquisa atesta um sistema de separação de tarefas cruel, pois é aplicado


cedo, recaindo sobre crianças e adolescentes. Ao ser verificado tal cenário, so-
mos colocados diante de reflexões importantes:

Uma menina que antes de ir para a escola precisa arrumar a casa


e lavar louça e quando chega prepara o almoço e cuida dos irmãos
menores está assumindo um papel que traz muitas consequências.
“Qual é o tempo que ela tem para estudar? Por que ela falta tanto às
aulas? (LARA, 2015, n.p)

Esta estrutura que incide sobre a vida das mulheres, de forma precoce, se
mantém na vida adulta, trazendo implicações negativas para as mesmas no
mundo do trabalho. É o que mostra um estudo da Pesquisa Nacional por Amos-
tra de Domicílios:

A Pnad 2014 corrobora as informações supracitadas, destacam-se os


seguintes fatos: as mulheres foram 19 p.p. menos economicamente
ativas que os homens; estiveram 7 p.p. mais presentes no mercado
informal; ganharam R$ 493,00 a menos, em média; e estiveram 7 p.p.
menos presentes em função de dirigente geral (SOUZA e GUEDES,
2016, p. 128).

Esta citação de Diniz que se apresenta a seguir dialoga com o supra citado e
também aponta reflexões sobre as configurações da divisão sexual do trabalho
na atualidade e sua relação com a naturalização de funções destinada pelo sexo.

A (atual) divisão social e sexual do trabalho se expressa na forte


tendência de feminização, encontrada, como aponta Antunes (2005),
no espaço dos trabalhos part-time, flexíveis e, na maioria das vezes, mais
precarizados e desregulamentados. Os determinantes desta situação

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

muitas vezes são alicerçados no determinismo biológico, a partir do


papel das mulheres na reprodução biológica, procurando naturalizar
assim a divisão sexual do trabalho (2014, p. 67).

Estes fatos nos mostram a realidade da qual falamos logo no início deste
artigo: há, na sociedade um trabalho tornado invisível, coberto pelo véu da
naturalização da ideia de que mulheres devem fazer tarefas relacionadas ao cui-
dado e manutenção dos lares e os homens trabalharem fora de casa e prover o
sustento. Este pensamento é que leva as mulheres a ficarem em casa e restritas
ao âmbito privado e os homens a saírem e ocuparem os mais variados espaços
públicos. Somente com uma mudança estrutural e cultural, que deve ser enca-
beçada imediatamente, é que poderemos um dia falar em uma sociedade que é
democrática, justa e que respeita todas as meninas e mulheres.

Considerações finais
A partir dos dados expostos ao longo desse artigo é possível inferir que a
cultura da separação de tarefas entre homens e mulheres permanece forte e não
dá maiores sinais de esgotamento. Não bastasse a divisão e classificação entre
o que cada pessoa deve realizar de acordo com feminilidade e masculinidade,
ainda percebemos que as tarefas que se relacionam com esta primeira categoria
são tratadas como de menor valor.
Chegamos ao fim deste estudo com uma desagradável constatação: os pri-
vilégios masculinos estão aliados à exploração imposta pelo sistema capitalista,
uma vez que este sempre beneficiou-se com a utilização do trabalho gratuito
realizado pelas mulheres ou da força de trabalho barateada das mesmas.
De posse do conhecimento de tais condições, resta-nos somar esforços para
combatê-las, compreendendo que as mesmas são parte de uma estrutura antiga
e muito bem arraigada em nossa sociedade. As ações entoadas no sentido de
superar a desigualdade na divisão de tarefas domésticas (trabalho não pago) e,
também, no mundo do trabalho assalariado precisam ser incluídas nos diversos
espaços de socialização dos sujeitos. Isto porque está óbvio que não se trata,
aqui, de uma questão natural, mas de algo que é construído pelos próprios su-
jeitos históricos. Sendo assim, a destruição deste sistema que explora mulheres
com recortes diferenciados da forma de exploração dos homens só pode ser des-
truído pela ação desses mesmos sujeitos, pautando ações imediatas e de longo

1080
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

prazo, para que tenhamos outro modelo de sociedade. As gerações futuras pre-
cisam aprender novas formas de vivência e descartar tudo o que vimos até agora
sobre brinquedos, comportamentos e tarefas específicas de meninas e meninos.

Referências bibliográficas

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negação do trabalho. 10. ed. São Paulo: Boitempo, 2009.

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arttext&pid=S0103-40142016000200123. Acesso em 2 jun. 2017.

1081
O silenciamento histórico da mulher do
campo: violações domésticas e familiares
voltadas para uma perspectiva marxista

Ingrid Nataly Fernandes de Sales1


Júlia Gomes da Mota Barreto2

Introdução
O seguinte artigo tem como proposta discutir a relação direta do capital com
as relações pessoais no campo, sobretudo nas relações onde há violações contra
a mulher. Há uma profunda análise de como até mesmo o homem do campo
é influenciado pelo capitalismo, despertando nele o caráter violento, e assim,
oprimindo quem encontra-se numa posição social abaixo da sua, reforçando a
dominação de gênero estrutural no meio rural.
A discussão sobre violações contra a mulher no campo nos leva para a dis-
cussão sobre a efetivação da lei 11.340/06. A lei Maria da Penha, criada para
atender as mulheres de todas as classes sociais, encontra-se impedida de prestar
o atendimento nas áreas rurais devido à grande concentração de delegacias e
casas de apoio nas capitais urbanas, dificultando até mesmo o acesso a informa-
ções sobre denúncias nas áreas mais afastadas.
A metodologia a ser utilizada como base fundamental para o artigo é a
teoria de autoras marxistas, tais como Heleieth Saffioti e Ísis Menezes Táboas,
esta última contribuindo fortemente para a pesquisa com o seu livro “É luta!”,
que aborda o cotidiano da mulher camponesa e das suas principais ferramentas
de emancipação. A influência da obra “O Capital”, de Marx, é analisada

1 Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Extensionista do Centro


de Referências em Direitos Humanos do Semiárido. [email protected]
2 Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Extensionista do Centro
de Referências em Direitos Humanos do Semiá[email protected]

1083
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

em conjunto ao contexto de dominação-exploração, sendo extremamente


importante a sua menção no trabalho. A Prof. Dra. Carmen Hein de Campos,
referência fundamental na criminologia brasileira, surge no artigo com sua forte
contribuição acerca da efetivação da lei Maria da Penha no campo.

2. O capital e o campo
Para entender a relação entre o homem e o capital e como ela afeta a
realidade no campo, é necessário, antes de mais nada, recordar Marx em O
Capital (2013, p. 289):

Historicamente, o capital, em seu confronto com a propriedade fundiária,


assume invariavelmente a forma do dinheiro, da riqueza monetária,
dos capitais comercial e usurário. Mas não é preciso recapitular toda a
gênese do capital para reconhecer o dinheiro como sua primeira forma
de manifestação, pois a mesma história se desenrola diariamente diante
de nossos olhos. Todo novo capital entra em cena – isto é, no mercado,
seja ele de mercadorias, de trabalho ou de dinheiro – como dinheiro, que
deve ser transformado em capital mediante um processo determinado.

Percebe-se que há uma grande relação entre o capital e a propriedade fundi-


ária. O ideal de propriedade privada e a busca por produção. O efeito do capital
e como ele altera as relações no meio rural, serão analisados a seguir.

2.1. A origem do capital e o seu fortalecimento no Brasil


O capital e a aclamação monetária, assim como grandes ondas revolucioná-
rias, tem o seu início datado no século XVIII, tendo o advento da Revolução In-
dustrial como principal percussor dos ideais de concentração monetária e mono-
pólio do poder de mercado da Inglaterra. A fase de transição do feudalismo para
o capitalismo é caracterizada pela exploração da terra dos camponeses e a sua
prole, transformando-os em operários e, desenvolvendo assim, a classe burguesa.
No Brasil, a ideia de produção capitalista aparece desde o período colo-
nial, tendo uma economia com base nas produções agrícolas, e assim forne-
cendo matéria e capital para Portugal. A mão de obra compulsória foi uti-
lizada com escravos e indígenas, tendo a violência como principal meio de

1084
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

dominação. As Capitanias Hereditárias são o grande marco da época, tendo


apenas grandes nobres e colaboradores do mercantilismo como Donatários
das Capitanias e os camponeses como seus explorados, sendo a mão de obra
compulsória a principal fonte da economia vigente. O capital circulando no
Brasil obtém um crescimento expressivo com o processo de industrializa-
ção brasileira, presente durante a Segunda Guerra Mundial, tendo o Estado
como principal explorador dos camponeses.
Durante a Ditadura Militar, o Brasil sustentou um modelo econômico
fortalecido por empresas estatais. A política de cortes, a concentração de
renda e a abertura para a circulação do capital estrangeiro foram fundamen-
tais para a superação da dívida brasileira, resultado de uma crise desenca-
deada no final da Segunda Guerra. O “Milagre Brasileiro”3 ficou conhecido
como a grande “salvação” do Brasil na época dos Anos de chumbo, sendo
utilizado como um forte argumento para a dominação política ditatorial,
exercida pelos militares. O Milagre sustentou-se apenas até 1973, tendo
como principal justificativa o “Crash”4 de 71.

2.2. O capitalismo presente nas produções rurais


O capital assume protagonismo também no cenário rural, utilizando a agri-
cultura como principal meio de geração de renda. A necessidade de produzir o
alimento para o consumo e a venda em pequenos espaços de terra, disputando
com os grandes proprietários de fazendas e empresas, é a realidade do meio
rural. O capital do campo está cada vez mais concentrado nas mãos das gran-
des empresas, tornando-se impossível não associar a uma crise suportada pelos
pequenos agricultores. Para abordar com mais profundidade o tema e relacionar
a propriedade privada, é fundamental apresentar a colaboração de Heleieth Sa-
ffioti na produção “A mulher e as contradições do capitalismo agrário”, tendo
Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante como coautora (1983, p. 67-68):

Na zona rural, o refluxo faz-se em direção à economia de subsistência,


seja em área de fronteira agrícola, seja em um minifúndio cujo título de
propriedade é detido pelo trabalhador, seja em parcelas de terras cedidas,

3 Época de avanço na economia brasileira. Permaneceu entre o período de 1969 e 1973.


4 Queda da bolsa de valores brasileira, motivando o fim do Milagre econômico e desencadeando uma crise.

1085
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

como o roçado no nordeste e o terreno para o cultivo de hortaliças e a


criação de animais de pequeno porte no regime de colonato nas regiões
sul e sudeste do país. Em qualquer dos casos, trata-se da utilização
permanente da força de trabalho familiar.

Ainda sobre a produção de Saffioti e Ferrante, é importante destacar:

Rigorosamente, o modo de produção capitalista é o grande beneficiário


do intercâmbio que estabelece com os bolsões pré-capitalistas, tanto
mobilizando mão-de-obra para cuja formação não contribuiu, nos momentos
de expansão de suas atividades econômicas, quanto nos momentos em
que o mercado interno é secundário, fazendo refluir para as atividades de
subsistência contingentes antes mobilizados como assalariados em relações
de produção capitalistas. A família extensa na época do colonato e a
família nuclear no momento da expansão do salariato revelam-se formas de
organização do grupo reprodutor perfeitamente adequadas às necessidades
de reprodução ampliada do capital em ritmo acelerado.

Seguindo o que foi exposto sobre a influência do capital no campo e o modo


de produção, é importe debater sobre o protagonismo da mulher nas atividades
de produção capitalistas. É importante afirmar que as mulheres camponesas,
em sua maioria, preferem as atividades organizatórias, que em sua maioria não
são remuneradas. A partir do que foi exposto nas colaborações, é necessário
aprofundar-se no estudo sobre o protagonismo da mulher camponesa e como
elas são exploradas cotidianamente pelo campo.

3. O cotidiano da mulher camponesa e a sua luta diária


pela emancipação
Para compreender a realidade da mulher do campo e a sua batalha pela efe-
tivação de direitos fundamentais, que são limitados, é preciso destacar o signi-
ficado de mulher camponesa. O significado que usaremos é o reproduzido pelas
coordenadoras do Movimento de Mulheres Camponesas, presente no livro “É
luta!”, de Ísis Menezes Táboas (2018):

Pessoas do gênero feminino que pertencem a um determinado território


identificado como camponês, que apresentam a razão produtiva na

1086
centralidade de suas relações sociais, culturais e econômicas, que fazem
parte de uma construção que vai na contramão do lucro e do capital,
com as peculiaridades de terem suas vidas intensamente marcadas pelo
trabalho, pela luta e pela força.

A partir do que foi exposto, é preciso debater sobre a múltipla jornada de


trabalho da mulher5, e como isso afeta, e as suas principais reinvindicações,
como vítimas de um meio que explora mulheres todos os dias.

3.1. A herança patriarcal da mulher no campo e a múltipla


jornada de trabalho
Antes de discutir o aspecto de múltipla jornada de trabalho no campo, é
preciso entender a trajetória da mulher camponesa até a sua vida adulta. É
importante destacar que a mulher desde nova precisa lidar com heranças do
patriarcado, sendo criada obedecendo a figura paterna para que, posterior-
mente, possa obedecer ao cônjuge.
O casamento é algo discutido com grande frequência pelas famílias no cam-
po, sobretudo nas famílias onde há mulheres, sendo possível vivenciar a roman-
tização do ideal de família desde a infância. Esse ideal de união possui mais
peso no meio rural, já que é o meio com maior índice de casamentos infantis,
fazendo com que boa parte das mulheres abandone os estudos 6para dedicar-se
a casa e ao marido antes mesmo da maioridade. É necessário destacar que as
mulheres têm cada vez menos acesso a trabalho remunerado na roça, desenvol-
vendo então uma dependência econômica frente ao homem, assim naturalizan-
do qualquer comportamento agressivo que o cônjuge possa a ter. Para ter uma
maior noção do idealismo do matrimonio, será introduzido um trecho da obra
“A origem da família, da propriedade e do Estado” (ENGELS, 1984, p. 89):

5 Denominação dada para a rotina de trabalho da mulher camponesa. A múltipla jornada caracteriza-
se pelo trabalho, cuidados da casa, dos filhos e companheiros e a produção no roçado, tais atividades
não costumam ser remuneradas.
6 Sabendo que o acesso à educação é algo limitado no meio rural, torna-se cada vez mais difícil manter
o público feminino nas escolas, tendo sua maioria apenas o ensino fundamental incompleto. O
acesso à educação é uma das pautas defendidas pelo Movimento de Mulheres Camponesas.

1087
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O matrimônio, pois, só se realizará com toda a liberdade quando,


suprimidas a produção capitalista e as condições de propriedades criadas
por ela, forem removidas todas as considerações econômicas acessórias
(...) então, o matrimônio já não terá outra causa determinante que não
a inclinação recíproca.

A múltipla jornada de trabalho é, portanto, uma consequência de toda


esses ideais patriarcais reproduzidos no campo. A dedicação da mulher
para o roçado, a casa, os filhos, o esposo e até mesmo o trabalho não re-
munerado, levanta o debate da desvalorização do trabalho das camponesas,
atribuindo a prioridade de administrar e comercializar ao homem, refor-
çando o ideal do homem como dominador.
Seguindo a lógica de rotina de trabalho da mulher, é necessário discutir a
divisão de tarefas domésticas no meio rural. As atividades relacionadas aos cui-
dados da casa permanecem sendo específicas do sexo feminino, enquanto o tra-
balho masculino continua como o mais valorizado, denominando as atividades
reprodutivas exclusivas da mulher, ao passo que as produtivas continuam sendo
destinadas ao homem. A rotina de trabalho das camponesas pode acarretar
uma série de doenças físicas e mentais, sendo cada vez mais comuns infecções
atribuídas ao contato com agrotóxicos por boa parte da população feminina
rural, decorrentes das atividades do roçado.

3.2. Direitos fundamentais limitados no campo


Como já foi citado no artigo, há uma série de direitos fundamentais que
não são respeitados e sofrem carência no campo. Aproveitando o tópico da
educação, introduzido no tópico anterior, é necessário reforçar que o ensino no
meio rural é precário, muitas vezes não tendo professores e a mínima estrutura
necessária para comportar os estudantes. A distância e a falta de políticas para
manter os alunos nas escolas são fatores primordiais, tornando-se cada vez mais
difícil a mulher do campo ter acesso ao nível superior.
A pauta de atendimento hospitalar necessita ser debatida com atenção. O acesso à
saúde no campo é limitado, começando por informações médicas. A população rural
costuma não ter conhecimento de exames básicos importantes para a saúde preventi-
va da mulher, levando com que muitas sejam reprimidas pelos maridos e impedidas de
realizar qualquer consulta médica. Outro fator agravante é a localização. Os centros

1088
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

médicos, em sua maioria, localizam-se nos centros urbanos, logo que as estruturas mé-
dicas no campo sofrem carência de médicos e equipamentos. A população feminina
necessita locomover-se para um hospital na área urbana e ainda aguardar horas para
realizar, em sua maioria, procedimentos simples. A dificuldade para obter assistência
médica leva um grande número de mulheres a desistirem da consulta.
O acesso à documentos é uma das principais pautas para a conquista da
autonomia feminina no campo. A documentação civil, trabalhista e previden-
ciária – esta que foi negada até 1988, salvo em casos de morte do cônjuge, são
postas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário7 como meios de adquirir
políticas públicas no campo. Da ampla necessidade, foi desenvolvido o Progra-
ma Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR), que consiste
em mutirões que percorrem todo o território nacional, e emitem documentos
básicos de forma gratuita. O programa apesar de ser uma grande conquista para
as trabalhadoras rurais, ainda é pouco conhecido no interior, sendo possível
atribuir isso a invisibilidade das questões rurais, pouco divulgada pela mídia.

4. O capital como fator primordial nas violações sofridas


pela mulher camponesa
Como já foi discutido no artigo, o homem do campo também está sujeito
aos impactos do capital, e consequentemente, está submisso a luta de classes,
sendo também reprodutor da dominação, praticada em primeiro momento
pelo Estado. Prosseguindo com esse pensamento, aprofundaremos na relação
do capital com a violência e os tipos de violações dos direitos fundamentais
das mulheres no campo.

4.1. O capital e a violência


A propriedade privada e a acumulação monetária, decorrente dos meios
de produção, são os principais meios de contato que o camponês tem com
o capitalismo. A exclusividade do homem como detentor dos meios de pro-
dução possui relação direta com a dependência financeira que a mulher

7 Presente em http://www.mda.gov.br/sitemda/sites/sitemda/files/ceazinepdf/POLITICAS_PUBLICAS_
PARA_MULHERES_RURAIS_NO_BRASIL.pdf

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

camponesa tem perante ao homem, sendo possível qualificar, em qualquer


relação, o oprimido e o opressor.
Defendendo a ideia de que o homem do campo é objeto do capitalismo rural,
é necessário abordar as suas relações sociais, aprofundando-se na questão da
violência como um meio de dominação mais rápido. A violência é presente em
momentos de acumulação privativa, sendo o Estado como detentor do poder
em um primeiro estágio, e o homem no segundo, utilizaremos o homem por
enquadrar-se, nesse estudo, como sujeito de dominação frente a mulher. A força
física é usada como instrumento de violações quando colocada como meio de
controle, exercido pela classe dominante.
Nesse sentido, o homem do campo, detentor dos meios de produção daquele meio,
torna-se instrumento de dominação ao exercer controle sobre a mulher, que, por
não possuir autonomia financeira, encontra-se dependente do homem. A relação de
opressão entre o homem e a mulher é uma dominação estrutural de uma classe sobre
outra, e acarreta a perda de direitos humanos fundamentais, resultantes de violações
exercidas pelo dominante, sendo as violações físicas e morais as mais comuns.

4.2. Violações aos direitos das mulheres no meio rural


Partindo da ideia da violência como produto da relação do homem com o
capitalismo, será abordado os tipos de violações vivenciados pelas camponesas
que ameaçam os seus direitos fundamentais. É importante apontar que, mesmo
com mecanismos que buscam a efetivação desses direitos, como a lei Maria
da Penha, essas violações ainda são comuns nas áreas rurais devido ao caráter
estrutural da relação de opressão entre o homem e a mulher.

4.2.1. Violência física

A força física é vista como uma característica decorrente das relações capitalistas.
A violência física assume sua forma quando o homem agride a mulher fisicamente,
podendo deixar marcar visíveis ou não. A já mencionada dependência financeira da
mulher perante ao homem, é a grande justificativa que parte das mulheres utilizam
quando são agredidas pelos homens, tendendo a naturalizar um comportamento mais
agressivo do macho e usar o trabalho remunerado como causa de sua ira.

1090
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

4.2.2 .Violência moral

As violências morais consistem em práticas que prejudicam a imagem pú-


blica da mulher, podendo ser mencionadas a calunia, a difamação e a injúria.

4.2.3. Violência patrimonial

As violações patrimoniais são as formas de destruição de bens da mulher. O


homem destrói seus documentos pessoais com o objetivo de impedir a mulher
de exercer quaisquer atividades que necessite de sua identificação. Costuma ser
uma prática decorrente nos casos onde o homem quer impedir uma futura fuga
de sua mulher, a mantendo presa e sem possibilidade de liberdade.

4.2.4. Violência psicológica

Se enquadram como violência psicológica qualquer ação que cause danos


mentais a mulher. Os meios mais comuns são humilhação, chantagem, ridicu-
larização, insultos e qualquer ato que deixe marcas na vida da mulher.

4.2.5. Violência sexual

A violência sexual é uma das mais comuns, tanto no meio urbano como
no rural. Consiste na prática da ação sexual sem a permissão da mulher. É
denominado como violência sexual o mantimento da relação sexual indese-
jada, a proibição do uso de método conceptivo, forçando a ter uma gravidez,
prostituição mediante força e aborto. No campo, essa prática além de ser
naturalizada, é a que possui um público alvo mais jovem, visto o grande nú-
mero de casamentos infantis, sendo comum várias jovens não desejarem ter
relações sexuais com os seus esposos e os mesmos não respeitarem a vontade
delas, gerando o abuso sexual.

4.2.6. Violência relacionada a herança

As violações relacionadas a herança consiste na prática do monopólio de


terras nas mãos somente do homem. As camponesas ainda possuem a menor

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

parcela de terras no Brasil, enquanto as práticas econômicas, que necessitam de


terras, são exclusivas do homem.

5. Marcos jurídicos nacionais e internacionais em relação


aos direitos humanos das mulheres

O direito internacional dos direitos humanos desenvolveu um conjunto


de normas, padrões e princípios para alcançar a plena vigência dos direitos
das mulheres. Produziu-se uma substancial evolução neste âmbito, que
partiu de um objetivo limitado à mera igualdade formal entre homens
e mulheres, e agora, se concentra no reconhecimento da desigualdade
e discriminação estruturais que afetam as mulheres. Esta mudança tem
como consequência a revisão completa das formas como os seus direitos
são reconhecidos, protegidos e aplicados (TOLEDO VÁSQUEZ, 2009)

Pode-se citar alguns marcos históricos que contribuíram no processo e


construção e reconhecimento dos direitos humanos das mulheres, entre eles,
a Década da Mulher (ONU, 1975-1985), a aprovação da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW,
1979), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violên-
cia contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), a Constituição de 1988 e,
a ser tratada mais especificamente a seguir, a Lei 11.340/2006.

5.1. Breve histórico sobre a Lei Maria da Penha

A lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, popularmente conhecida como Lei


Maria da Penha, foi resultado de uma punição ao Estado Brasileiro, dada pela Co-
missão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Unidos
(OEA), em 2001, por ter o Brasil negligenciado e se omitido em resolver o caso de
Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica desde 1983, prati-
cada pelo ex-marido que, inclusive, tentou cometer homicídio contra ela. Por não
conseguir uma resposta definitiva do Judiciário brasileiro, Maria da Penha recorreu

1092
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

à Comissão Interamericana de Direitos Humanos8, dando notoriedade internacio-


nal ao caso. A comissão emitiu então o relatório n° 54/2001, que determina que o
Brasil intensificasse os processos de combate à violência contra a mulher.

Que, com fundamento nos fatos não controvertidos e na análise acima


exposta, a República Federativa do Brasil é responsável da violação
dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados
pelos artigos 8 e 25 da Convenção Americana em concordância com
a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo
1(1) do referido instrumento pela dilação injustificada e tramitação
negligente deste caso de violência doméstica no Brasil. [...] Prosseguir
e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o
tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra
mulheres no Brasil. (CIDH, 2001)

A Lei Maria da Penha (LPM), sancionada em 2006, tornou-se o mais impor-


tante instrumento jurídico no sentindo de contribuir para a efetivação dos direi-
tos humanos das mulheres, estabelecendo a criação de mecanismos que coíbam
a violência doméstica e familiar contra a mulher, definindo também medidas de
assistência às mulheres que encontram-se em situação de violência, assim como
tipificando essa violência, assegurando-lhes a garantia de viver de forma digna,
longe de qualquer forma de agressão. Além disso, diferencia os crimes em que a
vítima pertence ao gênero feminino daqueles que são cometidos contra a mulher
em razão da sua condição e gênero, tornando-se o principal marco no enfrenta-
mento à violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil.
A legislação em questão definiu como obrigatória a atuação do Ministério Públi-
co, a assistência judiciária à mulher e a criação de equipe multidisciplinar especiali-
zada para atender aos casos de violência doméstica e familiar9. Além de estabelecer
medidas repressivas, que se aplicam após a ocorrência do crime - como o desen-
volvimento das medidas protetivas de urgência, por exemplo - a LPM introduziu

8 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é uma das duas entidades que integram o Sistema
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, junto à Corte Interamericana de Direitos
Humanos, tendo sua sede em Washington.
9 A violência doméstica e familiar contra a mulher caracteriza forma específica de violação dos
direitos humanos, representada por qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial e tenha sido praticada em
âmbito doméstico, familiar ou de qualquer relação íntima de afeto.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

uma série de medidas de prevenção, com o objetivo de articular políticas públicas


para desenvolver ações preventivas e educativas, entre estas, o Pacto Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.

5.2. Pacto nacional de enfrentamento à violência


contra as mulheres
Com o advento da Lei Maria da Penha, e em consonância com as reco-
mendações da ONU, o governo federal instituiu a Política Nacional de En-
frentamento à Violência contra as Mulheres, baseando-se na necessidade
de implementação de políticas públicas articuladas para abranger a com-
plexidade desse tipo de violência, realizando também ações de prevenção e
assistência às vítimas10.
O Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres foi cria-
do em 2007, e é um acordo entre o governo federal e os governos dos estados
e dos municípios para planejarem ações que implementem políticas públicas
integradas em todo o território nacional. Esse pacto prevê a constituição de
uma rede de enfrentamento que abarca diversas áreas, como educação, saúde,
segurança pública, assistência social, justiça e cultura. A rede inclui organismos
de políticas para as mulheres, ONGs, movimentos de mulheres, conselhos, ór-
gãos federais, estaduais e municipais, entre outros.
Também inclusos na rede, estão os serviços de atendimento às mulheres em
situação de violência, como os Centros de Atendimento à Mulher, Casas-Abri-
go, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, núcleos especializados
no Ministério Público e juizados especiais.
Apesar dos avanços trazidos com o advento da LPM, e da rede de enfrenta-
mento ser de extrema importância no que tange o combate à violência, é sabido
que há um grande descompasso entre a norma positivada e a realidade das mu-
lheres brasileiras no que diz respeito à aplicação real e concreta da lei, principal
e especificamente quando se trata dos direitos das mulheres camponesas.

10 Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres [SEV], & Secretaria de


Políticas para as Mulheres [SPM]. (2011). Pacto nacional pelo enfrentamento à violência contra as
mulheres. http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2011/pactonacional

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

5.3. Obstáculos para a efetivação da Lei Maria da Penha


e das políticas públicas de enfrentamento à violência
contra a mulher no meio rural
Os avanços trazidos pela LPM são inegáveis. Além disso, pesquisas de opi-
nião mostram que a popularidade da lei é alta, sendo conhecida pela grande
maioria das mulheres brasileiras. Entretanto, há de se aferir que existe um abis-
mo entre o ser e o dever ser, entre a positivação e a real efetivação da LPM e das
políticas públicas que envolvem ações relacionadas à violência contra a mulher.
A Lei Maria da Penha se dedica a tratar de forma ampla a violação dos di-
reitos das mulheres no âmbito da violência doméstica e familiar, recomendando
às instituições medidas não apenas de punição aos agressores, como também de
assistência às mulheres e conscientização da população. Porém, encontra entra-
ves na efetivação concreta dessas políticas. Esses entraves são agravados quando
se trata das regiões rurais, do campo e da floresta, o que dificulta o acesso das
mulheres camponesas à rede de enfrentamento. Como supracitado neste artigo,
há de se avaliar de maneira singular a situação em que as mulheres que vivem
no meio rural se encontram, levando em consideração os diversos aspectos que
contribuem para a perpetuação da violência contra elas.
Neste sentido, a portaria nº 8511, de 10 de agosto de 2010, publicada pela
Secretaria de Políticas para as Mulheres12, traz em seu artigo 1º:

Art. 1° - Ficam instituídas as Diretrizes de Enfrentamento à Violência


contra as Mulheres do Campo e da Floresta que se seguem, compreendidas
no âmbito do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, da Política
e do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres,
e referendadas pelo Fórum Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres do Campo e da Floresta, conforme disposto: I -
Garantir condições para o cumprimento, no campo e na floresta, das
recomendações previstas nos tratados internacionais na área de violência
contra as mulheres (em especial aquelas contidas na Convenção de
Belém do Pará - Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e

11 Responsável por formular e coordenar políticas públicas para mulheres, a secretaria tem como
objetivo promover a igualdade de gênero e estimular atividades anti-discriminatórias na sociedade.
12 Disponível em: http://www.spm.gov.br/sobre/a-secretaria/legislacao-1/nacional/portarias/portaria-2010/
portaria-85a-10082010.pdf/view

1095
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Erradicar a Violência contra as mulheres (1994); na Convenção sobre


a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as mulheres
(CEDAW, 1981) e na Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição
do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças - Protocolo de
Palermo (2000); [...] IV - Criar condições para a implementação da Lei
Maria da Penha no campo e na floresta [...]. (SPM, 2010)

Nota-se a necessidade de criar mecanismos próprios para a efetivação da


Lei Maria da Penha no meio rural, visto que o acesso à informação e à rede de
enfrentamento à violência contra as mulheres é comprometido dados alguns as-
pectos. Segundo Carmen Hein de Campos em “Lei Maria da Penha Comentada
em uma Perspectiva Jurídico-Feminista”, há muitas limitações no funcionamento
das instituições que compõem a rede, por falta de estrutura, de recursos e de
articulação entre os setores desta. Posto isso, ao levarmos o debate para o meio
rural, essas limitações se agigantam, pois a situação das mulheres que vivem no
campo e sofrem violência é um tanto quanto particular.
A situação de violência a qual essas mulheres são submetidas é vista como
“normal” e é invisibilizada. A distância de suas casas até a cidade, o machismo
intrínseco às suas relações, a dependência financeira e o medo contribuem para
que as camponesas não denunciem seus agressores. Além disso, a falta de polí-
ticas públicas voltadas especificamente para esses locais mais afastados, faz per-
durar essa invisibilização, criando obstáculos para que as mulheres em situação
de violência possam se desprender do contexto de maus tratos em que vivem.

