Identitarios
Identitarios
Identitarios
eleições de 2018
O resultado da eleição presidencial ainda estava sendo digerido pela esquerda quando
Ciro Gomes, derrotado no primeiro turno, ofereceu uma explicação simples para o
que nosso povo tem com políticas públicas para afirmar um identitarismo de minorias
De alguns anos para cá, parte da esquerda passou a reconhecer que a desigualdade
econômica precisa ser combatida junto a essas outras formas de desigualdade, que se
entrecruzam. Mas a centralidade que vem ganhando as pautas dos movimentos
identitários ainda é incômoda. “Tentar enfiar as narrativas identitárias pela goela abaixo
do pobre só vai continuar dando errado”, opinou via Twitter a cantora Lolly Amâncio,
ao comentar a entrevista de Ciro Gomes. Vocalista de uma banda de rock baseada na
Baixada Fluminense, região da área metropolitana do Rio historicamente abandonada
pelo poder público, ela declarou com firmeza: “Aceitem os fatos, deu merda e isso
ajudou a eleger um Fascista.”
O foco nas pautas identitárias foi responsável pela derrota da esquerda? Ou seria o
identitarismo o bode expiatório escolhido pelos progressistas que nunca o engoliram
diante da onda reacionária que lhe deu um caldo nessas eleições?
Conversamos sobre o assunto com a relações públicas e escritora Gabriela Moura, parte
do coletivo feminista Não me Kahlo. Para ela, é um erro acreditar que as pautas
identitárias devam ocupar um lugar secundário na agenda de esquerda. O problema não
estaria na atenção reservada ao tema, mas sim na incapacidade dos movimentos de
comunicarem direito suas pautas a quem está fora da bolha. “Você tem que adequar
seus discursos e se fazer entender”, defende Moura.
A ativista critica ainda o crescimento de uma representatividade vazia – a eleição de
mulheres com bandeiras antifeministas, por exemplo –, fruto dessa dificuldade de
comunicação da esquerda, e a falta de cruzamento entre os movimentos identitários com
a questão de classe. “Para mim não existe nenhuma defesa identitária válida que não
passe pela questão de classe”, resume. “Assim como eu não acredito em uma luta de
classes descolada das questões identitárias.”
Gabriela Moura – Vitória é uma palavra meio forte. Quando a gente pega esse número
isolado, de 26 mulheres a mais do que na antiga bancada, parece, sim, uma evolução da
representatividade política das mulheres. Ao colocarmos um zoom na situação, vemos
que não é bem assim. Quando a gente tem mulheres que são declaradamente pró-
Bolsonaro, obviamente isso muda muito pouco a situação das mulheres no tocante a
políticas do gênero, do ser mulher. Então é uma pegadinha. Uma cilada que pode ser
usada como um grande cala boca, porque aí as pessoas que vão falar assim: “Não, não
pode reclamar, porque tem, sim, mulher na jogada, então vocês estão representadas.”
Mas a representatividade não se dá meramente por termos mulheres no Congresso, mas
pela posição política que elas defendem e pelas ideias que vão colocar lá dentro.
Isso põe um bom pé no peito na esquerda, que era necessário. Quando os caras da
direita chegam para a gente e falam: ‘A gente elegeu muito mais mulheres do que
vocês’, eles têm um ponto, de fato.
Mas o que a esquerda vai fazer então já que a gente se coloca numa situação de
oposição? Como a gente vai fazer esse debate e entender as questões identitárias não
como um problema, mas como algo que não pode ser apresentado sem um
aprofundamento? Ou seja, não é sobre eleger mulheres e ponto final. É sobre quais
mulheres serão eleitas, porque se você tem uma Janaína Paschoal e um Guilherme
Boulos, que é um homem, branco, de classe alta etc., como você faz a defesa de que
prefere um homem do que uma mulher?
Não vamos ter as respostas na ponta da língua. É preciso pegar essa provocação e fazer
uma autocrítica para entender como a política pode ser feita em todos os períodos, não
só no período eleitoral. Bem ou mal, a direita só alçou a condição que eles conseguiram
alçar, porque eles estavam sim junto do povo, levando o discurso que o povo gosta, que
são respostas muito mais práticas, muito mais rápidas, a curto-médio prazo. Enquanto a
esquerda – e eu obviamente me coloco nisso, numa autocrítica, também –, fica nessa
masturbação mental de levar o pensamento para esferas que às vezes nem a gente
consegue alcançar. E obviamente assim não vamos conseguir afetar as massas
positivamente.
