(Livro) Felix Guattari - Caosmose. Um Novo Paradigma Estetico
(Livro) Felix Guattari - Caosmose. Um Novo Paradigma Estetico
(Livro) Felix Guattari - Caosmose. Um Novo Paradigma Estetico
Fé Iix Guattari
Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão
editorall34
Analista, Félix Guattari começa, no iní-
cio da década de 70, a interrogar o caráter
científico- ou estrutural- dos operadores
psicanalíticos. Esta tarefa se realiza com o
desenvolvimento de uma abordagem constru-
tivista do Inconsciente, determinada, em pri-
meira instância - é bom lembrar- pela des-
coberta freudiana dos processos de singula-
rização semiótica que compõem o célebre
"processo primário".
Sendo o inconsciente menos teatro (anti-
go) do que usina (a da modernidade), é neces-
sário experimentar Agenciamentos e disposi-
tivos inéditos de enunciação analítica. Tal
opção processual levará Guattari a elaborar
uma modelização transfonnacional que opõe
à programação psicanalítica do Outro uma
pragmática ontológica das multiplicidades,
implantada no Dando- e não mais no sem- 116 3 2 13
pre já-dado, ocultado, velado, esquecido ...
Foi essa a grande lição do Anti-Édipo, escri-
to com o filósofo Gilles Deleuze: uma revo-
5 10 11 8
-------f--------~~---
lução copernicana, que procura considerar a
subjetividade sob o ângulo de sua produção. 9 6!7 12, I
E se a morte de Deus não tivesse efeito
senão com a morte de Édipo, enquanto repre-
sentante da subjetividade capitalística enalte-
4 15[14 li
cida pela psicanálise (a representação subje-
tiva infinita), enquanto efeito de uma redu-
ção significante que estrutura o Inconsciente
como a linguagem do recalcado, que rebate
a Libido- essa matéria abstrata do possível
-sobre o "pequeno segredo sujo" estendi-
do a todos (a interiorização extrema da dívi-
da infinita)?
Segue-se o programa rigoroso de um pós-
freudismo que se dedica a conceber o traba-
lho analítico como uma verdadeira "hetero-
gênese", iniciando um procedimento auto-
enunciativo, produtor de novas "sínteses".
No cruzamento dos fatos de sentido, mate-
riais e sociais, no rastro da invenção de no-
vos universos de referências, sua função é a
coleção TRANS
Félix Guattari
CAOSMOSE
Um Novo Paradigma Estético
Tradução
Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo- SP Brasil Tel!Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br
Heterogênese 11
momento em que foram assumidos pelos mass mídia de al- se se poderia falar, a seu respeito, de genocídio, já que le-
cance mundial. Apresentaremos aqui sumariamente apenas vou ao extermínio muito mais iraquianos do que as vítimas
dois exemplos. O imenso movimento desencadeado pelos es- das duas bombas de Hiroshima e de Nagasaki, em 1945.
tudantes chineses tinha, evidentemente, como objetivo pa- Mas com o distanciamento ficou ainda mais claro que o que
lavras de ordem de democratização política. Mas parece estava em questão era essencialmente uma tentativa de do-
igualmente indubitável que as cargas afetivas contagiosas mesticar a opinião árabe e de retomar as rédeas da opinião
que trazia ultrapassavam as simples reivindicações ideoló- mundial: era preciso demonstrar que a via yankee de subje-
gicas. É todo um estilo de vida, toda uma concepção das re- tivação podia ser imposta pela potência da mídia combina-
lações sociais (a partir das imagens veiculadas pelo Oeste), da à das armas.
uma ética coletiva, que aí é posta em questão. E, afinal, os De um modo geral, pode-se dizer que a história con-
tanques não poderão fazer nada contra isso! Como na Hun- temporânea está cada vez mais dominada pelo aumento de
gria ou na Polônia, é a mutação existencial coletiva que terá reivindicações de singularidade subjetiva- querelas lingüís-
a última palavra! Porém os grandes movimentos de subjeti- ticas, reivindicações autonomistas, questões nacionalísticas,
vação não tendem necessariamente para um sentido eman- nacionais que, em uma ambigüidade total, exprimem por um
cipador. A imensa revolução subjetiva que atravessa o povo lado uma reivindicação de tipo liberação nacional, mas que,
iraniano há mais de dez anos se focalizou sobre arcaísmos por outro lado, se encarnam no que eu denominaria reterri-
religiosos e atitudes sociais globalmente conservadoras - torializações conservadoras da subjetividade. Deve-se admi-
em particular, a respeito da condição feminina (questão tir que uma certa representação universalista da subjetivi-
sensível na França, devido aos acontecimentos no Maghreb dade, tal como pôde ser encarnada pelo colonialismo capi-
e às repercussões dessas atitudes repressoras em relação às talístico do Oeste e do Leste, faliu, sem que ainda se possa
mulheres nos meios de imigrantes na França). plenamente medir a amplidão das conseqüências de um tal
No Leste, a queda da cortina de ferro não ocorreu pela fracasso. Atualmente vê-se que a escalada do integrismo nos
pressão de insurreições armadas, mas pela cristalização de países árabes e muçulmanos pode ter conseqüências incal-
um imenso desejo coletivo aniquilando o substrato mental culáveis não apenas sobre as relações internacionais, mas so-
do sistema totalitário pós-stalinista. Fenômeno de uma ex- bre a economia subjetiva de centenas de milhões de indiví-
trema complexidade, já que mistura aspirações emancipa- duos. É toda a problemática do desamparo, mas também da
il escalada de reivindicações do Terceiro Mundo, dos países
doras e pulsões retrógradas, conservadoras, até mesmo fas-
cistas, de ordem nacionalista, étnica e religiosa. Como, nessa do Sul, que se acha assim marcada por um ponto de inter-
tormenta, as populações da Europa Central e dos países do li rogação angustiante.
Leste superarão a amarga decepção que o Oeste capitalista A sociologia, as ciências econômicas, políticas e jurí-
lhes reservou até o presente? A História nos dirá; uma His- I dicas parecem, no atual estado de coisas, insuficientemente
tória portadora talvez de surpresas ruins e posteriormente, armadas para dar conta de uma tal mistura de apego arcai-
por que não, de uma renovação das lutas sociais! Quão as- zante às tradições culturais e entretanto de aspiração à mo-
sassina, em comparação, terá sido a guerra do Golfo! Qua- dernidade tecnológica e científica, mistura que ca ractcriza
I, Caosmose Heterogênese 13
o coquetel subjetivo contemporâneo. A psicanálise tradicio- ainda que certos autores como Julia Kristeva ou Jacques
nal, por sua vez, não está nem um pouco melhor situada Derrida tenham esclarecido um pouco essa relativa autono-
para enfrentar esses problemas, devido à sua maneira de mia desse tipo de componentes. Mas, em geral, as corren-
reduzir os fatos sociais a mecanismos psicológicos. Nessas tes estruturalistas rebateram a economia a-significante da
condições, parece indicado forjar uma concepção mais trans- linguagem - o que chamo de máquinas de signos - sobre
versalista da subjetividade, que permita responder ao mes- a economia lingüística, significacional, da língua. Isso é par-
mo tempo a suas amarrações territorializadas idiossincrá- ticularmente sensível em Roland Barthes, que relaciona to-
ticas (Territórios existenciais) e a suas aberturas para siste- dos os elementos da linguagem, os segmentos da narrativi-
mas de valor (Universos incorporais) com implicações so- dade, às figuras de Expressão e confere à semiologia lingüís-
ciais e culturais. tica um primado sobre todas as semióticas. Foi um grave
Devem-se tomar as produções semióticas dos mass mí- erro, por parte da corrente estruturalista, pretender reunir
dia, da informática, da telemática, da robótica etc ... fora da tudo o que concerne à psique sob o único baluarte do sig-
subjetividade psicológica? Penso que não. Do mesmo modo nificante lingüístico!
que as máquinas sociais que podem ser classificadas na ru- As transformações tecnológicas nos obrigam a consi-
brica geral de Equipamentos Coletivos, as máquinas tecno- derar simultaneamente uma tendência à homogeneização
lógicas de informação e de comunicação operam no núcleo universalizante e reducionista da subjetividade e uma ten-
da subjetividade humana, não apenas no seio das suas me- dência heterogenética, quer dizer, um reforço da heteroge-
mórias, da sua inteligência, mas também da sua sensibili- neidade e da singularização de seus componentes. É assim
dade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes. A que o "trabalho com o computador" conduz à produção de
consideração dessas dimensões maquínicas de subjetivação imagens abrindo para Universos plásticos insuspeitados-
nos leva a insistir, em nossa tentativa de redefinição, na he- penso, por exemplo, no trabalho de Matta com a palheta
terogeneidade dos componentes que concorrem para a pro- gráfica- ou à resolução de problemas matemáticos que te-
dução de subjetividade, já que encontramos aí: 1. compo- ria sido propriamente inimaginável até algumas décadas
nentes semiológicos significantes que se manifestam atra- atrás. Mas, ainda aí, é preciso evitar qualquer ilusão pro-
vés da família, da educação, do meio ambiente, da religião, gressista ou qualquer visão sistematicamente pessimista. A
da arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela indústria prod'l'lção maquínica de subjetividade pode trabalhar tanto
dos mídia, do cinema, etc. 3. dimensões semiológicas a- para o melhor como para o pior. Existe uma atitude anti-
significantes colocando em jogo máquinas informacionais modernista que consiste em rejeitar maciçamente as inova-
de signos, funcionando paralelamente ou independente- ções tecnológicas, em particular as que estão ligadas à re-
mente, pelo fato de produzirem e veicularem significações volução informática. Entretanto, tal evolução maquínica
e denotações que escapam então às axiomáticas propria- não pode ser julgada nem positiva nem negativamente; tudo
mente lingüísticas. depende de como for sua articulação com os agenciamen-
As correntes estruturalistas não deram sua autonomia, tos coletivos de enunciação. O melhor é a criação, a inven-
:;11;1 vspccificidade, a esse regime semiótico a-significante, ção de novos Universos de referência; o pior é a mass-mi-
I I Caosmose Heterogênese 15
dialização embrutecedora, à qual são condenados hoje em ma de atividade e de responsabilidade, não apenas com o
dia milhares de indivíduos. As evoluções tecnológicas, con- objetivo de desenvolver um ambiente de comunicação, mas
jugadas a experimentações sociais desses novos domínios, também para criar instâncias locais de subjetivação coleti-
são talvez capazes de nos fazer sair do período opressivo va. Não se trata simplesmente, portanto, de uma remode-
atual e de nos fazer entrar em uma era pós-mídia, caracte- lagem da subjetividade dos pacientes, tal como preexistia à
rizada por uma reapropriação e uma re-singularização da crise psicótica, mas de uma produção sui generis. Por exem-
utilização da mídia. (Acesso aos bancos de dados, às video- plo, certos doentes psicóticos de origem agrícola, de meio
tecas, interatividade entre os protagonistas etc ... ) pobre, serão levados a praticar artes plásticas, teatro, vídeo,
Nessa mesma via de uma compreensão polifônica e he- música, etc., quando esses eram antes Universos que lhes es-
terogenética da subjetividade, encontraremos o exame de capavam completamente.
aspectos etológicos e ecológicos. Daniel Stern, em The Im- Em contrapartida, burocratas e intelectuais se sentirão
personal World of the Infantl, explorou notavelmente as atraídos por um trabalho material, na cozinha, no jardim,
formações subjetivas pré-verbais da criança. Ele mostra que em cerâmica, no clube hípico. O que importa aqui não é uni-
não se trata absolutamente de "fases", no sentido freudia- camente o confronto com uma nova matéria de expressão,
no, mas de níveis de subjetivação que se manterão parale- é a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-
los ao longo da vida. Renuncia, assim, ao caráter superesti- grupo-máquina-trocas múltiplas, que oferecem à pessoa pos-
mado da psicogênese dos complexos freudianos e que foram sibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade
apresentados como "universais" estruturais da subjetivida- existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de algu-
de. Por outro lado, valoriza o caráter trans-subjetivo, des- ma forma, de se re-singularizar.
de o início, das experiências precoces da criança, que não Assim se operam transplantes de transferência que não
dissocia o sentimento de si do sentimento do outro. Uma procedem a partir de dimensões "já existentes" da subjeti-
dialética entre os "afetos partilháveis" e os "afetos não- vidade, cristalizadas em complexos estruturais, mas que pro-
partilháveis" estrutura, assim, as fases emergentes da sub- cedem de uma criação e que, por esse motivo, seriam antes
jetividade. Subjetividade em estado nascente que não cessa- da alçada de uma espécie de paradigma estético. Criam-se
remos de encontrar no sonho, no delírio, na exaltação cria- novas modalidades de subjetivação do mesmo modo que um
dora, no sentimento amoroso ... artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que
A ecologia social e a ecologia mental encontraram lu- dispõe. Em um tal contexto, percebe-se que os componen-
gares de exploração privilegiados nas experiências de Psi- tes os mais heterogêneos podem concorrer para a evolução
coterapia Institucional. Penso evidentemente na Clínica de positiva de um doente: as relações com o espaço a rq li itctú-
La Borde, onde trabalho há muito tempo, e onde tudo foi nico, as relações econômicas, a co-gestão entre o doente c
preparado para que os doentes psicóticos vivam em um di- os responsáveis pelos diferentes vetores de traLttlH'ttto, a
apreensão de todas as ocasiões de abertt~ra p:tr;t o e:-.:tnior,
1 I l. S1nn, The Impersonal World of the Infant, Basic Book Inc.
a exploração processual das "singularid:Hks" dos :!conte-
Puhli,lu·r·., Nov;l York, 1985. cimentos, enfim tudo aquilo que pode cottl rilntir p:tra :teria-
Caosmose I leterogênese 17
16
ção de uma relação autêntica com o outro. A cada um des- enfim, um olhar-vídeo que restitui em feedback o conjun-
ses componentes da instituição de tratamento corresponde to desses níveis superpostos.
uma prática necessária. Em outros termos, não se está mais Esse tipo de performance favorece o abandono da ati-
diante de uma subjetividade dada como um em si, mas face tude realista, que consistiria em apreender as cenas vividas
a processos de autonomização, ou de autopoiese, em um sen- como correspondentes a sistemas realmente encarnados nas
tido um pouco desviado do que Francisco Varela dá a esse estruturas familiares. Através desse aspecto teatral de múl-
termo 2 • tiplas facetas, apreende-se o caráter artificial criacionista da
Consideremos agora um exemplo de exploração dos re- produção de subjetividade. É particularmente notável que
cursos etológicos e ecológicos da psique no domínio das a instância do olhar-vídeo habite a visão dos terapeutas.
psicoterapias familiares, muito particularmente no âmbito Mesmo se estes não manipulem efetivamente uma câmera,
da corrente que, em torno de Mony Elkaim, tenta se liber- adquirem o hábito de observar certas manifestações semió-
tar da dominação das teorias sistemistas em curso nos paí- ticas que escapam ao olhar comum. O face a face lúdico com
ses anglo-saxônios e na Itália 3 . os pacientes, a acolhida imediata das singularidades desen-
A inventividade das curas de terapia familiar, tais co- volvida por esse tipo de terapia, se diferencia da atitude do
mo são aqui concebidas, também nos distancia de paradig- psicanalista que esconde o rosto, ou mesmo da performance
mas cientificistas para nos aproximar de um paradigma éti- psicodramática clássica.
co-estético. O terapeuta se engaja, corre riscos, não hesita Quer nos voltemos para o lado da história contempo-
em considerar seus próprios fantasmas e em criar um cli- rânea, para o lado das produções semióticas maquínicas ou
ma paradoxal de autenticidade existencial, acrescido entre- para o lado da etologia da infância, da ecologia social e da
tanto de uma liberdade de jogo e de simulacro. Ressalte- ecologia mental, encontraremos o mesmo questionamento
mos, a esse respeito, que a terapia familiar é levada a pro- da individuação subjetiva que subsiste certamente mas que
duzir subjetividade da maneira mais artificial possível, em é trabalhada por Agenciamentos coletivos de enunciação.
particular durante a formação, quando os terapeutas se No ponto em que nos encontramos, a definição provisória
reúnem para improvisar cenas psicodramáticas. A cena, mais englobante que eu proporia da subjetividade é: "o
aqui, implica uma múltipla superposição da enunciação: conjunto das condições que torna possível que instâncias
uma visão de si mesmo, enquanto encarnação concreta; um individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir
sujeito da enunciação que duplica o sujeito do enunciado e como território existencial auto-referencial, em adjacência
a distribuição dos papéis; uma gestão coletiva do jogo; uma ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mes-
interlocução com os comentadores dos acontecimentos; e, ma subjetiva".
Assim, em certos contextos sociais e semiológicos, a
2 F. Varela, Autonomie et connaissance, Le Senil, Paris, 1989. ,I subjetividade se individua: uma pessoa, tida como respon-
3
sável por si mesma, se posiciona em meio a relações de al-
M. Elkaim, Si tu m'aimes, ne m'aime pas, Le Senil, Paris, 1989.
Fdi,:;jo brasileira: Se você me ama, não me ame. Abordagem sistêmica
teridade regidas por usos familiares, costumes locais, leis ju-
,.,, f'simll'rapia familiar e conjugal, Papirus, Campinas, 1990. rídicas ... Em outras condições, a subjetividade se faz coleti-
Caosmose Heterogênese 19
va, o que não significa que ela se torne por isso exclusiva- tivas e cognitivas. Atualmente não se podem dissociar as teo-
mente social. Com efeito, o termo "coletivo" deve ser en- rias do inconsciente das práticas psicanalíticas, psicotera-
tendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se de- pêuticas, institucionais, literárias etc., que a elas se referem.
senvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim O inconsciente se tornou uma instituição, um "equipamento
como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, de- coletivo" compreendido em um sentido mais amplo. En-
rivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógi- contramo-nos trajados de um inconsciente quando sonha-
ca de conjuntos bem circunscritos. mos, quando deliramos, quando fazemos um ato falho, um
As condições de produção evocadas nesse esboço de lapso ... Incontestavelmente as descobertas freudianas- que
redefinição implicam, então, conjuntamente, instâncias hu- prefiro qualificar de invenções - enriqueceram os ângulos
manas inter-subjetivas manifestadas pela linguagem e ins- sob os quais se pode atualmente abordar a psique. Portan-
tâncias sugestivas ou identificatórias concernentes à etolo- to, não é absolutamente em um sentido pejorativo que falo
gia, interações institucionais de diferentes naturezas, dispo- aqui de invenção! Assim como os cristãos inventaram uma
sitivos maquínicos, tais como aqueles que recorrem ao tra- nova fórmula de subjetivação, a cavalaria cortês, e o roman-
balho com computador, Universos de referência incorporais, tismo, um novo amor, uma nova natureza, o bolchevismo,
tais como aquele~ relativos à música e às artes plásticas ... um novo sentimento de classe, as diversas seitas freudianas
Essa parte não-humana pré-pessoal da subjetividade é essen- secretaram uma nova maneira de ressentir e mesmo de pro-
cial, já que é a partir dela que pode se desenvolver sua hete- duzir a histeria, a neurose infantil, a psicose, a conflituali-
rogênese. Deleuze e Foucault foram condenados pelo fato dade familiar, a leitura dos mitos, etc ... O próprio incons-
de enfatizarem uma parte não-humana da subjetividade, ciente freudiano evoluiu ao longo de sua história, perdeu a
como se assumissem posições anti-humanistas! A questão riqueza efervescente e o inquietante ateísmo de suas origens
não é essa, mas a da apreensão da existência de máquinas e se recentrou na análise do eu, na adaptação à sociedade
de subjetivação que não trabalham apenas no seio de "facul- ou na conformidade a uma ordem significante, em sua ver-
dades da alma", de relações interpessoais ou nos complexos são estruturalista.
intra-familiares. A subjetividade não é fabricada apenas atra- Na perspectiva que é a minha e que consiste em fazer
vés das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos "maternas transitar as ciências humanas e as ciências sociais de para-
do Inconsciente", mas também nas grandes máquinas sociais, digmas cientificistas para paradigmas ético-estéticos, a ques-
mass-mediáticas, lingüísticas, que não podem ser qualifica- tão não é mais a de saber se o inconsciente freudiano ou o
das de humanas. Assim, um certo equilíbrio deve ser encon- inconsciente lacaniano fornecem uma resposta científica aos
trado entre as descobertas estruturalistas, que certamente problemas da psique. Esses modelos só serão considerados
não são negligenciáveis, e sua gestão pragmática, de maneira a título de produção de subjetividade entre outros, insepa-
a não naufragar no abandonismo social pós-moderno. ráveis dos dispositivos técnicos e institucionais que os pro-
Com seu conceito de consciente, Freud postulou a exis- movem e de seu impacto sobre a psiquiatria, o ensino uni-
tência de um continente escondido da psique, no interior do versitário, os mass mídia ... De uma maneira mais geral, de-
qual se representaria o essencial das opções pulsionais, afe- ver-se-á admitir que cada indivíduo, cada grupo social Vl'i
Caosmosc Heterogênese 21
'li
cuia seu próprio sistema de modelização da subjetividade, de uma sociedade presa ao seu passado, às suas tradições
quer dizer, uma certa cartografia feita de demarcações cog- falocráticas, às suas invariantes subjetivas. As convulsões
nitivas, mas também míticas, rituais, sintomatológicas, a contemporâneas exigem, sem dúvida, uma modelização
partir da qual ele se posiciona em relação aos seus afetos, mais voltada para o futuro e a emergência de novas práti-
suas angústias e tenta gerir suas inibições e suas pulsões. cas sociais e estéticas em todos os domínios. A desvaloriza-
Durante uma cura psicanalítica, somos confrontados ção do sentido da vida provoca o esfacelamento da imagem
com uma multiplicidade de cartografias: a do analista e a do eu: suas representações tornam-se confusas, contraditó-
do analisando, mas também a cartografia familiar ambien- rias. Face a essas convulsões, a melhor atitude consiste em
te, a da vizinhança, etc. É a interação dessas cartografias visar ao trabalho de cartografia e de modelização psicoló-
que dará aos Agenciamentos de subjetivação seu regime. gica em uma relação dialética com os interessados, os indi-
Mas não se poderá dizer de nenhuma dessas cartografias - víduos e os grupos concernidos, quer dizer, indo no senti-
fantasmáticas, delirantes ou teóricas - que exprima um do de uma co-gestão da produção de subjetividade, renun-
conhecimento científico da psique. Todas têm importância ciando às atitudes de autoridade, de sugestão, que ocupam
na medida em que escoram um certo contexto, um certo um lugar tão destacado na psicanálise, a despeito de ela
quadro, uma armadura existencial da situação subjetiva. pretender ter escapado disto.
