Revista Ética e Filosofia Politica - Santo Agostinho

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Júlio Maria Fonseca Chebli – Reitor

Marcos Vinício Chein Feres – Vice-Reitor

Instituto de Ciências Humanas


Altemir José Gonçalves Barbosa – Diretor
Ricardo Tavares Zaidan – Vice-diretor

Departamento de Filosofia
Juarez Gomes Sofiste – Chefe de Departamento
Mário José dos Santos – Coordenador do Curso
Antônio Henrique Campolina Martins – Diretor da Revista

Faculdade de Direito
Aline Araújo Passos – Diretora
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Denis Franco Silva – Coordenador do PPG em Direito e Inovação
Vicente Riccio Neto – Vice-coordenador do PPG em Direito e Inovação

Comissão executiva

ISSN: 1414-3917

Antonio Henrique Campolina Martins – Editor


Marcos Vinicio Chein Feres – Co-Editor
Clinger Cleir Silva Bernardes – Editoração Eletrônica
Camila Fonseca de Oliveira Calderano – Secretária

Conselho Editorial

Antonio Cota Marçal (UFMG)


Bruno Amaro Lacerda (UFJF)
Gustavo Arja Castañon (UFJF)
José Henrique Santos (UFMG)
Luciano Caldas Camerino (UFJF)
Luciano Donizetti da Silva (UFJF)
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Nathalie Barbosa de La Cadena (UFJF)
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Paulo Afonso Araújo (UFJF)
Ricardo Vélez Rodríguez (UFJF)
Roberto Markenson (UFPB)
Ronaldo Duarte da Silva (UFJF)
Thereza Calvet de Magalhães (UFMG)
Wolfram Hogrebe (Universidade de Bonn)

www.ufjf.br/eticaefilosofia
Editorial 1
Pedro Calixto F. Filho

Credere et Intellegere, A articulação fé-intelecção como fundamento da 6


ascensão intelectual no De Libero arbítrio
Roberto Carlos Pignatari

Estudo comparativo das obras de François Decret e Pio de Luis sobre o 44


Maniqueísmo
Humberto Schubert Coelho

A beleza ontológica na cosmologia filosófica de Santo Agostinho 54


Ricardo E. Brandão

Plotinus in Magistro? A Antropologia Tricotômica e Dual da Regula Magistri 74


Antônio Henrique Campolina Martins

A Estrutura da Sensação na cognição sensível em Santo Agostinho 92


Ricardo E. Brandão

Sexualidade e Gênero no Pensamento Filosófico Cristão: Breve comparação 105


entre concepções naturalistas e personalistas
Luciano Caldas Camerino

A Fundamentação da Antropologia Agostiniana no De Trinitate 118


Fábio Dalpra

As provas da arte retórica: êthos, páthos, logos nas Confissões de Agostinho de 129
Hipona
Ricardo Reali Taurisano

A Ética como Articulação da Bondade e da Vontade do Humano e do Divino 176


no Pensamento de Agostinho
Pedro Calixto F. Filho

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Aurelius Augustinus Hipponensis (354-430), mais
conhecido como Santo Agostinho, foi um dos mais importantes
teóricos da antiguidade tardia. Obviamente, o pensamento cristão
não começa com o bispo de Hipona. Toda a patrística que o
precedeu possui sua grandeza própria. Porém, nestes séculos
atormentados que foram os IVº e Vº – depois da emergência de
Constantinopla, saque de Roma... – algo novo começa ser tecido
no próprio seio da teologia cristã, a saber: o diálogo intenso e
profundo com a filosofia grega. Agostinho toma consciência de
que a entrada do Deus relevado na cena da filosofia altera
radicalmente as categorias oriundas da filosofia grega e vice-
versa. Esse fértil diálogo vai transformar profundamente o
pensamento ocidental no que diz respeito a Deus e ao homem
exigindo que o pensamento filosófico elabore uma nova
cosmologia, uma nova antropologia e, consequentemente, uma
nova ética.
Essas transformações vão marcar profundamente o
Ocidental, pois a filosofia agostiniana será fonte de inspiração de
muitos dos grandes espíritos medievais, modernos e
contemporâneos. Este volume da Revista de Ética e Filosofia
Política da UFJF, dedicado inteiramente a Agostinho, é o
resultado de um esforço para reunir artigos inéditos que desvelam
a novidade e amplitude da filosofia agostiniana.
Este fértil diálogo entre filosofia e teologia torna-se
visível no artigo Credere et Intellegere, A articulação fé-
intelecção como fundamento da ascensão intelectual no De
Libero arbítrio, onde Roberto Carlos Pignatari demonstra que a
1
teologia racional de Agostinho nos diálogos de Cassíciaco-Roma
é determinada pela polaridade credere-intellegere enquanto
articulação necessária para a ascensão do conhecimento humano.
É na simultaneidade deste binômio que se mostrará o essencial da
concepção agostiniana do conhecimento. Todo conhecimento
prévio assentido in credere enseja sua consumação in intellegere.
Fé e razão estão longe de se opor, elas são complementares. É
essa complementaridade que faz de Agostinho o primeiro grande
filósofo latino.
É notório que suas interrogações filosóficas foram
profundamente marcadas pelo maniqueísmo. Humberto Schubert
Coelho, em seu estudo comparativo das obras de François Decret
e Pio de Luis sobre o Maniqueísmo nos apresenta o quadro geral
da filosofia maniqueísta. Este estudo é de suma importância para
a compreensão da atitude agostiniana face ao Maniqueísmo. Ele
nos revela que a guerra ideológica contra os maniqueus, como
outras tantas que Agostinho travou, não o tornaram o melhor
expositor de suas doutrinas. Além disso, as respostas dos
maniqueus sugerem que Agostinho desconhece os mistérios mais
profundos do credo professado por eles. No entanto, o
Maniqueísmo marcou profundamente o pensamento de
Agostinho, principalmente no que concerne as interrogações
propriamente filosóficas que o bispo de Hipona desenvolverá
mais tarde: a questão metafísica e ética da origem do mal é um
exemplo palpável dessa influência.
Porém, uma primeira ruptura para com o Maniqueísmo se
dá graças à influência neoplatônica no que diz respeito à filosofia
da natureza. Em A beleza ontológica na cosmologia filosófica de
Santo Agostinho, Ricardo E. Brandão procura mostrar que, contra
os maniqueus, Agostinho defende a tese de que o cosmos é
necessariamente belo: um Deus perfeitíssimo, não poderia criar
um mundo imperfeito, mal e desprovido de beleza. Portanto, o
2
mundo é por natureza bom e belo. E sua beleza nada mais é que
um convide à elevação.
Essa ruptura para com o Maniqueísmo no que diz respeito
à problemática da origem do mal seria incompreensível sem a
influência do pensamento neoplatônico, mais precisamente, a
filosofia de Plotino. Em seu artigo Plotinus in Magistro?A
Antropologia Tricotômica e Dual da Regula Magistri, Antônio
Henrique Campolina Martins efetua um estudo minucioso da
terminologia antropológica (anima, corpus, spiritus)
demonstrando o quanto a ruptura para com o dualismo platônico
alma e corpo efetuada no pensamento plotiniano está presente na
Regula Magistri, e é um elemento capital para a elaboração do
conceito de liberdade que constitui o cerne do pensamento ético
de Agostinho.
Prosseguindo a pesquisa do prof. Antônio Campolina,
Ricardo E. Brandão em sua contribuição A Estrutura da Sensação
na cognição sensível em Santo Agostinho, demonstra que as
instâncias, corpo e alma, estão imbricadas e cooperam de maneira
harmoniosa e necessária para produzir o conhecimento sensível.
O corpo não é mais um obstáculo, mas sim condição necessária
para o conhecimento. A estrutura complexa da sensação se revela
aqui como atenção da alma para com o corpo, atenção esta que
tem como finalidade tirar a si mesma do estado de ignorância.
Malgrado esta revalorização da sensibilidade, em alguns
aspectos ligados à corporeidade, Agostinho, como todo grande
filósofo, permanece um pensador de seu tempo e sua influência
se perpetuará durante séculos. Em sua contribuição Sexualidade
e Gênero no Pensamento Filosófico Cristão: Breve comparação
entre concepções naturalistas e personalistas, Luciano Caldas
Camerino faz uma análise de grande pertinência para nossa
atualidade da questão da sexualidade e do gênero no pensamento
filosófico cristão. Ele demonstra que nosso filósofo e os que por
3
ele foram posteriormente influenciados, Tomás de Aquino em
particular, tiveram da sexualidade e do gênero uma visão
naturalista restringindo a sexualidade à reprodução. Esta visão
perdurou até o século XX, isto é, até a emergência do
Personalismo Ético Cristão.
Porém, as grandes inovações de Agostinho se dão no
campo do discurso e da Antropologia. Dois artigos foram
consagrados a estas problemáticas: Fábio Dalpra, em A
Fundamentação da Antropologia Agostiniana no De
TRINITATE, se apoiando sobre esta obra de maturidade procura
discutir os diferentes conceitos que fundamentam a estrutura
antropológica do tratado trinitário de Agostinho. Depreende-se de
suas análises que a antropologia agostiniana se define por seu
caráter dinâmico do ser humano. Sua visão preconiza a busca
cognoscitiva, volitiva e racional do fundamento da existência.
Trata-se de um movimento dramático de efetivação da existência.
Em síntese, como afirma F. Dalpra em sua conclusão, a imagem
trinitária composta pela memória, inteligência e vontade conflui
no ato decisivo de aproximação ou afastamento de Deus (ad
Deum ou ab Deo), e é precisamente na convergência de tais
conceitos que se estabelece a estrutura de seu modelo
antropológico.
Ricardo Reali Taurisano em seu estudo aprofundado
intitulado As provas da arte retórica: êthos, páthos, logos nas
Confissões de Agostinho de Hipona, procura mostrar através da
análise desta tríade que a finalidade da retórica no discurso
agostiniano transcende as funções clássicas, como construção de
caráter, manipulação das paixões ou simples ornamento do
discurso visando exclusivamente a persuação e a agonística. Para
evidenciar a originalidade de Agostinho Ricardo R. Taurisano
efetua uma análise minuciosa da Retórica de Aristóteles. Os
elementos retóricos no discurso Agostiniano assumem novas
4
funções: purificação, incitação do desejo e, sobretudo, elevação,
o que o leva a concluir que sua finalidade é eminentemente
propedêutica e filosófica.
Enfim, como conclusão deste volume da Revista de Ética
e Filosofia Política da Universidade Federal de Juiz de Fora,
Pedro Calixto F. Filho, em sua contribuição A Ética como
Articulação da Bondade e da Vontade do Humano e do Divino no
Pensamento de Agostinho, procura mostrar que a filosofia prática
de Agostinho é inteiramente predeterminada pela articulação da
ideia de bondade tanto ontológica quando ética, pois a criação é
pensada como efusão do bem absoluto. Neste sentido, o ser e o
bem, a existência e a bondade são inseparáveis. É o bem que
penetra o âmago das criaturas e determina nelas o desejo de ser e
de durar. Malgrado a finitude, implicando o mal como privação,
a existência é um bem e a morte necessária à harmonia do todo.
A verdadeira e única fonte do mal é a vontade humana. Ela é
necessária, pois na impossibilidade do mal moral o homem seria
privado de seu bem mais precioso que é a liberdade.

Pedro Calixto F. Filho

5
A articulação fé-intelecção como fundamento da ascensão intelectual no
De libero arbitrio II, i,1 - ii,6

Roberto Carlos Pignatari

RESUMO - Nosso objetivo visa apontar para a localização determinante, no contexto


das assim chamadas “provas da existência de Deus” presentes no período dos diálogos de
Cassicíaco-Roma, da polaridade credere-intellegere enquanto articulação primeira e ensejante
da exposição relativa à ascensão do conhecimento humano, levada a efeito por Agostinho no
livro II do De libero arbitrio, igualmente um tópico reiterativo na fase inicial (De quantitate
animae xxxiii, 70 – xxxvi, 81; De ordine II, x, 25-37; De uera religione, xxix, 52 – xxxv, 67),
bem como nas composições intermédias (Confessiones VII, xv-xviii; IX, x); e ainda nos
grandes tratados dogmáticos (De trinitate XII, i, 1 – iv, 4; XV, i, 1 – ii, 3). Intentamos expor
como a polaridade fé-intelecção, contemplando a postura cética da suspensão do juízo
cognitivo partilhada por Evódio (De libero arbitrio II, ii, 5ss), qualifica a ambos os polos do
binômio como assentados em relação de referência recíproca, vale dizer: na simultaneidade
própria aos polos binomiais, que se mostrará como essencial ao desenvolvimento da visão
agostiniana do conhecimento, matizando a articulação como atitude principial para a feitura
cognitiva da realidade, consubstanciada, em nosso texto-base, no itinerário intelectual, via
universo, àquele cujo conhecimento prévio no dado assentido in credere enseja sua
consumação in intellegere.
PALAVRAS-CHAVE: Agostinho, conhecimento, fé, razão, crença.

ABSTRACT – The purpose of this paper is to determinate, in the context of the “Proofs
of the existence of God” in the period of the dialogues Cassiciacum-Rome, the polarity credere-
intellegere as first articulation to pushing forward human knowledge in De Libero Arbitrio,
(De quantitate animae xxxiii, 70 – xxxvi, 81; De ordine II, x, 25-37; De uera religione, xxix, 52
– xxxv); The same thing is verified in the middle works (Confessiones VII, xv-xviii; IX, x) and
the major dogmatic treaties (De Trinitate XII, i, 1 – iv, 4; XV, i, 1 – ii, 3). Contemplating the
skeptical posture of the suspension of the cognitive judgement shared by Evodius (De libero
arbitrio II, ii, 5ss), our intention is to show that faith and intellection are autofounding because
of a mutual reference. It is in this simultaneity that develops the clearly Augustinian concept of
the knowledge. In the progressing of the ignorance to the knowledge, the most important is not
the one side of the binomial, faith-intellection or credere-intellegere, but there articulation:
what is granted in credere comes true in intellegere.
KEYWORDS: Augustin, knowledge, faith, reason, belief.

6
1) Introdução

Por vezes tomada como tópico emblemático da herança da tradição platônica presente
no pensamento de Agostinho, a ascensão do conhecimento humano a Deus, nos diálogos de
início, frequentemente é analisada de modo isolado, de forma destacada em relação ao corpo
textual no qual se encontra inserida, e tendo como pano-de-fundo unicamente seus paralelos
naquela tradição, sobretudo o plotiniano1. Se a evidência do arcabouço traditivo grego se impõe,
até mesmo pela admissão do próprio autor, nem por isso a referida análise deveria estar
circunscrita a tal herança assumida, ou mesmo restrita a uma comparação com os paralelos
referidos. A ascensionalidade em Agostinho possui princípio e finalidade próprios, que lhe
permitem certamente lançar mão do desenvolvimento neoplatônico já tornado corrente então,
porém com o fito de compor ponto de superação da fé cristã em relação ao pensamento grego,
em que este é como que realizado, em suas grandes teses e propósitos, naquela 2. Objetivamos,
no presente estudo, expor como Agostinho situa o momento primordial, mesmo fundante, da
ascensão intelectual na articulação credere-intellegere, a qual irá determinar, a partir de sua
polaridade, o interim a ser percorrido pela intelecção da realidade criatural, em ratificação e
ajudicação do conhecimento assentido no (e pelo) ato de crer. Para tanto, tentaremos apresentar,
num primeiro momento, elementos introdutórios para análise do itinerário ascensional
agostiniano, tecendo breve panorama histórico para, em seguida, tentar ilustrar seu caráter

1
Mesmo estudos referenciais da bibliografia agostiniana, ainda que com reservas ou ressalvas, partilham de tal
abordagem, como verificamos na notação de Gilson: “... Agostinho [...] leu [...] Sobre as três substâncias principais
(Enéada V, 1, sobretudo caps. 1-7) [...] Esse tratado de Plotino é também um itinerário da alma para Deus através
do interior, que santo Agostinho soube refazer de modo cristão, mas do qual em nada alterou o platonismo
essencial.” - GILSON, 2007: 47-48; ou no juízo categórico de Karl Rahner: “A ascensão a Deus – por mais que
se queira cristianizada – é concebida por Agostinho, também na maturidade, em estreita dependência do
neoplatonismo” – RAHNER, K.; e VILLER, M. Ascetica e mística nella patrística, Brescia: Queriniana, 1991, p.
250. Vide ainda BRACHTENDORF, 2008: 135-138 (não obstante um como que reexame posterior - cf. nota
seguinte); OLIVEIRA E SILVA, 2007: 138.
2
Com relação ao caráter ascensional da itinerância intelectual no pensamento agostiniano, dentre os inúmeros
estudos e além das obras citadas na nota 1, a análise de Johannes Brachtendorf, tendo por base os tratados
agostinianos sobre o Evangelho segundo João, apresenta a ascensionalidade hierarquizante num sentido que
visualizamos mais próprio ao intento amplo no qual se encontra situada, indicando que Agostinho, em tais
comentários, “explicates the relationship of philosophy and Christian Faith by assumying, modifying and
augmenting Plato’s image of ascent. According to Augustine, we do not have to rise up from a cave into the light
of day as Plato imagines; rather, we have to scale a mountain from the plains.” – BRACHTENDORF, J.
Augustine on the Glory and the Limits of Philosophy in CARY, P; DOODY, J.; and PAFFENROTH, K. (eds.)
Augustine and Philosophy, Maryland (UK): Lexington Books, 2010, p. 5-6 (o artigo compreende as p. 3-21 do
compêndio). Cf. ainda: MANDOUZE, A. Saint Augustin: l`aventure de la raison et de la grace, Paris: Institut
de Études Augustiniennes, 1968, p. 283-287; CAYRÉ, F. La contemplation augustinienne, Paris: Desclée de
Brower, 1954, p. 31-44.
7
decorrente, qual seja, visualizá-lo como atividade essencial e teleológica da alma, ao mesmo
tempo como o resultado de sua abertura e predisposição volitiva à intelecção do dado advindo
da fé. Passaremos em seguida à discussão inicial do Livro II, na qual tentaremos exposição
esquemática da articulação da relação polar entre o ato de crer e a intelecção, elaborada após o
“vácuo” cognitivo surgido em decorrência da suspensão judicativa efetuada por Evódio, e da
qual resultará a postulação da tríade axial esse-uiuere-intellegere, como afirmação primordial
do ser, conjuntamente ao emergir de sua intelecção, enquanto dado primeiro do conhecimento
relativo à certeza indubitável da existência de quem questiona o existir [II, i, 1- ii, 6].

Período de Cassicíaco/Roma: diálogos de início


Uma breve rememoração acerca do trajeto agostiniano no período em Cassicíaco/Milão
e, mais propriamente, na estadia em Roma, além de permitir a devida inserção contextual, bem
como a verificação de seu devido locus na obra geral do autor, possibilitará visualização
adequada para uma fase da reflexão agostiniana que se revelará como sendo a de
estabelecimento dos postulados axiais (ou verdades de princípio), aos quais Agostinho irá se
referir e reportar de forma permanente, para seus voos intelectuais maiores e mais densos3. São
os diálogos do período Cassicíaco/Roma que articulam os pontos de sustentação da visão
agostiniana da realidade, em cujo centro se encontra já o vislumbre da interioridade, enquanto
presença perene e atemporal da verdade a ser assentida, reconhecida e inteligida em sua
inteireza4. A estadia em Cassicíaco deu-se de pronto após sua adesão plena (e já adulto) à fé e
à Igreja, mas primordialmente no contexto imediato de culminância do trajeto intelectual de
Agostinho, pontuando termo ao processo de busca do conhecimento da verdade e, como tal,
evocando uma retomada em síntese de todo o percurso até então efetivado. Nesse sentido, a fé
cristã caracteriza o coroamento responsivo e conclusivo de um caminho que fora trilhado a

3
Para análise inicial a respeito, vide HARRISON, 2006: 20-33; DUPONT, A. Continuity or Discontinuity in
Augustine? in Ars Disputandi [http://ArsDisputandi.org.], volume 08 (2008), p. 67-79; um sumário da discussão
(até o início dos anos 2000) em BOUTON-TOUBOULIC, A.-I. L’approche philosophique de l’oeuvre
d’Augustin au miroir de la R.E.A. in Revue d’études augustiniennes et patristiques, vol. 50 (2004), p. 326-
329; cf. ainda BRACHTENDORF, 2008: 147ss; vide igualmente nos grandes ensaios biográficos: BROWN, 2012:
141-156; e LANCEL, 1999: 117-145; e ainda na breve biografia de VIGINI, 2012: 47-71.
4
Vide o artigo programático de Moacyr NOVAES Filho: Interioridade e inspeção do espírito na filosofia
agostiniana in Analytica, Revista de Filosofia do IFCS-UFRJ, volume 07/01 (2003), p. 97-112.; cf. ainda
GUARDINI, R. La conversión de Aurélio Agustín, Bilbao: Desclée De Brouwer, 2013, p. 35-43; VAZ, H.C.L. A
metafísica da interioridade – Santo Agostinho in ID. Ontologia e História – Escritos de Filosofia VI, 2ª
edição, São Paulo: Loyola, 2001, p. 84-85; OLIVEIRA E SILVA, 2007: 139-140.
8
partir das doutrinas maniqueístas e do ceticismo5, mas com empuxo definitivo dado pelo
neoplatonismo6, no qual Agostinho identifica a composição articulada de verdades centrais que
foram, afinal, vislumbradas e atingidas pelos gregos pagãos7. O trabalho de Charles Boyer
expôs a postura por assim dizer epitômica a respeito da evolução e possíveis sedimentações em
etapas, do pensamento agostiniano, em que aponta para a preponderância do posicionamento
cristão de Agostinho desde o período de Cassicíaco, a partir do qual opera com seletividade o
elenco de ideias que visualiza como concordes ao cristianismo [BOYER, 1920: 193-195]. O
posicionamento de Goulven Madec, por sua vez, tem se tornado referencial quanto à postulação,
desde os escritos inicias agostinianos, de um núcleo doutrinal em contínua expansão e
elucidação [MADEC, 2001: 241-255]8. Em seu estudo sobre as Confessionum, Johannes
Brachtendorf [2008: 148] sumariza a discussão histórica a respeito da relação entre cristianismo
e neoplatonismo neste período, referenciando-se na postura assumida por Pierre Courcelle em
sua obra clássica sobre o texto de Agostinho, qual seja, a de relacioná-los em uma “unidade
sintética”. Restando evidente a impossibilidade, no âmbito de nosso presente artigo, do avanço
e esmiuçamento no estudo das posturas dos autores, tão-somente delineamos nossa perspectiva
no sentido da proximidade com a tese de Madec a respeito, no lastro do entendimento de um
continuum permeante a todas as etapas da filosofia agostinina, tomando a fase inicial (e portanto

5
Na introdução que preparou à sua tradução do De quantitate animae, Riccardo Ferri nota que ele constitui, ao
lado do De moribus ecclesiae catholicae e do livro I do De libero arbitrio., uma tríade “contendo uma forte carga
antimaniquéia (em particular com relação a temáticas de interpretação da Escritura, da moral, da incorporeidade
da alma e do mal)” – FERRI, R. Introduzione in La grandezza dell’anima – De quantitate animae, Palermo:
Officina di Studi Medievale, 2004, p. 8.
6
Dentro do escopo introdutório de nosso texto, relembremos o esquema histórico-temático no qual Henri Marrou
condensa a obra agostiniana: a) período de 386 a 400 d.C.: polêmica antimaniqueia/“filósofo da essência”; b) de
400 a 412: polêmica antidonatista/“doutor da Igreja”; c) de 412 a 430: polêmica antipelagiana/“campeão da
graça” (inserindo, aqui, o “teólogo da história contra os pagãos”) – MARROU, Henri-Irénée Saint Augustin et
l’augustinisme, Paris: Éditions du Seuil, 2003, p. 44-45 (obra originalmente publicada em 1955). Evidentemente
um esquema “extremado”, nas próprias palavras de Marrou, que em seguida tratará de esmiuçá-lo e nuançá-lo,
caracterizando os primeiros diálogos de Agostinho como tendo sido escritos dentro do seu “novo ideal de
neoplatonismo cristão”, no qual “a polêmica [...] é dirigida contra o ceticismo da Nova Academia na mesma
medida que é dirigida contra o pessimismo maniqueu” (p. 45).
7
De uera religione iii, 3-4; iii, 5 – iv, 7. Vide a respeito o artigo de Gouveln MADEC Si Plato uiueret...
(Augustin De uera religione, 3.3) in Néoplatonisme – Mélanges offerts à Jean Trouillard, Le Cahiers de
Fontenay no. 19/22, Paris, 1981, p. 231-248.
8
Cf. os trabalhos de Harrison, Dupont e Bouton-Touboulic mencionados na nota 3. Em seu artigo sobre o period
inicial, Michael Foley postula com incisão que uma das principais fontes filosóficas para o período de Cassicíaco-
Roma é a obra de Cícero: “..., the hunt for Plotinus’ or Porphyry’s footprints has all but overshadowed Augustine’s
indebtedness to another thinker praised in those same pages as the savior of Rome and the Latin father of
philosophy: Marcus Tullius Cicero.” – FOLEY, M. P. Cicero, Augustine, and the Philosophical Roots of the
Cassiciacum Dialogues in Revue de Études Augustiniennes, 45 (1999), Paris, p. 51.
9
os diálogos compostos em tal período) como portando, para além das notas oriundas do
estoicismo romano, o acento neoplatônico, entendido em sua relação de vetor à plenificação da
doutrina cristã, ou mesmo como identidade de essência e de propósitos entre o pensamento
plotiniano/porfiriano e o cristianismo9, contendo este, entretanto, aquele em culminância de
aperfeiçoamento e realização10; após o que poderemos, afinal, situar nosso texto de base quanto
à articulação nuclear credere-intellegere como fundamento do perfazimento e itinerãncia
intelectual da realidade.
O traçado panorâmico do contexto que envolve a composição dos diálogos de início
permite-nos trazer ao relevo uma leitura em paralelo dos trechos nos quais Agostinho expõe a
ascensão intelectual para Deus11 já na forma esquemática e normativa quanto à atuação da
ratio12, apontando para a itinerância da alma em culminância no absoluto, através dos graus de
intelecção da realidade. Por sua vez, a possibilidade da sinopse permite-nos a percepção de que
a temática da ascensão intelectual compõe preocupação de primeira ordem no período de
Cassicíaco-Roma, em que a presença da filosofia neoplatônica é, como já o notamos,

9
Urs von Balthasar acentua categoricamente que “o neoplatonismo e o cristianismo apresentam-se em uníssono
aos olhos de Agostinho: a forma filosófica e a doutrina cristã que ele recolheu e estruturou, justamente nesta
forma filosófica. Seus primeiros escritos dão testemunho, com igual força, de uma e de outra.” – VON
BALTHASAR, H.U. Gloria: una estética teológica, volume 2, Madrid: Ediciones Encuentro, 1986, p. 98. Antes,
Von Balthasar pontuara que “... já nos escritos de Cassicíaco se reconhece Agostinho como absolutamente cristão
e crente, e, como demonstrou Courcelle, Agostinho conheceu Plotino nas pregações milanesas de Ambrósio, e em
suas relações com o sacerdote Simpliciano, que era cristão neoplatônico.” – Idem, ibidem.
10
“[Carol] Harrison coaduna-se à tese de Goulven Madec e outros, os quais sustentam que conceitos posteriores
de Agostinho, em teologia, estavam [desde] sempre presentes, in nucleo, nos escritos iniciais.” – DUPONT, A.,
op.cit., p. 68. Cf. HARRISON, 2008: 8-19. As grandes biografias igualmente pontuam neste sentido: “Como quer
que fosse, Agostinho sempre vivera suficientemente inserido na esfera do cristinanismo para que sua imaginação
fosse captada tanto por um apóstolo quanto por uma sábio pagão: para ele, ambos eram vigi magni, os ‘Grandes
Homens’ de seu passado curiosamente misto. [...] Com efeito, era um convertido entusiástico à ‘Filosofia’, mas
essa ‘Filosofia’ já deixara de ser um platonismo independente. Fora ‘fortalecida’, de maneira sumamente
individual, pelos ensinamentos mais sombrios de São Paulo e, num nível muito mais profundo, passara a se
identificar com a ‘religião entranhada em nossos ossos na infância’ – ou seja, com a sólida devoção católica de
Mônica.” – BROWN, 2012: 123-127; LANCEL, 1999: 130-132; cf. BLÁZQUEZ, 2012: 34-46; vide ainda:
FATTAL, M. Plotin chez Augustin, Paris: L`Harmattan, 2006, p. 11-75 (sobretudo, para nosso presente estudo,
as p. 19-32); GUITTON, J. Le Temps et l`Eternité chez Plotin et Saint Augustin, 3ª. éditon, Paris: Vrin, 2004, p.
136-151 (obra original de 1933).
11
Cf. KERSTING, Wolfgang “Noli Foras Ire, In Te Ipsum Rede” - Augustinus über die Seele in JÜTEMANN,
Gerd; SONTAG, Michael; WULF, Christoph (Hs.) Die Seele: Ihre Geschichte im Abendland, Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht GmbH & Co., 2005, p. 59. Kersting pontua, a exemplo de vários autores, a posição
deste período - sobretudo a do De quantitate animae - como especificamente neoplatônica (p. 61), o que, como já
o notamos nas observações e notas precedentes, embora formalmente correto, resulta-nos como materialmente
impreciso, visto que a ascensão anímica exposta nos diálogos em questão ostentará traço inequívoca e
essencialmente distinto, quanto ao aspecto teleológico do itinerário intelectual.
12
De ordine II, x, 25-27; De quantitate animae xxxiii, 70 – xxxvi, 81; De libero arbitrio II, iii, 7 – xii, 34.
10
confessadamente manifesta e poderosa13. Torna-se claro, pois, que o itinerário ascensional –
tópico central do pensamento plotiniano, enquanto processão/retorno (conversão) da alma do/ao
Uno14 – perfaz ponto de embate e superação do pensamento agostiniano para com sua herança
greco-romana, vale dizer: assimilação depurativa da filosofia neoplatônica15. Neste ãmbito, a
possibilidade de leitura em paralelo evidencia uma postura uniforme, por parte de Agostinho,
na qual a receptividade de uma herança capital da tradição platônica ocorre em uma
refundamentação essencial de seu escopo e, sobretudo, de sua funcionalidade, traçada no viés
fundamentalmente teleológico característico de antropologia, ancorado precisamente – como
exposto no De libero arbitrio - no eixo de sustentação instituído pela polaridade crer-inteligir.
Nesta visualização necessariamente sumária, os diálogos agostinianos apresentam um
como que eixo motriz: a preocupação em refutar, com suas próprias armas (ou seja, pela
racionalidade discursiva), os postulados céticos e maniqueístas que intentavam divergência no
que diz respeito ao cerne da fé cristã, mais propriamente a relação soteriológica entre a
confessionalidade interior e o Deus absoluto16, estabelecida como dialógica e racional enquanto
espaço de investigação e percepção dos vestígios divinos nos graus ascensionados
intelectualmente pela alma, em sua busca primordial e ratificadora do Deus conhecido pela fé17.
Nesse sentido, o crer no dado revelado/escriturístico perfaz ato de fé in confessio, por sua vez
vivenciado na relação dialogal com Deus perpassada pela ratio, estabelecida na mens18. Os

13
Cf. Confessiones VII, ix. Vide ainda De uera religione iii, 3-4.
14
Cf. Enéadas I, 6ss; IV, 8ss; V, 1, 3-5; 9,2; etc.
15
Com vistas à discussão ampla e exaustiva sobre as relações entre a herança filosófica greco-romana e o
desenvolvimento do pensamento agostiniano, além das obras já citadas de Boyer, Madec e Harrison (vide notas 3,
8 e 10), bem como as de Fattal e Guitton (nota 10), remetemos novamente ao volume organizado por Phillip Cary
mencionado na nota 2, sobretudo para os artigos de Brachtendorf (p. 3-21) e de Frederick Van Fleteren (p. 23-40).
16
Cf. BROWN, 2012: 126-127. Vide as notas 17 e 18.
17
Acerca da relação entre a confessionalidade e o exercício da razão enquanto programa filosófico, no contexto
dos escritos iniciais agostinianos, vide DOUCET, 2004: 29-32. No mesmo sentido, Von Balthasar observa: “O
caráter dialógico (das Confessionum) não anula a legitiimidade do monólogo (Soliloquia) e, por consequência,
o pensamento não pode reduzir-se pura e simplesmente a um ‘colóquio’, pelo mero fato de que Deus não é um
partner finito, mas sim o pressuposto ontológico (interior intimo meo) da atuação pessoal do pensamento” - VON
BALTHASAR, H.U. Glória: una estética teológica, op.cit., p. 111.
18
Philotheus Boehner observa que Agostinho trabalha com o duplo matiz de confessio: 1) expor-se enquanto alma
pensante; e 2) dispor-se enquanto coração crente, ou seja: os aspectos intitulados pelos comentadores de
“autobiográfico” e “teológico”, respectivamente [cf. BOEHNER-GILSON, 1988: 140]. Ressalte-se que, como se
pode verificar pelo desenvolvimento ratificador presente nas obras de maturidade, a confessio é manifestada e
realizada na entrega conducente e na atitude ouvinte à presença de Deus: confesso porque invoco; invoco porque
creio – “Que eu Vos procure, Senhor, invocando-Vos; e que Vos invoque, crendo em Vós [...] Senhor, invoca-Vos
a fé que me destes” [Confessiones I, i; vide ainda I, v]. A circularidade de tal atitude, por si mesma decorrente da
articulação maior fé-intelecção, desvela o fio condutor de todo o pensamento metafísico agostiniano [acerca da
qual a tese de Daniel Napier oferece-nos um exaustivo quadro referencial, embora situe, contrariamente à nossa
11
postulados da nova academia e do maniqueísmo contrastam de modo frontal com tal base de
fé, na medida em que, para a primeira, inexiste o que se possa ter e crer por verdade absoluta a
superar a dispersão e a contraditoriedade do sensível19; bem como, para o segundo, o dado
corpóreo e material compõe realidade inexcedível, limite insuperável para o pensar, e postulado
como princípio ontológico da realidade criatural, em contraposição ao princípio espiritual que
atua em permanente oposição àquele.20 Ante tal quadro, torna-se imperativo lançar luz a
respeito da 1) existência da verdade, bem como da possibilidade de se atingi-la; 2) quanto a seu
locus originário e próprio, qual seja, a mens em exercício através da ratio, atualizada no
princípio anímico e consubstanciada na interioridade enquanto perenidade ontológica principial
(a qual, nos diálogos em questão, sobretudo no De libero arbitrio, e após a suspensão judicativa
e pretensamente absoluta do conhecimento21, opera de forma autônoma, a partir do dado
primeiro do esse contingente, rumo ao esse absoluto22); e 3) do estabelecimento de seu
fundamento na relação com o eterno e absoluto, para o que afigura-se então, como propósito
deliberativo e programático, o “rastreamento” da atividade intelectiva perfazendo itinerário da

presente tentativa, “a alma circular” agostiniana como herdeira direta da formulação plotiniana da processão e
retorno da alma ao uno, bem como da atemporalidade essencial das almas individuais, em razão de sua origem no
Uno - NAPIER, D. From the Circular Soul to the Cracked Self: a genetic historiography of Augustine’s
anthropology from Cassiciacum to the Confessions, tese de doutorado, Universidade Livre de Amsterdam, 2010,
p. 41-56; trabalho revisado e republicado sob o título En route to the Confessions, Leuven: Peeters, 2013
(http://dare.ubvu.vu.nl/bitstream/handle/1871/16368/dissertation.pdf)]. Vide a respeito, ainda, as análises
fundamentais de UCCIANI, 1998: 43-59; e MARION, 2008: 29-40. De resto, é a confessio o próprio instanciar-
se da interioridade enquanto locus originário da verdade, o que, para Agostinho, equivale ao locus Dei por
excelência. Por seu turno, Moacyr Novaes Filho trabalha a especificidade do papel inquiridor, e contrapontual à
postura platônica, da confessio em sua vivência como correlatio à uma “cosmologia interiorizante” - NOVAES,
2007: 167-172. Mais adiante, ao tratar especificamente do sentido hierarquizante presente nas descrições dos
itinerários da alma (os quais classifica como “escalonamentos”), Novaes sublinha que tal sentido obedece ao
princípio de subordinação, ostentado sobretudo na relação entre o conhecimento sensível e a racionalidade, cuja
superioridade, face aos sentidos externos e interno, consiste “na sua capacidade de pensar a si mesma, de voltar-
se para si. [...] vetor interiorizante. A progressão da hierarquia, além de ascendente, pode ser apresentada também
como interiorizante. [...] ao ser levado ao seu criador, encontra a si mesmo como momento privilegiado desta
trajetória: [...]” – NOVAES, 2007: 189-190; vide ainda seu artigo mencionado à nota 4.
19
Vide nota 47 adiante.
20
Nossa caracterização do princípio estrutural do maniqueísmo tem por base a exposição que dele nos oferece
Justo GONZALEZ em Uma História do Pensamento Cristão – volume 2: De Agostinho às vésperas da Reforma,
traduzida a partir da segunda edição inglesa de 1987, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 17-20, com ampla
indicação bibliográfica. Cf. o verbete de COYLE, J. K. Manés, Maniqueísmo in FITZGERALD, A. D. (dir.)
Diccionario de San Agustín (San Agustín a través del tiempo), traducción de Constantitno Ruiz-
Garrido, Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2001, p. 831-838 (sobretudo p. 832-835). Vide ainda os sumários
doutrinais fornecidos por BROWN, 2012: 57-70; e LANCEL, 1999: 64-67.
21
De libero arbitrio II, ii,5
22
De libero arbitrio II, iii,7
12
atuação da razão em relação ao limitado e imperfeito, evidenciando sua origem e fundamento
em Deus23.
Em tal escopo, a ascensão da alma passa a ser visualizada como plenificação e/ou
consumação do universo inteligido em cada nível de seu perfazimento, e na culminância da
atividade anímico-racional, perfazendo como que um mosaico sumarizante (no sentido de um
todo harmônico e esteticamente ordenado na justeza de suas partes) do real na grandeza
(quantitate) da anima em sua adoração ante o Deus absoluto24, compondo seu percurso
cognitivo em cada passo julgado e moderado pelo conhecimento através da ratio, na
simultaneidade advinda da dinâmica interiorizante/exteriorizante.25 Nesse sentido, o ensejo do
percurso itinerante da ratio, por parte da articulação polar credere-intellegere, clarifica, no
trecho preambular do De libero arbitrio II, i, 1 – ii, 6, em que medida Agostinho entende a
antecipação e imediação de tal relação como absolutamente necessárias para 1) a superação dos
dilemas cético (suspensão do juízo cognitivo) e materialista (realidade criatural tomada como
princípio ontológico), bem como para 2) elucidar o papel e a finalidade do exercício da razão,
entendidos finalmente, na simultaneidade originária ensejada pelo binômio polar, como
concretização em ato da relação fundacional Vere Esse absoluto e eterno – realidade criatural
temporal, na feitura inteligível desta como presentificação significativa da primeira. Assim,
verifiquemos como, na abertura do livro II do De libero arbitrio, Agostinho estrutura a
discussão com Evódio de modo a proporcionar, após a breve retomada da digressão acerca da

23
“Pois, na verdade, assim como a alma é toda a vida do corpo, do mesmo modo toda vida bem-aventurada da
alma é Deus. Enquanto vamos executando esse trabalho até o levarmos à sua hora de perfeita realização, estamos
ainda a caminho. E já que nos é concedido gozar desses bens verdadeiros e seguros, embora sejam como espécie
de lampejos em nossa viagem ainda tenebrosa, observa se não seria o que a Escritura diz sobre a Sabedoria,
referindo-se à sua conduta em relação àqueles que a amam, que vêm a seu encontro e a procuram. Com efeito,
está dito: ‘Ela se mostrará a eles, jubilosamente, nos caminhos e irá a seu encontro, com toda a solicitude’ (Sb
6,16). Efetivamente, em qualquer lugar onde olhares, a sabedoria te fala pelos vestígios que imprimiu em todas
as suas obras.” – De libero arbitrio II, xvi, 41; cf. ainda II, xvi, 43-44. Vide KREMER, Patrick J. The
“psychological” proof for the existence of God developed by Saint Augustine, Chicago: Loyola University, 1948,
p. 13-14; PLAMONDON, Paul La preuve augustinienne de l’existence de Dieu, Faculté de Philosophie de
l’Université de Ottawa, 1957, p. 04-06.
24
“Ouviu sobre a força e o poder da alma. E num breve resumo: ainda confessando que a alma humana não é o
mesmo que Deus, temos que deduzir que nada criado está mais perto de Deus. [...] Este é o único Deus que a alma
deve adorar, sem dele dizer nada falso ou menos verdadeiro. Aquele que a alma adora como Deus, tem que ser
necessariamente considerado por ela como superior ao espírito humano. Nem a terra imensa, nem o oceano, nem
as estrelas ou a lua, nem o sol, nada absolutamente do que podemos ver ou tocar deve ser entendido como superior
à alma [...] A razão nos convence de que todas estas coisas são inferiores a qualquer alma [...] Somente a Deus
devemos adorar como único autor de todas as coisas, e também da alma.” – De quantitate animae xxxiv, 77-78.
25
Vide, além do trecho do De quantitate animae citado na nota anterior, as passagens em De libero arbitrio II,
ii, 2-7; e De ordine II, i, 2-5. Cf. ainda NOVAES, 2007: 171.
13
vontade e do livre-arbítrio, o surgimento da articulação em pauta, evidenciando seus polos
como imediação do itinerário da mente (antecipado na predisposição ao intellegere) rumo a
Deus (antecipado no assentimento do credere).

2) A vontade e o livre juízo

O problema da funcionalidade exercida pelo livre-arbítrio, no quadro das relações entre


o Deus criador e o ser humano, marca propositadamente o início do livro II do De libero
arbitrio. É característico da retórica dialogal de Agostinho a máxima explicitação da questão
em curso, em culminância conceitual, como pontuação instaurativa de nova etapa no
desenvolvimento da discussão. Tais explicitações levam a termo a conversação conduzida até
então, convergindo para a elucidação dos conceitos em jogo e instaurando novo âmbito de
discussão. Estas pontuações tópicas ostentam atuações de interveniência na “costura” de um
todo dialogal e estruturado, através das quais deve-se rumar e atingir uma meta doutrinária
assentida ou suposta (inuentio) ao início do diálogo26. Pressupomos, como perspectiva ampla
de análise, que, tendo por âmbito de início o par formado por a) um questionamento
fundamental e de princípio (quaestio), acerca de um postulado ora celebrizado por correntes
filosóficas já em curso, ora aceito pela fé; e b) uma asseveração, ou mesmo colocação assertiva,
tomada por ponto indiscutível no contexto da discussão prestes a se instalar (inuentio) – questão
e asserção fundamentais, a disputatio é instaurada e se desenvolve com base nas recorrências
de explicitações do par inicial, o que, em última análise, decorre da própria concepção
agostiniana das relações sabedoria humana e fé cristã, a qual parte do dado aceito e crido na fé
fundante, para sua ratificação via questionamento e disputa argumentativa. A retórica
agostiniana ostenta, pois, seu caráter instrumental como decorrência direta do plano doutrinário

26
A sucessão tópica e, mais precisamente, o locus e o ordenamento sequencial que ocupam, no interior da
composição retórica agostiniana, os elementos da quaestio, disputatio e inuentio, perfazem parte considerável do
estudo de Alfonso Rincón GONZÁLEZ, Signo y lenguaje en San Agustín, Bogotá: Centro Editorial/UNC, 1992
(especificamente, no contexto de nosso artigo, as p. 99-117). Vide ainda o estudo de Gérald ANTONI La prière
chez Saint Augustin: d`une philosophie du language à la théologie du Verbe, Paris: Vrin, 1997, p. 17-36. Antoni
desenvolve exposição sistemática acerca da concepção agostiniana da linguagem, em que os caracteres de
antecipação e simultaneidade, sobre os quais temos centrado nosso presente texto, revelam-se fundamentais à
teoria dos signos em Agostinho (p. 37-56). Os estudos mais recentes de Emmanuel Bermon [2001: 304-311] e
Vincent Giraud [2013: 277-303], entre outros, igualmente tangenciam tais aspectos (vide, a respeito do ensaio de
Giraud, a nota 58 adiante).
14
e conceitual: a instituição do binômio quaestio-inuentio instaura a disputatio como exercício
do intellegere da mens, que irá se concretizar e consumar, no curso da discussão, no itinerário
ascensional rumo a Deus27. Assim, a problematização agudizada acerca do papel desempenhado
pelo livre-arbítrio nas economias soteriológica e das relações ser humano/Deus, explicita a
incongruência entre a vontade humana boa – havendo sido criada por Deus – e o mal desejado
pela mesma vontade. Porém, a agudização não visa unicamente explicitar a discussão em curso,
mas avançar até o esclarecimento da solução para um problema pressuposto em todo o diálogo:
conciliar a ordem criatural boa feita por Deus, com a experiência da presença do mal nesta
mesma ordem.
Ev. – Se possível, explica-me agora a razão pela qual Deus concedeu ao homem o
livre-arbítrio da vontade, já que, caso não o houvesse recebido, o homem certamente
não teria podido pecar.
Ag. – Logo, já é para ti uma certeza bem definida haver Deus concedido ao homem
esse dom, o qual supões não deva ter sido dado? [De libero arbitrio II, i, 1-2]28

A explanação do argumento principia pela petição de explicitação, ou seja, pela extração


de pressupostos implícitos e aceitos até então pela discussão em curso. O ato de peticionar é
composto em dois tempos: 1) remissão do todo em jogo, e discutido até o momento (concessão,
por parte de Deus, do livre-arbítrio ao ser humano); e 2) anteposição de seu par oposto (negação
da concessão, com a hipotética consequência imediata). Assim, o pedido de Evódio intenta a
extração das razões internas às pressuposições relacionais que polarizaram a discussão: Deus e
ser humano. O elemento intermédio – livre-arbítrio – ostenta neste ponto tipologia ambivalente,
ou mesmo ambígua pura e simples: não se supõe como logicamente possível a atribuição de
liberdade plena – atributo próprio do Criador – à criatura. Porém, se esta o exerce de fato,
evidente que lhe foi possibilitado somente por concessão do Criador:
Pois, se é verdade que o homem em si seja certo bem [alusão ao pressuposto discutido
e estabelecido na primeira discussão – livro I], e que não poderia agir bem, a não ser
querendo, seria preciso que gozasse de vontade livre, sem a qual não poderia proceder
dessa maneira. Com efeito, não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade

27
Tal é o plano geral dos escritos agostinianos do período Cassicíaco/Milão/Roma: De libero arbitrio II, i, 1 – ii,
6; De quantitate animae, iii, 3ss;
28
Ev. – Iam, si fieri potest, explica mihi quare dederit deus homini liberum uoluntatis arbitrium: quaod utique si
non accepisset, peccare non posset. - Aug. – Iam enim certum tibi atque cognitum est, deum dedisse homini hoc,
quod dari debuisse non putas? As citações do De libero arbitrio em nosso artigo são remissivas à tradução de Nair
de Assis Oliveira, Sáo Paulo: Paulus, 4ª. edição, 2004, adaptando-se a vertência quando nos pareceu necessário
e/ou preferível.
15
também para pecar, que é preciso supor que Deus no-la tenha concedido nessa
intenção. [De libero arbitrio II, i, 3]29

Cabe ressaltar, termos sumários, que a articulação ostentada neste ponto revela-se como
proposição do fundamento de todo o decurso seguinte do diálogo. Trata-se de momento
determinante para o que podemos conceituar como autêntica expositio Dei agostiniana, no
sentido de se expor como a atuação criacional de Deus - expressa no caráter donativo da
liberdade e volição humanas, através das quais o homem age e se realiza de modo próprio
enquanto ser criado - pode ser entendida sem os pressupostos excludentes da fé, na decorrência
das soluções angariadas na discussão. Tal exposição terminará por se revelar como o verdadeiro
“coração” da obra em seu todo, na qual Agostinho irá explicitar como a discussão nela encontra
seu transfundo, vale dizer: sua origem ontológica e sua performação teleológica, na medida em
que a discussão conducente de todo o De libero arbitrio tem por mote e esteio a relação criatural
Deus-ser humano em bases ontológicas e epistêmicas. A explicitação e ampliação conducente
se dá mediante a instauração, na abertura do Livro II, de novo âmbito no diálogo, ampliando-o
de maneira a permitir a postulação acerca do livre-arbítrio, antevisto na função de ato executor
da temporalidade anímica, na qual a atividade racional, por sua vez, irá se perfazer enquanto
feitura cognitiva da realidade30 (ancorada, segundo lemos em De quantitate animae v, 931, na
atitude primordial da imaginatio), no escopo amplo da assim chamada “prova da existência de
Deus” trabalhada no De libero arbitrio32. Nesse sentido, é possível visualizar a composição
textual agostiniana como um duplo movimento em simetria: 1) disputatio recursiva e/ou
remissiva (enquanto retomada) à quaestio até então desenvolvida as paixões e tematização da
uoluntas no âmbito geral da discussão sobre a atuação divina e a livre responsabilidade humana

29
Aug. Si enim homo aliquod bonum est et non posset, nisi cum uellet, recte facere, debuit habere liueram
uoluntatem, sine qua recte facere non posset. Non enim quia per illam etiam peccatur, ad hoc eam deum dedisse
credendum est.
30
“Num primeiro momento, Agostinho apresenta o livre-arbítrio ou a vontade livre, como a faculdade que o
espírito possui de se determinar a agir, lançar-se a viver, [...] A razão não se posiciona em oposição à vontade,
como a parte teórica da alma, dado que ela própria é uma potência ativa, conhecedora. [...] A vontade é a
faculdade de fazer prevalecer um desejo [superior] sobre outro [inferior], por um consentimento que vem a ser,
por sua vez, aversão e/ou conversão em relação ao bem desejado. [...] Nesse sentido, Agostinho afirma que nossa
liberdade consiste em ‘nos submetermos à esta Verdade perdida pela vontade pervertida (De libero arbítrio II,
13,27).” – MICHON, Cyrille. Le libre arbitre in CARON, M. (dir.) Saint Augustin – Les Cahiers d’Histoire de
la Philosophie, Paris: Éditions du Cerf, 2009, p. 309.
31
“Aug. Cur ergo, cum tam paruo spatio sit anima quam corpus est eius, tam magnae in ea possunt exprimi
imagines, ut et urbes, et latitudo terrarum, et quaeque alia ingentia apud se possit immaginari?”
32
Cf. GILSON, 2007: 46-53.
16
- Livro I do De libero arbitrio33), pela qual se reporta, em retroação, à atuação anímica como
ponto de partida; e 2) expositio prospectiva, pela qual se lança à exposição do itinerário de
ascensão do conhecimento humano a Deus, pelo perfazimento da realidade temporal no instante
atuante da ratio, através dos seus momentos de iudicare e moderare o dado conhecido pela
mens [II, v, 12ss]34. Na intersecção do duplo movimento, a inuentio instaurativa e pressuposta
por todo o diálogo. Em suma, a análise do passo retórico perpassado na estrutura textual
permite-nos a percepção de que Agostinho, dentro da tradição platônica de submissão da techné
ao tà ontá (da ars ao ens), faz valer a retórica como ordenamento discursivo de apresentação
da ordem ontológica. Tal qual Platão nos diálogos de maturidade35, onde a forma de exposição
da dialética ascensional terminava por revelar a forma ontológica da realidade, assim Agostinho
expõe a ontologia subjacente às relações Deus/ser humano precisamente na forma da retórica
dialogal, na qual o passo subsequente da quaestio é remissivo ao pressuposto da inuentio
presente por todo o diálogo: a autorictas outorgada pelo Criador enseja, como âmbito de sua

33
De libero arbitrio I, xi, 21. Cf. BERMON, E. A teoria das paixões em santo Agostinho in BESNIER, B.;
MOREAU, P-F.; e RENAULT, L. (orgs.) As paixões antigas e medievais, São Paulo: Loyola, 2008, p. 202-206.
Em certo sentido, pode-se qualificar todo ato de fé e de conhecimento como volitivo, na medida em que a confiança
e a cognição compõem, respectivamente, expressões do desejo e de abertura do espírito à busca de sabedoria, o
que pode ser exemplificado, por analogia, no exercício do ato amoroso enquanto componente de ambas as
disposições da alma: “L’amour ne constitue pas une volonté comme les autres, seulement spécifiée par un objectif
et une modalité particuliers, mais la seule valentior voluntas, la seule volonté vraiment forte, en fait la seule
volonté pouvant vouloir effectivement ce qu’elle sait devoir vouloir” [MARION, 2008: 251]. Vide ainda
BOULNOIS, Oliver. Augustin, la faiblesse et la volonté in DE LIBERA, A. (ed.) Après la métaphysique:
Augustin? – Actes du coloque inaugural de l’Institut d’Études Médiévales de l’Institut Catholique de Paris, 25
juin 2010, Paris: Vrin, 2013, p. 51-77.
34
No passo em questão, Evódio responde a Agostinho que o sentido interior exerce as funções de juiz e moderador
em relação aos sentidos externos, princípio que se mostrará como sendo o sentido próprio da atuação da ratio a
cada instante componente do percurso ascensional da realidade. “Para Agostinho, [...] a percepção é sempre uma
síntese de forma inteligível e experiência sensível que pressupõe um ato de vontade individual. [...] é também
possível reconhecer, no ato de vontade que constitui as percepções a cada instante, uma figura ou uma imitação
do ato divino que constitui o mundo a partir da eternidade. [...] Mas todo instante, como ato de uma vontade livre,
inicia uma série temporal sem ter uma causa anterior necessária (cf. o Livro II do De libero arbitrio). E todo
instante, enquanto união do presente da memória, presente da atenção e presente da esperança, contém em si o
tempo como um todo, e é portanto uma figura da eternidade.” - MAMMÌ, Lorenzo. STILLAE TEMPORIS –
Interpretação de uma passagem das Confissões, XI, 2 in PALACIOS, Pelayo M. (org.) Tempo e Razão –
1.600 anos das Confissões de Agostinho, São Paulo: Loyola, 2002, p. 61.
35
A dialética do conhecimento, ensejada pela própria dialogicidade socrática, é instanciada nos diálogos de
maturidade de Platão enquanto método próprio da filosofia, tomando os polos instaurativos sensível-inteligível,
herdados dos diálogos iniciais, como ilustrativos da estratificação na qual se situa o conhecimento humano,
remetendo sua atividade à percorrência da decorrente gradação em que está disposto o ser e a verdade das coisas
e do mundo: “Le lien entre dialectique et dialogue est donc tout sauf extérieur et contingent: en um sens, la
dialectique est la condition de possibilite de tout dialogue véritable, pour autant que celui-ci ne se réduise pas à
une confrontation d’opinions, cést-à-dire de monologues.” – DELCOMMINETTE, S. Devenir de la dialectique
in DIXSAUT, M., CASTEL-BOUCHOUCHI, A. e KÉVORKIAN, G. Lectures de Platon, Paris: Ellipses Édition
M., 2013, p. 44.
17
própria vivência e aceitação, o instanciar-se da racionalidade, pela qual é validada e ratificada
através do próprio ato libertário (fundante) do julgamento racional, na medida em que a ratio,
autônoma em seu exercício, fundamenta sua própria atuação e independência, superando todo
condicionamento imposto pela realidade sensível, permitindo transpor e perfazer,
cognitivamente (intellegere), toda a realidade criatural. Assim, podemos concluir que
Agostinho faz valer seu aparato e preparo de mestre retórico como instrumentos a serviço do
conteúdo da fé cristã, terminando por estatuir papel diferenciado à arte discursiva, espécie de
retórica própria, de moldagem e forma especificamente cristãs36: não mais a persuasão
pretendida é estabelecida anteriormente ao conteúdo argumentado, mas o assentimento em fé
fundamenta e condiciona o discurso a se apresentar, enquanto exercício autonomamente
ratificador do dado advindo do credere (ou da pístis bíblica), no qual a rusticidade do dado
escriturístico é como que restaurada para uma nova expressão, ampliada e consumada no
discurso que se instaura a partir do inteligir a quaestio de princípio37. Vale notar, por fim, que
no contexto de nosso presente artigo, importa-nos ainda, mais detida e internamente ao texto,
observar como a agudização de abertura irá conduzir à exposição da ascensionalidade do
conhecimento humano nas seções 3 a 7, via estabelecimento do binômio credere-intellegere.
Com efeito, o precisar o locus da uoluntas dentro da atuação humana, conduz Agostinho ao
delineamento da ordo rerum, a qual por sua vez o leva à exposição e contemplação do summus
ens, movimento este estruturado pela polaridade fé-razão.