Basicamente.
Como a gente volta para esse trabalho de base, que historicamente já foi muito
forte na esquerda e agora está muito nas mãos das igrejas e da direita?
Eu não sei te explicar como nos afastamos, porque é todo um processo. A esquerda é
fragmentada, não no sentido de “a esquerda não se une”. Existem diversas linhas de
pensamento na esquerda. A intelectualização da esquerda é muito boa, eu acho
necessária e acredito sim que as ciências devem ser usadas a nosso favor. Só que essas
mesmas ciências têm que ser popularizadas. É aquilo que as pessoas falam: você joga
um debate na USP, que é longe para caramba, não é fácil de chegar, às 15h. Quem você
espera receber? Enquanto isso, a direita está usando o Whatsapp, está conversando com
o tiozinho da esquina, está conversando com o cara que foi assaltado e está puto, porque
foi assaltado, sabe?
É você adequar o seu discurso. Quando eu me formei em comunicação, isso foi uma
coisa que me tocou e que eu tento policiar muito, que é a adequação do discurso. A
gente tem uma mania arrogante de dizer: “Eu sou responsável pelo que eu falo, não pelo
que você entende”. Não é isso, é o contrário. Se eu estou te passando uma mensagem,
eu sou sim responsável pelo que você entende se eu quero que você me compreenda. E
aí, mais para frente, se quisermos levar isso para outras esferas, podemos levar. Mas não
vou conseguir isso se não fizer o trabalho de base levando o bê-a-bá. A esquerda ficou
tão estigmatizada que qualquer mínimo ato humano que seja é tido como comunismo. E
o comunismo é visto praticamente como um crime, não como um viés político que pode
ser estudado, pode sim ser contestado. Mas [é visto] como crime. Então se você é
minimamente simpático [a ideias comunistas], você é tido como um criminoso. As
pessoas não sabem, elas não gostam, elas não querem saber. Então a direita ganhou
muito bem essa parcela da população, eles souberam fazer esse trabalho e a gente se
fudeu.
Exato. A população tem que entender o que é ser identitário. A questão dos
supremacistas brancos… a história é cíclica. Voltamos a um ponto perigoso. Acredito
que, em breve, a gente possa ter que enfrentar os mesmos tipos de manifestações que
acontecem nos Estados Unidos. Talvez de uma forma um pouco mais sutil, porque esse
tipo de manifestação nos Estados Unidos não é criminalizada, é tida como uma forma
de direito à expressão. Temos que entender primeiro o que é ser identitário e quais são
as identidades que vamos trabalhar e como. Para mim, particularmente, não existe
nenhuma defesa identitária válida que não passe pela questão de classe. Essa é uma
opinião pessoal minha. Assim como eu não acredito em uma luta de classes descolada
das questões identitárias – de raça, de gênero, de sexualidade.
Quando o Bolsonaro chega e fala: “Tem essa ministra aqui que é mulher”, mas o
apelido dela é Musa do Veneno, alguma coisa está muito errada e isso devia ligar o
pisca-alerta. É sim uma armadilha discursiva, porque quando a gente reivindica: “Eu
quero mulher, quero negro, quero LGBT”, não especifica as pautas que são defendidas.
Eu quero um negro, mas não que me dê veneno. Eu quero mulher que defenda o direito
ao aborto, os direitos reprodutivos. Também estamos falhando nessa comunicação sobre
o que nós estamos reivindicando, o que é necessário para a nossa população agora.
Eu concordo muito com a primeira parte, não concordo com esse final. Acho que
podemos sim prosperar com essas pautas, desde que haja essas premissas que você
falou no começo. Se a gente simplesmente joga as pautas identitárias isoladas, de fato
elas não vão fazer sentido e a gente vai formar pequenas microbolhas: a população
negra, a população LGBT, a população X, Y, Z. Temos que encontrar nosso
denominador comum, o tronco que nos une em relação a isso. Qual o histórico dessas
lutas? Se você pega a história do feminismo, do movimento negro, do movimento
LGBT, cada um tem uma gênese. A gente tem que resgatar essa gênese e
recontextualizar com o que estamos vivendo agora.