Assim nossa questão, hoje em dia, não é apenas de ordem Há muito tempo recusei o dualismo Consciente-Incons-
especulativa, mas se coloca sob ângulos muito práticos: ciente das tópicas freudianas e todas as oposições maniqueís-
será que os conceitos de inconsciente, que nos são propos- tas correlativas à triangulação edipiana, ao complexo de cas-
tos no "mercado" da psicanálise, convêm às condições a- tração etc ... Optei por um inconsciente que superpõe múl-
tuais de produção de subjetividade? Seria preciso trans- tiplos estratos de subjetivações, estratos heterogêneos, de
formá-los, inventar outros? Logo, o problema da mode- extensão e de consistência maiores ou menores. Inconscien-
lização, mais exatamente da metamodelização psicológica, te, então, mais "esquizo ", liberado dos grilhões familialistas,
é o de saber o que fazer com esses instrumentos de carto- mais voltado para práxis atuais do que para fixações e re-
grafia, com esses conceitos psicanalíticos, sistemistas etc. gressões em relação ao passado. Inconsciente de Fluxo e de
Será que são utilizados como grade de leitura global exclu- máquinas abstratas, mais do que inconsciente de estrutura
siva com pretensão científica ou enquanto instrumentos e de linguagem.
parciais, em composição com outros, sendo o critério últi- Entretanto, não considero minhas "cartografias esqui-
mo o de ordem funcional? zo-analíticas" como doutrinas científicas 4 . Assim como um
Que processos se desenrolam em uma consciência com artista toma de seus predecessores e de seus contemporâneos
o choque do inusitado? Como se operam as modificações os traços que lhe convêm, convido meus leitores a pegar e a
de um modo de pensamento, de uma aptidão para apreen- rejeitar livremente meus conceitos. O importante nesse caso
der o mundo circundante em plena mutação? Como mudar não é o resultado final mas o fato de o método cartográfico
:1s representações desse mundo exterior, ele mesmo em pro-
4 F. Guattari, Cartographies schizoanalytiques, Galilée, Paris, I 9S9.
' ('';'>O de mudança? O inconsciente freudiano é inseparável
Caosmose Heterogênese
em seu primeiro ensaio teórico de 1924 6 , onde destaca bri-
multicomponencial coexistir corn o processo de subjetiva- lhantemente a função de apropriação enunciativa da forma
ção e de ser assim tornada possível uma reapropriação, uma estética pela autonomização do conteúdo cognitivo ou éti-
autopoiese, dos meios de produção da subjetividade. co e o aperfeiçoamento desse conteúdo em objeto estético
Que fique bem claro que não assimilo a psicose a uma que, de minha parte, qualificaria como enunciador parcial.
obra de arte e o psicanalista, a um artista! Afirmo apenas que Tento levar o objeto parcial psicanalítico, adjacente ao corpo
os registros existenciais aqui concernidos envolvem uma di- e ponto de engate da pulsão, na direção de uma enunciação
mensão de autonomia de ordem estética. Estamos diante de parcial. A ampliação da noção de objeto parcial, para a qual
uma escolha ética crucial: ou se objetiva, se reifica, se "cien- Lacan contribuiu com a inclusão no objeto do olhar e da
tificiza" a subjetividade ou, ao contrário, tenta-se apreendê- voz, deveria ser prosseguida. Trata-se de fazer dela uma ca-
la em sua dimensão de criatividade processual. Kant enfati- tegoria que cubra o conjunto dos focos de autonomização
zara que o julgamento de gosto envolve a subjetividade e sua subjetiva relativos aos grupos-sujeitos, às instâncias de pro-
relação com outrem em uma certa atltu . d e d e "desmteresse
. " 5. dução de subjetividade maquínica, ecológica, arquitetôni-
Mas não basta designar essas categorias de liberdade e de de- ca, religiosa etc ...
sinteresse como dimensões essenciais da estética inconscien- Bakhtine descreve uma transferência de subjetivação
te· convém ainda considerar seu modo de inserção ativo na que se opera entre o autor e o contemplador de uma obra
'
psique. Como certos segmentos semióticos adquirem sua au- - o olhador, no sentido de Mareei Duchamp. Nesse movi-
tonomia começam a trabalhar por sua própria conta e a se- mento, para ele, o "consumidor" se torna, de algum modo,
'
cretar novos campos de referência? E' a partir de uma ta 1rup- co-criador. A forma estética só chega a esse resultado por
tura que uma singularização existencial correlativa à gênese intermédio de uma função de isolamento ou de separação,
de novos coeficientes de liberdade tornar-se-á possível. Uma de tal modo que a matéria de expressão se torna formalmen-
tal separação de um "objeto parcial" ético-estético do campo te criadora. O conteúdo da obra se destaca de suas conota-
das significações dominantes corresponde ao mesmo tempo ções tanto cognitivas quanto estéticas: "o isolamento ou a
à promoção de um desejo mutante e à finalização de um.certo separação não se relacionam à obra como coisa mas à sua
desinteresse. Gostaria de fazer uma ponte entre o conceito de significação, ao seu conteúdo, que muito freqüentemente se
objeto parcial ou de objeto "a", tal como foi teorizado por libera de certos vínculos necessários com a unidade da na-
Lacan, que representa a autonomização de componc1:tes da tureza e com a unidade ética do ser" 7 . É então um certo tipo
subjetividade inconsciente, e a autonomização su bjctJva en- de fragmento de conteúdo que "toma posse do autor", que
gendrada pelo objeto estético. . . .
Encontramos aqui a problemática de M1khad Bakbtme 6 "Le probleme de contenu, du matériau et de la forme dans l'oeuvre
littéraire", in M. Bakhtine, Esthétique et théorie du roman, Gallimard,
5 "Pode-se dizer que, entre as três fontes de satish<Jío (p;H;l o ;lgnl- Paris, 1978 (edição brasileira: Questões de literatura e de estética -A
dável, o belo e o bom), a do gosto pelo belo é a única satish.\.;\o desinte- teoria do romance, Hucitec, São Paulo, 1988).
ressada e livre; com efeito, nenhum interesse, nem dos s<"IJIJdos nem da
7
razão, constrange o assentimento." E. Kant, Critique de· /,,f.,, ultc' de juger, Op. cit., p. 72.
Vrin, Paris, 1986, pp. 54-55.
Heterogênese 25
24 Caosmose
engendra um certo modo de enunciação estética. Na músi- funcionarem tais fragmentos destacados do conteúdo que, de
ca, por exemplo, onde- repete-nos Bakhtine- o isolamen- um modo geral, incluo na categoria dos ritornelos existen-
to e a invenção não podem ser relacionados axiologicamente ciais. A polifonia dos modos de subjetivação corresponde, de
com o material: "Não é o som da acústica que se isola nem fato, a uma multiplicidade de maneiras de "marcar o tempo".
o número matemático intervindo na composição que se in- Outros ritmos são assim levados a fazer cristalizar Agencia-
venta. É o acontecimento da aspiração e a tensão valorizante mentos existenciais, que eles encarnam e singularizam.
que são isolados e tornados irreversíveis pela invenção e, Os casos mais simples de ritornelos de delimitação de
graças a isso, se eliminam por eles mesmos sem obstáculo e Territórios existenciais podem ser encontrados na etologia
encontram um repouso em sua finalização" 8 . de numerosas espécies de pássaros cujas seqüências especí-
Na poesia, a subjetividade criadora, para se destacar, ficas de canto servem para a sedução de seu parceiro sexual,
se autonomizar, se finalizar, apossar-se-á, de preferência: para o afastamento de intrusos, o aviso da chegada de pre-
1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical; dadores ... 10 Trata -se, a cada vez, de definir um espaço fun-
2) de suas significações materiais com suas nuanças e cional bem-definido. Nas sociedades arcaicas, é a partir de
variantes; ritmos, de cantos, de danças, de máscaras, de marcas no
3) de seus aspectos de ligação verbal; corpo, no solo, nos Totens, por ocasião de rituais e através
4) de seus aspectos entonativos emocionais e volitivos; de referências míticas que são circunscritos outros tipos de
5) do sentimento da atividade verbal do engendramento Territórios existenciais coletivos 11 . Encontramos esses tipos
ativo de um som significante que comporta elementos mo- de ritornelos na Antigüidade grega com os "nomos", que
tores de articulação, de gesto, de mímica, sentimento de um constituíam, de alguma forma, "indicativos sonoros", estan-
movimento no qual são arrastados o organismo inteiro, a dartes e selos para as corporações profissionais.
atividade e a alma da palavra em sua unidade concreta. Mas cada um de nós conhece tais transposições de li-
E, evidentemente, declara Bakhtine, é esse último as- miar subjetivo pela atuação de um módulo temporal cata-
pecto que engloba os outros 9 . lisador que nos mergulhará na tristeza ou, então, em um
Essas análises penetrantes podem conduzir a uma am- clima de alegria e de animação. Com esse conceito de ritor-
pliação de nossa abordagem da subjetivação parcial. Encon- nelo, visamos não somente a tais afetos massivos, mas a ri-
tramos igualmente em Bakhtine a idéia de irreversibilidade torneios hipercomplexos, catalisando a entrada de Univer-
do objeto estético e implicitamente de autopoiese, noções tão sos incorporais tais como o da música ou o das matemáti-
necessárias no campo da análise das formações do Inconscien- cas e cristalizando Territórios existenciais muito mais des-
te, da pedagogia, da psiquiatria, e mais geralmente no cam-
po social devastado pela subjetividade capitalística. Não é
então apenas no quadro da música e da poesia que vemos
1
°F. Guattari, L'inconscient machinique, Editions Recherches, Pa-
ris, 1979.
8 11
Idem, p. 74. Ver o papel dos sonhos nas cartografias míticas entre os aborí-
gines da Austrália, cf. B. Glowczewski, Les rêveurs du desert, Plon, Pa-
9 Ibidem. ris, 1989.
Caosmose Heterogênese 29
um impasse. Essa pessoa, um dia, faz a seguinte afirmação, a depurar misturas complexas para delas extrair matérias
sem lhe dar importância: "tenho vontade de retomar minhas atômicas e moleculares homogêneas e, a partir delas, com-
aulas de direção, pois não dirijo há anos"; ou então, "tenho ~or uma gama infinita de entidades químicas que não exis-
vontade de aprender a processar textos". Trata-se de acon- ~Ia~. anteriormente, a "extração" e a "separação" de sub-
tecimentos menores que poderiam passar despercebidos em JetiVI~~des estéticas ou de objetos parciais, no sentido psi-
uma concepção tradicional da análise. Mas não é de todo can~h~I~o, tornam possíveis uma imensa complexificação da
inconcebível que o que denomino uma tal singularidade se subjetividade, harmonias, polifonias, contrapontos, ritmos
torne uma chave, desencadeando um ritornelo complexo, e orquestrações existenciais inéditos e inusitados.
que não apenas modificará o comportamento imediato do Complexificação desterritorializante essencialmente
paciente, mas lhe abrirá novos campos de virtualidade. A precária, porque constantemente ameaçada de enfraqueci-
saber, a retomada de contato com pessoas que perdera de n:ento reterritorializante, sobretudo no contexto contempo-
vista, a possibilidade de restabelecer a ligação com antigas raneo onde o primado dos fluxos informativos engendrados
paisagens, de reconquistar uma segurança neurológica. Aqui ma.quinicamente ameaça conduzir a uma dissolução gene-
uma neutralidade rígida demais, uma não-intervenção do ral~zada das antigas territorialidades existenciais. Nas pri-
terapeuta se tornaria negativa; pode ser necessário, em tais meiras fases das sociedades industriais, o "demoníaco" ain-
casos, agarrar as oportunidades, aquiescer, correr o risco de da continuava a aflorar por toda parte, mas doravante 0 mis-
se enganar, de tentar a sorte, de dizer "sim, com efeito, essa tério se t~rnou uma mercadoria cada vez mais rara. Que
experiência talvez seja importante". Fazer funcionar o acon- baste aqm evocar a busca desesperada de um Witkiewiz para
tecimento como portador eventual de uma nova constela- apreender uma última "estranheza do ser" que parecia lite-
ção de Universos de referência: é o que viso quando falo de ralmente escapar-lhe por entre os dedos.
uma intervenção pragmática voltada para a construção da Nessas condições, cabe especialmente à função poéti-
subjetividade, para a produção de campos de virtualidades ca recompor universos de subjetivação artificialmente rare-
e não apenas polarizada por uma hermenêutica simbólica feitos e re-singularizados. Não se trata, para ela de trans-
. . '
dirigida para a infância. mitir mensagens, de investir imagens como suporte de iden-
Nessa concepção de análise, o tempo deixa de ser vivi- tificação ou padrões formais como esteio de procedimento
do passivamente; ele é agido, orientado, objeto de mutações de modelização, mas de catalisar operadores existenciais sus-
qualitativas. A análise não é mais interpretação transferen- cetíveis de adquirir consistência e persistência.
cial de sintomas em função de um conteúdo latente preexis- Essa catálise poético-existencial, que encontraremos em
tente, mas invenção de novos focos catalíticos suscetíveis de operação no seio de discursividades escriturais vocais mu-
. . ' '
fazer bifurcar a existência. Uma singularidade, uma ruptu- SICais ou plásticas, engaja quase sincronicamente a recris-
ra de sentido, um corte, uma fragmentação, a separação de talização enunciativa do criador, do intérprete e do aprecia-
um conteúdo semiótico - por exemplo, à moda dadaísta dor da obra de arte. Sua eficácia reside essencialmente em
oll surrealista - podem originar focos mutantes de subje- ~ua c.apacidade de promover rupturas ativas, processuais, no
t i v ação. Da mesma forma que a química teve que começar rntenor de tecidos significacionais e denotativos semiotica-
llcterogênese
1
.11 Caosmose .li
mente estruturados, a partir dos quais ela colocará em fun- do tecido das solidariedades sociais e dos modos de vida psí-
cionamento uma subjetividade da emergência, no sentido de quicos que convêm literalmente reinventar. A refundação do
Daniel Stern. político deverá passar pelas dimensões estéticas e analíticas
Quando ela se lança efetivamente em uma zona enun- que estão implicadas nas três ecologias: do meio ambiente,
ciativa dada- quer dizer, situada a partir de um ponto de do socius e da psique.
vista histórico e geopolítico - , uma tal função analítico- Não se pode conceber resposta ao envenenamento da
poética se instaura então como foco mutante de auto-refe- atmosfera e ao aquecimento do planeta, devidos ao efeito
renciação e de auto-valorização. É por isso que deveremos estufa, uma estabilização demográfica, sem uma mutação
sempre considerá-la sob dois ângulos: 1. enquanto ruptura das mentalidades, sem a promoção de uma nova arte de
molecular, imperceptível bifurcação, suscetível de desesta- viver em sociedade. Não se pode conceber disciplina inter-
bilizar a trama das redundâncias dominantes, a organização nacional nesse domínio sem trazer uma solução para os
do "já classificado" ou, se preferirmos, a ordem do clássi- problemas da fome no mundo, da hiperinflação no Tercei-
co; e 2. enquanto seleção de alguns segmentos dessas mes- ro Mundo. Não se pode conceber uma recomposição cole-
mas cadeias de redundância, para conferir-lhes essa função tiva do socius, correlativa a uma re-singularização da sub-
existencial a-significante que acabo de evocar, para "ritor- jetividade, a uma nova forma de conceber a democracia
nelizá-las", para fazer delas fragmentos virulentos de enun- política e econômica, respeitando as diferenças culturais,
ciação parcial trabalhando como shifter de subjetivação. sem múltiplas revoluções moleculares. Não se pode esperar
Pouco importa aqui a qualidade do material de base, como uma melhoria das condições de vida da espécie humana sem
se vê na música repetitiva ou na dança Buto que, segundo um esforço considerável de promoção da condição femini-
Mareei Duchamp, são inteiramente voltadas para "o olha- na. O conjunto da divisão do trabalho, seus modos deva-
dor". O que importa, primordialmente, é o ímpeto rítmico lorização e suas finalidades devem ser igualmente repensa-
mutante de uma temporalização capaz de fazer unir os com- dos. A produção pela produção, a obsessão pela taxa de
ponentes heterogêneos de um novo edifício existencial. crescimento, quer seja no mercado capitalista ou na econo-
Para além da função poética, coloca-se a questão dos mia planificada, conduzem a absurdidades monstruosas. A
dispositivos de subjetivação. E, mais precisamente, o que única finalidade aceitável das atividades humanas é a pro-
deve caracterizá-los para que saiam da serialidade -no dução de uma subjetividade que enriqueça de modo contí-
sentido de Sartre- e entrem em processos de singulariza- nuo sua relação com o mundo.
ção, que restituem à existência o que se poderia chamar de Os dispositivos de produção de subjetividade podem
sua auto-essencialização. Abordamos uma época em que, es- existir em escala de megalópoles assim como em escala dos
fumando-se os antagonismos da guerra friJ, aparecem mais jogos de linguagem de um indivíduo. Para apreender os re-
distintamente as ameaças principais que nossas sociedades cursos íntimos dessa produção- essas rupturas de sentido
produtivistas fazem pairar sobre a espécie hu1nana, cuja so- autofundadoras de existência-, a poesia, atualmente, tal-
brevivência nesse planeta está ameaçada, n:lo ;1 penas pelas vez tenha mais a nos ensinar do que as ciências eu>n<lllli
degradações ambientais mas também pela dq~<'IH'ITscência cas, as ciências humanas e a psicanálise reunidas! As 1r;1ns-
Caosmose Heterogênese 33
32
formações sociais podem proceder em grande escala, por valer generalizado, no contexto de desenvolvimento contí-
mutação de subjetividade, como se vê atualmente com as nuo dos mass mídia, dos Equipamentos Coletivos, da revo-
revoluções subjetivas que se passam no leste de um modo lução informática que parece chamada a recobrir com sua
moderadamente conservador, ou nos países do Oriente Mé- cinzenta monotonia os mínimos gestos, os últimos recantos
dio, infelizmente de um modo largamente reacionário, até de mistério do planeta.
mesmo neofascista. Mas elas podem também se produzir em Proporemos então operar um descentramento da ques-
uma escala molecular- microfísica, no sentido de Foucault tão do sujeito para a da subjetividade. O sujeito, tradicio-
-,em uma atividade política, em uma cura analítica, na ins- nalmente, foi concebido como essência última da indivi-
talação de um dispositivo para mudar a vida da vizinhan- duação, como pura apreensão pré-reflexiva, vazia, do mun-
ça, para mudar o modo de funcionamento de uma escola, do, como foco da sensibilidade, da expressividade, unifica-
de uma instituição psiquiátrica. dor dos estados de consciência. Com a subjetividade, será
dada, antes, ênfase à instância fundadora da intencionali-
dade. Trata-se de tomar a relação entre o sujeito e o objeto
pelo meio, e de fazer passar ao primeiro plano a instância
Tentei mostrar, ao longo dessa primeira parte, que a que se exprime (ou o Interpretante da tríade de Pierce). A
saída do reducionismo estruturalista pede uma refundação partir daí se recolocará a questão do Conteúdo. Este parti-
da problemática da subjetividade. Subjetividade parcial, pré- cipa da subjetividade, dando consistência à qualidade on-
pessoal, polifônica, coletiva e maquínica. Fundamentalmen- tológica da Expressão. É nessa reversibilidade do Conteú-
te, a questão da enunciação se encontra aí descentrada em do e da Expressão que reside o que chamo de função exis-
relação à da individuação humana. Ela se torna correlativa tencializante. Partiremos, então, de um primado da substân-
não somente à emergência de uma lógica de intensidades cia enunciadora sobre o par Expressão e Conteúdo.
não-discursivas, mas igualmente a uma incorporação-aglo- Acreditei perceber uma alternativa válida aos estrutu-
meração pática, desses vetores de subjetividade parcial. ralismos inspirados em Saussure, apoiando-me na oposição
Convém assim renunciar às pretensões habitualmente Expressão/Conteúdo, tal como a concebeu Hjelmslev 13 , quer
universalistas das modelizações psicológicas. Os conteúdos dizer, fundada precisamente em uma reversibilidade possí-
ditos científicos das teorias psicanalíticas ou sistemistas, as- vel entre a Expressão e o Conteúdo. Para além de Hjelmslev,
sim como as modelizações mitolúgicas ou religiosas, ou ain- proponho considerar uma multiplicidade de instâncias que
da as modelizações do delírio sistcm;)tico, valem essencial- se exprimem, quer sejam da ordem da Expressão ou do Con-
mente por sua função existencializante, quer di·1,er, de pro- teúdo. Ao invés de tirar partido da oposição Expressão/Con-
dução de subjetividade. Nessas condições, a atividade teórica teúdo, que em Hjelmslev duplica o par significante/signica-
se reorientará para uma metamodelizaçilo capaz de abarcar
a diversidade dos sistemas de modelizaçilo. Â t·sst· respeito, 13 L. Hjelmslev, Prolégomlmes à une téorie du langage, Minuit, Pa-
convém, particularmente, situar a incid[·ncia concreta da ris, 1968; Le langage, Minuit, Paris, 1969; Essais linguistiques, Minuit,
subjetividade capitalística atualmente, su hjt't ividade do equi- Paris, 1971; Nouveaux essais, Paris, PUF, 1985.
34 Caosmose I Icterogênese 35
do de Saussure, tratar-se-ia de colocar em polifonia, em pa- rede sobre a matéria para engendrar a substância tanto de
ralelo, uma multiplicidade de sistemas de expressão, ou do Expressão quanto de Conteúdo. Tratar-se-ia de fazer estilhaçar
que chamaria agora de substâncias de expressão. de modo pluralista o conceito de substância, de forma a pro-
Minha dificuldade metodológica deve-se ao fato de que mover a categoria de substância de expressão, não apenas nos
o próprio Hjelmslev empregava a categoria de substância em domínios semi ológicos e semióticos mas também nos domínios
uma tripartição entre matéria, substância e forma de Expres- extralingüísticos, não-humanos, biológicos, tecnológicos, es-
são e de Conteúdo. Nele, a junção entre a Expressão e o téticos etc. Deste modo, o problema do Agenciamento de enun-
Conteúdo ocorria ao nível da forma de expressão e da for- ciação não seria mais específico de um registro semiótico, mas
ma do conteúdo que identificava. Essa forma comum ou co- atravessaria um conjunto de matérias expressivas heterogê-
mutante é um pouco misteriosa, mas se apresenta, em mi- neas. Transversalidade, então, entre substâncias enunciadoras
nha opinião, como uma intuição genial que levanta a ques- que podem ser, por um lado, de ordem expressiva lingüísti-
tão da existência de uma máquina formal, transversal a toda ca, mas, por outro lado, de ordem maquínica, se desenvol-
modalidade de Expressão como de Conteúdo. Haveria en- vendo a partir de "matérias não-semioticamente formadas"
tão uma ponte, uma transversalidade entre a máquina de dis- para retomar uma outra expressão de Hjelmslev. '
cursividade fonemática e sintagmática da Expressão, própria A subjetividade maquínica, o agenciamento maquíni-
à linguagem, e o recorte das unidades semânticas do Con- co de subjetivação, aglomera essas diferentes enunciações
teúdo, por exemplo a maneira pela qual serão classificadas parciais e se instala de algum modo antes e ao lado da rela-
as cores, as categorias animais. Denomino essa forma comum ção sujeito-objeto. Ela tem, além disso, um caráter coleti-
de máquina desterritorializada, máquina abstrata. Essa no- vo, é multicomponencial, uma multiplicidade maquínica. E,
ção de máquina semiótica não foi inventada por mim: en- terceiro aspecto, comporta dimensões incorporais - o que
contrei-a em Chomsky, que fala de máquina abstrata na raiz constitui talvez o lado mais problemático da questão e que
da linguagem. Só que esse conceito, essa oposição Expres- só é abordado lateralmente por Noam Chomsky com sua
são/Conteúdo, ou esse conceito chomskiano de máquina abs- tentativa de retomada do conceito medieval de Universais.
trata, ainda permanecem muito rebatidos sobre a linguagem. Retomemos esses três pontos. As substâncias expressivas lin-
O objetivo seria re-situar a semiologia e as semióticas no qua- güísticas e não-lingüísticas se instauram no cruzamento de
dro de uma concepção maquínica ampliada da forma, que cadeias discursivas pertencentes a um mundo finito pré-for-
nos afastaria de uma simples oposição lingüística Expressão/ mado (o mundo do grande Outro lacaniano) e de registros
Conteúdo e nos permitiria integrar aos Agenciamentos enun- incorporais com virtualidades criacionistas infinitas (já es-
ciativos um número indefinido de substâncias de Expressão tas não têm nada a ver com os "maternas" lacanianos). É
como as codificações biológicas ou as formas de organiza- nessa zona de interseção que o sujeito e o objeto se fundem
ção próprias ao socius. e encontram seu fundamento. Trata-se de um dado com o
Nessa perspectiva, a questão da substância enunciado- qual os fenomenólogos estiveram às voltas, ao mostrar que
ra sairia da tripartição tal como a concebia Hjelmslev, entre a intencionalidade é inseparável de seu objeto e depende en-
Jn;ltéria/substâncialforma, a forma se lançando como uma tão é da ordem de um aquém da relação discursiva sujeito-
38 Caosmose I leterogênese 39
ros e dos algoritmos configura o "fundo" das idealidades tenham já existido em toda parte e desde sempre e não se
matemáticas.) projetem nos possíveis por vir. Não se pode mais fazer com
A consistência maquínica abstrata que se encontra des- que a música polifônica não tenha sido inventada pela se-
sa forma conferida aos Agenciamentos de enunciação resi- qüência dos tempos passados e futuros. Essa é a primeira
de no escalonamento e na ordenação dos níveis parciais de base de consistência ontológica dessa função de subjetiva-
territorialização existencial. O ritornelo complexo funcio- ção existencial que se situa na perspectiva de um certo cria-
na além disso como interface entre registros atualizados de cionismo axiológico.