Centralidade divina argumentativa [De libero arbitrio II, i, 1 - ii, 4]


A pergunta de início feita por Evódio apresenta duplo movimento, no qual a solicitação
de elucidação (explica mihi) é seguida pelo seu “oposto”: caso não ocorresse o fato originário
do qual se pede explicação (utique si), não haveria a ação ou consequência oposta à origem: o
pecado. A articulação do questionamento instaurativo do Livro II assenta-se, pois, no polo
binomial ação-divina/ação humana, lançando-se na explicitação de nova quaestio através da
remissão implícita da discussão percorrida até então: 1) se temos por certo, após toda a

36
Cf. TRAPÈ, A. San Agustín in DI BERARDINO, A. PATROLOGIA - vol. III: La edad de oro de la literatura
patrística latina, Madrid: B.A.C., 1981 (5ª impresión: mayo de 2007), p. 488.
37
MORESCHINI e NORELLI [2009: 175] notam que somente a partir do século IV, com Jerônimo e Agostinho,
haverá um amadurecimento acerca do entendimento do dado escriturístico em sua tipologia literária, no qual os
autores, “respeitando a verdade de seus conteúdos, sabem também utilizar as categorias retóricas empregadas
pelos pagãos para ampliar a qualidade literária dos textos sagrados”.
18
discussão do Livro I, que possuímos livre-arbítrio, dom concedido pela ação de Deus, mas causa
formal do pecado, então 2) como explicar a ação humana resultante, possibilitada unicamente
pela ação divina originária, ao mesmo tempo que contrária a ela? O desdobramento da
apresentação da questão instaurativa mostra que a polaridade condiciona a condução da
discussão:
Ag. Também me recordo de termos chegado à evidência a respeito desse ponto. Mas,
no momento, eu te pergunto o seguinte: esse dom que certamente possuímos e pelo
qual pecamos, sabes que foi Deus quem no-lo concedeu?
Ev. Na minha opinião, ninguém senão ele, pois é por ele que existimos. E é dele que
merecemos receber o castigo ou a recompensa, ao pecar ou ao proceder bem. [Idem,
II, i, 1]38

A interrogação interposta por Agostinho remete o fio condutor do questionamento, em


recorrência, à origem divina da ação humana, recentralizando e instituindo o caráter teocêntrico
de toda a discussão: a moralidade remonta, instância última, ao ser divino pelo qual somos e
agimos. Mas a centralidade de Deus questionada por Agostinho remete ao dado primordial da
autorictas, e visa não se deter de maneira unicamente remissiva e pontual, como que meramente
aludindo à causa formal da moralidade humana – Deus - e sim “saber” e elucidar o agir de Deus
como fonte da conduta humana. Temos o dado do credere que aponta para a origem divina,
porém Agostinho interroga não propriamente sobre a posse ou a notitia deste dado, mas acerca
do experimentoar e conhecer esse dado: deum nobis dedisse scias. Não se trata de um saber
cujo estatuto esteja situado em contraposição ao da fé, tampouco em seu aprofundamento ou
superposição (como uma sua evolução), mas sim um desejo em excelência e excedência
recorrentes para com seu dado primordial assentido em fé, em plenificação ratificadora.
Tentemos precisar o estatuto funcional de scire, dentro da epistemologia agostiniana
exposta neste passo do texto, para além da disposição intelectiva da fé cristalizada como matiz
primeiro do pensamento, celebrizada no mote crede ut intelligas (que Agostinho irá expor logo
adiante). A utilização de scire se dá, propriamente, como o equacionamento da nova quaestio
de abertura do livro II. Em certo sentido, ele traduz e elucida a nova questão, ao funcionar como
meio de atuação entre os polos componentes do binômio a que nos referimos. A relação entre
o agir divino e a ação humana não “costura” sua tessitura como justaposição de partes
independentes entre si, mas sim como reflexo de feitura recíproca entre um e outro. Com efeito,

38
Aug. Ego quoque nemini iam nobis id factum esse perspicuum. Sed nunc interrogaui utrum hoc quod nos habere,
et quo nos peccare manifestum est, deum nobis dedisse scias. - Ev. Nullum alium puto. Ab ipso enim sumus; et
siue peccantes, siue recte facientes, ab illo poenam meremur aut praemium.
19
uma observação quanto ao locus ocupado por scire no contexto agostiniano, irá permitir
exploração privilegiada daquilo que pode ser considerado o fio estrutural e recorrente de toda
a obra de Agostinho: a simultaneidade interposta entre credere e intellegere. Se a celebrização
do mote latinizado, alusivo à versão que a Septuaginta oferece de Isaias 7,939, tornou lugar-
comum a articulação entre a religião e a filosofia no interior do pensamento agostiniano,
terminou entretanto por fixar, com concisão única, o sentido de sua atitude de base e princípio
(crer e entender), embora tenha, de certa forma, lhe empobrecido o alcance, precisamente ao
determinar-lhe vetorialidade (crer para entender). O mote tem, efetivamente, a função
propedêutica de balizar o direcionamento vital de sua filosofia, porém sua concisão encontra-
se fundamentada na interrecorrência entre os polos do binômio anteriormente referido: ação
divina e ato humano, Deus criador e atitude volitiva humana. No escopo teológico de seu
ideário, Agostinho expõe o binômio criação-volição no âmbito das relações entre graça e
liberdade. O exercício desta última, enquanto bem manifesto, só pode ter sua origem na
primeira, pois “todo bem procede e é de Deus” [De libero arbitrio II, i, 1]40. Ora, precisamente
este simul entre ação divina a possibilitar o ato humano, o qual por sua vez àquela remete e
busca, caracteriza todo o movimento de composição e exposição da argumentação discursiva
dos passos neste preciso momento de nosso texto. A presença primordial de Deus, cuja
ocorrência é postulada, neste passo do diálogo, no credere enquanto dado recepcionado de per
si (a autorictas presente na resposta de Evódio, mas sub iudice da ação ratificadora da mens a
partir de II, ii, 7), amplifica a alma, em sua atividade racional e espiritual (noética), da
sensibilidade material ao sentido interior, na precisa convergência à amplitude racional que
Agostinho expõe em De quantitate animae v, 9ss. Nesse sentido, scire configura o movimento
próprio da simultaneidade estruturante da filosofia de Agostinho: desejo saber (e confiar em)
acerca do que já disponho e/ou me é dado, do qual já sou notificado e pelo qual sou movido a
buscá-lo. Tal acepção nos parece explicitada por James Wetzel quando, em seu guia
introdutório ao pensamento de Agostinho, faz notar que “fundamentalmente, para Agostinho,
não chegamos à verdade; a verdade chega a nós e nos abarca em nosso lugar de internamento

39
A parte final do verso traz: “” [Septuaginta - Id est Vetus
Testamentum graece iuxta LXX interpretes, edidit Alfred Rahlfs (Duo volumina in uno), Stuttgart:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1979; vide igualmente www.bibelwissenschaft.de/de/online-bibeln/septuaginta-
lxx/lesen-im-bibeltext]: “e se não acreditarem, então não compreenderão”.
40
“Ev. [...] omne bonum ex deo esse...”.
20
corporal.” [2011: 89]. Mais adiante ainda, Wetzel trata de detalhar as relações entre a aspiração
por sabedoria e o desejo mais profundo da alma – scire e uoluntas – em termos mais
quantitativos que qualitativos, com a precisa nuança que esta acepção ocupa na antropologia
anímica dos diálogos agostinianos, notadamente no De quantitate animae: à qualificação da
vontade em sua abertura essencial, deve corresponder – simultaneamente – a quantificação da
sabedoria em sua infinitude: “Aberto é o que um desejo finito por sabedoria infinita tem de ser”
[2011: 90-91], o que resulta na intimidade interior, na qual o datum da presença divina ocorre:
a) inicialmente, na autorictas que preside o ato de fé; e b) em decorrência, e ensejado pelo dado
de fé, ocorre igualmente na percorrência do delineamento ascensional do universo, pela ação
ratificadora e judicativa da mens. Assim, temos a biunivocidade, ou mais propriamente: a
simultaneidade característica e estruturante de toda a filosofia de Agostinho, no qual a utilização
de scire, neste momento de nosso texto [II, ii, 5], permite adentrar como passo inicial, e de
sinalização diretiva, à condução do percurso discursivo culminante no itinerário ascensional da
alma, exposto na seção seguinte.
Em contínuo, a resposta de Evódio retroage a questão aos termos de sua própria
fundamentação: à inquirição acerca de sua ciência sobre o caráter donativo (dedisse) do livre-
arbítrio, responde com o remontar, por primeiro, a quaestio ao plano criacional/ontológico, para
evidenciar a decorrência antropológica e moral da discussão acerca da uoluntas. Com tal passo,
a resposta de Evódio extrai, junto à teocentralidade da pergunta de Agostinho, o seu aspecto
fundante, para evidenciar que a elucidação acerca da liberdade de uso do arbítrio humano
advém da exposição do caráter decorrente de tal teocentralidade. Observamos, assim, que a
tessitura própria do diálogo, bem como sua apresentação, constituem-se segundo o movimento
mesmo da simultaneidade essencial agostiniana: a um questionamento acerca de aspectos
humanos - no caso, a liberdade do juízo e arbítrio morais – ocorrerá primeiramente um como
que passo-de-volta, ou o sentido retrocessante/recorrente, para remontar a questão em seu
aspecto ontológico e de princípio (espécie de arquiteologia). Para se explicar como agimos
rumo ao Bem supremo, deve-se antes remontar ao próprio Bem supremo, na circularidade
própria que o elucida como o dado primordial. E, analogamente, quando Agostinho devolve a
quaestio repisando a inquirição de seu scire acerca da origem divina do livre-arbítrio, Evódio
uma vez mais apresenta o argumento da recorrência minimum-maximum:

21
Ag. Mas o que eu desejo saber é se compreendes com evidência esse último ponto.
Ou se, levado pelo argumento da autoridade, crês de bom grado, ainda que sem claro
entendimento.
Ev. Na verdade, devo afirmar que, sobre esse ponto, eu aceitei-o primeiramente dócil
à autoridade. Mas o que poderia haver de mais verdadeiro do que as seguintes
asserções: tudo o que é bom procede de Deus. E tudo o que é justo é bom. Ora, existe
algo mais justo do que o castigo advir aos pecadores, e a recompensa aos que
procedem bem? Donde a conclusão: é Deus que atribui o infortúnio aos pecadores e
a felicidade aos que praticam o bem. [II, i, 1]41

A resposta exercita a remissão do mínimo ao máximo: à pergunta se há convicção, de


sua parte, acerca da origem divina do livre-arbítrio enquanto dom (e bênção, por conseguinte),
Evódio apresenta o argumento da autoridade baseado, por assim dizer, não em incognitum
credo, mas elucidando sua vetorialidade: Deus - bem - justiça - moral; a qual, por sua vez,
ostenta explicitamente sua instituição teo-teleológica. Ao resolver a quaestio no remontá-la a
Deus, Evódio na verdade dissolve-a no imediato da postulação da origem divina do bem (ou ao
caráter donativo do libre-arbítrio, como dom) enquanto datum primordial, notitia à qual a ratio
exercitará sua função de moderação-condução e, sobretudo, sua adjudicação (julgamento), pela
qual todo dado apresentado ao intelecto é submetido à sua ratificação 42. Tal postulação fora o
ponto de partida, tal como ora perfaz o apontamento final. Longe de eclipsar as verdades
intermédias contidas na série argumentativa, esta imediaticidade de postulado as traz ao lume,
fazendo com que se revelem e se constituam como intelecção da inuentio de início. O imediato
se mostra, aqui, como constituinte das possibilidades de mediações intelectuais do conteúdo
doutrinário crido (imediato e instituído), sendo que não somente as mediações qualificam e
inteleccionam o dado crido de início, mas são em realidade possibilitadas e impulsionadas por
ele. É o postulado doutrinário (conteúdo assentido in credere, na fé imediatizada pelo dado
primeiro da autorictas) que enseja (no sentido de solicitar e/ou encaminhar ao) o
entendimento/mediação da razão, enquanto solícito (necessitado) de sua adjudicação via
ratificação. Enfim, a imediaticidade do dado crido – a inuentio de interveniência do diálogo –
apresenta-se como a própria simultaneidade agostiniana: não há prioridade ou primordialidade
sobreposta de uma sobre a outra – credere e intellegere – mas em realidade instituem-se num

41
Aug. Hoc quoque utrum liquido noueris, an auctoritate commotus libenter etiam incognitum credas, cupio
scire. - Ev. Auctoritati quidem me primum de hac re credidisse confirmo. Sed quid uerius quam omne bonum ex
deo esse, et omne iustum bonum esse, et peccantibus poenam recteque facientibus praemium iustum esse? Ex quo
conficitur a deo affici, et peccantes miseria, et recte facientes beatitate.
42
Vide a nota 34.
22
só saber imediato, cuja discursividade no tempo constitui a intelecção ascencional do universo
criado pela scientia dei.
Precisamente a relação de decorrência entre a imediata postulação e/ou remissão ao
dado do conteúdo crido, por um lado; e sua mediação construída pela intelecção argumentativa
que a penetra (discerne), é que impede a composição argumentativa exposta até então, de se
qualificar e se estabelecer como construto puramente teológico. Credere (atitude intelectiva de
assentimento perante a autorictas, que enseja sua própria ratificação, ou seja: institui e/ou
instaura sua racionalidade) não se impõe como involuntário, mas sim como desejado e buscado
de início, imediatamente. Por sua vez, scire apresenta a busca já dada e concretizada na
interioridade confessante, porém levada a efeito, em seu discernimento e penetração, através da
ratio atuante na intelecção mediada pela exterioridade43. O conteúdo crido e o ato de inteligir
dão-se, pois, no âmbito de instituição da atualidade anímica da interioridade44, e de constituição
da receptividade perceptiva da exterioridade – na simultaneidade do scire e da scientia na
feitura cognitiva da realidade in totum. O delineamento em continuidade de nosso diálogo é
tecido como extração e consecução deste simul fundamental que estrutura o pensamento
agostiniano aqui exposto. Face ao direcionamento da quaestio moral ao postulado, por parte de
Evódio, da origem divina do livre exercício da uoluntas, Agostinho evidencia que este
posicionamento pede a colocação do questionamento em termos radicais:
Ag. Nada tenho a opor. Mas apresento-te esta outra questão: Como sabes que
existimos por virmos de Deus? Isso de fato não é o que acabas de explicar, mas sim
que dele nos vem o merecer, seja o castigo, seja a recompensa. [II, i, 2]45

43
“A progressão da hierarquia (nos itinerários intelectuais descritos nos diálogos do período inicial), além de
ascendente, pode ser apresentada também como interiorizante. [...] o espírito humano, ao investigar o mundo e
ser levado ao seu criador, encontra a si mesmo como momento privilegiado desta trajetória [...] Se nele (no
conjunto da criação) está impressa a sabedoria divina, o princípio ordenador, nele se começará a busca. A partir
daí, a atenção volta-se para o homem interior, lugar privilegiado do reconhecimento da presença divina.
‘Reconhecimento’, bem entendido, pois não se deve esperar que o homem apreenda completamente o que é Deus:
as pretensões do esforço confessional são de certo modo inalcancáveis.” – NOVAES, 2007: 190 (cf. ainda p. 168-
169); vide DOUCET, 2004: 21-22; vide ainda: RATZINGER, J. Originalité et tradition dans le concept
augustinien de ‘confessio’ in CARON, M. (dir.) Les Cahiers d’Histoire de la Philosophie - Saint Augustin,
Paris: Éditions du Cerf, 2009, p. 20-21; OLIVEIRA, Manfredo A. O Ocidente enquanto encontro entre a
metafísica da natureza e a metafísica da liberdade: o exemplo de Agostinho in FELTES, Heloísa Pedroso
M. F. e ZILLES, Urbano (orgs.) Filosofia: diálogo de horizontes, Caxias do Sul: Educs/Porto Alegre: Edipucrs,
2001, pp. 221-235.
44
“..., a alma deve atingir inicialmente a sua intimidade, o grau mais elevado de interioridade, antes que o homem
seja capaz de derramar sua alma acima de si mesmo. [...] Desta forma, Agostinho estabelece a natureza congênere
do conhecimento de si e da busca de Deus, desde que aquele seja subordinado a esta, no regime de interioridade.”
– NOVAES, M. Interioridade e inspeção do espírito na filosofia agostiniana, op.cit., p. 106
45
Aug. Nihil resisto: sed quaero illud alterum, quomodo noueris nos ab ipso esse. Neque enim hoc nunc, sed ab
ipso nos uel poenam, uel praemium mereri explicasti.
23
A inquirição apresentada ilustra que, se a formulação de uma dada questão enseja, em
sua própria exposição, determinada solutio (nela mesma contida enquanto inuentio de
princípio), esta por sua vez enseja sua radicalização rumo à fonte da disputatio. Assim, a
sequência inuentio-quaestio-solutio se dá, não de forma sucessiva ou processual/progressiva,
mas sim de forma retrocessiva/recorrente: retorna-se, a cada nova exposição da quaestio
(esmiuçada e radicalizada, por sua vez, a cada novo passo da disputatio), ao ponto originário
que, afinal, Evódio tratara logo de supor: a origem divina da ação humana. Agostinho trata
então de evidenciar que, se não há o que retorquir a tal postulado do credere –origem divina -
igualmente há que se avançar na questão até o esgotamento da inuentio nela contida: a
postulação da origem divina da ação humana implica em questionar, mais amplamente - e,
portanto, para além da moral - se a própria existência procede de Deus. Mostra-se, assim, que
o postulado acerca da fonte divina para a moral humana contém, em si, a inuentio da ontologia
fundamental que sua própria asserção acarreta: a origem divina da existência. A resposta
agostiniana irá mais e mais evidenciar que a inuentio trazida por tal asserção contém e
apresenta, imediata e simultaneamente, sua própria quaestio já ensejada em máxima amplitude
e solutio: a existência é devida a Deus, cuja existência, por sua vez, é atestada pela realidade.
Eis, maximamente ilustrada, a simultaneidade agostiniana recorrente e perene, na qual o passo
seguinte é não somente suposto pelo anterior, mas é até mesmo por ele ensejado e, por assim
dizer, solicitado. É neste escopo da postulação da origem divina, ensejante da ontologia e
cosmologia fundamentais, que se dará a descrição do itinerário ascensional levada adiante por
Agostinho a partir de II, iii, 7, cujo movimento perpassante assenta-se pontualmente nesta
precisa excelência e/ou excedência entre os passos intragraduais componentes da ascensão
intelectual. Antes porém, avancemos na solutio trazida à baila pela amplitude da quaestio
movente do diálogo, ensejada pela inuentio do conteúdo assertivo crido.
Não obstante responda de forma direta, ainda que parcialmente, à questão de Agostinho,
o responso de Evódio é composto tendo por eixo a recorrência ao dado primordial assentido no
ato de crer, o qual afirma a procedência divina de todo bem existente. O trecho final contempla
diretamente a inquirição agostiniana ao trazer que

24
Ev. [...] todo bem procede de Deus. Isso nos faz compreender que o homem também
procede de Deus. Porque o próprio homem, enquanto homem, é certo bem, pois tem
a possibilidade, quando o quer, de viver retamente. [II, i, 2]46

Novamente, a recorrência ao elemento primeiro, através do passo argumentativo


retrocedente ao fundamento divino, leva Evódio a reiterar a argumentação analógica do
maximum referenciando o minimum: dado que Deus é o bem maior e origem de todo outro bem,
tem-se de imediato que o ser humano, enquanto tal e “vivendo retamente”, é (também ele) um
bem manifesto e, portanto, procedente de Deus. Esta composição, por sua vez, engendrará a
continuidade da discussão argumentativa até a exaurição do dado postulado pela autoridade da
fé, condicionando o desenvolvimento do diálogo às teses nele implícitas. A estruturação
dialogal da questão de princípio ensejará, por seu turno e no ínterim do responso de Agostinho,
o duplo movimento deste seu exaurir-se [II, i, 3]47.
Equacionada desta forma, a questão de origem, segundo Agostinho, já se põe (plane
si) solucionada (soluta est), visto ser evidente sua decorrência interna: sendo Deus o bem
originário da realidade, tudo o mais estará resolvido, de plano, neste dado primeiro, pois sua
postulação de princípio implica a presença dos demais postulados: 1) a livre vontade (libera
uoluntas) do ser humano para querer a retitude (por conseguinte, também a justiça); e 2)
precisamente a liberdade inerente à vontade e ao arbítrio, como evidência da inautoria divina
de seu mau uso, pois o contrário implicaria que a vontade não é essencialmente livre, deixando
de se constituir num quaerere. Mostra-se assim, pontuado neste momento e articulado de
maneira concisa dentro do construto epistemológico que Agostinho leva a termo, o preciso
papel da livre vontade, enquanto dom divino: motus decisório próprio e princípio de ação,
votado à realização da retidão [ou do correto proceder/agir (recte facere)], cuja condição é
justamente a liberdade pressuposta ao seu exercício.
Detenhamo-nos nesta precisão do locus por Agostinho reservado à vontade livre dentro
da discussão em curso; por sua vez conduzida, neste momento, até a pressuposição divina do
seu aspecto donativo, bem como relativo à ação humana deliberada. Retomemos: para se
constituir num quaerere, o agir humano deve possuir, em condição prévia (sine qua), a vontade
essencialmente livre (debuit habere liberam uoluntatem). Por seu turno, a ação humana (facere)

46
Ev. [...], omne bonum ex deo esse, etiam hominem ex deo esse intellegi potest. Homo enim ipse in quantum homo
est, aliquod bonum est quia recte uiuere cum uult potest.
47
Vide nota 29.
25
jamais poderá ser qualificada como boa (recte), se não for almejada como tal (nisi cum uellet).
E, instância última, a bondade é ontologicamente divina (omne bonum ex deo esse – II, i, 2).
Evidencia-se, assim, que a exaurição (e sua resolução) da quaestio através da recorrência a seu
dado principial (ex deo) deu-se, não pela imposição da autorictas (credere) de princípio (ainda
que esta lhe seja recorrente, à maneira de uma fonte permanente e permeante a todo o
desenvolvimento da questão em disputa), mas sim unicamente mediante a discussão em torno
da ação humana e de sua realização correta (tendo, é certo e ainda, o dado anteposto da
autorictas como seu fio de percurso e recorrência: Deus existe; e todo bem vem de Deus).
Unicamente no âmbito do embate racional é que ocorre a remissão do questionamento ao seu
fundamento perene: a correta feitura e a boa realização, por parte do ser humano, da finalidade
proposta por Deus. Neste decurso, a liberdade, explicitada no quaerere fundamental da vontade
humana, institui-se como uma espécie de instância executora da justiça e da bondade divinas,
à medida que o bom proceder (feitura e realização) se dá tão-somente a partir da boa vontade.
A deliberação humana está, assim, situada em referência à ética teleológica da ordo rerum: é
pela fundamental decisão em querer proceder/feiturar, no ato livre da ratio através do
intellegere, a realidade em seu propósito bom - ou por sua rejeição – que posso definir e
evidenciar ser a vontade humana essencialmente livre. A liberdade da vontade revela-se como
constituída pela presença inalienável da possibilidade de querer proceder à ação (facere), em
consonância a um propósito de antemão reconhecido como bom48. Este duplo evidenciar-se –
bondade reconhecida; e (em consequência) pressuposta, manifestando a liberdade de querê-la
e feiturá-la – será determinante para a exposição do itinerário da mens rumo ao absoluto e
divino, que Agostinho irá proceder adiante, posto que a ordo rerum manifesta a presença divina
na feitura cognitiva do universo; o que, por reverso, possibilita à vontade humana, via ordo
cognoscendi, a presença do espaço deliberativo para - cognitiva, moral e justamente -
feiturar/proceder a realidade. A continuidade do responso agostiniano reafirma a relação de
decorrência e de interdependência entre justiça e liberdade:
Ag. Há, pois, uma razão suficiente para [a vontade livre] ter sido dada, já que sem ela
o homem não poderia viver retamente. Ora, que ela tenha sido concedida para esse
fim, pode-se compreender logo, pela única consideração que se alguém se servir dela

48
Cyrille Michon explana que, da mesma forma como emprestou ao termo liberdade duas fundamentais acepções
(política e metafísica), Agostinho houve por bem “igualmente distinguir entre a vontade como faculdade; e como
exercício desta faculdade [...] Agostinho fala do uso desta faculdade, por oposição à sua possessão.” – MICHON,
C. Le libre arbitre in CARON, M. (dir.) Les Cahiers d’Histoire de la Philosophie – Saint Augustin, Paris:
Éditions du Cerf, 2009, p. 309.
26
para pecar, recairão sobre ele os castigos da parte de Deus. Ora, seria isso uma
injustiça, se a vontade livre fosse dada não somente para se viver retamente, mas
igualmente para se pecar. Na verdade, como poderia ser castigado, com justiça, aquele
que se servisse de sua vontade para o fim mesmo para o qual ela lhe fora dada? [II, i,
3]49

Uma colocação se faz notar de pronto, na argumentação interposta por Agostinho: a


recepção intelectual do dado justificativo é tomada por imediata (uel hinc intellegi potest). Tal
justificativa ilustra que a relação de decorrência interna entre os elementos de uma disputatio
argumentativa, no quadro da epistemologia agostiniana aqui exposto, apresenta-se de forma
imediata e abarcando-os em simul. As relações de decorrência não estão dispostas em estruturas
sequenciais de uma ordenação que se eleva hierarquicamente, bem como temporalmente
construída, mas simultaneamente se dispõem a um só instante – portanto, imediatamente - ao
espírito, ante o qual serão então mediatizadas na convergência à sequência temporal pela
ratio50, ainda que esta, em sua feitura intelectiva e temporal, detenha-se passo a passo nos
estágios decorrentes e consequentes do discurso argumentativo (dialético).
No prosseguimento do responso, uma vez mais Agostinho repassa a relação de
decorrência entre justiça e liberdade, visto que o ato humano somente se torna meritório se
praticado no âmbito do desejado livremente pela vontade. A aplicação da justiça (uindicatur)
está em relação direta com a possibilidade de escolha entre usar a vontade para o bem, ou para
recusá-lo. A segunda hipótese incorrerá em penalização, pressupondo-se que a uoluntas não foi

49
Aug. Satis ergo causae est cur dari debuerit, quoniam sine illa homo recte non potest uiuere. Ad hoc autem
datam uel hinc intellegi potest, quia si quis ea usus fuerit ad peccandum, diuinitus in eum uindicatur. Quod iniuste
fieret, si non solum ut recte uiuerentur, sed etiam ut peccaretur, libera esset uoluntas data. Quod enim iuste
uindicaretur in eum, qui ad hanc rem usus esset uoluntate, ad quam rem data est?
50
A simultaneidade das relações decorrentes - e sua imediaticidade ao espírito - parece compor traço epistêmico
característico do período Cassicíaco/Milão: “Quaremimus quippe de animae potentia, et fieri potest ut haec omnia
simul agat, ...” [De quantitate animae xxxv, 79], com a devida ressalva, no ínterim do itinerário ascensional do
conhecimento, acerca da sua detenção e convergência à (inter)mediação racional: “... , sed id solum sibi agere
uideatur quod agit cum difficultate, aut certe cum timore. Agit enim hoc multo quam caetera attentior” (Idem);
“Intuitus ergo et considerans uniuersam creaturam, quicumque iter agit ad sapientiam, sentit sapientiam in uia se
sibi ostendere hilariter, et in omni prouidentia occurrere sibi: et tanto alacrius ardescit uiam istam peragere,
quanto et ipsa uia per illam pulchra est, ad quam exaestuat peruenire” [De libero arbitrio II, xvii, 45]; cf. ainda
De immortalitate animae viii, 14. A respeito da funcionalidade de tal característica, Gilson comenta, no âmbito
das descrições da itinerância anímica racional enquanto provas da existência de Deus, no interior do pensamento
agostiniano: “Não se pode negar que sua doutrina contenha todos os elementos necessários para uma prova deste
gênero [...] Não obstante, algumas vezes [Agostinho] se exprime de tal maneira que a simples visão da ordem do
mundo parece equivaler a uma prova imediata da existência de Deus. [...] De fato, sua demonstração da existência
de Deus é uma longa meditação na qual cada etapa deve ser percorrida segundo a ordem e seu tempo [...]; mas
uma vez que se tenha encontrado a meta, o pensamento não está obrigado a se deter nela. Ao voltar para trás, o
pensamento constata que já poderia ter descoberto a meta de cada uma dessas etapas, mas que isso é descoberto
depois de, tendo-as atravessado, tê-las completado.” - GILSON, 2007: 47 e 49.
27
dada ao ser humano para tal fim, o que configura a deliberação em não querer o bem (por sua
vez já conhecido). A liberdade tem por base o conhecimento do bem como dado, para sua
escolha ou eventual recusa. Por conseguinte, à medida que todo ato humano decorre de ato
deliberativo de sua vontade, elucida-se em reiteração, a par da perenidade judicativa envolvida
na atitude humana como um todo, o dado fundamental sobre o qual se apoia a uoluntas, a saber:
que omne bonum ex Deo esse. A livre uoluntas, pois, somente pode ser exercida humanamente
sobre o escopo do dado ético-antropológico, no qual se insere, por evidência in ordo rerum, o
dado teleológico cosmológico. Novamente, Agostinho enseja o quadro no qual irá tecer a
itinerância racional para Deus, como decorrência da disputatio sobre o livre-arbítrio, a qual terá
por eixo de sustentação a articulação crer-inteligir.
O termo final do responso agostiniano aponta para aspecto de grande importância, no
interior das relações verificadas entre a vontade livre – e por isso, humana - e conhecimento
primordial do bem: o caráter de confiabilidade e de recomendação inerente ao ato justo humano
(ou à prática da justiça):
Ag. Por outro lado, se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia
existir esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e
premiando as boas ações? [...] Ora, era preciso que a justiça estivesse presente no
castigo e na recompensa, porque aí está um dos bens cuja fonte é Deus [II, i, 3]51.

Deus atribui a justiça (commendatur ipsa iustitia) à atitude humana, através da


manifestação meritória da mesma: condenação do pecado (damnandis peccatis) e
enaltecimento do reto proceder (recteque factis honorandis) nas ações humanas. Agostinho
acautela-se de atribuir ao ser humano, e à sua prática da justiça, uma menção honrosa. Onde
poderia talvez se valer de laudare (para ressaltar um eventual caráter de merecimento humano
na conduta justa), ele prefere se referir à prática da justiça como dom atribuído (ou mesmo
recomendado, enquanto ideal ético teleológico) por Deus ao ser humano, partilhado e a ele
confiado para que a fizesse notar e, sobretudo, vivenciá-la. Mas que significa, no contexto de
uma discussão acerca do livre-arbítrio, elucidar que a justiça é atribuída ao ser humano? A
qualificação de Agostinho pode ser vista em paralelo ao caráter donativo do livre-arbítrio: tanto
este, quanto a justiça, compõem datum, dádivas divinas ao agir humano, sendo que o exercício
do primeiro constitui-se condição para a efetivação do segundo. O paralelo se torna claro ao

51
Aug. Deinde illud bonum, quo commendatur ipsa iustitia in damnandis peccatis recteque factis honorandis,
quomodo esset, si homo careret liber uoluntatis arbitrio? [...] debuit autem et in supplicio et in praemio esse
iustitia, quoniam hoc unum est bonorum quae sunt ex deo.
28
intentarmos precisar sua procedência. Valendo-se de commenda, Agostinho matiza a realização
da justiça como missio, tarefa cujo cumprimento é confiado ao ser humano enquanto tal, posto
que somente ele pode, em sua deliberação e arbítrio, efetivá-la com vistas a se alcançar a
plenificação da ação correta (recteque factis honorandis). Nesse sentido, a justiça como missão
em commendatur está, no curso de nosso texto, em relação diretamente proporcional ao intento
de se atingir a plenitude da feitura ativa (honor). Assim, o mérito pela realização da justiça não
compõe uma laudatio em prol de uma característica própria do ser humano, senão um
honorário, uma completude em virtude de se atingir o cumprimento de uma missão a ele
delegada, mediante sua deliberação para fazer o bem que se lhe apresenta já de antemão
conhecido, recusando por consequência a possibilidade de não fazê-lo (mal).

3) Exaurição da quaestio: suspensão do juízo cognitivo e articulação da relação crer-


inteligir

Não obstante o convencimento de Evódio quanto ao caráter donativo e à origem divina


do livre-arbítrio, permanece nítido o dilema de fundo:
Ev. Eu já admito que Deus nos concedeu a vontade livre. Mas não te parece, pergunto-
te, que se ela nos foi dada para fazermos o bem, não deveria poder levar-nos a pecar.
É o que acontece com a própria justiça dada ao homem para viver bem. Acaso alguém
poderia viver mal, em virtude de sua retitude? Do mesmo modo, ninguém deveria
poder pecar por meio de sua vontade, caso esta lhe tivesse sido dada para viver de
modo honesto [II, ii, 4]52.

Observa-se, no início do retorno responsivo, uma ratificação do paralelo a que aludimos


no trecho anterior, acerca do caráter donativo entre a justiça e o livre-arbítrio: Evódio assente
(iam concedo) que ambos são vivenciados pelo ser humano enquanto dádivas (data est) divinas
(eam deum dedisse), mas pretende fazer ver (uidetur) a Agostinho o que se lhe afigura
contraditório por essência, no equacionamento da questão a partir de tal assentimento:
precisamente tendo em conta o caráter donativo da vontade livre e sua deliberação; bem como
da vivência da justiça e sua conduta; e sobretudo a partir da procedência de tais dons, Evódio
procura evidenciar o contraste essencial entre dom divino – e portanto bom (bene uiuendum...
recte faciendum) - e mal ativo humano – e portanto voluntário (uoluntatem peccare... male
uiuere). A contradição pretendida evidente por Evódio parece almejar, igualmente, outra

52
Ev. Iam concedo eam deum dedisse. Sed none tibi uidentur, quaeso te, si ad recte faciendum data est, quod non
debuerit ad peccandum posse conuerti, sic ut ipsa iustitia quae data est homini ad bene uiuendum? Numquid enim
potest quispiam per iustitiam suam male uiuere? Sic nemo posset per uoluntatem peccare, si uoluntas data est ad
recte faciendum.
29
evidência de maior alcance, espécie de estrutura mais ampla à qual se referencia, e da qual
decorre o contraste ora em questão: a ação donativa divina e a conduta reativa humana, cujo
paralelismo contrastante revela-se como cuidadosamente tecido de modo a ressaltar, dentro do
quadro geral das relações decorrentes dos referidos paralelos, o inalienável lugar da livre
vontade. Por seu turno, o ressalto acerca da uoluntas e de seu preciso locus parece ter sido
interposto, neste momento da sequência da disputatio, visando encaminhar (e exaurir) a questão
ao ponto em realidade pretendido desde o início por Agostinho: a presença permanente da ação
e justiça divinas ao ser humano; e a responsabilidade deste ao datum e à commenda iustitiae
que lhe são confiados pelo Criador. Do interrelacionamento entre tais polos, decorre a
elucidação acerca da liberdade humana e da providência divina, e da responsabilidade em
relação ao mau uso do arbítrio na efetivação da iustitia confiada por Deus ao ser humano, que
em realidade Agostinho pretende situar unicamente na esfera humana. Para tanto, a correta
visualização do âmbito de atuação originária de cada um dos elementos componentes torna-se
fundamental, o que enseja uma recomposição das relações originárias Deus - ser humano -
cosmos, no interior do propósito divino estabelecido na criação, e tornado manifesto na ordem
ontológico-teleológica do universo, a qual será fundamental e se dará, como já o notamos, a
partir de II, iii, 7, em forma de feitura cognitiva do universo.
Mas o intento de Agostinho é mais amplo, visto haver uma disputatio em torno,
precisamente, da negação da procedência divina da ordenação da realidade, constatada através
da presença do mal nesta mesma ordem. Ora, no quadro geral do diálogo sumarizado até o
momento, o elemento permanente ao entorno de toda a sequência discursiva diz respeito ao
datum divino da uoluntas, e de sua deliberação atuante; bem como a atribuição da iustitia ao
ser humano por parte de Deus, mediante a qual a realidade é efetivada (perfeita ou perfazida)
em seu propósito originário e final. Pois bem: o que ocorre se o questionamento incidir até
mesmo sobre este dado fundante? Um passo antes, porém, de exaurir a questão na inquirição
acerca da existência de Deus, Agostinho apela ainda a uma última evidência, como que
esgotando o conteúdo manifesto no pressuposto da presença atuante do Criador – providência
divina – antes de atingir e fazer chegar o questionamento à própria possibilidade de ser da
pressuposição:
Ag. [...] Mas antes, dize-me um pouco, eu te peço – uma vez que tens como evidente
e certo o que já te perguntei, a saber: que foi Deus que nos concedeu a vontade livre,
nesse caso, poderíamos afirmar que Deus não nos deveria ter dado tal dom? Isso, já
que reconhecemos ser ele mesmo que o deu a nós. Com efeito, se fosse incerto que
30
Deus nos tenha concedido a vontade livre, nós teríamos o direito de indagar se foi
bom ela nos ter sido dada. Desse modo, se descobríssemos que foi bom, igualmente,
reconheceríamos o doador naquele que deu ao homem todos os bens. Ao contrário, se
descobríssemos que foi mal, teríamos de compreender que o doador não é Aquele a
quem não é permitido incriminar algo que seja [Idem]53.

Agostinho trata de retorquir a oposição trabalhada por Evódio no responso anterior,


mostrando que, em realidade, ela própria – e, por consequência, o questionamento que dela
advém - é que compõe flagrante contradição de termos: se se admite – como de fato ocorreu no
decurso da presente disputa – que a livre vontade é dádiva de Deus, então a própria colocação
do pretendido contraste decorrente do questionamento resulta impossível: a admissão - ou a
pressuposição - de Deus como origem da nossa livre-vontade, elimina a possibilidade de
inquirir sobre o caráter eventualmente danoso da mesma, posto que nenhum malefício pode ter
autoria ou origem divina (quem culpare nefas est). Em realidade, Agostinho trata de refinar a
quaestio em termos de compreensão dos seus elementos em jogo: se falamos em origem divina
das habilidades e capacitações possuídas pelo ser humano, temos então de reconhecer que: 1)
são dádivas de Deus; e 2) como tais, não comportam sequer a indagação acerca de seu caráter
(se foram de fato para o bem do ser humano), pois sua procedência divina o atesta
inequivocamente. Assim, Agostinho pratica uma remissio quaestio à fundamentação última da
inuentio de princípio: falamos da origem em Deus como instância última da conduta humana.
Exaurimos o questionamento em sua pressuposição recorrente. Resta, pois, que o entendimento
do livre-arbítrio do ser humano; de sua conduta em justiça e direito; bem como de sua finalidade
moral, encontram-se radicadas no âmbito maior das relações antropológico-criaturais, entre
Deus e o ser humano. Mas é somente na plena exaurição da inquirição humana que se pode
radicá-la quanto a incidir sobre seu fundamento último: Deus existe?

3.1) Suspensão cognitivo-judicativa de Evódio


Evódio trata, por sua vez, de responder ao esgotamento da questão, devolvendo-a
através da inversão do sentido da referida pressuposição recorrente. Exaurida por Agostinho a

53
Aug. [...] Sed paulisper uolo mihi dicas, si id quod abs te quasiueram certum et cognitum tenes, deum nobis
dedisse liberam uoluntatem, utrum oporteat dicere dari non debuisse quod dedisse confitemur deum. Si enim
incertum est utrum dederit, recte quaerimus utrum bene sit data, ut cum inuenerimus bene datam esse, inueniatur
etiam illum dedisse a quo animae data sunt omnia bona; si autem inuenerimus non bene datam esse non eum
dedisse intellegamus, quem culpare nefas est.
31
quaestio em remissão ao dado fundante (pressuposto da dádiva divina para a decorrente ação
responsiva humana), Evódio inverte os seus polos:
Ev. Apesar de crer em tudo isso com fé inabalável, todavia, como não possuo ainda
pleno entendimento, continuemos procurando como se tudo fosse incerto. Com efeito,
pelo fato de ser incerto a vontade livre nos ter sido dada, para com ela agirmos bem –
já que podemos também pecar -, decorre esta outra incerteza: se foi um bem ou não,
ela nos ter sido dada. Porque, se é incerto ela nos ter sido dada, para agirmos
corretamente, tampouco é certo que seja um bem ela nos ter sido dada. Por aí, não é
igualmente certo que seja Deus o doador. Com efeito, a incerteza sobre a conveniência
do dom torna incerta a origem, isto é, o fato de ser Aquele a quem não nos é permitido
crer que conceda algo que não deveria ter concedido [II, ii, 5].54

Se antes a discussão teve por impulso a manifestação concreta do mal na realidade


natural; e por conseguinte sua impertinência à ordem criatural boa originada em Deus, restando
daí o questionamento que Agostinho tenta dissipar através da recorrência ao seu ponto de
origem (dádiva divina, fim teleológico), trata-se agora de tomar por impulso precisamente o
termo agostiniano da exaurição – Deus e a relação de criação com o ser humano – e esgotar sua
inteligibilidade junto à contradição manifesta (inegável, para Evódio) entre a ordem criatural
boa e a presença do mal, entre a dádiva do livre-arbítrio e seu mau uso por parte do ser humano.
Observemos que Evódio procede a um modo de suspensão do curso até então efetuado,
dentro do diálogo: na falta da certeza cognitiva ainda não obtida ou realizada (quia cognitione
nondum teneo) – embora se disponha ou se tenha uma fé inamovível – deve-se proceder ao
perfazimento do conhecimento como se nada nos fosse disponibilizado (quaeramus quasi
omnia incerta sunt). A medida drástica nos leva a perguntar pelo sentido da suspensão total das
noções advindas ou já dadas (ainda não manifestas?). Se no decurso, a elucidação das
contrastações resultava em recorrência à perenidade do conteúdo assentido (pela postulação da
autorictas, assumindo portanto sentido retrocedente), a postulação da incerteza total incorre em
sentido procedente: de posse confiante do dado autoritativo, procede-se à busca de sua
certificação ou legitimação. Trata-se de realizar, cognitiva e temporalmente através da
intelecção da ordenação do universo, o que já se me é antecipado atemporalmente pelo dado da

54
Ev. Quaquam haec inconcussa fide teneam, tamen quia cognitione nondum teno, ita quaeramus quase omnia
incerta sunt. Video enim ex hoc quod incertum est, utrum ad recte faciendum uoluntas libera data sit, cum per
illam etiam peccare possimus, fieri etiam illud incertum utrum dari debuerit. Si enim incertum est ad recte
faciendum datam esse, incertum est etiam dari debuisse; ac per hoc etiam utrum eam deus dederit incertum erit,
quia si incertum est dari debuisse, incertum est ab eo datam esse, quem nefas est credere dedisse aliquid quod
dari non debuit.
32
fé, porém em vetor racionalmente processual e restritivo: unicamente através da ratio,
instrumento pelo qual reporto minha cognitio da realidade à sua totalidade.
Ainda assim, cabe interrogar acerca da amplitude da suspensão pleiteada por Evódio:
exigiria a ratio fidei uma exclusão total de sua procedência do dado in autorictate? Poderia a
ratio deixar de ser fidei? Certa forma, o caráter pleno assumido pela suspensão intelectiva
evodiana deixa entrever um alcance maior, agudo: os estatutos das certezas advindas da fé e da
razão diferem entre si? Ou a procedência única de ambas – em instância última: Deus – atesta
que as certezas convergem, embora em sentidos e/ou decursos diferentes? Afinal: fé e
conhecimento racional partilham da mesma certeza?55
A justificativa de Evódio para a busca da intelecção do dado/notitia, assentido como
verdade pela fé, foi preparada pela digressão agostiniana acerca da necessidade de se
demonstrar a veracidade do conteúdo crido, ante a ausência prévia do credere. Tal justificação
aparece como elemento de transição entre a supressão de todo conhecimento, e a explicitação
das relações entre o conhecimento pela fé e o conhecimento demonstrativo racional, articuladas
em torno ao binômio crer-inteligir. Tendo levado a inquirição à incidência junto ao âmbito
fundamental e primordial do conhecimento – questionamento sobre a existência de Deus – e
ante a resposta como que fugidia de Evódio (postulação inesperada e incoerente acerca da
primordialidade da fé, dado que até então ele se recusara a concluir, com base unicamente no
saber in credere, que o livre-arbítrio seja dom divino), Agostinho trata de ressaltar a
improcedência da argumentação evodiana, a qual pretende a supressão do traço fundamental
presente em qualquer conhecimento adquirido pela fé. Ou seja, se tomamos por fundamento o
elemento crido, nosso conhecimento rui por inteiro ante o questionamento advindo da ausência
do credere. Mais, e sobremaneira importante: Agostinho faz ver, no corpo da exposição
argumentativa baseada no exemplo do interlocutor não crente, que não haverá conhecimento

55
Aflora claramente o alvo do diálogo: para além dos postulados maniqueístas, Agostinho mira o ceticismo
acadêmico na sua recusa em conceder a possibilidade de certificação a qualquer tipo ou nível de conhecimento
adquirido pelo ser humano. Ao assumir metodologicamente, no ínterim de um dos seus diálogos da fase inicial (de
estabelecimento da relação pensamento filosófico grego/verdade revelada em termos de consumação da primeira
na segunda), procedimento consubstanciado e recorrente em uma das correntes em voga – a epoché cética –
Agostinha certamente intenta uma resposta cristã, mas valendo-se das próprias bases do interlocutor (no caso, o
ceticismo em suas variadas escolas). Vale lembrar que a suspensão do juízo, nas correntes do ceticismo antigo,
proporcionava ao sábio a correspondente ausência de perturbação – ataraxia, o que certamente não escapava a
Agostinho, preocupado em estabelecer a beata uita em termos críveis e racionais. Para uma abordagem da
funcionalidade da epoché cética, e sua relação com a ataraxia, vide: BOLZANI, R. A epokhé cética e seus
pressupostos in Discurso nº 27, Revista do Departamento de Filosofia da USP, 1996, p. 37-60 (sobretudo, para
o tema em pauta, p. 42-45)
33
verdadeiro se não houver dipositio de princípio verdadeira, mais especificamente: empenho
sincero, ou ainda: boa disposição (bono animo). Este se mostra como basilar na argumentação
de transição apresentada a esta altura, pois sua ausência invalidaria todo o prosseguimento, não
somente da resposta neste momento do diálogo, mas até a este próprio enquanto
desenvolvimento da disputatio inicial. O desejo bom que move a alma condiciona, em verdade,
toda a articulação cristalizada na justificativa dada por Evódio: “Sim, mas é que pretendemos
saber e entender aquilo em que cremos.” [II, ii, 6]56. A construção da resposta evodiana é feita
de maneira a articular os elementos definidores em jogo até então, acerca do conhecimento
humano: crer, conhecer, entender e desejar. Tal articulação resulta do momento transitivo que
a justificativa evodiana ocupa no texto, e ostenta tentativa de mediar e estabelecer elo entre os
polos do conhecimento pela fé e do conhecimento pela razão. O desejo de saber leva de um
polo a outro, ligando-os enquanto disposição de busca da alma por Deus. Este liame funciona
como elemento de transição entre a argumentação desenvolvida à luz do dado in credere, até
aquele momento da disputa, e sua consecução como ascensão intelectual efetuada
univocamente através da ratio. Tal marco transitório recebe espécie de confirmação na
devolução de Agostinho:
2.6 Ag. Vejo que tens boa memória. Foi, na verdade, isso que decidimos no início
de nosso diálogo precedente, e não o podemos negar. Com efeito, se crer não fosse
uma coisa e compreender outra, e se não devêssemos, primeiramente, crer nas
sublimes e divinas verdades que desejamos compreender, seria em vão que o profeta
teria dito: “Se não o crerdes não entendereis” (Is 7,9, na LXX). – II, ii, 657
3.2) Fé e intelecção
A extensão do responso agostiniano permite-nos entrever sua intenção mais ampla,
concomitante – na verdade, em decorrência – à sua funcionalidade neste momento do diálogo:
ante a suspensão plena da certeza do conhecimento postulada por Evódio (ita quaeramus quasi
omnia incerta sunt), e o passo demonstrativo da existência de Deus a ter início a partir de II, iii,
7, Agostinho interpõe a articulação explicitada entre os polos constituintes do conhecimento:
credere e intellegere. A articulação é tecida de modo a se fazer ressaltar enquanto ponto nodal
na continuidade do diálogo, revelando-se como transposição entre a concepção por assim dizer
teologal acerca da origem do conhecimento, e a postura que prescinde do ponto de partida no

56
Ev. Sed nos id quod credimus nosse et intellegere cupimus.
57
Aug. Recte neministi, quod etiam in exordio superioris disputationis a nobis positum esse negare non possumus.
Nisi enim et aliud esse credere, aliud intellegere et primo credendum esset quod magnum et diuinum intellegere
cuperemus, frusta propheta dixisset: Nisi credideritis, non intellegetis.
34
dado da fé fornecido pelas Escrituras. Se até então o diálogo caminhou tendo por pressuposto
recorrente o elemento discursivo baseado na autorictas divina, doravante pretende-se a
exposição, exclusivamente mediante o exercício da intelecção, das verdades já recepcionadas e
conhecidas através do ato de fé. Nota-se, igualmente, que a exposição da articulação assume
feição categórica em forma binomial, com a devida ênfase empregada por Agostinho na sua
nomeação: Nisi enim et aliud esset credere, aliud intellegere. A alteridade realçada por aliud
traduz o empenho em demarcar a presença independente dos polos constituintes do
conhecimento humano, fazendo-se perceber o intento subreptício de ostentar, frente aos que
acusavam a fé cristã de irracionalismo, a presença real e autônoma do exercício da razão na
compreensão da verdade já conhecida no ato de crer58; bem como o intento precípuo de
realização plena do ser humano, em seu gozo da vida eterna, a qual consiste justamente em
conhecer a manifestação e revelação de Deus enquanto Criador e Redentor, na citação alusiva
ao texto do Evangelho segundo João capítulo 17, versículo 3 (ii, 6: Ag. “... ut cognoscante te
uerum deum, et quem misisti iesum christum.”), evidenciando-se nesse sentido como um
empenho sistemático, onde Agostinho estabelece os campos específicos de ocorrência dos
polos do conhecimento, com o qual pretende-se alcançar a verdade enquanto realização do ser
humano. É no reconhecimento desta feição categórica, bem como da postura sistemática quanto
ao papel de credere-compreendere, que Christian Göbel inicia seu estudo acerca da presença

58
Vincent Giraud inicia a segunda parte (sobre a referência) de seu ensaio sobre Agostinho precisamente pela
“aporia da busca e a antecipação compreensiva do credere” (título do parágrafo 40), condensando sua verificação
numa passagem de transição da primeira parte de seu estudo (sobre a diferença) à análise do sentido e da referência
(vértice de sua obra) no pensamento agostiniano: “Chercher Dieu, c’est là ce à quoi doit s’efforcer toute vie
humaine; mais comment, à partir de la différance qui le caractérise, l’homme, à la fois créature et pécheur,
pourra-t-il se mettre em chemin vers son Créateur? Car il faut repartir de cette évidence: nous ne voyons pas
Dieu. Si la connaissance est um voir [Trin, VIII, 4,6], et si d’autre part ce voir n’a pas lieu, Dieu est donc méconnu
de l’homme. [...] Surgit alors cette autre question, qui renchérit sur la première: comment aimer ce qu’on ignore?
[...] Nous voici donc em um cercle: il faut chercher Dieu afin de le connaître, mais il est nécessaire de le connanître
afin de le chercer? [...] La tension imanente à la différance se meut dans um tel cercle aussi longtemps que ne lui
est pas donnée la connaissance qui pourrait éveiller, nourrir et diriger son amour. Cette connaissance, toutefois,
n’as pas besoin d’étre parfaite, ni complete. [...] Or, une telle connaissance imparfaite, mais néanmoins certaine,
voilà précisément ce que a servi à definir la foi, [...] Ce pari – qui, inutile de le préciser, n’a rien de pascalien -,
crédit fait à l’intelligence, voilà ce qu’est pour Augustin la foi. Croire, non contre l’intelligence, donc, mais pour
ele, et em vue d’elle. La voix du croire est celle qui, au lieu de me figer dans la position de maîtrise qu’implique
toute intelligence, me dit qu’il y a peut-être encore là quelque chose à comprendre, et que je ne suis pas encore à
même de saisir” – GIRAUD, 2013: 237-240 (grifos nossos). “Sua postura [agostiniana] se situa entre o fideísmo
e o racionalismo. [...] compreender é a conquista da fé; defende a validade deste princípio e deste método,
escrevendo um livro sobre a utilidade de crer. A fé é útil a todos, também ao filósofo. [...] Esforçou-se [Agostinho]
em demonstrar a credibilidade da fé e aprofundar seus ensinamentos” - TRAPÈ, A. San Agustín, in DI
BERARDINO, A. PATROLOGIA - vol. III: La edad de oro de la literatura patrística latina, Madrid: B.A.C.,
1981 (5ª impresión: mayo de 2007), p. 482.
35
da relação binomial na filosofia agostiniana (e seu influxo em Anselmo de Cantuária),
esclarecendo-nos que “... da compreensão de fides e ratio e suas implicações, decorre a
temática relativa à prova de existência de Deus pelo estudo da evidência (alethológica)”.59
Com efeito, é a concepção da sabedoria enquanto exercício espiritual para o encontro e gozo da
verdade, que se delineia explicitada na articulação agostiniana, estrategicamente situada entre
o ceticismo intelectual e a prova racional da existência de Deus. Nesta sistematização,
Agostinho deixa claro o papel prioritário reservado ao ato de crer/confiar - ponto de partida
para se inteleccionar as verdades nele dadas - por sua vez exsurgido junto ao corpo da disputa
a partir da elucidação precedente acerca do estatuto funcional da uoluntas, bem como do caráter
originariamente donativo do livre-arbítrio. De seu turno, a intelecção é vista não enquanto
contraste, mas como ratificação do conteúdo crido mediante o conhecimento humano
autônomo. Assim, o ato de inteligir legitima e ratifica, por assim dizer, o ato de crer com vistas
à consumação do experienciar a verdade em sua integralidade, ou do encontro e conquista do
dado de fé em sua plena compreensibilidade no tocante ao ser humano em seu todo, com vistas
à intelecção da realidade criatural pelo itinerário da mens junto à realidade absoluta. O binômio
credere-intellegere em Agostinho revela-se, nesse preciso sentido e a par de sua leitura própria
de Is 7,9 Septuaginta (LXX)60, como espectro condicional da amplitude da alma humana em

59
“...das Verhältnis von fides und ratio und seine Implikationen wie der verwandte alethologische Gottesbewiss.”
– GÖBEL, C. Fides und ratio bei Anselm (1033-1109) und Augustinus in FISCHER, N. (dir.) Augustinus –
Spuren und Spiegelungen seines Denken, Band 1: Von den Anfängen bis zur Reformation, Hamburg: Felix
Meiner Verlag, 2009, p. 37. Göbel define o exercício probatório agostiniano como alethologico, valendo-se
praticamente de um neologismo, na junção das raízes gregas alethes (verdade, evidência) e logos, devidamente
transliteradas. Igualmente, Giraud tece detida análise do binômio credere-intellegere, afirmando que “o ‘crer para
compreender’ é, em si mesmo, uma injunção racional. A razão precede a fé naquilo que ela apela, mas a fé a
precede, por seu turno, naquilo que a faz avançar e lhe prepara.” – GIRAUD, 2013: 241. Outrossim, o reflexo
teológico, assaz frequente ao esforço filosófico devido à configuração da sapiência agostiniana, ajuda-nos a
minuciar tal passo: “Antes de dar assentimento ao anúncio, há que se levar em conta a validade das razões que
nos levam ao assentimento: ‘Ninguém pode crer em algo, se previamente não pensar que tem de crer nele’ ( De
fide rerum quae non uidentur, vii,10). Comenta [R.] Aubert, a propósito do pensamento de Santo Agostinho,
que a atividade da razão que precede a fé não consiste tão-somente em captar o sentido daquilo em que há de
crer, mas sim em assegurar o caráter razoável e prudente da adesão.” – SAYÉS, J.A. Teología de la fe, 2ª edición
revisada, Madrid: San Pablo, 2004, p. 46.
60
Martine Dulaey oferece-nos, em seu artigo sobre a prática de exegese bíblica de Agostinho, um breve, porém
precioso panorama histórico quanto ao uso latino de Isaias 7, 9, pontuando com um paralelo conceitual de grande
proximidade entre Agostinho e Ambrosiaster, que nos parece confirmatório quanto à nossa tentativa, acima
esboçada: “En fait, cette citation est bien connue, puisque elle figure deux fois dans l’Ad Quirinum de Cyprien, et
en particulier dans un groupement de versets réunis sous le titre: ‘La foi est utile à tout: plus nous croyons, plus
nous sommes forts’. Le verset apparaît plusieurs fois chez Tertullien, ainsi que chez Origène, [...] Plus proche de
l’utilisation augustinienne est celle de l’Ambrosiaster [...] surtout à un passage des Questions sur l’Écriture de
l’Ambrosiaster qu’est apparenté le texte du De libero arbitrio [...] L’Ambrosiaster donc, plaide come Augustin
pour l’intelligence de la foi, et s’oppose au fidéisme, ou foi du charbonnier, mais la foi est donnée comme un
36
sua penetração e vivência espirituais da verdade eterna, em convergência ao registro do ato
imaginativo no De quantitate animae. O prosseguimento da resposta agostiniana aponta para
tal direcionamento, com a alusão aos ditos de Jesus acerca da vida eterna e da busca e encontro.
É precisamente enquanto exercício de vivência (ou de consumação) espiritual da verdade que
Dominique Doucet, seguindo a leitura das correntes clássicas gregas delineada por Pierre
Hadot61, situa o desenvolvimento do método agostiniano já nos diálogos filosóficos de início:
“Esta dimensão da filosofia como exercício espiritual reaparece, sobremaneira, nos
primeiros diálogos de Agostinho [...] O método invariavelmente tem por início um
ensinamento oral tradicional (Sol., 1,4,9), demandando uma incessante disposição de
transformação da alma (De ord., 2,4,11; 2,6,18; Sol., 1,15,27; 2,6,9), que busca se
conhecer, ao mesmo tempo que conhece a Deus (De ord., 2,18,47; Sol., 1,2,7) ...”
[DOUCET, 2004: 39]62

Neste quadro, a descrição exposta na sequência de nosso texto, acerca do itinerário


intelectual pelo universo [II, iii,7–xii,34] a compor elemento probatório da existência de Deus,
surge e se explica a partir da escolha de intellegere como indicativo do papel primordial (e
mesmo essencial) da razão, em sua relação com o dado da fé: ratificá-lo, confirmando-o com a
solidez racional da construção firme e verificável que permeia o todo conhecido63. A concepção
agostiniana, a partir da nota criacional e providencial no trecho de abertura do livro II ora
analisado [II, i, 1 – ii, 6], fundamenta sua visão de síntese na articulação fé-intelecção, cuja

moyen d’accès à un ordre supérieur de connaissance, grâce à l’aide de l’Esprit Saint, sur la base d’Is 7,9. Il est
frappant que les deux auteurs usent pareillement à ce sujet de Jn 17,3 pour affirmer que croire n’est pas la valeur
ultime, mais seulement un étape nécessaire pour parvenir à la connaissance, qui est vie.” – DULAEY, M.
L’apprentissage de l’exégèse biblique par Augustin – Première partie: dans les années 386-389 in Revue
des Études Augustiniennes, nº 48 (2002), p. 270-272. Por sua vez, a notação de Giraud acerca do uso agostiniano
confirma a utilização em sequência da Vetus Latina e da Septuaginta (LXX): “... Augustin lit ainsi, avec la Vetus
latina, le sinemy des LXX...” – GIRAUD, 2013: 241. Acerca da leitura e exegese agostinianas dos textos bíblicos
em geral, vide DE MARGERIE, B. Introduction à l’histoire de l’exégèse, tome III - Saint Augustin, Paris:
Éditions du Cerf, 2009 (réimpression – 1ª édition: 1983), mormente as p. 28-56; DE LUBAC, H. A Escritura na
Tradição, São Paulo: Edições Paulinas, 1970, p. 24-25.
61
HADOT, 2000: 259-289; e sobretudo 290-297, fundamental para o paralelo com relação à ascensão anímica.
62
“Cette dimension de la philosophie comme exercise spirituel se reencontre de manière privilégiée dans lês
premiers dialogues d’Augustin [...] La méthode suivie part d’um enseignement oral traditionnel [...], elle demande
une tension sans cesse renouvelée de l’âme [...] qui cherche à se connaître elle-même ainsi que Dieu...”
63
No contexto de sua análise acerca da “aparente circularidade” e tensão verificada entre a invocação do ato de
fé em Deus, e o conhecimento divino, Moacyr Novaes indica que Agostinho soluciona a questão “convertendo a
aparente circularidade em expressão de um esforço incessante”, no qual se “dirige a atenção sempre para o
interior, isto é, da fé ao que é dado exteriormente a teologia conduz à in-vocação e à inte-lecção”, fazendo notar
o uso deliberado, por parte de Agostinho, do recurso à elucidação etimológica dos termos em pauta [NOVAES,
2007: 190-191; grifo nosso]. Embora o contexto em que se dá seja o das obras de maturidade (Confessiones e De
trinitate), a análise de Novaes ostenta, a nosso ver, a possibilidade de aplicação ao âmbito geral do pensamento
agostiniano [“... essa trajetória da natureza ao Criador, cujo estágio mais notável é o homem, consiste no plano
geral de textos importantes, como o décimo livro das Confissões, ou o conjunto dos livros Sobre a Trindade (De
Trinitate)” – 2007: 191; grifo nosso], podendo-se incluir, em nosso entendimento, o período inicial dos diálogos.
37
reciprocidade essencial interna faz apontar para a visão imediata de uma composição 64 na
simultaneidade65, não mais restrita à hipóstase da Inteligência criadora, como no sistema
plotiniano, mas essente e perceptível na presença do absoluto e eterno na realidade criada em
sua totalidade, na qual todas as suas partes ostentam vestígios e sinais do Criador (cuja presença
fora antecipada no credere), compondo mais a visão de um mosaico em expansão (ou feitura)
horizontal (antecipada no intellegere), do que a visão verticalizante de uma escada. Se na
filosofia plotiniana as realidades inferiores encontram-se situadas nos degraus superados,
distanciados e/ou afastados da realidade inteligível66, no pensamento agostiniano a criação em
totalidade, desde seus níveis mais elementares e sensíveis até as realidades mais espirituais,
consuma-se in totum e em simul, num quadro completo e mosaicizado da atividade noética sem

64
O sentido da gradação ascensional é elucidado por sua culminância na ratio, clarificando-se que o movimento
essencial, o qual a partir da exaurição do grau ontológico enseja sua excedência, indica a necessidade de se postular
um maximum que, por antecipação, ultrapasse a própria percepção de seu movimento interno, vale dizer: enseja a
postulação imediata da excelência em relação à ordem criatural, tanto em sua totalidade dos entes, quanto em sua
racionalidade perceptiva: “Do sensus interior, órgão superior aos sentidos [físicos], o qual também os animais
possuem, salta-se à nova esfera da razão, para proclamar sua excelência e dignidade. [...] Estas escaladas lhe
preparam para dar o grande salto da transcendência.” – CAPÁNAGA, V. nota 18 [II, 6,13] in El libre albedrío
(tradução castelhana de Evaristo Seijas, do diálogo agostiniano), 5ª. edición, Madrid: B.A.C., 2009 (reimpressión),
p. 282. Por seu turno, ao analisar a itinerância ascensional-gradual, Gilson deixa entrever certo aspecto crítico
quanto a repousar a ênfase da argumentação probatória no caráter essencialmente hierarquizante da estruturação
do real: “Incontestavelmente, esse método [exposição agostiniana da gradação ontológica] deixa uma certa
impressão de delonga e de sinuosidade, mas os numerosos intermediários que se interpõem entre seu ponto de
partida e seu ponto de chegada são indispensáveis apenas ao espírito que se tornou mestre nisso. [...] Toda
verdade, qualquer que seja, poderia então servir como ponto de partida à prova e, mais do que qualquer outra, a
primeira de todas que é a de que eu sou. Com efeito, uma vez que a dúvida e também o erro nos aparecem
atestando a existência do pensamento que duvida, podem atestar não menos evidentemente e imediatamente a
existência de Deus.” – GILSON, 2007: 45 (grifos nossos).
65
Em sua análise interpretativa acerca da compreensão, entre os autores tardo-medievais, da temporalidade e da
espacialidade, bem como sobre as suas conceituações diversas a respeito, Márcia Sá Schuback expõe a importância
da noção de simultaneidade no pensamento agostiniano, explicitando-a como traço constituinte essencial em sua
construção ao longo das diversas fases, sobretudo para a percepção da totalidade enquanto prévia ilimitação do
absoluto, evidenciando-se ainda seu papel quanto à intuição da eternidade como superação da sucessividade
temporal aliada à sequencia espacial; como também fundamento da constituição da própria percepção do tempo.
Retendo a definição boeciana de eternidade (“aeternitas est interminabilis uitae tota simul et perfecta possessio”
– De consolatione philosophiae, V, 6), Schuback a faz remontar ao seu escopo agostiniano, para ressaltar a
importância da simultaneidade enquanto percepção conjunta da eternidade e totalidade – SCHUBACK, M.S.C.
Para ler os medievais: ensaio de hermenêutica imaginativa, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 79-82 e 88-96.
66
Cf. Enéada V, 1ss. “Il est très fréquent que, dans les Ennéades, Plotin présente la hiérarchie ontologique comme
une hiérarchie des niveaux de la vie, et, de même, qu’il utilise, pour distinguer les termes de cette hiérarchie,
l’analogie de la lumière plus ou moins intense.” - CHIARADONNA, Riccardo. Connaissance des intelligibles
et degrés de la substance – Plotin et Aristote in Études Platoniciennes III – L’âme amphibie: études sur
l’âme selon Plotin, Paris: Les Belles Lettres, 2006, p. 80; “A relação do esquema cósmico de Plotino com ânsia
de salvação funda-se em que, pela descrição metódica das hipóstases do ser, torna-se manifesta à alma a
necessidade de retornar à pátria perdida. Para percorrer o caminho de regresso ao Uno [...] é mister à alma fazer
abstração do mundo sensível.” – ULLMANN, Reinholdo. Plotino: um estudo das Enéadas, 2ª. edição, Porto
Alegre: Edipucrs, 2008, p. 163; cf. ainda CASTELLAN, Arielle. Plotin: l’ascension intérieure, Paris: Michel
Houdiard Éditeur, 2007, p. 51.
38
exclusões, mas a plenitude (pleroma) de tudo incluso (intelecção) na percepção do todo
(assentimento em fé), possibilitando-nos visualizar a estruturação da realidade universal, em
Agostinho, mais como pleromárquica que hierarquizante. A rigor, a presença do binômio
imediaticidade-simultaneidade, no polo inicial da ascensão verticalizante de Plotino, segundo
Luc Brisson67; e no transcurso intermediário [cf. os trechos já citados do De quantitate animae
xxxiii, 70 – xxxiv, 78], bem como em seu polo final [sumarização das disciplinas no De ordine
II, xiv, 39 – xv, 42], da ascensão mosaicizante de Agostinho, mais que ilustrar figurativa ou
espacialmente a diferença de base, vem elucidar a funcionalidade essencial de ambas as noções,
como reveladoras dos motes conducentes e sustentadores das duas epistemologias:
verticalizante e excludente no neoplatonismo; abarcadora, inclusiva e plenificante no
pensamento agostiniano. Metaforicamente, uma escada não permite a visão de seus polos ao
mesmo tempo, ao passo que a visão em mosaico da realidade em horizontalidade, própria da
pleromarquia agostiniana, permite o simul total de imediato possibilitado na antecipação
prefigurativa da articulação crer-inteligir.