Você deu um exemplo mais consensual, vou ser um pouco mais polêmica. Você pega
um adolescente negro que não tem consciência de classe, consciência histórica. Mas o
cara está construindo uma autoestima em cima de uma lógica de consumo. Ele quer ser
lacrador, ele quer ser muito foda, imitar a Beyoncé, a Djamila [Ribeiro]. Isso é
totalmente individual e pode fazer muito bem para ele enquanto indivíduo. O macro vai
continuar intacto, porque a estrutura não vai ser mudada em nível nenhum. Ele vai
continuar sendo discriminado na rua, na faculdade, no trabalho, se ele conseguir
trabalho. Eu concordo sim que as lutas identitárias têm que ser vistas com muita
delicadeza, muito cuidado. Só que eu não descartaria elas, não colocaria em segundo
lugar, como muitas pessoas colocam. Para mim é um erro.
Vamos a um exemplo. Depois da entrevista do Bolsonaro no Roda Viva, em que ele
engoliu os jornalistas, nós perguntamos à pessoa que faz faxina aqui na redação:
“A senhora está preocupada se os arquivos da ditadura vão ser abertos ou não?”
Ela disse que não. “A senhora está preocupada com o quê?” Ela falou que com
emprego, saúde, educação. A pergunta poderia ter sido sobre representatividade
feminina ou negra e a resposta, suponho, teria sido parecida. Como mostrar que as
pautas identitárias e essas preocupações andam juntas?
Aí todo o resto fica muito em último lugar, porque as pessoas simplesmente não têm
tempo para pensar sobre isso. Essa é uma lógica capitalista cruel. Ela te coloca sempre
ocupada, com problemas muito básicos, que não deviam nem existir, que são passar
fome e ter onde morar, para você não ter tempo para pensar em outras coisas que
formam as relações humanas. Então para você quebrar esse ciclo cruel, você tem
primeiro que questionar todo o sistema econômico que está cristalizado há séculos e que
está sendo colocado como normal.
Muitas pessoas têm dito que o identitarismo elegeu o Bolsonaro. Isso me parece um
exemplo de backlash. Minha impressão é que de forma parecida com o que
acontece com o feminismo, o identitarismo está sendo demonizado como o
responsável pelas mazelas dos grupos identitários.
Total.
Como a gente sai desse ciclo quando a história nos mostra que estamos repetindo
isso há, no mínimo, um século e meio?
Toda vez que a gente tem uma onda minimamente progressista que seja, a gente tem
esse efeito rebote muito intenso. Porque, óbvio, a camada que detém o poder entende
bem isso, eles vão se armar dos ardis mais sujos que puderem. Toda ala da esquerda,
sejam feministas, comunistas, anarquistas, ecologistas, o que seja, são vilões. São
pessoas que trabalham temas que as fazem ser vistas como destrutivas para a sociedade.
A gente precisa mostrar para a população o que são essas pautas. O que significa ser
feminista, o que significa a luta indígena, a luta negra, a luta LGBT. Porque não se sabe,
isso ainda é uma coisa muito presa a poucas pessoas que têm acesso a essas
informações, como eu e você. A gente sabe que nós duas podemos ter uma conversa
tranquila, mas se for falar [nesses termos] com a senhora que faz faxina aí que você
falou, não vai rolar. E também o contrário, eles não conseguem se fazer entender. Então
a gente fica sempre nadando no mega raso.
Esse movimento é natural. A gente entraria talvez até numa questão psicológica disso
que é da construção da autoestima dos grupos marginalizados. Ninguém gosta de ser
marginalizado. Não é legal e você luta o tempo todo para ser parte de um grupo maior.
Esse grupo dominante, que são esses grupos liberais, que prezam o prazer individual e o
imediatismo, ditam o que é ser legal, o que é ser aceito. É normal que essa pessoa que
está nessa situação de construção de autoestima queira seguir muito mais esse caminho
do que outro que não tem incentivo nenhum. Não é porque essa pessoa é fraca, é porque
ela só tem isso como referência.