6. O movimento de mulheres camponesas e a educação


emancipatória como instrumento para o enfrentamento
à violência contra as mulheres
Dada essa problemática, percebemos os movimentos sociais como forma
contra hegemônica de construir os direitos humanos das mulheres. A coorde-
nação do MMC (Movimento de Mulheres Camponesas), segue essa concep-
ção, reconhecendo a Lei Maria da Penha como importante instrumento para a
garantia dos direitos das mulheres, porém admitem que a conquista efetiva de
direitos não está traduzia em códigos positivados, e sim no protagonismo dos
sujeitos a quem esses direitos dizem respeito.

1096
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

O processo de construção do direito humano de viver sem violência, cons-


truído coletivamente, envolve todas as mulheres camponesas, fazendo com que
deixem de ser apenas indivíduos e se tornem parte do coletivo, fortalecendo-as.
Essa concepção de sujeito coletivo dialoga com a compreensão do Direito Acha-
do na Rua, elaborada por José Geraldo de Sousa Júnior, à luz dos pensamentos
de Roberto Lyra Filho. Conforme Lyra Filho: “A liberdade não é um dom; é
tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas
em conjunto”. Nesse sentido, Sousa Júnior explica:

A partir da constatação derivada dos estudos acerca dos chamados novos


movimentos sociais, desenvolveu-se a percepção, primeiramente elaborada
pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e
organização das classes populares e das configurações de classes constituídas
nesses movimentos instaurava, efetivamente, práticas políticas novas em
condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena
política capazes de criar direitos. (SOUSA JÚNIOR, 2011, p. 47)

A negação dos direitos de determinado grupo social funda a emergência do


sujeito coletivo de direito, formando sua consciência, organizando movimentos
como o MMC, que objetivam a emancipação das mulheres oprimidas pelas di-
versas situações de violência às quais são expostas, configurando importante
elemento na construção e efetivação de direitos, visto que possibilita que as
mulheres consigam desprender-se das amarras da violência.
Por meio da transformação das relações sociais e da conquista de direitos,
assim como o acesso à saúde pública integral, educação pública libertadora e
não sexista, políticas públicas de combate à violência e a construção de uma
consciência emancipatória que valoriza o saber popular13, o MMC visa a liber-
tação das mulheres camponesas de qualquer tipo de opressão e discriminação.

Considerações finais
Sem pretensão de exaurir completamente a discussão acerca das violências
sofridas pelas mulheres do campo e sua associação intrínseca às relações patriar-
cais e capitalistas da nossa sociedade, o presente artigo aponta a importância

13 Disponível em http://www.mmcbrasil.com.br/site/node/45

1097
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de se debater e analisar as várias faces desta violação de direitos humanos das


mulheres que vivem no meio rural, totalmente invisibilizadas e sem qualquer
direito assegurado. É necessário analisar as raízes dessas violações, claramente
influenciadas pela herança colonial que possui o capitalismo como principal
contribuinte de consolidação.
É de notória sapiência que a Lei Maria da Penha trouxe consigo o incentivo a
diversas medidas que foram tomadas com o objetivo de combater a violência domés-
tica e familiar contra as mulheres, porém essas medidas são escassas ou inexistentes
no meio rural, dificultando a emancipação real das mulheres que vivem em situação
de violência. Nota-se, também, que apesar do enfrentamento à violência contra a
mulher em meio rural integrar conjunto de ações governamentais, os movimen-
tos sociais têm contribuído amplamente para a concreta efetivação dos direitos das
mulheres, tornando-as protagonistas de suas histórias, sujeitas de direito, através do
debate sobre a negação destes e da educação emancipatória capaz de contribuir para
a construção de uma vida realmente livre de violência e opressão.

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1100
Racismo e deslocamentos de pessoas
não-brancas: uma abordagem
materialista e marxista

Amália Rosa de Moraes Silva14

Introdução
Este artigo científico trata sobre a relação entre o capitalismo e os desloca-
mentos de pessoas, ao longo do século XX e início de século XXI, pois um movi-
mento de pessoas se intensificou nas últimas décadas com o acirramento de crises
econômicas no mundo. Diante disso, como uma resposta a estes deslocamentos,
observou-se um crescimento de políticas migratórias restritivas nos países que
eram comumente o destino dos migrantes15, muitas vezes baseadas em critérios
étnicos e/ou raciais, sendo que nos anos mais recentes a situação de refugiados16
e apátridas17 também trouxe novas alterações para estas políticas. Neste sentido,
o presente trabalho busca analisar, mediante uma pesquisa bibliográfica e sob a
ótica histórica e materialista, as razões dos deslocamentos de pessoas não-brancas
e socioeconomicamente vulneráveis, trazendo as motivações diretas e indiretas,
com destaque para a perspectiva econômica, bem como pretende-se discutir os
impactos destes deslocamentos, fazendo-se uma análise crítica acerca das formas

14 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido. Email: [email protected]


15 Migrante pode ser considerada a pessoa que se transfere de seu lugar habitual ou residência, com
o objetivo de residir ou trabalhar em outro lugar, região ou país, caracterizando-se mais pela
voluntariedade de se deslocar;
16 Os refugiados são pessoas que se viram forçadas a sair de seus países de origem por receio de
perseguição, conflito, violência ou outras circunstâncias, sendo que o seu retorno ao país de
origem pode ser um risco para sua sobrevivência, por isto, refugiados são protegidos pelo direito
internacional;
17 A apatridia é a condição de pessoa que não é reconhecida como nacional por nenhum Estado, o que
implica na impossibilidade de exercer direitos fundamentais;

1101
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de cerceamento de direitos e preconceitos com os quais se deparam os migrantes


não-brancos e socioeconomicamente vulneráveis, atualmente.

2. O histórico do deslocamento de pessoas, por força


do Imperialismo europeu, e como este fenômeno
fomentou o racismo e a desigualdade socioeconômica
entre pessoas e nações
Nos séculos XVII e XVIII, o desenvolvimento socioeconômico da Europa
repercutiu na criação de um conceito de mundo divido, onde um lado era de-
senvolvido e o outro era atrasado, um rico e outro pobre, contudo, apesar dessa
separação, o lado pré-industrial ficou intimamente ligado às nações industriais
através de uma dependência econômica gerada pela própria expansão mercan-
tilista europeia sob seus territórios. Enquanto berço do capitalismo, os países
europeus, além de algumas colônias ultramarinas, foram os responsáveis por
uma conquista “política e econômica” de regiões até pouco tempo desconhe-
cidas do globo terrestre. No entanto, apesar dos laços entre ambos terem sido
estreitados naquela época pelo deslocamento de pessoas, bens, capital, comuni-
cação, produção material e intelectual, o distanciamento econômico entre eles
apenas se aprofundou, a partir do século XIX, causando diferenças relevantes
no produto interno bruto de cada região (HOBSBAWN,1988, p. 20-22).
O deslocamento e o extermínio de certas populações provocados pelo ex-
pansionismo mercantil teve influência para as circunstâncias do surgimento
das populações atuais dos países, por esta razão, as construções da etnicidade,
classe e nacionalidade são questões que perpassam o fenômeno dos movimen-
tos, pois, como leciona Almeida (2018, p. 80), “raça e racismo são produtos do
intercâmbio e do fluxo internacional de pessoas, de mercadorias e de ideias”. A
verdade é que os deslocamentos de grupos pelo mundo em razão de ambições
econômicas e as interações com as populações nativas da África, América, Ásia
e Oceania resultaram na formação de uma identidade nacional dos países mo-
dernos, através de práticas de exclusão e inclusão de certos grupos, de acordo
com suas características, sendo, muitas vezes, legalizada e institucionalidade.
No caso dos EUA e África do Sul, estavam presentes os regimes segregacionais
com as leis do Jim Crow e o do apartheid (ALMEIDA, 2018, p. 82-83).

1102
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Conforme conclui Almeida (2018, p. 20), a ideia de raça teve sua gênese na
expansão mercantilista do homem branco europeu pelo mundo, pois, utilizan-
do-se da classificação acerca da existência humana construída pelo pensamento
iluminista, por volta do século XVI, surgiu o conceito de homem universal, po-
rém este não seria outro senão o europeu. Daí também criou-se uma identidade
social em oposição: o “outro”; o qual seria o resto dos povos, relegando estes a
um papel inferior, criando-se então a distinção entre povo civilizado e povo
primitivo, provocando a subjugação, através do colonialismo com suas práticas
de escravidão e extermínio destes povos “selvagens”, por parte do europeu (AL-
MEIDA, 2018, p. 22). Neste período histórico, pessoas, em especial os africanos
e populações nativas de áreas periféricas do mundo, foram sequestradas pelos
europeus para serem escravizados, ou foram forçadas para fora de seus territó-
rios, num processo de desumanização destes homens e mulheres.
Ainda de acordo com Almeida (2018, p. 22), nos séculos XVIII e XIX, a
classificação dos seres humanos também tornou-se objeto de estudo da biologia,
da física e da etnologia, as quais trataram de criar estereótipos negativos so-
bre negros e indígenas, associando-os a animais, fomentando, dessa maneira, o
tratamento discriminatório dado a estes indivíduos e justificando a exploração
destes pelas forças capitalistas.
Partindo disso, verifica-se que o racismo não é um comportamento oriundo
apenas do medo e do desprezo (xenofobia) de pessoas com diferentes caracte-
rísticas físicas ou culturais, mas também o racismo encontra suas bases dos ob-
jetivos capitalistas de produzir mais e acumular capital. Se o intuito é produzir
mais, procura-se diminuir impactos que os custos da produção e as questões po-
líticas possam ter neste objetivo, assim, no que diz respeito ao aspecto da força
de trabalho, pode-se explorar uma mão de obra barata e precarizada, e também
procura-se eliminar suas reivindicações trabalhistas para que se consiga efetivar
ao máximo sua exploração (BALIBAR, WALLERSTEIN, 1988, p. 55-56).
No Novo Mundo, os europeus começaram a utilizar da força de trabalho dos
povos nativos das Américas, cuja humanidade foi reconhecida em certa medida
(ainda não tão igual quanto ao europeu), sendo que tais grupos eram inseridos
na força de trabalho de acordo com suas aptidões, conforme explica Balibar
e Wallerstein (1988, p. 56). Ou seja, se haviam seres civilizados (europeu) e
seres menos civilizados (população indígena), estava permitido a criação de
uma hierarquia salarial e profissional entre eles, o que resultou, nas palavras
dos autores, em uma “etnificação da força de trabalho”, com a colocação

1103
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

dos indígenas no postos mais baixos. Em tempo, o não reconhecimento dos


africanos enquanto seres humanos, com base nas suas características físicas,
estéticas e culturais, foi a desculpa para os europeus tratarem estas pessoas
como propriedades, utilizando-as como mão de obra escrava na produção.
Os efeitos desse fenômeno podem ser vistos, atualmente, na raça das pessoas
que se encontram nas camadas sociais mais baixas dos países chamadas de
subdesenvolvidos, na forma da exclusão e marginalização das pessoas de origem
africana, indígena, latina, asiática, etc., que persistem até hoje, como um retrato
do racismo que está profundamente arraigado na sociedade capitalista.
Karl Marx (2013, p. 998), em o Capital, já falava que a descoberta das
terras produtoras de minério na América, o extermínio e a escravização da
população nativa nas minas, a conquista e saqueio das Índias Orientais, e
transformação da África “numa reserva para a caça comercial de peles-negras
caracterizam a aurora da era da produção capitalista”. Ainda de acordo com
Balibar e Wallerstein (1988, p. 56-58), a “etnificação da força de trabalho”
tem sido constante, mudando-se apenas o tempo, o lugar, as necessidades
econômicas e os grupos envolvidos nela, chegando-se a uma conclusão: “el
racismo ayuda a mantener el capitalismo como sistema, pues justifica que a un
segmento importante dela fuerza de trabajo se le asigne una remuneración muy
inferior a la podría justificar o criterio meritocrático”.
Então, a partir das décadas de 1980 e 1990 é que começa a crescer os movi-
mentos migratórios internacionais dos países periféricos para os países centrais
(os ditos desenvolvidos), motivados por razões financeiras dos migrantes e dos
seus Estados de origem, o que, com o passar do tempo e com a ocorrência de
novas as crises capitalistas, apenas se intensificou. Neste quadro mais recente,
com a migração de pessoas oriundas de países do “Terceiro Mundo” que buscam
emprego em países do “Primeiro Mundo”, a maximização da exploração dos
trabalhadores é facilitada diante da marginalização histórica vivenciada pelos
países pobres em comparação aos ricos, não só em razão da condição financeira
de suas populações, mas também por causa de sua raça, sua etnia, sua cultura,
sua nacionalidade e seu gênero, bem como pelas poucas possibilidades de rei-
vindicações trabalhistas disponíveis aos estrangeiros, especialmente aos que se
encontraram ilegalmente nos países desenvolvidos.
Hoje testemunhamos uma crise humanitária no mundo, na qual países euro-
peus dificultam a entrada e negam socorro à populações do Oriente Médio, que
foram resgatadas no mar ao tentarem entrar na Europa (VERDÚ, 2018), além

1104
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de um endurecimento nas leis de migração numa tentativa de barrar a entrada


de estrangeiros que intencionem morar e trabalhar no “Primeiro Mundo”.

3. Motivações para os deslocamentos recentes de pessoas


não-brancas e vulneráveis socioeconomicamente
A problemática a respeito dos deslocamentos de pessoas, com destaque para
aquelas oriundas de países mais pobres, tem tido uma grande relevância nos
últimos anos no cenário internacional pela expressiva dimensão de seus fluxos,
pelo visível desrespeito à dignidade humana e pela crescente violência na sua
contenção, apesar da condição de extrema vulnerabilidade desses indivíduos
que estão se deixando seus países de origem (SILVA, 2017, p.163-170).
Nas últimas décadas, vivenciamos um aumento nos deslocamentos mo-
tivados por diversas razões. A ideia tradicional de um migrante como a co-
nhecemos que escolhe o seu destino com um objetivo pré-definido foi sendo
gradualmente substituída pela figura de um indivíduo cujas intenções e possi-
bilidades de deslocamento estão inseridas num contexto amplo e, muitas das
vezes, fora do seu controle, o qual interfere diretamente na sua capacidade
decisória e autonomia. Ademais, novos eventos de ordens política criaram
outros desafios para se entender como os indivíduos se deslocam, porque o
fazem, como devem ser vistos e quais os tratamentos jurídico, econômico e
humanitário que a eles se aplicam (ZAPATA, 2017, p.5-13).
Até a Segunda Guerra Mundial, grande parte dos deslocamentos em função
de conflitos sociais concentrava-se em território europeu, contudo, na história
mais recente, verifica-se uma relação mais direta existente entre a crise capitalista
e a migração de pessoas das regiões mais pobres para as mais ricas. A exemplo, an-
tes com o expansionismo mercantil europeu, o caminho era feito pelos brancos da
Europa para as regiões periféricas como a América Latina, África e Ásia. Porém,
segundo Magalhães (2011, p. 460-461), por volta do século XIX, com o sistema
capitalista, visualizando um nicho de mercado nos países jovens e influenciando o
consumo nestes locais, passou-se a desenvolver, nestes territórios, transformações
de cunho neoliberal. Isso resultou, na década de 1980 e 1990, em instabilida-
des econômicas e políticas, no aprofundamento da pobreza e na precarizaram da
classe trabalhadora. Conforme o autor, diante deste quadro, com um excedente
populacional desempregado, com a concentração do capital nas mãos de poucos,

1105
com o desmonte da estrutura estatal que não conseguia prover uma seguridade
social, os trabalhadores não encontrava mais possibilidade de se desenvolver em
sua terra natal, razão pela qual a migração para os países desenvolvidos tornou-se
o caminho para o sonho de melhorar de vida.
Para além disso, os conflitos, perseguições e fatores ambientais vêm cres-
cendo como a motivação para forçar o deslocamento de pessoas, em que pese
a ausência de reconhecimento jurídico em relação aos refugiados ambientais
(FRACO e MONT’ALVERNE, 2016, p. 209). Em 2016, Organização das Na-
ções Unidas - ONU (2016) já entendia que vivia-se a maior crise humanitária
desde a Segunda Guerra Mundial, pois de acordo com a Agência da ONU para
refugiados – ACNUR (2016), de 65,3 milhões de migrantes, 40,8 milhões eram
pessoas que se deslocaram dentro de seus próprios países (deslocados internos),
já outros 21,3 milhões de pessoas foram para outros países e são chamadas de
refugiados, havendo ainda 3,2 milhões de requerentes de asilo em países indus-
trializados, ou seja, “aguardam uma resposta sobre seu pedido de refúgio”.
No cenário brasileiro, segundo o relatório do Comitê Nacional para os
Refugiados (CONARE) divulgado em 2016, existiam quase 9 mil refugiados
de 79 nacionalidades, constatando-se que as solicitações de refúgio passa-
ram de 966, em 2010, para 28.670, em 2015. Até 2010, haviam sido reconhe-
cidos 3.904 refugiados, e em abril de 2015, o total chegou 8.863, o que sig-
nifica um aumento de 127%. Também verificou-se que os sírios formavam a
maior comunidade de refugiados reconhecidos no Brasil (ao todo são 2.298
sírios), seguidos pelos angolanos (1.420), colombianos (1.100), congoleses
(968) e palestinos (376) (ACNUR, 2016).
Estes dados indicam o motivo da vinda destes indivíduos ao Brasil, pois seus
países/territórios de origens passam ou passaram recententemente por confli-
tos armados originados por razões políticas e/ou religiosas. O surgimento e a
intensificação de velhos e novos conflitos sociopolíticos que afetam os países,
principalmente no Oriente Médio e na África, revividos, em geral, com a onda
de protestos da Primavera Árabe a partir de 2010, deram lugar a uma série de
guerras civis na Líbia, Síria, Iêmen, Egito e Iraque. Neste sentido:

Quando observamos as determinantes a partir dos países de


origem, os movimentos migratórios apontam para uma combinação
de factores, relacionados com desestabilização política, conflitos
armados, perseguições étnicas e religiosas, problemas ambientais e
climáticos. Assim, as migrações acabam por constituir uma forma
de escape para contornar o empobrecimento, a violência endémica
e a falta de oportunidades sociais e económicas (PATRÍCIO E
PEIXOTO, 2018, p12).

Além desses conflitos, observa-se o aumento dos descolamentos causados


por desastres ambientais ligados às mudanças climáticas, havendo uma estima-
tiva, em 2014, mais de 19 milhões de pessoas, principalmente na Ásia, foram
atingidos por eventos climáticos, tais como tufões na China e Filipinas e inun-
dações na Malásia e no Subcontinente Indiano (ZAPATA, 2017, p.5-13).
Na outra ponta desta situação, como consequência da migração de pessoas de
países menos desenvolvidos, a chamada “crise de refugiados na Europa” tem sido
acompanhada pela politização e criminalização crescente destes fluxos popula-
cionais. Tal ação criminalizante tem sido justificada por meio do uso exagerado
das estatísticas para fins políticos, do uso midiático da imagem de “invasão de
imigrantes” tem dado, aos cidadãos locais, uma percepção negativa do impacto
da chegada destes grupos, provocando a ascensão de partidos nacionalistas de
extrema direita – abertamente racistas e xenófobos – na União Europeia. Ao
mesmo tempo, o crescente surgimento de movimentos terroristas e a dificuldade
do público em diferenciar cidadãos de países árabes em geral da imagem ameaça-
dora do terrorismo ajudam a criar uma preocupação com a questão da segurança
nacional. Independentemente das motivações de seu deslocamento, os refugiados
de modo geral e os migrantes oriundos de países associados ao terrorismo sofrem
dupla penalidade, na qual percebem ameaças políticas ou econômicas na origem,
e identitárias ou culturais no destino (ZAPATA, 2017, p.5-13).
Dados da ONU (2016) revelaram que, em 2015, o número de migrantes che-
gou em 244 milhões, o que indica um aumento de 41% em relação ao ano 2000,
sendo que, deste número, 20 milhões eram refugiados. Contudo, existe uma
diferença na distribuição destas pessoas pelo globo, uma vez que, na Europa,
América do Norte e Oceania, os migrantes formavam 10% da população; já na
África, Ásia e América Latina e Caribe, eles constituíam menos de 2%. Cerca
de 16 milhões de indianos e 12 milhões de mexicanos moravam em outros paí-
ses, o que dava à Índia e ao México as maiores diásporas do mundo, seguidos de
Rússia, China, Bangladesh, Paquistão e Ucrânia.
Já informações mais recentes também da ONU (2017), demonstraram que
haviam, em 2017, cerca de 258 milhões de migrantes internacionais, o que

1107
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

corresponde a 3,4% do total de cerca de 7,6 mil milhões da população mundial.


Segundo os mesmos dados, considerando as grandes áreas geográficas do
mundo, o volume da migração sul-sul ocupa o primeiro lugar, com 38%, seguido
da migração sul-norte, com 35%, norte-norte, com 22%, e norte-sul, com 6%.
Também em 2017, segundo a ACNUR (2018), o número de refugiados chegou
a 25,4 milhões de pessoas, o que corresponde a 10% da população migrante
global, sendo que estes estavam localizados principalmente nos países em
desenvolvimento, em especial a Turquia, Paquistão, Uganda, Líbano e Irão,
entre outros, destacando que os refugiados, no Líbano, compunham 16% da
população, o que pode ser ainda maior quando se consideram aqueles vindos
da Palestina (ONU, 2017).
Como bem observa-se pela análise de tais dados, o movimento de pessoas
vindas de países tidos como periféricos confirmam as problemáticas discuti-
das anteriormente, ressaltando como o fator econômico determina o local de
origem dos migrantes, e, consequentemente suas raças e etnias, bem como os
países de destino.

4. A movimentação de pessoas pelo mundo sob ponto


de vista materialista e algumas de suas consequências
Diante do que foi exposto, cabe aqui destacar que, do ponto de vista da
teoria marxista, fazendo-se uma análise por meio do método materialista, o
deslocamento de pessoas de uma região ou país para outra são como respostas
às forças econômicas num jogo em um contexto histórico específico. Embora
Marx nunca tenha publicado uma exposição abrangente do materialismo histó-
rico, resumiu sucintamente os princípios básicos:

Na produção social que os homens seguem, entram em relações


definidas, indispensáveis e independentes de sua vontade; essas relações
de produção correspondem a um estágio definido de desenvolvimento
de seus poderes materiais de produção. A soma dessas relações de
produção constitui a estrutura econômica da sociedade – o verdadeiro
fundamento sobre o qual se erguem as superestruturas legais e políticas
e às quais correspondem formas definidas de consciência social. O modo
de produção na vida material determina o caráter geral dos processos
sociais, políticos e espirituais da vida (MARX, 1959, p. 42).

1108
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Observa-se que a migração no contexto da globalização é um fenômeno


bastante complexo, sendo que, por meio da teoria marxista, tenta-se a compre-
ender as tendências do mundo moderno, incluindo a migração em massa, em
termos dos condutores econômicos, pois, conforme explica Magalhães (2011, p.
2) “o processo migratório é parte indissociável do desenvolvimento humano, de
suas formas de produção de riqueza e de ocupação e transformação do espaço”.
Por esta visão, também procura-se compreender como a questão econômica se
liga aos fatores racial e étnico aqui, uma vez que as raças e etnias predominantes
entre os migrantes e refugiados (não por coincidência) não é a branca. Historica-
mente, a desigualdade social, originada com a expansão imperialista, no contexto
de formação política e identitária dos novos países, relegou os povos que não eram
europeus/brancos a um papel secundário, que não os permitiu ascender economica-
mente da mesma maneira que os brancos ou ter as mesmas condições, de forma que
não fossem forçados a migrar em busca de uma qualidade melhor de vida. Almeida
(2018, p. 78), citando Hirsch, explica que “a nacionalidade e a dominação capitalis-
ta se apoiam em uma construção espaço-identitária que pode ser vista na classifica-
ção racial, étnica, religiosa e sexual de indivíduos como estratégia de poder”.
Neste sentido, para este trabalho, o foco principal e mais direto, confor-
me a visão materialista no que diz respeito à migração, seria com relação à
exploração de países por outros, bem como à questão da exploração da força
de trabalho dos imigrantes e refugiados e o tratamento dispensados a estes,
nos países de destinos, compreendendo o contexto histórico que nos trouxe
até aqui. O sequestro e a utilização como mão de obra dos africanos e povos
nativos das regiões recém-descobertas e a exploração destes territórios como
colônias, pelos europeus, a partir do século XV, bem como as consequências
para os países explorados pelo expansionismo mercantil europeu, que são,
hoje, as nações mais pobres e menos desenvolvidas, onde se concentram as
maiores desigualdades socioeconômicas, justamente porque foram amplamen-
te exploradas pelos países expansionistas, os quais desenvolveram a expensa
das riquezas e da força de trabalho dos primeiros.
Em tempo, ressalta-se que para além das razões diretamente ligadas à econo-
mia para a migração de pessoas no mundo, fatores como conflitos civis, perse-
guição política e desastres ambientais – também podem ter suas origens no ca-
pitalismo em certa medida. Não podemos esquecer que a indústria armamentis-
ta lucra com conflitos armados, os países do Primeiro Mundo, no momento de
negociar, se aproveitam da fragilidade na segurança, na economia e na política

1109
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

dos países do Terceiro Mundo, especialmente daqueles locais que vivem con-
flitos, sendo que em alguns casos, intervenções militares diretas por potências
imperialistas europeias e ocidentais, bem como de seus aliados e representantes,
contribuíram fortemente para gerar esta situação de caos (MERLI, 2017).
Para além disso, as crises econômicas capitalistas cíclicas e a crise ecológica ob-
servada recentemente, como explica Löwy (2013, p. 79-80), são resultados de um
mesmo fenômeno, qual seja o sistema capitalista, que transforma tudo – a terra, o ar,
os seres humanos – em mercadoria, e que se orienta apenas pelo critério da expan-
são dos negócios e da acumulação de lucros. Segundo o referido professor, ambas as
crises são aspectos interligados de uma crise mais geral, a crise da civilização indus-
trial moderna, cujo modo de vida é insustentável porque sua lógica produtivista e
mercantil “nos leva a um desastre ecológico de proporções incalculáveis”, de modo
que não sabemos até que ponto os desastres ambientais que obrigam as pessoas a
se deslocarem são resultados da utilização dos recursos da natureza e o despejo de
resíduos de volta no meio ambiente pelos produtores capitalistas.

5. Análise crítica do tratamento jurídico e social dado


aos imigrantes e refugiados
A migração, enquanto fenômeno social, sempre ocorreu durante a história,
motivada pela busca de melhores condições de vida, contudo, diante de even-
tos extremos, como as guerras, os desastres ambientes, as crises econômicas e
políticas, as pessoas se veem forçadas a migrar por uma questão básica de so-
brevivência. Após a Segunda Guerra Mundial, a qual gerou milhões de refugia-
dos, a migração passou a ser encarada como um direito humano1. No cenário
atual, aqueles que migram são vítimas de uma forma de organização política
dominante do Estado Moderno, pois nem sempre essa migração decorre de
forma voluntária, mas forçada (VENTURA, 2014), e além disso, os países que
recebem os migrantes e refugiados também não observam as normas de direito
internacional sobre o tratamento que deve ser dado a estes sujeitos.

1 O art. 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe: “toda pessoa tem o direito de deixar
qualquer país, inclusive o próprio e a este regressar”. De outro lado, a Convenção Internacional sobre
a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, de 1990, que
reconhece os direitos fundamentais de todos, em situação migratória regular ou não.

1110
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Diante da chegada dos imigrantes, os países desenvolvidos adotam medidas


e políticas para lidar com esta situação, em alguns países esse tratamento se tra-
duziu-se numa facilitação da entrada de pessoas como uma mão de obra barata
e jovem, já em outros lugares os migrantes são vistos como uma ameaça para a
estabilidade social, economia e política (BARBOSA, 2005). Uma grande maio-
ria das nações ricas tem políticas migratórias restritivas, o que acarreta numa
dificuldade para o estrangeiro de regularizar sua permanência, destacando-se
que resultado disso é que os migrantes são segregados nos países de destino,
tem sua força de trabalho explorada e precarizada e são tratados com violência
e preconceito, um quadro que se torna mais difícil para aqueles que se migram
em situação ilegal, os quais acabam por não ter acesso às políticas e serviços
sociais básicos, tendo sua vulnerabilidade multiplicada. (VENTURA, 2014).
Na última década, com a intensificação dos fluxos de refugiados oriundos de
países que passam por conflitos armados em direção aos países desenvolvidos, hoje,
testemunhamos uma crise humanitária no mundo, com países europeus literalmen-
te fechando suas fronteiras e negando socorro para refugiados do Oriente Médio,
desrespeitando os tratados internacionais de direitos humanos sobre esse refúgio
(VERDÚ, 2018). Outro exemplo de desrespeitos aos direitos dos migrantes é o
que ocorreu no Brasil, onde, recentemente, foram registrados atos de violência nos
acampamentos onde, imigrantes venezuelanos, que em sua maioria são de origem
indígena, estão alojados em Pacaraima, em Roraima, chegando a haver protestos da
população local pedindo a expulsão destas pessoas que chegaram ao Brasil, fugindo
da crise socioeconômica na Venezuela, após suspeitas de um morador local tinha
sido assaltado por um venezuelano (VIDIGAL, BRANDÃO e OLIVEIRA, 2018).
O que emerge com grande importância nesse quadro é a necessidade de
criação de instrumentos jurídicos, nacionais e internacionais, que, de maneira
eficaz, conceda direitos eficazes aos que migram, tanto na condição de imigran-
tes, como na condição de refugiado e apátridas, tendo em vista que a migração
é um direito humano reconhecido, bem como observado as violações de direitos
que estes sujeitos vivenciam nos países de destino como a xenofobia, o racismo,
e outras problemáticas institucionais que violam o princípio da não devolução,
o direito ao processo devido aos migrantes, independentemente de seu status, a
proibição de expulsão arbitrária e coletiva, e de não detenção de migrantes para
ofensas relacionadas à migração, dentre outras questões.

1111
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Conclusões
Numa perspectiva histórica e materialística, os movimentos de pessoas ao
longo dos últimos 500 anos é um resultado de diversos fatores influenciados
pelos interesses econômicos, desde o expansionismo imperialista europeu, até
os conflitos bélicos e desastres naturais que forçam milhões para fora de seus
lugares de origem atualmente, situação esta que é intensificada de maneira geral
com o acirramento de crises econômicas no mundo.
Além disso, verifica-se que, no sistema capitalista, em seu objetivo de
se apropriar e transformar tudo em mercadorias, poucos são os detentores
das riquezas e meios de produção, e para isso, uma maioria deverá ser ex-
plorada. Desta maneira, por intermédio do capitalismo, as interações e as
movimentações entre os diversos povos do mundo criaram as bases para o
desenvolvimento de práticas racistas e segregacionais, como uma forma de
justificar e afirmar a exploração de certos grupos sobre outros, à medida que
foi imposto um papel inferior aos povos não-brancos. Os efeitos desse fenô-
meno podem ser vistos, atualmente, na forma da exclusão e marginalização
das pessoas de origem africana, indígena, latina, asiática, etc., que persistem
até hoje, como um retrato do racismo que está profundamente arraigado
na sociedade capitalista. Do mesmo modo, outro resultado é a situação de
racismo e xenofobia crescentes nos países que receberam refugiados, o que
implica num tratamento degradante destes indivíduos que já se encontra-
ram em uma situação bastante vulnerável.
É assim, numa escala global, que vemos o capitalismo atuando, pois de acor-
do com seus ditames, da mesma forma que um trabalhador é explorado pelos
capitalistas para benefício exclusivo destes, também o foram (e ainda são) os
países mais pobres pelos países que impuseram o sistema capitalista e dele se
beneficiaram, criando uma desigualdade socioeconômica gritante na comuni-
dade internacional, de modo que muitos países menos desenvolvidos se torna-
ram um ambiente hostil para viver e os Estados não conseguem proteger seus
cidadãos, provocando neles grandes diásporas populacionais. Por fim, o mais
irônico é que, de acordo com a ONU (2016), 90% dos refugiados do mundo se
deslocaram para países com renda média ou baixa, que estão próximos às áreas
de conflito, sendo assim pouco expressiva a ajuda vinda dos países mais ricos.

