Cópia de Caderno Apoio
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Lúcio Sousa
Universidade Aberta
2016/2017
Capa: Lúcio Sousa, foto de emissão RTP de 20 de maio de 2002 com a transmissão da cerimónia de
passagem da autoridade da UNTAET para o Estado Timorense. Na foto: matas Paulo Mota e bei josé
Tilman, representantes do Distrito de Bobonaro.
1
Indice geral
Conteúdos temáticos 5
Bibliografia 171
2
Apresentação da unidade curricular
A antropologia não é uma ciência das sociedades longínquas e exóticas, nem das
pequenas comunidades ou das sociedades simples e fechadas. Interessa-se pelo Ser
Humano (άνθρωπος - anthropos) como objeto de estudo (λόγος, logos), conhecimento,
discurso.
A disciplina institucionaliza-se como ciência no século XIX e acompanhou a expansão
colonial, industrial, científica e tecnológica europeia, focalizando-se nas sociedades ditas
“primitivas” ou “longínquas”, para, como numa situação de laboratório, compreender a
organização “complexa” da sua própria sociedade. Após a descolonização, a Antropologia
regressa aos países de onde partira mas permanece também nesses terrenos
antropológicos afirmando, num e noutro lado, as relações e comparações entre as
sociedades, e a sua pertinência e contemporaneidade.
Nesta unidade curricular abordaremos de forma introdutória os conceitos
fundamentais da Antropologia Social e Cultural, os seus contextos, a sua dimensão
integrativa e alguns dos seus domínios de estudo. Centrar-nos-emos numa antropologia
para a nossa época, antropologia nas sociedades contemporâneas sem deixarmos de
explorar a sua dimensão histórica e os seus instrumentos metodológicos.
Competências:
No final desta unidade curricular o/a estudante deverá ser capaz de:
analisar e interpretar a complexidade da diversidade cultural no mundo atual;
contextualizar e constituir conhecimento teórico com base em dados
etnográficos;
reconhecer e compreender os processos de (re)produção e transformação social
nas interações humanas.
identificar e explicitar a dimensão aplicada da antropologia nas sociedades
contemporâneas.
3
Apresentação dos Textos
1
© Este é trabalho em desenvolvimento pelo que as sugestões serão bem-vindas
[[email protected] ]. O uso deste recurso é limitado ao trabalho individual e colaborativo no âmbito
estrito da unidade curricular 41098 Antropologia Geral e não pode ser objeto de
divulgação/disponibilização exterior à plataforma moodle.
4
Conteúdos temáticos
5
Objetivos gerais por tema
6
Tema 1: O campo e o método da antropologia
2
© LSousa, 2006. Conversar a brinca r, trabalho de campo e parceiros locais.
Pressupostos do tema
Objetivos gerais:
2
Sousa (2010): durante o meu trabalho de campo a expressão “conversar a brincar” era usada pelos
meus interlocutores para se referirem a uma conversa sem compromisso, sem desvendar aspetos
sensíveis do saber esotérico, sem revelar os segredos. Por vezes este era um caminho, um prelúdio
para uma entrevista formal, outras vezes era só isso mesmo, conversar e conviver.
7
Tema 1.1 A antropologia e a compreensão do mundo contemporâneo
Introdução
O que é a antropologia, para que serve, e qual o seu lugar nas ciências sociais? Neste
capítulo introdutório iremos tentar analisar estas questões, procurando compreender o que
é a antropologia, quem nela participa e está envolvido, as suas especificidades e
diversidades.
Falar de antropologia no sentido geral implica compreender que o termo envolve um
conjunto de interesses e de práticas variados, mas que se integram, enquanto temas de
estudo. De uma forma global a antropologia emerge como o estudo da humanidade, das
sociedades humanas e das suas culturas. Tema vasto, demasiado vasto, para poder ser
abarcado por uma só pessoa. Vamos analisar essa dimensão analisando o texto de Mércio
Pereira Gomes sobre a abrangência da antropologia:
Antropologia é uma palavra iluminante que chama a atenção pelos dois substantivos
que a compõem, ambos de origem grega: anthropos =homem; logos = estudo, e
também “razão”, “lógica”. “Estudo do homem” ou “lógica do homem” são duas
possíveis definições distintas, porém convergentes, daquilo que se entende por
Antropologia. No primeiro caso, a Antropologia faz parte do campo das ciências –
ciência humana – tal como a Sociologia ou a Economia; no segundo caso, ela está
relacionada a temas que estão no campo da Filosofia, da Lógica, da Metafísica e da
Hermenêutica, como se fora uma coadjuvante mais sensitiva.
Apesar de sua etimologia, não foram os geniais gregos, criadores da filosofia, que
inventaram a Antropologia. Eles se consideravam tão superiores aos povos e nações
vizinhos, seus contemporâneos, a quem chamavam de “bárbaros”, que mal tinham
olhos para os ver e os apreciar. Para surgir a Antropologia – cuja característica mais
essencial é mirar o Outro como um possível igual a si mesmo – seria preciso um tempo
de dúvidas e ao mesmo tempo de abertura ao reconhecimento do valor próprio de
outras culturas. Tal tempo só surgiria séculos depois, quando a Europa, em vias de
perder sua velha identidade medieval, ainda incerta sobre o que viria a ser, duvidou de
si mesma e pôde assim olhar e conceber outros povos, ao menos teoricamente, como
variedades da humanidade, cada qual com seus próprios valores e significados. O
pensar antropológico, o pensar sobre o aparente paradoxo de o homem ser um só,
8
como ser-espécie da natureza, e ao mesmo tempo ser múltiplo em suas expressões
coletivas, a cultura; o pensar sobre o diferente ser o mesmo; sobre as potencialidades
reais e recônditas de cada cultura – é fruto desse momento criativo do Iluminismo.
Assim, no seu primórdio iluminista, a Antropologia se situa no campo da Filosofia,
da especulação sobre o homem e suas possibilidades de ser e de agir. É
um método de conceber o homem em sua variedade cultural e
reconhecer nessa variedade faces diferentes de um mesmo ser. Para
falar em termos filosóficos, a Antropologia é um modo de pensar a
variedade do homem, outras culturas, o Outro, num mesmo patamar
em que se coloca a cultura de onde surge esse pensar, a cultura européia,
isto é, o Mesmo. Podemos, brincando com as palavras, dizer que, para
a Antropologia, o Mesmo e o Outro são o Mesmo; ou, o Outro e o
Mesmo são o Outro.
9
injetar na filosofia os conceitos obtidos pela observação e pela prática nos trabalhos
empíricos que dão sustentação ao pensar antropológico.
10
e, ao mesmo tempo, agir. Num sentido empírico, cultura é tudo que o
homem faz parcialmente consciente e parcialmente inconsciente, além
daquilo que sua natureza biológica o permite fazer. Fazer significa não
somente produzir os meios de sua sobrevivência (Economia), mas
também pensar (Filosofia), desejar (Psicologia) e relacionar-se uns com
os outros (Sociologia e Política). Adicione-se a esses atributos a idéia de
que o homem, embora pense e faça as coisas como ser individual, tem
seu pensamento e seu comportamento condicionados por sua existência
numa coletividade, a sociedade. Tal explicação pode parecer autoevidente, mas serve
para identificar um dos temas mais importantes da
sociologia, que é entender a relação do indivíduo com a sociedade.
11
antropologia foi um dos utensílios das políticas científicas coloniais que visavam conhecer
para dominar.
Após a II Grande Guerra, com a independência da maioria dos países colonizados, a
antropologia parece ter perdido o seu espaço de trabalho tradicional. Esta “crise” levou a
que a antropologia se recentra-se sobre as sociedades de que era originária (até então um
reduto da etnologia e do folclore), estudando quer a sua diversidade étnica quanto social, em
contexto rural e, progressivamente, em contexto urbano, considerando as culturas e
subculturas que lhe são específicas.
O que tem a antropologia de especial? O que estuda ou o como o faz? A resposta
dada por Tim Ingold (in Barnard, 2006, ix-xii) parece-nos pertinente: a antropologia não é o
mero estudo das pessoas, mas o estudo com as pessoas. De facto, adquirimos o
conhecimento do que investigamos da mesma forma que as pessoas que estudamos,
participando no processo e vivência da sua experiência de vida. Aprendemos assim a
aprender, tal como se aprende e vive a cultura, enquanto processos dinâmicos. Este facto
obriga-nos a reconhecer que não é possível dar a conhecer, de uma forma absoluta, tudo o
que existe em antropologia através de um manual ou de uma unidade curricular. A
antropologia não é um conjunto de dados que se podem transmitir. Todavia, como refere
Tim Ingold, será uma das poucas em que este processo de criação de ciência se faz de forma
partilhada. De facto, sendo docente e estudante parte de uma sociedade ou cultura, ambos
partilham similaridades e diferenças, podendo dar contributos para a interpretação.
Porquê estudar a antropologia. Seguindo Barnard (2006, 3-4) poderemos dizer que esta
nos permite:
1. Adquirir uma compreensão da sociedade;
2. Conhecer melhor as sociedades do terceiro mundo, obtendo assim uma mais-valia
em estudos relativos o desenvolvimento social;
3. Aperfeiçoar competências de raciocínio e de debate;
4. Como suplemento de outras áreas como a arqueologia, psicologia, sociologia, etc.;
5. Algo completamente diferente!
O estudo da antropologia permite-nos abordar a dimensão da alteridade*. O outro foi, e
é, ainda, dada a imaginação, e plasticidade da cultura*, a referência da antropologia. No
cerne da antropologia está esta necessidade ou curiosidade em compreender o Outro, facto
que não faz somente com que possamos adquirir dados sobre este, mas também refletir
sobre o Nós.
12
Esta dimensão reflexiva da antropologia, descurada por vezes, é essencial na
possibilidade de um diálogo intercultural. Esta relação entre o Outro e o Nós desenvolve-se
numa dicotomia: diferença – semelhanças. O mundo é classificado de diferentes formas de
acordo com diferentes culturas. A aprendizagem da língua e da cultura (enculturação*) é um
processo comum a todas as culturas e sociedades. Todavia, as categorias dadas às diferentes
práticas e conceções podem variar. Por exemplo as formas de cumprimento são variadas,
mas todas manifestam uma forma de estabelecer uma relação. Às formas comuns de práticas
culturais são designadas de universais de cultura, modos de pensar e de comportamento
que são idênticos.
Retomando a frase de Ingold, e tentando agora discernir quem participa no trabalho
antropológico: somos tentados a dizer, e diz-se, que a antropologia é o que os
antropólogos/antropólogas fazem… trabalham no “campo”, comparam culturas/sociedades,
procuram compreender as suas práticas de uma forma predominantemente indutiva,
interpretativa, ao contrário da postura inicial dos evolucionistas do século XIX,
eminentemente dedutiva, extrapolando da teoria e conformando os factos a esta.
Apesar da evolução ocorrida na prática antropologia, da sua busca do Outro distante até
à sua reconversão nos terrenos ocidentais, os “nativos”, os “índios” persistem como fronte
de estudo e saber, porquanto, presentes em sociedades em que são parte essencial da sua
população, e gerando já os seus próprios antropólogos. O testemunho de Roberto da Matta
mostra-nos o seu papel na antropologia atual:
Descobrimos também, pelo estudo destas formas que julgamos “primitivas”,
“selvagens” ou “simples”, que os valores que designamos pelos nomes de “honra”,
“verdade”, “justiça”, “dignidade”, o sentir-se parte de uma totalidade viva e atuante,
são o centro mesmo da sociabilidade humana, presentes onde quer que vivam
humanidades, sob quaisquer condições, debaixo de qualquer sol. Nossas
diferenciações ─ eis aqui a mensagem deste livro ─ são diferenciações externas, de
posição relativa a certos temas, problemas e materiais. Elas nada têm a ver de
substantivas e não são essenciais ou estão fundadas num tempo histórico reificado,
como imaginavam e acreditavam os mestres do passado.
Disso decorre que nós estudamos os chamados “índios” não porque e
exclusivamente eles estão desaparecendo, ou só para denunciarmos as injustiças que
sofrem, mas para realmente aprender com eles as lições que não sabemos e que, por
causa disso, ficam implícitas na nossa sociedade.
A Antropologia Social autêntica só pode acontecer quando estamos plenamente
convencidos da nossa ignorância. É claro que devemos defender os direitos das nossas
populações tribais. É evidente que devemos chamar atenção e denunciar as injustiças
contra elas. Mas isso não deve ser feito em nome de uma atitude condescendente,
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superior, como se eles fossem uma espécie de humanidade em extinção, liquidada por
seu próprio atraso cultural. Como se eles fossem animais de estimação como o bisão
ou o elefante, que nós temos a obrigação estética de defender e proteger. Nada disso.
Nosso estudo e nossa atenção para com as sociedades tribais devem estar fundados na
troca igualitária de experiências humanas. No fato, como já disse, que podemos
realmente aprender e nos civilizar com elas. É precisamente essa experiência
genuinamente humana e equivalente que a Antropologia decidiu recuperar. E é ela
que deve ser o centro da motivação ideológica a nos conduzir no sentido da denúncia
de todas as injustiças contra os índios e todas as minorias oprimidas. (da Matta, 1981,
2-3)
14
específica, por exemplo: etnicidade, relações de género, parentesco, antropologia
económica, antropologia aplicada, etc.
A antropologia, na sua dimensão mais geral, engloba um conjunto de campos de
investigação que podem, ou não, ser desenvolvidos em comum de acordo com interesses
temáticos e tradições nacionais. A abordagem de caráter integrado mais conhecida é a que
prevalece em países do continente norte-americano. Esta abordagem dos quatro campos de
estudo foi instituída, em grande parte, por Franz Boas, sendo a forma mais comum de
organização do departamento de antropologia nos EUA. Os campos de investigação
tradicionais são: a antropologia física ou biológica; a pré-história ou antropologia; a
antropologia linguística, a antropologia psicologia, e por fim, a antropologia cultural ou social
(a antropologia cultural é a denominação mais comum na América do Norte, enquanto que a
antropologia social é mais comum no Reino Unido e outras partes. Para analisarmos um
pouco mais esta dimensão integradora e interdisciplinar da antropologia vamos ler um
excerto de um texto de Custódio Gonçalves (1997):
15
A segunda área é a da antropologia pré-histórica, que estuda o homem através dos
vestígios materiais e de todos os traços da sua actividade passada. 0 seu projecto,
ligado à arqueologia, visa reconstruir as sociedades desaparecidas, quer nas suas
técnicas e organizações sociais, quer nas suas produções culturais e artísticas. Assim
como o historiógrafo trabalha a partir do acesso directo aos textos, o antropólogo
social beneficia de testemunhos vivos, também o antropólogo da pré-história e o
arqueólogo efectuam um trabalho de campo, recolhendo pessoalmente os objectos
no solo.
A terceira área é constituída pela antropologia linguística. A língua faz parte
integrante do património cultural de uma sociedade. Ela permite compreender como
os homens pensam o que vivem e o que experimentam, ou seja, as suas categorias
psicoafectivas e psico-cognitivas, o que constituí o campo específico da
etnolinguística; como exprimem o universo e o social através do estudo da literatura
escrita e da tradição oral; e enfim, como interpretam o seu saber e o seu agir,
incluindo as técnicas modernas de comunicação de massa.
A estas três áreas de investigação, consideradas, juntamente com a antropologia
social e cultural, como vectores constitutivos do campo global da antropologia, há
que acrescentar a dimensão da antropologia psicológica, não enquanto estudo do
homem «moral» nas suas invariantes e variações transculturais e transhistóricas, que
relevam quer de uma orientação genética e histórica, quer de uma perspectiva
estática e descritiva, mais do domínio estrito da psicologia e da psicanálise, mas
enquanto observação e estudo dos comportamentos conscientes e inconscientes dos
seres humanos particulares, sem os quais não é possível a análise do homem na sua
totalidade e diversidade.
Finalmente, a última área é constituída pelo domínio específico da antropologia
social e cultural, designada, ao longo deste trabalho, pelo termo antropologia, sem
outra precisão ou especificação. O seu objecto específico é a análise dos modos de
produção e de circulação dos bens económicos, das técnicas materiais e culturais, da
organização política, social e jurídica, dos sistemas de conhecimento, das
representações simbólicas e religiosas, da língua, dos comportamentos e das criações
artísticas de uma sociedade. A antropologia não consiste só em descrever um
inventário destes domínios, mas em analisar e explicar as interrelações que os ligam,
de modo a evidenciar a especificidade de uma sociedade. É, justamente, esta
perspectiva de totalidade, numa abordagem integrativa e interdisciplinar, que a
diferencia de outras perspectivas e abordagens sectoriais.
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afinidades com as várias disciplinas. Vamos de seguida listar algumas, seguindo Barnard
(2006, 8-9):
17
de tudo isto... Nos finais do século XIX e inícios do século XX o estudo dos usos e costumes
dos povos “primitivos” era efetuado pela etnografia. À etnologia correspondia à compilação
desses dados etnográficos. Nesta altura a noção de antropologia estava essencialmente
associada às dimensões somáticas e biológicas do homem. Ainda hoje, o termo antropologia
compreende nos EUA ao estudo da evolução biológica e cultural da humanidade. O termo
antropologia cultural desenvolve-se como uma resenha comparativa dos elementos
facultados pela etnologia. Por sua vez, na Inglaterra, o termo que ganhou lugar foi o de
antropologia social, uma vez que, como veremos, o seu estudo privilegiado é o dos factos
sociais e instituições.
Em França o termo etnologia predomina no sentido em que o atribuímos à
antropologia social e cultural. O termo antropologia, compreendida com o estudo dos seres
humanos em todas as suas dimensões foi introduzido por Claude Lévi-Strauss nos anos 50.
Antropologia social e cultural como sinónima de etnologia.
A etnografia, etnologia e antropologia podem também ser interpretadas como
etapas da investigação antropológica. Como refere Lévi-Strauss (1996) a etnografia
corresponde à fase de investigação no terreno, a etnologia a uma primeira fase de
comparação e síntese dos dados num âmbito regional e a antropologia, social ou cultural, a
uma última fase de síntese global.
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Acresce que a sua utilização não é exclusiva da disciplina, o que adiciona ainda mais
dilemas no consenso. Alguns autores proeminentes não atribuíram qualquer valor ao
conceito de cultura, tradicionalmente associado ao debate na escola francesa e americana, e
valorizando sobretudo o conceito de sociedade. Radcliffe-Brown é um bom exemplo pois
refutava qualquer valor ao termo designando a cultura como uma “abstracção vaga”
(Barnard e Spencer, 2004, 140).
3
Entender o conceito na sua aceção antropológica é assim fundamental. Recorre-se
com frequência a metáforas para explicar o que é a cultura e a sua densidade. Uma das mais
interessantes a este respeito é a da cultura como um iceberg! A ideia é a de que, tal como
um iceberg, aquilo que vemos da cultura é somente a sua superfície, sendo por vezes difícil
imaginar e conceber o que se oculta por abaixo da linha de água.
3
Texto base usado neste tema: Sousa, Lúcio. 2009. Antropologia cultural. Caderno de Apoio. Lisboa:
Universidade Aberta. ISBN: 978-972-674-551-8
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No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era
utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto
a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um
povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo
inglês Culture, que "tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo
que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade" .
Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de
realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura
em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos.
(Laraia, 1986, 25)
20
Hoje em dia esta distinção reencontra críticas acérrimas que defendem a necessidade
de ver o Homem nesta dupla dimensão. Em Antropologia o conceito continua a ser frutífero,
pelo menos nas polémicas, nomeadamente com o discurso pós-moderno.
Um aspeto que tem gerado muito debate é a análise do nascimento da cultura, o
momentoem que esta surge no universo humano. Roque Laraia sintetiza algumas destas
posições:
“Claude Lévi-Strauss (…) considera que a cultura surgiu no momento em que o homem
convencionou a primeira regra, a primeira norma. Para Lévi-Strauss, esta seria a
proibição do incesto, padrão de comportamento comum a todas as sociedades
humanas. Todas elas proíbem a relação sexual de um homem com certas categorias de
mulheres (entre nós, a mãe, a filha e a irmã).”
“Leslie White (…) considera que a passagem do estado animal para o humano ocorreu
quando o cérebro do homem foi capaz de gerar símbolos. ´Todo comportamento
humano se origina no uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou nossos
ancestrais antropóides em homens e fê-los humanos. Todas as civilizações se
espalharam e perpetuaram somente pelo uso de símbolos.... Toda cultura depende de
símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura e o uso de
símbolos que torna possível a sua perpetuação. Sem o símbolo não haveria cultura, e o
homem seria apenas animal, não um ser humano.... O comportamento humano é o
comportamento simbólico. Uma criança do gênero Homo torna-se humana somente
quando é introduzida e participa da ordem de fenômenos superorgânicos que é a
cultura. E a chave deste mundo, e o meio de participação nele, é o símbolo”
Com efeito, temos de concordar que é impossível para um animal compreender os
significados que os objetos recebem de cada cultura. Como, por exemplo, a cor preta
significa luto entre nós e entre os chineses é o branco que exprime esse sentimento.
Mesmo um símio não saberia fazer a distinção entre um pedaço de pano, sacudido ao
vento, e uma bandeira desfraldada. Isto porque, como afirmou o próprio White,
"todos os símbolos devem ter uma forma física, pois do contrário não podem penetrar
em nossa experiência, mas o seu significado não pode ser percebido pelos sentidos".
Ou seja, para perceber o significado de um símbolo é necessário conhecer a cultura
que o criou. (Laraia, 1986, 56-57)
(…) a aceitação de um ponto crítico, expressão esta utilizada por Alfred Kroeber ao
conceber a eclosão da cultura como um acontecimento súbito, um salto quantitativo
na filogenia dos primatas: em um dado momento um ramo dessa família sofreu uma
21
alteração orgânica e tornou-se capaz de "exprimir-se, aprender, ensinar e de fazer
generalizações a partir da infinita cadeia de sensações e objetivos isolados".
Em essência, a explanação acima não é muito diferente da formulada por alguns
pensadores católicos, preocupados com a conciliação entre a doutrina e a ciência,
segundo a qual o homem adquiriu cultura no momento em que recebeu do Criador
uma alma imortal. E esta somente foi atribuída ao primata no momento em que a
Divindade considerou que o corpo do mesmo tinha evoluído organicamente o
suficiente para tornar-se digno de uma alma e, conseqüentemente, de cultura.
O ponto crítico, mais do que um evento maravilhoso, é hoje considerado uma
impossibilidade científica: a natureza não age por saltos. O primata, como ironizou um
antropólogo físico, não foi promovido da noite para o dia ao posto de homem. O
conhecimento científico atual está convencido de que o salto da natureza para a
cultura foi contínuo e incrivelmente lento.