Exatamente [risos].
Como fazer para reverter esse aparente esvaziamento das pautas identitárias e
fazer com que elas retornem à sua origem?
Isso vai ser difícil, porque quando você questiona isso, você está mexendo justamente
com o brio, o ego das pessoas. E chega nesse momento de falar: “Cara, não é assim,
você está errado.” Não com essas palavras, mas você tem que mostrar que esse caminho
está errado e que outro tem que ser tomado. Você acaba arranjando mais um problema
que precisa ser contornado, que é a construção do eu de todo mundo que forma esse
coletivo. Mas acaba que para a gente poder reverter esse quadro – óbvio, isso não vai
acontecer em um ano, cinco anos, dez anos – isso perpassa esse caminho doloroso, tanto
da descoberta quanto de você ficar o tempo todo fora da zona de conforto. Então você
está o tempo todo em uma situação que é incômoda, que é ruim, que é desagradável,
mas que é necessária para que haja essa reversão.
Você se refere a falar que é preciso tomar outro caminho para as pessoas que estão
envolvidas nas lutas identitárias ou para as pessoas em geral?
Todo mundo. Você não vai falar da mesma forma, porque nem todo mundo vai
entender. Você tem que adequar o seu discurso e se fazer entender.
Do The Intercept
Identitarismo: trabalhador vira inimigo e
bilionário aliado
De: Wanderson Marçal / 10 meses atrás
Por vezes as pessoas me perguntam por que o identitarismo tomou conta do campo
progressista tão depressa. Como para quase tudo, não há um único motivo: a queda da
URSS deixou a esquerda órfã de uma orientação; a hegemonia neoliberal no mundo deu
uma guinada no espectro político à direita; e os movimentos por direitos individuais
ganharam legitimidade diante do fato de que problemas como machismo, homofobia e a
separação turva entre Estado e religião sempre foram um tanto negligenciados nos
países capitalistas.
E essa aristocracia percebeu que precisa legitimar seu domínio. Nada melhor do que
fazer propaganda de ideais que lhe confiram uma roupagem humanista e ao mesmo
tempo desmantelem qualquer possibilidade de se questionar seus privilégios: enquanto
uma pessoa negra, uma mulher e um ateu estão procurando um indivíduo de cor branca,
um homem e um religioso para culpar pelas mazelas do mundo, para chamar de
privilegiado, eles não perceberão que todos eles fazem parte do 99% que é explorado
pelo 1%, pelo topo da pirâmide. O 1% que agora é visto, por seu financiamento, sua
suposta generosidade e modernidade, como promotor de um mundo melhor por
defender a diversidade. O Luciano Huck que faz discurso contra o machismo, que
patrocina site lacrador em nome das minorias passa a ser visto como alguém melhor que
o Seu João da esquina, peão, trabalhador, embrutecido pela vida e que manda a, b ou c
tomar naquele lugar (o que seria homofóbico). Huck vira aliado e João, trabalhador,
inimigo.
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Eu não sou um homem hétero, cis, branco e cristão. Mas se fosse um deles, muito
dificilmente votaria em um partido desses da esquerda identitária. Cada pessoa vota,
principalmente em eleições majoritárias, calculando perdas e ganhos. Todo mundo
precisa de um torrão de açúcar para se dar ao trabalho e à agonia de participar de
eleições. Mas para quem é homem hétero, cis, branco e cristão, a esquerda identitária
oferece apenas uma culpa e um conjunto de dívidas e obrigações daí decorrentes. Ora,
ninguém gosta de se sentir culpado nem de assumir responsabilidade por pecados,
principalmente quando julga que não os cometeu. Nem gosta de ouvir o tempo todo
que tudo em sua vida é resultado de privilégios, principalmente quando olha em volta e
vê que tem menos do que mereceria ter. Ou nem se considera propriamente uma pessoa
desprovida de méritos, esforços e sacrifícios, que não tenha que matar um leão por dia,
que não tenha tido que enfrentar desvantagens e dificuldades. Mas a esquerda identitária
basicamente diz para esse sujeito que sua vida se resume a privilégios, que ele é parte da
injustiça social e que tem que se acostumar a perder para que os outros possam, enfim,
ganhar alguma coisa.