1112
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

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1115
Sexualidade e direitos humanos: as “minorias
sexuais” na sociabilidade do capital

Artur Fernandes de Moura2

1. Introdução
Este artigo busca traçar uma discussão em torno da efetivação da vivência
da sexualidade como um direito humano universal, tendo em vista que uma
expressiva parcela da população, sobretudo, gays, lésbicas, bissexuais, travestis,
transexuais, entre outros são alijados do direito de vivenciar uma orientação
sexual e/ou identidade de gênero, socialmente, considerada dissidente.
A moratória sobre tais sexualidades repercute subjetiva e politicamente no co-
tidiano desses sujeitos sob o signo de diversas opressões, tais como: violência física,
psicológica e simbólica. Nesse sentido, buscando fomentar o debate teórico em torno
dos direitos humanos, realizaremos um breve resgate sócio-histórico sobre a conquis-
ta de tais direitos, desvelando sua funcionalidade na sociabilidade do capital. Logo,
apresentaremos, brevemente, as perspectivas teóricas sobre o assunto, focando nas di-
vergências e aprofundando a perspectiva dos direitos humanos na tradição marxista.
Diante disso, delinearemos o debate sobre a sexualidade e a diversidade se-
xual na cultura ocidental, sobretudo, na realidade brasileira. Para tanto, recor-
reremos às discussões de gênero/sexo, visto que tais categorias são teoricamente
imbricadas. Trazendo, por fim, nossas considerações finais.
É importante ressaltar que o presente artigo foi construído a partir de uma
pesquisa bibliográfica e documental com base em diversos autores acerca dos
direitos humanos, gênero e sexualidade. Tais como: Santos (2002; 2008; 2017),
Silva (2011), Trindade (2010), Netto (2011), Loyola (1999), Prado (2012), Tonet
(2002; 2004) etc. Além disso, utilizados documentos como matérias de jornais,

2 Assistente Social. Mestrando em Serviço Social e Direitos Sociais da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN).

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

relatórios, documentários etc. Desse modo, este artigo parte de uma abordagem
essencialmente qualitativa.

2. Direitos humanos e marxismo


As discussões sobre os direitos humanos são perpassadas por polêmicas
e contradições, principalmente, no campo da tradição marxista. Marshall
(apud SANTOS, 2002) classifica evolutivamente os direitos humanos em
três categorias: os direitos civis que teriam surgido no século XVIII; os
direitos políticos no século XIX e os direitos sociais no século XX 3. Estes
direitos também são conhecidos como direitos de primeira, segunda e ter-
ceira geração (SANTOS, 2002).
Tais direitos, não coincidentemente, surgem num período de transição do
Ancien Regime para o sistema de (re)produção capitalista, tendo na figura
da classe burguesa o papel de protagonista e revolucionária. O direito surge,
portanto, como um instrumento da burguesia para garantir a reprodução e a
consolidação dessa sociabilidade, uma vez que era essencial para que o capita-
lismo se tornasse hegemônico. Nesse sentido, os direitos da primeira geração,
mais especificamente, os direitos civis e políticos dentre eles o direito à liber-
dade, a vida e a propriedade mostram-se num primeiro momento como uma
promessa de igualdade real para todos nessa “nova” sociabilidade, visto que
trazia novas ideias, novas formas de ser, mas também se baseava na explora-
ção de uma classe sobre a outra.
Embora na dimensão política os indivíduos sejam tidos como iguais perante
a lei, esta, entretanto, é garantida apenas no plano formal “não levando em con-
sideração, pois, as reais condições de existência dos indivíduos sociais. Assim, o
trabalhador e o capitalista são igualados sob o rótulo de cidadão (DIAS, 1996
apud SANTOS, 2002, p. 24). Desse modo, a igualdade formal não representa o
fim das desigualdades materiais entre os sujeitos, tendo em vista que “a igualda-
de jurídica é, ao mesmo tempo, uma expressão e um instrumento da reprodução
da desigualdade vigente na esfera da produção” (TONET, 2004, p. 154).

3 Os direitos sociais não estavam na agenda da classe burguesa. Diferentemente, por exemplo, dos
direitos civis e políticos, necessários a (re)produção do sistema capitalista. É importante destacar,
no entanto, que tais direitos, tanto sociais como civis e políticos foram resultado da luta coletiva dos
trabalhadores (TRINDADE, 2010).

1118
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Diante disso, filosoficamente, há uma contradição na perspectiva dos


direitos humanos e o marxismo, visto que esta igualdade formal comumente
propagada nos direitos humanos, na perspectiva de Trindade (2010), é falsa,
individualista e idealista pois é alicerçada na ideia de direito natural, ou
seja, em uma concepção a-histórica que não reconhece a conquista de tais
direitos como resultado da luta coletiva dos trabalhadores e, portanto, nega
o homem como ser social.

Do mesmo modo, o direito não advém da “natureza humana” ou


da “razão universal”, nem é o formato “natural” e final das relações
sociais (é um formato histórico), como também não é o “criador”, nem
mesmo o “regulador”, da sociedade ou do Estado. Bem ao contrário, o
direito emana da sociedade, desta sociedade fundada na produção de
mercadorias (valores de troca), das relações concretamente existentes
nela – acima de tudo, das relações de produção (mediatamente) e das
relações de circulação (imediatamente), tendo no contrato a sua fonte
historicamente germinativa (TRINDADE, 2010, p. 219).

Portanto, na sociabilidade do capital, todos os direitos são mediados por


um direito estruturante desse sistema: a propriedade privada. Nesse sentido, o
direito a apropriação privada dos meios de produção se constitui o fundamento
para a (re)produção do sistema capitalista e, consequentemente, das desigual-
dades sociais e da exploração da força de trabalho da maioria da população, ou
seja, “esse é o direito soberano de todos os direitos: ele delimita e condiciona
todos os demais direitos humanos”. (TRINDADE, 2010, p. 235). Desse modo, é
a partir da propriedade privada que os interesses individuais e coletivos, assim
como as classes, passam a ser antagônicos, tendo na figura do Estado (burguês)
a centralização do poder político e, dessa maneira, a garantia dos interesses ca-
pitalistas. É importante ressaltar ainda que a propriedade privada, assim como
os antagonismos de classes, são anteriores ao modo de produção capitalista,
mas se agonizam e intensificam na vigência desse sistema. Destarte, o direito
apresenta-se como uma força indireta, completamente funcional ao capital, na
busca de mediar as desigualdades sociais e, consequentemente, os conflitos de
classe (TONET, 2002).
Para Tonet (2002), a garantia dos direitos humanos, na sociabilidade do
capital, não significa uma erradicação do sistema de opressões, visto que tais
direitos não atingem a raiz do sistema de desigualdades em que o capitalismo

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está estruturado, tendo em vista que a desigualdade é base e expressão desse


sistema. Contudo, o autor reconhece a importância da vigência desses direi-
tos no campo da emancipação política, uma vez que se caracteriza como um
instrumento de luta dos trabalhadores. Dessa forma, somente em uma nova
sociabilidade em que a cidadania e a democracia sejam substantivas, ou seja,
em uma sociedade humanamente emancipada, sem exploração/desigualdade de
classe, “raça”/etnia e gênero, teremos a real efetivação dos direitos humanos e,
consequentemente, estes perderão a função social até então assumida na socia-
bilidade do capital. Nesse sentido, Trindade (2010) esclarece:

A superação dialética da sociedade civil e do Estado – a sua fusão


qualitativamente superior numa sociabilidade humana reunificada e,
por fim, liberta da exploração de classe e de toda opressão sobre os
indivíduos – será também a superação do direito, enquanto forma de
expressão das relações sociais próprias a um específico modo social
de produção que haverá sido deixado para trás na história humana.
Os próprios conteúdos relacionais inter-subjetivos, dos quais os
direitos humanos atuais refletem apenas uma imagem acanhada
– porque conformada por relações sociais reificantes – poderão
haver sido dramaticamente transformados, num sentido libertador,
transformados de um modo impossível de ser sequer imaginado
pelos que vivemos na sociedade fundada no egoísmo, na exploração,
na concorrência e nas divisão artificiais entre os seres humanos –
divisões que, assim como foram historicamente construídas, poderão
ser historicamente desfeitas (p. 236).

Além disso, há divergências em relação aos direitos humanos, inclusive, den-


tro do próprio marxismo, são elas: a posição do marxismo tradicional, do mar-
xismo crítico e a posição liberal-democrática. Esta última, de acordo com Tonet
(2002), mostra-se a mais equivocada por três motivos principais: por pressupor
que o capitalismo é a última e única forma de sociabilidade e, portanto, superior
a perspectiva socialista, além disso compreende que é impossível haver uma
sociedade sem a presença do direito e da política, visto que defende que estes
são capazes de controlar a dinâmica do capital; e, por fim, utiliza o exemplo
das experiências socialistas, principalmente, soviética como “prova empírica da
impossibilidade de outra forma de sociabilidade e da inviabilidade da extinção
do direito e da política” (TONET, 2002, p. 68).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Os marxistas tradicionais e críticos também estão equivocados, na con-


cepção de Tonet (2002), pois entendem a revolução soviética como socialista.
Desse modo, os marxistas tradicionais compreenderam como justa a supressão
dos direitos e garantias individuais, ou seja, fundaram uma sociabilidade em
que o coletivo se sobrepõe ao indivíduo. Isto porque todas essas perspectivas,
tanto marxistas como liberais, caracterizam o socialismo como “ a supressão da
propriedade privada, pela estatização dos meios de produção e distribuição; pelo
planejamento centralizado da economia; pela produção voltada para o atendi-
mento das necessidades básicas da maioria da população”, (TONET, 2002, p.
68-69), etc. Por isso, segundo eles, seria justificável a retirada dos direitos indi-
viduais, considerados de caráter burguês. No entanto, esta não é a concepção
defendida por Marx, uma vez que este não compreende o socialismo como a
predominância do coletivo sobre o indivíduo, mas como uma relação dialética,
embora não isenta de conflitos, entre ambos.
O equívoco dos marxistas críticos, de acordo com Tonet (2002), é a defesa
pela ampliação de tais direitos em uma sociabilidade socialista o que, para o
autor, mostra-se desnecessário, tendo em vista que em uma sociabilidade huma-
namente livre, o direito, assim como as instituições democráticas, deixariam de
existir, pois as bases objetivas (as desigualdades sociais) serão superadas4.
Nesse sentindo, buscando dialogar com a perspectiva dos direitos huma-
nos na tradição marxista, aprofundaremos, no ponto seguinte, a discussão
sobre a sexualidade no contexto econômico, político, cultural e social do
capital, delimitando as diversas opressões produzidas pelos “desvalores” mo-
rais, a partir de uma perspectiva conservadora, sobre gays, lésbicas, bissexu-
ais, travestis, transexuais, etc.

2.1 Gênero, sexualidade e diversidade sexual


A sexualidade é um elemento intrínseco da individualidade humana sendo,
inclusive, reconhecida nos diversos ordenamentos jurídicos e conferências na-
cionais e internacionais tais como a Declaração Universal dos Direitos Huma-

4 Há divergências, no entanto, em relação a essa concepção. Coutinho (1997), por exemplo, defende
ampliação e defesa da cidadania e da democracia no socialismo. O autor, muitas vezes acusado de
reformista, se contrapõe a concepção de Tonet, pois defende a ampliação dos direitos humanos,
inclusive, em uma sociedade socialista que para Tonet não será mais necessária uma vez que não
haverá bases materiais para sua defesa.

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nos, de 1948, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, no


Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966 e na
Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, etc.
Embora estes dispositivos normativos defendam a igualdade, a liberdade, a
não discriminação entre os sujeitos, tais princípios não se efetivam concreta-
mente, mas somente do ponto de vista jurídico-formal, visto que na realidade a
sexualidade ainda é utilizada como instrumento de hierarquização, subalterni-
zação, invisibilidade e violações dos direitos humanos.
Para gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais esse processo é mais
perverso, uma vez que se convencionou supor que estes sujeitos estão fora da
“normalidade”, ou seja, da heteronormatividade. Portanto, vivenciar a sexuali-
dade se configura, para estes sujeitos, uma experiência marcada por conflitos.
É importante salientar, porém, que a concepção de sexualidade aqui tratada
está para além da redução simplista de ato sexual, mas está relacionada a uma
discussão sociológica, centralizada em torno da vivência da orientação sexual e
da identidade de gênero dos sujeitos, bem como das suas respectivas consequên-
cias. Uma vez que a literatura especializada tem dificuldade em conceber uma
visão unívoca a respeito da sexualidade5. Inclusive, com diferentes enfoques
tanto no campo da antropologia, sociologia, psicanálise, filosofia e na medicina.
Nesse sentido, as concepções de sexualidade ligadas a reprodução biológica
da espécie e as diversas expressões de discriminação contra as demais orien-
tações sexuais6 e identidades de gênero7 estão fundadas no pensamento (neo)

5 “Assim, a sexualidade pode ser abordada em relação à família, ao parentesco, ao casamento e a


aliança como constitutiva e, ao mesmo tempo, perturbadora da ordem (antropologia e sociologia).
Ela pode ser abordada, ainda, como constitutiva da subjetividade e/ou da identidade individual
(psicanálise) e social (história e ciências sociais em geral); como representação (antropologia) ou
como desejo (psicanálise); como um problema biológico/genético (medicina); ou ainda como um
problema político e moral (sociologia e filosofia) ou, mais direta e simplesmente, como atividade
sexual” (LOYOLA,1999, p. 32).
6 “Cunhado para escapar de termos como opção sexual, uma vez que a orientação sexual não se trata
de uma escolha racional do sujeito. Orientação sexual indica o direcionamento da atração física e/ou
emocional para pessoas do mesmo sexo (homossexual), do sexo oposto (heterossexual) ou de ambos
os sexos (bissexual)” (PRADO, 2012, p. 143).
7 “Dimensão da construção da identidade relacionada ao posicionamento simbólico dentre as
possibilidades de identificação e afirmação de feminilidades e masculinidades. Diferentemente
do sexo, a identidade de gênero é uma construção histórica. A noção de identidade de gênero se
baseia na noção de que o corpo biológico indica apenas as possibilidades de identificação, não sendo

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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

conservador8 que (re)produz juízos de valores, sobretudo, de caráter LGBTfó-


bico9. Como bem aponta Netto (2011, p. 60), tal pensamento se fundamenta
na defesa da “autoridade fundada na tradição, o poder legitimado pela religião
institucional (igreja), a desigualdade jurídica dos homens, a administração per-
sonalizada pela justiça, a lei assentada na moralidade e a subordinação do in-
divíduo à sociedade”. Portanto, não é um pensamento a-histórico, mas produto
de uma matriz cultural fortemente influenciada pelo cristianismo e que assume
novos contornos com o advento da revolução industrial e, consequentemente,
da ascensão da burguesia como classe dominante.
Diante disso, as questões relacionadas à orientação sexual e a identidade de
gênero não hegemônicas são, em geral, analisadas sob o crivo da moralidade
burguesa, quase sempre, ligadas a concepções heteronormativas e binárias pau-
tadas em modelos pré-estabelecidos e socialmente naturalizados de ser homem
e mulher que desconsideram a possibilidade de outras vivências da sexualidade
e identidades de gênero.
Nesse sentindo, tais instrumentos de controle social ainda repercutem na
sexualidade de homens e mulheres. No contexto brasileiro, o conservadoris-
mo ganha força, principalmente, no campo da política. A ausência das discus-
sões de gênero e diversidade sexual no Plano Nacional de Educação (PNE),
por exemplo, demonstra o proliferamento de concepções reacionárias no Con-

totalmente determinada por ele. Neste sentido, independente do sexo com o qual nasceu, alguém
pode se identificar ou apenas desempenhar papeis sexuais do sexo oposto” (PRADO, 2012, p. 142).
8 O neoconservadorismo surge em meados da década de 1970 num contexto de crise estrutural do capital,
fracasso das experiências do chamado socialismo real, reestruturação produtiva e retirada de direitos
sociais, favorecendo a organização dos movimentos de direita. Grupos skinheads, por exemplo, surgem
como um expoente dessa ideologia, fortemente, influenciada pelo neoliberalismo. Tendo em vista que
“o neoconservadorismo busca legitimação pela repressão dos trabalhadores ou pela criminalização
dos movimentos sociais, da pobreza e da militarização da vida cotidiana. Essas formas de repressão
implicam violência contra o outro, e todas são mediadas moralmente, em diferentes graus, na medida
em que se objetiva a negação do outro: quando o outro é discriminado lhe é negado o direito de existir
como tal ou de existir com as suas diferenças” (BARROCO, 2011, p. 209).
9 A LGBTfobia pode ser definida como a hostilidade geral, psicológica e social contra aqueles(as)
que, supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos do mesmo sexo
(práticas homoeróticas).Atuando como forma específica do sexismo, a LGBTfobia rejeita,
igualmente, todos(as) aqueles(as) que não se conformam com o papel de gênero predeterminado
para o seu sexo biológico. Trata-se de uma construção ideológica que consiste na permanente
promoção de uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra (homo) e uma forma
de identidade de gênero (cis) em detrimento de outra (trans), organizando uma hierarquização
das sexualidades e identidades. 

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gresso Nacional, maior espaço de representação do país. Em 2011, inclusive, o


projeto “Escola sem Homofobia” que objetivava capacitar educadores a respeito
das questões de gênero e sexualidade na escola foi barrado no Congresso Nacio-
nal por setores conservadores que, compostos majoritariamente por deputados
evangélicos fundamentalistas, vetaram a circulação do material e apelidaram o
texto, pejorativamente, de “Kit Gay” sob o argumento de que a pauta visava a
doutrinação das crianças e a reprodução de “valores promíscuos”.
Tais “desvalores”10 encontram fundamento no sistema de preconceitos que
tem na vida cotidiana seu espaço privilegiado de (re)produção. Heller (2016)
destaca que pensar o preconceito é pensar o lugar onde ele surge: o cotidiano.
Desse modo, a ultrageneralização e o pragmatismo são características do co-
tidiano, assim como, do nosso pensamento e comportamento. Portanto, pro-
dutor de juízos provisórios, pois “antecipa à atividade possível e nem sempre,
muito pelo contrário, encontra confirmação no infinito processo de prática.
(HELLER, 2016, p. 71). Nesse sentido, a moralização e, consequentemente, os
preconceitos contra as “minorias sexuais”11 baseiam-se, no que Heller (2016,
p. 78) denomina, em “preconceitos negativos”, ou seja, “ressentimento, ra-
cionalização (auto-justificação) estereotipada, comportamento estereotipado
(desde a discriminação até o extermínio, passando pela tortura física)”. Bar-
roco (2016, p. 20-21) ratifica:

[...] O sistema de preconceitos exerce uma função social de controle


e dominação. E não é possível romper radicalmente com o sistema
social de preconceitos nesta sociedade, pois, para isso, seria preciso
superar a separação existente entre os indivíduos e o humano-
genérico, a existência de classes sociais e de interesses de dominação
de classe, ou seja, superar a sociedade burguesa em sua totalidade. Mas
mesmo nessa sociedade, é possível combater o preconceito, individual

10 Para Heller (2016), valor é tudo aquilo que potencializa o gênero humano. Dessa forma, “pode-se
considerar desvalor tudo o que direita ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no
desenvolvimento de um determinado componente essencial” (HELLER, 2016, p. 18).
11 Minoria sexual é um termo que se refere ao grupo social cuja identidade de género, orientação
sexual ou práticas sexuais consentidas diferem dos da maioria da sociedade na que vivem. Nesse
sentido, fizemos o uso das aspas pois concordamos com Butler (2016) que as orientações sexuais e as
identidades de gênero são dinâmicas, portanto, transitórias. Dessa forma, todos os indivíduos estão
sujeitos a transitarem pela vasta gama da diversidade sexual. Embora, a heterossexualidade ainda seja
utilizada como norma.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

e coletivamente. Para isso, é preciso entender que a vida cotidiana


comporta momentos de ‘suspensão’ temporárias, que permitem ao
indivíduo sair de sua singularidade, motivado por exigências de
caráter humano-genérico, que ampliam a sua consciência do ‘nós’,
enriquecendo o indivíduo de valores, motivações e exigências voltadas
ao coletivo, à sociedade, à humanidade.

Desse modo, é impossível desassociar a (re)produção dos preconceitos da


sociabilidade do capital, uma vez que esta é funcional a esse sistema, na medida
em que esta reprodução permite manter uma coesão da estrutura social. Tal
sistema de preconceito repercute, sobremaneira, no debate em torno da diver-
sidade sexual. Uma vez que a moral dominante (re)produz moralismos con-
tra as orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas como, por
exemplo, a homossexualidade, bissexualidade, travestilidade, transexualidade,
etc. Ou seja, o capital se mantém reproduzindo relações hierárquicas de poder
entre os indivíduos expressas nas relações de opressão de gênero, étnico/raciais,
orientações sexuais e identidade de gênero (SANTOS, 2008).
De acordo com Silva (2011, p. 53), esta moral dominante “coloca uns in-
divíduos contra os outros e, nesse processo, se vale das diferentes refrações da
diversidade humana e dos grandes sistemas de opressão a grupos particulares,
tais como patriarcado e a heteronormatividade”. Nesse sentido, sob a égide do
capitalismo, e mais fortemente com o desenvolvimento do neoliberalismo, tais
processos ideológicos repercutem na subjetividade dos sujeitos, bem como na
sua sexualidade, na medida em que “reelaboram a individualidade” influencian-
do no modo de pensar e de conceber a vida, a si mesmo e ao mundo.
É importante salientar, no entanto, que embora a sociabilidade defina as
condições de possibilidade quanto ao modo de ser da individualidade, não se
pode resumir a vida social como externa ao indivíduo, visto que embora se
postule como norma a heterossexualidade, os processos sócio-históricos são ca-
pazes de romper com o que se denomina “heterossexualidade compulsória”. De
acordo com Butler (2016), as orientações sexuais, assim como as identidades de
gênero, dentro de uma sociabilidade heteronormativa, devem está em confor-
midade com o gênero e o sexo do sujeito.
Desse modo, o debate em torno da diversidade sexual, principalmente
no campo das políticas sociais, acaba sendo resumido a duas dimensões:
a valorização da diferença e a busca de igualdade de oportunidades. Em

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contrapartida, tais pautas entram em confronto com a própria contradição


do sistema, uma vez que este se (re)produz por meio das desigualdades sociais
e da propriedade privada. Ou seja, estas duas dimensões não encontram
materialidade na realidade (SANTOS, 2008).
Além disso, a moralização em torno da sexualidade não é um processo re-
cente e, muito menos, ausente de conflitos contando, inclusive, com o apoio e
legitimação cientifica12. No ocidente, por exemplo, se perpetuou a concepção
de sexualidade relacionada à reprodução biológica da espécie e aos ideais de
amor a Deus e a família. Ou seja, as questões relativas ao prazer e ao erotismo
ficaram condicionadas a exigência matrimonial, tendo a heterossexualidade
como norma (LOYOLA, 1999). A medicina, por exemplo, teve um papel de-
cisivo nesse processo de construção normativa sobre os gêneros, sobretudo, na
ideia de sexualidade biologizante que “sentencia” e define a orientação sexual e
a identidade de gênero dos sujeitos à sua genitália.
Essa restrição binária que pesa sobre o sexo de homens e mulheres, por-
tanto, atende aos objetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade,
que Butler (2016) denomina de “heterossexualidade compulsória”. Tal sistema,
como já mencionado, (re)produz hierarquias e, consequentemente, relações de
opressão de ordem sexual e identitária. Prado (2012) apresenta as três concep-
ções sobre as diferenças sexuais necessárias para compreender a sexualidade e
que influenciaram diretamente na formação dessas hierarquias sexuais e, con-
sequentemente, serviram de base para essas relações de opressão, são elas: o
modelo do sexo único, o modelo de dimorfismo radical e da ressignificação da
sexualidade pela diversidade sexual. Destarte, de acordo com o modelo único,

[...] o homem afeminado ou ainda a passividade não eram relacionados


diretamente ao comportamento sexual passivo, mas se destinavam a
identificar aquele que se colocava passivamente em relação ao prazeres.
Veyne (1987), em estudo sobre a homossexualidade na Roma Antiga,
afirma que naquele contexto “não se classificava as condutas de acordo
com o sexo, amor pelas mulheres ou pelos homens, e sim em atividade
e passividade: ser ativo é ser másculo, seja qual for o sexo do parceiro
chamado passivo”. (VEYNE,1987, p. 43 apud PRADO, 2012, p.35).

12 No Brasil até a década de 1980 a homossexualidade esteve no código de doenças do Instituto


Nacional de Previdência Social (INAMPS).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Tal assertiva nos leva a considerar que nem sempre existiu a distinção hete-
rossexual/homossexual, uma vez que a diferenciação da orientação sexual não
era possível. Visto que a sexualidade era determinada pelas posições e papéis
sexuais (ativo/passivo) dos sujeitos, logo concordamos com Katz (1996) de que
“a heterossexualidade foi inventada”. E os conceitos de heterossexualidade e
homossexualidade são recentes na história ocidental.
Já o modelo de deformismo sexual se inscreve em um contexto de reprodu-
ção das ideologias liberais burguesas, a partir do final século XVIII e início do
XIX, proporcionado o debate da possibilidade em torno da inserção da mulher
no mercado de trabalho. No entanto, esta discussão acabou por ser abortada,
uma vez que (sic) “as mulheres passam a serem vistas como um sexo diferente,
biologicamente determinado, e nesta diferença se ancorariam as justificativas
necessárias para a desigualdade entre os sexos”. (PRADO, 2012, p. 37). Ou seja,
baseando-se no saber médico, centrado numa análise da “fragilidade ovariana”,
a mulher é confinada a esfera privada.
As desigualdades entre os sexos surgem, portanto, para justificar disparida-
des sociais. Além disso, é importante salientar que tais concepções se funda-
mentavam na ideia de indivíduo “natural”. Logo, aqueles que se desviam desse
perfil, ou seja, “[...] daquilo que a natureza cobra de cada sexo, seriam vistos
como imperfeitos, patológicos. Surge, então, a ideia de perversão e degeneres-
cência”. (PRADO, 2012, p. 37).
Os termos “heterossexual” e “homossexual" só foram surgir nos Estados
Unidos, no final do século XIX, nos artigos médicos do americano James
G. Kiernan e do inglês Richard Von Krafft-Ebirig (1893). Para o primeiro
teórico, a heterossexualidade era considerada uma perversão, visto que até
então a sexualidade tinha um objetivo apenas reprodutivo, logo a conduta
sexual associada ao desejo era marginalizada, independentemente de ser
proveniente de um relacionamento heterossexual ou homossexual. Já na
obra de Krafft-Ebing (1893) o termo “hetero-sexual” surge sob uma nova
moralidade sobre a sexualidade, uma normalidade erótica até então negada
pela obra de Kiernan (KATZ, 1996). Logo,

Sem rejeitar a velha norma reprodutiva, Krafft-Ebing introduzia o


novo termo heterossexual. No século XX, ele passou a significar
uma sexualidade relativa ao sexo oposto totalmente desvinculada
da reprodução. Seu uso do termo heterossexual começou a afastar a

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sua discussão sobre o sexo do ideal reprodutivo vitoriano e a levá-la


na direção da norma erótica moderna do sexo diferente. (KATZ,
1996, p. 39).

A criação do termo heterossexual por Krafft-Ebing, desse modo, contribuiu


para o surgimento de um novo modo de encarar a sexualidade no século XX.
Embora os termos heterossexual e homossexual, para o autor, sejam antagôni-
cos, do ponto de vista moral, com eles passou-se a ter uma nova interpretação
e visão sobre o desejo. Contudo, a homossexualidade continuou tida como pa-
tológica, uma vez que não tinha fins reprodutivos. Portanto, para Katz (1996,
p. 40) “[...] seus hetero-sexual e homo-sexual ofereceram ao mundo moderno
dois erotismos de sexo diferenciado, um normal e bom, outro anormal e ruim”.
Já a ressignificação da sexualidade pela diversidade sexual surge em meados
do século XX, a partir da teorização da sexualidade e, consequentemente, das
transformações no discurso hegemônico motivado, principalmente, pela con-
testação de sujeitos coletivos13, abraçando concepções que desnaturalizavam
e despatologizavam as orientações sexuais e identidades de gênero. Giddens
(1993) denomina esse processo de mudança de “revolução sexual”, que, para
ele, se fundamentava em quatro elementos principais: 1) o deslocamento do
papel família como polo de produção da sociedade para o mercado; 2) a auto-
nomia sexual feminina decorrente do impacto da pílula anticoncepcional e da
organização política do movimento feminista; 3) a crescente visibilidade da ho-
mossexualidade feminina e masculina; 4) a atuação cada vez mais impactante
dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada que, por meio de suas
ações, interpelaram a naturalidade das formas de objetivação humana.
No entanto, a concepção de uma normativa heterossexual ainda (re)produz
discursos e práticas discriminatórias, colocando os sujeitos não pertencentes a

13 A “Revolta de Stonewall” representa um marco histórico de luta e contestação do conservadorismo


nos EUA. Ocorrida em 28 de junho de 1969, a população de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e
transexuais (LGBT) de Nova York cansada de ser constantemente reprimida pela polícia, reagiu
a essa repressão. Na época, a homossexualidade, assim, como a travestilidade e transexualidade
eram tidas como desordem mental sendo considerada “psicopatia sexual” semelhante à pedofilia.
Além disso, as propagandas anti-gays televisionadas reforçavam as legislações que regulamentavam
as opressões contra essa população. Stonewall era um bar pertencente a máfia e um dos únicos
que aceitava essa população. Os indivíduos que não estivessem, por exemplo, vestindo pelo menos
três peças de roupa relacionadas a seu sexo biológico estava sujeito a prisão. Na histórica noite, a
população LGBT resolveu reagir contra a repressão policial, dando impulso para mais tarde criar-se
a Parada do Orgulho LGBT (GNT, 2013).