Clifford Geertz, antropólogo norte-americano, mostra em seu artigo "A transição para
a humanidade" como a paleontologia humana demonstrou que o corpo humano
formou-se aos poucos. O Australopiteco Africano (cujas datações recentes realizadas
na Tanzânia atribuem-lhe uma antigüidade muito maior que 2 milhões de anos),
embora dotado de um cérebro 1/3 menor que o nosso e uma estatura não superior a
1,20m, já manufaturava objetos e caçava pequenos animais. Devido à dimensão de seu
cérebro parece, entretanto, improvável que possuísse uma linguagem, na moderna
acepção da palavra. O Australopiteco parece ser, portanto, uma espécie de homem
que evidentemente era capaz de adquirir alguns elementos da cultura — fabricação de
instrumentos simples, caça esporádica, e talvez um sistema de comunicação mais
avançado do que o dos macacos contemporâneos, embora mais atrasado do que a fala
humana, porém incapaz de adquirir outros, o que lança certa dúvida sobre a teoria do
ponto crítico.
O fato de que o cérebro do Australopiteco media 1/3 do nosso leva Geertz a concluir
que "logicamente a maior parte do crescimento cortical humano foi posterior e não
anterior ao início da cultura". Assim, continua: "O fato de ser errónea a teoria do
ponto crítico (pois o desenvolvimento cultural já se vinha processando bem antes de
cessar o desenvolvimento orgânico) é de importância fundamental para o nosso ponto
de vista sobre a natureza do homem que se torna, assim, não apenas o produtor da
cultura, mas também, num sentido especificamente biológico, o produto da cultura."
A cultura desenvolveu-se, pois, simultaneamente com o próprio equipamento
biológico e é, por isso mesmo, compreendida como uma das características da espécie,
ao lado do bipedismo e de um adequado volume cerebral. (Laraia, 1986, 58-59)
Laraia (1986, 2005) analisa em dois textos o que denomina as modernas teorias de
cultura. Seguindo de perto Roger Keesing o autor identifica duas grandes linhas
epistemológicas: uma que privilegia a noção de cultura como sistema adaptativo e outra que
a observa como idealista.
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Teorias da cultura
As teorias que consideram a cultura como um sistema adaptativo foram iniciadas por
neo-evolucionistas como Leslie White, e reformuladas por Sahlins, Harris, Carneiro,
Rappaport, Vayda e outros que, apesar das discrepâncias que apresentam entre si,
concordam em que:
“1. "Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos)
que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos
biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de
organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e
organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante."
2. “Mudança cultural é primariamente um processo de adaptação equivalente à
seleção natural." ("O homem é um animal e, como todos animais, deve manter uma
relação adaptativa com o meio circundante para sobreviver. Embora ele consiga esta
adaptação através da cultura, o processo ê dirigido pelas mesmas regras de seleção
natural que governam a adaptação biológica." B. Meggers, 1977)
3. "A tecnologia, a economia de subsistência e os elementos da organização social
diretamente ligada à produção constituem o domínio mais adaptativo da cultura. É
neste domínio que usualmente começam as mudanças adaptativas que depois se
ramificam. Existem, entretanto, divergências sobre como opera este processo. Estas
divergências podem ser notadas nas posições do materialismo cultural, desenvolvido
por Marvin Harris, na dialética social dos marxistas, no evolucionismo cultural de
Elman Service e entre os ecologistas culturais, como Steward."
4. "Os componentes ideológicos dos sistemas culturais podem ter conseqüências
adaptativas no controle da população, da subsistência, da manutenção do ecossistema
etc." (Laraia, 1986, 60-61)
23
(…) Esta abordagem antropológica tem se distinguido pelo estudo dos sistemas de
classificação de folk isto é, a análise dos modelos construídos pelos membros da
comunidade a respeito de seu próprio universo. Assim, para W. Goodenough, cultura é
um sistema de conhecimento: "consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer
ou acreditar para operar de maneira aceitável dentro de sua sociedade." Keesing
comenta que se cultura for assim concebida ela fica situada epistemologicamente no
mesmo domínio da linguagem, como um evento observável. Daí o fato de que a
antropologia cognitiva (a praticada pelos "novos etnógrafos") tem se apropriado dos
métodos lingüísticos, como por exemplo a análise componencial. (Laraia, 1986, 62)
(…) que define cultura como um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da
mente humana. O seu trabalho tem sido o de descobrir na estruturação dos domínios
culturais — mito, arte, parentesco e linguagem — os princípios da mente que geram
essas elaborações culturais." (…) Lévi-Strauss, a seu modo, formula uma nova teoria da
unidade psíquica da humanidade. Assim, os paralelismos culturais são por ele
explicados pelo fato de que o pensamento humano está submetido a regras
inconscientes, ou seja, um conjunto de princípios — tais como a lógica de contrastes
binários, de relações e transformações — que controlam as manifestações empíricas
de um dado grupo. (Laraia, 1986, 62-63)
A última das três abordagens é a que considera cultura como sistemas simbólicos. Esta
posição foi desenvolvida principalmente por dois antropólogos: Clifford Geertz e David
Schneider. O primeiro
(…) busca uma definição de homem baseada na definição de cultura. Para isto, refuta a
idéia de uma forma ideal de homem, decorrente do iluminismo e da antropologia
clássica, perto (na qual as demais eram distorções ou aproximações, e tenta resolver o
paradoxo (…) de uma imensa variedade cultural que contrasta com a unidade da espécie
humana. Para isto, a cultura deve ser considerada "não um complexo de
comportamentos concretos mas um conjunto de mecanismos de controle, planos,
receitas, regras, instruções (que os técnicos de computadores chamam programa) para
governar o comportamento". Assim, para Geertz, todos os homens são geneticamente
aptos para receber um programa, e este programa é o que chamamos de cultura. E esta
formulação — que consideramos uma nova maneira de encarar a unidade da espécie —
permitiu a Geertz afirmar que "um dos mais significativos fatos sobre nós pode ser
finalmente a constatação de que todos nascemos com um equipamento para viver mil
vidas, mas terminamos no fim tendo vivido uma só!" Em outras palavras, a criança está
apta ao nascer a ser socializada em qualquer cultura existente. Esta amplitude de
24
possibilidades, entretanto, será limitada pelo contexto real e específico onde de fato ela
crescer.
Voltando a Keesing, este nos mostra que Geertz considera a abordagem dos novos
etnógrafos como um formalismo reducionista e espúrio, porque aceitar simplesmente
os modelos conscientes de uma comunidade é admitir que os significados estão na
cabeça das pessoas. E, para Geertz, os símbolos e significados são partilhados pelos
atores (os membros do sistema cultural) entre eles, mas não dentro deles. São públicos
e não privados. Cada um de nós sabe o que fazer em determinadas situações, mas nem
todos sabem prever o que fariam nessas situações. Estudar a cultura é portanto estudar
um código de símbolos partilhados pelos membros dessa cultura. (Laraia, 1986, 63-64)
25
A cultura é partilhada
A cultura não pode existir sem sociedade, ela é aprendida socialmente.
Não há sociedades humanas conhecidas que não possuam cultura.
Nem tudo é uniforme dentro de uma cultura.
A cultura é aprendida,
A cultura é aprendida através da aprendizagem social mais do que herdada
biologicamente, nomeadamente, através da linguagem.
O processo de transmissão de cultura de uma geração a outra chama-se
enculturação.
A cultura é integrada
Todos os aspetos da cultura funcionam como um todo integrado.
A mudança numa parte de uma cultura usualmente afeta outras partes.
Um grau de harmonia é necessário em qualquer cultura que funcione, mas não é
exigível uma harmonia completa.
Há uma seletividade na seleção, consciente e desejada ou inconsciente, de padrões,
de valores, e a sua adoção numa determinada cultura.
26
É ainda possível classificar a cultura (Marconi e Presotto, 1987, 46-47) analisando a
sua existência sensível e ideal:
Cultura
Material Imaterial
(Ergologia) (aspectos Real Ideal
animológicos)
A cultura material (ergologia) consiste nas “(…) coisas materiais, bens tangíveis,
incluindo instrumentos, artefactos e outros objetos materiais, fruto da criação humana e
resultante de determinada tecnologia.”
A cultura imaterial (aspetos animológicos) refere-se aos “(…) elementos intangíveis
da cultura, que não têm substancia material. Entre eles encontram-se as crenças,
conhecimentos, aptidões, hábitos, significados, normas, valores. (…)
A cultura real “é aquela em que, concretamente, todos os membros de uma
sociedade praticam ou pensam em suas atividades cotidianas (…)”. Ela “não pode ser
percebida em sua totalidade, apenas parcialmente (…) ” sendo difícil para o estudo científico
a sua identificação pois “(…) o real sempre é apresentado como as pessoas o conhecem ou
pensam que seja”. Como referem Hoebel e Frost (2001, 27): “
Deve-se (…) ter em mente que o que nos ocupa na Antropologia é a construção de
cultura e não a cultura real. A construção de cultura apresenta a cultura real com a
precisão que a metodologia científica permite.”
27
Componentes da cultura
Conhecimentos
Crenças
Valores
Normas
Símbolos
Valores: o termo é empregue para indicar objetos ou situações consideradas boas, desejáveis
ou apropriadas. O valor expressa sentimentos e incentiva e orienta o comportamento
humano. Há, segundo as autoras, dois elementos no valor: um emocional e outro ideacional.
Os valores variam de acordo com a importância que lhes é atribuída pelos membros da
sociedade pelo que a sua medição é difícil mas a sua existência é passível de ser reconhecida.
28
a)“arbitrários – na (…) medida em que não têm relação obrigatória com as
propriedades físicas dos fenômenos que os recebem. Fora do campo linguístico, a
ligação entre símbolo e objecto caracteriza-se pela total ausência de afinidade
intrínseca.
b)partilhados – quando o símbolo tem o mesmo significado para diferentes culturas
(geral) ou para determinada sociedade (particular).
c)Referenciais – quando os símbolos se referem a uma coisa específica. ” (Marconi e
Presotto, 1987, 50)
29
acontece e a própria prática de alguns as relacionarem com castas, grupos regionais, étnicos
e classes sociais tende a passar uma imagem pejorativa (questão que analisaremos no Tema
5).
A diversidade cultural, a variabilidade das formas culturais, não esconde o facto de
que existem traços comuns entre todas as culturas. A antropologia estuda tanto esta
diversidade como esta identidade comum denominada universais de cultura4. Embora esta
“tradição” antropológica de listar os temas seja antiga, ela foi objeto de uma sistematização
por Murdock (1945) listou 67 universais de cultura: Entre estes incluem-se:
4
Ler: Focalizar o que é comum aos seres humanos, Entrevista a Christoph Antweiler. Disponível
online: http://www.antropologi.info/blog/anthropology/pdf/Entrevista-Christoph-Antweiler.pdf
5
Há exceções ao tabu do incesto, como nos casos históricos conhecidos entre a realeza sagrada do
Egipto, Hawai e Incas. No Bali também há prerrogativas no caso dos irmãos gémeos, menino e menina,
considerados já “íntimos” no útero da mãe (Hoebel e Frost, 2001, 179)
30
proclama a sua superioridade, exalta as suas próprias divindades e descreve com desprezo os
outros.
O Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como
centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos
modelos, nossas definições que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a
dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza,
medo, hostilidade, etc. (Rocha, 1984, 7).
O etnocentrismo pode manifestar-se em diferentes níveis: tribo, aldeia, região,
nação/estado, minoria étnica, área cultural, classe ou indivíduo. O problema do
etnocentrismo é a intolerância cultural face à diversidade e o fechar as portas à curiosidade
pelo conhecimento, sendo uma atitude que pode resultar numa ideologia com práticas
racistas.
=
Nós Outro
Relação Relação omissa
considerada
=
Outro Nós
6
Uma minoria pode deter o poder, como no caso da África do Sul, governada até 1994 por uma
minoria de brancos.
7
Consultar, por exemplo Amin Maalouf e As cruzadas vistas pelos Árabes, Difel, 1990, ou Ana
Barradas, Ministros da Noite – Livro Negro da Expansão Portuguesa, Antígona 1992
31
O conceito de relatividade cultural afirma que os padrões do certo e do errado
(valores) e dos usos e atividades (costumes) são relativos à cultura da qual fazem
parte. Na sua forma extrema, esse conceito afirma que cada costume é valido em
termos de sei próprio ambiente cultural. (Hoebel e Frost, 2001, 22)
8
Obra disponível aqui: https://archive.org/details/ViveirosDeCastroEduardoAInconstnciaDaAlbook4me.org
32
instintivas selecionadas pela evolução que em regras de origem extra-somática
historicamente sedimentadas. […]
Em sentido particular, (uma) sociedade é uma designação aplicável a um grupo
humano com algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento
principalmente por reprodução sexual de seus membros; organização institucional
relativamente auto-suficiente e capaz de persistir para além do período de vida de um
indivíduo; distintividade cultural.
Aqui a noção pode ter como referentes principais o componente populacional, o
componente institucional-relacional ou o componente cultural-ideacional do grupo
(Firth 1951). No primeiro caso, o termo é usado como sinonimo de '(um) povo' visto
como um tipo específico de humanidade. No segundo, em que é equivalente a 'sistema*
ou 'organização* social, ele destaca o quadro sociopolítico da coletividade: sua
morfologia (composição, distribuição e relações dos subgrupos da sociedade enquanto
grupo máximo), o corpo de normas jurais (noções de autoridade e cidadania, regulação
do conflito, sistemas de status e papéis) e as configurações características das relações
sociais (relações de poder, formas de cooperação, modos de intercâmbio). No terceiro
caso — em que 'sociedade' é frequentemente substituída por 'cultura* — visam-se os
conteúdos afetivos e cognitivos da vida do grupo: o conjunto de disposições e
capacidades inculcadas em seus membros através de meios simbólicos variados, bem
como os conceitos e práticas que conferem ordem, significação e valor à totalidade do
existente.
33
Tema 1.2 A metodologia de investigação antropológica
9
Texto base: Sousa, Lúcio. 2007. A prática da Antropologia - Caderno de apoio. Lisboa: Universidade
Aberta.
34
O trabalho de campo envolve um número de etapas que convém reter (Ervin, 2000,
143 – 146). Embora elas não sejam lineares e a reflexibilidade seja é importante reter os
problemas associados com cada uma das fases.
O início do trabalho de campo é crucial, não só pelo processo de escolha do local de
trabalho, como pela ansiedade que envolve (de parte a parte) a entrada num meio social
novo. Há a necessidade de obter a permissão para ali estar (da comunidade, das entidades
locais e nacionais)10, explicar a presença no terreno aos membros da comunidade e estar
consciente de alguns fatores, a saber: a resposta pode ser relutante, ou inexistente; a
existência de resistências e dificuldades; o delicado processo de ganhar, e gerir, a confiança
por parte das pessoas da comunidade e conseguir familiaridade com o local.
Nesta fase pode ocorrer um “choque cultural” dada a necessidade de reajustar
comportamentos a novos hábitos e modos de agir (tanto na linguagem como na postura
corporal, etc.). O stress pode surgir, sobretudo quando as resistências são maiores e não se
vislumbra a confiança da parte das pessoas da comunidade para iniciar o trabalho. Ervin
(2000, 144) advoga que se deve elaborar um pequeno texto de uma página no máximo para
expor os objetivos da presença do antropólogo e do estudo em curso. No fundo o autor
reafirma os pressupostos éticos que devem imperar na relação com a comunidade e que já
analisamos igualmente com Willigen (1986).
Após o período de crise associado ao “choque cultural” e se esta fase for
ultrapassada, com a criação de laços de confiança é possível envolver-se no trabalho de
recolha de dados, por norma mais “factuais” no início de forma a não ferir suscetibilidades.
Este período é mais produtivo e a normalização da presença permite ganhar confiança e
euforia por parte do investigador o que pode levar a situações de identificação com o sujeito
de investigação e a registar impressões e factos enviesados. Alguns autores sugerem que o
investigador deve retirar-se do campo durante um período de tempo a fim de analisar os
dados obtidos e reavaliar o trabalho a realizar.
As fases finais da estadia devem incluir a confirmação de certas hipóteses, o que no
campo aplicado pode ser feito com base em inquéritos, de forma a confirmar ou invalidar
observações realizadas. No campo da antropologia aplicada é usual que, após a retirada do
10
Traube (1986) é um exemplo de como o terreno pode fazer inverter ou alterar os projetos iniciais. A
autora partiu para Timor para trabalhar numa determinada zona e, durante a sua estadia acabou por,
depois de passar ali algum tempo, deslocar-se para a área Mambae onde desenvolveu o seu estudo.
Em Sousa (2008 e 2010) poderão também ter a perceção do acesso ao terreno e de como se
desenvolvem expetativas mútuas em presença.
35
terreno para a redação do relatório, o antropólogo regresse ao terreno para o discutir com a
comunidade.
Observação e registo
11
Situação similar ocorreu durante a realização do trabalho de campo desenvolvido no mestrado do
desempenho do papel de auxiliar de “assistente social” numa organização de apoio aos refugiados.
Ocorrência descrita em Sousa (1999), ponto 1.2. Etapas da pesquisa.
36
Entrevistas a informantes qualificados
A entrevista e as questões
12
Claudine Friedberg, antropóloga francesa, foi sujeita a esta “avaliação” em 1971, na altura no Timor
Português. Tendo chegado à aldeia Bunak de Oeleu foi apresentada a um conjunto de homens, tendo-
lhe sido explicado quem eram e o que faziam. No momento em que se sentavam para comer foi-lhe
pedido que distribui-se a carne com ossos pelos comensais (entre os Bunak o corpo animal remete
para o “corpo social”, sendo cada parte do animal associada a uma determinada função e cargo
político-ritual). Ciente do teste a que estava submetida, procurou dar a carne com osso de acordo com
o que sabia das suas investigações noutros territórios Bunak. A distribuição foi aprovada e a
antropóloga tem a certeza que tal facto ajudou a desanuviar o momento e a comunicar com os seus
interlocutores [comunicação pessoal].
37
entrevista vai depender da autorização do entrevistado13 e da disponibilidade do
entrevistador em proceder posteriormente, se necessário, à sua transcrição (uma transcrição
poderá levar, dependendo da língua e das condições de gravação, o dobro do tempo real da
entrevista). A entrevista começa com comunicação da intenção e a preparação do
entrevistado. É importante esclarecer os objetivos da mesma de uma forma clara e sucinta e
estar pronto a responder a todas as questões que possam ser colocadas pelo entrevistado.
A preparação da entrevista incluirá a elaboração de um guião de entrevista que
contemplará os temas a serem desenvolvidos. Há que ter no entanto atenção que um longo
guião pode ser desmoralizador para o entrevistado. A forma como se abre o diálogo deve ser
centrada em questões sobre assuntos presentes e não controversos, questões mais
genéricas, que permitam colocar o entrevistado à vontade e ajudar a encaminhar o
entrevistador. Ervin (2000, 153) sugere com base em Patton (1980) tipos de questões que
devem ser colocadas:
O mesmo autor, citado por Ervin (2000, 154) defende que as questões devem ser
colocadas nos três tempos verbais, no presente, no passado e no futuro, de forma a apurar o
sentido que os sujeitos pretendem dar à sua vida com a experiência adquirida.
13
Durante o meu trabalho de campo para a dissertação de mestrado sobre refugiados, alguns dos
entrevistados não permitiram a gravação da entrevista (Sousa, 1999).
38
As últimas recomendações de Ervin (2000, 154) sobre a formulação das questões
são:
1. evitar questões dicotómicas que possam ser respondidas com sim ou não;
2. ter a certeza de que as questões são abertas de forma a possibilitar que o
entrevistado formule uma opinião sobre todos os potenciais pontos em estudo;
3. evitar questões que combinem muitas ideias, provocando confusão sobre o que
responder.
Grupos focais
Segundo Ervin (2000, 156) os grupos focais consistem num grupo de pessoas,
normalmente de seis a doze, com um estatuto de uma forma geral equivalente, com
interesses, características e conhecimentos comuns. Na entrevista, gerida pelo entrevistador,
cada participante deve ser capaz de expor as suas opiniões sobre um tema proposto e dentro
de um tempo definido. Esta abordagem é uma ferramenta útil e adaptável que pode ser
utilizada nas ciências sociais, aplicadas ou não. Em antropologia aplicada e em particular na
centrada em pesquisa de comunidades, é vantajosa em levantamentos de necessidades,
avaliação de programas e levantamentos de impactos sociais.
Grupos nominais
Os grupos nominais são uma forma mais estruturada de grupos focais, com os
mesmos princípios e com a mesma dimensão mas com um controlo muito maior da
interação dos participantes por parte do moderador com o objetivo de estabelecer
prioridades e consenso. Os grupos nominais são úteis pois permitem ultrapassar algumas das
dificuldades dos grupos focais, nomeadamente, a possibilidade de existirem rivalidades
interpessoais. Por vezes pode ser útil combinar as duas abordagens.
39
Delphi Groups ou conferências
O grupo Delphi é um grupo nominal realizado através de correio (ou por meios
informáticos). É anónimo mas interativo. É composto por participantes, até um número de
30, reconhecidos pelos seus conhecimentos ou capacidade para comentar de forma
pertinente o tema em investigação. É particularmente útil quando os participantes vivem
afastados uns dos outros mas apresenta a dificuldade destes terem necessariamente a
capacidade de expor de forma escrita as suas opiniões.
Indicadores sociais
Questionários
40
As amostras probabilísticas aumentam a validade do questionário e permitem a sua
generalização. Trata-se de amostras que pretendem assegurar que cada secção de uma
determinada população esteja representada na amostra. Considerando o estudo em causa e
os critérios de seleção estabelecidos é necessário que a população possa ser listada de modo
a ser selecionada a amostra representativa. No caso de não existirem listas exaustivas a
amostra será feita de forma aleatória dentro de determinados parâmetros que procuram
assegurar a representatividade da população. São as denominadas as amostras não
probabilísticas. Entre estas amostras incluem-se:
A questão do tempo é uma das mais prementes com que os antropólogos aplicados
têm que lidar. Nem sempre o tempo tradicional da pesquisa antropológica é compatível com
as necessidades das entidades que comissionam trabalhos de antropologia aplicada. Neste
contexto, alguns antropólogos tentaram desenvolver os parâmetros para uma pesquisa
rápida. Esta tem-se desenvolvido prioritariamente em trabalhos ligados às questões de
desenvolvimento nos países do “Terceiro Mundo”.
41
Este tipo de pesquisa funciona melhor quando há um claro entendimento do problema
central e o que se pretende é avaliar a sua contextualização local. Ervin (2000, 190) indica
como exemplos os estudos da epidemia de HIV/SIDA na área da saúde (ver o artigo de Bond,
1999) ou as questões da seca na agricultura. Há uma perceção do problema geral mas há que
equacionar a dimensão humana em contexto local e é esta a intervenção da antropologia
aplicada. Por norma estes estudos desenvolvem-se em períodos de uma a seis semanas.
Ervin (2000, 195) seguindo Harris et al. (1997) analisa os cuidados e critérios que
devem estar presentes neste tipo de estudo: fiabilidade, utilidade, viabilidade e propriedade.