67
Enéada II, 9,15-16. Cf. BRISSON, L. Logos et logoi chez Plotin - Leur nature et leur role in Les Cahiers
Philosophiques de Strasbourg – Tome 8: Plotin, 1999, p. 93. Para um ponto de vista contrário ao que aqui
tentamos estabelecer, vide as observações do ensaio de Michel Fattal, que postula uma essencial recepção em
continuidade do ponto de vista de Agostinho para com Plotino, ambos trabalhando o simul e o imediato em
funcionalidade idêntica: “Cette valorisation de l’immédiateté propre à l’âme intelligente de l’homme et à l’acte
créateur de Dieu, cette supériorité de l’intuition sur la discursivité, de l’unité et de l’identité sur la multiplicité et
la différence, sont vraisemblablement empruntées par Augustin à Plotin. Bien que chez Plotin, il ne soit pas
question de création ex nihilo, mais d’engendrement, de production ou de procession des êtres et des choses à
partir de l’Un et à partir de l’Âme, il n’en demeure pas moins que cet engendrement se fait athroos, d’un seul
coup, d’une manière immédiate et de toute éternité” - FATTAL, M. Plotin chez Augustin et Farâbi, Paris:
L’Harmattan, 2007, p. 71.
39
REFERÊNCIAS

1 – AGOSTINHO DE HIPONA

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_____ Texto latino da Opera Omnia, estabelecido segundo o CSEL (Brepols, 1948),
disponibilizado em www.augustinus.it, juntamente com a tradução em alemão, francês,
espanhol [Biblioteca de Autores Cristianos – BAC] e italiano [Nuova Biblioteca Agostiniana
– NBA, Città Nuova Editrice].

1.1.1) Edições bilíngues

_____ Obras Completas de San Agustín, edição bilíngue latim-castelhano em 41 volumes,


promovida pela Federación Agustiniana Española, com coordenação de tradução, introduções
e notas de Victorino CAPANAGA, 5ª edição, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos
(B.A.C.), 2008-2013 (reimpressão).

_____ Confessiones, edição bilíngue latim-português, com tradução de Arnaldo do Espírito


Santo, João Beato e Maria Cristina C.M.S. Pimentel, 2ª edição, Lisboa: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 2004.

_____ De Trinitate, edição bilíngue latim-português, com coordenação da tradução de Arnaldo


do Espírito Santo, Lisboa: Paulinas, 2007.

_____ La grandezza dell’anima, edição bilíngue latim-italiano, tradução de Riccardo FERRI,


Palermo: Officina di Studi Medievale, 2004.

1.1.2) Edições em português

_____ A Grandeza da Alma, tradução de Frei Agustinho Belmonte, São Paulo: Paulus, 2008
(Coleção Patrística – vol. 24).

_____ A Ordem, tradução de Agustinho Belmonte, São Paulo: Paulus, 2008.

_____ Confissões, tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo:
Abril Cultural, 1973 (Coleção Os Pensadores).

_____ O Livre-Arbítrio, tradução e notas de Nair de Assis Oliveira, 4ª edição, São Paulo:
Paulus, 2004.

_____ Sobre a potencialidade da Alma, tradução de Aloysio Jansen de Faria, revisão de Frei
Graciano González, 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 2005.

40
1.2) Estudos sobre Agostinho

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1984.

43
Humberto Schubert Coelho1

RESUMO: É notório que as interrogações filosóficas de Agostinho foram profundamente


marcadas pelo Maniqueísmo. Este artigo tem como objetivo fazer um estudo comparativo das obras de
François Decret e Pio de Luis sobre o Maniqueísmo. Sua finalidade principal é apresentar, o mais
objetivamente possível, o quadro geral da filosofia maniqueísta e nos permitir atingir uma compreensão
mais aprofundada da atitude agostiniana face ao Maniqueísmo. Será que a guerra ideológica contra os
maniqueus, como outras tantas que Agostinho travou, o tornaram o melhor expositor de suas doutrinas?
Além disso, as respostas dos maniqueus sugerem que Agostinho desconhece os mistérios mais
profundos do credo professado por eles. No entanto, o Maniqueísmo marcou profundamente o
pensamento de Agostinho, principalmente no que concerne às interrogações propriamente filosóficas
que o bispo de Hipona desenvolverá mais tarde: a questão metafísica e ética da origem do mal é um
exemplo palpável dessa influência.
PALAVRAS-CHAVE: Agostinho, Maniqueísmo, Mal.

ABSTRACT: It is well-known that philosophical interrogations of Augustine were deeply


marked by Manichaeism. This article has as objective to do a comparative study of François Decret's
works and Pio de Luis on Manichaeism, with the intention to present, the more objectively possible, the
general picture of the Manichean Philosophy. This study will allow to reach a deepened understanding
of the augustinian attitude face to Manichaeism and to reveal that the ideological war against the
Manicheans, as other so much that Augustine locked, didn't turn him the best exhibitor of their doctrines.
In the other side, the answers of the manicheans suggest that Augustine ignores the deepest mysteries
of the credo professed by them. However, Manichaeism marked the thought of Augustine deeply, mainly
in what it concerns the properly philosophical interrogations that the bishop of Hippo will develop later:
the metaphysical and ethical subject of the origin of the evil is a tangible example of that influence.

KEYWORDS: Augustine, Manichaeism, Evil

Introdução

Este estudo comparativo entre duas das raras obras que visam expor a historiografia e o
quadro geral da filosofia maniqueísta é minha tentativa pessoal de fazer jus à participação no
Núcleo de Estudos Agostinianos (NEA) nos anos de 2013 e 2014. Interessou-me o fato de
ambas as análises serem, como era de se esperar, apreciações de autores católicos sobre a
natureza do Maniqueísmo, sua origem cristã herética e sua posterior influência sobre a tradição

1
Doutor em Ciência da Religião. [email protected]
44
cristã. Também não passa despercebido o encantamento de ambos os autores que, pode-se
imaginar, tenham iniciado seus estudos com o intuito desmistificador e confrontador com uma
filosofia/mitologia que em algum momento acabou por lhes conquistar o respeito e a admiração.
Como não pode deixar de ser, a hermenêutica principia pelo que é alheio, pelo ponto de
partida próprio do leitor, que, paulatinamente, ao deixar falar o universo que precisa ou quer
compreender acaba surpreendido por aquilo que ultrapassa a sua construção prévia sobre o
assunto, sua tentativa de redução e inserção do objeto no fluxo da história como degrau galgado
e superado da tradição.
Até que ponto o Maniqueísmo está realmente miscigenado ao corpo da cosmovisão
cristã ou o nosso olhar retrospectivo não o reconfigura segundo os valores e expectativas de
uma visão cristã, não podemos saber. Mas sabemos, por textos como os que ora analisamos,
que a familiaridade e a simpatia com que o pesquisador não raro se surpreende diante do texto
maniqueísta afastam celeremente qualquer impressão de se lidar com o alheio. Que se a veja
como morta ou incorporada, a tradição maniquéia parece se revelar decididamente como parte
de nossa própria história.
A primeira parte desta análise documental apresentará o resumo de Mani et la tradition
manichéene, de Françoise Decret; a segunda tratará do volume “Contramaniqueus” da
Biblioteca de Autores Cristianos, com introdução de Pio de Luis. A conclusão fará com
brevidade o apanhado crítico dos documentos conforme alguns pontos filosoficamente
relevantes.

Mani e a tradição maniquéia:

François Decret apresenta-nos uma rica e profunda introdução histórica sobre a


civilização sassânida e o masdeísmo. Além de uma erudita exposição dos reinados sassânidas
e suas contribuições jurídicas, sociais, políticas e religiosas, destaca a teogonia dualista do
masdeísmo e sua consequente ética da purificação e “alinhamento” rumo a um dos lados de
nossa natureza interna, correspondentes aos princípios cosmológicos do bem e do mal.
Por sua origem geográfica, é possível que Mani tenha tido fortes impressões dos
resíduos culturais deste dualismo masdeísta, mas sabe-se com ainda maior certeza que ele
absorveu muito do estoicismo, do evangelho de Lucas e das epístolas paulinas. Decret observa,

45
adicionalmente, que o marcianismo havia prosperado muito no século III, abrangendo
justamente as regiões da Mesopotâmia e leste da Síria. Esta seita se distinguia por um
monasticismo de rigor extremado.
Também de acentuada importância para a época, assevera Decret, é a existência de uma
crise interna do cristianismo com suas vertentes gnósticas, altamente secularizadas. Não
ignorando a helenização da tradição cristã como um todo, Decret nos apresenta a seguinte
apreciação do gnosticismo e do catolicismo: “uma helenização radical e prematura do
cristianismo, com rejeição do Velho Testamento; o sistema católico, ao contrário, uma
secularização, uma helenização feita gradualmente e com a conservação do Velho Testamento”
(DECRET, 34).
Apesar deste caldo cultural já apresentar alto grau de hibridação à época de Mani, é
temerário traçar com excessiva segurança as fontes exatas e o grau de influência que estas
escolas tiveram sobre seu pensamento, por demais inaugural, pragmático e monolítico. Por mais
certo, portanto, que sejam estas “presenças” na filosofia maniquéia difundida após a morte de
Mani, a sua relação direta no primeiríssimo momento de elaboração da doutrina deve ser
mantida sempre entre parênteses.
Certa mesmo é a influência do elkhasaísmo, heresia cristã razoavelmente influente na
região da Mesopotâmia e na Pérsia, que pregava entre outras inovações a plena humanidade de
Jesus (não muito diferente de Ario), e que Cristo reencarnara diversas vezes na Terra a fim de
trazer repetidamente a mesma mensagem. A primeira das reencarnações de Cristo teria sido
Adão. Também permitiam ou recomendavam a apostasia “aparente” em caso de perseguição
(DECRET 38). De veia quase agnóstica em alguns aspectos, repudiavam os rituais, superstições
e os aparatos de culto exterior como desnecessários e até obstrutivos à purificação, a qual era
tida como exercício espiritual totalmente interiorizado. Não obstante, pareciam legar grande
importância ao batismo.
Nascido em 14 de Abril de 216, Mani se apresentava assim: “Mani, mensageiro do Deus
da verdade, vindo da terra da Babilônia” (DECRET, 46). É, contudo, tão difícil precisar a
verdade dessa informação quanto qualquer outra acerca de sua vida.
Mani teria recebido em vida duas visitas do espírito consolador prometido por Jesus
para cumprir e terminar a sua revelação (João XIV, 26). Aos 12 e aos 24 anos, Mani foi instruído
pelo Espírito Santo a dedicar-se totalmente ao seu ministério, preparando-se para a verdade que

46
haveria de anunciar. Ao passo que não se entendia como sincretista, Mani afirmava que Buda,
Zaratustra e Jesus eram seus precursores (DECRET 63).
Decret dá enorme importância ao sucesso militar de Shapur contra os romanos na
difusão do maniqueísmo. Como sói ocorrer com as revoluções culturais, elas se alastram nos
momentos de grande crise ou no zênite de uma civilização. Felizmente para o maniqueísmo a
Pérsia estava em alta e, pelos idos de 250 a 280, Roma tropeçava.
Passando do contexto para uma apreciação mais sintética:

“Como todo gnosticismo clássico, o maniqueísmo pretende abordar o


conhecimento fundamental, a gnose, que revelará ao iniciado o alfa e o ômega de
sua condição humana ou, para usar a terminologia da seita: o começo, o meio e o
fim. Ou, à diferença do conhecimento racional e discursivo, que almeja o conceito
e opera por deduções e proposições teóricas, a gnose, que escapa aos mecanismos
da lógica e de seus limites especulativos, propõe o seu ensinamento sob a forma
de mito. O gnóstico considera com efeito que a verdade é propriamente
intraduzível – inenarrável e inefável, disse o maniqueu Secundinus – para os
processos habituais das ciências comuns. Ele necessita de atenção e meditação,
contemplação extática e mística, imersão, enfim , do sujeito, com o que irá
conhecer o objeto mesmo, a Verdade, a qual invade uma alma disponível.”
(DECRET, 80)

Devido a estas características patentemente gnósticas, os mitos não podem ser


interpretados de modo fundamentalista ou crédulo, já que a sua verdade depende de um
exercício pessoal e intransferível para a aquisição do conhecimento que não pode ser vertido
em texto. São, portanto, desonestas as críticas adversárias que interpretam o mito literalmente,
enfatizando suas “contradições e aberrações”, apresentando-o como “fallacissima fabula”
(DECRET, 80).
Além de seu obvio dualismo, a doutrina maniqueísta fala de tempos ou momentos de
desdobramento da criação e de uma grande batalha cósmica entre o bem e o mal onde cada
homem é um ator ou uma peça de tabuleiro capaz de escolher em qual lado vai jogar. Os
momentos são anterior, mediano e posterior. No primeiro momento não há céu e terra, só o Uno
e o Outro, Luz e Treva. No momento mediano, a obscuridade tenta cobrir a luz e partes da luz
penetram na obscuridade. No momento posterior se atinge a instrução e a conversão, a mistura
é desfeita e os mundos são separados novamente, um de luz e um de treva (DECRET, 81).
Em fragmentos que lembram a linguagem e a lógica do Apocalipse:

47
“Deus o Pai domina o Império da Luz, magnífica por sua potência, verdadeira
por sua natureza, exultante em sua própria eternidade, possuindo em si mesma a
sabedoria e os atributos da vida. Contra ele a Terra das Trevas e todo o gênero
pestífero. No interior da qual uma raça de sombra e fumaça, um Príncipe feroz,
soberano de outros príncipes inomináveis. São cinco os membros do Pai:
Inteligência, pensamento, reflexão, vontade, razão. O príncipe feroz, o arqui-
demônio, o Satã, ou Ahriman, trabalha pela concupiscência a alma morta da
matéria.” (DECRET, 85)
“O Homem primordial e seus “elementos” são devorados por demônios: a afronta
do tempo médio começa por um defeito da Luz que se mistura à substância das
Trevas [...]. O Homem Primordial, primeira vítima da raça malvada, é o arquétipo
do homem salvo que entendeu o apelo.” (DECRET, 86)

Há muitos símbolos no mito que mereceriam ser estudados (a cruz de Luz, a máquina
do Juízo), mas o importante é saber que a grande guerra torna o homem mais forte, torna-o um
homem novo. Assim diz o Salmo a Jesus: “Jesus, verdadeiro protetor meu, possa tu velar por
mim, tu és o vinho vivo, filho da verdadeira vinha. Em meio ao mar, Jesus, és o meu piloto. O
coração se rejubila em ti. Ele se arma para combater o dragão. Jesus, a primeira rosa do Pai.”
(DECRET, 96-98)
Tratado por seus discípulos como apóstolo de Jesus, Mani acreditava não apenas ser o
paráclito prometido, como o saber verdadeiro de Paulo. À diferença de Jesus, exemplo ideal
para uma humanidade sofredora, o profeta representa realmente a humanidade. Prefigura,
assim, a humanidade de almas divinas engajadas no combate. Jesus apresentou o caminho e a
meta, o profeta é aquele que guiará a humanidade em meio ao pecado e as tentações; ele tem a
alma dividida entre a paz de Cristo e a sombra dos desejos infernais, e precisa travar uma guerra
interna idêntica à que se desenrola no plano cósmico. “Jesus nos enviou o Espírito de Verdade,
e nos agarramos aos erros do mundo. [...] É o espírito mau da concupiscência que é a origem
de todas as guerras e preside o conflito interior para sujeitar a boa alma.” (DECRET, 100)

Introdução ao “Contramaniqueus”:
Pio de Luis, organizador e apresentador do volume Contramaniqueus da Biblioteca de
Autores Cristãos, nos apresenta uma visão do maniqueísmo explicitamente mediada pela crítica
de Agostinho. Não obstante, podemos perceber um esforço não menos evidente em fazer justiça
aos méritos histórico-culturais do movimento, e um evidente cuidado hermenêutico.
48
O maniqueísmo não pode ser compreendido, conforme Pio de Luis, sem o
endereçamento ao cristianismo. A mensagem maniqueia se dirigia prioritariamente aos cristãos.
Não é de estranhar que “falassem muito pouco de Mani e seus escritos e muito de Cristo e das
Escrituras.” (AGUSTÍN, 1) “O maniqueus se apresentava, ademais, como cristão perfeito, ou
se preferir, como o cristão sem mais, se ser cristão significava aceitar o Evangelho, e aceitar o
Evangelho não se reduz a apenas “crer”, como também agir conforme a ele.” (AGUSTÍN, 12)
Movimento reformador do caráter por excelência, o maniqueísmo só erroneamente pode
ser reduzido a um conjunto de crenças e princípios gnósticos. É, indubitavelmente, uma
filosofia prática no auge da fusão cultural entre o helenismo e a revelação ética de Jesus. Não
espiritualista metafísico, senão prioritariamente espiritualista moral é o caráter maniqueu.
Precisamente por isso as ameaças de recaída na heresia eram muitas e graves: o aspecto
doutrinal, os dogmas, a “interpretação correta” da natureza de Cristo e de Deus eram submetidos
ao pano de fundo moral do conflito entre o bem e o mal. Nenhum olho ou mão, por mais
benefícios que tragam, será poupado se for motivo de pecado, e o maniqueísmo não terá piedade
de arrancar os elementos mais preciosos da doutrina cristã se estes afastarem o praticante da
verdadeira pureza que o pode salvar.
De tudo o que se possa falar sobre o maniqueísmo, que fique somente isto: é uma
reforma que busca resgatar e enfatizar a transformação comportamental e psicológica do
cristianismo e de outras revelações celestiais; não deve haver empecilhos ou constrangimentos
no curso dessa reforma.

O seu é um culto espiritual que já não tem mais templo além do próprio sujeito
que o pratica, não tem mais estátuas do que Cristo, o Filho de Deus, estátua viva
da majestade viva; o altar não é outro que a mente imbuída de boas artes e
disciplinas, não tem honras divinas nem sacrifícios que não sejam as orações
simples e puras. (AGUSTÍN, 13)

Mas, como o objetivo de Pio de Luis é apresentar o maniqueísmo de Agostinho e


segundo Agostinho, o texto rapidamente passa da apresentação da tradição para a recepção do
jovem intelectual. Segundo as Confissões, Agostinho foi maniqueu dos 19 aos 28. Desde o
momento da conversão, “creu fundamente e buscou fazer proselitismo da sabedoria.”
(AGUSTÍN, 20)

49
Sua influência principal e o incentivador de sua conversão foi Fausto, que ganhava fama
no norte da África como expositor e exemplo moral do maniqueísmo.
O Maniqueísmo de Fausto e Agostinho tinha traços do de Mani, mas era já filosófico,
relativamente mais cristianizado (ou, poderíamos dizer, mais católico) e relativamente
iluminista. O que estava em jogo não era confrontar tradições religiosas, mas levar sabedoria
aos cristãos. Ensiná-los a ver o mundo de forma profunda, mas a partir de suas próprias bases,
provando estarem elas diluídas nas cartas de Paulo, nos Evangelhos e em outros escritos
filosóficos e religiosos.
Os textos do próprio Mani e sua vida eram raramente citados. Eles tinham caráter de
relíquia. Os pergaminhos eram ricamente ornados e encadernados, guardados sempre em local
especial e diferenciado da biblioteca. Mas o tratamento recebido pelos escritos era mais de
veneração intelectual e simbólica, como chave para toda a compreensão da filosofia e da
religião em geral, do que como Palavra, a ser repetida e resguardada. Por isso, ao invés de se
citar Mani, citava-se Paulo à luz de Mani, o Evangelho à luz do maniqueísmo.
Os maniqueus – ao menos na época e contesto de Agostinho – também rejeitam o Velho
Testamento, sob alegação de que ele não apenas contradiz o Novo, como é mais primitivo em
comparação com este. Esta rejeição, contudo, se dá na forma de uma diferenciação de nível. O
Novo Testamento é sempre mais correto que o Velho, mas este último pode ser válido em
questões das quais o Novo não fala. Preferencialmente, contudo, o Velho Testamento não é
tido como fonte segura para o julgamento de questão alguma, mas tem ainda certa
respeitabilidade, como esforço primitivo de estabelecimento da justiça e da verdade. Tem,
assim, valor histórico e cultural. Tampouco o NT deve ser integralmente aceito, mas somente
as partes que “edificam nossa fé”.
Tal complexidade no trato dos dois testamentos fica evidente na passagem em que Jesus
afirma “não ter vindo para destruir a lei, mas dar-lhes cumprimento”. Que quereria dizer Jesus,
que tantas vezes aboliu pontos cruciais da lei?
Para os maniqueus, ou Jesus não teria dito isso, e a redação das escrituras contém erros,
ou o disse em contexto completamente distinto e específico, como, por exemplo: “vim cumprir
as profecias que falavam de um Messias e de um Príncipe da Paz.” (AGUSTÍN, 49)
Como Mani apresenta uma solução para o problema do mal, ao invés de fórmulas
filosóficas e especulativas, seus discípulos o identificavam com o Paráclito prometido por Jesus

50
para explicar todas as coisas. A hermenêutica agressiva do maniqueísmo não se justificaria sem
essa prerrogativa de resgate do sentido original do cristianismo, o que passa, não por último ou
ocasionalmente, pela contextualização do ensino espiritual de Jesus em face de um ecletismo
espiritualista que tem também em vista filosofias e revelações várias do caldeirão cultural dos
séculos II e III.
Conforme Pio de Luis, a doutrina de Fausto era explicitamente docetista, não admitindo
que Jesus pudesse ter qualquer contato com a carne, ou qualquer natureza carnal. Negavam,
portanto, como herética a ideia de que Maria o pudesse gerar. (AGUSTÍN, 58) Isso pode ou
não ter alguma base no maniqueísmo original, mas ao menos o formato e o vocabulário do
maniqueísmo de Agostinho nos remete à hibridações culturais do século IV.
Outro ponto controverso é o do papel da reencarnação na doutrina original e no
maniqueísmo difundido a partir do século IV. O maniqueísmo de Agostinho era certamente
reencarnacionista. Ao passo que os eleitos se salvam por sua desvinculação da matéria, os
ouvintes não podem ser abandonados, já que se dedicaram a guardar a palavra e um modo de
conduta parcialmente espiritualizado. Recebem, assim, nova oportunidade por meio da
reencarnação. (AGUSTÍN, 73)

Crítica:

Grande parte da controvérsia atual em torno do maniqueísmo permanece sob influência


de preconceitos e atitudes militantes, não apenas católicas, mas de todo o cristianismo.
Alguns dos ataques mais célebres de Agostinho ao maniqueísmo se dirigem ao suposto
materialismo de fundo dessa doutrina.

Enquanto o Agostinho maniqueu cria em Deus como uma massa luminosa


se estendendo infinitamente pelo espaço; ele agora vê que o Deus
verdadeiro é incorpóreo e infinito sem extensão. Enquanto o Agostinho
maniqueu imaginava Deus sujeito a ataque, corrupção e violação nas mãos
de um poder rival; ele agora vê que o Deus verdadeiro é imutável e
incorruptível. Enquanto o Agostinho maniqueu crê que há duas
substâncias divinas independentes em conflito uma com a outra; sua visão
agora permite-lhe reconhecer que o Deus verdadeiro é o próprio ser, a
fonte única de tudo o que existe. (STUMP; KRETZMANN, 2006, p. 73)

51
Mas é razoável supor que a guerra ideológica contra os maniqueus, como outras tantas
que Agostinho travou, não o tornassem o melhor expositor das doutrinas alheias. Além disso,
as respostas dos maniqueus sugerem que Agostinho esteve longe de conhecer os mistérios mais
profundos do credo; uma resposta que pode perfeitamente sofrer a mesma crítica do ataque de
Agostinho.
Sendo o materialismo de fundo e o comprometimento da superioridade e bondade de
Deus em face do princípio das trevas os dois problemas principais destacados pelos seus
opositores, destacamos que a falta de pesquisa sobre o conceito de reencarnação é um dos
principais motivos de ambas.
Como expõe Helmut Zander, o conceito de reencarnação tem papel filosófico, isto é, o
de garantir a bondade de Deus e uma sensível, embora não incontestável, superioridade em
relação ao princípio das trevas.

Após uma grande guerra apocalíptica, Jesus chega para o juízo primordial, para
separar os bons, os maniqueus, dos maus (nos quais pode restar ainda alguns
elementos de luz) condenados à danação eterna. Este fim pode ser evitado pela
reencarnação, chamada Metaggismos (Transvazar; Refundir) ou, conforme textos
partos, “Morte-nascimento”. Aí está reencarnada a Kefalia, “o resto daquela luz
que remanesceu da destruição... [...] O objetivo da transmigração é a encarnação
em maniqueus mais desenvolvidos, um Electus [...] De todo modo, há também a
possibilidade de o indivíduo se salvar em apenas uma vida como mero ouvinte
[...] tendo para isso que se esforçar na ascese sexual [...] Ele logrou, então, separar
o seu pensamento do mundo (Kosmos) e depositar o seu coração unicamente na
santa Igreja. (ZANDER, 1999, p. 98)

52
REFERÊNCIAS

Agustín. Obras completas de San Agustín XXX. Biblioteca de Autores Cristianos.


Madrid: La Editorial Católica, 1986.
DECRET, François. Mani et la tradition manichéene. Paris: du Seuil, 1974.

Bibliografia de apoio:
STUMP, Eleonore; KRETZMANN, Norman. The Cambridge Companion to Augustin.
Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
ZANDER, Helmut. Geschichte der Seelenwanderung in Europa. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft. 1999.

53
Ricardo Evangelista Brandão1

RESUMO: Santo Agostinho construiu a sua conceituação acerca da beleza do cosmos, motivado pelas
inúmeras indagações e refutações maniqueias à cosmologia veterotestamentária as quais intencionavam
demonstrar que a existência de algumas criaturas feias é a prova inquestionável de que o mundo sensível
é a emanação resultada da mistura entre dois princípios ontológicos originários: a luz (o bem) e as trevas
(o mal). Portanto, o problema fundamental levantado pelos discípulos de Mani é o seguinte: Se Deus é
a única fonte do cosmos, e Ele é absolutamente e perfeitamente bom e belo, como explicar a existência
de criaturas feias no cosmos. Contra os maniqueus, Agostinho defende a tese de que o cosmos é
necessariamente belo, visto que Deus, além de criador é o mais perfeito que há, não poderia criar um
mundo imperfeito, mal e despido de beleza. Portanto, o mundo é por natureza, perfeito, bom e belo.
Palavras-chave: Santo Agostinho; Filosofia da Natureza; Estética; Maniqueísmo; O Belo.

ABSTRACT: St. Augustine built his conceptualization about the beauty of the cosmos, motivated by
the numerous inquiries and maniqueas the Old Testament cosmology refutations which imagine that
they demonstrate that the existence of some ugly creatures is unquestionable that the sensible world is
the emanation of the resulted mixture between two test originating ontological principles: light (good)
and darkness (evil). Therefore, the fundamental issue raised by the disciples of Mani is the following: If
God is the only source of the cosmos, and He is absolutely and perfectly good and beautiful, how to
explain the existence of ugly creatures in the cosmos. Against the Manichees, Augustine defends the
thesis that the cosmos is necessarily beautiful, because God, as well as creator is the most perfect that
there could not create an imperfect world, evil and naked beauty. Therefore, the world is by nature
perfect, good and beautiful.
Keywords: St. Augustine; Philosophy of Nature; aesthetics; Manichaeism; The Belo

1
Doutorando em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPE/UFPB/UFRN. E-mail:
[email protected]
53
1 Beleza ontológica da natureza

Um problema fundamental na estética da Natureza de Santo Agostinho, que de certa


forma delimitou e delineou o conceito de beleza sensível no Filósofo de Hipona, foi um
problema levantado pelos Maniqueus acerca da fealdade e maldade natural do cosmos. Já
adiantamos que o feio e o mal destacados pelos oponentes de Agostinho, na medida em que
estão relacionados com as criaturas que compõe o cosmos, se referem às criaturas não morais
principalmente, assim, este feio e mal não é moral, mas trata-se de deformações estéticas na
aparência no caso da fealdade, e na funcionalidade apropriada desses entes no caso da maldade.
Neste preciso caso, sem dúvida, o feio na medida em que é na compreensão dos de Mani uma
deformação estética, é um desvelar da maldade natural do cosmos. E igualmente nesse sentido,
quando um ente do mundo não possui uma funcionalidade que eles entendem ser apropriada,
em sua má funcionalidade é feio. No mesmo caminho em sua refutação segue Agostinho, e
nesse caso o belo está relacionado com a forma estética das criaturas, mas também é uma
manifestação da bondade natural do cosmos, que igualmente não é bondade moral visto que a
maior parte dos componentes do mundo não são seres morais, mas a bondade de cada ente da
Natureza no presente debate trata-se do cumprir o propósito para o qual foi designado no ato da
criação pelo Criador.
As questões levantadas pelos Maniqueus com relação a fealdade e maldade do
cosmos, estão disseminados nas obras de Santo Agostinho, possuindo assim diversas formas de
apresentar o mesmo problema. Porém, na medida em que em seus textos, mas principalmente
nas obras antimaniqueias o filósofo escreve como estando em constante debate, as ditas
questões algumas vezes são explícitas sendo anunciadas pelo autor como indagações
maniqueias, todavia em não poucas vezes, e nos arriscaríamos a dizer que na maior parte das
vezes elas estão implícitas no texto. Com relação a estas últimas, Agostinho disserta como se
estivesse respondendo ou mesmo refutando alguma problemática, sem, contudo explicitar
textualmente essas questões, porém a refutação é tão clara que não é difícil perceber qual ou
quais as questões estão sendo respondidas. Nesses casos é possível que ele estivesse
respondendo a uma pergunta que de fato lhe foi feita por um interlocutor da dita seita, ou
simplesmente antecipando um problema que poderia ser verbalizado por alguém que possuísse

54
o arcabouço de pensamento desta gnose. Citamos a seguir uma das versões dessa problemática,
exposta em forma de pergunta no De Genesi contra Manichaeos:

Os Maniqueus costumam também levantar esta questão e chegam a dizer: “por


que era preciso que Deus criasse tão numerosos animais, seja nas águas, seja
na terra, que não são necessários aos homens? E muitos são nocivos e
infundem medo.” Ao expressarem assim, não percebem como todas as coisas
são belas para o seu Criador e Artífice, o qual se vale de todas as coisas para
o governo do universo que ele domina com sua lei suprema (De Gen. contra
man., I, 15, 25)2.

O questionamento Maniqueu que frequentemente explícita ou implicitamente nos


apresenta Agostinho acerca do assunto objeto de nossa análise, a despeito de diverso segue o
seguinte padrão: pretende ridicularizar ou refutar a cosmologia do Hexameron3
veterotestamentário; focaliza algumas criaturas: desprovidas de atrativos estéticos segundo a
ótica humana, nocivas ao homem, aparentemente fora da ordem que eles entendem ser mais
apropriada; por fim, objetam demonstrar o quão incoerente é defender a ideia de um Deus
criador como a relatada no Hexameron. Na pergunta apresentada na última citação, segue-se o
mesmo padrão que apresentamos. No contexto da perícope a cima, Santo Agostinho está
interpretando de maneira alegórica o texto bíblico do Gênesis 1, 24-254, aonde é descrito no do
relato dos seis dias da criação o sexto dia, que o Pensador foca a sua análise na origem dos
animais domésticos e selvagens5. Portanto a indagação citada faz parte da interpretação do texto
do Gênesis, nos dando a entender que seus inimigos de debate criticavam o relato genesíaco
não aceitando a criação de alguns animais por Deus. É o próprio Agostinho que afirma que o
problema fora levantado pelos Maniqueus logo depois de no contexto anterior imediato
transcrever o relato da criação de animais domésticos e feras, assim o foco da seita é encontrar

2
“Solent etiam istam Manichaei movere quaestionem ut dicant: Quid opus erat ut tam multa animalia Deus
faceret, sive in aquis, sive in terra, quae hominibus non sunt necessaria? Multa etiam perniciosa sunt et timenda.
Sed cum ista dicunt, non intelligunt quemadmodum omnia pulchra sunt conditori et artifici suo, qui omnibus
utitur ad gubernationen universitatis, cui summa lege dominatur” (De Gen. contra man., I, 15, 25).
3
Hexameron provém da cunhagem dos termos gregos εξ (seis) e ήμερα (dia) (Cf. PEREIRA, 1990, p.196, 257).
Significando assim seis dias, termo usado para designar as diversas interpretações dos seis dias do relato Mosaico
da criação exposto no livro do Gênesis. Estima-se que o primeiro pensador a fazer uso do termo Hexameron foi
Philon de Alexandria, se isto estiver correto igualmente foi o responsável pela cunhagem que forma essa palavra.
4
“Deus disse: ‘que a terra produza seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e feras segundo
a sua espécie’ e assim se fez. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie
e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom” (Gn., 1, 24, 25).
5
Além dos citados animais, também faz parte do sexto dia a criação do Homem (Cf. Gn., 1, 24-27).
55
inconsistência no Hexameron bíblico, pelo fato do mesmo atribuir a Deus a criação dessas
criaturas. Outro fator a destacar no citado texto, é que apesar da questão focar a não necessidade
e a nocividade de algumas criaturas para o homem como defeitos da criação, Nosso Filósofo
em sua resposta acrescenta o sentido estético (non intelligunt quemadmodum omnia pulchra
sunt conditori et artifici suo - não percebem como todas as coisas são belas para o seu Criador
e Artífice), que nos possibilita interpretar que entre as indagações e refutações dos discípulos
da mencionada seita, a fealdade das criaturas igualmente eram utilizadas como argumento para
provar que o cosmos não foi criado por um único Deus. É possível que algum leitor observando
o fragmento que citamos, devido ao fato de que a pergunta dos Maniqueus abordou a
necessidade e nocividade de forma explicita, interprete que a expressão omnia pulchra da
resposta de Agostinho seja apenas uma metáfora para assegurar a utilidade das criaturas para o
Criador. Não negamos que a utilidade esteja presente no contexto da compreensão do Filósofo,
e que de certa forma o conceito de utilidade esteja relacionado ao belo na analisada perícope,
porém reforçamos que sem dúvida o conceito principal presente com o uso do termo pulchrum
é estético, ou seja, na ótica do Deus o criador do cosmos todas as criaturas são belas in
dependente de serem úteis para o homem.
Na intenção de fortalecer a interpretação de pulchrum com sentido estético
ventilado no último parágrafo que para nosso trabalho é fundamental, cabe citar o contexto
imediato em que o Pensador de Hipona desenvolve a resposta a pergunta, que em nossa
interpretação esclarece o sentido do termo utilizado no texto citado sob nossa análise:

Eu confesso que ignoro por que foram criados os ratos e as rãs ou as moscas
ou os vermes, mas percebo que todas as coisas são belas no seu gênero,
embora, devido a nossos pecados, muitas coisas nos pareçam adversas. [...]
Com efeito, esses palradores e ignorantes não nos aborreceriam tanto, se
elevassem a Deus criador seus louvores em todas as partes, ao observarem
todas as belezas, tanto as sublimes como as ínfimas (De Gen. contra man., I,
16, 26)6.

6
“Ego vero fateor me nescire mures et ranae quare creatae sint, aut muscae aut vermiculi: video tamen omnia in
suo genere pulchra esse, quamvis propter peccata nostra multa nobis videantur adversa.[...] Quod si cogitarent
isti loquacissimi et ineptissimi, non nobis taedium facerent, sed ipsi considerando omnes pulchritudines et
summas et infimas, Deum artificem ubique laudarent” (De Gen. contra man., I, 16, 26).
56
Assim sendo, em complemento a resposta a indagação de seus adversários,
Agostinho confessa a dificuldade da questão, mas ao apresentar a sua tese holística para a
economia do universo, afirma que apesar da impossibilidade da plena compreensão de o porquê
da existência de algumas criaturas devido ao obscurecer de nossas mentes por causa da entrada
do pecado no mundo, percebe que todas as criaturas são belas em seu próprio gênero (video
tamen omnia in suo genere pulchra esse), e que quando contemplamos a criação é possível se
encontrar beleza em todas as criaturas independente de sua importância para o homem ou para
ordem cósmica. Logo, entendemos que iluminados por esse texto não há dúvida de que o
sentido de pulchrum no De Gen. contra man., I, 15, 25 é principalmente estético. No momento
não queremos entrar no teor das afirmações expostas enquanto defesa da beleza ontológica da
criação, o que faremos em momento apropriado, mas apenas assegurar o fato de que a questão
Maniqúeia não versa apenas acerca da utilidade e periculosidade de alguns entes do mundo,
mas também toca a fealdade, como é corroborado pelo teor da resposta do Hiponense que
ressalta a beleza para a contemplação divina e humana de todos os entes da criação, inclusive
das criaturas atacadas pelos rivais de Filósofo. Portanto, a despeito do fato de que a questão
exemplificada por Agostinho não tocar textualmente no problema estético, pelo teor da
resposta, a fealdade das criaturas também está presente enquanto argumento para provar a tese
dos de Mani, tornando assim a questão uma problemática igualmente estética.
Em suma, diante desses introdutórios esclarecimentos, a problemática central
levantada pelos Discípulos de Mani, que guiará Agostinho na defesa de um cosmos
otologicamente belo, nós podemos resumir nas seguintes questões: é fato histórico que o
cristianismo defende a tese de que o universo foi criado por um único Deus, levando em
consideração o fato de que esse Deus além de criador, também é poderoso e perfeitamente belo
e bom, e igualmente considerando a incontestável existência de criaturas feias, repugnantes,
deformadas e que nos causam repugnância, como explicar a existência dessas criaturas feias e
más em um universo criado por um Deus bom? Ou o Deus criador não é tão perfeitamente belo
e bom como almeja o Cristianismo Católico, visto que mesmo sendo onipotente, e, portanto
tendo poder para criar um mundo perfeitamente belo e bom, criou criaturas feias e deformadas
na ordem cósmica; ou ele apesar de perfeitamente belo e bom não teve poder para tornar efetivo
um cosmos perfeito esteticamente e em sua funcionalidade, não sendo assim um Deus todo

57
poderoso? Essa problemática levantada pelos Maniqueus, em essência pretende trazer a tona
um dilema em que na compreensão deles torna inconciliável a ideia de um Deus único
onipotente, belo e bom. Ou seja, ou Deus não é todo poderoso ou não é perfeitamente belo e
bom.
A questão apresentada trata-se de um problema imenso para Santo Agostinho se
debruçar, todavia para os oponentes dele não se apresentava como um problema de difícil
solução, na medida em que afirmavam em sua cosmologia uma terceira via de explicação que
mantinha o grande poder de Deus sem, no entanto diminuir a sua beleza e bondade. Os
discípulos de Mani dissolviam o citado problema com a ideia de que não existe uma fonte una
que deu origem ao cosmos como afirmava o Cristianismo Católico, mas como outrora
comentamos, entendiam que existiam dois princípios ontológicos eternos responsáveis pela
origem por meio de emanação do universo, a Luz, também nominado de Deus e qualificado e
chamado de O Belo em si e o Bem em si; e o princípio Trevas chamado de Diabo, e qualificado
e nominado de o Feio em si e o Mal em si. Portanto, segundos os Maniqueus o cosmos longe
de ter uma única fonte, é decorrente tanto em sua origem como em sua constituição da união
substancial da Luz e Trevas, na origem pelo fato dessas duas entidades gerarem a matéria e
consequentemente todo o universo com a emanação provocada pela guerra pré cósmica, e em
sua constituição justamente pelo fato dessa geração se dar por emanação das duas fontes, de
forma que partículas dos princípios ontológicos estão espalhados e amalgamados em todos os
seres do mundo. Assim sendo, tanto o belo e o bem como o feio e o mal estão presentes nos
seres do mundo, não sendo difícil explicar a presença da fealdade no mundo, visto que esse
último, seja qual for a maneira que se manifeste, seja em uma cobra, escorpião, barata, símio,
na feiúra da lua quando comparada com o sol, ou em qualquer ente da natureza que nos
provoque repulsa não provém do Deus da luz, mas da mistura de partículas das duas entidades
ontológicas primordiais, de forma que em todo o nosso cosmos está presentes o feio e o belo.
Contudo os entes cósmicos mas propriamente considerados como feios, em suas constituições
foram emanados de forma mais densa por fragmentos das Trevas em detrimento dos fragmentos
da Luz. Assim os discípulos de Mani conseguiam explicar sem grande dificuldade a presença
do feio no mundo, sem contudo comprometer a beleza e bondade de Deus (que é o principio
Luz) (Cf. DE BRUYNE, 1963, tomo II, p. 268-269). Ou seja, o feio e o mal estão presentes no

58
mundo, mas não é Deus o seu criador, logo, Deus apesar da existência do feio e do mal, é
perfeitamente belo e bom.
Levantado o problema, em resposta ao mesmo Agostinho enfaticamente afirma não
haver um real dilema, mas que é perfeitamente possível defender a geração do cosmos por um
único Deus, e igualmente que esse Deus é perfeitamente belo e bom. E, além disso, diríamos
que não só não há um verdadeiro dilema segundo a cosmologia abraçada pelo Filósofo, mas,
que também devido a tipo de cosmogênesi por ele defendida sob hipótese alguma o cosmos
pode ser considerado feio, sendo o universo belo e bom por natureza. No tratado De natura
boni um dos textos mais importantes que enfrenta a indagação maniqueia, o Pensador expressa
com clareza a inexistência de um dilema na mesma:

Deus é o bem supremo, acima do qual não há outro: é o bem imutável e,


portanto, verdadeiramente eterno e verdadeiramente imortal. Todos os outros
bens provêm d’Ele, mas não são da mesma natureza que Ele. [...] Assim, pois,
o ser de todos os bens particulares, tanto os maiores como os menores,
qualquer que seja o seu grau na escala das coisas, não pode proceder senão de
Deus. Por outro lado, toda e qualquer natureza enquanto natureza é sempre
um bem (De nat. boni., 1)7

Portanto a obra De natura boni é iniciada com a afirmação de que Deus é o único
Ser e de que tudo o que existe proveio Dele para existir, e na medida em que Ele é suprema
bondade, tudo o que Dele proveio, isto é, tudo que existe, é naturalmente bom, e na medida em
que o belo nessa obra é considerado como uma forma do bem, podemos dizer que tudo o que
de Deus proveio é necessariamente belo8. Sendo assim, toda natureza, na medida em que por

7
“Summum bonum quo superius non est, Deus est: ac per hoc incommutabile bonum est; ideo vere aeternum et
vere immortale. Caetera omnia bona non nisi ab illo sunt, sed non de illo. [...] Quia ergo bona omnia, sive
magna, sive parva, per quoslibet rerum gradus, non possunt esse nisi a Deo. Omnis autem natura in quantum
natura est, bonum est” (De nat. boni, 1). No Sobre a Cidade de Deus, O Filósofo interpretando texto do Êxodo
3:14, em que Deus em diálogo com Moisés se denomina “Eu Sou”, afirma que Deus é o sumo ser e que deu ser
a cada criatura sem, contudo retirar algo de sua essência: “Disse Deus, ao enviar Moisés aos filhos de Israel: Eu
Sou o que Sou. Sendo, pois, Deus suma essência, isto é, sendo em sumo grau e, portanto, imutável, pôde dar o
ser às coisas que criou do nada, não, porém, o ser em grau sumo, como é Ele” (De civ. Dei., XII, 2). “dixit Deus,
quando Moysen mittebat ad filios Israel: Ego sum, qui sum. Cum enim Deus summa essentia sit, hoc est summe
sit, et ideo immutabilis sit; rebus quas ex nihilo creavit, esse dedit, sed non summe esse, sicut ipse est” (De civ.
Dei., XII, 2).
8
Somos cientes do fato de que no De natura boni o belo sensível é uma categoria ou expressão do bem no cosmos,
logo, a beleza ontológica é uma consequência da bondade ontológica. Porém devido ao fato de que em nossa
tese investigamos a beleza sensível presente de forma diversa na Natureza, focaremos nossa atenção no belo, e
quando houver necessidade citar a beleza e bondade do cosmos, devido ao nosso foco citaremos a beleza e em
seguida a bondade.
59
Deus foi criada, é bela, embora existam belezas maiores e menores, quer dizer, uma hierarquia
ontológica na medida em que existem graus de perfeição diversos, e estética visto que há
gradação de belezas variadas na criação. Todos esses graus de beleza e perfeição devem seu
existir, e consequentemente suas belezas e bondades a Deus. Santo Agostinho não faz distinção
entre existência e beleza, pois, concebe a beleza na criação como ontológica, ou seja, uma
criatura é bela só pelo fato de ser ou existir.
Embora Santo Agostinho tenha afirmado que Deus é a única fonte do cosmos e que
esse último é necessariamente belo, sabemos que isso não basta para resolver a problemática
dos discípulos de Mani, na medida em que até aqui embora se tenha resolvido dilema, aumentou
a dificuldade do problema, pois, é sabido que um Deus belo e bom por natureza não poderia
criar um cosmos feio, resta saber como acomodar nesse cosmos belo criaturas feias, ou que ao
menos são aparentemente feias. Assim iremos explicitar de que forma e com que fundamentos
teóricos, o pensador tentou resolver esse difícil problema.

2 O problema do feio diante da beleza ontológica do cosmos

Com a creatio ex nihilo Aurélio Agostinho deixa bem estabelecido a tese de que o
universo possui apenas uma fonte, e que por consequência o cosmo é naturalmente belo. Porém,
essa afirmação não diminui o problema levantado pelos Maniqueus, muito pelo contrário o
aviva ainda mais, pois, diante de um cosmos necessariamente belo como explicar a fealdade
presente em algumas criaturas? Doravante exporemos a maneira como o Pensador se esforça
para resolver o difícil problema. O primeiro pensamento que nos vêm a mente com a afirmação
da beleza necessária do cosmos, com a constatação da existência de criaturas feias na Natureza
é de que essa tese é insustentável por se tratar de uma tese que se auto anula, pois, se afirmamos
a universalidade da beleza, basta um criatura feia para por a baixo a tese defendida. Segundo
Nosso Pensador não há contradição alguma em se defender um cosmos universalmente belo,
simplesmente porque não existem criaturas naturalmente feias, logo a fealdade acusada em
algumas criaturas é apenas aparente, não passando de mero erro de perspectiva.
Não devemos esquecer que a beleza das criaturas sensíveis é uma consequência da
bondade natural do cosmos (Cf. SVOBODA, 1958, p. 233-234; De nat. boni. 1; 13), logo, os

60
argumentos elencados para explicar a inexistência do feio são da mesma categoria dos
utilizados para afirmar a não existência do mal. Todos os argumentos desenvolvidos por
Agostinho nesse assunto tem em comum, que em algum aspecto partilham da ideia Plotiniana
da gradação ontológica a partir do Uno, ou despotencialização ontológica devido ao
afastamento dos entes da fonte da qual tudo emana, o Uno.
Assim sendo, embora todas as criaturas sejam belas apenas pelo fato de existirem
pelos motivos que já amplamente comentamos, isso não quer dizer que todas as criaturas
possuam o mesmo nível de beleza, existindo assim no conjunto do cosmos belezas de variados
níveis. Ou seja, na medida em que todas as criaturas foram criadas ex nihilo não são da mesma
natureza de Deus, visto que não constituem uma continuidade substancial de sua fonte, e assim
sendo não possuem o mesmo nível de perfeição do Criador e por conseguinte não têm
necessidade de serem perfeitamente belas como é Deus , que é a própria beleza e fonte de tudo
o que é belo. Neste caso, por um lado a criatura não é perfeitamente bela por ter sido criada do
nada, mas por outro é criada por um Deus que sendo a própria beleza não pode criar algo feio,
assim, a beleza no cosmos é universal, mas de diferentes graus de perfeição, e algumas criaturas
que são consideradas feias simplesmente possuem um grau de beleza inferior, como nos desvela
essa interessante perícope:

[...] todo e qualquer sentimento, grande ou pequeno; toda e qualquer luz


grande ou pequena; toda e qualquer suavidade, grande ou pequena; toda e
qualquer medida, grande ou pequena; toda e qualquer beleza, grande ou
pequena; toda e qualquer paz, grande ou pequena; e os demais bens
semelhantes a esses, espirituais ou corporais; todo e qualquer modo, toda e
qualquer espécie, toda e qualquer ordem, grandes ou pequenos; tudo isso não
pode proceder senão do Senhor Deus (De nat. boni. 13)9.

Percebamos que segundo o fragmento citado, existem bens e consecutivamente


belezas de diversos graus na Natureza, e todas provém de Deus e são belas por procederem de
Deus. Assim existem no mundo belezas grandes e belezas pequenas (omnis pulchritudo et
magna et parva), quanto as grandes nada se tem a objetar, mas as pequenas os adversários de

9
“[...] omnis sensus et magnus et parvus, omne lumen et magnum et parvum, omnis suavitas et magna et parva,
omnis mensura et magna et parva, omnis pulchritudo et magna et parva, omnis pax et magna et parva, et si qua
similia occurrere poterunt, maximeque illa quae per omnia reperiuntur, sive spiritalia sive corporalia, omnis
modus, omnis species, omnis ordo, et magnus et parvus, a Domino Deo sunt” (De nat. boni. 13).
61
Agostinho devido a um prisma deformado entendem que essas são feias simplesmente por não
possuírem o mesmo grau de belezas de outras consideradas mais belas. Assim, enfatiza o
pensador que as criaturas que são carentes de um grau maior de beleza, em hipótese alguma são
feias, mas possuem belezas de graus inferiores quando comparadas a outras de espécies
consideradas mais belas, contudo, elas são belas em si mesmas dentro de sua espécie e apenas
são menos belas quando indevidamente comparadas com outras de belezas avaliadas como
superiores. O argumento aqui exposto se baseia no fato de que o cosmos não possui o mesmo
grau estático de perfeição e beleza, o que abre espaço a refutação da tese de que existem
criaturas feias por natureza, pois as criaturas não tem a menor necessidade de terem o mesmo
grau de beleza que outras, e a sua fealdade aparente não passa de uma gradação menor de beleza
pré estabelecido pelo ordenador do cosmos, estando assim perfeitamente coerente com a ordem
cósmica. Qualquer criatura é bela, e mesmo os seres de belezas inferiores, em sua pouca beleza
além de serem belas em si mesmas igualmente cooperam para a beleza da ordem do cosmos.
Portanto, as criaturas consideradas feias, são assim perspectivadas simplesmente
porque as pessoas em sua contemplação ao invés de admirá-las em si mesmas, em suas simetrias
ou mesmo harmonias entre as suas diversas partes, as comparam com outras de espécies
diferentes com belezas mais elevadas. Santo Agostinho nos dá um exemplo muito claro desse
equívoco comentando acerca do corpo do símio. Pois, o corpo do macaco é caracterizado como
feio, imperfeito e disforme , quando comparado com o corpo humano, mas mesmo com a clara
inferioridade do corpo do macaco com relação ao humano, é claro o fato de que é passível de
corrupção, e se é passível de corrupção é porque possui algum bem, e se possui algum bem é
porque tem os três atributos ontológicos, mesmo sendo eles ordenados hierarquicamente
inferiores ao homem. Vejamos a perícope supra comentada:

Mas, para que o que estamos dizendo seja compreendido, e satisfaça até aos
mais rudes, e para que os pertinazes que se obstinam em negar a evidência da
verdade se vejam obrigados a confessá-la, perguntamos-lhe se a corrupção
pode afetar o corpo do macaco. Se o pode, de modo que o faça mais disforme,
que é o que nele diminui senão o bem da beleza? Mas ainda haverá alguma
beleza, enquanto subsista a natureza corporal. Logo, como a natureza é

62
destruída ao desaparecer o bem, força é concluir que a natureza é em si um
bem (De nat. boni., 15)10.

Sendo assim, embora seja notória a privação de beleza e algumas perfeições quando
comparamos o macaco e o homem, esta privação de bem do referido animal, na medida em que
foi criado por Deus para manter o equilíbrio e a beleza do cosmos é na verdade um bem, pois,
o que seria da luz sem as trevas, e da rapidez sem a lentidão. Quer dizer, existe espaço para
cada coisa que possui ausência de algum bem nesse universo projetado e criado por Deus.
Agostinho afirma que a beleza que é uma das várias formas que expressam o bem no cosmos,
também é ontológica, como afirma Karel Svoboda (1958, p. 233): “Na obra De natura boni
(405), a propósito do bem, trata Agostinho algumas vezes do belo. Não distingue em termos
precisos ambos os conceitos, porém, geralmente subordina o belo ao bom”. Logo, qualquer
criatura por mais despida de beleza que possa parecer aos olhos humanos, tem sua beleza
própria, visto que a deteriorização pode torná-la ainda menos bela, e se isso é possível o que
diminui nesse ente senão a sua beleza (interrogentur utrum corpori simiae possit nocere
corruptio. Quod si potest, ut foedius fiat; quid minuit, nisi pulchritudinis bonum?). Note que
com a corrupção do corpo do símio, o que diminui nele é justamente a pulchritudinis bonum ,
o bem da beleza, claramente a beleza é aqui compreendida como uma tipo de bem dos corpos.
Essa interpretação, entendemos ser notória, visto que o corpo do macaco foi escolhido por
Agostinho exatamente por ser carente de beleza em comparação como outros corpos e com o
corpo humano, na intenção de destacar a tese de que se até o feio corpo do símio pode ficar
mais feio, é sinal de que alguma beleza que é um bem o citado corpo ainda tem para corromper.
É claro que a beleza não é a única expressão do bem no cosmos, pois, o próprio equilíbrio em
que cada criatura causa a natureza ao fazer o que lhe é próprio, também é um bem. Mas por
outro lado, quando cada ente faz o que lhe é próprio também é belo, existindo assim íntima
sintonia entre o bem e o belo no cosmos de Santo Agostinho.

10
“sed ut quod dicimus intellegatur, et nimium tardis satis fiat, vel etiam pertinaces et apertissimae veritati
repugnantes cogantur quod verum est confiteri, interrogentur utrum corpori simiae possit nocere corruptio.
Quod si potest, ut foedius fiat; quid minuit, nisi pulchritudinis bonum? Unde tamdiu aliquid remanebit, quandiu
corporis natura subsistit. Proinde si consumpto bono natura consumitur, bona ergo est natura” (De nat. boni.,
15).
63
A argumentação elaborada por Agostinho no último fragmento citado, diante da
íntima relação que há entre o bem e o belo, fazendo esse último ser um aspecto do primeiro,
nos autoriza a dizer que da mesma forma que o bem é degradado com a corrupção, a beleza na
medida em que é uma forma do bem na Natureza, igualmente é diminuída com a citada
corrupção. Assim, visto que Agostinho intenciona afirmar que não existe criatura má por
natureza, pois, se ela existisse não seria mais possível corrompe-la e quando isso acontece é
porque o ente na Natureza já foi totalmente corrompido chegando a inexistência,
semelhantemente toda e qualquer criatura, por mais disforme que pareça, se ela pode ficar ainda
mais disforme é porque alguma beleza ela possuía embora mínima, portanto, a única
possibilidade dela ficar feia por natureza seria se ela se corrompesse absolutamente, e se isso
acontecesse esse ente já não existiria, não existindo assim criaturas feias e mas por natureza11.
O argumento da corrupção para asseverar a inexistência do feio e do mal no cosmos,
é bastante utilizado por Agostinho para explicar o belo apesar da fealdade aparente de algumas
criaturas, de forma que vale apena nos aprofundarmos um pouco mais na natureza dessa linha

11
Agostinho também trabalha essa temática no diálogo Sobre o Livre-Arbítrio: “Toda natureza que pode tornar-
se menos boa, todavia, é boa. De fato, ou bem a corrupção não lhe é nociva, e nesse caso ela é corruptível; o
bem, a corrupção atinge-a e então ela é corruptível. Vem a perder a sua perfeição e tornar-se menos boa. Caso a
corrupção a privar totalmente de todo bem, o que dela restará não poderá mais se corromper, não tendo mais
bem algum cuja corrupção a possa atingir e, assim, prejudicá-la. Por outro lado, aquilo que a corrupção não pode
prejudicar também não pode se corromper, e assim esse ser será incorruptível. Pois eis algo totalmente absurdo:
uma natureza tornar-se incorruptível por sua própria corrupção. Por isso se diz, com absoluta verdade, que toda
natureza enquanto tal é boa. Mas se ela for incorruptível será melhor do que o corruptível. E se ela for corruptível
– já que a corrupção não pode atingi-la senão tornando-a menos boa, ela é indubitavelmente boa. Ora, toda
natureza ou é corruptível ou incorruptível. Portanto, toda natureza é boa” (De lib. arb., III, 13, 36b.). “Omnis
natura quae minus bona fieri potest bona est; et omnis natura dum corrumpitur, minus bona fit. Aut enim non ei
nocet corruptio. Et non corrumpitur; aut si corrumpitur, nocet ei corruptio: et si nocet, minuit aliquid de bono
eius, et eam minus bonam facit. Nam si penitus eam privat omni bono, quidquid eius remanebit, iam corrumpi
non poterit; quia nullum erit bonum cuius ademptione possit nocere corruptio: cui autem non potest nocere
corruptio, non corrumpitur. Porro natura quae non corrumpitur, incorruptibilis est: erit ergo natura, quod
absurdissimum est dicere, corruptione facta incorruptibilis. Quapropter quod verissime dicitur, omnis natura in
quantum natura est, bona est: quia si incorruptibilis est, melior est quam corruptibilis; si autem corruptibilis
est, quoniam dum corrumpitur minus bona fit, sine dubitatione bona est. Omnis autem natura aut corruptibilis
est, aut incorruptibilis. Omnis ergo natura bona est” (De lib. arb., III, 13, 36b.). Ou seja, toda natureza é boa,
tanto a corruptível com a não corruptível, a única natureza incorruptível é Deus, a suma bondade, e todas as
outras naturezas são corruptíveis, porém, também são boas, pois, possuem algo a corromper-se. Acerca disso
confirma Régis Jolivet: “[...] Agostinho havia descoberto em Plotino os princípios que ajudariam a resolver o
problema do mal. O mal não é uma substância, mas uma simples negação, a negação de um bem maior. Não há
de se buscar para o mal, uma causa especial [...] já que o mal é, em nós, uma deficiência, um não ser, o problema
se reduz a buscar a razão desse não ser” (1932, p. 149). Ver também De nat. boni., 4.
64
de argumentação. No opúsculo Contra epistulam quam vocant Fundamenti12 o hiponense
afirma que diversas coisas são chamadas de seus antônimos ao ser atacadas pela corrupção:
“Porém a corrupção da alma sábia se denomina ignorância [...]; a corrupção da saúde de um
corpo animado, dor e enfermidade; a corrupção das forças, cansaço; a do descanso, fadiga. A
corrupção da beleza em um único corpo, fealdade [...]” (Contra ep.Fund., 35)13. Neste caso,
segundo o texto exposto a corrupção da beleza de um corpo seria denominada de feiúra, mas,
contudo, fica uma dúvida: de fato a corrupção da beleza do corpo é feiúra, ou apenas é assim
nominada pelas pessoas? A primeira alternativa simplesmente não cabe na estética agostiniana,
pois se assim fosse o feio seria uma realidade e derrubaria a tese da beleza ontológica da criação.
Logo, apenas resta a segunda, a corrupção do belo é chamada de fealdade, sem de fato o ser, e
será demonstrar argumentativamente essa ideia o esforço de Santo Agostinho, o que doravante
investigaremos.
Assim sendo, já sabemos que quando a corrupção ataca algo belo, o objeto
corrompido a despeito de ser chamado (vocatur) de feio, não se torna feio, mas apenas menos
belo, mas, o que de fato é a corrupção? Levando-se em consideração o fato de que a corrupção
diminui a beleza de algo, seria ela o feio? No objetivo de demonstrar a real natureza da
corrupção analisaremos mais um texto da Contra epistulam quam vocant Fundamenti em que
o pensador é extremamente claro acerca da real natureza da corrupção:

Contudo, é fácil ver que a corrupção não é nada, senão enquanto destrói o
estado natural das coisas, e que, portanto, ela não é uma natureza, senão algo
contra a natureza. Logo, não se encontra nas coisas outro mal que não a
corrupção e a corrupção, não é uma natureza, ou nenhuma natureza é
verdadeiramente o mal (Contra ep.Fund., 35)14.

