Pais Ana o Discurso Da Cumplicidade Dramaturgias Contemporaneas
Pais Ana o Discurso Da Cumplicidade Dramaturgias Contemporaneas
Pais Ana o Discurso Da Cumplicidade Dramaturgias Contemporaneas
Sociais
69 (2004)
Nmero no temtico
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Referncia eletrnica
Andr Brito Correia, Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporneas, Revista Crtica de
Cincias Sociais [Online], 69|2004, posto online no dia 01 Outubro 2012, consultado o 30 Janeiro 2013. URL:
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Editor: Centro de Estudos Sociais
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CES
Recenses
Carmo, Isabel do; Lgia Amncio, Desamaldioar o feminismo. A propsito
de Vozes Insubmissas. A histria das mulheres e dos homens que lutaram
pela igualdade dos sexos quando era crime faz-lo. Lisboa: D. Quixote,
2004, 234 pp.
Em Vozes Insubmissas, Isabel do Carmo e
Lgia Amncio atrevem-se a usar os termos
feminismo e feminista destemidamente, sem
apologias e sem adversativas. muito comum (se calhar cada vez mais) ouvir-se frases
como Eu sou a favor dos direitos das mulheres ou da igualdade, mas no sou feminista. No resisto a citar aqui as palavras
de Ana de Castro Osrio, escritas em 1905,
chamando a ateno para todo o optimismo contido na pequena palavra ainda,
que augura uma poca em que a situao
que esta autora denuncia deixar de fazer
sentido: Feminismo: ainda em Portugal
uma palavra de que os homens se riem ou
se indignam [] e de que a maioria das
mulheres coram, coitadas, como de falta
grave cometida por algumas colegas, mas
de que elas no so responsveis, louvado
Deus! (Osrio, 1905: 11). Razo tm as
autoras de Vozes Insubmissas ao dizerem,
logo na apresentao da obra, que feminismo uma palavra maldita. Um termo que
suscita reaces indignadas, risos, ou o presunoso comentrio de que isso j passou
de moda (11). Era bom que assim fosse.
Mas porque no , este livro prope-se
desamaldioar o feminismo, trazendo
memria to apagada de hoje as origens
setecentistas e oitocentistas das ideias e dos
movimentos pelos direitos das mulheres a
que, s nos finais do sculo XIX, seria dado
o nome de feminismo (pela francesa Hubertine Auclert, que aqui objecto de uma
breve nota biogrfica [70-71]) (Cott, 1987:
14). Alis, interessante notar como a palavra rapidamente se propagou nos pases
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dio que se lhes atribui, pudessem entender e defender, falar em nome do seu prprio sexo ou condio como se cada um
estivesse inexoravelmente fechado, arrumado no seu sexo, para usar as palavras
aqui citadas do fundador do partido operrio socialista francs, Jules Guesde (61).
Como a histria prova, e as autoras demonstram, as vozes insubmissas que se levantaram nos sculos XVIII e XIX contra
a sujeio das mulheres foram vozes que
aliaram a sua causa das classes trabalhadoras, que se insurgiram contra a escravatura e contra tantas outras formas de injustia, discriminao e explorao humana.
Foram, portanto, vozes que se desnativizaram, se me permitido cunhar o termo, ou seja, que foram capazes de sair para
fora das prises naturalizadas do sistema
patriarcal, racista e classista do seu tempo,
que romperam com os limites da sua
prpria condio e situao individual e
particularista e que estabeleceram solidariedades mais latas, lutando por concretizar os ideais da era das revolues, de liberdade e igualdade para todos.
Torna-se aqui tambm claro que as reivindicaes e protestos feministas se manifestam desde a sua origem como uma pedra
no sapato da democracia, um pontap nas
canelas da modernidade, um incmodo
constante, que fora a teoria da emancipao humana dita universal a enfrentar
as contradies das prticas de excluso e
opresso. A pergunta da inglesa Mary
Wollstonecraft, repetida de diferentes maneiras em muitos outros textos, sobre a legitimidade da tirania exercida sobre as
mulheres por homens que se diziam defensores da liberdade, era sem dvida desassossegante no final do sculo XVIII e deveria ser desassossegante agora. Cito da
pgina 103: No acha e dirijo-me a si
como legislador [Talleyrand] que, num
momento em que os homens lutam pela
liberdade e para poderem decidir por si
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Referncias Bibliogrficas
Cott, Nancy (1987), The Grounding of Modern Feminism. New Haven: Yale UP.