O bolsonarismo faz parte de uma onda mundial de guinada à direita conservadora, que
tem um dos seus fundamentos na chamada guerra cultural. Trata-se, dentre outras
coisas, de uma reação (e de um reacionarismo) aos avanços liberais em pautas
relacionadas a minorias e a controvérsias morais. Mas é também um movimento
importante no jogo na política identitária.
A luta identitária
Política identitária (identity politics), para quem não sabe, é uma forma de politização
das contraposições entre determinados grupos sociais cujos membros reconhecem que o
seu pertencimento é compelido por aspectos da sua identidade. Exemplos de tais
identificações são grupos de referência – ou “comunidades”, como dizem os americanos
–, como aqueles baseados em cor, sexo, orientação sexual, etnia, em deficiências,
dialetos, origem geográfica, identidade de gênero etc. O mundo da luta identitária acaba
se tornando um conjunto de peças que nunca formam um mosaico, porque há
superposições e há colisões, em que cada pauta identitária tende a se fragmentar em um
processo infinito, uma vez que constantemente aparece uma nova microidentidade se
desgarrando do núcleo a que se vinculava e reivindicando o direito à
autorrepresentação. Estabelecido o princípio de que só a autorrepresentação é a
autêntica representação e estabelecida uma ética de convivência que se move pela
inclusão de qualquer reivindicação de identidade, o resultado é uma fragmentação
infinita assumida como destino.
Uma forte vertente da política baseada em identidades é aquela que estabelece que os
grupos identitários são oprimidos e que o caminho para a justiça passa pela remoção da
opressão. Antes, a identificação do tipo de opressão a que cada comunidade está
submetida é o princípio de corte identitário: quem sofre da mesma opressão, se
identifica uns com os outros sob aquele aspecto. Depois, no interior do recorte feito, vão
se identificando sucessivos estratos de opressão, a que parte dos membros da
comunidade estão submetidos e outra parte não, que fornecem sucessivos pontos de
corte, identidade dentro das identidades, até que não se tenha mais nada para cortar.
“Átomo”, em grego, significa literalmente o que não pode mais ser cortado ou
recortado. Individuum, em latim, é o que não pode mais ser dividido. A atomização é
para onde se dirige a lógica dos cortes e recortes que perpassam a política identitária.
A esquerda identitária precisa decidir o que disputa no campo político, se quer ganhar
eleições ou se quer simplesmente vencer o campeonato de superioridade moral.
Superioridade moral é importante, mas ter razão não é superior a ter votos se o
propósito é ganhar disputas eleitorais. De fato, a democracia tem em seu cerne este
inconveniente: para governar você precisa ter a maioria do seu lado. Um lado não
precisa necessariamente ser melhor que o outro, mas precisa ser maior. E o seu lado não
se torna maior apenas porque você acredita ter superioridade moral. A esquerda tem
grande dificuldade de entender isso e trata a disputa eleitoral como se fosse uma
extensão das tretas e disputas que ambientes acadêmicos dominantemente de esquerda
mantêm, em moto contínuo, no seu interior. Com isso, fala cada vez mais para si mesma
e cada vez menos com os que estão fora dos muros de autocomplacência e de extrema
afinidade em que se refugia.
Satanizações
O que o bolsonarismo vendeu foi a ideia de que se você é cis, branco e hétero, a
esquerda/os comunistas/os direitos humanos/os petistas lhe farão arrastar correntes para
sempre, farão políticas públicas para transferir seus direitos para as suas minorias
preferidas, não reconhecerão seus méritos e valores e ainda destruirão a sua imagem. A
satanização consiste justamente nisto: em demonstrar que o outro deve ser temido,
odiado e, quando surgir a oportunidade, exorcizado. Ambos os lados, o bolsonarismo ou
a esquerda identitária, satanizam o seu inimigo predileto. Mas neste momento, no
Brasil, o bolsonarismo foi mais eficiente em converter a satanização em voto. E em
produzir uma “metassatanização”: a satanização da satanização das pessoas brancas, cis,
hétero, cristãs.