12
Nessa obra Agostinho se debruça sobre a epístola chamada Fundamento, possivelmente escrita pelo próprio
Mani, com a intenção de refutá-la. Embora o hiponense combata as doutrinas e críticas dos maniqueus ao Antigo,
Novo Testamento e fé cristã católica, nesse escrito se propõe a refutar diretamente um documento maniqueu,
como diz Pio de Luiz comentando acerca dessa obra: “Nesse sentido a obra significa uma novidade, pois, até
então nunca havia se ocupado diretamente de um escrito de Mani. Havia refutado sua doutrina [...], mas nunca
um escrito concreto” (1986, vol. XXX, p. 381).
13
“Sed corruptio peritae animae inperitia vocatur [...]; deinde in corpore animato corruptio sanitatis dolor et
morbus; corruptio uirium lassitudo; corruptio quietis labor; deinde in ipso solo corpore corruptio pulchritudinis
foeditas” [...] (Contra ep.Fund., 35).
14
“Verumtamen uidere iam facile est nihil nocere corruptionem, nisi quod labefacit naturalem statum, et ideo
eam non esse naturam, sed contra naturam. Quodsi nom inuenitur in rebus malum nisi corruptio et corruptio
non est natura, nulla utique natura malum est” (Contra ep.Fund., 35).
65
Portanto, segundo o Hiponense não existe natureza feia ou má, pois apenas se a
criatura deixasse de existir seria de fato feia visto que só assim não haveria mais nada para se
degradar tornando-a menos bela. O termo chave da citação a cima é corruptio, e para evitar
confusões com a corrupção moral15, entendemos que a melhor palavra que expressa o conceito
tratado no texto é o ato de degradar-se, ou a degradação, isto é a deterioração de uma
determinada substância até torná-la deficiente em sua natureza. Assim, corruptio que conduz o
ser ao não ser, e consecutivamente as criaturas belas ao estado de feiúra que é a inexistência,
ela própria não pode ser com propriedade o mal e o feio, visto que a corruptio na medida em
que existe nas naturezas (et ideo eam non esse naturam, sed contra naturam – portanto, ela não
é uma natureza, mas algo contra a natureza), não possui consistência ontológica, não existindo
em si mesma, mas apenas em uma substância. Logo, a corruptio não é uma substância, mas
apenas existe enquanto defecção das substâncias, e visto que ela em si mesma não é nada,
embora possamos considerá-la como feio ou mal por conduzirem as substâncias a um estado de
menos beleza e bondade16, não convém chamá-la com propriedade de mal ou feio por ela não
ser uma substância.
Como vemos no fragmento supra, o Hiponense enfatiza a ideia de que a corruptio
não possui consistência ontológica, contra o risco de entrar em contradição, pois, se ela fosse
um ser, e Deus sendo a fonte de todos os seres, seria o criador de um ser mal e, por conseguinte
feio. Mesmo assim, ao assumir a tese de que a corrupção seja um mal, o risco de contradição
ainda não está plenamente extinto, visto que as criaturas da natureza são necessariamente
corruptíveis por terem sido criadas ex nihilo e não da substância de Deus17. Logo, Deus as criou

15
O próprio Agostinho não faz essa distinção que aqui propomos por tratarmos da beleza do cosmos, mas ele trata
corruptio indistintamente, tanto para a esfera moral como para a Natural.
16
Por isso afirma o pensador nas Confissões que a corrupção mesmo não sendo o mal pode para efeito de
puramente didático ser considerado mal, por degradarem as substâncias a ponto de as conduzirem ao mal e ao
feio que é a inexistência: “E se não fossem boas, nada haveria a corromper. A corrupção de fato é um mal, porém,
não seria nociva se não diminuísse um bem real. Portanto, ou a corrupção não é um mal, o que é impossível, ou
– e isto é certo – tudo aquilo que se corrompe sofre uma diminuição de bem. Mas privadas de todo bem, deixariam
inteiramente de existir” (Conf., VII, 12, 18)
17
No Sobre a Verdadeira Religião diz Agostinho: “Se pois, a integridade é o oposto da deteriorização, sendo a
integridade um bem, é bom tudo aquilo que a deteriorização ataca. Os seres são bons, mesmo sujeitos à
deteriorização. Se eles se deterioram é porque não possuem o bem na plenitude. Por serem bons, procedem de
Deus; por não serem plenamente bons, não são Deus. Por conseguinte, o único bem que não se pode deteriorar
é Deus” (De vera. rel., 19, 37). No presente texto o Filósofo embora explique o porquê das criaturas serem
corruptíveis, o problema levantado em nosso texto permanece aporético.
66
em estado de corruptibilidade, e somente devido a essa natureza corruptível é que existe a
corrupção. Portanto, Deus ao criar seres corruptíveis por natureza, criou a condição de
possibilidade da corrupção, e se ela fosse o mal ele criou a condição de possibilidade do mal.
Em suma, o mal e o feio no cosmos com o pleno peso conceitual dos termos só
mesmo o não-ser, e como esse último não existe, o cosmos como um todo e em suas mínimas
partes é belo e bom.
Além da corrupção, outra ideia deveras interessante apresentada do De natura
boni 15 que vale destacar, é o fato de que no contexto anterior imediato o pensador de Hipona
adverte que o problema que levam seus opositores Maniqueus a entenderem que criaturas de
menor grau de belezas como o macaco são feias, está no fato de não considerarem o símio em
si mesmo com sua simetria, harmonia entre as partes e na sua unidade, mas apenas em
comparação com criaturas de espécie diferente como o homem, que obviamente por possuir
uma densidade estética mais elevada é mais belo que o macaco. Portanto, diante da disparidade
de beleza entre o símio e o homem consideram indevidamente o primeiro como feio em
comparação com o segundo, como assevera o filósofo:

Entre esses bens, há alguns de ordem inferior que são denominados com
nomes contrários, ao serem comparados com os que são de ordem superior.
Assim, em comparação com a forma humana, que tem maior beleza, a beleza
do macaco é dita disforme; e isso basta para que os ignorantes se equivoquem
e julguem que aquele é um bem, e esta um mal, sem atentar para o modo
próprio e conveniente ao corpo do macaco, à simetria de um e de outro lado
dos membros, à harmonia das partes, o cuidado na sua conservação [...] (De
nat. boni. 14)18.

Notemos na perícope supracitada, que o macaco não é considerado feio por


Agostinho, mas que a: simiae pulchritudo deformitas dicitur, que traduzindo
hermeneuticamente seria: a beleza do macaco é dita disforme, ou considerada como
deformidade. Pelo autor o símio é considerado belo (simiae pulchritudo), mas para alguns a
beleza do macaco é deformitas. Deformitas no contexto em que foi usada, é um substantivo
latino que expressa um conceito estético em que a forma de algo encontra-se alterada tomando-

18
“Sed in his omnibus quaecunque parva sunt, in maiorum comparatione contrariis nominibus appellantur: sicut
in hominis forma quia maior est pulchritudo, in eius comparatione simiae pulchritudo deformitas dicitur: et fallit
imprudentes, tanquam illud sit bonum, et hoc malum; nec intendunt in corpore simiae modum proprium,
parilitatem ex utroque latere membrorum, concordiam partium, incolumitatis custodiam [...]”(De nat. boni. 14)
67
se por base comparativa um padrão estabelecido igualmente estético, assim, deformitas seria
uma deformidade de algo que encontra-se disforme ou feio em relação com seu padrão
adequado de forma. Neste caso particular considerar simiae pulchritudo como deformitas não
é justo, pois, o padrão estético utilizado para se comparar com o simiae é hominis forma, e a
forma humana sendo estética e ontologicamente superior ao símio, consequentemente seria
mais belo. Contudo, poderíamos dizer que diante do até aqui exposto, que o padrão de beleza
adequado para medir a beleza e deformidade do macaco seria um macaco esteticamente
superior, porém, levando-se em consideração o fato de que a fealdade não é uma possibilidade
na estética do hiponenense, não sendo possível encontrar um padrão de símio que seria o belo
para com ele atestar a beleza ou feiúra dos outros símios, esta conclusão não é afirmada na
perícope analisada. O que é dito é simplesmente que as pessoas conduzidas por uma perspectiva
errada ao comparar a forma humana com a do macaco, devem perspectivar o símio em si
mesmo, em seu modo próprio (nec intendunt in corpore simiae modum proprium – não
consideram o corpo do macaco em seu modo próprio). Modum proprium no contexto da
passagem interpretada, quer dizer maneira de ser ou modo de ser, ou seja, os maniqueus
consideram a beleza do símio como fealdade porque não percebem o macaco em seu próprio
modo de ser. Cada entidade do cosmos, independente da sua dimensão na hierarquia da
Natureza, tem sua beleza própria, ou dizendo de outra forma é bela em si mesma, independente
de sua comparação com outras espécies de criaturas.
Nosso filósofo expressa o modum proprium pelo qual os de Mani deveriam julgar
esteticamente os seres mais e menos belos com alguns qualificativos estéticos, notadamente:
parilitatem ex utroque latere membrorum – igualdade, semelhança ou paridade de um e de
outro lado dos membros; e concordiam partium – harmonia ou igualdade das partes. Como
vemos pela maneira em que foram empregados parilitatem e concordiam, são praticamente
sinônimos, assim, entendemos que o autor pretendeu expressar nesse momento a igualdade
proporcional dos membros do símio, ou seja, como cada membro do macaco guarda uma
simetria como o outro membro que lhe é par. E também quis evidenciar que o macaco é belo
pela harmonia entre as várias partes que compõe a sua estrutura, tornando-o um todo harmônico
em suas partes.

68
Assim sendo, além de ficar claro que cada ente da Natureza possui beleza em si
mesmo, igualmente torna-se explícito o fato de que existem belezas de diversos graus na ordem
cósmica, a beleza do macaco, do homem, da árvore, das ondas do mar, da formiga, etc. E na
medida em que a beleza manifesta-se em diversos matizes, com variadas gradações estéticas,
pode-se considerar um ser do mundo mais ou menos belo quando comparado com o outro.
Contudo, embora alguma criatura possa possuir uma beleza muito inferior na hierarquia
cósmica, ainda assim ela será bela, embora menos bela. Como nos acrescenta com apropriadas
colocações Edgar De Bruyne:

Diz-se que o macaco é feio, e belo o homem. Porém a fealdade, ‘deformitas’,


do macaco com relação ao homem, é para o macaco considerado a sua própria
e peculiar figura, verdadeira beleza, dado que o macaco possui igualdade na
estrutura do seu corpo e adequação entre as suas partes. Aqui estão indicados,
com termos contrapostos, graus inferiores e superiores de beleza (1963, tomo
II, p. 300).

Portanto, segundo o texto de De natura boni contra manichaeos que hora


analisamos, é considerada feia também a privação de algum bem ou alguma perfeição ao se
comparar uma criatura inferior à outra de ordem superior. Porém, essa privação de beleza em
determinada criatura, é na verdade bela, na medida em que assim por Deus foi projetada,
cumprindo seu papel teleológico no conjunto da criação: “As privações de algum bem nas
coisas estão ordenadas de tal maneira no conjunto da natureza, que tais privações não deixam
de mostrar-se como cumprindo convenientemente o seu papel aos que sabiamente as
consideram” (De nat. boni., 16)19. Os adversários de Agostinho não atentaram para a
diversidade de belezas no cosmos, e ao contemplarem uma criatura de não agradável aparência
pensavam ter encontrado a inconteste prova de que no cosmos o feio está presente, mas contra
essas assertivas o pensador cristão apóia-se no Neoplatonismo de Plotino para defender a
gradação de beleza na Natureza.
Como dissemos, Agostinho apóia-se em Plotino para enfrentar a problemática
maniqueia, nesse caso em particular na teoria plotiniana de gradação de unidade devido à
despotencialização ontológica pelo afastamento do Uno. Pois, segundo a processão plotiniana

19
“Quae tamen etiam privationes rerum sic ordinantur in universitate naturae, ut sapienter considerantibus non
indecenter vices suas habeant” (De nat. boni., 16).
69
há uma hierarquia ontológica entre os seres, e a gradação de perfeição dos mesmos dependerá
do grau de afastamento ontológico do Uno-bem. Portanto, o Nous ao proceder do Uno possui
um grau menor de unidade que ele, e a Psyqué ao proceder do Nous possui menor perfeição que
sua fonte, e assim sucessivamente. No cosmos sensível também há graus diferentes de unidade
que medem a perfeição dos seres e sua proximidade ontológica com o Uno. Esta unidade dos
seres sensíveis é adquirida por meio da participação da unidade dos arquétipos do Nous,
impressa no mundo pela Psyqué (Cf. En., VI, 9, 1). E essa desigualdade de perfeição contribui
para a bondade do todo do cosmos (Cf. En., III, 2, 3; 14).
Semelhantemente segundo Agostinho, há uma gradação de beleza, bondade ou
perfeição nos seres do cosmos, ou dizendo de outra maneira o cosmos está hierarquizado tanto
ontologicamente como esteticamente, mas isso não pode ser considerado como um mal, pois,
além do fato de que cada ser possuir por mais ínfimo que seja algum grau de beleza, com seu
ínfimo grau de beleza contribui para a beleza do todo. Principiando pela hierarquia ontológica,
segundo nosso Filósofo existe uma ordem hierárquica estabelecida por Deus no cosmos, em
que Deus é o Sumo Ser, e os outros seres hierarquizados são, segundo a proximidade do Ser de
Deus. Sendo assim, teremos a seguinte hierarquia ontológica em ordem decrescente: Deus, o
Sumo Ser e doador de ser; os anjos, que são seres racionais e imortais; os homens, seres
racionais, porém, mortais; os animais20, seres animados, porém, irracionais; as árvores, seres
viventes, mas não animados. Como comenta acerca dessa hierarquia Agostinho em Sobre a
Cidade de Deus, só que em ordem crescente:

Entre os seres que têm algo de ser e não são o que é Deus, seu autor, os
viventes são superiores aos não viventes, como os que têm força generativa
ou apetitiva aos que carecem de tal faculdade. E, entre os viventes, os seres
sencientes são superiores aos não sencientes, como às árvores os animais.
Entre os sencientes, os que têm inteligência são superiores aos que não têm,
como aos animais os homens. E, ainda, entre os que têm inteligência, os
imortais são superiores aos mortais, como aos homens os anjos. Tal gradação
parte da ordem de natureza (De civ. Dei., XI, 16)21.

20
Dentro do reino animal também existe uma hierarquia determinada pela quantidade de ser de cada um, a
quantidade de ser é medida pela gradação dos três atributos ontológicos: “ordem, espécie e modo”.
21
“In his enim quae quoquo modo sunt, et non sunt quod Deus est a quo facta sunt, praeponuntur viventia non
viventibus; sicut ea quae habent vim gignendi vel etiam appetendi, his quae isto motu carent. Et in his quae
vívunt, praeponuntur sentientia non sentientibus, sicut arboribus animalia. Et in his quae sentiunt, praeponuntur
70
Segundo Agostinho, todas as criaturas, e até mesmo o Criador, possuem três
atributos ontológicos: “o modo, a espécie e a ordem”22, quer dizer, esses atributos mencionados
são bens gerais e comuns a todos os seres vivos, inclusive ao Ser supremo. Mas, o que diferencia
um ente vivo do outro na hierarquia de perfeição, é a proporção desses em cada ser. Quer dizer,
nosso Pensador afirma que existe uma gradação de modo, espécie e ordem em cada ente que
determinará o seu grau de perfeição na hierarquia dos seres. Assim sendo, Deus, o Sumo Ser, é
em grau máximo: o modo, a espécie e a ordem, e toda a criação, na medida em que por ele foi
criada, também possui modo, espécie e ordem, e quanto maior o grau desses atributos, mais
perfeita será a criatura:

Tanto as coisas são tanto melhores quanto mais moderadas, especiosas e


ordenadas, e tanto menos bem encerram quanto menos são moderadas,
especiosas e ordenadas. Assim, estas três coisas: o modo, a espécie e a ordem,
são três bens gerais que se encontram em todas as coisas criadas por Deus,
tanto as espirituais como as corporais [...]. Onde se encontrarem estas três
coisas em grau superior, aí haverá bens superiores; onde estas três coisas se
encontrarem em grau inferior, inferiores serão aí também os bens; onde elas
faltarem, aí não haverá bem algum. Igualmente, onde essas três coisas forem
grandes, grandes serão as naturezas; onde forem pequenas, pequenas serão as
naturezas; onde absolutamente não existirem, tampouco existirá natureza
alguma. Logo, toda e qualquer natureza é boa (De nat. boni., 3).23

intelligentia non intelligentibus, sicut homines pecoribus. Et in his quae intelligunt, praeponuntur immortalia
mortalibus, sicut Angelí hominibus. Sed ista praeponuntur naturae ordine” (De civ. Dei., XI, 16).
22
O termo modo provém do latim modus, significando: medida, maneira. Quer dizer maneira como cada ente se
apresenta diante de sua proporção de ser, permitindo assim a distinção entre os diversos entes. Como comenta
Sidney Silveira (2005. p. V): “Potencial, que delimita cada existir determinado, que é o modo ou medida da
perfeição natural”. O termo espécie provém do latim species, e expressa a própria identidade ontológica dos
seres, informando sobre a sua forma ou essência, ou dizendo de outro modo, o termo espécie distingue a
propriedade ontológica na classificação dos seres. Por exemplo: quando falamos que o homem é um animal
racional, o atributo da racionalidade é a espécie, na medida em que informa mais sobre o ser humano que a
animalidade. Como comenta Sidney Silveira (2005. p. V): “Essencial, que constitui o ser, como por exemplo a
alma do homem, identificada como a forma substancial dos indivíduos da espécie”. A nomenclatura ordem
provém do latim ordo, significando: ordem, disposição, arranjo. Logo, a ordem é justamente a hierarquia
ontológica que determina no arranjo dos seres, a subordinação do inferior ao superior, e a subordinação de todas
as coisas a Deus. Como comenta José Ferrater Mora: “Para Agostinho, a ordem (ordo) é um dos atributos que
fazem que a criação de Deus seja boa. Deus criou as coisas com forma, medida e ordem (species, modus, ordo).
A ordem é uma perfeição da perspectiva metafísica, a ordem é (ou aparece como) a subordinação do inferior ao
superior, do criado ao Criador” (2001, tomo III, p. 2163). Em suma, quando Agostinho fala da gradação do
modo, espécie e ordem, está falando justamente da hierarquia ontológica dos seres, e dependendo de como esteja
ordenada o modo e a espécie, a criatura será mais ou menos perfeita, em outros termos, a ordem estabelece a
hierarquia ontológica mediante a gradação do modo e espécie nos seres.
23
“Omnia enim quanto magis moderata, speciosa, ordinata sunt, tanto magis utique bona sunt: quanto autem
minus moderata, minus speciosa, minus ordinata sunt, minus bona sunt. Haec itaque tria, modus, species et
71
Portanto, a gradação de ser que tornam algumas criaturas superiores às outras não
é um mal e sim um bem, na medida em que por Deus assim foi criada, e cada criatura, o mais
ínfima que seja na ordem do cosmos, é útil para o bom funcionamento do todo e, portanto, um
bem.
Em suma, entendemos ter ficado suficientemente estabelecido que o cosmos
agostiniano é hierarquizado ontologicamente, existindo assim seres de graus de perfeições
diversas. A beleza do cosmos segue o mesmo caminho, visto que existem seres de diferentes
graus de beleza na Natureza. De forma semelhante a gradação ontológica, na hierarquia estética
Deus é o belo no máximo grau, e todas as criaturas serão mais belas ao em suas estruturas
possuírem maiores níveis de categorias estéticas que as tornam mais próximas da beleza de
Deus.

ordo, ut de innumerabilibus taceam, quae ad ista tria pertínere monstrantur; haec ergo tria, modus, species,
ordo, tanquam generalia bona sunt in rebus a Deo factis, sive in spiritu, sive in corpora. [...] Haec tria ubi
magna sunt, magna bona sunt: ubi parva sunt, parva bona sunt: ubi nulla sunt, nullum bonum est. Et rursus ubi
haec tria magna sunt, magnae naturae sunt: ubi parva sunt, parvae naturae sunt: ubi nulla sunt. nulla natura
est. Omnis ergo natura bona est” (De nat. boni., 3).
72
REFERÊNCIAS

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Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2005. p. 499-591 (Coleção Patrística, n. 21).
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1987. 213 p.
______. A natureza do bem. Trad. de Carlos Ancêde Nougué. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2005. 81
p. (Edição bilíngue Latim Português).
______. Confissões. 5. ed. Trad. de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulinas, 1984. 418 p.
______. O livre-arbítrio. Trad. de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. 294 p. (Coleção
Patrística, n. 8).
______. A cidade de Deus: contra os pagãos. 4. ed. Trad. de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes; São
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AGUSTIN, San. Replica a la carta llamada “Del Fundamento”. In: Obras completas de San Agustín.
Trad., introd. y notas de Pio de Luis. ed. bilíngue. Madrid: La Editorial Católica / BAC, 1986, v. 30, p.
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______. De las costumbres de la Iglesia catolica y de las costumbres de los Maniqueos. In: Obras
completas de San Agustín. Trad., introd. y notas de Teófilo Prieto. ed. bilíngue. Madrid: La Editorial
Católica / BAC, 1948, vol. IV, p. 235-451.
DE BRUYNE; Edgar. Historia de la estética: la antiguidad cristiana - la Idad Media. Trad. de
Armando Suarez. Madrid: La Editorial Catolica/BAC, 1963. Tomo II, p. 267 - 363.
MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. Trad. de Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola,
2001. tomo II, III, 3132p.
PEREIRA, Isidro. Dicionário grego-português e português-grego. 7. ed. Braga: Livraria Apostolado
da Imprensa, 1990. 1054p.
PLOTINO. Enéadas. Introducciones, traducciones y notas de Jesús Igal. Madrid: Editorial Gredos,
2008. liv. III, IV. 559p.
SILVEIRA, Sidney. Santo Agostinho e o mal como privação de bens naturais. In: AGOSTINHO,
Santo. A natureza do bem. Trad. de Carlos Ancêde Nougué. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2005, p. I –
XXXI.
SVOBODA, Karel. La estética de san Agustín y sus fuentes. Trad. de Luis Rey Altuna. Madrid:
Librería Editorial Augustinus, 1958. 350 p.

73
Antônio Henrique Campolina Martins

RESUMO: Este artigo quer ser um estudo sistemático sobre a terminologia antropológica
(anima, corpus, spiritus) no texto da Regula Magistri. Ele mostra como esta tricotomia de cunho
helenístico se articula em nível moral e dual: anima-corpus ou anima-spiritus. A alma (anima)
é o princípio de liberdade tanto nas Enéades de Plotino quanto na Regula Magistri, a
possibilidade concreta do homem se encontar vinculado ou ao corpo ou ao espírito; a liberdade
que o condena ou que o resgata.

ABSTRACT: This article is intendend to be a systematic study of the anthropological


terminology (corpus, anima, spiritus) in the text of the Regula Magistri. It shows the way this
Hellenistic trichotomy articulates itself at the moral and dual level: anima-corpus or anima-
spiritus. The soul (anima) is the principle of liberty in both Plotinus’ Enneads and the Regula
Magistri, man’s real possibility to bind himself to the body or to the spirit; the liberty that
condemns or restores him.

Por Regula Magistri (RM) entende-se a fonte imediata e primária da Regula


Benecditi (RB), escrita perto de Roma, na metade primeira do século VI. Também redigida na
mesma zona de influência romana, entre 530 e 560, a RB enriquece a obra do Mestre,
recorrendo diretamente a fontes mais antigas, tais como Pacômio, Basílio, as Regras dos Padres,
e sobretudo Agostinho. Esta tese da dependência da RB com relação à RM foi objeto de uma
verdadeira guerra literária empreendida por numerosos eruditos de diversos países e fez com
que a RM, desde mais ou menos quarenta anos atrás, passasse a ocupar o primeiro lugar na
investigação filológica e paleográfica da RB. O texto completo da RM se encontra em três
manuscritos e fragmentariamente em alguns outros. Hoje pode-se ler a RM na edição
diplomática do Parisinus latinus 122205 e mais comodamente na edição crítica, baseada no
mesmo códice, de Dom Adalbert de Vogüe, a saber, La Règle du Maítre, 3 vols. SC 105-107
(Paris 1964-65).

74
1 - A Terminologia antropológica helenística da RM
O estudo da terminologia helenística sobre o homem no texto da RM se desenvolverá
da seguinte maneira:
Para estudarmos cientificamente a terminologia antropológica helenística da RM nos
deparamos com a necessidade de estabelecer um pressuposto metodológico: É necessário que
exista uma terminologia explícita no texto da RM ordenada a uma concepção antropológica
determinada. Procuraremos caracterizar esta concepção que nasce da articulação em Plotino.
Esta articulação em Plotino (1.) funciona como pressuposto metodológico e como um ponto de
apoio sistemático e paradigmático para o estudo de uma articulação desta terminologia no texto
da RM, onde o empreenderemos em nível de terminologia e de acepção (2.).
1.1 - Da necessidade da presença explícita de uma terminologia antropológica
helenística ordenada a uma concepção antropológica determinada como pressuposto
metodológico
Uma terminologia antropológica helenística, explicita num texto determinado, para
ser considerado como tal , deve estar ordenada a uma mentalidade antropológica helenística.
Em se tratando da RM, os termos que se nos revelam como sendo uma terminologia
antropológica helenística explícita são corpus, caro, anima, spiritus. Mas como deduzir a partir
daí que estes exprimem uma mentalidade helenística e, por conseguinte, uma concepção
helenística num sentido bem determinado ? Ao nos fazermos esta pergunta defrontamos com
uma dificuldade. A mentalidade helenística é uma fenômeno muito vasto que abrange um
número grande de sistemas filosóficos possuindo nuances diferentes segundo os mesmos
sistemas ou filósofos e as épocas nas quais estes se inserem. Assim, poderíamos, por exemplo,
estudar estes termos característicos da RM em um dos maiores representantes da Filosofia
Ática, a saber Platão. Poderíamos estudar corpus, caro, anima, spiritus de modo evidente na
RM em Platão, enquanto neste filósofo se articulam de modo determinado, conferindo-nos uma
acepção também determinada. Optamos, entretanto, por um outro modo, mediante o qual se
cristaliza a mentalidade helenística. Optamos pelo estudo de corpus, caro, anima,
spiritus segundo a percepção plotiniana e o fizemos pelas seguintes razões:
E Plotino o maior representante da filosofia do helenismo, a filosofia que exerceu uma
influência grande nos Padres contemporâneos à RM e à RB. O exemplo mais frapante é a
influência de Plotino sobre Agostinho. Evidentemente não queremos aqui dirimir problemas de
75
dependência literária da RM com relação a Plotino. Queremos, sim estudar um modelo
antropológico este que em Plotino atinge o auge de sua clareza. E estamos assim diante da outra
razão pela qual optamos por Plotino. É precisamente neste filósofo que a tricotomia corpo,
alma, espírito atinge o ápice em termos de sistematização e clareza. Podemos mesmo dizer que
o grau de nitidez e de reflexão organizada desta tricotomia em Plotino é único. Estudar, pois, a
articulação de corpo, alma, espírito segundo a percepção tricotômica plotiniana é estudar um
modelo, é estabelecer um paradigma, cuja acepção funcionará como hipótese de trabalho a ser
comprovada no texto da RM.

1.1.1 - Uma visão da articulação de corpo, alma e espírito na percepção tricotômica


plotiniana

A concepção que surge da tricotomia plotiniana tem suas raízes na teste clássica de
Platão: o ser corpóreo, espaço-temporal, é o ser inferior, é a cópia da realidade, é o mundo
sensível ao qual a corruptibilidade está intrinsecamente inerente. O mundo inteligível, ao
contrário, constitui o ser verdadeiro, incorruptível, eterno, uma perfeição suficiente em si
mesma, sem nenhum defeito, nenhuma falta ontológica.
Ora, se em Platão a natureza inteligível e a natureza sensível se opõem e se contradizem
em termos de realidade e de cópia, de incorruptibilidade e de corruptibilidade, de perfeição e
insuficiência, nas Ennéades de Plotino, a natureza inteligível e sensível se diferenciam como
em Platão mas também se inter-relacionam. E é esta relação nesta divisão ontológica de duas
naturezas que constitui como que o ponto característico e fundamental na antropologia
de Plotino. Existe, portanto, um termo médio, algo que une, que liga, que está entre o inteligível,
o ser na sua medida perfeita e verdadeira, e o sensível, o ser corruptível e imaginário, o ser
insuficiente. Entre os dois termos opostos há um terceiro que por sua vez os liga numa relação,
isto é, faz com que o sensível participe do inteligível. Este lógos mediador que sai do sensível
para o inteligível chama-se na filosofia plotiniana Alma.
Plotino dedicou à alma toda a sua Ennéade IV. Deve-se entretanto dizer que essa
categoria antropológica está presente em cada página das Ennéades1 . Em se tratando da alma
humana a primeira distinção que o filósofo faz é a de alma hipostática, alma do mundo e alma
do homem, distinção que parece ser só gnoseológica, ou melhor, metodológica segundo os
76
comentaristas de Plotino. Como nos diz H. Blumenthal, “frequently asserts that all souls are
one, a unity which includes both the world soul and the soul of each individual”.2
O mesmo afirma V. Cilento quando escreve:

“Gli tutta la realtá è vita spirituale única. Plotino puó passare dall’anima
umana all’anima del cosmo e da questa all’anima in se, perché l’Anima è
sempre una e sola. Noi siamo nell’anima, non è l’Anima in noi; o meglio,
noi siamo l’Anima; l’Anima è noi”.3

Pois esta Anima que é o homem e que é ao mesmo tempo a terceira Hispóstase do único Divino
está, ora ligada ao espírito4 do qual procede, ao eterno , ora ligada ao corpo, à matéria. A alma
é, pois, um centro, um eixo metafísico entre o que é real, perfeito incorruptível. Com outras
palavras. E. Brehier explica o que acabamos de afirmar:

“La theorie de la procession pose l’âme comme une activité spirituelle


hypostasiée qui s’étend depuis l intelegible jusqu’au monde sensible. Mais
cette hypostase qui constitue notre âme, ce n’est pas nous-mêmes; à cette
realité existant en soi qui constitue notre âme s’ajoute notre propre attitude à
son égard; nous pouvons être en elle à des niveaux différents; nous pouvons
nous séparer dela partie supérieure. Mais qu’est donc ce nous qui est distinct?
Il semble parfois que Plotin ait l’intuition d’une activité proprement subjective
qui, elle, ne peut se transformer en chose objet... Ainsi, malgré la logique du
système de la procession, notre activité propre, notre attitude spirituelle
subjective, si l’on peut dire, tend chez Plotin, à se dégager de cette activité
spirituelle transfrmée en chose, qui est l’hypostase”6.

Assim, podemos inferir que, para Plotino, a alma individual tem algo de inferior que está ligado
ao corpo e algo de superior que está ligado ao espírito7 . O que caracteriza a alma em Plotino é,
pois, esta possibilidade de se encontrar ora vinculada ao corpo, ora vinculada ao espírito. A
liberdade, consiste então, em fazer a alma realizar a sua própria essência, isto é, fazê-la sair do
corpo para vincular ao espírito. Como nos diz Plotino, o homem enquanto é corpo está muito
longe da essência8 . A alma deve estar, portanto, sempre orientada no sentido de atingir a
perfeição, a verdadeira vida dianoética que é sempre destacada do corpo e da vida sensitiva.
Consequentemente a pessoa se realizam a medida em que, através de um processo de
interiorização, procura se libertar da sua condição corpórea e se vincula ao que existe nela de
inteligível através da contemplação. É necessário, pois, estabelecer uma ruptura com tudo que
é corpóreo, renunciar a tudo o que venha prejudicar o impulso da alma em direção à verdadeira

77
realidade, à realidade do alto, espiritual, incorpórea. Áfele panta9 é a célebre advertência
plotiniana.

1.1.2 - Consequências da percepção tricotômica plotiniana na dinâmica do estudo


da antropologia helenística no texto da RM

A partir deste estudo de um aspecto da antropologia de Plotino10 podemos afirmar que,


diante desta relação entre o sensível e o inteligível (critério para qual o filósofo está
constantemente voltado), nos defrontamos com uma tricotomia, e de outro com uma dualidade.
Tricotomia expressa pela hierarquia plotiniana do corpo, da alma e do espírito, que se
funda, por sua vez, num processo dinâmico no sentido de que se deve resolver na medida em
que se articula. A alma deve deixar o corpo para se vincular ao espírito. A resolução ou a
articulação deste processo tricotômico ou desta hierarquia implica necessariamente numa
dualidade. Corpo e alma não se integram. Ou a alma está no corpo ou no espírito. A alternativa
se impõe como razão de ser da relação que é a base de tudo na antropologia plotiniana.
Eis aí, em termos sintéticos, a percepção tricotômica plotiniana, tricotômica e dual. Tal
estrutura, contendo estas duas conseqüências bem precisas, características de uma mentalidade
helenística determinada, entra, como já dissemos, na lógica interna do artigo como um
paradigma, como uma hipótese de trabalho a ser constatada no texto da RM.

1.2 - O modelo antropológico tricotômico da RM

A RM considera o homem como um composto de três princípios: corpo ,alma e espírito.


O elemento inferior será muitas vezes chamado carne. Entre o elemento desregrado, que está
sempre em oposição à lei de Deus e onde reina o pecado (corpo-carne), e o elemento sadio, pelo
qual o homem ama a Deus e cumpre a sua vontade (espírito), encontra-se um termo médio cuja
função demiúrgica estudamos sistematicamente em Plotino , a alma. Esta obedece ora a um ora
a outro princípio e o drama da vida humana cristã e monástica está precisamente na
possibilidade de oscilação da alma entre estes dois pólos opostos, carne-corpo e espírito. Neste
sentido, o modelo paradigmático de Plotino encontra-se presente na RM.

78
1.2.1. Constatação do modelo antropológico tricotômico no texto da RM em nível
de terminologia

Na RM , a alma é não só princípio , mas o núcleo da vida humana. É ela quem faz o
homem existir, mover-se, agir e tudo o que se nos acontece tem como princípio, em termos de
responsabilidade e de controle, a alma. Poderíamos fazer aqui inúmeras citações onde a alma
tem prioridade sobre tudo o que é matéria no mosteiro Mestre. Nós nos delimitaremos, contudo
, às mais significativas no sentido de mostrar, explícita e diretamente, a importância do
termo alma como núcleo do ser e do agir humano.
Das inúmeras incidências de anima na RM, onze aparecem no capítulo oitavo. Trata-se
do capítulo no qual o termo anima sobressai por excelência. Em nenhum outro o termo aparece
mais de 5 vezes. Desproporcionalmente, no capítulo oitavo , o vocábulo se manifesta de modo
singular. Podemos mesmo dizer que anima é a palavra em torno da qual gira a doutrina do
capítulo oitavo na RM e, por consequência, a antropologia da mesma regra. Por isto mesmo,
este é o capítulo mais importante para o estudo da antropologia na RM. Tratando da
taciturnidade dos discípulos, como deve ser e até onde vai, aqui , a carne de nosso próprio corpo
se apresenta como uma espécie de morada para a alma, destinada a serviço da vida como a
bainha está a serviço da espada.

RM 8,6:
“caro ...quasi domus...animae.”

A sede da alma, julga a RM esta situada na raiz que é o coração, raiz que possui no
corpo dois ramos vulneráveis ao pecado : de um lado , os olhos, de outro a língua. Por
conseguinte , tudo o que se agita e se move no homem é obra da alma no corpo.

RM 8,7:
“Oculorum foraminibus deintus animam ... respicere.”

RM 8,9:
“animae ...est actus in corpore.”
79
Assim se explica o fato de que, quando a alma deixa o seu domicílio (o corpo),
efetua-se no homem uma suspensão de tudo o que graças à alma fazia em vida. O que sobra
então no homem sem alma? Terra, só terra. Ora , esta mesma terra existe no homem enquanto
ele vive e só a alma pode mantê-la em pé. E se é a alma que opera no homem a visão dos olhos
e a palavra da boca, a audição dos ouvidos, ela deve por conseguinte, fechar as janelas dos olhos
às concupiscências, baixar o olhar e fixá-lo no solo e, logicamente, a boca às palavras perversas.
Assim está fundamentada a doutrina do silêncio na RM. E neste contexto o termo anima aparece
8 vezes :
RM 8,11:
“migrante ...anima ...ab anima quae migravit.”
RM 8,12:
“animae ... rigore erecta.”
RM 8,14:
“animae... migrante rigore.”
RM 8,15:
“haec anima ... auricum agit auditum”
RM 8,17:
“nec quaecumque viderit anima concupiscit”
RM 8,20:
“habet anima nostra... portam oris.”
RM 8,21:
“animae non excuset anima factorem suum.”
RM 8,21:
“animae pro Deo necessaria.”

Ora , a partir do estudo do termo anima no capítulo oitavo da RM vê-se que o silêncio
é, na mentalidade da mesma regra monástica, fundamentado numa antropologia onde a alma e
corpo se distinguem dualisticamente com prioridade absoluta daquela sobre esta. O princípio
determinante, caracterizante do homem, é a anima; o corpus é terra.

80
O mesmo sucede no capítulo décimo, no contexto da doutrina da humildade. A RM 10
tem início com aquela escada de Jacó ereta até o céu onde os lados são o nosso corpo e a nossa
alma. Pois esta escada ereta até o céu , na RM, termina no céu. Todo o capítulo décimo termina
com a descrição da incorruptibilidade da alma que chega ao ápice da escada, livre de toda a
paixão, no mundo de felicidade e de beleza , ou seja, na celeste pátria dos santos. A descrição
minuciosa da alma fora do corpo na RM 10,92-123 é, pois, o vértice do capítulo, o alvo que dá
sentido à doutrina da humanidade na Regra do Mestre.
Mas na RM a alma não é só princípio de vida. É , por excelência , o princípio de
liberdade. Não podemos nos esquecer de que estamos diante de duas aspirações rivais. E a alma
é precisamente o termo que fundamenta uma possibilidade,isto é, a possibilidade da existência
de uma oscilação na vida do homem se fundamenta na alma. O homem pode estar ora vinculado
ao corpo, ora ao espírito. E estamos, E estamos , pois, diante da tricotomia. Passemos à análise
dos textos da RM que nos apresentam esta oscilação ou a possibilidade desta oscilação.
Na RM thp 28, encontramos já de modo claríssimo os três termos da tricotomia
perfeitamente articulados.
O espírito vem realizar no homem a vontade do Senhor a fim de que a alma não trafique
mais a carne transviada: “Eligit enim spirítus,ut voluntas ni nobis Domini fiat, ut iam non
perficiat anima quidquid cum prava carne concupiscens sibi suaserat”.
Na RM 1,80, a mesma articulação se faz presente em termos muito nítidos :
“Haec tria Domini dona concessa ipsi conveniunt ,Qui Dei voluerint, non suam
facere voluntatem, quia aliud nobis in spirítuimperat, aliud carocogit in anima, et quis a quo
victus fuerit, ipsius et servus est.”

Na RM 3,11, no contexto dos instrumentos espirituais com que podemos exercer a arte
divina, é necessário castigar o corpo para o bem da alma.
Assim , RM 3,11:
“corpus pro anima castigare.”

Na RM 7,34, no contexto da obediência, o autor identifica a via larga com o prover as


necessidades do corpo em detrimento da alma.
RM 7,34:
81
“(...) et acceptum ducentes, ut cogitationibus suis corpori eorum magis providetur quam
animae(...).”

O capítulo décimo-primeiro é dedicado aos prepósitos do Mosteiro. Estes são


encarregados da vigilância espiritual dos irmãos. Cotidianamente, dia e noite, a todo o instante,
eles devem velar para que a carne não prevaleça sobre o espírito.
Assim RM 11,85:
“Item si viderit fratres fluxis corporibus vel resoluto sensu
se aliqua in levitate extollere ,moneat eos praesens praepositus, dicens.”

E na RM 11,98:
“(...) et causa Dei prevalescentibus vitilis abolescat , quando plus carnis
sumptuicurritur quam causae spiritus laboratur.”
Na RM 13,15, encontramos espírito enquanto resiste com carne.
“Adstare enim tibi habet in iudicio nostra monitio vel tuus spirítus, cui sum carne per
propiam voluntatem repugnasti, ante tribunal tremendi iudicii, dicens.”
Na RM 16,55, prescrevendo sobre o celereiro do Mosteiro, nos diz o autor que a carne ama
seus próprios interesses:
“(...) ne forte, quomodo caro amat quae sua sunt ,propter aliquem adpetitum vel
subministrationem gulae causa Dei praetermittatur (...).”
O capítulo vigésimo quarto é dedicado ao leitor semanário no refeitório. Aí se prescreve
que enquanto se lê a regra durante a refeição, a fim de manter viva a atenção de todos, o Abade
interrogará aqueles que quiser, de todas as mesas, sobre o que foi lido. Assim, cada vez que o
irmão repetir o que ouviu , constatar-se-á que ele deu mais atenção a leitura que a seu estômago;
quando não o fizer, julgar-se-á ter ele amado mais a carne do que a alma.
Assim RM 24,36-37:
“(...) et cum surdus neglegens non narraverit quod audivit, plus carnem iuducetur
amasse quam animam. Qui mox de neglegentia ab abbate iuste corripi debet, ut dum
unusquisque frater interrogatus timet erubescere , mentem suam alibi non faciat aberrare, sed
in hoc intendat quod legitur.”

82
No capítulo vigésimo sétimo , em se tratando da quantidade de bebida, diz-nos o autor
que se à mesa um dos discípulos abstém-se de sua ração de bebida regulamentar ou de um
pedaço de pão que lhe sobre, mostrar-se-á mais amigo do espírito do que da carne.
Assim ,RM 27,47-58:
“Iam si aliquis discipulorum de constituta mensura potus aut panis sui remanente
fragmento recusare aliquantulum ad mensam voluerit , spiritum plus agnoscitur amare quam
carnem et frenum castitatis inponit luxuriae,”
E no versículo seguinte a dicotomia é explicitada:
RM 27,59:
“Nam cum hoc ipsud recusat abstinens frater, levanti cellarario dicat lente: Suscipe et
hoc, quod negatum est carni, proficiat Deo.”
Na RM 28,18,em se tratando da prescrição do jejum para os enfermos, diz-nos o autor
que, se estes o quebram, é por causa fraqueza corporal, mas o espírito deve sempre desejá-lo.
Assim, RM 28,18:
“Nam ideo infirmis resolui ieiunia diximus, propter fragilitatem corporis, per quam non
possunt adinplere quod cupent, dicente scribtura: spirítus promptus, caro infirma.”
Na RM 31, os dois encarregados de despertar os irmãos para o ofício divino cuidarão
de consultar o relógio noite e dia. São prescritos dois, pois se um deles, em razão da fragilidade
da carne, deixar-se vencer pelo sono, o outro o substitui.
Assim, RM 31,10-11:
“Ideo enim excitatio duobus committitur, ut et vicibus vigilent, et si unus
secundum carnis fragilitatem fuerit somno oppressus, alius forte vigilans constituta hora excitet
neglegentis collegae officium.”
Prescrevendo sobre os ofícios divinos durante a noite (RM 33) diz-nos o autor que os
irmãos não devem levantar-se antes que a digestão seja feita pois a cabeça ainda pesada e os
arrotos da digestão afungentariam os carismas do Espírito Santo. Assim, o que deveria ser
suave torna-se amargo por causa das aflições infligidas na carme que embora esteja a serviço
de Deus , todavia procura nesta vida seu próprio interesse.
RM 33,21-23:
“in ipso adhuc incocti incendio, non suscitati , sed potius occisi cum incoati fuerint
fratres surgere, gravi adhuc capite et indigesto ruptu effugent Spiritus Sancti Charismata, et
83
cum amaricatur carni eorum , quae quamvis militet Deo tamen in hac vita interim quaerit quae
sua sunt , etsi non in omnibus, aliquantis tamen amarum videbitur esse pro Deo quod dulce est,
(...).”
E por conseguinte um ou outro dos irmãos poderia não amar a Deus com toda a sua
alma, pois seria levado a satisfazer a carne através do sono.
RM 33,24:
“(...) et non ex integro animo amet Deum frater in psalmis quando per somnum cupit
satisfieri carni.”
Ainda no mesmo capítulo, prescrevendo sobre os ofícios noturnos durante o verão,
reduz as 16 imposições dos noturnos a 12; as 24 genuflexões a apenas 20 e argumenta dizendo
que “somos obrigados a isto pela brevidade da noite, pois o sono quando breve parece suave
à carne.”
RM 33,38:
“(...) quia somnus, cum brevis est, dulcis videtur esse carni, cum corpus hominis prolixi
fatigatum labore diei minori requie brevi requiescit in nocte.”
Na RM 44, dizendo-nos o autor como se deve salmodiar durante a noite, afirma que
diminuir o sono para escutar o que lê, ou ler o próprio irmão, assim como fazer um trabalho à
parte é provar amar mais o espírito do que a carne.
Assim, RM 44,17-18:
“Nam si aliquis quasi spiritalis vult de suo somno subripere, ut audiat legentem aut ipse
legat aut aliquid operetur peculiatiter, cognoscitur per bonum liberum arbitrium spirítum
prorsus amare quam carnem.”
Na RM 53, onde o autor nos fala de abstinência de alimentos e de bebida na quaresma
diz-nos que a quem tiver recusado algo a seus desejos e à sua carne aqui na terra será permitido
à sua alma farta-se das delícias divinas que valem muito mais no céu.
RM 53,24:
“Sic et qui in praesenti vita saeculi huius aliquid suis vel carni subduxerit, in illo saeculo
abundanter licet animae de melioribus divinis deliciis in perpetuo saginari.”
Na quinta- feira Santa, os irmãos farão a tonsura e se lavarão assim como quebrarão o
jejum com relação ao que abstiveram exceto da carne sangrenta de animais terrestres. Quanto

84
à carne de voláteis, embora seja permitido comê-la , a alma de cada um decidirá. O melhor será
evitá-la.
Assim, RM 53,26-28:
“In Cena vero Domini tondant capita sua et laventur et omnia, quae abstinebant,
accipiant praeter carnes sanguinarias terrae. De carnibus vero volucrum vel terrenis pinnatis et
quadrupedibus manducare, fratribus abbas velle comedere bonum esse praedicet, abstinere
vero melius esse hortetur. Iam unusquisque qualem a Deo in anima sua meruerit gratiam
secundum mensuram suae abstinere."
A prescrição será feita em outras palavras nos versículos 31-33. A alma é sempre quem
governa o homem, quem decide, e o elogiado será sempre quem rompe com a carne:
RM 53,31-33:
“A Pascha usque Pentecostem et a Natale Domini usque in Epiphaniam in comedendae
carnis arbitrio licentia tribuatur . Nam hii fratres, qui comesuri sunti carnes, de suis decadis in
suas secus se sedeant mensas et semote cocta de carnibus pulmentaria eis in sequestratis ferculis
inferantur, ne abstinentium videatur munditia inquinari, ut comedentes agnoscant quanta sit
inter utrosque distantia, Qui aut suis serviunt desideriis aut Qui imperant ventri.”
Assim no mesmo capítulo quinquagésimo terceiro, crucificar a carne com o Cristo é tê-
lo encerrado na alma. Existe aqui uma ilusão pejorativa aos judeus que procuraram o Cristo
para fazê-lo sofrer a paixão. A citação deste judeus é paralela aquele irmão que não quis
crucificar a sua carne com o Cristo, ou encerrá-lo na alma:
RM 53,55-57:
“Et cum qua fronte futura octaba Paschae in dominicae resurrectionis victoria desideret
aepulari , qui in tristitiae causam ipsius passionis una die noluit suam cum Christo crucifigere
carnem? Sacramenta vero altaris in patina maiore vitrea finiantur , ut cum sexta feria ludaei
ad passionem Christum quaesierint , sit ipso die in mentibus nostris reclusus, ut sabbato nobis
per resurrectionem in novo sacramento appareat.”
Na RM 80 (Se os irmãos sofrem uma polução dormindo devem comunicá-la ou não),
afirma o autor que aqueles aos quais isto acontece freqüentemente infligem à sua carne a
mácula que resulta de desejos obcenos que por sua vez mancham e tornam a alma impura.
RM 80,9-11:

85
“Tales enim frates Qui frequenter extiterint, sciant se non occasione sed voluntate sua
sibi excommunicationem accersire. Et a corpore Dei ipsi se faciunt alienos, Qui cogitationibus
suis ipsi sibi adescant libidinem, cum carnem suam faciunt per turpia desideria sordidare, quia
sicut tinea in vestimento et vermis sub ligno corrumpit et devorat, sic et cogitatio turpis maculat
et animam sincerem non facit. Ergo hii tales in spiritu esse creduntur apud Deum, quales per
reatum inventi sunt apud lectum. Nam dicit sancta scribtura: Perversae enim cogitationes
separant a deo.”
Contra vontade própria, prescrevendo sobre o vestuário e o calçado dos irmãos (RM
81), a articulação caro-anima-spiritus na perspectiva tricotômica é perfeita:
Assim, RM 81,17-20:
“Hoc ideo, ut non extollatur propria in frate voluntas, quia quidquid ei anima petit , ei
magis dari non debet . Quia contra desideria carnis spirítus sentit, ideo spirítalis homo Dei est,
non carnalis.”
Na RM 90 (Quando um leigo entra no Mosteiro não deve mudar suas vestes, nem dar-
lhe a tonsura religiosa antes de um ano), o autor nos diz que o corpo é a terra e a vontade
própria é o canal e provém do corpo.
RM 90,46-53:
“Ergo omnia debet pro Domino sustinere, Qui eius cupit militare scolae. Et tanquam
aurum lima et malleis et igne fornacis probetur, ad diadema Dei et coronam dominicam
profuturus, quia cum propriam non fecerit aliquis voluntatem, cogitur facere cui cottidie in
oratione dicimus: Fiat voluntas tua sicut in caelo et in terra. Terra enim est corpus nostrum, cui
dixit Dominus: Terra es et in terra ibis. Quia omnis propria voluntas carnalis est et a corpore
descendit , ideo nos cogit inlecebra et iniusta conmittere, quae ad tempus parvum vitae huius
videtur carni per desideria esse dulcis, amarior felle futura in posterum et in aeternum.”
A ruptura com esta vontade corpórea ou carnal se dá através da realização cotidiana
da obediência.
RM 90,55-59:
“Quae voluntas cum fuerit nobis in scola monasterii a maioribus tradita et per
oboediantiam a nobis fuerit adínpleta cottídie, iuste nobis credamus insuper gratiam e eius
posse nos coronare, quia super eius fecimus voluntatem, non mostram, et nunquam nos vel

86
desideria carnis praetulimus amori eius et propter eum etiam parati sumus perdere animas
nostras in praesenti hoc tempore, ut mereamur eas in futuro invenire.”
Uma outra obsessão no texto da RM que vem confirmar de modo patente a presença
da tricotomia nesta mesma regra é a impertinência do seu autor com relação ao termo spirítalis.
Este termo aparece inúmeras vezes na RM. Aqui interessa-nos as incidências nas quais o
termo espiritual indica uma situação antropológica determinada, isto é, o estado do homem
no qual a alma se acha vinculada ao espírito, ou a expressão da condição para que tal
vinculação se realiza. Assim por exemplo:
RM 15,21:
“Vos qui spiritales estis.”
RM 23,48:
“Si spiritalis est.”
RM 28,3:
“Nos aqui sumus spiritales”.
RM 44,17:
“Si aliquis quasi spiritalis vult”
RM 55,13:
“ne...in despertatione...spiritalis frater versetur”
RM 5,1:
“cum frates spiritales...ambulant.
RM 56,15:
“derelicto...fratribus spiritalibus trivio”
RM 57,20:
“frates spiritales positis visitent”
RM 57,23:
“a monasteriis te cellulis spiritalium”
RM 61,5:
“si spiritalis frater...petat”
RM 61,8:
“primae petitioni spiritali ad manducandum”
RM 61,12:
87
“secundae petitioni spiritalis fratis”
RM 62,5:
“ab scitis vel spiritalibus fratribus”
RM 63,1:
“fratres spiritales...sciant”
RM 71,”T:
“si debeant frates spiritales...orare”
RM 71,1:
“cum...fratribus spiritalibus occurrerint”
RM 78,9:
“cum aliquis...spiritalis advenerit”
RM 78,25:
“qui spiritales sunt hospites”
RM 79,4:
“cum putantur hospites spiritales”
RM 80,4:
“si...magis spiritalis est”
RM 81,20:
“spiritalis homo Dei est non carnalis”
RM 83,13:
“si spiritalis sunt”
RM 85,3:
“spiritales a saecularibus...separari”
RM 86,8:
“spiritales conversi ...non implicant”
RM 86,25:
“cura...per spiritales fratres excolere”
RM 83,63:
“quasi ...spiritalis Caesar designatus”

88
A partir desta análise detalhada dos termos caro, corpus, anima e spirítus articulados de
uma maneira precisa, assim como do termo spiritalis, podemos dizer que, em termos de
constatação terminológica, a tricotomia em questão existe de modo claríssimo no texto da RM.

1.2.2. A acepção antropológica que brota desta tricotomia no texto da RM


Se na primeira citação por nós analisada no parágrafo anterior (RM 8,6) mostramos
como a alma é no homem o princípio fundamental para o qual tudo converge, do qual nele tudo
recebe vida e existência, e ao qual está relacionado, na última citação em que tratamos dos
termos caro, corpus, anima spirítus articulados, (RM 90,46-59), nós nos deparamos com a
afirmação de que o corpo é apenas terra e pó. Entre a primeira e a última citação analisadas,
uma série de incidências nos mostram que este corpo que é terra e pó é também responsável
pelo que existe de desregrado no homem, é vinculado ao pecado e, portanto, oposto ao espírito
que é vida graça e amor. Assim, o dever da alma é deixar o corpo e vincular-se ao espírito.
Através destas citações analisadas vemos que esta articulação aparece de modo muito bem
determinado em todo o texto da RM. Entretanto, alguém poderia objetar: a sistematização da
mesma articulação que nos fornece uma concepção em Plotino não se encontra aqui. De fato,
não existe no texto da RM uma reflexão sistemática em torno da tricotomia. Nós mesmos
afirmamos que o grau de sistematização desta tricotomia, em Plotino é único e paradigmático
e é esta precisamente a causa pela qual Plotino nos interessa. Por outro lado, o autor da RM não
é filósofo. Não obstante, a tricotomia está aí muito presente. Se o espírito não se encontra
explícito em cada citação, acha-se implicitamente suposto ou através de uma preferência
explícita da alma com relação ao corpo-carne ou através da articulação na linha da resolução
plotiniana. A possibilidade do homem-monge estar ora vinculado à carne, ora ao espírito é
constante e constitui como que o seu drama existencial. Se assim o é, podemos então dizer que
a alma é aquele princípio de liberdade que faz de cada ação do monge uma decisão. Percorrendo
as incidências da hierarquia tricotômica na RM , vimos que em cada decisão do irmão ou do
discípulo, da mais importante à menos significativa, a opção se concretiza numa escolha contra
a carne em favor do espírito. E se a alternativa contida na tricotomia é total, total também é a
dualidade. Essa dualidade é, por sua vez, muito bem ilustrado pela obsessão do Mestre para
com o termo spiritalis, exprimindo, como já dissemos, não só a oposição para o que é
89
pejorativamente cognominado como secular e carnal, mas também mostrando a decisão já
realizada ou a condição para que esta se realize no seu sentido grandioso e perfeito. Tricotomia
e a dualidade caminham juntos neste modelo antropológico bem determinado, presente de modo
claro, nítido, em todo o texto da RM.

90
Notas:
(1) - As referências que fazemos aqui às Ennéades provêm da edição de Oxford, a saber a edição de
CREUZER, F. - MOSER, G. H. Uma das melhores versões é a edição italiana de V. CILENTO, PLOTINO,
Enneadi (Prima versioni integra e commentario critico di V. CILENTO), I, II, III, III, Bari, 1947-49, 1973.
(2) H. Blumenthal, Soul, World-Soul and Individual-Soul in Plotinus em Le néoplatonisme, Roymont -
1969) Paris, 1971, pag. 55.
(3) V. Cilento, Saggi su Plotino, Milano, 1973, pag. 66.
(4) Profundamente complexa é a tradução de nous em Plotino. Palavras diversas extraídas das linguas
modernas não conseguem exprimir num conceito o elemento intelectual e o conteúdo filosófico-religioso contido
no nous. Segundo a perspectiva que se quer acentuar é preciso usar Mind ou Geist; Intelligence ou Esprit. Assim,
a tradução varia segundo os autores: Cf. E. BREHIER, La philosophie de Plotin, Paris, 1928, pag. 82; B. Salmona,
La libertà in Plotino, Milano, 1967; pag. 43, nota 50; B. Russell, History of Western Philosophy, London 1947,
edição italiana, Milano, 1966, vol. II, pag. 398. Seguindo a tradição de P. Arnou, Les sources de Plotin, Genéve,
1960, pag. 421, utilizamos o termo espírito para exprimir o conceito plotiniano de noús. É o tempo que talvez
melhor traduza as duas acepções contidas no referido conceito. De outro lado, o termo spiritus aparece de modo
textual na RM, apesar de não estar na nossa órbita dirimir a possibilidade de uma dependência literária da RM
com relação a Plotino.
(5) Cf. Plotino, Enn. II, 5, 3.
(6) E. Brehier, La Philosophie de Plotin, op. cit., pag. 63.
(7) Cf. Plotino, Enn. IV, 8, 8.
(8) Cf. Plotino, Enn. IV, 8, 12.
(9) Plotino, Enn. V, 3, 17.
(10) Procuramos estudar aqui apenas um aspecto da filosofia e mesmo da antropologia de Plotino. Sem
dúvida, este é o aspecto característico básico, determinante de sua filosofia, mas não é o único. Uma série de outros
problemas como a imortalidade da alma, a relação das almas individuais com a alma do universo, etc., estão
conexos com este fundamento. Contudo, estas outras questões não nos interessam diretamente. Procuramos aqui
convergir nosso esforço no aspecto que incide totalmente sobre o nosso argumento.

91
Ricardo Evangelista Brandão1

RESUMO: Segundo Agostinho o homem é composto por duas substâncias, corpo e alma,
que embora distintas cooperam de maneira harmoniosa e necessária para formar o
homem. No conhecimento sensível estas duas instâncias estão imbricadas, porém, nosso
pensador adota o princípio Plotiniano de que algo de densidade ontológica superior afeta
e não pode ser afetado pelo que tem densidade ontológica inferior, sendo a alma superior
ao corpo ela afeta sem sofrer influxos do corpo. Assim sendo, como explicar o
conhecimento sensível, que aparentemente requer influxos mútuos para a sua formação?
O Hiponense responde a esse problema utilizando a estrutura da sensação, composta pela
atenção da alma e as paixões corpóreas. Com essa estrutura o Filósofo explica que mesmo
no referido tipo de conhecimento, a alma tem uma função eminentemente e
exclusivamente ativa, visto que é ela que recolhe as afecções corpóreas mediante a
direção de sua atenção para elas, tirando a si mesma do estado de ignorância do que
acontece ao corpo e ao mundo externo.
Palavras-chave: Santo Agostinho, corpo e alma, sensação, conhecimento sensível.

ABSTRACT: According to Augustine man is composed of two substances, body and


soul, though distinct and cooperate harmoniously necessary to make the man. Sensitive
knowledge in these two instances are intertwined, however, our thinkers Plotinian adopts
the principle that something more ontological density affects and can not be affected by
what has ontological density lower, and the soul than the body it affects the body without
suffering inflows. So how to explain the sensitive knowledge, which apparently requires
mutual influences to their training? The Hiponense responds to this problem using the
structure of feeling, made for the attention of the soul and the bodily passions. With this
structure the Philosopher explains that even in that kind of knowledge, the soul is
essentially and exclusively a function active, since it is she who collects the bodily
ailments by the direction of his attention to them, drawing to itself the state of ignorance
what happens to the body and the outside world.
Key word: St. Augustine, body and soul, feeling, sensitive knowledge.

1
Doutorando em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPE/UFPB/UFRN. E-
mail: [email protected]

92
2 A ESTRUTURA DA SENSAÇÃO EM SANTO AGOSTINHO

A sensação no Pensador de Hipona é a estrutura cognoscitiva responsável


pela produção do conhecimento sensível, logo, estudar a sensação é investigar como se
processa o referido conhecimento no homem. Estabelecendo-se que o homem é formado
por duas substâncias distintas, material e espiritual, cabe-nos explicitar como estas
instâncias cooperam na produção desse conhecimento. Na investigação dessa esfera da
cognição humana, brota naturalmente a seguinte indagação que pretendemos responder
em nosso texto: Sendo o corpo veículo da alma sofre constantemente a ação da mesma,
porém, na esfera do conhecimento sensível em que emblematicamente as duas
substâncias componentes do humano estão imbricadas, a alma também é afetada pelo
corpo?

A impressão que poderíamos ter em um primeiro momento é que isso é


perfeitamente possível, visto que nessa forma de conhecimento o corpo sofre as ações dos
objetos da natureza externa, e com sua estrutura orgânica que forma os cinco sentidos
introjeta essas impressões do mundo, e já que essas impressões sensíveis só se tornam
conhecimento perpassando pela alma, podemos concluir que a alma sofre as ações do
corpo.

Todavia, Agostinho assume o princípio neoplatônico de que os seres de


densidade ontológica superior afetam e não podem ser afetados pelo inferior, e na medida
em que, como já discutimos no primeiro capítulo, a alma é imensamente superior ao
corpo, ela afeta e jamais pode ser afetada pelo corpo. Mesmo no sentir, a alma tem função
eminentemente ativa, não sofrendo sob quaisquer circunstâncias influxos do corpo. Como
nos esclarece Tina Manferdini: “O critério plotiniano ao qual Agostinho se atém é que o
inferior não pode agir em nenhum modo sobre o superior: o que implica precisamente
que no sentir a alma não pode sofrer afecção ou impressão, de forma que não é passiva a
respeito do corpo [...]” (MANFERDINI , 1995, p. 146).

93
No Comentário Literal ao Gênesis o Hiponense objetivando explicar como
a imagem captada pelo corpo é primeiramente gerada pela alma, expõe o princípio
neoplatônico que supra mencionamos:

Não se há de pensar que o corpo faz algo no espírito, como se o espírito


se submetesse ao corpo que age pela condição de ser matéria. Com
efeito, de todos os modos é mais excelente o que faz do que a matéria
da que se faz algo. De modo algum o corpo é mais excelente que o
espírito, pelo contrário, o espírito é mais excelente que o corpo de modo
eminente (De Gen. ad. litt., XII, 16, 33).

No presente texto Agostinho faz uso da recorrente metáfora do obreiro e sua


matéria2, pois, o obreiro é sempre superior a matéria da qual usa para fazer algo, e a única
possibilidade do corpo agir sobre a alma seria ele assumir o papel de obreiro fazendo da
alma sua matéria. Como isso é impossível, pois, a alma vivifica e dá forma de vida
humana ao corpo, ela é por natureza o obreiro e o corpo sua matéria da qual dá forma.
Logo, sendo a alma o obreiro é consecutivamente superior a matéria, age sobre a matéria
para dela fazer o que quiser, jamais podendo ser afetada por ela.

Bem, para salvar a tese da paixão unilateral, o Hiponense utiliza duas


instâncias estruturais que formam o conhecimento sensível, a sensação e os sentidos, a
sensação pertencente à alma e os sentidos ao corpo. Propriamente falando, a sensação é a
estrutura fundamental para a formação do conhecimento sensível, e por sua vez os
sentidos do corpo são instrumentos de que a sensação se serve para conhecer os objetos
do mundo. É como se os cinco sentidos do corpo humano participassem da sensação que
é uma estrutura da alma, pois, o corpo com seus sentidos não formam em hipótese alguma
o conhecimento, mas apenas captam os dados sensíveis para que a alma com a sensação
forme conhecimento. Como aclara o Pensador nessa emblemática passagem:

E por isso, porque sentir não é próprio do corpo, mas da alma pelo
corpo, embora se disserte com agudeza que os sentidos do corpo estão
distribuídos de acordo com a diversidade de elementos corpóreos, a

2
A mesma metáfora é usada por Agostinho no Sobre a Música para defender a primazia da melodia
produzida pela alma comparada com a produzida pelo corpo: “Pois é o maior absurdo que a alma esteja
como matéria submetida ao corpo artífice. Porque jamais a alma pode ser inferior ao corpo, e toda matéria
é menos nobre que o obreiro. Assim, pois, de nenhuma maneira é a alma uma matéria sujeita ao corpo,
obreiro seu [...]” (De musica, VI, 5, 8). Também: De inmort. animae, 16, 25.

94
alma, à qual é inerente a potência do sentir, não sendo corpórea,
estimula a potência do sentir por um corpo mais sutil (De Gen. ad. litt.,
III, 5, 7)3.

Como nos informa o texto supra, o conhecimento sensível não pertence ao


corpo, mas à alma por meio do corpo, a alma possui a potência do sentir e o corpo os
instrumentos para que isso aconteça, quando por exemplo o homem com o sentido do tato
percebe algo poroso, não é o corpo que percebe, mas a alma através do corpo4. Outrossim,
apesar da sensação pertencer à alma, ela necessita dos sentidos do corpo para ter as
sensações. Um cego, embora possua a estrutura da sensação em sua alma, não enxerga
por lhe faltar o órgão que serve ao sentido da visão. O cego possui a potencialidade de
enxergar (sensação), porém, falta-lhe a atualização dessa potência por lhe faltar a visão,
pois, sem a sensação dos dados sensíveis não há conhecimento, e sem o dado sensível a
sensação não possui conteúdo. Poderíamos dizer kantianamente que para Agostinho os
dados sensíveis sem a sensação são cegos, e a sensação sem os dados carecem de
conteúdo5.