Mill, John Stuart (1869), The Subjection of
Women, in Miriam Schneir (org.) (1972),
Feminism: The Essential Historical Writings.
New York: Vintage Books, 162-78.
Osrio, Ana de Castro (1905), s mulheres
portuguesas. Lisboa: Livraria Editora Viva Tavares Cardoso.
tante referncia no mbito dos estudos sobre a famlia, e em particular sobre a conjugalidade. Esta obra, cuja base emprica
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mais importante um inqurito por questionrio aplicado em 1999, procura analisar as diferentes dimenses da diviso sexual e familiar do trabalho pago e no
pago, abrindo caminho melhor compreenso das prticas que neste plano tm
lugar no territrio nacional.
O estudo desdobra-se em seis captulos.
Algumas questes tericas, nomeadamente
as alusivas problemtica dos efeitos das
orientaes gerais do Estado e das polticas sociais na diviso do trabalho entre
mulheres e homens, so exploradas ao longo do primeiro captulo. O/a leitor/a
convidado/a a reflectir sobre os diferentes
regimes de Estados-Providncia e a forma
como eles se posicionam perante as questes da diferena sexual e a articulao
entre o trabalho pago e no pago. Retomando uma tipologia de Estados-Providncia fundamentada na caracterizao das
solues socioeducativas e do tipo de equipamentos de apoio primeira e segunda
infncia existentes nos diferentes pases e
na identificao das posies de homens e
mulheres perante o trabalho profissional,
o Estado-Providncia portugus enquadrado no modelo deficitrio, correspondente ao grupo dos pases da Europa do
Sul, que se caracteriza por ser deficitrio
e desigual quanto ao nvel de investimentos pblicos e ao grau de cobertura que o
estado oferece (p. 21). A especificidade
do quadro portugus, marcado pela elevada taxa de actividade feminina, em combinao com o carcter incompleto do Estado-Providncia, reflecte-se na escassez
dos instrumentos de poltica social no que
toca s questes da igualdade sexual e de
apoio conciliao das esferas familiar e
profissional. Os/as autores/as defendem
que s uma orientao para um modelo de
Estado-Providncia alargado caracterstico dos pases nrdicos, Blgica e Frana
pode criar condies para a igualdade entre mulheres e homens e para a conciliao
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rendimentos, que em princpio mais necessitariam destes apoios, as que a eles menos
recorrem ou podem recorrer. Finalmente,
no que se refere aos cuidados com idosos
dependentes, as/os autoras/es contrariam
claramente as ideias que tendem a apontar
a famlia como omissa neste domnio, j que
constatam que fundamentalmente com
os apoios da famlia que estes idosos podem
contar, sendo poucos aqueles que esto em
lares. De resto, estes resultados vm reforar
os j obtidos em pesquisas anteriores. Por
exemplo, Pedro Hespanha e Slvia Portugal, num estudo realizado sobre as transformaes e a regresso da famlia-providncia, mostraram claramente que, para ser
membro de uma rede de inter-ajuda,
necessrio possuir os meios necessrios
isto , ter alguma coisa para trocar.
A articulao do trabalho pago e no pago
tratada no quinto captulo. A anlise
desenvolvida d conta da inequvoca assimetria de posies de mulheres e de homens na diviso do trabalho pago e no
pago. Mesmo trabalhando no exterior
aproximadamente o mesmo nmero de
horas do que os homens, as mulheres realizam a quase totalidade do trabalho no
remunerado. As/os autoras/es procuram
explicar esta assimetria em desfavor das
mulheres, reportando-se no s a algumas
especificidades da sociedade portuguesa,
mas tambm a mecanismos globais que
condicionam a diviso do trabalho entre
homens e mulheres, especificamente a
grande concentrao de mulheres em sectores profissionais mal pagos e pouco qualificados. que estes constrangimentos de
ordem externa acabam por se constituir
numa fonte de legitimao da diviso assimtrica do trabalho no pago no seio da
relao conjugal, na medida em que resultam na sobrevalorizao do vencimento do
cnjuge masculino enquanto principal fonte de subsistncia do agregado familiar e
na consequente desvalorizao do traba-
lho das mulheres. Por outro lado, e ao contrrio do que seria de esperar, constata-se
que a excessiva sobrecarga de trabalho das
mulheres no encontra expresso nem na
declarao de injustia nem na declarao
de conflitos.