Dados os constrangimentos de aplicação dos RAPs Harris e tal. (1997) referido por
Ervin (2000, 197) defende que esta abordagem tem mais hipóteses de sucesso quando
envolve um trabalho de equipa multidisciplinar, envolvendo várias técnicas de recolha de
dados e com alguns dos membros da equipa originários da cultura em causa.
42
Participatory Action Research14 - Pesquisa de Acção/intervenção participativa
Cada vez mais o processo de pesquisa e a sua propriedade tem passado para as mãos
de comunidades ou grupos de cidadãos que procuram influenciar a definição de políticas.
Ainda assim, há um elevado número de pessoas que não dispõem do poder e capacidade
organizacional para melhorar a sua situação e que se encontram excluídas ou marginalizadas
do processo de definição dos seus próprios problemas.
Muitos antropólogos têm desempenhado junto destes grupos ou comunidades um
papel relevante mas que é, simultaneamente, um desafio à sua prática tradicional pois os
sujeitos de investigação são os próprios proprietários e gestores da investigação. Em
antropologia a tradição de trabalho de parceria com os sujeitos teve início com Sol Tax nos
anos quarenta que com os seus alunos iniciou um trabalho nos EUA com os índios Fox e
Moquawkie. Neste trabalho eram definidos em conjunto os problemas que deviam ser
abordados. Esta área relaciona-se também com a antropologia e advocacia. Da mesma
forma, no Brasil, Paulo Freire procurou na educação de adultos consciencializar os
camponeses para ultrapassarem a sua marginalidade e exploração (ver Carmo, 1999)
14
Também referida como Action anthropology “o ramo da antropologia aplicada, ou da antropologia
aliada à antropologia aplicada, que procura combater ameaças diretas a grupos populacionais. A
Antropologia de ação procura assim usar o conhecimento antropológico com objetivos políticos tendo
por base um comprometimento moral.” (Barnard e Spencer, 2002, 594)
43
4. é um procedimento que cria um grande reconhecimento das capacidades da
comunidade;
5. é um processo de investigação científica que representa a democratização da
pesquisa;
6. os investigadores exteriores à comunidade também experimentam grandes
mudanças no seu papel;
7. a ação participativa está normalmente relacionada com a advocacia.
Segundo o mesmo autor (2000, 201) os principais desafios que a pesquisa participativa
coloca ao antropólogo são:
Licia Valladares
Enfim o leitor brasileiro tem acesso a Street corner society de William Foote Whyte, um
clássico dos estudos urbanos, obrigatório em todo curso de métodos qualitativos e
pesquisa social. Gilberto Velho, autor da apresentação e responsável pela coleção
“Antropologia Social” da Jorge Zahar, tomou a iniciativa de fazer traduzir a edição de
1993, comemorativa dos cinqüenta anos da primeira publicação do livro. A primorosa
tra dução inclui anexos que o próprio autor foi acres- centando nas várias reedições do
44
livro, referentes à prática do trabalho de campo, ao depoimento de um dos personagens
e à sua lista de publica- ções. Além de um índice remissivo, peça rara entre as
publicações brasileiras, mas de uso fundamental quando se quer realizar uma leitura
compreensiva de uma obra.
Originalmente publicado em 1943, o texto é não apenas atual pela temática que aborda
– a juventude, a organização social das gangs e dos bairros pobres –, mas também um
livro funda- mental para aqueles que fazem trabalho de campo nas cidades, realizando o
que os norte-americanos denominam anthropology at home. É também de grande
importância para os sociólogos urbanos que cada dia aderem mais aos métodos
qualitativos e aos estudos de caso e se interessam pelo tema das redes sociais, da
juventude, da política local e da territorialização da pobreza. O subtítulo – A estrutura
social de uma área urbana pobre e degradada – chama a atenção para a importância
atribuída pelo autor aos temas da estrutura e da mobilidade social, normalmente
considerados temáticas próprias da sociologia.
William Foote Whyte, filho de classe média alta norte-americana, pesquisou nos anos de
1930 uma área pobre e degradada da cidade de Boston, onde morava. Conhecido como
um dos slums mais perigosos da cidade e sobre o qual circulavam várias idéias
preconcebidas e estigmatizantes, o bairro italiano é pouco a pouco “desbravado” pelo
aprendiz de pesquisador que apenas o conhecia por “ouvir dizer”. Ao mesmo tempo em
que se insere na localidade e vai redefinindo os objetivos de sua pesquisa, dá tropeços
no convívio com os moradores, aprendendo a pensar e a refletir sobre a natureza de
suas relações com os informantes. Aos poucos vai sendo aceito, muda-se inclusive para
Cornerville, mas se dá conta de que é funda- mental poder contar com um intermediário
para realizar sua observação. “Doc”, termo que define um informante-chave, simboliza
esse mediador, que garante o bom acesso à localidade e/ou ao grupo social em estudo.
Desempenha também o papel de conselheiro e “protetor”, defendendo o pesquisador
contra as intempéries e os imponderáveis próprios ao trabalho de campo. Após três
anos de convívio e familiaridade com os diferentes grupos informais e instituições que
atuavam e estruturavam a área (clubes sociais, centro comunitário, organizações
informais etc.), Foote Whyte deixou o bairro para dedicar-se à difícil tarefa de redigir sua
obra. Saída difícil e dolorosa para o observador participante, mas facilitada pelo fato de
o jovem pesquisador mudar-se para Chicago, onde se inscreve como aluno de
doutorado na universidade onde Robert Park havia bem marcado sua passagem.
Para além do interesse temático, este livro constitui um verdadeiro guia da observação
participante em sociedades complexas. Minha opção será a de insistir na contribuição
metodológica do autor, tendo em vista a verdadeira “moda” no Brasil de estudos de
caso em “comunidades carentes” ou em territórios urbanos demarcados social e
geograficamente.
45
1) A observação participante, implica, necessariamente, um processo longo. Muitas
vezes o pesquisador passa inúmeros meses para “negociar” sua entrada na área. Uma
fase exploratória é, assim, essencial para o desenrolar ulterior da pesquisa. O tempo é
também um pré-requisito para os estudos que envolvem o comportamento e a ação de
grupos: para se compreender a evolução do comportamento de pessoas e de grupos é
necessário observá-los por um longo período e não num único momento (p. 320).
2)O pesquisador não sabe de antemão onde está “aterrissando”, caindo geralmente de
“páraquedas” no território a ser pesquisado. Não é espera- do pelo grupo,
desconhecendo muitas vezes as teias de relações que marcam a hierarquia de poder e a
estrutura social local. Equivoca-se ao pressupor que dispõe do controle da situação.
4)Por isso mesmo o pesquisador deve mostrar-se diferente do grupo pesquisado. Seu
papel de pessoa de fora terá que ser afirmado e reafirmado. Não deve enganar os
outros, nem a si próprio. “Aprendi que as pessoas não esperavam que eu fosse igual a
elas. Na realidade estavam interessadas em mim e satisfeitas comigo porque viam que
eu era diferente. Abandonei, portanto, meus esforços de imersão total” (p. 304).
5)Uma observação participante não se faz sem um “Doc”, intermediário que “abre as
portas” e dissipa as dúvidas junto às pessoas da localidade. Com o tempo, de
informante-chave, passa a colaborador da pesquisa: é com ele que o pesquisa- dor
esclarece algumas das incertezas que permanecerão ao longo da investigação. Pode
mesmo chegar a influir nas interpretações do pesquisa- dor, desempenhando, além de
mediador, a função de “assistente informal”.
6)O pesquisador quase sempre desconhece sua própria imagem junto ao grupo
pesquisado. Seus passos durante o trabalho de campo são conhecidos e muitas vezes
controlados por membros da população local. O pesquisador é um observador que está
sendo todo o tempo observado.
7)A observação participante implica saber ouvir, escutar, ver, fazer uso de todos os
sentidos. É preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, assim como
que perguntas fazer na hora certa (p. 303). As entrevistas formais são muitas vezes
desnecessárias (p. 304), devendo a coleta de informações não se restringir a isso. Com o
46
tempo os dados podem vir ao pesquisador sem que ele faça qualquer esforço para obtê-
los.
Outro aspecto importante diz respeito à atualidade do livro e sua pertinência para
entender áreas pobres e o mundo popular no Brasil de hoje. O diagnóstico oferecido
pelo autor contra- põe-se à imagem produzida pelo senso comum, que considera as
áreas pobres exclusivamente um problema: degradadas, homogêneas, desorganiza- das,
caóticas e fora da lei, devendo necessariamente ser “ajudadas” uma vez que
“abandonadas à sua própria sorte” nunca se desenvolverão. Vistas de dentro, e a partir
do olhar arguto do cientista social, tem-se outra visão: tais localidades corresponderiam
47
a áreas onde coexistem espaços e grupos locais diferenciados porém estruturados a
partir de redes de relações sociais. A desorganização social não é, portanto, a tônica
geral – o que não significa negar a existência do conflito entre os grupos. Foote White
não tem, dessa forma, nem uma visão “miserabilista” nem populista dos pobres. O autor
insiste na importância da sociabilidade que ocorre no espaço público do mundo popular,
na “sociedade da esquina” para usar seu próprio linguajar. Pois é na esquina, no espaço
informal, que as decisões são tomadas, que os grupos se estruturam e que as relações
sociais se constroem e se destroem.
Que este livro sirva de “aviso” e inspiração a todos aqueles que queiram se lançar na
aventura da observação participante.
48
2.Teorias e práticas antropológicas
Pressupostos do tema
Este tema pretende proporcionar uma visão panorâmica dos percursos teóricos da
Antropologia e discutir algumas das questões mais pertinentes no seu desenvolvimento. De
seguida é analisada a antropologia aplicada, identificando o seu propósito e o papel dos
antropólogos.
Objetivos gerais:
49
2.1 Teorias clássicas e debates contemporâneos
A “pré-história” da Antropologia
50
tão homens quanto os da Europa e tinham direito à sua cultura e terras. Tendo vencido o
debate, o facto não ilibou os ameríndios dos piores atos de violência15.
O século das luzes e os seus autores do século XVII e o século XVIII vão marcar uma
mudança alimentada pelas novidades de um mundo mais aberto. As ideias florescem e a
sociedade europeia procura redescobrir as suas origens na história mas também na
comparação com o Outro. Para Barnard (2000, 18) as grandes questões antropológicas deste
século eram: o que define a espécie humana; o que distingue os humanos dos animais e qual
é a condição natural da humanidade. Muita do debate desenvolveu-se tendo por base três
questões: as crianças selvagens, os “orang outang” e os “selvagens” (os habitantes indígenas
de outros continentes).
O tema das crianças selvagens adquire bastante notoriedade pública com alguns
casos de crianças que, encontradas isoladas, não tinham vivido em comunidades humanas e
mostraram diferentes reações ao convívio e aprendizagem humanas. Mais complexo, o caso
do “orang outang” (do malaio pessoa da floresta), acalentou discussões intensas sobre a
natureza gregária ou solitária do ser humano e a existência ou não de diferentes espécies e a
sua relativa inferioridade. O conceito de “selvagens” era, nesta época, conotado com a noção
de liberdade, de que os nativos americanos eram o principal modelo. A noção de “nobre
selvagem” foi defendida por Rosseau, que fala de um homem natural, ou homem selvagem
no seu Discurso sobre a origem da desigualdade (1755).
A par desta discussão sobre a natureza humana o século XVIII também revela a
presença de uma tradição de cariz sociológico com autores como Montesquieu16 que
discorre na sua obra “De l'esprit des lois” a relação das leis com a cultura e advoga a
existência de um “espirito geral” que é a essência de uma dada cultura. Saint Simon e
Auguste Comte, cujos contributos foram essenciais para o desenvolvimento da sociologia.
Há várias formas de apresentar a progressão da história das teorias antropológicas.
Tradicionalmente são referidas quatro grandes perspetivas teóricas clássicas, que marcaram
de forma indelével a progressão da teoria em antropologia até aos anos 50-60 do século XX:
15
Para saber mais ver a Fouques, Bernanrd (1997), «O índio da América latina ou a parte maldita», In
História Inumana – massacres e genocídios das origens aos nossos dias, sob a direção de Guy Richard.
Lisboa, Instituto Piaget. Um bom romance para aprender mais sobre estas matérias é O Sonho do Celta
de Mario Vargas Llosa.
16
Charles de Secondat, conde de Montesquieu (1689-1755) é igualmente o autor das Cartas Persas
(Lettres persanes), de 1721, uma obra que supostamente relata a correspondência em entre dois
viajantes persas e os seus conterrâneos sobre as suas experiencias de viagem, em particular na
Europa. Uma obra em que o autor se coloca no papel do “outro” para analisar, e criticar, a sua
sociedade. http://athena.unige.ch/athena/montesquieu/montesquieu_lettres_persanes.html
51
o evolucionismo, o difusionismo, o funcionalismo e o estruturalismo. Nos Textos iremos
seguir estas grandes abordagens teóricas promovendo em cada uma a análise da sua génese
e preocupações teóricas. Fazendo depois uma abordagem mais sucinta das tendências e
desenvolvimentos mais atuais. Esta progressão não é forçosamente sequencial. Há “saltos” e
inovações, desafios epistemológicos e confrontações, de que as abordagens pós-modernistas
são as mais acutilantes.
Teorias clássicas
52
2.1.1 Evolucionismo
17
Como refere Barnard (2000, 27-28) a tradição medieval europeia advogava um fixismo dos seres
vivos numa escala imutável determinado pela criação original. O universo era classificado como um
princípio ordenado “ a grande cadeia do Ser”, tendo Deus no topo, seguido dos anjos e finalmente o
homem, a este seguiam-se os macacos e os outros animais até aos vermes.
Por seu turno, a teoria da evolução pressupunha a mudança e mutabilidade, no tempo e no espaço, da
vida biológica. Na análise da transposição das ideias de evolução da biologia para o campo social é
necessário relembrar que foi Herbet Spencer (1820-1903) e não Charles Darwin quem utiliza pela
primeira vez a expressão “sobrevivência do mais apto”.
18
Esta ideia continua a ser aquela que persiste na moderna antropologia, que defende que a
humanidade é a mesma, tanto biologicamente como psicologicamente.
53
consideradas “fósseis vivos” de estádios anteriores e
defendia-se que o seu estudo permitiria facultar pistas para
compreender a sociedade Ocidental dos finais do século
XIX. Esta ideia baseava-se no pressuposto da unidade
psíquica da humanidade: as sociedades simples e
complexas eram comparáveis já que a mente humana se Lewis Henry Morgan
tinha desenvolvido da mesma forma. Embora esta noção 1818-1881
fosse relativamente vaga não se pode deixar de creditar Nasceu nos EUA. Formado
em Direito praticou
estes autores pelo facto de, como refere Mercier (1986, advocacia. Como
41), terem dado ênfase à ideia de unidade da “família advogado defende os
iroqueses, por quem se
humana”. interessa e estuda a
organização social. Em
Entre os autores que tentaram apresentar um 1847 foi formalmente
esquema evolutivo destacam-se Henry James Maine (1822- adotado pela tribo
Seneca. Os seus principais
1888), John Ferguson McLennan (1827-1881), Lewis Henry trabalhos são "Sistemas de
consanguinidade e
Morgan (1818-1881), Edward Burnett Tylor (1832 – 1917) afinidade da família
humana” (1869) e
e James Frazer (1854-1941).
"Sociedade Antiga" (1871).
19Frazer é famoso pela sua obra monumental The Golden Bough. O prefácio da obra de Malinowski é
redigido por ele, embora a obra em si mesma seja uma reacção em parte às suas próprias teorias
sobre a religião. Frazer é um dos mais afamados “armchair anthropologists”, “antropólogos de
secretária/cadeirão”, sendo famoso o episódio em que, questionado se alguma vez tinha contactado
com os “selvagens” sobre quem tanto sabia, afirmou: “Não, Deus me livre!”.
54
Os trabalhos mais importantes de Lewis Henry Morgan foram Systems of
Consanguinity and Affinity (1871) e Ancient Society20 (1877). Em Systems of Consanguinity,
um trabalho devotado às classificações do parentesco, Morgan aprofunda o campo de
estudo comparativo dos sistemas de parentesco. Nele introduz o conceito de terminologias
classificatórias e descritivas . No sistema classificatório um mesmo termo é empregue para
designar um conjunto variado de parentes, enquanto no sistema descritivo um determinado
termo é específico de uma relação.
Em Ancient Society, o seu livro mais famoso, Morgan delineou a evolução da
sociedade desde o seu princípio até à sua época (a sociedade Vitoriana, considerada o ponto
mais alto da civilização). A proposta contemplava a divisão do desenvolvimento cultural da
humanidade em três estádios: selvajaria, barbárie e civilização. Os primeiros dois estádios
eram subdivididos em três fases: baixa, média e alta. A ênfase desta evolução era no papel
desempenhado pela tecnologia e economia. A transição de um estádio para o outro
significava progresso não só tecnológico mas também moral. Nesta obra Morgan desenvolve
igualmente, na sequência do seu trabalho anterior, os conceitos de parentesco, usando a
terminologia classificatória e a descritiva.
20
O título completo da obra ilustra a perspetiva evolucionista do autor: “Ancient Society or Researches
in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization”. Pode consultar aqui:
http://classiques.uqac.ca/classiques/morgan_lewis_henry/ancient_society/ancient_society.html
55
Edward Tylor é conhecido principalmente pelo seu
trabalho: Primitive Culture (1871)21, onde apresenta
ideias essenciais que marcaram a teoria evolucionista. O
autor, que se consagrou sobretudo ao estudo da
religião, defendeu a ideia de que era possível
reconstruir os estádios através da análise das
Edward Tylor
22
“sobrevivências” . Para Tylor, tudo o que existia na (1818-1917)
sociedade contemporânea que não tivesse uma função É considerado o fundador da
era uma “sobrevivência” de um período anterior. Assim, antropologia cultural. O seu
trabalho mais importante é
era possível estudar os períodos passados através Primitive Culture (1871).
Desenvolveu a teoria de uma
destes vestígios. Um segundo aspeto da sua teoria, relação evolutiva progressiva
relacionado com a religião, propunha a origem desta no do primitivo às culturas
modernas. A sua definição de
animismo, que terá evoluído para o politeísmo e cultura é recorrentemente
usada como edificadora no
finalmente o monoteísmo. campo antropológico.
No entanto, uma das principais razões que tornam
Tylor famoso é a sua definição de cultura:
“Cultura ou Civilização, tomada no seu sentido etnográfico mais amplo é esse todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou
qualquer outra capacidade e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de
uma sociedade.” (Tylor, 1977(1871), 1)
21
A obra pode ser consultada em: https://archive.org/details/primitiveculture01tylouoft
22
O capítulo IV é dedicado às ciências ocultas, para o autor consideradas como “sobrevivências”.
Volvidos 150 anos e observadas as páginas de certos jornais, revistas, anúncios e programas televisivos
o que diria o autor?
56
2.1.2 Difusionismo
Difusionismo
Configuracionismo
O difusionismo inglês
23
Não confundir com a Escola de Manchester, designação relativa ao trabalho desenvolvido já no
século XX com o antropólogo Max Glukman.
57
criatividade humana era rejeitada, caraterizando-se
por um dogmatismo baseado na especulação. Pelo
contrário, Rivers é um autor muito mais respeitado
pelos princípios de estudo que introduziu e pelo facto
de ter sido um formador de muitos dos antropólogos
ingleses da escola funcionalista.
Os principais representantes da escola Willian H. Rivers
1864 - 1922
heliocêntrica24 foram Grafton E. Smith (1871-1937) e
“The Todas”, 1906: investigador
Willian J. Perry (1887-1949). Influenciado pelas eclético, Rivers escreve em 1906
descobertas arqueológicas que na altura se realizavam um livro que, em vários aspetos,
antecede o desenvolvimento da
no Egipto, Smith atribui a esta antiga civilização a moderna antropologia social
inglesa. Baseado em trabalho de
origem da cultura, dando como exemplo costumes terreno, a obra é, como refere
egípcios como o culto do sol, a mumificação, as Hart (s.d.), um exemplo pioneiro
de etnografia intensiva onde
pirâmides, entre outros, que teriam sido levados por aplica o seu método genealógico
e desenvolve diagramas de
esse povo nas suas digressões pelo mundo, concepção parentesco.
que Perry desenvolve na sua obra The Children of the Para saber mais consulte a obra:
https://archive.org/details/todas
Sun (1923). Embora o princípio do método histórico 01rivegoog
defendido por estes autores seja aceitável, a Fonte foto:
http://en.wikipedia.org/wiki/W._H._R._Rivers
extrapolação de conclusões não era demonstrável e
esta escola não se tornou frutífera, nomeadamente
após as descobertas arqueológicas mostrarem que o Egipto não podia ser o centro exclusivo
de origem da cultura25.
William Halse Rivers (1864 -1922) ocupa um lugar à parte no difusionismo inglês e o
seu trabalho vai ser mais profícuo no campo da antropologia. Em 1898-1899 ele fez parte da
expedição ao Estreito de Torres26, um empreendimento multidisciplinar (ele era médico)
coordenada por Alfred Haddon da Universidade de Cambridge e onde participou igualmente
C.G. Seligman. No decurso da estadia no terreno efetuou estudos de parentesco (dando
24
Heliocêntrico: na aceção do que tem o Sol como centro ou origem.,
25
No entanto, muitas das suas ideias continuaram a ter forte influência em exploradores como Thor
Heyerdall, que nos anos oitenta procurou demonstrar a difusão de ideias navegando em réplicas de
barcos Sumérios e Incas. Pode ler como exemplo “A Expedição do Tigris, - Circulo de Leitores.
26
A Expedição ao Estreito de Torres é considerada a primeira grande experiência de campo da
antropologia inglesa, paradoxalmente realizada em grupo interdisciplinar.
58
origem ao método genealógico – processo de estudo e indexação das relações de parentesco
e afinidade) e a aplicação de testes psicológicos entre os Papuas da Nova Guiné.
Como refere Langham (1981) estes três autores tiveram um papel fundamental na
mudança da antropologia inglesa do domínio evolucionista, constituído o “elo” que
antecedeu Malinowski e Radclife-Brown. Estes autores propunham o estudo das culturas
concretas como totalidades integradas, relacionando a antropologia com a psicologia e
psicanálise, tornando-se assim um dos precursores da Escola de cultura e personalidade (que
analisaremos mais à frente).
O difusionismo Alemão-Austríaco
59
Schmidt defende que a cultura moderna é o resultado de uma série de esquemas originais
que apresentam três fases:
60
Cada cultura é única, devendo ser compreendida na perspetiva do observador com base nos
dados subjetivos: valores, normas e emoções.
A vida social é comandada pelo hábito e costume (e não a razão e utilidade de Tylor).
Uma vez que cada cultura é única há uma ênfase no relativismo, pelo que é impossível
proceder a julgamentos de valores de outras culturas pois eles só podem ser compreendidos
no contexto cultural em que ocorrem. Como tal não se pode fazer generalizações, pelo
menos enquanto não houver mais dados. Para superar esta falha aposta no trabalho de
campo para poder reunir elementos suficientes. Esta abordagem do terreno era sobretudo
indutiva, já que as explicações surgiriam dos dados recolhidos.