Quer dizer, os cinco sentidos com os quais o homem tem acesso e


conhecimento do mundo sensível, na medida em que o corpo é um instrumento da alma,
são em última instância sentidos da alma, ou melhor, instrumentos de que a alma se utiliza
para perceber o mundo externo e seu próprio corpo. Como descreve o Bispo Filósofo no
diálogo A Grandeza da Alma: “A alma se aplica ao tato e por ele sente e distingue o que
é frio, áspero, liso, duro, leve, pesado, pela audição e pela visão as inúmeras diferenças
de sabores, de odores, de sons, de formas” (De quant. animae., 33, 71)6. No presente texto
Nosso Filósofo defende veementemente a paixão unilateral do corpo, e o caráter

3
Também: De civ. Dei., XI, 27, 2.
4
O professor D. Beda Kruse traz o eloqüente exemplo da dor: “A sensação da dor parece ser sofrida pelo
corpo; na verdade, porém, é a alma que sofre pelo corpo” (KRUSE, 1995, p. 103).
5
Não é nossa pretensão afirmar que o que Kant escreveu em sua primeira crítica Agostinho já disse no
século IV, pois, a finalidade de cada pensador era bem distinta. Agostinho pretendia explicar o
conhecimento sensível salvando a proeminência da alma sobre o corpo, e Kant mostrar os limites da razão
especulativa para o conhecer. Todavia, ambos chegam a idéias parecidas no que tange à formação do
conhecimento sensível: “[...] destituído de sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado. Isento de
entendimento, nenhum objeto seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios. Intuições sem
conceitos são cegas” (KANT, 2001, p. 90).
6
Cf. De musica, VI, 5, 10.

95
exclusivamente ativo da alma. Quer dizer, embora seja o corpo que com os sentidos seja
afetado pelo mundo, a alma com a sensação, age sobre os sentidos captando essas
afecções corporais transformando-as em informação.

Bem, as duas instâncias estruturais que são responsáveis pelo conhecimento


sensível são os sentidos e a sensação, os sentidos pelo que expomos até aqui, já ficou
claro que se trata dos cinco sentidos do corpo humano. Mas o que é essa faculdade que
Agostinho chama de sensação? Na A Grandeza da Alma Agostinho em diálogo com
Evódio defende inúmeras vezes, cada uma delas com problemas que a põe em dificuldade
a seguinte definição: “A sensação é certamente toda reação no corpo que não se oculta à
alma [...]” (De quant. animae, 25, 48).

A palavra no original latino traduzida por “reação” é passio, que igualmente


podemos traduzir como paixão, afetação. Portanto, está se falando das afetações
corpóreas sofridas pelo organismo humano em contato com o mundo externo. A
expressão “não se oculta à alma” traduz o original latino non latere animam, aonde latere
significa oculto, ignorância, estar escondido (Cf. FARIA, 2003, p. 550), e a expressão
non latere é o estado de não ignorância da alma. Logo, a sensação é o estado de não
ignorância da alma diante das paixões do corpo.

Portanto, o corpo a todo momento é afetado pelo mundo, seja com calor, frio,
forte odor, luminosidade, escuridão, etc. Essas afecções só se tornam sensação quando a
alma conscientiza-se delas. Sendo a sensação um estado de consciência da alma do que
acontece ao corpo, assemelha-se em certo sentido a Ciência que ao desvendar
determinado tipo de conhecimento à alma, também a coloca em um estado de não
ignorância:

Embora a sensação seja uma coisa e a ciência, outra, é comum às duas


não deixarem de se manifestar; [...] pois não deixa de ser manifesto tudo
o que a alma conhece, seja pela constituição do corpo, seja pela
acuidade da inteligência. A primeira reclama para si o nome de
sensação, mas a segunda, o de ciência (De quant. animae, 30, 58).

Iluminados por esta última citação, poderíamos dizer que na medida em que
qualquer forma de conhecimento constitui-se de um estado de não ignorância da alma, a

96
alma em sua função cognoscitiva utilizando-se da razão tem o que poderíamos chamar de
entendimento que produz o conhecimento intelectivo, ou pelo menos torna a alma
consciente do referido conhecimento. E utilizando-se dos sentidos do corpo tem a
faculdade denominada de sensação que produz o conhecimento sensível. Em suma, a
sensação é o estado de não ignorância da alma do que acontece ao corpo, e ela consegue
isso quando de forma ativa utiliza-se dos sentidos como instrumentos, logo, os sentidos
são sub-faculdades que fazem parte da estrutura da sensação da alma.

Entendemos que já ficou suficientemente claro como a alma de forma ativa


produz o conhecimento sensível. Porém, na medida em que a sensação necessita dos
dados sensíveis captados pelo corpo nesta esfera epistêmica, como sustentar sua exclusiva
ação? Ou seja, como explicar que a alma permanece inafetada pelo corpo, mesmo
recebendo dele as impressões do mundo sensível? Bem, Agostinho tentará responder a
esse paradoxo ancorado nas idéias de espiritualidade e da atenção da alma.

Segundo o Filósofo de Hipona, o homem é composto por duas substâncias


distintas, com propriedades igualmente diferentes. O corpo é a substância material, e
enquanto matéria ocupa lugar no espaço e sofre a ação do tempo, fazendo parte de sua
natureza enquanto existe caminhar para a não existência7. A alma por outro lado, é a
substância espiritual do composto humano, e, portanto, incorpórea, inextensa e que não
sendo matéria não ocupa lugar no espaço, nem está dada a corrupção substancial, mas
apenas moral, sobrevivendo à morte do corpo. Sendo ela de substância imaterial não
ocupa um lugar específico no corpo, não necessitando locomover-se para se dirigir as
afecções corpóreas, mas ela está em todas as partes do corpo ao mesmo tempo. Como
disserta Agostinho:

Na realidade toda massa que ocupa um lugar, não existe toda inteira em
cada uma de suas partes, mas sim na totalidade. Pelo qual, uma de suas
partes está em um lugar e outra em outro. A alma pelo contrário não
está só presente em toda massa do corpo que anima, mas também está

7
No De Gen. ad. litt., IV, 25, 36, Agostinho afirma que mesmo o corpo de adão antes de ser corrompido
pelo pecado, não era imortal, pois se assim o fosse seria um corpo espiritual, mas mesmo sendo mortal
podia não morrer pelo intercurso da graça divina mediante a permanência em uma vida santa.

97
presente ao mesmo tempo inteira em cada uma de suas partes mais
pequenas (De inmort. animae, 16, 25).

Na medida em que a alma é uma substância espiritual, está presente


integralmente em todo o corpo, bastando dirigir sua atenção para aquela parte específica
do corpo que está sendo afetada pelo mundo. Isto é, as paixões corpóreas saem do estado
de ignorância para a alma, quando ela dirige sua atenção para elas. Só há sensação quando
a alma dirige sua atenção para as paixões do corpo, saindo assim do estado de ignorância,
por isso, poderíamos dizer que a sensação é composta por dois elementos, as paixões e a
atenção da alma. Como nos esclarece Tina Manferdini: “De fato a sensação é resultado
de dois elementos radicalmente distintos ao mesmo tempo inseparavelmente ligados: de
um lado a impressão ou afecção corpórea (passio corporis), do outro a atenção da alma
que percebe imediatamente aquela impressão” (MANFERDINI, 1995, p. 146).

A análise da comentadora acerca da sensação em Agostinho é bastante


esclarecedora, pois, de fato não há sensação sem as paixões corpóreas e a atenção da alma,
e pelo menos na sensação estes dois elementos estão necessariamente ligados. O que não
nos autoriza a afirmar que em outros momentos em que não acontece a sensação eles
estejam associados, pois, com freqüência o corpo é afetado de alguma maneira e a alma
não dirige sua atenção para esta afecção. Como, por exemplo, a alma por estar
concentrada em um problema pessoal, filosófico ou teológico, se distrai de tal forma que
não consegue perceber fortes afetos corpóreos. Vejamos o que diz nosso Filósofo,
utilizando um exemplo parecido com o nosso, em debate com os maniqueus que não
conseguiam perceber grande distinção entre a alma e os órgãos do corpo, por
compreenderem que a alma é constituída de uma matéria sutil:

Que a alma seja uma coisa, e outra distinta estes seus servidores
corporais, vasos ou órgãos, [...] isso se manifesta com evidência porque
muitas vezes ela se isola de tudo por uma aplicação mais intensa do
pensamento, de modo a não tomar conhecimento de muitas coisas que
estão diante dos olhos abertos e normais (De Gen. ad. litt., VII, 20, 26)8.

8
Cf. De musica, VI, 8, 21.

98
Esse exemplo dado por Agostinho é deveras forte, porque na hierarquia que
ele estabelece entre os sentidos o mais importante é o da visão por estar mais próxima da
alma, e no exemplo citado é justamente os dados percebidos pela visão que não são
percebidos pela alma. Logo, podemos estender isso a qualquer afecção corporal, seja a
dor, fome, sede, etc, podem não ser percebidos pela alma por ela estar distraída ou
concentrada em alguma outra atividade, e só quando dirigi-se para a dor, fome ou sede é
que se tornam dor, fome e sede para a alma9.

Nós discutimos acerca dos dois elementos da sensação, porém, ainda não
analisamos um texto de Santo Agostinho sobre o assunto, vejamos o que diz o Pensador:

Quando a alma sente no corpo, não sofre um influxo seu, mas sim atua
com mais atenção nas paixões do corpo, [...]. Pois este sentido, que
ainda quando nada sentimos, está apesar disso em nós, é um
instrumento do corpo, utilizado pela alma com tão hábil direção que
está nela melhor disposta para responder com atenção às paixões do
corpo [...]. Então se diz que a alma, quando sente, integra, penso eu, as
paixões do corpo, sem sofrer essas mesmas paixões (De musica, VI, 5,
10).

Assim sendo, não é o corpo que ao ser afetado que age sobre a alma, mas a
alma que dirige sua atenção para a parte do corpo afetada, utilizando-se disso para gerar
a sensação sem sofrer nenhuma ação do corpo. Esse último, mesmo sendo na constituição
humana o outro da alma, não passa em sua funcionalidade de mera extensão sensível da
alma que sofre paixões da alma e do mundo exterior sem, no entanto, ter a menor condição
de possibilidade de agir sobre a alma. Os sentidos nada mais são que uma forma particular
de ação da alma sobre o corpo. Todavia, ainda assim podemos dizer que em certo aspecto,
nós temos no Filósofo Bispo uma visão positiva dos sentidos, na medida em que deixam
de ter apenas uma funcionalidade bio-fisiológica para fazerem parte de uma estrutura
intelectual10, pois, nesta perspectiva os sentidos embora fisiológicos visto que compõe o

9
Agostinho afirma que quando o corpo está em perfeita saúde, a alma não dirige sua atenção para nenhuma
parte específica do corpo, por não haver necessidade do corpo de socorro da alma (Cf. De musica, VI, 5,
13). A alma só dirige sua atenção à determinada paixão do corpo quando ela quer, ou quando há necessidade
por parte do corpo.
10
Tina Manferdini chega a afirmar que os sentidos em Agostinho alcançam tanta dignidade, que conseguem
em conjunto com a alma e a vontade alcançar o valor objetivo da beleza, nas belezas particulares (Cf.
MANFERDINI, 1995, p. 288).

99
organismo humano, transcendem a sua condição em sua estreita relação com a alma. O
conhecimento sensível é psicossomático, e em última instância é um conhecimento
intelectivo.
No Comentário Literal ao Gênesis, Santo Agostinho ao dissertar acerca da
superioridade da alma em relação ao corpo afirma o seguinte:

[...] portanto, ainda que vejamos primeiro algum corpo que antes não
víamos, e em seguida comece a imagem do mesmo a estar no nosso
espírito, no qual podemos nos lembrar quando se ausentar, contudo, o
corpo não produz a sua imagem no espírito, mas o próprio espírito a
produz em si mesmo com rapidez admirável, a qual dista de modo
inefável da lentidão do corpo (De Gen. ad. litt., XII, 16, 3).

No citado texto, o Filósofo no esforço de manter o princípio de que o superior


afeta, mas não pode ser afetado pelo inferior, afirma que as imagens captadas pelos órgãos
do corpo são primeiramente formados na alma, porém, o argumento aqui não é tão claro
como o da atenção, pois diz que a alma é mais rápida que o corpo para produzir a imagem,
de forma que antes do corpo afetar a alma com a imagem, a alma já produzira a referida
imagem. Mesmo não estando claro no texto em que consiste a antecipação da alma para
formar a imagem, entendemos mediante outros escritos mais claros que essa rapidez é a
própria potencialidade da sensação, que se utiliza do corpo para captar os dados sensíveis
transformando esses dados em imagem, de forma que não é o corpo, mas a alma que
produz a imagem.

De fato, com a teoria da estrutura da sensação, Agostinho vence inúmeras


dificuldades na defesa da tese que a alma não sofre paixões do corpo, porém, mesmo com
os elementos da espiritualidade e atenção da alma, algo que não se pode negar é que a
alma nesse processo sofre mudanças. Ou seja, ela não possuía um conhecimento de
determinada afecção sensível, e ao voltar a sua atenção para ela sai do estado de
ignorância. Nesse processo cogno-sensitivo a alma sai do estado de ignorância para o de
não ignorância. No diálogo Sobre a Música o pensador enfaticamente afirma que mesmo
com essa mudança na alma não podemos dizer que ela sofreu um influxo do corpo, mas
que sofreu influxo de si mesma. Pois, é ela em todo momento que age na sensação, e
todas as mudanças que ela sofre nesse processo, é causada por sua própria ação: “Mas

100
quando ela sofre algo da parte de suas mesmas atitudes, o sofre por influxo de si mesma
não por influência do corpo [...]” (De musica, VI, 5, 12).

Semelhantemente Plotino defende a tese de que na medida em que a alma é


muito superior ao corpo, ela age constantemente sobre o corpo fazendo-o de veículo,
porém, não sofre nenhuma ação do corpo, visto que “o incorpóreo não pode ser afetado,
em qualquer modo que seja, pelo corpóreo” (REALE, 1994, vol. IV, p. 505)11. Logo, o
conhecimento sensível será interpretado como agência da alma sobre o corpo, que se dá
ao indivíduo através de duas estruturas, a sensação exterior que é uma faculdade dos
órgãos do corpo que o permite receber as impressões do mundo, e a percepção sensitiva,
que é uma potencialidade da alma em que ela capta cognoscitivamente as impressões do
corpo, transformando-as em conhecimento sensível.

Portanto, o conhecimento sensível, como qualquer informação sensível, é a


ação da percepção sensitiva da alma por meio da sensação exterior do corpo frente aos
dados sensíveis, como nos esclarece nas Enéadas:

[...] a faculdade sensitiva da alma não tem necessidade de estender-se


às coisas sensíveis, diretamente, mas deve antes consistir numa especial
capacidade perceptiva das marcas, que, como conseqüência da
sensação, se formam no vivente; pois estas já são de espécie inteligível:
pois a sensação exterior é uma imagem daquelas; mas a potência da
alma é muito mais verdadeira, segundo a essência, pois é contemplação
de formas, pura e impassível (En., I, 1, 7).

Segundo Plotino, todo esse movimento de afetar sem ser afetada da alma, é
justificado pelas duas instâncias que existem na alma denominadas de alma inferior e
superior. A inferior é a instância da alma que entra em contato com o corpo e mundo
sensível, e a superior se relaciona diretamente com as formas arquétipas dispostas no

11
Devido a este princípio o Licopolitano afirma que embora seja o corpo que sofra as impressões do mundo,
essas impressões são recolhidas pela alma por meio do corpo. A alma que devido a sua espiritualidade está
presente em todo corpo, informa a si mesma acerca das afecções corpóreas. Como nos informa o pensador
Eneádico com o eloqüente exemplo da dor: “Assim pois, a afecção tem lugar no corpo, porém seu
conhecimento é próprio da alma sensitiva, que por seu domínio a percebe e notifica ao centro em que
terminam as sensações. [...] Assim, por exemplo, no caso de um corte, quando se corta o corpo, o corte se
produz na matéria [...]. Porém, é a alma que por ser adjacente diríamos, o recolhe e o percebe, e é a alma
inteira que percebe a afecção do corpo sem ser afetada pela mesma” (En., IV, 4, 19).

101
Nous. Portanto, no processo do conhecimento sensível, a alma superior ilumina a alma
inferior no captar as impressões sensíveis por meio do corpo, por isso a alma é como se
fosse uma luz que ao focalizar determinada coisa, a torna conhecimento mediante a
iluminação previamente adquirida no seu contato com as verdades eternas (Cf. En., IV,
6, 3)12.

Assim sendo, não há grandes diferenças entre Agostinho e sua principal fonte
teórica Plotino, pois ambos se esforçam para resguardar a tese de que a alma sendo uma
instância ontológica superior ao corpo, afeta e não pode ser afetada pelo corpo, utilizando
argumentos bastante parecidos. A princípio a diferença é apenas nomenclatural, visto que
os termos sensação e sentidos do Hiponense correspondem respectivamente aos termos
percepção sensível e sensação exterior usados por Plotino. Porém, quanto a explicar como
se dá de fato esta relação alma e corpo diante do conhecer sensível, mestre e discípulo se
distanciam um pouco, já que Plotino defende a idéia de que a alma mediante um prévio
conhecimento das verdades eternas lança luz sobre os obscuros dados sensíveis
decorrentes da afetação do corpo, gerando o conhecimento. E Santo Agostinho faz uso da
idéia da atenção da alma para as paixões do corpo, para explicar o mesmo acontecimento.
Pois devido a sua relação com o cristianismo, em hipótese alguma poderia aceitar a idéia
de que a alma pré-existia ao corpo tendo contato com as verdades arquétipas dispostas no
Nous. Para o Hiponense o conhecimento sensível não é imanente, mas é produzido em
contato com o mundo mediante o processo que expomos, na medida em que jamais a
alma pode imaginar objetos que já não tenha percebido (Cf. De Trin., IX, 6, 10)13.

Em suma, no pequeno recorte que fizemos da vultosa obra de Agostinho, o


contexto é de debate contra as várias concepções antropológicas dos maniqueus, sempre

12
REALE, 1994, vol. IV, p. 505, comenta algo interessante a respeito: “Antes, para Plotino, na impressão
sensorial que se produz no nosso corpo, a alma vê (embora no nível mais fraco e mais débil) o rastro de
formas inteligíveis e, portanto, a própria sensação é, para a alma, uma forma de contemplação do inteligível
no sensível”.
13
GILSON, 2007, p. 119, comenta o seguinte: “Não há qualquer traço de ocasionalismo ou inatismo do
conhecimento sensível na filosofia agostiniana. Todo conhecimento de qualquer coisa material é
engendrado simultaneamente por nós, que o conhecemos, e pela coisa que é conhecida”.

102
fazendo uso de princípios advindos do Cristianismo, do Plotinianismo e de suas reflexões
pessoais. Embora não seja fácil para qualquer pensador dualista explicar a relação da alma
com o corpo, Agostinho com impressionante inteligência nos traz a idéia da atenção da
alma, que influenciou proficuamente a Idade Média, como até hoje responde
satisfatoriamente o problema para muitas pessoas.

REFERÊNCIAS

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103
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Gredos, 1998. Livros I, IV, vol. I, II.

REALE, Giovanni. História da filosofia antiga: as escolas da era imperial. 2. ed. Trad. de
Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994. vol. IV, 608p.

104
Luciano Caldas Camerino1
RESUMO: O presente artigo trata das concepções naturalistas e personalistas, a propósito
da sexualidade e do gênero, no pensamento filosófico cristão. Na visão naturalista, que vigorou
durante a patrística e a escolástica, a sexualidade e o gênero são vistos como expressões da
lei natural, portanto divina, cujo fim explícito e único é a reprodução. Embora seus principais
expoentes, Agostinho e Tomás de Aquino, se apoiem um em Platão e o outro em Aristóteles,
ambos interpretam essas temáticas segundo um prisma naturalista. No século XX, sob a
influência da ciência e da biologia modernas, do existencialismo e do marxismo, elaborou-
se no contexto da filosofia católica o Personalismo, fundado no conceito de pessoa, que se
distancia de modo significativo da perspectiva naturalista. Ao contrário da doutrina e do
magistério romano tradicional, o personalismo interpreta a sexualidade de modo amplo, sem
que a mesma se restrinja à reprodução. Da mesma forma, o personalismo se afasta de uma visão
heteronormativa da homossexualidade; no entanto, o catolicismo oficial não perfila tais ideias.
PALAVRAS-CHAVE: Sexualidade, Gênero, Reprodução, Naturalismo, Personalismo.

ABSTRACT: This article deals with naturalistic and personalistic conceptions, on the subject
of sexuality and gender in the Christian philosophical thought. In the naturalistic view, which
prevailed during the patristic and scholastic, sexuality and gender are seen as expressions of
natural law, therefore divine, whose explicit purpose and only end is reproduction. Although its
main exponents, Augustine and Aquinas, one basing on Plato and the other on Aristotle, both
interpret these thematic according to a naturalistic perspective. In the twentieth century, under
the influence of modern science and biology, of Existentialism and Marxism, was elabored in
the context of the Catholic philosophy the Personalism founded on the concept of person who
moves away significantly from the naturalistic perspective. In contrat to the doctrine and the
traditional Roman Magisterium, Personalism interprets in a widely way sexuality and do not
restrict to reproduction. In the same way, the Personalism moves away from a heteronormative
view of homosexuality; However, the official Catholicism does not stand such ideas.

KEYWORDS: Sexuality, Gender, Reproduction, Naturalism, Personalism.

1
Departamento de Filosofia UFJF
105
1. PERSPECTIVA NATURALISTA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA
É usual, na historiografia da filosofia ocidental, dividir o pensamento filosófico cristão (por
cristão aqui me refiro especificamente aos filósofos católicos) do período medieval em duas
grandes fases, a Patrística, que iniciou-se por volta do século II, e alcançou sua expressão
máxima em Agostinho (354-430), pensador que assimilou, ao Cristianismo, especialmente as
ideias de Platão e a reflexão dos estoicos; a partir do século IX, desenvolveu-se a Escolástica,
cujo apogeu aconteceu na grande sistematização de Tomás de Aquino (1224-1274). O escopo
tomista consistiu em compreender o Cristianismo à luz do aristotelismo, cujas fontes básicas,
desde há muito perdidas, foram reintroduzidas no Ocidente pelos árabes e pelos judeus, naquela
época.
Em cada uma dessas concepções cristãs, foi elaborada uma antropologia, a partir da qual
uma reflexão ética se desenvolveu. Já no século XX, uma importante vertente do pensamento
cristão baseou-se na categoria de pessoa a partir do Personalismo, corrente filosófica iniciada
por Emmanuel Mounier (1905-1950), que buscou uma nova leitura do Cristianismo, agora em
diálogo com o marxismo e com o existencialismo, atualizando assim a tradição filosófica cristã,
e se afastando da perspectiva naturalista que até então predominava.
Sexualidade e Gênero foram vistos, em cada uma dessas escolas, no naturalismo e no
personalismo, de uma forma determinada, a partir da qual se elaboraram discursos morais. É
característica da filosofia cristã católica o esforço para fundamentar racionalmente a Ética,
razão pela qual a Filosofia sempre ocupou lugar de importância nas reflexões dos pensadores a
ela vinculados.

1.1 PATRÍSTICA
A Patrística Latina, depois de suas elaborações a partir do século II, desenvolveu-se
notavelmente com Agostinho de Hipona, considerado o Mestre do Ocidente. Esse grande
pensador buscou inspiração na tradição estoica e na filosofia platônica, vista como muito afim
ao Cristianismo, por sua ética rigorosa, sua renúncia ao mundo em prol do suprassensível e por
sua metafísica. Foi principalmente através do neoplatonismo que as ideias de Platão penetraram
na filosofia cristã.
Agostinho, além de suas reflexões teológicas, se interessou especialmente pela alma
humana; considerava o ser humano uma unidade, onde a alma possui, usa e governa o corpo,
terreno e mortal. A alma está no corpo assim como estivesse numa prisão (HIRSCHBERGER,
1969, p. 48), embora seja, a alma, de natureza incorpórea e espiritual.
Possui a alma a capacidade de conhecer os fundamentos da verdade e do ser, alcançando
as razões eternas da realidade, que existem na mente de Deus. A ordem total das coisas, a lei
da natureza, é a Lei de Deus. Para Agostinho, existe uma ordem moral objetiva, pois toda a
natureza, o cosmos, são perfeitamente ordenados. Tudo se regula pelo número e pela proporção
(GILSON, 1970, p. 187) que a vontade divina em tudo imprime. Assim, todas as criaturas
apontam para além de si mesmas, são uma via de acesso e de retorno à Deus. Por isso, não deve
106
o ser humano se deter nas coisas, ou nelas repousar, já que somente Deus merece um amor
ilimitado, mesmo o amor ao próximo se justificando somente em função do Absoluto; para ele,
o pecado é o amor desmedido e desordenado pelas coisas, e não pelo seu Autor.
Uma importante revolução se deu, do ponto de vista filosófico, na forma como se vê a
realidade, contrapondo a visão medieval ao ponto de vista inaugurado a partir de Descartes.
Para nós modernos, desde o advento da ciência e da emergência da subjetividade humana,
a natureza não tem mais qualquer valor a ela intrínseco, ou algum poder normativo; o mundo
da natureza é um mundo de seres, não contém nenhum dever-ser. Não se acredita mais na
chamada “alma do mundo”, espécie de Logos imanente aos processos naturais. No mundo,
somente existem realidades factuais, não valores. Na melhor das hipóteses, a natureza é
moralmente indiferente ou neutra, enquanto alguns até a consideram perversa ou cruel. Mas os
gregos, os medievais, tinham-na como harmoniosa, dotada de fins éticos que podem ser
descobertos pelos homens; esses valores os homens não os criam, apenas os identificam,
objetivamente, na realidade. (FERRY, 2008, p. 190).

Conforme a mentalidade medieval, a realidade natural é uma Escritura viva e concreta,


onde as leis divinas estão manifestas, cabendo ao homem, pela reflexão e pela contemplação,
apreender esse código e louvar essa harmonia inerente ao mundo. Claro é que essa ordem não
considera necessariamente os indivíduos, seus interesses e sua felicidade; o Bem e a Beleza do
cosmos residem na sua totalidade, na sua unidade, quando temos uma visão do conjunto de
todas as coisas. Não se explicando mecanicamente, para os antigos a natureza era vista como
um organismo, onde cada um ocupa o seu lugar natural. Homem e mulher, criança e velho,
nobre e plebeu, leigo ou sacerdote, cada qual, ao cumprir a sua missão, concorre para a
harmonia geral; o Bem acontece na perspectiva da totalidade, sendo que as desordens e
imperfeições são tidas como temporárias e passageiras.
Dotado de razão, que não é uma faculdade meramente humana, mas uma espécie de
participação no Logos Universal, o ser humano pode desempenhar a contento a sua função na
economia geral da realidade. Para tal, as primeiras ideias da tradição moral cristã priorizaram o
ascetismo, exigindo a virgindade e a continência, para a mulher e para o homem,
respectivamente. Celibato, castidade para as viúvas e virgindade para as solteiras, já que a
proximidade da vinda do Reino de Deus exigia o triunfo da alma sobre o corpo, do espírito
sobre a matéria. (VAINFAS, 1986, p. 8) Estando puro, o corpo poderia abrigar a Alma que
ascenderia, imaculada, para Deus, libertando-se do mundo corruptível. Trata-se da platonização
do Cristianismo, aqui explicitada de forma clara.
Para alguns autores mesmo a reprodução, ainda que dentro do casamento, não era tida como
um bem. Os esposos são viúvos potenciais, instrumentos de uma sucessão mortal; no mundo
ideal, habitado por seres castos, a espécie humana se propagará ao modo dos anjos, sem o
concurso do pecado.
Agostinho condena o casamento como local de manifestação da concupiscência, mas
considera o ato sexual um bem, se for destinado à reprodução. (VAINFAS, 1968, p. 10). Inferior

107
hierarquicamente à continência e à virgindade, o casamento, cárcere para o desejo, é o menor
dos males e o pior dos bens.
Pode-se entender essa concepção, vigente nessa época, da seguinte maneira: a moral cristã
antiga desconfiava fortemente dos prazeres carnais, que impedem a alma de elevar-se para
Deus. Ao mesmo tempo, o Cristianismo precisou lutar contra as heresias, principalmente a
gnóstica, que repudiava o casamento de forma absoluta e exigia a castidade total dos candidatos
ao batismo.
A valorização do casamento provinha do Império Romano (ARIÈS, 1987, p. 135) onde
tinha a função de garantir a descendência e a transmissão do patrimônio. Embora de início fosse
um costuma aristocrático, sua frequência vinha aumentando, até mesmo entre os escravos.
Assim, a defesa do casamento, ou pelo menos a sua aceitação, por parte dos pensadores da
patrística, se apoia na tradição helenística e estoica, que enfatizava a união estável e fiel, com a
redução do prazer ao leito conjugal, de onde deve provir a perpetuação da espécie. Não se
adotou entre os cristãos o modelo conjugal do Antigo Testamento, que valoriza o prazer erótico
e aceita até mesmo, em certos casos, as relações extraconjugais. Somente com o tempo a Igreja
Romana buscou administrar o casamento, retirando-o do domínio profano e o escoimando dos
costumes germânicos, que haviam desfigurado sua forma original. Teólogos favoráveis e
contrários ao casamento ministrado pela Igreja debateram longamente; havia ainda um outro
problema, que era o de sacramentar o ato sexual no matrimônio, sendo que ele, em si mesmo,
é pecaminoso. Com o tempo, a aceitação do coito para a perpetuação da espécie se torna
pacífica, até que o casamento venha a se tornar um sacramento.

1.2 ESCOLÁSTICA
No período denominado Alta Escolástica, no século XIII, deu-se o diálogo e a assimilação
da cultura judaica e aristotélica pelo pensamento cristão, ainda com a contribuição de
pensadores árabes. Nessa ocasião, o desenvolvimento das Universidades favoreceu o debate em
torno da obra de Aristóteles, cujas ideias no campo da ciência natural foram gradativamente se
impondo.
Coube a Tomás de Aquino (1224-1274) integrar organicamente o pensamento daquele
filósofo grego à teologia cristã. Para Tomás, ciência (razão) e fé não se contradizem e devem
necessariamente se harmonizar, podendo a revelação cristã ser melhor compreendida à luz da
metafísica do Estagirita.
Segundo o Doutor Angélico, o homem é o ponto de convergência de toda a criação; união
substancial de corpo e alma, o ser humano concreto se determina pela sua materialidade
individual pois a alma, forma espiritual, necessita do corpo para exercer suas funções.
Para o Aquinate, o ser humano é pessoa, ser singular, completo e distinto. Ser pessoa
significa ocupar um importante lugar na Criação, razão pela qual ele considera o corpo humano
o mais aperfeiçoado entre todos os organismos. Embora alguns animais sejam mais bem
dotados que o homem em alguns aspectos, no seu conjunto o homem é o mais perfeito animal,
cujas mãos podem desempenhar as mais ilimitadas operações que o intelecto humano seja capaz
108
de engendrar. Para Tomás, a estatura ereta permite o desenvolvimento da visão e das mãos que,
por sua vez, ao coletarem e prepararem os alimentos, possibilitam que a boca e a língua
humanas sejam mais delicadas que as dos animais, tornando a linguagem viável. (NOGARE,
1974, p. 100). É evidente, na argumentação desse filósofo, uma perspectiva que valoriza a
condição natural (biológica, diríamos hoje) do ser humano, certamente uma influência de seu
mestre Aristóteles.
Dentre os seres criados, com exceção dos anjos, somente a pessoa humana tem consciência
de si mesma, somente a pessoa pode rir, chorar ou angustiar-se. Dotada da capacidade de criar
e de se aperfeiçoar, a pessoa é capaz de autonomia, por ser livre. Por que livre, a pessoa é dotada
de vontade. Conforme Tomás, a vontade tende ao Bem, mas não o faz necessariamente, sendo
preciso que o intelecto se anteponha ao querer, para que se possa distinguir o que é o
conveniente e o adequado. Como a vontade não está obrigatoriamente inclinada para um objeto,
é preciso que o ser humano escolha os meios possíveis para que se obtenha um fim almejado.
Bem é aquilo que a razão, retamente, indica ser adequado ou próprio ao homem. Mal, é o
que não corresponde à natureza do ser humano; para que ambos possam ser discerníveis, é
necessário a chamada reta razão.
Enquanto animal, o homem é dotado de tendências sensitivas, como o comer, o beber, o
sexo. Também dispõe de tendências intelectivas e apetites espirituais; a razão permite ao
homem ansiar pelos bens espirituais, escolher entre bens maiores ou menores, facultando ainda
ao ser humano aspirar a unir-se à Deus.
A antropologia tomista, embora considere a corporeidade de maneira mais positiva do que
a visão agostiniana, ainda avalia a sexualidade como exclusivamente destinada à reprodução.
Para Tomás, o casamento é um sacramento, onde as relações conjugais são um seu componente
necessário, entretanto, o prazer sensual em si mesmo, as carícias e os coitos desregrados são
pecados graves, que desviam o sexo de sua função natural.
Nesse período, a Igreja desenvolveu sua liturgia do matrimônio, sacralizando o casamento
(VAINFAS, 1986, p. 32). Ao mesmo tempo, ela é contrário ao celibato de todos – como
queriam algumas heresias – e também ao casamento profano, adotado pelos nobres que
assumiram os costumes germânicos. Para o clero, celibato e poder; para os leigos, continência
(mesmo no casamento) e submissão. O ardor excessivo entre os cônjuges, as posições
antinaturais (como a mulher por cima do homem, por exemplo e os excessos, o coito nos dias
não permitidos como a semana santa, natal, dias santificados, domingos etc.) eram questões
condenadas pelos confessores e teólogos da época.
A união sexual, dentro do casamento, somente se legitima pela procriação, e também para
conter o desejo e impedir a fornicação. Marido e mulher estão presos entre si pela dívida
conjugal, isto é, podem exigir um do outro a conjunção carnal, em condições de igualdade; mas
essa deve acontecer segundo a posição “natural”, isto é, o homem por cima da mulher, porque
é natural ao homem agir e à mulher suportar, cabendo ao homem o papel mais “nobre”. É
preciso destacar que, no período medieval, a condição social do nobre era exatamente a da
ociosidade e da recusa do trabalho, ou seja, a menos ativa. A posição do homem sobre a mulher
também eram considerada a mais adequada, porque permite a efusão do sêmen sobre o vaso

109
feminino de maneira mais eficiente, com a sua necessária retenção, favorecendo a procriação,
tudo isso função natural e essencial do sexo.
Os teólogos também discutiram se a “semente” feminina era necessária à reprodução,
segundo ensinava Galeno, ou não, conforme pensava Aristóteles. A maioria seguia o ensino do
pensador grego, mas se admitia que a participação da mulher ajudava a concepção, além de
tornar mais bela a criança. Por isso, muitos teólogos admitiam que a mulher podia se tocar e se
manipular para emitir a sua semente, caso o marido tivesse se retirado dela antes que ela tivesse
tido o orgasmo e a liberado.
Conforme comenta Flandrin (FLANDRIN, 1988, p. 143), nenhum dos teólogos antigos
inseria nos debates sobre a sexualidade humana a noção de amor. A relação conjugal era vista
no plano da justiça (dívida conjugal), na esfera “contratual”, e não no eixo do afeto. Quando o
amor entre marido e esposa era existente, era tratado como reprovável, pois, na verdade, o
casamento era um negócio entre famílias, e não uma combinação entre corações. Durante
dezoito séculos, o amor humano somente foi admitido pela Igreja se emasculado e disfarçado
de caridade. No sentido medieval da linguagem, “amoroso” significa o libertino, o luxurioso e
“prostituta” era a mulher que buscava as relações carnais por amor, que apreciava o prazer
sexual.
No discurso dos teólogos, o amor deve residir na relação do ser humano com Deus. Amar
é unir-se à Deus; existe uma erótica celeste, onde o amor se confunde com a oração e a salvação
(VAINFAS, 1986, p. 50); uma erótica dessexualizada, porém. Por outro lado, o amor também
era ágape, a comunhão fraternal. Ao fim, o casamento foi adaptado aos valores da ascese,
exigindo-se a continência e o coito exclusivamente destinado à procriação, ao lado da caridade,
o que o torna um estado de comunhão onde dois se tornam um, ainda que se preservando a
supremacia masculina.
Eliminação da alteridade, da distinção sexual e da igualdade entre os parceiros, tudo isso
esteve ausente da concepção cristã do amor conjugal. Excluído da moral matrimonial, o amor
foi se manifestar no mundo profano, como “amor cortês”, a partir do século XI. Embora não se
possa falar de uma moral sexual cristã imutável, já que vários discursos se combateram e se
conciliaram, conforme a época, em todos eles, com menor ou maior ênfase, houve uma
problemática da carne e um ideal de renúncia, segundo Ronaldo Vainfas, na sua obra já citada.

2. DA GERAÇÃO À REPRODUÇÃO
Para a compreensão da perspectiva naturalista medieval, é importante entender de que
conhecimentos se dispunha naquela época, para o entendimento da vida e da sua
perpetuação.
Desde sempre, pareceu ser evidente que os organismos vivos são o resultado de um projeto,
de um “design”. Até há pouco, o mundo vivo era tido como um sistema de regulação
comandado externamente, gerado a partir de fora por um poder soberano, que explicaria a sua
110
origem, a sua finalidade e seu funcionamento. Tudo se torna diferente quando os organismos
passam a ser explicados através de mecanismos imanentes, que funcionam de acordo com leis
fixas e impessoais. (JACOB, 1985, p. 15)
Até o desenvolvimento da Biologia enquanto ciência, a partir do século dezenove, não se
distinguia entre a necessidade e a contingência dos acontecimentos. Se o cavalo nasce do cavalo
e o gato provém do gato, até o século dezoito isso não acontecia por efeito de um mecanismo
que permita aos seres vivos produzir cópias de si mesmo. Somente nesse século a palavra e o
conceito de reprodução aparecem; anteriormente, os seres vivos não se reproduziam, eram
engendrados. Sua geração exigia a intervenção direta das forças divinas, existindo um modelo
original a partir do qual se fazem incontáveis criações simultâneas desde a origem do mundo;
uma vez criados, os seres aguardam o momento do seu nascimento, na medida da vontade do
Criador.
Toda planta, todo animal, todo homem, se descreve sempre como uma combinação
particular de matéria e forma; a matéria se compõe invariavelmente dos mesmos quatro
elementos, somente a forma, o “design” específico caracteriza e tipifica cada ser. A morte é o
desaparecimento da forma, e o nascimento, o momento em que a forma surge. Já a matéria, essa
é desprovida de iniciativa, sendo apenas organizada pela forma, que imprime, à ela, aspectos e
configurações particulares. Por sua vez, a forma é um princípio que opera segundo a direção de
Deus.
A ordem que existe num ser vivo, nessa concepção, não se distingue daquela que reina no
Universo. Tudo é natureza, e a natureza é uma. A similitude entre os corpos indica uma
comunhão de qualidades; de acordo com o princípio da analogia, podemos descobrir as
assinaturas, as semelhanças estruturais entre as coisas (JACOB, 1985, p. 32). Nesse período,
considerasse que um ser vivo representa uma malha, um fio na rede secreta que conecta tudo e
todos; como não conheciam a existência de espécies – uma permanência e invariância das
estruturas transmitidas por filiação – para os antigos, a produção dos descendentes de um ser
vivo não é uma necessidade cega e imperativa da natureza, mas uma ação específica de Deus.
Cada ser vivo tem as suas propriedades determinadas por sua alma, ou forma, ocorrendo a
geração quando a alma é implantada no corpo; no caso do ser humano, é a semente masculina
que ativa e dá forma à matéria, já que a mulher, sem a participação do homem, produz, sozinha,
somente bocados de carne informe.
Os pais são a sede das forças que unem a matéria à forma, mas acima deles atua um Obreiro
maior, que envia a forma essencial à cada ser. Na concepção dos seres vivos, a rede das
similitudes se desdobra, sendo possível à mulher, por exemplo, ao unir-se a um cão, produzir
um descendente com fisionomia canídea; outros monstros podem existir, denunciando os atos
imorais de seus pais, que se afastaram da ordem natural das coisas.
A partir do século XVIII, o conhecimento passa do plano divino para a esfera humana, pois
a natureza não exige mais ser contemplada, mas pode ser decifrada. Suas regularidades, mesmo
que tenham sido criadas por Deus, não se alteram jamais. O mundo dos seres vivos passa
gradativamente para o domínio dos mecanismos, submetidos à mesma ordem que regula os
movimentos celestes. O motor do movimento e da animação dos seres vivos não é mais a alma,
ou a forma, mas o arranjo mecânico das suas partes, ou o seu funcionamento bioquímico. Os
111
seres vivos somente diferem entre si pela organização da matéria, não pela presença de uma
essência, forma ou alma, inapreensíveis à observação e aos instrumentos científicos.
Com a descoberta da genética, do DNA e do darwinismo, a participação divina na
reprodução humana não foi mais considerada. Por outro lado, o advento dos recursos
anticoncepcionais desvinculou a reprodução do prazer, colocando a geração de novos seres
como passível de regulação e decisão por parte dos homens e das mulheres.
O desenvolvimento do conceito de reprodução permitiu que as explicações para os
fenômenos da perpetuação da vida, humana e em geral, passasse do plano da transcendência
para o nível da imanência. Quando a visão que enfatiza a transcendência é assumida, corre-se
o risco de posições ontológicas mais naturalistas, ao passo que a imanentização favorece a
emergência da subjetividade e da ciência modernas.

3. PERSONALISMO
Emmanuel Mounier (1905-1950), pensador francês, inseriu-se na tradição filosófica do
catolicismo, ao debruçar-se sobre o tema da pessoa. Para ele, a pessoa humana não é suscetível
de definição conceitual, sendo somente apreendida mediante uma vivência direta. Embora
crendo numa fundamentação ontológica da natureza humana, Mounier visa o modo
propriamente humano de existir, a condição humana, sempre situada e jamais definitivamente
dada (SEVERINO, 1974, p. 33).
Nem pura imobilidade, nem total espontaneidade, o homem não é um ser que simplesmente
desenvolve potencialidades pré-fixadas. Também não é pura autodeterminação. Não podemos
imobilizar a pessoa humana em algum conceito; somente se conhece o homem vivendo,
partilhando de suas verdades pessoais e provisórias. Para si próprio, o homem é opacidade e
mistério, inesgotável concreto. Existe no personalismo uma forte influência da filosofia
existencialista, que crê na pessoa humana como uma fonte de imprevisibilidade e autocriação;
também ao refletir sobre a corporalidade se nota essa grande aproximação.
Na perspectiva personalista, o homem é inteiramente “corpo” e ao mesmo tem inteiramente
“espírito”. Seu corpo faz parte da natureza, o homem não está decaído ou aprisionado na
natureza como queria Platão. Para elevar-se, o homem necessariamente se apoia no natural. O
homem é um corpo, não apenas “tem” um corpo. Pela corporeidade, o homem se expressa, se
manifesta, sem qualquer dualismo.
Também a historicidade caracteriza o ser humano. A pessoa está sempre enraizada, sempre
encarnada no tempo, no aqui e no agora, e, ao mesmo tempo, é dotada da capacidade de
transcender, de personalizar-se sempre mais, transformando seus instintos mais primários em
artes sutis, passando da necessidade de comer para a culinária, do sexo para o amor.
A pessoa humana é dotada de liberdade, imprevisibilidade, subjetividade (MOUNIER,
1964, p. 18). A pessoa se constrói de dentro para fora, num permanente processo de
personalização, que jamais cessa. É sempre singular, não é uma mera participação no coletivo
ou na Ideia. Para os gregos, a multiplicidade era um mal; para o personalismo, na esteira do
112
Cristianismo, a multiplicidade é uma superabundância; o próprio Deus não é um destino
impessoal ou um Logos frio e distante, mas Ele próprio é pessoa.
Deus preferiu que fosse o homem chamado livremente a amadurecer sua humanidade, tendo
o direito de pecar, direito essencial ao uso da liberdade. A noção de pessoa, na história da
Humanidade, demorou a amadurecer. Primeiro, foi necessário a reabilitação espiritual do
escravo e a superação da condição pré-técnica do mundo feudal. As aberrações platônicas,
refreadas pelo tomismo, dificultaram a afirmação da dignidade da matéria e da unidade da
constituição humana (MOUNIER, 1964, p. 27). Depois, o marxismo e o existencialismo
situaram o homem na história, na sociedade e na subjetividade.
A pessoa acha-se sujeita à uma permanente tendência para a despersonalização, para o
nivelamento e para a impessoalidade do mundo natural. Ao se personalizar, o homem
transforma a natureza e modifica a si mesmo. Pessoa, porém, não é sinônimo de indivíduo,
pois é essencial a sua dimensão social, já que somente convivendo e se mirando no outro é que
o homem se constrói, apenas se elevando acima do indivíduo a pessoa se faz.
Uma rica versão do personalismo foi elaborado pelo paleontólogo jesuíta Pierre Teilhard
de Chardin (1881-1955), que pretendeu ver a unidade de tudo na natureza, fundindo a teologia
cristã e o evolucionismo darwinista reinterpretado. Segundo ele, a , criação se dá por etapas; a
princípio a cosmogênese, depois a biogênese e finalmente a antropogênese, na qual o
surgimento da espécie humana marca uma fase de crescente complexidade (ARCHANJO,
1980, p. 22). Na antropogênese, surge um foco íntimo de organização e integração, a
consciência, que no homem é livre e criadora. Cada ser representa a união, a síntese de miríades
de seres inferiores; ao se unirem, propriedades novas e emergentes são produzidas. A União
cria, sem destruir seus componentes; a verdadeira união diferencia, e, no caso do homem,
personaliza.
Pelo amor, se forma a pessoa. Ao unir-se a outros, a pessoa se diferencia, se torna mais ela
mesma. A atração mútua dos sexos (CHARDIN, 1963, p. 79), a princípio destinada à
reprodução, passa depois a outro papel mais essencial, a síntese dos elementos masculinos e
femininos para a edificação da personalidade humana. Nesse momento, a sua função
reprodutiva passa para um nível menos importante. “Pero si el hombre y la mujer son
principalmente el uno para el outro, entonces concebimos que, cuanto más se humanizan, más
sienten, por este único hecho, uma necesidad mayor de juntarse.” (Idem, p. 80)
A personalização indica que há um papel cósmico na sexualidade. O amor não identifica
os seres, é relação que unifica e diferencia. O amor não é um egoísmo a dois, mas uma
descoberta em que ambos crescem e se personalizam ao se unirem. A Lei de Amor não implica
apenas na comunhão Homem-Deus, Mulher-Deus. O mundo não se diviniza por supressão,
mas sim por integração; quanto mais o homem e a mulher se amarem entre si, mais se unirão
ao Absoluto; o aspecto reprodutivo do sexo diminui e o amor, mais liberado dessa função, sem
deixar de ser físico, se tornará mais espiritual.
Para sermos plenamente nós mesmos, é na direção do outro, no sentido da convergência
com o mundo que devemos avançar. Nossa originalidade não está na nossa individualidade,
mas na nossa pessoa. (CHARDIN, 1970, 289).

113
Também na linha estrita do personalismo, Jaime Snoek, em seus textos, comenta que
Tomás de Aquino já avalia o prazer sexual como naturalmente bom, embora ainda não se tenha
libertado da visão naturalista que o vincula exclusivamente à procriação; Tomás leva em conta
a “amizade” entre o homem e a mulher, mas não enxerga a sexualidade como expressão
privilegiada desta amizade. (SNOEK, 1981, p.27).
Segundo Snoek, a sexualidade humana é bastante diferente da sua manifestação entre os
animais. Em primeiro lugar, depende muito pouco dos instintos, não havendo cio, o que torna
possível a dissociação entre prazer e função biológica. Para ele, a sexualidade humana envolve
os seguintes componentes:
- diferença: um não é o outro, o ser humano ou é homem ou é mulher;
- inclusividade: embora diferentes, se interpenetram. Cada um ser humano, também, é
masculino ou feminino, em doses e proporções variadas;
- reciprocidade: um se descobre no outro, através do outro, se reconhece na e pela relação;
- historicidade: as formas de relacionamento não são dadas, se constroem e reconstroem
segundo o tempo, os costumes, os lugares etc. SNOEK, 1981, p. 123)
Para ele, o significado da sexualidade é o crescimento criativo para a integração, pessoal e
interpessoal. Sexualidade é relação eu-tu, é abertura para o outro, é fecundidade, no sentido
amplo de criação. Também tem um sentido transcendental, ao libertar a pessoa de sua finitude
para uma espécie de salvação através da comunhão com o outro, prenunciando a integração
cósmica do ser humano. Ainda podemos dizer que a sexualidade é linguagem, forma de
expressão e diálogo.
Na mesma corrente do personalismo cristão encontramos a obra, atual, do teólogo espanhol
Marciano Vidal, nascido em 1937. Para ele, o paradigma naturalista, que embasava a visão
cristã da sexualidade, é falacioso. Não se pode compreender o matrimônio como tendo por fim
primário a reprodução, nem reduzir a ética sexual à uma discussão dos métodos de regulação
da natalidade. Segundo Vidal, a ênfase na dimensão procriativa do casamento tem por origem
a filosofia estoica. (VIDAL, 1992, p. 32). Para ele, a moral tradicional do cristianismo se
preocupou mais com a instituição do matrimônio, enquanto instância jurídica, do que com os
direitos e os valores das pessoas; não eram o bem e a felicidade das pessoas que estavam em
jogo, mas a defesa da instituição.
No modelo antropológico personalista, a suprema missão do casamento é a vivência do
amor conjugal, com aceitação plena da sexualidade do casal. Lembra esse teólogo que no
Concílio Vaticano II se exalta a bondade do amor conjugal de uma pessoa para outra, como
expressão do bem que enobrece as faculdades do corpo e da alma, em regime de amizade. O
carinho, a fidelidade, o caráter definitivo e totalizante da entrega mútua são as qualidades do
amor conjugal que se devem buscar e construir. Não devem ser tomadas como obrigações
jurídicas, mas como metas que se devem continuamente almejar.
Segundo Vidal, o amor conjugal é livre, nascido do encontro gratuito entre duas pessoas.
É totalizante, não no sentido de uma posse exclusivista, mas como doação total; é fecundo, isto
114
é, criativo, sem se limitar à procriação. Se baseia na promessa e na decisão, e não na mera
paixão momentânea. Na visão católica, no entanto, o amor conjugal se dá no plano do encontro
heterossexual. (VIDAL, 1992, p. 42).
Ao estudar a moral sexual católica, Marciano Vidal a considera incapaz de compreender
toda a complexidade do comportamento homossexual. Segundo ele, a homossexualidade é um
sentido global do ser humano, a condição antropológica de alguém, e não apenas, e nem
principalmente, um fenômeno sexual, embora sua peculiaridade se manifeste especialmente ao
nível da sexualidade (VIDAL, 1985, p. 9 ). Para ele, a condição do homossexual é a de saber-
se instalado, de maneira exclusiva, na atração por companheiros do mesmo sexo, sem que isso
possa ser caracterizado como desvio ou patologia, física ou psicológica.
Homossexuais e heterossexuais podem ter o mesmo valor humano, não se distinguindo
eticamente, ambos, em função de sua orientação sexual, eis que o ser humano é
multidimensional, não se reduzindo à sua configuração anatômica ou orientação sexual. Vidal
afirma que, na grande orquestra da vida humana, a homossexualidade pode ser considerada
capaz de produzir notas e contrapontos originais, contribuindo para a riqueza melódica do
conjunto. Ainda afirma que não se pode afirmar que homo ou heterossexualidade sejam
“naturais”, já que ambas as formas de comportamento podem ser encontradas entre diferentes
espécies animais, o que invalida a tese segundo a qual certas formas de orientação ou prática
sexuais são “naturais” e, outras , “anti-naturais”, como ensinava no passado a doutrina moral
do catolicismo. Embora a sexualidade humana seja composta de elementos biológicos, sociais
e culturais, nosso conhecimento a seu respeito ainda é muito fragmentário e modesto.
A posição de outro teólogo contemporâneo, Marc Oraison, é semelhante, já que, para ele,
o fato de ser homossexual não pertence à ordem moral. Para ele, imoral é todo comportamento
despersonalizante, quer seja praticado em contexto de hetero ou homossexualidade. O critério
ético de uma ação não está na sua orientação sexual, mas no grau de humanização e
personalização que ela pode trazer e apresentar. (VIDAL, 1986, p. 13)
Em resumo, ao estudar a moral sexual católica, Vidal a considera incapaz de compreender
toda a complexidade do comportamento sexual humano, ao mesmo tempo em que considera
que a Igreja Católica, inserida na cultura ocidental, dela assimilou preconceito como o
machismo, a misoginia e o discurso androcêntrico. Segundo ele, os equívocos que a ética sexual
cristã cometeu são os seguintes:
- a compreensão procriativista da sexualidade, que provém do estoicismo e não se coaduna
com a tradição bíblica;
- influência marcante do dualismo helênico e do platonismo e neoplatonismo na negação e
desvalorização do prazer, na depreciação da corporalidade e da condição humana encarnada;
- reducionismo genital, e normatividade da natureza em relação ao ser humano, o que faz
com que a sexualidade se reduza à genitalidade, produzindo uma moral “biologicista”
desvinculada da totalidade da pessoa humana;
- abordagem pré-científica, já que no momento em que foi elaborada, o desenvolvimento
da ciência e especialmente das ciências humanas era bastante modesto.
115
4. CONCLUSÃO PARCIAL
Finalmente, pode-se notar uma grande transformação no pensamento ético do Cristianismo,
se compararmos a visão dos primeiros mestres da Patrística e, o pensamento tomista, ambos de
matriz naturalista, e a corrente do personalismo cristão do século passado. Tal como entendido
no personalismo, o conceito de pessoa traz notável abertura para o diálogo e maiores
possibilidades de compreensão da sexualidade e das questões de gênero. A visão personalista
da pessoa humana se apoia muito nos dados das ciências humanas, afastando-se de uma
ontologia essencialista. Ao mesmo tempo, considera que nosso conhecimento a respeito das
realidades humanas é pequeno e ainda bastante insuficiente. Deve-se salientar, no entanto, que
as posições dos teólogos aqui apresentados, como Snoek, Marciano Vidal e Oraison ainda não
são as predominantes no seio da doutrina católica.
Em 2003, por exemplo, o então Papa João Paulo II aprovou um documento, emitido pela
Congregação para a Doutrina da Fé, onde condena os projetos de reconhecimento legal das
uniões entre pessoas homossexuais e reafirma o entendimento tradicional da Igreja, segundo o
qual o casamento é uma relação entre homem e mulher. Para ele, nas relações homossexuais
está totalmente ausente o componente conjugal, razão pela qual inclusive se desaconselha que
sejam autorizações adoções de crianças por casais homossexuais, que não podem permitir a elas
um desenvolvimento saudável. Em todo o texto, evidencia-se claramente uma posição
naturalista, inclusive com citações de autores da patrística e de Tomás de Aquino.

116
REFERÊNCIAS

1. ARCHANJO, José Luiz. Teilhard de Chardin. SP, Cultrix, 1980.


2. ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades Ocidentais. SP, Brasiliense, 1987
3. BOEHNER, Philoteus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Petrópolis,
Vozes, 1970.
4. CHARDIN, Pierre Teilhard de. La Energia Humana. Madrid, Taurus, 1963
5. ------. O Fenômeno Humano. Porto, Tavares Martins, 1970
6. FERRY, Luc. O que é uma vida bem sucedida? RJ, Difel, 2008
7. FLANDRIN, Jean-Louis. O Sexo e o Ocidente. SP, Brasiliense, 1978
8. HIRSCHBERGER, Johannes. História da Filosofia Medieval. SP, Herder, 1969
9. JACOB, François. A Lógica da Vida. Lisboa, Dom Quixote, 1985
10. MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. SP, Duas Cidades, 1964
11. NOGARE, Pedro Dalle. A Pessoa Humana em Santo Tomás in: LADUSÃNS.
Stanislavs. Presença Filosófica. SP, 1974.
12. PLATÃO. O Banquete. SP, Abril Cultural, 1978
13. SEVERINO, Antônio Joaquim. A Antropologia Personalista de Emmanuel Mounier.
SP, Saraiva, 1974
14. SNOEK, Jaime. Ensaio de Ética Sexual. SP, Paulinas, 1981
15. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. SP, Ática, 1986
16. VIDAL, Marciano et alii. Homossexualidade: ciência e consciência. SP, Loyola, 1985
17. ------. Moral do Matrimônio. Petrópolis, Vozes, 1992

117
Fabio Dalpra

RESUMO: A obra Sobre a Trindade (de trinitate), escrita por Agostinho de Hipona entre os
anos de 400 e 416, representa um momento crucial na consolidação de seu pensamento. Dentre
os vários temas de natureza filosófica e teológica presentes ao longo dos quinze livros que a
compõem, destaca-se a reflexão acerca da constituição e da existência humana, desenvolvida a
partir da convergência entre a discussão trinitária e a questão antropológica. Neste sentido, o
presente artigo tem por objetivo discutir os conceitos que fundamentam a estrutura
antropológica do tratado trinitário agostiniano.

Palavras-chave: Agostinho de Hipona, antropologia, imagem de Deus.

ABSTRACT: Augustine of Hippo’s On the Trinity (de trinitate), written between 400 and 416,
is commonly view as a critical moment of his thought. Many of the main philosophical and
theological themes of the Augustinianism find on its pages a definitive approach. Among the
important discussions that permeate the Trinitarian treatise, the problem related to the existence
and constitution of man stands out. It can be said that the Trinitarian issue converges to the
anthropological issue. Therefore, the present article intends to discuss the foremost concepts
and schemes of the Augustinian anthropology in his work On the Trinity.

Keywords: Augustine of Hippo, anthropology, image of God.

INTRODUÇÃO

O pensamento de Agostinho de Hipona está intrinsecamente marcado pela questão


antropológica. É possível mesmo dizer, como um desdobramento desta afirmação, que a
amplitude dos temas abordados em sua obra convergem para o problema do ser humano. Como


Doutor em Ciência da Religião pela UFJF. Professor do IFSULDEMINAS.
118
chegou a mencionar, interessava-lhe conhecer, sobretudo, a alma e Deus.1 No espaço
compreendido entre as duas realidades se situa o próprio âmbito de efetivação do problema
antropológico para Agostinho, afinal, a existência humana somente revela seus traços
substanciais na medida em que se expõe em sua abertura para o transcendente. Com isso, todo
o pensamento agostiniano carrega consigo, de uma maneira geral, a marca da antropologia. Não
obstante as revisões conceituais e epistemológicas que marcam o percurso antropológico do
agostinianismo2 – o qual, aliás, ainda se encontra à espera de um estudo abrangente e
sistemático –, a questão acompanha, seja furtiva ou explicitamente, as várias excursões de sua
reflexão.
Por decorrência, este contexto teórico oferece uma relevante perspectiva hermenêutica
a partir da qual a obra trin. pode ser dimensionada. Ao longo de toda sua discussão teológico-
dogmática, há uma apreensão ponderada acerca da existência humana diante do mistério
trinitário.3 Em última instância, o que está em jogo no tratado é, antes, a descoberta da própria
existência interior do ser humano que propriamente o desvendar da natureza trinitária divina
que, tal como reconhece Agostinho a certa altura de sua reflexão, é insondável em sua realidade
mesma. Com isso, trin. não corresponde tão somente a um dos vários momentos antropológicos
do agostinianismo, mas se trata de um lugar privilegiado por onde se obtém uma mirada pan-
óptica sobre o que se pode chamar de antropologia agostiniana. Isto se deve em parte por se
tratar de uma obra de maturidade, mas também, e sobretudo, porque na aproximação imagética
entre o ser humano e Deus Agostinho acredita ter encontrado um aporte definitivo para uma
compreensão aprofundada do ser humano em sua constituição mais íntima, isto é, nas estruturas
trinitárias que perfazem sua interioridade.