' '
discursividade e Universos de virtualidade não discursivos. A segunda é a da encarnação desses valores na irrever-
É o aspecto mais desterritorializado do ritornelo, sua dimen- sibilidade do ser aí dos Territórios existenciais, que confe-
são de Universo de valor incorporai que assume o controle rem seu selo de autopoiese, de singularização, aos focos de
dos aspectos mais territorializados através de um movimento subjetivação. Na lógica dos conjuntos discursivos que regem
de desterritorialização, desenvolvendo campos de possível, os domínios dos Fluxos e dos Phylum maquínicos há sem-
tensões de valor, relações de heterogeneidade, de alterida- pre separação entre os pólos do sujeito e do objeto, há o que
de, de devir outro. A diferença entre esses Universos deva- Pierre Lévy denomina o estabelecimento de uma "cortina de
lor e as Idéias platônicas é que eles não têm caráter de fixi- ferro" ontológica 14 . A verdade de uma proposição respon-
dez. Trata-se de constelações de Universos, no interior das de ao princípio do terceiro excluído; cada objeto se apresenta
quais um componente pode se afirmar sobre os outros e em uma relação de oposição binária com um "fundo", ao
modificar a configuração referencial inicial e o modo de passo que na lógica pática não há mais referência global ex-
valorização dominante. (Por exemplo, veremos afirmar-se, trínseca que se possa circunscrever. A relação objetai se
ao longo da Antigüidade, o primado de uma máquina mili- encontra precarizada, assim como se encontram novamen-
tar baseada nas armas de ferro sobre a máquina de Estado te questionadas as funções de subjetivação.
despótica, a máquina de escritura, a máquina religiosa etc.) O Universo incorporai não se apóia em coordenadas
A cristalização de uma tal constelação poderá ser "ultrapas- bem-arrimadas no mundo, mas em ordenadas, em uma or-
sada" ao longo da discursividade histórica, mas jamais apa- denação intensiva mais ou menos engatada nesses Territó-
gada enquanto ruptura irreversível da memória incorporai rios existenciais. Territórios que pretendem englobar em um
da subjetividade coletiva. mesmo movimento o conjunto da mundaneidade e que só
Colocamo-nos, então, aqui totalmente fora da visão de contam, na verdade, com ritornelos derrisórios, indexando
um Ser que atravessaria, imutável, a história universal das senão sua vacuidade, ao menos o grau zero de sua intensi-
composições ontológicas. Existem constelações incorporais dade ontológica. Territórios, então, jamais dados como ob-
singulares que pertencem ao mesmo tempo à histúria natu- jeto mas sempre como repetição intensiva, lancinante afir-
ral e à história humana e simultaneamente lhes escapam por mação existencial. E, repito, essa operação se efetua atra-
milhares de linhas de fuga. A partir do morncnto em que há
surgimento de Universos matemáticos, não se pode mais fa- 14
P. Lévy, Les technologies de l'inteligence, Découverte, Paris,
zer com que essas máquinas abstratas que os suportam não 1990. Ed. bras.: As tecnologias da inteligência, Ed. 34, São Paulo, 1993.
Caosmose llcterogênese 41
vés do empréstimo de cadeias semióticas destacadas e des- Para questionar as oposições de tipo dualista ser/ente,
viadas de sua vocação significacional ou de codificação. sujeito/objeto, os sistemas de valorização bipolar maniqueís-
Aqui uma instância expressiva se funda sobre uma relação tas, propus o conceito de intensidade ontológica, que implica
matéria-forma, que extrai formas complexas a partir de uma um engajamento ético-estético do agenciamento enunciativo,
matéria caótica. tanto nos registros atuais quanto nos virtuais. Mas um ou-
Mas voltemos à lógica dos conjuntos discursivos: é a do tro elemento da metamodelização que proponho aqui resi-
Capital, do Significante, do Ser com um S maiúsculo. OCa- de no caráter coletivo das multiplicidades maquínicas. Não
pital é o referente da equivalência generalizada do trabalho existe totalização personológica dos diferentes componen-
e dos bens; o Significante, o referente capitalístico das expres- tes de Expressão, totalização fechada em si mesma dos Uni-
sões semiológicas, o grande redutor da polivocidade expres- versos de referência, nem nas ciências, nas artes e tampou-
siva; e o Ser, o equivalente ontológico, o fruto da redução da co na sociedade. Há aglomeração de fatores heterogêneos
polivocidade ontológica. O verdadeiro, o bom, o belo são de subjetivação. Os segmentos maquínicos remetem a uma
categorias de "normatização" dos processos que escapam à mecanosfera destotalizada, desterritorializada, a um jogo in-
lógica dos conjuntos circunscritos. São referentes vazios, que finito de interface, segundo a expressão de Pierre Lévy.
criam o vazio, que instauram a transcendência nas relações Não existe, insisto, um Ser já aí, instalado através da
de representação. A escolha do Capital, do Significante, do temporalidade. Esse questionamento de relações duais, bi-
Ser, participa de uma mesma opção ético-política. O Capital nárias, do tipo Ser/ente, consciente/inconsciente, implica o
esmaga sob sua bota todos os outros modos de valorização. questionamento do caráter de linearidade semiótica que pa-
O Significante faz calar as virtualidades infinitas das línguas rece sempre evidente. A expressão pática não se instaura
menores e das expressões parciais. O Ser é como um aprisio- em uma relação de sucessividade discursiva, para colocar
namento que nos torna cegos e insensíveis à riqueza e à mul- o objeto sob o fundo de um referente bem circunscrito. Es-
tivalência dos Universos de valor que, entretanto, proliferam tamos aqui em um registro de coexistência, de cristalização
sob nossos olhos. Existe uma escolha ética em favor da riqueza de intensidade. O tempo não existe como continente vazio
do possível, uma ética e uma política do virtual que descor- (concepção que permanece na base do pensamento einstei-
porifica, desterritorializa a contingência, a causalidade linear, niano). As relações de temporalização são essencialmente
o peso dos estados de coisas e das significações que nos asse- de sincronia maquínica. Há desdobramento de ordenadas
diam. Uma escolha da processualidade, da irreversibilidade axiológicas, sem que haja constituição de um referente ex-
e da re-singularização. Esse redesdobramento pode se ope- terior a esse desdobramento. Estamos aqui aquém da rela-
rar em pequena escala, d: modo completamente cerceado, po- ção de linearidade "extensionalizante" entre um objeto e
bre até mesmo catastrófico, na neurose. Pode tomar de em- sua mediação representativa no interior de uma compleição
'
préstimo referências religiosas reativas; pode se anular no ál- maquínica abstrata.
cool, na droga, na televisão, na cotidianeidade sem horizonte. Insisti, em terceiro lugar, no caráter incorporai e vir-
Mas pode também tomar de empréstimo outros procedimen- tual de uma parte essencial do "meio ambiente" dos agen-
tos, mais coletivos, mais sociais, mais políticos ... ciamentos de enunciação. Dir-se-ia que os universos de re-
42 Caosmose Heterogênese 43
ferência incorporais são in voce, segundo uma terminolo- 2. MÁQUINAS SEMIÓTICAS E HETEROGÊNESE OU
gia "terminista", nominalista, tornando as entidades semió- A HETEROGÊNESE MAQUÍNICA
ticas tributárias de uma pura subjetividade, ou que eles são
in res, no quadro de uma concepção realista do mundo,
sendo a subjetividade apenas um artefato ilusório? Talvez Embora seja comum tratar a máquina como um sub-
seja necessário afirmar sincronicamente essas duas posições, conjunto da técnica, penso há muito tempo que é a proble-
instaurando-se o domínio das intensidades virtuais antes das mática das técnicas que está na dependência das questões
distinções entre a máquina semiótica, o objeto referido e o colocadas pelas máquinas e não o inverso. A máquina tor-
sujeito enunciador. nar-se-ia prévia à técnica ao invés de ser a expressão desta.
Por não se ter visto que os segmentos maquínicos eram O maquinismo é objeto de fascinação, às vezes de delírio.
autopoiéticos e ontogenéticos, procedeu-se ininterruptamen- Sobre ele existe todo um "bestiário" histórico. Desde a ori-
te a reduções universalistas quanto ao Significante e quan- gem da filosofia, a relação do homem com a máquina é fonte
to à racionalidade científica. As interfaces maquínicas são de indagações. Aristóteles considera que a teclme tem como
heterogenéticas; elas interpelam a alteridade dos pontos de missão criar o que a natureza não pode realizar. Da ordem
vista que se pode ter sobre elas e, conseqüentemente, sobre do "saber" e não do "fazer", ela interpõe, entre a natureza
os sistemas de metamodelização que permitem considerar, e a humanidade, uma espécie de mediação criativa cujo es-
de um modo ou de outro, o caráter fundamentalmente ina- tatuto de "interseção" é fonte de perpétua ambigüidade.
cessível de seus focos autopoiéticos. É preciso se afastar de Enquanto as concepções "mecanicistas" da máquina es-
uma referência única às máquinas tecnológicas, ampliar o vaziam-na de tudo o que possa fazê-la escapar a uma sim-
conceito de máquina, para posicionar essa adjacência da má- ples construção partes extra partes, as concepções vitalistas
quina aos Universos de referência incorporais (máquina mu- assimilam-na aos seres vivos, a não ser que sejam os seres
sical, máquina matemática ... ). As categorias de metamode- vivos os assimilados à máquina. A perspectiva cibernética
lização propostas aqui- os Fluxos, os Phylum maquínicos, aberta por Norbert Wiener (Cibernética e sociedade) con-
os Territórios existenciais, os Universos incorporais - só sidera os sistemas vivos como máquinas particulares dota-
têm interesse porque estão em grupo de qu;ltro e permitem das do princípio de retroação. Por sua vez, concepções "sis-
que nos afastemos das descrições ternúrias que sempre são temistas" mais recentes (Humberto Maturana e Francisco
rebatidas sobre um dualismo. O quarto !Trino vale por um Varela) desenvolvem o conceito de autopoiese (autopro-
enésimo termo, quer dizer, a abertura para ;J lllllltiplicida- dução), reservando-o às máquinas vivas. Uma moda filosó-
de. O que distingue uma me~amodelização de uma modeli- fica, na trilha de Heidegger, atribui à techne- em sua opo-
zação é, assim, o fato de ela dispor de um tcnno org;mizador sição à técnica moderna- uma missão de "desvelamento
das aberturas possíveis para o virtual c par;1 ;J proccssua- da verdade" que vai "buscar o verdadeiro através do exa-
lidade criativa. to". Assim ela fixa a techne a uma base ontológica - a um
" grun d" , -comprometeu do seu carater / de abertura pro-
cessual. Através dessas posições tentaremos discernir limia-
44 Caosmose Heterogêncse 45
res de intensidade ontológica que nos permitem apreender to" podemos igualmente entender "extrato", no sentido de
o maquinismo como um todo em seus avatares técnicos, so- extrair. São montagens suscetíveis de pôr em relação todos
ciais, semióticos, axiológicos. Isso implica reconstruir um os níveis heterogêneos que atravessam e que acabamos de
conceito de máquina que se desenvolve muito além da má- enumerar. A máquina abstrata lhes é transversal. É ela que
quina técnica. Para cada tipo de máquina, colocaremos a lhes dará ou não uma existência, uma eficiência, uma po-
questão, não de sua autonomia vital- não é um animal- tência de auto-afirmação ontológica. Os diferentes compo-
mas de seu poder singular de enunciação: o que denomino nentes são levados, remanejados por uma espécie de dina-
sua consistência enunciativa específica. mismo. Um tal conjunto funcional será doravante qualifi-
O primeiro tipo de máquina em que pensamos é o dos cado de Agenciamento maquínico. O termo Agenciamento
dispositivos materiais. São fabricados pela mão do homem não comporta nenhuma noção de ligação, de passagem, de
- ela mesma substituída por outras máquinas - e isso se- anastomose entre seus componentes. É um Agenciamento de
gundo concepções e planos que respondem a objetivos de pro- campo de possíveis, de virtuais tanto quanto de elementos
dução. Denomino essas diferentes etapas de esquemas dia- constituídos sem noção de relação genérica ou de espécie.
gramáticos finalizados. Através dessa montagem e dessa fina- Dentro desse quadro, os utensílios, os instrumentos, as fer-
lização, se coloca de saída a necessidade de ampliar a deli- ramentas mais simples, as menores peças estruturadas de
mitação da máquina stricto sensu ao conjunto funcional que uma maquinaria adquirirão o estatuto de protomáquina.
a associa ao homem através de múltiplos componentes: Tomemos um exemplo. Se desconstruirmos um marte-
- componentes materiais e energéticos; lo, retirando-lhe seu cabo: é sempre um martelo, mas em es-
-componentes semióticos diagramáticos e algorítmi- tado "mutilado". A "cabeça" do martelo- outra metáfo-
cos (planos, fórmulas, equações, cálculos que participam da ra zoomórfica- pode ser reduzida por fusão. Ela transpo-
fabricação da máquina); rá então um limiar de consistência formal onde perderá sua
-componentes sociais, relativos à pesquisa, à forma- forma; esta gestalt maquínica opera, aliás, tanto em um pla-
ção, à organização do trabalho, à ergonomia, à circulação no tecnológico quanto em um nível imaginário (quando se
e à distribuição de bens e serviços produzidos ... evoca, por exemplo, a lembrança obsoleta da foice e do mar-
- componentes de órgão, de influxo, de humor do telo). Conseqüentemente, estamos apenas diante de uma
corpo humano; massa metálica devolvida ao alisamento, à desterritoria-
- informações e representações mentais individuais e lização, que precede sua entrada numa forma maquínica.
coletivas; Para ultrapassar esse tipo de experiência, similar àquela do
-investimentos de "máquinas desejantes" produzin- pedaço de cera cartesiano, tentemos, inversamente, associar
do uma subjetividade adjacente a esses componentes; o martelo e o braço, o prego e a bigorna. Eles mantêm entre
-máquinas abstratas se instaurando transversalmen- si relações de encadeamento sintagmáticas. Sua "dança co-
te aos níveis maquínicos materiais, cognitivos, afetivos, so- letiva" poderá mesmo ressuscitar a defunta corporação dos
ciais, anteriormente considerados. ferreiros, a sinistra época das antigas minas de ferro, os usos
Quando falamos de máquinas abstratas, por "abstra- ancestrais das rodas de ferro ...
Caosmose 1-Ieterogênese 47
Como enfatizou Leroi-Gourhan, o objeto técnico não é positivos técnicos e experimentais. As semiologias da signi-
nada fora do conjunto técnico a que pertence. E acontece o ficação utilizam claves de oposições distintivas de ordem fo-
mesmo com as máquinas sofisticadas, tais como esses robôs nemática ou escriturai que transcrevem os enunciados em
que em breve serão engendrados por outros robôs. O gesto matérias de expressão significantes.
humano permanece adjacente à sua gestação, à espera da fa- Os estruturalistas se regozijaram em erigir o Signifi-
lha que requeira sua intervenção: esse resíduo de um ato di- cante como categoria unificadora de todas as economias
reto. Mas tudo isso não diz respeito a uma visão parcial, a expressivas: a língua, o ícone, o gesto, o urbanismo, o ci-
um certo gosto por uma época datada da ficção científica? nema etc ... Postularam uma traduzibilidade geral signifi-
É curioso observar que, para adquirir cada vez mais vida, as cante de todas as formas de discursividade. Mas, ao fazer
máquinas exigem, em troca, no percurso de seus phylum e- isso, não ignoraram a dimensão essencial de uma autopoie-
volutivos, cada vez mais vitalidade humana abstrata. Assim se maquínica? Essa emergência contínua de sentidos e de
a concepção por computador, os sistemas experts e a inteli- efeitos não diz respeito à redundância da mímesis, mas a
gência artificial dão, pelo menos, tanto a pensar quanto sub- uma produção de efeito de sentido singular, ainda que in-
traem do pensamento o que constitui no fundo apenas es- definidamente reprodutível.
quemas inerciais. As formas de pensamento que trabalham Esse núcleo autopoiético da máquina é o que faz com
com computador são de fato mutantes, concernem a outras que ela escape à estrutura, diferenciando-a e dando-lhe seu
músicas, a outros Universos de referência 15 . valor. A estrutura implica ciclos de retroações, põe em jogo
Impossível, então, recusar ao pensamento humano sua um conceito de totalização que ela domina a partir de si
parte na essência do maquinismo. Mas até que ponto este mesma. É habitada por inputs e outputs que tendem a fazê-
pode ainda ser qualificado de humano? O pensamento téc- la funcionar segundo um princípio de eterno retorno. A es-
nico-científico não é da ordem de um certo tipo de maqui- trutura é assombrada por um desejo de eternidade. A má-
nismo mental e semiótico? Impõe-se aqui estabelecer uma quina, ao contrário, é atormentada por um desejo de aboli-
distinção entre as semiologias produtoras de significações- ção. Sua emergência é acompanhada pela pane, pela catás-
moeda corrente dos grupos sociais - , como a enunciação trofe, pela morte que a ameaçam. Ela possui uma dimensão
"humana" de gente que trabalha em torno da máquina, e, suplementar: a de uma alteridade que ela desenvolve sob di-
por outro lado, as semióticas a-significantes, que, indepen- ferentes formas. Essa alteridade afasta-a da estrutura orien-
'
tada por um princípio de homeomorfia. A diferença promo-
dentemente da quantidade de significações que veiculam,
manipulam figuras de expressão que se poderia qualificar de vida pela autopoiese maquínica é fundada sobre o desequi-
"não-humanas"; são equações e planos que enunciam a má- líbrio, a prospecção de Universos virtuais longe do equilí-
quina e fazem-na agir de forma diagramática sobre os dis- brio. E não se trata apenas de uma ruptura de equilíbrio
formal, mas de uma radical reconversão ontológica. A má-
quina depende sempre de elementos exteriores para poder
15 P. Lévy, Plissé fractal. Idéographie dynamique (méiJioire d'habili-
existir como tal. Implica uma complementaridade não ape-
tation à diriger des recherches en sciences de l'information 1'/ de /<1 (ommu-
nication).
llas com o homem que a fabrica, a faz funcionar ou a des-
48 Caosmose I kterogênese 49
trói, mas ela própria está em uma relação de alteridade com ontológica. O que acontece em um nível particular-cósmi-
outras máquinas, atuais ou virtuais, enunciação "não-hu- co não deixa de estar relacionado ao que acontece com o
mana", diagrama prato-subjetivo. socius ou com a alma humana. Mas não segundo harmôni-
Essa reconversão ontológica rompe o alcance totalizante cas universais de natureza platônica (O Sofista). A compo-
do conceito de Significante. Pois não são as mesmas entida- sição das intensidades desterritorializantes se encarna em
des significantes que operam as diversas mutações de referen- máquinas abstratas. É preciso considerar que existe uma
te ontológico que nos fazem passar do Universo da química essência maquínica que irá se encarnar em uma máquina
molecular ao da química biológica, ou do mundo da acústi- técnica, mas igualmente no meio social, cognitivo, ligado a
ca ao das músicas polifônicas e harmônicas. Certamente, as essa máquina- os conjuntos sociais são também máqui-
linhas de decifração significante, compostas por figuras dis- nas, o corpo é uma máquina, há máquinas científicas, teó-
cretas, binarizáveis, sintagmatizáveis e paradigmatizáveis, po- ricas, informacionais. A máquina abstrata atravessa todos
dem coincidir de um universo ao outro e dar a ilusão de que esses componentes heterogêneos, mas sobretudo ela os he-
uma mesma trama significante habita todos esses domínios. terogeneíza fora de qualquer traço unificador e segundo um
Mas o mesmo não ocorre com a textura desses universos de princípio de irreversibilidade, de singularidade e de neces-
referência, que são marcados, a cada vez, com o selo da sin- sidade. A esse respeito, o significante lacaniano é fustigado
gularidade. Da acústica à música polifônica, as constelações por uma dupla carência: é abstrato demais, pelo fato de
de intensidades expressivas divergem. Elas dizem respeito a traduzibilizar sem o menor esforço as matérias de expres-
uma certa relação pática, liberando consistências ontológi- são heterogêneas; ele perde a heterogênese ontológica, uni-
cas irredutivelmente heterogêneas. Descobrem-se assim tan- formiza e sintaxiza gratuitamente as diversas regiões do ser
tos tipos de desterritorialização quantos traços de matéria de e, ao mesmo tempo, não é suficientemente abstrato porque
expressão. A articulação significante que os sobrepuja- em é incapaz de dar conta da especificidade desses núcleos ma-
sua indiferente neutralidade- é incapaz de se impor como quínicos autopoiéticos aos quais é necessário voltar agora.
relação de imanência com as intensidades maquínicas- quer Francisco Varela caracteriza uma máquina como "o
dizer, com o que constitui o núcleo não-discursivo e auto- conjunto das inter-relações de seus componentes indepen-
enunciador da máquina. dentemente de seus próprios componentes" 16 . A organiza-
As diversas modalidades da autopoiese maquínica es- ção de uma máquina não tem, pois, nada a ver com a sua
capam essencialmente à mediação significante e não se sub- materialidade. Ele distingue dois tipos de máquinas: as "alo-
metem a nenhuma sintaxe geral dos procedimentos de des- poiéticas", que produzem algo diferente delas mesmas, e as
territorialização. Nenhum par ser/ente, ser/nada, ser/outro, "autopoiéticas", que engendram e especificam continuamen-
poderá ocupar o lugar de binary digit ontológico. As pro- te sua própria organização e seus próprios limites. Estas
posições maquínicas escapam aos jogos comuns da discur- últimas realizam um processo incessante de substituição de
sividade, às coordenadas estruturais de energia, de tempo e seus componentes porque estão submetidas a perturbações
de espaço.
Entretanto, tampouco existe uma "transversalidade" 16
Op. cit.