VITOR SOUZA
06/07/2018
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Ilustração Medium
A pauta identitária e a divisão da esquerda, por Vitor Fernandes
Recentemente, em uma aula, após passar o documentário “The mask you live in” que
discute os papeis de gênero, mais precisamente como a cultura do machismo afeta os
homens também, um aluno reclama: “professor eu queria assistir um documentário de
direita também”. O aluno, que se identifica como direitista, pressupunha que o
documentário era “esquerdista”.
Em outra aula, essa de política, quando perguntei o posicionamento político dos alunos,
o que majoritariamente foi apresentado como identificação política eram os
posicionamentos frente às questões da “pauta polêmica” ou da “pauta identitária”:
casamento lgbt, feminismo, legalização da maconha, “bandido bom é bandido morto”,
cotas para negros em universidades, etc.
Esses exemplos, associados a vários outros, deixam claro, a meu ver, que a pauta
identitária (a pauta polêmica de modo geral) têm se sobreposto de longe às pautas
típicas da esquerda, ou seja, a pauta classista, focado nas questões econômicas, de
promoção de uma revolução socialista (cada vez mais fraca) ou de políticas de redução
das desigualdades sociais.
Leia também: Manchas de petróleo: encobrindo o crime ambiental, por Gustavo Gollo
Eu, quando escrevi o texto que viralizou no fim de 2016, “professor, o senhor é gay?”,
em que relatava uma aula sobre gênero e sexualidade, fui acusado por várias pessoas de
estar querendo tomar à frente na fala, pois sou um homem branco, hétero que estava
falando sobre gênero e sexualidade e esse não era o meu “local de fala”.
O fortalecimento dos discursos identitários pode ser visto nos discursos e posts sobre a
morte da vereadora Mariele Franco (PSOL/RJ), o que predominou foi o discurso que ela
foi morta por ser mulher, negra e lésbica, o que considero no mínimo um enorme
exagero e um erro de análise e apaga o seu importante trabalho como vereadora que
investigava a ocupação militar e denunciava a violência policial em áreas pobres.
Outro exemplo é o mapa de votos do deputado federal Jean Wylys, que é fortemente
concentrado em áreas ricas da cidade do Rio de Janeiro, especialmente a zona sul.
Embora o Jean seja do PSOL, um partido de esquerda, o seu eleitor, é o do movimento
LGBT, contendo muitos com posicionamentos políticos à direita, que pressionam cada
vez mais o Jean pela troca de partido.
Esses exemplos que dei acima mostram o quanto a pauta identitária têm suplantado as
pautas classistas na esquerda e a própria esquerda têm usado essa estratégia de focar
parte significativa de seu discurso e de sua ação nessa pauta, que está em voga.
A meu ver, isso mostra o quanto o capitalismo é triunfante em nosso momento histórico
e até parte significativa da esquerda têm se esquecido cada vez mais da pauta classista e
focado na pauta identitária e é um dos muitos fatores que explica o voto da esquerda se
concentrar nas camadas médias e raramente penetrar a classe baixa. Mas esse ponto, eu
desenvolverei em outro artigo, junto com a questão ideológica (no sentido marxista) dos
novos movimentos sociais.
O foco na pauta identitária acaba funcionando como um véu que esconde, de certo
modo, as contradições de classe na sociedade e afasta parte do “cidadão médio”,
geralmente conservador, da esquerda e o entrega de mãos beijadas para a direita
conservadora ou até fascista como Bolsonaro e cia.
Não estou aqui criticando esses “novos” movimentos sociais de modo geral, mas o que
para mim são os seus “excessos”. Esses movimentos são extremamente importantes e
explicitam outras opressões que historicamente a esquerda também negligenciou, e isso
precisa ser corrigido.
Precisamos retomar a questão de classe, pois a direita está passando o “rodo” em nós e
na esquerda fica um chamando o outro de “esquerdomacho”, “transfóbico”,
Ah, claro que serei acusado de ter escrito esse texto por ser homem, hetero, machista,
homofóbico, branco, etc. por ter escrito esse artigo. Afinal, o que importa é a identidade,
no é?