IMAGO DEI

1
sol. I,2,7. Aqui e doravante, as obras de Agostinho serão abreviadas conforme as nomenclaturas propostas no
Augustinus-Lexikon (cf. MAYER, Cornelius Petrus. Augustinus-Lexikon, p. XXVI-XL): lib. arb. (de libero
arbitrio), sol. (soliloquia), trin. (de trinitate). As citações de seus escritos correspondem a traduções diretas da
Patrologia Latina (Paris, 1844) de Migne e, no caso do trin., da edição do Corpus Christianorum (Lyon, 1942).
2
Embora se refira mais propriamente à diversidade dos aspectos formais da antropologia agostiniana, Lewis
destaca sua constante reformulação ao afirmar que “in developing his own anthropology Augustine puts forward
many different strategies and patterns, and hints at many more which are never fully drawn out”. AYRES, Lewis.
Between Athens and Jerusalem, p. 66.
3
Nas palavras de Lewis Ayres, “Augustine wants to describe humanity as ultimately reliant on God, and existing
only in the process of relationship to the Trinity”. AYRES, Lewis. Between Athens and Jerusalem, p. 60.
119
Em um nível basilar, a formulação antropológica presente nas páginas do trin. tem sua
origem no tema escriturístico que serve de sustentação à reflexão trinitária agostiniana como
um todo, a saber, a criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus. Ao refletir sobre a
passagem do Gn 1,26 que serve de referência ao tema da imago Dei, Agostinho pondera que na
expressão

façamos o homem à nossa imagem e semelhança, façamos e nossa foram ditas no


plural, e não podem ser compreendidas a não ser como relação. Não para que se
fizessem deuses, ou à imagem e semelhança de deuses, mas para que o Pai, o Filho
e o Espírito Santo fizessem à imagem do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que
subsistisse o homem como imagem de Deus. Ora, Deus é Trindade.4

A implicação antropológica da questão trinitária não poderia passar despercebida por


ele pois se o ser humano é essencialmente imagem de um Deus que é trino, essa estrutura
trinitária deve estar presente na constituição mais íntima dos seres criados. No entanto, essa
formulação da essência trinitária humana, de matriz essencialmente escriturística, não
representou, de forma alguma, o desenlace das inquietações antropológicas de Agostinho, mas
uma espécie de introito que propiciou a visualização das questões ali pressupostas e que
conclamariam a uma reflexão mais pormenorizada. Ao se interrogar acerca do real significado
da expressão imago et similitudinem Dei e sobre onde, de fato, subsiste no ser humano tal
imagem, ele descortina a seara marcadamente antropológica da questão trinitária.
A fim de responder a tais indagações e compreender a real implicação do criacionismo
cristão, Agostinho adentraria os dois paradigmas antropológicos que coexistem em seu
pensamento: o neoplatônico e o cristão. Vislumbra-se, aqui, a importância do trin. na medida
em que fornece uma das mais extensas abordagens do problema em sua obra.
Ele sustenta, por um lado, em consonância com a tradição neoplatônica, que o ser
humano é composto por um porção corpórea/material e uma porção espiritual. No entanto, a
esse dualismo formal se sobrepõe uma estrutura tricotômica de origem paulina. A porção
espiritual compreende um parte inferior (anima) e uma superior (denominada, com certa
flexibilidade, de animus, spiritus, mens). Divisão que não implica em uma cisão substancial da

4
trin., VII,6,12.
120
alma (“[...] a alma é alma toda inteira [...]5), mas em uma delimitação funcional.6 Ademais, é
exatamente esta especificação das funções superior e inferior da alma que permite um
entendimento da relação entre as porções material e espiritual do ser humano que ultrapassa a
solução um tanto esquemática de uma oposição que resulta no desmerecimento do corpo. Na
medida em que há uma ligação cognoscitiva da alma com corpo, depreende-se que, respeitando
a ordem que se estabelece entre os conhecimentos sensível e inteligível, a porção material
possui indelével importância na constituição epistemológica do ser humano.7
Contudo, embora essa discussão centrada em torno de uma, por assim dizer, morfologia
psicológica seja um momento importante da antropologia agostiniana – vide, por exemplo, seu
desenvolvimento mais profundo no Livro II do lib. arb. – é preciso ter em mente que ela
compreende apenas uma parte da mesma. O texto do trin. é explícito ao demonstrar que a
discussão antropológica passa decerto pela análise intrínseca das relações entre corpo, alma e
espírito, sobretudo em suas implicações epistemológicas, mas deve se estender à profunda
ligação desta interioridade com a essência divina. Vínculo marcado, exatamente, por sua
condição imagética. Logo, é na apreensão da semelhança entre a estrutura das atividades
intrínsecas à mente e a essência trinitária divina que o foco da análise de Agostinho se abre às
questões antropológicas subjacentes.
Primeiramente, sua investigação se concentra na identificação da localização desta
imagem trinitária no ser humano. Duas passagens do trin. revelam, respectivamente, a
construção argumentativa e a resposta à questão. No livro XI, ele escreve: “pois nem tudo que
nas criaturas seja de algum modo semelhante a Deus pode ser dito sua imagem, mas apenas
aquela [a mente], a qual somente [Deus] é superior”;8 o que conduz a uma passagem do livro
XV, na qual se lê: “portanto, cada homem não é chamado imagem de Deus devido a tudo o que
pertence à sua natureza, mas [devido] somente à sua mente; e é uma pessoa [pela] imagem da
Trindade que existe na mente”.9

5
trin., X,4,6.
6
Agostinho fala em duas funções (officia) da alma, cf. trin., XII,3,3; XII,4,4.
7
Conforme pontua Agostinho, “[...] seguramente, algo de nossa atenção racional, isto é da própria mente, deve ser
dirigido ao trato das coisas mutáveis e corporais, sem o que não se conduziria a vida [...]”. trin., XII,13,21.
8
trin., XI,5,8.
9
trin., XV,7,11.
121
A afirmação constante na primeira citação remete à distinção entre imagem (imago) e
vestígio (vestigium). Embora todo o ser humano – e, a bem dizer, toda a criação – possua
semelhança com o criador, por onde se entende que seus vestígios se espalham por todas as
criaturas, a imagem fica resguardada à culminância da criação, isto é, à mente humana. A
diferenciação entre imagem e vestígios serve, assim, como um importante instrumento
conceitual, não por acaso a relação entre ambos é objeto de reflexão em diferentes passagens
do trin.10 É preciso reconhecer a função da distinção entre vestígio e imagem no percurso
interiorizante e ascensional a ser seguido pelo conhecimento humano: deve se iniciar na
apreensão dos vestígios trinitários espalhados por toda a criação até que se encaminhe
progressivamente para a circunspecção da imagem trinitária existente unicamente na mente
humana.11 Além disso, enquanto se considera o corpo como detentor de vestígios do criador,
faz-se necessária a revisão de uma hermenêutica que, aproveitando-se das raízes platônicas do
pensamento agostiniano, insiste em atribuir uma oposição rígida entre corpo e espírito que
desembocaria em um radical desprezo pela matéria. Em síntese, embora haja de fato uma
inescusável gradação valorativa entre ambos, o corpo assume uma condição relevante seja pela
semelhança que possui com o criador, seja pela contiguidade cognoscitiva entre os sentidos e a
razão, ou ainda por sua função na destinação salvífica do ser humano uma vez que o decurso
da existência natural do ser humano, entendida em sua plenitude corporal e espiritual, é seu
momento axial.12
No livro XV, Agostinho é assertivo: a imagem trinitária na mente humana é o que
permite que se atribua ao ser humano a condição de pessoa (persona) – muito embora, o ser
humano não seja exclusivamente essa imagem, pois, como vimos, o corpo é também um de

10
Cf. trin., VI,10,12; XII,5,5. Em duas outras oportunidades, Agostinho lança mão da expressão effigies
(representação) de maneira sinonímica a vestigium, cf. trin., XI,1,1 e XIV,3,5.
11
Cf. “é necessário, portanto, que conheçamos, por uma circunspecção do intelecto, a Trindade criadora através
da qual todas as coisas foram feitas e cujo vestígio aparece nas criaturas na proporção de sua dignidade”. trin.,
VII,10,12. Conforme expressa Étienne Gilson, “pour lui [Agostinho], les invisibilia Dei sont les Idées de Dieu, de
sorte que connaître Dieu à partir du sensible, c’est remonter des choses à leurs Idées; [...] l’itinéraire normal d’une
preuve augustinienne va donc du monde à l’âme et de l’âme à Dieu”. GILSON, Étienne. Introduction à l’étude de
Saint Augustin, p. 22.
12
Ao inquirir sobre a relação entre corpo e alma, Agostinho reflete: “porém se, então, definirmos o homem de
modo que digamos: ‘o homem é uma substância racional constituída de alma e corpo’, não resta dúvida que o
homem tem uma alma que não é corpo, e um corpo que não é alma”. trin., XV,7,11. Em síntese, é possível dizer
que essa intricada relação implica em uma unidade antropológica (a alma e o corpo constituem o mesmo homem),
uma distinção substancial (ele possui uma alma que não é corpo e vice-versa) e uma continuidade funcional.
122
seus elementos constituintes. Com isso, tem-se o espírito como um núcleo antropológico para
Agostinho, devido à sua condição singular de imagem de Deus. Conceituação que, de certa
forma, identifica a antropologia agostiniana como expressão paradigmática do que Lima Vaz
classificava de modelo antropológico cristão.13

AS ESTRUTURAS TRINITÁRIAS DA MENTE

A tarefa de identificar as bases da reflexão antropológica do trin. deve se prolongar no


aprofundamento das questões que servem para revestir a estrutura inicialmente erguida. A
primeira delas diz respeito ao conteúdo da imagem trinitária na mente humana: o que significa
dizer que a plena apreensão da antropologia agostiniana passa necessariamente pelo
entendimento da extensão e das faculdades relacionadas à imago Dei?
Esse movimento se inicia no impulso de autoconhecimento do ser humano. Afinal, se a
imagem trinitária se encontra no que ele possui de mais eminente, é na compreensão da própria
mente que se principia o conhecimento de si e o conhecimento possível de Deus. Logo, o que
entra em questão é a apreensão que a mente possui de si mesma. É pela própria mente que se
percebe a existência de si como irredutível e autônoma com relação ao mundo e às demais
criaturas.14 Embora os sentidos sejam necessários para o conhecimento das realidades
corpóreas, no que refere ao conhecimento das realidades imateriais, não se exige mais que a
própria atividade intrínseca da mente. Segundo Agostinho, “logo, tal como a mente recolhe o
conhecimento das coisas corpóreas por meio dos sentidos corporais, é por si mesma que

13
Cf. VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica, p. 63-67. É preciso acrescentar, com isso, que a
fundamentação escriturística da antropologia agostiniana apresenta, de fato, implicações teóricas que precisam ser
levadas em consideração quando se pretende abordá-la a partir de uma perspectiva filosófica, porém, somente sob
o risco de se ignorar um expressivo e singular constructo filosófico se poderia excluir a reflexão agostiniana do
âmbito da filosofia sob a acusação de se basear em theologoumena. Tais implicações, apesar de assumirem diversas
nuanças conceituais e temáticas, parecem convergir para uma grande questão: o caráter inquestionável da condição
imagética do ser humano. Embora tal proposição esteja aberta a incursões hermenêuticas e analíticas, o contexto
cultural e, acima de tudo, a condição confessional e o vínculo institucional de Agostinho impedem a efetivação de
uma inquirição plenamente crítica. Neste sentido, há que se aceder ao fato que a antropologia filosófica agostiniana
se fundamenta em uma proposição que se encontra além do alcance epistemológico da própria filosofia.
14
Apontando para alguns dos desdobramentos desse movimento primordial da mente, Peter Hampson aponta que
“Augustine’s account of the self is motivated by the philosophical search for reconciliation with oneself; it is
articulated through a narrative of conversion which culminates in the recovery of himself as a Trinitarian image
of God; and it is mediated through the guidance of Christ”. HAMPSON, Peter. Whose self? Which unification?
Augustine's anthropology and the psychology-theology debate, p. 551.
123
[recolhe o conhecimento] das incorpóreas. Portanto, já que ela própria é incorpórea é por si
mesma que ele se conhece”.15 Com isso, todo o processo de autoapreensão da mente se efetiva
no interior de si mesma. Mais ainda, esse conhecimento é imediato pois a evidência de sua
realidade é condição sine qua non de sua atividade.
A partir do dobramento cognoscitivo da mente sobre si é possível distinguir, de
imediato, duas realidades: a mente e o conhecimento que ela possui acerca de si mesma (o que
Agostinho chama de notitia). Entretanto, o próprio movimento de autoconhecimento implica
também na emergência do amor que a mente devota a si a partir do momento mesmo em que
se conhece. A presença de si apreendida pela mente está ligada, por conseguinte, ao
conhecimento e ao amor a si. Três realidades – mente, conhecimento e amor (mens, notitia,
amor) –, em uma só natureza.16
O caráter imediato implicado no conhecimento e no amor da mente a si mesma
prefigura, neste estágio, uma atividade autocentrada e pré-reflexiva da mente. O
autocentramento denota que se trata de uma ação restrita à percepção, por parte da mente, de
sua própria realidade e que antecede um posicionamento diante da realidade de outras mentes
e do mundo em geral.17 Neste caso, a passagem do conhecimento de si para aquele a partir de
si acompanha a vinculação das três realidades (mens, notitia, amor) às faculdades que as
fundamentam. De acordo com Agostinho, “há, além disso, uma grande distância quando

15
trin., XI,3,3.
16
Cf. “decerto, quando a mente conhece a si mesma, seu conhecimento não a excede, porque é ela mesma que
conhece e é conhecida. Pois quando se conhece totalmente, sem qualquer outra coisa [acrescida] a si, seu
conhecimento é igual a ela, porque o conhecimento não é de uma natureza diferente da sua quando conhece a si
mesma. E quando se percebe totalmente, sem nada mais, [o conhecimento] não é nem menor, nem maior. Logo,
com razão dissemos que os três [mens, notitia e amor], quando perfeitos, são por consequência iguais”. trin.,
IX,4,4.
17
Conforme argumenta Gareth Matthews, é preciso destacar que Agostinho não pretende no trin. uma reflexão
sobre o solipsismo. Portanto, a inferência da mente sobre sua realidade é acrescida pela percepção da realidade das
outras mentes. Segundo suas palavras, “[...] eu acabo por reconhecer mentes nos outros quando enxergo uma
analogia entre o modo como o meu próprio corpo se movimenta em resposta às minhas próprias crenças e desejos,
e o modo como outros corpos humanos se movimentam”. MATTHEWS, Gareth. Santo Agostinho, p. 89. Adiante,
ele conclui que se parte “desde um repertório completo de movimentos corporais que se assemelham aos
movimentos em meu corpo que noto serem provocados por minha mente, até à conclusão de que deve existir uma
mente naquele outro corpo que produz esse repertório de movimentos”. MATTHEWS, Gareth. Santo Agostinho,
p. 99. Ao se destacar, dessa maneira, a superação do solipsismo no pensamento agostiniano, é também importante
sublinhar que a percepção da realidade da própria mente e a percepção da realidade das demais dizem respeito a
duas atividades mentais distintas. A primeira (notitia) é imediata, uma espécie de conhecimento geral (genere
notus) sobre si mesma; a segunda, denominada de cogitatio, não implica mais em um conhecimento geral e pré-
reflexivo, mas em uma atividade mental – na qual a percepção de si (notitia) se encontra certamente pressuposta
– que exige a mediação da vontade para se dirigir àquilo que se pretende conhecer. Cf. trin., X,4,6; X,5,7.
124
dizemos, com relação ao homem, sua mente, conhecimento e amor, ou memória, inteligência,
e vontade; [pois], nada lembramos na mente a não ser pela memória, nada conhecemos a não
ser pela inteligência e nada amamos a não ser pela vontade”. 18 Em outras palavras, subjacente
ao autocentramento da mente ao se conhecer e se a amar, há o concurso da memória, da
inteligência e da vontade. Na apreensão da relação entre essas duas estruturas triádicas,
expõem-se, em traços mais nítidos, as especificidades da proposta antropológica agostiniana.
Pressupõe-se, aqui, o entrecruzamento de dois eixos: primeiro, a coordenação entre as
dimensões volitiva e cognoscitiva do ser humano; além disso, a continuidade entre o movimento
interiorizante (“ego-cêntrico”) da mente e outro ascensional (“ex-cêntrico”). Pode-se dizer,
assim, que a existência humana passa irrefutavelmente pela efetivação da vontade e do
conhecimento. Considerando as questões éticas, epistemológicas, existenciais e religiosas aí
implicadas, o caminho a ser percorrido pelo ser humano pressupõe, precipuamente, uma
ordenação e um aperfeiçoamento do seu querer e do seu pensar. Na coordenação dessas duas
atividades – onde se presume, decerto, o concurso de um benefício divino – está o traço
diferencial do ser humano frente às demais criaturas. Retificar a vontade e purificar a
inteligência, para que se queira o que deve ser desejado e conhecer o que deve ser conhecido.
Em complementação a essa ideia, estivesse a mente restringida à imediaticidade de seu
conhecimento e amor, o ser humano não se constituiria como uma efetiva realidade na medida
em que se encontraria reduzido ao domínio de sua própria existência, escapando-lhe,
primeiramente, a existência do mundo exterior e dos demais seres que compartilham e conferem
um sentido mais profundo a sua vida – na medida em que testemunham a existência de uma
ordem sobrenatural –, mas, sobretudo, a abertura para a existência de um ser transcendente,
responsável não somente pela criação dos demais seres, mas também pela sua manutenção.
A partir daí, a discussão se encaminha para o movimento central da análise
antropológica agostiniana desenvolvida ao longo do trin., isto é, a passagem da memória de si
(memoria sui), da inteligência de si (intelligentia sui) e do amor a si (amor sui) para a memória
de Deus (memoria Dei), a inteligência de Deus (intelligentia Dei) e o amor a Deus (amor Dei).
Conforme afirma no livro XII,

18
trin., XV,7,12.
125
logo, a trindade da mente não é imagem de Deus somente porque a mente recorda,
compreende e ama a si mesma, mas porque pode também recordar, compreender e
amar aquele por quem foi criada. Quando assim o faz, torna-se sábia. Por outro lado,
se não o faz, mesmo que recorde, compreenda e ame a si mesma, é estulta. Portanto,
que se recorde de Deus, à imagem de quem foi criada, e que o compreenda e o ame.19

As atividades cognitiva e volitiva da mente em sua autoapreensão se desdobram, de fato,


na memória, na inteligência e no amor a si mesmo. Contudo, o processo que fundamenta a
singularidade antropológica defendida por Agostinho somente alcança seu perfazimento a partir
do momento em que, por meio dessa autopresentificação, o ser humano alcança a memória, a
inteligência e o amor de Deus. O que daí se depreende é que a busca por um fortalecimento da
imagem trinitária existente no ser humano não se resume ao reencontro com sua própria
essência por meio de um aprofundamento mnemônico, intelectivo e volitivo, mas pela
possibilidade de que ao cabo desse percurso o ser humano ultrapasse os limites de sua
autoapreensão e reconheça a presença de Deus em si mesmo.20
É, portanto, nos domínios da interioridade humana que se efetua o movimento central
de sua existência: a passagem do sui ao Dei. Se o ser humano, conforme mencionado
anteriormente, não é uma pessoa a não ser pela imagem divina que se reflete em sua estrutura
trinitária, é na efetivação da memória, da inteligência e do amor enquanto memória, inteligência
e amor daquele que é seu próprio fundamento que se revela o espaço antropológico da reflexão
agostiniana. Conforme acrescenta no livro VII do trin., é ainda a partir da semelhança implicada
nessa estrutura que se dimensiona a dupla possibilidade para o ser humano de se mover em
direção a Deus (ad Deum) ou contra Deus (ab Deo).21 As preposições ad e ab cristalizam, desse
modo, o caráter dinâmico de sua antropologia. É a partir do duplo movimento que a ele se impõe
que o ser humano confere realidade à sua existência.

19
trin., XII,12,15.
20
É preciso sublinhar que esse movimento coordena dois momentos: um do exterior ao interior (ab exterioribus
ad interiora), outro do inferior ao superior (ab inferioribus ad superiora). Agostinho é, ainda, enfático ao defender
a importância do Mestre Interior (Cristo) na exercitatio fidei et rationalis implicada nesse processo. Segundo
Moacyr Ayres, “[...] a fé opera uma transformação da razão porquanto cria para esta a exigência de se mover, de
procurar a verdade para além dela mesma”. FILHO, Moacyr Ayres Novaes. A razão em exercício, p. 114. Ademais,
emprestando dois conceitos de Henrique Cláudio de Lima Vaz, a contiguidade entre fé e razão na exercitatio
agostiniana aponta para o próprio encontro entre o homo religiosus e o homo philosophicus no interior de sua
antropologia. Cf. VAZ, Henrique C. de Lima. A metafísica da interioridade, p. 106. Para toda essa discussão, cf.
especialmente trin., XIII,19,24; XIV,19,26.
21
Cf. trin., VII,6,12. Discussão que revela uma longa reminiscência do tema da conversio ad Deum e aversio a
Deo constante no lib. arb., II,19,53.
126
O problema antropológico do trin. se encontra vinculado, portanto, – e aqui
emprestamos uma fórmula de Przywara – ao fundamento e fim e sentido de uma existência
criatural que não pode ser entendida em um sentido estático.22 A realização existencial do ser
humano é definida no movimento, no ultrapassamento de si mesmo. Por consequência, não há
possibilidade, para Agostinho, de que a existência e o autoconhecimento da mente não suscite
ipso facto a questão sobre a existência do ser infinito.23 Naturalmente, o contexto trinitário do
trin. vincula essa autoapreensão ao próprio entendimento de sua condição de imagem – não há
como desassociar, neste caso, a questão antropológica da questão trinitária –, contudo, é preciso
considerar, sem contradição com a ideia anterior, que o tratado expõe um posicionamento
antropológico que não pode ser instrumentalizado em relação à questão dogmática trinitária.
Somente dessa maneira se torna possível estimar a relevância da obra para a compreensão da
antropologia presente no pensamento de Agostinho de Hipona.

CONCLUSÃO

A partir da reflexão desenvolvida por Agostinho ao longo das páginas do trin. – exposta
em suas linhas gerais neste artigo –, depreende-se que sua antropologia se define exatamente
por seu caráter dinâmico. Ela não corresponde a um entendimento estático do ser humano, mas
a uma visão que preconiza a busca cognoscitiva e volitiva, racional e fideísta, do fundamento
de sua existência e que cuja marca se faz perceber na semelhança entre as estruturas trinitárias
da mente e a própria essência trinitária de Deus. Não obstante as inúmeras questões de ordem
dogmática relacionadas à questão, destaca-se nessa procura do ser humano pelo ser que é seu
fundamento e sentido, primeiro e último, o movimento dramático de efetivação da sua
existência. Em síntese, a imagem trinitária composta pela memória, inteligência e vontade
conflui no ato decisivo de aproximação ou afastamento de Deus (ad Deum ou ab Deo), e
precisamente na convergência entre tais conceitos é que se estabelece a estrutura de seu modelo
antropológico.

22
Sobre o conceito de fundamento e fim e sentido, cf. PRZYWARA, Erich. Analogia entis, p. 27 et passim.
Cf. “todo homem que se pergunta seriamente sobre si mesmo será confrontado com o mistério maior que é Deus.
23

Aqui está o cerne da antropologia agostiniana”. TEIXEIRA, Evilázio Francisco Borges. Imago Trinitatis, p. 163.
127
REFERÊNCIAS

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Modern Theology, New York, vol. 8, n. 1, Jan. 1992, p. 53-73.

AYRES, Lewis. Augustine and the Trinity. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

FILHO, Moacyr Ayres Novaes. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho.
2. ed. São Paulo: Paulus, 2009.

GILSON, Étienne. Introduction à l’étude de Saint Augustin. Deuxième édition. Paris: J.


Vrin, 1943.

HAMPSON, Peter. J.; HOFF, Johannes. Whose self? Which unification? Augustine's
anthropology and the psychology-theology debate. New Blackfriars, Oxford, v. 91, n. 1035,
Sep. 2010, p. 546-566.

MARKUS, Robert. “Imago” and “similitudo” in Augustine. Revue des Études


Augustiniennes, Paris, v. 10, n. 2-3, p. 125-143, 1964.

MATHEWES, Charles. Augustinian Anthropology: interior intimo meo. Journal of Religious


Ethics, Washington, n. 27.2, p. 195-221, summer 1997.

MATTHEWS, Gareth. Santo Agostinho: a vida e as idéias de um filósofo adiante de seu tempo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

MAYER, Cornelius Petrus (ORG.). Augustinus-Lexikon. Basel e Stuttgart: Schwabe Verlag,


1986.

PRZYWARA, Erich. Analogia entis. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.

TEIXEIRA, Evilázio Borges. Imago Trinitatis. Deus, sabedoria e felicidade. Porto Alegre:
Edipucrs, 2003.

VAZ, Henrique C. de Lima. A metafísica da interioridade: Santo Agostinho. In: ____.


Ontologia e História. São Paulo: Duas Cidades, 1968.

_______. Antropologia filosófica. 4ª ed. São Paulo: Loyola, 1991. [Tomo I]


128
Ricardo Reali Taurisano

RESUMO: Este trabalho procura destacar, tendo por base a Retórica de Aristóte-
les, o papel das provas que se dizem “técnicas” ou “da arte” (ἔντεχνοι πίστεις):
êthos, páthos e lógos, nas Confissões de Agostinho de Hipona, as quais, para
muito além das simples tarefas de construção de caráter, manipulação das paixões
ou ornamentação do discurso, com finalidade exclusivamente persuasória e ago-
nística, exercem papel filosófico fundamental na obra do hiponense. Para tanto,
emreende-se primeiramente uma síntese propedêutica do sistema retórico aristo-
télico, seguida de considerações de caráter teórico sobre os três gêneros retóricos
nas Confissões, judiciário, deliberativo e epidíctico, para, for fim, discorrer sobre
o papel das provas propriamente ditas.

PALAVRAS-CHAVE: Retórica, Agostinho, Aristóteles, Confissões

ABSTRACT: Based upon the Rhetoric of Aristotle, this work intends to highlight
the role of the so-called “technical proofs” or “proofs of the art” (ἔντεχνοι
πίστεις), êthos, páthos and lógos in the Confessions of Augustine of Hippo,
which, far beyond the simple tasks of character building, passions manipulation
or speech ornamentation for exclusively persuasive and agonistic purposes, play
a fundamental role in the thought of the African philosopher. To this end, it first
undertakes a propaedeutic synthesis of the Aristotelian rhetorical system, followed
by theoretical remarks on the three rhetorical genres in the Confessions, forensic,
deliberative and epideictic, in order to deal, at last, with the roles of the proofs
themselves.

KEYWORDS: Rhetoric, Augustine, Aristotle, Confessions

129
As provas da arte retórica: êthos, páthos, lógos
nas Confissões de Agostinho de Hipona

Ninguém ensina geometria assim


οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει
Aristóteles
(Retórica 1404a12)

Introdução

Diferentemente do trabalho que deu origem a este artigo1, cujo foco recaiu com peso
maior sobre a elocução (elocutio), das partes retóricas a que mais se relacionava com o que se
entende hoje por “estilo”, e que, como se esforçou por demonstrar, guarda potencial não apenas
argumentativo, mas sobremodo filosófico, este texto, por sua vez, pretende circunscrever-se aos
três gêneros de provas retóricas, que Aristóteles denomina “técnicas” ou “da arte”: êthos, páthos
e lógos, e seu emprego nas Confissões. Embora as figuras retóricas possam ser compreendidas
como argumentos em forma condensada, fazendo parte igualmente das provas, não apenas por
seu potencial argumentativo, mas também por prestarem valioso auxílio na construção ética dos
caracteres e na movimentação das paixões, há de se concentrar aqui, ainda que de modo bastante
sucinto, nas ferramentas propriamente argumentativas, segundo os fins e meios de cada um dos
três gêneros de provas técnicas supracitados. Para tanto, contudo, não se poderá prescindir duma
brevíssima e propedêutica síntese do sistema retórico aristotélico, que serviu de base para todas
as considerações empreendidas neste texto acerca da arte2, síntese que se fará antes do trata-
mento das provas retóricas nas Confissões.

1
Trata-se da nossa tese de doutoramento (FFLCH-USP, 2014), sob a orientação do prof. Moacyr A. Novaes
(USP), intitulada O enigma do espelho: a retórica do silêncio nas “Confissões” de Agostinho de Hipona, cujo
apêndice (M): Êthos, páthos, lógos, serviu de base para este texto, a partir da sugestão do prof. Pedro Calixto
(UFJF).
2
Embora desnecessária uma tal justificativa, pode-se argumentar em favor do recurso quase que exclusivo à
Retórica de Aristóteles pelo simples motivo de dar peso maior ao lógos, mesmo quando trata das outras duas
provas, o êthos e o páthos, o que serve perfeitamente aos propósitos deste artigo, ao contrário da obra retórica de
Cícero, por exemplo, que imprime destaque ao êthos, em detrimento do lógos e do páthos. Isso, sem dizer do fato
de a obra retórica de Aristóteles ter servido de base a quase todos os tratados subsequentes sobre o tema, inclusive
os contemporâneos, como os de Perelman-Tyteca, Reboul, Plebe e Emanuele, Barthes, Meyer, entre outros.
130
O sistema retórico aristotélico: uma síntese

Não constituindo um fim em si mesma, a retórica é apenas útil (χρήσιμος), diz Aristó-
teles (1355b14)3, o que equivale a dizer que serve para algo ulterior; tampouco se limita a algum
objeto específico de persuasão (οὐ περί τι γένος ἴδιον), o que implica sua utilização em qual-
quer gênero de discurso, em qualquer área em que seja necessário argumentar para algum fim,
porque nenhuma arte pode ocupar-se do particular, que é infinito (τὸ δὲ καθ’ ἕκαστον ἄπειρον)
(1356b30-7). Assim sendo, os temas de que trata a retórica são (1357a1-4): 1. temas passíveis
de deliberação (βουλευόμεθα); 2. temas para os quais não há arte sistemática (τέχνας μὴ
ἔχομεν), ou seja, que estão fora do escopo dalguma ciência ou técnica; 3. temas que se tratam
diante de pessoas comuns, incapazes de efetuar ou acompanhar raciocínios lógicos elaborados
(οὐδὲ λογίζεσθαι πόρρωθεν) ou de contemplar uma visão de conjunto (διὰ πολλῶν
συνορᾶν). E se os temas são passíveis de deliberação, são igualmente controversos, pois não
se delibera senão acerca do que aparente admitir (ao menos) dois modos de pensar (1357a4-5)
(περὶ τῶν φαινομένων ἐνδέχεσθαι ἔχειν ἀμφοτέρως). Portanto, trata a retórica de temas so-
bre os quais não se tem certeza, pois para os assuntos passados, presentes ou futuros, que de
modo indubitável foram (γενέσθαι), serão (ἔσεσθαι), ou são (ἔχειν), ninguém delibera (οὐδεὶς
βουλεύεσθαι), porque não se discute acerca do certo, apenas do duvidoso (ἀμφισβητήσιμος),
uma vez que nada se aprende do que já é sabido, explica o filósofo.
E assim como os temas tratados, três são igualmente os tipos de ouvintes (τῶν
ἀκροατῶν), que de um modo ou de outro são todos juízes: 1. aquele que ajuíza (κριτής) das
coisas passadas (τῶν γεγενημένων); 2. o membro da assembleia (ἐκκλησιαστής) ou do con-
selho (βουλευτής), que julga das coisas futuras (τῶν μελλόντων); 3. ο espectador ou contem-
plante (θεωρός), que julga das coisas presentes (1358b1-6). Do que decorre serem três também
os gêneros discursivos, voltados respectivamente aos três tipos diferentes de ouvintes (1368b6-
7): 1. judiciário (δικανικόν), que presume o juízo dum magistrado (δικαστής) num tribunal
(δικαστήριον); 2. deliberativo (συμβουλευτικόν), que presume ou o membro da assembleia
(ἐκκλησία) ou do conselho (βουλή), órgãos legislativos sobremodo; 3. epidíctico
(ἐπιδεικτικόν) ou demonstrativo, que presume a presença dum público de espectadores
(θεωροί), seja para um panegírico (λόγος πανηγυρικός), ou mesmo para uma conferência
filosófica (ἐπίδειξις). Dos três gêneros de discurso, o judiciário volta-se predominante mas não

3
As referências à Retórica de Aristóteles se farão pela edição crítica da série Oxford Classical Texts, anotada
e revista por Ross, que teve como base a edição de Bekker, cotejada com outros manuscritos.
131
exclusivamente ao que se denomina páthos, o deliberativo, ao êthos, enquanto o epidíctico, ao
lógos, o que, trocando em miúdos, significa dizer: 1. que nos discursos do gênero judiciário se
procura movimentar as paixões dos juízes a fim de obter um juízo favorável à causa que se quer
justa, ou um juízo desfavorável à causa adversária, que se reputa injusta; 2. que nos discursos
deliberativos procura-se construir um caráter moral digno de admiração, respeito e sobretudo
confiança, a fim de persuadir a assembleia ou o conselho acerca dum dado curso de ação, que
se julga proveitoso, ou dissuadi-la de algo, por reputá-lo inútil ou nocivo, o que não se faz senão
sobre o êthos, uma vez tratar-se de algo completamente incerto, o futuro, cujas garantias se
esteiam apenas sobre a opinião dos ditos homens de bem; e por fim, 3. que nos discursos do
gênero epidíctico trata-se sobremaneira (mas não exclusivamente) do próprio discurso, quando
se pretende louvar ou censurar, seja o belo, o bom, ou seus contrários, o feio e o mau, diante
dum auditório de espectadores, que pode ser também o de um universo determinado de leitores.
Nos três gêneros descritos, que se dirigem para o passado (judiciário), futuro (delibera-
tivo) e presente (epidíctico), faz-se preciso argumentar em favor da causa, daquilo que se con-
sidera respectivamente justo, útil e belo, ou seus contrários. E seja qual for o juízo que se tenha
em mente, necessário se faz o recurso às chamadas provas (πίστεις) retóricas, que, segundo
Aristóteles, podem ser “técnicas” (ἔντεχνοι) ou “não-técnicas” (ἄτεχνοι)4 (1355b-1356a). As
primeiras se referem a tudo aquilo que é fruto do esforço do orador dentro das regras da arte
(τέχνη). As segundas, a tudo o que está fora da arte, não tendo sido produzido pelo orador,
como: 1. testemunhos (μάρτυρες); 2. contratos (σύγγραφαι); 3. e até confissões obtidas por
meio de tortura (βάσανοι). Portanto as provas técnicas devem ser “descobertas” ou “encontra-
das” (εὑρεῖν); as não-técnicas, apenas utilizadas (χρήσασθαι). Evidente que as provas que mais
interessam à arte retórica (ao menos à aristotélica) são antes as de caráter técnico (1356a1-4),
fruto do esforço de invenção (εὕρεσις) do orador, segundo o método (διὰ μεθόδου) da arte,
quais sejam: 1. êthos (ἦθος): as provas éticas, que se atêm ao caráter do orador (αἱ ἐν τῷ ἤθει
τοῦ λέγοντος); 2. páthos (πάθος): as provas que objetivam pôr o auditório num certo estado
de espírito, ao movimentar seus sentimentos, aguçar suas paixões (αἱ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν
διαθεῖναί πως); 3. lógos (λόγος): as provas que nem se voltam especificamente para a audi-
ência tampouco para o orador, e sim para o próprio discurso (αἱ ἐν αὐτῷ τῷ λόγῳ). Pois bem,

4
Os termos ἔντεχνοι e ἄτεχνοι, “técnicas” e “não-técnicas”, que qualificam “provas” (πίστεις), por vezes se
traduzem também por “artísticas” e “inartísticas”, “artificiais” e “inartificiais”, ou ainda “intrínsecas” e “extrínse-
cas”.
132
se as provas técnicas são destes três gêneros, depreende-se como necessário, para o êthos, pá-
thos e lógos, respectivamente: 1. o estudo dos caracteres (τοῦ θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη) e das
virtudes (καὶ τὰς ἀρετάς); 2. o estudo das emoções ou paixões da alma (θεωρῆσαι περὶ τὰ
πάθη); 3. e o estudo do raciocínio lógico ou silogístico (τοῦ συλλογίσασθαι δυναμένου)
(1356a20).
Em cada um dos gêneros retóricos predomina uma prova técnica apropriada, sem exclu-
são das restantes, assim como tarefas e objetivos específicos, a saber: 1. no gênero judiciário,
cujo predomínio do páthos já se referiu, o orador tem por tarefa (πράξις) a acusação
(κατηγορία) e a defesa (ἀπολογία), e por objetivo ou finalidade (τέλος) ajuizar do justo (τὸ
δίκαιον) e do injusto (τὸ ἄδικον) acerca de fatos passados; 2. no deliberativo, por sua vez, cujo
peso do êthos foi posto em destaque, tem-se a tarefa da exortação (προτροπή) ou da dissuasão
(ἀποτροπή) acerca do proveitoso (τὸ συμφερόν) ou do prejudicial (τὸ βλαβερόν), com res-
peito aos eventos futuros; 3. por fim, no epidíctico, cuja prova principal é o lógos, tem-se por
tarefa o louvor (ἔπαινος) ou a censura (ψόγος), seja sobre o belo (τὸ καλόν) ou o bom (τὸ
ἀγαθόν), seja sobre o feio (αἰσχρόν) ou sobre o mau (τὸ κακόν), em relação às coisas que são,
no presente.
Argumentos ou provas de tipo demonstrativo igualmente predominam em cada um dos
gêneros retóricos, sem, obviamente, implicar a exclusão dos demais. Daí que, 1. no judiciário,
argumenta-se em favor do justo ou contra o injusto, seja acusando ou defendendo, por meio
predominantemente de entimemas (ἐνθυμήματα) e máximas (γνῶμαι), o que não exclui ne-
nhum dos demais recursos; 2. no deliberativo, por sua vez, argumenta-se em favor ou contra
um determinado curso de ação proveitoso ou prejudicial, seja pela exortação ou dissuasão,
acima de tudo por meio de exemplos (παραδείγματα), pois é a partir do que fizeram homens
ilustres do passado, em feitos não menos ilustres, que se pode deliberar em vista dum futuro
incerto; 3. por fim, no gênero epidíctico, argumenta-se a favor de ou contra uma determinada
qualidade, virtude, vício, tese, ou pessoa, seja louvando ou censurando, de modo principal por
meio da amplificação, que pode ser positiva (αὔξησις) ou negativa (ταπείνωσις), sem que se
excluam os demais recursos probatórios.
Todo esse “sistema” retórico elaborado ou desdobrado por Aristóteles pode ser visuali-
zado com mais clareza na seguinte disposição tabelar:

Tabela I

133
GÊNEROS DE

τῶν λόγων
DISCURSO
τρία γένη
PROVAS PROVA
AUDITÓRIO JUÍZO E TEMPO TAREFAS E OBJETIVOS
TÉCNICAS DEMONSTRATIVA
ἀκροατής κρίσις καὶ χρόνος πράξεις καὶ τέλος
πίστεις ἔντεχνοι ἀπόδειξις

ACUSAÇÃO Ε DEFESA
JUDICIÁRIO

ENTIMEMAS
DO QUE DECORREU,
δικανικόν

JUIZ-TRIBUNAL κατηγορία, ἀπολογία


PÁTHOS E MÁXIMAS
δικαστής, NO PRETÉRITO
πάθος ἐνθυμήματα,
δικαστήριον περὶ τῶν γεγενημένων O JUSTO E O INJUSTO
τὸ δίκαιον, ἄδικον γνῶμαι
DELIBERATIVO

LEGISLADOR-AS-
συμβουλευτικόν

EXORTAR E DISSUADIR
SEMBLEIA/ DO QUE PODE OCORRER, προτροπή, ἀποτροπή
ÊTHOS EXEMPLOS
CONSELHO NO FUTURO
ἦθος O ÚTIL E O PREJUDICIAL παραδείγματα
βουλευτής, περὶ τῶν μελλόντων
ἐκκλησία/ βουλή τὸ συμφερόν, βλαβερόν

LOUVOR E CENSURA
SOBRE O QUE É, ἔπαινος, ψόγος
EPIDÍCTICO

ESPECTADOR-
ἐπιδεικτικόν

NO PRESENTE
CONFERÊNCIA LÓGOS O BELO OU BOM AMPLIFICAÇÃO
θεωρός,
(DA VIRTUDE DO DISCURSO) λόγος αὔξησις, ταπείνωσις
περὶ τῆς δυνάμεως E O FEIO OU MAU
ἐπίδειξις τὸ καλὸν ἢ ἀγαθόν,
τοῦ λόγου
τὸ αἰσχρὸν ἢ κακόν

Importa notar que a coluna das “provas técnicas” deve ser compreendida do seguinte modo: 1.
no gênero judiciário, preponderância do páthos, seguido de lógos e êthos; 2. no deliberativo,
preponderância do êthos, seguido de lógos e páthos; 3. no epidíctico, preponderância do lógos,
seguido de páthos e êthos. Isso porque em todos os gêneros se fazem necessárias todas as três
provas técnicas, mescladas, com a precedência de uma ou outra em relação às restantes. E o
mesmo se diga da coluna das provas “demonstrativas”, que deve ser entendida do seguinte
modo: 1. judiciário: preponderância dos entimemas e máximas, sem excluir exemplos e ampli-
ficações; 2. deliberativo: preponderância dos exemplos, sem omissão de entimemas, máximas
e amplificações; 3. epidíctico: preponderância da amplificação, seja pela auxese ou tapeinose,
sem que se excluam máximas, exemplos e entimemas. De fato, Aristóteles encerra o segundo
livro da retórica dando destaque igual aos três recursos, ao dizer que, em relação ao lógos (περὶ
τὸν λόγον), ou seja, no que tange à atividade do pensamento (διάνοια), tanto exemplos
(παραδείγματα), como entimemas (ἐνθυμήματα) e máximas (γνῶμαι) se fazem igualmente
importantes (1403a34-35).
Embora Aristóteles priorize sobremodo os fatos e a demonstração, reconhece a necessi-
dade do recurso aos outros gêneros de provas que não as exclusivamente apodícticas, uma vez
ter plena consciência de que os adversários a elas recorrem, muita vez sem escrúpulos, care-
cendo o orador de estar ciente de seu mecanismo, ao menos para defender-se como se deve,

134
pois seria esdrúxulo (ἄτοπον), reconhece o filósofo (1355a39-b2), se se considerasse vergo-
nhoso (αἰσχρόν) que o corpo não pudesse defender-se a si mesmo, mas que a mesma defesa
não fosse facultada ao espírito, pela atividade mental-discursiva, uma vez que o que caracteriza
o homem é muito mais a atividade intelectual que a física5. Portanto, embora desejasse intima-
mente restringir sua Retórica ao tratamento das matérias úteis para o entimema (1354a5), que
é o silogismo retórico, como faz no primeiro livro, segundo cada um dos gêneros, contudo, uma
vez que cada um dos três tipos de ouvintes, relacionados respectivamente aos três gêneros dis-
cursivos, é em si mesmo uma espécie de juiz (κριτής), a quem cabe ajuizar seja do justo ou do
injusto, do proveitoso ou do nocivo e do belo ou do feio, numa palavra, como a retórica grosso
modo tem que ver com “juízos” (ἕνεκα κρίσεώς ἐστιν ἡ ῥητορική), reconhece o filósofo que
não basta tornar o discurso apenas apodíctico (ἀποδεικτικός), ou crível (πιστός), por meio das
provas exclusivamente demonstrativas (λόγος), como o entimema e os exemplos, mas também
saber como fazer com que o orador pareça ter um determinado caráter (ἦθος), além de ser capaz
de pôr os juízes, sejam quais forem, num certo estado de espírito (πάθος). Pelo que faz enorme
diferença que o orador mostre-se possuidor de certas qualidades (τὸ ποίον τινα φαίνεσθαι τὸν
λέγοντα) e que seus ouvintes estejam dispostos de certo modo em relação a ele, pensando, por
sua vez, que ele também esteja disposto de certo modo em relação a eles. No discurso delibe-
rativo, é mais importante que o orador pareça ser portador dum caráter ilibado, confiável; no
judiciário, que os que irão julgar estejam dispostos de modo favorável à causa e ao pleiteante.
No epidíctico, por sua vez, os dois anteriores não devem ser desprezados, quando importa não
apenas a construção dum certo caráter, mas também a disposição do auditório, no que redunda
numa certa combinação êthos-páthos, que se deve submeter ao serviço do lógos, a fim de em-
preender o louvor ou a censura. Em assim sendo, máximas (γνῶμαι), exemplos
(παραδείγματα), amplificações (αὐξήσεις) de toda sorte, de par com as ferramentas da elocu-
ção (λέξις), como as figuras (σχήματα) e os tropos (τρόποι), se combinam, não apenas pela
beleza que podem conferir ao estilo, mas principalmente por sua força (δύναμις) argumentativa,
o que os transforma em armas bastante eficazes tanto para o discurso de louvor como para o de
caráter filosófico.
Conhecidos, pois, os gêneros de discurso, os auditórios específicos de cada um, junta-
mente com os tempos e juízos das ações, as provas técnicas, as tarefas, objetivos e provas de-
monstrativas predominantes, resta conhecer as três grandes metas que devem ser cumpridas em

5
(1355a39-b2): “ἄτοπον εἰ τῷ σώματι μὴ δύνασθαι βοηθεῖν ἑαυτῷ, λόγῳ δ᾿ οὐκ αἰσχρόν· ὃ μᾶλλον
ἴδιόν ἐστιν ἀνθρώπου τῆς τοῦ σώματος χρείας”.
135
cada uma das fazes de composição do discurso: 1. invenção (εὕρεσις ou inuentio): descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται); 2. disposição (τάξις ou dispositio): ordenar
as partes do discurso, isto é, as provas encontradas na invenção (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου); 3. elocução (λέξις ou elocutio): tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν), ou seja, do modo de
apresentação das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8). Da primeira meta, a
invenção ou descoberta das provas, Aristóteles tratou nos dois primeiros livros, ao discorrer
sobre as matérias adequadas ao entimema e aos exemplos, de par com o que é útil à construção
dos caracteres e o estudo detalhado das paixões da alma, com vistas à afetação dos juízes. Res-
taram apenas a disposição das matérias e a elocução, ou seja, o tratamento do estilo, o que o
filósofo empreende fazer no terceiro e último livro da Retórica.
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως), Aristóteles pondera que não basta possuir
o quê, se não se souber como dizê-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16), o que se deve fazer sempre de
modo claro, já que a grande virtude da elocução é a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2), e o discurso que não for claro não cumprirá sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον). Tendo as matérias de persuasão a seu dispor, o orador deve cuidar da apresen-
tação desse material (λέξει διαθέσθαι), ou seja, do estilo do discurso, para então empregar a
força (δύναμις) de ação, atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις). Essa atualização ou representação do discurso, hupókrisis, que em latim se deno-
mina actio, refere-se à sua expressão oral, compreendendo questões de voz (φωνή), volume
(μέγεθος), harmonia (ἁρμονία), ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος), que pode ser agudo (ὀξύς),
grave (βαρύς) ou médio (μέσος).
Por fim, no que tange à disposição das matérias (περὶ τῆς τάξεως), cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retórica (1414a29), Aristóteles resume em duas as partes
principais do discurso, isso porque nem toda parte da divisão tradicional respeitava a todo e
qualquer gênero: 1. o estado da questão (πρόθεσις), isto é, a exposição da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se há de argumentar (περὶ οὗ); 2. a prova (πίστις), ou seja, a demonstração
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36). A divisão tradicional, por sua vez, elenca as seguintes partes: 1.
proêmio ou exórdio (προοίμιον); 2. narração (διήγησις), que se subdivide em: 2.1 exposição
da causa (πρόθεσις) e 2.2 refutação (ἀντιδίκησις); 3. prova (πίστις); 4. peroração ou conclusão
(ἐπίλογος); destas, contudo, apenas o proêmio, o estado da questão, a prova e a peroração se
aplicam a todos os gêneros retóricos (1414b8-9).
Do que se disse, não se deve imaginar que o discurso filosófico esteja fora do âmbito
retórico, pois ainda que se trate do discurso de um só, pretende sempre persuadir ou persuadir-
136
se de algo, seja duma verdade, ideia, crença ou prática. E todo aquele que deve ser persuadido,
seja o próprio autor do discurso ou um outro, se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης). Deste modo, esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν), é preciso uma vez e sempre recorrer à argumentação
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι), a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contrário
(1391b13-14), o que é apropriado ao gênero de discurso epidíctico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς), como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην), que no caso é o espectador (θεωρός), aquele que contempla, observa,
aprende, à maneira dum discípulo, dum arguidor dialético, ou do próprio filósofo, se este estiver
apenas escrevendo.

Os gêneros retóricos nas Confissões: considerações teóricas

Quando se está diante de temas controversos, que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar, como os temas tipicamente retóricos (1357a1-5), a demonstração apodíctica
(ἀπόδειξις) raramente é possível, diz Olivier Reboul (2000, p. 27), não sendo nada “científica”
a exigência de “respostas” de caráter científico, como ocorre nas Confissões, por exemplo,
quando se quer falar das “coisas” de Deus. Contudo, entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignorância acerca
do mistério abissal do Ser, encontra-se todo um universo de possibilidades retóricas, cujo rei-
nado pertence ao argumento. E se argumentar não é senão propor y para que se admita x, como
bem o ilustra esse autor (ibid., pp. 91-2.), que se poderia argumentar acerca do Ser, enquanto
Ser (x), sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y), daquilo que apenas
é? Recursos há, porém, que permitem dizê-lo, argumentando, enquanto Ser, ainda que de modo
ilusório, oblíquo, silencioso, a partir dos mecanismos que a arte retórica oferece, seja com o
auxílio do êthos, do páthos ou do lógos, os três gêneros de provas ditas técnicas.
Um dos objetivos de Agostinho, ao pretender falar de Deus, tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος), na referida acepção aristotélica, isto é, passível de disputa por ser
não-apodíctico, pelo que igualmente retórico, pode-se dizer seja pôr em destaque primordial-
mente o lógos, o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gênero epidíctico, em que
predomina a função referencial da linguagem, uma pseudoterceira pessoa discursiva, melhor
compreendida como uma não-pessoa, ou seja, aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1).
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος), porém não especificamente quando fala

137
com Deus, ο “para quem” (πρὸς ὅν) (1388b1), pois o Ser divino, enquanto segunda pessoa
discursiva, é onisciente e, embora deixe-se dalgum modo misterioso comover, por causa de sua
misericórdia, por ser igualmente justo, ele, cujo juízo é inexorável, torna a tarefa quanto ao
páthos um tanto obstada. Por isso os esforços de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus, e sim aos seus leitores, o auditório cristão, a quem o
filósofo confessa de fato dirigir-se (Conf. 2,3,5): “A quem estou relatando estas coisas? Ora,
não a ti, meu Deus, e sim, na tua presença, relato-as aos de meu gênero, ao gênero humano, por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritos”6.
Quer comover, portanto, além de fazer converter para Deus, como se viu convertido,
fazendo com que as almas se elevem, movidas pela penitência, o que não se faz senão tendo em
vista uma ação futura (περὶ τῶν μελλόντων). E se para falar de Deus carece dum lógos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος), que é também contemplação (θεωρεῖν), contemplação do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν), a comoção não se faz sem os recursos do páthos, tampouco
prescindindo do êthos, a fim de edificar um caráter penitente, digno do arrependimento ou con-
versão mental (μετάνοια), a que todo cristão deve submeter-se, antes de crer no Evangelho,
como admoestava Cristo (Mc 1,14-15): “Arrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lho!” (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ). Portanto Agostinho carece também de
construir, sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου), seu êthos, discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5), para os “juízes” (δικασταί)
do auditório cristão, pois seu pretérito precisa de ser desenodoado. Destarte, ao narrar suas
desventuras pregressas, confessando-se a Deus e aos homens, põe em destaque seja um Tu
divino, que é também a terceira pessoa discursiva e seu referente, pois é dele que se fala, seja
um tu humano, semelhante a si, seu leitor. Pelo que lógos, êthos e páthos se fazem necessários,
de modo temperado, segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra.
Tendo, pois, construído um êthos confiável, a partir de suas gestas pregressas, segundo
a tábua de valores cristãos, como a humildade ou a misericórdia, por exemplo, pode Agostinho
direcionar daí em diante sua atenção para o futuro, ao modo do gênero deliberativo, a fim de
comover as almas, exortando-as (προτρέπω), seja a voltar-se para Deus, o Fim último ou Bem
supremo, que se louva pelos recursos do lógos, seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal, que equivale a um afastamento deste mesmo Fim último, o que é também
tarefa do páthos, quando então o discurso põe em destaque a segunda pessoa, requerendo um

6
(Conf. 2,3,5): “Cui narro haec? neque enim tibi, deus meus, sed apud te narro haec generi meo, generi
humano, quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litteras.”
138
domínio sobre as paixões, a fim de conduzir o auditório ao objetivo (τέλος) almejado, que,
como se disse, é sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων). Todavia, se não se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος), em conformidade com o que diz Aristóteles,
e sim aquilo que leva até ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19), ou seja, os meios,
os quais por sua vez residem nas ações (κατὰ τὰς πράξεις), tem-se, como sequência necessária,
que: 1. o útil serve a um propósito ulterior, um fim; e que, 2. se o fim for bom, o útil não apenas
levará a esse bem, mas será também de algum modo bom, ainda que mediatamente e em menor
grau. Daí que não apenas o útil, em favor de que se delibera, seja bom, mas também a práksis
contrária o seja, a saber, a rejeição do nocivo, do inútil. E com efeito, seja para Aristóteles ou
Agostinho, o Bem (ἀγαθόν) último ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα), e não de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14). Esse Fim (τέλος), que coincide com o Bem supremo, é aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17). Em se admitindo, com o autor
da Retórica, que esse Fim último, embora sendo desejado, não seja objeto imediato de delibe-
ração, e sim as ações (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele, percebe-se, sem muito
esforço, que as deliberações acerca deste Fim, chame-se eudaimonía ou Ser supremo, fazem-se
sobremodo a partir de ações, que podem ser virtuosas, quando então se aproxima do objetivo,
ou viciosas, quando dele se afasta, restando manifesto e inconteste o potencial tanto do êthos
como do páthos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz, em princípio, pela uita
beata, e posteriormente, pelo Sábado eterno, seja nas quatro virtudes cardeais: justiça, tempe-
rança, prudência e coragem, ou nas três teologais: fé, esperança e caridade, a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem último e supremo, Deus; seja, por outra, na comoção necessária
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera, sem perder
de vista o fim último que se almeja.
E se o deliberativo tem sua função na exortação, tampouco se faz ausente da obra o
gênero judiciário, que contempla sobremodo ações de acusação (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b). De fato, que faz Agostinho na parte dita biográfica da obra, enquanto
narra suas desventuras pretéritas, senão acusar-se de seus erros, como a experiência entre os
maniqueus, entre os céticos, ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago; ou então
fazer a apologia da Graça divina, da continência, da conversão, de sua mãe (ao contrário do pai,
que ele prefere acusar)? Acusação e defesa, portanto, seja de atos seus pretéritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5), seja de doutrinas ou ideias que reputa não apenas inimigas do cami-

139
nho que leva ao Fim último por ele eleito, mas também antagônicas à própria concepção des-
posada deste Ser supremo, como o dualismo maniqueu, por uma, ou o ceticismo de tipo neoa-
cadêmico, por outra, que perigosamente ameaçava uma das próprias virtudes teologais, a não
dizer duas, fé e a esperança, por meio duma descrença radical na possibilidade de acesso a
noções fundamentadas acerca do verdadeiro.
E se se podem perceber nuanças do deliberativo e do judiciário, na exortação ou dissu-
asão, na acusação e na defesa, muito mais no caso do gênero predominante expresso pelas Con-
fissões, o epidíctico, que, segundo Aristóteles, compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3). De fato, que faz Agostinho ao longo das Confissões senão cen-
surar o que afasta de Deus, louvando o que dele aproxima o homem; censurar o pecado, lou-
vando seu contrário, as virtudes; fazer o elogio da vida feliz (beata uita), vituperando seu
oposto, a infeliz (misera)? E mesmo quando censura, seu objetivo não é senão louvar, louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se está censurando, pois não se trata de discorrer
sobre o vício, sobre o torto, sobre o caminho errado que se não deve percorrer, numa palavra,
não se trata de discorrer sobre o mal, porque ele não existe (entenda-se o mal ontológico). Ao
contrário, trata-se de louvar o que É, o Ser por excelência, Deus, e toda a sua obra, cujo paro-
xismo não é outro senão o momento em que cria o homem. Paradoxal seria, pois, limitar-se ao
vitupério, o que equivaleria a ressaltar apenas e tão somente aquilo que não possui existência
real, o mal ou antisser7, como quem escrevesse um livro sobre o que não é. As Confissões,
portanto, empreendem sobretudo um discurso de louvor, que se bem pode denominar filosofia
do louvor, a qual se enquadra perfeitamente no gênero epidíctico, cuja tônica é dada pelo lógos,
enquanto referente, aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1), referente de múltiplos sen-
tidos, que se pode compreender não apenas como a Palavra que é Deus, mas também a palavra
de Deus, a palavra sobre a palavra de Deus, a palavra sobre o Deus que é Palavra e profere
palavras, embora esse mesmo referente, enquanto Verbo divino, seja inefável, donde ser neces-
sário que esse lógos seja também linguagem, nos recursos retóricos precisos a que se diga o
indizível.
Todos os três gêneros, portanto, prestam auxílio recíproco, pois quem louva no presente
deve fazê-lo também por meio das lembranças do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanças futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα); e o justo, por sua vez, objeto das
reflexões judiciárias, pode igualmente ser feio ou belo, útil ou inútil, matéria dos outros dois

7
O que de esdrúxulo possa haver neste composto se deve às novas regras do Acordo Ortográfico de 1990. O
que se quis expressar é o contrário do ser, “anti-ser”, que não mais se grafa assim, com hífen.
140
gêneros; assim como útil e o inútil, matéria de deliberação, que podem ser justos ou seu con-
trário, belos ou não; ou ainda o bom e o mau, que podem muito bem ser inúteis ou não, justos
ou não, em conformidade com o que diz Aristóteles, justificando assim a mistura dos gêneros
retóricos (1358b27-1359a4). Porém o gênero epidíctico parece ser o mais completo dos três,
uma vez nem focar demasiado no passado, como o judiciário, tampouco no futuro, como o
deliberativo; ao contrário, ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος), louvando ou
censurando as coisas que de fato são (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα), é-lhe permitido voltar-se tanto às
reminiscências pretéritas quanto ao que pode vir a ser, como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissões, que nem se limitam a perscrutar o passado, tampouco a
especular esperançosamente sobre o futuro, ou mesmo sobre o presente, na investigação do
próprio rememorar, quando então empreendem o louvor do que é, foi e há de ser, de par com o
do que sempre e indefectivelmente é.
Uma última palavra acerca da retórica se faz necessária, antes de voltar a atenção para
os três gêneros de provas técnicas nas Confissões. Quando se propõe apresentar uma resposta,
diz Michel Meyer (2010, p. 53), a retórica tende a ocultar o problemático, fazendo com que a
questão de base, subjacente a todo discurso, questão em torno de que se reúnem ou dispersam
as partes, pareça resolvida. No entanto, isso de modo nenhum é o que se percebe na retórica
filosófica de Agostinho, que opera às avessas, não projetando de modo nenhum esconder o
problemático, e sim permitindo lidar com ele, dizendo-o, embora sua insolúvel inefabilidade. E
de fato, se se tome por base a própria definição da retórica elaborada pelo mesmo Meyer (2012,
p. 21), como sendo a negociação entre a distância criada por um dado problema, que se constitui
sua própria medida, percebe-se, no que tange ao Ser, não haver distância entre interlocutores,
para quem a sua inefabilidade é pacífica, quer se o identifique com a Divindade cristã ou não.
E em não havendo essa distância, qual a finalidade da retórica, sendo ela a suposta negociação
que se estabelece em função dum dado problema, que se mede exatamente por essa distância
inexistente? Logo, em não havendo uma distância que se constituísse a medida do problemático,
desnecessário seria argumentar, inexistindo o problema. Contudo isso se refere de modo espe-
cial às retóricas forense e deliberativa, não à epidíctica, e menos ainda a epidíctica com finali-
dade filosófica, como se dá no caso de Agostinho. Nas Confissões, a distância que se quer
negociar é a que se supõe entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento, ou seja, a distância entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece, entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se não diz. E como essa distância

141
é inegociável, resta à retórica simular a edificação duma estrutura especial, a linguagem, per-
mitindo que, pela própria expressão do paradoxo, do estranhamento, da perplexidade, se diga
sem dizer, e se não diga, dizendo. Numa palavra, a retórica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para além da tensão do compreensível apodíctico, para além do
alcance da razão, que seja capaz, carreando o leitor consigo, de tangenciar o suprarracional, a
não dizer irracional, pois não desprovido de razão e sim muito além dela.

A primeira das provas da arte: êthos

Além das provas lógicas, que envolviam matérias e métodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente, a não dizer exclusivamente, para a razão, a retórica reconhecia outros meios de
prova, pois se dera conta havia muito de que as pessoas não são apenas dotadas de capacidade
racional, mas também de sentimentos e de vontade, pelo que se fazia necessário lidar com elas
não como deveriam ser, mas como realmente eram, lembram Corbett e Connors (1999, p. 72).
Destarte, tomando por base a definição aristotélica de que a retórica é a arte de descobrir todos
os meios possíveis de persuasão8, torna-se óbvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim. Neste sentido, afiançam esses autores, o apelo ético pode ser mais eficaz
que o apelo à razão, pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo à razão pode fracassar diante de ouvidos
amoucos, se a audiência reagiu desfavoravelmente ao caráter do orador. O apelo ético
é especialmente importante no discurso retórico, porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais é impossível ter-se certeza absoluta e em que as opiniões
são divididas.