S2 Caosmose Heterogênese 53
A questão da reprodutibilidade da máquina em um pla- Essas virtualidades diagramáticas fazem-nos sair da ca-
no ontogenético é mais complexa. A manutenção do estado racterização da autopoiese maquínica por Varela em termos
de funcionamento de uma máquina nunca ocorre sem falhas de individuação unitária, sem input nem output, e nos le-
durante seu período de vida presumido, sua identidade fun- vam a enfatizar um maquinismo mais coletivo, sem unidade
cional nunca é absolutamente garantida. O desgaste, a pre- delimitada e cuja autonomia se adapta a diversos suportes
cariedade, as panes, a entropia, assim como seu funciona- de alteridade. A reprodutibilidade da máquina técnica, di-
mento normal, lhe impõem uma certa renovação de seus ferentemente da dos seres vivos, não repousa em seqüências
componentes materiais, energéticos e informacionais, esses de codificação perfeitamente circunscritas em um genoma
últimos podendo dissipar-se no "ruído". Paralelamente, a territorializado. Cada máquina tecnológica tem seus planos
manutenção da consistência do agenciamento maquínico de concepção e de montagem mas, por um lado, estes man-
exige que seja também renovada a parte de gesto e de inte- têm sua distância em relação a ela e, por outro lado, são re-
ligência humana que entra em sua composição. metidos de uma máquina à outra de modo a constituir um
A alteridade homem/máquina está então inextricavel- rizoma diagramático que tende a cobrir globalmente a me-
mente ligada a uma alteridade máquina/máquina que ocorre canosfera. As relações das máquinas tecnológicas entre si e
em relações de complementaridade ou relações agônicas (entre os ajustes de suas peças respectivas pressupõem uma se-
máquinas de guerra) ou ainda em relações de peças ou de rialização formal e uma certa diminuição de sua singulari-
dispositivos. De fato, o desgaste, o acidente, a morte e a res- dade - mais forte do que a das máquinas vivas - cor-
surreição de uma máquina em um novo "exemplar" ou em relativas a uma distância tomada entre a máquina manifes-
um novo modelo fazem parte de seu destino e podem passar tada nas coordenadas energético-espácio-temporais e a má-
ao primeiro plano de sua essência em certas máquinas estéti- quina diagramática que se desenvolve em coordenadas mais
cas (as "compressões" de César, as "metamecânicas", as má- numerosas e mais desterritorializadas.
quinas happening, as máquinas delirantes de Jean Tinguely). Essa distância desterritorializante e essa perda de sin-
A reprodutibilidade da máquina não é então uma pura gularidade devem ser relacionadas a um alisamento comple-
repetição programada. Suas escansões de ruptura e de indi- to das matérias constitutivas da máquina técnica. Certamen-
ferenciação, que separam um modelo de qualquer suporte, te as asperezas singulares próprias a essas matérias não po-
introduzem sua parte de diferenças tanto ontogenéticas quan- dem nunca ser completamente abolidas, mas elas só devem
to filogenéticas. É durante essas fases de passagem ao esta- interferir no "jogo" da máquina se aí forem requisitadas por
do de diagrama, de máquina abstrata desencarnada, que os seu funcionamento diagramático. Examinemos, a partir de
"suplementos de alma" do núcleo maquínico têm sua dife- um dispositivo maquínico aparentemente simples- o par
rença atestada em relação a simples aglomerados materiais. formado por uma fechadura e sua chave - , esses dois as-
Um amontoado de pedras não é uma máquin;l, ao passo que pectos de desvio maquínico e de alisamento. Dois tipos de
uma parede já é uma protomáquina estática, nwnifestando forma, com texturas ontológicas heterogêneas, se encontram
polaridades virtuais, um dentro e um fora, um alto e um bai- aqui colocados em funcionamento:
xo, uma direita e uma esquerda ... -formas materializadas, contingentes, concretas, dis-
Caosmose lleterogênese 55
eretas, cuja singularidade está encerrada nela mesma, encar- fenômeno de desvio padrão, pondo em jogo uma consistên-
nadas respectivamente no perfil pf da fechadura e no perfil cia diagramática teórica. Uma chave de chumbo ou de ouro
F da chave. pf e F nunca coincidem totalmente. Elas evo- correria o risco de se entortar dentro de uma fechadura de
luem ao longo do tempo devido ao desgaste e à oxidação. aço. Uma chave levada ao estado líquido ou ao estado ga-
Mas ambas são obrigadas a permanecer no quadro de um soso perde logo sua eficiência pragmática e sai do campo da
desvio padrão, para além do qual a chave deixaria de ser máquina técnica.
operacional; Esse fenômeno de fronteira formal será encontrado em
-formas "formais", diagramáticas, subsumidas por todos os níveis das relações intramáquinas e das relações
esse desvio padrão, que se apresentam como um continuum intermáquinas, particularmente com a existência de peças
incluindo toda a gama dos perfis F, pf compatíveis com o sobressalentes. Os componentes da máquina técnica são as-
acionar efetivo da fechadura. sim como as peças de uma moeda formal, o que é revelado
Logo se constata que o efeito, a passagem ao ato pos- de modo ainda mais evidente desde sua concepção e sua con-
sível, deve ser inteiramente assinalado do lado do segundo fecção auxiliadas por computador.
tipo de forma. Embora se escalonando em um desvio padrão Essas formas maquínicas, esses alisamentos de matéria,
o mais restrito possível, essas formas diagramáticas se apre- de desvio padrão entre as peças, de ajustes funcionais, ten-
sentam em número infinito. De fato, trata-se de uma inte- deriam a fazer pensar que a forma prima sobre a consistên-
gral das formas F, pf_ cia e sobre as singularidades materiais, parecendo a repro-
Essa forma integral infinitária duplica e alisa as formas dutibilidade da máquina tecnológica impor que cada um de
contingentes pf e pc, que só valem maquinicamente na me- seus elementos se insira em uma definição preestabelecida
dida em que elas lhes pertençam. Um ponto é assim estabe- de ordem diagramática.
lecido "por cima" das formas concretas autorizadas. É essa Charles Sanders Pierce, que qualificava o diagrama de
operação que qualifico de alisamento desterritorializado e "ícone de relação" e que o assimilava à função dos algorit-
que concerne tanto à normalização das matérias constituti- mos, dele nos propôs uma visão ampliada que convém ain-
vas da máquina quanto à sua qualificação "digital" e fun- da, na presente perspectiva, transformar. O diagrama, com
cional. Um minério de ferro que não houvesse sido suficien- efeito, é concebido aí como uma máquina autopoiética, o
temente laminado, desterritorializado, apresentaria rugosi- que não apenas lhe confere uma consistência funcional e
dades de trituração dos minerais de origem que falseariam uma consistência material mas lhe impõe também o desdo-
os perfis ideais da chave e da fechadura. O alisamento do bramento de seus diversos registros de alteridade, que o
material deve retirar-lhe os aspectos de singularidade exces- fazem escapar a uma identidade restrita a simples relações
sivos e fazer com que ele se comporte de forma a moldar fiel- estruturais.
mente as impressões formais que lhe são extrínsecas. Acres- A prato-subjetividade da máquina se instaura em uni·
centemos que essa modelagem, nisso compar;Ívcl à fotogra- versos de virtualidade que ultrapassam sua territoria Iilhdt·
fia, não deve ser evanescente demais, e dcvl· conservar uma existencial em todos os sentidos. Assim, recusanw 11o.s :1
consistência própria suficiente. Aí tambélll st· encontra um postular uma subjetividade intrínseca à semiot·iz:t<..::to di:tgr;t
Caosmose Heterogênese 57
mática, por exemplo, uma subjetividade "aninhada" nas ca- ganizam por constelações de universos de referência incor-
deias significantes em razão do célebre princípio lacaniano: porais de combinatórias e de criatividade ilimitadas.
"um significante representa o sujeito para um outro signi- As sociedades arcaicas estão melhor armadas do que
ficante". Não existe, para os diversos registros de máqui- as subjetividades brancas, masculinas, capitalísticas, para
na, uma subjetividade unívoca à base de cisão, de falta e de cartografar essa multivalência da alteridade. Remeto, a esse
sutura, mas modos ontologicamente heterogêneos de sub- respeito, ao estudo de Marc Augé sobre os registros hete-
jetividade, constelações de universos de referência incorpo- rogêneos com os quais se relaciona o objeto fetiche legba
rais que assumem uma posição de enunciadores parciais em na sociedade africana dos Fon. O legba se instaura trans-
domínios de alteridade múltiplos, que seriam melhor deno- versalmente em:
minados domínios de alterificação. - uma dimensão de destino;
Já encontramos alguns desses registros de alteridade - um universo de princípio vital;
maquínica: - uma filiação ancestral;
- a alteridade de proximidade entre máquinas diferen- - um deus materializado;
tes e entre peças da mesma máquina; - um signo de apropriação;
- a alteridade de consistência material interna; - uma entidade de individuação;
- a alteridade de consistência formal diagramática; -um fetiche na entrada da aldeia, um outro no pórti-
- a alteridade de phylum evolutivo; co da casa, após a iniciação na entrada do quarto ...
- a alteridade agônica entre máquinas de guerra, em O legba é um punhado de areia, um receptáculo, mas
cujo prolongamento poder-se-ia associar a alteridade "auto- é também a expressão da relação com outrem. Encontramo-
agônica" das máquinas desejantes que tendem a seu próprio lo na porta, no mercado, na praça da aldeia, nas encr~
colapso, sua própria abolição. zilhadas. Pode transmitir as mensagens, as perguntas, as res-
Uma outra forma de alteridade só foi abordada muito postas. É também o instrumento da relação com os mortos
indiretamente; poder-se-ia chamá-la de alteridade de esca- ou com os ancestrais. É ao mesmo tempo um indivíduo e
la, ou alteridade fractal, que estabelece um jogo de corres- uma classe de indivíduos, um nome próprio e um nome co-
pondência sistêmica entre máquinas de diferentes níveis 17 . mum. "Sua existência corresponde à evidência do fato de
Entretanto, não estamos preparando um quadro uni- que o social não é somente da ordem da relação mas da
versal das formas de alteridade maquínicas pois, na verda- ordem do ser". Marc Augé 1 8 enfatiza a impossível trans-
de, suas modalidades ontológicas são infinitas. Elas se or- parência e traduzibilidade dos sistemas simbólicos. "O dis-
positivo legba (... ) se constrói segundo dois eixos. Um, vis-
17 Leibniz, em sua preocupação de tornar hoiiHlgt~ncos o infini- to do exterior ao interior; o outro, da identidade à alteri-
tamente grande e o infinitamente pequeno, csti111a tJIIt' ;1 lll;Íquina viva, dade". Assim o ser, a identidade e a relação com o outro são
que ele assimila a uma máquina divina, continLJ;l ;1 sn IILÍtJliÍna em suas
menores partes, até o infinito (o que não seria o c1so <Li 111áquina feita
18
pela arte do homem). Cf. G.W. Leibniz, La nioll<idulu.~ic, Delagrave, M. Augé, "Le fétiche et son objet", in L'objet en psychanalysc.
Paris, 1962, § 64, pp. 178-9. (Apresentação de Maud Mannoni), Denoel, Paris, 1986.
58 Caosmose Heterogênese 59
construídos, através da prática fetichista, não apenas de vela o real como "fundo", é essencialmente operada pelo
modo simbólico mas também de modo ontológico aberto. homem e se traduz em termos de operação universal, des-
Ainda mais do que a subjetividade das sociedades ar- locar-se, voar. .. Mas esse "fundo" da máquina reside ver-
caicas, os Agenciamentos maquínicos contemporâneos não dadeiramente em um "já aí", sob a espécie de verdades eter-
têm referente padrão unívoco. Todavia estamos muito me- nas, reveladas ao ser do homem? De fato, a máquina fala
nos habituados à irredutível heterogeneidade- e mesmo ao com a máquina antes de falar com o homem e os domínios
caráter de heterogênese- de seus componentes referenciais. ontológicos que ela revela e secreta são, em cada caso, sin-
O Capital, a Energia, a Informação, o Significante são al- gulares e precários.
gumas das categorias que nos fazem acreditar na homoge- Retomemos esse exemplo de um avião comercial, des-
neidade ontológica dos referentes biológicos, etológicos, eco- sa vez não mais de forma genérica, mas através do modelo
nômicos, fonológicos, escriturais, musicais etc ... tecnologicamente datado que foi batizado "o Concorde". A
No contexto de uma modernidade reducionista, cabe- consistência ontológica desse objeto é essencialmente com-
nos redescobrir que a cada promoção de um cruzamento pósita; ela está no cruzamento, no ponto de constelação e
maquínico corresponde uma constelação específica de Uni- de aglomeração pática de universos que têm, cada um, sua
versos de referência a partir da qual uma enunciação par- própria consistência ontológica, seus traços de intensidade,
cial não-humana se institui. As máquinas biológicas promo- suas ordenadas e coordenadas próprias, seus maquinismos
vem os universos do vivo que se diferenciam em devires ve- específicos. Concorde concerne ao mesmo tempo a:
getais, devires animais. As máquinas musicais se instauram - um universo diagramático com os planos de sua
sobre universos sonoros constantemente remanejados des- "exeqüibilidade" teórica;
de a grande mutação polifônica. As máquinas técnicas se ins- -universos tecnológicos que transpõem essa "exeqüi-
tituem no cruzamento dos componentes enunciativos os bilidade" em termos de materiais;
mais complexos e os mais heterogêneos. -universos industriais capazes de produzi-lo efetiva-
Heidegger 19 , que fazia do mundo da técnica um tipo de mente;
destino maléfico resultante de um movimento de distancia- - universos imaginários coletivos correspondendo a
mento do ser, tomava o exemplo de um avião comercial pou- um desejo suficiente de fazer com que ele exista;
sado em uma pista: o objeto visível esconde "o que ele é e a -universos políticos e econômicos que permitem, en-
forma pela qual ele é". Ele só desvela seu "fundo à medida tre outros, liberar os créditos para sua execução.
que é designado para assegurar a possibilidade de um trans- Mas o conjunto dessas causas finais, materiais, formais
porte" e, para esse fim, "é preciso que ele seja designável, e eficientes, no final das contas, não dá conta do recado! O
quer dizer pronto para voar e que ele o seja em toda sua objeto Concorde circula efetivamente entre Paris e Nova
construção". Essa interpelação, essa "designação", quere- Iorque, mas permanece colado ao solo econômico. Essa falta
de consistência de um de seus componentes fragilizou deci-
19 M. Heidegger, Essais et Conférences, Gallimard, Paris, I LJHX, pp. sivamente sua consistência ontológica global. O Concorde
9-48. só existe no limite de uma reprodutibilidade de doze exem-
Caosmose I kterogênese 61
piares e na raiz do phylum possibilista dos supersônicos por seu estágio atual, pois esse estado de coisas não é absoluta-
vir. O que já não é negligenciável! mente definitivo);
Por que insistimos tanto na impossibilidade de fundar - a sobrelinearidade de substâncias de expressão a -sig-
uma traduzibilidade geral dos diversos componentes de re- nificantes, onde o significante perde seu despotismo, poden-
ferência e de enunciação parcial de agenciamento? Por que do as linhas informacionais recuperar um determinado pa-
essa falta de reverência acerca da concepção lacaniana do ralelismo e trabalhar em contato direto com universos refe-
significante? É que precisamente essa teorização oriunda do rentes que não são absolutamente lineares e que tendem a es-
estruturalismo lingüístico não nos faz sair da estrutura e nos capar, além disso, a uma lógica de conjuntos espacializados.
impede de entrar no mundo real da máquina. O significan- Os signos das máquinas semióticas a-significantes são,
te estruturalista é sempre sinônimo de discursividade linear. por um lado, "pontos-signos", de ordem semiótica; por outro
De um símbolo a outro, o efeito subjetivo advém sem outra lado, intervêm diretamente em uma série de processos ma-
garantia ontológica. Contrariamente, as máquinas hetero- quínicos materiais. (Exemplo: o número do cartão de crédi-
gêneas, tais como as considera nossa perspectiva esquizoa- to que opera o funcionamento do distribuidor de notas).
nalítica, não fornecem um ser padrão, ao sabor de uma tem- As figuras semióticas a-significantes não secretam ape-
poralização universal. Para esclarecer esse ponto, dever-se- nas significações. Elas proferem ordens de movimento e pa-
ão estabelecer distinções entre as diferentes formas de linea- rada e, sobretudo, acionam a "passagem ao ser" de univer-
ridade semiológica, semiótica e de encodização: sos ontológicos. Consideremos, agora, o exemplo do ritor-
-as codificações do mundo "natural", que operam em nelo musical pentatônico que, ao fim de algumas notas, ca-
várias dimensões espaciais (por exemplo, as da cristalogra- talisa a constelação debussiana de múltiplos universos:
fia) e que não implicam a extração de operadores de codifi- - o universo wagneriano em torno de Parsifal, que se
cação autonomizados; liga ao território existencial constituído por Bayreuth;
- a linearidade relativa das codificações biológicas, por - o universo do canto gregoriano;
exemplo a dupla hélice do DNA, que, a partir de quatro ra- - o da música francesa com a revalorização atual de
dicais químicos de base, se desenvolve igualmente em três Rameau e Couperin;
dimensões; - o de Chopin em razão de uma transposição nacio-
- a linearidade das semiologias pré-significantes que nalista (Ravel tendo por sua vez se apropriado de Liszt);
se desenvolve em linhas paralelas relativamente autônomas, - a música javanesa, que Debussy descobriu na Expo-
mesmo se as cadeias fonológicas da língua falada parecem sição Universal de 1889;
sempre sobrecodificar todas as outras; - o mundo de Manet e de Mallarmé que se liga à es-
- a linearidade semiológica do significante estrutural tada do músico na Vila Médicis.
que se impõe de modo despótico a todos os outros modos E a essas influências presentes e passadas conviria acres-
de semiotização, que os expropria e tende mesmo a fazê-los centar as ressonâncias prospectivas que constituem a rein-
desaparecer no quadro de uma economia comunicacional venção da polifonia desde a Ars Nova, suas repercussões no
dominada pela informática (precisemos: a informática em phylum musical francês de Ravel, Duparc, Messiacn etc., na
Caosmose 1-leterogênese 63
mutação sonora acionada por Stravinsky, sua presença na poiéticas. Convém que um foco de pertencimento a si exis-
obra de Proust... ta em alguma parte para que qualquer ente ou qualquer mo-
Vê-se bem assim que não existe nenhuma correspon- dalidade de ser possa vir à existência cognitiva. Fora desse
dência bi-unívoca entre elos lineares significantes ou de acoplamento máquina-universo, os entes só têm um puro es-
arquiescritura, segundo os autores, e essa catálise maquínica, tatuto de entidade virtual. E acontece o mesmo com as suas
multidimensional, multirreferencial. A simetria de escala, a coordenadas enunciativas.
transversalidade, o caráter pático não-discursivo de sua ex- A biosfera e a mecanosfera, fixadas sobre este plane-
pansão: todas essas dimensões nos fazem sair da lógica do ta, focalizam um ponto de vista de espaço, de tempo e de
terceiro excluído e nos incentivam a renunciar ao binarismo energia. Formam um ângulo de constituição da nossa galá-
ontológico que havíamos anteriormente denunciado. Um xia. Fora desse ponto de vista particularizado, o resto do uni-
Agenciamento maquínico, através de seus diversos compo- verso só existe- no sentido em que apreendemos aqui em-
nentes, extrai sua consistência ultrapassando fronteiras on- baixo a existência - através da virtualidade da existência
tológicas, fronteiras de irrevérsibilidade não-lineares, fron- de outras máquinas autopoiéticas no seio de outras bio-
teiras ontogenéticas e filogenéticas, fronteiras de heterogê- mecanosferas salpicadas no cosmos. A relatividade dos pon-
nese e de autopoiese criativas. tos de vista de espaço, de tempo, de energia nem por isso
É a noção de escala que conviria aqui ampliar, a fim faz com que o real se dissipe no sonho. A categoria de tem-
de pensar as simetrias fractais em termos ontológicos. O que po se dissolve nas considerações cosmológicas sobre o Big-
atravessa as máquinas fractais são escalas substanciais. Elas Bang, ao passo que se afirma a de irreversibilidade. A obje-
as atravessam, engendrando-as. Mas- é preciso admiti-lo tividade residual é aquilo que resiste à varredura da infini-
-essas ordenadas existenciais que elas "inventam" já exis- ta variabilidade dos pontos de vista constituíveis sobre ela.
tiam desde sempre. Como sustentar um tal paradoxo? É que Imaginemos uma entidade autopoiética cujas partículas
tudo se torna possível, incluindo o alisamento recessivo do seriam edificadas a partir das galáxias. Ou, inversamente,
tempo evocado por Renê Thon, desde que se admita uma uma cognitividade se constituindo na escala dos quarks. Ou-
escapada do Agenciamento para fora das coordenadas ener- tro panorama, outra consistência ontológica. A mecanosfera
gético-espácio-temporais. E ainda aí cabe-nos redescobrir antecipa e atualiza configurações que existem dentre uma
uma forma de ser do ser, antes, depois, aqui e em toda par- infinidade de outras nos campos de virtualidade. As máqui-
te, sem ser entretanto idêntico a si mesmo; um ser proces- nas existenciais estão em pé de igualdade com o ser na sua
sual, polifônico, singularizável, de texturas infinitamente multiplicidade intrínseca. Elas não são mediatizadas por sig-
complexificáveis, ao sabor das velocidades infinitas que ani- nificantes transcendentes nem subsumidas por um fundamen-
mam suas composições virtuais. to ontológico unívoco. São para si mesmo sua própria ma-
A relatividade ontológica aqui preconizada é insepará- téria de expressão semiótica. A existência, enquanto processo
vel de uma relatividade enunciativa. O conhecimento de um de desterritorialização, é uma operação intermaquínica espe-
universo- no sentido astrofísico ou no sentido axiológico cífica que se superpõe à promoção de intensidades existen-
- só é possível através da mediação de m<lquinas auto- ciais singularizadas. E, repito, não existe sintaxe gencralir.ad;J
64 Caosmose Heterogênese 65
dessas desterritorializações. A existência não é dialética, não páticos e cartográficos de aceder a eles. As manifestações,
é representável. Mal se consegue vivê-la! não do Ser, mas de uma infinidade de componentes ontoló-
As máquinas desejantes, que rompem com os grandes gicos, são da ordem da máquina. E isso, sem mediação se-
equilíbrios orgânicos interpessoais e sociais e invertem os miológica, sem codificação transcendente, diretamente como
comandos, jogam o jogo do outro contrariamente a uma po- "dar-a-ser", como Dando. Aceder a um tal dar já é partici-
lítica de autocentramento no eu. Por exemplo, as pulsões par dele ontologicamente de pleno direito. Esse termo "de
parciais e os investimentos perversos polimorfos da psica- direito" não aparece aqui por acaso, tanto é verdade que,
nálise não constituem uma raça excepcional e desviante de nesse nível prato-ontológico, já é necessário afirmar uma
máquinas. dimensão proto-ética. O jogo de intensidade da constelação
Todos os Agenciamentos maquínicos contêm, mesmo ontológica é de alguma forma uma escolha de ser não ape-
em estado embrionário, focos enunciativos que são prato- nas para si, mas para toda a alteridade do cosmos e para o
máquinas desejantes. Para delimitar esse ponto, é preciso infinito dos tempos.
ampliar ainda nossa ponte transmaquínica e compreender Se deve haver escolha e liberdade em certas etapas an-
o alisamento da textura ontológica do material maquínico tropológicas "superiores", é porque deveremos também en-
e os feedbacks diagramáticos como dimensões de intensifi- contrá-las nos níveis mais elementares das concatenações
cação que nos fazem ultrapassar as causalidades lineares da maquínicas. Mas as noções de elementos e de complexida-
apreensão capitalística dos universos maquínicos. É preci- de são suscetíveis aqui de se inverterem brutalmente. O mais
so igualmente que saiamos das lógicas fundadas no princí- diferenciado e o mais indiferenciado coexistem no seio de um
pio do terceiro excluído e de razão suficiente. Através des- mesmo caos que, com velocidade infinita, joga seus registros
se alisamento está em jogo um ser para além, um ser-para- virtuais uns contra os outros e uns com os outros. O mun-
o-outro, que faz com que um existente tome consistência do maquínico-técnico, em cujo "terminal" se constitui a
fora da sua delimitação estrita, aqui e agora. humanidade de hoje, é barricado por horizontes de constân-
A máquina é sempre sinônimo de um foco constituti- cia e de limitação das velocidades infinitas do caos. (Veloci-
vo de território existencial baseado em uma constelação de dade da luz, horizonte cosmológico do Big-Bang, distância
universos de referência incorporais. O "mecanismo" dessa de Planck e quantum elementar de ação da física quântica,
revirada de ser consiste no fato de que certos segmentos dis- impossibilidade de ultrapassar o zero absoluto ... ) Mas esse
cursivos da máquina se põem a jogar um jogo não mais mesmo mundo de coação semiótica é duplicado, triplicado,
apenas funcional ou significacional, mas assumem uma fun- infinitizado por outros mundos que, em certas condições, só
ção existencializante de pura repetição intensiva, a que de- exigem a bifurcação para fora de seu universo de virtuali-
nominei função de ritornelo. O alisamento é como um ri- dade e o engendramento de novos campos de possível.
torneio ontológico e assim, ao invés de apreender uma ver- As máquinas de desejo, as máquinas de criação estéti-
dade unívoca do Ser através da techne, como queria a on- ca, pela mesma razão que as máquinas científicas, remam~
tologia heideggeriana, é uma pluralidade de seres como má- jam constantemente nossas fronteiras cósmicas. Por essa ra-
quinas que se dão a nós, desde que se adquiram os meios zão, elas devem tomar um lugar eminente no interior dos
66 Caosmose Heterogênese 67
Agenciamentos de subjetivação, eles mesmos chamados a Entretanto, essas constelações de Universos de valor
substituir nossas velhas máquinas sociais, incapazes de se- não constituem Universais. O fato de se formar em Territó-
guir a eflorescência de revoluções maquínicas que fazem ex- rios existenciais singulares lhes confere, com efeito, uma po-
plodir nosso tempo por todos os lados. tência de heterogênese, quer dizer, de abertura para proces-
Mais do que adotar uma atitude de frieza em relação à sos irreversíveis de diferenciação necessários e singularizan-
imensa revolução maquínica que varre o planeta (com o ris- tes. Como essa heterogênese maquínica - que diferencia
co de acabar com ele) ou de aferrar-se aos sistemas deva- cada cor de ser, que faz, por exemplo, do plano de consis-
lor tradicionais cuja transcendência pretender-se-á refundar, tência do conceito filosófico um mundo completamente di-
o movimento do progresso, ou se preferirmos, o movimen- ferente do plano de referência da função científica ou do
to do processo, se esforçará para reconciliar os valores e as plano de composição estética- chega a ser rebatida sobre
máquinas. Os valores são imanentes às máquinas. A vida dos a homogênese capitalística do equivaler generalizado, fazen-
Fluxos maquínicos não se manifesta somente através das re- do com que todos os valores sejam equivalentes, todos os
troações cibernéticas; é também correlativa a uma promo- Territórios apropriativos sejam referidos segundo uma mes-
ção de Universos incorporais a partir de uma encarnação ma escala econômica de poder, e que todas as riquezas exis-
Territorial enunciativa, de uma tomada de ser valorizadora. tenciais caiam sob o jugo do valor de troca?