Boas procurou dotar a antropologia americana de
uma base sólida, assente no trabalho de campo, tendo
feito inúmeros trabalhos junto das comunidades nativas.
Entre os seus estudos mais conhecidos está a análise do
potlash entre os Kwaktiul (uma cerimónia que envolvia
uma competição pelos status na qual eram destruídos Franz Boas
cerimoniosamente bens). 1858 – 1942
61
primeiro aluno de Boas doutorado em Antropologia, vai aprofundar a temática dos traços
culturais de forma a definir uma área cultural. No entanto, a sua perspetiva é de carater
global.
Um interessante exemplo de difusionismo é proposto pelo antropólogo Ralph Linton
no seu livro “The Study of Man: An Introduction” de 1936, ilustra aspetos do difusionismo a
partir da experiencia do cidadão comum.
O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão
originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser
transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tornou
doméstica na Índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente
Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos esses materiais foram
fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz
uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das florestas do Leste dos Estados
Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções
européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestiário
inventado na Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a
barba que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do
tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de
pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas
por um processo inventado no antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente
das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra ao
pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do séc. XVII. Antes de
ir tomar o seu breakfast, ele olha ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado
no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da
América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é
feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal, pagando-o com
moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados
de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China.
A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália
medieval; a colher vem de um original romano. Começa o seu breakfast, com uma laranja
vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia
africana. Toma café, planta abssínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e
a idéia de aproveitar o seu leite são originárias do Oriente Próximo, ao passo que o açúcar
foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os quais são
bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria prima
o trigo, que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple
inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional
talvez coma o ovo de alguma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias
62
de carne de um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e defumada por um
processo desenvolvido no norte da Europa.
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos
índios americanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que
procede dos índios da Virgínia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante
valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas
Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em
caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um
processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas
estrangeiros, se for bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica,
numa língua indo-européia, o fato de ser cem por cento americano27.
27
Citado em Laraia, Roque. 2003. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 2003, p.106-108
63
é nestas ilhas, matrilineares, o companheiro de brincadeiras, sendo a autoridade exercida
pelo tio materno).
Em antropologia esta corrente vai examinar como os seres humanos adquirem a
cultura e como esta se relaciona com a personalidade individual. Entre os autores mais
importantes desta corrente contam-se Ruth Benedict (1887-1948), Margaret Mead (1901-
1978), Edward Sapir (1884-1939), Abram Kardiner (1891 – 1981) e Cora Du Bois (1903 –
1991). Há duas abordagens gerais desta escola (McGee e Warms, 2004, 217): a relação entre
a cultura e a natureza humana e a relação entre a cultura e a personalidade individual. A
primeira abordagem é representada pelo trabalho de Margaret Mead Sex and Temperament
in Three Primitive Societies (1935), enquanto a segunda abordagem é característica da obra
de Ruth Benedict.
64
Durante a 2ª Grande Guerra Mundial a Ruth Benedict
Para saber mais
escreve aquele que se torna o mais conhecido dos estudos de sobre:
carácter nacional: O Crisântemo e a Espada (1946), um estudo
sobre os japoneses, elaborado para o exército americano com
o objetivo de conhecer o inimigo. Impedida de fazer trabalho
de campo a autora recorre a bibliografia e aos japoneses
aprisionados nos EUA para obter os seus dados. Numa
Ruth Benedict
abordagem neo-freudiana, relacionando práticas infantis com 1887-1948
tipos de personalidades adultas, a autora advoga que a http://www.america
nethnography.com/a
preocupação com a obediência e a ordem advêm da forma rticle.php?id=7#.Ux
YZ4vl_tK0
como os japoneses são ensinados a lidar com os seus dejetos.
Este não é o único estudo realizado no âmbito do carácter
nacional, outra obra, menos conhecida é a de Gorer e Rickman
The People of Great Russia: A Psychological Study (1949). Nela
os autores advogam que o caráter nacional russo,
Margaret Mead
supostamente o tipo de personalidade maníaco-depressiva, se 1901-1978)
http://www.youtube.
deve às práticas de enfaixar os bebés. Apesar da popularidade com/watch?v=2p11
3_9OQMw
que a obra de Benedict alcançou os estudos de carácter
nacional foram muito criticados e abandonados (embora as
representações sociais sobre esta matéria persistam).
Margaret Mead, aluna de Ruth Benedict, vai trabalhar o tema da influência da cultura
na personalidade e no desenvolvimento social humano. As suas obras mais conhecidas são
Coming of Age in Samoa (1928), Growing Up in New Guinea (1930) e Sex and Temperament
in Three Primitive Societies (1935). Mead tentou separar os fatores biológicos e culturais que
controlam o desenvolvimento e comportamento humano, procurando, de forma
comparativa, analisar as práticas nos EUA. Em Coming of Age in Samoa, confrontou as ideias
prevalecentes sobre os adolescentes, nomeadamente sobre a liberdade sexual que
caraterizaria as relações entre jovens antes do casamento, sem stress emocional, pelo que
não haveria rebeldia adolescente, resultando que esta não seria devido a fatores biológicos
da puberdade. Mas, como refere Barnard (2000, 105) embora as suas ideias e generalizações,
tenham sido objeto de críticas severas, a sua principal influência resultou na análise da
65
própria cultura dos EUA e o seu trabalho marca o início da antropologia psicológica
contemporânea.
Outra abordagem resultou do trabalho de Abram Kardiner (1891-1981), um
psicanalista, em colaboração com os antropólogos Cora DuBois (1903-1991), Edward Sapir
(1884-1939) e Ralph Linton (1893-1953). Kardiner, segundo Hoebel e Frost (2002, 68-69)
procura estabelecer duas coisas: a identificação da estrutura básica da personalidade e o
processo de formação como uma reação aos costumes de cuidar de crianças e, em segundo
lugar o efeito posterior dos padrões básicos de personalidade em certas estruturas
institucionais da sociedade. Kardiner propôs a ideia de estrutura de personalidade básica,
um conjunto de traços fundamentais da personalidade partilhados pelos membros normais
de uma sociedade.
No seu trabalho conjunto com o antropólogo Ralph Linton – The Individual and his
society [1939] defenderam a ideia de que ainda que a cultura e a personalidade fossem
similarmente integradas, existiam relações causais entre ambas. Distinguiram assim entre as
instituições primárias, a estrutura básica da personalidade e as instituições derivadas ou
secundárias. As instituições primárias são as técnicas culturalmente determinadas de cuidar
das crianças e que criam atitudes básicas para com os pais e que perduram durante toda a
vida do indivíduo. A estrutura básica da personalidade é o grupo de “constelações nucleares”
de atitudes e comportamentos formados por padrões estandardizados numa determinada
cultura. Para os autores, por meio dos mecanismos de projeção as constelações refletem-se
no desenvolvimento de outras instituições, como a religião, o governo e a mitologia e ritual.
De modo a ter em conta algumas das criticas à existência de uma estrutura de
personalidade básica, comum a todos, Cora DuBois propôs o conceito de personalidade
modal, o tipo de personalidade que era estatisticamente mais comum na sociedade. Assim,
numa sociedade, haverá lugar à formação de um conjunto de caraterísticas básicas advindas
das instituições primárias, mas também a existência de variação individual na forma como
essas personalidades se expressam. O seu trabalho de campo foi junto dos alorenses,
naturais da ilha de Alor, de que resultou o seu livro “The people of Alor”, de 194428.
Horticultores de floresta tropical, os homens estão muitas vezes ausentes em viagens de
trocas comerciais. Segundo o autor a criança alorense embora desejada é negligenciada mas
não é rejeitada. É meramente descurada pela mãe que trabalha no campo e por um pai
muitas vezes ausente. Há pouco contacto físico com a criança que fica ao cuidado de outros
66
membros da família e não há o alívio de tensões ou carícias, nem aquando da alimentação da
criança. A criança é tímida e reservada, mas dada a enfurecimentos e insultos. Roubam e
pilham com naturalidade e desafiam os pais abandonando a casa e indo viver com parentes.
Segundo o autor não há solidariedade emocional na família, o desenvolvimento do ego e a
consciência social do adulto são muito fracos. As relações dos homens com as mulheres são
uma projeção das suas infâncias, assim como as instituições bélicas e religiosas:
desorganizadas, irregulares e vingativas as primeiras, relutantes face às segundas - culto dos
antepassados irascíveis e vingativos para com os seus descendentes a quem exigem comida.
67
A escola sociológica – uma intrusão para falar da irmã da antropologia
No final do século XIX não havia uma distinção clara entre a antropologia e a
sociologia. Deste modo alguns autores deste período são considerados como “pais” de
ambas as disciplinas e as suas ideias fortificaram tanto uma como outra disciplina. Entre
estes autores destacam-se Émile Durkheim (1858-1917), Marcel Mauss (1872-1950) e Max
Weber (1864-1920).
68
ultrapassava a sua existência individual, e não podia ser explicada pelo seu comportamento
pessoal. Assim, para estudar a vida em sociedade deviam-se estudar os factos sociais, as
regras sociais e de comportamento que existem antes do individuo entrar na sociedade e que
permanecem após a sua morte.
Entre os seus principais trabalhos incluem-se A Divisão do trabalho social (1893) e As
Formas Elementares da Vida Religiosa (1912)29. Na primeira obra desenvolve os conceitos de
solidariedade mecânica, caraterística que considera própria das sociedades primitivas, e
solidariedade orgânica, exclusiva das sociedades industriais. Para Durkheim, nas sociedades
primitivas a consciência coletiva envolve totalmente o indivíduo, pelo que não há
diferenciação interna entre este e a sociedade. O parentesco é o laço essencial entre as
pessoas. Por seu turno, as sociedades industriais caraterizam-se pela separação parcial da
consciência coletiva da consciência individual, ocorrendo uma especialização ocupacional. Os
laços entre os membros destas sociedades são, sobretudo, económicos, ocupacionais e
cooperativos. Durkheim acreditava que as sociedades evoluíam da solidariedade mecânica
para a solidariedade orgânica, um processo que conduzia a uma maior diferenciação social e
especialização, o que aumentaria a coesão social. Na sua obra As Formas Elementares da
Vida Religiosa (1912) o autor desenvolve as suas ideias relativas à forma como as pessoas
compreendem o mundo através de sistemas de classificação criados socialmente. Para
Durkheim, a natureza destes sistemas de classificação era, essencialmente, dualística, como
procurou demonstrar com a ideia de que há uma separação entre as esferas “sagradas” e
profanas”30.
Na esteira de Durkheim, Marcel Mauss31, desenvolve uma obra que é,
simultaneamente, sociológica e antropológica. O seu trabalho mais conhecido é o Ensaio
sobre a Dádiva: Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas 1925)32. Neste trabalho
Mauss, utilizando um vasto conjunto de fontes antigas e contemporâneas (nomeadamente
os trabalhos de Boas sobre os Kwakiutl e de Malinowski sobre os Trobriandeses), e
desenvolve a ideia de que a troca de presentes nas sociedades primitivas é muitas vezes
parte fundamental das obrigações políticas e sociais, refletindo ou expressando a estrutura
social da sociedade em causa. A estes factos sociais, simultaneamente múltiplos de sentidos,
29
Tradução portuguesa: Durkheim, Émile (2002) As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema
Totémico na Austrália, Oeiras, Celta.
30
A crítica de Mary Douglas
31
Marcel Mauss é sobrinho de Durkheim e trabalhou com ele.
32 Tradução portuguesa: Mauss, Marcel (2001) Ensaio Sobre a Dávida, Lisboa, Edições 70
69
designou factos sociais totais. Nunca tendo efetuado trabalho de terreno é no entanto o
autor em 1926 de um manual de etnografia.33
33
http://classiques.uqac.ca/classiques/mauss_marcel/manuel_ethnographie/manuel_ethnographie.html
70
2.1.4 Funcionalismo (estruturo-funcionalismo)
34
O Estreito de Torres localiza-se no sudeste asiático, entre a Austrália e a Nova Guiné.
71
momento do estudo (caraterizando-se os seus trabalhos por uma “intemporalidade” dos
dados).
A tensão entre as duas escolas de pensamento era similar à tensão existentes entre
as duas figuras que as criaram. No entanto, lentamente, a versão estruturo funcionalista
ganhou ascensão no plano teórico, fenómeno percetível pelo facto de muitos alunos de
Malinowski terem aderido à escola de Radcliffe-Brown, insatisfeitos com a resposta teórica
da abordagem. A preocupação com a coesão e
equilíbrio vai ser a principal modelo desta
O circuito kula
escola e também uma das suas principais
críticas. A manutenção da ordem social e a
regular vida da sociedade estava de acordo
com as preocupações das autoridades coloniais
em que muitos destes antropólogos estiveram
envolvidos, com a exceção de Max Glukman.
Bronislaw Malinowski marcou
Malinowski (1966, 131)
decididamente a antropologia ao sustentar a
estadia prolongada no terreno – observação O kula é um sistema de troca
“inter-tribal” entre as comunidades
participante - como uma das suas marcas de um conjunto de ilhas,
constituindo um circuito fechado.
distintivas, resultado na elaboração de uma
Dois tipos de bens são trocados,
monografia, de que a sua Argonauts of the movendo-se em direções opostas:
na direção dos ponteiros do
Western Pacific (1922)35 é o paradigma. A obra relógio as soulava, pulseiras de
conchas vermelhas. No sentido
inicia-se com a definição do sujeito, método e
oposto, as mwali, braceletes de
objetivos, bem como a geografia da zona. Parte conchas brancas. Esta troca era
feita entre parceiros que estavam
de seguida para a problemática da troca Kula obrigados a retribuir, usualmente
de forma diferida no tempo, os
sobre a qual vai analisar em detalhe todos os bens descritos. Este processo
aspetos relacionados com a sua prática, tanto poderia levar anos até que os bens
efetuassem o circuito completo.
material como imaterial. A sua conclusão, mais
do que teórica, é sobretudo um apelo à
tolerância face a costumes estranhos36.
35
A obra pode ser consultada em: https://archive.org/details/argonautsofweste00mali
36
A obra de Malinowski vai ser objeto de uma revisão. A própria faceta aberta e tolerante é posta em
causa anos mais tarde quando o seu diário pessoal é publicado após a sua morte. A edição em
Português está disponível em: Malinowski, Bronislaw (1997 [1967]) Um diário no sentido estrito do
termo, Rio de Janeiro-São Paulo, Editora Record.
72
Um dos contributos mais relevantes de Malinowski foi a sua análise das relações
entre o pai e filho. De acordo com a teoria psicológica freudiana ela seria conflituosa. Mas,
Malinowski demonstra que, numa sociedade matrilinear esta tensão existia entre o tio, irmão
da mãe, e não em relação ao pai biológico, o que vai por em causa a universalidade da teoria
freudiana.
No plano teórico as propostas de Malinowski, sistematizadas sobretudo na sua
Teoria Cientifica da Cultura (1944), foram consideradas na altura
Para saber mais:
limitadas, nomeadamente face ao seu principal “rival”
académico, Radcliffe Brown. Nesta obra, em que analisa o papel
instrumental da cultura na satisfação das necessidades humanas,
a teoria das necessidades. Existem para o autor três tipos de
necessidades: as básicas, as derivadas e as integrativas. O
conjunto básico deriva de impulsos biológicos e psicológicos: Bronislaw Malinowski
(1884 – 1942)
metabolismo, reprodução, conforto corporal, segurança,
http://www.aaanet.or
movimento, crescimento e saúde. As necessidades derivadas são g/committees/commissi
ons/centennial/history
sobretudo associadas à natureza cultural do Homem: /095malobit.pdf
abastecimento, parentesco, abrigo, proteção, higiene e exercício.
Por fim, as necessidades integrativas revelam a dimensão
simbólica das relações existentes: a tradição, os valores, a
religião, a linguagem e o conhecimento.
73
sociológica e esse era o seu propósito: analisar a forma como as instituições funcionam no
sistema social e não como mudaram ao longo do tempo. Para demonstrar a relação entre
função e estrutura dá o exemplo da concha: cada concha tem a sua estrutura mas a estrutura
de uma é similar à estrutura de outra, partilhando assim aquilo a que chama “forma
estrutural”. Na sua perspetiva a estrutura social corresponde à observação concreta e a
forma estrutural é a generalização a que o antropólogo chega após analisar as suas
inferências. A comparação de formas estruturais entre sociedades permitirá alcançar leis
gerais.
Como refere Barnard (2004) há duas críticas fundamentais: a confusão entre termos
e sobre o caminho para alcançar as generalizações. No primeiro caso o emprego de estrutura
social para designar aquilo a que outros antropólogos, contemporâneos e posteriores,
chamam dados do terreno, e denominar forma estrutural para aquilo que se denomina
estrutura social. Relativamente às generalizações universais, esta não são possíveis de se
alcançar a partir da soma das observações feitas mas sim a partir de premissas lógicas – que
vão ser a base da abordagem estruturalista de Lévi-Strauss.
Comparado com outros autores Radcliffe-Brown escreveu relativamente pouco, no
entanto o seu percurso como professor foi vasto, ensinando na Austrália, na Africa do Sul,
em Inglaterra, nos EUA, etc. Os seus temas de estudo prediletos centraram-se nas questões
de parentesco, politica e religião, nomeadamente o totemismo. O seu maior contributo é a
teoria da descendência37 (que entrará em polémica com a teoria da aliança defendida por
Lévi-Strauss analisada mais à frente) segundo a qual os grupos de descendência patrilinear
ou matrilinear formam a base de muitas sociedades, sobretudo em África (continente em
que muitos seus dos discípulos vão realizar trabalho de campo com bolsas de estudo
disputadas pelo tutor com Malinoswki, e que vão servir como base parta a promoção da
ligação da antropologia com a administração colonial)38.
O funcionalismo não se limitou à antropologia. Nos anos 50 dois sociólogos americanos
desenvolveram análises no seu âmbito procurando superar as suas limitações: Robert
Merton (1910-2003) e Talcon Parsons (1902-1980). Para Rivière (2000) Merton adopta um
funcionalismo relativizado face a Malinowski, nomeadamente à sua ênfase na unidade
37
O texto fundamental desta teoria encontra-se na Introdução da obra: Radcliffe-Brown, A. R. e Forde,
Daryll (1982 [1950] Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian.
38
As peripécias desta disputa entre os autores maiores da antropologia inglesa e a sua competição e
interesse em implicar a antropologia na administração colonial inglesa são abordados na obra de
Kuper (1993).
74
funcional da sociedade, a noção de funcionalismo universal e o da necessidade. Para superar
estas deficiências concebe três princípios fundamentais:
75
2.1.5 Estruturalismo
39
Entre as obras de referência consultadas somente Barnard (2004) faz alusão a este facto.
76
combinados em unidades maiores, morfemas, palavras, frases, etc., de acordo como certos
padrões (regras de sintaxe e gramática) é que eles se tornam significativos: o discurso. A
maioria dos falantes de uma língua, apesar de a falarem, não sabem identificar as regras que
subjazem à elaboração do discurso. Assim, a um nível subconsciente todos devemos saber
quais estas regras são, sendo o objetivo da linguística descobrir estes princípios
inconscientes.
Com base nas ideias da linguística, Lévi-Strauss
Para saber mais:
procurou desenvolver um meio de estudar os princípios
inconscientes que estruturam, segundo ele, a cultura humana.
Esta, como a linguagem, é composta por uma coleção
arbitrária de símbolos (os fonemas da linguística) que não lhe
interessam individualmente mas sim o padrão de elementos, a
forma como os elementos culturais se relacionam
Claude Lévi-Strauss
(comunicam) para formar o sistema - um dos principais 1908 – 2009
contributos da escola de Praga foi o contraste entre as Uma entrevista sobre o
antropólogo que
oposições binárias dos fonemas, ideia que Lévi-Strauss vai odiava viajar…
aplicar no estudo da cultura, propondo que o padrão de
http://www.uc.pt/en/c
pensamento humano também usa contrastes binários como ia/publica/AP_artigos
/AP24.25.01_Leme.pd
branco e preto, dia e noite e quente e frio (um f
desenvolvimento da ideia de Durkheim sobre o sagrado-
profano, ou de Hobert Hertz`s (1880-1915) sobre a oposição entre a mão esquerda e
esquerda40).
Um resumo das ideias de Lévi-Strauss, numa obra vasta e prolífica, de certeza que
deixam de parte grande número de elementos.41 Os fundamentos das ideias de Lévi-Strauss
articulam três áreas: uma exegese do empirismo, a valorização do estruturalismo como
modelo e o primado do intelecto. A rejeição do empirismo funda-se na rejeição da
possibilidade de conhecer através da observação de uma sociedade os “motivos universais”,
pelo que rejeita a importância dos conceitos indígenas. Como refere Dubuisson, citado por
Deliège (2001) o real é para o autor confuso e desordenado, competindo ao antropólogo
40
Considerado um dos mais brilhantes autores da época, o autor morreu, em combate, no decurso da
1ª Grande Guerra. Para saber mais sobre o autor e a usa obra, compilada em “Sociologie religieuse et
folclore” (1928), consulte:
http://classiques.uqac.ca/classiques/hertz_robert/hertz_robert_photo/hertz_robert_photo.html
41
Este resumo segue a síntese de Deliège (2001). No entanto, as citações recorrem às obras originais
citadas quando disponíveis.
77
colocar ordem intelectual nesta desordem aparente, desvendando as leis e regras imutáveis.
É neste contexto que advoga que a análise pretende alcançar as estruturas inconscientes de
cada instituição42, consideradas de forma genérica como o não-consciente, não-explicito.
Então o que é a noção de estrutura? Para o autor : “a noção de estrutura social não se refere
à realidade empírica, mas aos modelos construídos em conformidade com esta (…) As
relação sociais são a matéria-prima empregada para a construção dos modelos que tornam
manifesta a própria estrutura social.” (Lévi-Strauss, 1996 [1952], 315-316).
Quais são então as caraterísticas que os modelos devem ter para “merecer o nome de
estruturas”? O autor (1996 [1952], 316) indica que:
Como refere Deliège (2001, 46) esta afirmação é menos uma definição do que um
conjunto de traços essenciais. Todavia, persiste alguma ambiguidade: por um lado pode-se
igualmente dizer que “a estrutura é um modelo que oferece o carácter de sistema”, por
outro lado, não é a modificação dos elementos, ou termos, que acarreta a modificação mas
sim a modificação de uma relação entre esses elementos (tema desenvolvido em
Antropologia Estrutural dois).
Finalmente, Lévi-Strauss, privilegia o primado do intelecto, do espírito, sobre o social, o
que teve como corolário a sua busca da origem simbólica da sociedade. O sistema social é a
concretização das capacidades do espírito humano, um aparelho intelectual que o leva a agir
dessa forma (explicação que se aplica tanto às formas de casamento preferencial como ao
mito, ao ritual, etc. Uma propriedade fundamental do espírito humano é a dicotomização do
pensamento em sistemas de oposição binária. O exemplo do cru e do cozido na sua análise
da mitologia mostra como esta oposição expressa, para o autor, a diferença entre a natureza
42
A noção de inconsciente não é clara em Lévi-Strauss e foi objecto de crítica.