Com efeito, o êthos, prova técnica que se erige a partir do caráter moral do orador, segundo
reconhecia Aristóteles (1356a13), constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος).
Quintiliano, por sua vez, em suas Instituições Oratórias (3,8,13), adotando integral-
mente a teoria aristotélica, argumenta que, dos três gêneros de discurso, o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo ético, ou seja, o discurso que mais se apoiava no caráter do orador,
que ele denominava auctoritas:
Nas deliberações, porém, a autoridade é o que possui maior valor. Com efeito, não
apenas deve ser considerado muitíssimo prudente como também muitíssimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas

8
(1355b25-6): “Seja então a retórica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que é possivelmente
persuasivo” (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν).
142
proveitosas e dignas de honra. [...] não há quem negue que as deliberações são feitas
segundo os caracteres dos oradores.9

Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes, a partir das considerações do


próprio Aristóteles acerca da mistura de gêneros retóricos (1358b27-1359a4), sobre a predomi-
nância do gênero epidíctico nas Confissões, é perceptível não apenas a importância do apelo
ético, que não é das menores, por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que, sob certo ponto de vista, quer falar de si, mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra, de caráter “deliberativo”, ou antes, de caráter “pastoral”, de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum), ao modo dum lógos protréptico, afastando-as do pe-
cado e de tudo que as mantém distantes do Bem (auersio a bono), objetivo que se cumpre
escorado no caráter ético que se esforçou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiográficos da obra. De fato, não obtém êxito na pretensão de exortar (προτρέπω) para
Deus senão aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado, que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitação não do poder de seu livre-arbítrio, e sim da Graça
divina, cujas Justiça e Misericórdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisível do Ser, ao
invés de se anularem pela contradição. Não se trata de reconhecer-se purificado, trata-se, mui-
tíssimo ao contrário, de reconhecer-se pecador, carente da Graça e incapacitado de autossalva-
ção, numa palavra, trata-se de diminuir-se, ao modo do “esvaziamento” (κένωσις) de Cristo,
que, embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ), esvaziou-se a si mesmo, segundo
Paulo, assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens, pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10. Esse o êthos cristão, portador das virtu-
des dignas de imitação, invertidas quanto pudessem parecer a um auditório pagão da época,
para o qual nem a misericórdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jáveis, e sim fraquezas desprezíveis.
O orador persuade por seu caráter moral, explicava Aristóteles (1356a5), quando seu
discurso é de tal modo elaborado que seja capaz de torná-lo digno de credibilidade, um homem
em quem pareça ser possível confiar. Essa credibilidade, contudo, não se constrói por meio de
elementos extratextuais, de ideias pré-concebidas acerca da conduta ética do orador, e sim atra-
vés do discurso (1356a8), donde ser considerado o êthos uma prova de caráter técnico, fruto da

9
Inst. oratoriae (3,8,13): “Valet autem in consiliis auctoritas plurimum. nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit. [...] consilia nemo est qui
neget secundum mores dari”.
10
Paulo (Fl 2,5-8): “Τοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ, ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ, ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών, ἐν ὁμοιώματι
ἀνθρώπων γενόμενος· καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι
θανάτου, θανάτου δὲ σταυροῦ”.
143
arte. Isso se dá, explica o filósofo, porque quando se está tratando de temas de caráter geral, via
de regra a confiança se estabelece sobre as opiniões das pessoas cujo valor é notório, porém
quando os temas são incertos, duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν), aí então, como que desprovido de
alternativas, resta ao auditório tão só a confiança quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazê-lo. E sobre
que versam as Confissões, em linhas gerais, como já se apontou antes, senão sobre o tema não-
apodíctico por excelência, Deus? Donde ser lícito dizer que, pelo prisma da retórica, Agostinho
empreende um enorme esforço de construção dum êthos apropriado a falar de Deus. E de fato,
se se pretende falar de tema não apenas duvidoso, retórico, mas inefável, como o Ser, de que
modo evadir-se do estribo do êthos? Se o tema fosse apodíctico, o caráter do orador talvez
restasse menos relevante, porém não num tema em que as provas demonstrativas são pratica-
mente inexistentes.
Para ressaltar o caráter moral de alguém que se queira elogiar, seja o do próprio orador
ou não, lembra Aristóteles (1367b22-27), é preciso associar as suas ações (as quais se empre-
ende louvar) às suas intenções, a fim de demonstrar seu valor, porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das ações (ἐκ τῶν πράξεων), desde que este aja em conformidade com suas determinações
morais (κατὰ προαίρεσιν). E se o homem de valor age segundo suas próprias determinações,
depreende-se que o homem cujo valor é nulo aja determinado, isto é, conduzido pelo destino,
pela sorte (ἀπὸ τύχης), e que o homem cujo valor é repreensível, exemplo que o filósofo não
dá, mas cujo raciocínio permite avançar, agiria também motivado por suas determinações mo-
rais, as quais, contudo, seriam más. O que importa, no que tange ao êthos, é que se deve mostrar
que aquele que se está louvando age de acordo com suas determinações, e não ao acaso, o que
lhe tiraria todo o mérito, mérito que caberia então à fortuna (τύχη), uma vez que as ações não
praticadas de modo voluntário não são meritórias, em conformidade com o que Agostinho tam-
bém admitia11. Portanto o conselho de Aristóteles ao orador que quer construir o seu próprio
êthos ou o de algum outro é tornar todas as ações possíveis, inclusive as decorrentes da sorte
— o que não seria nada honesto, admite o filósofo —, fruto do mérito daquele que se quer
enaltecer, o que seria sinal de homem resoluto, decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως).
No entanto, esse conselho não apenas não é seguido por Agostinho e pelo discurso cristão de
modo geral, como, ao revés, o exato oposto é o que se põe em prática, ao atribuir-se tudo à
Graça divina, à bondade preexistente daquele que não precisou de nenhuma das criaturas que
criou, as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf. 13,1,1): “Porque antes que eu

11
O livre arbítrio (1,14,30,101): “In uoluntate meritum sit”.
144
existisse, existias tu, e eu nem existia para que me concedesses que eu existisse”12. Isso é feito,
contudo, não em detrimento do êthos, da construção dum caráter digno de louvor e fidedigno,
e sim para construir um caráter cristão, ou seja, um caráter não pautado pela tábua de valores
éticos clássicos, que atribuía grande peso à glória, à honra, ao denodo guerreiro e à justiça
inflexível e fria da lei13, e sim para destacar o homem, já de tipo medieval, manso e humilde de
coração, misericordioso ao ponto de voltar a outra face, numa palavra, homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador, e para o qual “o insensato de Deus” era “mais sábio que
os homens e o fraco de Deus, mais forte que os homens”14. O êthos, pois, que se quer construir
é o do homem de fé, que se deixa conduzir pela mão de Deus, na prática das virtudes ditas
teologais: fé, esperança e caridade (πίστις, ἐλπίς, ἀγάπη) (1Cor 13,13). O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si próprio (τοῖς δι’ αὐτόν), lembra Aristóteles, mas não se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4). Agostinho, bastante ao contrário,
não apenas não se orgulha do que fez, mas se arrepende amargamente, preferindo, ao invés da
honra, agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermédio divino: “e assim, Se-
nhor, apagaste todos os meus merecidos males, para que não retribuísses às minhas mãos, nas
quais te deixei; e te antecipaste a todos os meus merecidos bens, para que retribuísses às tuas
mãos, com as quais me fizeste”15.
Destarte, das três qualidades independentes de demonstração (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristóteles aponta (1378a) como necessárias ao orador, ainda que em aparência somente, a
fim de que seja convincente, o que de modo principal se refere às assembleias ou ao conselho,
instâncias típicas de deliberação na Grécia antiga: 1. prudência ou bom-senso (φρόνησις); 2.
excelência moral (ἀρετή); e 3. boa disposição (εὔνοια), nenhuma delas guarda nas Confissões
a importância que o estagirita lhe atribui, a não ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaí aristotélicas, o que seria no mínimo um grave anacronismo.
Por fim, a Retórica destaca o papel do êthos na disposição das matérias (τάξις), de modo
específico no proêmio (exordium). Nos discursos do gênero judiciário, por exemplo, aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazê-lo logo no proêmio (πρῶτον), antes da acusação, ao
contrário de quem acusa, que deve fazê-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ), porque aquele que defende
deve construir seu êthos no início, antes da acusação (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30), a

12
Confissões (13,1,1): “quia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essem”.
13
Em conformidade com a ideia veiculada pela máxima romana: “dura, sed lex”.
14
Paulo (1Cor 1,21-25): “ὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπων”.
15
Confissões (13,1,1): “Etenim, domine, deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecisti”.
145
fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraço, como faz Agostinho nas Confissões, utili-
zando-se dos primeiros livros, ditos biográficos, para tanto. Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim, para que permaneça bem presente na memória dos juízes, o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no início, a fim de que seus argumentos
são sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo. Não é apenas para o
êthos que o proêmio é importante, mas também para o páthos, pois é preciso tornar o auditório
bem disposto em relação ao orador, se se está defendendo, ou torná-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36), se se está acusando. Para isso conta muito a aparência de respeitabilidade
do falante, pois “as pessoas respeitáveis recebem mais atenção”, diz Aristóteles. Pelo que o
orador deve esforçar-se por conseguir duas coisas do auditório: 1. amizade (φίλον) e 2. com-
paixão (ἐλεεινόν) (1415b22-28), torná-lo amigo e compassivo, fazendo-o crer que ele mesmo,
o orador, sente exatamente aquilo que censura ou louva, ou seja, que está sendo sincero
(1415b28-29). Ora, como falar da Graça de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal,
pois a Graça, diferentemente da recompensa ou do salário (merces), é distribuída gratuitamente,
para o que, por paradoxal pareça, faz-se necessário ser pecador, numa palavra, estar desprovido
de qualquer mérito, que o tornaria credor ao invés de devedor, mérito que poderia confundi-la,
a Graça, com pagamento ou retribuição. Evidente que se trata dum exagero, pois os que têm
mérito não estão de modo nenhum excluídos da Graça, já que não faz muito sentido que não
receba sem mérito16 senão quem não mereça.
Seja como for, esse êthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho,
ao reconhecer-se pecador, devedor, pequenino, desprovido de méritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providência divina, que se expressa pela Graça, gratis.

A segunda das provas da arte: páthos

A movimentação das emoções (πάθος), embora uma prova (πίστις) que se diz técnica,
ou “da arte” (ἔντεχνος), de modo aparentemente paradoxal não tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si, e sim respeita aos juízes (δικασταί), explica
Aristóteles (1354a4-5)17. De fato, o orador alcança a persuasão, seja em que gênero for (o que

16
Isto é, gratuitamente.
17
Aristóteles não era muito simpático nem ao apelo ético, tampouco ao emocional, que julgava ser um mal
necessário, pois considerava errado manipular os sentimentos dos juízes, o que equivalia a corromper a própria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14). Argumento muito parecido esse (de destruir a
própria lei a que se deverá recorrer depois) com o utilizado por Sócrates ao negar a proposta de fuga de Críton no
diálogo homônimo de Platão (50a-b). Pois bem, no início do tratamento da hupókrisis (1403b22-), Aristóteles
146
não exclui nem o epidíctico tampouco o deliberativo), mediatamente, por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν), aqueles aos quais se dirige, quando recorre ao páthos, despertando ou
dirigindo suas emoções (ὅταν εἰς πάθος), o que se faz pela ação discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου).
Isso porque os juízos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes, objetivo da ação persuasiva, variam sob a
influência das emoções, tais como a dor (λύπη), a alegria (χαρά), a amizade (φιλία), o ódio
(μῖσος) etc. Com efeito, o orador não tem por escopo a emoção do auditório em si mesma, como
finalidade, e sim a sua persuasão, a fim de que decida em favor de sua causa, para o que as
emoções cooperam vivamente, como percebeu Aristóteles, ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retórica ao estudo das paixões da alma.
Um dos meios mais eficazes para a movimentação do páthos, a fim de que se tenha êxito
no apelo emocional, em vista dum fim ulterior, não são as provas demonstrativas recomendadas
para o gênero apropriado (o judiciário, no caso), o entimema e as máximas, provas que devem
ser descobertas na invenção, e sim os recursos pertencentes a outra parte da retórica, a elocução
(λέξις). Com efeito, depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as matérias de modo
apropriado (τάξις), resta saber como dizê-lo. Esse “como” respeita sem dúvida à forma do dis-
curso, que se chama também “estilo”, porém de modo nenhum se limita a isso, como se fosse
apenas uma sua vestimenta. Os recursos da elocução, para muito além da ornamentação, têm
força persuasiva, pois argumentam, seja pela concisão das figuras, seja pelo ritmo e paralelismo
das construções, seja pelas imagens que evocam, o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o êthos como o páthos. O êthos, por exemplo, no emprego do léxico, que, quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12), diz Aristóteles, con-
fere um ar de dignidade ao discurso, promovendo por tabela o orador, que se faz parecer digno
e nobre, assim como aquilo que está dizendo. O páthos, por sua vez, quando o discurso é “ele-
vado” a um nível suprarracional ou sublime, pelo uso de recursos poéticos, dentre os quais se
destacam as figuras de repetição, como paralelismos, epanalepses, anadiploses, antanáclases,

reconhece que tudo aquilo que respeita à apresentação do discurso, como voz, volume, tom, altura, ritmo, harmo-
nia, entre tais, e que é muito importante nos certames dramáticos e épicos (τῶν ἀγώνων), quando então faz-se
necessário equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoções (πρὸς ἕκαστον πάθος), embora seja tam-
bém utilizado nas demais atividades políticas, como assembleias deliberativas e tribunais, o é apenas de modo
deplorável. Isso porque, conquanto seja necessário mover as paixões do auditório e construir o caráter do orador,
discursivamente, essa necessidade se deve tão só à corrupção dos cidadãos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35), o que equivale a dizer, do auditório (τοῦ ἀκροατοῦ). Assim sendo, o recurso tanto ao êthos como
ao páthos deixa de ser questão de correção (οὐκ ὀρθῶς), de certo ou errado, passando a ser uma necessidade (ἀλλ’
ὡς ἀναγκαίου). Com efeito, o justo (δίκαιον) seria defender, acusar, exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6), de maneira tal que o restante, que Aristóteles reputa fora da
demonstração (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι), ο que inclui êthos e páthos, seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8).
Infelizmente, porém, a realidade é que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos, uma vez que os adversários certamente lançam mão deles, de modo quase sempre inescrupuloso.
147
paronomásias, antimetáboles, poliptotos etc. E fique claro que dizer que Aristóteles não via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos ético e patético nos tribunais não significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocução, o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razão, excluídos sentimentos e caráter, a não dizer da vontade. Ao contrário, Aristó-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
matéria de certa importância, uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como é dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν), embora relegasse a questão do estilo ao nível da aparên-
cia (ἀλλ’ ἅπαντα φαντασία ταῦτ’ εστὶ), cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν), ouvinte esse, por sua vez, cuja corrupção (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que não é apodíctico na retórica (1404a7-8). Em assim sendo, o estilo (λέξις) seria um
mal necessário, uma ferramenta que, embora potencialmente injusta, seria útil para conferir
clareza ao discurso, assim como todos os demais elementos de persuasão não-apodícticos ou
extrademonstrativos. E isso se justifica, diz o filósofo de modo peremptório, porque ninguém
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει), isto é, nem pelo
recurso ao páthos nem pelo êthos, tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocução, como as figuras (1404a12). Compreende-se essa visão deveras depreciativa da elo-
cução por parte do filósofo, pois, como ele mesmo diz, no terceiro livro de sua Retórica, ao
empreender o tratamento da actio ou representação do discurso (ὑπόκρισις), até ao tempo da
escritura da obra não havia ainda nenhuma arte, isto é, nenhum manual de retórica voltado para
a matéria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν), porque a léksis só havia sido notada pou-
quíssimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν); descaso que se justificava pelo fato
de o estilo — considerado então como mera ornamentação do discurso — ser julgado inferior
(φορτικὸν), tema indigno das preocupações dum homem livre, crítica que não evita endossar o
filósofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6).
A despeito desta postura crítica adotada por Aristóteles e de seu juízo negativo a respeito
do êthos e do páthos, postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retórica, o que
importa para os fins deste artigo, contudo, é seu poder argumentativo, uma vez que sua impor-
tância não pode ser negada, seja ela justificada ou não, de par com a finalidade filosófica que
lhes imprime o rhetor de Hipona. Portanto, justo ou não (nos tribunais e assembleias), o fato,
admitido por Aristóteles, é que a elocução afeta sobremodo o páthos, sendo, de par com o êthos,
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13), altamente eficaz para
os objetivos da argumentação, pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoções (1408a16), seja quando se fala com indignação audaciosa (ὕβρις), seja com raiva

148
(ὁργιζομένου), impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά). O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις),
que é aquele em que os elementos do páthos (παθητική) e do êthos (ἠθική) são proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11), faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo. Além disso, remata Aristóteles, o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι), ainda que esse não diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4).
Reconhecido o vigor (δύναμις) não apenas patético mas também argumentativo da elo-
cução, resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissões a fim de atingir seus
objetivos, numa palavra, a fim de fazer filosofia. Pois bem, as descrições que melhor instigam
as emoções são as que fazem apelo à imaginação e aos sentidos: descrições vívidas de cenas e
eventos contam muito, como o famigerado roubo das peras (Conf. 2,4,9), a prisão de Alípio
(6,9,14) ou a cena do jardim de Milão (8,11,25-27), por exemplo; as inumeráveis metáforas e a
prosopopeia de órgãos humanos, que passam a ser dotados de mãos, pernas, ouvidos, como as
mãos do coração que se estendem em prece a Deus; os relatos de lágrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes; enfim, descrições essas que têm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos. Do mesmo modo, o uso de hipérboles e outras tantas figuras se faz extremamente
útil para criar o efeito emocional desejado. Todavia, nada talvez seja tão eficiente nesse sentido
quanto o vocabulário, o uso de palavras carregadas de intensa conotação patética. E no apelo
às emoções pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissões, ao menos retórica.
De fato, a linguagem da obra está repleta de figuras cujo efeito principal é o despertar dos
sentimentos. Mas de quem, e para quê? A sua audiência só pode ser depreendida de modo in-
direto, por meio da linguagem, do estilo e do tema, o que não se constitui tarefa das mais fáceis,
por tratar-se de obra multifacetada, de linguagem muito elaborada, que prima pela sofisticação,
mas que não despreza uma certa tonalidade menos erudita, que se pode até denominar, em
alguma medida, popular ou humilde. De fato, pelo recurso aos salmos e textos escriturários,
com seu respectivo campo semântico, permeado de expressões da língua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim, conhecidos de toda comunidade cristã, não apenas por
serem lidos, mas principalmente por sua função litúrgica, é, sem dúvida, uma linguagem
(sermo) popular ou humilis; todavia, pelos mecanismos retóricos extremamente requintados e
pelas referências a toda uma cultura filosófica, de par com uma argumentação em muitas pas-
sagens nada singela, especialmente nos livros 1, 8, e de 9 a 13, pode-se considerar igualmente
elevadíssima. Portanto, humilde e elevada é a linguagem das Confissões, constituindo em si
mesma um oximoro.

149
Diante desse desafio, de escrever tanto para a gente mais simples como para filósofos,
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem, supõe-se que Agostinho não tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso, descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes); muito ao contrário, ao que parece, pretendia elevar-se, ou melhor, ser
elevado, ao confessar-se arrependido, penitenciando-se, mas também ao confessar sua fé e seu
louvor, enaltecendo e reconhecendo a graça de Deus em sua vida. Em sendo assim, ao ser ele-
vado por Deus, pela confissão, pretende igualmente mover as almas, incitando-lhes semelhante
elevação, ou, quando não, o desejo de elevação, desejo de que se deixassem igualmente elevar,
como ele confessava desejar, o que se pode considerar sem dúvida uma meta de caráter pastoral.
Portanto, sua missão quanto ao páthos é também a de mover as almas à salvação, que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado, e de, para lançar mão duma contradição, merecer,
por uma espécie de ascese catártica, a graça divina, a misericórdia do Deus justíssimo. Ora,
disso decorre a possibilidade duma outra função da linguagem extremamente comovente, fruto
dos recursos da elocução a que recorre Agostinho nas Confissões, e interligada com essa função
dita pastoral de elevar as almas, uma função que se pode compreender como simultaneamente
propedêutica e filosófica. Com efeito, se uma das funções deste páthos, que se diz de caráter
pastoral, pretende comover, positiva e negativamente, incitando a um só tempo o desejo de
salvação e o de horror à perdição, o desejo de buscar Deus e de evitar o mal, de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser, pelo afastamento desse
mesmo Ser, como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biográfica da obra, o
que não implica de modo algum a exclusão dos restantes livros; a outra função, por sua vez,
relacionada intimamente à primeira, de que se pode dizer seja consequência natural, que se
exacerba também a partir dos recursos da elocução, e que, como se disse, tem caráter prope-
dêutico, compreende-se como uma função de purificação filosófica, de afastamento progressivo
das coisas deste mundo, de afastamento da “carne”, se se pode dizer, tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual, de proximidade com o Ser, o puro Inteligível, que se
transubstancia, por sua vez, num projeto de vivência cristã, o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo, encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro. Donde ser lícito afirmar
que os livros da parte biográfica das Confissões, do primeiro ao oitavo, têm também essa fun-
ção, de purificação, tanto das emoções como da razão, ou seja, de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18, a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes. E isso parece estar em harmonia com

18
Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς.
150
o projeto filosófico platônico-cristão que Agostinho tinha para sua vida, e que colocou em prá-
tica desde os tempos pré-batismais de Cassicíaco, até ser interrompido pela sua consagração
sacerdotal (391 d.C.), um projeto propedêutico-purificador.
E de fato, se se pode aventar que esse projeto catártico da razão encontra seu ponto de
saída no expurgo do ceticismo de tipo neoacadêmico, como se percebe nos três livros intitulados
Contra Academicos, desenvolve-se sobremodo nas páginas do diálogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monólogo, com os Solilóquios, obras do mesmo período.
Formato monológico esse, denominado por Dupuy-Trudelle (1998, p. 1198) “desdobramento”,
que é bem possível tenha servido de laboratório para as próprias Confissões, sugere a autora,
refletindo a intenção de Agostinho, apesar da excelência da fé, de levar as exigências da razão
até ao limite extremo, num esforço de purificação, num ir-além das paixões e desiludir-se sobre
si mesmo. Ora, estar iludido acerca de si mesmo não é impedimento à fé, mas o é ao acesso à
convicção intelectual verdadeira. Portanto, para chegar-se ao conhecimento, define esta autora
(ibid., pp. 1198-9), faz-se mister, como condição única, a “libertação da razão de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesma”, libertação a que os Solilóquios dão curso:
Pode-se compreender que, para desenlamear a consciência dos similisavoirs, libertá-
la de toda ilusão psicológica, ensiná-la que o desejo da verdade não é ainda a posses-
são da verdade, permitir-lhe ir além do conflito de interesses que leva a opinião a
revoltar-se contra a verdade, seja preciso mensurar a distância entre o sujeito e si
mesmo. Ora, fazê-lo é um convite a mensurar a distância entre si e o conhecimento de
Deus. Eis então todo o sentido do exercício proposto pelo “solilóquio”, mensurar uma
e outra.19

Não parece haver dúvidas de que os Solilóquios trazem em si, de modo embrionário, o estilo
que haveria de consagrar, sobretudo a partir das Confissões, quando então dispensa o combate
direto de ideias, preferindo “desdobrar-se” e deixar-se interrogar por si mesmo, ainda que, de
modo proléptico, continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas.
Todavia é mais que provável que esta exigência não tenha surgido do nada, e sim pertença a
um projeto filosófico maior, que englobe as demais obras de Cassicíaco, sendo-lhe então um
como que desenvolvimento natural.
No prólogo do De ordine (1,3-4), Agostinho argumenta que o homem, por ser um des-
conhecido de si mesmo, não consegue perceber a ordem que reina em todo o universo, ordem
providencial em que ele está inserido, e que, para conseguir conhecer-se, seria necessário entrar
em si mesmo, ali permanecendo, afastado dos sentidos, lugar em que poderia então curar-se das
feridas que as opiniões vulgares infligem à alma: seja pelo “fogo” do “isolamento”, conforme

19
DUPUY-TRUDELLE, Sophie. “Notice sur Les Soliloques.” In: AUGUSTIN. Les Confessions... Paris: Gal-
limard, 1998, p. 1206.
151
se dá nos Solilóquios (Sol. 1,1,1)20, seja pelo estudo das disciplinas liberais, como se propõe no
De ordine. Portanto o isolamento no interior de si tem a função terapêutica de “cauterizar”
(inuro) as feridas da alma. Ora, cauterizar é aplicar cautério, ou seja, uma ação terapêutica
agressiva, em que se visa a cura através duma ulceração artificial, produzida esta por meio dum
agente cáustico, que corrói o tecido enfermo, ao queimá-lo e secá-lo. Pois bem, é exatamente
isso que faz Agostinho, através do desdobramento, como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol. 1,9,16-), em que a Razão o faz ver como ainda está distante do saber que busca e
muito aquém do progresso que presume já ter realizado: uma cauterização purificante, operada
pelo isolamento da razão, que queima toda e qualquer ilusão, que inibe paixões, que retrai o
ego amante das disputas e vitórias — cauterização essa, sem dúvida, a responsável pelas lágri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol. 1,14,26. Eis, portanto, no prólogo do De ordine
(1,1,3-4), o avant-goût do método filosófico que irá aplicar nos Solilóquios e posteriormente
nas Confissões:
[3] A principal causa, de cujo erro [id est, dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] é que o próprio homem
é um desconhecido para si mesmo. E para que este homem se conheça, faz-se neces-
sário [cultivar] o hábito firme de afastar-se dos sentidos, de unir-se ao próprio espírito
e de permanecer em si mesmo. Pois apenas aqueles que cauterizam, seja pelo isola-
mento, seja por meio do remédio das disciplinas liberais, algumas das chagas das opi-
niões correntes, as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige, logram fazê-lo.21 [4]
Portanto tu lograrás alcançar essas coisas, acredita em mim, quando te dedicares aos
estudos por que o espírito é purificado e aperfeiçoado, antes [de cujo esforço] o espí-
rito de modo nenhum está apto a que se lhe confiem as divinas sementes.22

Essas, pois, as duas principais funções que se devem destacar nas Confissões, no que
tange ao recurso ao páthos, uma das três provas técnicas da retórica: 1. função de caráter pas-
toral, de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a própria elevação, pela
confissão; e 2. função de purificação propedêutica da alma, exercício de caráter ascético e filo-
sófico que toca simultaneamente a razão e as emoções, cujo escopo é a progressiva aproximação
da vida do Espírito, uma vida voltada para as realidades extrafísicas, em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos. Diz-se purificação da razão e das emoções, em sentido filosófico, porque
não basta apenas um esforço exclusivamente racionalista, de matiz socrático, em que a ciência

20
Logo no preâmbulo dos Solilóquios, Agostinho refere-se a esse “isolamento”, ao deixar claro que a presença
dos estenógrafos ― o que parece referir-se, de modo geral, a todo e qualquer ouvinte ― não é conveniente (nec
ista dictari debent; nam solitudinem meram desiderant) (Sol. 1,1,1).
21
De ordine (1,1,3): “Cuius erroris [magnam — putant minus eruditi homines imbecilla mente — rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est, quod homo sibi ipse est incognitus. qui tamen ut se noscat, magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi. quod ii tantum
assequuntur, qui plagas quasdam opinionum, quas uitae quotidianae cursus infligit, aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinis”.
22
Id. ibid. (1,1,4): “Assequeris ergo ista, mihi crede, cum eruditioni operam dederis, qua purgatur et excolitur
animus, nullo modo ante idoneus cui diuina semina committantur”.
152
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma, sendo necessário, acima de tudo, uma
catarse das paixões, a começar pela libido, a fim de que sejam dirigidas ao reto querer, ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador, segundo o ordo diuinus. Mas pode-se dizer que
essa catarse da razão se dê, em última instância, com o auxílio das próprias emoções, que se
fazem mover sobremaneira pelo páthos, o apelo emocional, que se sabe muito mais eficaz que
o próprio lógos para realizar a conversão definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversão do mal (auersio a malo), como já havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho, na própria carne (Conf. 8,9,21):
Donde vem esta monstruosidade? E por quê? O espírito dá uma ordem ao corpo e é
obedecido prontamente; o [mesmo] espírito dá uma ordem a si mesmo e se lhe opõe
resistência. O espírito dá uma ordem para que a mão se mova e a facilidade é tamanha
que quase não se discerne da ordem a execução. E o espírito é espírito, porém a mão
é corpo. O espírito dá uma ordem para que o espírito queira: não é outro [e sim o
mesmo espírito], e contudo não cumpre [a ordem]. Donde vem esta monstruosidade?
E por quê? [O espírito] dá uma ordem, repito, para que queira, [ele] que não daria a
ordem a não ser que quisesse, e não cumpre a ordem que dá [...]24

E de fato, embora reconhecesse a força das provas racionais, baseadas estritamente no


lógos, Quintiliano25 situava acima destas, em relação a sua dúnamis persuasiva, o apelo às pai-
xões (adfectus), aquele poder de despertar sentimentos muitíssimo reconhecido pela retórica
antiga desde muito antes da sistematização aristotélica. Com efeito, se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior à do adversário, as
paixões, todavia, iam mais longe, fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversário, sendo, por isso mesmo, bem mais persuasivas do que a
própria prova estritamente racional; além do mais, sentencia o rhetor romano, aquilo que se
deseja é também aquilo em que se acaba por acreditar:

23
(Rm 7,19-23): “Com efeito, não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, eu o pratico. E se eu faço
o que não quero, não sou mais eu quem o pratica, mas o pecado que em mim habita. Eis então que descubro uma
lei [operando] em mim: quando quero fazer o belo, é o mal que está ao meu alcance. E assim, eu me deleito na lei
de Deus, segundo o homem interior, mas percebo uma outra lei em meus membros, que está em guerra [contra] a
lei da minha mente, e que me toma como prisioneiro na lei do pecado, que está em meus membros” (οὐ γὰρ ὃ
θέλω ποιῶ ἀγαθόν, ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω. εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ, οὐκέτι ἐγὼ
κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία. εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον, τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ
καλόν, ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειται· συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον, βλέπω
δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν
τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου.).
24
(Conf. 8,9,21): “[…] unde hoc monstrum? et quare istuc? imperat animus corpori et paretur statim; imperat
animus sibi et resistitur. imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium. et animus animus est, manus autem corpus est. imperat animus ut uelit animus, nec alter est nec facit
tamen. unde hoc monstrum? et quare istuc? imperat, inquam, ut uelit, qui non imperaret, nisi uellet, et non facit
quod imperat [...]”.
25
Inst. Oratoriae (6,2,5).
153
As provas sem dúvida fazem com que os juízes reputem a nossa causa como sendo a
melhor, mas as emoções as superam, fazendo com que também desejem [que seja a
melhor]; e o que desejam é também aquilo em que creem.26

Na verdade, com muita perspicácia o autor das Instituições Oratórias, na esteira de Aristóteles,
admite não apenas a força do páthos, mas seu papel fulcral na arte da persuasão, ao reconhecer
que o “espírito” (spiritus) e a “alma” (animus) da retórica residem exatamente no despertar das
emoções27. Portanto despertar as emoções da audiência era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso, desde que não exagerado, pois,
segundo advertem Corbett & Connors (1999, p. 289), “reconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes explorações de nossas emoções”. Sugere-se aqui, como em todas as partes, a prática da
temperança. Todavia, se se deve ou não recorrer ao apelo emocional, dependerá em grande
medida da audiência, de sua natureza, de suas expectativas, de seu caráter.
A audiência cristã tem sido, desde sua formação, muitíssimo suscetível ao apelo emoci-
onal, ao contrário do que se poderia esperar duma audiência de racionalistas cínicos ou estoicos,
por exemplo. De fato, para um grupo cujas virtudes primordiais são a fé, a esperança e a cari-
dade, mas também a compaixão e o perdão, e que já nasce com êthos fortemente associado ao
martírio, ao sofrimento e à renúncia humilde, cujo âmago era a própria paixão de Cristo, donde
também a paciência se tinha como virtude, enfim, como não estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional? O páthos cristão sempre esteve inquestionavelmente à flor da pele, e assim
permanece até ao fim da Antiguidade. Relatos de martírios como os de Perpétua e Felicidade,
por exemplo, no início do século III, na África, e de inúmeros outros, como os de Inácio de
Antioquia e Justino, no século II, em Roma, ou o de Cipriano, em meados século III, em Car-
tago, e o de Orígenes, em Cesareia, pela mesma época, para não ir além destes, motivados desde
a era apostólica todos eles por perseguições intermitentes, mais ou menos sistemáticas desde o
século I, mas sobremodo pelo próprio martírio de Cristo, de par com uma expectativa escatoló-
gica que incluía a sua iminente parousía, enfim, tudo isso conjugado contribui para que as
emoções cristãs estivessem sempre prontas ao estímulo. Situação essa que não sofre grande
modificação nem mesmo depois de Constantino e do edito de tolerância que promulga em Mi-
lão, em 313, pois extintas as perseguições do poder constituído, a situação geral não se torna

26
Inst. oratoriae (6,2,5): “[…] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent, adfectus praestant ut etiam uelint; sed id quod uolunt credunt quoque”.
27
Id. ibid. (6,2,7): “adeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibus”.
154
menos tensa, especialmente de 410 em diante, com a invasão de Roma pelos godos de Alarico
e a pressão dos bárbaros nas fronteiras28.
Por outro lado, restringindo a análise aos aspectos puramente intelectuais, vê-se que as
páginas da Escritura são férteis em apelos emocionais, sobremodo ao medo (φόβος), de todas
as paixões da alma talvez das mais intensas: medo das ameaças dos profetas e seus oráculos, da
ira divina, da condenação eterna etc. Do lado oposto, principalmente no Novo Testamento,
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη), que se estimula em diversas instâncias, seja pelas pala-
vras de Jesus, no Evangelho, seja no epistolário apostólico. Pois bem, de que modo se poderia
despertar essa caritas cristã, de par com a fé no que se não vê, apenas se espera? Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos técnicas se pode levar alguém a não apenas aceitar, mas tam-
bém desejar morrer por Cristo, na esperança da glória eterna?29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres, vivendo doravante da pregação da palavra escriturária e de seus
próprios exemplos? Ou optar por uma renúncia aos prazeres da vida sensual, como as virgens
que se consagravam amiúde, ou os anacoretas, cenobitas e religiosos de todos os matizes e
épocas, ou ainda, de modo mais extremo e surpreendente, especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Orígenes, deixar-se arrastar por zelo incontrolável e, em conformidade
com o que registra a tradição e confirma Eusébio de Cesareia, mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos céus?
E naquele tempo, ocorreu a Orígenes, que cumpria sua obra de instrução catequética
em Alexandria, realizar uma certa façanha, que envolve exemplo imenso de coração
imaturo e juvenil, mas igualmente de fé e de autocontrole. Compreendendo, pois, a
passagem: “Há eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos céus” (Mt
19,12)30, de modo ingênuo e juvenil, imaginou, dum lado, estar cumprindo a palavra
salvadora, de outro, por ser ainda jovem em idade, e pregando as coisas de Deus não
apenas a homens, mas também a mulheres, como quisesse calar toda suspeita de difa-
mação vergonhosa da parte dos infiéis, apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
prática, tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos à sua
volta.31

28
Por sua “impiedade”, ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses, os cristãos
estavam sendo acusados como responsáveis pela invasão de Roma, em 410, assim como pela derrocada militar do
Império e a consequente pressão bárbara nas fronteiras. Essas acusações, ao que parece, eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever “contra os pagãos” a sua monumental Cidade de Deus.
29
Ou, como disse Quintiliano (6,2,5), não apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristã, mas igualmente
apaixonar-se por ela, pois o que se deseja é também aquilo em que se crê — id quod uolunt credunt quoque.
30
(Mt 19,12): “Porque há eunucos que desde o ventre de sua mãe assim nasceram; e há os que foram feitos
eunucos pelos homens; e eunucos há que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos céus. Aquele
que é capaz de compreender, compreenda” (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως,
καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων, καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς
διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν. ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω).
31
Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica (6,8,1-2): “Ἐν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας
τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς, πίστεώς γε μὴν
ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον. τὸ γὰρ “εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ
τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν” ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών, ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν
ἀποπληροῦν οἰόμενος, ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον, καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
155
Percebe-se, por conseguinte, como desde sua gênese a prosa cristã embebe-se natural-
mente de apelo emocional, imersa no sangue da paixão de Cristo, que desde o início se torna
não apenas o cerne do querigma (κήρυγμα), mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patrístico. Pode-se dizer, com Corbett e Connors (1999, p. 290), que se trata duma questão de
suscetibilidade própria a cada auditório, mas que varia grandemente também com o tema tra-
tado:
A suscetibilidade duma audiência a apelos emocionais pode variar, sem dúvida, de
acordo com o tema tratado. Um grupo de médicos, por exemplo, poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou técnica; mas num assunto como subsídio governamental para a seguri-
dade médica, este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais. Então,
quando os meios lógicos de persuasão num dado tema são fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversário) podemos constatar a utilidade do recurso à persuasão
emocional.

Ora, talvez esteja exatamente aí a principal justificativa, além das já citadas, do apelo intenso
ao páthos, se não no discurso cristão grosso modo, certamente no discurso de Agostinho nas
Confissões, cujos objetivos já se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologética dos dois primeiros séculos, ou mesmo da filosofia dum Orígenes, que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefinições teológicas, quase um século antes do Concílio de
Niceia. Com efeito, no apelo ao páthos, para muito além de sua dúnamis persuasiva, encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosíssimo para tratar de temas para os quais as provas são in-
suficientes, os meios lógicos não bastam ou inexistem. E não é porque recorre ao páthos, ela-
borando um discurso de carga emocional intensa, que esteja sempre tencionando persuadir,
agonisticamente, como se se tratasse do gênero judiciário ou deliberativo; pelo contrário, ao
recorrer a figuras e expressões de forte carga emotiva, Agostinho transforma este recurso num
subsídio interessantíssimo para tratar dum tema que se não submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional. Na verdade, o apelo emocional se dá no mais das vezes de modo indireto,
através de figuras que aguçam a sensibilidade, seja pelo ritmo, pela assonância ou aliteração,
seja pelas imagens que evocam, pelo contraste ou pela repetição, pelo absurdo e perplexidade
de afirmações paradoxais ou pelo vocabulário carregado de conotações fortemente emotivas.
Ao aguçar as sensibilidade emocional, esses recursos todos transferem a prosa duma dimensão
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade, que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade, uma vez já não ser mais da razão unicamente que se espera o entendimento, e

προσομιλεῖν, ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν, τὴν
σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη, τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν
φροντίσας”.
156
sim dalguma fonte distinta, no interior do ser humano. Seja como for, trata-se duma linguagem
de apelo não-racional, porque ao causar a irrupção das paixões subsegue-se uma como que
obliteração momentânea da racionalidade, um como que eclipse das faculdades intelectivas, a
partir de que se atinge aquela dimensão suprarracional muito comum no discurso místico, uma
dimensão do silêncio, antecâmara daquele silêncio primordial a que se pretende chegar, o si-
lêncio inefável do Ser.

A terceira das provas da arte: lógos

Na Retórica, aquilo que cabe ao discurso, seja por meio do êthos, páthos ou lógos, na
tarefa suasória, pertence propriamente à arte, no que Aristóteles denomina provas técnicas, em
contraste com o que está pronto, fora da arte, carecendo apenas de ser empregado. Portanto, se
se excluam os elementos probatórios não-técnicos, como testemunhos e confissões obtidas por
tortura, por exemplo, e talvez alguns aspectos da hupókrisis, que se prendem exclusivamente à
oralidade, como gestual e modalizações da voz, percebe-se que toda tarefa argumentativa é de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20).
Pois bem, se na dialética dois são os tipos de argumentos: indução (ἐπαγωγή) e dedu-
ção ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6), na retórica, por sua vez, a indução se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν), ao passo que a dedução, pelo entimema
(ἐνθύμημα), que é o tipo de silogismo apropriado ao discurso retórico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν), discurso que respeita àqueles temas sobre os quais não se tem certeza (1357a1-
5), temas passíveis de deliberação, que se encontram fora do escopo das ciências, ou então, caso
se digam dalgum modo científicos, limitam-se aos aspectos pouco pacíficos delas, que admitem
mais de um modo de pensar. Todos os oradores (πάντες), diz Aristóteles (1356b6), produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες): 1. ou por meio de exemplos (παραδείγματα), 2. οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα); e nada além disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν). Ora, o exemplo retórico
equivale à indução dialética, sendo uma prova que se obtém a partir de um número suficiente
de casos, de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15). Numa palavra, mostra-
se (δεικνύσθαι) que x é de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν): e1, e2, e3... en. O silogismo e o entimema, por sua vez, fazem o
percurso inverso (1356b16-18): de um certo número de coisas existentes f1, f2... fn (τινῶν
ὄντων), algo diferente (ἕτερόν τι), c, resulta. Portanto, se o exemplo é uma espécie de indução,
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος), da menos conhecida a outra mais conhecida

157
(1357b30), os entimemas, por sua vez, não carecem de explicitar certas premissas, porque, diz
Aristóteles (1357a15-20), elas são já bastante conhecidas de todo o auditório, podendo restar
subentendidas. As premissas de que se constituem os silogismos retóricos podem até ser neces-
sárias, mas via de regra são verdades de caráter geral, dentre as quais se incluem: 1. probabili-
dades ou verossimilhanças (ἐξ εἰκότων) e 2. indícios ou sinais (σημείων). O verossímil retórico
corresponde ao que ocorre com frequência (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον). Os indícios ou sinais, por sua vez (1357b), concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος). Destes, apenas ο indício
necessário ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionável, daí seu
nome, pois crê-se que põe um termo à argumentação (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι). Por
exemplo, a febre constitui um indício necessário de que Sócrates está enfermo; todavia, explica
Aristóteles, a sabedoria dele, que era um homem justo, não é indício necessário de que todo
homem justo seja sábio. Outro exemplo: se uma mulher tem leite, isso é um τεκμήριον ou
indício necessário de que deu à luz. Trata-se, pois, dum argumento irrefutável. No entanto, por
não serem abundantes os tekmḗria, os entimemas se constroem em sua maior parte de tópicos
específicos (τόποι ἴδιοι), particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων), e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω).
Aquilo que Aristóteles denomina prova (πίστις), não obstante a polissemia do termo
(pois tanto o páthos como o êthos também são provas), é uma espécie de demonstração cientí-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11). Por sua vez, a demonstração retórica por excelência é
o entimema (ἔστι δ’ἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα), a mais forte das provas retóricas
(κυριώτατον τῶν πίστεων). O entimema, como se disse, é um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις); porém, enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutível, científica em seu caráter, o entimema resume-se àquilo que tem a aparência verdade,
isto é, que pode ou não ser verdade; portanto, ao que é provável ou verossímil (τὸ ὅμοιον),
como as opiniões (ἔνδοξα), que são admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos sábios
ou por parte deles ou pelos mais notáveis e estimados da sociedade. Eis porque, se os assuntos
retóricos são aqueles que admitem o debate contraditório, a prova retórica não poderia estar
baseada senão no provável, e não no verdadeiro, inquestionável, sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do próprio debate. Contudo essa característica de verossimilhança, elemento fun-
damental do entimema, segundo a retórica aristotélica, põe-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano, para quem o entimema define-se, ao invés, não pela natureza verossímil
das premissas, e sim por sua “articulação elíptica”, como bem lembra Barthes (2001, pp. 57-8),

158
articulação que faz com que o entimema seja um silogismo truncado, em que parece ausentar-
se alguma proposição de feição incontestável, a qual, exatamente por isso, não carece de ser
enunciada, mantendo-se tão só “no espírito” (ἐν θυμῷ)32. Destarte, trata-se antes duma pseudo-
ausência, que se dá apenas au niveau du langage, jamais dans l’esprit. Isso porque dessa mesma
“ausência”, ao revés do que se poderia supor, é que o entimema tira toda a sua pujança, deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construção do argumento, naquilo que a lógica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id. ibid., pp. 60-61): “O entimema não é um
silogismo truncado por carência, degradação, mas porque é preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construção do argumento”.
Esse “prazer” de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao “didatismo” que por
sua vez Reboul relaciona à alegoria (2000, pp. 130-2), e que se pode aplicar também aos pro-
vérbios (παροιμίαι) e às máximas (γνῶμαι)33; didatismo esse que, ao invés de tornar mais
claros os conteúdos, adrede os obscurece ou, quando não, faz com que se tornem mais intrigan-
tes, enigmáticos. Com todo o efeito, alegorias como a da “caverna” ou a parábola do “semea-
dor” intrigam os discípulos, diz Reboul, que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo, sem contudo saber bem o quê, e aguardam uma “explicação”, que jamais
esperariam não tivesse o conteúdo exposto sido formulado por meio duma parábola ou alegoria.
Trata-se, diz Reboul, duma forma muito antiga de ensinar, uma como que “pedagogia do mis-
tério”, que consiste em retardar a solução para incitar o discípulo a buscá-la, o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas próprias forças. Uma forma didática, indubita-
velmente, que não deixa de ser igualmente argumentativa, pois a aceitação da letra implica a
aceitação do espírito, ou seja, ao aderirem e assentirem à forma poética, alegres por terem des-
coberto a “solução” do enigma por seus próprios méritos, os ouvintes dão igualmente seu as-
sentimento ao conteúdo34.
Pois bem, se Aristóteles apresenta as máximas ao lado dos entimemas, que são a prova
retórica por excelência, uma vez ser a máxima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος

32
Daí a origem do termo ἐνθύμημα, segundo o próprio Barthes: ἐν + θυμῷ.
33
Alguns provérbios são também máximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν), diz Aristóteles
(1395a19), embora não explique a diferença comum entre eles, citando o exemplo, que não facilita muito pela
concisão: “Vizinho ático” (Ἀττικὸς πάροικος), que seria um alusão coríntia às virtudes dos atenienses, em con-
traste com a proverbial má-vontade dos espartanos, segundo o historiador Tucídides (Guerra do Peloponeso 1,70).
34
Reboul (2000, pp. 130-2) apresenta um exemplo interessante extraído do Velho Testamento (2Sm 12,1-15):
ao ouvir a parábola de Natã, Davi se vê levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do único
bem de seu vizinho pobre, uma ovelha, reputando-o digno de morte. Porém, ao aceitar a letra, diz Reboul, Davi se
vê obrigado a aceitar também o espírito da parábola, sua conclusão e implicações, reconhecendo-se culpado diante
de Natã (do adultério com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido, Urias), que lhe diz: “Esse homem [da
parábola] és tu mesmo”.
159
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6), resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
mistério e do poder do raciocínio incompleto dos entimemas serve igualmente às máximas,
como se há de ver, e de modo muito mais eficaz.
No que tange ao lógos nas Confissões, retendo na memória o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retórico, a saber, o fato de ser passível de deliberação, admitindo ao menos
duas opiniões contrárias (1357a4-5), supérfluo seria justificar a opção pelas máximas em detri-
mento dos entimemas neste passo, o que não implica dizer que Agostinho não tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retórico. Todavia, não se esperaria que recorresse a
expedientes de caráter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefável. Não apenas porque
“ninguém ensina geometria desse modo” (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει), como diz
Aristóteles (1404a12), fazendo referência aos recursos “poéticos” da elocução (λέξις), como as
figuras, que imprimem destaque tanto ao êthos como ao páthos, a fim de construir um caráter
favorável e movimentar as paixões (ἐπιθυμίαι) do auditório, que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho, mas principalmente para dar voz ao
indizível, dizendo o que está além da razão. Os recursos da elocução, considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou científicas, como as verdades matemáticas, por exemplo,
que teoricamente não seriam passíveis de contestação, eram considerados, ao tempo de Aristó-
teles, indignos da consideração (θεωρεῖν) filosófica, pelo que não ter havido, até ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retórica, nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema, como se já
disse (1403b35-6). Contudo, para falar do inefável, dizer o indizível, como percebe Agostinho,
assim como para proferir oráculos ou para a poesia didático-filosófica (ou filosofia poético-
didática) dum Empédocles, por exemplo, não havia recurso mais apto. Por isso se há restringir
aqui apenas ao tratamento das máximas, em detrimento dos tópicos e exemplos, matéria dos
entimemas. As máximas, portanto, por seu caráter genérico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1), são mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissões35.
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6), a máxima é
uma proposição (ἀπόφανσις) não relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθ’ ἕκαστον),
mas de caráter universal (καθόλου), que não se refere, porém, a todo e qualquer tema, e sim às
ações humanas (πρὸς τὸ πράττειν), ou seja, àquilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar

35
Das figuras, cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures, tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese, anteriormente citada. Vale apenas dizer, para justificar a síntese supraelaborada, que a amplificação
(αὔξησις), relacionada por Aristóteles à superioridade (ὑπεροχή) (1368a23), e que para os gregos era sinal de
virtude, é o recurso demonstrativo (que pode incluir não apenas as figuras, mas exemplos, máximas etc.) que mais
convém ao discurso de gênero epidíctico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7).
160
(φευκτά) praticar. No termo “máximas”, do grego gnômai (γνῶμαι) e do latino sententiae,
incluem-se grosso modo preceitos, provérbios, ditos ilustres, enigmas, epigramas, truísmos, ca-
lembures, generalizações concisas, numa palavra, todos os enunciados de cunho “espirituoso”
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentação. E é exatamente por sua eficácia argu-
mentativa que Aristóteles coloca o tratamento da questão (γνωμολογία), na Retórica
(1394a19-30), como prelúdio ao estudo dos entimemas, pois, como ele mesmo observa, elas
constituem não apenas as premissas (ἀρχαί), como também a conclusão (συμπέρασμα) dum
argumento silogístico:
No que tange ao recurso às máximas, depois de ter sido dito o que é uma máxima, há
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que, em que momento e a quais
sujeitos convém aplicar o uso das máximas nos discursos. A máxima é um enunciado,
mas não a respeito de tema particular, como, por exemplo, que tipo de homem é Ifí-
crates, e sim de caráter universal; e não a todo e qualquer tema de caráter universal,
como, por exemplo, que o reto é contrário ao curvo, e sim a respeito das práticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relação ao que se pratica. Portanto, se
os entimemas são de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas, as conclu-
sões dos entimemas e as premissas, excluído o silogismo, são as máximas.36

Todos os entimemas, pois, de par com os recursos da elocução (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα), diz
Aristóteles (1410b20-21), constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα), desde que comu-
niquem ensinamento de modo rápido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e também conciso, o
que vale igualmente para as máximas, cujo conteúdo deve ser facilmente apreendido, ter uma
forma “atômica” e ser memorizável, com o auxílio dos recursos da léksis, sem dúvida, a fim de
serem prontamente eficazes.
Três são, em verdade, as principais utilidades das máximas nos discursos, de modo geral
segundo a Retórica, e nas Confissões de modo particular: 1. fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso; 2. torná-lo ético; 3. dizer o indizível, permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissões).
Primeiro, as máximas permitem a “participação” no discurso por parte do auditório, por
ser este constituído de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν), segundo o
juízo de Aristóteles (1395b2-3), pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniões que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3), ou seja, os ouvintes-leitores se felicitam quando o

36
(1394a19-30): “Περὶ δὲ γνωμολογίας, ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη, μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις. ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις, οὐ μέντοι
περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον, οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης, ἀλλὰ καθόλου· καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου, οἷον ὅτι τὸ
εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον, ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί, καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν.
ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν, τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων
καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι [...]”.
161
orador-escritor refere opiniões que eles já possuem e creem suas, particulares. Por exemplo, diz
Aristóteles, se um orador enuncia diante de um auditório “não haver nada mais estúpido que ter
filhos”, havendo alguém nesse auditório cujos filhos constituam algum estorvo, óbvio que este
ficará feliz, acreditando que o orador pensa como ele (b7-11). O mesmo vale para os entimemas,
segue o filósofo (1400a26), dentre os quais são preferíveis os que são imediatamente apreendi-
dos pelo auditório, assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα), não por serem superficiais, mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusões, sentindo-se tão capazes
como o orador, e também por poder participar do discurso, juntamente (ἅμα) com o seu autor,
como se fossem coautores (1400b26-33).
Em segundo lugar, e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω), segundo Aristóteles, por-
que as máximas tornam o discurso ético (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13), impri-
mindo-lhe um caráter moral de enorme valor persuasivo. Os discursos são éticos quando a fi-
nalidade moral está manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις), ou seja, quando a intenção moral, ou
proaíresis, do orador é de tal modo clara que o discurso possua uma feição ética (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13). Por conseguinte, aquele que emprega uma máxima expõe suas preferências morais,
o que, para Aristóteles, constitui o grande efeito desse recurso retórico. Isso porque, se a má-
xima for aproveitável ou útil (ὥστ’ ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι), fará com que o orador
também pareça ser um homem de boa índole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17), devido à ligação que se estabelece entre o discurso ético e aquele que
o profere. Com efeito, uma vez refiram-se a verdades universais, as máximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiência, conferindo ao orador aquela imagem de ancião, cuja sa-
bedoria é quase que santificada, venerável; daí Aristóteles não recomendar o seu uso aos jovens,
a fim de que não soem pretensiosos, parecendo falar do alto duma sabedoria que, por conta da
pouca idade, ainda não podem possuir. Portanto, segundo se pode depreender das palavras do
filósofo, trata-se, no fim, duma questão de auctoritas (ou ἦθος), em que o uso das máximas
confere certa venerabilidade ao discurso, uma vez tratarem-se de verdades de caráter universal,
aceitas por todos, como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestígio
por sua ancestralidade e aceitação geral, numa palavra, como se fossem ditos gnômicos dos sete
sábios37.
Por fim, as máximas são úteis porque, ao enunciar algo em termos universais ou gerais,
permitem a amplificação (αὔξησις), a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do

37
Os sete sábios da Grécia antiga: Tales de Mileto, Sólon de Atenas, Periandro de Corinto, Cleóbulo de Lindos,
Quéilon de Esparta, Bías de Priene e Pítaco de Mitilene.
162
gênero epidíctico (1368a26-7), e que, nas Confissões, de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas, idealizadas e amplificadas (Conf. 1,4,4; 2,6,13-14
et passim), serve perfeitamente ao propósito de ressaltar a inefabilidade divina, uma vez que
nada se pode dizer do inexprimível senão de modo figurado, analógico, oblíquo, para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificação como a hipérbole (ὑπερβολή), por exemplo
(REBOUL, 2000, p.123-4):
[...] a função semântica da hipérbole é dizer que de fato não conseguimos dizer, é dar
a entender que aquilo de que estamos falando é tão grande, tão bonito, tão importante
(ou o contrário) que a linguagem não poderia exprimir. Donde o papel fundamental
da hipérbole na retórica religiosa, visto que só ela pode designar aquilo que não se
pode denominar.

Demais, além de amplificarem pela generalização, as máximas exercem também impacto ins-
tantâneo no auditório, donde serem muitíssimo mais eficazes que o silogismo, cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo, premissa a premissa, raciocínio a raciocínio,
muita vez a preço de considerável esforço mental. De fato, a máxima exerce impacto ao obstar,
pela velocidade e concisão de sua enunciação, a interferência da razão, fazendo com que seu
conteúdo seja aceito sem reservas e de imediato, pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ção dum silogismo completo. Portanto a máxima surpreende, num ataque oblíquo, à maneira
da feliz metáfora de Quintiliano:
E assim como nos combates armados é fácil tanto perceber como também prevenir-se
e repelir os ataques adversários e os golpes diretos e francos; os ataques oblíquos e
encobertos são menos perceptíveis, sendo próprio da arte [bélica e retórica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato; assim também o discurso que carece
de habilidade põe-se a combater apenas com peso e impacto, todavia, se empreendeu
simular e variegar, é-lhe permitido avançar pelos flancos e pelas costas, e não apenas
desviar as armas adversárias, mas também, como que num relance, ludibriá-las.38

E mais, os conteúdos expressos pelas máximas, por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί), parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12). Esses efei-
tos, por sua vez, combinados com as virtudes do discurso oral, como bem destaca Reboul (2000,
pp. 94-5), jamais deixam de exercer impacto argumentativo considerável, seja quando comuni-
cam ou quando instruem, porém não geometricamente, e sim por meio de repetições, alitera-
ções, ritmo, metáforas, alegorias, enigmas, naquilo que o autor denomina função “poética” da
linguagem, e que outra coisa não é senão a elocução com suas figuras, os “argumentos conden-
sados” de Perelman (ibid. 2000, p. 121). Todas as figuras — o que se pode expandir também a

38
Inst. oratoriae (9,1,20): “Namque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est; auersae tectaeque minus sunt obseruabiles, et aliud ostendisse
quam petas artis est; sic oratio, quae astu caret, pondere modo et inpulsu proeliatur, simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallere.”.
163
todos recursos do lógos supracitados —, quando operam da mesma forma, como as máximas e
provérbios aqui referidos, são “redutoras” (REBOUL, 2000, p. 125), porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo, um certo valor em lugar de outros, daí também e principalmente
seu papel argumentativo. Com efeito, uma máxima guarda sua força na própria concisão, isto
é, por ter uma forma “atômica”, no dizer de Reboul (ibid.), que faz com que se guarde na me-
mória com facilidade não apenas o conteúdo, mas a própria forma, que se a reproduza com
rapidez, que se a compreenda sem grande esforço; isso sem mencionar que contém em sua
forma atômica um poderoso argumento condensado, que se torna decisivo exatamente por sua
concisão e estilo. Pois são exatamente essas as características não apenas dum discurso de tipo
místico, de modo geral, que pretenda dizer o indizível, mas das Confissões em particular, espe-
cífica mas não exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus, naquilo que se houve
por bem denominar “retórica do silêncio”.
Veja-se como exemplo de máxima (γνώμη) o verso de Eurípedes (Hécuba, 858) adu-
zido por Aristóteles (1394b1-6):

Não existe dentre os homens quem é livre.


Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστ’ ἐλεύθερος.

Porém quando se o considera ao lado do verso seguinte, diz o filósofo, tem-se então um enti-
mema, não mais uma máxima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5):

Não existe dentre os homens quem é livre,


porque ou dos bens é escravo ou da fortuna.
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστ’ ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης.

No primeiro exemplo, pode-se reescrever a máxima do seguinte modo: “Nenhum homem, den-
tre todos os homens, é livre”. O segundo verso, do seguinte modo: “Ninguém é feliz em tudo,
porque ou é escravo do dinheiro ou é escravo do destino”. O que, em forma de entimema, pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue: P.1: Ou o homem é escravo do dinheiro; P.2:
Ou o homem é escravo do destino; C.: Logo nenhum homem é livre39. Claro está que os opera-
dores disjuntivos com que P.1 e P.2 se iniciam, “ou... ou” (ἢ... ἢ), são excludentes, o que implica
não haver uma terceira via (nihil est tertium), ou seja, a humanidade se divide unicamente em
dois grupos: 1. os que são escravos do dinheiro; 2. os que são escravos do destino, e nada além,

39
É bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa, no seguinte esquema alternativo: P. 1:
Todos os homens são escravos de alguma coisa; P.2: Ou são escravos do dinheiro ou do destino. C.: Logo todos os
homens não são livres.
164
o que simplifica drasticamente a realidade, numa generalização que se pode até considerar gros-
seira. Contudo é exatamente dessa concisão, desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujança argumentativa, assim como a máxima, que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficácia, porque o verso: “Não existe dentre
os homens quem é livre”, considerado por Aristóteles uma máxima, não é outra coisa senão a
própria conclusão do entimema.
Máximas há, diz Aristóteles (1394b6-), que se fazem seguir duma conclusão ou epílogo
(μετ’ ἐπιλόγου); outras, que não carecem de epílogo (ἄνευ ἐπιλόγου). Isso se dá porque nem
tudo o que se diz é matéria controversa, que careça de demonstração, por ser contrário à opinião
geral (παράδοξόν τι). Assim, os conteúdos e as máximas construídas a partir deles, que façam
parte da opinião geral, por serem conhecidos, não precisam de demonstração, nem de conclu-
são, como o seguinte verso aduzido pelo filósofo, provavelmente do poeta Simônides (c. 556-
468 a.C.) (1394b13):

Para o homem, ter saúde é a melhor coisa; ao menos é o que nos parece.
ἀνδρὶ δ’ ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν, ὡς γ’ ἡμῖν δοκεῖ

Dentre as que necessitam de epílogo, algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν), outras, as mais estimadas (μάλιστ’ εὐδοκιμοῦσιν), porque a causa daquilo que se diz é
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον), apesar de “entimemáticas” (ἐνθυμηματικαί),
não fazem parte do próprio entimema, como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido:

Não guardes ódio imortal, sendo tu mortal.


Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν.

O primeiro hemistíquio, que Aristóteles (1394b24) reescreve como: μὴ δεῖν φυλάττειν


[ἀθάνατον ὀργήν], “Não se deve guardar [ódio imortal]”, constitui uma máxima; porém
θνητὸν ὄντα, “sendo mortal”, por sua vez, constitui uma conclusão, que expressa o porquê (τὸ
διά τί), a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte. E exatamente por ser mais
evidente a toda gente, de modo instantâneo, diz o filósofo, este tipo de máxima é mais bem
considerada. O mesmo se dá com o seguinte verso, possivelmente do comediógrafo e filósofo
pré-socrático Epicarmo (c. 560-460 a.C.) (1394b26):

Coisas mortais deve o mortal pensar, não imortais.

165
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν, οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν.40

O filósofo não explica, mas pode-se arriscar que o hemistíquio primeiro, “O homem mortal
deve [pensar] coisas mortais”, constitui a máxima sem o epílogo, que seria o hemistíquio se-
guinte: “porque o homem mortal não [deve] pensar coisas imortais”, ou seja, pensar aquilo que
é próprio aos deuses imortais, apenas. Neste caso, contudo, pela elipse dos termos, principal-
mente φρονεῖν, “pensar”, na primeira parte, mas também do impessoal χρή, “dever-se”, na
segunda, se Epicarmo não tivesse incluído o epílogo, que explicasse a causa do que se enuncia,
a máxima restaria truncada e, consequentemente, incompreensível, ou então, para alguns, muito
enigmática, pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte.
Depreende-se sem grande dificuldade, de tudo o que foi dito, o motivo por que Aristó-
teles sugere por vezes transformar o entimema em máxima41, pois, como se disse amiúde, nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impõem como as mais adequadas ou eficazes,
como se patenteia no caso das Confissões, especificamente para dizer o indizível. O exemplo
dado pelo autor da Retórica é bastante ilustrativo. Primeiramente tem-se uma máxima:

É preciso fazer reconciliações, os que têm bom-senso, [estando] prósperos,


pois deste modo obterão maior vantagem.
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας·
οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν.