A autopoiese maquínica se afirma como um para-si À oposição estéril entre valor de uso e valor de troca,
não-humano através de focos de proto-subjetivação parcial convém opor uma compleição axiológica incluindo todas
e desdobra um para-outrem sob a dupla modalidade de uma as modalidades maquínicas de valorização: os valores de
alteridade ecossistêmica "horizontal" (os sistemas maquí- desejo, os valores estéticos, ecológicos, econômicos ... O
nicos se posicionando como rizoma de dependência recípro- valor capitalístico, que subsume geralmente o conjunto des-
ca) e de uma alteridade filogenética (situando cada estase sas mais-valias maquínicas, procede por um poder de coa-
maquínica atual de encontro a uma filiação passadificada e ção reterritorializante, fundado no primado das semióticas
de um Phylum de mutações por vir). Todos os sistemas de econômicas e monetárias e corresponde a um tipo de im-
valor - religiosos, estéticos, científicos, ecosóficos ... - se plosão geral de todas as Territorialidades existenciais. De
instauram nessa interface maquínica entre o atual necessá- fato, o valor capitalístico não está à parte, fora dos outros
rio e o virtual possibilista. Os Universos de valor constituem sistemas de valorização; ele constitui o coração mortífero
assim os enunciadores incorporais de compleições maquí- de tais sistemas, correspondendo à transposição do inefá-
nicas abstratas compossíveis às realidades discursivas. A vel limite entre uma desterritorialização caósmica contro-
consistência desses focos de proto-subjetivação, portanto, lada - sob a égide de práticas sociais, estéticas, analíticas
só é assegurada na medida em que eles se encarnem, com - e uma oscilação vertiginosa no buraco negro do aleató-
mais ou menos intensidade, em nós de finitudc, de grasping rio, a saber de uma referência paroxisticamente binarist;l,
caósmico, que garantam, além disso, sua t-ccl rga possível de que dissolve implacavelmente qualquer tomada de consis
complexidade processual. Dupla enuncia<.,-:"1o, então, terri- tência dos Universos de valor que pretendessem l'Sl';t p;t r .1
torializada finita e incorporai infinita. lei capitalística.
Caosmose 1-Ieterogênese 11
1
)
Então, apenas abusivamente é que foi possível colocar 3. METAMODELIZAÇÃO ESQUIZOANALÍTICA
as determinações econômicas em posição princept acerca das
relações sociais e das produções de subjetividade. A lei eco-
nômica, assim como a lei jurídica, deve ser deduzida do con- Em um momento crítico de questionamento da psica-
junto dos Universos de valor, para cujo enfraquecimento ela nálise tradicional, mas também das práticas sociais tradicio-
não cessa de trabalhar. Sua reconstrução, sobre os escom- nais, trata-se de destacar os componentes de semiotização
bros misturados das economias planificadas e do neo-libe- e de subjetivação das concepções que os fundam sobre uni-
ralismo e segundo novas finalidades ético-políticas (eco- versais, maternas, concepções infra-estruturais ...
sofia), exige, em contrapartida, uma incansável retomada de Já vimos que uma tal abordagem é correlativa a uma
consistência dos Agenciamentos maquínicos de valorização. concepção ampliada do maquinismo. A máquina será do-
ravante concebida em oposição à estrutura, sendo esta as-
sociada a um sentimento de eternidade, ao passo que a má-
quina implica uma relação de emergência, de finitude, de
destruição e de morte que a associa a phylum possibilistas
criadores. Das máquinas técnicas às máquinas sociais e às
máquinas desejantes, uma mesma categoria de máquina abs-
trata autopoiética engendra as objetidades-sujeitidades de
um tempo que se instaura no cruzamento de componentes
engajados em processos de heterogênese.
Por detrás da diversidade dos entes, nenhum suporte on-
tológico unívoco é dado. O ser, por mais longe que se bus-
que sua essência, resulta de sistemas de modelização operando
tanto ao nível da alma quanto do socius ou do cosmos. Mas
os Universos de referência que presidem a essa produção on-
tológica não têm fixidez, não mantêm uma relação harmô-
nica, como as idéias platônicas. Eles se cristalizam em cons-
telações singularizantes e em cruzamentos maquínicos que
conferem à história humana suas características de irrever-
sibilidade e de criacionismo. Para preparar assim uma pas-
sagem intensiva do domínio de virtualidades desses Univer-
sos ao domínio de atualidade dos Phylum maquínicos, em
seguida à sua encarnação nos domínios de realidade dos flu-
xos e dos territórios existenciais, seremos levados a postular
a existência de um caos povoado de entidades anim;Hias com
li Caosmose
llcterogênese 71
velocidade infinita, a partir do qual se constituem as compo- dade fonológica, gestual, espacial, musical etc., que dá um
sições complexas, as quais são elas mesmas suscetíveis de ter suporte à constituição de um Território existencial, mas so-
suas velocidades reduzidas em coordenadas energético-espá- mos igualmente confrontados com consistências de conteú-
cio-temporais ou em sistemas categoriais. do não-discursivas, as quais são referidas a essas mesmas
A problemática anteriormente evocada da função exis- semiologias discursivas.
tencializante que poderiam assumir certos sistemas de mo- A perspectiva estruturalista sempre teve tendência a re-
delização, certas cadeias discursivas (enunciados míticos, bater os conteúdos dos elementos significativos sobre os ele-
enunciados científicos, enunciados ideológicos, ritornelos, mentos estruturais, quer dizer, sobre cadeias de discursivida-
traços de rostidade) desviadas, de algum modo, de sua fun- de. O que proponho aqui é um afastamento dessas coorde-
ção significacional, denotacional e proposicional, nos leva nadas de discursividade a fim de tirar todas as conseqüências
a um reexame dos problemas do significado ou do Conteú- dos modos de apreensão páticos não-discursivos que pude-
do, da imagem, tudo o que havia sido relativamente colo- ram ser demarcados pelos psicólogos da forma, pelos feno-
cado entre parênteses na perspectiva estruturalista. menólogos do afeto, pelos psicanalistas da imagem ...
Essa função existencial que pode se encarnar segundo A problemática que se acha então levantada é a de uma
ritornelos muito concretos, como o fato de roer as unhas ou mudança de tipo de relação lógica. O ritornelo existencial
o ritual obsessivo de lavar as mãos, constitui uma chave exis- desencadeia um efeito não-discursivo, uma apreensão on-
tencial para conjurar a dispersão dos Universos de referên- tológica que não depende mais de uma lógica onde os con-
cia do sujeito. Um ritornelo territorializado funciona como juntos são qualificados de modo unívoco. A entidade inten-
um canto de pássaro, no domínio etológico, que concorre siva é multívoca, diferentemente dos conjuntos discursivos
para a delimitação de um território. A única diferença é que coletados, de modo que se possa sempre saber, sem ambi-
o território, aqui, não é visível, não é espacializado, mas é güidade, se um de seus elementos bem-determinados faz
da ordem do eu. parte dela ou não. Existe, ao contrário, um tipo de "trans-
Existem igualmente ritornelos complexos, ritornelos versalismo" da intensidade, caracterizado por sua afirma-
problemáticos que não se encarnariam necessariamente em ção em diferentes escalas e um "autopoietismo" que fazem
uma discursividade articulada no espaço e no tempo. Uma com que a entidade maquínica escape à lógica em que os
problemática religiosa como a da Trindade constitui um ri- conjuntos discursivos permanecem sempre enquadrados em
torneio complexo que pode se indexar pelo signo da cruz, coordenadas transcendentes.
mas que é também portador de toda uma concepção da sub- Voltemos ao tratamento da discursividade na concep-
jetividade, de toda uma triangulação personológica. Domes- ção lacaniana do Significante. O Significante lacaniano não
mo modo, os conceitos e os fantasmas relativos à luta de é assimilado pura e simplesmente à linearidade significante
classes funcionaram ao mesmo tempo em um campo de sig- de tipo saussureana. Mas, quanto a isso, Lacan mantém fun-
nificações ideológicas e a título de constelação de Univer- damentalmente uma leitura onde um topos remete a tllll ou-
sos de referência e de Territórios existenci;lis. tro topos, a uma alteridade de topos. Perdc--sl' ('lll:to l'ssc
Temos então que lidar não somente com a discursivi- caráter de passagem transversalista entre os topos, dl' aglo-
72 Caosmose Heterogênese 73
meração entre os topos, que caracteriza a entidade intensi- O esfacelamento da relação oposicional entre o Con-
va. O exemplo mais simples que nos vem à mente é relativo teúdo e a Expressão corresponde, então, a uma reabilitação
à releitura por Lacan da relação fort-da, do jogo infantil es- do Conteúdo em relação às figuras de Expressão binaristas
tudado por Freud. O fort-da é articulado como matriz de de tipo fonológico. Os Universos de referência e os Territó-
uma relação simbólica S1/S2, entre dois significantes20 . Ora, rios existenciais se enunciam sem mediação. Na lógica dos
o que importa, em uma outra perspectiva imanentista, é não conjuntos, havia distinção entre a mediação por uma subs-
considerar o início e o fim desse vetor, mas tomá-lo pelo tância de Expressão e uma substância de Conteúdo. O lin-
meio, como função de repetição, de insistência ontológica 21 . güista que mais aprofundou o questionamento dessa oposi-
A ênfase se transfere então de uma relação de discursivi- ção Significante/Significado foi Hjelmslev, ao formular opa-
dade, que implica uma espacialização linear, o desdobramen- radoxo de uma reversibilidade entre a forma de Expressão
to de uma temporalização "enquadrada", em direção a uma e a forma de Conteúdo. O que proponho aqui não é mais
intensificação existencial, a afirmação da passagem de um uma simples reversibilidade de forma como a de Hjelmslev,
tempo a um outro, de um topos a um outro. A atividade de mas proponho ir além, considerando que as substâncias de
coleta ontológica é distinta dos objetos coletados, a subjetivi- Expressão e as substâncias de Conteúdo entram em relações
dade coletante é, ao menos em aparência, expulsa da discur- de aglomeração, em um tipo de concatenação que é bem di-
sividade cognitiva. De fato, esta permanece onipresente. Ela ferente do que o da dupla articulação, definida por Martinet
não cessa de ejetar traços de intensidade, de multivalência e e retomada por diversos lingüistas. Poder-se-ia então falar
de singularidade. Ela é garante do fechamento do Agencia- de uma múltipla aglomeração, de um agenciamento hetero-
mento sobre ele mesmo no seio de um campo de subjetividade gêneo, sendo o termo articulação questionado através do ter-
capitalística, subjetividade da equivalência generalizada e do mo interface maquínica.
desdobramento de coordenadas extrínsecas. (Oponho aqui Aglomeração de componentes heterogêneos de Ex-
a idéia de coordenada discursiva à de ordenada intensiva.) pressão e de Conteúdo: o que atravessa os diferentes com-
Com a lógica das intensidades, não existe mais posição ponentes semióticos não é mais uma articulação formal,
transcendente da instância enunciativa nem fechamento de mas máquinas abstratas que se manifestam ontologicamen-
conjunto de coleção de objetos, mas aglomeração, fusão de te em registros heterogêneos e não-discursivos. A questão
entidades intensivas, dispostas em traço de intensidade. E que é colocada através dessa concepção polifônica dos
isso à medida que se desdobra o processo enunciativo. componentes, tanto de Expressão quanto de Conteúdo, ou
dos ritornelos de Expressão e dos ritornelos complexos de
20 Cf. S. Freud, Au delà du principe du plaisir e J. Lacan, Écrits, Le Conteúdo, é que na verdade eles não estão todos no mes-
Seuil, Paris, 1966, pp. 276 e 319. mo grau de "tomada pragmática" no registro dos sistemas
21 Mikel Borch-Jacobsen, em Lacan, le maitre absolu (Flammarion, de valor. Por exemplo, na semiótica a-significante, são fi-
Paris, 1990), mostra bem o caráter de espacialidade cristalizada, de visi- guras de Expressão que se concatenam diretamente com o
bilidade exterior ao olho, de espaçamento do "diante de si", na maneira referente, e "tomam o poder" sobre o conjunto dos outros
pela qual Lacan descreve a subjetividade (pp. (, 1-') l ). componentes semióticos; ao passo que, na semiologia lin-
Caosmose 75
Heterogênese
güística, são, ao contrário, redundâncias de conteúdo que globa as problemáticas não apenas da Expressão e do Con-
vão reenquadrar o conjunto dos componentes de expres- teúdo, mas também as das estruturas sociais, estéticas,
são, quer sejam fonológicos, gestuais, prosódicos ... Há en- científicas etc ... Para além desses aspectos de discursividade
tão um tipo de hierarquia interna, ou antes de tensão va- maquínica, convém igualmente evocar o outro funtor da
lorizante, entre os componentes. Será importante, para uma enunciação que os Universos de referência constituem. Eles
pragmática esquizoanalítica, determinar que tipo de com- se organizam em constelações singulares, cristalizando um
ponente se afirma sobre os outros. Que tipo de componen- acontecimento, uma hecceidade, que será o suporte onto-
te, por exemplo, no Agenciamento capitalístico, domina de lógico da discursividade maquínica.
modo hegemônico. Por que, por exemplo, uma máquina se- Um Universo de referência é um enunciador que pode
miótica de Capital se imporá aos outros componentes de ser descrito como uma potência divina, como uma idéia pla-
Expressão - arquiteturais, urbanísticos, demográficos, ar- tônica, pelo fato de pôr em jogo um sistema de valorização.
tísticos, pedagógicos, etc. Ou por que, na histeria, um com- Com ele há polarização da subjetividade, polarização ma-
l
ponente semântico como o da corporeidade expropria os quínica, cristalização de uma opção pragmática. A textura :[
l
outros componentes, por que haverá "somatização". Essa de um tal Universo de subjetivação é hipercomplexa, já que
tomada de poder de um componente não é irreversível; re- pode categorizar componentes ontológicos como os das ma-
manejamentos podem ser operados; assiste-se sem cessar ao temáticas, das artes plásticas, da música, das problemáticas
questionamento do componente dominante, que polariza o políticas ...
conjunto dos componentes semióticos em sua constelação Entretanto esses Universos não são discursivos neles
ontológica. mesmos. Instauram-se na raiz enunciativa da discursivida-
Durante o sono, é um certo tipo de componente "nar- de. O conceito de afeto ou o de relação pática indica a pos-
císico" que domina: um tipo de autismo psicológico invade sibilidade de apreender globalmente uma situação relaciona!
a psique e faz passar ao segundo plano os componentes per- complexa, tal como a melancolia, ou a relação com a sub-
ceptivos para recalcar qualquer intrusão que pudesse amea- jetividade esquizofrênica. Mas temos a tendência de pensar
çar o sono. Ao dirigir um carro, é uma certa submissão ma- que esse modo de conhecimento por afeto não-discursivo
quínica que passa ao primeiro plano. permanece rude, primitivo, espontaneísta. Essa abordagem
O interesse dessa abordagem mui ti com ponencial dos não discursiva é igualmente a da hipercomplexidade, tal
Agenciamentos de semiotização reside no h to de permitir sua como é estudada atualmente em diversos domínios científi-
abertura para as diferentes configur;H,;ücs pr;lgJn;íticas poten- cos. Ela implica que exista uma via de passagem entre a com-
ciais e de impedir que se prenda sobre l'ss;J~ o 111esmo siste- plexidade real e a complexidade virtual e transferências de
ma interpretativo, o mesmo invarianll' de ligur;ls de Expres- consistência ontológica entre o virtual e o real, entre o pos-
são- o que conseqüentemente torna toLdJJH'IIte obscura e sível e o atual.
misteriosa a articulação entre o Contnído (' ;J t·:xpressão. Seria necessário repensar aqui uma certa teorização do
Chega-se assim a substituir os si.~ll'IJJ;Js sl'Jniológicos e caos. Na concepção freudiana do id, há a idéia de uma re-
semióticos do estruturalismo por uma "rn:HJtllllica" que en- lação entrópica da libido com o caos e de uma ameaça, de
76 Caosmose Heterogênese 77
i I
uma dissociação generalizada, desde que se saia das confi- tíficas, ao formular funções, marcam, ao contrário, um limite,
gurações cristalizadas em torno do eu e das significações uma barragem a essa velocidade infinita. É o que se manifes-
bem-constituídas. Em nossa perspectiva seríamos levados a tará sob forma de constantes que fixam fronteiras limites, in-
fazer incidir sobre configurações elementares uma hipercom- terditam passagens ao infinito no domínio da física (como o
plexidade catalítica, de um ponto de vista existencial e on- horizonte cosmológico, a distância de Planck, o zero abso-
tológico. O caos, ao invés de ser um fator de dissolução luto, a velocidade da luz etc.). Ao nível do percepto e do afeto
absoluta da complexidade, torna-se o portador virtual de estéticos existe um tipo de duplicação das velocidades infi-
uma complexificação infinita. nitas, uma mímesis, uma simulação, que reencena e reinter-
Se vocês considerarem o sistema caótico, tal como resul- preta, sem cessar, as potencialidades criativas do caos.
ta da análise dos resultados de uma triagem aleatória do jogo
dos dados, verão surgir configurações complexas as mais di-
,:;
versas: vocês têm sempre a possibilidade de ver aparecer as
figuras as mais raras. A raridade informacional habita então A cisão metodológica entre o que se poderia chamar li
o caos, do mesmo modo que a desordem. Para reunir essa uma esquizoanálise e as práticas analíticas tradicionais re-
i, I
complexidade virtual e essa ameaça caótica entrópica de dis- side essencialmente no fato de que a perspectiva esquizoa- ,,,.,
solução da diferenciação e de perda da heterogênese ontoló- nalítica rompe com os paradigmas científicos, para fazer I,
gica, partimos da idéia de que o caos é essencialmente dinâ- passar todas as produções de subjetividade sob a égide de .I
mico, de que é composto de entidades animadas com velo- paradigmas ético-pragmáticos, ético-estéticos. A metamo- li'
'I
cidade infinita, que ora as precipita em um estado de disper- delização esquizoanalítica não pretende substituir as mode-
são absoluta, ora reconstitui, a partir delas, composições hi- lizações existentes, quer sejam psicanalíticas, sistêmicas, re-
percomplexas. Assim o hipercomplexo pode coincidir, já que ligiosas, políticas, neuróticas etc., das quais ela tenta pro-
animado por velocidade infinita, com o hipercaótico. por uma leitura "integral". Ela só pede uma coisa: qualquer
Essa concepção do caos me permite caracterizar o fun- que seja a pragmática considerada, como vocês abordariam
tor ontológico que qualifico de Universo incorporai, ao mes- a questão da enunciação? Sob a égide desses dois funtores,
mo tempo o hipersimples- ritornelo alijado de qualquer re- Universos de referência incorporais e Territórios existen-
lação com uma referência- c o hipcrcomplcxo, desenvol- ciais? O que vocês fazem com os Universos de valores e a
vendo-se no seio de campos de virtu;llilbdc infinitos. Esse problemática da produção de alteridade? E o que fazem, em
tipo de paradoxo conduz ao fato de qtJL', pcL1cscolha ao aca- seu registro de modelização, com a singularidade, com a
so das letras do alfabeto, pudéssemos co1npor uma poesia de finitude? Será que vocês têm um comportamento de evita-
Mallarmé. Existe uma potencialidade, dtJr<lJtiL' uma tal esco- menta sistemático, como é o caso da subjetividade capita-
lha, do surgimento da maior compk:-.:idadt· iJdormacional. lística e sua teoria de referência, que é o behaviorismo? Scr<Í
Essa velocidade infinita do cw.~ L·. rl'L'IJU)JJtr<lda nave- que abordam a problemática dos Universos de referênci:1
locidade que anima a economia do coJJu·ito qttl' dá sua di- através de narrativas mass-mediatizadas, como as que L'Jl
mensão de imanência às proposições lilosolicas. Já as cien- contramos na televisão? Vocês tratam a questão de IJ)(HI()
78 Caosmose Heterogênese
,,,
,,1!·
',I
mítico, para dar um fundamento narrativo à ritualização versalidade desenvolvida por esses ritornelos, essas máquinas
existencial de uma "cura", quer ela seja de candomblé ou abstratas, singularizando uma certa Constelação de Universos
bem de tipo psicanalítico? e pondo em jogo certos Phylum maquínicos.