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e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

lógica heteronormativa em condições subalternizadas. Baseando-se nessa lógica


de sexo/gênero heteronormativo, Rubin (1984) cria uma escala hierárquica da
sexualidade. No topo da pirâmide estariam os casais heterossexuais, ligados
pelo casamento. Abaixo deles, estariam os casais heterossexuais monogâmicos
não casados, seguidos pelos heterossexuais solteiros, mas de vida sexual ativa.
Embaixo deles estariam casais de gays e lésbicas que estariam “próximos da
respeitabilidade”. Abaixo destes, viriam as lésbicas de bares e homossexuais
“promíscuos”. E as que estão na base da pirâmide, considerada a categoria
mais baixa seriam: os/as travestis, os/as transexuais, os/as fetichistas, os/as
sadomasoquistas, os/as trabalhadores do sexo e, abaixo de todos os outros, os/
as pedófilos (RUBIN, 1984).
Pinafi (2011) acrescenta que a hierarquização do binarismo de gênero
homem/mulher produziu sobre o primeiro termo um teor positivo a partir
de uma desqualificação do segundo. Esta disparidade cria sobre a mulher,
incluído, o seu corpo, tipos de moralização e, consequentemente, estigmati-
zação14. Além de desqualificá-la e colocá-la numa posição de inferioridade
em relação ao homem.
A construção dessa hierarquia sexual está diretamente relacionada a cons-
trução do gênero nessa sociabilidade. Butler (2016), inclusive, ao problematizar
a cultura em que tais violações se reproduzem, compreende que a cultura tam-
bém é construída pelas diversas determinações sociais. No caso ocidental, a
cultura (re)produz “gêneros inteligíveis”, ou seja, “[...] são aqueles que em, certo
sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo,
gênero, prática sexual e desejo.” (BUTLER, 2016, p. 43). Tais gêneros mantém
relação de coerência com a norma, logo reforçam o binarismo de gênero que
postula que as pessoas são exclusivamente homens ou exclusivamente mulheres
(ou somente masculino e feminino). De acordo com Lauretis (1994), portanto,
o gênero é produto de várias tecnologias sexuais (re)produzidos por discursos e
práticas discursivas das autoridades religiosas, legais ou científicas, da medicina,
da mídia, da família, da religião, da pedagogia, da cultura popular, dos sistemas

14 O estigma é uma característica negativa, comumente, atribuída ao diferente. Para Goffman (1975,
p. 12) “enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo
que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo,
até, de uma espécie menos desejável [...]. Assim deixamos de considerá- la criatura comum e total,
reduzindo-a a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é estigma, especialmente quando
o seu efeito de descrédito é muito grande”.

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educacionais, da psicologia, da arte, da economia, da demografia, etc., que en-


contram legitimidade nas instituições do Estado.
Diante disso, a partir de uma análise conjuntural da sociedade brasileira
destacamos que este debate está longe de ser analisado separadamente das
concepções religiosas, em sua maioria, conservadoras e negadora de direitos
dessas “minorias sexuais”. Além disso, concordamos com Santos (2017, p. 16),
que “na sociedade capitalista não há como desvincular formas de opressão e
de violação de direitos da natureza da exploração da força de trabalho e da
vigência da propriedade privada”.
No contexto brasileiro, tais opressões ganham contornos particulares,
sobretudo, para as “minorias sexuais”, uma vez que a população LGBT, por
exemplo, é considerada uma das mais exterminadas do mundo, segundo o
Grupo Gay da Bahia (2016). Agravando, dessa maneira, sua condição de su-
balternidade e invisibilidade. Assim, é impossível dissociar as diversas formas
de opressão das determinações societárias e, consequentemente, do processo
de exploração da força de trabalho.
Destarte, faz-se urgente trazer para arena política tais pautas, principalmen-
te, pela forte marca do patriarcado na formação sócio-histórica da sociedade
brasileira, aspecto este estruturante da heteronormatividade e do binarismo de
gênero que nega e oprime a existência da diversidade humana.
Nesse sentido, no campo dos direitos humanos, como já mencionado, a dis-
cussão sobre a sexualidade está condicionada a dimensão da emancipação po-
lítica, portanto, da garantia de direitos no plano jurídico-formal. No Brasil, no
entanto, o conservadorismo mostra-se uma barreira na efetivação jurídico-legal
dos direitos das minorias sexuais. Por isso, concordamos com Tonet (2002, p.
63), quando afirma que a luta pela efetivação dos direitos humanos deve ter
como fim último a emancipação humana. Logo, “a luta pelos chamados direitos
humanos só adquire seu pleno e mais progressista sentido se tiver como fim
último a extinção dos próprios direitos humanos”.
Uma vez que “para que os indivíduos expressem a sua diversidade e liberda-
de em toda sua densidade histórica, necessitam de relações sociais fundadas na
igualdade substantiva que brota do trabalho associado, necessitam da ruptura
com o sistema do capital” (SANTOS, 2017, p.19). Somente assim, em uma so-
ciedade humanamente livre de exploração e opressão de classe, gênero, raça/
etnia, etc., a diversidade sexual será, enfim, considerada uma expressão consti-
tuinte da individualidade e, dessa forma, valorizada.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Conclusão
Diante dessas primeiras reflexões consideramos urgente e necessário
pensar as questões relativas à sexualidade e a identidade do gênero para
além dos preconceitos e estigmas sociais, mas como parte da inserção do ser
humano no mundo, portanto, sujeito aos aspectos culturais nos quais ele se
insere. Nosso esforço aqui é evitar cair numa visão economicista e politicis-
ta sobre a sexualidade.
Neste sentido, compreendemos ser primordial que a luta pela garantia da
emancipação política deva está associada também a criação de políticas públi-
cas para as “minorias sexuais”, sobretudo, homossexuais, bissexuais, travestis,
transexuais etc. Apresentam-se como demandas políticas dessa população a cri-
minalização da LGBTfobia, a criação de cotas nas universidades para travestis
e transexuais, a desburocratização e humanização do processo transexualizador
no Sistema Único de Saúde, a legalização do aborto, a implementação dessas
discussões de gênero e diversidade sexual nas escolas etc.
Portanto, a partir do que já foi discutido sabemos que o atendimento dessas
demandas requer a organização coletiva desses sujeitos, tendo em vista que o direito
a sexualidade assim como os demais direitos é fruto da luta organizada dos traba-
lhadores. E este direito, em especial, mostra-se mais conflituoso, pois envolve, além
de questões econômicas e políticas, também questões culturais. A Revolta de Sto-
newall e a Revolução Sexual das mulheres na década de 1960/70 são um exemplo
de contestação da moratória conservadora historicamente imposta a homens e
mulheres, principalmente, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
Nesse sentido, concordamos com Tonet (2002) e Santos (2017) que esta luta
deve ter como fim último a emancipação humana, visto que somente em uma
sociedade humanamente livre de opressão de gênero, raça/etnia e classe a sexu-
alidade, principalmente, as consideradas socialmente marginais deixarão de ser
subalternizadas e invisibilizadas.

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1133
“Somos a soma da diversidade, lutando
por igualdade e por transformação”: as
particularidades da divisão sexual do
trabalho para as mulheres camponesas

Gabriela Holanda Bessa de Lima15


Larissa Ellem Alves da Silva16
Larissa Souza Pinheiro17
Romana Alves da Câmara18

Introdução
A formação sócio histórica do Brasil, com seu processo de capitalismo tardio,
patriarcal e racista, marcado por contrarrevoluções burguesas, é atravessada por
um desenvolvimento desigual e combinado. A classe burguesa foi forjada pelos
proprietários de terra, os grandes latifundiários, o que fez com que a falta de
reforma agrária seja uma característica marcante na história do país, atribuindo
um traço conservador já no nascedouro do capitalismo no país.
A partir desse processo de formação do capitalismo e da burguesia brasileira,
a luta pela terra também faz parte da nossa história de resistência e se apresenta
como um gargalo de dimensão estruturante na luta de classes no Brasil. Desde a
ocupação do território brasileiro pelos europeus que a luta pela terra é marcada

15 Estudante de direito da UFERSA, extensionista do Centro de Referência em Direitos Humanos do


Semiárido, atuando pelo Eixo de Gênero e Diversidade Sexual.
16 Estudante de administração da UFERSA, militante do Levante Popular da Juventude e extensionista
do Centro de Referência em Direitos Humanos do Semiárido, atuando no eixo de Questão Agrária
e Acesso a Terra.
17 Assistente Social, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRN.
18 Graduanda em Serviço Social da UERN, militante do Levante Popular da Juventude e extensionista
do Centro de Referência em Direitos Humanos do Semiárido, atuando no eixo de Questão Agrária
e Acesso a Terra.

1135
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

pela violência, os povos indígenas foram os primeiros a sofrerem com esse pro-
cesso, em um verdadeiro genocídio que acontece até os dias atuais.
Se de uma forma geral a luta por terra tem sido uma luta difícil e mar-
cada por muita violência, a realidade das mulheres em relação a essa pauta
é ainda mais difícil. Terra, nessa sociedade capitalista, quer dizer posse e
como as mulheres que ainda são vistas como posse de outra pessoa, terão
como possuir alguma coisa? Como as mulheres que têm seu trabalho des-
valorizado e invisibilizado terão como discutir produção? Assim, para nós
mulheres, os desafios são ainda maiores.
No Brasil, o direito das mulheres a terra só entra na agenda pública nos anos
1980, com o processo de redemocratização e pela pressão dos movimentos de
mulheres rurais que se formavam nessa época. Porém, ainda assim, os progra-
mas que foram implementados nos anos de 1980 e 1990, pouco levaram em
consideração a situação da mulher e não as inseriram como sujeitos que teriam
direito a essas políticas, além de reforçarem a noção tradicional de família e
desconsiderar o trabalho das mulheres como trabalho produtivo, reforçando a
divisão sexual do trabalho.
Um exemplo disso, é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultu-
ra Familiar (Pronaf) que foi criado em 1996. Nos primeiros cinco anos de fun-
cionamento do programa, apenas 7% dos titulares no acesso ao crédito foram
mulheres e mesmo com a mudança no programa ocorrida em 2001, que desti-
nava 30% da verba do programa para mulheres o quadro pouco se modificou.
Na safra de 2002, as mulheres só representavam 10,4% dos contratos realizados.
Em relação à titularidade da terra destinada à reforma agrária também é
possível constatar a desigualdade em relação ao acesso das mulheres à terra. No
censo da reforma agrária de 1996, apenas 12% da titularidade das terras foram
para mulheres. Em 2002 essa realidade foi confirmada como uma constante
com a pesquisa realizada pela FAO/Unicamp, que constatou que 87% dos títu-
los de terra emitidos pelo Incra destinavam-se aos homens.
Após 2002, é possível ver algumas mudanças e avanços no acesso das mu-
lheres a terra, a primeira e mais significativa ação que possibilitou esse avanço
foram as campanhas de documentação para as camponesas que de 2004 a 2010
realizou 837 mutirões itinerantes, em 1050 municípios, emitindo mais de 546
mil documentos. (MDA, 2010).
A realidade para as mulheres camponesas foi de negação dos seus direitos
por muitos anos, a falta de documentação é um exemplo de como para elas até

1136
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

as poucas políticas de reforma agrária eram negadas e não as beneficiavam.


Com isso, elas não tinham acesso nem as políticas de redistribuição de terras,
de acesso ao crédito e muito menos aos direitos previdenciários.
É importante dizer que a luta das mulheres camponesas não está só em
ocupar a terra, mas em como ela é ocupada e dos valores que irão se repro-
duzir nela. A luta também é por uma divisão justa do trabalho doméstico,
pelo reconhecimento desse trabalho como essencial para a produção cam-
ponesa; pelo fim da violência contra as mulheres; por soberania alimentar e
por produção agroecológica.
Tendo a formação sócio histórica brasileira e a realidade das mulheres campo-
nesas como ponto de partida, pretendemos discutir nesse artigo como a divisão
sexual do trabalho afeta de forma diferenciada as mulheres do campo, que além
de ocuparem a terra com muito mais dificuldade que os homens, têm seu trabalho
apropriado e desvalorizado, sendo visto só como “ajuda” ou como um trabalho
improdutivo, mesmo que ele contribua para renda e reprodução da família.

2. As particularidades da formação brasileira e os


impactos dessa formação para a vida das mulheres
Para entendermos a realidade das mulheres camponesas, precisamos an-
tes compreender as particularidades da formação social brasileira, localizando
sempre o papel desempenhado pelas mulheres nesse processo. Para isso trata-
remos sobre o processo da revolução burguesa no Brasil, caracterizada como
“passiva”, “pelo alto” e associada à “via prussiana”, imprimindo uma marca
autoritária em todo o processo de formação sócio histórico do capitalismo e
do Estado no país. Tentaremos assim, desvendar as particularidades do ca-
pitalismo no Brasil, com o seu caráter oligárquico, dependente, autoritário e
voltado aos interesses imperialistas.
Segundo Ianni (1984, p.11), vivemos em uma “espécie de contrarrevolução
burguesa permanente” que nos impõe saídas sempre pelo alto, de cima para bai-
xo, reiterando sempre a organização do Estado segundo os interesses das classes
dominantes do país desde a independência até os dias atuais.
A revolução burguesa no Brasil aconteceu diferente dos países centrais
do capitalismo que viveram o feudalismo, onde a revolução burguesa se deu
com uma mudança do poder das mãos dos senhores feudais para os burgueses,

1137
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

trazendo reformas racionais para o pleno funcionamento do capitalismo,


como a reforma agrária, e alguns ideais democráticos, embora sob os limites
liberais. No Brasil, essa mudança de poder de classe não aconteceu, os grandes
proprietários de terras e senhores de escravos não foram destituídos de seus
privilégios, nem de suas posses, pelo contrário, eles foram a primeira base
da burguesia industrial e urbana, fazendo o que Florestan Fernandes(1975)
chamou de modernização conservadora.
Ianni (1984, p. 30), baseado no pensamento de Sodré (1964) caracteriza a
revolução burguesa brasileira:

As principais características da revolução burguesa brasileira


foram a seguintes: existência de massa camponesa numericamente
preponderante e principal produtora de bens econômicos; de numerosa
pequena burguesia, com função política destacada; de proletariado
pouco numeroso, mas crescente, com formas de organização em
desenvolvimento ainda fracas; de burguesia recente, ascencional, com
amplas perspectivas nacionais e fracas perspectivas internacionais.

Florestan Fernandes (1975, p. 104) chama atenção para as singularidades do


processo de revolução burguesa no Brasil em que o peso do passado escravista
tornou a revolução burguesa brasileira lenta e concentrada, demorando a atin-
gir todo o território nacional e trazendo poucas mudanças para as massas de
brasileiros. Nas palavras de Fernandes:

Em sua variante brasileira ele [o processo de revolução burguesa] se


tornou demasiado lento, muito descontinuo e só nas áreas urbanizadas
de industrialização intensa ele chegou a atingir quase todas as esferas da
vida social organizada [...] o grosso da sociedade brasileira continuou
variavelmente mergulhado nas idades históricas anteriores, e o povo não
se configurou plenamente como realidade histórica. Em consequência, a I
República aparece como uma fase de transação com o “antigo regime” e não
contribui, de fato, para a consolidação do estilo democrático de vida. Doutro
lado, de 1875 a 1930 os interesses da revolução burguesa ficaram sob o mais
completo controle social dos setores rurais e da dominação tradicionalista.

Ianni (1984) ainda nos traz três marcos históricos importantes para a con-
cretização dessa revolução burguesa, o primeiro foi a abolição da escravidão e o
advento do trabalho livre, o segundo a proclamação da república, que segundo

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

ele marca uma abertura para o novo, ainda que não de forma completa como
já dissemos anteriormente, e o terceiro a ditadura militar de 1964, que para ele
representou o ascenso da grande burguesia.
O que podemos perceber até aqui, é que a revolução burguesa no Brasil traz,
de forma geral, duas características centrais: a primeira, é a não desvinculação
do poder dos grandes latifundiários e com isso quase nenhuma alteração na
estrutura agrária brasileira; e a segunda, é seu caráter antidemocrático, autori-
tário e de contra revoluções.
Oliveira (2001, p. 186) nos fala sobre a fusão de capitalista e proprietário de
terras no Brasil em uma pessoa só:

No Brasil, o desenvolvimento do modo capitalista de produção se faz


principalmente pela fusão, em uma mesma pessoa, do capitalista e do
proprietário de terra. Este processo, que teve sua origem na escravidão, vem
sendo cada vez mais consolidado, desde a passagem do trabalho escravo para
o trabalho livre, particularmente coma Lei da Terra e o final da escravidão.
[...] Assim, a chamada modernização da agricultura não vai atuar no sentido
da transformação dos latifundiários em empresários capitalistas, mas, ao
contrário, transformou os capitalistas industriais e urbanos – sobretudo do
Centro-Sul do país – em proprietários de terra, em latifundiários. [...] No
Brasil, esta aliança fez com que, ao invés de a burguesia atuar no sentido
de remover o entrave (a irracionalidade) que a propriedade privada da terra
traz ao desenvolvimento do capitalismo, atuasse no sentido de solidificar,
ainda mais, a propriedade privada da terra.

O processo da revolução burguesa brasileira, com essa característica de mo-


dernização conservadora, fez com que a grande concentração de terra fosse uma
característica marcante na formação sócio-histórica no Brasil. A expulsão de
milhares de camponeses do campo, agudiza as expressões da questão social. O
latifúndio, além de marcadamente improdutivo no território brasileiro, quando
é produtivo, está concentrado nas mãos do agronegócio que, além de não pro-
duzir para dentro do país, por ser totalmente voltado aos interesses dos de fora,
gera poucos empregos, contamina solos e a água com a utilização de agrotóxicos.
Além disso, age de forma violenta e assassina contra camponeses e camponesas
que ousam resistir a esse modelo de produção e lutam por reforma agrária.
O Atlas Fundiário Brasileiro de 2012, publicado pelo Incra, indicava que
62,4% da área dos imóveis cadastrados fora classificada como não-produtiva e

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

apenas 28,3% como produtiva. Essas informações revelam a contradição repre-


sentada pela propriedade privada da terra no Brasil, retida para fins não-pro-
dutivos. Inclusive na prática, o único compromisso social que os latifundiários
deveriam ter seria o pagamento do imposto territorial rural (ITR), mas não é o
que ocorre. Os dados divulgados pela Receita Federal referentes em 2014 mos-
tram que entre os proprietários dos imóveis de mil a cinco mil hectares, 59%
sonegaram este imposto e entre os proprietários dos imóveis acima de cinco mil
hectares, esta sonegação chegou a 87%.
Além da forte concentração de terras, o Brasil traz como parte da sua for-
mação sócio histórica o peso de mais três séculos de escravidão, sendo o últi-
mo país a aboli-la como forma de exploração de força de trabalho. Esse marco
impõe características peculiares não só à formação do capitalismo no país, mas
também a outras determinações das relações sociais aqui, que vão do Brasil
colônia até os dias atuais.
A escravidão no Brasil não se caracteriza como a escravidão antiga, onde os
escravos eram frutos de dominação de guerra e ainda não vigorava um comércio
massivo de escravos com o intuito de uma acumulação capitalista. Aqui, a es-
cravidão já vivia a ruína do feudalismo nos países centrais e o início do sistema
capitalista de produção e acumulação, nas palavras de Saffioti (2013, p. 206),

Na conjuntura do capitalismo comercial moderno [...] o escravo não


apenas se constituía numa mercadoria capaz de mobilizar grandes
capitais comerciais como também se transformava num capital fixo,
portanto, em meio de produção para as grandes explorações agrícolas
empenhadas na acumulação de capital.

O fato da escravidão no Brasil já ter acontecido dentro do sistema capitalista


vai fazer com que seu início, meio e fim tenha relação direta com desenvolvi-
mento e estabelecimento do capitalismo no mundo.
No Brasil colônia o poder se organizou primeiro em torno dos funcionários
da coroa portuguesa que aqui estavam e depois passou para as mãos dos que
se utilizavam da terra para acumulação capitalista, o que deu a característica
patriarcal para a forma de organização do Brasil na sua fase colonial, pois o
poder que antes tinha vínculo estatal com os funcionários que representavam
Portugal, passou para as mãos de famílias, centralizado na figura masculina
do patriarca (SAFFIOTI, 2013).

1140
Nesse período histórico, a opressão sobre as mulheres vai se realizar de
forma diferenciada para mulheres negras e brancas. Se sobre as mulheres
brancas pesava o alto poder do patriarca, na figura do seu pai ou marido,
que lhes impunham uma dura moral sexual e que seguissem a rigor as tare-
fas tidas como femininas, para as mulheres negras pesava a escravidão que
lhes explorava não só o trabalho, mas seus corpos para fins de reprodução
de força de trabalho, como também para satisfação sexual dos desejos dos
homens brancos, negando-lhes qualquer possibilidade de composição fami-
liar e de direitos sobre as suas vidas e corpos, num verdadeiro processo de
coisificação. Saffioti (2013, p.240 - 241) nos fala sobre a situação das mulhe-
res brancas e negras no período colonial:

Na medida em que a exploração econômica da escrava, consideravelmente


maior que a do escravo, por ser a negra utilizada como trabalhadora,
como mulher e como reprodutora de força de trabalho, se fazia também
através do seu sexo [...] As mulheres negras se destinavam a satisfação
das necessidades sexuais do senhor, enquanto às mulheres brancas
cabiam as funções de esposa e mães dos seus filhos legítimos. [...] As
mulheres brancas da época escravocrata apresentavam os requisitos
fundamentais para submeter-se, sem contestação, ao poder do patriarca,
aliando à ignorância uma imensa imaturidade. [...] Era normal que aos
15 anos a mulher já estivesse casada e com um filho, havendo muitas que
se tornavam mães aos 13 anos. Educadas em ambiente rigorosamente
patriarcal, essas meninas-mãe escapavam do domínio do pai para, com o
casamento, caírem na esfera do domínio do marido.

A dominação racista e patriarcal pesa sobre os corpos e vidas das mulhe-


res negras até os dias atuais, mostrando a marca que a escravidão e o racismo
deixaram na formação social brasileira. Se por um lado as mulheres brancas já
podem assumir outros papéis que não sejam só os de mães e esposas, sobre as
mulheres negras ainda pesa a hipersexualização dos seus corpos e a exploração
do seu trabalho de forma mais intensa e precarizada.
A partir da compreensão da formação sócio-histórica brasileira e do enten-
dimento que as relações sociais de classe, sexo e raça são estruturantes nessa
sociedade, veremos que essas determinações impõem uma forma diferenciada
de apropriação e exploração do capitalismo sobre a classe trabalhadora, ou seja,
veremos que a classe trabalhadora não é homogênea, ela tem sexo e raça.

1141
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O conceito de desenvolvimento construído e imposto pelo sistema capita-


lista não incluí as mulheres como sujeitas do “progresso” gerado por ele, bem
como, utiliza-se do patriarcado, e do racismo para se estruturar e lucrar mais.
Sobre isso Silva (2011, p. 114-115) nos fala:

A noção de desenvolvimento não inclui as diversidades. Está permeada


por um modelo único - branco, ocidental, heterossexual –, como fator
que movimenta a vida e como meta para a felicidade na aventura
humana na terra. […] Desenvolvimento é uma prerrogativa do capital
e da racionalidade moderna ocidentalista europeia, que é, ao mesmo
tempo, racista e patriarcal. Não temos, a meu ver, como redimi-lo de
seu cerne uniformizante, urbanizante, evolucionista, higienista. Não
temos como libertá-lo de sua face ardilosa, que concebe a história em
um caminho que vai sempre para cima e para frente numa racionalidade
marcada pela acumulação ou desprovimento de mercadorias, estas
sempre entendidas como as coisas que trazem a felicidade e mediam as
relações entre as pessoas.

A partir do que nos traz Silva (2011), podemos perceber que esse conceito
de desenvolvimento não é pensado por todos e todas e nem muito menos os
beneficia. Baseado no sistema capitalista, vai gerar desigualdades, estruturado,
alimentado e gerador de pobreza espalhada e de riqueza concentrada. Nessa
lógica, tudo é passível de venda e de troca, terras, águas, territórios e vidas. Mas
não quaisquer vidas, vidas com sexo e cor, Silva (2011, p. 118) nos diz sobre
como essa lógica funciona

Se o trabalho da mulher vale menos, então contratem-nas e paguemos


menos; se o corpo da mulher é objeto, então vendamos para quem o
quiser comprar; se as mulheres acumulam múltiplas habilidades, então
explorem-nas, façamos delas também as gestoras da miséria. Se os negros
e negras valem menos, situemo-nos nos piores locais.

Esse modelo de desenvolvimento capitalista afeta a vida das mulheres de


uma forma mais intensa, pois além dos aspectos do capital, recaem sobre elas
o peso do patriarcado e no caso das mulheres negras, o peso do racismo que
também são aspectos estruturantes nessa sociedade. Sendo assim, temos um
processo de formação brasileira que impacta de forma direta e intensificada a
vida das mulheres, principalmente as negras, e que por seu caráter tardio e de

1142
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

modernização conservadora traz particularidades também as mulheres campo-


nesas que serão tratadas de forma mais aprofundadas nos pontos a seguir.

3. Divisão Sexual do Trabalho: apropriação do tempo


e da vida das mulheres
Com o desenvolvimento do sistema capitalista, perpassamos por diversas
instituições que estruturaram a nossa sociedade, dentre eles, o conceito de di-
visão sexual do trabalho. Para tanto, o trabalho pode ser conceituado como
“antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que
o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com
a natureza.” (MARX, 2013) e essa ordem se estrutura com base em uma von-
tade orientada a um fim específico, que fará do objeto algo útil para a sua vida.
E a partir de uma separação, no capital, entre o trabalho produtivo e
o trabalho reprodutivo há um processo de construção da divisão sexual do
trabalho, que é um elemento essencial na constituição das relações sociais
de sexo e gênero, e que evidenciou uma nova ordem social, reestruturando
a dominação patriarcal.
Mesmo partindo da presunção de que houve, em épocas anteriores ao ca-
pitalismo, outras formas de divisão do trabalho entre homens e mulheres, essa
partilha estava marcada por outra relação entre produção e reprodução, pois
esta que se expressa nesse sistema está diretamente relacionada à formação so-
cial capitalista, na qual a força de trabalho é vendida como uma mercadoria e
o espaço doméstico passa a ser uma unidade familiar e não mais uma unidade
familiar e produtiva (ÁVILA e FERREIRA, 2014).
Por muito tempo a questão da divisão sexual fora completamente ignorada
pelos estudos do trabalho, apontando a questão apenas como uma matéria da
esfera produtiva, o conceito do trabalho estava distante de vislumbrar a estreita
ligação entre campo produtivo e reprodutivo. Como pontua Biroli (2013):

A conexão entre os aspectos doméstico e não doméstico da vida é


profunda e permeia todos os espaços e atividades. A forma de definir
– e restringir – o papel da mulher em uma dessas esferas organizam
suas possibilidades de vida nas outras. Assim, a responsabilidade
exclusiva pela gestão da vida doméstica corresponde, ao mesmo tempo,
à vulnerabilidade na vida privada (...) e na vida pública.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Essa conexão entre a esfera reprodutiva e produtiva, e consequentemente


uma divisão entre o mundo público e privado, estrutura, fundamentalmente, o
patriarcado e as relações sociais de sexo, visualizando, dessa forma, a consubs-
tancialidade e a coextensividade das relações de gênero, raça e classe, fazendo
com que esse vínculo seja um movimento marcado por contradições, em que
um sobrepõe-se ao outro parcialmente. Segundo Ferreira (2017):

O capital utiliza-se da divisão sexual do trabalho para fins de aprofundar


a exploração e ampliar a acumulação, seja pela exploração da força
de trabalho das mulheres no mercado de trabalho, sob rendimentos
rebaixados, seja pela apropriação do trabalho doméstico realizado
gratuitamente para suas famílias na esfera da reprodução social.

A divisão sexual do trabalho, desse modo, partindo do sistema capitalista, é a


forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo, e esta
partilha, como mencionado, é uma categoria que se distingue através da história.
Além de ter como característica, como apontado, a divisão entre a esfera
produtiva – aquela destinada a produzir valor de uso ou de troca e também
destinado prioritariamente como um espaço ocupado por homens – e a esfera
reprodutiva, como sendo o trabalho dispendido para recompor uma força de
trabalho, isto é, inclui tarefas associadas ao apoio da atual e futura força de
trabalho, geralmente produzido no lar, que teria como ocupação as mulheres,
essa divisão também detém dois princípios organizadores: o da separação, isto
é existem trabalhos “de homens” e outros destinados para as mulheres, geral-
mente relacionados à feminilidade e ao cuidado, e o da hierarquização, por-
tanto, o trabalho realizado por um homem é mais reconhecido e legitimado
do que o realizado por uma mulher.
O trabalho doméstico sempre foi de responsabilidade das mulheres, para
as mulheres de todas as classes. A divisão sexual do trabalho evidencia-se no
interior da esfera do trabalho reprodutivo através da distribuição desigual de
trabalho entre homens e mulheres e de uma diferenciação de tarefas. No tra-
balho reprodutivo, que permanece, majoritariamente de responsabilidade das
mulheres, quando os homens executam tarefas no trabalho doméstico direta-
mente relacionadas a necessidades do cuidado, da manutenção da casa e da
alimentação, estão em princípio fazendo um trabalho de mulheres, ou apenas
considerado como uma espécie de ajuda.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Todavia, a divisão sexual do trabalho, como anteriormente exposto, é uma


das raízes da divisão social do trabalho, mas não a única relação que atua sob a
vida das mulheres as oprimindo e renegando-lhes o mundo do trabalho produ-
tivo e, consequentemente, do amplo espaço público.
O patriarcado, compreendido por Paterman (1993, p.39) como: “a forma de
direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens”, ao
sair da compreensão literal de que este é o exercício do poder do pai sobre seus
filhos/as, nos dá uma percepção do processo de transformação que tal categoria
sofre ao ser apropriado pelo capital, passando a adentrar na vida das mulheres e
atuar como limitador de direitos, definindo os locais que podem ou não ocupar
e que tipos trabalho lhes devem ser incumbidos, construindo culturalmente ao
longo da história da sociedade, “determinantes biológicos” que as sujeitam ao
trabalho reprodutivo e, ainda por cima, o invisibiliza.
A divisão sexual do trabalho como expressão do patriarcado, conforma a
construção do ser homem e do ser mulher, desde a infância, dando norte aos
comportamentos que lhes são “adequados” e as exigências sociais que compe-
tem a cada um, devido seu sexo. Enquanto para os homens é o poder, para as
mulheres é a subordinação, impondo relações hierárquicas e a desvalorização
das diferenças como se fossem desigualdades, criando um inferiorização eviden-
te das mulheres e consequentemente de tudo que estas fazem.  Sobre isto, nos
fala Calaça (2012, p.89), citando Kergoat (2009)

A divisão sexual do trabalho representa a base material que expressa


as relações sociais de sexo (KERGOAT, 2009), é nela e a partir
dela que o patriarcado se constrói e consolida as diferenças sociais
entre homens e mulheres, fazendo com que simples diferenças sejam
entendidas como inferioridade.

Disto, avistamos uma sociedade em que, não à toa, mas como uma forma
de lucro do capital através da mais-valia, além da invisibilização do trabalho
das mulheres, ainda são submetidas aos trabalhos precarizados. O ingresso no
mercado de trabalho foi sempre muito categórico em determinar quais serviços
seriam executados por elas, e este não foge muito de seus afazeres domésticos.
Por isto, no ponto seguinte, procuramos trazer as particularidades da reali-
dade das mulheres camponesas, que além de terem o seu trabalho reprodutivo
invisibilizado, também passam pela negação de sua produção, que por muitas

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

vezes trazem sustento e renda para a família, acentuando o poder do homem,


patriarca, sobre a família.