78
e a cultura. A análise estrutural de mitos vai levar o autor a elaboradas análises que deixam
ainda hoje incrédulos alguns autores pelo facto a sua consistência depender mais da
capacidade do analista do que de excluir outras possibilidades.
A história é negligenciada, o estruturalismo não tem como objetivo a análise da
mudança social. O estruturalismo analisa sistemas que assentam a suas proximidades em
bases intemporais, o sistema é concebido como em equilíbrio, não se pode transformar e
impõem-se aos homens.
O primeiro grande trabalho de Lévi-Strauss foi no campo do parentesco: As Estruturas
Elementares do Parentesco (1949)43. Neste estudo combinou a noção de oposição binária
com o conceito de reciprocidade na troca, herdado da obra de Mauss. A tese principal da
obra reside no facto de as mulheres, nas sociedades primitivas, serem consideradas como
um tipo de bem que pode ser trocado. A oposição binária essencial da espécie humana
reside na distinção que opera entre os parentes e não parentes. Através do tabu do incesto o
grupo está impedido de se casar com as suas próprias mulheres pelo que tem que
estabelecer relações com outros grupos a fim de obter esposas. Esta troca recíproca é o
sistema mais simples de aliança, termo que vai ter uma expansão com o estruturalismo.
Apesar de pretender trabalhar o campo do parentesco nas sociedades complexas o autor
nunca o chegou a fazer.
A obra mais conhecida do grande público é os Tristes Trópicos (1954) , um libelo da
crítica da modernidade, reflexiva, alusiva da única experiência de contacto, fugas, que o
autor teve com o “outro”. A critica do progresso e a defesa do bom selvagem na linha de
Rosseau, que também não teve de ver o selvagem para compreender que a sua vida social
depende do contrato e do consentimento.
As obras subsequentes centraram-se sobretudo na análise das classificações
simbólicas, como o totemismo, e os mitos, acreditando que o estudo da mitologia permitiria
aceder aos padrões inconscientes. Na sua obra sobre os mitos Lévi-Strauss acaba por propor
a hipótese de uma característica do pensamento humano residir na procura de um ponto
intermediário entre as oposições binárias. Os elementos do mito, como os fonemas, só
adquirem significado quando organizados de acordo com certas relações estruturais. São
estas relações que ganham ênfase na análise. Neste contexto é de mencionar a polémica que
envolveu o autor com Lévy-Bruhl. Este autor defendia a tese de que o pensamento selvagem
43
http://classiques.uqac.ca/collection_methodologie/levi_strauss_claude/structuralisme_rapports_soc
iaux/structuralisme_rapports_sociaux_texte.html
79
era pré-lógico, não racional. Lévi-Strauss opôs-se a esta visão e defendeu a ideia de que a
mentalidade das sociedades selvagens não era inferior, não racional. Para ele o pensamento
selvagem era o fruto de uma herança intelectual e classificatório que em que a utilização de
espécies animais para definir relações não são arcaísmos mas sistemas complexos de
pensamento lógicos. Neste sentido os seus estudos dos mitos procuram demonstrar esta
complexidade.
O estruturalismo de Lévi-Strauss vai influenciar em França um conjunto de autores,
mesmo que por reação, como é o caso do estruturalismo marxista (que falaremos mais à
frente e cujo autor mais ilustrativo é Maurice Godelier) e Louis Dumont (que nunca
abandona as realidades empíricas, nomeadamente a Índia). No campo anglo-saxónico
Rodney Needham em Oxford e Edmund Leach em Cambridge). Victor Turner e Mary Douglas.
80
2.1.6 Sinopse de “neo”abordagens e “pós”perspetivas:
reinvenção, críticas e reações
44
Embora nenhum deles, nos EUA dos anos 40, década de 50, se pudesse referir diretamente a esta
fonte de inspiração. De facto, a situação política decorrente da Guerra Fria, e o temor da perseguição
de elementos conotados como comunistas, no contexto das medidas tomadas pelo Senador Joseph
McCarthy, limitava esse reconhecimento.
45
A comparação como método não cessou com evolucionistas e difusionistas. Sarana (1975)
citado por Barnard (2004, 57) identifica três tipos de comparação em antropologia: ilustrativa, global e
controlada (incluindo a comparação regional). A comparação ilustrativa envolve a escolha de exemplos
etnográficos para explicar diferenças e similaridades (por exemplo comparar os Nuer e os
Trobrianders, como exemplos de sociedades matrilineares), a comparação global implica comparações
estatísticas de sociedades de todo o mundo, cujo melhor exemplo é o HRF de Murdock. Finalmente, a
comparação controlada restringe o seu âmbito a áreas restritas e limita o número de variáveis em
análise. Foi empregue por difusionistas, funcionalistas e neoevolucionistas como Julian Steward. Um
outro exemplo desta abordagem é a que foi desenvolvida pela Escola de Leiden, na Holanda.
81
“organização social e a cultura são adaptações funcionais que permitem as populações
explorar com sucesso o ambiente sem exceder a capacidade de sustentação dos seus
recursos ecológicos” (Applebaum, citado em McGee e Warms, 2004, 285).
Roy Rappaport representa uma tendência mais ecológica, pelo que o seu trabalho
também é inserido na denominada ecologia cultural. O antropólogo defende que as leis da
biologia ecológica podem aplicar-se ao estudo das populações humanas. Adaptando da
cibernética a noção de retorno (feedback) para explicar a estabilidade cultural, o autor
procurou demonstrar no seu estudo de 1967, Pigs for the Ancestors, como uma comunidade
da Nova Guiné, estabelece através do ritual um mecanismo de retorno que regula as relações
ecológicas entre os homens, os porcos, os alimentos disponíveis e a guerra.
Marvin Harris é, sem dúvida, um dos autores mais profícuos da Antropologia. Um dos
seus primeiros estudos de terreno foi em Moçambique, na altura colónia portuguesa46, e foi
justamente essa experiência que o levou a valorizar a perspetiva materialista,
nomeadamente o facto de o controlo sobre os sistemas de produção ser essencial para
compreender a cultura. Nesta perspetiva, influenciada pela teoria marxista, o autor
desenvolve um sistema de análise com três níveis: infraestrutura, estrutura e superestrutura.
No entanto, a primazia é dada ao primeiro nível onde se articulam os modos de produção e
de reprodução da sociedade.
Harris escreveu muito (algumas das obras estão traduzidas em português), sendo dele
uma das mais famosas e polémicas histórias da antropologia: The Rise of Anthropological
Theory (1968), outras como Cows, Pigs , Wars and Witches (1974) e Cannibals and Kings: The
Origins of Culture (1977). O materialismo cultural foi acusado por alguns autores modernistas
de ser uma forma de positivismo, determinista, na qual o homem tem pouco a dizer sobre a
sua sorte. No entanto, mesmo os seus mais fervorosos críticos nunca conseguiram
desmontar totalmente a pertinência de estudos como “The cultural Ecology of Índia`s Sacred
Cattle” (1966), na qual Harris defende que a sacralidade da vaca não resulta da determinação
religiosa mas sim da sua importância produtiva, material e ecológica, no contexto indiano.
Outra “neo”corrente resulta do neomarxismo que é, na origem, eminentemente
europeia, e francesa. Ao contrário dos colegas americanos, os autores franceses não tiveram
no pós-guerra as limitações de expressão políticas e académicas. Por esta razão enquanto os
materialistas americanos enfatizavam os mecanismos de retorno e a adaptação estável ao
46
Marvin Harris seria expulso de Moçambique pelas autoridades portuguesas. Para saber mais sobre o
autor e a sua visão critica pode consultar MACAGNO (1999), em:
http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/macagno99.pdf
82
ambiente, os autores franceses usaram de forma mais direta a contradição dialética das
análises marxistas – criticando as abordagens materialistas americanas pelo facto de estas
minimizarem o papel do conflito. Estes autores são também designados como dinamistas,
por analisarem a dinâmica das sociedades.
Nos anos sessenta os dois principais autores desta corrente foram Maurice Godelier
(1925 – ) e Claude Meillassoux (1925 - 2005). O trabalho de Godelier47 é definido como
estruturalista marxista. Uma das suas obras mais relevantes data de 1982, e resulta do seu
trabalho de campo continuado com os Baruya da Nova Guiné é: La production des Grands
Hommes. Pouvoir et domination masculine chez les Baruya de Nouvelle Guinée. A perspetiva
do autor, que incorpora a análise marxista no seu trabalho, é a de que, ao contrário da ideia
defendida pela teoria clássica marxista e pelos neo-evolucionistas, a superestrutura é
fundamental. Godelier, privilegiava as relações de produção (as relações sociais) sobre a
tecnologia e atividades individuais. De facto, para este autor os aspetos considerados como
pertencendo à superestrutura, como a religião ou o parentesco) são elementos
fundamentais para a infra-estrutura de qualquer sociedade (desta forma pode se percecionar
como estas ideias estão afastadas das noções de Marvin Harris).
Claude Meillassoux (1925-2005) 48 foi outro autor essencial. Não perfilhava totalmente
a admiração estruturalista de Godelier, era aliás crítico do estruturalismo pelo facto de este
não analisar a questão da exploração e das causas materiais da transformação dos sistemas
de parentesco. Um exemplo desta perspetiva é a ideia defendida pelo autor, em
contraposição à noção meramente comunicacional de Lévi-Strauss, e simultaneamente
diferente da inspiração marxista quanto aos termos, de que é o domínio sobre o controle de
“reprodução” (as mulheres) e não o controle sobre os meios de produção, que é o mais
importante numa sociedade. Para estes autores, a visão da sociedade era baseada na luta de
diferentes grupos sociais pelo controlo dos meios de produção e poder. Nesse âmbito, ao
contrário da maioria dos antropólogos da época, eram críticos dos efeitos do colonialismo e
das transferências económicas internacionais. A este respeito Meillassoux defende que o
capitalismo não destrói os modos de produção pré-capitalista mas que os mantêm em
articulação com o modo de produção capitalista, em seu proveito.
47
Para saber um pouco mais sobre o autor e as suas ideias leia a entrevista feita por Bernardo
Hollanda e Rodrigo Ribeiro para a revisa Estudos Políticos, nº 2, 2011 (01), disponível em:
http://revistaestudospoliticos.com/wp-content/uploads/2011/04/2p2-20.pdf
48
Para saber um pouco mais sobre o autor, consulte, em francês: http://lhomme.revues.org/1795
83
Em meados dos anos setenta as ideias de Darwin são retomadas pela sociobiologia.
Esta não é uma abordagem exclusivamente antropológica mas, sobretudo, biológica. Trata-se
de uma explicação do comportamento humano com base na teoria evolucionista de Darwin,
razão porque também é denominada como neodarwinista. Segundo esta corrente, os
diferentes sucessos reprodutivos moldam a evolução do comportamento de todos os
organismos, incluindo o humano. Como todos os seres humanos são organismos biológicos
estão sujeitos às mesmas leis da evolução. É esta componente genética do comportamento
que leva a que os padrões de comportamentos que aumentam as possibilidades de
adaptação do organismo ao seu ambiente sejam selecionados e reproduzidos nas gerações
futuras.
No entanto, os sociobiologistas estão longe dos evolucionistas culturais pois, ao
contrário dos antecessores do século XIX, a sua preocupação não é com a evolução de
padrões de cultura mas sim com a transmissão dos mecanismos de comportamento humano
na perspetiva darwinista e genética. Por outro lado, enquanto os evolucionistas clássicos
defendiam que a progressão evolutiva tendia a desenvolver sociedades perfeitas, os
sociobiologistas usam simplesmente a linguagem do sucesso reprodutivo.
A sociobiologia é influenciada pelos estudos de comportamento animal que se
difundiram nos anos 50 e 60 com investigadores, como Konrad Lorenz. O autor mais
divulgado desta corrente é Edward O. Wilson (1929 -) com a publicação em 1975:
Sociobiology: The New Syntesis e de Richard Dawkins (1941 - ) com The Selfish Gene de 1976.
Nesta perspetiva o comportamento humano é controlado por genes particulares e a
evolução ocorre quando o sucesso reprodutivo permite a transmissão de determinados
genes à geração futura: a guerra, a seleção sexual, o desenvolvimento da organização
política, a arte, rituais e mesmo a ética são a expressão desse desejo49.
Pós-estruturalismo
49
O que leva McGee e Warms (2000) a afirmarem criticamente que, nesta perspetiva, os humanos
pouco mais são do que meros veículos utilizados pelos genes na sua reprodução.
84
Nesta aceção o pós-estruturalismo apresenta relação com as preocupações dos
transacionalistas, marxistas e feministas e pós-modernistas (que alguns autores só associam
ao pós-modernismo50). Para Barnard “ (…) o pós-estruturalismo é uma forma de pós-
modernismo, tal como o estruturalismo é uma forma primária de “modernismo tardio” na
antropologia” (2000, 139) .
A principal caraterística do pós-estruturalismo é a relutância em aceitar a distinção
entre sujeito e objeto – princípio implícito no pensamento estruturalista – defendido por
Saussure. Entre os mais destacados pós-estruturalistas encontram-se: Derrida, Althusser,
Lacan e Foucault. Este último e Bordieu foram os que tiveram um papel mais ativo no campo
da antropologia.
Os filósofos hermenêuticos51 Jaques Derrida (1930 -2004 ) e Michel Foucault (1926 –
1984) desempenham o papel de mentores desta posição. Derrida é sobretudo reconhecido
pela sua abordagem deconstrutivista. Defende que todas as culturas constroem mundos de
significados estanques e que a descrição etnográfica distorce a visão nativa através da
imposição das formas de conceptualização do mundo do observador, assim, o significado
nunca pode ser traduzido.
Foucault trabalhou a ideologia, nomeadamente no seu discurso de poder. Para o
filósofo as relações sociais entre os povos são assinaladas pela dominação e subjugação. Os
povos ou classes dominantes controlam as condições ideológicas em que a verdade e a
realidade são definidas52 . Transposto para o campo da ciência o modernismo – crente da
possibilidade de alcançar uma verdade objetiva – é considerado uma construção histórica
produto da sociedade.
Bordieu pretende, mais do que compreender os modelos (perspetiva estruturalista)
compreender o desempenho (performance) pois para o autor a compreensão objetiva não
alcança a essência da prática do ator social. Mais do uma visão estática da noção de
estrutura assente nas regras o autor pretende enfatizar a teoria da prática. A estrutura deixa
de ser constrangedora mas sobretudo facultativa, opcional, pelo menos para aqueles que a
sabem aproveitar (o que vai levar ao autor a analisar a teoria do poder).
50
É o caso de Warms e Mgee (2003) que na sua obra não dão grande destaque ao pós-estruturalismo.
51
Hermenêutica – o estudo da interpretação do significado, perspetiva que não aceita a possibilidade
do observador poder obter um conhecimento neutral e objetivo do mundo. Heidegger (1889-1976) o
conhecimento é condicionado pela cultura, contexto e história.
52
Relembra a afirmação de que a história é feita pelos vencedores.
85
Para distinguir a perspetiva pessoal o autor avança com a noção de habitus, uma
espécie de estrutura da ação social incorporada culturalmente pelos agentes sociais. São
formas de pensar, agir e sentir relativamente estáveis, resultantes do processo de
socialização. Uma espécie de segunda natureza que influência os gostos e escolhas, sem que
por vezes tenhamos a necessidade de pensar sobre estas.
53
Recensão da obra: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2003000200028/9214
86
Nos anos setenta a antropologia feminista concentrava-se em documentar a vida e o
papel das mulheres em sociedades em todo o mundo – postura assimétrica – isto é, a
subordinação mundial da mulher – e procuravam explicar esta questão de várias perspetivas
teóricas. Ao mesmo tempo a investigação de antropólogas físicas e arqueólogas começou a
por em causa a visão do homem caçador como a base da evolução e enfatizaram, entre
outras, o facto de a recoleção e a criação dos filhos exigir uma comunicação complexa,
cooperação e construção de ferramentas, a versão da mulher recolectora obrigou a rever a
evolução.
Nos anos oitenta a pesquisa começou a afastar-se da temática da assimetria entre
géneros e passou a abordar outros temas, nomeadamente: a construção social do género, a
explicação das diferenças do estatuto, papel e poder da mulher com base em abordagens
materialistas e a especificidade da identidade da mulher. A primeira abordagem procurou
analisar como a categoria de género é feita de forma relacional e imposta…. A segunda
abordagem privilegiou a explicação materialista, nomeadamente as relações de classe, de
poder e mudanças de modos de produção para explicar a opressão das mulheres. Um dos
estudos mais conhecidos é o de Leacock, que defende que em sociedades antes do contacto
com o ocidente eram igualitárias e que a sujeição das mulheres se deve à imposição de
formas de produção capitalistas. A terceira perspetiva procurou afastar-se da ideia de
“mulher” no geral para analisar de que forma a raça, a classe e o género estruturam as
instituições culturais.
As teorias feministas colocaram as noções antropológicas em causa; levaram a
disciplina a enfatizar a multivocalidade, dando uma variedade de pontos de vista à escrita
etnográfica e enfatizando a experimentação com formas não convencionais de escrita
antropológica, como a poesia e ficção, reclamando que todas as formas de saber são
subjetivas, promovendo uma maior ênfase na auto-etnografia – autobiográfica.
As ideias pós-modernistas emergem já em linhas de investigação antropológica,
como as de Evans-Pritchard, Geertz e também investigadores como Raymond Firth, que
enfatiza a ação individual perante a estrutura social – ideia derivada da abordagem inicial de
Malinowski.
No entanto, o pós- modernismo é uma corrente de pensamento que não se confine
ao campo antropológico, ele emerge do estudo da literatura e arte, e vem colocar em causa
o princípio da objetividade e da ciência em antropologia: de forma sucinta os pós-
modernistas afirmam que a antropologia não é uma ciência social. Todavia, apesar desta
87
postura, é importante ter presente que o pós-modernismo não veio desmembrar as outras
correntes de pensamento no seio da antropologia, pelo contrário (ver Harris, 1999).
Em antropologia as perspetivas hermenêuticas e desconstrutivista (herança de
Derrida e Foucault) levaram alguns antropólogos a questionar a sua prática, nomeadamente
sobre a forma como o trabalho de campo é efetuado (questões de legitimidade e validade
das vozes em presença), as técnicas literárias para escrever as monografias e a validade das
interpretações de um autor sobre outras análises. O pós-modernismo é uma crítica ao
modernismo, a rejeição da possibilidade de grandes teorias e da ideia da completude da
descrição etnográfica, enfatizando a reflexibilidade. De certa forma esta abordagem é o
resultado do relativismo e do interpretativismo (o relativismo pode ser traçado a Boas, o
interpretativismo aos autores do simbolismo antropológico e a Geertz, considerado por
muitos como uma dos primeiros pós-modernistas). Como refere Barnard (2004, 169) para os
pós-modernistas não há a verdade, uma declaração (statement) que possa ser feito acerca da
cultura.
Aquele que é considerado um dos primeiros textos pós-modernistas é Writing
Culture (Clifford e Marcus, 1986) e reúne os textos resultantes de uma conferência realizada
em 1984. As ideias deste trabalho incluem: a antropologia desloca-se do campo (ou devia-se
deslocar) da etnografia científica para o estudo dos próprios textos etnográficos (a sua
desconstrução – no caso dos antigos – e a sua elaboração), a contextualização e
reflexibilidade face à metanarrativa decadente (a ideia da grande teoria), a tensão relativa ao
papel do antropólogo face às suas lealdades. A evolução recente, pelo menos de Marcus é o
envio da antropologia para os estudos culturais.
O trabalho de campo é considerado pelos pós-modernistas como um momento
fulcral. O antropólogo não é um observador neutro, pelo que a situação do tempo e lugar da
investigação tem de ser claramente identificados. A escrita antropológica é também objeto
de crítica, pois se a forma de recolha dos dados é subjetiva estes não podem ser analisados
de forma objetiva. A própria validade da interpretação é questionada pelo facto de, no
terreno, o antropólogo trabalhar com um conjunto limitado de informantes, colocando-se
assim a questão de saber até que ponto as suas ideias são representativas de toda a
sociedade.
Outra crítica relaciona-se com a forma como o antropólogo redige o seu texto, qual
narrador omnisciente, considerado uma forma de objetividade científica projetada no texto,
mas que cria, no entanto, uma dificuldade de perceção relativamente aquilo que o
88
antropólogo observou54. Desde os anos sessenta que alguns antropólogos tinham escrito
textos sobre a sua experiência na primeira pessoa55. Entre as obras mais conhecidas está a de
Paul Rabinow Reflections on Fieldwork in Marocco, de 197756. Outra crítica que surge na linha
da perspetiva desconstrutivista é a que alude ao facto de o próprio texto etnográfico ser o
resultado de múltiplas interpretações, às quais não está ausente a capacidade estilística57
Nesta abordagem à que desconstruir o texto pois como defende Crapanzano (cit Warms e
Gee, 2000) os dados são mudos e os antropólogos constroem significados à medida que
redigem os seus textos, pelo que há que analisar os enviusamentos que os elaboram.
Uma das críticas mais fortes aos pós-modernistas prende-se com a interpretação que
é feita pelos antropólogos. Pois se o texto é o resultado da interpretação e se esta for
autoritária então a sua visão é única e tende a ocultar interpretações diferentes. Para os pós-
modernistas a interpretação que vigora é o resultado das condições de poder e riqueza que
imperam e que é necessário proceder à desconstrução deste discurso para que outras vozes,
as das mulheres, minorias e dos pobres possam ser ouvidas.
Nesta altura o que permanece da abordagem antropológica? Tudo, como referem
Warms e Gee “o pós-modernismo não é a culminação lógica de toda a antropologia”, e na
realidade, a maioria da antropologia que se fazia e se faz atualmente não é “pós-modernista”
no sentido de ser meramente desconstrutivista de tudo o que foi feito (chegaria um ponto
em que os antropólogos já não teriam mais nada a fazer, ou então, qual cadeia entrópica,
passariam o resto do tempo a desconstruírem os seus/outros discursos…).
Na sua faceta mais extrema o pós-modernismo levaria a antropologia a ser um
campo menor da literatura pois se tudo é interpretação e ficção não se poderiam chegar a
conclusões. Há, no entanto, outra forma de ver esta perspetiva, naquilo que tem de positivo
e autorreflexivo, algo que se pode vislumbrar desde Boas, na perspetiva interpretativista. Ela
não substituiu as abordagens positivistas em antropologia. Mas, contribuiu para que os
54
Adaptando um pouco o exemplo de Warms e Gees, diríamos que uma coisa é alguém se deslocar a
uma loja de comida rápida e dizer eu vi o meu informante comer uma piza e outra é dizer que as
pessoas de Lisboa comem piza.
55
Nos anos oitenta foi grande a surpresa sobre a forma como Malinowski se desvenda no seu diário
no sentido estrito do termo, relativamente à forma como descreve os nativos na sua obra.