Não há primado de um sistema de modelização sobre Nessas condições, a que se reduz a práxis analítica?
os outros. Não há uma modelização científica que seria, por Trata-se essencialmente de um trabalho de discernibilização
exemplo, a da psicologia ou da psicanálise, face a uma mo- e de intensificação dos componentes de subjetivação, de um
delização neurótica ou a uma modelização micro-social con- trabalho de heterogênese. E, ao mesmo tempo, de singula-
tingente. Todas as modelizações, potencialmente, se equi- rização, de passagem ao ser e, conseqüentemente, de neces-
valem, a não ser pelo fato de que suas relações de agrega- sitação e de irreversibilização; trata-se então, simetricamen-
ção, de aglomeração - evito propositalmente o termo de te, de homogênese territorial. Esse trabalho não é situado
interação- traçam um certo vetor, uma certa escolha mi- sob a égide de um corpus científico, mas sob a de catalisa-
cropolítica, uma certa polarização de valores. Pode ser que, dores existenciais iguais em direito.
por exemplo, a polarização da pragmática analítica, longe O exemplo princeps desse tipo de catalisador, que
de ser controlada pelo analista, dependa do analisando. No- estudei em meu livro O inconsciente maquínico, encontra-
tou-se freqüentemente que o analista, em sua poltrona, es- se em Proust. Pode-se mostrar que toda a discursividade
tava de pés e mãos atados à "teleguiagem" do analisando, proustiana se tece a partir de alguns ritornelos complexos
i
de modo que, se o analista mantém o silêncio na maior parte que a conduzem ao desenvolvimento de Universos de refe- , I
,,
do tempo, é porque ele não tem acesso à fala. rência heterogêneos. Esses momentos fecundos põem-se a vi- il
Como se articulam tais sistemas de modelização? O que brar e a invadir o conjunto do campo da subjetividade com
faz com que a subjetividade de uma criança seja constituída a experiência da madalena, com a visão dos sinos que dan-
no cruzamento de n sistemas de modelização? Tudo isso é çam uns em relação aos outros, a pequena frase de Vinteuil,
visto muito bem na teoria polifônica do se!f de Daniel Stern. o piso desnivelado do pátio de Guermantes, sobre o qual ele
Há co-ocorrência entre o desenvolvimento subjetivo do lac- coloca os pés e que desencadeia uma deriva sobre Veneza,
tante e o comportamento de sua mãe. Em seguida a criança sobre o passado etc. Proust logo percebe que h;í necessida-
r
passa de um sistema de modelização a um outro: o de sua fa- de de um corte, de uma parada, de uma muda1H,·a de refe- , I
mília, o de seus fantasmas próprios, o das narrativas televi- rências temporais: pede às pessoas que o acon1p;1nham que
sivas, o dos desenhos animados, da escola, com os grupos so- o deixem só, a fim de que chegue a captar o que :Kontcce
ciais no seio dos quais ele é inserido ... Não h;í coerência ex- nesse momento privilegiado. Mas não se trata dt· 11111 acon-
plicativa fundada sobre universais estruturais, mas desenvol- tecimento de ordem cognitiva e sim de um kni'nnc11o de in-
vimento daquilo que Pierre L(·vy dcnollliiLl 111n hipertexto 22 . tensidade existencial.
É a interface maquínica que opna a :q•,lollll'Ll~:;ío ontológica Seria também o que faz o trabalho do so1tho, t'lll uma
de diferentes ritornelos existenci;lis. F t' :1 dinu·ns:!o de trans- perspectiva pós-freudiana? Não se tr;H;l 111:1 is dt· p:1 rt ir :·1 pro-
cura de chaves interpretativas entre Ulll L"<llt!t'tlllo ttJ:llliiL·sto
22
P. Lévy, Les technologies de l'illtcl!ig<'ll• ,., "I'·, i1. (ver nota, p. 41) e um conteúdo latente, mas de translorltl:tr ~lt:l lll:ttéria de
80 Caosmose Heterogênese 81
expressão, de lhe dar uma intensificação ontológica, simples- nômeno a um Édipo invertido em direção à mãe? De fato, é
mente pelas passagens sucessivas: 1) do sonho no ato de ser o Agenciamento de enunciação, comportando um compo-
vivido; 2) do sonho ao despertar com seu caráter de uma re- nente autopoiético na relação com a mãe, que implode e que,
viravolta semiótica, que faz com que se perca 99% disso, mas através do trabalho de luto e de recomposição enunciativo,
cujo centésimo salvo assume uma função fractal em relação arrebata em seu rastro a perda de consistência de outros
aos 99% perdidos; 3) o sonho contado a um terceiro ou es- componentes enunciativos: o componente visível, relativo à
crito; 4) o sonho contado durante uma sessão analítica etc ... extensão da tessitura, e outros menos aparentes de ordem
É toda essa atividade de reterritorialização, de recom- tímica, que farão com que a paciente entre em um regime
posição de territórios existenciais específicos, de entrada em larvado de depressão. Mas trata-se de uma fase depressiva,
matérias de expressão heterogêneas, que constitui o "traba- de tipo kleiniano, preludiando uma recomposição do eu?
lho" do sonho e que faz com que ele possa desembocar em Isso não é absolutamente evidente, pois esse falecimento da
uma obra literária, em uma dimensão axiológica, um proces- mãe esse corte - quiçá provisório - com a profissão de
so criativo. "Desde que tive um certo sonho, minha vida deu cantora abram talvez, para a paciente, toda uma gama de
uma reviravolta ... " O trabalho da análise consiste em mudar possíveis que lhe eram até então interditos.
as coordenadas enunciativas e não em dar chaves explicati- Com efeito, essa mulher, em seguida a esses aconte-
vas. Trata-se não apenas de elucidar, de discernibilizar com- cimentos, encetará uma série de novas atividades, fará novos
ponentes já existentes, mas também de produzir componentes contatos, estabelecerá uma nova relação afetiva, após re-
que ainda não estejam presentes, e que se tornarão "sempre manejar radicalmente sua constelação de Universos. Hou-
já presentes do momento em que são engendrados", em ra- ve então, em seguida à perda de consistência de um Agen-
zão mesmo da lógica dessas multiplicidades, cuja trama mo- ciamento existencial, abertura de novos campos de possível.
lecular funciona com uma velocidade infinita aquém do es- Esse gênero de remanejamento é acompanhado por um tipo
paço, do tempo e das ordenadas ontológicas. de vertigem: vertigem da possibilidade de um outro mundo,
Examinemos sumariamente um outro exemplo de si- vertigem comparável ao estado que acompanha o fato de se
tuação neurótica que implica uma renúncia à "neutralida- debruçar na janela, vertigem da morte como tentação da
de" terapêutica e demanda a mobilização de um novo Uni- Alteridade absoluta, mas também vertigem da anorexia. É
verso de referência enunciativo. Trata-se de uma cantora que sempre a mesma questão: se colocar na tangente da finitu-
eu acompanhava em psicoterapia e que, com a morte da de, brincar com o ponto limite. Kafka trabalhou com esse
mãe, perde bruscamente a parte alta da tessitura de sua voz, tipo de vertigem da abolição, relacionando a noite aos verda-
o que a condena a uma parada brutal do exercício de sua deiros estados de transe ligados à fome, ao frio e à fadiga.
profissão. Estamos diante de um acontecimento complexo Mais do que postular uma Alteridade absoluta, referên-
que, evidentemente, repercute em uma dimensão semiótica cia simbólica transcendental ou uma pulsão de morte dian-
totalmente heterogênea em relação à da performance vocal. te de Eros, partiremos aqui da idéia de que há tantas pul-
Como conceber essa passagem? Defini-la-emos em ter- sões de alteridade e, consecutivamente, pulsões de morte,
mos de mecanismo de autopunição ou relacionaremos o fe- quantos forem os componentes heterogêneos de subjetiva-
R4 Caosmose 85
Heterogênese
O eixo ontológico aqui proposto no domínio da dis-
quadradas em outros eixos de referência. Elas estão na base
cursividade entre os Fluxos (F) e os Phylum (<!>) correspon-
da subjetividade capitalística, quer dizer, de uma subjetivi-
de à compreensão do mundo fenomenológico sensível, ha-
dade que assimila a apreensão da morte, a vertigem da fini-
bitado por máquinas complexas, concernentes a Phylum em
tude, o mais intensamente possível, mais do que os sistemas
mutação permanente. No domínio não-discursivo, as outras
que se propuseram como alternativos, particularmente o so-
duas categorias, de Território existencial e de Uníverso de
cialismo burocrático ou, atualmente, o ideal de um retorno
referência, correspondem a dois modos enunciativos dila-
aos valores tradicionais (retorno fascistizante à terra, à raça
cerados entre a finitude absoluta, o retorno a um estado
etc.). O sistema capitalístico e a subjetividade do equivaler
caótico de não-diferenciação (Te) e uma complexidade ab-
generalizado se sustentam na tangente da morte e da fini-
soluta trazida por Universos incorporais singularizados.
tude para, no último momento, reterritorializar o sistema
refundá-lo sobre identidades personológicas, em uma dinâ-
' Entre esses quatro funtores se instauram não imperativos ca-
tegóricos de tipo kantiano, mas comandos ontológicos, pro-
mica edipiana, uma hierarquização e uma alienação da al-
cessuais, micropolíticos. Entre o eixo dos Fluxos e dos Ter-
teridade que podem ser levadas até a paranóia, mas que ge-
ritórios existenciais, uma categoria de necessitação, ou de
ralmente mergulham em um morno infantilismo.
tomada de contingência, de finitude, se encarna nas coor-
Essa potência de abolição de subjetividade capitalísti-
denadas de espaço, de tempo e de diferentes matérias de ex-
ca pode conduzir, no horizonte histórico atual, ao desapa-
pressão. Finitude existencial que não apenas aceita a morte
recimento da humanidade, devido à sua incapacidade de en-
e a vida em seu caráter de subjugação, mas que não cessa
frentar as questões ecológicas, as reconversões impostas pelo
de intensificá-la, que faz da morte uma potência ativa, ao
impasse no qual se engajou a sociedade produtivista, o avan-
invés de uma maldição. O perigo de morte que pesa sobre
ço demográfico etc ... Essa pulsão de morte só pode ser com-
a biosfera poderia então se transformar em uma questão
batida por agenciamentos enunciativos capazes de assumir
maquínica fascinante, extraordinária. Ao invés de se aban-
a morte e a finitude muito além de uma subjetividade capi-
donar ao horizonte de morte capitalístico, uma política de
talística cada vez mais débil, desde que a mídia começou a
produção de vida é possível, não para repeti-la tal como ela
exercer uma hegemonia sobre ela. A entrada em uma era pós-
era há cem ou dois mil anos, mas para produzir formas
mídia implica uma reapropriação da finitude em outras ba-
mutantes segundo ordenadas atualmente imprevisíveis.
ses que não a da serialização e da redundância.
Segundo eixo ético-político entre os Phylum lllaquíni-
~--~--_ _
cos e os Universos de referência. Trata-se de un1 ei-.:o para-
1'
discursividadl'
,
:, 11:10-t ~d
- 1·ISCllfSIV_I~ dl~l
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lelo ao precedente, é o da singularização. Os processos ni;l-
o ' Slllg!dari/.:H,,-:io > · '
dores, sempre recomeçados, não se refet-ctn jan1;1is ;-1 repe-
'!}
desterritorialização
~
:s---- ri
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- - (lq"
tição vazia. A instância ontológica é sempre ('llriqttt·cinlell-
to de virtualidade. Isso pode ser bem percebido tLI 1111-tsicl
~
(])>
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repetitiva, cuja repetição não é vazia, m;ls t'tl)',l'ttdr;J tttll;l sin-
L~rntorialização-~~
1 I cn
(!)
Heterogênese 87
86 Caosmose
dita"; ao passo que a música tradicional, por exemplo a ontológica heterogênea. Produzir uma nova música, um no-
romântica, pode ter uma tendência para rebater a subje- vo tipo de amor, uma relação inédita com o social, com a
tividade sobre o "já visto", o "já sentido", o que também animalidade: é gerar uma nova composição ontológica cor-
não deixa de ter uma certa sedução. Essa singularização relativa a uma nova tomada de conhecimento sem media-
implica a entrada de componentes heterogêneos, o surgimen- ção, através de uma aglomeração pática de subjetividade,
to de pontos de bifurcação, esses tipos de singularidade que ela mesma mutante.
fazem com que, de um só golpe, um micro-acontecimento
abra novos campos de possível.
Terceiro eixo, entre os Fluxos e os Phylum, o da irre-
versibilização. O primeiro eixo de necessitação entre os Flu-
xos e os Territórios se relacionaria a sistemas sofisticados
de causas materiais. (No eixo dos Phylum e dos Universos,
a singularização operaria no plano das causas finais, ao
passo que o presente sistema de irreversibilização seria mais
da ordem das causas formais.) O que aqui está em causa é
a idéia mesma de Phylum, de processo, a idéia de que há um
antes, um depois, uma história natural, uma história huma-
na, que estão articuladas no ponto de junção do antes e do
depois, na raiz da repetição, da insistência existencial.
Enfim, a categoria de heterogênese deveria ser relacio-
nada à de causa-eficiente; ela corresponde à constituição de
Universos de referência. É uma dimensão de produção on-
tológica que implica que se abandone a idéia de que existi-
ria um Ser subsumindo as diferentes categorias heterogêne-
as de entes. O próprio ser não é passivamente dado, do Big-
Bang original até à explosão final de nossa constelação de
um Universo cósmico, passando por nossa própria explo-
são de Universos axiológicos, relativos à vida, à morte, aos
processos criadores. Não existe uma substância ontológica
única se perfilando com suas significações "sempre já pre-
sentes", enquistadas nas raízes etimológicas, em particular
de origem grega, que polarizam e fascinam :1s :111úlises poé-
tico-ontológicas de Heidegger. Para além da criação semio-
lógica de sentido, se coloca a questão da criaç:io de textura
Caosmose Heterogênese 89
xo, trabalhará para sua complexificação, para seu enrique-
ANEXO: O AGENCIAMENTO DOS QUATRO
cimento processual, para a tomada de consistência de suas
FUNTORES ONTOLÓGICOS
linhas virtuais de bifurcação e de diferenciação, em suma para
sua heterogeneidade ontológica.
Expressão --~--- - Cont~~- l A localização de focos de vida parciais, do que pode dar
atual focos enunciativos virtu.ais I uma consistência enunciativa às multiplicidades fenomêni-
__(~iscurs~o) -· __(não discursiv?_sl_
I u
cas, não depende de uma pura descrição objetiva. O conhe-
<P
possível discursividade complexidade
cimento de uma mônada de ser-no-mundo, de uma esfera
.
I maquínica incorporai de para-si, implica uma apreensão pática que escapa às coor-
[ - F ---- ---· denadas energético-espácio-temporais. O conhecimento é
T
real [ discursividade energético- I encarnação aqui, antes de mais nada, transferência existencial, transi-
___
1
__espácio-!emporal_ _l_ caósmica tismo não-discursivo. Colocar em enunciado essa transfe-
rência passa sempre pelo desvio de uma narrativa que não
Os funtores F, <P, T, U têm como tarefa conferir um es-
tem como função primeira engendrar uma explicação racio-
tatuto conceitual diagramático (cartografia pragmática) aos
nal, mas promover ritornelos complexos, suportes de uma
focos enunciativos virtuais colados à Expressão manifesta.
persistência memorial intensiva. É apenas através das nar-
Sua concatenação matricial deve preservar, tanto quanto pos-
rativas míticas, religiosas, fantasmáticas etc., que a função
sível, sua heterogeneidade radical, a qual só pode ser pres-
existencial acede ao discurso. Mas o próprio discurso, aqui,
sentida através de uma abordagem fenomenológica discur-
não é um simples epifenômeno, ele é objeto de estratégias
siva. São aqui qualificados de metamodelizantes para mar-
ético-políticas de evitação da enunciação. Os quatro funto-
car que têm como finalidade essencial dar conta da manei-
res ontológicos, tais como anteparos de proteção, sinaliza-
ra pela qual os diversos sistemas de metamodelização exis-
dores de advertência, têm por missão visibilizar os objetos
tentes (religiosos, metafísicos, científicos, psicanalíticos ani-
. ' dessas estratégias.
mistas, neuróticos ... ) abordam a problemática da enuncia-
Por exemplo, os Universos incorporais da Antigüida-
ção sui-referencial, contornando-a sempre mais ou menos.
de clássica, associados a um compromisso politeísta relati-
A esquizoanálise não optará, então, por uma modelização
vo a uma infinidade de Territorialidades clássicas c L'ticas,
com a exclusão de uma outra. Tentará discernibilizar no
sofreram um remanejamento radical com a revoluçilo trini-
interior de diversas cartografias em ato em uma situ~ção
tária do cristianismo, indexada no ritornelo do signo da
dada, focos de autopoiese virtual, para atualizá-los trans-
Cruz, que recentrará não somente o conjunto dos Tnritú--
v:r~alizando-os, conferindo-lhes um diagramatismo' opera- rios existenciais sociais, mas também todos os J\gcltL·i;tllll'll-
t~no (por exemplo, por uma mudança de matéria de Expres-
tos corporais, mentais, familiares, sob o LÍ n ico 'l'nri 1<·,ri o
sao), tornando-os operatórios no interior de Agenciamen-
existencial da encarnação e da crucifica<.;ilo nisl iL-;1. Fssc
tos modificados, mais abertos, mais proccssua is, mais des-
golpe de força inédito de assujeitamento suhjct ivo tdi r;t pass;J
territorializados. A esquizoanálise, mais do que ir no senti-
evidentemente o quadro teológico! A nova .stthj<·i ivid;tdt· d;t
do de modelizações reducionistas que simplificam o comple-
Heterogênese 91
90 Caosmose
culpabilidade, da contrição, da marcação do corpo e da se- novo Agenciamento referencial. E, paralelamente, uma in-
xualidade, da mediação redentora, é também uma peça es- finidade de ritornelos psicopatológicos não serão mais vi-
sencial dos novos dispositivos sociais, das novas máquinas vidos, e conseqüentemente modelizados, da mesma manei-
de sujeição que deveriam ser buscadas através dos destro- ra. O doente obsessivo que lava as mãos cem vezes por dia
ços do Baixo-Império e das reterritorializações de ordens exacerba sua angústia solitária em um contexto de Univer-
feudais e urbanas por vir. so de referência profundamente modificado.
Mais próxima de nós, a narrativa mítico-conceitual do A modelização freudiana marcou incontestavelmente
freudismo também operou um remanejamento dos quatro um enriquecimento da produção de subjetividade, uma am-
quadrantes ontológicos. Toda uma maquinaria dinâmica e pliação de suas constelações referenciais, uma nova abertura
tópica do recalque rege aí a economia dos Fluxos de libido, pragmática com a invenção do dispositivo da cura analítica.
ao passo que uma zona de focos enunciativos, que a abor- Mas ela rapidamente encontrou seus limites com suas con-
dagem clínica havia evitado, de ordem onírica, sexual, neu- cepções familialista e universalizante, com sua prática este-
rótica, infantil, relativa ao lapso, ao chiste, invade a parte reotipada da interpretação, com sua dificuldade para am-
direita de nosso quadro. O Inconsciente promovido como pliar seu campo de intervenção para além da semiologia lin-
Universo da não-contradição, da heterogênese dos contrá- güística. Enquanto a psicanálise conceitualiza a psicose atra-
rios, envolve os Territórios manifestos do sintoma, cuja vés de sua visão da neurose, a esquizoanálise aborda todas
vocação para a autonomização, para a repetição autopoié- as modalidades de subjetivação à luz do modo de ser no
tica, pática e patogênica, ameaça a unidade do eu, a qual se mundo da psicose. Com efeito, em nenhum outro lugar é
revelará, ao longo da história da clínica analítica, cada vez desnudada, a esse ponto, a modelização ordinária da coti-
mais precária, até mesmo fractalizada. dianeidade (os "axiomas de cotidianeidade"), que obstruem
A cartografia freudiana não é apenas descritiva; é in- as raízes da função existencial a-significante, grau zero de
separável da pragmática da transferência e da interpretação, qualquer modelização possível.
que convém, em minha opinião, destacar de uma perspecti- Com a neurose, a matéria sintomática continua a ba-
va significacional e entender como conversão dos meios ex- nhar no entorno de significações dominantes, ao passo que,
pressivos e como mutação das texturas ontológicas desta- em contrapartida, com a psicose, é o mundo do Dasein es-
cando novas linhas de possível e, isso, pelo simples fato da tandartizado que perde sua consistência. A alteridade, en-
instalação de novos Agenciamentos de escuta e de modeli- quanto tal, torna-se então a questão primeira. Por exemplo,
zação. O sonho, objeto de um inten:sse renovado, contado o que se encontra fragilizado, fendido, esquizado, no delí-
como uma narrativa encerrando chaves inconscientes, que rio e na alucinação, antes do estatuto do mundo objetivo, é
passou pelo crivo da associaç;)o livre, .->ofrc uma profunda o ponto de vista do outro em mim, o corpo reconhecido em
mutação. Assim como após a revoltr~_-;io (h 1\rs Nova, na Itá- articulação com o corpo vivido e com o corpo ressentido,
lia do século XIV, não se entendn;Í lll;Ji-> ;J rnt'rsica domes- são as coordenadas de alteridade normalizadas que dão à
mo modo no meio cultural europeu, o sonho c a atividade evidência sensível seu fundamento.
onírica mudarão intrinsecamente de n:lttrn·;:l no seio de seu A psicose não é um objeto estrutural mas um concei-
92 Caosmose I lcr-erogênese 93
to; não é uma essência inamovível mas uma maquinação, como certos. É porque, em vários aspectos, a teoria freudia-
sempre recomeçada, a cada encontro com aquele que setor- na é mítica, que ela pode desencadear ritornelos de subjeti-
nará, a posteriori, o psicótico. O conceito não é, então, aqui vação mutante.
uma entidade fechada sobre si mesma, mas a encarnação A lógica tradicional dos conjuntos qualificados de ma-
maquínica abstrata da alteridade em seu ponto extremo de neira unívoca, de tal modo que se possa sempre saber sem
precariedade, a marca indelével que tudo, nesse mundo, ambigüidade se um de seus elementos lhes pertence ou não,
pode sempre disjuntar. a metamodelização esquizoanalítica substitui uma ontoló-
O Inconsciente tem tudo a ver com o conceito: ele tam- gica, uma maquínica da existência cujo objeto não é circuns-
bém é uma construção incorporai que se apropria da sub- crito ao interior de coordenadas extrínsecas e fixas, que su-
jetividade em seu ponto de emergência. Mas é um conceito pera a si mesmo, que pode proliferar ou se abolir com os
que corre o risco o tempo todo de engrossar, que deve ser Universos de alteridade que lhes são compossíveis ...
constantemente livrado das escórias culturais que ameaçam
reterritorializar a subjetividade. Ele pede para ser reativado,
recarregado maquinicamente, em razão da virulência dos
acontecimentos que colocam em atuação a subjetividade. A
fratura esquizo é a via principal de acesso à fractalidade
emergente do Inconsciente. O que se pode denominar a re-
dução esquizo ultrapassa todas as reduções eidéticas da fe-
nomenologia, porque leva ao encontro de ritornelos a-sig-
nificantes que produzem, novamente, narrativa, que refun-
dem no artifício uma narratividade e uma alteridade exis-
tenciais, ainda que delirantes.
Salientemos, de passagem, uma curiosa contradança en-
tre a psicanálise e a fenomenologia: enquanto a primeira não
alcançou, no essencial, a alteridade psicótica (particularmen-
te devido a suas concepções reificantes em matéria de iden-
tificação e devido à sua incapacidade de pensar os devires
intensivos), a segunda, embora tendo produzido as melho-
res descrições da psicose, não soube revelar através dela o
papel fundador da modeliza~ilo narrativa, suporte da incon-
tornável função existencial do ritornclo- fantasmática Seminário organizado pelo Colégio Internacional de
mítica, romanesca ... Encontnl-Sl' ;lÍ o 111Úvcl do paradoxo de
' J·:studos Filosóficos Transdisciplinares, realizado na Univer-
Tertuliano: por que é impossível que o filho esteja morto, sidade Estadual do Rio de Janeiro, nos dias 13, 15 e 17 de
sepultado e ressuscitado, é que esses fatos devem ser tidos ''·~osto de 1990.
I l•·lcrogénese 95
94 Caosmose
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A "normalidade", sob a luz do delírio, a lógica tecni- I';
cista, sob a lei do processo primário freudiano, um pas de 'ii'
deux em direção ao caos para tentar circunscrever uma sub-
jetividade longe dos equilíbrios dominantes, para captar suas
linhas virtuais de singularidade, de emergência e de renova-
ção: eterno retorno dionisíaco ou paradoxal revolução co-
pernicana que se prolongaria em uma reviravolta animista?
No mínimo, fantasma originário de uma modernidade in-
cessantemente posta em questão e sem esperança de remis-
são pós-moderna. Sempre a mesma aporia: a loucura cer-
cada em sua estranheza, reificada para sempre em uma al-
teridade, não deixa de habitar nossa apreensão comum, sem
qualidade, do mundo. Mas seria necessário ir ainda mais
longe: a vertigem caótica, que encontra uma de suas expres-
sões privilegiadas na loucura, é constitutiva da intencio-
nalidade fundadora da relação sujeito-objeto. A psicose re-
vela um motor essencial do ser no mundo.