4. A divisão sexual do trabalho e as suas particularidades


para as mulheres camponesas
Pretendemos trazer um pouco sobre a discussão da Divisão Sexual do Tra-
balho, para o meio camponês, no qual se apresenta também de uma maneira
naturalizada, mas com suas especificidades. As divisões realizadas no campo,
vão para além do trabalho econômico, transpassando as relações familiares.
Em relação a agricultura familiar que se caracteriza pelo sustendo de muitas
famílias do campo, mas quando se é pensado nessa atividade, pouco se analisa
sobre as condições das pessoas que vivem no campo, suas necessidade e objetivos.
Visto que, o principal objetivo do atual modelo produtor de alimento, é o lucro.
Nas existentes pesquisas sobre as pessoas que vivem da produção, o homem
é pensando como a figura central, como o chefe da família e o trabalhador que
traz o sustento da casa. Não se reflete sobre a figura da mulher, como sujeito
essencial para geração de renda, dessa forma as atividades geradas pelas traba-
lhadoras são invisibilizadas.    

A invisibilidade do trabalho das mulheres na agricultura familiar está


vinculada às formas como se organiza a divisão sexual do trabalho e de
poder nessa forma de produção, em que a chefia familiar e da unidade
produtiva é socialmente outorgada ao homem. Embora a mulher trabalhe
efetivamente no conjunto de atividades da agricultura familiar: preparo
do solo, plantio, colheita, criação de animais, entre outras (incluindo a
transformação de produtos e o artesanato), somente são reconhecidas,
porém com status inferior, aquelas atividades consideradas extensão
do seu papel de esposa e mãe (preparo dos alimentos, cuidados com os
filhos, etc.) (SILIPRANDI, 2009, p. 143).

Podemos então compreender, que as atividades de reprodução e cuidado


família são tidas naturalmente como obrigação da mulher, sendo desqualifica-
das. Para as mulheres camponesas, além da responsabilidade com o lar, lhes são
dadas, de forma mais intensificada, o papel de ligação com a natureza, já que o
tempo de cuidado e compreensão é dado a elas (SOUZA et at 2017).

1146
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Seguindo o raciocínio, podemos afirmar que as mulheres do campo possuem


uma intensiva e extensiva jornada de trabalho, pois a elas são dadas as tarefas
domésticas e cuidado da roça e animais. Além de toda essa sobrecarga, os ser-
viços desempenhados são vistos apenas como ajuda.

No roçado se produz farinha, feijão e milho, considerados, pelos


agricultores, fundamentais à sobrevivência, de modo que as atividades
aí realizadas são reconhecidas como trabalho. O pai encarna essas
atividades, logo, o trabalho é dele. Mesmo que os filhos e a esposa
desempenhem tarefas no roçado, essas são consideradas “ajuda”. Por
oposição ao roçado, a casa é o lugar da mulher, mãe de família, e
as atividades aí desenvolvidas são consideradas um não-trabalho
(NOBRE, 1998, p. 39).

Assim, compreendemos que o campo não foge da lógica da Divisão Sexual


do trabalho, separando e hierarquizando as atividades realizadas por homens e
mulheres. Nessa forma de organizar a produção as mulheres se tornam meras
coadjuvantes, sem ocupar espaços de decisão.
Ainda em relação ao trabalho, Paulilo (1987), nos aponta que não há uma
definição precisa do que é trabalho leve e trabalho pesado. A sua característica
se dá através de quem executa e não por sua natureza. Dessa maneira, os traba-
lhos praticados por homens são tidos como pesados, os realizados por mulheres
crianças são considerados leves e consequentemente os pagamentos seguem a
lógica da qual os serviços pesados valem mais do que os leves. A autora bem
como destaca, que o trabalho leve não significa ser desnecessário ou até mesmo
agradável, mas pode ser extremamente desgastante e nocivo à saúde.

O esforço físico é sempre apontado como uma das razões para os


homens serem considerados mais importantes do que as mulheres no
trabalho agrícola. Mas, quando se olha para a realidade, não há tarefa
que elas não executem, se não for possível prescindir de seus braços.
Mulheres já fizeram destoca, araram a terra, puxando o burro ou “no
muque”, e carregaram sacos de 60 quilos na cabeça. Mas, toda vez que
essas tarefas são mecanizadas e, portanto, exigem menor força física,
contraditoriamente, elas são excluídas, ou seja, é muito mais fácil ver
uma mulher carpindo com a enxada do que dirigindo o trator para a
realização do trabalho agrícola. (NOBRE, 1998, P. 43).

1147
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Entendemos através da citação acima, que as divisões de atividades não se


deram pela incapacidade inerente do corpo feminino e sim por um modelo de
produção que busca a submissão das mulheres. Dessa maneira as trabalhadoras
passam a ocupar espaços tidos como não prestigiados, em precárias condições e
por seguinte com baixas remunerações.
Calaça (2012), expressa que a realidade das trabalhadoras do campo é ainda
mais difícil, pois é no meio rural que se encontra os piores índices de educação,
acesso a saúde, lazer, transporte e cultura. Além da falta de equipamentos cole-
tivos como restaurantes populares, creches, lavanderias coletivas e entre outros.
Esse contexto dificulta ainda mais as mulheres a se dedicarem a sua profissão e
ao mesmo tempo fazer parte da família.
A autora também reflete sobre as empresas na maioria das vezes buscarem
um trabalhador que possa se dedicar integralmente aos serviços solicitados, sem
preocupações e distrações exteriores. Sendo essa realidade possível apenas aos
homens, pois as mulheres são dadas inúmeras obrigações domésticas.
Através dos pontos apresentados, interpretamos que as mulheres campone-
sas além de enfrentarem as condições impostas pelo sistema patriarcal, ainda
passam pelos desafios existentes no campo. A Divisão Sexual do Trabalho, ne-
cessita ser reconhecida e enfrentada, pois sua naturalização impede que seja
vista como problema, impossibilitando que uma sociedade igualitária entre ho-
mens e mulheres possa ser construída no campo e na cidade.

Considerações finais
Longe de esgotarmos o debate, podemos perceber que as mulheres cam-
ponesas enfrentam de forma diferenciada e agudizada a divisão sexual do
trabalho, pois além de terem de lidar com a separação feita de forma di-
cotômica entre trabalho produtivo e reprodutivo, elas também têm o seu
trabalho produtivo tido como mera ajuda, mesmo que este componha de
forma substancial a renda familiar.
Além disso, elas enfrentam outras formas de opressão e exploração que re-
caem sobre as mulheres de forma geral de maneira diferenciada, como a depen-
dência financeira, a violência doméstica e a dificuldade de organização política.
Seja pelas longas distâncias e falta de direitos e equipamentos públicos que ca-
racterizam a realidade do campo, como a falta de documentação, direitos previ-

1148
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

denciários e delegacias da mulher, seja pelo conservadorismo que, por vezes, se


manifesta de forma mais intensa e naturalizada na realidade delas.
É importante dizer que as mulheres camponesas não lidam de forma con-
formista com essa realidade e que elas vêm se organizando politicamente em
busca da construção de uma nova sociedade, onde homens e mulheres vivam
em igualdade e liberdade concreta e substancial.
A partir dessa organização política as mulheres camponesas constroem al-
ternativas para as suas vidas cotidianas. Seja construindo feiras de economia fe-
minista e solidária, que possam contribuir com a construção da sua autonomia
financeira, seja com formações e rodas de conversa que questionem as relações
naturalizadas no campo. A Marcha das Margaridas e o Movimento de Mulhe-
res Camponesas são exemplos de como as mulheres campesinas vêm resistindo
e lutando em busca de liberdade, autonomia e igualdade, por uma vida sem
violência e com dignidade no campo.

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1150
Um estudo sobre a condição de negras e
negros no curso de direito da UFERSA

Luan Fonseca Araújo1


Nayara Katryne Pinheiro Serafim2

Introdução
O seguinte trabalho tem como intuito apresentar uma análise sobre a ques-
tão racial no Brasil, considerando a realidade de classe colocada sobre os sujei-
tos de pele escura. Nesse sentido, o racismo por ser uma relação social dotada
de materialidade e historicidade não ficaria distante da teoria marxista. Os
longos anos de escravidão no país influenciaram diretamente na construção da
sua sociedade, deixando o negro quase impossibilitado de se adequar ao novo
regime econômico (FERNANDES, 2008).
O acesso ao ensino superior no Brasil está diretamente vinculado às questões
estruturais dessa sociedade, como classe e raça. Nessa perspectiva, a população
brasileira não foge ao caráter predatório do sistema capitalista, até mesmo quando
se estuda a educação. Marx (1993) compreendia que a educação era parte da
superestrutura de controle das classes dominantes, dessa forma o ensino transmi-
tido pela classe burguesa faria com que o proletariado não conseguisse perceber
seus interesses de classe. Sobre isso, adentrando as políticas públicas direcionadas
no Estado brasileiro para a classe trabalhadora, pode-se citar a política de cotas
raciais. Tal política foi de importância significativa para o trabalho, pois incor-
porou ao grupo de estudantes um novo setor social: a população negra. Nesse
sentido, o objeto escolhido para essa pesquisa foram os estudantes do curso de Di-

1 Graduando do curso de Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido, bolsista do Programa
de Iniciação Científica Institucional (PICI), pesquisador do Grupo em Direito Crítico, Marxismo e
América Latina e extensionista do Centro de Referência em Direitos Humanos do Semi-Árido.
2 Professora Substituta na Universidade Federal Rural do Semiárido, graduada em Administração-
(UFERSA), mestre em Administração (UFPB).email :[email protected].

1151
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

reito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) de Mossoró/RN.


Tal escolha foi influenciada pela proximidade dos pesquisadores com o ambiente
explorado. O trabalho teve como impulsionador os estudos regidos pelo grupo de
Negritude ligado ao Grupo em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GE-
DIC). Este é um grupo de pesquisa vinculado à UFERSA. Assim, entende-se que
esse trabalho fortalecerá o debate sobre racismo dentro do ambiente universitário,
mas também impulsionará novos pesquisadores para a temática.
Dessa forma, questionou-se quais os impactos do racismo estrutural no cotidia-
no dos alunos do curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido em
Mossoró-RN. Logo, o artigo tinha como objetivo analisar os impactos do racismo
estrutural em relação aos discentes e sua identificação com o ambiente do curso.
Além disso, pretendeu-se descrever os aspectos históricos em relação ao acesso do
ensino superior do povo negro assim como identificar elementos relacionados ao
racismo estrutural nos ambientes de ensino.
Para tanto, este estudo não esgota em sua totalidade os debates em torno da
temática e espera-se que o mesmo contribua para o estimulo a realização de ou-
tras pesquisas em torno do tema e contribua para reflexão da sociedade acerca
das desigualdades raciais.

2. Referencial Teórico

2.1. Desigualdade e o acesso à Educação superior


A complexidade no cerne que engloba as desigualdades e a concentração
de renda presentes no contexto brasileiro, contemplam elementos de caráter
social, politico, cultural e econômico. Diante desta associação, vários elementos
contribuem para o acirramento das desigualdades no âmbito econômico desti-
nando as camadas mais vulneráveis da população á marginalização no acesso
aos serviços públicos essenciais descritos na carta magna em particular saúde e
educação, como também condições mínimas de sobrevivência (MINTO,2014).
Nesse contexto, o acesso a serviços públicos essenciais é precário, quando
ofertado aos indivíduos em situação de vulnerabilidade social em especial a
população negra pertencente aos segmentos mais pobres e em risco social que
ocupam as regiões periféricas em que na maioria dos casos, contesta-se a pre-
sença quase nula do Estado (ROSEMBERG, 2010).

1152
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Uma vez que, a concentração de indivíduos de baixa renda quando rela-


cionada á declaração de cor de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra
por Domicílios (PNAD) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística (IBGE),revela que dentre os indivíduos que autodeclararam-se brancos
a taxa de analfabetismo registrada no ano de 2013 é igual a 5,2 % e entre os
indivíduos que autodeclaram-se negros ou pardos 11,05%, reafirmando o cená-
rio de desigualdade no acesso a serviços essenciais em especial a educação pela
população negra (IBGE,2013).
Conquanto, é notório a relação de ausência de isonomia de oportunida-
de dessas populações em sua maioria negra concentradas nas regiões peri-
féricas dos grandes centros do país comparados a população branca (MIN-
TO,2014; DUBET,2015).
Desta forma, é sabido a dívida histórica do Brasil com a população negra e
pobre marginalizada desde os tempos de uma questionável abolição da escra-
vatura, após quatrocentos anos de escravidão e das relações econômicas e de
poder que contribuem para o fortalecimento de elementos que possibilitam a
manutenção deste cenário (RODRIGUES, 2014). As relações de poder, elenca-
das pela dinâmica do modo de produção capitalista e de suas nuances no que
diz respeito ao aumento da concentração de renda e das desigualdades, inten-
sificam a exclusão social dos grupos menos favorecidos da sociedade em parti-
cular no contexto brasileiro a população negra acirrando o quadro de racismo
estrutural (ALMEIDA, 2018).
Após a Constituição de 1988, e a homologação de suas diretrizes a partir da
declaração dos direitos humanos proferida pela Organização das Nações Unidas
(ONU), o artigo quinto da carta magna assegurou a possibilidade por parte do
Estado á implementação de ações afirmativas como contrapartida à questão da
isonomia de oportunidades por meio de compensação a grupos em situação de
vulnerabilidade social (TELLES, 1998). Assegurando o tratamento de desiguais
em sua condição de inferioridade em relação a ausência de isonomia nos con-
textos sociais e no acesso a oportunidades e serviços públicos.
Para tanto, o acesso a serviços públicos por parte da população mais desfa-
vorecida é um retrato do alto nível de estratificação social presente na socieda-
de brasileira, tendo como mote o acesso à educação superior no país, destinada
desde a sua implantação as camadas sociais mais abastardas da população. Não
ocorrendo por parte do Estado investimentos em políticas que possibilitassem
a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil em caráter prioritário.

1153
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Em decorrência do quantitativo de vagas e da ausência na condição de manu-


tenção dos estudantes nas universidades públicas de ensino, até meados do ano
de 2003(SANTOS,2012; SAVIANI,2010).
A ascensão de governos petistas ao poder durante o período entre os
anos (2003-2016) possibilitou a consolidação de uma agenda de governo,
convertida em política de Estado que contribuiu para uma revolução nas
instituições de ensino superior no que diz respeito ao quantitativo de vagas
e democratização do acesso.
Deste modo o Programa de Apoio a Restruturação das Universidades Fe-
derais (REUNI), implantado no ano de 2007, durante o segundo mandato do
então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como também abertura de um maior
quantitativo de vagas em universidades privadas de ensino por meio de par-
ceiras público-privadas em especial com o Programa Universidade Para Todos
(PROUNI), e o Financiamento Estudantil (FIES) com o auxílio de bancos pú-
blicos e subsidio estatal (MINTO,2014).
Para Saviani (2010), a problemática acerca do acesso ao ensino superior no
Brasil não se limita ao quantitativo de vagas, como também está relacionada
a ausência de isonomia de oportunidade das camadas menos favorecidas da
população em especial a negra ao ensino superior. Entretanto, o aumento do
número de vagas apenas não contempla a população de baixa renda em sua
maioria negra em decorrência das deficiências do ensino público e das con-
dições precárias no que diz respeito á marginalização e genocídio dos jovens
negros que contribuem para o agravamento do cenário decorrente das mazelas
trazidas pela nossa historicidade (ALMEIDA, 2018; AKOTIRENE,2018).
Nesta conjuntura o acesso à educação superior no país antes destinado ape-
nas a população em condições privilegiadas em sua maioria branca, delimitava
as evidências dos abismos sociais, e da condição de marginalização e vulnerabi-
lidade da população negra (RIBEIRO VALLE; RUSCHEL, 2014).
Para tanto, após anos de debates em torno da desigualdade racial nítida no
contexto brasileiro com o protagonismo de diversos movimentos da socieda-
de civil em prol da criação de um sistema de cotas raciais e da aprovação de
medidas de ação afirmativa em torno da condição e das disparidades sociais
vivenciadas pelos indivíduos de pele escura. No ano de 2010 a presidenta Dilma
Rousseff regulamenta criação do Estatuto da Igualdade Racial por meio da lei
nº 12.288, de vinte de julho de dois mil e dez. O Estatuto da Igualdade Racial
delibera as seguintes diretrizes gerais:

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Art. 1o  Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a


garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades,
a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate
à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, res-
trição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem
nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reco-
nhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos
humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico,
social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;
II - desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação
de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas
pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem
nacional ou étnica;
III - desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da
sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os de-
mais segmentos sociais;
IV - população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas
e pardas, conforme o quesito cor ou raçausado pela Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefini-
ção análoga;
V - políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo
Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais;
VI - ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo
Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais
e para a promoção da igualdade de oportunidades.

O Estatuto da Igualdade Racial é um marco histórico no reconhecimento


por parte da burocracia estatal da desigualdade racial que permeia as relações
sociais, políticas e econômicas no país. Em seu conteúdo o Estatuto da Igual-
dade Racial descreve ações e medidas a serem executadas em prol do acesso
a saúde, educação, e valorização da cultura negra no Brasil com o objetivo de
possibilitar o combate da desigualdade racial em seus diversos níveis e segmen-
tos da sociedade. Além disso, o aumento da rigidez nos níveis de punição a
crimes de discriminação racial, no âmbito do aspecto jurídico. Como também,
a criação Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no
de 2003, um passo importante para operacionalização de ações e políticas com

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

a inclusão no orçamento de um percentual destinado a execução de políticas


em prol do combate às desigualdades raciais.
Para tanto, no âmbito do acesso à educação, a implementação do sistema de
cotas sociais e raciais é uma das medidas mais efetivas tomadas por parte do
Estado com o objetivo de contemplarem a população de pele negra hegemônica
nos espaços periféricos. Com a promulgação da Lei nº 12.711/2012, na qual se
obriga a reserva de 50% das vagas existentes nas instituições federais de en-
sino superior a estudantes cotistas, que se adequem aos critérios disposto em
lei relacionados a renda, oriundos de escolas públicas de ensino e o critério de
autodeclaração de cor preto ou pardo componente no quesito racial.
Com a efetivação do sistema de cotas sociais e raciais no ano de 2012, no
Governo da Presidenta Dilma Rousseff e a promulgação dos elementos reafir-
mados no Estatuto da Igualdade Racial para todos os níveis educacionais, o
acesso da população negra ao ensino superior de forma justa começou a ser via-
bilizado nas instituições públicas de ensino superior (SANTOS,2012). É notório
que o sistema de cotas não atua em uma perspectiva de solucionar o problema,
e sim apenas com uma ação corretiva à curto prazo, tendo em vista a gravidade
da situação atual e dos processos históricos que permeiam a manutenção desta
conjuntura desigual (ALMEIDA,2018; AKOTIRENE, 2018).
Para tanto a ocupação desse espaço de ensino superior no âmbito das ins-
tituições federais anteriormente restritos às populações mais privilegiadas da
sociedade, também contribui para que a educação cumpra o seu papel de trans-
formação das realidades sociais e diminuição das disparidades em relação ao
acesso à educação entre os diversos segmentos sociais da população em particu-
lar a negra (DUBET,2014; SANTOS,2012).
No entanto, esses espaços de ensino ainda continuam de forma hegemônica
ocupados por pessoas brancas, e gradativamente tornando-se um pouco mais di-
verso com a inserção de uma pequena parcela da população negra, após o ingres-
so nas universidades públicas por meio do sistema de cotas raciais. Conquanto, a
educação superior no contexto das instituições de ensino, ainda representa um
espaço pouco diverso e que consequentemente reproduz os preceitos do racismo
e das suas várias nuances, desde o âmbito estrutural, pela dificuldade de perma-
nência e manutenção das pessoas de pele negra nas instituições de ensino. Como
também, reproduzem comportamentos de discriminação racial comuns na socie-
dade e que são reafirmados no âmbito das universidades brasileiras, antes restritas
a elite branca e hoje espaços um pouco mais plurais e diversos e que necessitam

1156
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de uma inserção de uma parcela maior de negros nesses espaços ainda pouco ex-
pressiva em relação ao quantitativo geral (DUBET,2015;MINTO,2014).

2.2. As consequências do racismo estrutural


Seguindo os percalços históricos no país brasileiro, pode-se discutir o pro-
cesso de transição do negro após a Lei Áurea, já que o negro não conseguiu
de imediato uma ocupação na nova estrutura da seara trabalhista. Sobre isso,
Fernandes (2008) coloca:

Como não se manifestou qualquer impulsão coletiva que induzisse


os brancos a discernir a necessidade, a legitimidade e a urgência de
reparações sociais para proteger o negro (como pessoa e como grupo)
nessa fase de transição, viver na cidade pressupunha, para ele, condenar-
se a uma existência ambígua e marginal. (FERNANDES, 2008, P. 35)

A falta de compromisso dos brancos em tentar minimizar os efeitos da es-


cravidão para o negro provocou uma marginalização intensa, pois até mesmo os
negros e mulatos que possuíam uma carreira no artesanato urbano pré-capita-
lista ou no comércio foram eliminados com a chegada dos europeus, ou seja, o
processo de “branqueamento” da população colocou, mais uma vez, o negro à
margem da sociedade. Assim, sobre isso, explica Fernandes (2008):

Enquanto o branco da camada dominante conseguia proteger e até melhorar


sua posição na estrutura de poder econômico, social e político da cidade
e enquanto o imigrante trocava sucessivamente de ocupações, de áreas
de especialização econômica e de posições estratégicas para a conquista
de riquezas de prestígio social e de poder, o negro e o mulato tinham de
disputar eternamente as oportunidades residuais com os componentes
marginais de sistema – com os que “não serviam para outra coisa” ou com
os que “estavam começando bem por baixo”. (FLORESTAN, 2008, p. 42).

Nessa perspectiva, o espaço determinado ao negro pela sociedade se res-


tringia à periferia de todos os espaços físicos dos centros urbanos. O caráter
de abandono da população negra após a regulamentação da abolição do tra-
balho escravo no país, revela-se semelhante ao vivenciado pela classe traba-
lhadora no êxodo rural na Europa, pois lá “uma massa de proletários absoluta-

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

mente livres foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos
feudais, que, como observou corretamente sir James Steuart, ‘por toda parte
lotavam inutilmente casas e castelos’” (MARX, 2013). Deste modo, os negros
brasileiros foram abandonados pela sociedade e Estado, tendo em vista o seu
caráter marginal, decorrente da ausência de adequação aos padrões demanda-
dos pelos setores produtivos da sociedade burguesa branca (ALMEIDA,2018).
Assim, a precariedade da força de trabalho negra relativa a inexistência de
qualquer nível de qualificação não se configurava para o sistema vigente um
atrativo em primeira instância, no entanto ao longo do processo conseguiu
absolver uma parte da mão de obra disponível de forma excessiva para a ocu-
pação dos postos de trabalho precários. Porém a vivência de uma vida atre-
lada à escravidão assegurou a incorporação de comportamentos e posturas
relativas a ocupação de espaços que não poderiam ser apagadas com o simples
direito a liberdade de ir e vir, impedindo-os que os negros obtivessem boas
possibilidades de atuação e condução do trabalho livre em comparação a ou-
tros agentes humanos (FERNANDES, 2008). A sociedade de classes que se
formava no Brasil não facilitou a organização econômica dos negros. Assim,
Fernandes (2008) diz que “a sociedade de classes se torna uma miragem que
não lhes abre nenhuma via de redenção coletiva”.
Não se pode esquecer, nesse debate, a existência de várias correntes ao longo
do desenvolvimento dos processos históricos que lutaram por uma afirmação
racial no Brasil, como o movimento da negritude e pelo reconhecimento da sua
condição desigual. Acredita-se que essa corrente nasceu nos Estados Unidos e
depois se propagou por outras partes do mundo (DOMINGUES, 2005). Esse
movimento só chegou ao Brasil na década de 1940 por meio, principalmente, do
Teatro Experimental do Negro (TEN), instituição fundada no Rio de Janeiro
com o intuito de desenvolver uma dramaturgia negra no país. Essa entidade
acreditava que a negritude era uma filosofia de vida, capaz de trazer as bases
teóricas e políticas da plena emancipação do negro, porém, assim como a versão
francesa, esse ideário era uma expressão da pequena-burguesia intelectual negra
contra a supremacia branca (DOMINGUES, 2005). Somente a partir dos anos
70 que esse grupo vira sinônimo de um processo mais amplo de consciência
racial do negro brasileiro. Assim, diz Domingues (2005) sobre essa nova estru-
turação da negritude no Brasil relata:

1158
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

No terreno cultural, a negritude se expressava pela valorização dos símbolos


culturais de origem negra, destacando-se o samba, a capoeira, os grupos
de afoxé. No plano religioso, negritude significava assumir as religiões de
matriz africana, sobretudo o candomblé. Na esfera política, negritude se
definia pelo engajamento na luta anti-racista, organizada pelas centenas de
entidades do movimento negro. (DOMINGUES, 2005, p. 30).

O movimento da negritude trouxe, para o contexto de opressão, a humani-


dade do negro. Esse resgaste histórico desemboca na necessidade de se ampliar
políticas públicas que amparem o povo negro. Não há como se sujeitar a ideia de
meritocracia, pois a falta de apoio foi intensa para com esse povo. Diante disso,
aponta Costa Santos (2007):

A universidade não pode medir a capacidade individual unicamente


por um critério meritório aferido em um exame vestibular, que tem
privilegiado somente as classes mais abastadas da nossa sociedade e
que mantêm longe dos melhores empregos e dos postos de comando,
tanto no meio privado como público, uma enorme parcela da população
brasileira. (COSTA SANTOS, 2007, p. 20)

Além disso, não se pode generalizar a luta dos negros junto com as lutas
da classe proletária, pois esse discurso universalista é “um engodo, porque não
se atinge o plano universal sem passar pelo que é específico e particular” (DO-
MINGUES, 2005, p. 42). Ao negro, não há como fugir de sua condição de cor.
Sobre isso, Sartre (1968) diz que para o negro não há:

Escapatória, nem subterfúgios, nem ´passagem de linha` a que possa recorrer;


um judeu, branco entre os brancos, pode negar que seja judeu, declarar-se
homem entre homens. O negro não pode negar que seja negro ou reclamar
para si esta abstrata humanidade incolor: ele é preto. Está, pois, encurralado
na autenticidade: insultado, avassalado. (SARTRE, 1968, p. 94).

3. Metodologia
Para os objetivos traçados no âmbito de execução deste estudo, utilizou-se
uma abordagem qualitativa e exploratória com o intuito de compreender as
nuances do fenômeno social em profundidade. Como instrumento de coleta
de dados optou-se pela utilização de questionário com perguntas fechadas.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

O instrumento de coleta foi divido em 29 questões objetivas, separadas da


seguinte maneira: da questão 1 a 11 sobre assuntos individuais dos pesquisa-
dos; da questão 12 a 21 sobre a concepção de racismo e meritocracia e da 22
a 29 sobre como os alunos negros se sentem dentro ambiente universitário.
A escolha referente aos discentes do curso de Direito se justifica pelo cará-
ter elitista burocrático do aparato estatal com cerne central nas discussões
relativas ao direito e a hegemonia e histórica referente a sua ocupação pela
população branca. Como também o curso na Universidade Federal do Semi-
árido, funcionar no horário noturno, atendendo a uma parcela de estudantes
trabalhadores, e cumprindo a sua demanda social.
Os questionários foram aplicados em sala de aula, com a anuência dos do-
centes, no primeiro, segundo e terceiro semestres por contemplar estudantes
remanescentes ao aniversário de aplicação da política de cotas sociais e raciais
no ano de 2017, no total foram aplicados 83 questionários com os presentes nas
turmas no dia da aplicação.
Como também, o auxílio de documentos oficiais, o levantamento bibliográ-
fico de livros e artigos que exploram o tema do racismo e da desigualdade social,
buscando trazer uma análise histórica sobre a inserção de negros nos ambientes
institucionais da sociedade. Compreendendo, dessa forma, que os direitos al-
cançados por esse grupo não se deram de forma humana e solidária, mas por
meio de lutas que impactaram com a lógica colonizadora do “homem branco”.
Como procedimento de análise dos resultados optou-se pela utilização do
método de análise de conteúdo de Bardin (1977). Neste método a análise do
conteúdo é dividida em três etapas: pré-análise, na qual realizou-se uma leitura
flutuante nas respostas dos questionários; em seguida a divisão em categorias
temáticas a partir da exploração dos dados, e na terceira etapa, as análises e as
inferências acerca do conteúdo das entrevistas.

4. Análise dos Resultados e Discussão

4.1. A Universidade Federal Rural do Semi-Árido e o


curso de Direito
Antes de iniciar os resultados obtidos pela pesquisa, é importante indicar
algumas peculiaridades do objeto estudado. Nesse sentido, a UFERSA está

1160
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

inserida na região nordeste, mais especificamente no Estado do Rio Grande


do Norte em Mossoró. A instituição aderiu às Ações Afirmativas do Governo
Federal no ano de 2013, chegando no ano de 2014 com 50% das vagas dos
cursos de graduação destinados aos cotistas. A instituição não se configu-
rou inicialmente com os cursos que hoje disponibiliza, pois, anteriormente,
só oferecia 3 cursos: agronomia, medicina veterinária e zootecnia. Com a
Lei 11.155/2005, houve a transformação da Escola Superior de Agronomia
(ESAM) em Universidade Federal Rural do Semi-Árido (BRASIL, 2005).
Nesse sentido, a formas de ingresso na instituição se dão da seguinte forma:
por meio do Sistema de Seleção Unificada (SISU), da Transferência Volun-
tária, da Transferência Ex Officio, dos Portadores de Diploma, do Convênio
Cultural ou Mobilidade Estudantil.
O curso de graduação em Direito na UFERSA foi aprovado no ano 2010 pelo
Ministério da Educação, apresentando-se como um curso predominantemente
no turno da noite. Nesse aspecto, é possível afirmar que a linha do curso segue a
proposta que a UFERSA adota sobre expansão do acesso e da permanência dos
estudantes, já que, possuindo esse caráter noturno, consegue alcançar trabalha-
dores e trabalhadoras. Mais especificamente o curso segue em regime semestral
de créditos, com 40 vagas em cada início de período e com carga horária total
de 3.800 horas. Segundo o Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadê-
micas (SIGAA), há, atualmente, 421 alunos ativos nesse curso.

5. Resultados
A análise dos resultados dos dados presentes nos questionários foi realizada
por meio da análise de conteúdo. Primeiramente, foi feito uma leitura flutuante
e depois uma exploração do material dos questionários. Buscou-se fazer, preli-
minarmente, a separação entre os alunos cotistas e não cotistas, e entre bran-
cos, negros, amarelos, indígenas e sem identificação. Não houve uma separação
entre os semestres explorados, já que o público atingido é bem restrito e poderia
haver possível identificação de alguns dos entrevistados.