56
Paradoxalmente, ainda que mundialmente conhecido por esta obra, muitos autores não referem o
facto de que esta resulta de um processo posterior à elaboração da tese monográfica clássica que o
autor defendeu dois anos antes: Symbolic Domination: Cultural Form and Historical Change in
Marocco (University of Chicago Press, Chicago, 1975)
57
Já Malinowski pretendia ser o Joseph Conrad da antropologia (Malinowski s.d.) . Joseph Conrad,
também de origem polaca, escreveu em 1902 o romance Heart of Darkness (O Coração das Trevas).
89
antropólogos estejam mais conscientes de aspetos como os estilos retóricos, questões de
autoridade e de vozes.
Uma das maiores controvérsias dos pós modernistas com outros autores prende-se
com o facto de no extremo o proselitismo desconstrutivista levar ao niilismo e assim, se
todas as vozes devem ser ouvidas, como articular as vozes daqueles que são oprimidos com
aqueles que oprimem, como defender os direitos humanos e ao mesmo tempo desconstruir
a noção de humanidade? Não será o pós modernismo o reflexo do modernismo, no melhor e
no pior? Não criará as condições para legitimar o discurso daqueles que mais oprimem?58
58
Como compreender que Heidegger fosse um apologista dos Nazis durante a II Grande Guerra.
90
2.2 Antropologia aplicada: entre a academia e a prática 59
59
Texto que tem por base Sousa (2008) revisto em Sousa (2014).
91
A delimitação dos campos teóricos e aplicados faz parte já dos principais manuais
académicos de referência. Por exemplo, Kottak (2007), reconhece na Antropologia estas duas
dimensões: 1) antropologia teórica ou académica e 2) antropologia aplicada ou prática. O
autor expõe num quadro comparativo o relacionamento dos quatro campos tradicionais da
antropologia60 com as áreas usuais de aplicação (Quadro 2).
Quadro 2
60
Estes quatro campos da antropologia espelham, sobretudo, a herança da antropologia nos Estados
Unidos da América, em que se inclui, usualmente, a arqueologia no departamento antropológico (na
Europa a arqueologia está sobretudo associada à História).
92
antropólogos formados desempenham as suas funções exclusivamente fora do contexto
universitário. Analisaremos, mais à frente, como evoluiu este processo.
pesquisa passiva ou mera crítica social. É quase sempre encomendada por uma organização
fora da academia. O objetivo pode ser o fornecimento de informação que enquadre o contexto
social e cultural e as circunstâncias de populações particulares, mas normalmente os clientes
esperam recomendações concretas para fins específicos. (2000:4)
Apesar desta vocação prática e política, persiste uma ligação entre a antropologia
académica e a aplicada consentindo o desenvolvimento de novas abordagens teóricas e
procedimentos metodológicos. De facto, como refere Ervin (2000) é possível estabelecer
uma relação de continuidade entre ambas. Um continuum no qual o eixo axiológico se
transmuta com a presença do domínio das políticas, isto é medidas concretas para a ação
pública (Quadro 3).
93
Quadro 3
94
entre 1950-1970 – no qual domina uma antropologia aplicada académica e consultadoria
para o desenvolvimento. Numa última fase emerge uma “nova antropologia aplicada” de
política e prática dos anos setenta até ao presente.
61
Para saber mais: Bieder, Robert. 1989. Science Encounters the Indian, 1820-1880: The Early Years of
American Ethnology. University of Oklahoma Press. Acessível parcialmente:
http://books.google.pt/books?id=ChvKnFayeB8C&pg=PA149&lpg=PA149&dq=Indian+policy+Henry+Sc
hoolcraft&source=bl&ots=UcXZgg8-jw&sig=GQOaz0aYmRszINX2n31OvuGZ238&hl=pt-
PT&sa=X&ei=JpWXUMK2D86Thgfb3IGYDg&redir_esc=y#v=onepage&q=Indian%20policy%20Henry%20
Schoolcraft&f=false
95
A antropologia aplicada entre as duas Guerras Mundiais
62
http://pt.scribd.com/doc/87349764/PracticalAnthropology-Malinoswki
96
trabalhadores de que são exemplo os estudos de Lloyd Warner na Harvard Scholl of Human
Relations.
Após a guerra dois factos contribuíram para uma primeira retração da antropologia
aplicada e um reflorescimento da antropologia académica: a expansão do ensino
63
Para saber mais: Tambiah, Stanley. 2001. Edmund Leach: An Anthropological Life. Cambridge University Press.
Disponível parcialmente:
http://books.google.pt/books?id=WBfBkGvRmowC&pg=PA43&lpg=PA43&dq=edmund+leach+army+officer&sourc
e=bl&ots=Bzz-2ROkcJ&sig=ZExEhV5i19q_Fjc9BrT6csMaLiQ&hl=pt-
PT&sa=X&ei=B5qXUI25IMS4hAf7s4GQAw&redir_esc=y#v=onepage&q=edmund%20leach%20army%20officer&f=f
alse
97
universitário permitiu que um maior número de antropólogos obtivesse uma colocação
académica, por outro lado, muitos cientistas sociais temeram a utilização do conhecimento
científico gerado na sequência da utilização desse conhecimento na produção de bombas
atómicas.
No entanto, a antropologia aplicada não desapareceu, sendo desenvolvida a partir do
contexto académico. Entre os temas de trabalho a questão dos índios americanos foi
defendida por Sol Tax que viria a incrementar com os seus estudantes uma corrente
denominada antropologia de ação (intervenção) (Willigen, 1986), em que as preocupações
de investigação não se centravam tanto na questão académica mas sim nas necessidades das
populações com que se trabalhava, consideradas co investigadoras com os universitários.
Um tema que se tornou recorrente neste período pós colonial foi o do
desenvolvimento relativo às populações nativas americanas bem como às populações dos
novos países emergentes da descolonização em curso. Allan Holmberg (1958) desenvolve um
projeto sustentado no método de “Pesquisa e Desenvolvimento”. Denominado Projecto
Vicos, tinha como princípio a ideia de que é possível utilizar o conhecimento científico na
valorização da dignidade humana. A comunidade de Vicos fica situada numa fazenda do Peru
que foi comprada com fundos da Universidade de Cornell. Pretendia-se que o poder e
conhecimento resultantes da investigação fossem usados para melhorar a vida dos seus
participantes64.
Muitos programas internacionais começaram neste período a ser apoiados por
antropólogos sedeados em universidades. Entre os mais conhecidos citamos George Foster e
Ward Goodenough.
64
https://courses.cit.cornell.edu/vicosperu/vicos-site/cornellperu_page_1.htm
98
podiam os cientistas fazer o seu trabalho sem ter em conta as situações delicadas em que
muitas dessas populações se encontravam.
Durante este período muitos antropólogos foram contratados para trabalhar em
organizações governamentais e não-governamentais internacionais e, de forma crescente,
para grupos locais. Este facto ocorre ao mesmo tempo que siem da universidade um cada vez
maior número de formandos com graus académicos de mestrado e doutoramento que não
encontram nesta uma saída profissional. A advocacia tornou-se cada vez mais importante à
medida que alguns antropólogos começaram a usar o seu conhecimento para sustentar e
defender posições de populações e comunidades que se organizaram para obter direitos
sobre terras, bens ou controlo de atividades económicas. Estas comunidades tanto podiam
ser isoladas e remotas como urbanas, em que os problemas de racismo e pobreza se
tornaram urgentes.
O conhecimento antropológico passou a fazer parte de outras disciplinas que
procuraram nele a abordagem que lhes faltava para se confrontarem com a prática e
resolução dos problemas sociais. A importância desta área observa-se pelo desenvolvimento
de programas de antropologia aplicada em instituições académicas ao longo dos anos
setenta, ligando níveis académicos, como mestrados e doutoramentos, a estudos concretos
de terreno e formando estes um trampolim para a empregabilidade dos antropólogos fora da
universidade. Ao mesmo tempo, este campo desenvolve-se e criam-se publicações próprias
da área interligando praticantes, permitindo partilhar experiências, exemplo das Society for
Applied Anthropology e a sua revista Human Organization ou Practicing Anthropology na
Universidade da Florida. Na década de 80 a American Anthropological Association criou a
unidade National Association for the Practice of Anthropology.
99
mais associada à pesquisa tradicional a sua produção é resposta direta a um pedido ou
necessidade sentida e manifestada).
2. pesquisa aplicada: que tem por objetivo a resolução de questões concretas, sendo sujeito
por isso não só a critérios científicos como a validade e a fiabilidade mas também a critérios
de utilidade, como a relevância, o significado e a credibilidade;
100
•Responsável pela análise dos resultados da pesquisa – interpreta resultados de
pesquisa de modo a que decisores políticos, programadores e administradores
possam tomar decisões tendo em conta questões culturais sensíveis;
•Advogado – apoia ativamente um grupo ou comunidade;
•Formador – dá formação profissional em contextos interculturais sobre a cultura de
uma comunidade ou sobre técnicas de investigação;
•Mediador cultural – atua em ligação entre a entidade que fornece o programa e a
comunidade local;
•Testemunha qualificada – provê dados de pesquisa relevantes como parte de um
processo judicial;
•Promotor de campanhas públicas – promove educação pública sobre a temática
usando os média e encontros públicos;
•Administrador / gestor – não sendo comum, alguns antropólogos participam
diretamente como responsáveis de programas assumindo funções diretivas;
•Agente de mudança – usualmente desempenhado como parte de outras tarefas,
esta função ocorre sobretudo no contexto de Antropologia de ação/intervenção ou
Antropologia do desenvolvimento;
•Terapeuta – é um papel raro, também designado como antropólogo clínico, envolve
o conhecimento especializado de terapias específicas.
Feita uma análise descritiva de modelos e funções cumpre questionar que desafios
éticos suscitam o desempenho destas atividades. As questões éticas, e as suas implicações,
são preocupações prementes pois colocam-se a montante e a jusante de qualquer prática
antropológica, académica ou aplicada (Laraia, 1994). Todavia, se no quadro académico há um
101
conjunto de normas relativamente estabelecidos sobre a conduta da pesquisa e a divulgação
dos resultados, esta matéria é mais complexa em relação aos praticantes da antropologia
fora do quadro académico. Segundo Doughty (2005) as considerações éticas preocupam
profundamente os antropólogos pois as responsabilidades são acrescidas tendo presente a
proximidade e intimidade como, no contexto da pesquisa, a informação obtida resulta de um
relacionamento de confiança.
Quais são então os princípios essenciais da ética antropológica? Podemos distinguir
na antropologia a existência de princípios éticos que se cingem à atividade académica e os
princípios éticos que se aplicam no contexto da antropologia aplicada? Estes últimos não são
uma mera extensão daqueles e pode dizer-se que ambos se influenciaram tendo mesmo a
prática antropológica aplicada motivado uma maior reflexibilidade no domínio académico.
Segundo Ervin (2000, 30), há quatro princípios essenciais que têm que ser
assegurados no desempenho de uma atividade antropológica aplicada são:
1. o consentimento informado
4. s disseminação do conhecimento
102
esperado dos participantes bem como os riscos e benefícios que estes poderão correr; o
segundo documento, muitas vezes elaborado como uma ficha, será preenchido pelo
participante que reconhece ter conhecimento dos objetivos, riscos e benefícios da sua
participação.
A noção de confidencialidade e direitos pessoais à privacidade é fundamental. O
antropólogo deve assegurar que os nomes verdadeiros dos participantes ou informantes não
sejam usados nos relatórios ou publicações por esse facto permitir a identificação da
comunidade ou grupo estudado. Esta prática não isenta que a comunidade/organização não
seja reconhecida por terceiros, sobretudo se o caso obtiver muita exposição pública. Todavia,
é essencial que, a ocorrer essa divulgação pública, a comunidade possa validar esse facto.
A disseminação de conhecimentos é um processo essencial. Ao contrário do estudo
académico o trabalho aplicado realizado pelo antropólogo destina-se a ser devolvido não aos
seus pares mas às pessoas que serão as beneficiárias do seu estudo. Não deve haver
secretismo sobre os resultados da pesquisa e a comunidade deve ter acesso aos resultados
do estudo. O próprio antropólogo poderá participar em apresentações/discussões públicas
sobre o seu trabalho.
Por sua vez, Willigen (1986, 44) enuncia a privacidade, o consentimento, a utilidade e
a comunicação como princípios éticos fundamentais. Embora haja uma continuidade entre os
princípios de ambos os autores a noção de utilidade empregue por este tem uma relevância
semântica particular pois coloca a ênfase na questão: quem lucra com o trabalho? Este
enunciado alerta para o facto de ser necessário tornar claro quem é que beneficia com o
estudo. Como o autor alerta a informação pode ser usada para controlar pessoas, isto é:
conhecimento é poder. Assim, é necessário identificar claramente quem é o cliente e quais
são os seus representantes (a existência de subgrupos dentro da comunidade pode levar a
uma utilização abusiva de informação) e o que estes pretendem fazer como estudo
Um exemplo atual que ilustra bem este dilema envolve a polémica associada com a
utilização de antropólogos pelo exército americano em vários cenários de guerra, como o
Afeganistão65. Todavia, esta não é uma prática recente, basta para tal relembrar o trabalho já
mencionado de Ruth Benedict “O Crisântemo e a Espada”, publicado originariamente em
1946, com a diferença que agora os antropólogos fazem parte direta das unidades de
combate.
65
Ver: Globo.com: EUA recorrem a antropólogos para resolver conflitos no Afeganistão 05/10/07
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL145075-5602,00-
EUA+RECORREM+A+ANTROPOLOGOS+PARA+RESOLVER+CONFLITOS+NO+AFEGANISTAO.html
103
A formação de associações profissionais de antropólogos vocacionadas para a
antropologia aplicada manifesta o crescimento desta área de trabalho. Uma das
preocupações de muitas destas organizações foi o estabelecimento de códigos éticos.
Apresentam-se de seguida (Quadro 4) dois exemplos de códigos de duas das maiores
entidades na área: a Nacional Association for the Practice of Anthropology (NAPA)66 e a
Society for Applied Anthropology (SFAA)67, ambas sedeadas nos Estados Unidos da América:
Quadro 4
NAPA SFAA
Respeitar os direitos humanos e o bem- Para com as pessoas que estudamos
estar dos grupos afetados por decisões, temos a obrigação de revelar os
programas ou pesquisas nas quais os objetivos, métodos e patrocínio da
antropólogos tomam parte. pesquisa.
66
http://practicinganthropology.org/
67
http://www.sfaa.net/
104
Podemos observar nas diferentes formulações os princípios enunciados pelos autores
analisados. É interessante a ressalva relativa aos direitos humanos e bem-estar formulada
pela NAPA. Obrigações, compromissos e responsabilidade parecem ser os princípios
essenciais em relação aos grupos sociais com quem se trabalha, os empregadores, colegas e
a sociedade em geral. É evidente que se trata de um guião genérico de princípios. Cada caso
concreto tem idiossincrasias próprias que requerem uma abordagem específica e a ênfase
num ou noutro dos domínios enunciados. Por último, a postura do antropólogo pode
afirmar-se pela simples recusa de desenvolver um trabalho. Para além de questões legais,
estas atitudes resultam igualmente de resoluções morais.
Moonen (1988) indica que a antropologia é uma disciplina nova no Brasil mas que
desde cedo se notou a preocupação por parte de alguns autores com a ética profissional face
às populações estudadas, nomeadamente as populações indígenas. Deve igualmente
colocar-se ao serviço de grupos considerados marginais e minoritários (“negros, camponeses,
trabalhadores rurais e urbanos, favelados, menores abandonados, delinquentes juvenis,
mendigos, domésticas e outros grupos oprimidos ou marginalizados” 1988,59)
Tradicionalmente, os índios são aqueles que mais captaram a atenção dos
antropólogos embora o autor critique severamente a universidade por não preparar os
antropólogos para lidar numa postura crítica com estes temas, mas somente a sua
capacidade de analisá-los “cientificamente”.
Já em 1977 Ribeiro e Davis, citado por Moonen (1988, 58) listavam as preocupações
éticas e profissionais que os antropólogos deviam ter para com estes:
(1) denunciar frente à opinião pública cada atentado contra os grupos indígenas;
(2) buscar formas de devolver aos índios e outras populações que estudamos
aquela parte do conhecimento que deles alcançamos, que lhe possa ser útil
em seus esforços para sair da situação dramática em que se encontram;
105
(3) incluir na temática dos nossos estudos, com marca de prioridade, os
problemas de sobrevivência, de libertação e de florescimento dos grupos
indígenas;
(4) montar uma campanha agressiva contra todas as tentativas de remoção ou
relocação compulsória de povos indígenas de seus territórios e terras
originais;
(5) documentar publicamente o papel dos poderosos interesses econômicos,
muitas vezes internacionais ou multinacionais, que são envolvidos
directamente na expropriação maligna e ilegal da terra;
(6) denunciar as várias ideologias disfarçadas de aculturação forçada,
denominadas eufemisticamente “programas de integração nacional” “(Ribeiro
e Davis in Moonen, 1988, 58)
(7) “devolver aos índios o seu passado histórico, contado do ponto de vista
indígena, de tal maneira que possa ser útil, principalmente para a
recuperação dos seus territórios e a conquista da sua libertação;
(8) orientar os índios quanto aos funcionamento da sociedade nacional, seus
direitos e deveres, os perigos e as possibilidades que a mesma oferece;
(9) assessorar os índios em projectos de “desenvolvimento comunitário” e outros
elaborados por eles mesmos;
(10) assessorar os índios sobre as possibilidade, estratégias e consequências de
uma verdadeira “libertação indígena”, incluindo a assessoria e análise crítica
dos movimentos indígenas locais, regionais e nacionais.” (Moonen, 1988,
58/59)
A questão indígena coloca sérios desafios à Antropologia no Brasil, como refere Azanha
(s.d.)
Para a política indigenista oficial, o ponto de vista da Antropologia deve, sempre, ser
“neutro”, não pode “incitar a ação” sob pena de repressão. É o caso de nos
perguntarmos o que teme o Estado, já que ele controla muito mais o nosso trabalho de
antropólogos de que a ação dos garimpeiros, fazendeiros e salesianos. Teme – e sempre
temeu – que o nosso envolvimento com as “razões subjetivas” dos índios possa
acarretar ações que levem a contestações do seu poder. E foi isto o que, acreditamos,
ocorreu e tem ocorrido de 1975 para cá: o “envolvimento” dos antropólogos com a luta
dos índios.
Hoje, o maior envolvimento de muitos antropólogos com as “razões subjetivas”, dos
índios levou, pensamos, a uma mudança na qualidade da observação etnológica – que,
ao invés de ter a “assimilação ou extinção” como seu horizonte, descobre que as
sociedades indígenas guarda a capacidade de reagiram à situação de expropriação e
106
dominação conforme seus próprios parâmetros (é a chamada “resistência”). E descobre
porque esta observação se fez crítica em relação ao futuro destas sociedades e tornou-
se atenta aos seus motivos.
107
aspecto civilizador que a presença portuguesa tinha. Segundo Afonso (2006, 160) o criticismo
aproxima Dias das estratégias de antropologia-advocacia.
No período pós 1974 observou-se a institucionalização da antropologia em Portugal
com vários cursos a surgirem em Portugal e a absorver um primeiro grupo de formandos
nesta disciplina. Esta tendência em breve se esgotaria conjugada com a dificuldade em obter
lugares na academia e no ensino secundário (onde a antropologia era ensinada como opção).
Neste período inicial a antropologia académica e aplicada não se dissociam mas com a
crescente saída de licenciados em antropologia muitos antropólogos encontram-se, por
necessidade ou escolha, a trabalhar em áreas novas. Os cursos começaram a incorporar
disciplinas com uma dimensão mais prática e num caso particular, um curso foi criado na
Universidade de Trás-os-Montes: Antropologia Aplicada ao Desenvolvimento. A esta
dimensão junta-se a criação na Universidade Fernando Pessoa de um Centro de Antropologia
Aplicada. Algumas universidades procuram ainda aumentar a empregabilidade dos seus
licenciados através da realização de estágios (caso do ISCTE - Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e do Emprego).
Afonso (2006, 164) reclama que ainda não se pode falar da Antropologia Aplicada em
Portugal como um campo subdisciplinar autónomo. Há, no entanto, um conjunto de áreas
onde é possível observar a emergência de prática antropológica. Prática que ainda se
encontra para muitos associada com uma imagem negativa da antropologia nas colónias e
por outro lado é ofuscada pela presença e apelo de outras ciências sociais mais conhecidas
como a sociologia.
108
Outro estudo que contou com a presença de antropólogos foi o Plano de Minimização
de Impactes do Alqueva, vocacionado em particular para a povoação alentejana Aldeia da
Luz que foi submersa pela barragem. No campo das migrações o estudo “Presentes e
Desconhecidos: uma análise antropológica sobre mobilidade e mediação com populações
migrantes no Concelho de Loures” realizado também pelo CEAS, envolvendo sociólogos e
antropólogos, mostra o interesse de alguns municípios em lidar com as novas realidades
multiculturais. Exemplo comentado também é o do trabalho desenvolvido pela autora em
Setúbal no Bairro da Bela Vista com o título “Antropologia e Desenvolvimento local: um
estudo piloto no bairro da Bela Vista”.
109
3.Campos e objetos da antropologia social e cultural
Tapo: refeição final após a reconstrução da Casa Opa, junto à Casa aliada
Bosokolo.As Casas sagradas são um bom exemplo da interação de parentesco e
poder. 2004. L.Sousa.
Pressupostos do tema
Objetivos gerais
110
3.1 Antropologia e parentesco
Pressupostos do tema
Objetivos gerais
111
3.1.1 O parentesco no ciclo da vida
68
Pode consultar um exemplar da obra aqui: https://archive.org/details/systemsofconsang00morgrich
112
às Torres Straits, o autor desenvolve um método de recolha genealógico que vai constar da
edição de 1912 da Notes and Queries on Anthropology69:
Para poderem analisar os diagramas que vão ser apresentados listam-se de seguida os
principais símbolos, seguindo (Santos, 2002, 127-128; 2006, 30-31) e Ghasarian (1999, 35-
36).
indivíduo falecido
ou casamento
69
As Notes and Queries on Anthropology, editado pelo Royal Anthropological Institute of Great Britain
and Ireland; British Association for the Advancement of Science, foram publicados pela primeira vez
em 1874. Serviam fundamentalmente administradores, missionários ou viajantes procederem à
recolha de informações etnográficas de uma forma sistemática. A obra sofreu uma evolução e a
edição de 1912 já era essencialmente vocacionada para antropólogos. Pode consultar o exemplar da
6ª edição aqui:
https://ia700303.us.archive.org/2/items/NotesAndQueriesOnAnthropology.SixthEdition/NotesAndQu
eriesOnAnthropology.pdf
70
Usado sobretudo em explicações hipotéticas ou exercícios em que é indiferente o género do
termo/alter.