Depois de uma anlise das prticas no tocante diviso do trabalho pago e no pago
entre mulheres e homens, no sexto e ltimo captulo a anlise centra-se nos valores,
representaes e atitudes dos/as inquiridos/as em torno destas questes. Percebe-se, desde logo, a existncia de uma descontinuidade entre as prticas efectivas
de diviso do trabalho e as representaes
que sobre elas so transmitidas, dada a
significativa adeso a valores modernos
de aceitao das ideias de paridade, igualdade e simetria entre homens e mulheres
(p. 172). No entanto, a adeso participao e simetria esbarra numa viso
tradicionalista da relao dos homens
entre trabalho e vida familiar: os homens
devem participar no mundo domstico,
mas devem privilegiar o trabalho. De acordo com os/as autores/as, precisamente
aqui que o plano dos valores se ancora nas
prticas observadas, uma vez que as reservas colocadas nestas questes se concretizam nas assimetrias observveis nos padres de diviso do trabalho.
O livro termina com uma sntese dos aspectos mais marcantes sobre a situao
portuguesa no que respeita diviso sexual e familiar do trabalho pago e no pago
suscitados ao longo da pesquisa. Os/as
autores/as rematam advogando a possibilidade de as polticas de igualdade entre
mulheres e homens permitirem uma repartio mais equilibrada entre trabalho e
famlia pela articulao de trs tipos de
direitos: os direitos das mulheres ao trabalho e famlia, os direitos dos homens
ao trabalho e famlia e os direitos das crianas como responsabilidade que deve implicar os pais e toda a sociedade (p. 185).
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ideias. Falo, sim, de exemplos que prolongassem a reflexo e que servissem como
pequenos ensaios de aplicao das suas
pistas tericas, pois, dada a riqueza e
carcter sedutor destas ltimas, estabelecer-se-ia talvez uma relao ainda mais
cmplice com o leitor e reforar-se-ia a validade do livro como instrumento de trabalho para pesquisas com carcter emprico.
Por outro lado, dada a sustentabilidade e
inovao das hipteses e contributos apresentados, o leitor, espicaado na sua reflexo, no deixa de se interrogar sobre o
outro lado da cumplicidade. Se a dramaturgia um discurso cuja lgica a de estruturar sentidos construindo relaes de
cumplicidade entre artistas, pblico e materiais cnicos, o que que neste jogo fica
de fora? O que que excludo e fica no
exterior do pacto constitudo pela construo e representao teatrais? Que implicaes polticas tm essas no-escolhas
poticas? Dou um exemplo breve. Vrias
das performances contemporneas traduzem-se em criaes artsticas que se apresentam em lugares no convencionais da
cidade e promovem um dilogo com esse
meio urbano, suas histrias, espaos e cidados. Quando se escolhem determinados
elementos para estas criaes (e podem ser
materiais to diversos como testemunhos
e histrias de habitantes como sons e imagens dessas mesmas reas), qual o significado em termos polticos, ou seja, de relao com a cidadania e com a comunidade,
que se est a promover? Que pblicos se
acaba por atrair e que pblicos se acaba
por afastar? Que estatuto, dignidade e
significado adquirem as memrias, sons,
imagens e os habitantes da cidade quando
deles se fala ou quando deles no se fala?
Penso que estas interrogaes tm tambm
uma relao muito directa com o trabalho
de dramaturgista e, incentivados pela leitura de O discurso da cumplicidade, somos
tentados a querer ver respostas para elas
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luz das qualidades dramatrgicas enunciadas por Ana Pais. De qualquer modo, tais
qualidades so tambm um ponto de partida muito vlido para se desenvolver o trabalho de reflexo e anlise da dramaturgia
encarada na sua dimenso mais scio-poltica.
Estes dois comentrios anteriores no invalidam, no entanto, de qualquer forma, a
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