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

5.1. Forma de ingresso

Tabela 1

RAÇA
Sem
MODO DE Brancos (as) Negros (as) Indígenas Amarelos (as)
Declaração
INGRESSO
Cotista 11 28 0 1 0

Não cotista 21 21 0 0 1

Fonte: elaborada pelo autor.

Percebe-se pela tabela 1 que há um bom número de indivíduos negros


nos semestres que foram aplicados os questionários. Esse alto número se
deve ao fato de, na mesma categoria, estar inseridos as pessoas que se auto-
declararam pardas ou pretas. Pretendeu-se, nessa perspectiva, ir de encontro
com o colorismo, pois a pesquisa compreende que a escala de cor entre os
negros não luta contra o racismo estrutural, mas colabora fortemente para
um ideal de tolerância branca (SILVA, 2017). Nesse prisma, Silva (2017)
compreende que o colorismo destaca uma discriminação dos traços físicos
dos indivíduos, ou seja, aspectos fenotípicos como um cabelo notadamente
crespo e um nariz arredondado seriam as características que influenciariam
na associação à descendência africana.

5.2. Acesso à universidade

Tabela 2

Brancos (as) Negros (as)


Acreditam que há condições igualitárias 0 1
Não acreditam que há condições igualitárias 33 48

Fonte: elaborada pelo autor.

Depreende-se, a partir dessas respostas, que a maioria dos estudantes com-


preendem que há limitações quanto ao acesso das universidades para as popula-
ções vilipendiadas da sociedade. Nesse espectro, seguiu para a indagação sobre
a implementação da política de cotas sociais e raciais no Brasil.

1162
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

5.3. Compreensão da política de cotas raciais

Tabela 3

Brancos (as) Negros (as)


Acreditam que é uma política assistencialista 26 32
Não acreditam que é uma política assistencialista 6 13

Fonte: elaborada pelo autor.


Nesse contexto, é importante trazer uma definição do que é assistencia-
lismo. Dessa forma, pode-se entender como a prática de organizar e prestar
assistência a membros de setores mais hipossuficientes da sociedade com a fina-
lidade de aliciamento eleitoral. (SOUZA, 2016)
Diante disso, essa perspectiva pode trazer uma visão um pouco radical sobre
o assistencialismo, entretanto não se deve confundir com assistência, já que está
é um direito do próprio cidadão garantido na Constituição Federal (SOUZA,
2016). Sobre essa indagação, infere-se que a maioria dos estudantes acreditam
que essa política possui esse caráter assistencialista, porém não se pode dizer
que os entrevistados a compreendem como um dos mecanismos de atração elei-
toral. Um fato curioso dessa questão que deve ser colocado nessa pesquisa foi a
ausência injustificada de resposta de 5 pessoas.

5.4. Existência de preconceito racial


Tabela 4

Brancos (as) Negros (as)


Existe, porém é ignorado 14 19
Existe e é discutido 15 15
Existe, porém não declaradamente 1 14
Não existe 0 0

Fonte: elaborada pelo autor.


Observa-se que todos os pesquisados admitem que o racismo existe seja ele
velado ou não. Contudo, para os negros, o racismo ele ainda é negligenciado,
comprovando isso pelo alto número de indivíduos que acreditam que o racismo
é ignorado ou não declarado. Mais uma vez, 3 questionários deixaram uma de
suas questões sem respostas mesmo com os outros questionamentos respondidos.
Por conseguinte, é inquirido sobre a presença em situação de racismo no bloco

1163
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de direito seja com algum terceiro ou com o próprio entrevistado. Além disso,
perguntou-se se houve denúncia do caso.

5.5. Situações de racismo


Tabela 5:

Brancos (as) Negros (as)


Presenciou ou sofreu* 10 9
Não presenciou ou não sofreu 21 41

*É importante frisar que, no caso das pessoas brancas, a questão é relacionada a ter presenciado
alguma situação de racismo.
Esses dados demonstram que o curso de Direito possui poucos casos de ra-
cismo, o que provoca que o ambiente seja menos hostil para as pessoas ne-
gras. Entretanto, nenhum dos casos de racismo descrito pelos discentes, foram
denunciados. Dessa forma, é negativo perceber que os poucos casos não são
colocados para os órgãos competentes, mas para isso pode ser levado em consi-
deração o medo da vítima de sofrer algum tipo de retaliação pelo agressor.
A partir da questão 22, as perguntas foram direcionadas às pessoas negras,
tentando explorar como elas se sentem em relação ao ambiente universitário.
Convém lembrar que as pessoas que se autodeclaram pardas foram colocadas na
categoria negros e por isso alguns desses questionários não foram respondidos,
mas também por não se perceberem como pessoas negras.

5.6. Noção de segurança pelos discentes negros


Tabela 6

Mulher cis Mulher trans Homem cis Homem trans Travesti Outros
Sentem-se
segurança em
falar durante 4 0 6 0 0 0
discussões em
sala de aula
Não sentem
segurança em
falar durante 3 1 4 0 0 0
discussões em
sala de aula

Fonte: elaborada pelo autor.

1164
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Dentro do grupo que se foi trabalhado ainda não se vê uma resistência em


falar em sala de aula por receio de ser interpelado durante uma fala no mo-
mento de uma discussão. Quanto às discussões sobre o tema racismo ou, até
mesmo diversidade, os estudantes que se autodeclaram negros e responderam
as questões direcionadas apenas a esse público analisam da seguinte forma:
7 acreditam que a grade curricular não estimula o pensamento crítico sobre
diversidade e racismo, e 12 dizem o contrário. É importante que esses alunos
negros coloquem que o curso possui essa preocupação em trazer esse debate,
pois reorganiza o espaço de aulas e reduz as possibilidades de ocorrer algum
tipo de situação vexatória com indivíduos negros. Ademais, questionou-se a
possibilidade desses indivíduos se sentirem melhor com a presença de profes-
sores negros lecionando as matérias. Seguiu-se o seguinte resultado: 16 pessoas
acreditam que se sentiriam melhor discutindo racismo com um professor negro
e apenas 3 dizem o contrário. Nesse prisma, depreende-se que, possivelmente,
os professores brancos do curso não estão muito abertos a esses diálogos ou eles
se referem ao assunto de forma imatura ou superficial.

Conclusão
Posteriormente a análise dos dados, chegou-se a algumas considerações mais
abrangentes sobre a problemática racial no curso de Direito. É possível associar
o receio de muito dos alunos negros em fazer colocação dentro de sala de aula
ao fato de ser minúscula a discussão sobre o racismo velado nas salas de aula. A
presença do racismo nas estruturas institucionais fortalece esse receio, não sen-
do, muitas vezes, visível, pois, por ter um caráter histórico, se enraizou de forma
a se apresentar cotidianamente na vida social. Os dados alertam que os casos
de racismo ocorridos no bloco não foram direcionados aos órgãos competentes
da universidade, trazendo a percepção da impunidade nessas situações. Nesse
sentido, á maioria dos entrevistados compreendem que o racismo existe, porém
é deixado de lado e até mesmo negligenciado. Em linhas gerais, o curso não se
mostra um ambiente hostil para os alunos negros e cotistas.
Nesse sentido, a Lei de Cotas no Brasil funciona como um instrumento
que auxilia no processo de reparação histórica, logo não se pode esque-
cer que essa política possibilitou que vários estudantes negros e de escola
pública se inserissem nos ambientes universitários. Segundo a Síntese de

1165
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Indicadores Sociais, divulgado pelo IBGE, o percentual de estudantes ne-


gros que frequentavam a faculdade saltou de 16,7% em 2004 para 45,5%
em 2014, porém não chegou ao mesmo nível que jovens brancos tinham dez
anos antes da realização da pesquisa desse órgão. Nessa perspectiva, não
cabe aqui julgar como equivocada a política de cotas, pois o Brasil “bur-
guês” impossibilitou que negras e negros tivessem á garantia e a oportuni-
dade de acesso ao mercado de trabalho mesmo que no sistema capitalista.
Além disso, não se atentou as demandas que se colocavam para o negro no
processo de transição para o novo regime pós-escravidão, principalmente
nos ambientes urbanos os invisibilizando dentro dos espaços que poderiam
ocupar por direito como cidadãos.
O negro, após a abolição, tinha a percepção do que não queria, contudo não
conseguiu ter uma consciência clara sobre o que deveria querer coletivamente
ou como poderiam agir para estabelecer um querer coletivo (FERNANDES,
2008). A Lei de Cotas é uma mediada paliativa, porém é um grande come-
ço para aqueles que foram espoliados. A utilização do ambiente jurídico pode
transformar certas realidades, como a criação dessa lei, porém não se deve cair
na ilusão jurídica do direito burguês, já que o sistema capitalista trabalha sob
uma ótica e em função da classe privilegiada. Contudo, não significa que os
socialistas renunciem suas propostas jurídicas, pois toda classe em luta precisa
formular suas reivindicações jurídicas, principalmente para colocá-las em práti-
ca quando se ocupar o poder político.
Por fim, a pesquisa buscou explorar as condições dos negros no curso, sem
pretender fazer uma intervenção mais direta sobre a dinâmica do curso. O tra-
balho possuiu um público reduzido do curso, porém traz um aparato relevante
para se estudar o espaço do curso para todos os discentes. Conseguiu, portanto,
alcançar o objetivo de afirmar que o racismo influencia fortemente os ambien-
tes institucionais, como a universidade. Ademais, entende-se que devem ser
feitos novos estudos com um público alvo maior e com uma intervenção direta
maior sobre a própria UFERSA.

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1168
Uma análise do “feminismo mainstream”
na realidade brasileira enquanto mecanismo
instrumentalizado a serviço da classe
dominante e reprodutora da desigualdade
de gêneros e classe

Ana Letícia de Oliveira Bezerra Fernandes1


Júlia Gomes da Mota Barreto2

Introdução
Historicamente, as mulheres foram postas em situação de inferioridade
na sociedade em comparação aos homens, onde foi lhes relegado pela grande
parte do tempo os trabalhos domésticos e a restrição de grande parte das suas
atividades a casa. Isto resultou na criação de estigmas à cerca do comporta-
mento feminino e sua natureza, como se suas ações e todo o contexto criado
socialmente adviesse de questões biológicas, estes se irrigaram de tal forma ao
imaginário popular ao ponto de consequentemente gerarem e perpetuarem
preconceitos de gênero que se estendem até a atualidade. Ao longo da histó-
ria surgiram mulheres independente e movimentos de mulheres organizadas
em contraposição a estas questões da dominação e superioridade masculina,
relatos são encontrados ao logo de toda a história, começando vagarosamente
a ganhar destaque a partir do século XV, porém é apenas durante a revolução

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), membro do


Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e Extensionista
do Centro de Referência em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Semiárido). Contato:
[email protected]
2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA) e Extensionista
do Centro de Referência em Direitos Humanos do Semiárido (CRDH Semiárido). Contato:
[email protected]

1169
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

francesa, no século XVIII, que os estudiosos datam como o início do que se


classifica como feminismo moderno.
O século XVIII foi palco de marcantes acontecimentos pelo mundo, entre
um dos mais importantes está a ascenção da corrente de pensamento filosófica
iluminista, que seria uma das fagulhas iniciais para a fomentação da Revolução
Francesa. Foi nesse contexto, de mudanças políticas e reorganização de base
que grupos de mulheres encontraram um espaço de reivindicar participação
mais ativa na formulação de uma nova sociedade. Como importante registro
disto, tem-se a “Declaração dos direitos das mulheres e das cidadãs”, um do-
cumento jurídico produzido por Olympe de Gouges como uma forma de rei-
vindicar a equidade dos direitos das mulheres em comparação ao dos homens,
tornou-se um dos símbolos mais representativos do feminismo racionalista, que
tinha como pauta principal alcançar isonomia política.
Posteriormente, já ao final do século XIX, é possível perceber a forma-
ção das assim então chamadas “ondas feministas”, que surgem como uma
classificação didática para definir momentos históricos de efervescência da
militância política e acadêmica acerca de pautas mais delimitadas que levam
lugar de destaque no debate sobre os direitos das mulheres. Pode-se identificar
três principais ondas, alguns estudiosos já conversam sobre uma quarta. A
primeira destas tinha como principais demandas os direitos políticos, com um
olhar especial para a conquista do voto que fez com que as feministas daquela
época ficassem conhecidas como sufragistas, a segunda já por volta de 1950
e que se estende até os anos 90, traz os holofotes para a questão dos direitos
reprodutivos e discussões acerca da sexualidade e sendo assim abre espaço
para que a terceira onda traga ideais pôs-estruturalistas e novos conceitos
como a interseccionalidade3, expandindo a ideia de um feminismo que abran-
ge diferentes ideias e necessidade, para além dos recortes sociais de cada uma
e dando ênfase principal a ideia de liberdade de escolha.

3 O feminismo interseccional diz respeito às intersecções ou recortes de opressões e vivências que


devem ser feitos quando se for analisar as estruturas de dominação-exploração bem como os sujeitos
atingidos desprivilegiadamente por elas. Dessa forma, no feminismo intersec há o recorte de gênero,
raça, classe, sexualidade etc, pois reconhece-se que as mulheres não sofrem todas juntas as mesmas
opressões e que nem sempre a mulher está em situação de desvantagem nas relações de poder, pois
estas não se configuram somente no sistema patriarcal, pois existem outros sistemas de opressão que
envolvem raça/etnia, classe, sexualidade etc.

1170
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

A quarta fase, que bastante se discute em relação a sua existência con-


creta, tem uma ligação muito forte com as mídias e redes sociais, as de-
mandas não tão bem estabelecidas como nas outras etapas abrem caminho
para que pautas relacionadas a liberdade e igualdade, independente do que
seja procurando abranger o máximo que puder do movimento, transformem
esses locais em espaços de denúncia contra violações, assim como de cons-
cientização e propagação dos ideais feministas. É a partir dessas análises e
estudos a cerca da história do feminismo que este artigo se propõe a fazer
uma análise e discutir a cerca de como algumas dessas pautas, estrategi-
camente escolhidas de forma a não ferir a ordem dominante, por terem se
tornado populares nas redes acabam servindo muitas vezes a favor do capi-
talismo, que as coopta e se apropria delas transformando-as em mercadoria
a ser comercializada a este público alvo.

2. Poder de escolha versus destruir as estruturas


de desigualdade
Como foi possível entender por meio desta breve análise anterior do histó-
rico da luta feminista, o cociente em comum em todas as fases, independente
das especificidades que cada momento histórico fazia surgir as necessidades
ressaltando assim as demandas, era a determinação da isonomia e conquista
pela liberdade da mulher. Esse processo de busca pela igualdade e liberdade
foi muitas vezes caracterizado como a conquistar o poder de escolha, seja esta
relacionada as esferas políticas ou aqueles referentes às particularidades da vida
privada de cada uma. Adiante estas começaram a ser relacionada ao poder ex-
pressar a individualidade própria, assim como ser capaz de aceitar outras formas
de expressão do ser.
Entretanto, é importante ter em mente que empoderar as mulheres e dá-las
a autonomia do poder de escolha é apenas parte do processo de libertação fe-
minina das amarras do patriarcado, visto que conceder o tal benefício em uma
sociedade arraigada de preconceitos de gênero e que limita as possibilidades das
mulheres seria apenas dar continuidade a uma perpetuação secular de padrões
impostos a elas. Por isso, estudiosas costumam fazer afirmações como a da pro-
fessora Gail Dines que afirma que: “O feminismo nunca foi sobre escolhas, e sim
sobre destruir as estruturas da desigualdade.”

1171
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Tendo isto como base, é viável analisar que muito do que vinculado na
mídia e no mercado brasileiro, assim como no mundo de modo geral, acerca do
movimento tem uma forte base teórica ligada as vertentes liberais do feminis-
mo4, que se propõe ao de conceder tal liberdades de escolha dentro do sistema
já existente, o que torna inviável uma emancipação aos moldes de eliminar as
desigualdades por um processe de restruturação de base que Gail Dines propõe.
Percebe-se então que muitas dessas campanhas funcionam apenas como um
disfarce bem pensado para atrais mulheres para o mercado sem conceder reais
expectativas de libertação, além de que estimulá-las a este modelo individu-
alista de feminismo faz com que essas mulheres não consigam expandir sua
visão crítica para além de sua própria realidade, correndo o perigo de reduzir o
movimento a questões supérfluas. Tão preocupante quanto, é também garantir
que as pautas usadas para a libertação feminina não sejam cooptadas e usadas
para justificar outros preconceitos, como os de classe e raça, que usualmente
são colocados para fora desse cenário de empoderamento feminista neoliberal,
como se não fossem questões dignas de atenção.

3. Feminismo como nicho de mercado


Quando o capitalismo começou a expandir seus horizontes para além de
seu industrialismo local e passou a assumir a forma de estrutura globalizante
um dos principais pontos em que este investiu foi no estimulo ao consumismo
excessivo. O que era comercializado não tinha mais seu valor agregado unica-
mente em utilidade e necessidade, o que estava em pauta para ser vendido agora
era a ideia que o produto poderia oferecer e não necessariamente o que este lhe
fornecia de forma material. Tendo isto como base o grande empresariado passou
a ter como prioridade máxima a buscar conhecer o mercado, para que sabendo
do que estava em alta pudesse lucrar mais, como consequência disto também
surgiu a eminente necessidade de uma publicidade muito bem produzida para
potencializar ainda mais a venda dos produtos.
Fundamentando-se nisso, é possível perceber a criação de diversos nichos de
mercado que surgem a partir das pesquisas em relação as necessidades especificas

4 Feminismo liberal é uma forma individualista da teoria feminista, que incide sobre a capacidade das
mulheres em manter a sua igualdade através de suas próprias ações e escolhas, e propõem mudanças
no sistemas jurídicos mas não mudanças nas estruturas sociais.

1172
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

de cada segmento da sociedade, assim, quando as mulheres começam a integrar


os ramos de trabalho assalariado e a possuir certa independência financeira, elas
também passaram a ser nichos a serem explorados. Assim, dentro desse nicho de
mulheres vão surgindo vários segmentos entre eles o da “mulher feminista”, em
que foi possível perceber uma grande oportunidade de lucrar com isso.
Então, o grande mercado, que antes parecia completamente oposto as pau-
tas do feminismo, começa a criar demanda para esse segmento para que as mu-
lheres consumam esses produtos. Entretanto, é perceptível quando analisado
que o este mesmo mercado que produz, organizado pelo grande empresariado,
tem também como objetivo tornar essas pautas inofensivas, de modo a não ferir
o capital. Eles fazem isto para manter os interesses da classe dominante, que
esvaziam o caráter revolucionário das demandas do movimento e transforma-
-as em objetos para a obtenção de seu lucro. Com isso, inúmeras pautas são
descartadas, especialmente aquelas que envolvem reforma econômica, por ba-
terem diretamente de frente com aquelas inclinações do sistema capitalista que
precisam ser protegidos.
Conclui-se disto, que o feminismo é instrumentalizado e vendido visando
o lucro e que as pautas que são postas em discussão originam de uma vertente
liberal, que prega por empoderamento e libertação individual, sem grande preo-
cupação com as diversas necessidades que diferencia a luta das mulheres, tendo
como principal distinção a classe. Desta forma, é perceptível a relação ambígua
entre o movimento de libertação das mulheres e o capitalismo, levando em con-
sideração que a relação do movimento com o neoliberalismo, que se utiliza do
feminismo para expandir o capitalismo no âmbito econômico e o individualis-
mo no âmbito político, afasta-o da coletivização típica dos movimentos sociais.

4. Papel das grandes empresas e da mídia


Ao observar as pautas feministas aparecendo em programas de televi-
são ou frases que remetem ao movimento sendo usado como estampas em
roupas de grandes marcas, entre muitos outros exemplos, uma parte do mo-
vimento feminista vê esse fenômeno com otimismo, considerando-o como
um avanço; e outra parte analisa esse fator de forma crítica e, até mesmo,
pessimista. A partir dessas duas visões diferentes acerca da mesma situação,

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

é preciso assumir uma postura crítica para que não se acabe tendendo para
as ilusões de nenhum dos extremos.
Faz-se necessário reconhecer o progresso que é ter o feminismo em alta
como assunto que vem se popularizando na sociedade, tanto como forma de
a legitimar os avanços conquistados pela lut/a e também como maneira de
aproximar mulheres da discussão sobre seus direitos, porém ainda assim é
necessário estar aberto a autocrítica. É preciso ter a compreensão que apenas
esta face do movimento, que é comercial, não basta para que as mulheres
tenham noção da completude e complexidade do movimento feminista, ar-
riscando que aquelas deslumbradas pelo que é vendido sobre ele tenham uma
visão bastante restrita de sua totalidade.
Isto torna-se notório quando ao analisar campanhas publicitárias ou men-
ções do movimento feminista em grandes mídias vê-se uma “higienização”
de suas pautas, trazendo para o debate apenas aquelas que já são mais acei-
tas socialmente pela grande parte da população, sem nunca problematizar
ou expandir a discussão. Tenta-se também desassociar a figura da mulher
feminista e empoderada que ali quer se vender daquela que é o estereótipo
que a população mais conservadora rejeita, isso para que seja possível gerar
o engajamento daquele novo público alvo, sem perder a outra parcela que já
fazia parte sua clientela antiga.
Fala-se assim em “feminismo cool”, que as marcas e as mídias se utilizam
como forma de passar uma boa imagem de si mesmas e conseguir chegar até
outras esferas da sociedade que antes não se viam tão tentadas a consumi-las
por não se ver representadas nelas. Como exemplos clássicos, existem as marcas
de produtos como maquiagem e perfumaria que trabalham superficialmente e
de forma bastante restrita a representatividade, jogando “frases de efeitos femi-
nistas” em suas campanhas publicitárias esperando assim receber mais apoio de
mulheres feministas, mesmo que este na maioria das vezes este suporte não se
concretize na realidade e não vá além de poucos segundos mostrados no comer-
ciais que passam na televisão.
Vê-se com isto que esta presença das pautas feministas na grande mídia
tem muito mais caráter de apropriação lucrativa do que incentivar uma real
libertação das mulheres, por isso é dado o nome de “feminismo mainstream”.
Isso pois tendo ele o controle do que é vinculado, o sistema capitalista jamais
abrirá espaços que possibilitem discussões que o questionem, tendo esse poder
de vinculação em relação aos movimentos ele consegue lucrar enquanto passa

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

uma imagem de progressivo avanço em relação a representatividade, mas ao


mesmo tempo que não possui perspectivas reais de expandir o debate e também
apenas até a medida que estas demandas não o atinjam.
Sendo assim, aa discussão que pretende promover a libertação feminina pas-
sa a definir um padrão de quem estas mulheres são, que basicamente consiste
em seu poder de compra e no status de classe que ela possui. Isso tudo não é
dito explicitamente e essa exclusão não é algo que acontece qualquer maneira,
pois parte da intencionalidade dos mecanismos de dominação consiste em que
eles continuem a ser reproduzidos de modo a serem espécies de objetivos para
aqueles que não se encaixam possam almejar e continuar subordinados a eles.
Enquanto um tipo determinado de mulher se ilude com promessas de libertação
individual, e estas muitas vezes são representadas pela classe alta e média, ou-
tras que são a representação da classe trabalhadora e fora dos padrões impostos,
continuam a serem exploradas por este capital.

5. Auto-libertação individual e solidariedade irrestrita


O esvaziamento de todo conteúdo emancipatório da luta das mulheres aguça
nas propagandas dos capitalistas conceitos como “empoderamento” e “sororida-
de”, que perdem completamente sua ideia revolucionária e passam a se apoiar
na ideia de uma auto-libertação individual ou uma solidariedade irrestrita entre
as mulheres, sem levar em consideração sua classe
As empresas desenvolvem estratégias que visam afastar a luta de classe do
movimento de mulheres assim como qualquer perspectiva revolucionária de rup-
tura com o capitalismo. O sistema capitalista está a todo momento criando novos
símbolos cooptáveis e padronizados que oferecem a falsa sensação de uma eman-
cipação às mulheres, que se satisfazem com uma suposta libertação individualista.
Para Nancy Fraser (2013), a libertação feminina foi enredada pelo neolibe-
ralismo, o que explica que ideias feministas, originalmente parte de uma visão
radical o mundo, estejam sendo expressas em termos extremamente individu-
alistas. Segundo ela, em seu texto para o The Guardian, Como o feminismo se
tornou a empregada do capitalismo – e como resgatá-lo:

Olhando bem de perto o que aconteceu, podemos agora perceber que


o movimento pela libertação das mulheres apontava simultaneamente
para dois futuros possíveis. No primeiro cenário, a prefiguração

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

de um mundo em que a emancipação de gênero caminhava lado


a lado com a democracia participativa e a solidariedade social; no
segundo, a promessa de nova forma de liberalismo, capaz de conceder
às mulheres, assim como aos homens, as benesses da autonomia
individual, maior capacidade de escolha e crescimento meritocrático.
O feminismo de segunda geração foi, nesse senti/do, ambivalente.
Compatível com ambas as visões de sociedade, ele acabou suscetível
a duas elaborações históricas distintas.

As pautas feministas reformistas decerto contribuem para a crítica ao


Estado patriarcal e traz de volta o aspecto político ao movimento, mas man-
tém as mudanças no âmbito do capitalismo, visando reparar as desigualda-
des e não romper com elas.

Conclusão
A partir de uma análise do que foi supracitado é possível entender que a
libertação das mulheres dos padrões de gênero impostos pela sociedade não é
possível a partir de uma perspectiva liberal e de manutenção do sistema, assim
como a emancipação na luta de classes não é possível nos quadros do machis-
mo. A partir das questões elucidadas no presente trabalho, pode-se notar que é
inegável o quanto o movimento feminista deu visibilidade às mulheres e à sua
situação de exclusão. Em contrapartida, não se pode constatar uma mudança
real nas estruturas institucionais da sociedade capitalista, que, frequente e astu-
ciosamente, coopta elementos de crítica anticapitalista, como as críticas feitas
pelo feminismo, para legitimar uma nova forma de si mesma.
Culturalmente, o feminismo vem sendo captado pelo neoliberalismo, en-
quanto a sua dimensão econômica é ignorada, justamente porque não interessa
à classe dominante dar respostas a essa dimensão. É o que se pode perceber ao
observarmos grandes marcas e a grande mídia se apropriarem de determinadas
pautas do movimento com objetivo exclusivamente mercantil, sem dar as con-
dições realmente necessárias para que as mulheres possam romper com as bar-
reiras da exploração em suas muitas facetas. A consequência desse fenômeno de
cooptação por parte do capitalismo é um feminismo desagregado das demandas
de classe, raça e sexualidade, se deixando levar por um pensamento de liberta-
ção individual que a vertente liberal do feminismo propõe.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Assim, é necessário descontinuar a aproximação do movimento feminista


com as vertentes liberais que levam até a manutenção das amarras sociais do
patriarcado que o próprio sistema capitalista impõe. Para isso, precisasse adotar
um posicionamento de mais ruptura em relação ao modelo de sociedade em que
se vive, retornando o fervor revolucionário do movimento a partir do entendi-
mento de que é preciso um equilíbrio entre a reinvindicação pelas pautas polí-
ticas e culturais para que o feminismo tenha uma abrangência social cada vez
mais, e que a restrição a apenas um desses pode gerar uma falta de perspectivas
de mudanças concretas.
É preciso aproveitar-se de momentos de crise do capital para poder afastar-
-se da ambivalência que as feministas de segunda onda deixaram em aberto e
definir limites bastante claros em relação a que linha o movimento pretende
seguir, como elucida a própria Fraser:

Em todos esses casos, a ambivalência do feminismo tem sido resolvida em


favor do individualismo (neo)liberal. Mas o outro cenário, da solidariedade,
pode estar ainda vivo. A crise presente abre a chance de retomar o fio mais
uma vez, religando o sonho de libertação das mulheres com a visão de
uma sociedade solidária. Para isso, as feministas precisam romper a ligação
perigosa com o neoliberalismo e reconquistar as nossas três “contribuições”
para os nossos próprios objetivos. (FRASER, Nancy. 2013)

Dessa maneira, será possível pensar-se uma nova fase do movimento femi-
nista, em que este se desassocie por completo das estruturas de dominação ca-
pitalista que não permitem mudanças reais e concretas para as mulheres. É
interessante que nessa linha o movimento possa seguir seu caminho próprio,
visando não somente almejar a superação desses mecanismos de dominação
e violação, mas também a reparação deles e que assim este não assuma carac-
terísticas individualizantes, mas de uma inclusão no combate dos princípios
estruturantes da sociedade: o patriarcado, o racismo e o capitalismo. Tudo isso
em nome da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Referências bibliográficas

FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. In:


Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 14, n. 2, jul./dez. 2009.

1177
______. Fortunes of feminism: from State- Managed Capitalism to
neoliberal crisis. New York: Verso, 2013.

______. Como o feminismo se tornou a empregada do capitalismo – e como


resgatá-lo. Nova Iorque: The Guardian, 2013.

MEDEIROS, Fernanda Luíza Silva. Feminismo e neoliberalismo na


contemporaneidade: uma “nova razão” para o movimento de liberação das
mulheres?. Teoria e Pesquisa, Brasília, 2017.
Uma releitura da ocupação da Mesa
do Senado por senadoras: nas perspectivas
de gênero e classe

Camila Kayssa Targino Dutra1


Verônica Palmira Salme de Aragão2

Introdução
Em 11 de Junho de 2017, a Mesa do Senado - representação máxima dos
entes Federativos Estaduais do Brasil - vivenciou um fato inusitado e que oca-
sionou as mais variadas repercussões em jornais de origem nacional e inter-
nacional: a ocupação da Mesa do Senado, por Senadoras de alguns partidos
políticos, durante a votação da Reforma Trabalhista3.
Diante da atualidade de tal temática - mulheres ocupantes de cargo po-
lítico, em face de um ato praticado em desfavor da Reforma Trabalhista -
vislumbra-se a urgente necessidade de discutir o papel da mulher política,
e mais ainda, os discursos midiáticos produzidos por diferentes jornais a
respeito dessas mulheres.

1 Pesquisadora Voluntária PIBIC/UERN, graduanda do Curso de Letras - Inglês, da UERN, integrante do


grupo de pesquisa GPELL/UERN, Mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente, PRODEMA (UFRN),
Especialista em Ciências Penais (Anhaguera-Uniderp), Bacharela em Direito (UERN) e Advogada.
2 Profª. Drª. do Departamento de Letras Vernáculas, da UERN. Coordenadora do projeto de pesquisa,
intitulado A construção da imagem da mulher em exercício político no discurso midiático: à luz da
Teoria Semiolinguística do discurso, PIBIC/UERN, Professora do Mestrado Profissional/Profletras,
e pesquisadora do grupo de pesquisa GPELL/UERN.
3 Para Fleury (2018), a reforma trabalhista foi “aprovada de forma açodada, a norma imprime
instantâneo retrocesso social, inédito na lenta história de afirmação dos direitos sociais em solo
pátrio. À forma açodada, com déficit de debate democrático que compromete a legitimidade da
nova legislação, em muitos pontos claramente prejudicial aos trabalhadores, soma-se o fato de
que a “reforma” foi aprovada num contexto de informações distorcidas e premissas equivocadas,
especialmente no campo econômico”.