113
casamento polígamo
divórcio
filiação
marido e mulher
com filhos (procriação/descendência)
irmão e irmã
A aparente complexidade destes esquemas tem alguma utilidade para além dos
antropólogos que trabalham questões de parentesco? Um dos usos mais recorrentes destes
esquemas, para além do interesse crescente que do seu uso nas “árvores” genealógicas, é
na medicina. Designados por genogramas estes esquemas permitem analisar a história
médica de uma família através das suas gerações. Veja um exemplo aqui:
http://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/viewFile/3676/2943
114
Consanguíneos:
Pai P
Mãe M
Filho Fo
Filha Fa
Irmão Io
Irmã Iã
Tio IoP/IoM (irmão do pai/da mãe)
Tia IãP/M (irmã do pai/mãe)
Sobrinho FoIo/FoIã (filho do irmão/da irmã)
Sobrinha FaIo/FaIã (filha do irmão/da irmã)
Primo FoIoP/FoIoM/FoIãP/FoIãM (Filho do irmão do pai/
/do irmão da mãe/da irmã do pai/da irmã da mãe
Prima FaIoP/FaIoM/FaIãP/FaIãM (filha do irmão do
pai/do irmão da mãe/ etc.
Primogénito Pgt
Benjamim Bjm
Afins:
Marido Mdo
Esposa/Mulher Esp/ Mer
Cunhado IoMdo/IoMer/MdoIã/MdoIãMdo/MdoIãEsp (irmão do
marido/irmão da mulher/marido da irmã/marido da
irmã do marido/marido da irmã da esposa.
Cunhada IãMdo/IãEsp/EspIoMdo/EspIoEsp (irmã do
marido/irmã da esposa/esposa do irmão do
marido/esposa do irmão da esposa.
115
Os primos paralelos definem-se pelo facto de serem indivíduos descendentes de
irmãos do mesmo sexo. Por seu turno, os primos cruzados são descendentes de irmãos
de sexo diferente. Os primos do lado paterno designam-se ainda “patrilaterais”
enquanto do lado materno se designam matrilaterais (diagrama 1).
Geração: este princípio permite a Ego distinguir as gerações ascendentes das descendentes.
Linear versus colateralidade: este princípio é essencial e permite a Ego distinguir os parentes
que estão na mesma linha (avó-pai-filho) dos parentes colaterais, i.e.: os que são
descendentes de um antepassado comum com Ego mas que não são seus ascendentes ou
descendentes diretos. Ex:. os irmãos e irmãs (germanos) e os primos são colaterais.
Género: alguns termos diferenciam o género (tio/tia) mas há outros em que tal não é
percetível (ex.: cousin em inglês).
116
Consanguinidade versus afinidade: a distinção entre os parentes de Ego relacionados com
ele por “sangue” (consanguinidade – todavia, o “sangue” não e forçosamente o elemento
equacionado em todas as situações, veja-se o caso das adoções). O termo consanguinidade
tem uma forte conotação europeísta). Os parentes por afinidade são adquiridos sobretudo
por via do casamento. No entanto, há formas de aquisição diferentes: ex:. apadrinhamento.
O sexo dos parentes pode ser um elemento diferenciador. Um exemplo que analisaremos de
seguida é a diferenciação entre primos paralelos e primos cruzados que depende do sexo dos
seus progenitores.
Bifurcação: relativo ao lado da família, com base neste princípio os termos de parentesco
distinguem os parentes do lado da mãe dos do lado do pai. Exemplo, caso do sistema
iroquês, em que há uma diferenciação.
71
Na tradição dos estudos do Sudoeste Asiático, nomeadamente da Indonésia e Timor Leste, a gestão
e manutenção destes momentos críticos da vida social tem a feliz designação de “fluxo de vida”, título
da obra “The Flow of Life- Essays on Eastern Indonesia”, editada por James Fox, em 1980.
117
A conceção
O “ciclo vital” (Hoebel e Frost, 2001, 160-174) inicia-se com a conceção. Este ato não é
em todas as culturas veiculado ao ato sexual, nem em todas é reconhecido a ambos os
progenitores um papel fundamental. De igual forma, o anúncio do estado de gravidez, não é
um evento que se limite aos cônjuges, a comunicação do estado da mulher tem importância
para ambas as famílias.
Em algumas sociedades a conceção é considerada milagrosa, enquanto noutras ela é
vista como a reencarnação do espírito de um antepassado, exemplo dos trobriandenses
estudados por Malinowski, ou dos Baruya, estudados por Godelier (2003). Fortune refere em
relação aos habitantes de Dobu:
72
Estas conceções devem ser vistas de uma forma mais holística pois esta ideologia ajuda a cimentar a
luta que os homens Baruya têm para manter a hegemonia sobre as mulheres. Para compreender
melhor esta questão consulte Godelier (2003).
73
Os Bunak são um povo de língua não Austronésia que habita a parte central da ilha de Timor.
Encontram-se divididos entre o Estado de Timor-leste e Timor Ocidental, Indonésia (para saber mais
consultar Sousa, 2010).
118
(feminino) com o quente (masculino) à imagem da terra (feminina) que recebe as sementes e
a fertilização das chuvas (masculinas) Friedberg (1980)
O recolhimento
74
“Público - 24 Dez 03, Partos em Casa Estão a Aumentar em Portugal Por Catarina Gomes “(…)
Depois de durante dois anos ter estabilizado na casa dos 500, no ano passado os partos domiciliários
subiram para 751. Uma proposta do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses lançou recentemente o
debate: a forma de fazer face à falta de médicos nas maternidades e de combater "a medicalização"
de um ato que é natural passa por incentivar esta prática. (…) Levar adiante a proposta seria "um
desastre" e "um retrocesso de 50 anos", defende por sua vez o presidente da Sociedade Portuguesa
de Obstetrícia e Ginecologia. (…)”
119
Bunak -visita de parentes, ao centro o oto po` - tronco de
madeira que arde continuamente, 2005. LSousa.
Em alguns casos após o parto a mulher retoma a suas atividades sendo o homem
quem vai para a cama para recuperar do parto. Esta prática designa-se couvade, ou falsa-
gravidez, e é praticada em algumas culturas da Ásia, América do Sul e mesmo na Europa até
recentemente junto dos Bascos (Akoun, 1983). Esta prática consiste em o pai se deitar junto
do recém-nascido para o “chocar” (couver), recebendo as felicitações e votos habitualmente
destinados à mãe.
Por este gesto simbólico, o pai participa socialmente no nascimento do filho.
Semelhante rito parece ser atribuído sobretudo a certas sociedades matrilineares (…) O
recurso a este costume permitiria assim que o marido recuperasse os seus direitos de
paternidade sobre o filho da sua mulher. (Akoun, 1983, 132). Este é um período de intensa
atividade social com a visita de familiares e aliados que vêm conhecer o novo membro da
família pois este membro vem repor nas relações de aliança, numa perspetiva estruturalista,
mais um elemento de troca social. Entre os Bunak durante esta fase inicia-se a procura o
nome da criança (o nome “gentio”), que é revelado em sonhos entre os parentes uterinos da
mãe.
Por norma o parto é um momento fundamental para muitas sociedades, que
consideram o nascimento como essencial para dar continuidade aos grupos sociais
envolvidos, mas também, a um título pessoal, reconhecer o papel social da mãe e pai. As
relações de parentesco estão fortemente associadas a uma componente biológica. Todavia,
parentesco pode ser classificado em “real” e “fictício”. O parentesco “real” é usualmente
derivado e uma relação biológica, mas este não é um facto universal.
Um exemplo clássico é o de Malinowski em “A vida Sexual dos Selvagens”. Este autor
120
refere que os trobrianders não acreditavam que o pai tivesse algo a ver com a conceção da
criança. Para estes, a geração de uma criança estava associada a um espirito do clã da
mulher.
O parentesco fictício associa-se a relações no qual as pessoas se tratam por termos
de parentesco mas, de facto, não estão relacionadas. Neste contexto, a terminologia de
parentesco assume-se com um elo de ligação e marcador de obrigações sancionadas socio
religiosamente grupalmente. O exemplo deste tipo de parentesco é o atributo de
denominação de “irmãs” e “pai” entre movimentos religiosos ou outros.
Por descendência é usualmente reconhecido o conjunto de pessoas que têm origem
em determinado individuo, Ego (e para quem este é o seu ascendente). Todavia, o termo
filiação75, compreende uma dimensão mais social pois constitui a regra através da qual um
determinado individuo adquire76 parentesco na sociedade em causa. Nesta aceção a filiação
implica direitos e deveres por parte do novo membro. Uma definição de trabalho pode ser
avançada: “Conjunto de direitos e obrigações que resultam da inclusão num determinado
grupo pela transmissão de posições filiativas de uma geração a outra”. (Barry et al,
2000.725).
Como refere Ghasarian (1999) “A filiação é o princípio que governa a transmissão do
parentesco”, através do qual é atribuído o estatuto de pertença a um determinado grupo de
filiação. Este princípio está relacionado com uma determinada ideologia de descendência
que a sociedade em causa veicula como preceito, a que Gasahrian (1999, 50) denomina “
ideologia da procriação”77.
De facto, é importante não associar filiação exclusivamente a relações de
consanguinidade. Como refere Santos: “(…) a filiação define relações de consanguinidade
reais ou fictícias que separam de outros grupos de consanguíneos diferentes e os torna
possíveis aliados, segundo a seleção imposta pelo tabu do incesto.” (2002, 153).
O exemplo mais concreto desta situação é a que advém da relação de adoção. O
75
Não analisaremos aqui a controvérsia de tradução existente entre a tradição inglesa, que usa o
termo descendência no sentido em que, usualmente, se emprega, na tradição francesa o conceito de
filiação.
76
A filiação é, por norma, atribuída (sobretudo nos sistemas unilineares). Todavia, pode ocorrer
situações em que a filiação é objeto de aquisição por escolha ou opção (sobretudo nos sistemas de
filiação indiferenciados).
77
Esta tensão não pode ser dissociada da ideologia dominante sobre o papel do homem e da mulher
na sociedade em causa, assim como das relações de poder e de autoridade que lhes estão atribuídas.
Este aspeto é sobretudo comentado no caso do sistema matrilinear, que não se pode confundir de
forma direta com “matriarcado”. De facto, mesmo nas sociedades matrilineares o papel e o poder dos
homens (enquanto irmãos das mulheres e tios dos filhos destas) são determinantes.
121
“pai” e a “mãe” são reconhecidos socialmente como detentores de um papel e estatuto
perante o “filho” ou “filha”, embora não estejam a ele/a ligados por laços de
consanguinidade. Esta diferenciação é relevante pois, como refere Santos (2002) procede à
distinção essencial entre genitor e pai/mãe social, realidades que nem sempre coincidem78.
No entanto, esta distinção não implica o desconhecimento do papel biológico das partes
envolvidas. O exemplo dado por Santos (2002) é o dos Nayar, do sul da Índia, que distinguem
três papéis sociais: o papel de pai social, de genitor e detentor da autoridade.
Qual é a relevância da filiação? A filiação é essencial porque ela determina, em cada
sociedade, o conjunto de parentes com quem se pode ou não casar (seguindo as regras de
incesto) e, por outro lado, define as condições particulares em que se limitam os direitos e
obrigações decorrentes da herança e sucessão. Estes aspetos são essenciais na atribuição do
papel e estatuto social de cada individuo na sociedade em causa.
George Murdock (1967 [1949], 59) no seu estudo clássico comparativo de 250
sociedades indica os seguintes dados para a distribuição das regras de filiação: A filiação
unilinear por via patrilinear é a mas comum, seguida da filiação bilateral (indiferenciada). A
matrilinear registava-se em 52 sociedades e finalmente, com menor representatividade a
dual.
Regra de
Número %
filiação
Patrilineal 105 42%
Matrilineal 52 21%
Dual 18 7,2%
Bilateral 75 30%
Total 250 100
Teoria da filiação:
A esta teoria opôs-se a teoria da aliança, proposta estruturalista de Lévi-Strauss (1949), que
privilegia a análise das redes de afinidade que se estabelecem entre os grupos, enfatizando este
propósito como primordial nas relações de parentesco.
78
Relembramos que podem ocorrer duas situações possíveis aquando da reprodução biológica e a sua
articulação com o reconhecimento social do mesmo. Assim, há o genitor (reconhecido como pai
biológico) e a genetrix (reconhecida como mãe biológica) que podem ou não coincidir com o pater (pai
reconhecido socialmente, incluindo o caso da adoção) e a mater (mãe reconhecida socialmente,
nomeadamente em situação de adoção).
122
Existem três grandes tipos de organização do parentesco com base na filiação:
Filiação
patrilinear matrilinear
Filiação unilinear
79
De agnatos, “(…) indivíduos que descendem de um mesmo antepassado exclusivamente pelo lado
dos homens.” (Panoff e Perrin, s.d., 14).
123
Diagrama 1: filiação patrilinear
3 4 5 6
1 2
9
7 8 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19 20 21
22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36
37 38 39 40 41 42 43 44
124
Sendo a que mais representatividade tem entre os princípios de descendência podemos
encontrar vários exemplos etnográficos para além dos citados. Historicamente os princípios
patrilineares eram os usados entre as “tribos” bíblicas de Israel e entre os Gregos e Romanos.
Os Kemak, ou Ema, de Timor-Leste, são outro exemplo de filiação patrilinear, este
último com base na patrilinhagem da Casa80 (Clamagirand, 1980). Tal como no caso
muçulmano emergem atualmente tensões relativas à pertença dos filhos em caso de
divórcio. Tradicionalmente estes são da Casa do marido, norma que é estabelecida pelo
contrato de casamento tradicional, assinalado por um conjunto de prestações e
contraprestações pecuniárias e de bens materiais e animais entre as famílias. O exemplo
Kemak é igualmente relevante para analisar o papel da mulher neste sistema. De facto a irmã
de Ego no diagrama tem um estatuto de relevo sobretudo se permanecer solteira. O que
ocorre em muitas das situações, como os exemplos em causa, é que através do casamento
esta passa a pertencer ao grupo do marido. Nestas condições, por norma associadas a
padrões de residência patrilocais, o poder da mulher no seu grupo de origem enfraquece.
Filiação matrilinear (ou uterina)
80
As sociedades de Casas foram mencionadas por Claude Lévi-Strauss, como referido por Santos
(2002). Analisaremos melhor estas de seguida.
125
(irmão) e 25 (irmã) mas, como podem observar, nem ele (nem o seu irmão) transmite a
filiação materna, o que sucede somente com a sua irmã.
3 4 5 6
1 2
9
7 8 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19 20 21
22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36
37 38 39 40 41 42 43 44
126
lal gomo, os “senhores da palavra” de cada Casa, a noção
do casamento sul sulik “lança e sabre”, correspondente a Matrilinearidade e matriarcado.
3 4 5 6
1 2
7 8 9 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19 20 21
22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36
37 38 39 40 41 42 43 44
127
Exemplos deste sistema são, como refere Santos (2002, 159), os yakö da Nigéria, que
(…) herdam os bens fundiários do pai e prestam culto aos ancestrais paternos enquanto
recebem os bens móveis e dinheiro da parte da mãe (do tio uterino concretamente). Nos
ashanti do Gana, o pai transmite o espírito (o "ntoro") enquanto o sangue (o "abusua") é
transmitido pela mãe.
3 4 5 6 7 8
1 2
9 10 11 12 13 14
15 16 17 18 19 20 21 22 23
24 25 26 27 28 29 30
31 32 33 34 35 36 37 38
29
39 40 41 42 43 44 45 46
9
128
Filiação paralela
3 4 5 6
1 2
9
7 8 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19 20 21
22 23 25 26 27 28
24
29 30 31 32 33 34 35
36 37 48 39 40 41 42
No diagrama podemos observar que Ego “ 24” está associado ao seu pai (16), avó (7)
e bisavó (1). Por seu turno, a sua irmã, “25”, filia-se na linha da sua mãe (17), avó (10) e
bisavó (6).
129
como o seu filho é quebrado com a apresentação da criança aos elementos naturais e à
comunidade, momento em que para algumas sociedades a criança se torna efetivamente
membro da “casa” e da “comunidade”.
Entre os Bunak um pequeno ritual é feito uma semana após o nascimento da criança
denominado aru po` – cabelo sagrado. Consiste no corte do cabelo e unhas da criança que
serão levados pelo pai (ou avô) e depositados na base de uma árvore determinada como
“fria”, caso do coqueiro ou de uma bananeira. Neste ritual, a criança é trazida pela primeira
vez para fora do local abrigado e quente que é a cozinha. Embora possa variar de família
para família há o hábito de colocar nas mãos da criança objetos que sejam determinantes
para o seu futuro (no caso ilustrado pela foto foram colocados um caderno e uma caneta).
As cerimónias para dar o nome são momentos cruciais da vida social. Hoebel e Frost
(2001, 164) ilustram este momento entre os índios omahas com invocação feita pelo
sacerdote oito dias após o nascimento e do qual apresentamos o excerto inicial:
130
Ó Vós, ventos, Nuvens, Chuva, Névoa, vós
todos que vos moveis no ar, suplico que me
ouçais!
Uma vida nova chegou para o meio de vós,
Imploro-vos que o consintais!
Tornai o seu caminho plano para que ela
possa alcançar o cume da segunda colina! (…)
Como referem os autores este ritual não assegurava só por si à criança o estatuto de
membro real da tribo, transição que só se operava posteriormente quando esta caminhasse.
Infância e puberdade
131
sentido, um fator de independência social. Citando Cohen, Hoebel e Frost (2001) classificam
dois tipos de sociedades:
Maturidade
132
Em certas sociedades a idade etária não é similar à idade social. O casamento e, sobretudo, o
nascimento do primeiro filho, é determinante para o reconhecimento pessoal da maturidade
e a possibilidade do homem poder desempenhar determinados papéis.
133
David Schneider, que advoga que a família é uma unidade cultural particular que
compreende diversos tipos de parentes, e se estrutura em diversas formas, não
exclusivamente consanguíneas. Uma das suas obras centrais foi American Kinship a Cultural
Account, de 1968.
Todavia, será pertinente registar que, relativamente às funções da família persiste,
apesar dos anos e polémicas, o referencial estabelecido por Murdock em 1949 (citado em
Bernardi, 1988, 288). Segundo o autor as funções da família são quatro: sexual, económica,
reprodutiva e educativa. A função sexual deriva do facto de através do casamento serem
instituídas as relações sexuais consentidas e socialmente aceite. Por outro lado a família é
uma unidade económica no sentido em que desempenha uma comunidade de interesses. É
ainda no seio da família que são expectáveis a gestão da reprodução. Por fim, a função
educativa resulta do facto de a família ser, em primeira instância, a instituição responsável
pela educação dos seus descendentes, através do processo de enculturação/socialização
primária.
A família nuclear
81
De facto, se analisarmos o Direito da família em Portugal este também apresenta o mesmo
pressuposto uma vez que distingue “casal”, formado pelo casamento, de família – associada à noção
de descendência e a sua regulação.
134
por Barnard e Spencer, 2004) e de Robin Fox82 (1986) que sustentam que a unidade essencial
da família é a díade composta pela mãe e as filhas/filhos (Diagrama 10).
A noção de família nuclear, que em Direito é também definida como família natural,
está associada à teoria da filiação, segundo a qual o principal objetivo da família é
justamente promover a procriação e salvaguardar a o processo de regulamentação da
filiação. Todavia, Lévi-Strauss, apresentou uma proposta diferente, introduzindo no que
denominou “átomo do parentesco” (Diagrama 9) um 5º elemento: o irmão da esposa. Desta
forma ele procurou demonstrar a importância e relevância da aliança na constituição das
famílias e dos grupos de parentesco.
As sociedades ocidentais, nomeadamente a europeia, têm também uma prevalência
deste tipo de família, carateriza da pela habitação em comum deste grupo restrito. Nestas
sociedades a tendência é a “decomposição” progressiva da família, associada a cada novo
casamento dos filhos, persistindo a díade como elemento base (todavia, como refere
Ghasarian (1999). Esta situação demonstra a
relevância dada na continuidade assegurada pela Exemplo: para além das sociedades
ocidentais já referidas as famílias
descendência. nucleares têm nos esquimós, ou inuit, um
dos exemplos etnográficos mais
pertinentes.
82
Para saber mais sobre Robin Fox consultar: http://robin-fox.com/home.htm
135
na qualidade de filhos e germanos subsiste uma relação com a família onde ego nasceu (a
família de orientação), por outro, enquanto cônjuge e pai/mãe, ego cria uma nova família
(família de procriação).
2. Famílias poligâmicas
83
É importante ressalvar o facto de que, como veremos na filiação, podem ocorrer duas situações
possíveis aquando da reprodução biológica e a sua articulação com o reconhecimento social do
mesmo. Assim, há o genitor (reconhecido como pai biológico) e a genetrix (reconhecida como mãe
biológica) que podem ou não coincidir com o pater (pai reconhecido socialmente, incluindo o caso da
adoção) e a mater (mãe reconhecida socialmente, nomeadamente em situação de adoção).
136
Conforme a organização social da sociedade poderemos ter uma prevalência de
famílias poliginicas, situação em que um homem tem mais do que uma esposa (Diagrama
12), ou poliândricas (casos, mais raros, em que uma mulher tem mais do que um marido).
3. A família extensa
Exemplo: os Baganda (Uganda) e Tanala ( Madagascar). O caso das famílias poliândricas tem
no Nepal e Tibete alguns exemplos. Explore a web para saber mais, indique os resultados dessa
investigação no Fórum.
137
Diagrama 13: família extensa
Por outro lado, a família indivisa ou alargada (Diagrama 14) é constituída por um
grupo residencial que reagrupa várias famílias nucleares da mesma geração ou de gerações
diferentes, apresentando uma dimensão mais horizontal, ou lateral, do que a família extensa.
Exemplo: Um exemplo etnográfico da família extensa pode ser encontrado entre os Kalinga
(Filipinas) (Marconi e Presotto, 1987). Pesquise na web e apresente os resultados da sua
investigação no Fórum.
138
Outro conceito associado a este é o de família recomposta: grupo residencial que se
reestrutura em função do ajuntamento na mesma família de elementos sobrevivos de
situações de viuvez, ou de processos de divórcio, e a respetiva prole.
A residência matrimonial, a casa ou lar, para além da sua dimensão física, espacial, e
arquitetónica, representa um núcleo central de sociabilidade e de estruturação das relações
sociais resultantes da constituição de um determinado grupo familiar. A sua relevância social,
económica, religiosa (ritual) e mesmo política, é fundamental em todas as sociedades.
Existem diferentes regras que estipulam o local onde um casal de recém-casados deve
habitar, definindo quem deve mudar e para onde. Estas opções diferem de sociedade para
sociedade, mas também podem ser objeto de mudança na mesma sociedade, ao longo do
tempo com a alteração de condições socioeconómicas84.