O que, em forma entimemática (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristóteles do seguinte modo


(que se traduziu à letra): “Se, pois, fazem-se necessárias, quando seja o mais benéfico e vanta-
joso possível, fazer então as reconciliações, quando se está próspero é necessário reconciliar-
se”42. Ainda que não sejam de imediato perceptíveis as premissas do entimema, pode-se refor-
mulá-lo do seguinte modo: P.1: Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefí-
cios; [P.2 — premissa ausente tanto no entimema como na máxima: As reconciliações devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefícios]; C.: Logo reconciliações devem ser feitas em
tempo de prosperidade. Vê-se, claramente, como a formulação gnômica é muito mais impac-
tante, seja pela concisão ou pela conclusão rápida e quase irretorquível que aduz.
No discurso cristão, como o das Confissões, por sua vez, pode-se dizer que as máximas
se confundem com as citações bíblicas, ainda que se compreenda a Escritura como expressão

40
Α tradução linear seria algo como: “Coisas mortais deve o mortal, não imortais, o mortal pensar”.
41
(1418b33-39): “Convém também transformar às vezes os entimemas, tornando-os em máximas” (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε).
42
“εἰ γὰρ δεῖ, ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται, αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι,
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαι.”
166
da Palavra de Deus, seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra;
discurso que, de um modo ou de outro, tem-se por divinamente inspirado, como por exemplo
no caso dos profetas, que se faziam eles mesmos portadores dos oráculos de Yahwé. Seja como
for, pelo uso intenso de passagens das escrituras — do primeiro parágrafo das Confissões ao
verso inicial do segundo (1,1,1-2), das 219 palavras escritas por Agostinho, 46 (21%) são bí-
blicas, retiradas de 8 citações diretas das Escrituras e 13 referências43 —, Agostinho não apenas
imprime um êthos sagrado e venerando a seu discurso, o que não deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo, mas também assume parte deste êthos para si, cujas palavras se fazem
portadoras de altíssimo valor, seja literário, seja filosófico, seja religioso. Além do mais, a ex-
periência de que fala Aristóteles, quando adverte que não se deve falar senão com conhecimento
de causa sobre algum assunto, Agostinho a tinha de sobra agora, especialmente depois da nar-
ração dos livros da parte biográfica, em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma após outra, numa narrativa comovente e precisa:
Mas, por um lado, convém proferir máximas aqueles que têm mais idade, por outro,
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se é experimentado; pois proferir máxi-
mas quando não se é tão vivido é tão inconveniente como proferir fábulas e discorrer
sobre aquilo em que se é inexperiente, tolice e falta de instrução.44

Diante disso, não se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funções dos primei-
ros livros das Confissões é exatamente a construção dum êthos, dum caráter de experiência e
adequação, não apenas para a função episcopal, para à qual tinha sido eleito coadjutor, de modo
irregular, mas para sua vida eclesiástica de modo geral, diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatólico, ao menos em Cartago e vizinhanças de Tagasta e Madaura. Com efeito,
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado pretérito e, acima de tudo, de
granjear para si um status respeitável diante da comunidade, não apenas com o fito de fazer
filosofia, mas também para ter sucesso nas polêmicas e debates dogmáticos em que se via e
havia de ver envolvido. Trata-se também duma tentativa de “purificação”, de deixar de ser um
outsider, uma depuração não apenas filosófica, mas também moral, a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente, e ser aceito.
De volta às máximas, por mais temerária possa parecer a afirmação supraefetuada de
que se confundam com as citações escriturárias, vale lembrar tão somente dois detalhes de im-
portância capital que venham clarear a analogia. O primeiro é o caráter primordialmente oral

43
As 13 referências bíblicas constantes de Conf. 1,1,1-2 são as seguintes: Sl 47,2; Sl 95,4; Sl 144,3 ; Sl 146,5;
2Cor 4,10; Tg 4,6; 1Pd 5,5; Sl 118,34; Sl 118,34; Sl 118,34; Rm 10,14; Sl 21,27; Mt 7,7.
44
(1395a1-7): “ἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις, περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν,
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν, περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος, ἠλίθιον
καὶ ἀπαίδευτον”.
167
das Escrituras, salvo raríssimas exceções, como passagens do Evangelho de João e do Apoca-
lipse de par com algumas construções mais bem elaboradas das narrativas de Lucas, tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apóstolos, o que se pode constatar já no prólogo do primeiro.
Pois bem, sabe-se quão necessários eram tanto a universalização dos temas quanto a musicali-
dade, de par com outros tantos recursos ditos elocutórios, como por exemplo as figuras de re-
petição, à transmissão oral dos conteúdos, para o que têm cooperado de modo inquestionável
as sententiae, em todos os tempos e culturas, por tratarem-se não apenas de conteúdos de caráter
universalizante, como bem explica Aristóteles — quando são utilizados não apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas também como conclusões (συμπεράσματα) para os entimemas —, mas
principalmente por estes conteúdos viajarem o cadinho dos séculos na forma veicular de cons-
truções facilmente memorizáveis, porque agradáveis tanto à alma quanto ao ouvido. Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma série inumerável, o que de modo nenhum configura uma
auxese, tomados todos da expressão popular contemporânea, mas cuja origem é obviamente
bíblica, de máximas que atravessaram os séculos: “Mais vale o pouco com Deus que o muito
sem ele”45; “Quem dá aos pobres empresta a Deus”46; “Olho por olho, dente por dente” e seu
contrário “Dar a outra face”47; “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”48; “Faze
aos outros o que quer que os outros te façam”49; “Quem com ferro fere com ferro será ferido”50;
“Os primeiros serão os últimos e os últimos, primeiros”51; “Aquilo que o homem semear, co-
lherá”52; “Quem estiver livre de pecado que atire a primeira pedra”53 etc.

45
(Prv 15,16): “Melhor a pequena porção com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedade”
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας).
46
(Prv 19,17): “empresta a Deus aquele que tem misericórdia para com o pobre” (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν [...]).
47
(Mt 5,38-39): “Ouvistes o que foi dito: [Retribuí] olho por olho e dente[s] por dente[s]! Porém eu vos digo:
Não oponhais resistência ao mal: mas todo aquele que dá um tapa em [tua] face direita, volta-lhe também a outra!”
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθη· ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος. ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι
τῷ πονηρῷ· ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου], στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην).
48
(Mt 22,21): “Devolvei então as coisas de César a César e as de Deus a Deus!” (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος
Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf. Mc 12,17; Lc 20,25).
49
(Mt 7,12): “Portanto tudo quanto porventura queirais que vos façam os homens, assim também vós a eles
fazei!” (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι, οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς).
50
(Mt 26,52): “Retorna a tua espada para o lugar dela, porque todos os que empunham a espada, pela [/na]
espada são mortos!” (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆς· πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν
ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται).
51
(Mt 20,16): “Assim serão últimos, os primeiros; e primeiros, os últimos” (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι
πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι).
52
(Gl 6,7): “Pois aquilo que venha o homem a semear, isso mesmo também colherá” (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ
ἄνθρωπος, τοῦτο καὶ θερίσει).
53
(Jo 8,7): “Aquele que esteja sem pecado [anamártētos] dentre vós, [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedra!” (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον).
168
O segundo detalhe que carece de ser lembrado é tão mais simples quanto óbvio: trata-
se dos livros ditos “sapienciais” ou “proverbiais”54 do Velho Testamento, que não por acaso
são sete, e que tampouco por acaso são citados amiúde no Novo Testamento. São eles: Jó,
Provérbios, Eclesiastes, Cântico, Sabedoria, Eclesiástico (ou Sirach) e, por fim, o próprio livro
dos Salmos, dos mais citados por Agostinho, desde o primeiro verso das Confissões aos ester-
tores do livro derradeiro. Pois bem, se Agostinho recorre no parágrafo inicial das Confissões a
uma citação, que é uma máxima, que se repete não apenas no livro dos Provérbios (LXX 3,34),
“O Senhor resiste aos soberbos; aos humildes, porém, dará graças” (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται, ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν), mas também no NT (1Pd 5,5; Tg 4,6): deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam; conclui a obra com uma admoestação de Cristo
que pode muito bem ser compreendida também como máxima, que o filósofo adapta, é verdade,
não obstante manter-se facilmente reconhecível por qualquer um, em todas as épocas, desde a
sua até ao presente (Conf. 13,38,53): “que se busque [a partir] de ti; que se procure em ti; que
se bata à tua [porta]: assim, deste modo, se há de receber, se há de encontrar, se há de abrir” (a
te petatur, in te quaeratur, ad te pulsetur: sic, sic accipietur, sic inuenietur, sic aperietur)55.
Duas máximas que podem ser dispostas em forma entimemática do seguinte modo tentativo.
No primeiro exemplo (Prv 3,34; 1Pd 5,5; Tg 4,6), a máxima: “Deus resiste aos soberbos, porém
aos humildes dá graças”, se pode desdobrar no seguinte entimema: [P.1: — premissa ausente:
A soberba é má; a humildade, boa]; [P.2 — prem. também ausente: Deus impõe resistência (≅
i. penas) aos maus e premia (≅ agracia) os bons]; C. Logo Deus resiste aos soberbos, porém dá
graças aos humildes. No segundo (Conf. 13,38,53; Mt 7,8), tão mais difícil de desdobrar quanto
elíptico: “que a partir de Deus se busque, procure e bata, pois assim se há de receber, encontrar
e abrir”, pode-se arriscar a seguinte disposição entimemática, a partir do espírito expresso em
Mt 7,8: P.1: Todo aquele que pede, busca e bate, recebe, encontra e tem aberto; [P.2 — premissa
ausente: Deus, porém, dá, faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede, busca e bate
com fé]; C.: Logo deve-se pedir, buscar e bater à porta de Deus, com fé.

54
O termo “provérbio” (παροιμία), utilizado no livro homônimo bíblico, pode muito bem ser considerado
equivalente de gnômai (γνῶμαι), as “máximas” de Aristóteles, de caráter moral ou prático. Com efeito, o provér-
bio, ou máxima, é a conclusão dum entimema cujas premissas (de caráter proverbial também) nem sempre são
explicitadas de modo claro, como explicam Irving Copi et alii (2002, p. 16): “Os argumentos são muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposições constituintes não está declarada, mas assume-se que seja
compreendida. [...] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequência apoiam-se em alguma proposição
que é compreendida mas não declarada. Tais argumentos são denominados entimemas” [Grifos do autor].
55
(Mt 7,7-8): “Pedi e vos será dado; buscai e encontrareis; batei e se vos será aberto. Porque todo aquele que
pede, recebe; e o que busca, encontra; e ao que bate, se lhe abrirá” (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν, ζητεῖτε καὶ
εὑρήσετε, κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖν• πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι
ἀνοιγήσεται).
169
Não se constitui tarefa inexequível empreender uma breve reconstrução, ainda que ten-
tativa, de alguns entimemas de que as proposições de caráter universal e geral, que são as má-
ximas, se fazem conclusões. Porém não se trata disso aqui, de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnômicos constantes da Escritura e citados amiúde nas Confissões por Agostinho. O
que se pretende, bastante ao invés, é dizer que as máximas, que são construções de caráter ético,
repletam as Escrituras (e as Confissões) da primeira a última página, não apenas por sua virtude
retórico-poética, como musicalidade, concisão, ritmo, paralelismo, repetição, entre outras, de
par com seu conteúdo universalizante e sua virtude mnemônica, virtude essa, por sua vez, que
é fruto de suas características retórico-poéticas, mas principalmente por meio de sua pujança
(δύναμις) argumentativa e, consequentemente, filosófica. Tencionou fazer, pois, uma analogia,
que se ajuizou bastante apropriada, ao se ter percebido que um sem-número de passagens bíbli-
cas foram concebidas e construídas retoricamente como gnômai, máximas de caráter prático,
cuja utilidade, de par com a mnḗmē, na transmissão oral dos conteúdos, não apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina, ao modo do dizer oracular, mas permite ao autor, no
caso das Confissões, expandir os recursos de seu lógos para muito além da demonstração cien-
tífico-racional (ἀπόδειξις), em direção àquela suprarracionalidade indizível, porém que se quer
e precisa dalgum modo dizer. Demais, a argumentação retórica não se faz senão pela indução,
seja dos exemplos ou dos entimemas, sendo este último, como explica Aristóteles, construído
a partir de afirmações de caráter universalizante e geral, de que são partes as máximas, não
obstante o seu caráter divino e especial, na Bíblia e, consequentemente, nas Confissões também.

Conclusão

Pode ter estranhado o leitor, ao deparar na tabela supraelaborada a inclusão do lógos na


fileira do gênero epidíctico, enquanto o páthos, na do judiciário, gênero ao qual se recomendam
as provas por excelência demonstrativas, como o entimema, o silogismo de tipo retórico que,
por ser uma prova lógica, deveria fazer parte obrigatória do lógos. No entanto, seja a estranheza
apenas aparente, pois quando Aristóteles se utiliza do termo “prova” (πίστις), nem sempre se
refere especificamente aos raciocínios lógicos, como o silogismo retórico, assim como quando
se utiliza dos termos êthos, páthos e lógos, cujas acepções se desdobram em múltiplos sentidos,
embora sempre cognatos das mesmas ideias básicas. Grosso modo as provas ditas técnicas da
retórica referem-se ao âmbito respectivamente das primeira, segunda e terceira pessoas discur-
sivas: 1. aquele que fala (ἦθος); 2. aquele a quem se fala (πάθος); 3. aquilo que ou de que se
fala (λόγος), o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas, seja na construção
170
do caráter do falante, seja na afetação das paixões do que ouve, seja nas qualidades do que se
diz. Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retórica não tem que ver
imediatamente nem com o caráter, tampouco com as paixões ou com o discurso, e sim com a
persuasão (πείθω), para cuja finalidade se fazem necessárias as provas técnicas, que objetivam
persuadir seja pelo apelo ético, seja pelo apelo emocional, seja pelas qualidades do próprio
discurso, estribadas estejam em raciocínios exclusivamente lógicos, ou não. Isso porque, como
reconhece Aristóteles, nem sempre a persuasão se faz pelos fatos, pela verdade nua e crua, e
sim pelas aparências de verdade, ou seja, pela verossimilhança, assim como por opiniões
(δόξαι), sejam estas motivadas por preferências pessoais ou coletivas, por sentimentos verda-
deiros ou não, por afinidades ou repulsas, em detrimento das provas de caráter lógico, uma vez
que não basta apenas ser bom, como diz Aristóteles, mas deve-se parecer sê-lo, assim como não
há verdade evidente para todo e qualquer assunto, pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodíctica ou geométrica, como Agostinho bem o sabia. Por-
tanto, quando se dizem êthos, páthos e lógos, se está referindo: 1. (ἦθος): (1.1) às provas técni-
cas voltadas para a primeira pessoa, que visam construir um caráter favorável ao orador (o que
não equivale a dizer que essa construção ética seja o objetivo do discurso, e sim que a persuasão
se conseguirá mais facilmente a partir dos argumentos e opiniões de alguém cujo caráter é con-
siderado eticamente superior); (1.2.) ao orador e seu universo ético; (1.3) ao próprio caráter que
se constrói pelo discurso, seja por meio de raciocínios demonstrativos (ἀπόδειξις), que também
se denominam provas (πίστεις), os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasão acerca de
eventos futuros, como ocorre no gênero deliberativo, quais sejam, os exemplos
(παραδείγματα), seja por meio de mecanismos outros da arte, como as figuras da elocução;
2. (πάθος): (2.1) às provas técnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva, provas que ob-
jetivam mover as suas paixões a fim de obter um juízo favorável à causa, geralmente pretérita,
pois refere-se a algo justo ou injusto já ocorrido, característica do gênero judiciário, para o que
se fazem mais apropriados os raciocínios lógicos que se esteiam em fatos, como entimemas
(ἐνθυμήματα) e máximas (γνῶμαι), sem que se excluam os demais mecanismos da arte, como
as figuras; (2.2) o próprio auditório, no caso do gênero judiciário, os juízes do tribunal; (2.3) as
próprias paixões da alma, que o orador procura despertar ou mover, pelo discurso; 3. (λόγος):
(3.1) às provas técnicas assentadas sobre a terceira pessoa, aquilo de que se fala, a fim de per-
suadir um auditório de espectadores acerca de algo que é (no presente, como se dá no gênero
epidíctico) belo ou não, bom ou não, para o que se fazem necessárias provas que objetivam
amplificar a causa, para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις), sem exclusão das demais

171
provas; (3.2) ao próprio discurso, aquilo de que se fala; por fim, (3.3) aos raciocínios ou provas
de caráter exclusivamente racional, ou seja, que nem se ocupam do caráter tampouco das pai-
xões do auditório, ao invés, focam apenas no discurso, naquilo que se diz, a terceira pseudopes-
soa ou referente, o que se dá por meio primordialmente de raciocínios lógicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razão apenas. Como se percebe, não é muito fácil dissociar
o lógos tanto do êthos como do páthos neste último sentido (1.3; 2.3; 3.3), uma vez não ser
muito exequível discurso isento das marcas de pessoa, seja do que fala ou daquele a quem se
fala, a despeito da utopia aristotélica dum discurso de tipo geométrico.
Este trabalho, pois, procurou destacar, em continuidade às pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retórica na obra de Agostinho de Hipona, de modo especial nas Confissões,
o papel das provas ditas “técnicas” ou “da arte”, segundo o sistema retórico aristotélico, êthos,
páthos e lógos, que, para muito além da simples construção de caráter, manipulação das paixões
ou ornamentação do discurso, com finalidade exclusivamente persuasória e agonística, exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedônio como na filosofia do afri-
cano.
Para Aristóteles, por um lado, as provas técnicas se circunscrevem aos três gêneros su-
praelencados na disposição tabelar apresentada, judiciário, deliberativo e encomiástico ou epi-
díctico, não apenas pela realidade cultural e política em que se via imerso, mas porque, como
ele mesmo reconhece, as questões relativas ao estilo (com seus possíveis desdobramentos filo-
sófico-literários) sofressem ainda certa aversão por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem, talvez resultado das disputas de Platão contra os sofistas, os primeiros pensadores a
imprimir destaque não apenas ao estilo, mas a uma retórica de cunho mais literário, como Gór-
gias, por exemplo, ou Isócrates, que, contudo, não foi propriamente um sofista.
Influenciado pela obra retórica de Cícero, por sua vez, e vivendo numa época cuja he-
rança da segunda sofística sabe-se ter sido enorme, Agostinho não apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores, sistema que, no caso romano, estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas helenísticas, de modo especial a ética estoicizada, que
imprimia destaque à retidão moral do orador. De fato, o filósofo de Hipona desenvolve uma
retórica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente, retomando bastante
de sua virtude elocutória, ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
sófica, pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar,
o Inefável. Disso decorria que os valores geométricos duma retórica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos, pois não havia fonte de eternidade donde extrair axiomas

172
ou verdades científicas acerca do indizível, verdades que não admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar, que não admitissem alguma deliberação, além das páginas da Escritura, a
qual, nada paradoxalmente, teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodíc-
tica, repleta que estava dos recursos típicos da transmissão oral, que eram também os da elocu-
ção, os mesmos que ao tempo de Aristóteles eram desprezados — não que não o sejam hoje —
, pelos pensadores contemporâneos seus, recursos como apotegmas, enigmas, máximas, pro-
vérbios, a não dizer de outros, que se dizem, de modo equivocado, exclusivamente poéticos,
isto é, as figuras desta mesma elocução, como paralelismos, aliterações, assonâncias, oximoros,
paradoxos, quiasmos, antanáclases, parataxes e muitos outros, os quais, como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso místico de todas as épocas e vertentes, exatamente por não po-
derem ser empregados geometricamente, como queria o autor da Retórica, eram os únicos re-
cursos capazes de apreender, conquanto tangencialmente, algo do silêncio inefável daquele que
se diz o próprio Silêncio.

Ricardo Reali Taurisano


São Paulo, 8 de maio de 2015

173
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175
Pedro CALIXTO FERREIRA Filho1

RESUMO: Esta breve investigação sobre a bondade divina e a bondade humana no pensamento de
Agostinho tem como objetivo principal demonstrar que a filosofia prática de Agostinho é inteiramente
predeterminada pela articulação da ideia de bondade tanto ontológica quando ética: a bondade é
literalmente radical. A criação está intimamente associada ao bem, ela é pensada como efusão do bem
absoluto. Neste sentido, o ser e o bem, a existência e a bondade são indiscerníveis. É o bem que penetra
o âmago das criaturas e determina nelas o desejo de ser e de durar. Malgrado a finitude, implicando
acidentalmente o mal como privação da bondade, a existência é um bem e a morte necessária à harmonia
do todo. A verdadeira fonte do mal está na vontade humana. Porém, se o mal moral não existisse, o
homem seria então privado de seu bem mais precioso que é a liberdade. Essas teses são testemunhas do
otimismo do pensamento cristão. Otimismo quase sempre omitido nos estudos sobre a essência da ética
no pensamento cristão que tem Agostinho como seu principal representante.
Palavras-chave: Agostinho, bem, mal, bondade, amor, desejo, vontade, felicidade, ética.

ABSTRACT: This brief investigation on goodness in the thought of Augustine has as first purpose to
demonstrate that the Practical Philosophy of Augustine is entirely determined by the articulation of three
concepts: divine and human goodness and freedom. However, between them,
the goodness is literally radical. The creation is closely associated with the good, as a effusion of
the unconditional Good. In this way, the being and the good, the existence and the goodness are
inseparable. It penetrates the heart of the creatures and determines in them the desire of being. Even the
finitude implies accidentally the existence, the evil, as privation of the goodness, is a good and the death
necessary to the harmony of the totality. The true source of the evil must to be searched in the human
will. However, if the moral evil did not exist, the man would be then deprived of his most precious
anthropologic values: the freedom. These theses are witnesses of the optimism of the Christian thought.
This optimism is frequently omitted in the studies on the essence of the Christian ethics that was
developed in the course of the history of the philosophy and had Augustine as most important thinker.

Keywords: Augustin, good, evil, goodness, love, will, desire, happiness, ethic.

1
Doutor em História da Filosofia pela Universidade de Paris Sorbonne. Ex-professor da Universidade Católica
de Paris. Professor na Universidade Federal de Juiz de Fora.

176
Introdução

Na língua vulgar, « bom » designa frequentemente uma qualidade. Nós


qualificamos de bom todas as coisas ou ações podendo produzir em outra um efeito benéfico.
Tudo o que possui uma eficácia criadora e providente parece poder receber o qualificativo de
“bom”. É bom o que é suscetível de fazer vir à existência o que ainda não existe ou então,
preservar na existência o que já existe. Ao contrário, é mal o que contribui à decadência, ao
enfraquecimento ou até mesmo à corrupção do existente.

Porém, esta visão simplista e dualista do real não resiste mediante uma
investigação um pouco mais aprofundada. Com efeito, como não ver que o que preserva a vida
de um ente é, ao mesmo tempo, causa de morte de outro? Será que o movimento que gera o ser
produz simultaneamente o nada? Não seria a bondade apenas uma questão de ponto de vista e,
consequentemente, inteiramente relativa à posição, à perspectiva daquele que, em seu discurso,
qualifica de bom alguém ou alguma coisa?

Mas, esta resposta habitual peca contra o bom senso. Ela subentende,
frequentemente, de maneira larvada o desejo de irresponsabilidade. Sua dificuldade se encontra
justamente na incapacidade de afrontar o problema da necessária responsabilidade moral. Com
efeito, nossa concepção da bondade exerce uma grande influência sobre nosso comportamento
e juízos morais. Consequentemente, se a bondade for absolutamente relativa, nós estaríamos
diante de um paradoxo extremamente nefasto, pois nada poderia nos impedir de desejar algo de
maneira irresponsável, isto é, sem levar em conta o mal que podemos causar a outrem, nem
julgar como errado aquilo que reprovamos. Desde já se pode vislumbrar o perigo do relativismo
e o interesse de uma investigação acerca de referências universais que oriente no agir.

Porém, para isso, é necessário afrontar a problemática do engendramento do mal.


Se a bondade constitui a origem e o fundamento geral da existência e de sua preservação, como
explicar a decadência e a corrupção em geral? Como explicar que a decadência de um ente
produza geração e fortalecimento de outro?

Este artigo visa demonstrar que todo o esforço do pensamento ético cristão com
relação ao bem e à bondade gira em torno desta problemática central: pensar o mundo como
bom; pensar a bondade como fonte do ser. O desafio é imenso e as dificuldades numerosas.
177
Como pensar o Princípio como sendo essencialmente bom, sem, no entanto, fazer dele a causa
do mal e, sobretudo, sem eximir a responsabilidade do homem diante do mal que ele próprio
faz? As análises que faremos aqui do pensamento de Agostinho têm como intuito esclarecer
estas questões.

***

I – A BONDADE COMO RATIO CREATIONIS E RATIO COGNITIONIS

A bondade divina no pensamento agostiniano vem sistematicamente associada


à criação. Esta dependência entre a bondade e a criação provém de uma dupla herança: bíblica
e filosófica. Com efeito, a Bíblia no primeiro recito da criação (Gênesis 1) insiste sobre a
bondade divina e a bondade da criatura. Por outro lado, Platão em sua obra a República (509
b), mas também no Timeu associa a atividade produtora do demiurgo com a ideia de Bem,
princípio último da realidade. Para Agostinho a bondade é o princípio determinativo do agir
divino criador que por transbordamento de bondade produz o ser a partir do nada.

No livro XI, capítulo XXII da Cidade de Deus, Agostinho afirma que uma
investigação sobre a bondade de Deus (bonitatem dei), conduzida de maneira atenciosa, seria
suficiente para acabar com todas as dificuldades que podemos levantar a respeito da origem
radical de todas as coisas. Neste contexto ele define a bondade de Deus como causa (causa) da
criação 2 . O que significa causa neste contexto e quais são as dificuldades levantadas pela
concepção judaico-cristã da criação?

“Quid est enim aliud intellegendum in eo, quod per omnia dicitur: uidit Deus
quia bonum est, nisi operis adprobatio secundum artem facti, quae sapientia Dei
est ? Deus autem usque adeo non, cum factum est, tunc didicit bonum, ut nihil

2
Tomas de Aquino retomará esta mesma ideia em sua obra De Potentia Dei I, 5 ad 14: “Optima ratio, qua Deus
omnia facit est sua bonitas et sua sapientia.” Trad.: “a mais que boa razão, pela qual Deus criou todas as coisas é
a sua bondade e sua sabedoria”.

178
eorum fieret, si ei fuisset incognitum. Dum ergo uidet quia bonum est, quod, nisi
uidisset antequam fieret, non utique fieret: docet bonum esse, non discit.”3

a) O termo causa designa aqui a razão enquanto princípio determinativo e causal.


Ou seja, a bondade é a condição a priori da produção de todas as coisas. Nenhuma criatura
existiria se Deus, antes de sua criação, não tivesse conhecimento de sua bondade enquanto
criatura. E este conhecimento é a razão, ou seja, a causa que faz com que ele decida de cria-la.4

A condição para que Deus, supremo artesão, seja guiado pelo conhecimento
prévio da bondade da obra que executa é que ele mesmo seja bom, isto é, dócil em fazer da
bondade um critério de decisão, uma vez que a bondade exerce a função de causa final
determinando o agir divino. Logo, a bondade não é uma determinação extrínseca à divindade,
pois antes da produção do mundo nada existia além de Deus. Logo, se Deus determina a
bondade como finalidade de sua vontade é porque ele é a própria bondade.

No entanto, esta decisão de fazer da bondade divina um princípio de existência


de todas as coisas deve afrontar um obstáculo exegético: o recito bíblico do Gênesis relata que
Deus vê que as coisas são boas depois de tê-las criado. Dá-se a impressão que Deus descobre a
bondade de sua obra depois do ato criador. Neste caso a bondade não teria presidido o fiat
divino. E, então, porque não dizer que tudo o que tem de bom no mundo ou que talvez a própria
bondade do mundo são frutos do acaso? Com efeito, a produção de algo bom muitas vezes
independe da intenção de seu agente, o que significa que a bondade produzida nem sempre tem
como causa bondade do agente. 5 Mas, o otimismo teológico agostiniano descarta esta
interpretação do texto da Escritura. Segundo ele, as repetições sistemáticas da formula “Et vidit
Deus quod esset bonum” (E Deus vi que era bom) têm como finalidade nos ensinar a ler a
bondade de Deus nas criaturas.

Essa leitura do livro do Genesis apresenta um duplo interesse. Agostinho parece


se opor a uma leitura literal do texto bíblico revelando ao mesmo tempo sua chave de leitura do

3
Santo Agostinho,A Cidade de Deus, XI, XXI ; (Patrologia Latina vol. 41)
4
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XI, XXI; ibidem.
5
Aristóteles faz uma análise interessantíssima desta possibilidade em Física, II, 5, 196 b 30-35

179
mundo: dado que a bondade é princípio de produção da totalidade do que existe ela é ao mesmo
tempo princípio de intelecção da criação: o versículo bíblico que afirma, por exemplo, « Deus
diz : que haja luz, e a luz se fez. E Deus viu que a luz era boa » nos ensina, segundo Agostinho,
por quem, como e, sobretudo, porque o mundo foi criado. O mundo provem da divindade; ele
tem como causa instrumental o intelecto, ou verbum dei, e sobretudo, ele nos informa que a
razão que mobiliza o agir divino é a Bonitas Dei, isto é, a bondade de Deus.

Logo, a bondade divina é pensada por Agostinho através de um duplo prisma:


ela é a causa da produção (ratio creationis); mas ela é ao mesmo tempo princípio de
conhecimento do mundo (ratio cognoscendi), ou seja, somente a bondade nos permite dar
inteligibilidade à criação.

Esta posição de Agostinho é extremamente audaciosa. Uma vez admitida, ela


nos obriga a ver o mundo como bom. Com efeito, se a bondade divina é a causa primeira da
criação, seu resultado só pode ser bom, a menos que se admita um erro de execução dos
desígnios de Deus, o que seria incompatível com a potência e perfeição divinas. Essa é a razão
pela qual Agostinho afirma no De Vera Religione que na medida em que alguma coisa existe,
ela é, ipso facto, pelo simples fato de existir, boa (in quantum est quicquid est, bonum est)6.

Não perceber a beleza e a bondade nas coisas nem nas pessoas que nos envolvem
nada mais é que um erro de hermenêutica. Tudo é uma questão de chave de leitura, de
perspectiva sobre o mundo e sobre as pessoas. O que está em jogo não é uma simples banalidade:
trata-se de nossas relações interpessoais; trata-se de nossa relação com mundo que em si já é
belo e bom; trata-se, enfim, da possibilidade de sermos felizes, coisa que todos nós, sem
exceção, almejamos.

Tal tese pressupõe que a existência e a bondade se encontram num duplo nível:
por um lado, como acabamos de dizer, cada coisa, pelo simples fato de existir, manifesta a
bondade da criação: sua existência é em si mesmo um bem; em seguida, cada uma das criaturas
ocupa um lugar determinado na hierarquia da criação, e, consequentemente, exerce no seu
próprio nível uma função indispensável para a perfeição da totalidade cooperando para a

6
Agostinho, De Vera Religione, XI, 21. (Patrologia Latina vol. 32)

180
realização da harmonia universal. Neste sentido, até mesmo a morte no caso de um ser destinado
a morrer não é um mal. Ela é a condição necessária para sua existência, uma vez que só Deus é
eterno.

“Multa nobis videntur inordinata et perturbata, quia eorum ordini pro nostris
meritis assuti sumus, nescientes quid de nobis divina providentia pulchrum gerat.
Quoniam si quis, verbi gratia, in amplissimarum pulcherrimarumque aedium
uno aliquo angulo tanquam statua collocetur, pulchritudinem illius fabricae
sentire non poterit, cujus et ipse pars erit. Nec universi exercitus ordinem miles
in acie valet intueri. Et in quolibet poemate si quanto spatio syllabae sonant,
tanto viverent atque sentirent, nullo modo illa numerositas et contexti operis
pulchritudo eis placeret, quam totam perspicere atque approbare non possunt,
cum de ipsis singulis praetereuntibus fabricata esset atque perfecta.”7

Com esta interpretação do mundo como cosmos, harmonia, Agostinho se


distancia de uma interpretação pessimista da existência, uma interpretação que consistiria em
acentuar a contingência da criatura e associá-la com uma deficiência inerente de um dos
princípios criadores, como faz a perspectiva maniqueísta da criação que Agostinho rejeitou.
Porém, ela não pode se esquivar de um obstáculo colossal: o mal e a mortalidade. Como o bispo
de Hipona vai enfrentar uma questão tão embaraçante? Eis o que ele afirma nas Confissões:

“Et inspexi cetera infra te et vidi nec omnino esse nec omnino non esse: esse
quidem, quoniam abs te sunt, non esse autem, quoniam id quo es non sunt.”8

Texto magnífico que responde de maneira abrupta, mas profunda à dificílima


questão da fragilidade da existência. Questão que, ainda hoje, nos interpela sem exceção: a
criatura não é Deus, ela é diferente daquele que a engendrou. Quanto a Deus, poderíamos

7
De Musica, VI, 30: (Bibliothèque Augustinienne) “Nestes movimentos, nós acreditamos ver muita desordem e
irregularidade, mas isso acontece porque nós estamos ligados a rota que eles perfazem segundo nosso mérito,
ignorando as obras da beleza que a providência realiza em nós. Seria como se alguém estivesse fixo como uma
estátua num canto de um vasto e magnífico edifício: ele não pode compreender a beleza do palácio do qual ele é
apenas um ponto; da mesma maneira, um soldado em linha de batalha não percebe ordem de todo o batalhão. E
se, num poema, cada sílaba, na medida que ela resoa, se tornasse animada e sensível, ela seria incapaz de apreciar
a harmonia e a beleza do conjunto: pois ela não poderia apreender o som sua integralidade, dado que ele é composto
de uma sucessão fugitiva de cada uma das sílabas.”
8
Agostinho, Confessiones, VII, XI, 17; (Patrologia Latina, vol. 32): « Eu observei atentivamente todas as coisas
inferiores a ti e eu vi que elas nem absolutamente são, nem absolutamente não são: elas são certamente, pois elas
são a partir de ti; no entanto, elas não são, pois elas não são o que tu es. »

181
afirmar que ele é absolutamente diferente, na medida em que ele se diferencia de tudo aquilo
que é determinado pela diferença com relação a ele para poder existir. Logo, esse nosso não ser
Deus, implica num princípio de alteridade: nós somos outros que Deus. A razão é simples: não
somos causa de nosso ato de existir. Viver como seres temporais significa possuir uma
modalidade de existência inteiramente marcada por um atraso: tudo que existe parece ter
chegado tarde demais para ser causa sui.

Assim sendo, se, como testemunha nosso desejo infinito de existência, ser Deus
significa eternidade, o não ser Deus, condição necessária para que a criatura cuja existência é
marcada pelo atraso para consigo mesma, implica necessariamente temporalidade. Deus não
cria a si mesmo, mas ex nihilo, isto é, a partir do nada.

Estamos aptos para compreender que, ainda que a bondade presida a criação,
faz-se necessário um princípio de distanciamento entre Deus e a criatura: este princípio é a
matéria. Logo, a diferença para com o criador não é um mal em si, pois sem ela a bondade
absoluta só criaria a si mesmo o que é extremamente problemático. Seria como se todo o bem
que pudéssemos fazer tivesse com finalidade suprema nós mesmos. Isso não faz sentido, pois,
a bondade e o amor radicais comandam fazer o bem a outro e não à si mesmo. Caso contrário,
se trata simplesmente de estratégias comuns e mesquinhas onde o ego está no centro. Ora, para
Agostinho, o bem supremo é aquele que dá tudo aquilo que ele pode dar. O bem supremo é
generosidade pura, isto é isenta de todo egoísmo.

Associando o mundo a uma manifestação da própria bondade, nosso autor revela


o que é próprio da visão que dos primeiros filósofos cristão tentaram construir do mundo: uma
visão profundamente otimista. A existência, até mesmo a mais ínfima, até mesmo a mais
efêmera é pensada como um dom, um transbordamento efusivo da bondade “excessiva” de
Deus. Até mesmo a corrupção de uma criatura não é vista como um mal absoluto, mas somente
relativo, pois ela contribui à harmonia, isto é à beleza da totalidade. A decadência só se torna
um mal quando produzida de maneira deliberada por um ente consciente de poder agir de outra
maneira, a saber, o homem. Convém, então, se interrogar sobre as razões antropológicas da
produção do mal. Daí a necessidade de investigarmos a relação entre bondade, desejo e vontade.

182
***

II - O AMOR COMO PRINCÍPIO QUE MOVE TODAS AS COISAS EM


DIREÇÃO DE SEUS LUGARES PRÓPRIOS

Num texto extremamente denso da Cidade de Deus Agostinho reduz


filosoficamente todos os movimentos cosmológicos ao amor:

“Si enim pecora essemus, carnalem vitam et quod secundum sensum eius est
amaremus idque esse sufficiens bonum nostrum et secundum hoc, cum esset
nobis bene, nihil aliud quaereremus. Item si arbores essemus uberiusque
fructuosae. Si essemus lapides aut fluctus aut ventus aut flamma vel quid
huiusmodi, sine ullo quidem sens atque vita, non tamen nobis deesset quase
quidam nostrorum locorum atque ordinis adpetitus, nam velut amores corporum
momenta sunt ponderum, sive deorsum gravitate sive sursum levitate nitantur.
Ita enim corpus pondere, sicut animus amore fertur.”9

Se o peso é o que conduz todas as coisas à estabilidade e a quietude (« pondus


omnem rem ad quietem ac stabilitatem trahit. »), se o peso constitui uma espécie de amor, logo,
Agostinho num gesto radical, assume e reconduz todo o movimento da física e da psicologia
aristotélica, que provavelmente ele não conhece de primeira mão, ao princípio amor. O peso (a
gravidade) de tudo é como uma espécie de amor. O amor é a força universal, criadora e
providente que move todos os seres. Pois, sejam eles movimentos humanos ou não humanos,
movimentos orgânicos ou inorgânicos, todos, sem exceção, são conduzidos pelo amor como
motor.

9
Agostinho, Cidade de Deus XI, XXVIII: (Patrologia Latina, vol. 41) « Se nos fôssemos animais nós amaríamos
a vida das sensações e este bem carnal nos bastaria, e ele não nos deixaria outros desejos. Se nos fôssemos plantas,
nenhum movimento sensível manifestaria nosso amor, e, porém, nos desejaríamos aumentar nossa fecundidade e
abundância de nossos frutos. Se fôssemos pedras, torrente, vento ou flama, nós seríamos privado de sentimento e
de vida, mas não a necessidade de nossa ordem natural, necessidade ne nosso lugar próprio. Pois tanto pela
gravidade ou pela leveza, eles tendem a subir ou a descer: o peso dos corpos constituem uma espécie de amor.
Assim como o corpo é conduzido pelo peso o espírito por seu amor.”

183
Porém, o texto revela também que, não obstante sua universalidade, a gravidade
atua de maneira diferenciada. Devemos, então, conceber a gravidade de maneira distinta. O que
vale para os seres inanimados entre eles, vale também para os animais e vegetais: cada gênero,
cada espécie e, provavelmente, cada indivíduo de uma espécie possui seu lugar próprio e um
amor distinto. Daí a necessidade, de não suprimir a diferença, mas de distingui-la.

Obviamente, para Agostinho, o homem, como toda criatura tem um peso, uma
gravidade (pondus), ou seja, o homem como toda criatura possui um ímpeto que o conduz à
realização de sua essência. No entanto, o peso, a gravidade do ser humano é o próprio
amor « pondus meum, amor meus »10. Se o amor é a gravidade que direciona cada corpo ao seu
lugar próprio, se o amor é diferenciado, pois cada gênero e cada espécie busca seu lugar na
criação, como definir o lugar próprio de um ser que tem o amor como gravidade? Dito de
maneira abrupta, amar eis o que nós, seres humanos, amamos. Isso significa que o objeto do
amor é menos importante que o próprio ato de amar: nós amamos amar.

“De amore autem, quo amantur, utrum et ipse amor ametur, non dictum est.
Amatur autem ; et hinc probamus, quod in hominibus, qui rectius amantur, ipse
magis amatur, neque enim vir bonus merito dicitur quid scit quod bonum est,
sed qui diligit. Cur ergo et in nobis ipsis non et ipsum amorem nos amare
sentimus, quo amamus quidquid boni amamus”11
Como o personagem Dom João da obra de Molière, nós amamos menos o objeto
da paixão, a mulher conquistada, por exemplo, do que o fato de estarmos permanentemente
apaixonados. Daí nossa instabilidade, daí o caráter indeterminado inerente de nossa essência.
Agostinho revela quão bizarros e admiráveis nós somos: valorizamos mais o ato de amar que o
objeto que amamos, explicando assim a razão pela qual somos volúveis e inconstantes e ao
mesmo tempo porque somos indeterminados e livres.

Consequentemente, no caso do ser humano, a questão da bondade não se resolve


simplesmente no ato de amar. Um ser que ama amar deve necessariamente amar. O que seria

10
Confessions, 13,9,10. (Patrologia Latina, vol. 32)
11
Agostinho, Cidade de Deus, XI, 28: (Patrologia Latina vol. 41): “Eu ainda nada disse sobre a questão de saber
se nós amamos o próprio amor que nós temos para com ambos [a nossa existência e nosso conhecimento]. Mas, é
muito fácil demonstrar que, efetivamente, nós amamos o amor, uma vez que aqueles que nós amamos de um amor
mais puro e mais perfeito, nós amamos amá-los ainda mais do que nós os amamos. Com efeito, nós chamamos de
bom não aquele que conhece o bem, mas aquele que o ama. Logo, como não amaríamos o amor que em nós
mesmos nos faz amar tudo aquilo que nós amamos de bom? ”

184
um ser cuja essência é amar e que recusaria o amor? Diríamos um ser contraditório, sem mais.
Mas, Agostinho no ímpeto do amar amar dirá: O que vos dizem? Nada amar? Jamais!
Estagnados, mortos, abomináveis, miseráveis, eis o que vós sereis se deixardes de amar.12

Amar não significa um acidente na natureza humana, ou seja, algo contingente,


que pode acontecer ou não. Sem amor o homem não é nada. Renunciar a amar o amor significa
renunciar à própria condição humana. Um ser humano que nada ama nada é, pois um cadáver
não é mais humano. A indiferença para com o amor é a mais miserável das misérias, a mais
abominável das abominações.

Essa autoimplicação da vontade humana e da bondade não é sem consequências


para a definição agostiniana do homem:

a) Com efeito, se o amor é o motor mais íntimo da natureza humana, porque não
ousar afirmar que nós tendemos a assumir uma essência em função daquilo que nós amamos?
Como negar que o amor determinando o rumo de nossa existência define quem ou o que
seremos? Com efeito, o objeto amado determina nossa própria essência na medida em que as
pessoas ou as coisas que amamos abrem uma rede de objetos possíveis para serem amados que
determinam in fine o que somos?

Se Amar, ou gostar intensamente de alguém ou alguma coisa, não tem nada de


banal na nossa existência, o problema mais essencial da existência humana não é saber se nós
devemos amar, mas sim o que devemos amar. Estamos diante de uma articulação possível entre
a ontologia como agatologia e a ética. Pois, se o que nós somos depende de nosso amor, a
bondade humana depende imediatamente da direção que nós nos damos ao amar.

***

III – A BOA VONTADE LIVREMENTE DETERMINADA COMO


CONDIÇÃO DA MORALIDADE

12
Agostinho, Sermão 96

185
Percebe-se então que, no caso do ser humano, a bondade divina, princípio
universal dos movimentos cosmológicos, se restringe. E, consequência surpreendente desta
restrição, o ser humano, numa perspectiva ética, não é naturalmente bom, tudo depende do valor
do amor que nos move. O fato de o amor humano não possuir uma determinação preestabelecida
torna-se condição para a possibilidade da deliberação que será o critério determinante do valor
de nossas ações.

1) A omnipresença do amor nos movimentos psíquicos humanos.

Com efeito, Agostinho distingue no caso do ser humano bondade ontológica e


bondade ética. No primeiro caso, ele é necessariamente bom; no segundo, sua bondade é
contingente. A alma humana é necessariamente boa, pois a existência tem a bondade como
princípio; por outro lado, é contingente que a alma seja moralmente boa. Somos frutos do amor,
mas criados para amar o amor o que faz de nós seres duplamente descentralizados.

O que Agostinho viu é grande: ele viu que se amar é bom e inevitável, nós somos
predestinados a amar; mais ele viu também que não somos predeterminados para amar alguém
ou alguma coisa. Isso explica a necessidade de amar a bondade para que a alma seja boa.
Vejamos o que ele afirma no livro VIII, da Trindade:

“Cum enim audio, verbi gratia, quod dicitur animus bonus, sicut duo verba sunt,
ita ex eis verbis duo quedam intelligo: aliud quo animus est, aliud quo bonus. Et
quidem ut animus esset, non egit ipse aliquid; non enim jam era quod egeret ut
esset: ut autem sit bonuns animus, vídeo agendum esse voluntate;”13

É extremamente difícil explicar esta autorestrição da bondade divina no


pensamento de Agostinho. Não é impossível, que para ele, nós sejamos amantes do amor,

13
De Trinitate, VIII, III, 4; Bibliothèque Augustinienne 15: “Quando ouço falar de uma alma boa, eu vejo lá
duas considerações, às quais relaciono duas ideias: ela é alma, logo ela é boa. Para ser alma, ela propriamente
nada fez; pois não há nada nela que poderia ter feito com que ela existisse. No entanto, para que ela possa ser
considerada uma boa alma, vejo a necessidade de que ela tenha tido a sua vontade como princípio de ação.”

186
porque fomos criados à imagem e semelhança daquele que ama de maneira incondicional. Com
efeito, no livro VIII da Trindade, onde Agostinho desenvolve uma antropologia à partir do
conceito bíblico de imago Dei, do homem criado a imagem de Deus, ele introduz o amor como
elemento essencial da definição de ser humano. Uma reflexão um pouco mais aprofundada da
tríade Razão, memória e amor, revela o quanto o amor é central: sem amor a própria memória
esvanece, ou pior é inexistente; sem o amor da razão desfalece e nós nos tornaremos
rapidamente seres irracionais.

Com efeito, devemos compreender que, dentre as cinco faculdades da alma,


sensação, memória, imaginação, razão e vontade, o amor ou a vontade não tem nada de uma
faculdade segunda ou secundária. Ele está na base da percepção sensível 14 , ele preside
conscientemente ou inconscientemente a imaginação15. Enfim, a ação do amor determina os
diferentes graus de conhecimento, perfazendo um caminho que vai da ignorância até a ciência,
deixando para trás a simples opinião e ultrapassando a mera curiosidade16. De sua influência
não escapa o próprio entendimento:

“Ecce ego qui hoc quaero, cum aliquid amo tria sunt: ego et quod amo, et ipse
amor. Non enim amo amorem, nisi amantem amem: nam non est amor, ubi nihil
amatur”17

Assim, na ausência do amor, dá-se a falência da definição clássica do homem


como animal racional. A intensidade do amor é determinante tanto para memória quanto para
razão. Em suma, o fato de termos o amor como gravidade, o fato de termos sido criados para
amar amar, faz com que a vondade humana torna-se livre para buscar aquilo que deve amar. O
amor é orientação, movimento e não ponto de chegada, pois todo amor é amor de algo ou de
alguma coisa.

14
Ver, De Musica VI, 8, De Musica, VI,11,32;
15
De Musica, VI,11,32: Bibliothèque Augustinienne;
16
Ver De Trinitate, IX, 12,18. Bibliothèque Augustinienne 15;
17
De Trinitate, IX, II, 2; Bibliothèque Augustinienne 15: “Quando me entrego à investigação, amo alguma coisa,
o amante, o objeto amado e o amor. Efetivamente eu não amo o amor se não amar aquele que ama, pois não há
amor onde nada é amado.”

187
2) A boa e a má vontade

Exercendo sua influência sobre a totalidade das faculdades da alma, a vontade


determina a orientação e, consequentemente, a bondade dos movimentos da alma. O valor de
nossas ações e pensamentos depende finalmente da bondade de nosso amor.

“Interest autem qualis sit volutas hominis: quia si perversa est, perversos habebit
hos motus; si autem recta est, non solum inculpabiles, verum etiam laudabiles
erunt. Voluntas est quippe in omnibus: imo omnes nihil aliud quam voluntates
sunt. Nam quid est cupiditas et laetitia, nisi voluntas in eorum consensionem
quae volumus? Et quid est metus atque tristitia, nisi voluntas in dissensionem ab
his quae volumus?"18

Esta consideração da vontade como elemento produtor de valores em nossas


ações é de grande relevância para a ética agostiniana: ela desloca o caráter bom de uma ação do
objeto e de sua realização para a vontade que nos move em direção ao objeto e se dá os meios
de bem realizá-lo. Em outras palavras, nenhum ato é bom ou mal em si mesmo; nenhum traço
de caráter é bom ou mal em si mesmo. Poderia afirmar que nem mesmo aquilo que chamamos
de paixão pode ser valorizada ou desvalorizada em si mesma. Seria então um erro acreditar que
existem paixões boas e paixões más independentemente da vontade, isto é, independentemente
do amor ou da intenção que as anima. Toda coisa, até mesmo aquelas que acreditamos serem
boas, podem ser objeto de uma má vontade. Toda paixão, até mesmo aquelas que acreditamos
serem más, podem ser objeto de uma boa vontade.19

18
A Cidade de Deus, XIV, 7,2 ; (Patrologia Latina vol. 41): “É importantíssimo conhecer qual é a vontade do
homem. Se ela for desordenada, seus movimentos serão desordenados, se ela for ordenada, eles serão inocentes e
até louváveis. Pois é a vontade que é responsável por todos esses movimentos, ou melhor, todos esses movimentos
nada são além de vontades. Com efeito, o que são o desejo e a satisfação, senão uma vontade cedendo àquilo que
agrada? E o que são o medo e a tristeza, senão uma vontade distanciando daquilo que desagrada?” Ver também o
De Trinitate XI, 6, 10.
19
Ver A Cidade de Deus, XIV, 8-9; (Patrologia Latina vol. 41): “Logo, a retidão da vontade é o bom amor, a
vontade desordenada o mau; e os diferentes movimentos desse amor fazem todas as paixões. Se ele se dirige para
algum objeto, é desejo; se ele goza desse objeto, é gozo; se ele toma distância, ele é medo; se malgrado a tomada
de distância ele sente, é tristeza. Logo, as paixões são boas ou más, na medida em que o amor é bom ou mau.”

188
Mas o que é uma boa e uma má vontade? No livro XII da Cidade de Deus
Agostinho escreve:

“Que ninguém busque a causa eficiente da má vontade, pois ela não é eficiente,
mas sim deficiente (non enim est efficiens, sed deficiens); ela não é fonte de bons
resultados, mas sim de deficiência. Pois decair do ser soberano em direção do
que é menos (minus est), significa começar a ter uma má vontade. [...] quanto
mais os homens possuem o ser, mais elas fazem o bem (dessa maneira, com
efeito, eles fazem alguma coisa) e mais eles possuem causas eficientes. Mas,
quando eles decaem e fazem o mal (o que eles fazem então, além de coisas vãs
(nisi vana), eles possuem causas deficientes20.”

A noção de “causa eficiente” apresentada neste texto é central e é ela que permite
pensar, em parte, o “mistério” do mal. A expressão retoma e inverte o conceito oriundo da
concepção aristotélica da causalidade. O poiétikon aition do qual fala Alexandre de Afrodísia21
é o agente, aquele que produz uma nova realidade. Ao contrário, o agente mau, o maldoso,
exerce uma função inversa: em vez de produzir, ele destrói, desfaz; em vez de aumentar a ordem,
ele favorece a desordem e a confusão22.

Produzir desordem é como desperdiçar tempo, destruir a fertilidade de uma terra,


empobrecer uma pessoa ou limitar suas potencialidades criadoras. Trata-se, em suma, de um
processo de enfraquecimento do ente: a má vontade produz o nada, nada produzindo. A falta
propriamente ética é um câncer que violentamente ou sub-repticiamente provoca uma ruptura
com aquilo que deveria ser. Essa é a razão pela qual a deficiência é chamada de causa. Como
afirma de maneira pertinente Jerôme Laurent as relações entre “o ser e o bem” e “o nada e o
mal” não são lógicas, estáticas, mas sim históricas e dinâmicas. O mal não é para Agostinho
uma sombra na pintura que colocaria em evidência a luz, trata-se de um sofrimento que deve
ser combatido, que devemos amenizar ou torná-lo suportável.23 O mal que é uma negação, é

20
A Cidade de Deus, livro XII, 7-8. (Patrologia Latina vol. 41)
21
Tratado sobre o destino, capítulo III.
22
Sobre “a ordem e o mal” ler as relevantes análises de Anne-Isabelle Bouton-Touboulic em sua tese L’ordre
caché. La notion d’ordre chez saint Augustin, Paris, Institut d’études augustiniennes, 2004, p. 221-350.
23
J. Laurent, « Peccatum nihil est” : remarques sur la conception du péché comme néant » ; in Cahiers
philosophiques, vol. 122, 3ème semestre 2010, p. 13.

189
uma negação do próprio Deus, pois o ser, no sentido pleno da palavra, é o próprio Deus, o
Idipsum das Confissões, a essência no De Trinitate 24.

Visto que o ser humano não é nem naturalmente bom, nem naturalmente mal e
que, por outro lado, a virtude do homem está intimamente ligada à qualidade de seu amor, uma
questão essencial deve ser levantada: como ordenar sua vontade, como orientá-la para o bem,
como nos tornarmos bons?

3) Amar Deus, eis a verdadeira felicidade.

Esse ponto é decisivo: é ele que permite a articulação da metafísica e da


antropologia com a ética no pensamento agostiniano.

Primeiramente, segundo Agostinho, o desejo de ser melhor está inscrito na


própria natureza do ser humano e se funda no desejo de sermos felizes. Com efeito, a filosofia
agostiniana é um eudemonismo. Isso significa que a felicidade exerce a função de causa motora
colocando em movimento o pensar. Ora, aquilo que desperta o pensar é de extrema importância
para a maneira de como se desenvolve um pensamento: ele determina os problemas, os
meandros e a própria finalidade do pensar. E, com efeito, nós sabemos pelas Confissões que foi
a leitura do Hortensius de Cícero que despertou em Agostinho o desejo ardente de filosofar.

“Utquid ergo ei praeceptum est, ut se ipsam cognoscat? Credo, ut se ipsam


cogitet, et secundum naturam suam vivat, id est, ut secundum naturam suam
ordinari appetat.”25

Isso significa também que o pensamento de Agostinho não deve ser classificado
como uma busca especulativa desinteressada. Trata-se de uma busca onde está em jogo o
destino da humanidade e do próprio Agostinho. Isso explica o caráter inquieto da busca da
verdade. E, ao mesmo tempo, o amor da verdade e a filosofia são aqui inseparáveis. Pois, só

24
De Trinitate, livro VII, V, 10. Bibliothèque Augustinienne, 15, 539.
25
De Trinitate X, V, 7. Ibidem.

190
existe desejo de verdade na medida em que se crê que a verdade é beatificante. E ser feliz nada
mais é que viver segundo sua própria natureza.

“Ratione igitur quaeramus quemadmodum sit homini vivendum. Beate certe


omnes vivere volumus ; neque quisquam est in hominum genere, qui non huic
sententia, antequam plene site missa, consentiat.”26

A proposição “todo mundo deseja ser feliz” não tem nada de uma banalidade.
Retomada da filosofia grega ela reafirma o caráter universal da felicidade. Universal aqui
significa que a felicidade é uma tensão capaz de unificar uma multiplicidade (uni-versus):

a) Primeiramente, o desejo de ser feliz unifica a diversidade dos movimentos da


alma de um mesmo indivíduo, pois todas as decisões, quaisquer que elas sejam, se inscrevem
nesta busca absoluta de felicidade;

b) Em seguida, esta universalidade do desejo de felicidade dá inteligibilidade de


um conjunto de respostas dadas por indivíduos diferentes, por culturas diferentes, tanto no
passado, no presente como no futuro. A longa história da humanidade nada mais é que uma
tentativa, muitas vezes fracassadas, de encontrar respostas para este desejo incessante de
felicidade. E, malgrado nossas diferenças, algo comum nos unifica, existe um ponto sobre o
qual nós somos todos de acordo.

Porém, (a) não pode ser feliz aquele que ama o que ele não pode alcançar.
Desejar o que não podemos obter significa se expor à decepção e ao tormento; (b) é infeliz
igualmente quem deseja coisas que não pode conservar27. Como ser plenamente feliz diante de
uma satisfação efêmera? Como efeito, não existe desejo que não leve consigo uma parte de
sofrimento. Sofrimento provocado pelo medo. Medo de não alcançar o que se deseja e medo de
perder aquilo que se possui.28 (c) Não pode ser feliz aquele não ama o que possui ainda que seja
um bem excelentíssimmo; (d) está fadado à infelicidade aquele que ama o que pode prejudica-

26
Cf. De moribus ecclesiae, I, 3, 4; (Patrologia Latina vol. 32): “No esplendor da razão, nós buscamos qual deve
ser a vida do homem. Sem nenhuma dúvida nós aspiramos todos à felicidade e não existe ninguém neste mundo
que não admita este princípio antes mesmo que de ele ser enunciado.”
27
Cf. De beata vita, II, 10 (Patrologia Latina vol. 32)
28
Cf. 83 Questões, 33.

191
lo29. (e) e, enfim, resta uma quarta possibilidade, a única compatível com o desejo absoluto e
universal de felicidade: ela consiste em amar e possuir o que há de mais excelente para o homem.

Em suma, a busca universal da felicidade nos oferece critérios éticos que são
suscetíveis de orientar nossa existência. E, este último critério abre a possibilidade da
elaboração de uma ética propriamente cristã. Com efeito, dito de maneira positiva: (a) o objeto
do desejo deve ser permanente. Isso implica que nada perecível pode realmente ser possuído
por nós quando nós queremos e o quanto nós queremos. Assim sendo, não devemos amar de
maneira absoluta aquilo que nós podemos perder, pois o medo é incompatível com a felicidade.
(b) Ora, segundo Agostinho, somente Deus é permanente, pois somente ele é verdadeiramente,
somente ele é eterno. Logo a vida feliz tanto desejada torna-se impossível sem Deus. Ou Deus
existe ou nosso desejo de felicidade é vão.30

“ Hoc [summus bonus] igitur si est, tale esse debet quod non amittat invitus.
Quippe nemo potest confidere de tali bono, quod sibi eripi posse sentit, etiamsi
retinere id amplectique voluerit. Quisquis autem de Bono quo fruito; non
confidit, in tanto timore amittendi beatus esse qui potest?”31

4) Como orientar a vontade para o Bem

O princípio fundador desenvolvido na filosofia prática de Agostinho para atingir


a felicidade consiste na distinção entre uso (usus) e deleite (fructus). Em sua obra intitulada
Questões diversas nós lemos:

“Toda perversão (pervertio) humana, que pode ser chamada de vício, consiste
em querer se servir (uti) do que se deveria deleitar (fruendis); e querer se deleitar
(frui) das coisas que se deveria servir (utendis). A virtude (ordinatio) consiste

29
Cf. De moribus ecclesiae, I, 3, 4; (Patrologia Latina vol. 32)
30
Cf. De beata vita, II, 11; (Patrologia Latina vol. 32)
31
De moribus ecclesiae, I, 3, 4 (Patrologia Latina vol. 32): “O bem soberano, se ele existe, deve ser tal que nós
não podemos ser privados contra nossa vontade. Com efeito, nós teríamos como nos repousas plenamente num
bem se nós pressentimos que ele pode ser arrancado de nós enquanto nós desejamos conserva-lo e abraça-lo. E,
se nós não estamos seguros quando a possessão do bem do qual nós deleitamos, como ser feliz com este
doloroso medo de perdê-lo?”

192
em se deleitar do que se deve deleitar e usar do que se deve usar (fruendis frui
et utendis uti).” 32

Notemos que Agostinho emprega os termos pervertio e ordinatio para designar


o vício e a virtude. A per-vertio significa literalmente uma di-versão, um des-vio, uma dis-
tração para com o primeiro escopo da existência que é a vida feliz. Mais do que pecado, no
sentido religioso da palavra, o que está em questão é nossa felicidade. A ordinatio implica, por
sua vez, uma organização que tende ao bem. E, no caso que nos concerne, ordinatio significa
tensão em direção ao soberano bem, que pode ser chamado de Deus, uma vez que, para
Agostinho, a felicidade exige uma transgressão da temporalidade, pois ela não pode se repousar
sobre nada de efêmero.

Logo, a bondade humana está intimamente ligada à vontade ordenada,


direcionada para a felicidade identificada com Deus. Nós podemos e devemos desejar muitas
coisas, porém muitas delas nós devemos desejar simplesmente como meio e nunca como fim,
nunca como deleite. Deve ser objeto de uso tudo aquilo que produz desejo e que não se
identifica com a felicidade que se torna na ética agostiniana arquitetônica. Começar a ter uma
má vontade significa decair do soberano bem, isto é, se afastar daquele que é de maneira
soberana.33

O “usus” não é condenado, porém ele se opõe ao abusus (mal uso), isto é, a
transformação do meio em finalidade. Abusa aquele que transforma em deleito o que deveria
ser simplesmente um meio para se chegar a finalidade última da existência que é a vida feliz.
A má vontade é uma decadência, uma negação, uma autoprivação do ser soberano e da bondade
soberana.

“Non amas certe nisi bonum, quia bona est terra altitudine montium et
temperamento collium et planitie camporum, et bonum praedium amoenum ac
fertile, [...] Bonum hoc et bonum illud: tolle hoc et illu, et vide ipsum bonum, si
potes; ita Deum videbis, non alio Bono bonum”34

32
Questões Diversas, 30-33.
33
Cf. A Cidade de Deus, Livre XII.
34
De Trinitate, VIII, III, 4: “Certamente tu amas apenas o que é bom, pois é bom: esta terra que se eleva em
montanhas, ou se abranda em colinas e planícies; este espaço agradável e fértil; [...] Sim, isso é bom e aquilo

193
CONCLUSÃO

Esta breve investigação sobre a bondade divina e a bondade humana no


pensamento de Agostinho, testemunha do otimismo do pensamento cristão. Otimismo quase
sempre omitido nos estudos sobre a essência do cristianismo e a ética que ele desenvolveu.

O domínio da ação, tanto divino quanto humano, é inteiramente predeterminado


pela ideia de bondade tanto ontológica quando ética. A criação está intimamente associada à
bondade. O ser e o bem, a existência e a bondade são inseparáveis, pois a própria criação é
pensada como efusão da bondade. A bondade é literamente radical. Ela penetra o âmago das
criaturas e determina nelas o desejo de ser e de durar. Malgrado a finitude, implicando
acidentalmente o mal como privação da bondade, a própria existência é um bem, o mais caro
dentre todos. Talvez numa tal visão do mundo o mal moral não devesse existir, porém, o homem
seria então privado de seu bem mais precioso que é a liberdade.

Estamos diante de um novo paradigma veiculado pela visão do mundo de


Agostinho que assume a bondade como princípio ontológico e ético, malgrado as contingências
culturais e existenciais às quais ele estava submetido. Que seja utópico, provavelmente. Mas,
essa bela utopia estava destinada a guiar muitos dos grandes espíritos do Ocidente e construir
muitos dos valores que hoje nos parecem inalienáveis.

também; mas retira isso e aquilo e o vê o bem em si mesmo, se es capaz, e, então, veras Deus, bom, não por
empréstimo, mas como o bem de todo bem.”

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REFERÊNCIAS

1- AGOSTINHO, De Beata Vita; Patrologia Latina vol. 32;

2- ____________, Confessiones; Patrologia Latina, vol. 32;

3- ____________, De Civitate Dei; Patrologia Latina, vol. 41;

4- ____________, De Diversis Quaestionibus Liber Unus; Patrologia Latina, vol. 40;

5- ____________, De Moribus Ecclesiae; (Patrologia Latina vol. 32);

6- ____________, De Musica, Bibliothèque Augustinienne, vol. 6;

7- ____________, Sermo 96; Patrologia Latina, vol. 39;

8- ____________, De Trinitate; Bibliothèque Augustinienne,vol.15 ;

9- ____________, De Vera Religione; Patrologia Latina, vol. 34;

10- LAURENT J., « Peccatum nihil est” : remarques sur la conception du péché comme
néant » ; in Cahiers philosophiques, vol. 122, 3ème semestre 2010, p. 13.

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