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A temática abordada neste artigo é de notável relevância acadêmica, bem


como social, a partir do momento em que trata como objeto de estudo, a mani-
festação espontânea apenas de mulheres ocupantes do cargo de Senadoras con-
tra a Reforma Trabalhista que retira vários direitos sociais dos trabalhadores.
Assim, pesquisar e trazer para a discussão acadêmica a maneira como a
mulher política é percebida - através dos textos midiáticos que reportaram o
ocorrido - é importante, sobretudo, para verificar a existência de padrões de
dominação tipicamente capitalista e até em que medida é possível verificar a
interferência do pensamento patriarcal4 na atuação das senadoras.
A ocupação da Mesa do Senado, ocorrida em meio à votação da Reforma
Trabalhista, por senadoras de diferentes partidos políticos, reflete a urgência
pela qual a sociedade brasileira passa atualmente. Verifica-se a importância de
estudos que destaquem as ações de mulheres mediante as graves ameaças à
jovem democracia brasileira, atitude esta que vem se tornando comum na luta
pelas garantias dos direitos sociais.
Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo apreender as represen-
tações construídas pela mídia em torno da atitude das senadoras em ocupar a
Mesa do Senado, enquanto um movimento espontâneo e feminista, como uma
insurreição contra a imposição de classe dominante (homem, hétero norma-
tivo, branco e abastado) em defesa dos direitos sociais da classe trabalhadora.
A fundamentação teórica se apoia em em autoras que discutem o feminismo
como Garcia (2015), Tiburi (2018) e Safiotti (2013), que analisa a condição da
mulher na sociedade de classe. A análise do discurso baseia-se em Charaudeau
(2008), que teoriza sobre os discursos midiático e político, com realce para os
conceitos de credibilidade e legitimidade.
A análise pauta-se na representatividade dessas Senadoras, enquanto mu-
lheres – ocupantes de cargo político em expressiva minoria, em relação aos
homens ocupantes desse mesmo cargo. Atualmente na legislatura (2014-2018),
apenas 13 dos 81 senadores são mulheres (PITOMBO, 2018). Para isso, foram
selecionados e analisados textos midiáticos de seis jornais, tanto de origem bra-
sileira, como estrangeira, objetivando analisar os julgamentos em torno dessas
representatividades de classe.

4 Em sua base está a ideia sempre repetida de haver uma identidade natural, dois sexos considerados
normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade masculina, a inferioridade das mulheres e outros
pensamentos que soam bem limitados mas que ainda são seguidos por muita gente (TIBURI, p. 27, 2018).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

2. Metodologia
Para a realização dessa pesquisa, selecionaram-se seis textos midiáticos vei-
culados por diferentes jornais para constituírem o corpora a ser analisado: três
de origem nacional (Jornal Gazeta do Povo - Editorial, O Globo - Editorial e
Carta Capital) e três de origem estrangeira, mas com versão nacional (El País
Brasil, Sputnik Brasil e BBC Brasil), escolhidos a partir da abordagem do tema e
por serem jornais de grande circulação.
O primeiro momento foi dedicado a estabelecer quais categorias iriam ser
utilizadas para compor o referencial teórico, bem como servirem de base para
a análise do discurso. Assim, como categorias de análise foram elencadas: a
Credibilidade e a Legitimidade, propostas por Charaudeau, e o Gênero, teorizado
por Garcia (2015) e Mathieu (2009), além das categorias de estereótipos e clichês,
propostas por Amossy (2010), e de Classe Social, conforme Safiotti (2013).
O segundo momento volta-se para a análise das matérias jornalísticas, compa-
rando-as entre si, para a identificação do teor informativo e avaliativo do sujeito
enunciador (o jornal), a fim de verificar os jornais que priorizam o acontecimento
em si e os que emitem um juízo de valor. Com isso, buscam-se verificar as re-
presentações de classes, verificáveis nas análises de diferentes jornais sobre os
senadores que apoiam a Reforma e as senadoras que insurgiram contra a mesma.

3. Texto Midiático, Credibilidade e Legitimidade


A Análise Semiolinguística do discurso, proposta por Patrick Charaudeau,
parte do pressuposto de que todo o sujeito que enuncia visa a um interlocutor,
com um objetivo comunicativo, daí a sua caracterização de sujeito psico-sócio-
-linguageiro. Nesse sentido, os gêneros discursivos revelam diferentes contratos
comunicativos estabelecidos por seus sujeitos enunciadores com um fim dis-
cursivo. De acordo com Charaudeau (2006, p. 15) as mídias são um suporte
organizacional que se apossa dessas noções [informação e comunicação] para
integrá-las em suas diversas lógicas - econômica (fazer viver uma empresa), tec-
nológica (estender a qualidade e a quantidade da sua difusão) e simbólica (ser-
vir a democracia cidadã).
Nesse sentido, verifica-se a importância de se comparar diferentes jornais,
com o fim de identificar os diversos discursos midiáticos e o seu papel enquanto

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

instrumento de veiculação/construção de informações/opiniões. Charaudeau


(2006, p. 21) destaca uma lógica simbólica presente nas mídias de informação,
“que faz com que todo organismo de informação tenha por vocação participar
da construção da opinião pública”.
A escolha de seis diferentes jornais, três de origem estrangeira (El País, BBC
Brasil e Sputnik Brasil) e três de origem nacional tem como objetivo verificar o
comprometimento dessas empresas jornalísticas com a informação, bem como,
com a maneira que representam mulheres de atuação política como no caso das
Senadoras. Vale destacar a definição que Charaudeau (2006, p. 47) atribui para
as representações, “ao construírem uma organização do real através de imagens
mentais transpostas em discursos ou em outras manifestações comportamentais
dos indivíduos que vivem em sociedade, estão incluídas no real, ou mesmo da-
das como se fossem o próprio real”.
Sendo o discurso midiático, o principal meio de informação das sociedades,
cabe fazer uma discussão sobre o papel dessa mídia para a construção do pen-
samento crítico na sociedade ou percebê-lo apenas como um meio de repro-
dução de valores empresariais. No caso da veiculação da atuação política das
mulheres, é preciso estar atento para a deformação de atitudes feministas, como
exemplifica Tiburi (2018, p. 27), “conservadores constantemente se apropriam
do feminismo, tentam capturá-lo e transformá-lo em mercadoria. Na impossibi-
lidade de fazer dele algo palatável ao mercado, o feminismo é transformado por
seus detratores em excrescência inútil”.
A análise das representações das senadoras enquanto ocupantes da Mesa
do Senado baseia-se nas categorias de credibilidade e legitimidade, propostas
por Charaudeau (2015). Suas identidades, enquanto personalidades políticas
apoiam-se, primeiramente, na legitimidade, atribuída pela eleição a um cargo
institucional, e, na credibilidade, em decorrência de sua atuação.
As categorias de credibilidade e legitimidade são amplamente teorizadas por
Charaudeau (2008, p. 67), segundo o qual a Legitimidade “determina ‘um direito
do sujeito de dizer ou fazer’ (resulta de uma atribuição), por mandato: tomada
do poder pelo povo (fundada no igualitarismo), enquanto a credibilidade resulta
de “uma capacidade do sujeito dizer ou fazer”. Para a presente pesquisa, a Credi-
bilidade a ser considerada é construída pelo discurso midiático, que, nesse caso,
pode se distanciar da legitimidade concernente ao cargo político.
Portanto, as representações analisadas no ato político da ocupação da Mesa
do Senado pautam-se na investigação do discurso político - midiático sobre a

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

prática política das senadoras. Já a categoria de credibilidade propicia a interpre-


tação dessa prática, tendo em vista que “o campo político é por excelência o
lugar em que as relações de poder e de submissão são governadas por princípios
passionais” (CHARAUDEAU, 2008, p. 93).

4. Uma pré análise necessária sobre gênero, feminismo


e classe social
A proposta desenvolvida neste artigo, com base na Teoria Semiolinguís-
tica do Discurso de Patrick Charaudeau, pressupõe antes, trazer a discussão
acerca de gênero, tendo em vista que, conforme defendido por Gonçalves
(2011) a formação jurídica ainda é feita como se as normas jurídicas e sua
interpretação fossem neutras no que se refere ao gênero - seja de quem as
interpreta ou de quem as interpela.
É fundamental perceber que, mesmo com a ideia aceita de um Estado que
garanta, através de leis positivadas, a universalidade e igualdade de direitos en-
tre mulheres e homens, verifica-se, na prática, uma incapacidade para a con-
solidação desse direito, ferindo, inclusive, a liberdade essencial de existência ao
gênero feminino. Essa constatação possibilita uma crítica contundente à forma
como desde o princípio, tal democracia foi estabelecida através do perfil macho
e branco que sustenta o sistema patriarcal de gênero (SAFFIOTI, 2013).
Em um primeiro plano, as perspectivas sobre o que seria gênero são em
síntese fruto da antropologia e da observação do que já se conceitua en-
quanto feminismo. Recai como central sobre a ideia de gênero o desejo de
apartar da esfera biológica/cultural, retirando o respaldo considerado na-
tural que sustenta relações desiguais de poder, seja no âmbito público ou
privado (GONÇALVES, 2011).
Nesse mesmo sentido, Mathieu (2009) opõe o sexo, que é biológico, ao gê-
nero, que é social. Portanto, nesse movimento reflexivo, é feita uma abordagem
social e estrutural das relações e das construções que foram estabelecidas atra-
vés do sexo biológico, com o objetivo de limitar à mulher o papel privado de
responsabilidade da maternidade e do lar. Essa dupla jornada de trabalho não
é computada na sociedade brasileira, tornando-se opressora proporcionalmente
à classe social a que pertence a mulher. de acordo com Biroli e Miguel (2014,
p. 12), “o impacto dessa divisão desigual do trabalho e do usufruto do tempo

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- o tempo semanal dedicado pelas mulheres ao trabalho doméstico no Brasil,


segundo pesquisas recentes, 150% maior que o tempo dedicado pelos homens”.
O debate sobre gênero questiona que tanto a classe de mulheres como a de
homens não estão dadas, de pronto, a essa definição exata da realidade objetiva,
mas surgem enquanto manifestações de suas relações com o mundo. Coloca-
-se, então, a necessidade de resgatar esse debate, engendrado por antropólogas
feministas, entendendo que “a diferenciação entre sexo e gênero pode ser con-
siderada fundamental para o movimento feminista” (GONÇALVES, 2011, p.
40), principalmente ao agregar a palavra gênero ao universo do pensar/agir, que
é essencial para a desconstrução do sistema patriarcal.
Dado o avanço desse debate, a concepção de gênero torna-se cada vez mais
nuclear para o entendimento de que “[...] a atribuição de certos comportamen-
tos a homens e mulheres não ocorre de forma independente, mas sim relacional,
surgindo das articulações e relações de poder estabelecidas entre homens e mu-
lheres” (GONÇALVES, 2011, p. 49). No Brasil, o direito ao voto e ao ensino são
conquistas recentes, tendo sido o primeiro, por exemplo, votado pelo Congresso
Nacional somente em 1932.
Por muito tempo, as mulheres estiveram à margem da (própria) história.
De acordo com Perrot (2017, p. 17), “em muitas sociedades, a invisibilidade e
o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas”, sendo, portanto, até
naturalizada. Já em outras se verifica um ativismo. Apesar de se ter notícias de
lutas de mulheres desde o Renascimento, com as reivindicações de ordem inte-
lectual e questionamento do tratamento desigual em relação aos homens, essa
luta ganha visibilidade e força a partir do século XIX, com o que se denomina
de terceira onda ou feminismo contemporâneo (GARCIA, 2015).
Nesse intermeio entre militância e academia, interessa ao presente estudo o
conceito de Feminismo, caro à emancipação das mulheres na busca pelo fim dos
privilégios masculinos e a conquista de uma igualdade em meio às diferenças
existentes. Inicialmente então, Garcia (2015, p. 11) aponta que:

O termo feminismo foi primeiro empregado nos Estados Unidos por volta
de 1911, quando escritores, homens e mulheres, começaram a usá-lo no
lugar das expressões utilizadas no século XIX tais como movimento das
mulheres para descrever um novo movimento na longa história das lutas
pelos direitos e liberdades das mulheres.

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Os conceitos de “gênero” e de “Feminismo” passam por transformações, em


função das mudanças das sociedades, mas sempre na busca por igualdade de
oportunidades para as pessoas. Nesse sentido, vale destacar o pensamento de
Tiburi (2018, p. 11) de que:

[...] o feminismo nos leva à luta por direitos de todas, todes e todos.
Todas porque quem leva essa luta adiante são as mulheres. Todes porque
o feminismo liberou as pessoas de se identificarem somente como
mulheres ou homens e abriu espaço para outras expressões de gênero - e
de sexualidade - e isso veio interferir na vida toda. Todos porque luta por
certa ideia de humanidade.

A igualdade de direitos entre homens e mulheres acarreta mudanças em


toda a sociedade, como, por exemplo, nascimento, família, trabalho, conheci-
mento etc. Para isso, é preciso que a mulher ocupe os diversos espaços, e com
isso possa contribuir com a elaboração de políticas que possibilitem a sua atua-
ção plena. Tiburi (2018, p. 12) compreende o feminismo como:

[...] desejo por democracia radical voltada à luta por direitos daqueles
que padecem sob injustiças que foram armadas sistematicamente pelo
patriarcado. Nesse processo de subjugação, incluímos todos os seres
cujos corpos são medidos por seu valor de uso: corpos para o trabalho,
a procriação, o cuidado e a manutenção da vida, para a produção do
prazer alheio, que também compõem a esfera do trabalho na qual está
em jogo o que se faz para o outro por necessidade de sobrevivência.

O conceito proposto revela os anseios feministas de combate à subjugação,


tendo em vista os diversos mecanismos sociais, engendrados na reificação da
mulher, desautorização do domínio do próprio corpo e uso das estruturas de
poder para a manutenção dessa desigualdade. Tal conceito pode ser comple-
mentado também, pelo proposto por Garcia (2015, p. 13) ao colocar que:

[...] o feminismo pode ser definido como a tomada de consciência


das mulheres como coletivo humano, da opressão, dominação e
exploração de que foram e são objeto por parte do coletivo de homens
no seio do patriarcado sob suas diferentes fases históricas, que as
move em busca da liberdade de seu sexo e de todas as transformações
da sociedade que sejam necessárias para este fim. Partindo desse

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princípio, o feminismo se articula como filosofia política e, ao mesmo


tempo, como movimento social.

Dessa forma, os conceitos de gênero e Feminismo contribuem para o presen-


te estudo por proporcionarem questionamentos sobre suas relações, concepções
e implicações na emancipação das mulheres para as mudanças sociais e políti-
cas que despertem a consciência para a importância de seu conhecimento e for-
mas de transformações sociais e políticas. Para isso, é necessária a participação
da mulher na política e na defesa de sua representação.
Infelizmente o número de mulheres nos ministérios, assembleias, câmaras
etc ainda é ínfimo, em relação à proporção de homens. Na Mesa do Senado, há
apenas 13 senadoras mulheres no total de 81 cadeiras do Senado. Essa ausência
de mulheres em cargos de poder reflete-se na ausência de representação femi-
nina, e consequentemente na falta de políticas de inclusão da mulher, como
creches para os seus filhos. Conforme Biroli e Miguel (2011, p. 12), “é preciso
considerar essas desigualdades para compreender por que elas continuam sub-
-representadas, como grupo, em todos os âmbitos da política brasileira”.
Portanto, essa ausência das mulheres na política impede ações a favor de sua
categoria. Esse ano (2018) tivemos um exemplo de como incomoda a atuação
de uma mulher na política, principalmente com tantas operadores5, como era
o caso de Marielle Franco: negra, favelada, lésbica e ativista dos direitos huma-
nos. Sua execução transmite o recado de que a mulher deve se manter silen-
ciada. Houve diversas tentativas de desvalorizar a imagem de Marielle Franco,
como, por exemplo, associando-a ao crime organizado, mas a ação de familiares
impediu a circulação de fake news. Biroli e Miguel (2011, p. 120) ressaltam que:

[...] na cobertura dos meios de comunicação, que visibilidade, atribuição


de competência política e adesão potencial dos eleitores podem andar
juntas e fazer diferença na construção de uma carreira política,
as mulheres são poucas e sua imagem ainda se mantém ligada aos
estereótipos de gênero convencionais.

5 Há que se buscar nas primeiras (relações de produção) a explicação da seleção de caracteres raciais
e de sexo para operarem como marcas sociais que permitem hierarquizar, segundo uma escala de
valores, os membros de uma sociedade historicamente dada (SAFFIOTI, 2013, p. 60).

1186
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Outro exemplo marcante foram os ataques machistas sofridos pela ex-


-presidenta Dilma Rousseff, em que os adesivos de carro violentavam a
imagem da Presidenta, com ataques a sua intimidade. Conforme Aragão
(2013, p. 192): “o problema não diz respeito à menção ao seu lado feminino,
pelo contrário essa natureza pode ser ressaltada, como a presidente procura
fazer, e sim na abordagem machista dos temas, em que se supervaloriza a
estética em detrimento do conteúdo”. Com isso, observa-se que é bastante
comum os ataques e mesmo a violência deliberada contra a mulher, pelo
único e simples fato, de ser mulher.

5. Estereótipo e Clichê
Dada a proposta, neste artigo, e a urgência em discutir como a mulher - ocu-
pante de cargo político - foi retratada em textos midiáticos, nada mais urgente
do que apresentar também, o que se entende por estereótipo e como decorrên-
cia lógica, o clichê. Esses conceitos são retratados nas perspectivas teóricas de
Mussalim e Fonseca-Silva (2011), Amossy (2005) e Amossy e Pierrot (2010),
que os descrevem sob diferentes concepções e modalidades.
Mussalim e Fonseca-Silva (2011, p. 139) defendem que “os estereótipos per-
tencem ao repertório de fórmulas, imagens, tópicos e representações compar-
tilhadas pelos sujeitos falantes de uma língua determinada ou de uma mesma
cultura”, e o definem como:

[...] o termo estereótipo, significa sólido, firme. No final do século


XVIII, o uso corrente desse termo estava reservado à tipografia
e designava uma chapa com caracteres metálicos fixos que
possibilitavam estereotipar páginas de texto para produzir cópias
repetidas. O termo também já era usado de forma esporádica nas
Ciências Sociais para denotar algo ‘fixo’ e ‘rígido’.

A semântica do termo se ampliou, e passou a remeter a conceitos atri-


buídos a pessoas. De acordo com Amossy (2005, p. 125), estereotipagem “é
a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação
cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado”. Portanto, se a so-
ciedade é estruturalmente machista e racista, como é o Brasil, mulheres
e pessoas negras, sofrem preconceitos e são estereotipados com base em

1187
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

clichês. A autora chama a atenção para o fato de que o estereótipo 6 tanto


se apresenta na enunciação (um modo de dizer) como no enunciado (conte-
údos, temas) (AMOSSY, ibidem, p. 137).
Ainda de acordo com Mussalim e Fonseca-Silva (2011, p. 141), e com os
autores Amossy (1991) e Amossy e Pierrot (1997), que os mesmos descrevem as
diferentes concepções e modalidades do estereótipo e, definem também o clichê
como sendo “expressões cristalizadas que se repetem pela mesma forma”.

6. Análise dos textos midiáticos


Os textos midiáticos, que veicularam notícias relacionadas a esse estudo de
caso, foram selecionados: a) nacionais (Jornal Gazeta do Povo, O Globo e Carta
Capital) e b) internacionais (El País, BBC Brasil e o Sputnik Brasil). A análise foi
realizada com base nas categorias teóricas acima desenvolvidas e sistematizadas
em quadros, com o objetivo de explicitar os resultados encontrados.
Cada texto midiático, com um total de seis, foi inserido fragmentado e inse-
rido em um quadro, pautado nas categorias de credibilidade e legitimidade, com
base na Teoria Semiolinguística do Discurso de Charaudeau (2008). A partir da
investigação dessas noções, são analisadas as outras variáveis: Gênero e Femi-
nismo (GARCIA, 2015), classe social (SAFFIOTI, 2013) e estereótipo e clichê
(AMOSSY e PERROT, 2010).
De acordo com os resultados encontrados, no que diz respeito aos discursos
veiculados pela mídia, foram observadas as representações construídas pela mí-
dia em torno da atitude das senadoras em ocupar a Mesa do Senado.

7. Resultados parciais da análise dos jornais nacionais


1) O Jornal Gazeta do Povo, do estado do Paraná, lançou um editorial em 11
de julho de 2017, cuja temática recaiu sobre a ocupação da Mesa do Senado por
senadoras, conforme se depreende do Quadro 01:

6 Amossy (2005, p. 142) define como “esquemas coletivos e representações sociais que pertencem à
doxa, ou seja, à indexação de representações partilhadas”.

1188
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Quadro nº 01

Nº do Jornal 01
Jornal Jornal Gazeta do Povo (Editorial)
Título Ocupação da mesa do Senado é expressão do totalitarismo
“A ocupação da mesa diretora do Senado pelas Senadoras Fátima Bezer-
ra (PT-RN), Gleisi Hoffmann (PT-PR) e Vanessa Grazziotin (PCdoB)
(...) vai entrar para a história como um dos ataques mais constrangedo-
Credibilidade res à democracia desde a redemocratização”.

“(...) uma reforma ampla das leis trabalhistas que moderniza as normas
sem retirar direito, como insiste em dizer a oposição”.
“As três senadoras, vendo frustrada sua vontade de alterar o projeto de
lei da reforma trabalhista, pisaram fora dos limites impostos a seu traba-
Legitimidade lho parlamentar”.

“Invasões, ameaças e tomadas de mesa estão no mesmo lado errado da


história”.

O texto midiático do Jornal Gazeta do Povo inicia a matéria com um apelo


chamativo, em que ‘a ocupação da mesa do Senado é expressão do totalitaris-
mo’, a partir do título, percebe-se a necessidade em construir e agregar à atitude
das Senadoras, a alcunha de extremismo, nesse caso o totalitarismo7.
Foram selecionados ainda alguns trechos da referida matéria, onde se per-
cebe a intencionalidade em retirar a Credibilidade e a Legitimidade das Sena-
doras, no momento em que coloca a ocupação da Mesa como algo maléfico à
democracia, e mais ainda, ao se utilizar de argumento falho em que a defende
a não retirada de direitos trabalhistas, proposta pela referida Reforma. Ainda
em alusão ao totalitarismo, para destituir de plena manifestação democrática a
atitude opositora das Senadoras, associa a ocupação da Mesa, como outra de-
monstração de totalitarismo.
2) O Jornal O Globo surge em 1925 e tem sede no Rio de Janeiro. Em 14 de
julho de 2017 lança o Editorial sobre a ocupação da Mesa do Senado, conforme
o Quadro nº 02:

7 De acordo com Mattedi (2007, p. 404) “O totalitarismo tem por escopo a separação dos indivíduos
uns dos outros (atomização) e a eliminação de sua capacidade de pensamento crítico (raciocínio
massificado) para a destruição de seu bem maior e essencial: a liberdade. [...] O totalitarismo vai
muito além, alcançando a destruição do mundo comum (ação e discurso) e da consciência critica do
indivíduo como formador da realidade social”.

1189
Quadro nº 02

Nº do Jornal 02
Jornal O Globo (Editorial)
Título Reforma trabalhista incentiva o emprego formal
“Apesar do ato antidemocrático, de inspiração bolivariana, de senadoras
da oposição, ao tomarem de assalto, quarta-feira, a mesa do Senado, foi
possível, depois deste ato estudantil, a Casa votar e aprovar a reforma
trabalhista”.
Credibilidade “Contra a medida, entre outras, é que as senhoras petistas Gleisi Hoff-
mann (PR), Fátima Bezerra (RN), Regina Sousa (PI), Vanessa Grazziotin
(AM) e do PSB, Lídice da Mata (BA) praticamente se acorrentaram à
mesa do Senado. Elas representam as corporações sindicais que perdem
com a reforma. Não a grande massa de desempregados e subempregados”.
“Pode ser que a sessão do Senado de 11 de julho de 2017 seja mais lembra-
da por ser a da ocupação da mesa da direção da Casa por senadoras que
Legitimidade
representam o bloco derrotado na matéria, também na Câmara, pelo voto,
símbolo da democracia”.
Nesse editorial de pouco mais de duas laudas, O Globo inicia o texto colo-
cando em evidência que a reforma traz ‘incentivo ao emprego formal’, e segue
a construção narrativa associando a atitude das Senadoras como ‘ato antide-
mocrático’, verifica-se tanto neste jornal como no antecessor (Gazeta do Povo),
a tendência em associar o ato (das Senadoras) a uma prática não democrática.
Ao pender para este raciocínio retira-se então, a credibilidade e mais
ainda, associa-se sempre o fato de terem sido ‘as senadoras’ (mulher) a
tomarem tal atitude. Percebe-se uma necessidade em expor que foram
‘as mulheres senadoras que fizeram tal ato, resta então a dúvida, de que
se fossem senadores da oposição a ocupar a Mesa, o texto midiático iria
imprimir a mesma importância em destacar o gênero (homens senadores)
ao elucidar tal acontecimento.
No que tange a legitimidade, O Globo é enfático ao colocar ainda, que tais
senadoras fazem parte do ‘bloco derrotado’, retirando qualquer legitimidade da
oposição de exercer livre manifestação garantida, sobretudo, pela Constituição
Federal de 1988.
3) A Carta Capital integra o grupo da Editora Confiança e tem circulação
no Brasil desde o ano de 1994. A matéria a respeito da reforma trabalhista foi
publicada em 11 de julho de 2017 e as demais informações foram sistematizadas
no quadro a seguir:
Quadro nº 03

Nº do Jornal 03
Jornal Carta Capital
Título Senadoras da oposição ocupam mesa diretora e Eunício suspende a sessão
“O que está acontecendo hoje no Senado, produzido pelos partidos de es-
querda, usando-se das mulheres senadoras, que tomaram a mesa diretora do
Plenário, é sem dúvida nenhuma algo que vai exigir do Conselho de Ética
Credibilidade
do Senado uma avaliação e providências. Esse não é um comportamento
compatível com a dignidade política de quem representa o povo brasileiro
no Senado da República", afirmou Bauer”.
“Cinco senadoras da oposição ocupam há mais de quatro horas mesa direto-
ra do Senado e impedem a votação da reforma trabalhista”.

“Pelas regras do Senado, qualquer senador pode abrir uma sessão, desde que
Legitimidade haja quórum. Foi isso o que fizeram”.

“(...) Durante cerca de uma hora, senadoras da oposição discursaram con-


tra a reforma, até que o presidente da casa, Eunício Oliveira chegou e não
gostou do que viu. Irritado, quis ocupar seu lugar, mas elas não deixaram”.

A matéria escolhida para a análise traz em determinados trechos, que


foram destacados, perceptíveis pontos problemáticos, no que tange tanto a
credibilidade como a legitimidade. Inicialmente, coloca em um mesmo ‘grupo’
os ‘partidos de esquerda’, ‘mulheres senadoras’, ‘tomar mesa diretora’, numa
tentativa de tornar o ato incredível das senadoras, sendo este, apenas mero
capricho de um bloco ‘opositor’. Percebe-se a ausência de qualquer contex-
tualização com o que a Reforma Trabalhista pode trazer aos trabalhodores.
Mais um jornal que associa em seu texto, o papel subserviente da mulher, até
mesmo quando ocupa um cargo político.

8. Conclusão parcial da análise dos jornais nacionais


Os três jornais nacionais expostos até o presente momento, associaram em
seus textos, construções ideológicas similares, ao tentarem retirar a credibili-
dade e deslegitimar a atitude das senadoras, como ‘ato antidemocrático’ e, dois
desses jornais (O Globo e Carta Capital), também expuseram argumentos evi-
denciando o fato de ter sido ‘mulheres’, as autoras de tal ato.
Argumentos baseados nessa perspectiva reforçam ainda mais a existência
de estereótipos e clichês relacionados com a mulher que exerce cargo político,
bem como, a uma necessidade de expor a que sexo (biológico) pertence e ao

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Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

determinar o sexo – feminino – aloca-se então, com o gênero – construção


social, de que a mulher, não pode ou não deve ter determinadas atitudes e mais
ainda, quando esta ocupar cargo de notável importância, como a representação
dos entes federativos no Congresso Nacional.
Em nenhum desses jornais citados houve a preocupação em informar o con-
texto social em que se deu a Reforma Trabalhista e mais ainda, mostrar os reais
benefícios e malefícios que esta reforma pôde proporcionar a classe trabalhado-
ra e subserviente ao empresariado nacional e também internacional.

9. Resultados parciais da análise dos jornais internacionais


4) O El País é um jornal de origem espanhola fundado em 1976. A
versão brasileira do El País surgiu em 2013, sendo então, um site com pu-
blicações próprias. Em 11 de julho de 2017, lança em seu portal de notícias
a matéria relacionada com os eventos da ocupação da Mesa, conforme
exposto no quadro a seguir:
Quadro n°04

Nº do Jornal 04
Jornal El País Brasil
A reforma trabalhista à meia luz - Votação no Senado é suspensa após
Título
oposição ocupar a Mesa do plenário para tentar obstruir trabalhos
“O presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB), suspendeu, nesta
terça-feira, a sessão que analisaria a polêmica proposta de mudança na
Credibilidade legislação trabalhista, após senadoras da oposição se recusarem a desocu-
par a mesa do plenário, a fim de impedir que o peemedebista desse início
aos trabalhos do dia”.
“‘Isso não é protesto, é avacalhação’, atacou o vice-presidente do Senado
Cássio Cunha Lima (PSDB-PB). ‘Não satisfeitos em terem destruído o
Legitimidade
país, estão agora avacalhando o país’, acrescentou, garantindo que o pro-
jeto "de uma forma ou de outra será votado hoje”.

Na matéria veiculada pelo Jornal El País destaca-se inicialmente o título ‘à


meia luz’ que retrata um acontecimento pouco explorado pelos outros jornais
analisados, o então Presidente da Mesa do Senado, Eunício Oliveira, exerce
seu poder e manda cortar a iluminação da sala onde estão as senadoras numa
tentativa de forçar a retirada delas, mas não obteve sucesso.
Nos trechos destacados para a análise, percebe-se a utilização de argumen-
tos no sentido de diminuir a ocupação da Mesa a um motivo fútil ‘de apenas

1192
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

impedir o presidente da Mesa de iniciar os trabalhos’. Quando, em verdade, a


atitude das senadoras revestiu-se numa seriedade muito maior, de conter, ou
no mínimo, trazer para o debate com a sociedade civil, as principais mudanças
provocadas pela reforma trabalhista e as consequências de tal reforma.
E, é nesse sentido, que se encontra a expressão máxima da defesa de uma
determinada classe através de uma atitude feminista, conforme colocado por
Garcia (2015, p. 13), “pode-se afirmar que sempre que as mulheres - individual
ou coletivamente - criticaram o destino injusto e muitas vezes amargo que o
patriarcado lhes impôs e reivindicaram seus direitos por uma vida mais justa
estamos diante de uma ação feminista”. Não existe feminismo autônomo, des-
vinculado de uma perspectiva de classe (SAFFIOTI, 2013).
5) O Jornal BBC tem sede na Inglaterra e a versão brasileira da BBC Brasil
foi fundada em 1938, atua na veiculação de notícias através de site eletrônico.
A matéria relativa a reforma trabalhista foi divulgada em 11 de julho de 2017. E
as principais informações foram sistematizadas no quadro a seguir:
Quadro nº 05

Nº do Jornal 05
Jornal BBC Brasil
Senado aprova reforma trabalhista: saiba o que pode mudar para os traba-
Título
lhadores
“Em mais uma evidência do caos político que o país atravessa, a reforma
trabalhista foi aprovada pelo Senado em uma sessão marcada por bate-
Credibilidade
-boca, gritaria e protesto de senadoras de oposição, que por mais de 6 horas
ocuparam a mesa diretora da Casa, atrasando a apreciação da matéria”.
“O presidente do Senado, Eunício Oliveira, chamou o protesto das senado-
Legitimidade ras de "ditadura", ao impedir o funcionamento da Casa, e chegou a mandar
apagar as luzes do plenário”.