84
Têm sido recorrentes as notícias que dão conta de que muitos casais jovens que tinham sua própria
casa, de cariz neolocal, o usual na sociedade portuguesa, regressaram a casa de um dos progenitores
devido às dificuldades económicas
139
Santos (2002, 162-164) identifica uma tipologia com nove modelos de residência
matrimonial: 1) a residência patrilocal; a residência virilocal; a residência matrilocal; a
residência uxorilocal; a residência bilocal (ou ambilocal) ; a residência alternada; a residência
duolocal (ou natolocal); a residência avuncolocal e a residência neolocal. Vamos resumir
estas cruzando com dados de Panoff e Perrin (1979) e exemplos etnográficos de Ghasarian
(1999).
A regra neolocal (do grego neós, novo) consiste no casal constituir uma casa
independente do local onde habitam os correspondentes progenitores. É característica dos
Inuit, organizados em famílias nucleares, mas das sociedades ocidentais, em que a
mobilidade, por motivos de estudo ou trabalho, é elevada.
Há um conjunto de regras que se carateriza m pelo facto de somente um dos cônjuges
ter que se deslocar. É a chamada regra unilocal de residência, característica da residência
patrilocal, matrilocal, virilocal e uxorilocal.
A residência patrilocal (do latim patri, pai) resulta da regra que impõe aos dois cônjuges
a residência na casa pai do marido. Ou, de outra forma, a regra que leva a noiva a ter que
que abandonar a casa dos seus progenitores e ir viver na casa do pai do seu noivo, futuro
marido. O padrão patrilocal não é forçosamente coincidente com o sistema de filiação
patrilinear, mas é o mais característico. Exemplos etnográficos deste padrão podem ser
encontrados nas zonas rurais da Turquia e entre os Igbo, os Haussa, os Matis e os Peul.
A residência matrilocal (do latim matri, mãe) pressupõe a regra que obriga os dois
cônjuges a residir junto da mãe da esposa. Assim, aquando do casamento a esposa
permanece na residência da sua mãe enquanto o marido tem que abandonar a residência
dos seus progenitores. Exemplo desta prática encontra-se entre os Hopi e os Iroqueses.
As regras viriolocal e uxorilocal são variantes das precedentes e alguns autores
(Schwimmer, 2003) não as distinguem. A regra virilocal (latim vir, viri: homem, marido)
especifica que aquando do casamento a esposa tem que ir viver nas terras ou proximidade
do pai do marido. Exemplo da prática desta regra são os Wolof e os Tâmules da Ilha da
Reunião, estudados por Ghasarian.
Por seu lado, a regra oposta, a uxorilocal (latim uxor, -oris, mulher, esposa), define que
aquando do casamento, o marido tem que ir morar nas terras ou proximidade da mãe da sua
esposa. O exemplo dos Hopi pode de novo ser dado uma vez que ilustra a dinâmica assocada
a estas regras. Embora o padrão inicial possa ser, como referido, matrilocal, as tensões
140
decorrentes de residir na casa materna com um elevado número de parentes, leva a que o
casal construa uma casa nas terras da mãe da esposa, passando ao regime uxorilocal.
A residência bilocal (ou ambilocal) é baseada na regra que concede aos recém-casados
a hipótese de optarem por estabelecer a sua residência quer junto dos progenitores da
esposa ou do marido. O critério de escolha deriva da conjugação estratégica de interesses
pessoais de ambos os elementos do casal. O exemplo dos Iban de Borneu é ilustrativo desta
prática.
A residência alternada pressupõe que, de acordo com intervalos de tempo
convencionados, a domiciliação do casal e filhos se faça entre a residência uxorilocal e a
residência virilocal. Um exemplo deste tipo de prática são os habitantes da ilha de Dobu.
A residência duolocal (ou natolocal) consiste em que cada uma dos cônjuges resida
separadamente, com a sua família. Esta separação pode ser sazonal, ocasional ou
permanente. Ghasarian (1999, 135) dá o exemplo dos Hopi, onde entre os quais o jovem
marido pode permanecer várias semanas na casa da sua mãe enquanto a sua esposa fica em
casa dos seus próprios pais. Entre os Haussa, aquando do batismo, a mãe vai com o filho para
casa dos pais por um período de seis meses. Entre os Tuaregues o casal habita durante um
período pós casamento neste regime durante um ano, com o marido a visitar
ocasionalmente a sua esposa, após o que se estabelecem patrilocalmente.
Na residência avunculocal (do latim avunculus – timo materno) o casal vai viver em
casa do irmão da mãe do marido. Nas ilhas Trobriand, com um regime de filiação matrilinear,
o casal reside durante algum tempo em casa dos pais do esposo, após o que os cônjuges vão
141
viver em casa do timor materno do marido. Entre os tuaregues, aquando do falecimento do
pai, a residência passa a ser avunculocal.
142
Morte (rituais, herança e sucessão)
143
Fotos: Bunak: 1. velar o corpo e 2. receber o
“bem”, o fresco: familiares passam por debaixo do
caixão do falecido. 2005. LSousa.
144
na sua sociedade. No caso da sucessão o que está em causa não é a eventual partilha de
bens materiais mas o legado de estatuto - relativamente a direitos, deveres e obrigações,
posição social (autoridade política) e funções cerimoniais. Os direitos inerentes à
sucessão e herança diferem usualmente de acordo com o sexo ou idade (a regra de
primogenitura). Entre os Hopi a sucessão relativa à transmissão dos estatutos e posições
nos campos politico e religiosa passa do tio-avô materno (o tio da mãe), chefe e
sacerdote do clã materno, para o seu sobrinho-neto (filho da sobrinha)
herança
sucessão
145
adquire supostamente um determinado comportamento apropriado para com aquele
que designa. De igual forma, os termos de parentesco podem conter indicações
culturalmente associadas relativas aos parceiros com que, numa determinada
sociedade, se pode ou não casar (ou definir campos de interdição das relações sexuais
devido ao incesto).
primo prima primo prima irmão Ego irmã primo prima primo prima
146
A terminologia iroquesa associa-se sobretudo com os regimes de filiação matrilinear,
nos quais as irmãs e primas paralelas de Ego são denominadas pelo mesmo termo, mas
distinguidas das respetivas primas cruzadas bilaterais.
primo prima irmão irmã irmão Ego irmã irmão irmã primo prima
irmão irmã irmão irmã irmão Ego irmã irmão irmã irmão irmã
147
As terminologias Crow e Omaha ignoram as gerações para certos parentes, sendo
estas definidas “verticalmente”. Entre os Crow o sistema de filiação é matrilinear mas o
padrão de residência é patrilocal. Os primos paralelos são designados pelos mesmos termos
que os germanos mas os primos cruzados são diferenciados. Os primos cruzados
matrilaterais “descem”, sendo tratados por filhos pois não desempenham um papel
relevante na continuidade da linhagem, já que não a transmitirão. Por seu turno, os primos
cruzados patrilaterais “sobem” uma vez que a irmã do pai é, depois da mãe, considerada a
pessoa mais importante do lado paterno dado que é ela que transmite a linhagem.
A terminologia dos Omaha é o “espelho” dos Crow, com o seu sistema de filiação
patrilinear e o padrão de residência matrilocal.
148
Diagrama 21: terminologia tipo omaha
K L M N O P
C D E F A EGO B G H I J
149
2.5 A linhagem, a linhada e o clã
O clã, do Gaélico clann, é um “grupo formado por uma ou por várias linhagens.
Pode ser localizado ou não, exógamo ou não. Por norma os membros do clã são
incapazes de estabelecer a ligação genealógica ao antepassado original, que pode ter
uma dimensão simbólica (totemismo). Todavia este sentimento de pertença e uma
solidariedade ativa entre os seus membros carateriza o grupo.
A linhagem é um grupo constituído por indivíduos que se reclamam de um
mesmo antepassado comum, do qual descendem por filiação unilinear. Ao contrário dos
membros do clã, a linhagem consegue estabelecer a relação genealógica com o
antepassado fundador.
2.6 A parentela
O elemento central deste conceito reside no facto de, por oposição à linhagem e
clã, que se definem pela ligação, real ou hipotética, a um antepassado comum, e sua
existência não depende do individuo singular que lhe pertença, a parentela se constitui
em torno de Ego, sendo por isso um agrupamento egocêntrico e circunstancial,
150
dependendo de um determinado evento do ciclo de vida ou circunstância social. Cada
individuo tem assim a sua parentela, que pode partilhar com outros (caso dos irmãos)
mas nunca totalmente. Todavia, Ego está limitado nas suas escolhas pela dinâmica
parental que o antecedeu. A sua potencial parentela resulta da que foi estabelecida
pelos seus antepassados e familiares.
Qual é então a sua utilidade? Entre algumas sociedades estes potenciais parentes
podem ser um recurso mais vasto do que a mera linhagem, constituindo assim uma
possibilidade de agregação social. Um exemplo da sua utilidade pode ser vista em
situações de conflito ou de processos políticos de arregimentação de afiliados.
Ghasarian (1999) dá alguns exemplos do uso da parentela. Robin Fox refere que nas
ilhas Tory, no Noroeste da irlanda, a constituição das equipas para os barcos de pesca
assenta na parentela, baseada na filiação e aliança. Um exemplo clássico é o que Evans-
Pritchard entre os nuer, que tinham a obrigação de reparar, por pagamento ou guerra, o
assassínio de um membro da comunidade, processo similar ao que se passava na
Córsega com a vendetta.
Uma forma de parentesco relacionado com a parentela é a instituição de
relações de parentesco que não são forçosamente biológicas e genealógicas. Ghasarian
(1999, 162) explica de que forma este parentesco fictício” ou “pseudoparentesco” é
apropriado pelo parentesco espiritual, instituído pelas relações de apadrinhamento,
concretizadas no momento do batismo. Este ato ritual cria dois sistemas de relações de
parentesco: o apadrinhamento e o de compadrio, que trazem para o seio familiar
potenciais amigos, ou detentores de reconhecimento social (em muitas comunidades
rurais portuguesas dos anos 40 era comum o apadrinhamento por parte da figura
politica/económica mais importante da aldeia).
151
3.2 Antropologia e poder
Pressupostos do tema
Objetivos gerais
152
3.2.1 A organização política das sociedades: política e poder
A luta pelo poder é o tema central da vida política. No entanto, a própria noção de
poder é ambígua pois se, por um lado ele é aceite como garante da ordem e segurança, por
outro lado é contestada já que sustenta desigualdades. A noção de política implica poder,
mas este não se limita à ação política pois o poder pode ser familiar, económico ou religioso.
O poder político reporta-se ao processo e à tomada de decisões (e sua execução) de forma
coerciva ou não em relação a todo um grupo.
A ciência política (Pilon-Le, 1979) aborda a noção de poder através de três
perspetivas:
Claessen (1979, 7) define o poder, enquanto conceito geral, como a capacidade para
impor aos outros a vontade própria, incluindo no seu campo de aplicação uma variedade
de conceitos que na prática não são fáceis de distinguir, sendo problemático dizer onde
começam e terminam as suas fronteiras:
153
a autoridade: a faculdade de fazer-se obedecer ao aceitar como justificado o
desejo do mandante.
Algumas das principais caraterísticas do poder incluem o facto de este se exercer num
quadro territorial (contíguo ou disperso), ser institucionalizado, assente numa constituição
(escrita ou oral) que se estabelece como força autónoma e fonte de legitimidade. As suas
funções são a manutenção da ordem e a presença de uma administração.
grau de especialização para uma função específica: o poder central pode não
corresponder a um poder total igualmente distribuído no território, podendo ser
objeto de divisão ritual e religiosa. Ocorrem situações em que o poder central
detém uma proeminência espiritual sobre todos os grupos embora em cada
região o poder executivo não lhe seja reconhecido.
154
específicos – como conselhos de anciãos – que assumem componentes
específicas.
155
3.2.2 Perspetivas teóricas sobre a organização política
156
O trabalho de Fortes e Evans-Pritchard (1981 [1940]) Sistemas Políticos
Africanos marca profundamente a revolução da perspetiva sobre as sociedades
tradicionalmente estudadas pelos antropólogos. Os autores classificam os sistemas
políticos africanos em três tipos: aqueles dotados de uma autoridade central, as
sociedades linhagísticas na qual a linhagem e organização política se entrecruzam
e as sociedades de dimensão muito reduzida e na qual a organização política de
confunde com o parentesco.
Para os autores o cerne da política nestas sociedades é passível de ser
observado a partir das funções que lhe são atribuídas. Nestas sociedades duas
funções, uma interna e outra externa, possibilitam definir a política: fundar e
manter a ordem social gerindo a cooperação interna, garantir a segurança
salvaguardando a defesa da unidade política. Nesta perspetiva a política decorre,
numa visão abrangente, da regulação e controlo da ordem social num
determinado território. A perspetiva funcionalista contribuiu para fazer
reconhecer a existência da política para lá do Estado. No entanto, a sua análise
sincrónica limitou muito a sua capacidade explicativa.
85
Disponível em língua portuguesa: Leach, Edward (1995) Sistemas Políticos da Alta Birmânia, edusp
157
ideais, o tipo “gumlao” de sociedade igualitária e o de tipo “gumsa” de carácter
feudal, que se interligam e sucedem no tempo.
No campo do parentesco a troca restrita ou generalizada preconiza modelos
políticos distintos, sendo o segundo caraterístico das sociedades hierarquizadas do
sudeste asiático, tal como a dos Katchin. Mas, a melhor contribuição dos
estruturalistas no campo da antropologia política prende-se com a análise
simbólica do poder, do ritual e dos mitos – áreas determinantes no campo político,
por exemplo, como fonte de legitimação. As limitações desta abordagem resultam
da sua ênfase sincrónica, negligenciado a perspetiva histórica, bem como a
redução dos sistemas a uma conceção ideal, subtraindo-se ao estudo das
estruturas tal como existem.
158
Para o autor a dissolução do modelo anterior decorre do desenvolvimento da
divisão social do trabalho sob a impulsão das forças produtivas, que deu origem a
uma sociedade de classes. A luta de classes coloca a necessidade do Estado, que
em última instância corresponde à organização da classe que possui o poder para
se proteger da classe que deste está destituída. O estado define-se com quatro
critérios: o território, a presença de um aparelho repressivo, de um aparelho
administrativo e da recetação de impostos.
Uma boa resenha das principais abordagens teóricas é feita por Lewellen (2008) que
sintetiza as principais teorias em dois grandes grupos: o estruturo–funcionalismo e o
enfoque processual:
159
Três perspetivas teóricas em antropologia política (traduzido de Lewellen, 2008, 116)
Enfoque processual
A classificação dos sistemas políticos implica sempre uma redução da realidade, que
por vezes é mais complexa do que as tipologias permitem desenhar. No entanto, a sua
utilidade, quer descritiva quer explicativa, permite uma aproximação e interpretação desses
sistemas. Entre as tipologias funcionalistas (analisadas no manual adotado) os critérios de
construção estipularam: a presença ou ausência de Estado centralizado, o grau de
centralização do aparelho de Estado e a especialização das funções políticas.
Southall (Pilon-Le, 1979, 25) define uma tipologia tripla: as sociedades segmentárias,
os Estados segmentários e as sociedades com Estado centralizadas. Por seu lado, Beattie
desenvolve apresenta uma proposta com seis subtipos:
Tipologia de Beattie
162
O bando dispõe de um governo mínimo. Trata-se de grupos de pequena dimensão que
se deslocam num território de dimensões variáveis de acordo com as estações do ano. Vivendo
da caça e recoleção o bando não dispõe de reservas acumuláveis88, os seus membros não
possuem estratificação social pois não têm nada a redistribuir. Os bens obtidos são por norma
partilhados entre todos os membros do grupo.
As denominadas tribos89, designação que está em desuso, são carateriza das como
sociedades com um poder difuso ou anárquico. A subsistência é assegurada pela agricultura
extensiva, a pastorícia e a horticultura. A liderança é assegurada pelos representantes de
grandes famílias e o parentesco assenta num sistema linear.
88
Este facto não invalida que haja formas de guardar bens, como água, em pequenas quantidades.
89
Este conceito tem sido alvo de inúmeras críticas pela sua incapacidade de descrever a realidade.
Sahlins, referido por Pilon-Le, 1979) usa o termo no contexto de “tribos” e chefaturas” mostrando assim
que o conceito abarca uma multiplicidade de situações. O seu emprego pode assim conduzir a uma falsa
interpretação da realidade (Pilon-Le, 1979, 28)
163
No entanto, há uma hierarquia resultante da ocupação e constituição original dos
grupos que ocupam o território. Esta pode-se basear na força dos primeiros ocupantes ou na
dos migrantes posteriores (que ocuparam pela força o papel executivo). Todavia, na maioria
dos casos aos primeiros a chegar ao território são atribuídos os poderes mágico-religiosos
associados à condição de “senhores da terra”, sendo responsáveis por dirimir conflitos que
envolvam derramamento de sangue (vinganças). O sistema não possui uma estabilidade
entre as partes que o compõem, que no entanto, se aliam em torno do parentesco para
resolver ameaças comuns.
164
Esta dimensão territorial é importante pois liga todos os elementos do grupo
associados pela existência de uma convicção de ordem sobrenatural na sua relação com esse
território. O poder do chefe ou líder é determinado pela força, nomeadamente a capacidade
de exigir tributo que pode ou não ser redistribuído pelos elementos da comunidade. A
autoridade resulta de uma combinação de elementos como o parentesco, o prestígio, o
sagrado e uma capacidade limitada de exercer a coerção. Nestas sociedades opera-se uma
distinção entre o aparelho político e as hierarquias sociais.
O chefe, representante da unidade do grupo, é associado à continuação da harmonia
com o cosmos, o que lhe confere uma dimensão sagrada (legitimada pela descendência e
ligação aos antepassados fundadores). É um regulador do conflito e dispõe de vantagens
económicas (prestação de bens e serviços), sociais (casamento com mais do que uma mulher),
morais, etc. A transmissão de poder opera por norma através das regras de parentesco (filho
no caso de sistemas patrilineares, sobrinhos no caso dos matrilineares). Nos sistemas de
chefaturas pode ocorrer um poder paralelo ou dual resultante da existência de chefes da terra
que possuem um papel religioso e económico.
As caraterísticas principais do Estado são: um governo centralizado e de segmentação
piramidal, a existência de um território, a presença de um corpo administrativo e de
instituições especializadas e o monopólio do emprego da força.
Um dos temas que suscita mais debate é a origem do Estado. Embora atualmente haja
um relativo consenso de que várias formas de Estado surgiram em diferentes contextos
sociais Barnard (2006, 63-64) lista quatro grandes teorias que procuraram explicar como o
Estado se formou:
2. Teoria coerciva: defendida por Robert Carneiro (1970), a tese argumenta que o
Estado desponta devido à guerra que ocorre em locais com escassa terra arável. O
conflito entre povoações de pequena dimensão alcança um ponto em que aqueles
que vencem os oponentes assumem o controlo sobre estes (ex.: Incas).
3. Teoria de classes: esta teoria tem origem nos trabalhos de Marx e Engels,
nomeadamente o trabalho deste último: The Origin if the Family, Private Property
165
and the State (1884). Esta tese defende que a origem do Estado deriva do
antagonismo entre classes sociais. Nesta aceção o Estado é um “mito” perpetuado
pela classe dirigente para preservar a ordem e o poder.
166
3.2.4 O processo político e o controlo social
Segundo as mesmas autoras (1987, 159), os atributos específicos que permitem a fácil
identificação do processo político são:
167
Todo o sistema político funciona com constrangimentos e interdições. Trata-se de um
instrumento de poder que permite ao chefe ou ao Estado legitimar o uso da violência. O
controlo social concretiza-se de várias formas, nomeadamente através das normas sociais.
Todavia, no contexto do controlo social e organizações políticas, a principal forma de
efetivação é a lei. Segundo Hoebel e Frost (2001, 303) a lei distingue-se das normas sociais
gerais por três caraterísticas:
A ameaça da lei nem sempre é impedimento suficiente para evitar a sua infração. Neste
contexto a lei tem um efeito de impedimento psicológico, como orientação do
comportamento para finalidades sociais. Mas, em última instância, a lei age através de sanções
como a confiscação de propriedade ou de privação física direta.
A coerção não é exclusiva do poder estatal (a máfia, os yakuza, e outras associações
criminosas também a exercem) mas, o essencial que distingue a coerção legal das demais é a
aceitação geral da sua aplicação de modo legítimo por uma parte específica da sociedade
dotada de meios para a efetuar.
A regularidade remete para o que a lei compartilha, na sua natureza, com as normas
sociais. A regularidade deve permitir a previsão, embora não seja imutável pois as leis podem
ser objeto de alterações. No entanto, a regularidade faculta à lei o seu atributo de certeza.
(…) norma social da qual se pode predizer com razoável probabilidade que a sua
violação além dos limites da margem permissível evocará uma resposta processual
formal, iniciada opor um individuo ou por um grupo que possua o direito-privilégio,
socialmente reconhecido, de determinar culpa ou de impor sanções económicas ou
físicas ao transgressor. (Hoebel e Frost, 2001, 305)
A lei pode ser distinguida em lei substantiva e lei adjetiva e entre lei orgânica e lei
tirânica. A lei substantiva identifica as normas que devem ser sancionadas por ação legal
enquanto a lei adjetiva ou processual designa a pessoa, ou as pessoas, que podem de direito
aplicar o castigo relativo à violação de uma lei substantiva.
168
A capacidade de coerção que a lei aufere representa um perigo uma vez que pode
incorrer em subjugação de uma maioria por uma minoria que se apropria do poder e do
exercício da lei. Assim, quando a atribuição da lei não é reconhecida socialmente mas imposta
pela força, estamos perante um sistema de lei tirânico. Pelo contrário, a lei orgânica remete
para um sistema legal em que há um reconhecimento e aprovação social das leis vigentes.
A lei desempenha, segundo Hoebel e Frost (2001, 306-307) quatro funções essenciais
para manutenção das sociedades: substantivas, adjetivas, mediadoras e readaptativas:
As funções indicadas podem ser aplicadas com maior ou menor habilidade, podendo o
sistema legal assegurar a aplicação da lei de forma suave e eficiente ou de forma rígida e
brutal – caso da imposição da ordem pela tirania e sem a menor justiça:
Privação de liberdade;
Penas físicas, sanções corporais,
Pena de morte
Exílio (imposto ou não)
169
A detenção por parte do Estado da prerrogativa da violência é uma imposição e ao mesmo
tempo um impedimento a outros grupos de a exercer (ex: justiça popular). O Estado não pode
no entanto impedir outros grupos de, no plano moral, sujeitarem os seus membros a penas
(ex. a sanção do Inferno por parte da Igreja). O Estado, dependendo do regime, garante a
liberdade de expressão mas controla a forma como a informação é divulgada: exemplo da
censura ou da espionagem. No entanto, há outras formas de controlo da informação como o
controlo por parte do Estado de meios de comunicação.
170
Bibliografia
Esta bibliografia identifica as obras que serviram de base à elaboração destes Textos
(sempre que disponíveis usaram-se as fontes primárias). Em Tema estão indicadas as que são
específicas dos conteúdos tratados. Em Geral foram colocadas as que contemplam mais do
que um tema específico.
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