Por Que Ler Hoje
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Kelsen pertenceu, inicialmente, Ao chamado Círculo de Viena que, no
começo deste século, reunia intelectuais do porte de Carnap, Wittgenstein,
Schlick, Freud, e do qual ele foi jurista. Sua, por ele mesmo denominada, teoria
pura do direito logo conheceu grande respeito para além das fronteiras
austríacas. Assim, em 1931, por ocasião de seus 50 anos, uma obra contendo
ensaios em sua homenagem já podia dar o testemunho de sua importância em
todo o mundo. Nesta coletânea, o coreano Tomoo Otaka exigia que a
metodologia kelseniana devesse significar, no futuro (estávamos em 1931), a
única forma possível de conhecimento autônomo do direito. E o japonês
Kisaburo Yokota o mencionava, ao lado de Stammler, como o mais significativo
filósofo do direito da atualidade (Festschrift Hans Kelsen, Viena, 1931, págs. 110
e 397). O espanhol Luis Legaz y Lacambra afirmava, no mesmo livro, que o
pensamento jurídico do século XX teria de ser "um permanente dialogo com
Kelsen" (pág. 173). E de fato, 32 anos depois, em Salzburg, num simpósio sobre
“O Direito Natural na Teoria Política”, a disputa em torno de suas ideias
ocuparia de forma preponderante os participantes.
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repercutiam intensamente no começo do século XX. A presença avassaladora do
chamado “positivismo jurídico”, de várias tendências, somada à reação dos
teóricos da “livre interpretação do direito”, punha em questão a própria
autonomia da ciência jurídica. Para alguns, o caminho dessa metodologia
indicava para um acoplamento com outras ciências humanas, como a sociologia,
a psicologia e até com princípios das ciências naturais. Para outros, a liberação
da ciência jurídica deveria desembocar em critérios de livre valoração, não
faltando os que recomendavam uma volta aos parâmetros do direito natural.
Nesta discussão, o pensamento de Kelsen seria marcado pela tentativa de
conferir à ciência jurídica um método e um objetivo próprios, capazes de
superar as confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia
científica.
Foi com esse propósito que Kelsen propôs o que denominou “princípio da
pureza”, segundo o qual método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como
premissa básica, o enfoque normativo. Ou seja, o direito, para o jurista, deveria
ser encarado como norma (e não como fato social ou como valor
transcendente). Isso valia tanto para o objeto quanto para o método.
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época. A consciência humana, diz ele, ou vê as coisas como elas são (“a mesa é
redonda”) ou corno elas devem ser (“a mesa deve ser redonda”). Normas,
nestes termos, são prescrições de dever ser. Elas conferem ao comportamento
humano um sentido, o sentido prescritivo. Assim, levantar o braço numa
Assembleia pode ter um sentido descritivo (fulano levantou o braço) ou um
sentido prescritivo (levantar o braço deve ser entendido como voto a favor de
uma proposta). Enquanto prescrição, a norma é um comando, ou seja, ela é o
produto de um ato de vontade, que proíbe, obriga ou permite um
comportamento.
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dinheiro do comando de um fiscal está na primeira norma de hierarquia. Fonte
da juridicidade (o fiscal só não é assaltante porque tem competência legal para
exigir), a norma fundamental é valorativamente neutra. Todo o universo
normativo tem validade em função dela. Mas dela não se pode exigir que seja
justa. Mesmo uma norma fundamental injusta valida o direito que dela decorre.
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de um ordenamento (jurídico ou moral). Esta é absoluta, pois sem ela é
impossível pensar um complexo de normas como uma unidade válida, por
conseguinte, dizer se uma prescrição qualquer vale ou não. Mas essa norma não
é posta por nenhuma autoridade nem prescreve nenhum conteúdo específico.
Ela apenas obriga o pensador a tomar um conteúdo prescritivo posto, como o
primeiro de uma série. Ela é, como diz Kelsen, um “pressuposto formal da razão
normativa”.
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descontínua, perdendo o caráter de ordem. Ou seja, desapareceria o Estado.
Isto porque, para Kelsen, do ponto de vista da ciência jurídica, direito e Estado
se confundem. Direito é um conjunto de normas, uma ordem coativa. As
normas, pela sua estrutura, estabelecem sanções. Quando uma norma
prescreve uma sanção a um comportamento, este comportamento será
considerado um delito. O seu oposto, o comportamento que evita a sanção,
será um dever jurídico. Ora, o Estado, neste sentido, nada mais é que o
conjunto das normas que prescrevem sanções de uma forma organizada. Trata-
se, pois, do complexo das normas que comandam punições e das que
estabelecem as competências respectivas. Sem esta ordem normativa, o Estado
deixa de existir juridicamente falando. Um Estado que é só força, só poder, só
violência, ainda que eficaz, mas cujos comandos não constituem uma ordem,
uma relação orgânica de normas sancionadoras e normas de competência, não
pode ser considerado como tal do ângulo da ciência jurídica.
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como pode, desde que a plausibilidade do seu raciocínio não fosse destruída.
Mas, foi também capaz, como sucedeu no referido simpósio de 1963, de
reconhecer, num ponto nuclear de sua doutrina, que estava sendo obrigado a
mudar seu pensamento a respeito da norma fundamental, após inúmeros anos
de meditação e afirmação de uma mesma teoria. Já passava, nesta época, dos
80 anos. Pois sua obra póstuma veio a confirmar que não parou naquela frase,
revendo, efetivamente, aspectos centrais do seu pensamento, dando até o fim
o testemunho de uma vida dedicada à ciência.
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