A matéria veiculada pela BBC Brasil traz em seu título a aprovação da refor-
ma trabalhista e o que poderá mudar para os trabalhadores. Nas categorias de
credibilidade e legitimidade foram selecionados trechos que trazem que evocam
a ainda a posição de oposição das senadoras e se utiliza também da expressão
ditatura para enquadrar a atitude das senadoras.
6) O Sputnik Brasil é uma agência de notícias com sede em Moscou – Rússia,
com escritório no Brasil e em outros países. Em 11 de julho de 2017 publica ma-
téria relativa a ocupação da Mesa do Senado. As principais informações estão
no quadro a seguir:

1193
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Quadro nº 06

Nº do Jornal 06
Jornal Sputnik Brasil
Advogados trabalhistas: 'Reforma da CLT ignora direitos assegurados
Título
pela Constituição'
“O senador José Medeiros (PSD-MT) protocolou uma ação no Conselho
de Ética, por quebra de decoro, contra as parlamentares da oposição que
Credibilidade
atrapalharam a sessão desta terça-feira no Senado, dedicada à votação da
polêmica reforma trabalhista”.
Legitimidade -

O Sputnik Brasil traz no título da matéria a chamada de outra categoria


até então, não relatada pelos demais jornais analisados – os advogados tra-
balhistas, e a afirmação de que a ‘reforma ignora direitos assegurados pela
Constituição’. Tal afirmação encontra sustentação no próprio ato realizado
pelas senadoras, no intuito de proteger uma classe social e historicamente
menos favorecida – a classe trabalhadora.
De acordo com as categorias selecionadas, credibilidade e legitimidade foi per-
cebido e então destacado apenas um trecho relativo à credibilidade, quando
o ato das senadoras foi enquadrado como quebra de decoro parlamentar. Não
se percebeu menção a atitude das senadoras ou qualquer destaque por ‘serem
mulheres’. Verificou-se ainda, o teor majoritário de informar e trazer à mesa de
debates outra perspectiva da reforma trabalhista, de que esta poderá (poderia)
trazer prejuízos a classe trabalhadora. Há, neste jornal, o caráter majoritário de
informar o acontecimento em si, sem agregar juízos de valores utilizados por
outras matérias jornalísticas (preponderantemente por jornais nacionais).

10. Conclusão parcial da análise dos jornais internacionais


Os três jornais selecionados para a análise – El País Brasil, BBC Brasil e
Sputnik Brasil – fazem parte do grupo de mídias de origem internacional. E por
tal razão, a análise parcial é destacada dos demais jornais aqui apresentados.
Com base na análise realizada percebeu-se uma notável diferença em rela-
ção às mídias previamente expostas, muito embora no texto midiático do El
País e BBC Brasil ainda tenha sido encontrado menções que buscam retirar
a credibilidade e legitimidade das senadoras perante a ocupação da Mesa, há
uma tendência nesses textos, aqui destacados, de agregar à matéria um valor

1194
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

também informativo e de apresentar outras perspectivas que possivelmente mo-


tivaram a atitude das Senadoras, isto é, a reforma retira direitos da classe menos
favorecida e mais vulnerável, a classe trabalhadora.

Considerações Finais
A ação das senadoras, além de um ato político, configura-se também em um
ato de cunho feminista, em que há uma intencionalidade clara de defender uma
classe social menos favorecida, a classe trabalhadora. A representação feminina
está diretamente relacionada com esta classe, bem como, na defesa dos direitos
fundamentais da mesma, garantidos pela Constituição Federal de 1988.
A partir da análise do corpora, seis textos midiáticos foram selecionados e
colocados em dois grupos com base na origem, nacional e internacional. Após,
foram utilizadas os conceitos abarcados na Teoria Semiolinguística do Discurso
de Charaudeau, de legitimidade e credibilidade. Realizada a análise, percebeu-se
que a representação da classe abastada é realizada pelos senadores que votaram
a favor da Reforma Trabalhista e há uma notável internalização dos interesses
do mercado (empresariado), em detrimento da classe trabalhadora.
Restou também evidente a diferença entre os jornais de origem nacional e inter-
nacional, no primeiro grupo há uma notável tendência em associar o ato das senado-
ras a ‘utilização da força em ato antidemocrático’, há clara uma associação ao grupo
de ‘derrotado’ da oposição do Senado, no qual se incluem as senadoras, resta de ma-
neira categórica a ausência em trazer um conteúdo informativo e que contextualize
o motivo das senadoras terem ocupado a Mesa durante a votação da Reforma.
Os jornais incluídos no segundo grupo – de origem internacional – trouxe-
ram uma narrativa de teor informativo e não preferiram não destacar a relação
de gênero, tão evidente nos jornais nacionais. Além disso, foram capazes de
contextualizar até mesmo o motivo de tal ocupação, tendo em vista o conhe-
cimento de que a Reforma Trabalhista nos moldes em que foi realizada, retira
mais direitos da classe trabalhadora.
Tal pesquisa possibilitou a oportunidade ímpar de trazer aos debates acadê-
micos como a mulher – ocupante de cargo político – é percebida e categorizada
nos textos midiáticos. Sendo de extrema importância trazer para o debate tais
questões, quando ainda se busca uma sociedade em que homens e mulheres
sejam tratados de maneira igualitária.

1195
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Apesar do texto Constitucional de 1988 trazer a premissa universal de igual-


dade, a pesquisa realizada embasa a tese de que a mulher ainda é vista – e tra-
tada – como um ser subserviente ao homens e aos interesses destes, quando em
verdade, a ocupação da Mesa do Senado por essas mulheres senadoras, serviu
para demonstrar uma ação feminista com vistas a proteger uma classe menos
favorecida e bem mais vulnerável, que é a classe trabalhadora.

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1198
Violência contra a mulher
e o golpe de 2016

Maria Alice de Lima Lemos1


Ana Caroline de Lima Silva Ferreira2
Andréia Garcia dos Santos3
Juliano Beck Scott4
Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira5

Introdução
Com o surgimento da nova forma de propriedade privada (ENGELS, 2010)
e da divisão em classes sociais como fruto do desenvolvimento das relações ca-
pitalistas, surgem determinadas formas correlatas ao processo do valor de troca,
tanto no nível social, quanto no político e no jurídico (MASCARO, 2013).
Estas formas são denominadas por Alysson Mascaro como “formas sociais” e
definidas como “modos relacionais constituintes das interações sociais” (MAS-
CARO, 2013). Uma destas formas é a “forma-família” que “estatui posições,
papéis, poderes, hierarquias e expectativas” (MASCARO, 2013, p. 21). Assim,
é nesse período que surge a família monogâmica como um dos pilares da pro-
dução e reprodução no modo de produção capitalista, passando a se constituir
como “expressão da propriedade privada nas relações familiares (LESSA, 2012,
p. 43)”. O que vai mudar radicalmente o que é “ser feminino” e o “ser masculi-
no” dentro das relações sociais (LESSA, 2012). Homens e mulheres passaram a
ser enquadrados em “padrões ideais” para as interações da sociedade capitalista.

1 Graduanda do Curso de Ciências Sociais da UFRN;


2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN.
3 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN.
4 Doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN.
5 Doutora e Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN.

1199
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

Aos homens o público e para as mulheres, o âmbito privado. Estas deverão ser,
a partir de então, como define Lessa (2012):

Excluídas da participação na vida social, com sua existência


reduzida ao estreito horizonte do lar patriarcal, as mulheres vão se
convertendo no feminino que predominou ao longo de milênios:
pessoas dependentes, débeis, frágeis, ignorantes, bonitas para os
homens aos quais devem servir, dóceis, compreensivas. Enfim,
pessoas moldadas para a vida submissa e subalterna que lhes cabe na
sociedade de classes (Lessa, 2012, p. 37).

Essa coerção se dará mediante mecanismos fetichizados e se apresentará


aos indivíduos, grupos e classes, desde o seu nascimento, como algo já dado
e independentes da vontade e consciência destes/as (MASCARO, 2013). É
nesse momento histórico “que a sociedade deixa de ser matrilinear e se torna
patrilinear e patriarcal” (Silva e Santos, 2018, p. 199-200) e teremos então a
opressão de um grupo sobre o outro (dominantes e dominados) e, ao mesmo
tempo e em ambos os grupos, mulheres que serão dominadas pelos homens
(SILVA E SANTOS, 2018). Apesar disto, sempre houve mulheres que ques-
tionaram e questionam, diariamente, tal imposição e com as lutas de classes
e lutas feministas contribuíram para a crise da família monogâmica e para a
conquista de diferentes espaços. Das conquistas feministas mais antigas, no
âmbito social, podemos destacar: o direito político de votar e ser votada, em
1932 (RUBIM & ARGOLO, 2018) e, com a chamada Lei das Cotas de nº
9.504/1997, a obrigação dos partidos garantirem 30% de mulheres em suas
listas para as eleições (PINTO, 2018).
Mesmo assim, apenas em 2010, 78 anos após a conquista do voto feminino,
foi eleita a primeira mulher presidenta no Brasil. Nesse sentido, discorreremos
sobre o cenário e a conjuntura de violência vivida pela presidenta eleita em seu
mandato, a qual denominamos de violência contra a mulher e, portanto, de
cunho machista e patriarcal.
Saffioti (2004) contribui com a discussão de gênero ao incluir a perspectiva
do patriarcado a partir de uma base material e crítica. Para a referida autora, o
patriarcado possui uma base material e sócio-histórica determinada por meio
de relações concretas, dentre as relações que compõe a estrutura patriarcal
encontram-se: as relações sociais de sexo/sexualidade; a constituição da família
heteropatriarcal-monogâmica; a divisão sexual e racial do trabalho e a violência

1200
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

contra a mulher e a população LGBT (CISNE & SANTOS, 2018). Sendo as-
sim, as relações patriarcais de gênero dizem respeito às relações hierárquicas de
exploração e opressão presentes nas relações entre os sexos e que se encontram
ancoradas na diferença sexual.
Haraway (2004, p. 211), por sua vez, acrescenta que “gênero é um con-
ceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual”. Ou
seja, a teoria e a prática na discussão de gênero buscam explicar e trans-
formar as diferenças sexuais entre homens e mulheres que são socialmente
construídas e hierarquizadas em antagonismos e relações de poder. Assim,
apesar de homens e mulheres viverem sob a mesma cultura, está destino a
cada gênero um papel diferente nas relações sociais (SAFFIOTI & ALMEI-
DA, 1995). Portanto, segundo Scott (1989), o gênero não está constituído
apenas pelas diferenças sexuais, mas pelas relações de poder produzidas pela
constatação oriunda dessas diferenças.
Assim, gênero estaria imbuído da função de dar significado às relações de
poder que sustentam as relações sociais entre homens e mulheres, sendo consi-
derado relacional, visto que subentende uma relação social estabelecida a qual
atravessa e constrói a identidade de homens e mulheres (Scott, 1989). Ou seja,
não é a diferença sexual por si só que organiza as relações entre homens e mu-
lheres, mas as relações de poder que definem como homens e mulheres devem
interagir e manter suas relações (TILIO, 2014).
Gênero, portanto, além de ser socialmente construído, corporifica a sexuali-
dade e a exerce como uma forma de poder, classificando homens e mulheres em
duas categorias distintas: dominantes e dominados (SAFFIOTI & ALMEIDA,
1995). Estas categorias obedecem aos requisitos impostos pela heterossexua-
lidade (padrão heteronormativo), funcionando como ponto de apoio da desi-
gualdade de gênero (SAFFIOTI & ALMEIDA, 1995). Além disso, a relação de
dominação dos homens sobre as mulheres está baseada numa fundamentação
biológica construída socialmente. Essa cria e retroalimenta a dominação, desig-
nando o homem como detentor de poder e controle (SAFFIOTI, 1969/2013;
1987; 1999; 2001; 2004).
Uma das formas de se estudar as relações sociais inscritas nas questões de
gênero é por meio da abordagem marxista. De acordo com Eisenstein (1980),
pode-se utilizar o método elaborado por Marx para compreender a opressão
feminina, principalmente no que se refere à estrutura sexo/raça/classe, família e
divisão sexual do trabalho. Essa seria uma forma de realizar uma análise marxista

1201
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima / Enzo Bello
Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

da teoria de gênero, utilizando a teoria das relações sociais para compreender as


relações existentes no patriarcado capitalista (EISENSTEIN, 1980).
Em “A ideologia alemã”, Marx e Engels (1846/1999) trazem a ideia de
que os indivíduos se conectam como forma de satisfazer suas necessidades,
ou seja, a natureza dos indivíduos parte da conexão e do estabelecimento
de relações sociais (relação entre os sexos, troca, divisão do trabalho) que
determinam suas forças produtivas e suas necessidades. O comportamento
dos indivíduos, uns em relação aos outros, é que criou as relações existentes
e cotidianamente volta a criá-las (MARX & ENGELS, 1846/1999). Portan-
to, as relações sociais precisam ser entendidas a partir de um continuum que
vai sendo construído ao longo do tempo, por isso, a importância e defesa do
caráter histórico neste tipo de análise.
Eisenstein (1980) defende ainda que o método utilizado por Marx para exa-
minar o conflito de classes e as relações sociais em si pode ser empregado tam-
bém para examinar a luta patriarcal que envolve homens e mulheres. Ou seja,
é possível utilizar Marx para compreender as aproximações entre a história do
patriarcado e a história da luta de classes. Para Eisenstein (1980) é necessário
compreender as lutas de classes para entender o funcionamento do patriarcado,
visto que fazem parte da mesma história.
Resumidamente, o conceito de patriarcado refere-se a um “sistema de re-
lações sociais que garante a subordinação da mulher ao homem” (SAFFIO-
TI, 1987, p. 16). Portanto, advém de uma estrutura hierárquica que confere
aos homens o direito de dominar as mulheres. Para a autora supracitada, até
mesmo as mulheres podem desempenhar a função patriarcal, disciplinando
os filhos, por exemplo, de acordo com a lei do pai. Sendo assim, muitas mu-
lheres mesmo que não sejam cúmplices do regime, podem colaborar com sua
manutenção e perpetuação.
De acordo com Navarro-Swain (2017), o patriarcado sempre conseguiu
evitar a sua desintegração, visto que apesar das conquistas feministas, princi-
palmente a partir da década de 1960, várias foram as estratégias incorporadas
de submissão e assujeitamento da mulher ao poder do homem. Ou seja, é pre-
ciso desconstruir os papéis impostos às mulheres e aos homens, buscando uma
cisão no binarismo reinante, que vem impondo papéis predestinados de acor-
do com o sexo biológico, transformando as relações sociais em hierarquias
baseadas no genital (NAVARRO-SWAIN, 2017). Segundo Navarro-Swain
(2017) várias são as instituições que impõem e determinam papéis sociais

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

para os distintos gêneros e que reforçam o patriarcado, dentre elas a religião,


a política, o Estado e a família.
Para explicar a dominação dos homens sobre as mulheres por meio do
patriarcado, Saffioti (1987) defende um sistema por ela denominado de pa-
triarcado-racismo-capitalismo. Segundo a autora, o patriarcado é o sistema de
dominação-exploração mais antigo da sociedade, seguido do racismo, que sur-
giu a partir da luta entre os povos pela conquista de territórios, estendendo-se
o sistema de dominação-exploração do homem sobre a mulher aos povos ven-
cidos. Com o surgimento do capitalismo, o sistema de dominação-exploração
se completa a partir da fusão ou simbiose entre os três. O funcionamento
desse sistema aparece expresso, principalmente, na dominação-exploração
que as mulheres e grupos minoritários enfrentam devido, principalmente, às
discriminações de gênero, raça e classe. Além disso, com o surgimento do
modo de produção capitalista, as desvantagens sociais experimentadas pelas
mulheres permitiram ao sistema do capital uma maior exploração da sua for-
ça de trabalho, intensificando o trabalho delas, estendendo a sua jornada de
trabalho, pagando menores salários (em comparação aos salários masculinos)
e permitindo ao capitalista maior extração de mais-valia, por exemplo (SA-
FFIOTI, 1969/2013). Portanto, a dominação-exploração experimentada pelas
mulheres advém de um sistema (patriarcado-racismo-capitalismo) que lhes
impõe um lugar de submissão e desvalorização.
Com relação ao lugar ocupado pela mulher na sociedade do capital, Ko-
lontai (2000) defende que as transformações ocasionadas pelo modo de pro-
dução capitalista obrigaram as mulheres a se adaptarem às condições criadas
pela imposição dessa realidade. Assim, foram as relações sociais e históricas
que conformaram a subordinação das mulheres. Ou seja, a posição social da
mulher está em relação direta com o grau de desenvolvimento econômico em
que se encontra a sociedade. Acrescenta a autora que a mulher moderna surgiu
do aumento quantitativo da necessidade da força de trabalho feminina assa-
lariada nas fábricas. Assim, conforme Kolontai (2000), a realidade capitalista
contemporânea moldou um novo tipo de mulher, devido à sua participação na
vida econômica e social. Dessa forma, a realidade capitalista contemporânea
criou um tipo de mulher mais próxima do homem, diferentemente da mulher do
passado. Tal fato contribuiu para uma cisão entre mulheres preparadas para o
trabalho, de acordo com os ditames do capital, quais sejam, aquelas mais fortes,

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

resistentes e disciplinadas em contraponto às de natureza frágil e passiva que


permaneceram vinculadas ao lar (KOLONTAI, 2000).
Apesar das mulheres formarem grande parte da população economica-
mente ativa do capitalismo atual, estas ocupam ainda os empregos e funções
mais desvalorizados, demonstrando as diferenças existentes entre homens e
mulheres. Conforme Kolontai (2000), em sua maioria, as mulheres ocupam
cargos ligados ao trabalho confessional, administrativo, de atendimento ao
consumidor, limpeza, setor alimentício e outras funções relacionadas ao cui-
dado, como educação básica e enfermagem. Esses trabalhos aparecem asso-
ciados aos papéis sociais atribuídos às mulheres como pessoas cuidadosas e
gentis que estão sempre dispostas ao outro.

2. Desenvolvimento
Dilma Vana Rousseff, aos 63 anos de idade, economista e com uma carrei-
ra política consolidada ingressou na militância política aos 16 anos de idade,
lutou contra a ditadura, foi presa e torturada, saiu, se formou, ingressou no
Partido dos Trabalhadores (PT) em 2001 e, ao lado do então presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, se destacou ao fazer parte da equipe responsável pelo plano
de governo na área energética. Em janeiro de 2011, deu-se início ao primeiro
mandato de Rousseff e ela subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado da sua
única filha, Paula Rousseff Araújo. Não bastou ser a primeira mulher a ocupar
a presidência da República, contar com uma formação acadêmica e experiência
política suficiente e levar, pela primeira vez, uma família monoparental e femi-
nina ao Congresso Nacional para receber o respeito e prestígio que são seus por
direito, já que no dia da cerimônia de posse Dilma foi alvo de ofensas machistas,
conforme reportagem de O Globo (2011):

A presidente Dilma Rousseff até que se esforçou, com seu novo corte
de cabelo e vestindo um tailleur marfim para sua posse, mas foi a beleza
estonteante da mulher do vice-presidente Michel Temer que capturou
olhares e cliques de homens Brasil afora (O Globo, 2011).

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Figura 1. Marcela Temer e Michel Temer no dia da posse da presidenta Dilma Rousseff (2011).
Fonte: https://oglobo.globo.com/politica/beleza-da-vice-
primeira-dama-rouba-cena-na-posse-da-dilma-2844111

Negam-se os fatos históricos e resumem à competição feminina a posse da


primeira presidenta, vide comentários: a “beleza da vice-primeira-dama rouba a
cena na posse da Dilma” (O Globo, 2011). Em 2014, foi eleita novamente e mais
uma vez, ao invés de obterem destaque o seu discurso e a sua reeleição, o Jornal
Estadão (2015) descreveu sobre sua aparência e sua vestimenta:

A renda em tom nude-clássico usada pela presidente Dilma Rousseff


durante a posse destoou do cinza-chumbo e do azul-marinho dos ternos
dos políticos que a rodeavam. A maquiagem leve, o cabelo bem-arrumado
e os brincos de pérola deram toques de feminilidade para o look - apesar
da modelagem solta em A não favorecer em nada a sua silhueta. É a
segunda vez que Dilma é empossada e, em termos de estilo, ela aparenta
mais segurança do que no primeiro mandato (Estadão, 2015).

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Figura 2. Presidenta Dilma Rousseff ao lado da filha Paula Rousseff no dia


da posse do seu segundo mandato (2015).
Fonte: https://emais.estadao.com.br/noticias/moda-e-beleza,o-estilo-dilma-na-posse,1614313

Com o golpe parlamentar em 2016, lhe foi cerceada a possibilidade de


concluir os quatro anos de seu segundo mandato. Desde a sua primeira cam-
panha eleitoral até a organização midiática e jurídico-parlamentar a favor
do “impeachment”, foi possível perceber que, pelo fato de ser mulher, algu-
mas estratégias de cunho desrespeitoso estiveram alinhadas com a cultura
machista, como por exemplo: questionamentos quanto à sua sexualidade,
representações estereotipadas da mesma circulando na mídia (ARGOLO,
2014), uso de panelas (artefato simbólico e estigmatizado na vida das mu-
lheres) nos protestos a favor de sua deposição, comparações constantes à
vice-primeira-dama (RUBIM & ARGOLO, 2018), ofensas sexuais pejora-
tivas em adesivos e nas redes sociais e inúmeros palavrões também foram
dirigidos à mesma. Como exemplo a Figura abaixo:

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Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

Figura 3. Adesivo com a imagem de Dilma Rousseff em posição obscena (2015).


Fonte: http://www.pbhoje.com.br/noticias/3221/ministerio-publico-promete-punicao-aos-
que-lancaram-adesivo-de-dilma.html
O que demonstra o preconceito engendrado pelo sistema capitalista, ma-
chista, homofóbico, racista e discriminador dos deficientes e indesejáveis
(MASCARO, 2013). Fortalecido pelas complexas relações entre Estado,
propriedade privada e casamento monogâmico (SILVA E SANTOS, 2018)
possibilita aos indivíduos colocarem em questão o lugar que a mulher ocupa
e o poder que esta possui. Poder aqui utilizado como o descrito por Pierre
Bourdieu, denominado “poder simbólico” é conceituado como “poder invi-
sível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não que-
rem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU,
1989, p. 7). São consideradas ações voltadas para o meio simbólico as que
são executadas através de linguagens, arte, escrita, entre outras formas e
que serão expressões da hegemonia de pensamentos dominantes. Nesse sen-
tido, Bourdieu (1989) descreve que

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

A cultura dominante contribui para a integração real da classe


dominante [...]; para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto,
portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas;
para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento
das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções
(BOURDIEU, 1989, p. 10).

Ao abordar a temática da prática do poder simbólico em relação à discussão


de gênero, é possível, a partir da visão da professora Cecília Sardenberg (2011)
fazer uma relação à existência da violência simbólica num sentido de não haver
necessariamente a agressão para lesar a vítima da ação (BOURDIEU, 1989),
quando a autora fala:

Por ‘violência de gênero’, refiro-me à toda e qualquer forma de agressão


ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional, institucional,
cultural ou patrimonial, que tenha por base a organização social dos
sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos, explícita
ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual
(SARDENBERG, 2011, p. 1).

Com todas as estratégias utilizadas pela mídia e por parte da população para
deslegitimar a pessoa e o governo da presidenta Dilma foi dado prosseguimento
ao seu “impeachment”, em abril de 2016. Na ocasião, 367 deputados votaram
a favor da continuidade do processo. A votação que durou mais de cinco horas
contou como justificativa, além do voto pelo “sim” ou pelo “não”, com pérolas
absurdas e violentas. Mais uma vez a presidenta foi violentada “simbolicamen-
te” e desculpas como “religião, família, ditadura e povo brasileiro” tentaram
fundamentar as atrocidades do “tchau, querida”. Após esta votação, o Senado
Federal também se apontou como favorável ao “impeachment”. Nestas ocasi-
ões, não foi só a presidenta que foi oprimida, mas todas as mulheres.
Saffioti (1987) ressalta que o poder do macho na propriedade privada provo-
ca grandes desigualdades entre os sexos acarretando o que a autora denomina
de inferiorização/ social feminina, ou seja, o modo de produção advindo da
propriedade privada, o capitalismo, acaba por oprimir a mulher, impondo pa-
péis que são construídos socialmente e que devem ser absorvidos como parte da
identidade social feminina. Tais papéis sociais acabam por reforçar sobre a mu-
lher a ideologia dominante de superioridade do homem. Saffioti (1987) acredita

1208
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

que esse tipo de ideologia acaba naturalizando-se e difundindo-se na sociedade,


de modo a discriminar a mulher e legitimara superioridade do homem.
Prova disto, no dia seguinte ao golpe parlamentar, houve a posse do gover-
no interino e o cenário foi totalmente reconfigurado: a foto do novo gabinete
ministerial revelava não só a ausência de mulheres, mas também de negros (as),
índios (as) e jovens, denotando assim, o início de um governo misógino e con-
servador (RUBIM & ARGOLO, 2018).

Figura 4. Ministério de Michel Temer. Fonte: Gazeta do povo (2016). https://www.


gazetadopovo.com.br/blogs/certas-palavras/ministerio-de-temer-discrimina-as-mulheres/
Consequência disto, já ficava previsível o desmonte das políticas para as
mulheres. O governo extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial,
da Juventude e passou suas atribuições para o Ministério da Justiça. De 2016
para 2017, o corte no orçamento da Secretaria chegou a 61%, e a maioria das
políticas iniciadas nas gestões de Lula e Dilma foram descontinuadas.
Tal desmonte comprometeu as políticas de proteção e apoio às mulheres
brasileiras. De acordo com Connell (1987), existe uma masculinidade hegemô-
nica, a qual incorpora distintas categorias ou elementos que determinam uma
hierarquia baseada nas diferenças entre os homens. Connell (1987) descreve
três categorias que compõem a masculinidade hegemônica: a masculinidade
hegemônica que tende a reproduzir a dominação dos homens e a subordinação
das mulheres na dinâmica do patriarcado; a masculinidade conservadora, que
reúne um menor número de homens que colaboram com a manutenção do sis-

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Daniel Araújo Valença / Sérgio Augustin

tema de dominação patriarcal por este oferecer benefícios pelo simples fato de
serem homens, o que faz com que não encontrem motivos para mudar o siste-
ma; e as masculinidades subordinadas as quais englobam aquelas relacionadas,
principalmente, aos homens gays, que são discriminados por serem “femini-
nos”. Portanto, conforme dito anteriormente, a hegemonia masculina se cons-
trói nessa relação de dominação sobre as mulheres, assim como também sobre
outros homens, no caso das masculinidades subordinadas (CONNELL, 1987).
A masculinidade hegemônica, portanto, segue um padrão de práticas que reforça
a desigualdade entre os homens e a dominação sobre as mulheres e outras plurali-
dades de masculinidades, definindo padrões de masculinidades opostos a qualquer
modelo de feminilidade existente (CONNELL & MESSERSCHIMDT, 2013).

Figura 5. Foto de Dilma “transpassada” por espada (2012). Fonte: http://g1.globo.com/mundo/


noticia/2012/01/foto-de-dilma-transpassada-por-espada-vence-premio-internacional.html

Conclusão
Apesar de todas as formas de atentados à imagem, lugar e poder da primeira
mulher presidenta gerindo o país, ao analisarmos a gestão total do governo Dil-
ma é possível perceber sua resistência e que, apesar desses impasses, ela trouxe
vários ganhos e avanços históricos para a pauta de luta das mulheres como, por

1210
Direito e Marxismo: Tempos de regresso
e a contribuição marxiana para a Teoria Constitucional e Política

exemplo, foi a primeira vez que houve uma maior presença de mulheres nos
ministérios e houve também o fortalecimento da Secretaria de Políticas para as
Mulheres, surgida no governo Lula, em 2003.
Mesmo com limitações, foi durante o governo Dilma que se desenvolve-
ram políticas e ações para o enfrentamento da violência contra a mulher,
bem como em prol da sua autonomia financeira: destaques para a lei do fe-
minicídio e o “Programa Minha Casa Minha Vida”.  Em 2015, após reforma
ministerial, a secretaria passou a ter status de ministério com a criação do
Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos
Humanos (Rubim & Argolo, 2018).
Portanto, é premente trazer para o debate do “impeachment” da Dilma as
questões de violência contra a mulher, pois fazem parte dos nexos do fenômeno
político e jurídico do golpe. Essa discussão foi escamoteada, minimizada e rele-
gados ao status de problema menor, o que deflagra uma tentativa, dentre tantas
outras, de silenciamento da história das mulheres brasileiras na política. Além
disso, é necessário entender o fenômeno dentro do tecido social capitalista para
tentar captar a sua essência partindo da aparência fenomênica que salta aos
sentidos, como a violência contra a mulher. Precisamos encarar que a superação
do sexismo, do patriarcado e do racismo, expressões da díade capital/trabalho,
só será possível, quando superarmos as relações sociais de exploração construí-
das no sistema capitalista.

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1213
Cada vez mais se mostra necessária a discussão da obra mar-
xiana. A força da dialética materialista e de uma profunda
historicidade crítica do pensamento de Karl Marx. Auxiliam
na compreensão de fenômenos econômicos e políticos dos
dias de hoje. Se é verdade que não se pode cobrar de nenhum
pensador análises sobre peculiaridades e problemas que ine-
xistiam na época de sua produção intelectual, por outro lado
os episódios recentes que comprovam a volta da xenofobia,
da precarização do trabalho, da criminalização da pobreza e
dos movimento sociais ampliados remetem à necessidade de
se compreender tais fenômenos pela ótica do concreto. Desta
forma, observar como o Direito se localiza neste complexo
panorama é uma obrigação imposta a todos os juristas, em-
bora não se possa ser ingênuo a ponto de pensar que logo os
juristas irão analisar criticamente este quadro de realidade,
menos ainda lançando mão de categorias como luta de clas-
ses, por exemplo.
As ferramentas com que Karl Marx e os marxistas têm a
muito dizer sobre os recentes acontecimentos no Brasil. A
“legalidade que nos mata”, como escreveu Engels, fora criada
pelos partidos da ordem, não para ser necessariamente cum-
prida, mas para ser tolerada até o momento em que não passe
de uma “ilusão constitucional”, como advertiu Lênin. Ter a
coragem de assim compreender o golpe contra a incipiente
mosaic abrasileri de 2016 e seus desdobramentos na América
do Sul, é também uma tarefa de juristas que rejeitam a ex-
plicação puramente normativa e ingressam no território das
palavras e ações concretas

ISBN 978-85-519-1388-8

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