Com efeito, o que prima, no modo de ser da psicose-
mas também, segundo outras modalidades, no modo do
"self emergente" da infância (Daniel Stern) ou no da cria-
ção estética- é a irrupção na cena subjetiva de um real "an-
terior" à discursividade cuja consistência pática literalmente
pula no pescoço. Deve-se considerar que este real se crista-
lizou, petrificou, tornou-se catatônico por acidente patoló-
gico, ou que estava aí desde todos os tempos -passados e
futuros - à espera de uma atuação, na qualidade de san-
ção da forclusão de uma suposta castração simbólica? Tal-
vez seja necessário encadear essas duas perspectivas: este real
já estava presente, como referência virtua 1, a lwna, c corre-
lativamente ele surgiu enquanto produção sui generis de um
acontecimento singular.
Os estruturalistas foram por demais prl'cipitados ao
posicionar topicamente o Real da psicosl' l'lll rcla<.;ão ao
Imaginário da neurose e ao Simhúlico da nonnalidadc. O
A Caosmose Esquizo 99
que ganharam com isso? Erigindo maternas universais do véns esperados e as relações polifônicas "normais" entre os
Real, do Imaginário e do Simbólico, considerados cada um diferentes modos de passagem ao ser da enunciação sub-
em si mesmo como um todo, eles reificaram, reduziram a jetiva têm sua heterogeneidade comprometida pela repe-
complexidade da questão- a saber, a cristalização de Uni- tição, pela insistência exclusiva de uma estase existencial
versos reais-virtuais, agenciados a partir de uma multipli- que qualifico de caósmica e que é suscetível de assumir to-
cidade de territórios imaginários e semiotizados pelas mais das as nuanças de uma gama esquizo-paranóico-maníaco-
diversas vias. epileptóide etc ...
As compleições reais- por exemplo, as da cotidianei- Fora dessa patologia essa estase só é apreendida atra-
dade, do sonho, da paixão, do delírio, da depressão e da ex- ~és de um evitamento, um deslocamento, um desconheci-
periência estética- não são, todas elas, da mesma cor on- mento, uma desfiguração, uma sobredeterminação, uma
tológica. Além disso, não são sofridas passivamente, nem ar- ritualização ... Nessas condições, a psicose poderia ser defi-
ticuladas mecanicamente ou trianguladas dialeticamente a nida como uma hipnose do real. Aqui, um sentido de ser
outras instâncias. Uma vez ultrapassados certos limiares de em si se impõe aquém de qualquer esquema discursivo, uni-
consistência autopoiéticos, elas começam a trabalhar por sua camente posicionado através de um continuum intensivo
própria conta, constituindo focos de subjetivação parcial. cujos traços de distintividade não são apreensíveis por um
Enfatizemos que seus instrumentos expressivos (de semio- aparelho de representação mas por uma absorção pática
tização, de encodagem, de catálise, de moldagem, de resso- existencial, uma aglomeração pré-egóica (pré-moique), pré-
nância, de identificação) não se reduzem a uma única eco- identificatória.
nomia significante. A prática da psicoterapia institucional Enquanto o esquizofrênico está como que instalado em
nos ensinou a diversidade das modalidades de aglomeração pleno centro dessa fenda caótica, o delírio paranóico mani-
dessas múltiplas estases reais ou virtuais: as do corpo e do festa uma vontade ilimitada de se apossar dela. Por sua vez,
soma, as do eu e do outro, as do espaço vivido e dos ritor- os delírios passionais (Sérieux, Capgras e de Clérambault)
nelos temporais, as do socius familiar e do socius artificial- marcariam uma intencionalidade de monopolização da caos-
mente elaborado para abrir outros campos de possível, as mose menos fechada, mais processual. As perversões já im-
da transferência psicoterapêutica ou ainda as de universos plicam a recomposição significante de pólos de alteridade
imateriais referentes à música, às formas plásticas, aos de- aos quais cabe encarnar do exterior uma caosmose domi-
vires animais, vegetais, maquínicos ... nada, teleguiada por roteiros fantasmáticos. Já as neuroses
As compleições do real psicútico, em sua emergência apresentam todas as variantes de evitação anteriormente
clínica, constituem uma via cxploratúria privilegiada de ou- evocadas, a começar pela mais simples, a mais reificadora
tros modos de produção ontok)gicos pelo LHo de revelarem - a da fobia-, continuando pela histeria que forja subs-
aspectos de excesso, expcrii'·nci:1s litnite desses modos. A titutos de tais variantes de evitação no espaço social e no
psicose habita assim não apctLls :1 tH'IIrose c a perversão corpo, para terminar pela neurose obsessiva que secreta a
mas também todas as formas de llorlllalidadc. A patologia seu respeito uma perpétua "differencia" (Derrida) tempo-
psicótica se especifica pelo fato de qtH' por n razões os vai- ral, uma infinita procrastinação.
I
espaço e do tempo, aquém dos processos de espacialização de base (base) (ou de baixo [basse]) na polifonia dos com- I
e de temporalização. As formações de sentido e os estados ponentes caósmicos e intensifica sua potência relativa. Ela i ~
de coisas se encontra 111 assim caotizados no mesmo movi- não constitui então um grau zero da subjetivação, um pon- li
mento em que su;1 complexidade é trazida à existência. Uma to negativo, neutro, passivo, deficitário, mas um grau ex- I'
'I
determinada modalidade de desarticulação caótica de sua tremo de intensificação. É passando por esse fio-terra caó-
constituição, de sua organicidade, de sua funcionalidade e tico, essa oscilação perigosa, que outra coisa se torna pos-
I
lírio, as sinaléticas e as semióticas dccoL11n. J\ caosmose
esquizo é um meio de apercepção das tn~íquinas abstratas homogênese normal e/ou neurótica, que evita ir muito lon-
que funcionam transversalmente aos estratos heterogêneos. ge e por muito tempo em direção a uma redução caósmica
106
Caosmose A Caosmose Esquizo 107
nam papéis, pontos de vista, comportamentos de submissão
duada. Confrontamo-nos com ela na vida de grupo, nas re-
e até- por que não?- processos liberadores. Quem diz a
lações econômicas, no maquinismo, por exemplo informá-
verdade? Esta não é mais a questão, mas sim a de saber como
tico, e mesmo no interior de Universos incorporais da arte ·.''
l
e em que condições pode melhor aflorar a pragmática dos
ou da religião. Ela convoca, a cada vez, a reconstrução de
uma narratividade operacional, quer dizer, funcionando
para além da informação e da comunicação, como cristali-
zação existencial de uma heterogênese ontológica.
acontecimentos incorporais que recomporão um mundo,
reinstaurarão uma complexidade processual. As modeliza-
ções idiossincráticas, enxertadas em uma análise dual, uma
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I'·
!.
auto-análise, uma psicoterapia de grupo ... são sempre leva- •'
O fato de a produção de uma nova compleição real-ou- 1"
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das a fazer empréstimos às línguas especializadas. Nossa
tro-virtual resultar sempre de uma ruptura de sentido, de um .,i,,
problemática de caosmose e de saída esquizoanalítica do
curto-circuito de significações, do aparecimento de uma re- u
:
109
A Caosmose Esquizo
108 Caosmose
Oralidade Maquínica e
Ecologia do Virtual
I:
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que o paradigma estético, o da criação e da composição de Estranhos aparatos, dirão vocês, essas máquinas de vir-
perceptos e de afetos mutantes, se tornou o de todas as for- tualidade, esses blocos de perceptos e de afetos mutantes,
mas possíveis de liberação, expropriando assim os antigos meio-objeto meio-sujeito, já instaurados na sensação e fora
paradigmas cientificistas aos quais estavam referidos, por deles mesmos nos campos de possível. Não serão facilmen-
exemplo, o materialismo histórico ou o freudismo. O mun- te encontradas no mercado habitual da subjetividade e tal-
do contemporâneo, emaranhado em seus impasses ecológi- vez ainda menos no da arte, entretanto elas habitam tudo o
cos, demográficos, urbanos, incapaz de assumir as extraor- que concerne à criação, ao desejo de devir outro, assim como
dinárias mutações técnico-científicas que o atingem, de uma aliás à desordem mental ou às paixões do poder. Tentemos,
forma compatível com os interesses da humanidade, se en- agora, traçar o perfil dessas máquinas a partir de algumas
gajou em uma corrida vertiginosa, seja para o abismo, seja de suas características principais.
para uma renovação radical. As bússolas econômicas, so- Os Agenciamentos de desejo estético e os operadores
ciais, políticas, morais, tradicionais se desorientam umas da ecologia do virtual não são entidades que possamos fa-
após as outras. Torna-se imperativo refundar os eixos deva- cilmente circunscrever na lógica dos conjuntos discursivos.
lores, as finalidades fundamentais das relações humanas e Eles não possuem nem dentro nem fora. São interfaces sem
das atividades produtivas. limite que secretam a interioridade e a exterioridade, que se
Uma ecologia do virtual se impõe, então, da mesma for- constituem na raiz de todo sistema de discursividade. São
ma que as ecologias do mundo visível. E, a esse respeito, a devires, entendidos como focos de diferenciação, por um
poesia, a música, as artes plásticas, o cinema, em particular lado no centro de cada domínio e, por por outro, entre do-
em suas modalidades performáticas ou performativas, têm mínios diferentes para acentuar sua heterogeneidade. Um
um lugar importante a ocupar, devido à sua contribuição devir criança, por exemplo, na música de Schumann, se ex-
específica mas também como paradigma de referência de no- trai das recordações de infância para encarnar um presente
vas práticas sociais e analíticas - psicanalíticas em uma perpétuo que se instaura como um entroncamento, jogo de
acepção muito ampliada. Para além das relações de força bifurcações entre devires: devir mulher, devir planta, devir
atualizadas, a ecologia do virtual se proporá não apenas a cosmo, devir melódico ...
preservar as espécies ameaçadas da vida cultural mas igual- Se esses Agenciamentos não são detectáveis em relação
mente a engendrar as condições de criação e de desenvolvi- a sistemas de referência extrínsecos tais como as coordena-
mento de formações de subjetividade inusitadas, jamais vis- das energético-espácio-temporais, ou coordenadas semânti-
tas, jamais sentidas. Significa dizer que a ecologia generali- cas bem catalogadas, não são menos apreensíveis a partir de
zada- ou a ecosofia- agirá como ciência dos ecossiste- tomadas de consistência ontológicas, transitivistas, trans-
mas, como objeto de regeneração política mas também como versalistas e páticas. Não os conhecemos através de represen-
engajamento ético, estético, <malítico, na iminência de criar tações mas por contaminação afetiva. Eles se põem a existir
novos sistemas de valorização, um novo gosto pela vida, em você, apesar de você. E não apenas como afetos rudes,
uma nova suavidade entre os sexos, as faixas etárias, as indifereciados mas como composição hipercomplexa: "é De-
etnias, as raças ... bussy, é jazz, é Van Gogh". O paradoxo ao qual nos conduz
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116 Caosmose Or.1lidade Maquínica e Ecologia do Virtual 117
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constantemente a experiência estética consiste no fato de que tica, pode também morrer por falta de realimentação pos-
esses afetos, como modo de apreensão existencial, se dão de sível ou derivar em direção a destinos que o tornem estran-
uma vez só, apesar de- ou paralelamente ao fato de- que geiro a ele mesmo.
traços indicativos, ritornelos sinaléticos sejam necessários Eis então uma entidade, um ecossistema incorporai,
para catalisar sua existência nos campos de representação. cujo ser não é garantido do exterior, que vive em simbiose
Qualquer que seja a sofisticação desses jogos de representa- com a alteridade que ele mesmo concorre para engendrar,
ção para induzir seu Universo existencial e para daí deduzir que ameaça desaparecer se sua essência maquínica for da-
múltiplas conseqüências, o bloco de percepto e de afeto, atra- nificada acidentalmente- os bons e os maus encontros do
vés da composição estética, aglomera em uma mesma apreen- jazz com o rock- ou quando sua consistência enunciativa
são transversal o sujeito e o objeto, o eu e o outro, o mate- estiver abaixo de um certo limite. Não é um objeto "dado"
rial e o incorporai, o antes e o depois ... em suma, o afeto não em coordenadas extrínsecas mas um Agenciamento de sub-
é questão de representação de discursividade, mas de exis- jetivação dando sentido e valor a Territórios existenciais de-
tência. Vejo-me embarcado em um Universo debussista, em terminados. Esse Agenciamento deve trabalhar para viver,
um Universo blues, em um devir fulgurante da Provence. Ul- processualizar-se a partir das singularidades que o atingem.
trapassei um limiar de consistência. Antes da influência desse Tudo isso implica a idéia de uma necessária prática criati-
bloco de sensação, desse foco de subjetivação parcial, era a va e mesmo de uma pragmática ontológica. São novas ma-
cinzenta monotonia; depois, não sou mais eu mesmo como neiras de ser do ser que criam os ritmos, as formas, as co-
antes, fui arrebatado em um devir outro, levado para além res, as intensidades da dança. Nada está pronto. Tudo deve
de meus Territórios existenciais familiares. ser sempre retomado do zero, do ponto de emergência caós-
E não se trata aqui de uma simples configuração ges- mica. Potência do eterno retorno do estado nascente.
taltista, cristalizando a predominância de uma "boa forma". Após Freud, os psicanalistas kleinianos e lacanianos,
Trata-se de algo mais dinâmico, que gostaria de situar no cada um à sua maneira, apreenderam esse tipo de entidade
registro da máquina, que oponho aqui ao da mecânica. E em seu campo de investigação batizando-o: "objeto parcial",
foi na condição de biólogos que Humberto Maturana e "objeto transicional", e situando-o na interseção de uma
Francisco Varela formularam o conceito de máquina auto- subjetividade e de uma alteridade elas mesmas parciais e
poiética para definir os sistemas vivos. Parece-me que sua transicionais. Mas eles jamais o desinseriram de uma infra-
noção de autopoiese, como capacidade de auto-reprodução estrutura pulsional causalista; jamais lhe conferiram dimen-
de uma estrutura ou de um ecossistema, poderia ser provei- sões de Território existencial multivalente e de criatividade
tosamente estendida às máquinas sociais, às máquinas eco- maquínicas de horizontes sem limites. Certamente Lacan
nômicas e até mesmo às máquinas incorporais da língua, da teve o mérito, com sua teoria do objeto "a", de desterrito-
teoria, da criação estética. O jazz, por exemplo, se alimen- rializar a noção de objeto do desejo, de defini-lo como não
ta ao mesmo tempo de sua genealogia africana e de suas especularizável, escapando assim às coordenadas de espa-
reatualizações sob formas múltiplas c heterogêneas. E será ço e de tempo, de fazê-lo sair do campo limitado ao qual os
assim enquanto ele viver. Mas como toda máquina autopoié- pós-freudianos o haviam destinado - o do seio materno,
122 Caosmose
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dividuação da subjetividade, uma perda de sua polivocida- rios de viagem, às expedições coloniais, aos romances de
de- basta simplesmente pensar na multiplicação de nomes aventura, cuja aura de mistério estava sendo intensificada
próprios atribuídos a um indivíduo, em muitas das socieda- pela fotografia, pelo cinema, pelas gravações sonoras e pelo
des arcaicas. Traços que, correlativamente, têm também a desenvolvimento da etnologia de campo. Se não é ilegítimo
ver com o fato de que se autonomizaram universos deva- e se é sem dúvida inevitável projetar sobre o passado os pa-
lor da ordem do divino, do bem, do verdadeiro, do belo, do radigmas estéticos da modernidade, isto só pode acontecer
poder. .. Tal setorização dos modos de valorização encon- com a condição de se considerar o caráter relativo e virtual
tra-se, doravante, profundamente incrustada na apreensão das constelações de universos de valor, às quais dá lugar este
cognitiva que podemos ter de nossa época, assim como nos tipo de recomposição.
é difícil de entender tais modos quando tentamos decifrar A ciência, a técnica, a filosofia, a arte, a conduta hu-
as diversas formas de sociedade do passado. Como imagi- mana defrontam-se com coerções, com resistências de ma-
nar, por exemplo, que um príncipe do renascimento não teriais específicos, que elas desfazem e articulam, nos limi-
comprasse obras de arte mas requisitasse para si os servi- tes dados, com a ajuda de códigos, de um savoir-faire, de
ços de mestres, cuja notoriedade revertia para seu prestígio? ensinamentos históricos que as levam a fechar algumas por-
Para nós, a subjetividade corporativista com suas implica- tas e a abrir outras. As relações entre os modos finitos des-
ções devotas dos mestres-artesãos da Idade Média que cons- ses materiais e os atributos infinitos dos Universos de pos-
truíram as catedrais tornou-se opaca. Não conseguimos evi- sível que eles implicam não são idênticas em cada uma des-
tar estetizar uma arte rupestre, cujo alcance, tudo leva a crer, sas diferentes atividades. A filosofia, por exemplo, engen-
era essencialmente tecnológico e cultural. Assim, toda lei- dra seu próprio registro de coerções criativas, secreta seu
tura do passado é necessariamente sobrecodificada por nos- material de referência textual, cuja finitude ela projeta a uma
sas referências no presente. Tomar o partido de tais referên- potência infinita que corresponde ao autoposicionamento
cias não significa que tenhamos que unificar ângulos de e à autoconsistência ontológica de seus conceitos-chave, pelo
visão basicamente heterogêneos. menos em cada fase de mutação de seu desenvolvimento. Já
Há alguns anos, uma exposição em Nova Iorque apre- os paradigmas da tecnociência, por sua vez, dão ênfase ao
sentou em paralelo obras cubistas e produções daquilo que mundo objetai de relações e de funções, mantendo sistema-
se convencionou chamar de arte primitiva. Correlações for- ticamente entre parênteses os afetos subjetivos, de modo que
mais, formalistas e finalmente bastante superficiais, eram o finito, o delimitado coordenável, acabe sempre prevale-
assim depreendidas, por estarem as duas séries de criação cendo sobre o infinito de suas referências virtuais.
destacadas de seu respectivo contexto- por um lado, tri- Na arte, ao contrário, a finitude do material sensível
bal, étnico, mítico e, por outro, cultural, histórico, econô- torna-se um suporte de uma produção de afetos e de per-
mico. Não se deve esquecer que o fascínio que as artes afri- ceptos que tenderá cada vez mais a se excentrar em relação
cana, oceânica e indígena exercia sobre os cubistas não era aos quadros e coordenadas pré-formadas. Mareei Duchamp
só de ordem plástica, mas estava também associado a um declarava: "a arte é um caminho que leva para regiões que
exotismo de época, que se estendia às explorações, aos diá- o tempo e o espaço não regem". Os diferentes campos do
1F. Nietzsche, Ecce Homo, prefácio, pp. 2-3, trad. Henri Albert,
Mercure de France, Paris.
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1\2 Caosmose O Novo Paradigma Estético 133
(desaparecimento progressivo da polissemia, da prosódia, tência autopoiética ele só faz intensificar. Entretanto, o fim
do gesto, da mímica, da postura, em proveito de uma lín- da autarquia e do esvaziamento dos universos de valor da fi-
gua rigorosamente assujeitada às máquinas escriturais e a gura precedente não mais constitui sinônimo de uma volta
seus avatares mass-mediáticos). Em suas formas contempo- à agregação territorializada dos Agenciamentos emergentes.
râneas extremas, tal subjetividade tende a se reduzir a uma Do regime da transcendência reducionista não recaímos
troca de fichas informacionais, calculáveis por quantidade na reterritorialização do movimento do infinito segundo os
de bits e reprodutíveis por computador. modos finitos. A estetização geral (e relativa) dos diversos
Assim a individuação modular faz explodir as sobre- Universos de valor conduz a um reencantamento de outra
determinações complexas entre os antigos Territórios exis- natureza das modalidades expressivas da subjetivação. Ma-
tenciais, para remodelar faculdades mentais, um eu, moda- gia, mistério e demoníaco não mais emanarão, como ou-
lidades de alteridade personológica, sexual, familiar, como trora da mesma aura totêmica. Os territórios existenciais·
peças compatíveis com a mecânica social dominante. O sig- '
se diversificam, se heterogenizam. O acontecimento não é
nificante capitalístico, como simulacro do imaginário de po- mais delimitado pelo mito, mas se torna foco de relance pro-
der nesse tipo de Agenciamento desterritorializado, tem por- cessual. O choque incessante do movimento da arte com os
tanto vocação para sobrecodificar todos os outros univer- papéis estabelecidos -já desde o Renascimento, mas so-
sos de valor, inclusive os que habitam o campo do percep- bretudo durante a época moderna - , sua propensão a re-
to e do afeto estéticos. No entanto, tal campo permanece novar suas matérias de expressão e a textura ontológica dos
como foco de resistência da re-singularização e da hetero- perceptos e dos afetos que ele promove, operam se não uma
gênese face à invasão das redundâncias canônicas, e isso contaminação direta dos outros campos, no mínimo o real-
graças à abertura precária das linhas de fuga dos estratos ce e a reavaliação das dimensões criativas que os atraves-
finitos em direção ao infinito incorporai. sam a todos.
Da mesma forma que os Agenciamentos emergentes É evidente que a arte não detém o monopólio da cria-
territorializados, os Agenciamentos capitalísticos desterri- ção, mas ela leva ao ponto extremo uma capacidade de in-
torializados tampouco constituem etapas históricas bem de- venção de coordenadas mutantes, de engendramento de qua-
limitadas. (Pulsões capitalísticas são encontradas no interior lidades de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas. O
dos impérios egípcios, mesopotâmicos, chineses e, depois, limiar decisivo de constituição desse novo paradigma esté-
durante toda a Antigüidade clássica.) tico reside na aptidão desses processos de criação para se
O terceiro tipo de Agenciamento processual será ainda auto-afirmar como fonte existencial, como máquina auto-
mais difícil de captar, pelo fato de estar sendo proposto aqui poiética. Já podemos pressentir o fim dos grilhões que a
a título prospectivo, unicamente a partir de traços e sintomas referência a uma Verdade transcendente impunha às ciên-
que ele parece manifestar hoje. Ao invés de marginalizar o cias como garante de sua consistência teórica. Tal consis-
paradigma estético, esse tipo de agenciamento lhe confere tência, hoje, parece depender cada vez mais de modelizações
uma posição chave de transversalidade em relação aos ou- operacionais, que se encontram o mais coladas possível à
tros universos de valor, cujos focos criacionistas e de consis- empiria imanente. Sejam quais forem as viradas da história,
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talizados como na segunda, os Universos de valor, aqui, en- tro de formas e de estruturas, no horizonte absoluto de to-
contram-se cristalizados em constelações singulares e dinâ- dos os processos de criação. Não se coloca então a quali-
micas, envolvendo e retomando permanentemente estes dois dade ou o atributo como segundo em relação ao ser ou à
modos de produção subjetivos e maquínicos. Não se deve- substância; não se parte de um ser como puro continente
rá nunca confundir aqui o maquinismo e o mecanismo. O vazio e a priori de todas modalidades possíveis de existen-
maquinismo, como entendemos neste contexto, implica um te. O ser é antes de tudo autoconsistência, auto-afirmação,
duplo processo autopoiético-criativo e ético-ontológico (a existência para si desenvolvendo relações particulares de
existência de uma "matéria de escolha") estranho ao meca- alteridade. O para-si, e o para-outrem deixam de ser o pri-
nismo, de modo que o imenso encaixe de máquinas, em que vilégio da humanidade, eles cristalizam em toda parte em
consiste o mundo de hoje, se acha em posição autofunda- que interfaces maquínicas engendrem disparidade e, em con-
dora de sua passagem ao ser. O ser não precede a essência trapartida, são fundadas por ela. A ênfase não é mais co-
maquínica; o processo precede a heterogênese do ser. locada sobre o Ser, como equivalente ontológico geral, o
Emergência arrimada nos Territórios coletivos, Univer- qual, pela mesma razão que outros equivalentes (o Ca~it~l,
sais transcendentes, Imanência processual: três modalidades a Energia, a Informação, o Significante), envolve, dehm1ta
de práxis e de subjetivação que especificam três tipos de e dessingulariza o processo, mas sobre a maneira de ser, a
Agenciamento de enunciação que dizem respeito igualmen- maquinação para criar o existente, as práxis geradoras de
te à psique, às sociedades humanas, ao mundo dos seres heterogeneidade e de complexidade.
vivos, às espécies maquínicas e, em última análise, ao pró- A apreensão fenomenológica do ser, existente enquan-
prio cosmos. Uma tal ampliação "transversalista" da enun- to facticidade inerte, só se dá no quadro de experiências
ciação deveria levar à derrubada da "cortina de ferro onto- limites tais como a náusea existencial ou a depressão me-
lógica", segundo a expressão de Pierre Lévy, que a tradição lancólica. A tomada de ser maquínica, por sua vez, será
filosófica estabeleceu entre o espírito e a matéria. O estabe- antes desdobrada através de envolvimentos temporais e es-
lecimento de um tal ponto transversalista leva a postular a paciais múltiplos e polifônicos e de desenvolvimentos po-
existência de um certo tipo de entidade habitando ao mes- tenciais, racionais e suficientes, em termos de algoritmos de
mo tempo os dois domínios, de tal modo que os incorpo- regularidades e de leis, cuja textura é tão real quanto suas
rais de valor e de virtualidade adquiram uma espessura on- manifestações atuais. Uma ecologia do virtual se impõe en-
tológica nivelada com a dos objetos engastados nas coor- tão aqui como complemento necessário das ecologias do já
denadas energético-espácio-temporais. existente.
Trata-se, aliás, menos de uma identidade de ser, que As entidades maquínicas que atravessam esses diferen-
atravessaria regiões, em suma, de textura heterogênea, do tes registros de mundos atualizados e de Universos incor-
que de uma mesma persistência processual. Nem o Um-todo porais são um Jano bifronte. Elas existem paralelamente em
dos platônicos, nem Primeiro motor de Aristóteles, essas en- estado discursivo no seio dos Fluxos molares, em relação de
tidades transversais se apresentam como hipertexto maquí- pressuposição com um corpus de proposições semióticas
nico se instaurando muito além de um simples suporte neu- possíveis e em estado não-discursivo, no seio de focos enun-
148 Caosmose
Espaço e Corporeidade
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O espaço e o corpo, quando considerados por discipli-
nas como a arquitetura e a medicina, são apreendidos a
partir de categorias distintas e autônomas. É de um ponto
de vista completamente diferente que desejo aqui relacioná-
los: o de seu Agenciamento de enunciação.
A abordagem fenomenológica do espaço e do corpo vi-
vido mostra-nos seu caráter de inseparabilidade. Por exem-
plo, no sono e no sonho, o corpo fantasmado coincide com
as diferentes modalidades de semiotização espacial que po-
nho em funcionamento. A dobra do corpo sobre si mesmo
é acompanhada por um desdobramento de espaços imagi-
nários. Quando dirijo um carro, minha atração pelo espa-
ço frontal equivale a colocar entre parênteses meu esquema
corporal, deixando de lado a visão e os membros que se
acham em posição de sujeição cibernética à máquina auto-
mobilística e aos sistemas de sinalização emitidos pelo meio
rodoviário. No cinema, o corpo se encontra radicalmente
absorvido pelo espaço fílmico, no seio de uma relação qua-
se hipnótica. Durante a leitura de um texto escrito, o traça-
do da articulação fonemática libera, de modo descontínuo,
suas seqüências significativas de articulação monemática.
Ainda aí um outro Agenciamento de enunciação desenca-
deia outras modalidades de espacialização e de corpora-
lidade. O espaço da escritura é, sem dúvida, um dos mais
misteriosos que se nos oferece, e a postura do corpo, os rit-
mos respiratórios e cardíacos, as descargas humorais nele
interferem fortemente. Tantos espaços, então, quantos fo-
rem os modos de semiotização e de subjetivação.
Mas não devemos nos contentar com esse primeiro as-
pecto de diversificação diacrônica. Existe igualmente, a cada
instante da demarcação aqui e agora, um "folheado" sin-
crônico de espaços heterogêneos. Para retomar os exemplos
precedentes, posso ao mesmo tempo me encontrar atraído
pelo ponto de fuga da circulação rodoviária e desdobrar um
J
Daniel Stern não prossegue sua investigação para além me abandonam, eles também, em uma cidade estrangeira.
da idade de dois anos, mas poder-se-ia, certamente, visua- Quanto ao self verbal, ele consiste em transformar em fra-
lizar a aparição ulterior: ses um acontecimento que, na infância, foi vivido, em sua
-de um self escritura! (correlativo à entrada da criança essência, no aquém da linguagem.
na escola); Essa experiência de subjetivação do espaço só apresenta
- de um self da puberdade etc ... um caráter de exceção na medida em que revela uma falha
O "momento fecundo" que surgiu para mim na ponte psíquica deixando entrever, de modo quase pedagógico, as
de São Paulo parece-me corresponder a ter posto novamente estratificações do self. Mas qualquer outro espaço vivido
em funcionamento o self emergente, com seu sentimento co- engajaria igualmente tais aglomerados sincrônicos da psi-
movente de primeira descoberta do mundo e, além disso, que que apenas o trabalho poético, a experiência delirante
com uma reorganização tópica das outras modalidades do ou a explosão passional podem atualizar. É assim que cer-
self. O se/f núcleo relativo à tomada de consistência do corpo tos psicóticos se encontram atormentados por vozes, nos
se encontra como que petrificado, no limite da catatonia quatro cantos do espaço, que os interpelam, freqüentemente
psicótica, ao passo que o terceiro domínio do vínculo inter- para insultá-los.
pessoal, intersubjetivo, mobiliza o que Daniel Stern chama Será que a arquitetura tem alguma relação com essa
um "companheiro evocado", o qual não funciona, como ele diacronia e essa polifonia dos espaços? Seria o domínio cons-
o enfatiza, a título de lembrança de um acontecimento real truído sempre unívoco, de "mão única"? Evidentemente
e passado, mas enquanto exemplar ativo dos acontecimen- qualquer construção é sempre sobredeterminada ao menos
tos relativos ao período considerado. por um estilo, mesmo quando esse estilo brilha por sua au-
De fato, esse "companheiro evocado" remete a repre- sência. Como diz Wittgenstein: "cada coisa se encontra, por
sentações de interação generalizadas que não são aprensíveis assim dizer, em um espaço de coisas possíveis".
diretamente, devido a seu caráter de entidade abstrata 2 . Essa Tomemos, por exemplo, a textura dos materiais e os
idéia de um afeto abstrato me parece capital. Não é porque dispositivos espaciais daquilo que se convencionou chamar
o afeto se dá de uma maneira global que ele é composto de "a Idade Média". Eles são sempre portadores de uma aura
uma matéria bruta pulsional. É também através desse tipo de mistério como se seu próprio apoio no solo os irrigasse
de afeto que surgem, ao escutar uma frase de Debussy, ou com uma potência secreta. Uma feiticeira ou um alquimis-
ao ver um cartaz futurista, universos de uma extrema com- ta continua, aí, a trabalhar furtivamente desde um tempo
plexidade. Na ponte de São Paulo, é todo um mundo da imemorial. Ao contrário, é a um mundo de ficção científica
infância que se anima. O companheiro evocado aqui é a mãe que nos remetem as extraordinárias construções de um Shin
que se distancia de mim, explicando-me que me deixa so- Takamatsu e isso apesar de seu caráter maquínico "ultra-
zinho por um momento, que ela vai voltar, intensidade afe- passado", posto que fixado aos clichês futuristas do início
tiva substituída por meus companheiros de caminhada que do século. Quer tenhamos consciência ou não, o espaço
construído nos interpela de diferentes pontos de vista: esti-
2 Op. cit, p. 113. lístico, histórico, funcional, afetivo ... Os edifícios e constru-
i~
ções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas pro- feração extraordinária dos componentes subjetivos, tanto
duzem uma subjetivação parcial que se aglomera com ou- para o melhor quanto para o pior. (Subjetividade coletiva
tros agenciamentos de subjetivação. Um bairro pobre ou da reemergência de arcaísmos religiosos e nacionalistas. Sub-
uma favela fornecem-nos um outro discurso e manipulam jetividade maquínica dos mass mídia, da qual se pode espe-
em nós outros impulsos cognitivos e afetivos. A partir des- rar que terminará, ela também, por encontrar as vias da sin-
sa constatação rudimentar, alguns arquitetos como Henri gularidade, engajando-se em uma era pós-mídia) Todos es-
Gaudin começaram a preconizar um retorno puro e simples ses componentes de subjetividade social, maquínica e esté-
às dissimetrias de outrora 3 . Uma tal nostalgia do passado tica nos assediam literalmente por toda parte, desmembran-
parece-me no mínimo aleatória, dado que a história não ofe- do nossos antigos espaços de referência. Com maior ou me-
rece jamais os mesmos "pratos" e que toda apreensão au- nor felicidade e com uma velocidade de desterritorialização
têntica do passado implica sempre uma recriação, uma rein- cada vez maior, nossos órgão sensoriais, nossas funções or-
venção radical. A esse respeito, as rupturas de simetria de gânicas, nossos fantasmas, nossos reflexos etológicos se en-
um T adao Ando me parecem bem mais interessantes, na me- contram maquinicamente ligados em um mundo técnico-
dida em que procedem a partir de formas ortogonais pro- científico que está realmente engajado em um crescimento
priamente modernistas, o que o leva à reinvenção de todas louco. O mundo não muda mais de dez em dez anos, mas
as novas intensidades de mistério. de ano em ano. Nesse contexto, a programação arquitetu-
O alcance dos espaços construídos vai então bem além ra! e urbanística parece caminhar a passos de dinossauro.
de suas estruturas visíveis e funcionais. São essencialmente Assim um arquiteto escrupuloso seria condenado a perma-
máquinas, máquinas de sentido, de sensação, máquinas abs- necer de braços cruzados face à complexidade das questões
tratas funcionando como o "companheiro" anteriormente que o assolam?
evocado, máquinas portadoras de universos incorporais que Mas se é verdade que as interações entre o corpo e o
não são, todavia, Universais, mas que podem trabalhar tanto espaço construído se desdobram através de campos de vir-
no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no tualidade cuja complexidade beira o caos- cidades como
de uma re-singularização liberadora da subjetividade indi- o México se dirigem a toda velocidade para uma asfixia eco-
vidual e coletiva. lógica e demográfica que parece insuperável-, talvez cai-
Creio que, após os estragos estruturalistas e a prostra- ba aos arquitetos e aos urbanistas pensar tanto a complexi-
ção pós-moderna, é urgente voltar a uma concepção "ani- dade quanto o caos segundo caminhos novos? O equivalente
mista" do mundo. O desfecho modernista deve frustrar o aqui dos "atratores estranhos" da termodinâmica dos esta-
unidimensionalismo, as características de generalidade e de dos distantes do equilíbrio poderia ser buscado junto aos
formalismo sob as quais ele parecia dever ser esmagado. Agenciamentos potenciais de enunciação que habitam secre-
Toda a história deste fim de milênio nos mostra uma proli- tamente o caos urbano e arquitetura!. Mas de um tal para-
digma científico devemos rapidamente passar a um para-
3H. Gaudin, La colonne et le labyrinthe, Editions Pierre Mardaga, digma estético. O projeto (dessin) do arquiteto- que, em
Bruxelas, 1984. francês é homófono de intenção (dessein), o objetivo, a fi-
cada um desses dois componentes. Assim a transversalidade mente que elas aí se deixem submergir.
do "tempo reencontrado", a ressonância perturbadora que Convém, pois, associar esse retorno a uma assunção es-
permite passar de um universo a outro, serão sempre dados tética a uma responsabilidade ético-política de ordem mais
em acréscimo, como um dom de Deus. geral que pede a consideração, em alma e consciência, de
Tudo se reduz sempre a essa questão dos focos de enun- múltiplas "matérias opcionais". O essencial do trabalho do
ciação parcial, da heterogênese dos componentes e dos pro- arquiteto reside nas escolhas que ele é levado a fazer. Por que
cessos de re-singularização. É para essa direção que deveriam escutar os imperativos de tal componente mais do que os de
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O ser humano contemporâneo é fundamentalmente
desterritorializado. Com isso quero dizer que seus territó-
rios etológicos originários - corpo, clã, aldeia, culto, cor-
poração ... - não estão mais dispostos em um ponto preci-
so da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos in-
corporais. A subjetividade entrou no reino de um noma-
dismo generalizado. Os jovens que perambulam nos bou-
levards, com um walkman colado no ouvido, estão ligados
a ritornelos que foram produzidos longe, muito longe de
suas terras natais. Aliás, o que poderia significar "suas ter-
ras natais"? Certamente não o lugar onde repousam seus an-
cestrais, onde eles nasceram e onde terão que morrer! Não
têm mais ancestrais; surgiram sem saber por que e desapa-
recerão do mesmo modo! Possuem alguns números infor-
matizados que a eles se fixam e que os mantêm em "prisão
domiciliar" numa trajetória sócio-profissional predetermi-
nada, quer seja em uma posição de explorado, de assistido
pelo Estado ou de privilegiado.
Mas enfatizemos imediatamente o paradoxo. Tudo
circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas, os
chips da informática, as filiais industriais e, ao mesmo
tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar, tan-
to as diferenças se esbatem entre as coisas, entre os homens
e os estados de coisas. No seio de espaços padronizados,
tudo se tornou intercambiável, equivalente. Os turistas, por
exemplo, fazem viagens quase imóveis, sendo depositados
nos mesmos tipos de cabine de avião, de pullman, de quar-
tos de hotel e vendo desfilar diante de seus olhos paisagens
que já encontraram cem vezes em suas telas de televisão, ou
em prospectos turísticos. Assim a subjetividade se encon-
tra ameaçada de paralisia. Poderiam os homens restabele-
cer relações com suas terras natais? Evidentemente isso é
impossível! As terras natais estão definitivamente perdidas.
Mas o que podem esperar é reconstituir uma relação parti-
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Restauração da Cidade Subjetiva 169
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cular com o cosmos e com a vida, é se "recompor" em sua civilização. Em outros termos, é a distinção mesma entre a
singularidade individual e coletiva. A vida de cada um é cidade e a natureza que tenderá a se esmaecer, dependendo
única. O nascimento, a morte, o desejo, o amor, a relação os territórios "naturais" subsistentes, em grande parte, de
com o tempo, com os elementos, com as formas vivas e programação com o fim de organizar espaço de lazer, de es-
com as formas inanimadas são, para um olhar depurado, porte, de turismo, de reserva ecológica ...
novos, inesperados, miraculosos. Essa mundialização da divisão das forças produtivas e
Essa subjetividade em estado nascente- o que o psica- dos poderes capitalísticos não é absolutamente sinônimo de
nalista americano Daniel Stern denomina "o si mesmo emer- uma homogeneização do mercado, muito pelo contrário.
gente"-, cabe a nós reengendrá-la constantemente. Não se Suas diferenças desiguais não se localizam mais entre um
trata mais aqui de uma "Jerusalém celeste", como a do Apo- centro e sua periferia, mas entre malhas urbanas superequi-
calipse, mas da restauração de uma "Cidade subjetiva" que padas tecnologicamente, e sobretudo informaticamente, e
engaja tanto os níveis mais singulares da pessoa quanto os imensas zonas de habitat de classes médias e de habitat sub-
níveis mais coletivos. De fato, trata-se de todo o porvir do desenvolvido. É muito característico, por exemplo em Nova
planeta e da biosfera. Re-singularizar as finalidades da ati- Iorque, ver um dos grandes centros da finança internacio-
vidade humana, fazê-la reconquistar o nomadismo existen- nal, no ponto extremo de Manhattan, coexistir com verda-
cial tão intenso quanto o dos índios da América pré-colom- deiras zonas de subdesenvolvimento, no Harlem e no South
biana! Destacar-se então de um falso nomadismo que na rea- Bronx, sem falar das ruas e dos parques públicos invadidos
lidade nos deixa no mesmo lugar, no vazio de uma moder- por mais de 300 mil homeless'f e cerca de um milhão de
nidade exangue, para aceder às verdadeiras errâncias do de- pessoas amontoadas em lugares superpovoados.
sejo, às quais as desterritorializações técnico-científicas, ur- Doravante não existe mais, com efeito, uma capital que
banas, estéticas, maquínicas de todas as formas, nos incitam. domine a economia mundial, mas um "arquipélago decida-
Como infletir o destino coletivo em um sentido menos des" ou mesmo, mais exatamente, subconjuntos de grandes
serial, para retomar um termo caro a Jean-Paul Sartre? Tudo cidades, ligados por meios telemáticos e por uma grande di-
dependerá dare-finalização coletiva das atividades humanas versidade de meios de comunicação. Pode-se dizer que a ci-
e, sem dúvida, em primeiro lugar, de seus espaços construí- dade-mundo do capitalismo contemporâneo se desterrito-
dos. Mas o que serão as mentalidades urbanas do futuro? rializou, que seus diversos constituintes se espargiram sobre
Levantar essa questão já é um pleonasmo, na medida em que toda a superfície de um rizoma multipolar urbano que en-
o porvir da humanidade parece inseparável do devir urbano. volve o planeta. Homoteticamente encontrar-se-ão nascida-
Os prospectivistas predizem-nos, com efeito, que nos des muito pobres do Terceiro Mundo, onde se amontoam
decênios futuros cerca de 80% da população mundial vi- milhões de pessoas em imensas favelas, focos urbanos alta-
verão em aglomerados urbanos. E, devido a isso, convém
acrescentar que os 20% restantes da população mundial, ,,. Nome dado, nos EUA, aos desabrigados nos grandes centros, bem
mesmo que "escapem" do habitat da cidade, dela serão en- como ao movimento por moradia que corresponde, no Brasil, aos "sem-
tretanto tributários, através de vários liames técnicos e de teto". (N. da Rev. Téc.)
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Práticas Analíticas e
Práticas Sociais
I ,~· I
Trabalho desde 1955 na Clínica de La Borde; fui con-
vidado a colaborar nessa experiência por meu amigo Jean
Oury que é seu fundador e o principal animador. O castelo
de La Borde está situado a 15km ao sul de Blois na comuna
de Cour-Cheverny. Durante esses primeiros anos, foi real-
mente apaixonante participar da instalação das instituições
e dos equipamentos do que deveria se tornar a primeira ex-
periência de "Psicoterapia institucional" no âmbito de um
estabelecimento privado. Nossos meios materiais eram ainda
mais fracos do que atualmente, porém maior era nossa li-
berdade de ação. Não existia, naquela época, hospital psi-
quiátrico no departamento':- de Loir et Cher, tendo sido o
de Blois fechado durante a guerra. Assim as autoridades
viam com muito bons olhos a implantação dessa clínica
"não como as outras", que supria quase por si só as neces-
sidades do departamento.
Foi então que aprendi a conhecer a psicose e o impac-
to que poderia ter sobre ela o trabalho institucional. Esses
dois aspectos estão profundamente ligados, pois a psicose,
no contexto dos sistemas carcerários tradicionais, tem seus
traços essencialmente marcados ou desfigurados. É somen-
te com a condição de que seja desenvolvida em torno dela
uma vida coletiva no seio de instituições apropriadas que ela
pode mostrar seu verdadeiro rosto, que não é o da estranhe-
za e da violência, como tão freqüentemente ainda se acre-
dita, mas o de uma relação diferente com o mundo.
Nos anos cinqüenta, a psiquiatria francesa- deixan-
do de lado algumas experiências-piloto como a de Saint
Alban, em Lozere, ou em Fleury les Aubrais, no Loiret, ti-
nha a sordidez que se encontra ainda, por exemplo, na ilha
de Leros na Grécia, ou no hospital de Dafne, próximo a Ate-
nas. Os psicóticos, objetos de um sistema de tratamento qua-
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se animal, assumem necessariamente uma postura bestial, ver o Comitê intra-hospitalar da Clínica, em particular o
andando em círculos o dia inteiro, batendo a cabeça contra Clube dos pensionistas. Minha suposta competência nesse
as paredes, gritando, brigando, aviltando-se na sujeira e nos domínio vinha do fato de que, desde os dezesseis anos, eu
excrementos. Esses doentes, cuja apreensão e relação com não cessara de "militar" em organizações tais como "os Al-
o outro estão perturbadas, perdem pouco a pouco, em um bergues da Juventude" e toda uma gama de movimentos de
tal contexto, suas características humanas, tornando-se sur- extrema-esquerda. É verdade que eu sabia animar uma reu-
dos e cegos a qualquer comunicação social. Seus guardiães, nião, estruturar um debate, solicitar que as pessoas silencio-
que não possuíam nessa época nenhuma formação, eram sas tomassem a palavra, fazer surgir decisões práticas, re-
obrigados a se proteger sob um tipo de couraça de desuma- tornar às tarefas anteriormente decididas ... Em alguns me-
nidade, se quisessem eles mesmos escapar do desespero e da ses, contribuí assim para a instalação de múltiplas instâncias
depressão. coletivas: assembléias gerais, secretariado, comissões pa-
Passei então a conviver com Jean Oury desde o início ritárias pensionistas-pessoal, subcomissão de animação para
dos anos cinqüenta. Ele havia aprendido o ofício de psiquia- o dia, escritório de coordenação dos encargos individuais e
tra com François Tosquelles, em Saint Alban, onde se pro- "ateliês" de todos os tipos: jornal, desenho, costura, gali-
duzira, durante a guerra, uma verdadeira revolução inter- nheiro, jardim etc.
na através da luta pela sobrevivência coletiva, a abertura Mas, para instaurar uma tal multiplicidade de estrutu-
para o exterior, a introdução de métodos de grupo, de ate- ras, não era suficiente mobilizar os doentes; era necessário
liês, de psicoterapias ... Também eu, antes de encontrar Jean também poder contar com o máximo de membros do pes-
Oury, acreditava que a loucura encarnava um tipo de aves- soal. Isso não trazia nenhuma dificuldade com a equipe dos
so do mundo, estranho, inquietante e fascinante. No estilo animadores mais antigos, que haviam sido cooptados, como
de vida comunitária que era então o de La Borde naqueles eu mesmo o fora, na base de um projeto comum e de um
anos, os doentes me apareceram sob um ângulo completa- certo "ativismo" anterior. Mas não acontecia o mesmo com
mente diferente: familiares, amigáveis, humanos, dispostos os novos membros do pessoal, que vinham das proximida-
a participar da vida coletiva em todas as ocasiões onde isso des, que haviam abandonado um emprego ou um meio agrí-
era possível. Uma verdadeira emulação existia no seio das cola, para se engajar na clínica como cozinheiros, jardinei-
reuniões cotidianas do pessoal (às seis horas da tarde) para ros, faxineiras, recreadores. Como iniciar esses recém-che-
levar ao conhecimento de todos o que havia sido feito e dito gados em nossos métodos psiquiátricos, como evitar que não
ao longo do dia. Tal doente catatônico acabava de falar pela se criasse uma cisão entre as tarefas supostamente nobres
primeira vez. Um outro fora, ele mesmo, trabalhar na cozi- dos "técnicos" e as tarefas materiais ingratas do pessoal de
nha. Uma maníaco-depressiva havia causado algumas per- manutenção? (Esses últimos, dependendo do ângulo em que
turbações durante as compras em Blois. se colocavam, consideravam entretanto que somente o tra-
Jean Oury pedira que me reunisse à sua equipe- e, balho material era efetivo, ao passo que os "monitores" só
com isso, que interrompesse meus estudos de filosofia - faziam tagarelar em reuniões inúteis ... )
pois precisava, pensava ele, de minha ajuda para desenvol- Nessa etapa de seu desenvolvimento, o processo insti-
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DO MESMO AUTOR
Eric Alliez
Félix Guattari
coleção TRANS
ISBN 85-85490-01-2
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